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ISSN 1517-2422 cadernos metrópole direito à cidade na metrópole Cadernos Metrópole v. 14, n. 28, pp. 283-580 jul/dez 2012 Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–, Semestral ISSN 1517-2422 A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22 1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos. I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles CDD 300.5 Periódico indexado na Library of Congress – Washington Cadernos Metrópole Profa. Dra. Lucia Bógus Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes 05015-001 – São Paulo – SP – Brasil Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles Av. Pedro Calmon, 550 – sala 537 – Ilha do Fundão 21941-901 – Rio de Janeiro – RJ – Brasil Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 São Paulo – SP – Brasil Telefax: (55-11) 3368.3755 [email protected] http://web.observatoriodasmetropoles.net Secretária Raquel Cerqueira direito d i r e i to oàc cidade idade na n am metrópole etrópole PUC-SP Reitor Dirceu de Mello EDUC – Editora da PUC-SP Direção Miguel Wady Chaia Conselho Editorial Ana Maria Rapassi, Cibele Isaac Saad Rodrigues, Dino Preti, Dirceu de Mello (Presidente), Marcelo da Rocha, Marcelo Figueiredo, Maria do Carmo Guedes, Maria Eliza Mazzilli Pereira, Maura Pardini Bicudo Véras, Onésimo de Oliveira Cardoso Coordenação Editorial Sonia Montone Revisão de português Eveline Bouteiller Revisão de inglês Carolina Siqueira M. Ventura Projeto gráfico, editoração e capa Raquel Cerqueira Rua Monte Alegre, 984, sala S-16 05014-901 São Paulo - SP - Brasil Tel/Fax: (55) (11) 3670.8085 [email protected] www.pucsp.br/educ cadernos metrópole EDITORES Lucia Bógus (PUC-SP) Luiz César de Q. Ribeiro (UFRJ) COMISSÃO EDITORIAL Eustógio Wanderley Correia Dantas (UFC, Fortaleza/Ceará/Brasil) Luciana Teixeira Andrade (PUC-MG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Orlando Alves dos Santos Júnior (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Sérgio de Azevedo (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Suzana Pasternak (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) CONSELHO EDITORIAL Adauto Lucio Cardoso (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Aldo Paviani (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Alfonso Xavier Iracheta (El Colegio Mexiquense, Toluca/Estado del México/México) Ana Fani Alessandri Carlos (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ana Lucia Nogueira de P. Britto (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (UFBa, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi (UNGS, Los Polvorines/Provincia de Buenos Aires/Argentina) Anna Alabart Villà (UB, Barcelona/Espanha) Arlete Moyses Rodrigues (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (UFF, Niterói/Rio de Janeiro, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (PUC, Santiago/Chile) Carlos José Cândido G. Fortuna (UC, Coimbra/Portugal) Cristina López Villanueva (UB, Barcelona/Espanha) Edna Maria Ramos de Castro (UFPA, Belém/Pará/Brasil) Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz Sánchez (PUCSP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Fernando Nunes da Silva (UTL, Lisboa/Portugal) Frederico Rosa Borges de Holanda (UnB, Brasília/ Distrito Federal/Brasil) Geraldo Magela Costa (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Gilda Collet Bruna (UPM, São Paulo/São Paulo/Brasil) Gustavo de Oliveira Coelho de Souza (PUCSP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heliana Comin Vargas (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Heloísa Soares de Moura Costa (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Jesús Leal (UCM, Madri/Espanha) José Antônio F. Alonso (FEE, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (UL, Lisboa/Portugal) José Marcos Pinto da Cunha (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) José Maria Carvalho Ferreira (UTL, Lisboa/Portugal) José Tavares Correia Lira (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Leila Christina Duarte Dias (UFSC, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado da Silva (Iuperj, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luis Renato Bezerra Pequeno (UFC, Fortaleza/Ceará/Brasil) Marco Aurélio A. de F. Gomes (UFBa, Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento M. Clementino (UFRN, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Marília Steinberger (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Nadia Somekh (UPM, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson Baltrusis (UCSAL, Salvador/Bahia/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG, Belo Horizonte/ Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Sarah Feldman (USP, São Carlos/São Paulo/Brasil) Tamara Benakouche (UFSC, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Vera Lucia Michalany Chaia (PUCSP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Wrana Maria Panizzi (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) COLABORADORES AD HOC Benny Schvasberg (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Denise Cunha Tavares Terra (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/ Brasil) Eduardo César Leão Marques (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Eduardo Marandola Junior (Unicamp, Campinas/São Paulo/ Brasil) Elzira Lúcia de Oliveira (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Felipe Link Lazo (UDP, Santiago/Chile) Fernando Garrefa (UFU, Uberlândia/Minas Gerais/Brasil) Francisco de Assis Comaru (UFABC, Santo André/São Paulo/Brasil) Gislene Aparecida dos Santos (UFPR, Curitiba/Paraná/Brasil) Gustavo Henrique Naves Givisiez (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Humberto Miranda do Nascimento (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Isabel Aparecida Pinto Alvarez (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) João Carlos Ferreira de Seixas (UL, Lisboa/Portugal) João Farias Rovati (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) João Manuel Machado Ferrão (UL, Lisboa/ Portugal) Jorge da Silva Macaísta Malheiros (UL, Lisboa/Portugal) Jorge Manuel Gonçalves (UTL, Lisboa/Portugal) José Geraldo Simões Junior (Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Laura Machado de M. Bueno (PUCCampinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Lia de Mattos Rocha (UERJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Lúcia Cony Faria Cidade (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Luciane Soares da Silva (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/Brasil) Luciano Joel Fedozzi (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) Luís António Vicente Baptista (UNL, Lisboa/Portugal) Márcia da Silva Pereira Leite (UERJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Marcia Maria Cabreira M. de Souza (PUC-SP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Márcio Moraes Valença (UFRN, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Maria Augusta Justi Pisani (Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria Lucia Refinetti R. Martins (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Marísia Margarida Santiago Buitoni (PUC-SP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Marta Domínguez Pérez (UCM, Madri/Espanha) Marta Dora Grostein (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Milena Kanashiro (UEL, Londrina/Paraná/Brasil) Neio Lúcio de Oliveira Camps (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Norma Lacerda (UFPE, Recife/Pernambuco/Brasil) Olga Lucia Castreghini de F. Firkowski (UFPR, Curitiba/Paraná/Brasil) Paulo Jorge Marques Peixoto (UC, Coimbra/Portugal) Paulo Roberto Rodrigues Soares (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) Regina Maria Prosperi Meyer (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Renato Cymbalista (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Ricardo Libanez Farret (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Ricardo Ojima (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Rosana Denaldi (UFABC, Santo André/São Paulo/Brasil) Sérgio Manuel Merêncio Martins (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Silvana Maria Pintaudi (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Sonia Lúcio Rodrigues de Lima (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Sylvio Carlos Bandeira de Mello e Silva (UCSal, Salvador/Bahia/Brasil) Vitor Matias Ferreira (ISCTE-UL, Lisboa, Portugal) Weber Soares (UFMG, Belo Horizonte/ Minas Gerais/Brasil) sumário 291 Apresentação dossiê: direito à cidade na metrópole Vola le capital, dispersed city, segregated 297 Capital volá l, cidade dispersa, espaço space: some notes on the dynamics segregado: algumas notas sobre a dinâmica of the contemporary urban do urbano contemporâneo Adriano Botelho Direito à cidade: um estudo sobre o mercado Right to the city: a study about the informal real 317 imobiliário informal no bairro de Mãe Luiza estate market in the Mãe Luiza neighborhood (Natal/RN) (Natal/Northeastern Brazil) Carmem Cris na Fernandes do Amaral The metropolises also have places. The case 339 As metrópoles também têm lugares. O caso do bairro de Setúbal Nascente, Portugal of the Setúbal Nascente neighborhood, Portugal Jorge Gonçalves António Costa Luís Sanchez Carvalho Civil-military dictatorship and slums: 357 Ditadura civil-militar e favelas: es gma s gma and restric ons to the debate e restrições ao debate sobre a cidade (1969-1973) about the city (1969-1973) Mario Sergio Brum O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro: The right to the city in Rio de Janeiro’s slums: 381 conclusões, hipóteses e questões oriundas conclusions, hypotheses and ques ons de uma pesquisa derived from a research study Alex Ferreira Magalhães Planos diretores e canais democrá cos Master plans and democra c channels of popular 415 de par cipação popular: estudo de 25 planos par cipa on: a study of 25 master plans diretores da RMBH of the Metropolitan Region of Belo Horizonte Renato Barbosa Fontes Léa Guimarães Souki Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 283-580, jul/dez 2012 289 The expansion of the Metropolitan Region 441 A expansão da RM de Belém: reflexões of Belém: reflec ons on the developments sobre os desdobramentos de inves mentos of official investments in housing oficiais em habitação Ana Cláudia Duarte Cardoso Marcília Regina Gama Negrão Glaydson de Jesus Cordovil Pereira The right to the everyday space: housing and 463 Direito ao espaço co diano: moradia autonomy in the master plan of a metropolis e autonomia no plano de uma metrópole Silke Kapp Challenges to the implementa on 485 Desafios para implementação de Zonas Especiais of Social Housing Zones in Fortaleza de Interesse Social em Fortaleza Renato Pequeno Clarissa F. Sampaio Freitas The right to the city in dispute: 507 O direito à cidade em disputa: o caso the case of the Zeis of Lagamar da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) (Fortaleza – Northeastern Brazil) Linda Maria de Pontes Gondim Marília Passos Apoliano Gomes Proposal of an index of sustainable mobility: 529 Proposta de índice de mobilidade sustentável: methodology and applicability metodologia e aplicabilidade Laura Machado Emilio Merino Dominguez Miroslova Mikusova Routes of the right to the city: state’s 553 Percursos do direito à cidade: provisão estatal and companies’ provision of popular housing e empresarial de moradia popular na RM de Belém in the Metropolitan Region of Belém Simaia do Socorro Sales das Mercês 579 Instruções aos autores 290 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 283-580, jul/dez 2012 Apresentação Presenciamos uma fase paradoxal na atual trajetória das metrópoles brasileiras. Após um longo período de reestruturação defensiva e enxugamento das principais plantas industriais, não acompanhados por políticas tecnológica e industrial compensatórias, que era marca da abertura descontrolada da economia nacional ao longo dos anos de 1990, verificamos, na última década, uma retomada das taxas de crescimento econômico. Tal crescimento também se entrelaça com uma série de políticas públicas federais que apontam para uma perspectiva redistributivista, buscando reduzir as históricas disparidades socioespaciais e regionais na sociedade brasileira. Isso não apenas se reflete na escala nacional do Estado brasileiro, na retomada de um esforço sistêmico de planejamento e gestão e na (re)institucionalização de áreas como a política industrial, tecnológica, regional e urbana, mas também repercute na criação de planos e programas específicos com maior ênfase na coesão socioespacial, como o Plano Nacional de Desenvolvimento Regional, o Plano Nacional de Habitação, o Bolsa Família e os territórios de Cidadania, entre outros exemplos. A maior atuação do Estado na economia e no território encontrou respaldo em um processo de fortalecimento institucional e jurídico, com democratização e maior controle social sobre as políticas públicas. A aprovação do Estatuto das Cidades, por exemplo, abriu uma perspectiva concreta para a elaboração e implantação dos Planos Diretores municipais participativos que proporcionassem maior alavancagem do Estado sobre o mercado imobiliário e fundiário, enquanto este processo participativo também enraizou-se mediante a proliferação dos conselhos tripartites em várias áreas temáticas e escalas da organização do Estado brasileiro. Houve também avanços no que diz respeito ao planejamento e gestão dos serviços de interesse comum na metrópole, considerando a aprovação da Lei dos Consórcios Públicos, e um arcabouço jurídico que dialoga com as premissas da governança colaborativa em setores como o de tratamento de resíduos sólidos e o de saneamento ambiental. Ao mesmo tempo, após um “silêncio” de quase duas décadas, vários estados lançaram mão de iniciativas em torno da organização e gestão institucional das áreas metropolitanas. Desde meados da primeira década de 2000, por exemplo, Minas Gerais desencadeou a discussão sobre o novo desenho institucional Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 291-295, jul/dez 2012 291 Apresentação da região de Belo Horizonte, o que resultou na criação de um Conselho Deliberativo, uma Assembleia e uma Agência Metropolitana, bem como a aprovação, em 2011, de um novo Plano de Desenvolvimento Integrado (PDI) Participativo, elaborado em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). São Paulo, por sua vez, formalizou por lei, em junho de 2011, a reorganização de sua Região Metropolitana, assim como criou, em janeiro de 2012, a nova Região Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte. Diferentemente do quadro do ajuste fiscal contínuo dos anos 90, o crescimento econômico proporcionou maior disponibilidade de recursos financeiros para dar “um arranque” à atuação do Estado no espaço urbano-regional, o que culminou na ampliação dos macrofinanciamentos – principalmente via o Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC) e o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) – o que resultou na injeção de volumosos recursos financeiros federais para a infraestrutura urbana, logística, energia e moradia nas cidades metropolitanas. Entretanto, e daí o paradoxo, esse ambiente macroinstitucional e político, propício à articulação de um projeto político alternativo – por alguns já rotulado como o novo desenvolvimentismo – não desencadeou uma práxis transformadora para as metrópoles brasileiras. Essas continuam marcadas por desconexões e contradições nas diversas políticas públicas que (re)produzem o espaço, assim como pelo dinamismo econômico acompanhado por grandes disparidades socioespaciais e de acesso aos serviços urbanos e ambientais. Passados mais de 10 anos, cabe lembrarmos os desafios que cercaram a implementação do Estatuto da Cidade, que representou um avanço, considerando a institucionalização de uma agenda em torno da regulamentação e aplicação dos instrumentos urbanísticos no âmbito dos Planos Diretores municipais. Ao mesmo tempo, à luz da herança da era tecno-burocrata centralizada, também atrelada à agenda metropolitana, o movimento da Reforma Urbana travou essa disputa na escala local, na qual encontraria agentes sociais e econômicos (dentro e fora do Estado) com grande capacidade e poder de articulação de outras escalas, e em torno de um projeto alternativo, no caso, voltado para a produção econômica e a competitividade a qualquer custo. Nesse sentido, o primeiro balanço pós-Estatuto nas principais metrópoles brasileiras não foi muito animador, pois apontou que, apesar da proliferação dos Planos Diretores locais participativos formalmente alinhados com o Estatuto das Cidades, a maioria dos municípios deparou-se com desafios para efetivamente regulamentar e aplicar os instrumentos urbanísticos “progressistas”. Mesmo em cidades preparadas técnica e politicamente para enfrentar interesses enraizados em torno do ambiente construído e que, de fato, discutiram e aprovaram um Plano Diretor que previa os instrumentos e sua aplicação no território local, apresentaram dificuldade para consolidar avanços, como foi o caso da cidade de Santo André, no período de 2003 a 2007. De certa forma, e talvez polemizando o debate, é preciso mencionar que a escolha da escala local como arena privilegiada para efetuar o projeto da reforma urbano-social, quando das discussões que culminaram na Constituição de 1988, mostrou-se como aquilo que se pode chamar de uma armadilha. Isso porque, considerando os desafios reais para viabilizar a função social da cidade, na escala da metrópole, os obstáculos apenas se agravaram. A maioria das cidades não 292 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 291-295, jul/dez 2012 Apresentação se articulou com as demais para definir metodologias e índices urbanísticos a serem usados no Plano Diretor, o que fragilizou a capacidade de garantir um controle social mínimo sobre a atuação e organização do mercado imobiliário em escala regional-metropolitana. Por sua vez, o mercado imobiliário, como é de conhecimento comum, após a ruptura do sistema de regulação monetária do Bretton Woods e o aprofundamento da globalização financeira, ganhou capacidade de articular as diversas escalas e circuitos econômicos, desde o regional-metropolitano até a global. O encolhimento da escala da metrópole como espaço da reprodução social, do valor de uso e da própria vida, não foi apenas um desdobramento da “estratégia subversiva” do capital imobiliário-financeiro ou da armadilha local dos agentes alinhados com a Reforma Urbana. Esse estreitamento do horizonte foi também reforçado pelo deslocamento da agenda pautada pelo planejamento da função social da terra e da cidade – mais complexa, demorada e contestada – para a construção de novas engenharias financeiro-institucionais em torno do planejamento e execução de projetos de infraestrutura e de empreendimentos habitacionais. Em uma análise mais histórica, é possível problematizar tal démarche para muito além do PMCMV e PAC; na realidade, trata-se de mais um passo na trajetória de financeirização da política urbana e habitacional, alinhada com a tendência internacional marcada pela confluência entre Estado (nacional) e o capital imobiliário e financeiro na execução dessas políticas públicas. No caso brasileiro, esse entrosamento tardio foi iniciado nos anos 90 com a criação do Sistema Financeiro Imobiliário e outras “inovações” regulatórias. Portanto, diferentemente dos objetivos proclamados pela reforma urbana, as primeiras evidências apontam que a ampliação dos financiamentos e da oferta imobiliária apenas aumentou os preços finais dos produtos, fazendo com que o grupo alvo, que ganha até três salários mínimos, permaneça compondo a maior parcela do déficit habitacional em áreas metropolitanas. Para dimensionar bem as contradições socioespaciais e ambientais que estão em jogo, cabe lembrar que a retomada de crescimento econômico transformou as metrópoles em arena privilegiada, tanto do setor privado, quanto do Estado desenvolvimentista, para a implementação de um conjunto de grandes projetos urbanos (novos e/ou engavetados em ciclos anteriores), os quais, sem controle sobre a valorização imobiliária, tenderão a agravar as disparidades socioespaciais. Esta edição reúne textos que dialogam com o paradoxo mencionado acima. Buscam avançar na compreensão dos limites e potencialidades do direito à cidade em um cenário pós-lefebvriano, que faz jus aos entrelaçamentos complexos de globalização dos circuitos financeiros e produtivos, reestruturação das escalas territoriais de poder e das formas de organização e atuação do Estado na (re)produção do espaço na metrópole contemporânea. O texto de Adriano Botelho inicia o primeiro bloco de artigos que remete às dinâmicas imobiliárias, retomando a tese lefebvriana acerca do papel do espaço na reprodução da dinâmica capitalista e problematiza as metrópoles dispersas e desiguais na fase mais recente do capitalismo mundial, marcada pelas confluências entre o circuito imobiliário e financeiro. No plano específico, Carmen Cristina Fernandes do Amaral investiga como as tensões e disputas em torno do ambiente construído e do direito à moradia concretizam-se no Bairro de Mãe Luiza, em Natal, que concentra Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 291-295, jul/dez 2012 293 Apresentação grande número de assentamentos precário-informais e que se transforma, em função da sua localização e do crescimento do turismo, em objeto de interesse do mercado imobiliário formal. Jorge Gonçalves, Antônio Costa e Luís Sanchez Carvalho discutem, no bojo da reestruturação do capitalismo ibérico, os limites e potencialidades de um esforço de “relançamento” da cidade de Setúbal (Portugal), após a desindustrialização e a desestruturação da oferta de serviços públicos de um Estado há muito em crise. No segundo bloco, seguem dois textos que analisam as dimensões materiais e imateriais da atuação e organização do Estado sobre as favelas. Mario Sérgio Brum aprofunda a compreensão das condições históricas, políticas e ideológicas, já estruturadas na conjuntura democrática, a partir de uma representação do favelado como alguém marginal, sem “direito à cidade”, que viabilizaram a política de remoção das favelas cariocas, no período de 1968-1973, promovida pelo regime militar. Alex Ferreira Magalhães, valendo-se do cenário da urbanização e regularização de favelas a partir do momento que esse se tornou política nacional, problematiza o atual “estado da arte” da regulação das favelas, suas fontes materiais e seu código de valores, dentro e fora da favela. O terceiro conjunto de textos analisa dinâmicas territoriais e estratégias de atuação contemporâneas do Estado em áreas metropolitanas. Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki apresentam um balanço dos 25 Planos Diretores municipais da região metropolitana de Belo Horizonte sob o prisma do amadurecimento do processo de participação popular; enquanto Ana Cláudia Duarte Cardoso, Marcília Regina Gama Negrão e Glaydson de Jesus Cordovil Pereira avaliam a permanência de contradições na reprodução do espaço urbano-regional na região metropolitana de Belém a partir da implementação do PAC e PMCMV. Silke Kapp apresenta elementos de uma abordagem da temática habitacional elaborada no âmbito dos estudos para o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDIRMBH), com foco na autonomia coletiva na produção do espaço cotidiano, isto é, a habitação e o ambiente urbano na escala que chamam de microlocal. O último bloco de textos prioriza a análise dos diversos instrumentos e políticas setoriais na metrópole. O texto do Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas discute os desafios para a implementação das Zonas Especiais de Interesse Especial na cidade de Fortaleza, enquanto a contribuição de Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes avalia a aplicação do instrumento nessa cidade no bairro específico de Lagamar. Laura Machado, Emilio Merino Dominguez e Miroslova Mikusova discutem o potencial de o índice de Mobilidade Sustentável subsidiar o planejamento e a gestão de mobilidade, e apontam deficiências nessa área na região metropolitana de Porto Alegre. Por fim, Simaia do Socorro Sales das Mercês apresenta um primeiro balanço do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) na região Metropolitana de Belém, com ênfase nas questões de localização e produção do espaço urbano-metropolitano, inclusive à luz dos resultados do PAC-urbanização. 294 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 291-295, jul/dez 2012 Apresentação A leitura dos textos nesta edição estimula-nos a refletir sobre os limites e potencialidades para a construção de representações alternativas, assim como uma práxis transformadora para a vida na metrópole. Nesse sentido, são inegáveis os desafios associados à montagem de uma “utopia concreta” para a metrópole, que não apenas passa pela articulação de escalas políticas, circuitos econômicos (primário, secundário, terciário etc.) e de tempos (pois, no capitalismo de débito e crédito, a renda associada ao trabalho futuro já foi hipotecada), mas também pela elaboração de estratégias discursivas e práticas espaciais contra-hegemônicas em tempos de globalização neoliberal. Jeroen Klink Orlando Alves dos Santos Jr. Organizadores Cadernos Metrópole Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 291-295, jul/dez 2012 295 Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado: algumas notas sobre a dinâmica do urbano contemporâneo* Volatile capital, dispersed city, segregated space: some notes on the dynamics of the contemporary urban Adriano Botelho Resumo Nas últimas décadas, o modo de produção capitalista tem passado por importantes transformações, dentre as quais se destacam a maior mobilidade e flexibilidade de um capital crescentemente desregulado e financeirizado. Nesse contexto, um novo espaço, consumido e produzido pelo capital em mutação, surge, caracterizado pela urbanização do planeta, na qual se destacam as grandes metrópoles dispersas e marcadas pela segregação. O presente artigo tem por objetivo tratar algumas das relações entre as transformações do capitalismo contemporâneo e a produção do espaço, elemento cada vez mais estratégico para a reprodução do capital financeirizado. Abstract Palavras-chave: capital financeiro; produção do espaço; urbanização; cidade dispersa; segregação socioespacial. Keywords: financial capital ; space production; urbanization; sprawl; socio-spatial segregation. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 In the last decades, capitalism has been undergoing important transformations, among which we highlight the greater mobility and flexibility of an increasingly deregulated and financialized capital. In this context, a new space, consumed and produced by this capital in mutation, has emerged, characterized by the world’s urbanization, in which we can highlight the large dispersed and segregated metropolises. This paper aims to deal with some of the relations between the transformations in contemporary capitalism and space production, an element that is becoming more and more strategic to the reproduction of the financialized capital. Adriano Botelho Introdução O desenvolvimento do ambiente construído possui estreita relação com as transformações observadas no modo de produção capitalista. A maior mobilidade do capital, sua expansão geográfica, ainda que em pontos selecionados do planeta, a “compressão espaço-temporal” (Harvey, 1993) derivada nas revoluções nos meios de transporte e de comunicações, o processo de crescente financeirização dos circuitos do valor, acompanhada pela desregulamentação dos mercados, que se tornam altamente instáveis e voláteis, são alguns dos elementos que caracterizam esse modo de produção nas últimas décadas e que constituem parte de sua resposta à crise econômica iniciada na década de 1970. Tais transformações têm seu correlato espacial: a dispersão do tecido urbano, o aprofundamento do processo de segregação socioespacial e a constante degradação da vida nas grandes cidades do planeta. Pois, como nos lembra Indovina (1982), a crise da sociedade é também uma crise da cidade. O presente artigo tem por objetivo relacionar os recentes movimentos de transforma- com a acumulação do capital, até o ponto em que é difícil extirpar uma da outra”. Grandes operações de rearranjo urbanístico são levadas a cabo pelo Estado, atendendo a interesses privados ligados ao capital monopolista, com a finalidade de criar novos espaços que sirvam à lógica da reprodução capitalista. A desregulamentação crescente do mercado, um dos pilares do credo neoliberal hegemônico nas políticas econômicas das últimas décadas, tem, por sua vez, sua contraparte espacial: a dispersão do espaço construído, a proliferação de áreas cercadas e de acesso restrito, a segregação dos mais pobres em áreas distantes dos centros de produção, consumo e lazer. No próximo item do presente artigo, serão tratadas algumas das recentes transformações no modo de produção capitalista, que culminam na predominância do capital financeiro e de sua expressão mais atual: a instabilidade dos mercados. Em seguida, serão estudados dois fenômenos inter-relacionados entre si e com a dinâmica do capital: a dispersão do tecido urbano e a segregação socioespacial. E, por fim, serão apresentadas as considerações finais do presente artigo. ção do capital, sobretudo sua financeirização e sua desregulamentação, com a dinâmica urbana de dispersão e de aprofundamento da segregação socioespacial, em um contexto em que a produção e o consumo do espaço passam a ser elementos estratégicos para a acumulação do capital, acumulação que é cada A dinâmica do capital contemporâneo: financeirização e desregulamentação vez mais dependente dessa produção e desse consumo (Lefebvre, 1999). Segundo Harvey Segundo Belluzzo (1997, p. 184), escrevendo (2010, p. 146), a produção do urbano, onde na década de 1990, “mudanças relevantes vive a maior parte da população mundial ho- vêm ocorrendo no mercado mundial, nas for- je, “tornou-se mais estreitamente entrelaçada mas de organização empresarial, nas normas 298 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado de competitividade, para não falar das trans- Os novos sistemas financeiros imple- formações na órbita financeira e monetária, de mentados a partir de 1972 mudaram o equilí- longe as mais significativas”. Tais mudanças brio de forças em ação no capitalismo global, foram uma resposta à crise vivenciada pelos dando muito mais autonomia ao sistema ban- países capitalistas a partir da década de 1970, cário e financeiro em comparação com o finan- quando um novo conjunto de estratégias in- ciamento corporativo, estatal e pessoal (Harvey, terligadas de reprodução do capital passou a 1993). O capital financeiro passou a ser, então, tomar forma. Problemas de rigidez nos merca- um fator decisivo nas estratégias de reprodu- dos, nos investimentos, nas formas de produ- ção do capital. Ao lado da explosão de novos zir e nas relações entre o capital e o trabalho instrumentos e produtos financeiros, observou- passaram a emperrar a acumulação, marcada -se um incremento dos valores transacionados por duas décadas de crescimento vigoroso no no mercado financeiro mundial. pós-Segunda Guerra. Medidas de flexibiliza- O peso do capital financeiro na maior ção das atividades no interior das fábricas, economia do planeta, a dos Estados Unidos, de liberalização dos mercados financeiros, de é ilustrativo de sua importância e magnitude desregulamentação da economia (com espe- no modo de produção capitalista contempo- cial desmantelamento das regulamentações râneo. Segundo o informe “Financial Crisis do mercado de trabalho), uniram-se ao fim dos Inquiry Report” do Congresso norte-americano compromissos historicamente assumidos entre (Financial Crisis Inquiry Comission, 2011), em o Estado, o capital corporativo e os sindicatos 2006, os lucros do setor financeiro nos Estados nos países economicamente desenvolvidos pa- Unidos representavam 27% do total de lucros ra superar os problemas de rigidez enfrentados auferidos por todas as corporações do país. E pelo capital. Nesse contexto, “a inovação nos os chamados commercial papers (notas pro- sistemas financeiros parece ter sido um requisi- missórias, emitidas por sociedades por ações, to necessário para superar a rigidez geral, bem destinadas à oferta pública), que em 1980, como a crise temporal, geográfica e até política somavam US$125 bilhões, chegaram à cifra de peculiar em que o fordismo caiu no final da dé- US$1,6 trilhão em 2000 (idem). cada de 60” (Harvey, 1993, p. 184). As condições políticas para a liberaliza- O advento da maior importância do ca- ção dos mercados financeiros (mas também pital financeiro está intimamente ligado ao comerciais, de investimentos externos diretos e aumento de sua mobilidade em suas diversas de trabalho) foram reunidas, em primeiro lugar, formas e à sua expansão geográfica, através nos Estados Unidos de Ronald Reagan e no Rei- de praças financeiras offshore (chamadas de no Unido de M. Tatcher, com a chamada “revo- paraísos fiscais) e da transnacionalização cres- lução conservadora” (Chesnais, 1997) por eles cente de empresas e bancos ocorrida a partir levada a termo, como resposta ao fracasso das de fins da década de 1960 e intensificada a políticas keynesianas de retomada da deman- partir da crise capitalista da década de 1970 da, à estagflação do final da década de 1970 (Hymer, 1983). e à vontade de acabar com as condições que Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 299 Adriano Botelho ainda permitiam aos assalariados defenderem de seus clientes por meio da especulação que seu poder de compra e suas conquistas sociais. se dá em nível internacional e num ritmo cada Segundo Martin & Schumann (1998, p. 72), “foi vez mais desenfreado. por ação política e legislação direcionada, de Esses agentes financeiros buscam, in- parte dos governos democraticamente eleitos, cansavelmente, para sua própria sobrevivên- que se desenvolveu o sistema econômico ho- cia, melhores oportunidades para aplicar seus je independente chamado mercado financeiro recursos. Essas oportunidades foram, em gran- global”. A liberalização dos mercados financei- de parte, atendidas pelos governos que busca- ros correspondeu à necessidade dos governos vam formas de financiamento pouco traumá- de financiarem suas dívidas e seus déficits de ticas em termos de custos políticos por meio forma não inflacionária (sem recorrer à emissão da emissão de títulos de dívidas (também de moeda) ou sem efetuarem grandes ajustes chamada de securitização1 da dívida pública). políticos em um contexto de crise econômica. Trata-se da substituição do empréstimo con- Os avanços tecnológicos nas comunica- vencional (tradicionalmente conduzido pelos ções de larga distância (através de satélites, bancos) pela emissão de bônus e outros títulos fibra ótica, etc.) também contribuíram para públicos comercializáveis. E a partir desses tí- manter as diversas praças financeiras conecta- tulos, surge um grande número de instrumen- das entre si em tempo real por via eletrônica e tos para minimização dos riscos, chamados para o surgimento de novos produtos e mer- geralmente de derivativos, podendo ser swaps, cados financeiros (Harvey, 1993). As atividades opções em datas futuras, contratos de com- em bolsas de valores e mercados futuros ope- pra e venda, etc. O fundamento de todos eles ram hoje praticamente vinte e quatro horas por é o mesmo, apesar da aparente diversidade e dia, tirando proveito dos fusos horários entre confusão causada por tantos nomes difíceis: os distintos mercados e das informações (corri- eles seriam instrumentos de proteção (hedge), queiras ou privilegiadas) obtidas pela moderna “que buscam neutralizar os riscos de perda infraestrutura de conexão das diversas praças de rendimento e/ou de capital, dada a vola- financeiras. Paralelamente à maior disposição tilidade dos ativos financeiros securitizados” dos governos de importantes países capita- (Belluzo, 1997, p. 176). listas em liberar seus mercados financeiros, Tal forma de financiamento, pela libe- cujo melhor paradigma são os Estados Unidos ralização dos fluxos financeiros e de sua au- e o Reino Unido, ocorreu um crescimento do tonomização diante do capital bancário le- poder de novos agentes no mercado finan- vou, entretanto, a uma maior instabilidade do ceiro global, ao lado dos tradicionais bancos, mercado financeiro internacional e da própria como os fundos de investimento, os fundos dinâmica de acumulação capitalista (Harvey, de pensão, os grupos de seguros e os conglo- 1993). Com a crescente securitização dos títu- merados financeiros (ligados a grandes cor- los de dívidas e de financiamento, observa-se porações). No caso dos três primeiros, seus o aumento da liquidez e da mobilidade dos recursos são provenientes da poupança das mercados financeiros, ou seja, a facilidade de famílias, e eles buscam maximizar os ganhos entrada e saída das posições assumidas pelos 300 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado agentes financeiros, bem como a profundidade intervenção no espaço urbano das empresas do dos mercados secundários e de derivativos, que setor imobiliário se amplia, garantindo recursos assumem grande porte, garantindo elevado necessários tanto para a superação da barreira grau de negociabilidade aos papéis de distin- colocada pelos altos preços da terra urbana nas tas características, denominações monetárias e áreas mais valorizadas, quanto para a disper- prazos de maturação. O exemplo mais recente são do risco de financiamento aos comprado- do chamado subprime no mercado financeiro res e para a aceleração do tempo de rotação norte-americano é elucidativo de como os de- do capital no setor da construção. Abre-se a rivativos, muitas vezes de alto risco, assumiram possibilidade de execução de projetos de maior importância no mercado financeiro contempo- escala, mais complexos e de uso múltiplo, e, râneo. A remuneração oferecida por esses pa- com o auxílio de um capital autonomizado, a péis passa a ser central no processo de avalia- apropriação da renda resultante da valorização ção capitalista da riqueza. O capital financeiro dos empreendimentos torna-se viável. se diversifica, se complexifica e assume cada Diante da crise econômica das últimas vez mais importância para a reprodução e para décadas, o planejamento urbano e o urbanis- o cálculo de rentabilidade do capital em geral mo adquirem uma nova função – não mais (que se financeiriza, dessa forma), expandindo- restrita à regulamentação das ações do setor -se para outros setores da economia contem- privado –, ligada à promoção do crescimento porânea, como o imobiliário. econômico, baseada nas atrações de investi- A constituição de fundos de investimen- mentos em setores de alta tecnologia, serviços tos imobiliários, a securitização de proprieda- e/ou eventos, como forma de inserir-se em uma des e os títulos derivados de contratos hipo- lógica global de competição inter-metropolita- tecários são importantes elos de ligação entre na. Essa postura dos poderes públicos munici- o capital financeiro e o imobiliário. Os fundos pais é chamada por Harvey (1996) de “empre- de investimento têm por objetivo reunir capital sariamento urbano”, caracterizado pelo apelo para realização de novos projetos, geralmente à racionalidade do mercado e da privatização de uso misto e de alto padrão, e/ou compra de e baseado na constituição de parcerias entre imóveis para extração da renda por eles gera- o setor público e o privado para execução de da. A securitização, por sua vez, transforma a projetos de atração dos fluxos de investimen- propriedade imobiliária em ativos mobiliários, to e de consumo. Os projetos urbanísticos do possibilitando uma mais rápida circulação do capital financeiro globalizado têm por objetivo capital do setor da construção. Já os derivativos a criação da cidade como cenário, esterilizada, de títulos hipotecários (subprime) permitem aos livre de contradições e do perigo, com ruas res- originadores desses títulos, após sua venda no tauradas e “yuppieficadas”, transformando-se mercado, recuperar o valor investido e lançá-lo em um “espaço urbano imaginário de um fil- uma vez mais no sistema financeiro, como cré- me da Disney” (Hall, 1996, p. 361). Exemplos dito para novos tomadores de empréstimos. de tal “utopia” do urbanismo contemporâneo Com a criação dos novos instrumentos são os projetos (privados, mas que contam com de captação de recursos financeiros, o poder de importantes fundos públicos) de remodelação Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 301 Adriano Botelho e revalorização de áreas urbanas degradas, co- bancos em busca de maior rentabilidade. A mo antigas instalações portuárias (Port Vell em compra desses papéis de alto risco pelas ins- Barcelona, Docklands em Londres ou Puerto tituições financeiras permitia que recursos fos- Madero em Buenos Aires) ou fabris. sem lançados uma vez mais no mercado para Dessa forma, o ambiente construído pas- serem novamente emprestados. Trilhões de dó- sa a inserir-se crescentemente nos circuitos fi- lares em hipotecas de risco foram incorporados nanceiros do capital. O circuito do imobiliário ao sistema financeiro norte-americano (e via foi durante muito tempo um setor subalterno, grandes instituições, também ao mundial), na subsidiário, e paulatinamente se converteu em medida em que títulos derivados dessas hipote- um setor paralelo, destinado a inserir-se no cir- cas eram “embalados”, “reembalados” e ven- cuito de reprodução capitalista, podendo, inclu- didos a investidores ao redor do mundo como sive, tornar-se o setor principal se o circuito de ativos livres de risco, segundo as agências de reprodução capitalista, baseado na produção- classificação (Financial Crisis Inquiry Comission, -consumo, se vê interrompido por algum moti- 2011). Quando a “bolha” financeiro-imobiliária vo conjuntural ou mesmo estrutural (Lefebvre, explodiu em 2007-2008, centenas de bilhões 1976). Os capitais buscam, assim, um circuito de dólares em perdas em hipotecas e em de- alternativo, que se torna, nas últimas déca- rivativos de créditos imobiliários ameaçaram a das, fundamental para a cumulação capitalis- própria existência não só das maiores institui- ta (Harvey, 2010), baseado na mercantilização ções financeiras norte-americanas e europeias, da terra e do habitat, anexo com respeito ao mas também de todo o sistema bancário. A circuito mais tradicional de produção-consumo crise atingiu dimensões sistêmicas nos Estados de mercadorias. Essa mercantilização, na atual Unidos em setembro de 2008, com a falência fase do capitalismo, passa por um processo de do Lehman Brothers e o iminente colapso da crescente financeirização, que, por sua vez, tem “Amerivan International Group” (AIG). Para como resultado o aumento da instabilidade no evitar a quebra do sistema financeiro do país, setor imobiliário. o governo norte-americano acabou por intervir O melhor exemplo desse fenômeno pode no sistema bancário, injetando trilhões de dó- ser observado na chamada “crise do subprime” lares (o que não levou, entretanto, devido ao de 2007. A tendência altista nos preços de lobby do setor, à sua maior regulamentação). imóveis nos Estados Unidos até 2006 e a alta O mercado imobiliário, por sua vez, liquidez no mercado internacional incentiva- sofreu expressivo impacto, com paralisação ram empréstimos hipotecários para tomadores das vendas, execução de processos de despe- com pior histórico de crédito e renda inferior à jo, atingindo principalmente os setores mais média pela qual tais empréstimos eram tradi- vulneráveis da sociedade norte-americana cionalmente concedidos pelos agentes finan- (Reuters, 2008; Harvey, 2010) e queda vertigi- ceiros.2 Como tais empréstimos representavam nosa nos preços. Segundo relatório do Con- maior risco, pagavam taxas de juros mais altas, gresso dos Estados Unidos (Financial Crisis o que os tornava mais atrativos para gestores Inquiry Comission, 2011), cerca de quatro mi- de fundos de pensão, de investimentos e de lhões de famílias norte-americanas perderam 302 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado suas casas, outras quatro milhões e meio en- exemplo, é responsável por 40% da demanda traram em processo de perda de suas hipotecas do total de aço produzido na China (Cárdenas, ou apresentavam atrasos significativos em seus 7/10/2011). Na Índia, igualmente, estaria ocor- pagamentos. O prejuízo estimado no estoque rendo uma diminuição dos lançamentos de no- de riqueza imobiliária residencial ao longo da vos projetos em virtude da diminuição da de- crise de 2007-2008 é de quase onze trilhões manda conjugada com menor oferta de crédito, de dólares, segundo o informe. Extensas áreas gerada pela desconfiança dos bancos locais em urbanas norte-americanas sofrem, desde então, realizar empréstimos em um contexto de crise processo de degradação, em virtude da expul- financeira internacional (idem). são dos moradores inadimplentes e criação de vazios de ocupação. Conclui-se, portanto, que há limites para a absorção de capitais por parte do setor Segundo a Comissão do Congresso imobiliário, e, considerando-se a crescente in- norte-americano (Financial Crisis Inquiry tegração do setor imobiliário à reprodução ca- Comission, 2011), diferentemente de outras pitalista, tal setor estaria cada vez mais sujeito bolhas – como a das tulipas na Holanda no sé- às oscilações cíclicas desse modo de produção, culo XVII, as ações dos Mares do Sul no século diminuindo, assim, sua margem de autonomia XVIII, as ações de Internet no final dos anos 90 para a absorção de capitais excedentes. do século XX – , a bolha do mercado financeiro Dessa forma, o espaço, consumido pro- de 2007-2008 envolveu não uma mercadoria dutivamente nas estratégias de acumulação qualquer, mas a base da comunidade, da vida capitalista é transformado, tem suas qualida- social e da economia do país, a moradia. Não des alteradas pelo consumo, porém, possui a obstante, nas palavras de um agente do mer- capacidade de, ao ser transformado, também 3 cado financeiro, teria havido uma mudança transformar e produzir o novo; como nos lem- cultural na sociedade norte-americana: a casa bra Henri Lefebvre, o consumo do espaço é du- teria de ser considerada como a moradia, o lar, plamente produtivo na medida em que produz para se tornar uma mercadoria. tanto mais-valia como outro espaço (Lefebvre, O desenvolvimento da crise ao longo de 2000). A seguir, serão analisadas duas mani- 2011 teve efeitos em dois mercados emergen- festações desse “novo espaço”: a dispersão do tes, considerados como as “fronteiras” da ur- tecido urbano e a segregação socioespacial. banização (e da acumulação) do século XX: a China e a Índia. A queda observada, em 2011, nos preços imobiliários do superaquecido mercado chinês, como consequência de medidas A dispersão do tecido urbano5 oficiais de restrição ao crédito tomadas para evitar uma aceleração inflacionária, teria como Um amplo espectro de mudanças urbanas resultado, além de dificuldades financeiras para fundamentais, cujas causas tomam forma há o setor da construção e de desenvolvimento ur- algum tempo, teve lugar ao longo da década 4 bano, uma importante queda na produção in- de 1980, resultando em uma transformação dustrial do país, pois o setor da construção, por da forma e do caráter da cidade (Sudjic, 1992). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 303 Adriano Botelho Algumas dessas mudanças se relacionariam convívio familiar mais íntimo e privado, o con- a como as pessoas vivem, outras teriam uma tato com a natureza e a distância com relação influência na forma física da cidade e algumas às tentações mundanas da cidade. Outra linha estariam ligadas às relações entre as cidades. sugere que o fenômeno da dispersão tem ori- Dentre essas mudanças, uma das mais impor- gem na suburbanização dos Estados Unidos, tantes é o que no presente artigo se denomina que se inicia na segunda metade do século XIX “dispersão urbana”. (Jackson, 1985), pela ação conjunta de agentes Cidade dispersa (Monclús, 1998), Città imobiliários, empresas de transporte urbano e diffusa (Indovina, 2004), Zwischenstadt de agentes do poder público. Há também aque- (Sieverts, 2003), Tecnurbia (Fishman, 2004), les que pensam o fenômeno como algo mais Exurbia (Bruegmann, 2005), Edge City recente, ligado às transformações ocorridas no (Garreau, 1991), Edgeless City (Lang, 2003), capitalismo a partir da Segunda Guerra Mun- Limitless City (Gillham, 2002), Metápolis dial, e que se aceleraram a partir da década de (Ascher, 1995), Exopolis (Soja, 2000) são 1970 (Ascher, 1997; Sudjic, 1992; Soja, 2000; alguns dos exemplos de como a literatura Harvey, 2007). especializada no fenômeno urbano tem tratado Esquematicamente, é possível dividir as a questão da dispersão. A grande profusão de explicações sobre as causas da dispersão urba- denominações dada ao fenômeno revela tanto na em algumas linhas, a saber: sua importância, como também as diferentes a) Naturalista: o fenômeno da dispersão percepções e concepções sobre a questão, além seria consequência natural do crescimento das da busca de fatores explicativos por parte dos cidades, quando essas adquirem um certo grau autores. A falta de consenso é, acima de tudo, de maturidade e afluência. Os moradores das resultado do caráter complexo da realidade áreas centrais congestionadas passam a ter urbana contemporânea. a escolha de habitar em locais com menores Para alguns autores, a dispersão é um fe- densidades, menos poluição, custos reduzidos nômeno que esteve presente já nos primeiros e maiores espaços. Com o tempo, a densidade momentos da história da cidade (Bruegmann, populacional dessas áreas também cresce, con- 2005): as vilas dos prósperos cidadãos na Ro- figurando um quadro de dispersão urbana; ma antiga e os bairros construídos fora das b) Tecnicista: segundo essa concepção, a muralhas na Europa medieval seriam exem- dispersão seria possibilitada pela maior mobi- plos de como as pessoas muitas vezes prefe- lidade proporcionada pelos avanços tecnológi- riram edificar suas moradias a certa distância cos nos meios de transporte e comunicações. dos centros da cidade em épocas históricas A carruagem no século XVIII e início do XIX, o remotas, seja por busca de maior comodidade, trem e o bonde, no século XIX e início do sé- seja para fugir das imposições e controles das culo XX, e finalmente o automóvel a partir da autoridades. Para outros, os subúrbios tiveram década de 1920, seriam elementos essenciais origem na Inglaterra do século XVIII (Fishman, na explicação do fenômeno da dispersão, ao 1987), quando as classes médias e altas bus- proporcionarem a necessária mobilidade aos caram no isolamento dos centros históricos o moradores dos subúrbios, seja em direção às 304 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado áreas urbanas centrais tradicionais, num pri- afastadas dos centros tradicionais e a constru- meiro momento, seja em direção aos novos ção de conjuntos habitacionais para os mais centros de trabalho, consumo e lazer. Por outro pobres em áreas distantes. lado, com a difusão da telemática nas últimas f) Liberal : a dispersão urbana seria o décadas do século XX, a separação entre a ges- efeito da escolha individual e racional dos tão e a produção, o trabalho a domicílio e a dis- membros da sociedade. A opção pela moradia persão geográfica dos locais de trabalho se tor- em áreas mais afastadas seria possível a par- naram possíveis, afetando também a estrutura tir da democratização do sistema político, que urbana no sentido de uma maior dispersão; daria maior liberdade de escolha às famílias; da c) Culturalista: a dispersão teria como prosperidade causada pelo crescimento econô- causa principal um sentimento antiurbano, li- mico; e da mobilidade garantida pelos meios gado a um ferrenho individualismo e à busca de transporte. por vizinhanças homogêneas, dominante em As linhas explicativas listadas acima algumas sociedades, notadamente as anglo- não esgotam as formas possíveis de compre- -saxônicas. Com a expansão do american way ender o fenômeno, e cada uma delas, tomada of life, o padrão de moradia suburbana dos Es- individualmente, mostra-se insuficiente para tados Unidos passaria a ser adotado por outras dar conta da explicação da dispersão urbana, sociedades da Europa, Ásia e América Latina. pois no caso de um fenômeno complexo como d) Economicista: o crescimento urbano esse, não haveria uma relação simples entre seria consequência das atividades econômicas, causa e efeito. Ao contrário, existiriam “inu- e a dispersão seria efeito direto da falta de re- meráveis forças, sempre agindo umas sobre as gulação predominante no modo de produção outras de maneiras complexas e imprevisíveis” capitalista. No capitalismo, a busca pelo bem (Bruegmann, 2005, p. 112). individual por parte dos compradores e ven- A dispersão urbana corresponderia dedores levaria a uma situação marcada pela a uma mudança de escala do urbano, mu- especulação imobiliária e espalhamento, que dança essa que teria relação com a pró- beira à irracionalidade no uso dos recursos na- pria mudança de escala na acumulação turais, da superfície edificada; do capital. Segundo Harvey (2007; 2010), as e) Estatista : o Estado seria um agente reformas de Paris por Haussmann no século fundamental para a compreensão da disper- XIX, a suburbanização dos Estados Unidos no são urbana, por meio de uma série de ações, pós-Segunda Guerra e a urbanização chinesa algumas vezes contraditórias entre si, tais co- do início do século XXI seriam formas de ab- mo: a concessão de subsídios e financiamen- sorver o superávit de capital existente em de- to aos moradores dos subúrbios, a falta de terminado momento histórico. E quanto maior controle sobre a ação dos agentes privados, o superávit, maior a escala da urbanização o zoneamento e o planejamento que garan- necessária. Trata-se de um fenômeno mundial, tiriam a desejada homogeneidade funcional atingindo, em diferentes momentos, diversas nos subúrbios, a oferta de infraestrutura viária sociedades, mas que não se restringe a deter- que garantiria a acessibilidade às áreas mais minações culturais ou geográficas. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 305 Adriano Botelho Os empreendimentos de grande esca- para a aquisição e a comunicação de informa- la – escritórios, shopping centers, hotéis, con- ções entre as empresas (Choay, 2004). A des- domínios de luxo –, ligados ao capital finan- concentração de atividades produtivas e de ceiro mundializado, moldam o tecido da cidade investigação científico-tecnológica também contemporânea. Na sua versão mais atual, o contribui para tornar as áreas dispersas mais desenvolvimento de empreendimentos imobi- atraentes para uma população trabalhadora de liários pode ser caracterizado pela internacio- nível médio e de alta qualificação. nalização e corporatização (Sudjic, 1992). As Há, entretanto, autores (Jackson, 1985; estruturas de emprego e produção, de comércio Barnett, 1995; Bruegmann, 2005) que chamam e moradia passam por transformações profun- a atenção também para os aspectos contradi- das nas últimas décadas, contribuindo para a tórios da dispersão do tecido urbano, devido ao produção de um espaço urbano cada vez mais consumo exagerado de terras, água, energia, amplo, disperso e em grande escala. seus custos de instalação de infraestrutura e A securitização da propriedade e a for- falta de planejamento e controle. mação de fundos de investimentos imobiliários A dispersão urbana pode ser caracteri- são instrumentos que permitem, como visto, a zada, segundo pesquisa coordenada por Reis e potencialização da ação dos agentes urbanos. Tanaka (2007; 2009): a) pelo espaçamento dos Paralelamente à maior inserção do capital nos tecidos urbanos dos principais centros; b) pe- circuitos financeiros, ocorre a financeirização la formação de constelações ou nebulosas de do mercado imobiliário, e a falta de regula- núcleos urbanos de diferentes dimensões, inte- mentação, a volatilidade e a mobilidade dos grados em uma área metropolitana ou em um mercados financeiros têm como contrapartida conjunto ou sistema de áreas metropolitanas; a desregulamentação do mercado e do finan- c) pela transformação de um sistema de vias ciamento imobiliário (Botelho, 2007). Quanto de transporte diário inter-regional, ferroviário e maior o controle na produção imobiliária (e, rodoviário, em apoio ao transporte diário intra- particularmente, a habitacional) pela lógica do metropolitano de passageiros; d) pela adoção mercado, maior será o nível de fragmentação e de modos metropolitano de consumo, também de segregação socioespacial na cidade, já que este disperso pela área metropolitana ou siste- só os que podem pagar poderão ter acesso ir- ma de áreas metropolitanas. restrito ao que Henri Lefebvre (1999) chamou Como sugere Indovina (2004), o modo de “as positividades do urbano”, sem que isso de os indivíduos e das famílias relacionarem-se signifique, para esses privilegiados, uma ver- com a cidade não constitui nem uma constan- dadeira fruição dessas positividades – dado o te, nem uma determinação “natural”, mas sim clima de tensão, medo e insegurança reinante um produto cultural e político. O marketing e nas grandes metrópoles. a ideologia utilizados pelos agentes imobiliá- Mudanças tecnológicas permitem, igual- rios urbanos, por sua vez, buscam convencer mente, a dispersão dos empreendimentos, co- os consumidores de que há novas necessidades mo a compressão do tempo necessário para (como a segurança privada, o “contato com a os deslocamentos em autopistas, assim como natureza”, a existência de certos equipamentos 306 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado de uso coletivo no interior dos empreendi- para os mais pobres, significa morar em casas mentos, etc.) a serem satisfeitas, geralmente autoconstruídas em loteamentos quase sem- em áreas de expansão dispersa da cidade, ou pre irregulares, sem infraestrutura e equipa- seja, distantes das áreas de centralidade tra- mentos adequados, distantes das opções de dicionais. Por outro lado, o centro das cidades emprego, consumo e lazer. passa a ser visto como o lugar da violência, A questão da segregação socioespa- da sujeira, do barulho, entre outros elementos cial, por sua vez, também se complexifica, degradantes. Busca-se então o isolamento em pois os empreendimentos alavancados pelo áreas fechadas (loteamentos ou condomínios), grande capital (principalmente condomínios fenômeno presente na metrópole de São Paulo residenciais de alto padrão e centros empre- (Caldeira, 2000), mas não restrito à realidade sariais) muitas vezes encontram-se isolados brasileira, como se pode observar em Los Ange- de seu entorno, formado por áreas pobres ou les, Berlim, Nova York (Marcuse, 2004), Buenos de favelas, tornando-se verdadeiros “enclaves Aires (Svampa, 2001), entre outras cidades do fortificados” (Caldeira, 2000), que adotam mundo. Mas não se trata somente da dispersão sofisticadas técnicas de distanciamento e divi- da moradia. Outras formas de construção, des- são social, constituindo o cerne de uma nova tinadas à produção e ao consumo, como “con- maneira de organizar a segregação, a discrimi- domínios” industriais, áreas de lazer, centros nação social e a reestruturação econômica nas comerciais, entre outros, também fazem parte metrópoles. Dessa forma, “diferentes classes da urbanização dispersa. sociais vivem mais próximas umas das outras Por outro lado, somando-se à dispersão em algumas áreas, mas são mantidas separa- das atividades produtivas e da moradia das ca- das por barreiras físicas e sistemas de identifi- madas de renda média e alta da população, há cação e controle” (Caldeira, 2000, p. 255). Os também a dispersão da sua parcela mais po- enclaves são pontos opostos à idéia de cidade bre, que é a maioria, concentrada em bairros e de urbano, representados no imaginário do com precária infraestrutura urbana e de difícil marketing imobiliário como um mundo dete- acesso, com graves problemas de regulariza- riorado, no qual há poluição, violência, confu- ção fundiária e gestão administrativa. É a mão são e ... mistura! de obra barata utilizada na construção civil, na indústria, no terciário em geral, nos serviços domésticos, etc. No caso de países marcados pela iniquidade social, como o Brasil, as for- A segregação socioespacial mas nas quais a dispersão se materializa se revelaria ainda mais perversa para a vida ur- Paralelamente à crescente união do capital fi- bana: para os mais ricos, a dispersão significa nanceiro com o imobiliário, que afeta, em gran- a reclusão em condomínios murados, a depen- de medida, tanto a estrutura quanto o tecido dência do automóvel, a perda de preciosas ho- urbano das grandes metrópoles, observa-se o ras no trânsito, o confinamento em shopping aprofundamento do processo de segregação centers e o abandono dos centros históricos; socioespacial nas metrópoles. O capital flexível Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 307 Adriano Botelho e livre de regulamentações materializa-se em etc.) – o subequipamento dos conjuntos “operá- um espaço urbano marcado por grandes em- rios” opondo-se a “superequipamento” dos con- preendimentos de uso misto, cercados e iso- juntos burgueses; lados das áreas de residência e circulação dos ● segregação no nível do transporte domicí- mais pobres. A distância física entre as duas lio-trabalho – a crise dos transportes coletivos rea lidades pode ser ínfima, mas a distância para o “operariado” contrastando com os privi- econômica e social é praticamente intranspo- légios “burgueses” do uso do automóvel. nível, simbolizada por muros e aparatos de segurança privada. A lista acima que não esgota as formas de segregação socioespacial observadas no ur- Para Lipietz (1974), existiria uma hie- bano, que também sofre um processo de trans- rarquia de usos do solo determinada pelo formação e complexificação, mas serve para valor de uso da centralidade (ou qualquer dar uma ideia geral de como o modo de produ- outra particularidade do lugar) e pela capa- ção capitalista, em sua lógica de acumulação, cidade dos usuários de pagar, e o mecanismo contribui para a produção de um espaço cada da renda da terra estabilizaria e reproduziria vez mais fragmentado e segregador. essa hierarquia em sua coincidência com uma Topalov, analisando os trabalhos de pes- Divisão Social e Econômica do Espaço. Ainda quisa sobre a região parisiense desde 1954, em segundo o mesmo autor, o mecanismo da ren- obra publicada na década de 1980 (Topalov, da seria um instrumento econômico de repro- 1984), chega à conclusão de que dois tipos de dução da divisão social e econômica do espa- práticas do espaço urbano se opõem claramen- ço, assegurando a adequação dos usos do solo te, com dois polos de estratificação social: o e das classes sociais aos distintos lugares do das camadas superiores e o dos trabalhadores. aglomerado urbano. Para ele, cada uma dessas categorias possui Entre as formas de segregação, Jean um espaço próprio, fortemente segregado um Lojkine (1997, p. 189 e 244-245) destaca as do outro. As camadas intermediárias, ao con- seguintes: trário, não possuem um espaço que lhes seja ● a oposição entre o centro, onde o preço do solo é mais caro, e a periferia; particular: nisso residiria sua especificidade. Segundo esse autor, os “belos bairros” separação entre zonas e moradias reser- das camadas superiores não o são somente vadas às camadas sociais mais privilegiadas e nas representações coletivas, mas também na zonas de moradia popular; materialidade dos meios de consumo que es- ● esfacelamento generalizado das “funções tão disponíveis; os privilégios espaciais estão urbanas”, disseminadas em zonas geografica- relacionados com a oferta de equipamentos mente distintas e cada vez mais especializadas urbanos (Topalov, 1984). Para ele, o espaço (zonas de escritórios, zonas residenciais, zona in- das camadas superiores é objetivamente dife- dustrial, etc.). É o que a política urbana sistema- rente. Essas diferenças resultam dos processos tizou e racionalizou sob o nome de zoneamento; de produção material: predomínio massivo das segregação no nível dos equipamentos cole- formas mais capitalistas de construção das ha- tivos (creches, escolas, equipamentos esportivos, bitações, privilégios por longos períodos em ● ● 308 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado matéria de infraestruturas e de equipamentos uso social (Lojkine, 1997). Existiria, assim, “uma públicos de consumo coletivo e concentração segregação espacial e social fundamental entre “espontânea” dos serviços requeridos por uma o espaço urbano “central” monopolizado pelas clientela altamente solvente em termos mone- atividades de direção dos grandes grupos capi- tários. Esses processos tendem, pelo jogo dos talistas e do Estado e as zonas periféricas onde preços, a operar a segregação espacial que estão disseminadas as atividades de execução requer a legibilidade simbólica dos espaços. A assim como os meios de reprodução empobre- concentração espacial das camadas superiores cidos, mutilados, da força de trabalho” (Lojkine, opera uma transformação qualitativa de con- 1997, p. 172). teúdo dos equipamentos públicos e dos equi- Nesse processo de formação de um es- pamentos comerciais privados, tornando-os paço urbano segregado, o Estado possui um mais seletivos. A especificidade do espaço das papel importante, pois, como lembra Peter camadas superiores é signo de distinção social, Marcuse (2004), nenhum mercado “privado” participa do sistema de expressão e de reite- poderia funcionar se o Estado não sancionas- ração simbólica da hierarquia das situações de se as cláusulas contratuais e administrasse os classe. As camadas superiores e as camadas remédios para sua quebra, estando, pois, no populares se excluem no espaço pelo proces- âmbito dos poderes mais abrangentes do Esta- so de expulsão derivado do preço cobrado pelo do a permissão ou a proibição da segregação. uso do espaço. Por outro lado, áreas selecionadas pelo capital As zonas de emprego dos trabalhadores financeirizado para valorização nas metrópoles, se transformam ao ritmo das mudanças nos tradicionais ou emergentes, são, quase sempre, processos produtivos. Cada fase da divisão obtidas pela ação estatal de “realocação” (vio- capitalista do trabalho induz à formação de lenta, em mais de um sentido) de moradores de espaços produtivos que lhes correspondem, e baixa renda.6 transforma profundamente a estrutura urbana, A crescente inserção do imobiliário no notadamente as condições de residência dos mercado financeiro contribui, em boa medida, trabalhadores (Topalov, 1984). O processo de para aumentar o poder dos empreendedores desindustrialização de uma área pode afetar de sobre o urbano, mas também para intensificar maneira intensa a coletividade que aí habita, o processo triádico de homogeneização, frag- desestruturando as relações de trabalho, so- mentação e hierarquização do espaço descrito ciais, etc. A contradição social que se desenvol- por Lefebvre (2000). ve no interior do espaço urbano se materializa Para Lefebvre (1980), por homogenei- na oposição entre, de um lado, a fração mono- zação entende-se a repetição monótona de polista do capital que tende a garantir para si elementos no espaço e que conformam tal o monopólio exclusivo do uso dos equipamen- espaço: aeroportos, vias expressas, rodovias, tos coletivos mais ricos, fundamentais para a cidades verticais de concreto, cidades horizon- reprodução ampliada do capital, e, de outro, o tais de casas unifamiliares, etc., criando um conjunto das camadas não monopolistas, tanto consumo repetitivo de coisas no espaço e do capitalistas como assalariadas, excluídas desse espaço que engendra um tédio indelével. É um Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 309 Adriano Botelho espaço produzido para ser visto, com suas ca- formas gerais e específicas: a distinção entre racterísticas óptico-geométricas. Esse espaço os “pontos fortes” do espaço e os centros homogeneizado é também o locus de ligação (de poder, de riqueza, de trocas materiais ou das relações capitalistas mundializadas, com espirituais, de lazeres, de informação) e as seus pontos fortes (os centros) e as bases mais periferias (elas também hierarquizadas, mais frágeis e dominadas (as periferias). ou menos afastadas de um centro principal ou Segundo o mesmo autor, a fragmenta- secundário, até tomar a forma de um lugar de- ção relaciona-se com o espaço partido em es- serto, abandonado). A dominação dos centros paços separados, ocupados pelas funções que sobre os espaços dominados garantiria o cará- se exercem nesses espaços distintos: trabalho, ter homogêneo do espaço. moradia, lazeres, transportes, produção, consu- Esse processo triádico de fragmentação, mo. “O espaço – como o trabalho – se torna homogeneização e hierarquização do espaço parcelado: justaposição de parcelas fixadas a apontaria para o surgimento da não cidade (ou uma atividade parcial no qual o conjunto, o anticidade; Lefebvre, 1991,1999), na medida processo do habitar, escapa aos participantes” em que intensificaria a segregação socioespa- (Lefebvre, 1980, p. 154). Rigidamente quanti- cial no urbano, criando obstáculos para o en- ficado, medido em metros quadrados, como contro e a reunião de pessoas, para o consumo em dinheiro, esse espaço “fatiado” é entregue coletivo de objetos, de ideias, etc. Ou seja, na ao mercado em parcelas, quase sempre míni- medida em que o valor de uso subordina-se ao mas. Não se trata somente da atomização do valor de troca e a mercadoria generaliza-se no social em indivíduos separados, em individua- urbano, a cidade e a realidade urbana tendem lidades hostis e desprezíveis, mas sim da di- a ser destruídas (Lefebvre, 1991), pois a cidade visão quase sem limites do “continente” da não é vivida em sua totalidade, e sim fragmen- sociedade, continente que não é indiferente tariamente e através de crescentes constrangi- ao conteúdo, é o suporte das relações sociais. mentos a seus habitantes. Dessa forma, a fragmentação é um instrumen- Dessa forma, a segregação socioespacial to de poder político, pois “separa para reinar”, torna-se a regra da urbanização contemporâ- transformando os membros da sociedade em nea, marcada pelo capital financeiro e desre- indivíduos indiferentes entre si, unidos em gru- gulamentado. As parcelas mais abonadas da pos de interesses contrapostos, isolados por população urbana crescentemente buscam o barreiras visíveis e invisíveis. isolamento em áreas fechadas (loteamentos ou E, por fim, os espaços dissociados no condomínios fechados, shopping centers, cen- homogêneo se hierarquizam: espaços no- tros empresariais e complexos de escritórios), bres e vulgares, espaços residenciais, espa- fenômeno presente na metrópole de São Paulo, ços funcionais, guetos diversos, conjuntos mas não restrito à realidade brasileira, como de alto padrão, áreas para os migrantes e se pode observar em Los Angeles, Berlim, Nova para os autóctones, espaços das classes mé- York, Buenos Aires, Lagos, Nairobi, Cidade do dias. Em resumo, segundo Lefebvre (1980), México, Xangai, Bombaim, Calcutá, entre ou- ocorre a segregação. A hierarquização toma tras cidades do mundo.7 310 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado Por outro lado, a população mais po- de seu nível de renda, direcionando suas per- bre é segregada em áreas mais distantes do cepções e vivências com relação ao espaço que tecido urbano disperso ou nos interstícios das habitam. O resultado, entre outros, é a produ- áreas centrais das metrópoles contemporâ- ção de um espaço marcado pela fragmentação, neas, mas que são pouco valorizadas (beira homogeneização, hierarquização, bem como de córregos, encostas, áreas de instabilidade pela segregação. A utopia lefebvriana do urba- geológica, etc.), onde falta a maior parte da no caracterizado pela reunião e pela troca pa- infraestrutura e dos equipamentos urbanos, rece cada vez mais distante, devido à crescente configurando o “Planeta favela” descrito por separação física, econômica e simbólica dos Mike Davis (2006). indivíduos nas metrópoles. A nova encarnação da metrópole mundial dispersa, espalhada, e com movimento Considerações finais sem fim, é fundamentalmente diferente da cidade como era conhecida até algumas décadas atrás, correspondendo à fase do capi- Segundo Pavia (2004), o rechaço ao crescimen- talismo financeirizado, marcado pela extrema to urbano, tanto no plano social como no plano mobilidade, volatilidade e desregulamenta- estético, seria “o exemplo mais evidente dos ção, e por que não, pela crise. A paisagem ur- medos que invadem a disciplina urbanística” bana é, então, caracterizada pela proliferação (Pavia, 2004, p. 105). Tal temor não seria de de projetos de alto padrão inspirados em um hoje, tendo origens na concepção renascentis- urbanismo excludente; pela degradação de ta da cidade como forma fechada, geométrica, áreas que sofrem processo de desindustrializa- limitada. Uma cidade concebida como sistema ção derivado da maior mobilidade do capital unitário, no qual todas as partes estariam re- industrial; pela formação de metrópoles nos lacionadas. Ainda segundo esse autor, o medo países emergentes nas quais as condições ha- do crescimento urbano se torna obsessivo com bitacionais precárias são a regra para a maior o triunfo da cidade capitalista. É justamente parte da população; e, igualmente, pela proli- quando o desenvolvimento da produção e da feração de bolsões de pobreza nos países mais circulação das mercadorias parece poder asse- ricos, marcados pelo desemprego massivo, gurar um crescimento ilimitado, o rechaço da pelo confinamento dos pobres nos “bairros grande dimensão da cidade se torna cada vez despossuídos” de recursos públicos e privados mais contundente. Dessa forma: “Em nível teó- e pela estigmatização dos habitantes desses rico e dos conteúdos operativos, o urbanismo bolsões (Wacqant, 2007). moderno será, desde suas origens, profundamente anti-urbano” (Pavia, 2004, p. 106). Os teóricos, ao se posicionarem contrários à dispersão urbana dos ricos e dos A lógica de reprodução do capital, me- pobres – considerada irracional em termos diada pela propriedade privada, domina a lógi- urbanísticos, econômicos e ambientais –, ca de reprodução dos diferentes grupos sociais, não podem simplesmente dar as costas pa- em maior ou menor grau, independentemente ra o fenômeno e deixar de levar em conta as Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 311 Adriano Botelho transformações que afetam a vida cotidiana empreendedores, não só para compreender o da vasta maioria da população das áreas me- que estaria ocorrendo com o espaço urbano tropolitanas. Entender os efeitos positivos e contemporâneo, mas também, e principalmen- negativos dessas transformações seria a ta- te, para dar uma direção mais humana, ou seja, refa essencial daqueles que estudam o urba- menos segregacionista e mais inclusiva, à dinâ- no, bem como dos planejadores, arquitetos e mica de produção e reprodução desse espaço. Adriano Botelho Economista e Geógrafo. Mestre e Doutor em Geografia Humana. Diplomata, servindo na Embaixada do Brasil em Buenos Aires, Argentina. [email protected] Notas (*) As opiniões con das no presente ar go são de caráter pessoal e de responsabilidade do autor. (1) Vendrossi (2002, p. 21) define securi zação como a “emissão de tulos mobiliários com vínculo em um determinado ativo”. Para um estudo mais detalhado da securitização de recebíveis imobiliários, ver Vendrossi (2002). (2) Além do “subprime”, outras modalidades de securitização de hipotecas de alto risco foram desenvolvidas pelas ins tuições financeiras, como as baseadas nos emprés mos “ninja” (no income, no job, no assest). (3) Depoimento de Ângelo Mozilo, CEO da “Countrywide Financial”, à Financial Crisis Inquiry Comission (2011, p. 4). (4) Segundo Cárdenas (7/10/2011), o volume de dívidas e ações das empresas ligadas ao setor de construção e de desenvolvimento urbano chinesas seria da ordem de US$19 bilhões. (5) As ideias desenvolvidas nesse item são tributárias de minha par cipação no projeto Urbanização dispersa e mudanças no tecido urbano – Estudo de Caso: Estado de São Paulo, do Laboratório de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo, coordenado pelos professores Nestor Goulart Reis e Marta Soban Tanaka. (6) Ver, exemplo, Harvey, 2010, pp. 178-181. 312 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado (7) O fenômeno dos condomínios fechados no Brasil foi estudado no livro de Maria Teresa Pires do Rio Caldeira, Cidade de muros – crime, segregação e cidadania em São Paulo (São Paulo, Editora 34/Edusp, 2000). Para o caso dos condomínios e comunidades fechadas nos Estados Unidos, ver, por exemplo, Blakely, E. J. and Snyder, M. G. Fortress America – Gated Communi es in the United States. Massachuse s, The Brookins Ins tu on Press, 1999. O caso argen no pode ser analisado em Svampa, M. Los que ganaron: La vida en los countries y barrios privados. Buenos Aires, Editorial Biblos, 2001. Para um ar go sobre a questão da segregação urbana ver Marcuse, P. “No caos, sino muros: el postmodernismo y la ciudad compar mentada”, In: Ramos, A. M. (org.). Lo Urbano. Barcelona, Edicions UPC, 2004. Referências ASCHER, F. (1995). Metápolis ou l’avenir des villes. Paris, Odile Jacob. BARNETT, J. 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Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012 315 Direito à cidade: um estudo sobre o mercado imobiliário informal no bairro de Mãe Luiza (Natal/RN)* Right to the city: a study about the informal real estate market in the Mãe Luiza neighborhood (Natal/Northeastern Brazil) Carmem Cristina Fernandes do Amaral Resumo Diante da dificuldade do poder público em atender à demanda por habitação digna e acesso ao solo urbano da população brasileira, principalmente da mais carente, alternativas, como a informalidade, têm sido buscadas como o meio mais rápido e eficaz de garantir o direito à cidade àqueles de menor poder aquisitivo. Desse modo, este artigo tem por finalidade discutir a dinâmica imobiliária informal de Mãe Luiza – bairro de população carente de Natal/RN – com base em dados obtidos por meio de entrevistas por questionário, com questões abertas e fechadas, junto a uma amostra representativa e aleatória dos moradores do bairro, distribuídos nos setores censitários estabelecidos pelo IBGE. Palavras-chave: dinâmica imobiliária; informalidade; habitação; direito à cidade; Mãe Luiza. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Abstract In view of the government’s poor performance regarding provision of social housing and improvement in the urban conditions for the poor, informal solutions have been found by urban dwellers in Brazilian cities, granting some sort of urban insertion and access to the city’s infrastructure and services. This paper aims at discussing the informal real estate market – especially the housing market – in a poor neighborhood in the city of Natal, Northeastern Brazil. It draws on data from interviews with 290 households, a representative sample of dwellers in the Mãe Luiza neighborhood. Keywords: real estate market; informality; housing; right to the city; Mãe Luiza, Natal. Carmem Cristina Fernandes do Amaral O acesso ao solo urbano e à moradia digna, desde que os centros urbanos passaram a ser polos de atração de pessoas em busca de uma melhor qualidade de vida, é um dos solo, especulação imobiliária e, sobretudo, nas definições da legislação urbanística, desde os seus primórdios, política segregadora e excludente. (Souza e Monteiro, 2009, p. 81) grandes problemas enfrentados pela população de baixo poder aquisitivo, principalmente, A cidade de Natal, capital do Rio Gran- nas grandes cidades latino-americanas. Hoje, de do Norte, seguindo uma tendência nacional, um dos grandes desafios do poder público, em vem, desde meados do século XX, experimen- todas as suas instâncias, é prover a população tando um acelerado processo de urbanização mais carente de moradia em condições dignas cujas consequências se refletem diretamente de habitabilidade e promover o acesso ao solo sobre a sociedade e sobre o espaço urbano, urbano como garantia do seu direito à cidade. que se apresenta altamente segregado. A po- O Brasil, ao longo dos anos, tem imple- pulação de baixo poder aquisitivo, historica- mentado diversas políticas habitacionais; con- mente, tem se apoiado em meios informais e tudo estas iniciativas vêm se mostrando inca- irregulares para ter “direito” à moradia urba- pazes de atender à necessidade de moradia na. É o caso de muitos moradores do bairro de das populações de baixa renda, que, para suprir Mãe Luiza, localizado na região administrativa esse problema, buscaram ou buscam alterna- Leste da cidade de Natal. Esse bairro possui tivas que, na maioria das vezes, estão fora do uma história baseada na ocupação de uma que se convencionou chamar de legal ou for- duna por migrantes vindos do interior do Esta- mal. A informalidade dentro do mercado imo- do, na década de 1940, que, ao se instalarem biliário brasileiro, e não só neste, mas também ali, iniciaram um processo de consolidação da em outros países latino-americanos, é uma área, como locus de resistência de uma popula- prática comum. Muitos estudos remetem a es- ção de baixa renda. se problema, que não é mais uma exceção e, O bairro, atualmente, possui quatro as- sim, uma regra. Especialmente no Brasil, a cida- sentamentos precários, segundo dados da de informal tem sido um grande problema de prefeitura, e apresenta uma dinâmica própria cunho “social e ambiental que afeta cerca de quanto às transações imobiliárias que aconte- metade da população das grandes cidades no cem ali. Dessa forma, a partir de uma pesquisa país” (Souza e Monteiro, 2009, p. 81). As raízes realizada em Mãe Luiza e com o objetivo de desse problema, segundo os autores, estão na fazer uma análise da dinâmica imobiliária do combinação dos seguintes fatores históricos: bairro – que é pautada na informalidade das transações de compra, venda e aluguel de imó- altos índices migratórios para as principais áreas urbanas, grandes desníveis de renda na sociedade, baixos salários da maioria da população, altas taxas de desemprego, baixa escolaridade, atuação pública insuficiente na oferta de habitação social e controle do uso do 318 veis –, este artigo propõe uma discussão sobre as estratégias utilizadas por determinados grupos sociais para garantir seu direito às benesses proporcionadas pelo espaço urbano. Essa é uma temática bastante atual, mas que pouco tem sido discutida no campo Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade acadêmico e nas instâncias administrativas Quanto à metodologia adotada, foi de- da cidade de Natal. Mãe Luiza é um bairro de finido para a presente pesquisa trabalhar com população pobre (com renda familiar, em mé- uma amostragem de 290 domicílios contidos dia, de 2,05 salários, segundo o Censo 2000), nos 13 setores censitários de Mãe Luiza, de inserido em meio a bairros nobres como Tirol, acordo com o estabelecido pelo Instituto Bra- Petrópolis e Areia Preta. Tem uma localização sileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com privilegiada, do ponto de vista das amenidades o número de domicílios definidos, foi realizado ambientais, já que de diversos pontos do bairro um sorteio das residências onde iria ser aplica- se avista o mar e o verde da vegetação do Par- do o questionário, que se divide em três par- que das Dunas, uma grande área de preserva- tes: perfil socioeconômico do morador de Mãe ção de Mata Atlântica. Devido a esses aspectos, Luiza; características da habitação e percepção o bairro sofre constantemente com a pressão do morador acerca do bairro. Os questionários, do mercado imobiliário formal. Contudo, Mãe com perguntas abertas e fechadas, destinadas Luiza, ao longo do tempo, resiste às ações dos aos proprietários e inquilinos das casas sortea- diversos grupos de interesse, por meio de es- das, foram aplicados no período entre janeiro tratégias adotadas por sua população, como, e março do ano de 2010. Concluídas as entre- por exemplo, o esforço empreendido para que vistas por questionário, os dados foram tabula- a localidade fosse instituída como Área Espe- dos, e, posteriormente, foi realizada a análise cial de Interesse Social (AEIS), o que acabou dos resultados. acontecendo em 31 de julho de 1995, com a Primeiramente, neste trabalho, discutire- aprovação da Lei nº 4.663, que dispõe sobre o mos a relação entre a segregação espacial e o uso do solo, limites e prescrições urbanísticas mercado imobiliário. Mais especificamente, co- da área em questão. mo os espaços segregados, principalmente na A dinâmica imobiliária de Mãe Luiza, América Latina, são locus privilegiado da infor- como já foi dito, é pautada na informalidade malidade no setor imobiliário. Em seguida, se- das transações de compra, venda e aluguel e rão apresentados e discutidos os resultados da na irregularidade urbanística dos imóveis, que pesquisa sobre a dinâmica imobiliária informal podemos, antecipadamente, concluir que seja de Mãe Luiza, dando destaque ao perfil socioe- fruto da forma como o espaço urbano natalen- conômico dos moradores do bairro, à caracteri- se foi produzido. Para a discussão e análise de zação dos imóveis e às transações imobiliárias tal situação, foi realizada a leitura de diversos de compra, venda e aluguel estabelecidas ali. autores, que discutem sobre a questão urbana Por fim, através de uma análise qualitativa, e a produção do espaço do ponto de vista do mostramos os motivos pelos quais os morado- desenvolvimento desigual promovido pelo mo- res de Mãe Luiza escolheram o bairro como seu delo econômico vigente. local de moradia. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 319 Carmem Cristina Fernandes do Amaral Mercado imobiliário (in)formal e segregação espacial Em Natal, este fenômeno é bastante claro. A cidade é administrativamente dividida em quatro zonas – Norte, Sul, Leste e Oeste. Essas áreas apresentam-se bastante heterogêneas, De acordo com Silva (2008), o termo segrega- embora, em cada uma delas haja espaços de ção surgiu com a Escola de Chicago, ao estu- homogeneidade. Por exemplo, a Zona Sul (ZS) dar o arranjo étnico-cultural de demarcação é uma área onde a predominância é de bair- do território dos migrantes que chegaram e se ros de população de classe média a alta como: estabeleceram em Chicago. No que se refere ao Lagoa Nova, Candelária, Capim Macio e Ponta mercado imobiliário, a compreensão deste pro- Negra. A Zona Leste (ZL) é a mais rica da cida- cesso é de fundamental importância, visto que de, muito embora haja algumas áreas carentes, o desenvolvimento dessa atividade depende como Mãe Luiza, Brasília Teimosa e Rocas. Já diretamente da forma urbana, da organização nas Zonas Oeste (ZO) e Norte (ZN) a maior con- espacial da cidade, melhor dizendo, da valori- centração é de bairros de população de classe zação ou não dos espaços, objeto de lucro dos média a baixa, como por exemplo: Felipe Ca- agentes imobiliários, como bem analisou Ribei- marão e Guarapes (ZO) e Nossa Senhora da ro (1997). Apresentação (ZN). Ao discutir sobre os espaços dentro das Como se percebe, o fenômeno da segre- cidades, Villaça (2001, p. 141) afirma que “uma gação espacial não é tão simples. Há autores, das características mais marcantes da metrópo- como Peter Marcuse, que defendem a existên- le brasileira é a segregação espacial dos bairros cia da segregação voluntária e da não volun- residenciais das distintas classes sociais”. Esse tária. Num artigo publicado na revista Espaço fenômeno pode ser definido como segregação & Debates, o referido autor faz essa distinção. espacial de grupos socioeconômicos e a ideia Na sua concepção, Marcuse (2004) aponta co- que se adota aqui é a de homogeneidade, ou mo voluntária aquela segregação oriunda da seja, entendemos, assim como Castells (2006, reunião, por decisão própria, de um grupo po- p. 186), que a segregação se dá pelo processo pulacional que deseja se autoproteger e desen- de agrupamento de grupos sociais homogêneos volver seus interesses sem o recurso à domi- no espaço: “a segregação refere-se ao processo nação ou à exclusão, como, por exemplo, aglo- pelo qual o conteúdo social do espaço torna-se meração de grupos étnicos ou religiosos. Já a homogêneo no interior de uma unidade e se segregação involuntária ocorre quando certo diferencia fortemente em relação às unidades grupo social é forçado a se aglomerar em uma exteriores, em geral conforme a distância social determinada área espacial, como os guetos derivada do sistema de estratificação”. americanos ou as favelas brasileiras. Contudo, De acordo com Villaça (2001), há, den- há uma evidência de que são as razões socio- tro da cidade, uma tendência à concentração econômicas que levam às diferentes formas de de classes ou camadas sociais, apesar de essa apropriação do espaço. concentração não impedir a presença ou cres- Villaça (2001) afirma que os padrões cimento de outras classes no mesmo espaço. espaciais são produto da estrutura social, ou 320 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade seja, da conjuntura econômica, política e ideo- pobre, como chama a atenção Smolka, citado lógica que domina a sociedade capitalista, por Sabatini, Cáceres e Cerda (2004, p. 70): “a sendo o mercado imobiliário um instrumento ilegalidade, irregularidade e informalidade têm de segregação, por ser, o mercado em si, “um sido peculiaridades de assentamentos pobres e instrumento de dominação e exclusão econô- do mercado imobiliário latino-americano”. mica que quase sempre apresenta uma mani- Abramo (2003) e Fernandes (2008) festação espacial” (Villaça, 2003, p. 341). Essa chamam a atenção para esse fato. Segundo ideia é corroborada por Santos (2008), quan- eles, em boa parte das cidades localizadas na do faz uma análise dos fatores que levam à América Latina, a informalidade fundiária e/ especulação imobiliária e, como essa, rebate na ou urbanística é que se destaca nas formas de forma espacial: acesso ao solo urbano. Para Abramo (2003), pode-se entender este processo a partir de três A especulação imobiliária deriva, em última análise, da conjugação de dois movimentos convergentes: a superposição de um sítio social ao sítio natural; e a disputa entre atividades ou pessoas por dada localização. A especulação se alimenta dessa dinâmica, que inclui expectativas. Criam-se sítios sociais, uma vez que o funcionamento da sociedade urbana transforma seletivamente os lugares, afeiçoando-os às suas exigências funcionais. É assim que certos pontos se tornam mais acessíveis, certas artérias mais atrativas e, também, umas e outras, mais valorizados. Por isso, são as atividades mais dinâmicas que se instalam nessas áreas privilegiadas; quanto aos lugares de residência, a lógica é a mesma, com as pessoas de maiores recursos buscando alojar-se onde lhes pareça mais conveniente, segundo os cânones de cada época, o que também inclui a moda. É desse modo que diversas parcelas da cidade ganham ou perdem valor ao longo do tempo. (Santos, 2008, pp. 106-107) Como se percebe, a segregação residencial influencia o preço do solo e não só isso. Fenômenos como a informalidade, a ilegalidade e a irregularidade, de modo geral, são mais visíveis em áreas de concentração de população Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 lógicas da ação social, em que a primeira seria a lógica de Estado. Nesse caso, o autor afirma que o Estado é quem define e escolhe a localização, a forma e o público-alvo que terá acesso a um espaço no meio urbano, de modo que se garanta o maior grau de bem-estar para a sociedade e indivíduos. A segunda lógica é a de mercado. Aqui o mercado se transforma num mecanismo social que torna possível a transação imobiliária entre aqueles que querem adquirir um terreno em área urbana (consumidores fundiários ou imobiliários) e aqueles que, por diversos fatores, estão dispostos a repassar seu direito de uso da terra urbana. Nesse caso, os terrenos ou imóveis transacionados podem estar enquadrados ou não nas normas e regras jurídicas e urbanísticas da cidade onde estão localizados, o que confere à lógica de mercado características institucionais diferentes. Podemos encontrar mercados cujo objeto está inscrito na normalidade jurídica e urbanística, que chamamos “mercados formais”, e mercados cujo objeto transacionado não se enquadra nos requisitos normativos e jurídicos, que chamamos “mercados informais de terra”. (Abramo, 2003, p. 8) 321 Carmem Cristina Fernandes do Amaral A terceira lógica, que o autor chama de estadual ou municipal, está ilegal, irregular. É lógica da necessidade, está relacionada à in- informal. Sendo o mercado imobiliário um setor capacidade do indivíduo ou de um grupo so- da economia, a informalidade não se dá ape- cial de “suprir uma necessidade básica a par- nas, por exemplo, na sonegação de impostos. tir dos recursos monetários que permitiriam As formas de informalidade ou de ilegalidade o acesso ao mercado” (Abramo, 2003, p. 8). são diversas. Ela está presente na ocupação Porém, para Abramo, essa lógica não é condi- ilegal de terras públicas ou privadas, no mo- cionada apenas por esse fator, e ele adiciona do irregular como são construídos os imóveis, ainda o que chama de “carência institucio- fora dos padrões urbanísticos, e nas formas de nal”, caracterizada, por exemplo, pela falta de transação imobiliária, que se dão à margem do políticas públicas habitacionais, voltadas para mercado formal. a população de baixa renda, o que leva essa Para Baltrusis (2005), o mercado imobi- classe a se valer de meios que garantam seu liário informal não se constitui num setor. É um acesso ao espaço urbano, como as ocupações novo segmento, um submercado do mercado de terrenos ou imóveis, que eventualmente imobiliário formal: um complemento desse se- implica conflitos políticos e sociais e procedi- tor produtivo. mentos judiciais. Diferentemente das outras duas lógicas, o acesso ao solo urbano a partir da lógica da necessidade não exige um capital político, institucional ou pecuniário acumulado; em princípio, a necessidade absoluta de dispor de um lugar para instalar-se na cidade seria elemento suficiente para acionar essa lógica de acesso à terra urbana. (Abramo, 2009, p. 6) [...] a informalidade seria um complemento do setor produtivo, um sub-mercado, e o que diferencia dos segmentos formais seriam os baixos salários pagos e o baixo valor da mercadoria produzida, o não pagamento de taxas e impostos e a não submissão às normas e regulação do Estado. (Baltrusis, 2005, p. 4) Assim, o que diferencia, de acordo com o autor, o mercado imobiliário informal e o mer- Neste artigo, não entraremos no mérito cado imobiliário formal seria a irregularidade de conceituar as atividades informais, “uma jurídica do primeiro, “em relação à posse dos vez que dificilmente uma atividade formal obe- terrenos, normas de edificação entre outras dece a todas as leis que regem as atividades coisas” (Baltrusis, 2005, p. 4). econômicas. Da mesma forma, as informais, Apesar de Abramo (2009) não se utilizar muitas vezes, pagam algum tipo de imposto ou do termo submercado, como o faz Baltrusis taxa” (Lacerda e Melo, 2009, p. 114). Basta di- (2005), para se referir à condição do merca- zer que entendemos, assim como Silva (2008), do imobiliário informal em relação ao formal, que aquilo que o Estado não consegue contro- ele considera que o primeiro complementa o lar e manter dentro do que é condizente com o segundo e até existe entre eles certo grau de que está instituído, com o que está normatiza- influência de um para o outro e vice-versa. Isso, do pela legislação existente, dentro de uma de- no entanto, não anula a concorrência existente terminada instância de poder, seja ela nacional, entre os dois mercados – o formal e o informal. 322 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade [...] as formas de interação entre os mercados formais e informais de solo podem ser de natureza complementar, de concorrência ou de efeitos de borda com mútua influência no comportamento e estratégias dos agentes dos dois mercados. (Abramo, 2009, p. 60) Contudo, Abramo (2009) afirma que o mercado informal de terras é constituído de dois grandes submercados, quais sejam: o fundiário e o imobiliário. O autor os denominou da seguinte maneira: Submercado de Loteamen- tos, o qual é subdividido em clandestinos ou irregulares, e o Submercado de Áreas Consoli- dadas, subdividido em residencial e comercial; ambos envolvem a comercialização e os aluguéis dos imóveis. Foi também o que concluiu Lacerda e Melo (2009), numa pesquisa realizada no que elas chamaram de conjunto de áreas pobres da Região Metropolitana do Recife (RMR), formado por quatro áreas: Brasília Teimosa, Mustardinha, Pilar e Passarinho. Neste trabalho, as autoras observaram que “o mercado imobiliário informal na RMR funciona a partir de submercados” (Lacerda e Melo, 2009, p. 138). Esses submercados possuem um caráter autorreferencial, ou seja, o vendedor de um imóvel, antes de anunciá-lo à venda, busca informação no seu entorno a respeito do preço praticado dos imóveis. O mercado de habitações de áreas pobres funciona a partir de submercados. Cada um deles corresponde a uma área pobre, onde os compradores, os vendedores e os inquilinos não se informam dos preços em outras localidades. Esses submercados são, portanto, mais atomizados e mais delimitados territorialmente quando comparados aos submercados Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 formais, caracterizados na RMR por certa continuidade espacial. (Lacerda e Melo, 2009, p. 137) Baltrusis (2005), em suas pesquisas, observou que a classificação e estruturação dos submercados do mercado imobiliário informal nas favelas de São Paulo vão depender da área, da localidade, ou melhor, da realidade e da dinâmica que se impõem. Na pesquisa que fez nas favelas de Paraisópolis e São Remo, Baltrusis (2005) pode identificar os seguintes submercados: o imobiliário informal de moradias de alvenaria com acabamento, situadas em ruas ou vielas principais; o de moradias de alvenaria com ou sem acabamento, localizadas em áreas periféricas da favela; o de locação, porta de entrada para muitos na favela; e o submercado de imóveis comerciais, ou comerciais residenciais, que, segundo o autor, permite ao comprador a possibilidade de gerar renda. Para Abramo (2009), no que se refere ao solo urbano, a informalidade é algo que está fora do marco institucional do direito que regula seu uso, estando nesta esfera o direito urbanístico, econômico, comercial, de propriedade, entre outros direitos civis, como bem destaca Alegria, citado por Abramo (2009, p. 55): [...] podemos dizer que a informalidade urbana seria um conjunto de irregularidades em relação aos direitos: irregularidade urbanística, irregularidade construtiva e irregularidade em relação ao direito de propriedade da terra. Com relação ao mercado imobiliário informal, esse também apresenta as irregularidades apresentadas acima, mas, de acordo com Abramo (2009, p. 55), existem outras irregularidades que ferem o direito econômico, como os 323 Carmem Cristina Fernandes do Amaral “contratos de mercado que regulam as transa- e Julia Morim Melo, retratam esta realidade. ções mercantis. Assim, o mercado informal de Nos trabalhos desses autores, ficou evidente uso do solo é a somatória de duas dimensões que aqueles que compraram, venderam ou da informalidade: a informalidade urbana e a alugaram seus imóveis nas favelas tiveram informalidade econômica.” por base a confiança no outro, e esse outro, No mercado imobiliário informal, as tran- na maior parte das vezes, foi um amigo ou sações imobiliárias que são estabelecidas não parente, ou seja, ocorre o que Abramo (2009) possuem, na lei, no marco do direito regula- chama de personalização das relações contra- tório, garantias e segurança de efetivação, ou tuais, condição necessária para a existência seja, no caso de conflito, sua resolução não das transações imobiliárias no mercado infor- poderá se dar pelos instrumentos legais de mal de imóveis. mediação e execução, como chama a atenção Abramo (2009). Contudo, o mercado imobiliário informal é uma realidade nos países latino-americanos e, apesar de ser algo novo nos estudos atuais sobre o urbano, não é uma prática ou uma atividade recente,1 o que configura a existência do que Abramo (2009) chama de “instituições” que possibilitam seu funcionamento, inclusive garantindo o cumprimento dos contratos estabelecidos nas transações imobiliárias. Tais instituições devem ser de caráter também informal, configuram-se numa base sustentadora, que permitem que o mercado imobiliário informal continue a funcionar. uma base importante que garante o funcionamento do mercado e da sua cadeia contratual são as relações de confiança e de lealdade que as duas partes contratantes estabelecem entre si; assim, os compradores e os vendedores, da mesma maneira que os locadores e locatários, depositam no outro uma relação de confiança que tem como base a expectativa de reciprocidade a partir de uma relação de lealdade entre as partes. (Abramo, 2009, p. 57) No caso do mercado informal e popular de solo, em que a relação de reciprocidade confiança-lealdade é uma das instituições fundadoras da possibilidade de existência da troca mercantil informal, temos a necessidade de uma personalização das relações contratuais. Essa personalização pode não ser totalmente transparente e assumir um caráter opaco, mas a personalização (alguém que vendeu ou alugou e alguém que comprou ou alugou) introduz a possibilidade da relação de confiança-lealdade na constituição de uma relação contratual que por definição é implícita (informal), isto é, não está garantida pelos direitos que regulam os contratos econômicos. Assim, no mercado informal de solo são justamente a eliminação da impessoalidade e a personalização da relação contratual que garantem o mecanismo de confiança e lealdade que permite um contrato de compra e venda ou locação informal. (Abramo, 2009, citado por Abramo, 2009, p. 57) Outro aspecto que aparece nas pesquisas dos dois autores – Abramo e Baltrusis – e que está presente não só no mercado imobiliário informal, mas também no mercado formal As pesquisas de Pedro Abramo e Nelson de imóveis, é a questão das preferências loca- Baltrusis, além do trabalho de Norma Lacerda cionais das famílias. Diante da realidade em 324 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade que muitas famílias se encontram, de muitas de favelas veem neste espaço a possibilidade vezes viverem no limite de sua renda, o fator de reviver ou recriar “certos elementos do localização se torna preponderante na hora de cotidia no rural e/ou de cidades de pequeno decidir onde morar. Nas pesquisas de Abramo porte, impossíveis de serem reproduzidos em e Baltrusis, dentro de favelas, isso ficou muito outras localizações da metrópole” (Abramo, claro. Os autores observaram que os fatores 2003, p. 205). Por exemplo, criar animais ou de proximidade do emprego e fatores de vizi- fazer uma roça no quintal ou mesmo sentar nhança são os principais motivos que os levam na calçada para conversar com os vizinhos a decidir por se instalar em determinado lugar são práticas possíveis. Ou seja, a escolha por em detrimento de outro: “Os fatores proximi- determinado modo/estilo de vida também in- dade de uma eventual fonte de rendimento e fluencia as preferências locacionais. os fatores de vizinhança são frequentemente Consequentemente, essa demanda ge- citados como os principais motivos na decisão rada por determinadas localizações também da escolha locacional dos pobres urbanos” vai influenciar os preços dos imóveis, o que (Abramo, 2003, p. 190). pode ser observado em várias escalas, seja Então, a localização do imóvel está di- ela no âmbito da cidade (um bairro que apre- retamente ligada à possibilidade dos mais sente uma infraestrutura melhor é mais valo- pobres de economizar, por exemplo, em pas- rizado que aqueles que não possuem ou que sagens de transporte, por estarem mais próxi- possuem, mas é precária), do bairro (uma rua mos do local de emprego ou da escola onde mais calma, mais larga ou com fácil acesso, por os filhos estudam. Além disso, também há de exemplo, possui imóveis mais valorizados) ou se considerar que, em muitos casos, o empre- do logradouro (uma casa, para fins de moradia, go ou a possibilidade de conseguir trabalhos localizada em determinado ponto da rua terá temporários pode estar no próprio bairro. Con- seu valor mais elevado em relação àquela que tudo, ainda há outros fatores que devem ser está próxima de uma fonte de poluição, como considerados. Abramo (2003, p. 199) divide um bar, uma padaria, uma oficina, etc.). os “fatores locacionais mais importantes na Como se vê, o mercado imobiliário infor- decisão residencial das famílias pobres” em mal é algo que possui uma dinâmica própria três grupos: o primeiro está ligado à preferên- e contribui diretamente para a produção do cia por acessibilidade à cidade, aos centros de espaço urbano, já que esse é fruto das ações emprego, às áreas melhores dotadas de infra- sociais, políticas e econômicas de agentes que estrutura, ao comércio e aos serviços urbanos; transformam a cidade. A interferência desses o segundo diz respeito à preferência por vizi- agentes pode se dar tanto pelas vias formais nhança. Nesse caso, a presença de familiares como informais, e a informalidade, principal- e de amigos, ou seja, de uma rede social, é mente no que diz respeito ao acesso ao solo e uma variável de total relevância na escolha à moradia, tem sido recorrente no meio urbano, locacional. Por último, no terceiro grupo, está principalmente em países ditos em desenvolvi- a preferência por estilo de vida. Nos seus estu- mento. No Brasil, não é diferente. O processo dos, Abramo percebeu que muitos moradores de produção do espaço por meio de mercados Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 325 Carmem Cristina Fernandes do Amaral informais e/ou ilegais virou regra, o que se dá, manicure, auxiliar de cozinha, merendeira, em muitos dos casos, pela falta de políticas varredor, serviços gerais, porteiro, etc. E o lo- públicas que possam auxiliar a população de cal de trabalho, normalmente, fica no próprio baixa renda no acesso à moradia. É essa a rea- bairro ou em áreas próximas; para ir ao ser- lidade do bairro de Mãe Luiza. viço, alguns se utilizam de transporte público (48,4%) e outros vão a pé (26,1%), de carro (4,5%), de moto (3,8%), de bicicleta (2,5%) A dinâmica imobiliária em Mãe Luiza ou, simplesmente, trabalham no próprio imóvel; têm renda familiar entre um e dois salários mínimos (68,3% dos entrevistados) e 14,8% das famílias sobrevivem com menos de um No Brasil e também na América Latina, a in- salário mínimo; 12,1% percebem de 3 a 4 salá- formalidade urbana não se trata mais de um rios mínimos e apenas 1,4% contam com mais conjunto de casos isolados, mas de um pa- de quatro salários mínimos; 3,4% preferiram drão que cresce cada vez mais, principalmente não declarar sua renda. quando se trata do mercado imobiliário infor- Esse é o perfil social de Mãe Luiza que, mal. Apesar de não ser uma prática restrita aos como poderemos constatar mais adiante, se pobres, a informalidade se dá principalmente reflete nas condições habitacionais existentes nas camadas de menor poder aquisitivo, que no bairro, no que se refere ao estado de con- acabam ocupando locais, muitas vezes, de alta servação, às características edilícias e à regu- vulnerabilidade ambiental ou de difícil acesso. larização dos imóveis. Com base em autores como Edésio Fernandes, Nelson Baltrusis, Pedro Abramo e outros, que há muito estudam e observam as questões do urbano, entendemos que, para poder compre- Caracterização dos imóveis ender a existência de um mercado imobiliário informal de imóveis, dentro do bairro de Mãe A caracterização das habitações se mostra de Luiza, faz-se necessário conhecer o perfil so- suma importância, uma vez que esse quesi- cioeconômico de seus moradores. to influencia diretamente o valor dos imóveis, De modo geral, a pesquisa revelou que sejam eles negociados no mercado imobiliário os moradores entrevistados são pessoas consi- formal ou informal. Sendo assim, a pesquisa de deradas maduras: cerca de 45% estão na faixa campo realizada em 290 domicílios evidenciou etária de 25 a 69 anos; são de nacionalidade que 95,9% desses são constituídos de casas brasileira, sendo a maioria nascida em Natal/ (Figuras 1) e 4,1% são sobrados (Figuras 2 e RN, mas parte significativa é proveniente do 3), ou seja, edificações com dois ou mais pa- interior do Estado; possuem baixo grau de vimentos. Quanto à natureza da habitação, instrução; são, na maioria (60%), casados e quase 80,0% do universo amostral é composto com filhos; trabalham em atividade que re- por imóveis próprios, quase 15% são imóveis quer pouca especialização profissional, como alugados e cerca de 5% são cedidos. 326 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade Figura 1 – Casas horizontais em Mãe Luiza (R. João XXIII) Fonte: Acervo particular (2009). Figura 2 – Sobrados localizados na ladeira de Mãe Luiza (R. João XXIII) Fonte: Acervo particular (2009). Figura 3 – Sobrado localizado na R. João XXIII Fonte: Acervo particular (2009). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 327 Carmem Cristina Fernandes do Amaral Figura 4 – A maioria dos imóveis de Mãe Luiza é de alvenaria e concreto Fonte: Acervo particular (2009). As casas no bairro são construídas de al- esses, normalmente, estão localizados nas vias venaria e concreto: 100% dos imóveis visitados principais do bairro, como as ruas João XXIII e são de alvenaria, e 88,6% possuem acabamen- Guanabara (Mapa 1).2 to e 11,4% não possuem. Quanto ao estado de Quanto à divisão interna dos imóveis, a conservação, boa parte das habitações apre- média de cômodos por habitação em Mãe Lui- senta-se num estado de bom a regular. Apenas za é de quatro a seis, o que representa 63,4% cerca de 4,0% estão num estado de ruim a pés- da amostra. Esses, em média, possuem sala, simo (Figura 4). banheiro, cozinha e quarto. Contudo, também No que diz respeito ao uso do imóvel, existem imóveis com apenas dois cômodos e Mãe Luiza é um bairro eminentemente habi- outros (4,5%) com mais de onze. Dentro desse tacional. Dos imóveis visitados, mais de 80% percentual, existe um imóvel com 19 cômodos: servem apenas de moradia. Os outros quase cinco salas, cinco banheiros, duas áreas de ser- 20% , além de servir de moradia, possuem viços, cinco quartos, uma cozinha e uma gara- algum tipo de comércio ou serviço, do tipo gem. Esse imóvel fica localizado na divisa entre mercearia, salão de beleza, lan house, lan- Mãe Luiza e Petrópolis. Segundo o proprietário, chonete, bar, armarinho, etc. Ressalte-se que a casa está avaliada em 300 mil reais. 328 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade Mapa 1 – Uso e ocupação do solo de Mãe Luiza, Natal/RN Fonte: SEMURB, 2006. Projeção Universal Cartográfica de Mercator. Datum: SAD 1969 Zona 25S. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 329 Carmem Cristina Fernandes do Amaral residência foi adquirida através de imobiliária, Transações imobiliárias o que representa 0,4% dos imóveis próprios ou cedidos. A maior parte destes, 63,2%, foi nego- Para facilitar a compreensão, dividimos a análi- ciada diretamente com os proprietários ante- se entre imóveis próprios ou cedidos e imóveis riores. Os demais imóveis dividem-se entre pos- alugados, já que a dinâmica entre essas cate- se, doação, herança, troca e imóvel cedido. Vale gorias apresentam diferenciações que precisam salientar que as transações de troca se deram ser consideradas. no próprio bairro. É o caso de uma moradora, de 63 anos, da Rua Atalaia. Ela resolveu trocar sua casa com uma conhecida (a Sra. Benedita), Imóveis próprios ou cedidos porque sua residência ficava muito distante da rua principal e, como a outra queria uma casa Percebe-se, a partir da leitura da Tabela 1, que um pouco maior, elas entraram em acordo e fi- a dinâmica imobiliária em Mãe Luiza inicia-se zeram a troca dos imóveis. na década de 40, dados validados pela histo- Quanto à condição de pagamento, cha- riografia do bairro. Vê-se que esse processo se ma a atenção o fato de que 57,1% dos imóveis intensifica com o passar do tempo, havendo foram pagos à vista e em 27,1% das transa- uma pequena queda na década de 1980. Con- ções não houve pagamento em dinheiro. Con- tudo, os dados mais expressivos são após o ano frontando esses dados com a forma como 2000, quando 24,7% dos imóveis próprios ou se adquiriu os imóveis, vê-se que esse núme- cedidos foram adquiridos ou ocupados nesse ro, de 27,1%, é correspondente à soma dos período, caracterizando-se aí uma maior co- percentuais de imóveis que foram adquiridos mercialização ou transação de imóveis em re- por meio de trocas, doações, heranças ou pos- lação às décadas anteriores. ses, que é de aproximadamente 27%. Contudo, Os dados referentes a como os proprie- percebe-se que houve também pagamentos tários adquiriram seus imóveis apresentam parcelados e até financiamento, embora esse uma peculiaridade interessante: apenas uma seja um número quase irrisório. Tabela 1 – Tempo em que os imóveis foram adquiridos ou ocupados Ano que adquiriu o imóvel Década de 40 Década de 50 Década de 60 Década de 70 Década de 80 Década de 90 Década de 2000 NR Total 330 Abs. % 2 1 24 36 34 38 61 51 0,8 0,4 9,7 14,6 13,8 15,4 24,7 20,6 247 100,0 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade Tabela 2 – Transações imobiliárias Transação imobiliária Contrato de compra/venda registrado em cartório Contrato de compra/venda sem registro em cartório Recibo particular Acordo verbal Sem transação imobiliária NR Total Abs. % 99 16 17 55 31 29 40,1 6,5 6,9 22,3 12,6 11,7 247 100,0 As transações imobiliárias, no que se refe- carta de aforamento – era simplesmente repas- re à documentação que garante a posse da ca- sado do vendedor para o comprador, sem ne- sa, não constituem fator de preocupação entre nhuma preocupação em oficializar a questão, os negociadores, ou seja, entre o comprador e o perante os órgãos públicos. vendedor. A Tabela 2 mostra bem essa realida- Em relação ao preço dos imóveis, há de. Percebe-se um percentual bastante elevado uma variação muito grande. Existem imóveis de acordos verbais, em torno de 22%. Alguns ti- de R$2.000,00 até R$300.000,00. Metade dos veram a preocupação de emitir um simples reci- imóveis apresenta valores abaixo de 50 mil bo particular, outros até firmaram um contrato, reais e os imóveis que aparecem mais valoriza- porém não houve registro em cartório algum. O dos estão, normalmente, inseridos nas bordas percentual de 40,1% de imóveis cuja transação ou vias mais pressionadas pelo mercado imo- imobiliária foi registrada em cartório engloba os biliário formal. Como exemplo, temos algumas registros realizados em cartório de imóveis e em residências localizadas na Rua João XXIII, na outros cartórios. Rua Guanabara e na Rua Desembargador Bení- Dos imóveis visitados, apenas 19,8% da- cio Filho, limite do bairro com Petrópolis. queles que são próprios ou cedidos possuem Percebe-se, assim, que a dinâmica imo- escritura pública; 24,3% possuem escritura biliária de Mãe Luiza está em consonância particular; 6,1% não possuem documentação com o mercado imobiliário formal, em que o alguma e 42,9% possuem carta de aforamen- fator localização do imóvel é de extrema re- to, um documento expedido pela Prefeitura e levância para se definir o preço de um imóvel. entregue aos ocupantes de terrenos apossados, Os imóveis mais valorizados estão justamente garantindo a esses a posse definitiva sobre o nas ruas e avenidas mais importantes do bair- imóvel ou sobre a terra. Contudo, nas transa- ro, principalmente no corredor de transporte ções imobiliárias, de acordo com declarações coletivo, que se dá pela Avenida João XXIII e de alguns entrevistados, tal documento – a Rua Guanabara. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 331 Carmem Cristina Fernandes do Amaral Imóveis alugados Um dado importante de se ressaltar é o tempo em que um imóvel alugado passa No que se refere aos imóveis de aluguel, os dados revelaram que 97,7% dos inquilinos negociaram o aluguel do imóvel diretamente com os proprietários, enquanto apenas 2,3% tiveram como mediador um parente. Com relação à documentação referente ao compromisso de aluguel, apenas 58% dos inquilinos se comprometeram verbalmente em honrar com suas responsabilidades perante o imóvel do locador; outros 42% firmaram algum tipo de contrato, ocupado. De acordo com a Tabela 3, podemos inferir que o mercado imobiliário de imóveis de aluguel em Mãe Luiza é bastante dinâmico, ou seja, a maioria dos inquilinos, quase 70%, não passa mais do que dois anos num imóvel. Os outros 30% já estão há mais de dois anos morando no mesmo imóvel. Porém, dentro desse percentual, apenas 11,6%, ou seja, cinco inquilinos da amostragem, ocupam a mesma residência há mais de cinco anos. seja ele com ou sem registro em cartório, mas, ainda, os contratos sem registro sobressaem. Cabe ressaltar que esse registro significa ape- A ponte entre a demanda e a oferta nas o reconhecimento de uma assinatura. Quanto ao valor dos aluguéis, estes es- A pesquisa de campo revelou que os agentes tão entre R$80,00 e R$400,00. Fato interes- imobiliários que se destacam em Mãe Luiza são sante de se observar é que o valor do aluguel parentes ou conhecidos, que facilitam o acesso não só vai depender das características da ha- ao bairro daqueles que estão procurando um bitação, mas a localização, em muitos casos, imóvel que possa ser comprado ou alugado é fator preponderante na hora de negociar o por um preço que seja adequado ao seu orça- preço, mesmo que o imóvel não apresente ca- mento, sem muita burocracia, e que esteja bem racterísticas edilícias condizentes com a neces- localizado e servido por serviços públicos e in- sidade da família que o pleiteia. fraestrutura urbana. Tabela 3 – Tempo de moradia no imóvel alugado Tempo que mora no imóvel alugado 332 Abs. % Até 1 ano De 1 a 2 anos De 2 a 3 anos De 3 a 4 anos Acima de 5 anos NR 22 8 4 3 5 1 51,2 18,6 9,3 7,0 11,6 2,3 Total 43 100,0 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade É através desses parentes ou conhecidos imóveis (casas e terrenos), em frente a sua que se dão as transações imobiliárias formais residência. Ou seja, talvez Mãe Luiza só não e informais de compra/venda e/ou aluguel sofra mais com a especulação imobiliária da dentro de Mãe Luiza. Foi possível constatar, cidade, devido às limitações impostas pela Lei através da observação direta, que a presença nº 4.663/95, que o regulamentou como área de de imobiliárias e corretores formais é bastante interesse social. insipiente. Isso talvez se dê pelo fato de que a maioria dos imóveis está dentro da informalidade ou da ilegalidade urbanística, o que im- A escolha pelo local de moradia possibilita a atuação desses agentes que trabalham dentro do mercado imobiliário formal; Através de uma análise qualitativa da percep- ou mesmo, como chamam a atenção Lacerda ção do morador de Mãe Luiza a respeito do e Melo (2009, p. 127), “talvez porque esse ti- bairro, quisemos entender quais os motivos po de intermediação acaba onerando o preço que levaram uma pessoa ou uma família a se final da habitação”. Normalmente, os imóveis instalar ali; que tipos de problemas o bairro que se apresentavam para vender no bairro, apresenta; quais os pontos positivos de se mo- através de imobiliária formalizada, eram ou rar em Mãe Luiza e o interesse em permanecer são legalizados, principalmente na Prefeitura, no local. já que para efetuar transações de compra e Ressalta-se, primeiramente, que pelo venda de um imóvel, através de financiamento menos 78% da população entrevistada está no bancário, faz-se necessária sua escritura públi- bairro há mais de 20 anos. Ou seja, são pes- ca, principal documento solicitado pelas agên- soas que realmente conhecem o lugar onde cias financiadoras. moram e as dificuldades enfrentadas pela po- Contudo, a proeminência da informa- pulação residente. lidade imobiliária no bairro não impede que Ao serem questionados sobre o porquê algumas áreas sofram com a especulação imo- de ter escolhido o bairro de Mãe Luiza para mo- biliária. Existem exemplos disso em Mãe Luiza, rar, os moradores alegaram diversos motivos, principalmente na Rua Guanabara, onde foram mas o que sobressaiu foi o fator localização. compradas várias residências, normalmente Em consonância com diversos estudos juntas umas das outras, com fins especulativos. acadêmicos, o quesito localização se mostrou Algumas vezes, os compradores mantêm de pé como o principal motivo para a escolha de um os imóveis; outras vezes, as casas são derruba- local ou um imóvel para morar. Dentro desse das e os terrenos são murados como se fossem grupo, os entrevistados indicaram diversas cau- um só. Os especuladores, segundo alguns mo- sas para a escolha por Mãe Luiza como local de radores do bairro, são empresas construtoras moradia, entre elas estão: a oportunidade que ou empresários de ramos diversos. De acordo tiveram, na época, de possuir ou alugar o imó- com uma senhora que mora na Rua Largo do vel; a oportunidade de se apossar de um terre- Farol, existe uma grande indústria de doces – no, onde construíram sua casa e a escolha ou balas e pirulitos – do Estado, que possui vários decisão voluntária da família. Nessa resposta, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 333 Carmem Cristina Fernandes do Amaral as pessoas simplesmente diziam ter escolhido Mãe Luiza. Para muitos deles, mudar-se dali o bairro como o local onde queriam viver. significaria perder qualidade de vida. Eles gos- Essas respostas estão em conformidade tam do bairro, especialmente por ficar próximo com o que Abramo (2003) chama de Lógica da de “tudo”. Além disso, há uma infraestrutura Necessidade. Os moradores de Mãe Luiza estão que os atende, mesmo que precariamente. Mui- ali empurrados por sua incapacidade financei- tos deles alegaram possuir familiares no bairro ra de adquirir um imóvel em partes da cidade que, sempre que necessário, se disponibilizam mais valorizadas. Aliada a isso, está também a a ajudar, seja para ficar com seus filhos na hora incapacidade do Estado em suprir a necessida- de trabalhar, seja para emprestar uma xícara de dos mais pobres por habitação. de açúcar, um pouco de café, uma passagem Quanto aos problemas que o bairro apre- de ônibus ou mesmo prestar socorro. Ou seja, senta, 67,6% dos entrevistados indicaram que a rede de solidariedade (Abramo, 2003, 2009; o que mais os preocupa é a falta de segurança. Baltrusis, 2005), também em Mãe Luiza, é um O bairro possui duas delegacias de polícia, mas, fator a se considerar no momento em que há a ainda assim, a segurança deixa a desejar. Em necessidade de escolher se fica ou não no bair- seguida, 10,7% dos entrevistados disseram que ro. Os outros quase 30% realmente gostariam a assistência à saúde é deficitária. Os dois pos- de mudar-se para outro local e a maioria deste tos de saúde que existem em Mãe Luiza não percentual alegou a falta de segurança como o são suficientes para o atendimento à popula- principal fator de expulsão. ção local. Além disso, faltam médicos, enfer- Claramente, os fatores locacionais, ci- meiros e medicamentos. Já 5,9% das pessoas tados por Abramo (2003) e confirmados pe- reclamaram da falta de água, pois, muito em- los trabalhos de outros autores que tratam bora o bairro seja contemplado com a rede de do tema, como Baltrusis (2005) e Lacerda e abastecimento da companhia de água e esgoto Melo (2009), como as preferências por aces- do Estado, em muitos locais a água não che- sibilidade, vizinhança e estilo de vida, são ga, principalmente nos terrenos de cotas mais determinantes na escolha dos moradores de elevadas. Outros 4,5% do pessoal entrevistado Mãe Luiza em permanecer no local ou mesmo indicaram o tráfico de drogas como o principal quando estavam a “escolher” o lugar onde problema de Mãe Luiza, depois vem a falta de iriam morar. infraestrutura, a falta de educação, a falta de Este é o perfil da dinâmica imobiliária em saneamento, os problemas com a limpeza pú- Mãe Luiza: um bairro segregado, de população blica e com os alagamentos. Ainda houve quem de baixa-renda (83,1% dos entrevistados pos- dissesse, cerca de 3% da amostra, que o bairro suem renda familiar entre um a dois salários- não apresenta problema algum. -mínimos), que resiste à pressão do mercado Mesmo com o resultado apresentado, formal de imóveis, por meio de estratégias co- com todos os problemas apontados pelos en- muns entre localidades onde residem pessoas trevistados, a maioria deles não tem vontade de baixo poder aquisitivo, que precisam buscar de mudar-se do bairro. Cerca de 70% dos res- meios para atender suas necessidades mais bá- pondentes dizem estar satisfeitos em morar em sicas, como é a questão de ter onde morar. 334 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade Já que o Estado não exerce seu papel de bairro, constituído de uma população de bai- prover essa população de moradia ou de pro- xa renda, totalmente integrada à vida urbana mover seu acesso ao solo urbano, ela vai buscar de Natal, e inserido numa das áreas mais bem na informalidade o atendimento de suas neces- localizadas da cidade, com diversos atributos sidades, o que termina por contribuir para que naturais que chamam a atenção do mercado o mercado informal de imóveis seja mais um imobiliário local. Contudo, este mercado, o processo pelo qual o espaço urbano se molda. formal, não consegue ter uma atuação significativa dentro do bairro, embora haja indícios de que isso poderá mudar. Considerações finais A dinâmica imobiliária informal em Mãe Luiza é bastante expressiva. Talvez pelo fato de boa parte de seus moradores ter uma renda Do local para o global, foi esse o pensamento familiar entre um e dois salários mínimos, a in- que norteou o presente trabalho. O interesse formalidade dos imóveis seja tão significante. em contribuir para a compreensão do urbano, Esse fato é resultado da dificuldade que essa considerando a complexidade que lhe é ineren- população tem de ter acesso ao solo e à mo- te e entendendo que a fragmentação das par- radia urbanos, devido aos altos preços pratica- tes pode também ajudar a entender o todo, fez- dos no mercado formal de imóveis e à burocra- -nos optar por um estudo de caso que, embora cia imposta na hora de adquirir ou alugar um tenha suas particularidades, na verdade, reflete imóvel por meios formais. uma realidade bastante presente nos países da Toda esta reflexão foi bastante proveito- América Latina – a informalidade dentro do sa, uma vez que, com o exemplo de Mãe Luiza, mercado habitacional. pudemos entender como se dão as relações e Mãe Luiza não é o primeiro nem o último as contradições promovidas pelo modelo eco- bairro ou área, num núcleo urbano, a apresen- nômico que vivenciamos. Esse capitalismo “sel- tar um mercado imobiliário alicerçado na infor- vagem”, que sobrevive através da perpetuação malidade. Apesar de ser um novo campo de es- de um modelo de desenvolvimento desigual e tudo, esse tipo de “economia marginal” não é que encontrou na cidade o meio ideal para se recente. Abramo (2009) afirma que há evidên- reproduzir, promove a diferenciação dos espa- cias de que, no tempo da colônia, em muitos ços, pela segregação social que, diretamente, países de colonização portuguesa e espanhola, influencia a valorização ou não do solo. esse modelo de mercado já existia, embora não fosse tão significativo. O solo urbano e a habitação são, no capitalismo, mercadorias valiosas, que se distin- Mãe Luiza é resultado do processo ace- guem de outras por seu caráter monopolista. lerado de urbanização por que passou Natal. Por serem mercadorias de valor de uso especial, Na verdade, desde seu surgimento, os mora- difíceis de produzir ou irreprodutíveis, como dores do bairro convivem com essa realida- chamou a atenção Valença (2003), podem ge- de, e a configuração espacial de Mãe Luiza rar ao seu detentor uma renda. Devido a isso, o denuncia sua história: uma favela que virou espaço urbano possui áreas de maior ou menor Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 335 Carmem Cristina Fernandes do Amaral valorização, o que vai depender, de acordo com Este artigo não teve a pretensão de es- vários autores estudiosos do assunto, de diver- gotar a discussão em torno de um tema tão sos fatores, como o perfil social da população importante na atualidade que é a informalida- que ocupa a área, as amenidades ambientais, a de no mercado imobiliário de habitações. Ao infraestrutura, etc. Mas o fato é que paga pelo contrário, uma de suas intenções é suscitar in- melhor espaço quem pode, ou seja, os terrenos teresse por uma questão que cada vez mais es- ou habitações melhor localizados pertencerão tá presente na vida dos moradores dos centros àqueles que detêm poder econômico para tal, urbanos, principalmente nos países ditos em sobrando à população mais pobre apenas as desenvolvimento. A informalidade do merca- áreas desprezadas pela classe de maior poder do imobiliário é uma característica dos países econômico, como encostas de morro, áreas ala- que passaram por um processo acelerado de gadiças e de difícil acesso. urbanização e apresentam alto grau de segre- Quem se beneficia dessa diferenciação gação dos espaços. O acesso ao solo urbano que existe na cidade são os agentes (o pro- para aqueles que podem pagar pela superva- prietário de terra, o incorporador, o constru- lorização dos espaços se dá pelas vias formais tor, o financiador, o corretor, o investidor imo- e legais; para quem é desprovido de recursos biliário...) do mercado formal ou informal de financeiros, se dá por meios que driblam as imóveis, que retiram sua renda através do uso leis impostas pelo Estado, o qual tem sido ne- e da transformação do espaço urbano. Con- gligente no atendimento às necessidades des- cordamos, assim, com Edésio Fernandes, Pe- te segmento da sociedade. Natal, assim como dro Abramo e outros, quando afirmam que a outros centros urbanos, apresenta problemas informalidade, seja em qualquer área ou cam- relacionados ao acesso ao solo urbano, que po econômico, não é um fato isolado e, sim, cada vez mais tem se valorizado. Por isso, vê uma tendência, um padrão, uma regra em acentuar-se a segregação de seus espaços ur- países como o Brasil, principalmente quando banos e a desigualdade social. Em Natal, em o assunto é habitação, ou melhor, acesso à vista da dimensão do problema, pouco se tem cidade e às “benesses” que ela proporciona. discutido sobre este assunto. Carmem Cristina Fernandes do Amaral Licenciada e Mestra em Geografia. Lotada na Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo de Natal/RN no Departamento de Fiscalização Urbanística e Ambiental. [email protected] 336 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012 Direito à cidade Notas (*)Este artigo é fruto da dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia da UFRN, no ano de 2011. (1) De acordo com Abramo (2009), existem evidências de que o mercado imobiliário informal já exis a no tempo da colônia em muitos países de colonização portuguesa e espanhola. Mas foi o processo acelerado de urbanização no século XX que contribuiu de forma significa va para a ampliação desse mercado. (2) Foram consideradas na elaboração do Mapa de Uso e Ocupação do Solo apenas ruas que apresentavam uma concentração maior de imóveis com comércio e serviços. Referências ABRAMO, P. (org.) (2003). A cidade da Informalidade: o desafio das cidades la no-americanas. Rio de Janeiro, Livraria Se e Letras/FAPERJ. ______ (2009). Favela e mercado informal: a nova porta de entrada dos pobres nas cidades brasileiras. Porto Alegre, ANTAC. BALTRUSIS, N. (2005). Mercado imobiliário informal em favelas e o processo de estruturação da cidade: um estudo sobre a comercialização de imóveis em favelas na Região Metropolitana de São Paulo. Tese de doutorado. São Paulo, USP. CASTELLS, M. (2006). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. FERNANDES, E. (2008). “Reformando a ordem jurídico-urbanís ca no Brasil”. In: VALENÇA, M. M. (org.). Cidade (i)legal. Rio de Janeiro, Mauad X. 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Este artigo visa descrever a experiência do Plano Estratégico de Setúbal Nascente que incidiu num dos mais emblemáticos bairros sociais da Área Metropolitana de Lisboa que optou por uma abordagem metodológica diferenciada, equacionando vários cenários de desenvolvimento e assumindo uma solução que teria de ser a várias escalas – do local ao regional –, fazendo convergir o direito à habitação com o direito à cidade. Palavras-chave: cidade; plano estratégico; bairro social; coesão urbana; integração metropolitana. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 Abstract The strategic approach is essential as a way to, from existing resources and the dynamics of actors, design credible scenarios for the future. These scenarios, far from enabling to divine the future, provide tools to build a significant part of that desired future. This renewed approach to the social neighborhoods that have been in crisis in the Metropolitan Area of Lisbon has produced a number of consensual and innovative measures. This paper aims to describe the experience of the Strategic Plan for Setúbal Nascente (Portugal), which focused on one of the most emblematic social neighborhoods in the Metropolitan Area of Lisbon. The Plan opted for a different methodological approach, equating various development scenarios and assuming a solution that would have to be at different scales – from local to regional –, bringing together the right to housing and the right to the city. Keywords: city; strategic plan; social neighborhood; urban cohesion; metropolitan integration. Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho Introdução Essas mudanças tornam óbvios os efeitos no entendimento de todas as questões quotidianas que se colocam às sociedades e, Quase século e meio após a revolução industrial, a habitação continua a afirmar-se como um dos problemas maiores das nossas sociedades, pois, ao mesmo tempo que se considera que é central para a dignidade humana e para a plena inclusão social, também é verdade que ainda não foi possível encontrar uma solução definitiva. Engels (1975), aliás, vai mesmo mais longe afirmando que é impossível sua resolu- muito em particular, à habitação. Esta esteve, aliás, no olho do furacão financeiro que ainda hoje deambula pelas pequenas e menos pequenas economias financeiras europeias. Todavia, permaneceu invisível durante muito tempo, como que a incubar, quando apenas afetava segmentos sociais marcados pelo preconceito e pelas limitações econômicas. Como lembra oportunamente Harvey (2010), ção no quadro do sistema burgês de funcionamento da sociedade. Para lá da diacronia presente em quase todos os países ocidentais – reveladora de uma sucessão de políticas de habitação que ora ampliam ora reduzem seus públicos-alvo ou oscilam entre um maior envolvimento público e uma maior participação do setor privado ou ainda enveredam alternativamente entre o arrendamento e o estímulo à aquisição (Kemeny, Algo de sinistro despontou nos Estados Unidos em 2006. A taxa de execuções nas hipotecas à habitação em zonas de baixo rendimento de cidades antigas como Cleveland e Detroit registou um aumento súbito. Mas os burocratas e os média não repararam porque os indivíduos atingidos eram sobretudo negros, imigrantes (latino-americanos) ou mulheres de famílias monoparentais, com baixos rendimentos. (p. 13) 1992, 1995) – é também evidente uma sincronia diversificada pela realidade múltipla, consoante países e regiões, que relaciona o problema com as políticas de enfrentamento (King, 2003, 2004, 2006, 2009). Esses pilares históricos têm agora de conviver com um mundo em transformação profunda, em grande parte motivada pelas ondas de choque produzidas pela globalização nos domínios econômico-financeiro, social e político. Estamos, por isso, de acordo com Bógus Já nos anos 90, o problema existia para os negros em especial: Entre 1998 e 2006, antes de a crise das execuções se evidenciar em toda a sua extensão e gravidade, estimava-se que os negros tinham perdido entre 17 mil milhões de dólares em valores de ativos, por terem contraído os chamados empréstimos de alto risco (subprime) para compra de habitação própria. (Harvey, idem, ibidem) quando afirma que “(…) as cidades contemporâneas têm passado por constantes mudanças Foi durante o ano de 2007 que tudo se em sua dinâmica socioespacial, fato que tem tornou mais claro. A classe média branca come- promovido a valorização e ampliado o debate çava a ficar afetada pela crise e pelas execuções das questões urbanas (…)” (2008, p. 126). hipotecárias até aí apenas circunscritas às 340 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 As metrópoles também têm lugares minorias negra e latino-americana. Por outras Algumas décadas passadas e várias po- palavras, a pobreza chegou também aos subúr- líticas de habitação depois, em Portugal os bios da América. O aumento da pobreza nos working poor constituiam 12% dos 1,8 milhões EUA, na primeira década do século XXI, foi de em risco de pobreza (INE, 2009). Mais uma vez 53% nos subúrbios e menos de metade desse a habitação assume sua centralidade nos dra- valor nas cidades. Convém ainda sublinhar que mas individuais. A redução dos rendimentos dois terços dessa variação ocorreu entre 2007 mensais, o aumento dos impostos sobre o imo- e 2010 (USA Census, 2011). Estourou assim a biliário e ainda o de todos os consumos ineren- bolha do mercado imobiliário. tes à habitação, conjugados com a ocorrência Em Portugal, a crise não demorou a ou iminência do desemprego, implicaram o chegar e, mais uma vez, a eleger a habitação agravamento do endividamento familiar sem- como um alvo fácil. Todavia, relembre-se que, pre estimulado pelo setor financeiro. Com ele já desde os meados do século passado, se chegaram as dificuldades no pagamento das sentiam mudanças na sociedade portuguesa hipotecas da habitação própria explicando-se com “o desenvolvimento tecnológico e a ex- assim a multiplicação de anúncios na comuni- tensão da produção capitalista à agricultura, cação social relativos a leilões e execuções fis- a abertura ao mercado externo e a integração cais de imóveis particulares. transnacional por via da adesão à EFTA (1959), bem como o regresso dos ex-colonos” (Ferrei- Da perda da habitação à perda da cidadania é um passo excessivamente curto. ra, 1987, p. 22). Compreende-se assim que, na década de 60 do século passado, as estimativas apontavam para uma carência de 500 mil fogos (Ferreira, idem). Nos EUA como em Portugal (entre ou- Bairro social ou bairro problemático tros países), por motivos e estratégias diferentes, a habitação estando presente ativamente As cidades são, antes de mais nada, feitas de nos sonhos individuais é usada como instru- pessoas. São essas pessoas que dão viabilida- mento de manipulação pelo poder quer políti- de às atividades e funções urbanas. Sem elas co – por meio das políticas de habitação social não haveria promoção imobiliária, dinamismo ou das políticas de apoio ao arrendamento ou econômico, investimento cultural. Por mais que ainda ao acesso ao crédito bonificado – quer a desmaterialização da vida coletiva que pare- econômico – através do interesse financeiro ce aprofundar-se e a cada vez mais evidente que ali vê uma forma muito segura de se compressão espaço-temporal inicialmente vis- ampliar e aplicar os excedentes de capital. A lumbrada por Harvey (1989) nos queiram fazer lógica produtivista da habitação predominava esquecer sua centralidade. sobre qualquer outra preocupação (qualificação, gestão, …). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 Mestre nesse percurso de despersonalização, o neoliberalismo reafirma o reinado 341 Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho da racionalidade econômica e a pertinência importava atrair e fixar populações. Estimava- da irrealidade financeira na ação do Estado. -se a produção de 50 mil alojamentos, e para É transversal a ideia que os serviços públicos isso criou-se o Fundo de Fomento da Habita- se devem pagar a si próprios embora, se assim ção (FFH). Foram os casos, na Área Metropo- fosse, o Estado na verdade não seria neces- litana de Lisboa do PIS – Plano Integrado de sário, o Estado seria obrigado a uma função Setúbal e do PIA – Plano Integrado de Alma- supletiva. Teria sido a dinâmica “natural” do da, entre outros. sistema de mercado a encontrar as melhores À mesma perspectiva corresponderam fórmulas para levar esses serviços a todos sem problemas semelhantes, isto é, essas áreas exceção. Teria sido assim com a educação, pela sua extensão encontraram sempre locais com a saúde, com o apoio social, transportes de implantação à margem dos tecidos urbanos públicos, cultura, entre outros campos essen- consolidados revelando por tal problemas de ciais à vida coletiva. articulação com a cidade acoplada. Por outro A percepção que a habitação é um di- lado, e contrariando os objetivos iniciais de reito fundamental está consagrado na Consti- integração, o caráter modernista do desenho tuição da República Portuguesa, no seu artigo urbano adotado acaba por lhe conferir, pela 65. Surge, aliás, na sequência do entendimento amplitude da rede viária, do estacionamento e que é ao Estado que incumbe corrigir as limita- do restante espaço público, questões de coesão ções da promoção privada, bem como a enor- interna. Finalmente, a própria arquitetura dos me carência instalada. As políticas visando a edifícios acaba por conferir a esses territórios correção desse déficit foram muitas e diversas, a ideia de uma tripla exclusão física-urbana, ur- recuando muitas décadas até 1974. O objetivo banística e arquitetônica. nunca foi alcançado. Acresce a essa forte exclusão, que o ter- Para a descompressão do problema ritório se impôs a si próprio, a que resulta de muito contribuiram as estratégias informais uma polarização social decorrente de uma ho- seguidas pelas famílias muitas vezes com a co- mogeneidade das populações alojadas. nivência das autoridades centrais e locais: alo- Foi da condensação dessas particula- jamentos com materiais precários, alojamentos ridades que gradualmente a ideia de Bairro clandestinos, subarrendamentos/sublocação, Social foi migrando para Bairro Problemático, ocupação de alojamentos degradados, coexis- não obstante o esforço financeiro feito para tência familiar, sobreocupação do fogo, … colmatar a degradação física do edificado e Os Planos Integrados foram uma das po- do espaço público e ainda na desnificação das líticas dirigidas à habitação para populações redes de equipamentos e de apoio social. Em com menores rendimentos consagrados no III alguns casos ocorreram mesmo programas di- Plano de Fomento (1968-1973), mas que se rigidos a famílias e indivíduos ampliando com- relacionavam com áreas particularmente inte- petências, estimulando a organização coletiva, ressantes para o desenvolvimento econômico promovendo a participação pública, entre ou- (polos de indústria pesada) e que para isso tros objetivos. 342 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 As metrópoles também têm lugares Essas soluções, ao mesmo tempo que locais – associações, condomínios, … – ou do revelam uma genuína preocupação com es- movimento cooperativo, por exemplo, quase ses territórios e comunidades, não deixavam, nunca foi considerado. paradoxalmente, de confirmar o estigma que Chega-se, então, a uma situação em sobre eles pende ampliando o fechamento de que, diante dos múltiplos problemas suscita- famílias e bairros. Não negando os progressos dos por esses territórios, era inadiável uma alcançados e a eventual dificuldade de sempre reflexão sobre o futuro e a operacionalização dispôr de paradigmas alternativos de interven- de uma estratégia coerente de enfrentamento ção continuam por delimitar os efeitos dos pro- desses desafios. gramas, projetos e ações a que se submetem os mesmos territórios, indiciando o caráter avulso e provisório de cada um. Perpetuam-se as difi- Do direito à habitação… culdades de inclusão de famílias e territórios e ganha renovada projeção a oposição do direito A história de um bairro de interesse social – à habitação com o direito à cidade. administração direta, indireta e autônoma –, Assim, entre a pressão da visão neolibe- dirigido a populações de baixos rendimentos ral e a repetição de intervenções estereotipa- ou de rendimentos pouco adequados aos valo- das, as políticas de habitação dirigidas a seg- res praticados pelo mercado imobiliário, pode mentos mais vulneráveis da população conti- ter um perfil ascendente ou um perfil descen- nuam a prosseguir o objetivo de contribuir para dente. No primeiro caso encontramos, no caso a construção de territórios mais integrados e de Lisboa, Portugal, as áreas residenciais das tolerantes (Mendes e Malheiros, 2007). décadas de 40 a 60 do século passado, tendo Se essas eram questões situadas no cam- começado alguns (Bairros de Madre de Deus, po da produção da habitação, muitas outras se Caselas, Encarnação, Santa Cruz, …) a ser poderiam colocar no campo da gestão do par- pensados inicialmente na sequência do “Estu- que habitacional que foi sendo criado. Em par- do de Bairros Operários” confluindo depois no ticular, a demissão que afetou as administra- projeto “novos bairros”, moradias organizadas ções centrais locais no acompanhamento dos sob o princípio da cidade-jardim. Outras tipo- trajetos feitos pelas famílias em termos sociais, logias podem encontrar-se segundo os prin- desistindo de considerar a habitação social co- cípios modernistas da Carta de Atenas como mo um apoio transitório (embora possa acabar Alvalade ou os Olivais, também em Lisboa. No por ser para a vida, por incapacidade financeira segundo caso, parece encontrar-se a produção da família). habitacional dos anos 70 do século XX (ou Um outro sinal do alheamento do Esta- que maturou a partir dessa data) que, após os do das preocupações de gestão foi o que de- efeitos iniciais (elevação da autoestima dos re- rivava dos modelos de gestão muito centrali- sidentes, o alargar de expectativas pessoais e zados em estruturas administrativas distantes familiares), o passar dos anos revelou circuns- (mesmo se desconcentradas no seio dos pró- tâncias mais amargas, estreitando as relações prios bairros). O envolvimento de estruturas entre bairros sociais e bairros problemáticos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 343 Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho Esse percurso divergente de bairros de pacífica. A migração ascendente, no fundo, cor- habitação de interesse social com gênese se- responde à aspiração de fazer evoluir o direito melhante mereceria uma atenção exclusiva, à habitação para um direito à cidade. mas que não é oportuno abordar neste artigo. Porém, interessa pelo menos sublinhar as intervenções efetuadas nos que apresentaram processos descendentes. A generalidade dos programas foi concebida e concretizada com o apoio de fundos comunitários e acabou por incorporar os princípios que moldavam todas as … ao direito à cidade: repensar o Plano Integrado de Setúbal intervenções dessa natureza na União Europeia. No fundamental celebravam a necessidade de O Plano Estratégico de Setúbal Nascente abordar a dimensão social, econômica e fisica, (PESN) foi lançado pelo Instituto da Habitação na convicção de que só esse tripé daria coerên- e Reabilitação Urbana (IHRU) em colaboração cia e viabilidade às ações. Em Portugal, desde o com a Câmara Municipal de Setúbal (CMS) no Programa de Iniciativa Comunitária Urban I e II, contexto de um protocolo realizado entre as passando pelo Programa de Reabilitação Urba- duas entidades em 2007. na (PRU) até o Programa Integrado de Qualifi- Objetivos centrais – Tinha como objetivo, cação das Áreas Suburbanas da Área Metropo- baseado num diagnóstico social, educacional, litana de Lisboa (PROQUAL) ou à recente Inicia- cultural, habitacional, econômico e urbanístico, tiva Bairros Críticos (IBC), não houve sinificativo propor políticas integradas que permitissem a desvio a essa filosofia de intervenção. progressiva ocupação, recuperação e integra- Como curiosidade, refira-se que o mesmo ção daquela parcela do território na cidade. bairro poderá ter sido submetido a mais do que O PESN (sujeito a apresentação pública um destes programas, denunciando insuficiên- até 18 de março de 2011 e, entretanto, já apro- cias ou necessidade de complementaridades vado pelo IHRU e CMS), visa também a defini- com outras ações. ção de um modelo de ocupação que incluísse A criação do bairro satisfaz uma necessi- a reabilitação integrada do tecido urbano e a dade fundamental – o direito à habitação – es- elevação dos padrões de qualidade arquitetô- tendendo-se até hoje as intervenções de manu- nica e construtiva, envolvendo interesses pri- tenção e reabilitação que, ao se centrarem em vados e públicos. exclusivo nestes territórios, acabam por lhes A metodologia seguida estruturou-se do negar ou dificultar outro direito essencial – o seguinte modo: direito à cidade. Fase 1 – Análise e Diagnóstico Dito de outro modo, a desmontagem Fase 2 – Proposta do efeito ilha continuamente recriado até em Etapa 1 – Visão intervenções razoavelmente recentes é hoje Etapa 2 – Modelo Territorial uma prioridade embora nem sempre fácil ou Etapa 3 – Quadro de Intervenção e Desenvolvimento 344 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 As metrópoles também têm lugares Figura 1 – Setúbal no contexto da Área Metropolitana de Lisboa e do Litoral Alentejano Fonte: IHRU, Atkins e Espaço e Desenvolvimento, 2011. Na sequência da aprovação do PESN, se- texto marítimo portuário oferecido pelo Porto gue-se a elaboração do Plano de Urbanização de Setúbal e Sesimbra e está na charneira de para dar forma às orientações estratégicas com duas das áreas de maior dinamismo em nível um Instrumento de Gestão territorial. nacional: Lisboa e o Litoral Alentejano. A matriz territorial – dinâmicas e po- Essa posição privilegiada em conjugação sição – A cidade de Setúbal tem um contexto com uma capitalidade resultante da presença de localização local, regional e nacional ex- de funções de nível superior permite explicar cepcional. Beneficia da articulação do sistema a manutenção de uma expressiva capacida- rodoviário e ferroviário; contexto logístico pela de centrípeta dirigida a indivíduos (+6% de proximidade da (prevista) maior plataforma lo- 2001 para 2011), famílias (+14%), alojamentos gística do país a instalar no Poceirão, do con- (+13,4%) e edifícios (+16,7%). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 345 Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho Figura 2 – Expressão da área do PESN na cidade de Setúbal Fonte: IHRU, Atkins e Espaço e Desenvolvimento, 2011. Figura 3 – As múltiplas pressões e centralidades envolventes à área do PESN Fonte: IHRU, Atkins e Espaço e Desenvolvimento, 2011. 346 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 As metrópoles também têm lugares A contribuir para essa atração também A área do PESN encontra-se numa po- não deve ser alheio o fato de Setúbal surgir co- sição (na acepção da relação com elementos mo muito competitiva no mercado imobiliário espaciais estruturantes, proposta por Ribeiro na zona sul e, sobretudo, no que respeita ao va- (1986) interessante e até chave, diante das 2 lor/m dos imóveis usados (cf. Associação dos polaridades difusas envolventes – Instituto Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliá- Politécnico de Setúbal, Porto de Setúbal, Ur- ria de Portugal-APEMIP). banização de Vale da Rosa, Área Industrial e a A zona integrada no PESN ocupa uma cidade canônica. superfície de cerca de 350 ha, situados no li- Em uma avaliação prospectiva da Área mite Sul/Nascente de Setúbal, cuja perificidade de Intervenção (AI), é incontornável como as- física e social tem marcado incontornavelmen- pecto marcante desse território sua inserção te sua história recente. Trata-se de um território geográfica, tanto no contexto metropolitano, caracterizado por um mosaico rico em diver- como no de uma região que se alarga ao Lito- sidade, mas cujas descontinuidades e mesmo ral Alentejano. Igualmente determinante para conflitualidade de usos não permitem por ago- qualquer futuro que se desenhe no âmbito do ra qualquer associação a uma lógica verdadei- PESN é seu posicionamento no município. ramente urbana. De fato, a continuidade física que de- As infraestruturas de acessibilidade têm tém com o tecido urbano da cidade, sua pro- vindo a constituir-se como elementos forte- ximidade ao centro histórico, o potencial de mente marcantes da ocupação e, sobretudo, da relação com a frente ribeirinha, seu papel vivência desse espaço, vitimizado pela lógica de interface com as polaridades emergen- de “atravessamento”. tes em torno do Instituto Politécnico e Polo Na frente Sul do PESN, é novamente um Tecnológico e, finalmente, a extensão da sua corredor de infraestruturas de mobilidade, frente Sul/Nascente de cariz eminentemente rodo e ferroviárias (Estrada da Graça e linha portuário-industrial traduzem bem a com- de Caminho de Ferro), que se assume como plexidade desse território, mas também seu suporte das ligações com as envolventes me- caráter estratégico para o desenvolvimento e tropolitanas, mas que, ao mesmo tempo, exer- plena integração da Cidade. ce um efeito barreira entre esse território e a frente ribeirinha. Apesar disso, e paradoxalmente, esse posicionamento não lhe possibilitou até hoje Os cerca de 350 ha do PESN, diante do uma ruptura com o estatuto de perificidade perímetro atual da cidade, representam qua- ancorada nos pesados antecedentes e dinâ- se sua duplicação. Essa comparação, ainda micas de exclusão que esse território “incor- que apenas aproximada, chama a atenção porou”. Ainda encapsulado por barreiras di- para as potenciais implicações que o relança- versas, de natureza física, social e econômica, mento urbano e econômico dessa área pode- tem resistido às diversas operações tendentes rá vir a significar. à sua coesão e integração no espaço social e Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 347 Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho urbano da envolvente. Por tudo isso, parece Essa marca estigmatizante é amplificada evidente a urgência de uma centralidade forte pela densidade dos working poor e pelas situa- e agregadora, capaz de articular todas as pola- ções de tensão e conflito em algumas zonas da rizações envolventes. AI (nomeadamente no Bairro da Bela Vista) refor- Socioeconomia – Em 2001 (último ano çando o estigma por via do efeito conjugado da para o qual ainda é possível ter dados com redução cognitiva e do evitamento experiencial detalhe), Setúbal Nascente acolhia 8.638 indi- (i.e., evitar ter a experiência de visitar o bairro) víduos, representando 7,4% da população do para as pessoas, famílias e associações aí fixadas. município e quase um décimo da população da Habitação e condições de habitabilida- cidade. Apesar dos atuais baixos níveis de esco- de – A proximidade dos bairros residenciais laridade e de um significativo desemprego, re- inscritos na AI ao centro urbano e as vistas gista-se um gradual aumento dos níveis de es- largas e sugestivas – a Bela Vista – sobre o colaridade da população o que é, certamente, Estuário são marcas distintivas desse terri- um fator indutor da qualificação do tecido so- tório. Em 2001, eram 892 edifícios os que se cial a médio-longo prazo e indicador de inclu- implantavam em Setúbal Nascente, sendo são social. Todavia, são ainda muito marcantes quase dois terços posteriores aos anos 70. Es- a dependência dos apoios sociais (rendimento se universo correspondia a 4% do município. social de inserção, desemprego, habitação, …), Por seu lado, os 32.659 fogos existentes na AI a fragilidade das competências profissionais ou elevavam-se a 5,9% do total concelhio, reve- a desestruturação familiar. lando maior densidade residencial. Figura 4 – Principais eixos e ligações de transporte (rodoviário, ferroviário e marítimo) Fonte: IHRU, Atkins e Espaço e Desenvolvimento, 2011. 348 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 As metrópoles também têm lugares A existência de equipamentos sociais ● Degradação da imagem urbana e presença de proximidade e de outros equipamentos re- de fatores de desqualificação da paisagem centes no bairro (nomeadamente de eendoge- ● neizounsino) ou nas proximidades, a presença acessibilidade de espaços físicos de qualidade na envolvente (Parque Verde da Bela Vista e zonas verdes) e as acessibilidades e rede de transportes bastante aceitáveis reforçam essa caracterização de uma parte de Setúbal que, geralmente, não está associada a fatores positivos como os elencados. Perdura, ainda, a imagem da “outra face” da AI, marcada pela degradação do edificado e a deterioração das infraestruturas do fogo, pela limitada diversidade funcional dos edifícios (explicando a falta de comércio e serviços em algumas zonas), pelo fechamento dos bairros – barreiras e fronteiras bem definidas – sem propiciar o contato com o exterior. Marcas essas que são sublinhadas, pelo recente e expressivo aumento dos fogos vagos e devolutos. É possível sistematizar assim as debilidades e potencialidades: Síntese – Debilidades ● Vulnerabilidade do tecido social pelas dificul- dades de inserção na vida ativa Efeito de barreira das infraestruturas de Síntese – Potencialidades ● Sentimento de pertença ao Bairro (em contex- tos problemáticos) ● Forte papel das organizações de ação local e movimentos associativos ● Boa cobertura de equipamentos coletivos di- rigida a diferentes públicos-alvo ● Muito boa acessibilidade local e regional ● Continuidade física com o tecido consolidado da cidade ● Capacidade construtiva disponível ● Dimensão cadastral e expressão da proprie- dade pública do solo ● Excepcional perspectiva visual sobre o Estuá- rio e referenciação do território ● Diversidade e riqueza de ambientes naturais e valores paisagísticos Visão Estratégica – A necessidade de identificar um fio condutor para a intervenção conduziu à visão de um território que “aproveitará os seus recursos naturais e paisagísticos de excelência para, em conjugação com a Estigma do Bairro da Bela Vista, por via da promoção dos valores da cidade e da sua lo- redução cognitiva e do evitamento experiencial calização de interface entre a Península de Se- ● ● Fraca integração/articulação institucional túbal e o Litoral Alentejano, contribuindo para ● Degradação urbanística e forte expressão dos reposicionar Setúbal como centro metropolita- sinais de insegurança ● Irradiação dos equipamentos limitada aos Bairros de Setúbal Nascente ● Fraca atratividade e dinâmica da AI, perma- nência de áreas expectantes ● Monofuncionalidade e descontinuidade do tecido urbano ● Fraca permeabilidade e articulação com o te- cido consolidado da Cidade Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 no de relevo e permitindo o reassumir da sua condição de capital no contexto da Costa Azul” (IHRU, 2011, p. 18). A Música assume-se como o elemento mobilizador da mudança, afirmando Setúbal Nascente, Cidade da Música: Um Território de Cultura e Conhecimento; Um Destino de Turismo e Lazer; Um Espaço Qualificado para Habitar. 349 Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho Justifica-se especificar sobretudo o que Frente de Estruturação e Consolidação respeita à Habitação já que Setúbal Nascente Urbana – Será criada uma nova frente edifi- encorajará o re-equilíbrio da Cidade bem como cada multifuncional, densa e contínua, que a requalificação e diversificação das formas de integre espaços para habitação, comércio, habitar, favorecendo a criação de diferentes es- serviços e equipamentos ao longo de um eixo paços residenciais atractivos, orientados para de mobilidade, com um perfil e um tratamen- segmentos distintos do mercado de habitação: to do espaço público de caráter intensamente Frente de Reabilitação Urbana – O novo urbanos. quadro jurídico-administrativo da reabilitação Assegurando a continuidade do tecido será convocado para uma operação de van- da cidade bem como a articulação entre a Be- guarda, que garanta a preservação dos valores lavista e as Manteigadas/IPS/Polo Tecnológico, locais, conjugada a uma alteração significativa esse eixo afirmará o transporte público e os dos padrões de intervenção sociourbana. modos suaves e constituir-se-á como um marco Essa estratégia será articulada com a lógi- referenciador de Setúbal Nascente. ca de revitalização do Centro Histórico e deve Frente de Promoção – O aproveitamen- promover a continuidade e permeabilidade do to das qualidades cênicas e naturais bem co- tecido urbano de toda a cidade, associados a mo dos recursos urbanos de Setúbal Nascente uma intensa qualificação do espaço públi- serão potenciados com a criação de espaços co; à promoção da segurança; uma mobilidade turístico-residenciais de elevada qualidade, mais sustentável; à dinamização do comércio lo- muito baixa densidade e forte integração na cal; à valorização dos equipamentos existentes. paisagem e valores locais. 350 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 As metrópoles também têm lugares Objetivos das Propostas Objetivos gerais Sustentabilidade socioeconômica Tecido urbano e mobilidade Paisagem e ambiente Dinamizar a estratégia global por via de uma nova lógica – de modernização – da reabilitação urbana. ● Sustentar a instalação de equipamentos indutores de centralidade territorial e, consequentemente, indutores de dinâmica econômica. ● Qualificar e abrir para e à cidade a rede de equipamentos existente: de cultura, desporto, recreio e lazer, mas também de educação. ● Qualificar, diversificar e ajustar a oferta de habitação. ● Promover a multifuncionalidade, favorecendo a qualificação e diversificação do comércio (nomeadamente restauração) e dos serviços. ● Reforçar a lógica da multifuncionalidade por via da promoção de (novas) atividades relacionadas com o turismo de elevada qualidade ou com a indústria de grande sofisticação tecnológica. ● Promover o emprego e a qualificação socioprofissional da população. ● Reforçar o envolvimento das comunidades locais na implementação das ações de regeneração urbana. Garantir a articulação e/ou continuidade da área do PESN com o tecido envolvente, urbano, terciário e logístico-industrial. ● Preencher, consolidar e referenciar a malha urbana, mas garantir a preservação de áreas de reserva para expansão de longo prazo da cidade. ● Valorizar os elementos patrimoniais locais, de caráter urbanístico e arquitetônico. ● Promover a legibilidade do tecido urbano e sua projeção exterior, aproveitando os marcos urbanísticos e paisagísticos do local e envolvente. ● Definir uma rede de espaços públicos qualificada e hierarquizada que se articule com as novas centralidades a criar e com os espaços existentes ou previstos na envolvente ● Incrementar a multifuncionalidade dos usos do solo. ● Articular a densificação do tecido construído com a escala do espaço público e com a política de transporte público. ● Completar e hierarquizar a rede viária local, articulando as ligações com a cidade, o concelho e a AML. ● Reduzir as necessidades de deslocações, minimizar a dependência do automóvel e favorecer a utilização do transporte público. ● Assegurar a integração entre os diferentes modos de transporte e promover os modos suaves. ● Implementar uma rede ecológica local em ● ● articulação com a rede ecológica da cidade, do concelho e da área metropolitana de Lisboa. ● Apostar intensamente na preservação e valorização dos valores naturais locais. ● Usar as áreas verdes como áreas tampão, áreas de proteção a usos sensíveis e áreas de remate. ● Proteger e valorizar o sistema de vistas de e para a baía e zona ribeirinha, favorecendo ativamente sua função. ● Aproveitar as características da ZE para o desenvolvimento de atividades de ar livre, potencializando a utilização do espaço público, das zonas naturais e das áreas verdes. ● Promover um modelo territorial que contribua para a redução de necessidades energéticas e favoreça o conforto acústico. Essas áreas complementarão a oferta da fundamentais não só para esse território como envolvente (Sesimbra, Palmela, Alcácer do Sal e para a afirmação de regional de Setúbal. O Mo- Grândola) integrando Setúbal na rede regional delo Territorial assenta em uma rede de corre- de turismo residencial, contribuindo para sua dores de mobilidade, com funções muito distin- afirmação como destino turístico e Capital da tas no quadro global da intervenção, mas que Costa Azul. O funcionamento desses equipa- genericamente completam e consolidam a ain- mentos deverá satisfazer parte da procura de da inacabada rede radio-concêntrica da Cidade. emprego de Setúbal Nascente. São quatro grandes eixos longitudinais Como forma de agilizar a concepção do que asseguram as ligações Nascente/Poente, modelo de intervenção foi ainda definido um ou seja, permitem consolidar as relações entre conjunto de objetivos de referência. Trata-se ago- o centro da Cidade e as diferentes polaridades ra de concretizar esse conjunto de referências que se têm vindo a organizar na franja oriental nos seus suportes mais operativos de natureza periurbana (área portuária-industrial, Instituto territorial, sendo esse o propósito da construção Politécnico de Setúbal, zona logística), e duas do Modelo Territorial para Setúbal Nascente. potentes distribuidoras circulares. Essa malha O Modelo de Intervenção – A Visão pa- acaba por ajudar a delimitar as duas grandes ra o território de Setúbal Nascente promove a centralidades propostas: Centralidade Urbana e afirmação de um conjunto de eixos estratégicos, Centralidade Metropolitana. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 351 Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho Figura 5 – Modelo Territorial aprovado para a área do PESN Programas Estratégicos – A este modelo As dinâmicas sociodemográficas co- de expressão territorial associam-se um con- nhecidas, quer da cidade de Setúbal quer do junto de cinco programas estratégicos que lhe interior do PESN, manifestam claras opor- conferem conteúdo e o caráter inovador em tunidades e urgência de integração, funda- nosso entender. Destaca-se naturalmente o sis- mentalmente a partir de vários instrumentos tema de sustentabilidade socioeconômica que e ações: mobilidade residencial; diversificar se desdobra em dois Programas: o tecido social; complexificar a oferta resi- 1) Programa de Intervenção Sociourbana: dencial; capacitação da população para a programa que pretende a articulação da di- vida ativa e empreendedorismo; integração mensão social com a dimensão urbana conver- das respostas sociais oferecidas; alargamen- gindo para uma nova relação desta área com a to e diversificação da oferta de oportunida- Cidade e a AML no seu todo. des de emprego. 352 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 As metrópoles também têm lugares Esquema geral de programas a desenvolver Sistema Programa Intervenções estratégicas Programa de Espaços Públicos Sistema de Desenvolvimento Urbano Rede de grandes praças Rede de pequenas praças Rede linear Programa de Reabilitação Urbana Sistema de Equipamentos de Utilização Coletiva Programa de Equipamentos Parque Central Parque da Cidadania Parque da Música e do Som Sistema de Mobilidade Programa de Mobilidade Rede viária e modos suaves Metrô de superfície Programa de Proteção Ambiental e Paisagística Sistema de Ambiente e Paisagem Valorização da encosta Proteção da várzea Rede ecológica local Programa de Valorização Urbano-Turística Campo de golfe Estrada panorâmica/Miradouros Programa de Intervenção Sociourbana Gestão do parque residencial público Plano de capacitação da população ativa Plano de intervenção social integrada Sistema de Sustentabilidade Socioeconômica Programa de Promoção Territorial Plano de marketing territorial Programa de ação para o reforço e diversificação funcional Programa de eventos Projetos estratégicos Identificação Descrição Peso estratégico Otimização da gestão do parque residencial público Redefinir critérios de atribuição, gestão e responsabilização dos alojamentos de caráter social, favorecendo a mobilidade residencial das famílias Fundamental Plano de capacitação da população ativa Definir um quadro completo, ambicioso e dinâmico capaz de um maior sucesso na integração da população em idade ativa desocupada Fundamental Integração das respostas sociais oferecidas Ação a desenvolver no sentido de articular a significativa densidade e complexidade da intervenção social, buscando sinergias e uma maior eficiência Fundamental Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 353 Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho Seus principais objetivos são: qualificar e abrir para e à Cidade a rede de equipamentos Conclusão existente: de cultura, desporto, recreio e lazer, Os tempos não estão de feição para as mega- mas também de educação; reforçar o envolvi- operações urbanísticas que sempre esperam a mento das comunidades locais na implementa- existência de fôlego financeiro, quer público ção das ações de regeneração urbana. quer privado (ou ainda dos dois em simultâ- Tem como intervenções estratégicas: a neo). Ciente destas limitações, a opção do PESN Gestão do Parque Residencial Público; Plano passou por reconhecer o processo de exclusão de Capacitação da População Ativa; Plano de de múltiplas faces porque atravessa essa área e Intervenção Social Integrada: identifica a necessidade de relação da interven- 2) Programa de Promoção territorial: ção a desenhar com a cidade existente e com as áreas de habitação social têm sido desde a região, não se fechando no crônico erro de há largos anos afetadas por uma imagem apenas olhar para a AI. negativa por múltiplas razões. Uma locali- Nascem assim as ideias de relançamento zação demasiado excêntrica e com pouca da cidade de Setúbal com uma capitalidade em visibilidade acabou por lhes conferir a ideia risco após a desindustrialização a que os espa- de gueto e, aos residentes, a ideia de reclu- ço urbanos em geral foram submetidos e pelo sos do espaço. esvaziamento funcional ligado à oferta de ser- A existência de um “dentro” e um “fo- viços públicos de um Estado há muito em crise. ra” do bairro contribuiu para estigmatização Seu posicionamento metropolitano, suas con- persistentemente construída quer no seu inte- dições naturais e sua relação com a interface rior quer no exterior. A reversão deste quadro regional deixam em aberto um amplo campo é imperativa, mas complexa. Esse programa de possibilidades a explorar como acabou por pretende assim: desmontar as imagens nega- suceder com as propostas do Parque Temático tivas produzidas sobre a área; produzir novas da Música e do Som, do campo de Golfe e da identidades a partir de ideias-âncora; patro- oferta científico-cultural ligada ao Instituto Po- cinar maior densidade de serviços públicos e litécnico de Setúbal. privados de nível urbano e metropolitano. Por outro lado, num contexto mais local, Seus objetivos são: reforçar o envol- a cidade, como muitas outras, registra um de- vimento das comunidades locais na imple- clínio de seu centro histórico que urge enfren- mentação das ações de regeneração urbana; tar repovoando-o e refuncionalizando-o. Esti- qualificar e abrir para e à cidade a rede de mular a mobilidade residencial a partir de Setú- equipamentos existente: de cultura, desporto, bal Nascente poderá ser uma boa opção, desde recreio e lazer, mas também de educação. que bem conduzida ou, se se quiser, desde que Avança com três intervenções estratégi- conheça bem as narrativas familiares e que, em cas: Plano de Marketing Territorial; Programa função de sua avaliação, se possa determinar/ de Ação para o reforço e diversificação funcio- sugerir novos percursos residenciais na linha, nal; Programa de Eventos. aliás, do que defendem Hita e Gledhill (2010). 354 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 As metrópoles também têm lugares Finalmente, na AI a questão da habi- O Plano de Urbanização irá agora espa- tação passará por um “apagão” dos bairros cializar e formalizar as orientações estratégicas mais problemáticos, por uma transferência de do PESN. A favorável opinião dos parceiros e algumas famílias (mais disponíveis para a in- agentes presentes no território deixam funda- clusão) e por exercícios de renovação de gestão das esperanças no sucesso desse novo entendi- do parque habitacional (com novos parceiros e mento de processos de requalificação e revitali- mais atenção ao percurso social registado pe- zação de áreas historicamente fragilizadas nas las famílias). dimensões sociais e urbanas. Jorge Gonçalves Geógrafo, Professor Auxiliar do Instituto Superior Técnico, Lisboa, Portugal. [email protected] António Costa Arquiteto, Professor Auxiliar do Instituto Superior Técnico, Lisboa, Portugal. [email protected] Luís Sanchez Carvalho Arquiteto, Mestre em Planejamento Regional e Urbano, Assistente convidado na Faculdade de Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa, Portugal. [email protected] Referências BÓGUS, L. e PESSOA, L. (2008). 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Estudos em Homenagem a Mariano Feio. Lisboa, Edições Colibri. Texto recebido em 5/out/2011 Texto aprovado em 4/jan/2012 356 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas: estigma e restrições ao debate sobre a cidade (1969-1973) Civil-military dictatorship and slums: stigma and restrictions to the debate about the city (1969-1973) Mario Sergio Brum Resumo O presente artigo busca contribuir para a compreensão das condições políticas e econômicas que possibilitaram a execução da política de remoção de favelas promovida pela Ditadura Civil-Militar instaurada em 1964, no então Estado da Guanabara, bem como o entendimento de como este plano seguia pressupostos estruturados na conjuntura democrática anterior, a partir da permanência do estigma de favelado como alguém marginal, ilegal e sem ‘direito à cidade’. Dessa forma, o artigo destaca como idéias e teses sobre o favelado eram expostas pelas autoridades sem que pudessem ser questionadas pelos diversos atores, com a remoção de favelas se consolidando como praticamente a única política de Estado para as favelas cariocas no período 1968-1973. Abstract This study contributes to the understanding of the political and economic conditions that enabled the execution of the policy of slum clearance promoted by the Military Dictatorship established in the then State of Guanabara in 1964. In addition, it contributes to the understanding that the origins of this policy remain in a previous period, since the “favelado” (slum dweller) was already seen by society and the State as someone marginal, living in illegal conditions and without citizenship rights in the city. This paper also highlights how the idea of the “favelado” was exposed by the authorities without being properly questioned by the various actors of the society. Therefore, the removal of the slums was consolidated practically as the only State’s public policy for slums between 1968-1973. Palavras-chave: favelas; favelado; remoção de favelas; CHISAM; planejamento urbano. Keywords: favelas; slum dweller; slums removal; CHISAM; urban planning. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Mario Sergio Brum Introdução Na década de 1960, a política de segregação espacial da cidade promovida pelos governos Federal e da Guanabara tomou proporções inéditas, com a remoção de favelados das áreas centrais da cidade, particularmente na valorizada Zona Sul, e a consequente transferência desses para terrenos vazios na periferia, a algumas dezenas de quilômetros do centro da cidade e de seus antigos empregos. Esse período pode ser caracterizado como a “era das remoções”, quando foi implementada uma política sistemática de erradicação das favelas. Esse período trouxe uma mudança drástica na relação entre Estado e favelas: a partir de 1969, no contexto ditatorial, a remoção, ameaça sempre presente na vida das favelas, pôde ser executada com força total, garantida por uma repressão nunca vista antes. O poder do voto, que anteriormente havia sido utilizado pelos favelados através de diversas estratégias de sobrevivência, estava bastante enfraquecido, e os favelados veriam drasticamente reduzidas suas margens de manobra para se contraporem aos interesses envolvidos na erradicação das favelas. da sociedade, por uma solução urgente, tendo o número de habitante destas praticamente dobrado entre 1950 e 1960, passando de cerca de 170 mil moradores, correspondendo a 7,2% do total da população da cidade, para 335 mil, 10% da população total (Ribeiro e Lago, 1991), cifras que alarmavam os que viam a favela como uma infestação urbana que crescia sem controle. Na imprensa, o crescimento das favelas é noticiado com certo alarde: “De Vigário Geral até a Barra da Tijuca, contudo, não há quem não saiba que as favelas estão crescendo” (Jornal do Brasil, 1968c). Num editorial do Jor- nal do Brasil por ocasião das chuvas de 1966, quando ocorreram deslizamentos e mortes em várias favelas do Rio de Janeiro, a defesa da remoção é veemente: No ponto em que chegamos, não há no Rio qualquer outro problema que apresente tanta urgência em ser resolvido quanto as favelas (…). A extinção das favelas justifica a paralisação de todos os programas de embelezamento urbanístico da cidade, pois não há melhor forma de ressaltar o esforço de melhoria da Guanabara do que a eliminação do contraste brutal e injusto das favelas com o perfil dos edifícios e a linha da paisagem favorecida. (Jornal do Brasil, 1966) Num documento do Governo da Gua- Ditadura Civil-Militar de 1964 e as favelas nabara, já sob a gestão de Negrão de Lima (1965-1971), em que o programa de remoções é apresentado, diz-se que ele é necessário para a cidade: “quando se libera das desoladoras Com o regime instaurado a partir do golpe favelas que se espalhavam já por 230 pontos ocorrido de 31 de março para 1 de abril de diferentes e que, segundo os futurologistas, 1964, a ideia da remoção de favelas ganharia tendiam a abranger, nos próximos 30 anos um ímpeto nunca tido antes. O “problema-fa- mais de três milhões e meio de habitantes” vela” clamava, segundo autoridades e setores (Governo da Guanabara, 1969). 358 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas A centralização política e administrativa Uma fonte bastante esclarecedora de do período da ditadura, por sua vez, traduziu- quanto as discussões sobre as dificuldades -se numa maior disponibilidade de recursos de uma “solução” para o problema favela já técnicos e financeiros, propiciando as condi- vinham permeando a esfera governamental é ções para a execução do propósito de ordenar um documento de 1952, de apresentação da o território urbano numa escala jamais vista. Subcomissão de Favelas da Comissão Nacional Santos aponta que: de Bem-Estar Social, ligada ao Ministério do O país tem enfim os recursos tecnológicos e financeiros para levar à prática as ideologias “ordenadoras” das cidades. Melhor ainda: existe uma força política concentrada e coerente que é potenciada exatamente por sua exclusividade discricionária e pelos meios materiais de ação que não existiam nas primeiras décadas do século [XX], por maiores que fossem as elaborações teóricas e as intenções decorrentes. (Santos, 1984) Trabalho, Indústria e Comércio (Subcomissão de Favelas, 1952). Várias recomendações desta Subcomissão foram seguidas posteriormente, em contexto bem diferente, com a criação do BNH e da CHISAM. O documento é preparatório a uma semana de estudos sobre favelas, e foi encaminhado às autoridades municipais e estaduais por todo país, com uma curta análise da questão da sub-habitação no âmbito nacional, compreendendo-a, principalmente, como um Podemos comprovar a hipótese, narrada com certo orgulho, num material da CHISAM (Coordenação de Habitação de Interesse Social da Área Metropolitana), autarquia do governo federal responsável pelo programa de remoções na Guanabara e Grande Rio, ao reproduzir uma reportagem do jornal Diário de Notícias: Ninguém tem a menor dúvida – antes, tem a sólida experiência – de que, antes de 31 de março de 1964, tentar efetivamente a extinção das favelas, com a indispensável remoção dos favelados, seria obra praticamente impossível. E não só pelas dificuldades financeiras, na obtenção de novas moradias em que alojar os moradores das favelas; principalmente, pela reação organizada, não tanto pelos favelados, mas sobretudo pelos que tinham e têm grandes interesses na exploração desses infelizes conglomerados humanos. (Diário de Notícias, 1971, apud CHISAM, 1971) Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 problema de déficit habitacional. Também são apontados os obstáculos ao encaminhamento de uma solução do problema, dentre os quais estavam: “a indústria da construção civil não se acha suficientemente desenvolvida e adaptada às necessidades de empreendimentos de construções populares” e a “ausência de um zoneamento ou de razoável proporção entre os bairros de uma mesma cidade em termos de equilíbrio da função social e econômica”(idem). O maior problema era levantar recursos financeiros para um programa de grande envergadura, procurando conjugar recursos do Estado aos da iniciativa privada: “Torna-se necessário, portanto, que se pense em buscar novas fontes de capitais na administração pública e na economia privada, sem o que será inexequível a execução de qualquer plano de construção de habitações em grande escala e de envergadura nacional”(idem). 359 Mario Sergio Brum Como forma de superar esses obstáculos, a Subcomissão recomenda uma série de medidas para que houvesse uma ampla e rápida oferta de moradias populares, dentre as quais: “averiguar a soma do capital privado disponível para a construção de moradias” e “as do- então praticamente estacionário – pouco mais à frente no documento, é dito ainda que o programa – possibilitou o surgimento de uma indústria de construção civil que até 1966 passava por um agudo período de recessão. (Governo da Guanabara, 1969) tações a serem previstas para a Fundação Casa Popular durante dez anos sucessivos” (idem). No já citado editorial de 1966, o Jornal Tais requisitos seriam amplamente pre- do Brasil cobrava do Governo do Estado uma enchidos com a criação, em agosto de 1964 atitude firme pela remoção de favelas, posicio- (Lei 4380, de 21/8/1964), do Banco Nacional nando-se enfaticamente contra qualquer políti- de Habitação (BNH), órgão financiador e res- ca que fugisse a isso: ponsável por programas habitacionais, que seriam estabelecidos pelo Sistema Financeiro de Habitação. Segundo autoridades federais, como o ministro do Planejamento Roberto Campos, o BNH deveria, além de fornecer habitações às camadas populares, funcionar como um impulso à economia do país, através do apoio à construção civil, estimulando as várias indústrias ligadas ao setor, gerando empregos desta forma e reaquecendo o mercado de capitais, já que o BNH seria um organismo de financiamento da casa própria, através da administração da Carteira de Operações de Natureza Social, com os recursos vindo de 1% dos salários sob Regime de CLT. Resumindo: a construção de habitações populares deveria ao mesmo tempo resolver o problema-favela e aquecer a economia (Bolaffi, 1982), elemento que consta como Com o retorno do sol, reapareceram também os apologistas da favela com propostas sobre urbanização dos morros localizados nos bairros de maior densidade populacional. A essa mistificação, devemos todos nos opor corajosamente, porque provado ficou que não existe nos terrenos, onde se constroem esses arremedos de habitação, o mínimo de segurança para tantas vidas. (…) não é lícito sequer admitir as insinuações de que o Poder Público deve as favelas como uma realidade permanente e partir para o que impropriamente se denominou urbanização dos morros. Não há o que se urbanizar na favela, onde tudo é condenado. (Jornal do Brasil, 1966) Mais à frente, o editorial defende que, ao invés de se gastar recursos na urbanização, financie-se “a construção de moradias para alojar toda a população favelada”. um dos pontos positivos do programa no documento oficial do Governo da Guanabara: A execução de uma reforma habitacional de tal envergadura trouxe, forçosamente, implicações colaterais, em particular no campo econômico, que conheceu poderosos estímulos originários de um setor até 360 A conjuntura política A conjuntura política de fechamento cada vez maior dos canais democráticos é um ponto fundamental para entendermos como a remoção Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas pôde ser implementada sem que uma resistência ativa fosse feita, visto o movimento social, e neste caso particular, as associações de moradores de favelas e sua federação, a FAFEG (Federação das Associações de Moradores de Favelas do Estado da Guanabara), estarem sofrendo forte vigilância e vivendo episódios de pesada repressão. Por outra via, o estigma de favelado prevaleceu no programa de remoção sem que ele pudesse ser contestado por outros setores, incluindo aí os favelados. “Verdades” sobre a favela apresentadas pelas autoridades à frente do programa de remoção não tinham como ser rebatidas. Exemplo disso está em um artigo do coordenador geral da CHISAM, Gilberto Coufal, dizendo, sem apresentar de onde tirou tal dado, que “já é fato constatado, por exemplo, que os moradores das favelas da Zona Sul trabalham na Zona Norte e que o tempo de locomoção e o custo das passagens lhes trazem pesados ônus” (Agente, 1969). Para os contrários à remoção, inclusive os principais interessados, os moradores de favela, Ao completarmos o planejamento estabelecido para o desfavelamento progressivo da área do Grande Rio, defrontamo-nos com alguns problemas relacionados a teses, ideias e teorias sobre a favela e o favelado (…) As opiniões ouvidas, a bibliografia consultada, a pouco nos conduziram. (CHISAM, 1971) E outro é quando a CHISAM, tendo tornado públicas suas intenções, foi alvo de críticas: À medida que a programação, diretrizes e filosofia das atividades a serem desenvolvidas pela CHISAM foram se concretizando através de documentos escritos, entrevistas oficiais e divulgação pela imprensa, desabou nas favelas uma avalanche de comentários e boatos sobre o que se pretendia realizar (…) Uma infinidade de técnicos e pseudo-técnicos emitiam opiniões, defendiam teses, propunham soluções, porém os interessados diretos ficavam mudos [refere-se aos favelados, com fortes razões para ficarem mudos, dado o clima de repressão e controle sobre as associações]. Utilizando o processo de trabalhar com dedicação e convicção de que estávamos certos, virtualmente nenhuma crítica foi oficialmente rebatida. (Idem) não havia espaço para contestar tal informação, embora a FAFEG fosse radicalmente con- Essa postura autista foi possível na at- trária às remoções, como se lê em matéria do mosfera de intensa repressão e fechamento Jornal do Brasil: “Os favelados cariocas prepa- dos canais democráticos. A razão para os fave- ram-se para lutar contra as remoções e a favor lados estarem “mudos”, embora o movimento da urbanização do local onde vivem”(Jornal do comunitário no ano de 1968 tenha se posicio- Brasil, 1968d). nado contra a remoção, deve-se ao emblemá- Em documento da CHISAM, em que é fei- tico episódio da remoção da favela Ilha das to o balanço da sua atuação nos primeiros anos, Dragas, na Lagoa, em 1968. Numa matéria em dois trechos fica evidente a postura “autis- publicada em O Jornal, sobre a remoção da ta” da autarquia. O primeiro fala sobre o proces- Ilha das Dragas, fica patente a contrariedade so de elaboração do plano de desfavelamento da diretoria da associação de moradores local que levou à criação da CHISAM: em relação à remoção para Cidade de Deus. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 361 Mario Sergio Brum Ao se referirem sobre as visitas de moradores ao conjunto, promovidas pelo Estado, os diretores da associação diziam que os moradores não a queriam: “Visitam a Cidade de Deus apenas pelo passeio, pois logo ao retornarem, explicam ‘sair daqui, não saio nunca’” (O Jornal, 1968). Numa matéria do jornal Luta Democráti- ca sobre a Ilha das Dragas, a remoção se evidencia numa imposição do governo: Um grupo de assistentes sociais intimou as 600 famílias residentes na Ilha das Dragas, na Praia do Pinto, a dali saírem no prazo de 60 dias, findo o qual terão que sair ‘mesmo à força’. Perguntadas para onde iriam os favelados, disseram as assistentes sociais que as famílias da Ilha das Dragas poderiam ir para onde quisessem, às suas próprias custas, mas que, por conta do governo do Estado, somente para a Cidade de Deus. (Luta Democrática, 1968) Como houvesse ainda resistência por parte da urbano, ainda não ocupadas, superiores a 11 milhões de metros quadrados, que permitiam a construção de aproximadamente 45.000 novas habitações. A estas, além das áreas de propriedade dos governos dos Estados da Guanabara e do Rio de Janeiro, poderiam ser somadas parcelas consideráveis de áreas ocupadas por favelas, possíveis, técnica, econômica e urbanisticamente, de sofrerem um processo de renovação urbana, integrando-se, e a seus moradores, no contexto urbano e social das cidades. (CHISAM, 1969) De modo que os termos “Renovação Urbana” ou “desfavelamento” são usados amplamente nesse documento. Embora “Renovação Urbana” na maioria das vezes seja usado como sinônimo de urbanização da favela, em outros trechos não fica claro se a intenção era urbanizar as favelas ou liberar a área para empreendimentos residenciais dirigidos à classe média e indústrias, o que acabou sendo a tônica. associação de moradores, quatro membros de Segundo material da CHISAM, a ação da sua diretoria foram presos por homens à paisa- autarquia não se limitava apenas a construções na em carros com placas frias, segundo repor- de conjuntos e remoções de favelas, e, sim, que tagem do jornal Correio da Manhã (1969), e a havia um sentido de recuperação e integração remoção acabou se concretizando. social dos favelados com o alcance dos seguin- Como diversos autores apontam, uma das características dos regimes militares do Cone Sul é dotar suas políticas de um caráter eminentemente técnico, estando fora do âmbito da política1. Desse modo, a remoção revestia-se de um caráter neutro, conforme podemos ver no documento da CHISAM: Concluiu-se em primeiro estudo que somente na área do Grande Rio existiam áreas federais, situadas no perímetro 362 tes objetivos: a) propiciar a aquisição de casa própria a famílias de baixa renda, desenvolvendo-lhes o sentido de propriedade e confiança nas autoridades legalmente constituídas; b) retirá-los de um ambiente irrecuperável, propiciando-lhes a abertura de novos horizontes e oportunidades; c) recuperá-los social e economicamente para poderem integrar a sociedade constituída. (CHISAM, 1971) Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas A CHISAM Em 1967, o BNH passa a contar com recursos oriundos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), que ampliou consideravelmente o capital disponível ao banco, de modo que lhe foi assegurado “um fluxo amplo e contínuo de capital inteiramente independente do retorno do investimento” (Langsten, 1973). De modo que outra recomendação feita pela Subcomissão de favelas do período varguista, a de construir habitações em larga escala usando recursos de fundos previdenciários dos trabalhadores, era seguida pelo regime de 1964 (Subcomissão de Favelas, 1952). A partir de 1968, o programa remocionista ganha ímpeto com a criação da CHI- Com reduzidos recursos e com soluções incompletas por falta de condições financeiras ou alterações de diretrizes da política de desfavelamento, as obras executadas são até hoje altamente controvertidas, quanto aos seus objetivos. (Idem) Como obter, então, os resultados que seriam satisfatórios para os diversos setores da sociedade que clamavam por uma solução definitiva para as favelas? A opção da remoção era preconizada, por exemplo, num editorial do Jornal do Brasil em março de 1969: Parece que não há mais nada a discutir no caso das favelas. Cerca de 80% da população do Rio aprovam a extinção progressiva desses núcleos com a remoção simultânea de seus moradores para conjuntos habitacionais. (Jornal do Brasil, 1969a) SAM através do Decreto Federal n. 62.654, em 3/5/1968, vinculada ao Ministério do Interior, Voltando ao documento da CHISAM de junto com o BNH, com a autarquia assumindo 1969, é dito que, mesmo com os programas o controle direto de vários órgãos do governo desenvolvidos para as famílias de baixa renda do estado da Guanabara. desde a criação do BNH, também não foram Numa entrevista de Gilberto Coufal ao obtidos resultados satisfatórios. Entre as ra- Jornal do Brasil em 1971, já como ex-coordena- zões, além da “grandeza do dimensionamento dor da CHISAM, esse reafirmou a visão positi- das favelas”, estavam: falta de recursos dos va sobre o viés remocionista do ex-governador governos dos estados; falta de terrenos viáveis, Carlos Lacerda: “As primeiras iniciativas, no sob vários aspectos para a construção de habi- governo Carlos Lacerda, foram válidas, no meu tações de baixo custo; diversificação de órgãos modo de entender, apesar dos protestos que ge- públicos e privados atuando de forma desorde- raram. Pelo menos fixou-se numa diretriz, uma nada, a falta de uma política única e contínua; política a ser seguida” (Jornal do Brasil, 1971b). multiplicidade de soluções e improvisações. Para as autoridades da CHISAM, as re- A CHISAM assegurava que a política pa- moções da época de Lacerda não lograram re- ra as favelas na Guanabara e na região metro- sultados satisfatórios porque politana, no Estado do Rio, ficaria sob controle Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 363 Mario Sergio Brum do governo federal, como demonstra, de forma inequívoca, Gilberto Coufal, seu coordenador geral, ao falar das funções da autarquia: Evitar que cada órgão tenha sua diretriz própria; evitar que cada pessoa ou administrador manifeste opiniões diferentes a respeito do problema específico de cada favela. (…) É uma necessidade imperiosa de fixação de diretrizes e de uma política única do Governo Federal e dos dois Estados. (Agente, 1969). caminho certo – finalmente – no caso das favelas. Mas falta-lhe um pouco mais de entusiasmo para resolver a questão em definitivo, o que só será possível quando tombar o último barraco da paisagem carioca. (Jornal do Brasil, 1969b) Por esse editorial, é possível perceber um período de indefinição por parte de Negrão de Lima, no que a Codesco (Companhia de Desenvolvimento de Comunidades) é tratada por parte da bibliografia que aborda o perío- Vale dizer que Negrão de Lima, em repor- do como expressão máxima dessa indefinição tagem do Jornal do Brasil logo após a criação entre urbanização X remoção. O órgão era su- da CHISAM, diz que o fato foi comunicado com bordinado à Companhia Progresso do Estado bastante antecedência pelo Ministro do Inte- da Guabanara (COPEG), tendo sido criada pelo rior, o General Albuquerque Lima, com quem, Governo da Guanabara em 1968, que contou segundo Negrão “sempre mantive excelente com verba doada pelo governo estadunidense, entendimento”. Ao longo da matéria, constan- além de recursos do governo do estado e, em do ser o primeiro pronunciamento de Negrão menor quantidade, do BNH (que quatro meses sobre a autarquia, o tom dado pelo governador depois criou a CHISAM). A Codesco defendia a à medida é elogioso e que para ele, mais do permanência dos favelados nas áreas próximas que uma “intervenção” do Governo Federal na ao seu local de trabalho, realizando a urbani- Guanabara, ocorria uma soma de esforços (Jor- zação somando os estudos de técnicos com o nal do Brasil, 1968b). conhecimento e vontade dos moradores para Se antes o Governo da Guanabara era acusado na imprensa de “inação” por não as obras na comunidade e no desenho de suas “novas” casas (Valla, 1986; Santos, 1981a). combater o crescimento das favelas: “não há Em reportagem sobre uma cerimônia quem não saiba que as favelas estão crescen- no ano de 1967, por exemplo, Negrão de Li- do. O noticiário dos jornais vem denunciando ma ainda se posicionava pela urbanização de isso, em vão, porque o Estado não sabe e não favelas, instalando comissões de luz e, se- tem como resolver o problema” (Jornal do Bra- gundo ele, “chegará a vez do abastecimento sil, 1968c), o tom muda conforme a opção pela de água entrosar-se ao sistema de prestação remoção ganha forma, como podemos ver: de serviços aos favelados, segundo o mesmo A principal preocupação do Governo da Guanabara, agora que optou pela remoção, deve ser a de executar com urgência o seu plano (…) O governo está no 364 credo – integrar a comunidade na favela e esta na comunidade. Nunca segregar uma da outra, abrindo abismos na cidade” (Jornal do Brasil, 1967). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas Entretanto, o “entusiasmo” cobrado pe- Assim, num primeiro momento, havia lo editorial do Jornal do Brasil não demorou a uma fina sintonia entre governos federal e surgir. Através dos jornais e das fontes produ- da Guanabara, que pôde ser demonstrada na zidas pelo próprio Governo da Guanabara, ve- Apresentação do relatório da Cohab-GB para mos que a remoção passou a não ser tratada o ano de 1969, feita pelo próprio coordenador- como algo estranho às políticas habitacionais -geral da CHISAM, Gilberto Coufal: executadas pelas autoridades do Estado. Pelo contrário, ela não apenas foi defendida como reivindicada. No documento Rio: Operação Favela, o Governo da Guanabara defende o programa remocionista, destacando seu papel de protagonista no programa. Logo na apresentação do documento, escrita por Carlos Leite Costa, chefe da Casa Civil é dito que: “A política habitacional do Governo da Guanabara é atuan- As diversas citações feitas ao BNH e à CHISAM, caracterizam o perfeito entendimento e afinidade existentes entre organismos do Governo Federal e do Governo do Estado da Guanabara representados pela Companhia de Habitação Popular do Estado da Guanabara, os quais irmanados a um extraordinário esforço buscam encaminhar e dar solução a um dos mais graves problemas sociais da Guanabara. (Cohab-GB, 1969) te, ambiciosa, mas realista” [o grifo é meu]. Também é justificada a presença da CHISAM no programa: “Ninguém ignora, na atual administração carioca, que o fenômeno do favelamento tem raízes extra-regionais e que seu tratamento exige uma soma considerável de recursos, que o Estado da Guanabara jamais poderia gerar isoladamente” (Governo da Guanabara, 1969). O papel do governo federal, ainda que seja elogiado, é posto como auxiliar: Outra forma de o Governo da Guanabara reivindicar a “paternidade” nas remoções e transferência para os conjuntos foi o lançamento, ainda em 1969, do Programa 7 de Setembro: “Seguramente o maior programa já realizado em nosso País e na América do Sul, no campo da habitação social” (Jornal do Bra- sil, 1968c). O programa previa que, em parceria com a CHISAM, até o fim do mandato de Negrão de Lima ocorreria a remoção de todas as favelas da Zona Sul, exceto a Rocinha, e a Deve ser registrado com a devida ênfase que o programa habitacional vigente ganhou maior aceleração e entusiasmo com a direta participação do Governo Federal na matéria, inicialmente através dos ponderáveis recursos do Banco Nacional de Habitação e, mais recentemente, com a criação da CHISAM. O entrosamento dos órgãos federais com a Casa Civil do Governo do Estado, a Secretaria de Serviços Sociais e a COHAB representou, de imediato, um avanço considerável nos projetos estabelecidos. (Idem) Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 entrega de 50 mil unidades habitacionais nos conjuntos da Cohab-GB. Na revista Agente, publicação institucional do Estado da Guanabara, vemos uma matéria com o presidente da Fundação Leão XIII (apresentada como “órgão que cuida do problema [favela]”), Délio Santos, que “aplaude a política habitacional do BNH e vê, com bastante entusiasmo, o trabalho que está sendo desenvolvido pela CHISAM para o desfavelamento do Grande Rio” (Agente, 1969). 365 Mario Sergio Brum A opção pela remoção atual [o grifo é meu]” (idem). As famílias que poderiam ser classificadas como tendo necessidade de desocupar a “habitação atual” eram No decreto de criação da CHISAM, são defini- as que morassem em locais destinados a rece- das entre suas atribuições: ber obras públicas; áreas instáveis com risco à promover levantamento econômico, social vida dos moradores; moradores de “cabeças- e territorial, bem como propor legislação espe- -de-porco” ou prédios desapropriados por inte- cífica visando à formulação e execução de um resse público; com ações de despejo compro- programa continuado de desfavelamento a cur- vado e cuja solução seria a favela; vítimas de to, médio e longo prazos; calamidades; moradores dos Centros de Habi- ● ● credenciar, dentre os diversos órgãos e tação Social do Estado que tenham renda. entidades existentes nos dois estados, aqueles Curiosamente, a urbanização de favelas que terão a responsabilidade de agentes exe- também é apresentada como um dos objetivos cutores, para efetivação do programa de desfa- da CHISAM, com o programa de urbanização, velamento (CHISAM, 1969). aqui claramente entendido como Renovação Não há uma definição clara nos do- Urbana, executado pela Codesco (posta tam- cumentos oficiais da remoção sobre quais eram bém sob controle da CHISAM) na favela de os significados de Renovação Urbana ou desfa- Brás de Pina, sendo usado como referência: velamento. De forma que acabar com as fave- “Programas desta natureza deverão ser de- las poderia se traduzir em urbanização destas, senvolvidos em outras áreas faveladas (…) de modo que se integrariam aos bairros ao não buscando-se evitar o deslocamento do favela- possuírem mais contrastes urbanísticos com es- do de seu atual local de moradia (…) ao mes- ses, quanto a arruamento, materiais das casas, mo tempo em que se executa a transformação serviços públicos, etc. da área favelada em novo bairro ou conjunto Ao apresentar os objetivos de longo pra- residencial integrado na região, realizando zo da autarquia, além da referência sobre a uma verdadeira Renovação Urbana da área recuperação e integração moral, econômica e favelada” (idem). Previa-se, então, a urbaniza- social das famílias faveladas, consta também: ção de 13 favelas, além da Brás de Pina. “A alteração da paisagem urbana, atualmente Isso não impedia que a urbanização deformada pelos núcleos de sub-habitações, fosse fortemente criticada pelas autoridades através da substituição de barracos por habi- da CHISAM desde o primeiro material da au- tações, obras públicas, ou pela própria natureza tarquia: “A Cruzada São Sebastião, os progra- violentada” (idem). Essa substituição poderia mas de urbanização desenvolvidos pelo extinto se dar tanto através da remoção quanto da ur- SERPFHA, pelo Departamento de Recuperação banização: “O processo adotado será o da ven- de Favelas do Estado, e por inúmeras outras da das habitações construídas ou em final de entidades públicas e privadas, não surtiram o construção levando-se em conta o atual merca- efeito desejado, não conduziram a soluções do de trabalho, a renda, o desejo de aquisição e nem sequer a um equacionamento lógico e ou a necessidade de desocupação da habitação realista do problema” (idem). 366 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas Na análise do coordenador geral da CHISAM, Gilberto Coufal, todo o investimento anterior em urbanização deveria ser questionado: “A urbanização das favelas do Escondidinho, Mangueira, Pavão e Pavãozinho (…) com a mudança, teriam seus ocupantes deixado de pensar e viver como favelados? As urbanizações nas favelas anteriormente citadas fizeram com que aquelas favelas deixassem de ser favelas? Ou seus moradores deixassem de ser favelados?”. Por fim, Coufal conclui: “Se verificarmos os investimentos feitos nessas obras (…) ficaríamos perplexos com os gastos que a nada conduziram” (Agente, 1969). Na Fundação Leão XIII, do Governo da Guanabara, a linha de pensamento é a mesma. A defesa de seu presidente, Délio Santos, contra a urbanização, é explícita: À utópica aspiração de urbanizar as favelas opunham-se os mais elementares princípios da lógica administrativa. O ideal não é estimular a favela, mas eliminá-la. Para isso, o único caminho é a mudança de seus moradores para residências populares em conjuntos construídos especialmente para esse fim. (Jornal do Brasil, 1969b) Coufal explica que a urbanização de favelas poderia ser feita em favelas que se encaixassem nos seguintes critérios: 1) estivessem em locais que não oferecessem riscos para estabilidade ou segurança das construções ; 2) estivessem em locais que a curto e médio prazos recebessem obras públicas, como praças, ruas, etc.; 3) estivessem em locais onde o investimento Se por um lado a favela é uma solução, por outro, entretanto, traz problemas para a comunidade, problemas para o homem da própria favela. Maior para a comunidade, porque a existência destes aglomerados habitacionais subnormais implica numa série de investimentos por parte do governo nas próprias favelas: a necessidade do aumento da rede d’água, a criação de novas escolas e determinados equipamentos comunitários, trazendo também problemas de saúde. Em muitas favelas, principalmente as localizadas em terreno plano, as condições de salubridade são as piores possíveis. ( Agente, 1969) em urbanização fosse economicamente viável; 4) sua posição não impedisse o desenvolvimento industrial ou comercial do bairro onde se localizam; 5) não estivessem situadas em terrenos que, por seu valor, em função da vocação do bairro, fosse possível, através da comercialização, carrear-se para o programa recursos que permitissem sua utilização; 6) houvesse possibilidade econômica de transferência de propriedade da terra a seus moradores. Além desses, levar-se-iam em conta os tipos de mercado de trabalho e tipos de emprego que a região ofereceria e aos O discurso, baseado em “razões técni- moradores. O não-atendimento a um desses cas”, contra a urbanização e pela remoção tam- critérios impediria a urbanização e a favela bém encontrava defensores na imprensa, como seria classificada como passível de remoção vemos no já citado editorial do Jornal do Brasil: ( Agente, 1969). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 367 Mario Sergio Brum O critério número 1 era passível de dis- Em janeiro de 1968, numa palestra cussões técnicas. O 2 e o 6 dependiam de ou- montada por um órgão do próprio Governo tros atores, dentre os quais e, principalmente, o Federal, o SERPHAU (Serviço Federal de Ha- Estado, visto que muitas vezes eram decisões bitação e Urbanismo), o renomado urbanista pertinentes a esse, se haveria ou não investi- americano, John Turner, fez uma condenação à mentos na área ou possibilidade de transferên- remoção apontando que o favelado, com bai- cia de propriedades. xo orçamento, não suporta as despesas extras Os critérios 3, 4 e 5 se dariam por deci- que o deslocamento para as periferias distan- sões políticas, em que o fato da favela se en- tes dos locais de trabalho ocasionava (Jornal caixar ou não nestes critérios era uma decisão do Brasil, 1968a). exclusiva das autoridades. Vemos então que, Por outro lado, ainda, é possível perce- a seguir aqueles critérios, simplesmente todas ber que a premissa básica de orientação da as favelas do Rio poderiam não ser urbaniza- CHISAM era de que a favela destoava do am- das, e sim removidas. biente ao redor, por várias razões, conforme Lembrando mais uma vez que isso se dava numa conjuntura em que os espaços para o debate público e para a divergência às políticas de Estado estavam bem restritos, pois, se a remoção tinha uma variada gama de defensores, podemos encontrar vozes contrárias a ela também em diversos setores, além do movimento comunitário de favelas. Para exemplificar, num artigo de outu- documento da autarquia: Os aglomerados de favelas construídos de forma irregular, ilegal e anormais ao panorama urbano em que se situam não integram o complexo habitacional normal da cidade, pois, não participando de tributos, taxas e demais encargos inerentes às propriedades legalmente constituídas, não deveriam fazer jus aos benefícios advindos daqueles encargos. (CHISAM,1969) bro de 1968, cujo mote é a questão remoção X urbanização, o sociólogo e ex-secretário de Ou seja, por sua condição de ilegalidade quan- Serviço Social da Guanabara, José Artur Rios, to à posse da terra e pelo suposto não paga- analisava: “Infelizmente, a ideia da ‘erradica- mento de tributos, as favelas não deveriam re- ção’, em qualquer hipótese, está ganhando ceber investimentos de urbanização. terreno na mentalidade dos nossos urbanistas É interessante perceber também o con- e administradores que imaginam tratar-se de traste entre os documentos da CHISAM de uma operação tão simples como a remoção 1969 e o de 1971. No primeiro, além de abrir de uma fita durex. Muitas vezes não tomam a possibilidade de algumas favelas serem urba- consciência sequer dos valores que os levam nizadas, o termo Remoção não aparece. Cons- a adotar essa posição, como ideais de recupe- tam no documento as palavras erradicação, ração paisagística, válidos em outro contexto, desfavelamento, desocupação da área. Apenas ou o que é pior, uma vaga noção puritana de quando se fala de favelas específicas, como ‘limpeza’ que exclui o convívio de pessoas di- a Praia do Pinto e Ilha das Dragas, o adjetivo ferentes categorias étnicas ou sociais” (Rios et “removidos(as)” é utilizado para referir-se a al., 1968). barracos ou famílias. Já no documento de 1971, 368 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas o termo Remoção é largamente utilizado, en- barraco no local da própria favela” (Jornal do quanto a “urbanização de favelas” é pratica- Brasil, 1968b). mente descartada como possibilidade. Entretanto, já no documento de 1969, o Em ambos os documentos é explicado setor 1, correspondendo espacialmente à Zona que a área metropolitana do Grande Rio fora Sul, especificamente aos bairros da Gávea, La- dividida em setores englobando algumas fave- goa e Jardim Botânico, aparecem como as fave- las e onde seriam construídas as novas habita- las daquela região: Ilha das Dragas, Jockey Clu- ções, de modo que em cada setor estivessem be ou Piraquê, Rio Rainha, Parque da Cidade, adequadas à renda das famílias a permanência Monte Carlo, Alto Solar, Praia do Pinto e CHS-3 no local ou a transferência para um conjunto: (ex-Parque Proletário do Leblon), Catacumba Procurou-se estabelecer um equilíbrio de oferta, em função das necessidades estimadas de habitação de cada favela selecionada. Quando isto não for possível, devido à carência de terrenos no setor, far-se-á o deslocamento dos favelados para os locais mais próximos de seu atual mercado de trabalho, ou serão estudadas as favelas com vistas ao programa de Renovação Urbana. (Idem) Isso também aparece na imprensa, logo após a criação da CHISAM, em maio de 1968. Em reportagem no Jornal do Brasil, ao falar sobre a construção das moradias destinadas aos removidos, é dito na matéria: “Essas moradias serão feitas para todos os que habitam em favelas e desejam adquiri-las. Ninguém será obrigado a comprar uma nova casa. E o principal é que as novas casas serão construídas o mais perto possível das atuais favelas, de modo que ninguém fique longe de seu trabalho” – mais à frente na matéria, vemos a ênfase na remoção como uma ‘livre escolha’ e mesmo o aceno com a não-remoção/urbanização – “O sr. Gilberto Coufal acredita que esta é a primeira vez que se dará ao favelado ‘o direito de morar condignamente em local de sua livre escolha, incluindo-se, em alguns casos, a possibilidade de uma nova moradia em substituição ao Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 e CHS-1 (ex-Parque Proletário da Gávea). Porém, ao citar os conjuntos construídos ou em construção para abrigar os removidos daquelas favelas, incluíam-se conjuntos localizados nas Zonas Norte e Oeste, como Cordovil (Cidade Alta), com 2597 unidades habitacionais; Cidade de Deus, com 500; além da misteriosa designação “outros locais”, não quantificada. Dois eram localizados na Zona Sul, um na rua Marquês de São Vicente (Gávea), que já fora construído em 1965 e segundo o sítio eletrônico da CEHAB-RJ (que uniu a COHAB-GB e a COHAB-RJ a partir da fusão dos Estados do Rio de Janeiro e Guanabara em 1975) se destinou a funcionários do Estado2; o outro, que ficaria na rua Pacheco Leão, prevendo a construção de 900 unidades, acabou não se realizando, conforme a própria CHISAM antecipava a possibilidade: Sabe-se, entretanto, que o atendimento setorial físico não será totalmente viável, porquanto em muitos casos não se tornará possível e conveniente para o próprio favelado a aquisição de moradia no setor em que está compreendida a sua favela. Sabe-se, também, que muitas famílias não têm condições econômicas que permitam a compra de uma habitação, por mais modesta que seja.3 369 Mario Sergio Brum Vale destacar ainda que, como vimos aci- ocorrência de processos em que o favelado te- ma, os limites da “livre-escolha” pela remoção nha montado sua casa próxima ao seu empre- ou permanência na favela, como no episódio go na época e tenha depois mudado de empre- da remoção da Ilha das Dragas. Assim, a única go. Podemos questionar, no entanto, por que solução era a transferência dessas famílias pa- não ocorreram transferências de moradores de ra os conjuntos ou para os Centros de Habita- favelas na Zona Norte para Zona Sul? ção Provisória distantes da Zona Sul: Com a oferta de moradias condignas, em vários setores da Área do Grande Rio, terão os favelados o direito de optar pela solução de sua maior conveniência, ocasião em que lhes será mostrado que: 1) PODEM escolher uma habitação EM QUALQUER SETOR; 2) DEVEM escolher a habitação que for construída no local mais próximo de seu trabalho ou de melhor conveniência para sua locomoção; 3) PODEM E DEVEM escolher uma habitação compatível com sua capacidade econômica-financeira, mesmo que não seja a moradia ‘ideal’. (Destaques no original) (CHISAM, 1969) Já o Secretário de Serviços Sociais da Guanabara, Vítor de Oliveira Pinheiro, apresentava outra razão para as favelas da Zona Sul serem o alvo preferencial do programa remocionista: “Encontramos na Guanabara dois tipos de favela bem distintas: os situados nas zonas Sul e Centro do Estado e os situados nas zonas Norte e Suburbanas. De uma maneira geral, as favelas situadas nas zonas Sul e Centro apresentam, em sua maioria, a necessidade de um trabalho visando sua remoção parcial ou total. As favelas das zonas Norte e Suburbana já se caracterizam por um grau muito maior de possibilidade de urbanização” (Rios et al.,1968). O secretário concluía, então, que Em outro trecho, verificam-se argumen- o custo financeiro da urbanização em favelas tos semelhantes aos que Coufal já tinha apre- das zona Sul e Centro tornava-a inviável; pari sentado em 1969, para justificar a ação do Es- passu, o Governo da Guanabara admitia, no tado em não urbanizar as favelas e que, no re- documento oficial do programa, que os conjun- gime ditatorial, não podiam ser rebatidas: “Em tos eram “localizados na zona suburbana, por outros casos, verifica-se que o atual mercado força dos preços menores do terreno” (Gover- de trabalho do favelado já se situa longe da fa- no da Guanabara, 1969). vela onde vive, não tendo ocorrido a mudança O programa desconsiderou então, delibe- da família ou indivíduo, entre várias razões, por radamente, informações importantes a respeito não haver encontrado próximo ao novo local das favelas e dos favelados, como a relação de trabalho moradia mais conveniente por falta intrínseca entre a moradia numa determinada de condições financeiras” (idem). favela e o mercado de trabalho próximo. Não Pelos dados do Censo das Favelas, de se trata apenas de “não rebater críticas”, mas 20 anos antes, 58,44% dos favelados da Zona de ignorar informações que eram de conheci- Norte trabalhavam na própria zona onde mora- mento dos próprios órgãos oficiais sobre a rea- vam, e na Zona Sul, esse percentual aumenta- lidade das favelas. Num relatório produzido pa- va para 78,53% (Prefeitura do Distrito Federal, ra a Codesco, por exemplo, é dito: “Parece que 1949). Logicamente, não podemos descartar a os núcleos [favelados] localizados em bairros 370 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas onde exista mercado estável, com níveis sala- ‘problemas’ causados por esses aos bairros de riais relativamente altos, são os mais desenvol- sua vizinhança: “Queixam-se os moradores dos vidos (com maior economia interna, diferencia- conjuntos circunvizinhos, habitados por quem ção ocupacional mais ampla e níveis de renda pode pagar aluguéis altos, contra a presença diversificados)” – mais à frente, a remoção é do conjunto da Cruzada com seus problemas fortemente criticada: “[O] deslocamento de sociais, gritantes, aparentemente insolúveis” uma população já estabelecida, desorganizan- (Jornal do Brasil, 1973). do-a socialmente, de vez que a favela significa para o indivíduo uma forma de adaptação, na qual a proximidade ao mercado ocupacional é fator primordial” (Boschi e Goldschmidt, Balanço geral do programa 1970).4 Ainda nessa pesquisa para a Codesco, constava que 66,45% dos entrevistados consi- Tracemos algumas considerações finais sobre deravam ruim uma mudança para um conjun- o programa e as razões pela qual ele não foi to residencial, enquanto 18,46% achavam-na plenamente cumprido. Dito de outro modo, por boa, e 11,63% eram indiferentes. Talvez pela que a proposta inicial das autoridades, ao me- forte ligação que os favelados tinham com o nos declarada, de acabar com todas as favelas mercado de emprego ao redor deles: 24% iam da cidade do Rio de Janeiro e a “promoção so- a pé para o trabalho, e 43, 97% tomavam ape- cial do favelado” acabaram não ocorrendo. nas uma condução para chegar nele. Nos planos originais da autarquia, se- Novamente, recorremos à imprensa pa- riam removidas todas as favelas do Rio de Ja- ra compreendermos melhor que discussões e neiro até 1976. Antes de a meta ser cumprida interesses envolviam as remoções. Num edito- porém, a CHISAM foi extinta, em setembro de rial do Jornal do Brasil de 1969, lemos: “Hoje, 1973, tendo a autarquia removido mais de 175 quando dispõe de poderes suficientes para mil moradores de 62 favelas (remoção total adotar medidas drásticas na solução de proble- ou parcial), transferindo-os para novas 35.517 mas que afligem a coletividade, o Governo de- unidades habitacionais em conjuntos, estan- ve estar alertado para não incidir no equívoco do a maioria destes nas zonas Norte e Oeste de construir parques proletários em áreas valo- (Perlman, 1977). rizadas” (Jornal do Brasil, 1969b). Em 1971, sob o governo Chagas Freitas, E quatro anos depois, já tendo sido remo- reportagem do Jornal do Brasil expunha a de- vidas várias favelas da orla da Lagoa, a cobran- cepção com as cada vez mais remotas perspec- ça continuava numa matéria, cuja cabeça não tivas do plano de erradicação total das favelas deixa dúvidas “Cruzada São Sebastião abriga se concretizar: “Estimativas oficiais previam que 70% dos crimes da Zona Sul”. Tendo chegado em 1976 não haveria mais favelas no Rio. O cál- a tal cifra através de informações da polícia. culo é otimista e dificilmente será transformado Na matéria, de meia página, podemos ler so- em realidade” (Jornal do Brasil, 1971a). bre as dificuldades vividas pelos moradores do A maior parte das favelas removidas lo- conjunto, caracterizado como uma favela, e dos calizava-se na Zona Sul, tendo sido removidas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 371 Mario Sergio Brum as da orla da Lagoa e do Leblon: Catacumba, Pois se várias favelas na Zona Sul haviam Jóquei Clube, Ilha das Dragas e Praia do Pin- sido removidas, para a Rocinha, os planos de to. Esse fato não deve ser menosprezado, pois remoção não passaram dos anúncios de in- aproximadamente 60% dos barracos demo- tenção; e a favela passou a viver um intenso lidos pela CHISAM para a remoção, se locali- processo de crescimento no início da década de zavam na Zona Sul (Cohab-GB apud Grabois, 1970, constituindo-se em polo de atração para 1973). Em 1969, o documento Rio: Operação ex-removidos que retornavam para um local Favela do Governo da Guanabara anunciava de moradia, ainda que precário, mas próximo que até o fim de seu mandato, em março de do mercado de trabalho da Zona Sul (Jornal do 1971, “pelo menos 250 mil moradores de di- Brasil, 1977). versas favelas cariocas, incluindo praticamente No relatório da Cohab-GB para o ano todas as da Zona Sul, passarão a morar em ha- de 1969, direcionado principalmente aos seus bitações de pedra e cal” (Governo da Guana- acionistas, encontramos um trecho ainda mais bara, 1969). emblemático sobre os objetivos do programa e Em meados da década de 1970, após o alcance (ou o limite) esperado, ao menos por o ímpeto remocionista levado a cabo pela parte do Governo da Guanabara na adminis- CHISAM, a região que continha mais favelas tração Negrão de Lima: passara a ser a que compreendia os bairros da Leopoldina como Ramos, Olaria, Bonsucesso e adjacências (22 no total); não sendo mais a da área da Lagoa, a primeira colocação (Jornal do Brasil, 1977). Um editorial do Jornal do Brasil é revelador da forma como a favela era tratada por parte da sociedade e da cobrança para que o programa tivesse um fôlego maior para remover todas as favelas de, ao menos, parte da cidade, quando na ocasião que a avenida Niemeyer, que ligava os bairros do Leblon e São Conrado, na Zona Sul, foi interditada e a Mantido o ritmo verificado no exercício ora findo, até o fim do mandato da administração estadual terão sido concluídos os programas CHISAM e Sete de Setembro (…) Isso significará o atendimento de cerca de 250.000 favelados, representando um índice de erradicação de 38%, tomando-se como base os mais recentes levantamentos de população das favelas cariocas. Como resultado paralelo, ter-se-á modificada a fisionomia da Zona Sul do Estado, onde a favela deverá, então, constituir exceção residual. (Cohab-GB, 1969) passagem passou a ser feita obrigatoriamente De fato, o programa CHISAM começou a ar- pela favela da Rocinha e que, de acordo com o refecer após o fim da gestão Negrão de Lima, jornal: “Em consequência, a visão do que tem sendo lentamente desmontado o programa de sido este governo piorou bastante. Evidencia-se remoções por vários fatores. a olho nu a incapacidade de atacar o problema O primeiro deles diz respeito à trans- das favelas com a disposição requerida, pelo formação dos favelados em proprietários menos daquelas localizadas em pontos incom- incorporados; o que não ocorreu como pla- patíveis com o progresso da cidade” (Jornal do nejado por diversos problemas, tais como: a Brasil, 1970). precariedade das novas habitações; o choque 372 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas dos transferidos com a vida num local onde 1969). Apesar dessa ressalva, com o passar do foram obrigados a criar novas relações de vi- tempo, o custo com as prestações se mostrou zinhança; a distância dos postos de trabalho além das possibilidades de muitas famílias.5 ocupados pelos moradores na época da re- O segundo fator é tanto de ordem eco- moção; a inadimplência por parte dos remo- nômica quanto política. No período da Dita- vidos, que tiveram um aumento brusco nas dura Civil-Militar foram aprofundadas as rela- suas despesas mensais (visto existirem custos ções capitalistas e reprimidos os movimentos extras, como contas de condomínio, luz, água sociais e setores oposicionistas que pudessem e transporte, que muitas vezes inexistiam na reivindicar a manutenção das mínimas polí- moradia anterior) e tendo muitos perdido o ticas de Bem-Estar Social da era Vargas para emprego, já que o mesmo se localizava próxi- habitação, que faziam com que o Estado, ain- mo à favela de origem. da que agisse no sentido de remover as fave- Essas dificuldades dos removidos são re- las, oferecesse alguma opção de moradia, por veladas de maneira categórica numa reporta- mais questionáveis que fossem os métodos e gem feita, em 1972, num conjunto da Cohab em essa opção em si. Benfica: “A Cohab começou a despejar ontem as Em meados da década de 1970, o Esta- famílias que estão em maior dívida com ela no do desviou o foco da manutenção da ordem conjunto de Benfica – dizem que, pelo menos, urbana em prol do interesse público (no que 60% das 680 famílias devem mais de um ano. as remoções de favelas e a realocação em con- (…) com destino às casas da fazenda Coqueiros juntos habitacionais era uma ação em função em Senador Câmara, onde todas sonham voltar desse interesses) para uma maior entrada do às favelas”. Uma autoridade da Cohab entre- mercado em que o capital atende, não mais a vistada na matéria explica ainda que a ação se cidadãos, mas a compradores. Começava ali deveu ao fato de que a Cohab precisava pagar também a era dos condomínios fechados vol- os imóveis ao BNH, e por isso não podia tolerar tados para a classe média. mais a alta inadimplência, embora esta mesma Na habitação de interesse social, isso autoridade dissesse: “Sei que é difícil para eles. se refletiu no fim da tolerância à inadimplên- A maioria ganha salário-mínimo. Agora, com o cia nos conjuntos, em que as ações de despejo aumento de 20% nas prestações, a coisa pio- se tornaram mais freqüentes. Na ata de expo- rou” (Jornal do Brasil, 1972). sição de motivos de reunião do Conselho de Embora já constasse nos documentos Desenvolvimento Social com o presidente da da CHISAM, quando se apresentou de onde República, em dezembro de 1974, por exemplo, viriam os recursos, a dificuldade que as fa- é apresentado um panorama geral dos proble- mílias teriam de assumir altos custos com a mas pelos quais passava o Sistema Financeiro moradia: “Tratando-se de famílias de baixa de Habitação em continuar a oferecer moradia renda, pouquíssimos recursos originários de à população de baixa renda, e dos problemas suas poupanças poderão ser adicionados aos de rentabilidade do sistema, afinal, tratava-se investimentos governamentais” (CHISAM, de um banco. Nesta reunião foi dito que Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 373 Mario Sergio Brum As análises efetuadas pelo Banco Nacional de Habitação sobre a distribuição do número de unidades contratadas, revelam uma oferta percentualmente mais elevada em função da demanda existente, para os grupos familiares de maior poder aquisitivo, em decorrência das melhores possibilidades de absorção pelo mercado nessas faixas. (Banco Nacional de Habitação, 1975) • possibilidade de os Agentes Financeiros atuarem em faixas mais amplas do mercado habitacional, ampliando desta forma escala das operações; • ampliação do limite máximo de financiamento unitário a ser concedido pelas COHABs de 320 (Cr$32.000,00) para 500 (Cr$50.000,00). Essa providência tem elevado alcance social, pois permite o ingresso na fai- Essa reunião levanta ainda alguns pro- xa de atuação das Companhias de Habitação blemas em obter um equilíbrio entre a rentabi- Popular – Cohabs de famílias de nível médio lidade e a oferta de habitação para as faixas da inferior de renda” (idem). população de menor poder aquisitivo. Entre es- Assim, as dificuldades do Sistema Fi- tes problemas estava “que o aumento real ve- nanceiro de Habitação em manter a solvência rificado ultimamente nos preços dos terrenos e fizeram com que o BNH fosse substituindo sua dos materiais de construção provocou elevação ação voltada para a habitação de interesse so- no preço dos imóveis – de modo que esses pro- cial pelo financiamento do mercado imobiliário blemas – têm constituído fator de desestímulo, de classe média, atendendo tanto a demanda na construção de habitações de menor valor de uma revigorada indústria de construção civil, unitário, a reduzida remuneração dos agentes quanto a classe média que emergiu nos anos nas faixas de rendimentos familiares baixos e do Milagre Econômico (Santos, 1981b). Segun- médios”(idem). Destacando-se ainda que as do Pozzi de Castro, o boom da produção (60%) Cohabs em todo o Brasil acabam por não voltar das cooperativas habitacionais, que destinavam sua atuação para as faixas de rendimento infe- imóveis para famílias de maior poder aquisiti- rior “em decorrência de perceberem remunera- vo do que as de habitação de Interesse Social, ção insuficiente para os seus serviços e riscos”. sob financiamento do BNH, se deu entre 1976 e Curiosamente, nesta reunião que estabe- 1982, com 60% da produção de todo o período lece as novas diretrizes para o BNH, a solução de existência do banco (Pozzi de Castro, 1999). apresentada para o problema parecia ser “mais O terceiro fator é de ordem política. Den- veneno”. Para resolver o problema de solvência tro da reduzidíssima margem de manobra do do sistema, aumentando a rentabilidade dos período, os favelados conseguiram encontrar agentes financeiros, as Cohabs, de modo que algum apoio dentro do sistema político-eleito- estas expandissem a oferta de imóveis, reco- ral montado pela Ditadura através de Chagas mendara-se, entre outras medidas: Freitas, eleito governador em 1971, e que, co- • “ampliação da parcela da população a ser mo seu antecessor, havia sido um crítico da re- atendida pelo Plano Nacional de Habitação Po- moção. No entanto, Chagas havia estabelecido pular-PLANHAP, através da elevação do limite uma nova relação com os moradores das fave- máximo admissível de renda familiar do PLA- las, não demonstrando o entusiasmo do gover- NHAP 3 para 5 salários mínimos; no anterior pelo remocionismo. 374 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas Foi no fim dos anos de 1960 que este po- cobrando das autoridades ações para resolvê- lítico afirmou seu controle da máquina do Mo- -los. Incluíam-se conjuntos habitacionais nas vimento Democrático Brasileiro (MDB) carioca, visitas dos ‘Comandos em Ação’, destacando- dominando os diretórios regionais da Guana- -se a continuidade dos mesmos problemas das bara e os zonais do estado (Diniz, 1982), e con- favelas somados aos problemas da distância e tando também com seus jornais, A Notícia e O das prestações da casa. Dia, usados como arma de propaganda política Para auxiliar na compreensão da relação por esse e seu grupo, quer fosse para elogiar, de Chagas Freitas com as favelas, temos a re- quer fosse para criticar, de acordo com seus lação consolidada no fim da década de 1970 interesses no período, e, assim, arregimentar entre a FAFERJ, entidade que congregava as eleitores para si e seus aliados (Motta, 1999). associações de moradores das favelas, e a Fun- Numa matéria do jornal O Dia sobre a resistên- dação Leão XIII, órgão estadual que ficou res- cia dos moradores à remoção na Catacumba, é ponsável pelas favelas a partir da Fusão entre contado, inclusive, que Chagas esteve no local, os estados da Guanabara e do Rio de Janeiro. ainda como deputado, dando apoio aos mora- De modo que, no fim da década, no ambiente dores (O Dia, 1968). de redemocratização do país, a polarização do Este jornal foi largamente utilizado por movimento comunitário era, grosso modo, en- Chagas Freitas e políticos ligados ao seu grupo tre a “esquerda” e os chaguistas (Brum, 2006), “para divulgação dos problemas das reivindi- cuja “máquina” havia sido montada ao longo cações dos moradores de diversas regiões da dos dois mandatos (Chagas foi governador Guanabara, em especial dos subúrbios, ricos também entre 1979 e 1983), baseando-se na de eleitores, porém carentes de serviços co- arregimentação de apoio em troca de obras mo limpeza, iluminação e calçamento de ruas, pontuais em favelas, que ficara conhecido co- água e esgoto, posto de saúde, escolas, etc.” mo política-da-bica d’água (Diniz, 1982). (Motta, 2000). Havendo inclusive uma coluna Assim, no primeiro mandato de Chagas, para denunciar/atender as queixas, o que in- até 1975, foram removidas pouco mais de um cluía os moradores de favelas, conforme vemos terço de pessoas do que o total do governo no relato de Guida Nunes, na época estagiária anterior (26.665 X 70.595) (Cohab-GB apud de jornalismo dos jornais chaguistas, na aber- Valladares, 1978), devendo ser considerado tura de seu livro Rio: Metrópole de 300 fave- que vários conjuntos habitacionais tiveram sua las: “Fui a ‘comandeira’, como chamavam-me construção iniciada ainda na gestão de Negrão no jornal, porque fazia os famosos ‘Comandos de Lima. em Ação’, juntamente com a então candidata, Em dezembro de 1973, o Governo Cha- hoje deputada, Sandra Salim” (Nunes, 1976). gas Freitas, ainda anunciaria um ousado Plano Nesse livro, é traçado um panorama de várias de Desfavelização da Guanabara que previa a favelas em todo o Rio de Janeiro, a partir das remoção de 500 mil moradores para 120 mil reportagens feitas para o jornal, destacando novas residências; além de urbanizar algumas principalmente aspectos ligados à precarie- poucas favelas (oito, no total) que não cons- dade, pobreza e falta de serviços públicos e tariam do plano de erradicação. Além disso, já Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 375 Mario Sergio Brum não mais existindo a CHISAM, o plano era de Sudebar, conforme afirmam os urbanistas Gerô- autoria exclusiva do Estado, ainda que preves- nimo Leitão e Vera Rezende: “Com isso, a partir se receber recursos do BNH. da segunda metade da década de 70, são cons- No entanto, após o primeiro mandato de truídos diversos empreendimentos imobiliários Chagas Freitas, em 1975, quando os estados da em que se destacam os condomínios privados”. Guanabara e do Rio de Janeiro viveram o pro- Os autores continuando o argumento em nota: cesso de fusão, sob a gestão de Almirante Fa- “Os primeiros condomínios privados implanta- ria Lima, nomeado pelo Governo Federal, esse dos na Barra da Tijuca denominavam-se Nova priorizou os assuntos ligados à fusão, tanto no Ipanema e Novo Leblon, numa alusão aos tradi- âmbito administrativo quanto na infraestrutura cionais bairros da Zona Sul carioca, agora numa de integração, como a ponte Rio-Niterói. versão moderna” (Rezende e Leitão, 2004). Como último fator, temos a questão da Não à toa, foi na Barra que prevalece- demanda de terrenos para a expansão imobi- ram as campanhas pela remoção de favelas liária voltada principalmente para a classe mé- na década de 1980, como vemos na matéria dia, que passou a ser resolvida com a execução de O Globo de março de 1989, com o título do Plano Lúcio Costa para a Baixada de Jaca- de “As favelas se multiplicam na Barra da Ti- repaguá. Em 1974, ainda no Governo Chagas juca” (1989) que se concretizou com despe- Freitas, duas medidas importantes demonstram jos das favelas Via Park, nas imediações do que o foco da expansão deixara de ser a Zona Barrashopping, e Vila Marapendi, próxima de Sul e passara a ser a Barra da Tijuca, reduzindo onde hoje está o Shopping Downtown, áreas a pressão sobre as favelas e a necessidade da extremamente valorizadas.6 “conquista” dos terrenos por elas ocupados. De qualquer modo, com a extinção da A primeira foi a conclusão do elevado do CHISAM, em 1973, as políticas de remoção de Joá, como a principal via de acesso da Zona Sul favelas, ainda que não tivessem sido totalmen- à Barra da Tijuca; e a segunda foi a transforma- te descartadas pelo Estado, perderam a força ção do Grupo de Trabalho em Superintendên- que tiveram durante o período em que esta au- cia de Desenvolvimento da Barra da Tijuca – tarquia coordenou a Era das Remoções. Mario Sergio Brum Historiador, doutor em História, professor e pesquisador de temas urbanos. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. [email protected] 376 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 Ditadura civil-militar e favelas Notas (1) Em Castells, falando especificamente sobre os conflitos urbanos, também temos esta análise em que o Estado se apresenta (à sociedade) como um racional administrador, regulando possíveis conflitos através da planificação urbana, tornando “técnicos” todos os problemas relacionados ao espaço urbano, em busca de controle social (Castells, 1983). (2) Disponível em: h p://www.cehab.rj.gov.br/empresa/. Acesso em: 7/12/2009. (3) Estas explicações constam nos dois documentos. A única diferença é o destaque dado a elas, menor no de 1969, constando no final como um subitem, enquanto no de 1971 figura como um dos itens do programa (CHISAM, 1969 e 1971). (4) Essa pesquisa foi realizada em seis favelas distintas entre si, a partir dos seguintes critérios: localização (zona Norte/Sul), tamanho (pequena/média/grande) e grau de intervenção do Estado (não-intervenção/intervenção superficial/intervenção maciça), de modo que os resultados colhidos nessas seis favelas traçariam um panorama geral acerca do perfil, opiniões e expecta vas da população favelada em geral. Ainda que metodologicamente discu vel, as reflexões da pesquisa eram e ainda são válidas para ques onar os pressupostos que orientavam a ação da CHISAM. (5) Este processo de inadimplência foi profundamente trabalhado em Valladares (1978) e Zaluar (1985). (6) Ver “Vila Marapendi será removida”, O Globo, 9/6/1989, e “Suspenso despejo na Via Park”, O Dia, 16/2/1990. Em que pesem as resistências por parte dos moradores que se leem nas matérias, ambas acabaram ocorrendo pouco tempo depois das reportagens. Referências AGENTE (1969). 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Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012 379 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro: conclusões, hipóteses e questões oriundas de uma pesquisa The right to the city in Rio de Janeiro’s slums: conclusions, hypotheses and questions derived from a research study Alex Ferreira Magalhães Abstract Resumo Artigo que sintetiza as conclusões de pesquisa voltada às recentes transformações na regulação das favelas, notadamente quanto à formalização da propriedade imobiliária e ao direito edilício. Com base em pesquisa empírica original e dados de pesquisas anteriores, buscou-se mapear o “estado da arte” dessa regulação. Dialoga-se com o debate contemporâneo a respeito da configuração das favelas e das políticas urbanas a elas direcionadas, interpelando hipóteses frequentes, especialmente aquelas que creem no desaparecimento de processos negociais, supostamente subsumidos pela sociabilidade violenta, ou que veem as favelas como regiões anômicas, de onde o Estado estaria ausente. Sugere-se a revisão dessas hipóteses, à vista das recentes intervenções do Estado, nas quais se verificam conflitos em torno do “novo” ordenamento proposto para as favelas. This paper synthesizes the conclusions of a research conducted into the recent changes underwent by slums regulation, especially regarding the formalization of real estate property and the right to build. Based on an original empirical research and on data from previous studies, we aimed to map the “state of the art” of such regulation. A dialogue with the contemporary debate on slums configuration and on urban policies addressed to slums is also developed. In this sense, common hypothesis are questioned, especially those which argue that dialogic processes have disappeared, since they have been subsumed by a violent sociability, or even those which conceive slums as anomic spaces, where the State is seen as an absent agent. A revision of such hypothesis is suggested due to the recent State policies, in which conflicts over the “new” order proposed to the slums can be widely observed Palavras-chave: regularização urbanística; regularização fundiária; urbanização; direito de construir; direito de propriedade. Keywords : informal settlements regulation; land regulation; slums upgrading; right to build; property right. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 Alex Ferreira Magalhães Introdução Tal dimensão implica indagar qual o grau de vigência do Estado Legal1 nas favelas ou, em outras palavras, até que ponto as favelas cons- O presente artigo decorre de pesquisa que tituiriam territórios dentro ou fora do alcance realizamos, e que tem por objeto as transfor- do poder do Estado de editar leis e fazê-las mações no processo de regulação jurídica das cumprir, ab-rogando outras ordens normativas favelas no que tange às formas de apropriação, não reconhecidas eventualmente existentes em uso e ao aproveitamento do espaço, notada- seu respectivo território. mente no caso da cidade do Rio de Janeiro. A segunda dimensão de nossa questão Nessa pesquisa, interessa-nos, em primeiro consistiria numa apreciação crítica a respeito lugar, conhecer – com base em pesquisas de da natureza e do significado sociopolítico da campo, aliadas aos dados propiciados por pes- regulação das favelas, isto é, de que espécie quisas já realizadas em outras favelas – o atual de código de valores essa regulação estaria “estado da arte” da regulação das favelas, imbuída? Seriam valores compatíveis com o construindo uma descrição desse estado com Estado Democrático de Direito e com a cons- o máximo grau de objetividade, a fim de que tituição da cidadania? Seriam valores de na- tenhamos a base empírica ideal para os exercí- tureza libertária ou emancipatória das classes cios de natureza teórico-especulativa. populares? Seriam valores tendentes a preco- No âmbito desse esforço, coloca-se a nizar o despotismo, o arbítrio, a violência e/ou questão central que nos ocupa, referente à o uso indiscriminado da força no equaciona- qualificação dessa regulação, questão que, mento dos conflitos de interesse em uma de- do ângulo em que a vemos, possui três di- terminada localidade ou microcosmo no seio mensões básicas. da sociedade nacional? A propósito da inter- A primeira dessas dimensões consistiria pretação embutida nessa última questão, essa no esclarecimento a respeito de quais seriam nos parece gozar de forte aceitação social, a as fontes materiais de tal regulação, isto é, pro- partir de sua constante difusão por grandes ór- viria ela do sistema legal, de costumes locais, gãos de comunicação. Assim, o debate dessa de imposições de autoridades privadas, de pro- questão nos permitirá refletir a respeito de um cessos de reprodução de normas adotadas em senso comum de grande penetração na socie- outras localidades (estandardização da produ- dade carioca, e talvez mesmo além das fron- ção normativa extra-estatal), ou de que outras teiras da cidade e do país. possíveis fontes? As transformações ocorridas A terceira, e última dimensão, consistiria no período recente, por força das políticas ur- numa avaliação do grau de especificidade des- banas em curso, estariam diluindo as normas sa regulação, isto é, até que ponto essa regu- costumeiras e as instituições locais, fazendo lação se diferencia daquela que se coloca para com que sejam minimizadas as diferenças en- outras localidades e para o conjunto da socie- tre os sistemas locais e centrais e paulatina- dade? Tratar-se-ia – aquela – de uma regulação mente impondo a ordem normativa oficial? Até autônoma em relação a estas últimas ou cons- que ponto as favelas estariam legalizando-se? tituiria um capítulo, parte ou aspecto destas? 382 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro Entendemos que o advento das políticas sentir, a noção de regularização converteu-se e programas de regularização – urbanística e no grande símbolo, e/ou no principal eixo arti- fundiária – demarcado, na cidade do Rio de culador, de políticas integradas de intervenção Janeiro, pela edição, em 1992, do Plano Dire- do Estado nas favelas, englobando-se debaixo tor Decenal, bem como pelo desenvolvimento, desse conceito uma série diversificada de medi- a partir de 1994, do Programa Favela-Bairro, das, algumas delas de difícil conjugação. configuram um novo e particular período na A questão delineada nos parágrafos an- trajetória da regulação das favelas cariocas. teriores pode ser amplamente revigorada e re- Em nossa leitura dos fatos, esse Programa, colocada no processo de difusão, fortalecimen- dentre inúmeros significados que se poderiam to e institucionalização das políticas de regula- desvendar a seu respeito, representou uma no- rização, que parece-nos demarcar um momen- va tentativa de entrada do Estado nas favelas, to de necessária renovação da reflexão sobre com uma série de especificidades, que cabe à tal questão. Uma das dimensões centrais des- análise pormenorizar. Essa entrada tem se da- sas políticas consiste precisamente na formu- do de diversas formas, dentre elas, na forma lação de uma legislação disciplinadora do uso do Estado Legal, que se propõe a intervir nas do espaço, que tem sido pensada como plena- favelas no sentido de induzir seus moradores mente adaptada às circunstâncias físico-ter- a superar e reformular os costumes locais e ritoriais e socioculturais das favelas, ao con- as práticas normativas adotadas e seguidas trário do que se observou historicamente na até então, introduzindo um novo ordenamen- legislação urbanística brasileira. Dessa forma, to jurídico, editado pelo próprio Estado. Isso almeja-se garantir o desenvolvimento ordena- exigiria dos moradores das favelas a adesão do e racional desses espaços, bem como deixar a um processo de assunção de novos compor- marcado que o Estado não mais está ausente tamentos – no tocante a inúmeros aspectos dessas áreas, que deixariam de se configurar da vida coletiva – o que vem sendo definido como espaços literalmente excluídos do plane- pelos agentes púbicos como um processo de jamento e ordenamento da cidade, sem qual- mudança cultural, que envolveria ações espe- quer espécie de esforço por parte do Estado de cíficas de natureza “socioeducativa”, confor- aí exercer o seu poder de regulação jurídica. me documen tos institucionais editados pela De fato, as políticas de regularização ostentam Prefeitura da Cidade (a título de exemplo, vide a meta de atacar um problema que, no âmbi- Rio de Janeiro, 2008). to das ciências sociais, é classificado como um Assim, a construção de nosso objeto problema estrutural da experiência democráti- toma como ponto de partida o processo de ca latino-americana, que consiste na formação consolidação de políticas estatais voltadas à de regiões mais ou menos extensas em que o melhoria das condições de moradia nas fave- estabelecimento e a vigência do sistema legal las, especialmente as políticas genericamente defronta-se com uma série de problemas pe- identificadas como Políticas de Regularização, culiares, conquanto essas regiões estejam in- forma que a maioria dos programas tem se tegradas do ponto de vista político, territorial apresentado nas últimas décadas. Em nosso ou econômico, o que eventualmente dá ensejo Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 383 Alex Ferreira Magalhães à constituição de formas privatizadas de regu- outras, ainda não abrangidas por tais ações, lação social. A maneira como tais problemas nas quais poderia se verificar uma espécie de são enfrentados, seja por meio das políticas efeito onda ou efeito dominó, resultantes dos de regularização seja por outros mecanismos, impactos urbanos mais amplos desencadeados constituiria um poderoso indicador das possi- por ações executadas em localidades determi- bilidades de êxito da proposta de integração, nadas. O reordenamento a que ora aludimos da qualidade desta e, logo, dos impactos e/ou consistiria num novo arranjo entre normas lo- resultados das políticas de regularização para cais e oficiais na composição da regulação das a consolidação do projeto democrático. Assim, favelas, que se distinguiria do anterior em fun- outro dos objetivos da pesquisa é o de reunir ção da nova conjuntura física e sociopolítica in- elementos que permitam uma avaliação, a troduzida pela urbanização e regularização. En- mais aproximada possível, da medida do êxito tre outros aspectos, essas ações têm incluído a na realização dessa meta, tendo claro que não edição de legislação específica para cada área se trata de uma avaliação definitiva, uma vez urbanizada, bem como o desenvolvimento de que estamos lidando com processos em curso, ações e criação de órgãos de implementação isto é, com objetos em franco movimento. dessa legislação, o que vemos como um novo O novo cenário da regulação das favelas constituído pelo desenvolvimento dos progra- vetor a pressionar os limites do arranjo normativo anterior, induzindo à sua redefinição. mas de regularização constitui um dos fatos que tomamos no sentido de justificar a pertinência histórica (ou social) e teórica de nosso objeto e das questões que elaboramos a seu respeito. Nesse sentido, nossa pesquisa integraria o esforço coletivo de avaliar sistematica- Especificidades na pesquisa jurídica em favelas: algumas demarcações mente as transformações no tecido urbano introduzidas pelas políticas de regularização ur- Desde a década de 1970, a obra de Boaventura banística e fundiária ora em curso no país – em de Sousa Santos tem sido considerada uma re- escala nacional e com ares de política urbana ferência fundamental para a pesquisa sobre as prioritária – contribuindo para seu aprimora- relações jurídicas encontradas nas favelas. Não mento. Como fator distintivo das demais ava- obstante, algumas diferenças relevantes, entre liações já realizadas, aquela que ora propomos a abordagem desse intelectual e a que nos pro- teria a singularidade de dirigir seu foco a um pomos desenvolver, podem ser demarcadas. Em dos impactos que essas políticas inescapavel- primeiro lugar, embora as referências empíricas mente estariam buscando, consistente na ten- de nossa pesquisa tenham reafirmado a centra- tativa de reordenamento jurídico das favelas lidade da Associação de Moradores de Favelas nas quais essa intervenção estatal se processa. para a reprodução das relações jurídicas e ad- Tal impacto, talvez, não se reduza àquelas fa- ministração de conflitos nesses espaços, que velas nas quais se executaram diretamente as constitui uma das descobertas fundamentais ações de regularização, podendo vir a alcançar da obra de Santos, nossa pesquisa não tinha 384 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro por objetivo investigar práticas jurídicas que, natureza de sua presença variam bastante con- necessariamente, girassem em torno dessa forme os campos sociais; instituição, mas, ao contrário, perquirir de que 3) possui prioridade organizativa entre as modo essa centralidade tem se transformado, diversas formas jurídicas, dado que “todas as nos últimos dez a quinze anos. A rigor, nossa outras formas de direito tendem a tornar a sua pesquisa procurou mapear as instituições con- presença garantida e a organizarem e maximi- temporâneas do que denominamos Direito da zarem a sua própria intervenção e eficácia re- Favela – o que Santos, em seus escritos, cha- gulatória em redor dos limites, falhas e fraque- ma de Direito de Pasárgada ou, de modo mais zas do direito estatal” (Santos, 2001, p. 300); abrangente, de Direito Comunitário – quais se- 4) ao contrário de outras formas de poder, riam seus agentes e que posições ocupam no funciona “como se estivesse desincorporado de campo em que se inserem. Assim, valemo-nos qualquer contexto específico, com uma mobi- em nosso trabalho, com as necessárias adap- lidade potencialmente infinita e uma enorme tações, da distinção fundamental, elaborada capacidade de disseminação nos mais diversos desde a obra de Santos, entre Direito Estatal e campos sociais” (idem, idem); Direito da Favela. 5) tende a superestimar, ou sobreestimar, O Direito Estatal – também designado suas capacidades regulatórias, prometendo por Santos por Direito Territorial do Estado ou mais do que aquilo que pode efetivamente ofe- Direito do Espaço da Cidadania – é, nas socie- recer e garantir;3 dades modernas, o Direito central na maioria 6) é a única forma de Direito autorreflexiva, das ordens jurídicas, sendo qualificado como isto é, a única que vê a si mesma como Direito; forma cósmica de Direito, enquanto todas as 7) tende a considerar o campo jurídico como demais constituiriam formas caósmicas (San- exclusivamente seu, recusando-se a reconhecer tos, 2001, p. 301).2 Seu valor estratégico reside que seu funcionamento se integra em constela- no poder do Estado, que o sustenta, “um poder ções de Direitos mais vastas: altamente organizado e especializado, movido por uma pretensão de monopólio e comandando vastos recursos em todos os componentes estruturais do direito (violência, burocracia e retórica)” (Santos, 2001, p. 300). É aquele que, dentre todas as formas jurídicas, possui as seguintes peculiaridades, ou notas distintivas fundamentais (cf. Santos, 2001, p. 291 e ss.): 1) tende a estar mais difundido do que as Ao longo dos últimos duzentos anos ele foi construído pelo liberalismo político e pela ciência jurídica como a única forma de direito existente na sociedade. Apesar de seu caráter arbitrário inicial, esta concepção, com o decorrer do tempo, foi invadindo o conhecimento de senso comum e instalou-se nos costumes jurídicos dos indivíduos e dos grupos sociais. (Santos, 2001, p. 299); outras formas jurídicas nos diferentes campos sociais (ou espaços estruturais); 8) é um campo jurídico extremamente di- 2) sua presença na manifestações concretas versificado, abrangendo uma multiplicidade do Direito é muito irregular, isto é, o alcance e a de subcampos – cada um deles tendo um Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 385 Alex Ferreira Magalhães modo específico de se articular com as outras Pasárgada e aplicadas na favela – na verdade formas jurídicas – uma variedade de tipos de Santos registra que, via de regra, o princípio 4 da propriedade privada é acatado no Direito e uma trajetória histórica específica (Santos, de Pasárgada do mesmo modo que o é no Di- 2001, p. 301); reito Estatal brasileiro. juridicidade, cada uma com caráter próprio, 9) é a única forma de Direito capaz de pensar A impressão geral de Santos a respeito o campo jurídico como uma totalidade integra- do Direito da Favela pode ser expressa da se- da, ainda que se trate de uma totalidade ilusó- guinte forma: ria (Santos, 2001, p. 300). [...] um direito paralelo não oficial,5 cobrindo uma interação jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto, como lhe chamam os moradores das favelas, por ser o direito que vigora apenas nas zonas urbanizadas e, portanto, com pavimentos asfaltados). (Santos, 1988, p. 14) Apesar de toda a sua precariedade, o direito de Pasárgada representa a prática de uma legalidade alternativa e, como tal, um exercício alternativo do poder político, ainda que muito embriônico. Não é um direito revolucionário, nem tem lugar numa fase revolucionária da luta de classes; visa resolver conflitos intraclassistas num espaço social “marginal”. Mas, de qualquer modo, representa uma tentativa para neutralizar os efeitos da aplicação do direito capitalista de propriedade no seio dos bairros de lata e, portanto, no domínio habitacional e da reprodução social. E porque se centra à volta de uma organização eleita pela comunidade, o direito de Pasárgada representa, como aspiração, pelo menos, a alternativa de uma administração democrática da justiça. (...) O direito de Pasárgada, e muito especialmente a sua importante dimensão retórica, são fatores de consolidação das relações sociais no interior de Pasárgada. (Santos, 1988, pp. 99 e 101) Trata-se de um Direito vigente apenas no es- A partir desses pressupostos teóricos, paço territorial da favela e sua estrutura nor- identificamos, na pesquisa de nossa autoria, mativa assenta na inversão da norma básica os seguintes agentes relevantes, que intera- do estatuto jurídico da propriedade da terra: gem no campo jurídico da favela: Já o assim chamado Direito da Favela constituiria uma referência direta aos padrões normativos que efetivamente vigoram nas favelas, que nelas ordena as relações sociais e que nelas são vistos como possuindo uma natureza ou poder jurídico – o que, em muitos casos, será verdadeiro à luz do próprio Direito Estatal, embora esta circunstância não constitua uma condição sine qua non para que se possa falar em Direito da Favela. Como dito anteriormente, essa noção se inspira no que Santos denomina Direito de Pasárgada, isto é, posses que seriam ilegais segundo a legali- ● o Estado, basicamente, por meio de seus dade do asfalto, convertem-se em proprieda- órgãos localizados na própria favela (CRAS,6 des legais para o Direito de Pasárgada. Nes- PSF,7 etc.), destacadamente o POUSO,8 embora se contexto, admite-se que algumas normas esses órgãos estejam articulados à direção su- que regem a propriedade do asfalto possam perior da administração municipal (no caso do ser seletivamente incorporadas ao Direito de POUSO, a SMU); 386 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro ● as organizações que agem a serviço do Estado, que muitas vezes são instituições de Direito privado, porém, desenvolvem ações ins- age em nome de um determinado conhecimento técnico-científico; ● vizinhos do bairro de entorno à favela, trumentais à intervenção do Estado, na favela, cujos movimentos, por vezes, repercutem na tais como estudos físico-territoriais e/ou socio- dinâmica interna da favela; logo, interagem econômicos, projetos de urbanização e cadas- (talvez imperceptivelmente) com os agentes, tramento de moradores e imóveis; nela inseridos, ressaltando os condicionamen- os moradores, considerados de maneira in- tos que ocorrem “de fora para dentro”, como dividual e coletiva, uma vez que sua ação não demonstramos, em diversos casos relatados se subsume àquela da associação, impondo à na tese. ● análise o tratamento de ambos como agentes diversos e relativamente autônomos entre si; Desse modo, a favela em questão se configura como um campo jurídico plural e as lideranças comunitárias, que desempe- complexo, não obstante as intenções, por ve- nham um papel proeminente, dentro do con- zes, monocráticas, da Associação de Morado- junto dos moradores; res, que reproduz, em parte, os movimentos ● os agentes comunitários, que, apesar de do Estado moderno, no sentido de chamar pa- moradores da favela, são agentes a serviço ra si um determinado monopólio político, que, do Estado, nela atuando, conforme a orienta- assim como no caso do Estado, não se realiza ção, as pautas e as prioridades, estabelecidas plenamente, e talvez jamais tenha existido, pelo Estado, constituindo um agente, no qual concretamente, valendo mais como orienta- se concentram os hibridismos e as contradições ção ideológica. ● entre o campo estatal e o comunitário; Por outro lado, nossa pesquisa não é os corretores de imóveis, agentes profissio- centrada, propriamente, na realização de um nalizados, que agem como mediadores, entre mapeamento ou diagnóstico dos mecanismos as partes, do mercado imobiliário local, cuja e instrumentos de resolução de conflitos, que ideologia e gama de interesses também guarda se encontrem em operação nas favelas, em- ● relativa autonomia, em relação a seus clientes. bora tenhamos abordado essa temática, en Eles podem, por sua vez, ser distinguidos entre passant, em diversos momentos. Voltamo- aqueles, que atuam profissionalmente apenas -nos, antes, às práticas locais, relativas à dentro da favela, e os que atuam dentro e fora formalização da propriedade, bem como aos dela, no chamado “mercado formal”; diversos aspectos envolvidos na regulação a boca de fumo, uma agência que, mes- da atividade edilícia, na qual se destacam mo quando não chamada a atuar diretamen- as diversas constelações, imbricações ou ar- te, exerce um relevante condicionamento das ticulações entre o Direito Estatal e o Direito linhas de ação dos demais agentes do campo; da Favela. Na obra de Santos, não se confere ● profissionais diversos, que desenvolvem destaque, dentro das atribuições ou funções projetos ou trabalhos, na favela, operando co- exercidas pela Associação de Moradores, ao mo assessores de movimentos organizados; um aspecto da organização, coordenação e con- agente “supralocal” (ou externo à favela), que trole dos processos de edificação ou mesmo ● Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 387 Alex Ferreira Magalhães de apropriação de novas áreas, no processo A teoria da pluralidade jurídica retoma de expansão da favela, tal como procuramos uma tradição teórica que aborda o fenôme- registrar. Parece-nos que essa configura uma no jurídico sob uma perspectiva antiforma- dimensão inescapável, para abordagens que lista, tradição essa que surge nos finais do se proponham atualizar o debate a respeito século XIX, na chamada Escola do Direito do Direito que materialmente tem vigorado livre, que tem na obra do jurista alemão Eu- nas favelas. gen Ehrlich – especialmente em seu Princípios O debate sobre as relações locatícias Fundamentais de Sociologia do Direito, de também nos parece constituir outro aspecto de 1913 – uma de suas expressões mais proemi- grande relevância para os estudos contemporâ- nentes (e considerado o grande precursor das neos sobre essa matéria, que, igualmente, não correntes pluralistas como um todo), bem co- foi explorada, nos trabalhos de Santos. Nessas mo na Antropologia Jurídica anglo-saxônica. relações se acentuaria a importância de alguns Inspirando-se nelas, Santos busca desenvol- dos agentes acima relacionados, reafirmando- ver uma teoria jurídica de sólida fundamenta- -se a pluralidade e complexidade que extrapola ção empírica e de um sentido epistemológico a instituição Associação de Moradores. A ques- crítico, que denuncie a ocultação, e a tenta- tão das locações constitui matéria imprescin- tiva de supressão, levada a cabo pelo Estado dível de ser desenvolvida no sentido de irmos capitalista como estratégia de dominação construindo uma visão mais aproximada do (Santos, 1990, p. 17), de formas marginais, que seria a totalidade do campo do Direito da subalternas e centrífugas de direito, “formas Favela, ao qual, também, pode ser agregado o jurídicas e epistemológicas que asseguram a problema dos processos de transmissão inter- ordem e a desordem em comunidades social, geracional da propriedade imobiliária. política e culturalmente subalternas e mesmo marginais” (Santos, 2001, p. 19). Trata-se de um problema que teve amplo tratamento A teoria da pluralidade jurídica e sua relevância como ferramenta analítica para o conhecimento e exploração do Direito da Favela na teoria do Direito ao longo do século XX, produzindo um dos seus temas clássicos, a ele fazendo referência autores como George Gurvitch ( L’Idée du droit social, 1932), Santi Romano ( L’Ordre juridique, 1946), Giorgio Del Vecchio ( Persona, Estado y derecho, 1957), Hermann Kantorowicz ( The definition of law, Em nossa pesquisa, trabalhamos com a teoria 1958), Jean Carbonnier ( Sociologia jurídica, da pluralidade jurídica, no sentido de favore- 1979) e Norberto Bobbio ( As ideologias e o cer a aproximação de nosso objeto – a regu- poder em crise, 1982), destacando-se, no Bra- lação jurídica das favelas – a fim de que não sil, a obra de Cláudio Souto ( Teoria sociológi- ficássemos limitados a um olhar externo a ca do Direito e prática forense, 1978). respeito desse fenômeno, mas apreendendo-o em sua materialidade. 388 Segundo Santos, “existe uma situação de pluralismo jurídico sempre que no mesmo Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou supraestatais, não oficiais e “mais ou menos não) mais de uma ordem jurídica”, o que po- costumeiras”, isto é, que não configuram “um de ter uma fundamentação econômica, racial, direito costumeiro no sentido tradicional do profissional ou outras, bem como pode corres- termo. Só poderá ser considerado costumeiro ponder a um período de ruptura social e trans- se admitirmos a possibilidade de práticas formação revolucionária, ou, ao contrário, “re- novas ou recentes darem origem ao que po- sultar da conformação específica do conflito de deríamos designar quase paradoxalmente classes numa área determinada da reprodução por costumes instantâneos” (Santos, 1996, social”, como seria o caso das favelas cariocas pp. 260-261, grifo nosso). O autor excetua a por ele estudadas (Santos, 1999, p. 87). Ao ver lex mercatoria internacional – isto é, as rela- desse autor, o pluralismo jurídico constitui um ções contratuais estabelecidas pelas empre- fato social inconteste: sas multinacionais – do caráter “não oficial”, Parto da verificação, hoje pacífica na sociologia do direito (e fundamentada em múltiplas investigações empíricas), de que, ao contrário do que pretende a filosofia política liberal e a ciência do direito que sobre ela se constituiu, circulam na sociedade não uma, mas várias formas de direito ou modos de juridicidade. O direito oficial estatal, que está nos códigos e é legislado pelo governo ou pelo parlamento, é apenas uma dessas formas, se bem que tendencialmente a mais importante. (Santos, 1996, pp. 259-260) frisando que não faria sentido considerá-la assim, na medida em que ele cria diferentes formas de imunidade diante das formas estatais nacionais, vindo a constituir sua própria oficialidade. Porém, parece-nos que não seria equivocado reconhecer, em coerência com os pressupostos metodológicos não etnocêntricos e não estatocêntricos adotados pelo próprio Santos, essa mesma oficialidade não estatal nas demais formas jurídicas encontradas nas relações sociais, tais como aquelas que compõem o Direito de Pasárgada. A crítica ao esta- O autor critica o fato de a Sociologia do tocentrismo jurídico, em outras palavras, a crí- Direito ter aceito, acriticamente e por longo tica à ideia do monopólio da produção jurídica tempo, o pressuposto reducionista de que o Di- pelo Estado moderno, elaborada no sentido de reito opera segundo uma única escala, a escala negar, neutralizar, eliminar autoritariamente, do Estado-nação – isto é, do Direito Nacional – submeter e/ou apresentar como irrelevante ao passo que as investigações sobre o pluralis- toda e qualquer produção jurídica não estatal, mo jurídico realizadas desde a década de 1960 comparece amplamente na fundamentação já vinham chamando atenção para a existência teórica da perspectiva da pluralidade do Di- de Direitos Locais em diversos espaços sociais, reito, sendo vista como o ponto de partida de tais como nas zonas rurais, nos bairros urbanos uma hermenêutica crítica do Direito moderno. marginais, nas igrejas, nas empresas, no desporto, nas organizações profissionais, etc. No âmbito dessa teoria desenvolve-se uma aguda crítica da noção de monopólio A teoria da pluralidade do Direito pro- estatal da produção jurídica, colocando-se a cura reconhecer formas jurídicas que se mesma em perspectiva histórica, perspectiva distinguem pelas notas de serem infra ou em que aparece como uma “naturalização do Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 389 Alex Ferreira Magalhães direito moderno como estatal”. Nesse senti- atenção ao longo de toda sua obra: as formas do, Santos afirma que “a absorção do direito de poder, de conhecimento, e de Direito, que moderno pelo estado foi um processo histórico funcionam geralmente como meio ou condição contingente que, como qualquer outro proces- de exercício umas das outras (Santos, 2001, so histórico, teve um início e há de ter um fim” p. 291). Assim, define a sociedade capitalista (Santos, 2001, p. 170). Indo mais a fundo, o como aquela que se caracteriza “por uma su- autor sentencia que “na realidade, o Estado pressão ideológica hegemônica do caráter po- nunca deteve o monopólio do direito”, tendo lítico de todas as formas de poder excetuando em vista que formas de Direito infra (ordens a dominação, do caráter jurídico de todas as jurídicas locais, com ou sem base territorial) formas de direito, excetuando o direito estatal, ou supraestatais (os mecanismos do sistema e do caráter epistemológico de todas as for- mundial) coexistiram, subsistiram ou surgiram mas de conhecimento, excetuando a ciência” em paralelo à forma própria do Estado-nação (Santos, 2001, p. 325). (Santos, 2001, p. 171). De outro lado, o mo- Outra fonte da ideia do monopólio jurí- nopólio estatal do Direito, se algum dia exis- dico estatal residiria no pensamento burguês tiu, não foi sequer igualmente distribuído por em suas várias vertentes – como liberalismo, todos os campos jurídicos, alguns deles his- contratualismo e iluminismo. Hoje, esse mo- toricamente mais receptivos às juridicidades nopólio é um cânone político e epistemológico emanadas de fora do Estado – Santos oferece que vem sendo objeto de crítica entre os her- o exemplo do reconhecimento do Direito Indí- deiros do pensamento burguês, isto é, por parte gena – embora o faça de maneira submetida de seus próprios arautos (Santos, 1982, p. 13). ao Direito Estatal (Santos, 1982, p. 13). A ideia Sob a crise do contrato social e no contexto do do monopólio estatal é atribuída por Santos, chamado capitalismo desorganizado,9 mais do dentre outros fatores, aos mútuos compromis- que nunca estaria evidenciada a fragmentação sos entre estatismo, cientificismo e positivis- do poder e o relativo declínio do poder jurídico mo, que geraram o pressuposto ideológico de centrado no Estado, obrigado a coexistir com que o Direito moderno, para se constituir, deve outras formas de regulação da sociedade, ad- desconhecer o conhecimento da sociedade a vindas dos “múltiplos legisladores não-estatais esse respeito, para, a partir dessa ignorância, de fato, os quais, por força do poder político construir uma afirmação epistemológica pró- que detêm, transformam a faticidade em nor- pria (Santos, 2001, p. 165). À medida que o Di- ma, competindo com o Estado pelo monopólio reito foi se “tornando” estatal, foi se tornando da violência e do direito” (Santos, 2003, p. 13). também científico, e, consequentemente, des- Santos situa a separação entre Direito e politizando a dominação estatal, que transita Estado como ponto de partida para pensar cri- de dominação política a dominação técnico- ticamente o Direito – a rigor, des-pensar – num -jurídica (Santos, 2001, p. 165). Nesses enun- contexto de transição paradigmática, uma vez ciados comparecem as três dimensões básicas que serviria a alguns propósitos fundamentais: que se articulam para formar as sociedades capitalistas, para as quais Santos procura chamar 390 ● mostrar a não-historicidade do monopó- lio estatal do Direito (“não só o Estado nunca Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro deteve o monopólio do direito como também negativa) influência, no âmbito do pensamen- nunca se deixou monopolizar por ele”); to jurídico. Assim, a teoria da pluralidade pode mostrar que o Estado moderno funcionou – constituir uma inspiração teórica fértil, na me- e funciona – tanto por meios legais como por dida em que ocorra uma constante vigilância meios ilegais, variando essa conjugação con- epistemológica, que incorpore diretivas como forme as áreas de intervenção do Estado, sua as seguintes: ● própria definição de legalidade ou sua posição no sistema mundial; ● evitar pré-noções ou determinismos ideo- lógicos, que conduzam a um maniqueísmo em mostrar que a rejeição arbitrária da plura- relação ao Estado, ou a uma apologia do Direi- lidade de ordens jurídicas eliminou ou reduziu to da Favela, e/ou a uma visão mecanicista das drasticamente o potencial emancipatório do relações de dominação; ● Direito moderno (Santos, 2001, pp. 171-172). ● distinguir o debate a respeito do ser, em De outro lado, a perspectiva que só con- relação ao debate a respeito do dever ser, dos sidera como Direito aquelas regras e padrões sistemas jurídicos, em outras palavras, não normativos emanados pelo Estado e exercidos passar, desatentamente, de um movimento por ele configura, para Santos, um reducionis- descritivo e crítico a um movimento prescritivo mo arbitrário, que deu origem a duas oculta- e normativo; ções fundamentais para a legitimação do capitalismo como relação social global: ● captar as nuanças da experiência jurídica em curso nas favelas, quer em seus aspectos o poder relativamente democrático e não violentos e dialogais, quer em seus mecanismos despótico do Estado só tem condições objeti- de acomodação e de resistência, quer em seus vas de se viabilizar em constelação com outras movimentos de apropriação da ordem jurídica formas de poder, geralmente mais despóticas estatal e de construção original; ● que ele; ● abandonar as abordagens evolucionistas o Estado Democrático de Direito somen- a respeito dos sistemas jurídicos, nas quais o te viabiliza seu funcionamento em constelação Direito da Favela caminharia, irrefreavelmen- com formas jurídicas mais despóticas do que te, para sua absorção pelo Direito Estatal, ele, em suma, Direitos Infraestatais despóticos numa má compreensão do que já se chamou são condições de viabilidade de um Direito Es- de “normalização”, enxergando-se não mais tatal democrático (Santos, 2001, p. 320). do que uma linha de convergência entre as ● Entendemos que a teoria da pluralidade distintas formas jurídicas, que parece buscar, se mostra uma ferramenta útil no esforço de no fundo, uma confirmação sociológica para compreensão da concretude das relações jurí- o postulado político do monopólio estatal da dicas socialmente estabelecidas, tanto no caso produção jurídica. das favelas como de outras regiões ou campos Baseados nas diretrizes acima, diríamos sociais, na medida em que estimularia o sujeito que a hipótese, presente em parte da literatura cognoscente a liberar-se das amarras teóricas especializada, segundo a qual, no caso brasilei- representadas pelas perspectivas formalistas ro e latino-americano, os movimentos popula- ou, ainda, etnocêntricas, ambas de especial (e res teriam uma característica marcadamente Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 391 Alex Ferreira Magalhães centrípeta, de luta pela legalidade estatal um sentido específico de função social, bem e jamais de ruptura com ela e construção de como se sujeita a uma série de circunstâncias uma nova legalidade, mostra-se, quanto muito, da economia doméstica e das redes de relações parcialmente verdadeira. De fato, alguns dados pessoais do titular, que configuram uma insti- empíricos sugerem que muitas das instituições tuição mais complexa do que aquela. Apesar jurídicas em uso nas favelas teriam sido desen- da inegável intensificação do aproveitamento volvidas sob a inspiração das instituições esta- dos imóveis e de sua aplicação em moldes ren- tais – numa espécie de emulação ou simulacro tistas, tais processos não ocorrem de maneira dessas últimas ou, ainda, como atendimento descolada de outros valores, que não se redu- de necessidades simbólicas e políticas – bem zem ao proveito econômico a ser extraído da como parece bastante concreta a expectativa propriedade do solo. dos moradores de favelas no sentido do reco- O mesmo pode se dizer no tocante ao nhecimento de suas propriedades pelo Estado. chamado Direito de Construir, no qual o mo- No entanto, observa-se, também, a instituição vimento real dos moradores de favelas parece de solenidades específicas ou a admissão de longe de configurar-se como a busca de uma possibilidades inexistentes no âmbito do Di- regularidade edilícia e urbanística, nos termos reito estatal. Mais ainda, se bem consideradas como essa se encontra colocada pela prefei- as expectativas dos moradores de favelas com tura, a despeito dessa regularidade ser algo relação à formalização da propriedade, bem co- que, como concepção geral, seria de interesse mo os conflitos envolvidos na regulação, pelo dos moradores. A aplicação, ao caso estuda- Estado, do uso e ocupação do solo nas favelas, do, da hipótese dos movimentos centrípetos e estas constituiriam pautas para a própria re- sem caráter de rejeição ou desconfirmação da formulação das bases legais referidas a essas ordem estatal estabelecida implicaria descon- matérias, e da própria política de intervenção siderar os jogos de força – latentes ou explíci- estatal nas favelas, incluídas aí as estratégias tos – entre Estado e classes subalternas, que, de construção e de implementação da norma- no caso, envolvem disputas relativas a um tividade estatal. novo sistema de classificação dos espaços na Portanto, o movimento real, captado em favela. Tal movimento teórico corresponderia, nossas pesquisas, não se caracterizaria como em linhas gerais, ao movimento que tem si- um movimento puro e simples em direção à do feito, pela prefeitura, no campo político, legalidade estatal, tal como ela já está posta, interpretando que o mesmo está imbuído mas a uma legalidade, em parte, transformada de diversos aspectos de violência simbólica, pela incorporação das instituições das favelas e pautado na eterna busca de uma “reforma das aspirações de seus agentes. Uma das evi- cultural” dos moradores da favela, usualmen- dências nesse sentido residiria nos contornos te proposta no âmbito dos processos de regu- que a instituição da propriedade assume nas larização e de implementação da normativa favelas. A despeito da mercantilização dos imó- urbanística estatal, e que constitui uma das veis, que evocaria a concepção de propriedade- faces visíveis do projeto político subjacente -mercadoria, essa mesma instituição assumiria aos referidos processos. 392 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro O processo de desjuridicização suporte dessa proposição, dentre elas a própria expectativa dos moradores de favelas, em que a titulação da propriedade de que dispõem te- Buscamos retomar a senda aberta por Santos, nha validade tanto dentro, como fora da favela. em sua pesquisa nas favelas cariocas, redis- Nesse sentido, deve-se reconhecer que cutindo suas hipóteses e interpretações, nu- os contratos de compra e venda de imóveis nas ma reapropriação de sua teoria sociojurídica favelas, mesmo que não transfiram proprieda- no contexto contemporâneo. Nesse contexto, de, entendida como um dos Direitos Reais que verificaram-se amplas transformações na con- figuram no Código Civil brasileiro, geram efei- figuração tanto da ordem jurídica, quanto das tos nada desprezíveis à luz dessa mesma codi- próprias favelas, em relação àquele contexto ficação; direitos esses de natureza obrigacional que aquele autor tinha diante de si, quando (decorrentes quer do contrato, quer da realiza- de sua pesquisa original, no início da década ção de acessões e benfeitorias) e de natureza de 1970. Assim, um dos pontos, que mereceria possessória. Assim, os contratantes são sujei- ser rediscutido e recolocado, versa sobre o pro- tos de diversos direitos e de outras situações blema da “exclusão jurídica oficial” a que ele jurídicas subjetivas, reconhecidas pela ordem alude, indagando-se até que ponto persistiria jurídica estatal, algumas delas em processo de essa situação. amplo fortalecimento – na legislação, na teoria Em nossa compreensão, a adoção da e na jurisprudência – havendo fundamentos ju- teoria da pluralidade jurídica, como referencial rídicos razoáveis e consolidados para sustentá- epistemológico e metodológico, não implica -los e reconhecê-los em juízo. Em suma, dos abandonarmos a reflexão, feita do ângulo do negócios jurídicos realizados nas favelas decor- Direito Estatal, a respeito das relações jurídi- rem diversas implicações jurídicas da ordem do cas existentes num determinado espaço social. Direito Estatal, não constituindo um tema que Muito embora sejamos de entendimento que deva ficar relegado ao plano paraestatal ou ex- tais relações podem e devem ser interpretadas traestatal, o que configuraria a maneira como com base na noção clássica de Direito Con- compreendemos a “exclusão jurídica oficial”, suetudinário – parecendo-nos apropriado o em sua acepção contemporânea. conceito de “costume instantâneo”, proposto O reconhecimento das implicações ju- por Santos (1996), para designar os costumes rídicas atuais – que independem de mudan- novos ou recentes, próprios da sociedade con- ças legislativas necessárias, ou daquilo que as temporânea e incomparáveis aos costumes das políticas de regularização possam acrescentar chamadas “comunidades tradicionais”, sob pe- – dos negócios e dos procedimentos adota- na de rigorosa inaplicabilidade desse conceito dos nas favelas, constitui, a nosso sentir, um à sociedade contemporânea –, isso, de forma exercício estratégico, quer do ângulo teórico- alguma, excluiria o reconhecimento de que a -jurídico, quer do ângulo das suas implicações matéria sob análise é recepcionável juridica- sociopolíticas. Do ângulo teórico, tal exercício mente, no âmbito do Direito positivado nas pode esclarecer as possibilidades de efetivação leis. Várias razões poderiam ser invocadas em dos direitos, o que nos parece constituir um Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 393 Alex Ferreira Magalhães indicador indispensável para aquilatar a quali- “zangão” aqueles que delas participam – e dade e/ou o grau da integração das favelas à práticas curiosas, exóticas, diferentes, fruto cidade. Do ângulo sociopolítico, ele muito po- de uma particularíssima criatividade, da qual de contribuir para a afirmação da cidadania e seriam dotados os moradores de favelas. Em da condição de sujeito de direito, por parte das nosso juízo, trata-se de duas variações de vi- coletividades que são objeto de segregação so- sões estereotipadas: a primeira, de caráter as- cioespacial. Julgamos que, até o presente mo- sumidamente negativo, colorindo as práticas mento, tal exercício foi pouco realizado, aquém comunitárias com as tintas da ilicitude e da do que seria possível e necessário, sendo esse condenação moral, e a segunda, uma estereo- mais um dos efeitos da barreira ideológica, tipação com algum verniz de generosidade e de natureza dualista, que atira, acriticamente, condescendência para com os extratos sociais uma grande parcela das relações e negócios subalternos, porém, igualmente excludente – jurídicos, realizados entre pobres, no terreno ou, nos termos de Santos, igualmente antie- da extra ou paralegalidade, reproduzindo o mancipatória. Em termos jurídicos, de um lado processo que Santos (1999) denominou “ilega- teríamos a perspectiva que inquina de nulidade lidade existencial”. Essa seria, provavelmente, todos esses atos, e de outro teríamos aquela uma das grandes barreiras para que se possa que nada enxerga neles além de um suposto configurar a almejada integração das favelas, “Direito Alternativo”, ao qual parte dos juristas que configuraria a vigência do Estado de Di- se refere, categoria que não adotamos e que, reito nesses espaços. Em outras palavras, com outrossim, não comparece nos textos de San- o aludido exercício, estaríamos prevenindo o tos. Muito embora não neguemos, in totum, a problema que temos conceituado como desju- validade da categoria “Direito Alternativo”, cri- ridicização das práticas jurídicas encontráveis ticamos e rejeitamos a perspectiva que esgota no espaço das favelas. nessa categoria as possibilidades de represen- A perspectiva da desjuridicização seria tação e de qualificação jurídica das instituições, aquela que não reconhece os efeitos jurídicos, dos atos, dos procedimentos e das normas produzidos na ordem jurídica estatal atualmen- fundiárias e urbanísticas encontráveis nas fa- te em vigor, por exemplo, por atos de compra velas. Entendemos que tal perspectiva produz e venda realizados perante a Associação de um confinamento indevido desse corpus ins- Moradores de uma determinada favela, não titucional numa região do campo jurídico que assinalando os direitos e obrigações que dele as coloca eternamente entre aspas, lançando emergem, que seriam exigíveis com os ins- dúvidas (essencialmente ideológicas) sobre sua trumentos do Direito Estatal. Nas entrevistas validade e licitude. que realizamos, o depoimento de um corretor De outro lado, a noção de desjuridici- de imóveis, atuante no chamado “mercado zação não se confunde, não implica e não se formal”, pareceu-nos bastante representativo reduz à noção de regulação, em outras pala- dessa perspectiva: em sua avaliação, tais atos vras, afirmarmos a existência de um processo oscilam entre práticas eticamente inadmis- de desjuridicização não significa ou implica a síveis para um corretor – classificando como afirmação da desregulação da região da favela. 394 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro Ao contrário, parece-nos que a intensa regula- fortalecimento do Estado democrático e da ci- ção, que cartografamos em nossas pesquisas, dadania, uma vez que, através dele, confinam- não tem assegurado plenamente, até aqui, a -se as relações jurídicas que interessam aos juridicização das práticas, das instituições e moradores de favelas ao plano que Eduardo das relações jurídicas de interesse imediato dos Carvalho (1991) definiu como o das necessida- moradores de favelas, processo cuja evidência des, impedindo-se que sejam alçados ao plano maior residiria no não reconhecimento dos dos direitos subjetivos e avaliados, percebidos efeitos delas no âmbito do Direito Estatal – o ou representados, juridicamente, como tais. E que observamos, por exemplo, em acórdãos do isso não ocorre a despeito do fato de ser ra- Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (citados cionalmente e razoavelmente possível que se por Magalhães, 2007). Tais posicionamentos chegue a tal conclusão, mediante os procedi- reforçam os atuais obstáculos objetivos ao mentos, já conhecidos e disponibilizados pela exercício pleno dos direitos por parte dos mo- ciência jurídica, e amparados pelas normas já radores de favelas, bem como a visão das fave- positivadas no ordenamento estatal. Ele impor- las como regiões anômicas. Trata-se, portanto, ta num descolamento entre as transformações de um relevante processo de dominação, em na posição das favelas no ordenamento jurídi- funcionamento, especialmente, nas sociedades co estatal e o status jurídico objetivo das suas latino-americanas, no qual determinados fatos instituições. Representaria, assim, um fecha- e relações são juridicamente desqualificados, e mento do Direito Estatal em relação a essas, essa representação seria resistente mesmo ao uma clivagem entre dois mundos jurídicos, de fato de se dispor de um sistema legal e político, modo que se tornaria insuperável o problema tendencialmente, poliárquico, tal como ocorre que verificamos em nossas pesquisas: a forma- no Brasil, a partir de 1988. Assim, não consi- lização da propriedade imobiliária nas favelas, deramos que o problema em tela se resolva, quando feita via Associação de Moradores, não ou decorra, com base em reformas no sistema alcança validade fora da favela; de outro lado, legal estatal, posto que é um problema que aquela proporcionada pelos órgãos estatais transcende esse patamar. Não consideramos, não alcança validade dentro da favela. Nesse também, o enquadramento jurídico dos fatos contexto, ganha sentido a hipótese que a teoria sociais como um movimento estritamente ra- jurídica vem chamando de constitucionalização cional, redutível aos procedimentos dedutivos simbólica (vide Neves, 2003): o maior nível de e/ou lógico-formais, mas, sim, matéria que pos- (à falta de melhor termo) inclusão jurídica das sui uma inexpugnável dimensão ideológica. situações relativas aos moradores de favelas, Embora os procedimentos lógico-formais sejam nos quadros do Direito estatal, corresponderia parte efetiva do pensamento jurídico, eles es- a uma aparência enganosa, uma vez que, em- tariam longe de esgotar a complexidade das bora tenha surgido uma legislação voltada a operações mentais do jurista, o que constituiria tratar, especificamente, das favelas, essa não se uma utopia científica, de caráter racionalista. mostra estruturada a conferir garantias legais O processo de desjuridicização do Direito às relações jurídicas aí constituídas. Em outras da Favela constituiria, assim, um obstáculo ao palavras, teríamos regulação sem emancipação. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 395 Alex Ferreira Magalhães Nesse contexto, o Direito da Favela continua- as normas estatais ou comunitárias. O conjunto ria a se reproduzir com crescente necessidade de dados de que dispomos levou-nos a descar- simbólica de incorporação de artefatos do Di- tar tanto a hipótese da liberdade urbanística, reito Estatal, isto a fim de suprir o permanen- como aquela que encara o crescimento das te déficit de legalidade a que se encontraria favelas como pautado por dinâmicas especula- condenado. Com a desjuridicização, portanto, tivas que seriam, paradoxalmente, mais acen- expande-se o fenômeno da ilegalidade exis- tuadas do que aquelas verificadas nas regiões tencial, que passa do plano dos moradores de tradicionalmente integradas à cidade, vendo-se favelas para o plano das estruturas jurídicas na favela uma espécie de locus de um capita- desenvolvidas na favela. lismo selvagem, que já não teria lugar no restante da cidade. Parece-nos que tal perspectiva baseia-se em idealizações de ambos os espa- Os componentes da regulação das favelas ços urbanos em questão – a favela e, grosso modo, a “não favela”. Buscamos trabalhar com a hipótese de uma regulação contraditória e conflituosa, uma Um dos resultados de nossas pesquisas con- vez que marcada pelo relativo – mas não des- siste na demonstração do caráter regulado das prezível – divórcio entre normas jurídicas esta- favelas, regulação na qual se articulam Direito tais e expectativas normativas dos moradores Estatal e Direito de origem comunitária ou lo- de favelas. De outro lado, se a regulação não cal, não havendo forma jurídica que opere, con- se dá somente por força das normas jurídicas, cretamente, em estado puro, separada de ou- também não se dá, exclusivamente, pelo mer- tras formas de juridicidade e de outras formas cado. O mercado imobiliário, constituído nas de controle social. Muito embora tenhamos favelas, não se mostra nem como um mercado identificado a existência, nas favelas, de uma desregulado – o que o converteria num pro- aspiração ao exercício de faculdades construti- tótipo do mercado perfeito e equilibrado, do vas que, por vezes, não são admitidas pelo or- qual cogitam utopicamente as vertentes mais denamento estatal, tal expectativa não se des- radicais do liberalismo econômico – nem co- dobra num campo marcado por uma caótica mo um mercado isento de algumas caracterís- ausência de regulação ou pelo crescimento de- ticas não mercantis. Isso porque nele operam sordenado, tomados no sentido de inexistência agentes movidos não apenas por determina- de qualquer forma de controle ou limitação de ções de natureza especulativa, não se redu- ordem social. Ao contrário, além dos controles zindo ao clássico homo aeconomicus, o que propriamente jurídicos, interagem outros, de constitui outra construção abstrata em rela- diversas ordens, ditos extrajurídicos (tais como ção aos agentes sociais concretos. Assim, à disponibilidade de recursos, conveniências fa- busca utilitária do maior proveito, articulam- miliares e circunstâncias técnico-construtivas), -se ditames de reciprocidade e de preservação que muitas vezes se revelam mais decisivos e de determinados bens de natureza não patri- determinantes das decisões individuais, do que monial, o que acreditamos não ser, sequer, 396 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro uma característica exclusivamente observável contenção desses mecanismos. Com isso, nos no caso das favelas. afastamos das teorias que interpretam os pro- Por outro lado, observamos a reação cessos sociais, nas favelas, com base na noção negativa dos moradores das favelas diante do de ausência ou carência do Estado, o que reme- controle edilício ensaiado pelo Estado, inclusive teria os moradores de favelas, inescapavelmen- com a possibilidade de resolução desse conflito te, à legalidade de fato dos agentes nela esta- mediante o uso da força. Em nossa perspectiva, belecidos, numa versão moderna do estado de esse fato sinaliza para o que, baseados em San- natureza hobbesiano. Julgamos mais adequado tos, nomeamos como o componente violento, o esforço teórico em se tentar apurar as formas observável em diversos momentos do processo específicas de atuação do Estado nas favelas, de regulação das favelas, no qual visualizamos, as vicissitudes, nuanças e estratégias que esse além desse, as normas costumeiras, oriundas desenvolve diante delas. Consideramos que o dos pactos estabelecidos entre os moradores e, estabelecimento de um ângulo de análise, co- por fim, as próprias normas editadas pelo Esta- mo aquele que aqui propomos, estaria mais ap- do, configurando uma tríade em relação dialé- to a captar e analisar os movimentos dos agen- tica e contraditória. Nossa hipótese é a de que tes desse campo, caminhando numa linha que a importância do componente violento, no caso busca reconhecer o que as favelas objetiva- de cada favela, seria determinada de acordo mente têm, isto é, qual o conteúdo das relações com o status e o perfil de atuação dos agen- sociais que a envolvem, quais as instituições e tes que operam no campo que nelas se confi- agentes que nela interagem, de que modo es- gura. Em outras palavras, dada a importância ses operam, escapando, assim, do viés analítico relativa dos agentes que operam baseados em que procura “conhecê-las” com base naquilo mecanismos violentos – como a boca de fumo que, real ou supostamente, lhes faltaria. e as agências do Estado (não exclusivamente, aquelas de natureza policial) – importância que é dada pelo grau de legitimidade local de outros agentes, que possam representar um contraponto ou alternativa em relação a esses, a capacidade de influenciar – e, no limite, de As constelações entre o estatal e o comunitário e a crítica à perspectiva dualista “contaminar” – as relações estabelecidas nesse local, pode ser maior ou menor. Os dados revelados, por nossa pesquisa, pare- As agências do Estado, na verdade, te- cem reforçar a tese de que as ordens jurídicas riam a capacidade de atuar nos dois pólos que estatal e da favela encontram-se em um contí- acima definimos, quer como um agente que nuo e conflituoso processo de diálogo, havendo pode atuar no sentido de reforçar (pela ação, diversas formas em que uma é condicionada precária ou não, e pela omissão) os mecanis- pela outra, por exemplo, no processo em que as mos violentos de construção e imposição da instituições, rituais e procedimentos, adotados ordem jurídica e urbanística local, quer como no âmbito da favela, constituem-se recorren- agente capaz de intervir como contraponto ou do à incorporação de elementos originários da Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 397 Alex Ferreira Magalhães ordem jurídica estatal. Vemos nesse processo apresentaria a vantagem de melhor levar em um capítulo dos conflitos sociais mais amplos, conta as transformações ocorridas, especial- próprios de sociedades capitalistas como a mente, nas últimas três décadas, em que uma brasileira, isto é, tratar dessas ordens jurídicas série de equipamentos e serviços públicos che- constitui nada mais do que um ângulo para tra- gou às favelas, que culmina com a difusão de tar de como se constitui a ordem social, como políticas públicas de regularização. Tais fatores um todo. Não estamos, pois, diante de duas seriam determinantes de dinâmicas novas, mul- ordens estanques, isoladas entre si, o que re- tiplamente determinadas e, logo, mais com- presentaria uma perspectiva dualista a respeito plexas do que a tradicional noção de exclusão do objeto estudado, perspectiva que refutamos pode comportar. em nossas referências teórico-metodológicas. Nossa crítica ao dualismo também signi- Pode-se afirmar, com maior rigor, que estamos fica que recusamos uma perspectiva moral na diante de uma juridificação híbrida, isto é, o abordagem das duas ordens jurídicas em ar- Direito da Favela, a que aqui nos referimos, re- ticulação, visão que promoveria a associação presenta não uma “outra” ordem, inteiramente intrínseca de virtudes positivas (democráticas, diversa e apartada da estatal – daí porque não liberais e/ou emancipatórias) a uma delas e nos valemos da expressão Direito Alternativo, negativas (autoritárias, opressivas, excluden- adotada em parte da literatura – ou, ainda, de tes), à outra, ou vice-versa. O fato de falarmos uma ordem necessariamente em déficit, peran- de uma ordem jurídica interna à favela não te a estatal, mas de uma ordem jurídica cons- significa que ela seja, necessariamente, me- truída no embate, no diálogo e na contradição lhor ou pior, mais ou menos democrática, do com aquela posta pelo Estado. que a ordem legal estatal. De fato, na ordem Por outro lado, o fato de recusarmos o estatal encontramos uma retórica democráti- dualismo metodológico, acima referido, não se ca mais consistente do que na ordem comu- confunde com a negativa do reconhecimento nitária, bem como instrumentos mediante os da situação de subordinação, à qual as coleti- quais essa ordem democrática pode ser rea- vidades favelizadas encontram-se submetidas, lizada, sobretudo no que tange à legislação posto que a comunicação e os fluxos existen- produzida na esteira da Constituição de 1988. tes, entre essas ordens, são profundamente No entanto, a ordem legal estatal possui uma desiguais, parecendo-nos correta a hipótese de série de contradições no que diz respeito à Santos a respeito da “troca desigual de juridi- regulação das favelas, ensaiando a retomada cidade”, que vigoraria entre Estado e favelas. de instituições – como as do congelamento Nossa recusa do apontado dualismo signifi- urbanístico, da regularização a título precário, ca, diversamente, não recorrermos à noção e da remoção – que não parecem inspirados, de exclusão como ferramenta explicativa dos propriamente, em propósitos democráticos e/ processos sob análise, uma vez que nossa in- ou emancipatórios. terpretação caminha na perspectiva da integra- O dualismo metodológico, que critica- ção subordinada, que nos parece mais acertada mos, parece comparecer em trabalhos acadê- e fértil ao trabalho analítico. Tal perspectiva micos e jornalísticos que tratam do problema da 398 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro não vigência, de fato, do Estado legal e/ou das ciações de Moradores de Favelas, de princípios ambiguidades do funcionamento do sistema bastante assemelhados aos cultivados no âm- legal, como um problema restrito às favelas e bito do Direito estatal que rege os registros às outras regiões, definidas, costumeiramen- imobiliários, constituiria, a nosso ver, a ponta te, como cidade informal. Na verdade, esse do iceberg de um processo maior de apro- é um problema que diz respeito ao conjunto priação das instituições oficiais. Por mais que da cidade e ao Direito Urbanístico de maneira algumas dinâmicas sociais sejam efetivamente geral, este último histórica e recorrentemente duais, e que a própria visão dos moradores de marcado por crônica inefetividade, o que tem favelas, a respeito do espaço em que vivem, se- motivado a hipótese de que não representaria ja, em grande medida, marcada por uma pers- uma área central dos processos de dominação pectiva dualista, tais aspectos não podem ser jurídica e política (Santos, 1982) e/ou de que transportados acriticamente para o plano da não teria sido adequadamente articulado, no teoria social, de forma a determinar a aceita- pacote de intervenções e de direitos básicos, ção do dualismo metodológico, o que compro- que surgem no bojo da formação do Estado meteria seus resultados analíticos. de Bem Estar Social, no caso brasileiro (Cardoso, 2003). Com base nessas hipóteses, preferimos afirmar que o sistema legal, de maneira geral, apresenta graduações em sua efetividade, ao longo do tempo e do espaço social e A qualificação da regulação das favelas: nossas hipóteses em função de diversas circunstâncias, que não se reduzem de maneira alguma aos espaços O debate a respeito da regulação das favelas ditos “informais”, “de exceção”, dentre outras impõe o enfrentamento de algumas questões já propostas. Entre as variáveis condicionan- atinentes à qualificação dessa regulação, o que tes dessa graduação, que pode afetar a medi- dispomos em três dimensões: da e a maneira como as normas legais se im- 1) quais as fontes materiais dessa regulação? plementem, poderíamos citar tanto o aparato 2) de que valores essa regulação estaria imbuída? institucional organizado pelo Estado a fim de 3) qual a especificidade dessa regulação em fazer cumprir as normas estabelecidas, como relação àquela vigente para as demais regiões as estruturas sociais, que podem opor resis- da cidade? tências ou operar como facilitadores. Partimos da hipótese de que a regulação Apesar de alguns moradores de favelas das favelas possui dois pilares – o do Direito fazerem distinções rígidas entre as normas que Estatal e o do que Santos denomina Direito valem dentro e fora da favela, o fato é que o Comunitário – e, mais do que isso, ela decorre, espaço da favela parece ser amplamente re- concretamente, das constelações de juridicida- gulado, bem como, nele, observa-se a presen- des, elaboradas a partir das interações, com- ça relevante de diversas instituições oficiais. O binações e articulações de princípios, regras e caso paradigmático da absorção, pelas Asso- procedimentos, oriundos desses dois campos. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 399 Alex Ferreira Magalhães O Direito Estatal teria por fonte principal o jurídicas, que regulam o campo das favelas, sistema legal – composto pelos atos norma- com as quais buscamos responder às questões tivos, expedidos pelo Legislativo e, também, acima colocadas. Tais hipóteses poderiam ser pelo Poder Executivo –, enquanto o Direito enunciadas, na forma abaixo: Comunitário decorreria de usos e costumes, 1) as mudanças em curso nas favelas, desde elaborados localmente, que se traduzem, por o início do processo de regularização urbanís- exemplo, na concepção de um código de obras tica e fundiária, não indicam a ocorrência de comunitário ou de um sistema comunitário de contestação ou esvaziamento da autoridade formalização da propriedade. Essas estruturas e/ou da legitimidade da Associação de Mora- regulatórias, provavelmente, estão relaciona- dores, no desempenho da função de controle e das a práticas jurídicas trazidas dos locais de formalização da propriedade imobiliária, isto é, origem dos moradores de favelas, visto que um de registro, reconhecimento e publicidade dos grande contingente deles é natural de outras atos de aquisição e transmissão de imóveis, na regiões do Estado do Rio de Janeiro e do país, escala local. As tendências captadas não apon- ou mesmo de outras favelas. tam para a dissolução ou superação desse sis- No caso da cidade do Rio de Janeiro, a tema, que, em tese, pode vir a se combinar com última década se caracteriza pelo fato de a Pre- um sistema estruturado pela Prefeitura e/ou feitura iniciar um investimento institucional no com outros sistemas (estruturados em outros sentido de estabelecer uma legislação urbanís- órgãos públicos, como os cartórios ou agências tica voltada às favelas, na esteira dos progra- de serviços públicos), aos quais os moradores mas de urbanização e regularização, o que im- recorram a partir de suas conveniências, os poria a negociação de novos limites e frontei- quais têm operado, até aqui, como mecanismos ras com o Direito Comunitário. Nesse contexto, preparatórios ou complementares àquele geri- emergem questões que dizem respeito: do pela Associação. • aos significados dessa legislação editada pelo município; • aos impactos do advento dessa legislação sobre os usos e pactos pré-estabelecidos; • aos impactos do advento dessa legislação sobre as percepções e sensibilidades dos moradores, com relação àquilo que constituiriam seus direitos sobre o espaço em que vivem; 2) a hipótese anterior não significa afirmar a não importância dos sistemas de formalização da propriedade imobiliária que coexistem com aquele centrado na Associação de Moradores, que podem ser quantitativa e qualitativamente tão expressivos quanto esse. 3) os diversos sistemas de formalização não parecem operar de maneira competitiva ou an- • ao que resultaria, em termos de dinâmicas tinômica entre si, mas, ao contrário, parecem de regulação, da dialética entre as novas nor- ser mutuamente dependentes, de forma que mas legais e as normas comunitárias, tradicio- o advento do sistema centrado e gerido pelo nalmente vigentes. Estado poderia vir a fortalecer, indiretamente, Resultaram de nossas pesquisas algumas aquele centrado na Associação de Moradores, hipóteses relacionadas ao que seria o estado até mesmo porque aquele se organiza, em boa atual das interações entre as diversas formas medida, apoiado nesse. 400 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro 4) sob determinados aspectos, o Direito da venda de imóveis. Em ambos, não se verifica Favela tem se mostrado mais formal ou solene uma regulamentação extensa, meticulosa, de- do que o Direito Estatal, de modo que não se re- talhada e ampla de seu objeto. Ambas estabe- vela verdadeira, para todos os casos, a hipótese lecem normas sumárias e simplificadas, sobre- comum segundo a qual as práticas jurídicas tudo se comparadas, de um lado, à legislação dos segmentos subalternos seriam, tendencial- urbanística em vigor, relativa aos bairros de mente, menos formais do que aquelas que se entorno das favelas, e, de outro, às escrituras baseiam mais estritamente no Direito estatal, públicas de compra e venda, elaboradas pelos sistema cuja dominação seria estruturalmente notários, para os imóveis regularmente matri- assentada em mecanismos burocráticos. Tal hi- culados no registro imobiliário. O espírito que pótese se veria reforçada, no contexto das re- parece estar patenteado nos documentos for- centes reformas do Direito Estatal, no sentido de mais, de caráter legal e abstrato ou contratual sua deformalização, verificando-se movimento e particular, seria o da regulação mínima das contrário – incorporação de formalidades não relações jurídicas estabelecidas no âmbito da utilizadas outrora – nas práticas jurídicas mais favela. Assim, a colocação de Santos, segundo recentes dos moradores das favelas. a qual o padrão de regulação do Direito da Fa- 5) em que pese o fato de o sistema de for- vela seria marcado por uma visão de grande malização da propriedade predominante nas escala, plena de detalhes e discursos particula- favelas valer-se de documentação escrita, não rísticos, não se objetiva em termos de uma re- se pode afirmar que o mesmo seja baseado em gulação minuciosa, mas como uma perspectiva fontes documentais, configurando um sistema mais contextualizada a respeito dos conflitos aparentemente burocrático, no qual, em verda- locais, com baixo ou nenhum recurso aos tipos de, as bases documentais possuem importân- gerais e abstratos que marcam o Direito Esta- cia secundária. Nesse sistema, o aspecto fun- tal, de menor escala. damental residiria na tradição oral vigente no 7) a força adquirida pelas instituições do local e nos conhecimentos prévios, acumulados Direito da Favela na regulação local seria de pelas lideranças comunitárias, a respeito dos tal ordem que induziria à sua observância até moradores, mecanismo cuja manutenção seria mesmo os agentes do Estado e outros agentes assegurada pelo capital social e pelas redes so- externos, teoricamente comprometidos com ciais aí estabelecidas. uma atuação conforme o Direito Estatal, levan- 6) há um paralelismo entre a regulação es- do-os a incorporar noções que seriam exclusi- tatal, contida na legislação urbanística aprova- vas da institucionalidade das favelas, num mo- da pela Prefeitura, e aquela contida nos formu- vimento de acoplamento entre instituições dos lários padronizados, utilizados pela Associação dois campos jurídicos, o que pode estar sendo de Moradores para as operações de compra e motivado por razões de ordem pragmática. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 401 Alex Ferreira Magalhães A troca desigual de juridicidades: condicionamentos do Direito da Favela pelo Estatal No segundo caso, incluiríamos a compra e venda de imóvel realizada verbalmente, nos negócios envolvendo parentes ou na chamada “compra feita na Light”, bem como o senso comum segundo o qual a Associação de Moradores seria uma instituição pública e não privada. No que concerne ao debate a respeito das in- Logo, o Termo de Transferência de Benfeitoria, fluências do Direito Estatal na conformação do expedido por essa, é visto como documento Direito da Favela, observamos a coexistência oficial, hipótese que não deixa de se incluir, de três dinâmicas distintas: também, no caso nº 3, acima identificado. 1) certas instituições do Direito Estatal são No terceiro caso, podemos incluir o status apropriadas e reproduzidas, pelo Direito da conferido ao documento “registrado em cartó- Favela, como símbolos da oficialidade estatal, rio”, que muitas vezes conta, tão somente, com que estariam estampados nesse; um reconhecimento de firma, ao qual se atribui 2) no Direito da Favela criam-se instituições uma superioridade sobre os documentos sem contrastantes com aquelas do Direito Estatal, essa condição, valor que esse ato não possui, incapazes de serem aceitas como válidas, à luz se encarado, exclusivamente, sob o ângulo do das normas nesse estabelecidas; Direito estatal. 3) no Direito da Favela opera-se uma resig- Essas três espécies de influência do Direi- nificação (isto é, a produção de novos senti- to Estatal sobre o da Favela podem se poten- dos) de instituições criadas no âmbito do Di- cializar pelo fluxo, para a favela, de moradores reito Estatal. vindos de áreas externas a ela, isto é, que resi- No primeiro caso, incluiríamos os casos diram fora da favela e que se orientam pelos (1) da continuidade registrária e da obrigato- padrões de sociabilidade predominantes nas riedade da matrícula (que evidenciam que os regiões da cidade classificadas como bairros. procedimentos da Associação de Moradores Com isso, começariam a ser transpostas, para vão num sentido assemelhado àqueles que a favela, as referências jurídicas predominantes a lei determina para os registradores imobi- em outros espaços urbanos, contribuindo para liários); (2) da utilização de expressões como acelerar as transformações das práticas jurídi- valor venal, a fim de designar o valor do imó- cas comunitárias. vel legalizado, conforme a estimativa de seu Outra hipótese fértil no sentido de com- titular, ou legalização, na nomenclatura do do- preender e explicar as analogias entre ins- cumento em que se registra o imóvel, perante tituições estatais e aquelas da favela nos é a associação, o que sugere uma valorização oferecida na obra de Norbert Elias, na qual se moral da condição de legalidade. Esses seriam registraram “as práticas de imitação que le- alguns dos casos mais institucionalizados, aos varam pobres europeus de muitas gerações a quais poderiam ser agregados outros, de apro- se espelharem em figurinos aristocráticos ou priação mais recente, e não tão estabilizados socialmente mais elevados que o seu” (Car- nas práticas locais. valho, 2009), configurando um movimento de 402 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro emulação de cima para baixo. Os dados de nos- Uma hipótese que nos parece mais rudi- sas pesquisas apontam na direção da operação mentar, a respeito da questão colocada, afirma- de processos de comunicação, de alguns rituais ria que as semelhanças em tela constituiriam e procedimentos legais definidos pelo Estado, uma espécie de necessidade lógica e/ou uma aos costumes vigentes na favela, hoje menos necessidade operacional, isto é, as normas es- discreta e imperceptível do que em contextos tatais, incorporadas à prática jurídica dos mo- passados, não merecendo sequer o rótulo de radores de favelas, decorreriam do bom senso um processo novo, uma vez que já estaria em na administração dos negócios imobiliários, curso há algum tempo. A despeito dos proces- sem o qual essa perderia sua racionalidade. sos, históricos e estruturais, de segregação so- Mais forte, no entanto, parece-nos ser a pers- cioespacial, tal fator não tem sido impeditivo pectiva que toma esse movimento, de emula- de que haja certo intercâmbio e/ou apropria- ção e de reapropriação das instituições esta- ção, de instituições oficiais do Estado, por parte tais, como estratégia, talvez não rigorosamente das coletividades favelizadas. O processo opos- planejada, de pavimentação das relações da fa- to também ocorreria, porém, possivelmente, em vela com os mundos do Estado e da legalidade, escala menor e de uma maneira mais racionali- conferindo, assim, maior força à sua posição. zada, exprimindo-se, por exemplo, no princípio Tratar-se-ia de uma via de acesso à cidadania, do respeito à tipicidade local nas intervenções desenvolvida pelos segmentos sociais faveli- do Estado em favelas, princípio incorporado ao zados, que, por meio da apropriação das ins- Plano Diretor e à legislação específica, para tituições do Estado, buscaria legitimar, interna as favelas cariocas. Assim, as favelas estariam e externamente, suas próprias instituições. Tal mais integradas à vida social do que aparen- hipótese confirmaria a percepção clássica do tariam, à primeira vista, com o que se reitera a poder simbólico do Direito Estatal nas relações crítica à interpretação dualista da sociedade. À sociais modernas e contemporâneas, reconhe- medida que as estruturas jurídicas internas das cida tanto por Santos, como por outros cientis- favelas se institucionalizam, elas parecem ten- tas sociais (v. g., Bourdieu, 2004), que induziria der a absorver algumas técnicas e instrumentos os mais diversos agentes sociais (não somente de administração da vida coletiva incorporadas aqueles das favelas, portanto) a buscarem, sis- ao ordenamento estatal, apropriadas, há mais tematicamente, recobrir legalmente seus inte- tempo, pelos agentes extralocais. Cogitamos resses e instituições, produzindo uma narrativa de tal processo sem deixar de frisar, conforme jurídica a respeito deles, inspirada na institucio- acima colocado, que ele ocorre em paralelo e nalidade jurídica dominante – aquela oriunda em combinação com pelo menos outros dois, do Estado. Em nossas pesquisas, deparamo-nos que identificamos como processos de resignifi- com uma série dessas narrativas, nas quais os cação das instituições estatais e como criações entrevistados (de moradores de favelas a téc- originais da experiência jurídica da favela, que nicos da Prefeitura) elaboravam suas próprias assinalam o fato de o Direito Comunitário não leituras, representações e interpretações acerca se resumir a uma cópia “de segunda mão” do daquilo que figuraria na legislação em vigor, as Direito estatal. quais soavam para nós, enquanto advogados, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 403 Alex Ferreira Magalhães como noções equivocadas e sem suporte legal cariocas, os quais, a princípio, possuíam vín- objetivo, mas que demandam serem olhadas culos com instituições externas a elas,10 e que, como resultado do processo social de apro- mais recentemente, passaram a se estabele- priação jurídica, a que aqui nos referimos. Uma cer na favela ou mesmo a serem moradores questão teórica, a ser explorada futuramente, e lideranças comunitárias, num processo de no sentido do aprimoramento teórico da hipó- progressiva internalização do capital técnico tese que aqui ensaiamos, consistiria em discuti- do Direito. Um dos casos mais emblemáticos -la à luz de alguns conceitos, elaborados no e remotos que encontramos recai sobre a fi- âmbito do pensamento social brasileiro, a fim gura de Magarinos Torres, que, ao longo das de dar conta das relações entre dominantes e décadas de 1950 e 1960, além de advogado, subalternos no sistema social. foi um importante presidente de Associação A similitude de procedimentos aqui de- de Moradores na favela da Maré, tendo lide- batida, a princípio, surpreendeu-nos, na medi- rado e organizado os processos de ocupação e da em que não supúnhamos que as lideranças parcelamento do solo em áreas como Parque comunitárias tivessem qualquer formação ju- União e Rubens Vaz, além de ter sido quadro rídica. No entanto, apuramos, em mais de um do PCB. dos casos estudados, que antigas lideranças A questão da participação de advogados comunitárias – ex-presidentes e ex-diretores – em movimentos comunitários de favelas, e sua haviam cursado faculdades de Direito, alguns contribuição com esses movimentos no senti- deles tendo obtido inscrição nos quadros da do da instrumentação jurídica das lutas dos OAB e encontrando-se em franca atuação ad- moradores dessas localidades, afigura-se como vocatícia. No período recente, tem aumentado outra dentre as questões que resultaram de a presença de profissionais do Direito nas fave- nossas pesquisas, e que ficam em aberto para las. Numa delas, verificamos que uma advoga- sua retomada em pesquisas futuras. da aí estabeleceu seu escritório, que lá funcio- Diante do exposto, chegamos às seguin- na há quase dois anos, tendo o projeto de abrir tes proposições gerais, com relação às influên- uma sucursal em favela vizinha. No mesmo lo- cias do Direito Estatal, na conformação do Di- cal, a Associação de Moradores oferece orien- reito da Favela: tação jurídica gratuita aos moradores, através a) as leis do Estado possuem uma vigência de um advogado que faz plantões semanais na relativa nas favelas, na medida em que (1) en- sede da própria associação. Por fim, identifica- contram estruturas jurídicas que não se con- mos a atuação de três corretores imobiliários formam facilmente às suas disposições, (2) o nessa mesma favela, um deles morador do investimento institucional do Estado, em sua local, além de ex-dirigente associativo e atual efetivação, revela-se, muitas vezes, limitado, pastor protestante. Em outras localidades, ob- e (3) a debilidade de espaços públicos como servamos que advogados integram a própria fontes produtoras da normatividade estatal diretoria da Associação de Moradores. Nossas recém-estabelecida cria um déficit considerá- pesquisas legaram-nos a percepção de que é vel entre os comandos legais e as expectati- antiga a presença de advogados nas favelas vas normativas dos moradores de favelas. 404 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro b) se, em parte, o Direito da Favela absorve pós-1988. Contudo, a sensibilidade jurídica e/ou importa as instituições estatais, a análi- comunitária, em alguns aspectos, estrutura-se se deve igualmente estar atenta ao processo com base em noções como a de tratamento inverso, no qual são as leis da favela que “en- equânime e isonômico de todos os moradores tram” no Estado, passando os seus agentes a da favela, bem como nela adquire relevância a operar e apoiar sua atuação nas instituições consideração do estado de necessidade de de- de origem comunitária. Muito embora se tra- terminados agentes, o que justificaria certa fle- te de uma “troca desigual de juridicidade”, xibilidade, na exigência das obrigações a eles como afirma Santos, há que se ter em vista atribuídas. Nesses casos, podemos afirmar que que se trata de um processo dialético ou “de o código valorativo adotado é, em boa parte, mão dupla”, no qual um sistema se alimenta, harmônico com aquele que seria próprio do Es- em parte, do outro. Tanto o Estado chegou às tado democrático. favelas, quanto aquelas, em diferente medida, estão nesse. e) não encontramos evidências que deem suporte adequado à hipótese segundo a qual c) pelas razões indicadas acima, as normas as favelas se caracterizam como regiões em urbanísticas promulgadas pelo Estado têm se que as relações jurídicas estariam dominadas, revelado escassamente efetivas no espaço das de maneira geral, por formas privatizadas de favelas, assim como ocorre em outras regiões regulação social, muito embora possam ser en- urbanas. A diferença, analiticamente relevante, contradas situações concretas que evocariam entre os dois casos, seria dada pelo histórico esse padrão. não reconhecimento dos moradores de favelas como agentes numa relação política com o Estado; são encarados, antes, como um grupo que deve ser educado e/ou “culturalmente reformado”, no sentido do cumprimento da normatividade estatal, o que configura uma negativa indireta de faculdades próprias da cidadania, a exemplo do poder colocar em questão essa própria normatividade. Tal problema se veria agravado em função de a regulação estatal As políticas de regularização urbanística e fundiária: o que têm representado e o que podem representar, na redefinição da regulação das favelas operar, no caso das favelas, numa região que ainda apresenta déficits consideráveis no que Consideramos que nossas pesquisas integram concerne aos patamares mínimos de qualidade o esforço coletivo de avaliar, sistematicamen- urbanística da moradia. te, as transformações no tecido urbano intro- d) não encontramos evidências de que a duzidas pelas políticas de urbanização e regu- normatividade, presente no caso das favelas larização urbanística e fundiária, ora em curso estudadas, caracterize-se por traços marcan- em escala internacional e com status de polí- tes de valores democráticos e cidadãos, que tica urbana prioritária, contribuindo, assim, seriam estruturantes do ordenamento estatal para seu aprimoramento. Como fator distintivo Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 405 Alex Ferreira Magalhães das demais avaliações já realizadas, aquela a controlar e intermediar suas transferências, que tencionamos desenvolver teria a singula- concomitantemente aos sistemas de controle e ridade de dirigir seu foco a um dos aspectos registro mantidos pela Prefeitura. da intervenção do Estado nas favelas, que Por outro lado, a introdução de práticas nelas se materializa, consistente na tentativa jurídicas sob a inspiração direta do Direito Es- 11 tatal tem redundado no acoplamento dessas Isso tem sido buscado, de um lado, mediante às práticas anteriormente vigentes, de origem a introdução de um sistema de formalização comunitária, numa combinação de práticas vi- da propriedade, organizado e validado, pelo gentes dentro e fora da favela, constelando-se Direito Estatal, e, de outro, mediante a edição os instrumentos jurídicos estatais e comunitá- de legislação urbanística específica para cada rios. Assim, o documento comprobatório das favela, sucedida de instalação do respectivo alienações de imóveis, expedido pelas Asso- órgão de orientação e controle. ciações de Moradores, adquire idêntico status de promover seu reordenamento jurídico. Quanto ao aspecto da formalização e efeito prático em relação à escritura lavrada da propriedade, observamos que o início do em cartório de notas – comumente chamada processo de regularização não implicou o de- de escritura definitiva – representando ora um saparecimento ou refluxo dos mecanismos equivalente, ora uma alternativa em relação a de formalização da propriedade. Continuam essa. Assim, a introdução nas favelas dos con- a ocorrer aquisições – da propriedade ou, ao tratos de Promessa de Compra e Venda, a fim menos, dos direitos possessórios – mediante de instrumentalizar as operações imobiliárias compra, doação, empréstimo, locação, suces- com pagamento parcelado (o que se deve à são hereditária e uniões conjugais. A ação do atuação dos corretores imobiliários), não tem Estado viria no sentido de confirmar, e não de conduzido à substituição ou diluição do proce- quebrar, a cadeia dominial constituída des- dimento típico, adotado localmente até então. de as origens da favela, estruturando-se um As alternativas abertas para a realização da sistema estatal a partir daquele organizado operação de venda ficam à escolha do compra- anteriormente, com os recursos internos das dor, pois é dele o interesse da prova da aquisi- organizações dos moradores de favela. Para ção, bem como será dele o ônus de arcar com muitos moradores, a introdução de um siste- os custos inerentes à alternativa que escolher, o ma estatal de reconhecimento das proprieda- que representa uma inversão da lógica vigente des imobiliárias é aguardado como um reforço nas operações do chamado mercado formal, e não como substituição do sistema comuni- no qual se costuma afirmar que “é o vendedor tário. Mesmo os imóveis construídos pela Pre- quem dita a lei do contrato”. feitura, que a princípio estariam sujeitos a um Anotamos uma série de circunstâncias sistema de titulação exclusivamente estatal, em que o Estado se apóia na institucionalida- não deixam de ser atraídos e englobados pelo de das favelas a fim de desenvolver as ações sistema das instituições locais: em curto perío- que lhe cabem: os garis comunitários; o car- do de tempo, terminam por serem cadastra- teiro comunitário; a entrega de intimações ju- dos na Associação de Moradores, que passa diciais (serviços mantidos pela Associação de 406 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro Moradores, à míngua de qualquer convênio favor, deve-se atentar, por outro lado, para os com os órgãos estatais competentes); a requi- sinais contidos nos movimentos contrários aos sição judicial (dirigida à Associação de Morado- projetos estatais, muitas vezes apressadamente res) de informações a respeito de imóveis situa- desqualificados, conforme verificamos nas pu- dos na favela; as ordens judiciais no sentido de blicações oficiais da Prefeitura do Rio de Janei- que se promova (nos registros da associação) a ro (a exemplo de Rio de Janeiro, 2008) e mes- partilha de imóveis de casal que se divorciou, mo em algumas entrevistas com seus agentes. tal como é feito em relação aos cartórios do re- Tais movimentos são indicativos de que muito gistro imobiliário. embora intervenções de urbanização e regu- Quanto ao aspecto da titulação da pro- larização sejam, de maneira geral, desejáveis, priedade, prometida pelo Estado, no processo isso não autoriza a supressão do complexo e de regularização – à qual os moradores se refe- necessário debate a respeito dos interesses que rem como “passar a escritura da casa” – muito estaria concretamente atendendo, bem como embora os moradores de favelas costumem ser de seu modus faciendi, o que exige que a aná- enfáticos em afirmar seu interesse em que tal lise desça aos pormenores de seus procedimen- medida seja implementada – o que sugeriria tos e considere as inúmeras questões que aí se a idéia de que ela seria, no mínimo, algo mo- abrem. Nos casos que estudamos, e mesmo em ralmente válido – também avaliam, por outro outros citados na literatura especializada, ob- lado, que a eficácia dessa medida será pequena servamos que os movimentos dos moradores caso não acompanhada de outras, no sentido da favela mostram que os mesmos pretendem de garantir a efetiva segurança da posse. Po- assegurar alguns valores que podem não es- demos afirmar que um dos desafios para as tar contidos nos projetos urbanísticos, não se políticas de regularização, na Cidade do Rio de reduzindo suas expectativas à segurança da Janeiro, consistiria em propiciar uma titulação posse e à dotação de infraestruturas e serviços que se revele eficaz tanto para dentro da fave- públicos, conquanto tais medidas sejam de ine- la – considerando-se as circunstâncias de sua gável relevância. Tais movimentos reafirmam ordem interna – quanto para fora dela. Os me- que, mesmo em meio à precariedade física e canismos de formalização da propriedade de- urbanística, existem determinadas conquistas senvolvidos nas favelas, muito embora tenham e aquisições que também estão em jogo, nos cumprido um importante papel na estabiliza- momentos em que se implantam projetos ur- ção das relações sociais referentes ao acesso à banísticos. Assim, a não consideração atenta terra e à moradia, em geral defrontam-se com de tais valores constituirá, fatalmente, objeto a última das duas limitações acima referidas. de conflitos e resistências, nem sempre inter- Se é passível de crítica a concepção de pretados corretamente, uma vez que, frequen- que os moradores de favela seriam portadores temente, atribuídos a qualidades negativas dos de uma cultura autóctone, que buscaria se re- moradores e/ou de suas respectivas lideranças. produzir sem a interferência do Estado, sendo No tocante ao Direito de Construir, tam- mais verossímil afirmar que possuiriam a ex- bém se coloca de maneira bastante evidencia- pectativa de que o Estado intervenha em seu da o projeto de reordenamento jurídico das Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 407 Alex Ferreira Magalhães favelas por parte do Estado. Muito embora os enumerar (1) a desorganização dos controles processos de controle, estabelecidos pela Pre- comunitários preexistentes à intervenção esta- feitura, busquem, em alguma medida, se arti- tal; (2) a tendência à expropriação dos espaços cular com as forças internas da favela – v. g. públicos; (3) a imposição de novas normas de imbricando-se com a Associação de Moradores maneira apartada de processos consistentes e valendo-se de instrumentos como os agentes de negociação e deliberação; e (4) o recurso a comunitários e representantes de rua – não há expedientes de violência simbólica, tais como como esconder a gama de conflitos envolvidos a proposta dita “socioeducativa” e de “reedu- nessa proposta. Dado o alcance considerável cação cultural” (cf. Rio de Janeiro, 2008), aos desses conflitos, os mecanismos de imbricação quais podem eventualmente se somar aqueles comunitária da regulação e controle urbanísti- de coação direta, como a realização de demoli- co afiguram-se-nos indiscutíveis mecanismos ções. Tudo isso transcorre num quadro em que de amortecimento desses conflitos, a fim de mi- não se acena com a realização de investimen- nimizar as dificuldades inerentes ao processo tos permanentes em infraestruturas e serviços de reordenamento, fatalmente percebidas pe- nas favelas objeto dessa regulação – aquelas los agentes públicos logo no primeiro momen- que já receberam obras de urbanização – que to de sua implantação. Tais dificuldades não se venham, ao menos, assegurar a manutenção reduzem às resistências opostas, pelos morado- dos benefícios implantados quando da exe- res, à implementação da nova ordem urbanís- cução do projeto de urbanização. Em suma, tica projetada para o local em que vivem, mas trata-se de uma combinação de fatores na qual são agravadas pelos problemas de ordem polí- se acentua o aspecto regulador da ação do tico-administrativa, que também acompanham Estado, não se abrindo espaços para medidas a trajetória dos programas para favelas desde de caráter emancipatório, a essa altura funda- seu surgimento. Parece-nos haver um grande mentais não somente para atender demandas descompasso entre a ousadia da proposta de acumuladas, como para modificar a imagem, já reordenamento territorial e os meios e condi- muito desgastada, de que o Estado goza nas ções objetivas disponíveis para tanto, o que faz favelas, não se vislumbrando perspectivas de com que sejam incertos os efeitos dos mencio- superação dos problemas reais, relativos ao nados programas. seu desenvolvimento como partes da cidade. Entre os efeitos perceptíveis que a inter- Nesse quadro, as estratégias defensivas e rea- venção do Estado nas favelas cariocas estaria tivas ora em curso – tipificadas, de um lado, engendrando, registramos alguns classificáveis pelo discurso da irregularidade articulado pelos como positivos – alguma orientação técnico- agentes públicos, e, de outro, pelo discurso do -construtiva, abertura de mais um possível desconhecimento manejado pelos moradores canal de processamento de litígios relativos de favelas – podem assumir tons mais graves, ao aproveitamento do espaço, e prevenção que denotem o recrudescimento desse conflito. de acidentes – ao lado de outros, bastan- Conforme já debatido, concebemos as te preocupan tes e que configurariam seu relações jurídicas, nas favelas, como sendo legado negativo. Entre esses últimos, podemos marcadas por três distintas vertentes: a) os 408 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro usos e costumes locais; b) as apropriações do ● vertente “b”: ocorreria de maneira bastan- sistema legal estatal; c) as imposições e/ou te seletiva, uma vez que estaria se aprofundan- soluções arbitrárias. Uma das questões que se do o gap entre a ordem legal e as expectativas colocam, a partir do advento dos programas normativas dos moradores da favela, que po- de regularização, consistiria em saber que im- deria realimentar dinâmicas como as do com- pacto esses programas estão produzindo so- portamento ambivalente diante da lei (a exem- bre esses três determinantes. Na medida em plo do aludido “discurso do desconhecimen- que alguns dados apontam para uma inter- to”), ou, ainda, as apropriações com caráter de venção do Estado caracterizada pelo recurso à resignificação, a fim de filtrar a normatividade violência simbólica, tendo pouca consistência estatal de seus aspectos mais contraditórios os espaços públicos de negociação e delibera- com as instituições, interesses e expectativas ção do novo ordenamento anunciado para as dos mesmos moradores; favelas, poderíamos prognosticar os seguintes possíveis resultados: ● vertente “c”: poderia, paradoxalmente, se ver reforçada com a intervenção do Estado, vertente “a”: seria enfraquecida, uma vez uma vez que constitui um elemento integran- que o processo de instituição da legislação não te da própria tônica (ou metodologia) de sua buscou dialogar com ela, bem como foi estru- operacionalização, funcionando como pedago- turado de maneira a repelir e abolir tais parâ- gia violenta e excludente, que engendraria os metros, considerados como fonte de práticas processos classificados na literatura como de negativas com relação aos espaços públicos; privatização do Direito. ● Alex Ferreira Magalhães Advogado. Especialista em Sociologia Urbana, Mestre em Direito da Cidade, Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Consultor Jurídico. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 409 Alex Ferreira Magalhães Notas (1) Conceito que extraímos da obra de Guillermo O´Donnell, que o define como a parte do Estado que é personificada num sistema de leis, que, penetrando e estruturando a sociedade como um todo, fornece um quadro básico para as a vidades sociais, conferindo rela va estabilidade e previsibilidade às relações sociais (O’Donnell, 1998, pp. 45-46). O Estado legal é um dos pilares da aposta democrática, que não pode prescindir desse instrumento para sua constituição e perpetuação. Assim, para falar em democracia deve-se ter em conta não apenas aspectos rela vos ao regime polí co, como também aspectos rela vos ao Estado. Requer-se, portanto, que “as pessoas devam ser capazes de confiar na lei quando agem, [...] que ela [a lei] exista, que seja conhecível, que suas implicações sejam rela vamente determinadas e que se possa esperar com confiança que ela estabeleça limites dentro dos quais os principais atores, incluindo-se o governo, agirão” (O’Donnell, 1998, p. 50). (2) Trata-se de uma dis nção inspirada na obra de Foucault. O poder cósmico consis ria naquele poder centralizado, fisicamente localizado em instituições formais e hierarquicamente organizado; é o macropoder que encontra sua realização mais completa no poder do Estado. O poder caósmico alude aos micropoderes presentes na família, na escola, Igreja, clube, etc., um poder sem centro, atomizado, móvel, múltiplo, sem localização específica (cf. Santos, 1982, p. 27). (3) Esta nota peculiar se relaciona diretamente às colocações de Santos a respeito das promessas não cumpridas da modernidade, incorporadas nas Cons tuições polí cas modernas, e conver das em direitos da cidadania, e que estão sendo literalmente abandonadas no contexto da pósmodernidade, sendo essa uma das questões de fundo que corta transversalmente as reflexões desse autor (especialmente Santos, 2001; 2004). (4) Colocação que nos parece ser uma referência às chamadas fontes formais do Direito. (5) Esta também é uma categoria que, em outros momentos, é cri cada por Santos, pois também afirma que não faria sentido considerar o Direito de Pasárgada como não oficial na medida em que este – e quaisquer outras formas jurídicas não estatais – são capazes de cons tuir sua própria oficialidade (Santos, 1996, p. 261). (6) Conforme definição do Ministério do Desenvolvimento Social (vide http://www.mds.gov.br/ programas/rede-suas/protecao-social-basica/paif), o CRAS – Centro de Referência de Assistência Social – “é uma unidade pública da polí ca de assistência social, de base municipal, integrante do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), localizado em áreas com maiores índices de vulnerabilidade e risco social, des nado à prestação de serviços e programas socioassistenciais de proteção social básica às famílias e indivíduos, à ar culação destes serviços no seu território de abrangência, e a uma atuação intersetorial na perspectiva de potencializar a proteção social”. Correspondem aos an gos CEMASI (Centros Municipais de Assistência Social Integrada), cuja nomenclatura foi alterada pela Prefeitura em 2006, seguindo as determinações da Polí ca Nacional de Assistência Social. 410 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro (7) Conforme o Ministério da Saúde (vide http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/ area.cfm?id_area=149), o PSF – Programa de Saúde da Família – cons tui uma estratégia de reorientação do modelo assistencial, operacionalizado mediante a implantação de equipes mul profissionais em unidades básicas de saúde, que ficam responsáveis pelo acompanhamento de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada. As equipes atuam com ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças e agravos mais frequentes, e na manutenção da saúde desta comunidade. No estado do Rio de Janeiro, esse programa foi antecedido por um outro – o Projeto Médico de Família – desenvolvido por algumas prefeituras, com o qual possui algumas semelhanças, muito embora algumas análises indiquem que esse úl mo levasse melhor em conta “o lugar, suas lutas, seu saber, suas necessidades, os modos de agir do lugar, suas lógicas de reflexão, seus modos de cuidar (Ozório, 2005, pp. 131-132). (8) Após a fase inicial de projetos, as obras do Programa Favela-Bairro veram início em 1995, em 16 favelas distribuídas pelas cinco Áreas de Planejamento (APs) definidas no Plano Diretor. As primeiras obras são inauguradas em fins de 1996, e, nesse mesmo ano, foram concebidos e ins tuídos oficialmente os Postos de Orientação Urbanís ca e Social (POUSOs) nas favelas que recebiam as obras, que começaram a funcionar efe vamente a par r de 1997. Foram criados com os obje vos de “orientar a execução de novas construções ou ampliações das existentes, bem como o uso dos equipamentos públicos implantados” e de “exercer fiscalização urbanís ca e edilícia” (art. 1º do Decreto 15.259). A fiscalização a ser exercida pelos POUSOs deverá “controlar a expansão das edificações (tanto horizontal, como verticalmente), de forma que os equipamentos implantados não se tornem insuficientes” (art. 2º, III do mesmo Decreto), buscando evitar a “refavelização” das áreas atendidas por projetos de urbanização, procurando dar-se um des no melhor a elas após sua urbanização (Rio de Janeiro, 2008, p. 12). Esse ponto de vista, encampado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, parte do pressuposto, a nosso ver analiticamente discutível, de que, com as obras de urbanização, os locais que as receberam efe vamente deixaram de configurar-se como favelas, do contrário não teria sen do falar-se em refavelização. Os POUSOs cons tuem, ainda, o veículo de ar culação das ações do Município na favela, cabendo-lhes subsidiar os órgãos competentes para a elaboração da legislação edilícia a ser estabelecida para cada uma das favelas que receberam as obras de urbanização. As equipes de cada posto devem ser compostas por profissionais de nível superior (um arquiteto ou engenheiro e um profissional da área social), além de agentes comunitários. No caso da cidade do Rio de Janeiro, falar-se em regulação das favelas pelo Estado implica uma menção obrigatória à trajetória desses organismos, que cons tuem um dos mais relevantes legados deixados pela execução de obras de urbanização. (9) Santos (2001, p. 139) recepciona da obra de Claus Offe a clássica periodização do capitalismo em liberal (cobre todo o século XIX), organizado (desde fins do século XIX, a ngindo seu ápice entre as duas guerras e nas duas décadas do pós-2ª guerra) e desorganizado (desde fins da década de 1960 até o momento atual). O período do capitalismo desorganizado seria marcado pela consciência de quatro ideias: nada que a modernidade concre zou é irreversível; não há garan a de permanência para aquilo que da modernidade deva ser preservado; as promessas não cumpridas ainda continuarão por cumprir; o déficit da modernidade entre promessas e realizações é maior do que o imaginado no período anterior (Santos, 2001, p. 139). Santos reconhece que essa denominação é traiçoeira na medida que o capitalismo contemporâneo estaria mais organizado do que nunca, devendo ser recebida como uma reconstituição das formas de regulação social do período anterior num nível de coerência muito mais baixo; como crescente desajuste e autoritarismo dos aparelhos burocrá cos; como ruptura do pacto Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 411 Alex Ferreira Magalhães anterior envolvendo Estado, classes trabalhadoras e classes empresariais; e/ou como crise dos paradigmas fordista e keynesiano (Santos, 2001, pp. 153-164). (10) Tais como a Fundação Leão XIII, a Pastoral de Favelas da Arquidiocese do Rio de Janeiro, a Ordem dos Advogados do Brasil, a Fundação Bento Rubião e o Projeto Balcão de Direitos, man do pelo movimento Viva Rio. (11) Optamos por u lizar essa categoria, e não a categoria “ordenamento”, de acordo com nossas premissas a respeito do caráter regulado, e não anômico ou de “folha de papel em branco”, das favelas. Referências BOURDIEU, P. (2004). “A força do Direito: elementos para uma sociologia do campo jurídico”. In: BOURDIEU, P. O poder simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. CARDOSO, A. L. (2003). Irregularidade urbanís ca: ques onando algumas hipóteses. Cadernos IPPUR. Rio de Janeiro, ano XVII, n. 1, pp. 35-49. CARVALHO, E. G. (1991). 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Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012 413 Planos diretores e canais democráticos de participação popular: estudo de 25 planos diretores da RMBH Master plans and democratic channels of popular participation: a study of 25 master plans of the Metropolitan Region of Belo Horizonte Renato Barbosa Fontes Léa Guimarães Souki Resumo A possibilidade de instaurar novas práticas de planejamento e gestão democrática nas políticas urbanas no Brasil vem se tornando mais factível, especialmente, após a aprovação do Estatuto da Cidade em 2001. A retomada dessa discussão assume uma grande importância, tendo em vista o quadro de desigualdades socioespaciais e crise urbana presentes nas cidades. O presente artigo baseia-se em um estudo exploratório nas leis de Planos Diretores de 25 municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Na análise foi considerado, especialmente, o sistema de intermediação de interesses entre sociedade civil e Estado, previsto e descrito no Estatuto da Cidade. Buscou-se identificar e compreender as diretrizes e os instrumentos de participação popular prescritos no Estatuto da Cidade e manifestos nos planos. Abstract The possibility of introducing new practices of planning and democratic management into the urban policies in Brazil has become more feasible, especially after the approval of the City Statute in 2001. The resumption of this discussion is important, in light of the socio-spatial inequalities and urban crisis that are present in the cities. This paper is based on an exploratory research into the laws of the Master Plans for 25 municipalities in the metropolitan region of Belo Horizonte. The analysis considered especially the system of intermediation of interests between civil society and the State, predicted and described in the City Statute. We sought to identify and understand the guidelines and tools for popular participation prescribed in the City Statute and manifested in the plans. Palavras-chave: Estatuto da Cidade; planos diretores; planejamento urbano; participação popular; Região Metropolitana de Belo Horizonte. Keywords: city statute; master plans; urban planning; popular participation; Metropolitan Region of Belo Horizonte. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki Neste artigo serão analisados alguns limites e potencialidades dos instrumentos de participação popular presentes nas Leis de Planos Diretores de 25 municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Para tanto, Considerações sobre os dados dos 25 municípios escolhidos da Região Metropolitana de Belo Horizonte será considerado, especialmente, o sistema de intermediação de interesses entre sociedade Para debater sobre os instrumentos de parti- civil e Estado previsto, e parcialmente descrito cipação popular em torno dos Planos Direto- no Estatuto da Cidade. res (PDs) na RMBH e definir o universo a ser Seguem-se, no decorrer do texto, as pesquisado foi necessário levantar, além de análises das Leis dos Planos Diretores, seus uma bibliografia sobre o tema, pesquisas já diversos formatos de participação popular, ar- existentes que dessem subsídio a uma análise ranjos, formas de organização, possibilidades empírica e para a formulação de algumas hipó- institucionais como arenas políticas de inter- teses. Inicialmente, foi feito um levantamento mediação de interesses. O artigo será desen- de fontes diversas: 1) legislações dos PDs dos volvido em quatro partes, inicialmente, serão municípios da RMBH e de seu estágio, não ela- feitas algumas considerações metodológicas borado, em aprovação e aprovado;1 2) dados sobre o universo da pesquisa; a segunda, so- disponibilizados no site do Ministério das Cida- bre os processos de divulgação e debate na des referentes à elaboração dos PDs nos vinte e fase de elaboração dos Planos Diretores; a cinco municípios; e 3) informações contidas na terceira, sobre instrumentos de participação pesquisa da Confederação Nacional de Arquite- popular prescritos nos Planos Diretores e por tos, Engenheiros e Agrônomos (Confea) sobre a último, serão tecidas algumas considerações existência de conselhos e processo de elabora- sobre os limites e avanços dos arranjos de ção dos PDs durante o ano de 2006. participação popular nos Planos Diretores dos Com o levantamento documental feito, municípios avaliados. Isto é, em que medida adotou-se o seguinte recorte temporal para se- os elementos contidos nos Planos traduzem e/ leção do universo da pesquisa: municípios da ou refletem os instrumentos prescritos no Es- RMBH com leis PDs aprovados e sancionados tatuto da Cidade e como se adaptam em dife- após a Lei 10.257/2001: Estatuto das Cidades rentes realidades? até 30 junho de 2008, o último prazo do Minis- Acredita-se que o estudo desses cená- tério das Cidades para a aprovação dessas leis rios possa incentivar a discussão das condi- pelos municípios. A partir dos critérios acima ções em que se fazem os arranjos institucio- descritos, é possível estabelecer quais são os nais de participação popular no planejamento municípios que terão seus planos analisados: e na gestão urbana a partir dos novos Planos Betim, Brumadinho, Caeté, Capim Branco, Con- Diretores. fins, Contagem, Esmeraldas, Itaguara, Itatiauçu, 416 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular Jaboticatubas, Juatuba, Lagoa Santa, Mário Diante dessas dificuldades e a necessi- Campos, Mateus Leme, Nova Lima, Nova União, dade de confirmar a autenticidade do material Pedro Leopoldo, Ribeirão das Neves, Rio Acima, levantando, foi necessário contrastá-lo com Sabará, Santa Luzia, São Joaquim de Bicas, São as leis levantadas por outra pesquisa: “Insti- José da Lapa, Sarzedo e Vespasiano. tucionalizando a cooperação intermunicipal: Dos 34 municípios que compõem a Região Metropolitana, 12 municípios tiveram a gestão metropolitana e a política hídrica na RMBH”.3 seus Planos Diretores disponibilizados pela Por meio da leitura crítica das Leis dos Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regio- PDs de municípios da RMBH, buscou-se levan- nal e Política Urbana – SEDRU, mais especifi- tar as características da gestão democrática e camente pela Subsecretaria de Programas Ur- os instrumentos de participação destes planos, banos.2 O restante das informações, referentes identificando se as diretrizes e concepções do a 22 municípios, foi solicitado diretamente às Estatuto da Cidade foram instituídos nos Pla- prefeituras. Considerando a diretriz do Estatu- nos. Foram cinco os arranjos institucionais con- to, Art. 40, parágrafo III “da publicidade quan- siderados relevantes para nossa análise.4 to aos documentos e informações produzidas” (Brasil, 2001), ressalta-se a dificuldade do acesso a esses Planos. Refere-se aqui especialmente às dificuldades de encontrar o setor responsável nas prefeituras pela elaboração dos Planos Diretores, ou mesmo algum funcionário que pudesse cedê-lo, o que pode refletir, em parte, as dificuldades que um cidadão comum poderia ter em acessar as leis. Ao contatar as prefei- Arranjos institucionais de participação popular, prescritos nos Planos Diretores de 25 municípios da RMBH turas e ao indagar sobre um setor responsável pela elaboração dos planos ou mesmo de polí- O primeiro passo para delimitar a amostra a ser tica urbana ou habitação, deparou-se com os estudada foi conhecer o estágio de aprovação mais diversos setores: desde uma Secretaria de dos Planos. Como foi mencionado anterior- Planejamento, de Meio Ambiente, de Obras e mente, classificou-se os PDs de 34 municípios Infraestrutura Urbana, Desenvolvimento Social, da RMBH e seu estágio de aprovação, da se- Assistência Social passando, em um dos casos, guinte forma: não aprovado, em aprovação e por uma Secretaria de Educação e, em outro, aprovado. Pode-se observar, na Tabela 1, que sendo necessário conversar com o próprio Pre- 25 (74%) municípios têm seus PDs aprovados feito. Além disso, houve quem confundisse o PD entre junho de 2001 e 30 de junho de 2008; com o Código de Obras, Lei do Parcelamento 5 (14%) municípios têm Planos aprovados no do Solo e quem enviasse os Projetos de Lei dos período anterior ao Estatuto da Cidade; 3 (9%) Planos, sem aprovação. tem suas leis em estágio de aprovação nas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 417 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki Tabela 1 – Planos Diretores dos municípios da RMBH e estágio de aprovação em novembro de 2009 Municípios Baldim Belo Horizonte Betim População (2007) 8.724 2.412.937 415.098 Lei PD Não elaborado Aprovado (7165/96) Aprovado (4574/07) Brumadinho 31.965 Aprovado (10/06) Caeté 39.039 Aprovado (2496/07) Capim Branco 8.763 Aprovado (01078/06) Confins 5.680 Aprovado (438/06) Contagem 608.650 Esmeraldas 55.436 Aprovado (0132/2007) 5.928 Aprovado (015/2001) Florestal Ibirité 148.535 Aprovado (33/2006) Aprovado (0211/99) Igarapé 31.135 Aprovado (1205/2000) Itaguara 12.292 Aprovado (022/2007) Itatiaiuçu 8.953 Aprovado (1009/06) Jaboticatubas 15.496 Aprovado (1905/06) Juatuba 19.528 Aprovado (112/06) Lagoa Santa 44.922 Aprovado (02633/06) Mário Campos 11.421 Aprovado (011/06) Mateus Leme 25.627 Aprovado (25/06) Matozinhos 33.317 Aprovado (1624/01) Nova Lima 72.207 Aprovado (2047/2007) Nova União 5.461 Aprovado (16/2006) 56.518 Aprovado (3034/08) Pedro Leopoldo Raposos Ribeirão das Neves Rio Acima Rio Manso 14.874 329.112 Em aprovação Aprovado (036/06) 8.257 Aprovado (11/06) 5.007 Em aprovação Sabará 120.770 Aprovado (003/04) Santa Luzia 222.507 Aprovado (2699/06) São Joaquim de Bicas 22.214 Aprovado (215/04) São José da Lapa 17.900 Aprovado (575/06) Sarzedo 23.282 Aprovado (027/06) Taquaraçu de Minas Vespasiano 3.757 94.191 Em aprovação Aprovado (02/06) Fontes: IBGE/Contagem 2007; Leis de Planos Diretores dos Municípios da RMBH (levantamento: setembro à novembro de 2009); elaboração dos autores. 418 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular respectivas câmaras municipais e 1 (3%) município não tem seu PD aprovado e nem iniciou seu processo de elaboração, no caso, o município de Baldim. Outro dado a ser considerado Processos participativos na elaboração e discussão dos Planos Diretores é que a metade dos municípios (17) tem seus Planos Diretores aprovados até outubro de 2006. Provavelmente esse possa ser um resul- Divulgação e debate na fase de elaboração tado da campanha de sensibilização da elaboração dos Planos Diretores “Cidade para To- No art. 40, parágrafo IV do Estatuto da Cida- dos”, organizada pelo Conselho Nacional das de, estabelece-se que os poderes Legislativo Cidades/Ministério das Cidades com data limite e Executivo devem garantir, no processo de para aprovação dos planos pelos municípios elaboração do Plano Diretor, a participação estabelecida pelo mesmo Ministério, posterior- de vários segmentos da sociedade, a publici- mente prorrogada para julho de 2008. dade e o acesso de qualquer interessado aos Observa-se que os quatro municípios que documentos e informações produzidos. Assim, têm seus PDs na categoria de em aprovação ou torna-se importante saber quais espaços de não elaborado são municípios com população discussão foram criados nesses municípios no abaixo de 20.000 habitantes: Baldim, Raposos, processo de elaboração dos Planos. No Qua- Taquaraçu de Minas e Rio Manso. Entretanto, dro 1, é possível visualizar quais arranjos de deve-se lembrar que, segundo Art. 41 do Es- participação foram criados, se conferências, tatuto, apenas os municípios acima de 20.000 debates públicos e/ou audiências públicas. habitantes são obrigados a elaborar seus Pla- Os dados que subsidiaram a análise fa- nos. No entanto, o parágrafo II, do mesmo arti- zem parte de um levantamento feito pela Con- go, compromete todos os municípios que inte- federação Nacional de Engenharia, Arquitetura gram regiões metropolitanas, independente da e Agronomia (Confea, 2007) a respeito dos pro- faixa populacional a elaborar seus planos. cessos de elaboração dos PDs. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 419 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki Quadro 1 – Realização de processos diversificados e descentralizados de debate do Plano Diretor durante sua elaboração Municípios Conferências Debates públicos Nº audiências públicas na Câmara X 5 Betim Brumadinho Caeté X X Capim Branco X X 1 Confins X X 2 Contagem X Esmeraldas X Itaguara Itatiaiuçu 1 X 2 X 1 X 1 Jaboticatubas X X Juatuba X X Lagoa Santa 2 2 Mário Campos Mateus Leme X Nova Lima X X 5 Nova União Pedro Leopoldo 2 4 X X Ribeirão das Neves X Rio Acima X Sabará X Santa Luzia X 1 1 São Joaquim de Bicas X X São José da Lapa X X Sarzedo X Vespasiano X Fonte: Pesquisa Confea (2007). Reelaboração dos autores. 420 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular Supõe-se que as conferências e os debates públicos devam ser usados para definir a metodologia de elaboração do Plano Diretor III - publicação e divulgação dos resultados dos debates e das propostas adotadas nas diversas etapas do processo (Brasil, 2005). e para possibilitar a participação em todas as etapas de discussão dos grandes temas que estarão contidos nos planos. No âmbito do legislativo municipal, as audiências públicas são obrigatórias para a votação do Plano Diretor, como condição de validade da lei. Os municípios de Betim e Mário Campos, segundo os dados levantados, foram os únicos que não realizaram nenhum tipo de debate em torno da elaboração dos Planos. As audiências estão presentes em 14 municípios da amostra, as conferências em 15 municípios e os debates públicos em 16 municípios. Apenas quatro municípios (Confins, Jaboticatubas, Mateus Leme e São Joaquim de Bicas) realizaram discussões em todos os três espaços de discussão levantados. Quanto à publicidade em torno dos espaços de elaboração dos PDs para toda sociedade, fundamental para ampliar a participação nesses espaços, a Resolução do Conselho Nacional das Cidades nº 25, de 2005, art. 4º, é clara: No processo participativo de elaboração do plano diretor, a publicidade, determinada pelo inciso II, do § 4º do art. 40 do Estatuto da Cidade, deverá conter os seguintes requisitos: I - ampla comunicação pública, em linguagem acessível, através dos meios de comunicação social de massa disponíveis; II - ciência do cronograma e dos locais das reuniões, da apresentação dos estudos e propostas sobre o plano diretor com antecedência de no mínimo 15 dias; Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 No caso dos 25 municípios da RMBH, a divulgação em jornal local ou regional foi a mídia mais utilizada (18 municípios), seguida das rádios (12 municípios). Apenas os municípios de Betim e Mário Campos não realizaram nenhum processo de divulgação. O Quadro 2 apresenta as formas de divulgação mais utilizadas. Dos formatos de mídia elencados, no quadro acima, pela pesquisa CONFEA (2007), o “jornal local/regional” (18 municípios) foi o mais usado na divulgação pública das atividades relacionadas à elaboração do Plano Diretor, seguidos da “rádio local” (13 municípios) e “panfletagem” (11 municípios). Alguns municípios como Contagem, Pedro Leopoldo e Vespasiano, utilizaram diversos instrumentos de divulgação. Além do aspecto quantitativo, da construção de espaços de debate na elaboração dos PDs e de divulgação pública destas atividades, não se deve desconsiderar a linguagem utilizada, especialmente quando se trata de um projeto de participação popular. Supõe-se que nas instâncias de participação popular, a linguagem deve ser condizente com sua função. Assim como o Legislativo e o Judiciário possuem linguagens condizentes com suas funções técnicas e políticas, isso também deve ocorrer na esfera da participação popular. Para tanto, seria necessário o investimento em capacitação, realização de seminários, divulgação de material informativo, mobilização e convocação periódica da população. Contudo, o aspecto comunicativo, embora considerado, não é o objetivo deste artigo. 421 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki Quadro 2 – Divulgação pública de atividades para discussão da elaboração do PD Municípios Jornal local/ regional Outdoor Panfletagem Publicação no DOM Rádio local Site da Prefeitura Betim Brumadinho X X Caeté X X Capim Branco X X Confins Contagem X Esmeraldas X Itaguara X X X X X X X X Itatiaiuçu X Jaboticatubas X X Juatuba X X Lagoa Santa X X Mário Campos X X X X X X Nova Lima X X Nova União X Pedro Leopoldo X Ribeirão das Neves X X X Rio Acima Sabará X Santa Luzia X São Joaquim de Bicas X X X Mateus Leme X X X X X X São José da Lapa X X X X X X X Sarzedo Vespasiano X X X X X X X X Fonte: Pesquisa Confea (2007). Reelaboração dos autores. 422 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular Os instrumentos de participação popular prescritos nos Planos Diretores municípios (80%). Interessante destacar que os cinco municípios que não prescrevem esse instrumento têm população abaixo de 20.000 Os artigos do Estatuto da Cidade trazem, habitantes. As audiências públicas aparecem dentre outras diretrizes, dois elementos que em 17 Planos dos 25 (68%), seguidos, de me- buscam reverter o processo histórico de nos da metade da amostra, das conferências desenvolvimento desigual das cidades: a em 12 municípios (48%). função social da propriedade e a participação Apenas dois municípios não citaram ne- popular no planejamento e na gestão das ci- nhum desses instrumentos (ou qualquer outro dades. Esses dois elementos devem constar similar): São Joaquim de Bicas e Mário Cam- no PD de cada município, considerando as de- pos. O município de Mário Campos, como po- mandas e necessidades locais. Tornar viável e de ser visualizado no Quadro 1, é um dos dois efetivar esses elementos no planejamento são municípios, ao lado de Betim, que não realizou os primeiros grandes desafios para construir nenhum processo de debate que envolvesse a o processo de gestão democrática. Neste ítem sociedade civil no processo de elaboração. To- serão tratados, especificamente, os arranjos de davia, o município de São Joaquim de Bicas, participação popular presente nos Planos dos apesar de realizar conferência, debates públi- 25 municípios estudados. cos e uma audiência pública na Câmara no pro- Os instrumentos de participação popular cesso de elaboração do seu planejamento, não contidos no Estatuto da Cidade, art. 42, inciso prescreveu nenhum instrumento de controle III, no capítulo IV, “sistema de acompanhamen- social em seu Plano. to e controle” são: i) os conselhos de política Cabe ressaltar que outros instrumentos, urbana; ii) os debates, audiências e consultas diferentes dos prescritos no Estatuto da Cidade, públicas; iii) conferências de política urbana; e apareceram em algumas leis, apontando para iv) projetos de iniciativa popular de leis, proje- inovações ou adaptações dos instrumentos ao tos e programas. Cabe avaliar, neste momento, contexto local. Esse é o caso de Santa Luzia como esses instrumentos foram traduzidos do que criou o Fórum da Cidade, uma espécie de processo de elaboração para os Planos, como conferência, ou mesmo uma grande audiência aparecem assim como seus limites e potenciais. pública, que reúne diversos seguimentos da O Quadro 1 demonstra que, den- sociedade civil e do poder público, anualmente, tre esses instrumentos, o Conselho é o que para discutir diretrizes e encaminhamentos da está mais presente nas leis avaliadas, em 20 política urbana. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 423 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki Quadro 3 – Instrumentos e mecanismos de controle social prescritos no Plano Diretor Conselho Audiências Conferências Betim Municípios X X X Brumadinho X X X Caeté X X Capim Branco X X Confins X Contagem X Esmeraldas X Itaguara X Itatiaiuçu Jaboticatubas X X Juatuba Lagoa Santa X X X X X Mário Campos Mateus Leme X X X Nova Lima X Nova União X Pedro Leopoldo X X X Ribeirão das Neves X X X Rio Acima X X X Sabará X X X Santa Luzia X São Joaquim de Bicas São José da Lapa X X X Sarzedo X X X Vespasiano X X X Fontes: Leis de Planos Diretores dos Municípios da RMBH (levantamento feito entre fevereiro de 2009 a novembro de 2009). Elaboração pelos próprios autores. 424 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular Os Conselhos de Política Urbana têm se criar mais uma coluna, no Quadro 4, para dar tornado espaços estratégicos de decisões dian- conta do universo de conselhos de outras po- te das atribuições que têm recebido, tais como: líticas que foram previstas nos PDs. Esse é o estabelecer normas e prioridades para a Políti- caso do município de Itaguara, de pouco mais ca Nacional de Desenvolvimento Urbano; emi- de 12.000 habitantes que prevê, além da cria- tir recomendações sobre a aplicação do Estatu- ção do Conselho da Cidade, a criação de ou- to da Cidade; propor diretrizes e critérios para a tros seis conselhos dos mais variados temas: distribuição local e setorial do orçamento anual Desenvolvimento Municipal, Conservação do e do Plano Plurianual; e outras (Brasil, 2006). Patrimônio Histórico, Turismo, etc. Já Pedro No Quadro 4, é possível observar a cria- Leo poldo prevê a criação de sete conselhos, ção dos Conselhos setoriais de política urbana, além dos Conselhos da Cidade e Habitação, tais como: Conselho das Cidades, Habitação, tais como Anti-Drogas, Idoso e Cultura, entre Saneamento, Meio Ambiente, Transporte e Ges- outros. Interessante destacar, também, a pre- tor do Fundo de Habitação de Interesse Social. sença do Conselho Gestor do Fundo Municipal Foi possível identificar uma presença grande de Interesse Social. Ainda que a criação do de Conselhos da Cidade, em 17 municípios, um Conselho Gestor do Fundo seja condição para número relativamente alto, se for considerado o recebimento de recurso do governo federal, que este é um modelo recente de conselho, ori- apenas três municípios – Lagoa Santa, Pedro ginado no final de 2003, na I Conferência Na- Leopoldo e Sarzedo – previram sua criação, e cional das Cidades e ainda pouco disseminado, nenhum desses receberam recursos do Fundo especialmente, nas esferas estadual e munici- Nacional de Habitação de Interesse Social, FH- pal. No aspecto do Conselho das Cidades ainda NIS, no ano de 2008 (Quadro 4). Já o PD no é importante afirmar que esse aparece com ou- caso de Vespasiano é bem genérico e sintético tros nomes e formatos,5 ainda que com atribui- ao tratar no seu capítulo “Da Gestão Partici- ções ligadas à política urbana. pativa”, art. 150: “deverão ser implementados Os Planos apresentaram também, nos Conselhos Temáticos de Caráter Deliberativo”. seus conteúdos, a criação de outros conselhos Mas não define quais conselhos, funcionamen- não só ligados à política urbana. Foi necessário to e outras definições. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 425 426 X X Capim Branco X Sabará Santa Luzia X X X X Saneamento X X X X X Meio Ambiente X X Transporte X X X Gestor do fundo de habitação Segurança Alimentar, Patrimônio e Desenvolvimento Rural Sustentável Outros Conselhos Temáticos Planejamento e Desenvolvimento Sustentável Esportes, Tutelar, Entorpecentes, Defesa do Consumidor Desenvolvimento Econômico, Desenvolvimento Rural Sustentável, Turismo, Cultura, Anti-drogas, Idoso Desenvolvimento Econômico e Social Desenvolvimento Municipal; Conservação do patrimônio histórico, Turismo e Defesa do Meio Ambiente Desenvolvimento, Turismo e Segurança Pública Fontes: Leis de Planos Diretores dos Municípios da RMBH (levantamento: fevereiro a novembro de 2009). Elaboração pelos próprios autores. Vespasiano Sarzedo São José da Lapa X X Rio Acima São Joaquim de Bicas X X Ribeirão das Neves X X Pedro Leopoldo X X X X X X X X X X X X Habitação Nova União Nova Lima Mateus Leme Mário Campos Lagoa Santa Juatuba Jaboticatubas Itatiaiuçu Itaguara Esmeraldas Contagem X X Caeté Confins X Brumadinho Cidades Betim Municípios Quadro 4 – Criação de conselhos setoriais nos Planos Diretores Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular O fato de os conselhos serem previstos nos PDs não significa, necessariamente, a par- possível, com precisão, inferir o que se encaixa nessas categorias. ticipação ou representação da sociedade civil. Os conselhos de São José da Lapa e Sar- A representação garantida de alguns segmen- zedo apresentam a peculiaridade de terem as- tos, o porcentual maior ou menor de represen- sentos permanentes para membros de outros tantes da sociedade civil ou do governo pode conselhos. Desta forma, o peso entre repre- interferir no peso das decisões, especialmente sentantes do poder público e sociedade civil, naquelas mais polêmicas que influenciam o pode ser alterado ou reinterpretado, depen- mercado imobiliário, a regulação fundiária e dendo de que setores eles representam nos os zoneamentos. respectivos conselhos. A composição dos conselhos e a repre- Dahl (1993) entende a democracia mo- sentatividade dos segmentos do poder público derna como uma poliarquia, combinações e da sociedade civil são importantes na medi- variadas de formas de autoridade cujo movi- da em que revelam um aspecto do envolvimen- mento varia em duas direções, uma no sentido to da sociedade na formulação dos interesses de cada vez incluir mais pessoas e grupos no do município. A Tabela 2 apresenta a compo- processo democrático e outra no sentido de sição dos seguimentos do poder público e da aperfeiçoar as instituições. Portanto condições sociedade civil, tomando como base de análise institucionais necessárias para garantia da par- o Conselho das Cidades ou Desenvolvimento ticipação e da organização da sociedade civil Urbano ou outro em que a lei do município podem diferenciar-se e aprimorar-se a partir do considera responsável pelo acompanhamento tipo de governo e da maneira como esses utili- da política urbana. zam as novas condições institucionais. Da mes- Dos 20 municípios que propõem a cria- ma forma as condições de governar também ção de conselhos nos seus planos, apenas 13 variam na proporção da população habilitada descrevem a composição, sendo que seis PDs a participar no controle e na oposição às ações descrevem a composição do seu respectivo do governo. conselho como paritário, outros sete têm repre- No caso das legislações analisadas, os sentação do poder público maior do que a so- “graus de participação” se diferenciam de ciedade civil. Destaca-se o município de Betim, modo complexo, não apenas na correlação de em que a diferença de representação chega a forças da representação da sociedade civil e 37% sociedade civil e 63% governo municipal. Estado (Tabela 2), mas também na capacida- Daqueles que detalham a composição, de institucional dos conselhos. Alguns destes pode-se observar uma presença significati- se restringem à formulação de sugestões ou va, na sociedade civil, do setor empresarial. ao encaminhamento de demandas (atribuição Também aparecem nos planos termos que “consultiva”); já outros, abrangem a delibera- sugerem ambiguidades, especificamente em ção sobre as diretrizes das políticas temáticas, relação a quem ocupará a cadeira no conse- a aprovação da normatização e da regulação lho, por exemplo, “Associações comunitá- das ações do governo, e a aprovação da pro- rias”, “Setor Popular” e “Comunidade”. Não é posta orçamentária (atribuição deliberativa). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 427 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki Tabela 2 – Composição dos Conselhos prescrita no Plano Diretor Sociedade Civil Poder Público 37% (6)6 63% (11) Brumadinho 50% 50% Não trata Caeté 50% 50% Não trata Municípios Betim Capim Branco Trabalhadores(1); Empresarial(3); Comunidade(2) Não trata Confins Contagem Segmentos da S.C. representados Não trata 50% 50% Não trata Esmeraldas Não trata Itaguara Não trata Itatiaiuçu Não trata Jaboticatubas Não trata Juatuba Não trata Lagoa Santa 50% (6) 50% (6) Mário Campos Mateus Leme Não trata 40% (9) 60% (14) Nova Lima Não trata 50% (8) 50% (8) Ribeirão das Neves Rio Acima Setor Popular(4); Empresarial(3); Trabalhadores(2) Não trata Nova União Pedro Leopoldo Empresarial(2); Trabalhadores(1); Setor Popular(3) Empresarial(2); Associações Comunitárias(2); Trabalhadores(2); ONGs(2) Não trata 50% 50% Sabará 43% (6) 57% (7) Setor Técnico(2); Empresarial(2); Setor Popular(2) Santa Luzia 35% (4) 65% (7) Setor Técnico(1); Empresarial(1); ONGs(1); Trabalhadores(1) São Joaquim de Bicas Não trata Não trata São José da Lapa 30% (3) 70% (7) Empresarial(1); Associações(1); Codema(1) Sarzedo 43% (6) 57% (7) Produtores Rurais(1); Associação dos Comerciários(1); Comunitária(12); Conselhos da Assistência Social(1); Saúde(1); Codema(1) 50% 50% Não trata Vespasiano Fontes: Leis de Planos Diretores dos Municípios da RMBH (levantamento: fevereiro a novembro de 2009). Elaboração pelos próprios autores. 428 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular Ainda que os Conselhos de Política Ur- Os debates, consultas e audiências pú- bana tenham se inserido, em parte, na agenda blicas são, na maioria das vezes, apresenta- das políticas públicas dos municípios, ape- ções e discussões, nas quais são expostos e nas cinco PDs preveem seus conselhos como debatidos análises e projetos de interesse pú- deliberativos, outros três PDs definem seus blico, para sua crítica ou avaliação pelos diver- conselhos como consultivos e dois PDs carac- sos setores da sociedade. O art. 20 do Estatuto terizaram-se como consultivo e deliberativos da Cidade pontua: (ambos). A maioria das legislações analisadas, dois maiores municípios da amostra, Conta- a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: gem (608.650 habitantes) e Betim (415.098 (...) habitantes), descreveram seus Conselhos co- XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população. (Brasil, 2001) 15, não atribuiu aos seus conselhos o “poder de decisão”. Pertinente destacar, também, que os mo consultivos. O PD de Lagoa Santa, segundo seu Art. 94, “terá função deliberativa”, mas no Art. 93 que trata das atribuições, é passível de gerar ambiguidades, já que a maioria das atribuições inicia-se com o verbo opinar.7 Deve-se tomar cuidado para não cair na armadilha do formalismo, buscando fronteiras E complementa a resolução nº 15 do muito claras onde elas nem sempre existem, Conselho Nacional das Cidades: “a audiência ignorando-se que, em um mesmo município, pública poderá ser convocada pela própria so- em uma mesma administração e até no inte- ciedade civil quando solicitada por no mínimo rior de uma mesma institucionalidade, níveis 1% (um por cento) dos eleitores do município” distintos de participação possam coexistir, de (Brasil, 2005). modo às vezes, bem contraditório. Já o Art. 40 vem garantir a “promo- Quanto à forma de definição da eleição ção de audiências públicas e debates com a dos Conselheiros, apenas o município de Con- participação da população e de associações tagem estabeleceu a eleição através da Confe- representativas dos vários segmentos da co- rência, conforme orienta a Resolução nº15 do munidade” (Brasil, 2001) no processo de ela- Conselho Nacional das Cidades, e a maioria boração do plano diretor e na fiscalização de dos PDs, 11, não menciona a forma de eleição sua implementação, os Poderes Legislativo e praticada nos Conselhos. Chama atenção tam- Executivo municipais. bém nesse levantamento os PDs que definem a No caso em estudo, as audiências es- forma utilizada para eleição por indicação do tão presentes em 15 PDs, dos 25 avaliados. Poder Executivo (e não por eleição em algum No entanto, poucos municípios descrevem a processo democrático): Betim, Mateus Leme e utilização desses instrumentos; geralmente São José da Lapa. quando aparecem, têm a finalidade de debater Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 429 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki a implementação de empreendimentos de im- apontam a periodicidade em que devem ocor- pacto urbanístico e do plano plurianual. rer as conferências. Nenhum PD cita quais os As Conferências das Cidades (ou de de- seguimentos participam das Conferências. senvolvimento urbano ou de política urbana) De fato, os dados aqui avaliados demons- são encontros, repetidos periodicamente, que tram uma riqueza de processos diversos e com- podem alcançar um grande número de partici- plexos. Numa avaliação geral, é possível inferir pantes, podendo ocorrer nos três níveis da fe- que na maioria dos municípios estudados os deração. As conferências têm por finalidade de- artigos do Estatuto da Cidade, especialmente, finir diretrizes e prioridades para o Plano Dire- o Cap. IV “Sistema de Gestão Democrática”8 tor ou para a política urbana de forma geral, e estão presentes nos PDs, porém com diferen- escolher os membros do conselho das cidades. tes interpretações. Esses distintos formatos No caso de haver Conselho, ele tem a prerroga- configuram-se como maior ou menor detalha- tiva de coordenar todo o processo de elabora- mento dos arranjos, maior ou menor oferta de ção do Plano Diretor e cabe-lhe encaminhar a esferas e espaços para a participação, maior ou implementação de instrumentos participativos, menor publicidade desses espaços, reprodução além de acompanhar a execução. Se ainda não parcial ou total dos artigos do Estatuto, inova- houver conselho, o processo pode ser iniciado ções e adaptações aos contextos locais. Caberá com uma audiência pública, na qual será pla- então, refletir e problematizar a que se deve o nejado o encaminhamento dos instrumentos, surgimento de alguns instrumentos, bem como além de serem definidas as etapas do plano a ausência de outros. diretor. A resolução nº 13 do Conselho Nacional Trata-se de analisar as possibilidades da das Cidades afirma: “a realização de conferên- construção de canais e mecanismos de partici- cias municipais será um referencial importante pação popular nas políticas prescritas nos Pla- para a discussão da política urbana a nível lo- nos, tendo como pano de fundo as seguintes cal e eleger os membros do novo Conselho de indagações: existem nos PDs instrumentos de forma democrática” (Brasil, 2004). participação popular adequados para o desen- As conferências permitem, a princípio, a volvimento da participação popular no plano participação de um número maior de delega- local? Existem nos PDs condições políticas ins- dos do poder público e da sociedade civil. Ge- titucionais, que favorecem o desenvolvimento ralmente, elegem os conselhos locais e encami- da participação popular no plano local? Isto é, nham diretrizes para serem discutidas no con- a intensidade e o “peso” das diferentes forças selho local de políticas urbanas. Outra caracte- políticas e econômicas (equipe técnica, executi- rística é a eleição de delegados na esfera local vo e sociedade civil organizada) que interferem para representar os municípios nas discussões no plano podem garantir sua implementação em escala estadual e nacional. ou condená-lo à ineficácia? Apenas seis PDs citam as Conferências Ainda que os instrumentos de participa- em suas leis como instrumento de participação, ção apresentem-se, por vezes, com uma es- outros dez PDs não as mencionam. Apenas os tratégia desarticulada de especificações que municípios Mateus Leme, Sarzedo e Vespasiano auxiliam sua operacionalização – tais como 430 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular o prazo para implementação dos conselhos, para torná-los visíveis e adotar normas e a forma de eleição dos conselheiros, a repre- padrões para sua administração, fundados em sentação dos seguimentos e da performance regras de regulação e objetivos gerais a serem dos conselheiros. preservados. Porém, não é sempre que a complexidade das relações societárias e as contradições e os conflitos em torno da apropriação Considerações finais: possibilidades e limites dos arranjos de participação popular dos Planos Diretores da RMBH e gestão do espaço urbano conseguem ser sintetizados e ter o devido tratamento em um documento/lei como o Plano Diretor. De fato, os limites observados nas Leis de Planos Diretores são complexos. Podem-se identificar fronteiras decorrentes da ausência de instrumentos de gestão democrática ou, Quando o Estatuto das Cidades foi promulga- mesmo quando presentes, limitações no que do, criaram-se instrumentos e arranjos institu- diz respeito à composição, eleição, atribuição, cionais na direção da democratização do aces- entre outros aspectos vitais para o funciona- so à terra urbana e da gestão das cidades. A mento desses espaços. Ainda que os debates partir do que foi discutido no presente artigo, sobre o Estatuto e o Plano Diretor expressem é possível refletir sobre a dimensão da ruptura um avanço em termos da experiência do pla- com o modelo anterior e o surgimento de um nejamento urbano e da abertura para um de- novo, no que diz respeito ao tratamento legal bate democrático, é importante ponderar que dispensado ao cumprimento da função social parte desses avanços pode não se concretizar da propriedade e à gestão das cidades. em razão das fortes heranças tecnocráticas Parte dessa ruptura, para autores como ou de tipo populista. Apesar de todos os ins- Rolnik (2001), Ribeiro (2004, 2005, 2007), trumentos que vêm agregar um novo valor ao Santos Junior (2008) e Souza (2008), tem em planejamento urbano, é importante ter clareza seu cerne a concepção de que o Plano Diretor que a incorporação desses elementos, ainda constitua-se em um mapeamento dos interes- que discutidos com ampla participação, não ses dos diversos agentes locais, a partir de garante que esses planos sejam posteriormen- um acordo socioterritorial que servirá de base te implementados. para construção de uma gestão democrática da cidade. Nestas considerações, procuraremos identificar em que medida esse processo tem Para uma tarefa tão complexa, segun- gerado oportunidades e condições para a do estes autores, é necessário que o plane- criação de novos canais e mecanismos que jamento evoque a cidade “ideal”, de formas propiciem maior participação dos cidadãos e “adequadas” de apropriação do território e da aumentem a transparência e a responsabili- produção democrática do espaço. Nesse sen- dade dos governos locais, significando aqui a tido, os conflitos e disputas de interesses são ampliação da participação direta da sociedade inevitáveis. Os arranjos de gestão são espaços nos processos de gestão. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 431 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki Acredita-se que o estudo desses cenários política urbana; segundo Santos Junior (2001), permite contribuir para a discussão das condi- a abertura de canais para a participação da so- ções de constituição de arranjos institucionais ciedade não aparece apenas como resultado de de participação popular no planejamento e na um projeto local, mas se mostra fortemente im- gestão urbana destas cidades. pulsionada pela legislação federal, como con- Diante dos levantamentos feitos e das dição para repasse de recursos, vinculada a um informações coletadas, destacam-se algumas amplo espectro de políticas públicas descentra- considerações: lizadas. Torna-se necessária uma reflexão sobre a) embora a concepção do Conselho das Ci- possíveis “efeitos colaterais” embutidos na dades seja algo relativamente recente (a par- agenda de discussão e nos instrumentos que tir da criação do Ministério das Cidades e do têm sido propostos na elaboração dos PDs. Os Conselho Nacional das Cidades, em 2003), sua mesmos instrumentos de participação podem presença, na amostra dos 25 municípios, se deu ter sido criados como instrumento de legitima- em 80% dos municípios avaliados, o que refle- ção que possibilita o controle do Estado dian- te a expressiva absorção desse tipo de Conse- te de tensões decorrentes de conflitos sociais. lho no processo de elaboração dos PDs, ainda Neste contexto, através da participação indu- que em diferentes formatos. O grande número zida, visar-se-ia eventualmente a neutralização de Conselhos, prescritos no Plano, pode ser dos conflitos, ou seja, a sociedade é estimulada resultado, em parte, da mobilização feita pela a cooperar a fim de “integrar-se” socialmente campanha “Plano Diretor Participativo: Cida- para mascarar o caráter excludente das políti- de de Todos”.9 Ao final do projeto, em Minas cas públicas. Gerais, aconteceram 46 cursos fornecidos para c) o PD é descrito pelo Estatuto como “ins- técnicos do poder público legislativo e executi- trumento básico da política de desenvolvimen- vo, sociedade civil e movimento popular; 225 to e expansão urbana” (Brasil, 2001), porém municípios atendidos e, no total, 3.821 pessoas os documentos analisados revelaram mais um capacitadas. Especificamente na RMBH, acon- espaço de oportunidades para encaminha- teceram 13 cursos fornecidos; 29 municípios mento e regulação de outras políticas/deman- atendidos e 973 pessoas capacitadas; das reprimidas. Como pode ser visualizado no b) o fato de a elaboração dos PDs ser legal- Quadro 4, a maioria dos PDs apresentou-se mente obrigatória, sob pena de o Prefeito in- como um grande “guarda-chuva” de políticas correr em improbidade administrativa – e, caso sociais, educacionais, de saúde, entre outras, não promova “audiências públicas e debates extrapolando a questão urbana, de diversas com a participação da população e de associa- políticas para um planejamento municipal. ções representativas dos vários segmentos da Neste contexto foi proposta a criação dos mais 10 comunidade” (Brasil, 2001) – pode ter sido diversos Conselhos (Segurança Alimentar, De- um fator que tenha impulsionado a presença senvolvimento Rural, Esportes, Cultura, Anti- desses órgãos colegiados nos PDs. De certa -Drogas, Esportes, Assistência Social, Conselho forma, essa seria uma característica não só da Tutelar, entre outros). Outra hipótese é que 432 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular parte significativa dos segmentos sociais, prin- relação a esses pontos, chama atenção o fato cipalmente os mais vulneráveis com demandas de que: apenas o município de Lagoa Santa materiais urgentes como moradia, terra, sanea- condiciona a eleição dos Conselheiros em Con- mento, entre outras, não têm sua agenda de ferência à temática urbana, como recomenda demandas representada nessas arenas públicas a resolução do Conselho Nacional das Cidades de planejamento, uma vez que não possuem nº 13 de 2004; nos municípios de Betim, Ma- vínculos associativos com organizações sociais teus Leme e São José da Lapa não há nenhum que a representem. tipo de eleição, sendo todos conselheiros indi- d) chama atenção o excesso de Conselhos cados pelo Poder Executivo; esses três muni- criados nos mesmos municípios, especialmen- cípios, somados aos municípios Sabará, Santa te nos de médio e pequeno porte na RMBH. Luzia e Sarzedo têm seus conselhos com maior Alguns PDs, como é o caso de Caeté, Lagoa representatividade do Poder Público (chegan- Santa, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Rio Acima do a 70%), sendo todos estes citados, com e Sabará, prescrevem a criação de Conselhos exceção de Lagoa Santa, caracterizados como da Cidade e Habitação. Se, de um lado, pode consultivos. É necessário considerar que as configurar-se como prioridade no planejamen- desigualdades de poder podem intervir sobre to da gestão local, de outro pode pulverizar o a manutenção e a reprodução dos processos debate e criar duas esferas, duas agendas e de hierarquização e segregação das cidades, o diferentes encaminhamentos sobre o mesmo que torna a implementação da concepção de tema. Soma-se a isso a possibilidade de repro- reforma urbana um desafio maior; duzir a histórica fragmentação das políticas f) o PD do município de Betim apresentou-se públicas e a ausência de diálogo entre elas. O como um caso instigante. Possui uma popula- formato adotado pelo Conselho Nacional das ção de 415.098 (IBGE, 2007), possui a maior Cidades parece buscar ultrapassar esse debate taxa de crescimento populacional, é 16º PIB setorializado da política urbana, reunindo em do Brasil e o 2º PIB de Minas Gerais (2007),11 único conselho, quatro câmaras técnicas re- recebeu um aporte de R$230 milhões de reais presentando as políticas setoriais urbanas: ha- em recursos do PAC e de FHNIS (2008). No en- bitação, saneamento, transporte e programas tanto, foi o PD que mais se destoou dos demais urbanos. Nenhum dos Conselhos prescritos no que se refere aos processos de divulgação nos PDs apresentaram-se nesse formato, arti- e debate na elaboração dos Planos Diretores, culando as políticas setoriais urbanas. no peso entre as representações dos órgãos e) em termos do funcionamento dos Conse- colegiados e na forma de eleição de conselhei- lhos, os limites mais significativos parecem si- ros. Segundo os dados levantados, não pro- tuar-se exatamente em três aspectos: primeiro moveu debates nos processos de elaboração na forma de eleição dos conselheiros, segun- do PD; criou o Conselho de Política Urbana, do na representação dos seguimentos e, ter- mas com representatividade de 37% socieda- ceiro, na capacidade decisória dos Conselhos de civil e 63% poder público; não há eleição Municipais. Ainda que haja pouca precisão em para os conselheiros, todos são indicados pelo Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 433 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki executivo; o conselho possui atribuição con- Tal identificação encontra diversos obs- sultiva e não possui nenhuma definição sobre táculos influenciados pelas concepções tradi- a Conferência. Tais dados demonstram que o cionais de planejamento urbano, que até onde município de Betim parece não acompanhar se pode ver, ainda não foram superadas por a reconfiguração dos mecanismos e dos pro- completo. Essas podem obstaculizar a afirma- cessos de tomada de decisão pós-Constituinte ção dos novos padrões democráticos prova- e Estatuto das Cidades. Tampouco parece ter velmente por manter a separação total entre sido afetado pelas resoluções do Conselho Na- planejamento e gestão, operando o planeja- cional das Cidades, que buscam fazer emergir mento apenas na esfera técnica e a gestão na novas formas de participação entre governo dimensão política (Souza, 2008). Também po- local e sociedade na discussão das políticas dem ser inviabilizadas pelo desconhecimento urbanas, por meio de canais e mecanismos de de normas e leis municipais, estaduais e nacio- participação popular. nais por parte do executivo, técnicos, formado- Os Planos avaliados apresentam, de for- res de opinião e população. Outro fator a ser ma geral, instrumentos de participação popular considerado diz respeito às exposições hermé- na gestão das políticas urbanas o que, a princí- ticas e tecnicistas das equipes de planejadores, pio, fortalece a cidadania e integra o planeja- o que resulta em incomunicabilidade e distan- mento, a elaboração e a execução das políticas ciamento entre interlocutores. Por fim, um fator desenvolvidas no município com a gestão urba- recorrente é o desinteresse de grande parte da na visando democratizar o processo de tomada população para com os temas a serem discuti- de decisões. No entanto, os pontos discutidos dos, provavelmente por seu apelo coletivista, acima são exemplos da fragilidade da imple- mesmo com toda publicidade dada ao evento mentação destes processos. (Matos, 2008). Parte dessa fragilidade se deve ao PD es- Estas barreiras parecem ter suas raízes tar submetido a forças (equipe técnica, executi- plantadas nas práticas históricas de corrupção, vo e sociedade civil organizada) que podem clientelismo, disputa de interesses particulares, ou não sustentar a inserção dos instrumentos fragmentação das políticas, na excessiva tecno- de participação e suas respectivas regulações cracia, na máquina pública despreparada para quanto à aplicabilidade, como por exemplo: servir a população. prazo para implementação, eleição dos conse- Nesse sentido, é importante recorrer à lheiros, representação de seguimentos, poder Putnam para uma reflexão sobre os desempe- de decisão dos órgãos. nhos das instituições políticas. Trata-se do que A construção dos Planos Diretores, por o autor e a tradição do “neo-institucionalis- meio de um contrato socioterritorial, tal como mo” chamam de “subordinação à trajetória”. formulado na concepção do Estatuto da Cida- Até que ponto a cultura organizacional, os de, implica identificar os processos sociais e costumes e as relações societárias condicionam econômicos de produção do espaço urbano e as decisões políticas e podem obstacularizar as os agentes coletivos e individuais que atuam aspirações e projetos de mudança, afetando o nesse processo (Santos Junior, 2008). desempenho institucional? 434 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular A cooperação ou a omissão e a exploração tornam-se entranhadas. As regras informais e a cultura não só mudam mais lentamente do que as regras formais, como tendem a remodelá-la, de modo que a imposição externa de um conjunto comum de regras formais acarreta resultados amplamente divergentes. (Putnam, 2002, p. 188) se trata de instituir regras de reciprocidade e sistemas de participação cívica” (p. 193) e, sabiamente, fez o seguinte aconselhamento: os que edificam novas instituições e os que as avaliam precisam ser pacientes (p. 193). O que, por sua vez, exige das forças democráticas e democratizadoras, no caso os movimentos sociais urbanos, os conselhos de políticas urbanas, entre outros agentes, a continuidade de uma atitude Pode-se dizer, dessa forma, que a inser- perseverante e uma ação mais sistemática e ção dos arranjos de participação popular nos permanente contra as crenças, valores, práticas, PDs explicaria, em grande medida, a constru- costumes e procedimentos da “velha” cultura ção sociopolítica e cultural de uma “comunida- política, por vezes predominante no Brasil. É de cívica”, além de promover a acumulação de preciso ponderar que a construção de políticas, capital social. Condição que por sua vez é deci- diretrizes e instrumentos de participação popu- siva para o bom desempenho das instituições lar, ainda que de forma limitada e setorial, não de governo. deva ser desprezada. No mesmo sentido, Santos Putnam observa, com muita proprieda- Júnior pondera sobre a importância da expe- de, que “a mudança institucional refletiu-se riência democrática cotidiana e a importância (gradualmente) na mudança de identidades, do processo de aprendizado político que essa valores, poderes e estratégias” (p. 193). Nessa prática acrescenta aos cidadãos participantes linha de pensamento, permite-se alimentar um dos debates públicos. Para ele só a prática pode relativo otimismo quanto ao importante papel efetivamente consolidar as novas experiências que a democratização da gestão de governo, de participação assim como resignificar as an- especialmente nas políticas urbanas, em curso tigas no novo espaço democrático (Santos Jú- no Brasil, pode desempenhar na proliferação e nior, 2010). O que significa, finalmente, que os difusão das estratégias, valores e poderes arranjos de participação contidos nos PDs, ao democráticos e democratizadores. Entretanto, lado e para além da ação no plano da política pode-se apostar em sociedades civis vigorosas e da mudança das instituições, devem ocorrer no conjunto das cidades brasileiras? também – e talvez com maior intensidade – no Putnam alerta os pesquisadores que “a história evolui ainda mais lentamente quando Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 difícil e sedimentado terreno da cultura política brasileira pré-existente. 435 Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki Renato Barbosa Fontes Assistente Social e mestre em Ciências Sociais. É professor dos cursos de Arquitetura & Urbanismo e Serviço Social no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Belo Horizonte/MG, Brasil. [email protected] Léa Guimarães Souki Socióloga e Doutora em Sociologia Política. Professora na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Belo Horizonte/MG, Brasil. [email protected] Notas (1) Os dados foram coletados no período de setembro de 2009 a fevereiro de 2010. Eles estão originalmente citados na dissertação de mestrado de um dos autores, Renato Barbosa Fontes, defendida no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais da PUC Minas (2010). (2) Os PDs disponibilizados pela SEDRU são os mesmos que estão disponíveis nos sites das Prefeituras. (3) Pesquisa realizada em 2008/09 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas, financiada pela Fapemig e coordenada pelo Prof. Carlos Alberto Rocha. (4) a) instituição do Conselho das Cidades (composição por segmento, caráter deliberativo ou consul vo, definição da eleição dos conselheiros); b) ins tuição de outros conselhos ligados à política urbana (conselho gestor do fundo de habitação de interesse social, de habitação, saneamento, transporte, etc.); c) definições rela vas às Conferências das Cidades (periodicidade, segmentos par cipantes); d) definições rela vas às consultas públicas (plebiscito, referendo popular ou outros); e) previsão de audiências públicas obrigatórias (previsão da par cipação de en dades representa vas dos vários segmentos da sociedade civil na formulação, execução e acompanhamento dos planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano). (5) Conselho de Desenvolvimento Urbano, Conselho de Gestão Urbana, Conselho de Política Urbana, Conselho de Desenvolvimento Sustentável, Conselho do Plano Diretor e Conselho de Desenvolvimento Municipal. (6) Como a base numérica é baixa para o cálculo de porcentagem, acrescentou-se na tabela o número absoluto. (7) “(...) I – opinar sobre propostas encaminhadas deliberando, em nível de recursos, sobre processos administra vos afetos ao Plano Diretor; II – coordenar, acompanhar e avaliar a implementação do Plano Diretor, nos seus aspectos territorial, econômico e social, assim como coordenar o seu processo de revisão; III – opinar sobre a instalação de empreendimentos de impacto; IV – opinar sobre casos omissos nos disposi vos legais municipais; V – opinar sobre compa bilidade de obras con das nos Planos Plurianuais e Orçamentos Anuais com as diretrizes do Plano Diretor” (Lagoa Santa, 2006). (8) O capítulo IV do Estatuto das Cidades (Brasil, 2001) é integralmente dedicado à sua garan a, prevendo instrumentos como os conselhos de política urbana; os debates, audiências e consultas públicas; as conferências de desenvolvimento urbano; a inicia va popular de projetos de lei e planos. 436 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 Planos diretores e canais democráticos de participação popular (9) Campanha organizada pelo Conselho Nacional das Cidades/Ministério das Cidades por meio da Resolução nº 15. Um dos eixos da campanha foi a “gestão democrá ca da cidade”, com a ins tuição de canais e mecanismos para a “par cipação de quem vive e constrói a cidade nas decisões e na implementação do Plano” (Brasil, 2006). (10) Art. 52, Lei. 10.257 – Estatuto da Cidade. (11) No final da década de 1960, cabe destacar o grande incen vo do governo mineiro para o setor industrial. Como apontam Andrade e Mendonça (2009), a Lei Estadual nº 5261 concedeu isenção de até 32% do ICMS para indústrias que se instalassem no Estado e para aquelas que promovessem a expansão de sua produção em pelo menos 40%. O grande impulso econômico, da região, aconteceu na década de 1960, com a instalação da Refinaria Gabriel Passos e da Fiat Automóveis, em 1973. Referências ANDRADE, L. T. e MENDONÇA, J. G. de (2009). “Ocupação Renda e Diferenciação Socioespacial”. In: ANDRADE, L. T. (org.). Como anda a Região Metropolitana de Belo Horizonte? Brasília, Ministério das Cidades. BETIM – MG (2007). Plano diretor do município de Be m. Lei 4574/2007. Be m/MG, Prefeitura Municipal. BRASIL (2001). Lei 10.257, de 10 de julho de 2001. Ins tui o Estatuto da Cidade. Disponível em: <h ps://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/LEIS_2001/L10257.htm>. Acesso em: 20 fev 2009. ______ (2004). Resolução nº 13, de 16 de junho de 2004. 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Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012 439 A expansão da RM de Belém: reflexões sobre os desdobramentos de investimentos oficiais em habitação The expansion of the Metropolitan Region of Belém: reflections on the developments of official investments in housing Ana Cláudia Duarte Cardoso Marcília Regina Gama Negrão Glaydson de Jesus Cordovil Pereira Resumo Este texto se inicia com paralelos entre a urbanização da Amazônia Oriental e a produção de seu espaço urbano, destacando aspectos da articulação de escalas, para a compreensão da distribuição de investimentos em áreas urbanas na última década. Os investimentos se concentram na Região Metropolitana de Belém, alinhados com estratégias do capital, e longe do atendimento das peculiaridades socioambientais locais. As áreas de estudo foram selecionadas em função de sua inserção na área metropolitana e adjacências, verificando-se que investimentos recentes do PAC e PMCMV reproduzem padrões de uso e ocupação antigos, pautados prioritariamente pelo fator custo. O artigo é finalizado com a sugestão de categorias de análise qualitativa que devem ser observadas no enquadramento de empreendimentos habitacionais realizados na região. Abstract This paper begins with comparisons between the Eastern Amazon urbanization and the production of its urban space, highlighting aspects of the articulation of scales for the understanding of investments distribution in urban areas over the last decade. The investments are concentrated in the Metropolitan Area of Belém, aligned with capitalist strategies, and far from meeting local socio-environmental requirements. The investigated areas were selected according to their insertion in the metropolitan area or its adjacencies, and it was found that recent investments of Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV – My House, My Life Program) and of Programa de Aceleração do Crescimento (PAC – Accelerated Growth Program) reproduce old usage and occupation patterns, defined mainly by costs. The paper is concluded with the suggestion of categories of qualitative analysis that should be observed in order to approve investments in housing made in that region. Palavras-chave: urbanização da Amazônia; Região Metropolitana de Belém; investimentos em áreas urbanas; PAC; PMCMV. Keywords: Amazon urbanization; Metropolitan Region of Belém; investments in urban areas; PAC; PMCMV. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 Ana Cláudia Duarte Cardoso et al. O contexto regras próprias até que ocorresse a integração econômica da região ao país, época em que o planejamento regional foi introduzido pelo A transformação do espaço da cidade e a evo- governo federal, sob influência das teorias per- lução das concepções de desenvolvimento e rouxianas,4 mas de forma desconectada da rea- particularmente de desenvolvimento urbano, lidade local. Ao invés de polos de irradiação de no decorrer do século XX e início do século XXI, desenvolvimento, foram criados enclaves, man- constituem rico campo de investigação, que re- tidos artificialmente pelas políticas de crédito, e quer cada vez mais a incorporação de formu- que resultaram na transferência de renda para lações oriundas de diferentes disciplinas, para centros de decisão localizados fora da região. que se compreenda a relação entre investimen- As mudanças realizadas expuseram a popula- tos recentes, realizados pelos setores público e ção nativa aos novos códigos do capitalismo privado, e o debate sobre a cidade desejável, concorrencial e a práticas de dominação que em curso no âmbito da formulação de uma po- associaram domínio da terra, poder econômico lítica de desenvolvimento urbano no país. e poder político.5 Na Amazônia, a associação histórica en- As novas manifestações do capitalismo e tre dinâmica econômica e processo de urbani- as políticas públicas criadas para a mitigação zação nos ajuda a compreender a origem de de seus efeitos focaram o planejamento prin- formações urbanas, por vezes assumidas como cipalmente na escala regional. Isso viabilizou tradicionais, por terem florescido à margem dos mudanças no papel das aglomerações e cida- grandes rios, sob dinâmicas fortemente orien- des, que nunca se tornaram grandes centros tadas para a atividade mercantilista; noutras produtivos industriais, mas mantiveram sua como cidades que se desenvolveram a partir da condição de ponto de apoio à exploração de instalação de novos modais, como o ferroviário recursos naturais. Desde então, assumiram a que, no início do século XX estruturou a área condição de pontos de controle e difusão de dedicada à produção rural e abastecimento de novos padrões de consumo, de novas condi- Belém1 e deu origem às cidades que hoje cons- ções de troca e controle da força de trabalho. tituem a Região Metropolitana de Belém,2 e o Foram garantidas as condições de reprodução rodoviário, que, a partir da segunda metade do do capital, mas as soluções foram insuficien- século XX, intensificou o processo de urbani- tes e inadequadas para a reprodução da força zação em toda a região, com criação de novas de trabalho, importadas de outros contextos, aglomerações e expansão das existentes. e comprometidas, sobretudo, com interesses Ainda que a urbanização seja, em regra geral, articulada à industrialização, no caso de imobiliários e o fortalecimento da indústria da construção civil.6 Belém e sua área de influência, a urbanização Nessa perspectiva, a condição de frontei- foi fomentada por atividades extrativistas e ra econômica destaca o uso das escalas como pela exportação de produtos que à época de- recorte para tomada de decisão, em relação à tinham grande importância econômica, como a tradicional aplicação na representação do ter- 3 borracha. Tudo se foi organizando a partir de 442 ritório.7 A tomada de decisão nas altas esferas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 A expansão da RM de Belém dos setores público e privado, por ocasião da importantes no processo de gestão nas escalas implantação dos grandes projetos federais na regional, municipal e urbana, que não evoluí- região, iniciou um processo de invisibilidade de ram da mesma forma na região Norte, que em segmentos e atores sociais de base local, que municípios de outras regiões do país, agravan- apresenta fortes consequências no presente. do a desatenção para os conflitos criados entre O desconhecimento de gestores sobre práticas tradicionais e os novos arranjos insti- a realidade local refletiu-se na desarticula- tucionais, comprometidos com interesses eco- ção entre investimento e planejamento, e na nômicos e políticos.10 deficiência crônica da gestão local. Os arranjos As intervenções realizadas em Belém no institucionais criados no início do processo, em decorrer do período citado se alinharam aos meados dos anos 1960 e 1970, para a formula- códigos socioespaciais importados, intensifi- ção de diagnósticos e propostas, formulação e cando as obras de saneamento e macrodrena- operação das políticas tiveram duração efême- gens, fomentaram uma expansão urbana que 8 ra. Esses arranjos abrangeram diversas insti- substituiu usos de glebas rurais por extensos tuições envolvendo os responsáveis pelas polí- conjuntos habitacionais, com interstícios que ticas urbanas da época, tais como o Ministério posteriormente deram lugar a invasões, nos do Interior e o INCRA (Instituto Nacional de anos 1980 e 1990, enquanto as glebas res- Colonização e Reforma Agrária), os órgãos vol- tantes bem localizadas foram ocupadas pelos tados para a formulação de estratégias e pro- novos condomínios fechados dos anos 2000 cessos de gestão, tais como o Serfhau (Serviço em diante. Após o fenômeno da globalização, Federal de Habitação e Urbanismo), o IBAM intensificou-se a valorização cenográfica da (Instituto Brasileiro de Administração Munici- paisagem, buscada com abertura das “janelas pal), as Secretarias Estaduais de Planejamento, para o rio”, revitalização de áreas históricas, a participação da academia através do projeto e pela artificialização da natureza nos novíssi- Rondon, e de equipes técnicas locais, além de mos condomínios.11 órgãos de operação como o Banco Nacional 9 Antes que as mudanças ocorridas fos- de Habitação. Atualmente os níveis interme- sem devidamente interpretadas, no sentido diários de implementação dessas políticas fo- da substituição do espaço coletivo pelo espa- ram eliminados, restringindo-se à atuação do ço privado, foram estabelecidos processos de Ministério das Cidades e de outras pastas es- periferização e desarticulação entre padrões tratégicas do governo federal, e à operação de de uso e ocupação do solo e práticas socio- recursos pela Caixa. Este formato causa forte culturais, com desconexões entre os tempos e dependência de recursos federais pelos Esta- ciclos da natureza, das pessoas, e dos fluxos dos e Municípios. econômicos e de informação.12 A cidade, de Após a introdução de novas ferramentas origem ribeirinha e de economia fortemente de planejamento pela Constituição de 1988, pautada pelos produtos da floresta, assimilou estados e municípios dedicaram-se à opera- a manifestação de “ilhas” desarticuladas no ção do Plano Plurianual, em substituição ao seu interior, correspondentes a espaços dis- planejamento do território, abrindo lacunas tintos (manifestações formais ou informais), Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 443 Ana Cláudia Duarte Cardoso et al. voltadas para perfis socioeconômicos diversos, Essa atuação foi particularmente estru- que recriam ou evocam a natureza para os ri- turante no território de Belém e posteriormen- cos e tornam invisíveis os pobres, tendendo a te foi transferida para o município de Ananin- negar a própria cidade. deua, na segunda légua patrimonial de Belém, sua atual área de expansão. As características espaciais dessas intervenções eram típicas do Da região para a metrópole: investimentos versus perfil de municípios padrão BNH, com grandes áreas parceladas, e ocupadas por lotes urbanizados com unidades habitacionais padronizadas, afastados das áreas urbanas consolidadas e carentes de serviços e equipamentos de uso coletivo.13 Após Os investimentos em habitação social finan- 30 anos, áreas destinadas a tais usos ainda ciados pelo BNH e operados pela COHAB/ aguardam tratamento, as casas foram amplia- PA no decorrer do período entre 1965 e 1988 das e as ruas e calçadas foram pavimentadas, (Tabela 1) expressam a contribuição da ação explicitando a regularidade que distingue tais federal para a consolidação da Região Metro- áreas das ocupações informais. A implantação politana de Belém (Belém e Ananindeua) e de dos condomínios fechados nas glebas lindei- outras cidades relacionadas aos projetos fe- ras aos grandes eixos urbanos (tais como as derais de mineração (Marabá) e produção de rodovias Augusto Montenegro e BR-316), no energia (Tucuruí). decorrer da última década, tem viabilizado Tabela 1 – Produção de Habitação de 1965 a 1988 pela Cohab/PA Municípios atendidos Unidades habitacionais produzidas Belém 6.635 Ananindeua 16.636 Castanhal 104 Soure 52 Santarém 288 Marabá 1.025 Tucuruí 1.418 São Geraldo do Araguaia 100 Vários municípios 2.130 Total 28.388 Fonte: Holanda (2011) a partir de dados do IDESP (1990). 444 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 A expansão da RM de Belém uma diversidade de perfis socioeconômicos e Se destacarmos dos totais apresentados, a chegada de serviços e equipamentos dentro como mostrado no Gráfico 2, o montante de 14 de uma concepção de subúrbio americano, recursos destinados para habitação com provi- em razão da forte dependência dos veículos e são de infraestrutura e equipamentos urbanos, da desarticulação espacial entre as malhas de contratados no mesmo período, e, portanto já ocupações e conjuntos habitacionais. abrangendo a primeira geração do PAC, obser- Ao analisarmos as classes de investimen- vamos que a tendência histórica se mantém. tos contratados entre os vinte municípios mais Contudo o processo de consolidação decor- populosos do Pará e a Caixa, no decorrer dos rente desses investimentos tem sido cada vez 15 anos de 2003 a 2009 (ver Gráfico 1), oriundos mais apropriado pelas estratégias do capital, dos Ministérios das Cidades, Lazer e Turismo, na medida em que permite que novas terras observamos o destaque para a RMB e para os sejam incorporadas ao mercado formal sem municípios que desde os anos 1960 recebem que haja uma ação programada para o enfren- investimentos federais em habitação. Todas as tamento dos déficits, seja no âmbito munici- faixas de recursos tendem a se concentrar nes- pal, seja no metropolitano. tas cidades e mais ainda em Belém e Ananindeua, nos casos dos contratos de maior valor. A perspectiva de favorecimento no acesso a recursos favorece demandas crescentes Gráfico 1 – Total dos investimentos dividido por tipologia de capital financeiro – 2003 a 2009 180 160 140 120 100 80 60 40 20 0 até R$100.000,00 de R$100.001,00 a R$500.000,00 de R$500.001,00 a R$1.000.000,00 de R$1.000.001,00 a R$5.000.000,00 de R$5.000.001,00 a R$10.000.000,00 de R$10.000.001,00 a R$20.000.000,00 mais de R$20.000.001,00 Fonte: Dados da planilha da Caixa Econômica Federal 2009, elaboração Souza (2011). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 445 Ana Cláudia Duarte Cardoso et al. Gráfico 2 – Total de investimentos para a construção de habitação, equipamentos e serviços urbanos de 2004 a 2009 60 50 até R$100.000,00 40 de R$1.000.001,00 a R$5.000.000,00 30 20 10 de R$5.000.001,00 a R$10.000.000,00 de R$10.000.001,00 a R$20.000.000,00 0 mais de R$20.000.001,00 Fonte: Dados da planilha da Caixa Econômica Federal 2009, elaboração Sousa (2011). de ampliação da RMB que, em 2010 agregou Observa-se que, nos municípios de pequeno o município de Santa Isabel, e conta com de- porte ocorrem impactos de grandes projetos mandas de agregação de municípios localiza- ligados à mineração e geração de energia que dos do outro lado da Baía do Guajará, caso de acarretaram taxas de crescimento elevadas, Barcarena e Abaetetuba, e ao longo da BR 316 mas que não superaram os 50.000 habitantes, incorporando o município de Castanhal. permanecendo fora do alcance dos recursos fe- Na leitura do estudo de Regiões de derais mais expressivos.16 Influên cia das Cidades realizado pelo IBGE A desconexão entre o perfil de municí- (2008), observa-se que o menor grau de pios da região norte e as premissas do gover- influên cia de uma cidade sobre seu territó- no federal para alocação de recursos, privile- rio, correspondente ao centro local, segue um giando os municípios com população maior corte aproximado de municípios com popu- que 150 mil habitantes para investimentos em lação acima de 50.000 habitantes, o que ex- habitação com infraestrutura e equipamentos, clui 85,6% dos municípios da região norte e demonstra que no decorrer de quatro décadas 72,02% dos municípios paraenses (ver Tabela o governo federal afasta-se da escala regio- 2) e suas dinâmicas específicas, cujas centra- nal e aproxima-se da escala metropolitana e lidades, muitas vezes, definem-se de acordo intraurbana, acompanhando o debate, inicial- com a sazonalidade das colheitas, nível dos mente focado na abertura de novas frentes de rios, manifestações culturais, entre outros. ocupação e na urbanização, travado no âmbito 446 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 A expansão da RM de Belém das conferências e fóruns da UN-Habitat (1976; interesse, como da habitação (criação do SHNIS 1996), mas que, no curso do processo histórico e do FHNIS, Lei nº 11.124/2004) e do sanea- de urbanização da região norte, significa uma mento (Lei nº 11.445/2007), pouco se tem alte- forte mudança de foco, uma vez que as cidades rado em termos de distribuição quantitativa ou e aglomerações fomentadas pelas ações dos aos padrões qualitativos dos empreendimentos anos 1960 e 1970, progressivamente manifes- na região em foco. tam problemas semelhantes aos das grandes Mesmo que as determinações das novas cidades, sem contarem com a faixa de popula- políticas urbanas acrescentem novas dimen- ção que lhes garanta prioridade de investimen- sões a serem cobradas em novas interven- to federal, ou permita a melhoria da gestão pú- ções, pouco tem sido garantido em termos de blica nas diversas áreas de interesse. inovação de propostas. Os projetos ainda não Em que pesem os avanços ocorridos após conseguiram incorporar aspectos relacionados a criação do Ministério das Cidades, em 2003, à gestão democrática, à possibilidade de ação tais como: a instalação do Conselho e Confe- consorciada entre entes federados, à necessi- 17 municipais, estaduais dade de articulação com prioridades apontadas e nacionais; o estabelecimento de diretrizes em planos setoriais municipais, que conduzam para as políticas urbanas brasileiras; o fomen- à realização de objetivos associados à garantia to a processos de gestão democrática e parti- de cidadania, como acesso universal ou redu- cipativa iniciado com a campanha dos planos ção de exclusão e desigualdade, e sustentabili- diretores participativos,18 e o avanço na regu- dade ambiental, social e econômica nos proje- lamentação em âmbito federal de políticas de tos de habitação e saneamento. rências das Cidades, Tabela 2 – Distribuição da população da região Norte por porte de município Habitantes AM RO 1 0 6 0 1 4 74 86 19,15 De 5.001 até 10.000 11 5 10 7 6 3 39 81 18,04 De 10.001 até 20.000 30 24 19 6 8 5 16 108 24,05 De 20.001 até 50.000 61 25 10 1 5 2 7 111 24,72 De 50.001 até 100.000 30 6 5 0 1 0 1 43 9,58 De 100.001 até 500.000 9 1 2 1 1 2 2 18 4,01 Mais de 500.000 1 1 0 0 0 0 0 2 0,45 143 62 52 15 22 16 139 449 100,00 Até 5.000 Total PA RR AC AP TO Total % Fonte: IBGE, 2010. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 447 Ana Cláudia Duarte Cardoso et al. As intervenções como indutoras no processo de expansão da RM de Belém de investimentos, diferentemente de municípios isolados que dependem de acesso fluvial, para os quais os custos da produção da construção civil são maiores. Quando obser vamos o escopo dos As intervenções ora em curso no âmbito dos normativos do Ministério das Cidades, ve- programas federais dirigidos para o público rificamos que cinco variáveis básicas são re- com renda entre zero e três salários mínimos, gulamentadas, referentes ao que poderá ser 19 no âmbito do PAC e do PMCMV, são estru- objeto do investimento em uma dada ação: turadas a partir de três segmentos principais: urbanização sem construção (melhoria em órgão gestor – Ministério das Cidades; agen- infraestrutura de assentamento); urbanização te operador – Caixa Econômica Federal; e com construção de unidade habitacional hori- agente proponente/executor – setor público zontal; urbanização com construção de unida- e terceiro setor. de habitacional vertical; elaboração e implan- Para garantir a ação coordenada desses segmentos e a transparência do processo, o tação de trabalho técnico social e elaboração de projetos técnicos. Ministério das Cidades publica, no seu sítio É necessário esclarecer que o custo da eletrônico, instruções normativas que regu- terra só pode compor o investimento como lamentam o enquadramento dos projetos contrapartida, no caso de o terreno já ser pro- nos programas, definindo diretrizes gerais e priedade do proponente, que dependeria de específicas. Essas regulamentações são es- um estoque de terras públicas, ou da utiliza- pelhadas pela Caixa, tendo em vista a aná- ção de terras cada vez mais afastadas e, em lise dos projetos e documentos técnicos a ela função disso, de baixo valor imobiliário. Por submetidos, em conformidade com a Lei de outro lado, o empreendimento poderá ter até Diretrizes Orçamentárias que, entre outras 40% dos domicílios ocupados por população coisas, estabelece a utilização obrigatória com faixa de renda superior ao determinado do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos pelo programa, prevendo o caso de famílias e Índices da Construção Civil – Sinapi, como que conseguem elevar a composição da renda referência de custo para todo o Brasil. Essa a partir da soma de diversas atividades. decisão tem forte repercussão sobre a aqui- Apresentamos dois quadros com parâ- sição de insumos para obras realizadas na metros de operação de programas dedicados região Norte, concebidas dentro da tecnolo- a situações distintas, o Projeto Piloto de In- gia estabelecida nacionalmente (alvenaria e vestimentos, voltado para Intervenções de Fa- concreto), e bastante diversa da tecnologia velas, e o Pró-moradia, dedicado à produção vernácula local (madeira). Nesse aspecto na de conjuntos habitacionais, nas versões ori- Região Metropolitana de Belém há maior fa- ginais (2007) e atual (2011). Cabe ressaltar cilidade de acesso de insumos (tijolos, cimen- que, em 2011, esses e todos os demais progra- to, seixo), e é área preferencial à realização mas dirigidos para a produção habitacional de 448 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 A expansão da RM de Belém interesse social foram incorporados ao Pro- O Quadro 2 apresenta os parâmetros do grama Minha Casa Minha Vida, o que em ter- programa Pró-Moradia, cuja principal alteração mos práticos aumenta os valores praticados e é a definição de valores específicos para cada concentra as estatísticas habitacionais do país estado, e a eliminação da equiparação de va- em um só programa. lores para regiões metropolitanas aos valores No Quadro 1 são apresentados os pa- praticados nos estados do RJ, SP e DF. Para râmetros para a operação do Projeto Piloto 2011, também houve a agregação de tipolo- de Investimentos – Intervenções de Favelas, gias vertical e horizontal em uma única cate- demonstrando que a evolução principal se goria. De um modo geral, observa-se que os refere à alocação de recursos para estudos, normativos atêm-se a questões específicas de planos e projetos, necessários para a orien- custo, e, grosso modo, à tipologia a ser adota- tação inicial da proposta. Entretanto, a falta da. Existem orientações mais detalhadas refe- de clareza quanto ao que pode ser financiado rentes a enquadramento por porte populacio- na variável projeto, induz a uma interpreta- nal do município (se pulverizado ou concentra- ção de sombreamento desta com a nova ca- do), aspectos fundiários e titularidade da área e tegoria. Houve também uma agregação das limites de financiamento por grupos de estados tipologias vertical e horizontal em uma só ca- em outras camadas dos normativos, que indu- tegoria, e, apesar dos contratempos relacio- zem a um afunilamento do foco dos técnicos nados ao trabalho técnico social no decorrer responsáveis pelas análises dos projetos, cada destes quatro anos de operação, nada mudou vez maior para as condições de garantia e con- neste quesito. tratação dos imóveis. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 449 450 R$21.600,00/família (demais municípios) R$ 27.600,00 / família (correspondente ao acréscimo de 20% sobre o valor de UH Horizontal) (capitais estaduais ou integrantes de RM ou RIDE ou aglomerado urbano) R$23.000,00/família (capitais estaduais ou integrantes de RM ou RIDE ou aglomerado urbano) R$18.000,00/família (demais municípios) Urbanização com construção de UH vertical20 Urbanização com construção de UH horizontal É recomendável a aplicação de, no mínimo, 2,5% do valor de investimento Trabalho técnico-social21 Ministério das Cidades: Instrução Normativa nº 27 -14/6/2007; Instrução Normativa nº 49 – 17/10/2007 Estudos, planos e projetos de urbanização de assentamentos precários Limitado a 3% do valor previsto para execução do empreendimento Ações necessárias à execução do empreendimento, incluindo obras e trabalho técnico-social Valores Limite (regiões beneficiadas) R$13.000,00/família (todos os municípios) Urbanização sem construção de UH Trabalho técnico-social É recomendável a aplicação de, no mínimo, 2,5% do valor de investimento Urbanização com construção de UH Valores do PMCMV/FAR para construção/aquisição habitacional R$43.000,00 (apartamento) R$39.000,00 (casa) (para os municípios do estado do Pará) Projetos Limitado a 3% do valor de repasse Projetos Limitado a 3% do valor de repasse Ministério das Cidades: in MCidades nº 8, de 26/3/2009; Lei nº 12.309, de 9/8/2010; Portaria MCidades nº 228, de 11/5/2010. Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU nº 127, de 29/5/2008, e suas alterações R$11.000,00/família (todos os municípios) Valores limite (regiões beneficiadas) Normativos vigentes atualmente Urbanização sem construção de UH Ações necessárias à execução do empreendimento, incluindo obras e trabalho técnico-social Normativos vigentes em 2007 Quadro 1 – Quadro resumo dos parâmetros normativos dos programas do governo federal voltados à produção de habitação de interesse social – Projetos Piloto de Investimento – PPI – Intervenções em favelas Ana Cláudia Duarte Cardoso et al. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 Valores limite (regiões beneficiadas) É recomendável a aplicação de, no mínimo, 2,5% do valor de investimento Trabalho técnico-social Trabalho técnico-social É recomendável a aplicação de, no mínimo, 2,5% do valor de investimento Urbanização com construção de UH Valores do PMCMV/FAR para construção/ aquisição habitacional R$43.000,00 (apartamento) R$39.000,00 (casa) (para os municípios do estado do Pará) Ações necessárias à execução do empreendimento, incluindo obras e trabalho técnico-social Valores limite (regiões beneficiadas) Instrução Normativa MCIDADES nº 16, de 17/3/2011 – Regulamenta o Programa de Atendimento Habitacional através do Poder Público – Pró-Moradia R$ 36.000,00 / família R$ 33.600,00 / família R$ 24.000,00 / família (correspondente ao acréscimo de 20% sobre o valor de UH horizontal) R$30.000,00/família (municípios integrantes de região metropolitana ou equivalentes dos estados do RJ, SP ou DF) R$28.000,00/família (municípios com população urbana igual ou superior a cem mil habitantes, capitais estaduais, ou integrantes de demais RM’s ou equivalentes) R$20.000,00/família (demais municípios) Normativos vigentes atualmente Urbanização com construção de UH vertical Urbanização com construção de UH horizontal Limitado a 1,5% do valor de repasse Projetos Limitado a 3% do valor de repasse Projetos Instrução Normativa MPO nº 11, de 6/8/1998 - Regulamenta a Res. CCFGTS nº 288, de 30/6/998; Instrução Normativa MCIDADES nº 16, de 4/5/2007 – Regulamenta o Programa de Atendimento Habitacional através do Poder Público – Pró-Moradia e revoga a IN nº 21, de 15/7/2005 Ações necessárias à execução do empreendimento, incluindo obras e trabalho técnico-social Normativos vigentes em 2007 Quadro 2 – Quadro resumo dos parâmetros normativos dos programas do governo federal voltados à produção de habitação de interesse social – Projetos Piloto de Investimento – Pró-Moradia – Modalidade produção de conjuntos habitacionais A expansão da RM de Belém 451 Ana Cláudia Duarte Cardoso et al. Como ilustração da manifestação dessas nascentes e cabeceiras de cursos d’água que ações na Região Metropolitana de Belém, fo- compõem as Bacias Hidrográficas de Belém ram selecionados projetos habitacionais diver- (Belém, 2008), no caso em questão a bacia do sos na sua localização e no seu enquadramen- Mata Fome. Segundo o PDU (Belém, 2008), to para uma breve comparação e análise. na ZEIA “nenhum uso será permitido”. A so- O primeiro deles é o Projeto Liberdade, lução adotada retifica o parcelamento pré- localizado na periferia da área central de Be- -existente e adota tipologia de casas de área lém, em área de baixada que vem sendo objeto mínima (39m²) assemelhadas à tipologia de de intervenção de saneamento e viária (macro- conjuntos populares construídos pelo BNH/ drenagem e adequação do sistema viário do Cohab na década de 1970. A requalificação entorno do Igarapé Tucunduba). O projeto ci- da área permitiu a integração das ruas do as- tado se articula a outras ações iniciadas no seu sentamento com as principais vias do sistema entorno, no âmbito do programa Habitar Brasil viário (Rod. Arthur Bernardes, Ruas Yamada e BID e continuada como PPI – Intervenções em John Engelhard), onde se concentram ativida- favelas, Pró-Moradia e do FNHIS, recebendo des comerciais e serviços, como o transporte famílias remanejadas das obras de duplicação público, melhorando a acessibilidade da área. da Av. Perimetral e de Urbanização do Igara- A densidade na área de entorno é baixa, com pé do Tucunduba. A solução arquitetônica e de ocupação predominante de habitações verná- urbanização adotadas neste projeto reproduz culas e condomínios habitacionais antigos, e uma tipologia testada em situação semelhan- usos industriais na avenida paralela à orla (Av. te, na orla da Baía do Guajará, em um projeto Arthur Bernardes). denominado Vila da Barca, em execução pela Na atual periferia metropolitana, en- Prefeitura Municipal de Belém há aproxima- contra-se o Residencial Jardim das Garças, damente dez anos. O Residencial Liberdade é localizado no município de Santa Izabel. É o a maior intervenção do PAC no município de caso mais segregado dentre todos os citados, Belém, e apresenta a mais alta densidade po- localizado em um ramal da Rod BR 316. A ti- pulacional da RMB, 624 hab/ha, superando a pologia adotada é a mesma da comunidade densidade demográfica do bairro em que está Pratinha, e os recursos são provenientes do inserido, e que foi capaz de induzir uma dupla PAC e PMCMV, aproveitando áreas de pro- excepcionalização do enquadramento da área priedade do proponente, a Cohab/PA. O em- na legislação municipal, quanto ao uso per- preendimento é desarticulado de serviços e mitido e quanto à extrapolação da densidade equipamentos até do centro da área urbana de máxima admitida. Santa Izabel, em uma situação que, apesar de O segundo projeto apresentado chama- periurbana do ponto de vista da localização, -se Comunidade Pratinha, localizado na área não permite usos periurbanos, ou rurais, tais de expansão urbana de Belém, está inserido como hortas ou criações, diante do tamanho em uma Zona Especial de Interesse Ambien- do lote praticado (160 m²). tal (ZEIA) da macrozona do Ambiente Urbano O último empreendimento citado é a (ZAU 4), a qual caracteriza-se por conterem Comunidade Jaderlândia, enquadrado como 452 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 A expansão da RM de Belém PPI – Intervenções em Favelas, para requali- quantitativos cobrados pelas normativas da ficação de uma área ocupada nos anos 1980, Caixa. Entretanto, destaca-se a informação do parte de um empreendimento da COHAB/ período de tramitação dos processos de apro- PA, ocupado ilegalmente antes da provisão vação dos projetos físico, social e do licencia- de infraestrutura. Esse empreendimento está mento ambiental de cada empreendimento, localizado a 77 km de Belém, no município que revela a inversão existente entre levanta- 22 o qual reivindica inclusão na mento do perfil e das necessidades dos futuros RMB. O projeto prevê ações de remanejamen- beneficiários, a compreensão dos limites am- to, para liberação de margem de manancial, bientais da área objeto de intervenção e a con- construção de novas unidades (450 famílias) cepção da proposta física, ou de engenharia, e provisão de infraestrutura para a comunida- uma vez que o projeto social sequer foi con- de em geral (2.250 famílias). Já se observa na cluído em todos os empreendimentos, e que o área movimentos de retorno de famílias que processo de licenciamento ambiental é parale- não se adaptaram às novas moradias, para as lo e mais longo que o tempo de elaboração do áreas adjacentes ao projeto, em consequência projeto de engenharia. de Castanhal, da mudança de modo de vida (de uma realidade periurbana para urbana). Essas dificuldades estão associadas à existência de diferentes instâncias de aprova- A Figura 1 apresenta a região metropo- ção (Caixa para projetos físico e social, Estados litana, com limites municipais e localização e Municípios para licenciamento ambiental, dos empreendimentos citados. No Quadro Município para controle urbanístico), à desar- 3, é apresentada uma síntese dos quatro ticulação entre as mesmas e às assimetrias na projetos citados acima, com ilustrações e capacidade de análise nas diferentes equipes. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 453 Ana Cláudia Duarte Cardoso et al. Figura 1 – Localização dos empreendimentos PAC e PMCMV objetos de estudo na RMB mais o muncípio de Castanhal – PA Legenda: Rodovia Municípios Residencial Liberdade Comunidade Pra nha Jardim das Garças Comunidade Jaderlândia Fonte: Cohab; Celpa; IBGE, 2000; CEF, 2012. Elaboração: Raul da Silva Ventura Neto; Taynara do Vale. Adaptado a partir de imagem do Google Earth – 2010. 454 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 R$41.353.141,98 Valor do investimento 2010 2.250 2009 População beneficiada 2008 450 2007 Comunidade Jaderlândia Castanhal Número de UH Fonte: CAIXA, 2011 – GIDUR/BE A área do projeto Tipologia arquitetônica Processo de aprovação Variáveis 2011 2007 2009 2010 R$27.798.059,81 11.030 350 UH + 1.856 melhorias de infraestrutura 2008 Comunidade Pratinha Belém 2011 2007 11.680 2.336 2009 2010 R$128.862.226,09 2008 Residencial Liberdade Belém Projetos habitacionais – Localização Quadro 3 – Situação dos estudos de caso Legenda 2011 1.120 224 2009 2010 R$7.731.163,36 2008 Projeto técnico-social (CAIXA) Licença ambiental (SEMA) Projeto físico (CAIXA) 2007 Jardim das Garças Santa Izabel do Pará 2011 A expansão da RM de Belém 455 Ana Cláudia Duarte Cardoso et al. Considerações finais expulsão dos ocupantes da área, que resultará À exceção do Residencial Liberdade, os proje- de uso e ocupação do solo a ser fomentado, tos são parecidos independentemente de sua de modo a compatibilizar investimento, tipolo- inserção no contexto regional, demonstrando gia e modo de vida da população a ser fixa- maior atenção ao atendimento dos padrões da na área. Este aspecto está intrinsecamente quantitativos dos programas, e ao acesso dos articulado a atributos do projeto adotado, no recursos, facilitado pela condição metropoli- que se refere à seleção de tipologias, densi- tana (valores mais altos, melhores condições dades praticadas, conexões criadas com a ci- logísticas, disponibilidade de empresas, mão dade pré-existente ou consolidada, mudanças de obra e material de construção), além da na acessibilidade e no potencial de ampliação possibilidade de expansão progressiva da pe- da oferta de serviços e diversificação de usos. riferia da RMB. No entanto, dentro desse uni- Esses atributos são raramente considerados verso, existem condições ambientais e sociais em virtude da escassez de tempo para reali- não consideradas, exatamente da mesma for- zação de diagnóstico e formulação de uma ma como ocorrido há 40 anos, por ocasião das agenda social e física para os empreendimen- intervenções federais indutoras da urbanização tos, e agravados pela busca de ampliação da da região. margem de lucro dos executores, que se valem na inversão dos objetivos dos programas. O segundo foco de atenção é o padrão Em todos os projetos há atenção para da repetição indistinta das tipologias, e das com acesso universal e recuperação ambiental, velhas fórmulas de localização e estruturação temas mais facilmente contemplados na escala espacial desses assentamentos. do assentamento do que na unidade habita- Além desses aspectos, merece atenção cional, indicando que entre a diretriz (norma, a capacidade de gestão instalada, refletida regulamento, etc.) e a execução, ainda há di- na capacidade de diagnóstico, planejamento, versos obstáculos a suplantar. formulação de projetos, captação de recur- Diante de todo o exposto, observamos sos, e controle urbanístico dos municípios, que algumas contribuições das formulações tanto menor quanto maior a distância do cen- recentes da política urbana brasileira são pre- tro metropolitano. mentes na avaliação dos empreendimentos, A negligência dos atributos citados re- apesar de negligenciadas pelas instruções força a tese da invisibilidade de atores sociais normativas e por mecanismos de gestão que estabelecidos na escala local (os supostos deveriam atentar para aspectos regionais e beneficiários), quando a tomada de decisão locais. A primeira delas é uma rigorosa análise acontece em outras esferas, como vem ocor- da inserção da ação no contexto fundiário em rendo com a aplicação estrita dos normativos questão, visto que a inversão entre diagnóstico do Ministério das Cidades e da Caixa, sem das necessidades e elaboração de projeto pode mediação de órgãos estaduais ou municipais resultar na mera incorporação das áreas bene- dedicados ao planejamento ou formulação de ficiadas ao mercado de terras formal, e futura políticas urbanas. 456 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 A expansão da RM de Belém Ana Cláudia Duarte Cardoso Arquiteta e Urbanista. Professora Adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará e Pesquisadora do Instituto Tecnológico Vale. Belém/Pará, Brasil. [email protected] Marcília Regina Gama Negrão Arquiteta e Urbanista. Mestre em Engenharia Civil. Educadora não formal, Fase Amazônia, Núcleo Cidadania. Belém/Pará, Brasil [email protected] Glaydson de Jesus Cordovil Pereira Arquiteto e Urbanista. Especialista em Gestão da Qualidade na Construção Civil e Mestrando da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará. Arquiteto da Caixa Econômica Federal – GIDUR/BE. Belém/Pará, Brasil. [email protected] Agradecimento Agradecemos ao CNPq pelo apoio financeiro à pesquisa “Contribuições para a construção de uma polí ca urbana para regiões periféricas no Brasil: Ar culações entre o planejamento da região e a construção do espaço intra-urbano na Amazônia (FASE I)”, e à revisora Laís Zumero. Notas (1) Ver Idesp, 2007 e entrevista concedida em janeiro de 2011 por Lenilson Holanda. Economista do Serfhau e Secretaria de Estado de Planejamento do Governo do Pará e Ex-Secretário de Planejamento de Castanhal e Marabá. (2) A Região Metropolitana de Belém é composta pelos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba, Benevides, Santa Bárbara e Santa Isabel do Pará. (3) Ver Cardoso, 2011. (4) Ver Perroux, 1967. (5) Leitão, 2009. (6) Ver Valença e Bonates, 2010; Maricato, 2001. (7) Ver FVPP/UFPA, 2005. (8) Ver Rolnik (1997). (9) Ver MINTER/SERFHAU, 1972. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 457 Ana Cláudia Duarte Cardoso et al. (10) Ver Rezende 2009, p. 49. (11) Ver Araújo (2008) e Rolnik, 2011. (12) Ver Emillianof (1997) citada por Copams (2009) (13) Ver Maricato (1996) e Villaça (1999). (14) Ver Lima et al. (2005). (15) Dados da planilha da Caixa Econômica Federal 2009, elaborada por Sousa (2010) (16) Juruti ilustra essa afirmação. O município tinha população de 31.198 habitantes em 2000, ampliada para 47.086 habitantes em 2010, após a instalação da exploração de bauxita pela Alcoa. (17) As Conferências das Cidades como prá cas polí co-sociais se cons tuem em um espaço no processo de Gestão Democrá ca da cidade. Foram estabelecidas através do Estatuto da Cidade, Lei 10.257/2001, e implementadas a par r do ano de 2003 com a criação do Ministério das Cidades e visam a propiciar a discussão de temas relacionados à produção do espaço urbano com movimentos e en dades (atores sociais) – organizados em segmentos, tais quais Trabalhadores, Empresários ligados a construção civil, Ong’s, Movimentos Populares, Poder Público (nas três esferas de governo no Execu vo e Legisla vo) e En dades Acadêmicas, Profissionais, de Pesquisa e Conselhos Federais (profissionais). (18) A obrigatoriedade de elaboração de Plano Diretor para municípios acima de 20.000 habitantes e para municípios onde se situam grandes projetos foi estabelecida pela Cons tuição Federal de 1988 que regulamentou o Estatuto da Cidade. Apesar da obrigatoriedade, segundo as informações do IBGE – Perfil dos Municípios Brasileiros 2005 – em 2001, apenas 17,6% dos 5.560 municípios no país possuíam Plano Diretor no ano de ins tuição da Lei. Considerando apenas o conjunto dos municípios com população residente acima de 20.000 habitantes, o percentual alcançava 38,2%, sinalizando que a existência desse instrumento de gestão urbana está fortemente condicionada pelo porte populacional. Quanto à distribuição geográfica, destaca-se a região Sul como aquela onde havia o maior percentual de municípios (33,7%) com Plano Diretor, contra o Nordeste que apresentava apenas 10%. Nesse cenário, o Ministério das Cidades reuniu esforços no sen do de orientar os municípios na elaboração de seus Planos Diretores (PDs) a par r de uma campanha nacional finalizada no ano de 2006 (Lubambo, 2005). (19) Programa de Aceleração do Crescimento e Programa Minha Casa Minha Vida (20) Entende-se por unidade habitacional ver calizada a unidade habitacional cujo(s) pavimento(s) superior(es) e térreo sejam des nados a núcleos familiares dis ntos. (21) Corresponde à realização das ações de par cipação, mobilização e organização comunitária, educação sanitária e ambiental e a vidades ou ações de geração de trabalho e renda, des nadas à população diretamente beneficiada. (22) Castanhal foi adotado como município-modelo de uma concepção de planejamento local também no âmbito estadual, e que, apesar da descon nuidade da trajetória de planejamento e mudança de gestão ocorrida nos anos 1990 e 2000, hoje conta com um raro atributo: zerou o déficit habitacional acumulado com as contratações realizadas a par r de 2007, a par r das contratações dos Programa de Aceleração do Crescimento e do Programa Minha Casa Minha Vida (Pará, 2009). 458 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 A expansão da RM de Belém Referências ARAÚJO, F. de S. (2008). Entre portais do espetáculo e portas do co diano sobre as águas do Guamá: cartografando processos constru vos de subje vação no Jurunas, Belém-PA. Dissertação de Mestrado. 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Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012 461 Direito ao espaço cotidiano: moradia e autonomia no plano de uma metrópole The right to the everyday space: housing and autonomy in the master plan of a metropolis Silke Kapp Resumo A proposição de Henri Lefebvre de um direito à cidade tem sido amplamente utilizada em meios acadêmicos e extra-acadêmicos, com tendência a uma certa banalização. O presente artigo retoma alguns aspectos dessa proposição aqui considerados fundamentais, para então discutir sua relação com a ordem jurídico-urbanística inaugurada pelo Estatuto da Cidade, particularmente no que diz respeito aos princípios de participação e autonomia. A terceira parte explora uma possibilidade de ampliação concreta da autonomia coletiva na escala microlocal, partindo dos estudos da temática habitacional elaborados para o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI-RMBH). Ainda com base nesses estudos, a quarta parte sintetiza os entraves à autonomia nas instituições existentes, e a última parte expõe a proposta de uma Tipologia de espaços cotidianos para estruturar articulações que a favoreçam. Palavras-chave: espaço cotidiano; habitação; autonomia; planejamento; Região Metropolitana de Belo Horizonte. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Abstract Lefebvre’s proposition of a right to the city has been widely used in academic and extra-academic circles, with a tendency to oversimplification. This paper resumes some aspects of this proposition that we consider fundamental, and then discusses their relationship to the legal order inaugurated by the City Statute, particularly with regard to the principles of participation and autonomy. The third part explores a possibility of concrete amplification of collective autonomy at the microlocal scale, drawing from studies developed for the Master Plan for the Integrated Development of the Metropolitan Region of Belo Horizonte (Brazil). Also based on these studies, the fourth part summarizes the barriers to autonomy in the existing institutions, and the last part outlines the proposal for a typology of everyday spaces to structure articulations that could favor it. Keywords: everyday space; housing; autonomy; planning; Metropolitan Region of Belo Horizonte. Silke Kapp Imaginar a cidade tais como são. Pelo contrário, trata-se de “prospectar as novas necessidades, sabendo que tais necessidades são descobertas no Há uma entrevista do psicólogo social Erich decorrer de sua emergência e que elas se re- Fromm à rede de televisão norte-americana velam no decorrer da prospecção” (Lefebvre, ABC no ano de 1958 em que, a certa altura, ele 2001 [1968], p. 125). O direito à cidade é o se diz a favor do socialismo desde que o termo direito de imaginar e realizar a cidade, contí- não fosse identificado com o regime então em nua e concomitantemente. Lefebvre associa vigor na União Soviética, mas com “uma socie- esse processo aos procedimentos artísticos e dade na qual o objetivo da produção não é o propõe “pôr a arte ao serviço do urbano” para lucro, mas o uso, na qual o cidadão individual abrir uma “práxis e poiesis em escala social” participa de modo responsável no seu traba- (Lefebvre, 2001 [1968], pp. 134-135). lho e em toda a organização social, e na qual ele não é um meio empregado pelo capital” (Fromm, 1958). O jornalista Mike Wallace, reproduzindo o discurso típico da grande mídia ocidental, retruca que o trabalhador que não fosse empregado do capital se tornaria empregado do Estado e estaria numa situação ainda pior. E Fromm, como que solicitando ao inter- O direito à cidade se manifesta como forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade. (Lefebvre, 2001 [1968], p. 135; grifos do autor) locutor e ao público a ultrapassagem do raciocínio polarizado entre uma ou outra forma de A expressão lefebvriana tem estado na dominação social, responde: “Temos sido incri- pauta das discussões nacionais e internacio- velmente imaginativos em tudo o que diz res- nais, acadêmicas e extra-acadêmicas, especial- peito à técnica e à ciência. Mas quando se trata mente entre grupos que intencionam uma ou de mudanças nos arranjos sociais, tem nos fal- outra forma de resistências à globalização de tado totalmente a imaginação” (Fromm, 1958). modelo neoliberal e à governança corporativa Uma tal imaginação para mudanças das cidades que ela tende a promover. Além nos arranjos sociais também me parece im- de inúmeras publicações e da Carta Mundial prescindível à concepção de direito à cidade pelo Direito à Cidade , são exemplos nesse formulada por Henri Lefebvre. Como sugere sentido conferências como Rights to the City: Harvey (2012, p. xiii), a gênese dessa con- Citizenship, Democracy and Cities in a Global cepção pouco antes dos eventos de maio de Age (Toronto, 1998) e Rights to the City (Ro- 1968 provavelmente deva mais ao ativismo ma, 2002), diversos eventos no Fórum Social nas ruas e vizinhanças de Paris do que à tradi- Mundial, movimentos como o Right to the City ção intelectual em que ela (também) se apóia. Alliance (EUA) e o Recht auf Stadt-Netzwerk O pleito de Lefebvre não é simplesmente um (Alemanha), e legislações como a Lei de Desen- pleito pela satisfação de necessidades defi- volvimento Territorial na Colômbia e o Estatuto nidas ou induzidas na cidade e na sociedade, da Cidade no Brasil. 464 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Direito ao espaço cotidiano Nesse contexto de difusão relativamente ampla, o significado da expressão “direito à cidade” se tornou objeto de disputa. Diversos autores têm protestado contra sua banalização como simples análogo ou somatório do acesso ampliado a serviços e equipamentos de habitação, saúde, educação, transporte e lazer. Mitchell (2003) discutiu em profundidade o que significaria habitação e apropriação da cidade no sentido lefebvriano, muito além da acomodação de cada família numa unidade habitacional de determinado padrão. Harvey (2008) vem tentando resgatar o caráter emancipatório do direito à cidade, enfatizando que se trata “do exercício de um poder coletivo de dar uma nova forma ao processo de urbanização”. Souza (2010, p. 319) argumenta que sua “trivialização e corrupção” tende a tornar essa expressão inútil para quaisquer propósitos críticos. Merrifield (2011) retoma as possibilidades de transformação criativa hoje, explorando um artigo tardio em que o próprio Lefebvre abandona a ideia do direito à cidade (“entrega-a ao inimigo”) por considerá-la ultrapassada “quando a cidade se perde numa metamorfose planetária” (Lefebvre, 1989). E principalmente Purcell (2002) se opôs, já há alguns anos, a leituras políticas e econômicas na cidade e para além dela. (Purcell, 2002, p. 101) Segundo Purcell, a diferença entre o direito à cidade intencionado por Lefebvre e as ideias que têm sido veiculadas em seu nome equivale à diferença entre uma democratização parcial das decisões hoje tomadas na esfera do Estado e uma democratização radical de todas as decisões que afetam a produção do espaço urbano, isto é, também daquelas hoje tomadas na esfera do capital. Isso significaria nada menos do que uma rearticulação mundial de escalas de governança, com a substituição da atual hegemonia do Estado-nação por uma hegemonia das cidades governadas diretamente por seus habitantes. Os resultados disso são inteiramente abertos, imprevisíveis, porque não se limitariam à redistribuição socialmente mais justa das possibilidades disponíveis, nem estacionariam diante dos entraves operacionais determinados pelas instituições existentes. Elas mobilizariam aquele tipo de imaginação solicitado por Erich Fromm, mas nada garante que levariam a um estado de coisas que, nas perspectivas que a cidade e a sociedade atual oferecem, fosse considerado ideal. superficiais, “escavando” as proposições de Lefebvre até as últimas consequências: Reformar a cidade [...] o direito à cidade de Lefebvre é um argumento para mudar profundamente tanto as relações sociais do capitalismo quanto as estruturas vigentes de cidadania democrático-liberal. Seu direito à cidade não é uma sugestão de reforma, nem visa a uma resistência fragmentada, tática, passo-a-passo. Sua ideia é em vez disso uma convocação para uma reestruturação radical de relações sociais, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 No Brasil, a resposta à chamada crise urbana centrou-se por décadas na ideia da reforma urbana; e reforma, como se sabe, não é revolução, pois ocorre dentro de estruturas e instituições sociais existentes. Inaugurada formalmente com o Seminário de Habitação e Reforma Urbana de 1963 (Bonduki e Koury, 465 Silke Kapp 2010), a mobilização por essa ideia se tornou leis, planos e instrumentos jurídicos tende a mais expressiva com a elaboração da Emenda ser inútil porque, no melhor dos casos, resulta Popular da Reforma Urbana (Silva, 1991), par- em documentos de conteúdo escorregadio e de cialmente acatada nos Artigos 182 e 183 da uma linguagem que permite apropriações por Constituição Federal de 1988. A regulamen- agendas opostas, ao ponto de simplesmente le- tação desses artigos pelo Estatuto da Cidade, gitimar o status quo. No segundo caso, caberia que pode ser considerada uma conquista dos o contra-argumento de Mitchell (2003), de que movimentos e entidades reunidos no Fórum pressões populares podem, sim, levar o Estado Nacional da Reforma Urbana, permite afir- de Direito a proteger os socialmente mais fra- mar que “o Brasil incorporou formalmente a cos e a fortalecer agendas emancipatórias. noção de ‘direito à cidade’ em [seu] sistema Ermínia Maricato, que foi responsável legal” (Fernandes, 2007, p. 202). O processo pela defesa da Emenda perante a Comissão possibilitou a criação de uma ordem jurídico- de Sistematização da Constituinte e teve im- -urbanística na qual as chamadas funções portantes atuações na Prefeitura de São Paulo sociais da propriedade e da cidade são decla- e no Ministério das Cidades, assumiu recente- radas prioritárias, bem como a criação de um mente a alternativa mais pessimista. Ela diag- Ministério das Cidades para articular políticas nostica que o ciclo de mobilização no Brasil se habitacionais e urbanas, um Sistema Nacional encerrou sem alcançar “uma mudança de rota e um Fundo Nacional de Habitação, e inúme- no rumo que orientou a construção das cida- ros órgãos e conselhos estaduais e municipais des” (Maricato, 2011, p. 77). A disputa dos ca- para detalhá-las e pô-las em prática. pitais por localização e pelo valor de uso com- Na perspectiva de transformação radi- plexo das cidades, a indústria imobiliária e as cal, aberta e imprevisível que Lefebvre levan- operações especulativas continuam muito mais ta, a incorporação do direito à cidade num determinantes na produção do espaço urbano sistema legal existente seria contraditória. Há do que qualquer participação popular nas de- de se convir então que o direito à cidade ins- cisões do Estado ou qualquer função social da titucionalizado no Brasil não tem caráter re- propriedade. Muito se fez em termos institu- volucionário. Declaradamente, a “bandeira de cionais, abriram-se alguns canais novos, houve luta” da reforma urbana desde os anos 1980 um aprimoramento politicamente correto dos visa, sobretudo, a amenizar a dicotomia entre discursos (inclusive das frentes mais conser- cidade legal e clandestina, cidade moderna e vadoras) e um aporte significativo de meios, precária, cidade rica e pobre (Silva, 1991, p. 7). mas as cidades estão piorando e os supostos A questão é se esse enquadramento mais limi- avanços dificilmente chegam aos meandros do tado constituirá um dos muitos expedientes de cotidiano, seja da própria população, seja da neutralização das energias críticas nessa socie- administração pública ou do trabalho técnico. dade ou se ele pode avançar paulatinamente Enquanto isso, “o ideário da ‘reforma urbana’ rumo a mais espaços de democracia direta. No que tem o ‘direito à cidade’ ou a justiça urbana primeiro caso, caberia aplicar-lhe o argumento como questão central [...] parece ter se evapo- de Tushnet (1984), de que o engajamento por rado” (Maricato, 2011, p. 29). 466 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Direito ao espaço cotidiano Cardoso e Silveira (2011) chegam a Nesse sentido, uma fragilidade funda- conclusões semelhantes, se bem que não tão mental do Estatuto é o papel acessório que categóricas, acerca dos Planos Diretores ela- nele se atribui à participação popular. Não borados a partir do Estatuto da Cidade: in- que ela não seja mencionada inúmeras ve- tenções e objetivos relevantes estão em toda zes. Mas as menções têm justamente aquele parte, mas há poucas medidas e estratégias caráter vago criticado por Tushnet (1984). Co- concretas para sua realização. Poder-se-ia mo Souza (2006, p. 221) analisa com muita acrescentar que esse efeito estava quase pré- contundência, “a maneira como o Estatuto -programado no Estatuto porque, paradoxal- a esta se refere é, quase sempre, indefinida – mente, a mesma legislação federal que esta- admitindo-se uma interpretação que privilegie, belece a função social da propriedade torna a depender da Prefeitura, um processo delibe- sua aplicação inteiramente dependente das rativo ou meramente consultivo – ou então a instâncias legislativas e executivas municipais tônica é claramente consultiva”. Discutimos (e aos agentes privados capazes de influenciá- em outra ocasião (acrescentar depois) que a -las localmente), dando-lhes poder suficien- participação institucionalizada, orquestrada te para procrastinar tal aplicação por mais por técnicos e administradores públicos para algumas décadas. Soma-se a isso a incoe- satisfazer exigências formais, não é apenas rência de programas federais mais recentes, insuficiente, mas perniciosa. Ela não constitui cujos recursos podem atropelar o mais bem um “degrau” numa “escada da participação” intencionado planejamento municipal, como (Arnstein, 1969) cujo topo seria a autogestão vem ocorrendo em muitos empreendimentos ou a autonomia coletiva dos habitantes da ci- do Programa Minha Casa Minha Vida ou do dade (Souza, 2001), mas burocratiza, frustra e Programa de Aceleração do Crescimento. arrefece o engajamento. Isso vale muito parti- Por outro lado, assumindo a alternativa cularmente para o contexto de intervenções em menos pessimista, pode-se considerar que a áreas habitadas pela população política e eco- formalização de direitos que o Estatuto ofere- nomicamente mais pobre, isto é, naquelas por- ce, com todas as suas limitações, também pro- ções da cidade para as quais a ideia da reforma tege e fortalece interesses tradicionalmente urbana e o próprio Estatuto foram formulados. obliterados nas legislações urbanas brasileiras; Nesse âmbito, técnicos e administradores ten- ou, indo um pouco mais longe, que “a reforma dem a tomar a participação como uma tarefa da ordem legal é uma das principais condições entre outras, a ser realizada pelo “pessoal do para transformar a natureza do processo de social” (os assistentes sociais que compõem as desenvolvimento urbano” (Fernandes, 2007, equipes de orgãos públicos e empresas priva- p. 208). Uma condição, no entanto, não sig- das) sem influência decisiva sobre os proces- nifica realização. Mesmo a possibilidade de sos e produtos de intervenções urbanísticas ou reformar a cidade – sem revolucioná-la por construções novas. ora – dependerá da mobilização continuada e Ora, a participação não é apenas uma crítica da imaginação coletiva para criar suas entre outras ideias relacionadas ao direi- formas concretas. to à cidade. Ela é seu cerne. Talvez a escolha Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 467 Silke Kapp do termo seja infeliz, porque participação, Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da independentemente do adjetivo que a qualifi- Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI- que (plena, verdadeira, genuína, etc.), sempre -RMBH), aprovado em 2011. 1 Não obstante sugere uma outra instância, não composta pe- suas especificidades, as contradições dessa los próprios “participantes”, que determina e situação são aplicáveis a muitas outras. Como coordena o processo. Isso vale mais ainda para um plano que está inserido em estruturas insti- a sua especificação como participação popular, tucionais relativamente convencionais, inclusi- pois se há o popular, deve haver o não popular. ve no que diz respeito à participação, poderia Qualquer interpretação do significado político da palavra “povo” tem de partir do fato singular de, nas línguas europeias modernas, ela designar sempre também os pobres, os deserdados, os excluídos. Uma mesma palavra nomeia, assim, tanto o sujeito político constitutivo [da democracia] como a classe que de fato, senão de direito, está excluída da política. (Agamben, 2010, p. 31) abir caminho para uma produção do espaço com maior autonomia? Habitar a cidade, no sentido enfático do “direito à obra [...] e à apropriação” (Lefebvre, 2001, p. 135), significa poder determinar como se quer habitar, incluíndo as características de espaços privados e públicos, as relações entre uns e outros, com o meio natural, com a vizinhança imediata e mediata, com as centralidades e redes urbanas mais abrangentes e assim Ampliar e concretizar o direito à cidade por diante. As políticas públicas de habitação para além das legislações exige criar possi- no Brasil estão longe dessa compreensão am- bilidades, não apenas de maior participação pla. Quando são destinadas à produção de popular, mas de autonomia socioespacial, isto novos espaços de moradia, via de regra, par- é, possibilidades para que diferentes coletivida- tem da premissa de grande conjuntos de uso des adquiram o direito e a capacidade de de- exclusivamente habitacional, com unidades-pa- finir a produção do espaço, em contraposição drão para famílias-padrão e espaços coletivos à heteronomia ou à definição dessa produção e públicos tratados, senão como sobra entre por instâncias alheias. O dilema nesse raciocí- edificações, como circulação ou equipamento nio – ao qual volto em seguida – é a escala de de uso predefinido e monitorado. abrangência de tais “coletividades”. Tomem-se por exemplo as recomendações do Ministério das Cidades para a elaboração dos Planos Locais de Habitação de Direito à cidade e espaço cotidiano Interesse Social (PLHIS), que sugerem que os municípios comecem por “conhecer [quantitativamente] o conjunto das necessidades habitacionais e dimensionar os recursos ne- As concepções delineadas acima constituíram cessários” (MCidades, 2009, p. 171). Esse algumas das balizas de uma abordagem da dimensionamento de recursos deve ser feito temática habitacional elaborada sob coordena- por faixas de renda, com base no custo pra- ção da autora no contexto dos estudos para o ticado por unidade habitacional convencional 468 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Direito ao espaço cotidiano (“vertical e horizontal”) e no valor médio da se essa última é “aquilo que ‘resta’ quando se terra no respectivo setor urbano (MCidades, subtraem todas as atividades distintas, supe- 2009, p. 173). Ainda que se trate apenas de riores, especializadas, estruturadas” (Lefebvre, uma estimativa e que o processo possa, em 1991, p. 97), espaço cotidiano seria o que resta teoria, incluir a concepção de novos parâmetros quando se subtraem espaços ‘distintos, supe- urbanísticos e tipos arquitetônicos, a quantifi- riores, especializados, estruturados’, como mo- cação ocorre num momento em que, do pon- numentos e redes e equipamentos urbanos de to de vista operacional, é improvável que uma amplo alcance. Define-o o fato de não deman- prefeitura consiga elaborar e orçar alternativas dar organização para funções especializadas, concretas para espaços específicos ou novas or- nem tampouco organização por especialistas. ganizações da produção por associações, coo- Mas o cotidiano não é como uma “planície” perativas e outras entidades comunitárias. A contraposta aos “picos” dos momentos criati- tendência é que sejam reproduzidos processos vos; ele é o “solo fértil” no qual surgem avan- e rotinas já consolidados e que elas acabem ços criativos e no qual eles são reincorporados sendo mantidas mais tarde. Existem exceções (Lefebvre, 1991, p. 87; cf. Lefebvre, 2002). como os empreendimentos autogestionários, mas quantitativamente são pouco expressivas. O espaço cotidiano seria, assim, a menor escala de um exercício concreto do direito à ci- Já políticas e programas destinados à dade entendido como direito coletivo de trans- melhoria de assentamentos existentes tendem formá-la. A autonomia na sua produção implica a reproduzir procedimentos de urbanização da que grupos locais e microlocais determinem cidade formal, também heterônomos. A popu- seus processos e desenvolvam-nos ao longo lação é convidada a participar de processos do tempo. Essa possibilidade está focada em cuja estrutura está prefixada e nos quais suas relações de vizinhança, na negociação e ação informações e opiniões têm pouco ou nenhum numa coletividade territorial, na capacidade de peso diante de ditames técnicos, econômicos e solucionar diretamente e sem complexos meca- burocráticos. Embora seja preferível a proces- nismos burocráticos os fatores de desconforto sos sem nenhuma participação, essa modali- de ambientes privados, coletivos ou públicos, dade de “participação restrita ou instrumen- nas oportunidades de transformar rotinas ou tal” (Azevedo, 2008, p. 90) satisfaz o princípio levar a cabo empreendimentos criativos, na de gestão democrática apenas formalmente e, perspectiva de definir serviços ou equipamen- como já indicado, até dificulta avanços para a tos disponíveis. autonomia. O direito à moradia entendido nes- O dilema dessa proposição é, como já ses termos contradiz o direito à cidade em vez indicado acima, a abrangência de uma tal de ampliá-lo. “menor escala” e sua articulação com as de- Para tentar fugir a tais entendimentos mais. Assim como as atividades especializadas naturalizados, a abordagem da temática ha- não são da ordem da vida cotidiana, mesmo bitacional do PDDI-RMBH se deu com foco no que muita gente se envolva com elas diaria- que denominamos espaço cotidiano. O concei- mente, um grande equipamento urbano não é to foi introduzido em analogia à vida cotidiana: um espaço cotidiano segundo essa definição, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 469 Silke Kapp mesmo que muitos o frequentem todos os dias. para a redução de investimentos públicos nas Só cabem no espaço cotidiano assim definido comunidades pobres. Tome-se, por exemplo, porções urbanas cuja influência seja relativa- os programas de autoajuda do Banco Mundial mente limitada. No entanto, como determinar incitados por John F. C. Turner, que Mike Davis esse limite? E como evitar o paroquialismo? critica: “elogiar a práxis dos pobres tornou-se Como fugir do fechamento dessas porções ur- uma cortina de fumaça para revogar compro- banas sobre si mesmas que, no pior dos casos, missos estatais históricos de reduzir a pobreza resulta em guetos com autoritarismos locais e e o déficit habitacional” (Davis, 2006, p. 81). sem nenhuma articulação política mais ampla? Seria importante, no entanto, compreender O já citado Purcell (2006) formulou críticas até que ponto as tentativas de incremento da contundentes nesse sentido, batizando de local autonomia na escala microlocal engendradas trap a crença de que a escala local teria uma por Turner e outros se fragilizaram por falta de virtude inerente e seria sempre e necessaria- uma discussão mais abrangente da economia mente mais propícia à justiça social (ou socio- política da produção social do espaço. Como espacial) do que a grande escala. nota Cardoso (2008, p. 31), Turner pressupõe A armadilha local [local trap] na literatura sobre a democracia urbana está na pressuposição de que a restituição da autoridade produzirá maior democracia. Assume-se que quanto mais localizadas as instituições de governo, mais democráticas serão. Mais especificamente, o pressuposto é que quanto mais autonomia a população local tiver sobre sua área urbana, mais democráticas e justas serão as decisões sobre aquele espaço. (Purcell, 2006, p. 1925) um processo evolutivo de integração social concomitante ao desenvolvimento econômico dos países “atrasados”, deixando de lado as desigualdades estruturais que marcam esse desenvolvimento e que não serão eliminadas pelo simples crescimento. Na mesma linha dos advogados da nova direita, os engajados nessa autonomia restrita tenderam a identificá-la com “empreendedorismo” (Frank, 2000, p. 35; cf. Ronneberger, 2008). Por outro lado, assim como não cabe O principal argumento contra a hipósta- uma hipóstase da escala local ou microlocal, se da escala local é que ela abre mão de outras não cabe seu oposto. O espaço cotidiano e articulações, sem nem mesmo examiná-las, particularmente a habitação não constituem, e assim abre mão também da constituição em si mesmos, um equipamento ou serviço que democrática de coletividades amplas, organi- possa ser determinado a partir de um planeja- zadas, por exemplo, em redes e não em ilhas mento em escala metropolitana. Mesmo que territoriais. Tudo isso acaba por favorecer as ele fosse plenamente participativo, não poderia agendas às quais o “localismo” pretende se contemplar as características específicas que contrapor, já que em escala regional, nacional definem qualidades e mazelas de cada peque- ou global deixa de lhes fazer qualquer oposi- na porção do território. Então, é preciso admitir ção. Experiências de produção relativamente a impossibilidade de que se faça jus a todas as autônoma de habitações e vizinhanças nas nuances da escala microlocal em discussões de décadas de 1960 e 1970 abriram caminho tal abrangência, em vez de ceder à “propensão 470 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Direito ao espaço cotidiano ao gigantismo” (Schumacher, 1981) estimulada texto. A primeira parte consistiu num exame por uma aparente eficiência técnica e adminis- de como o espaço cotidiano comparece nas trativa. Além de anular qualidades microlocais estruturas institucionais existentes, incluindo e possibilidades de ação dos habitantes ao marcos regulatórios, programas públicos habi- longo do tempo, ela favorece as interferências tacionais e práticas das prefeituras municipais. sistemáticas de instâncias “superiores” no co- Seu objetivo foi evidenciar em que medida ca- tidiano – essa “mistificação profissional das da uma dessas instâncias promove ou interdita atividades cotidianas” (Turner, 1976, p. 26) por as possibilidades de autonomia, considerando administradores, sanitaristas, urbanistas, ar- mecanismos participativos, estrutura de ges- quitetos e afins – que certamente não garante tão, incentivos a associações e cooperativas maior justiça social e, ainda por cima, perpetua de habitação e de construção, e o caráter mais a dominação social na forma da tutela. ou menos determinista das legislações quanto No processo de discussão da temática às formas urbanas e edificadas. Disso resultou da habitação no PDDI-RMBH, entendemos que um diagnóstico que, embora se refira a dados uma saída possível para esse dilema seria um colhidos na RMBH,2 pode ser lido como uma planejamento metropolitano que, em vez de análise qualitativa mais geral dos efeitos que projetar esse ou aquele modo de vida, garantis- a nova ordem jurídico-urbanística baseada na se alguns limites à interferência das operações noção de direito à cidade gerou até agora. A de grande escala nas menores porções urbanas segunda parte consistiu numa tentativa de es- e, ao mesmo tempo, oferecesse condições favo- truturar, mediante uma tipologia de espaços ráveis para que essas porções se articulassem cotidianos, as articulações futuras entre por- entre si e com escalas mais abrangentes. Qual- ções distintas e por vezes dispersas no territó- quer espaço cotidiano numa metrópole sofre, rio, mas que têm características semelhantes com maior ou menor intensidade, impactos me- quanto à inserção metropolitana e à resposta tropolitanos produzidos por fenômenos como aos impactos dela decorrentes. dinâmica imobiliária, investimentos públicos, grandes empreendimentos produtivos, condições ambientais ou estrutura de transporte e mobilidade. O planejamento deveria ajudar a criar uma relação de forças mais equilibrada entre essas escalas, removendo obstáculos a uma Estruturas instituídas e autonomia no espaço cotidiano maior autonomia microlocal, examinando como instâncias de governança mais abrangentes Uma característica que perpassa todas as ins- podem apoiar ações nessa escala e ampliando tâncias de regulação, planejamento e gestão as possibilidades de constituição de redes entre habitacional que examinamos nos estudos espaços cotidianos microlocais. para o PDDI-RMBH é o fato de mencionarem A abordagem então se desdobrou e até enfatizarem a participação popular e em duas par tes, cujos resultados estão a função social da cidade e da propriedade, sintetizados nos dois próximos itens deste mas não levarem esses princípios às últimas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 471 Silke Kapp consequências, nem reverterem rotinas prove- seriam o instrumento mais importante para nientes da tradição de produção heterônoma que os municípios construíssem suas políticas pública e privada. habitacionais. No período dos estudos para o A análise comparativa dos Planos Direto- PDDI-RMBH (2009-2010), esses planos não res de 22 dos 34 municípios da RMBH mostrou estavam concluídos em nenhum município da que a maioria foi elaborada ou revisada após RM. Em contrapartida, quase todos os Planos a aprovação do Estatuto da Cidade (2001) e de Regularização Fundiária Sustentável (PRFS), adere aos seus princípios e instrumentos. No que deveriam se basear nos respectivos PLHIS, entanto, talvez pelo fato de terem sido ela- haviam sido elaborados em função de uma borados em grande parte por terceiros e com mudança na alocação de recursos federais que participação social reduzida (ao menos os re- estabeleceu a exigência do PRFS para acesso gistros a esse respeito são escassos e surpre- ao Programa de Aceleração do Crescimento endentemente semelhantes entre si), os Planos (Orientação operacional nº 12, de 30/10/2009). Diretores trazem pouca articulação entre tais Os Planos de Regularização da RMBH princípios e as especificidades locais. Muitos resultantes dessa antecipação seguem as fór- destacam o incentivo a formas alternativas de mulas de regularização consolidadas em Belo construção, à criação de cooperativas, asso- Horizonte, a partir dos princípios da função so- ciações e sindicatos habitacionais autogestio- cial da propriedade e do direito da população nários e à capacitação de iniciativas coletivas de permanecer nas áreas ocupadas. Remoções por meio de assessoria técnica, sem explicitar são recomendadas apenas em casos de risco como isso seria implementado. Já as parcerias ou quando há necessidade de desadensamen- com o setor privado para a implementação de to e implantação de infraestrutura. Em tese, programas habitacionais são estimulados me- famílias removidas devem ser reassentadas diante operações urbanas consorciadas e flexi- em áreas próximas, embora se saiba que isso bilização de parâmetros de uso e ocupação do nem sempre é possível e que a própria noção solo. Alternativas de menor porte, mais pulveri- “necessidade” de remoção também dê mar- zadas do que os grandes empreendimentos pri- gem a ações autoritárias. Os PRFS propõem vados, quase não comparecem senão abstrata- “cardápios” de instrumentos do Estatuto da mente. Com relação à regularização jurídica de Cidade, para que o corpo técnico-administra- assentamentos consolidados, há uma tendên- tivo (não a população) discuta mais tarde as cia de reconhecimento do direito individual de opções mais viáveis para cada assentamento: propriedade plena, desconsiderando a titulação delimitação e regulamentação de ZEIS, trans- coletiva no caso de regularização por usuca- ferência de título pela aplicação da Concessão pião em imóveis privados, bem como a Conces- de Direito Real de Uso, doação e Usucapião, são de Uso Especial para Fins de Moradia e a além de aprovação e registro de áreas repar- Concessão de Direito Real de Uso, previstas no celadas e legalização individual por emissão Estatuto da Cidade. onerosa de título. Depois dos Planos Diretores, os Planos No entanto, a enunciação genérica Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS) desses instrumentos nos PFRS e nos Planos 472 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Direito ao espaço cotidiano Diretores, sem regulamentação por outras leis de 100hab/km2). As secretarias de assistência municipais, torna rara sua execução. As en- social, meio ambiente, obras e planejamento trevistas nas prefeituras apontaram questões urbano dividem as atribuições para possibilitar concretas nesse sentido. Quando perguntamos algum acesso a programas federais e atender a quais dos instrumentos do Estatuto da Cida- demandas pontuais da população. Esse atendi- de presentes nos respectivos Planos Diretores mento se dá muitas vezes pela solução imedia- têm sido utilizados de fato, as respostas foram ta de casos de risco ou precariedade habitacio- quase sempre evasivas. Muitos técnicos muni- nal sem o acionamento de programas específi- cipais estão convencidos de que quaisquer ins- cos e de uma maneira que até reforça situações trumentos que atacam o direito de propriedade irregulares. Em muitos municípios, os técnicos privada são inviáveis na prática. Assim, o Direi- da prefeitura só vão a campo quando solicitado to de Superfície e a Outorga Onerosa são con- pelo setor de obras ou planejamento ou pela siderados aplicáveis, mas medidas como o IPTU vizinhança. Essas situações podem ser vistas progressivo e outras que alterariam a lógica de como uma maneira assistencialista de enfren- especulação, gentrificação, vacância e irregula- tar os problemas urbanos, mas, por outro lado, ridade são descartadas. Segundo os técnicos, indicam que os planos e os programas federais, gerariam conflitos políticos e econômicos que cuja estrutura é fundamentalmente a mesma as administrações não estão dispostas a en- para municípios de quaisquer tamanhos, não frentar. Ao mesmo tempo, faltam experiências correspondem à realidade administrativa e fi- próximas que inspirem ações mais incisivas e nanceira dos municípios menores. Ainda que o aumentem a confiança na aplicabilidade de estabelecimento de prazos para a elaboração instrumentos jurídicos menos conservadores. dos diversos planos municipais tenha decor- Para vencer tais dificuldades e possibilitar uma rido da “necessidade de que [o Estatudo da execução justa dos planos seria necessário um Cidade] não se transformasse imediatamente processo de conscientização que incluísse a po- em “lei que não pega” antes mesmo de ser pulação interessada. Sua própria avaliação dos experimentado” (Rolnik et al., s.d., pp. 33-34), benefícios e prejuízos de cada instrumento do os prazos acabam transformando os planos em Estatuto da Cidade e as reinvindicações feitas meros instrumentos de acesso a recursos. Em a partir disso seriam cruciais para modificar as vez de “leis que não pegam”, acumulam-se práticas políticas e administrativas. planos que não refletem a realidade urbana, Outra questão evidenciada nas entrevis- não têm reflexo nessa realidade e constituem tas foi o descompasso entre programas fede- apenas expedientes burocráticos sem nenhuma rais, com suas agendas e pré-requisitos, e os possibilidade de inovações locais e microlocais problemas enfrentados pelas prefeituras no a partir de uma participação ampla. dia a dia. Em muitas delas não existe nenhum Outro imenso entrave a transformações órgão especificamente responsável pelas políti- nesse sentido são os normativos da Caixa Eco- cas habitacionais e urbanas (a RMBH inclui 14 nômica Federal. Não apenas inúmeras famílias municípios com menos de 20 mil habitantes e se engajam em programas participativos e 14 municípios – não os mesmos – com menos depois são reprovadas na análise de crédito, Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 473 Silke Kapp como também os normativos induzem à uni- providos de infraestrutura estão pulverizados e formização das soluções técnicas e espaciais. a verticalização contrasta agressivamente com Dado que a Caixa toma os imóveis financia- as construções existentes e com os hábitos da dos por garantia, seus agentes privilegiam os população. As prefeituras se veem diante de processos e produtos que estão habituados a um impasse, pois as propostas lhes chegam co- financiar e fiscalizar, vale dizer, aqueles usuais mo que em pacotes fechados e os técnicos des- em empreendimentos com fins lucrativos. Co- conhecem arranjos produtivos que envolvam mo nos tempos do Banco Nacional de Habita- as comunidades e viabilizem empreendimentos ção, não se estruturou “qualquer ação signifi- menores. Resta-lhes a implantação em novas cativa para apoiar, do ponto de vista técnico, áreas, mesmo quando a malha urbana existen- financeiro, urbano e administrativo, a produção te comportaria moradias em número suficiente. de moradia ou urbanização por processos alter- À medida que aumenta essa “sinergia” nativos, que incorporassem o esforço próprio entre capital privado e programas públicos, e capacidade organizativa das comunidades” a ideia da autogestão dos empreendimentos (Bonduki, 2009, p. 74). A atual política nacional pelos futuros moradores tem sido deixada de inclui processos participativos na elaboração lado. Muitas prefeituras parecem conhecer dos planos urbanos e habitacionais e propõe apenas os mutirões geridos pelo poder públi- programas de autogestão, mas faltam arranjos co, nos quais a participação da população nada institucionais mais adequados a essa e outras mais visa do que a reduzir custos. Belo Horizon- formas alternativas de gestão. Tais arranjos te é o único município da RMBH onde houve são mencionados, mas, na prática, os recursos empreendimentos autogestionários na década continuam geridos pela Caixa, agente operador de 1990 e, mais tarde, pelo Programa de Cré- de todos os programas com recurso da União e dito Solidário, mas não há previsão concreta de agente financeiro da grande maioria. continuidade dessa prática. Ela tem esbarrado Quanto ao Programa Minha Casa Minha num alto nível de burocratização e controle, Vida, ele promove empreendimentos habita- e é considerada de difícil execução pela Se- cionais financiados com recursos públicos, mas cretaria Municipal de Habitação, embora seus propostos, planejados e executados por empre- resultados sociais sejam assumidamente mais sas privadas, à revelia de toda a ordem jurídica positivos do que os da gestão pública. Assim, instituída a duras penas para uma – ainda que a previsão de que o PMCMV enfraqueceria os relativa – democratização. Dado que as rotinas movimentos sociais urbanos se confirma na de produção das empresas são mais lucrativas RMBH (Arantes e Fix, 2009). Assim como os quando repetidas em grande escala, empre- recursos do Programa de Aceleração do Cres- endedores e construtores têm pressionado as cimento destinados às favelas, o PMCMV tem prefeituras para acatar empreendimentos de gerado uma onda de produção heterônoma, prédios de apartamentos com 500 unidades que não potencializa, mas esfacela os proces- (limite máximo do Programa). Esse pressupos- sos de aprendizado para a autonomia iniciados to é conflitante com a estrutura do espaço ur- anteriormente, num período de pouquíssimas bano de muitos municípios, onde lotes vagos políticas habitacionais. 474 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Direito ao espaço cotidiano Em suma, a análise no âmbito municipal perspectivas de maior abertura nas instâncias mostrou que ainda são escassos os instru- que hoje tendem a promover uma massifica- mentos para promover a autonomia ou, pelo ção de soluções convencionais. menos, ampliar uma participação mais efetiva. Há uma retórica de democratização, enquanto legislações e rotinas frequentemente impedem que decisões sejam de fato tomadas Tipologia de espaços cotidianos pelos habitantes. Com as devidas ressalvas, isso vale também para a infinidade de agentes públicos e privados envolvidos na questão habitacional, de organismos internacionais a movimentos sociais, de empresas a entidades do terceiro setor e universidades. Seja qual for o foco de uma entidade, o engajamento Como já mencionado, um segundo desdobramento da abordagem da temática habitacional nos estudos para o PDDI-RMBH consistiu numa tipologia de espaços cotidianos, isto é, numa ferramenta conceitual para descrever diferentes situações típicas de moradia e no tema da habitação traz ganhos peculiares, ambiente urbano na RMBH. Seu objetivo é es- tais como o acesso a recursos, a melhoria da truturar as articulações futuras, tanto no pla- imagem corporativa ou o incremento de capi- nejamento metropolitano e municipal, como tal político. No entanto, constatamos de mo- em novas formas de planejamento pela popu- do geral a predominância de uma abordagem lação e na relação entre as diferentes escalas convencional. A meta da regularização fundiá- que isso implica. ria é central, sem que se questione, por exem- Uma tipologia é uma maneira de descre- plo, o título de propriedade individual em ver um conjunto de fenômenos organizando- contraposição à possibilidade de propriedade -os de acordo com suas características.3 A es- coletiva. Ao lado da regularização, promove- colha dessas características ou variáveis define -se a produção de unidades habitacionais no- a tipologia, isto é, a lógica de articulação entre vas nos moldes dos clássicos conjuntos habi- os tipos, que não é hierárquica, mas pode ter tacionais horizontais ou verticalizados, tendo diferentes níveis de generalidade ou especifi- por pressuposto a gestão ou execução dos cidade. Dada a diversidade dos espaços coti- empreendimentos pelo capital privado. Até dianos da RMBH, uma tipologia que refletisse mesmo a porção mais consolidada dos movi- cada um de seus meandros seria inútil, porque mentos sociais pela moradia está afinada com teria a mesma complexidade. Inversamente, essa abordagem. Na contramão, encontramos uma tipologia ordenada por alguns critérios os movimentos sociais mais frágeis, a própria universalmente aplicados a quaisquer espaços sociedade civil não organizada, bem como al- também significaria reduzir a realidade. Por gumas instituições de pesquisa, que tentam essa razão, procuramos extrair as variáveis abordagens mais abertas e mais condizentes mais decisivas a partir de dados do Censo, das com o direito à cidade como direito de trans- análises, entrevistas e oficinas, de bases car- formar a cidade. O desafio seria conseguir tográficas e aerofotogramétricas disponíveis articular entre esses extremos, introduzindo e de pesquisas acadêmicas existentes acerca Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 475 Silke Kapp dos espaços em questão (sobretudo estudos O grupo denominado Conjuntos abrange de caso). Cristalizou-se por fim um aspecto as situações em que um planejamento centrali- elementar, que se reflete nas formas visí- zado define arruamento, parcelamento, equipa- veis dos espaços cotidianos da RMBH, tanto mentos e edificações numa única operação ou quanto em seus processos de transformação e em operações conjugadas. O empreendimento suas potencialidades: o próprio grau de auto- assim planejado e construído define, por si só, nomia ou heteronomia da população no que um ambiente urbano, uma vizinhança específi- diz respeito às decisões sobre espaço urbano, ca ou, enfim, um certo espaço cotidiano. Por- incluindo o impacto das dinâmicas metropoli- tanto, trata-se de um espaço que não resulta tanas nesses espaços. A partir disso definimos de um processo histórico ou orgânico de produ- quatro grandes grupos, a cada um dos quais ção, mas de deliberações feitas principalmente corresponde um critério primário de diferen- no momento do planejamento com o pressu- ciação, que leva aos Tipos propriamente ditos, posto de que, uma vez construído, o empreen- elencados no Quadro 1. dimento estará “pronto” e não precisará ser Quadro 1 – Tipos de espaços cotidianos da RMBH Conjuntos Parcelamentos Aglomerados Moradias rurais ... são situações em que as decisões mais relevantes sobre a moradia e seu ambiente imediato são tomadas ... ... por uma instância única (planejador, empreendedor) num momento determinado ... em parte por uma instância única num momento determinado e em parte por muitos indivíduos ao longo do tempo ... por muitos indivíduos ao longo do tempo ... por uma instância única ao longo do tempo Seu principal aspecto de diferenciação é... ... a faixa de renda dos moradores ... o tamanho das parcelas (lotes) ... o grau de consolidação ... a relação entre trabalho e moradia Essa diferenciação dá origem aos tipos: (1) Conjunto de interesse social (4) Parcelamento de lotes pequenos (< 360m2) (7) Aglomerado frágil (10) Unidade agrária familiar (2) Conjunto popular (5) Parcelamento de lotes médios (360m2 a 1.000m2 ) (8) Aglomerado consolidado (11) Unidade agrária empregadora (3) Conjunto de classe média ou alta (6) Parcelamento de lotes grandes (> 1.000m2 ) (9) Aglomerado histórico (12) Unidade rural não produtiva Fonte: PDDI-RMBH, Produto 6, 2010. 476 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Direito ao espaço cotidiano modificado. Os empreendimentos desse grupo, expulsão da população mais pobre. Já nos Con- encontrados na RMBH, são sempre: grandes juntos de classe média a alta a questão da lo- (alguns com 5 mil habitantes ou mais), por isso calização urbana se apresenta de modo inver- mesmo implantados em áreas periféricas (que so. Eles frequentemente abrem novas frentes podem se tornar centrais em razão de um pro- de expansão, inclusive externas ao perímetro cesso posterior); destinados a um público numa urbano previsto nos Planos Diretores dos muni- faixa de renda específica, nunca a um público cípios, em áreas rurais ou áreas de preservação heterogêneo; promovidos pelo poder público ambiental, mas tendem a criar sua articulação ou pelo capital privado (nunca pelos futuros urbana com a própria implantação, além de moradores); formalmente homogêneos e até gerar também novos Aglomerados frágeis em monótonos; com espaços públicos e coletivos suas proximidades, já que raramente preveem predeterminados (funcionalistas); e regulariza- moradias ou serviços para os trabalhadores dos dos juridicamente ou com irregularidades de quais dependem. solução relativamente simples. Tudo isso vale O grupo denominado Parcelamentos, para os três tipos incluídos no grupo dos Con- o mais comum na malha urbana da RMBH, juntos: Conjunto de interesse social, Conjunto abrange as situações em que a estrutura ur- popular e Conjunto de classe média a alta. bana e as parcelas com suas respectivas edifi- Tais tipos se diferenciam entre si prima- cações são decididas por instâncias diferentes riamente pela faixa de renda do público ao e em tempos diferentes. A estrutura urbana é qual se destinam ou pelo qual são ocupados fruto de um planejamento realizado por téc- ao longo do tempo. Assim, por exemplo, uma nicos e encomendado pelo poder público, por característica decisiva para todos os espaços um loteador privado ou até pelos próprios (fu- cotidianos, a sua localização na metrópole, têm turos) moradores. Já a parcela é uma porção consequência muito distintas para os Conjun- da terra urbana sobre a qual os proprietários tos de interesse social e Conjuntos de classe ou usuários dispõem, dentro das limitações média a alta. Os primeiros, quando implanta- postas pela legislação – mais ou menos efeti- dos em periferias sem articulação urbana ten- va – ou pela vizinhança. O critério primário de dem a degradar rapidamente não apenas pela diferenciação no grupo dos Parcelamentos é o de falta de acesso a oportunidades de trabalho tamanho das parcelas – lotes grandes, médios e renda (que afeta igualmente áreas perifé- ou pequenos – que também define muito de ricas de outros tipos), mas também pelo fato sua inserção na dinâmica urbana (como co- de que o espaço é definido, restringe ao extre- mentado adiante). Não foi adotada a distinção mo as possibilidades de criação de trabalho e primária de parcelamentos regulares e irregu- renda por iniciativa dos próprios moradores. O lares porque entre a situação de plena regulari- desenvolvimento socioeconômico só se dá por dade e a de total irregularidade os matizes são iniciativa externa, que, via de regra, precisa ser inúmeros. Também não foi utilizada a distinção realizada ou estimulada pelo poder público, ou primária por bairros populares, médios, de alto então pela própria expansão da malha urba- padrão e de luxo, como o faz a Fundação Insti- na, mas que implica também uma ameaça de tuto de Pesquisas Econômicas, Administrativas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 477 Silke Kapp e Contábeis de Minas Gerais (IPEAD) no mo- lotes. Assim, as parcelas absorvem, acomodam nitoramento do mercado imobiliário formal de e amortecem mudanças condicionadas por di- Belo Horizonte. Como essa classificação se ba- nâmicas urbanas mais amplas (o que se reflete seia na renda média dos chefes de família, não em preços de venda e aluguel, grau de ocupa- registra o grau de heterogeneidade na renda ção ou vacância, construção de barracos de da população residente, que é o principal indí- fundos, novas instalações comerciais, reformas cio de integração ou segregação socioespacial. ou degradação nas unidades, etc.), enquanto a Cabe observar ainda que estão incluídos no ti- estrutura urbana tende a permancer a mesma, po Parcelamentos de lotes pequenos aqueles até um ponto de colapso. iniciados pela própria população, tais como as Já o grupo denominado Aglomerados ocupações por movimentos sociais organiza- abrange situações em que a estrutura urbana dos. Essas iniciativas têm reproduzido a lógica tem um grau de flexibilidade mais próximo ao dos parcelamentos formais, sempre na pers- de suas parcelas (em muitos casos não formali- pectiva de regularização posterior: as decisões zadas como lotes). Isso inclui as cidades histó- são tomadas num único momento e segundo ricas, tanto quanto as ocupações mais recentes um plano geral, que define lotes individuais de que não tiveram planejamento técnico prévio. propriedade privada. A fluidez espacial e as possibilidades de nego- Uma característica decisiva dos diferen- ciação são maiores do que nos tipos do grupo tes tipos de Parcelamentos é como são afeta- parcelamentos: pedaços do terreno de um vi- dos pela dinâmica urbana (sobretudo imobiliá- zinho são usados como passagem, ventilação ria) e, inversamente, afetam essa dinâmica. ou depósito, e eventualmente comprados ou Dado que as edificações nas parcelas estão a alugados; o lote privado tem seus limites rigo- cargo de inúmeras iniciativas e decisões indi- rosamente definidos apenas com a ação exter- viduais, que se fazem ao longo do tempo, há na de regularização. Assim, os aglomerados de certa inércia em relação a novas ações plane- todos os tipos se caracterizam, não tanto pela jadas pelo poder público e em relação à pró- ausência total de planejamento, mas por plane- pria produção capitalista do espaço em gran- jamentos contínuos, mais ou menos fragmenta- de escala. É mais difícil alterar parâmetros dos ou coletivos. Um dos maiores atrativos das urbanísticos, arruamentos ou espaços públicos cidades históricas está justamente na diversi- em áreas parceladas do que em áreas de ex- dade de seus espaço urbanos, nas surpresas e pansão, pois as alterações na estrutura urbana peculiaridades que proporcionam: em lugar de implicam acordos com muitos proprietários. Já malhas geométricas regulares e cursos d’água a ocupação das parcelas tem, pelo contrário, retificados, tem-se traçados surgidos em fun- relativa flexibilidade, especialmente quando se ção do relevo e dos percursos; em lugar de um trata de parcelas de dimensões médias (entre espaço público indiferente aos usos de seus 360m2 e 1000m2). Elas possibilitam mudanças lotes, tem-se espaços públicos que reagem a de usuários e usos, alteração e substituição das esses usos. edificações, adensamento, verticalização e até As vilas e favelas da RMBH apresentam, alterações subdivisão ou remembramento de em muitos casos, qualidades semelhantes. 478 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Direito ao espaço cotidiano A grande diferença entre os apreciados infraestrutura, o risco e a vulnerabilidade so- núcleos históricos e as depreciadas ocupa- cial. Cabe perguntar então se, no século XXI, ções informais é a disponibilidade de tempo, daremos continuidade a esse padrão ou se há recursos e conhecimento na constituição de outros procedimentos possíveis, para além de sua estrutura urbana. Núcleos históricos, mes- um processo técnico convencional. Isso signi- mo quando surgidos com características de ficaria proteger os contextos microlocais do urbanidade moderna, isto é, como centros de “atropelamento” pela dinâmica urbana mais produção, distribuição e reprodução da ativi- abrangente e, ao mesmo tempo, seria o oposto dade mineradora (Monte-Mór, 2001), puderam da preservação inerte do patrimônio histórico, dispor de grande parte dos conhecimentos e que desemboca facilmente em congelamento recursos disponíveis no período de seu desen- e supressão dos processos múltiplos de desen- volvimento e tiveram um ritmo de crescimento volvimento microlocal. Em lugar de congelar a mais compatível com decisões, negociações e cidade histórica e “tecnificar” a favela, talvez ajustes feitos ao longo do tempo. Na RMBH haja maneiras para que diversidade e imprevi- do século XX, pelo contrário, esse desenvolvi- sibilidade existam sem precariedade. mento paulatino e aberto ficou reservado aos A relativa dispersão espacial das Mora- pobres e exposto a toda espécie de cataclis- dias Rurais, o último dos quatro grande grupos mas, enquanto os recursos para a urbanização da tipologia em questão, faz com que as de- se concentraram em instâncias que operam via cisões de um indivíduo ou uma família acerca planejamento técnico centralizado, tais como do espaço cotidiano pouco ou nada afetem o poder público e o grande capital privado. seus vizinhos: são situações em que uma ins- Ações e programas públicos para a me- tância única (a família ou um grupo pequeno) lhoria de aglomerados consolidados e a conso- produz o espaço ao longo do tempo. A forma lidação ou eliminação de aglomerados frágeis como se dá essa produção está diretamente têm sido reunidos sob a bandeira da regulari- vinculada à propria relação entre a moradia e zação fundiária, que também abrange lotea- o trabalho rural, mais do que ao tamanho da mentos irregulares e conjuntos degradados. A unidade rural em que a moradia está implan- escolha dessa bandeira tem a vantagem de re- tada. Embora os dados que obtivemos nas pre- tirar as ações de um contexto ideológico assis- feituras e em trabalhos acadêmicos acerca das tencialista. Não se trata de “ajudar os pobres”, moradias rurais sejam muito mais escassos do mas de tentar remediar um processo histórico que os dados acerca das moradias urbanas, é de supressão dos direitos de grande parte da possível afirmar que muitos municípios da RM- população. No entanto, a noção de regulariza- BH preservam tradições rurais. Há zonas urba- ção também dá margem a um entendimento nas com características de cidades pequenas, por vezes formalista e burocratizado dos pro- interioranas, onde os habitantes zelam, eles blemas reais. Irregularidade, como situação ju- mesmos, pela qualidade do espaço cotidiano rídica, não é o problema mais importante, nem e organizam-se coletivamente com mais faci- é exclusividade dos pobres. Mais importante é lidade do que nos grandes centros. Contudo, sua conjunção com a precariedade, a falta de a questão da moradia rural vai muito além de Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 479 Silke Kapp uma preservação de tradições antigas, romanti- a partir deles; e de um conjunto de interfaces zadas em hotéis-fazenda. Trata-se, na verdade, digitais abertas a toda a população para au- de possibilitar a criação de novas relações en- mentar a disponibilidade e a troca de informa- tre campo e cidade na RMBH, como, aliás, já ções. A tipologia deveria facilitar a cooperação vem ocorrendo em alguns municípios. Projetos entre prefeituras e, sobretudo, a organização de assentamento e acampamentos, assim co- coletiva dos habitantes, já que lugares de mes- mo os projetos “rururbanos” das Brigadas Po- mo tipo tendem a compartilhar problemas, in- pulares, apontam interações entre o rural e ur- teresses e possibilidades de ação. bano de caráter emancipatório. Como constata De qualquer modo, considero que a com- Silva (2008), é patente a intenção de um “re- preensão ampliada (não restrita aos técnicos) torno ao campo” de parte da população que das relações entre os diferentes espaços cotidia- em décadas passadas foi forçada a migrar para nos e deles com operações e dinâmicas metro- os centros urbanos. Evidentemente, essa po- politanas mais amplas seria essencial à possibi- pulação, que passou pela experiência urbana, lidade de maior autonomia coletiva dos habitan- não se restringirá a reproduzir antigas tradi- tes da cidade numa articulação metropolitana ções rurais, mas poderá constituir novos modos congruente e politicamente expressiva. Em pes- de vida e, portanto, também novas formas de quisas de campo nas vilas, favelas e periferias moradia. Ao mesmo tempo, há na RMBH 519 de Belo Horizonte, realizadas mais recentemen- grandes propriedades improdutivas passíveis te com a mesma equipe, vem se tornando cada de desapropriação, além de inúmeros parcela- vez mais evidente que boa parte da população mentos vagos e imensas reservas de terra de ignora como aqueles espaços se constituem, os empresas mineradoras que devem ser incluídas direito que – com todas as limitações – a legis- no planejamento. lação atual lhes confere, bem como a existência de muitos outros grupos em situações espaciais semelhantes. A construção de canais de compar- Uma observação final tilhamento entre esses grupos a partir de uma estrutura capaz de criar conexões pertinentes – a tipologia é uma proposta nesse sentido, mas Nos estudos para o PDDI, baseamos na tipo- haverá outras – pode criar uma base comum logia acima resumida as ações da “Política de informações acerca do território e uma ba- metropolitana integrada de direito ao espaço se comum de acesso a essas informações no cotiadiano: moradia e ambiente urbano”, que território, favorecendo tanto as atuações das constituiu o produto final do trabalho da equi- prefeituras, quanto as atuações de associações pe. Entre outras coisas, essa proposta de polí- de moradores e entidades afins, inclusive para tica incluiu: um acordo metropolitano de regu- discutir com elas (as prefeituras) e em outros fó- lamentação de instrumentos urbanísticos, que runs quais serão os rumos da cidades. Grupos poderiam ser estruturados conforme os tipos locais poderiam decidir diretamente sobre a em questão; um programa de apoio à gestão utilização dos espaços públicos, as intervenções dos espaços cotidianos, também estruturado de melhoria numa vizinhança, os padrões 480 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 Direito ao espaço cotidiano urbanísticos, etc., na pequena escala e poderiam rumo a um direito mais concreto à cidade e rom- se inserir em processos mais abrangentes ten- per a inércia de uma tradição que, por ora, não do maior conhecimento e clareza na defesa de incorporou esse direito nas suas práticas e roti- seus interesses. Mesmo que (ainda) não haja ne- nas, mesmo que muitos de seus agentes o tenha nhuma revolução, poderíamos alcançar ganhos incorporado em suas intenções. Silke Kapp Arquiteta e doutora em Filosofia. Professora associada da Escola de Arquitetura da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil. [email protected] Notas (1) Nomes dos membros da subequipe envolvida com a área temá ca, bem como os nomes dos coordenadores gerais do PDDI-RMBH e alguns dados sobre seu contexto ins tucional, serão inseridos posteriormente, dependendo do parecer. O material apresentado deste ponto em diante é fruto do trabalho conjunto da equipe, mas eventuais inconsistências ou lacunas da interpretação e do formato dados ao material neste ar go se devem exclusivamente à autora (incorporei trechos de textos dos estudos do PDDI-RMBH, desde que redigidos de próprio punho já naquela ocasião). Os estudos da temá ca habitacional para o PDDI-RMBH abrangeram também outras questões que não são discutidas aqui, tais como: redução da vacância, regularização fundiária, tratamento de Zonas Especiais de Interesse Social, áreas de risco e áreas centrais, etc. (2) Além das fontes documentais, as informações foram ob das mediante entrevistas em todas as prefeituras municipais e oficinas par cipa vas. As entrevistas foram realizadas entre março e maio de 2010, sempre com técnicos responsáveis pela polí ca urbana e habitacional. As oficinas participativas foram conduzidas pela subequipe de Mobilização Social do PDDI-RMBH, não sendo especificamente dedicadas aos temas habitação e espaço co diano. Mas elas fornecerem dados adicionais, permi ram conhecer posturas de outros atores ins tucionais e reforçaram muitos dos relatos ob dos nas entrevistas. (3) No campo da arquitetura e do urbanismo, o conceito de tipologia é comumente aplicado a edificações – e até erroneamente confundido com a noção de modelo –, enquanto a descrição de ambientes urbanos se faz por morfologia, isto é, uma classificação das formas urbanas (cf. Cataldi et al., 2002). Contudo, a tipologia proposta contempla também processos e caracterís cas que não se refletem necessariamente nas formas sicas, como taxa de vacância das edificações, arranjos produ vos ou irregularidade fundiária. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012 481 Silke Kapp Referências AGAMBEN, G. (2010). “O que é um povo?” In: DIAS, B. e NEVES, J. (org.). A polí ca dos muitos. Povo, Classes e Mul dão. Lisboa, Tinta da China. ARANTES, P. e FIX, M. (2009). Pacote habitacional de Lula é a priva zação da polí ca urbana. Correio da Cidadania, 29/7/2009. ARNSTEIN, S. (1969). A ladder of ci zen par cipa on. Journal of the Ins tute of American Planners, v. 34 (4), pp. 216-224. AZEVEDO, S. de (2008). Estratégias de gestão. MCidades, Secretaria Nacional de Habitação. Polí ca Habitacional e a Integração de Assentamentos Precários. Parâmetros conceituais, técnicos e metodológicos. Brasília. BONDUKI, N. (2009). “Política habitacional e inclusão social no Brasil: revisão histórica e novas perspec vas no governo Lula”. Brasil em Desenvolvimento. Estado, Planejamento e Polí cas Públicas. Brasília, IPEA. BONDUKI, N. e KOURY, A. P. (2010). Das reformas de base ao BNH. 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Para tanto contribuem: a histórica dissociação entre as políticas urbana e habitacional, as interferências de diferentes esferas de governo, a fragilidade institucional e a reduzida inter-setorialidade. Neste trabalho, apresentam-se: um panorama geral da favelização do município a partir de dados dos censos de favelas; uma discussão da revisão do Plano Diretor de Fortaleza, segundo os princípios e diretrizes do Estatuto da Cidade; os desafios decorrentes da inserção das zonas especiais de interesse social como instrumento da política urbana local, elencando-se processos associados aos papéis dos agentes envolvidos e a necessidade de aprofundamento sobre as condições urbanísticas e habitacionais nestas áreas. Palavras-chave: favela; plano diretor; estatuto da cidade; zonas especiais de interesse social; Fortaleza. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Abstract Despite the urban informality that has been increasing in the city of Fortaleza (Northeastern Brazil) in recent decades, the local planning policies have not developed solutions to deal with the problem. Among the causes we can mention: the historical dissociation between housing and urban policies, the interference of different government spheres, lack of institutional capacity, and deficiencies in the integration among different sectors. In this paper we present: a portrait of the urban informality phenomenon in Fortaleza, a review of the political process that updated Fortaleza’s Master Plan according to the principles of the City Statute; the challenges associated with the implementation of the Social Housing Zones delimited by the Master Plan, including an analysis of the role of the different stakeholders in the process and the necessity to deepen the knowledge about the urban and housing conditions of these Zones. Keywords: favela (slum); master plan; city statute; social housing zones; Fortaleza. Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas Introdução princípios e diretrizes presentes nas políticas setoriais de desenvolvimento urbano e habitacional, bem como nos programas a elas as- Um olhar atento sobre o acelerado crescimen- sociados. Por outro, na escala local, a partir de to da favelização na cidade de Fortaleza indi- manifestações oriundas de bairros e comunida- ca a presença das condições mais precárias des que compõem a cidade, cuja articulação e de moradia nas áreas de ocupação irregular. integração passam a compor ações integradas Em resposta a essa problemática, observa-se dos movimentos sociais e das demais formas que a atuação do Estado ao longo das últimas de organização da sociedade civil. Com isso, décadas tem sido insuficiente, denotando-se, o espaço urbano assume sua condição como como uma das causas maiores, a dissociação palco de lutas entre os atores sociais que o das políticas urbana e habitacional. Com isso, compõem, fortemente marcado pelas desigual- retarda-se a adoção de medidas efetivas que dades sociais derivadas das relações de força contribuam com a solução do problema, adian- entre os mesmos (Correia, 1995). do-se o enfrentamento da questão fundiária. Com o intuito de aprofundar essa discus- Ainda que se trate de processo vigente são, adota-se neste trabalho como objeto de nas demais cidades brasileiras, em Fortaleza a estudo o processo de revisão do Plano Diretor produção da cidade informal assume contor- de Fortaleza (PDFor), ocorrido ao longo da dé- nos específicos devido à forma como o plane- cada de 2000. Utiliza-se a inclusão de zonas jamento urbano é implementado ao longo de especiais de interesse social como fio condutor sua história, evidenciando-se a superposição para sua análise, visto que as mesmas assumi- de papéis dos atores envolvidos em virtude da ram papel de destaque no processo como um confluência de seus interesses. todo, configurando-se em campo de disputas Via de regra, os planos resultantes desses entre os agentes sociais envolvidos. Tratando- processos findam por não serem implemen- -se de inovação na política urbana local, bus- tados, configurando-se em subterfúgios que ca-se reconhecer os elementos que possam garantem a manutenção do status quo carac- levar à sua subutilização, bem como aqueles terístico de uma cidade com marcas evidentes que venham a superestimar sua efetividade de desenvolvimento desigual (Smith, 1988): como instrumento das políticas locais urbana concentração de investimentos, centralização e habitacional. de poder, diferenciação de suas partes na for- Como procedimentos metodológicos, ma como se dá o atendimento às demandas e além do acompanhamento do processo como desconsideração da diversidade social presente urbanista e pesquisador, foram realizadas: lei- no espaço. turas de relatórios técnicos; entrevistas com Todavia, é possível reconhecer um qua- atores sociais envolvidos; trabalhos de campo dro recente de mudanças, dada a emergên- em áreas especificas associadas à capacitação cia de novas dinâmicas urbanas vinculadas de lideranças comunitárias; estudos de caso a processos advindos de frentes diversas: por sobre o conteúdo urbanístico de áreas selecio- um lado, desde a escala nacional, a partir dos nadas segundo as tipologias socioespaciais que 486 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza compõem a estrutura intraurbana metropolita- ocupação com vistas a encaminhar solicitação na de Fortaleza (Pequeno, 2009). de recursos junto ao Banco Nacional de Habi- Este trabalho se subdivide em três partes: tação (BNH), numa das primeiras iniciativas de a primeira contextualiza a favelização da cida- associar a política municipal de habitação à po- de. Em seguida, discute-se a necessidade de lítica de desenvolvimento urbano. Assim, data interfaces entre as políticas urbana e habitacio- de 1973 o primeiro levantamento de favelas de nal no município ao longo das últimas décadas. Fortaleza, quando foram identificadas 81 fa- Por fim, analisa-se a revisão do plano diretor, velas, somando 34 mil domicílios onde viviam investigando-se as perspectivas que se abrem mais de 205 mil pessoas, correspondendo a a partir das zonas especiais de interesse social cerca de 20% da população do município.1 como instrumentos de planejamento e gestão No primeiro plano de desfavelamento do solo urbano com vistas à urbanização de fa- proposto pela Fundação do Serviço Social de velas e regularização fundiária. Fortaleza, 32 áreas (14.500 famílias) seriam alvo de erradicação total, em sua maioria associadas à implantação do sistema viário prin- Dinâmicas associadas ao crescimento da favelização em Fortaleza cipal. A princípio, pretendia-se reassentá-las em grandes vazios periféricos situados ao sul e ao sudoeste do município. Outras 49 favelas, onde viviam mais de 19.700 famílias, seriam alvo de programas de renovação e remanejamento, A ilegalidade urbana, quando associada às observando-se a possibilidade de permanência condições precárias de moradia se coloca como desde que houvesse ações de recuperação e um problema histórico da produção do espa- remanejamento das unidades subnormais (For- ço intraurbano da capital cearense. Castro, ao taleza, 1973). analisar a planta de Fortaleza de 1887, indica Previa-se, na época, a aquisição de gran- que 30% das famílias viviam em choupanas de des glebas a serem parceladas, com objetivo de palha nas proximidades da faixa de praia e às destinar para cada família lotes de 120 metros margens de riachos, num claro indício de faveli- quadrados, além da indenização vinculada à zação (Castro, 1976). remoção da antiga moradia. Chama atenção A acelerada expansão das áreas de neste plano de desfavelamento a compreensão ocupação da cidade, desde meados do século da possibilidade de urbanização e permanência XX, vinculada aos fluxos migratórios prove- de muitas das favelas cadastradas. Pretendia- nientes do Sertão nordestino, motivados pe- -se, ainda: a construção de módulos sanitários, la estiagem, levou ao comprometimento dos a difusão da autoconstrução tecnicamente as- recursos naturais, dado que as famílias não sistida, a implantação de redes de infraestrutu- dispunham de condições para adquirir terreno ra e equipamentos sociais, porém não se fazia ou moradia. qualquer menção à regularização fundiária. Esse crescimento da favelização levou a Todavia, grande parte dos conjuntos que o poder local contabilizasse as áreas de implantados pelo BNH não teve a população Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 487 Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas desses assentamentos precários como público- Algumas iniciativas vieram a ser imple- -alvo, o qual foi redefinido por problemas as- mentadas atendendo ao reassentamento perifé- sociados à inadimplência (Azevedo e Gama, rico, em parte associadas aos novos programas 1982). Além disso, optou-se pela implantação criados pelo BNH, específicos para populações de programas habitacionais em glebas mais removidas de áreas de ocupação. Todavia, com distantes do centro, situadas em zonas de tran- o fim do BNH, o empobrecimento se acentuou sição urbano-rural, tanto em Fortaleza, como tornando a favela uma forma predominante de em outros municípios da Região Metropolitana moradia dos mais pobres, expandindo-se o mer- (Maracanaú e Caucaia). Disso decorreu a co- cado informal de terrenos ditos ”de prefeitura” nurbação ao sul e ao oeste, assim como a es- para aquisição e posterior construção. Em 1991, peculação imobiliária, valorizando-se terrenos um novo censo de favelas (Figura 1) foi realiza- entre o centro e as novas periferias, além da do pela Cohab-CE, quando foram identificadas definição de frentes de expansão ao leste para 314 favelas, com 108 mil famílias, cerca de 30% o setor imobiliário formal. da população de Fortaleza (Ceará, 1991). Figura 1 – Fortaleza: localização das favelas –1991 Fonte: organização de Pequeno, 2009. 488 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza Nessa última data, já se detectava a formação de pequenos núcleos de favelas nos setorial, sem que as prefeituras tivessem se preparado para assumir tal tarefa. municípios vizinhos de Caucaia e Maracanaú, No caso de Fortaleza, as práticas as- situados nas áreas verdes dos conjuntos habi- sistencialistas e clientelistas conduzidas pela tacionais e nas margens de rios, riachos e la- Fundação de Serviço Social, remanesceram di- goas. Além disso, a partir desse censo é possí- retamente vinculadas ao gabinete do Prefeito, vel verificar a forma como a favelização passa através da Comissão Especial para Implantação a interferir na estruturação da cidade a partir de Programas Habitacionais de Interesse Social de sua concentração nas faixas litorâneas e ao (Comhab). Nesse período, pequenos conjun- longo dos cursos d´água e lagoas, bem como a tos foram construídos em regime de mutirão, configuração de áreas contínuas nas periferias tendo como similaridades: um mesmo projeto e pequenos fragmentos que se disseminam nas arquitetônico, as infraestruturas e a adoção de partes intermediárias. títulos de concessão precários para fins de mo- Como reflexo desse levantamento, o Go- radia de curto prazo. verno do Estado, através da Cohab-CE e diante Todavia, ao final dessa década, Fortale- da possibilidade de obtenção de recursos junto za passou a tomar parte do Programa Habitar à Caixa Econômica Federal, através do Promo- Brasil (HBB), financiado pelo Banco Interame- rar, passou a conduzir um programa especial de ricano de Desenvolvimento (BID) e pela Caixa urbanização de favelas tendo claramente como Econômica Federal (CEF). Com o intuito de critérios de escolha: a abertura de eixos viários, favorecer a municipalização das políticas ha- a adequação do uso em margens de recursos bitacionais de interesse social, esse programa hídricos, especialmente vinculados às interven- trazia em seu conteúdo duas linhas de ação: o ções urbanas em setores de renda média-alta. desenvolvimento institucional e a urbanização O escopo desses projetos incluía, além de infra- de assentamentos subnormais. Realização de estrutura e de equipamentos sociais, a constru- cadastros, formulação de políticas e programas, ção de casas em mutirão para famílias removi- composição de cadernos de normas específicas das por motivos diversos: densidade excessiva, para HIS, contratação de projetos, capacitação ordenamento das vias internas, saneamento, de técnicos, aquisição de equipamentos, tudo 2 drenagem e risco ambiental. isso fazia parte desse programa, que permane- Ao longo da década de 1990, o perver- ceu na Prefeitura entre 1999 e 2006, visto que so desmonte das instituições responsáveis o mesmo foi incorporado pelo Ministério das pela implementação da política habitacional Cidades em 2003. de interesse social em todo o Brasil (Cardoso, Entretanto, poucos foram os benefícios 2001) trouxe como efeito, no âmbito estadual, obtidos com o HBB, visto que a questão da a extinção da Cohab-CE, transferindo-se aos moradia não chegou a sensibilizar os gestores municípios a responsabilidade pela provisão de municipais no período de 1993 a 2004, apesar moradia. Seguindo o receituário neoliberal em das intensas pressões dos movimentos sociais. suas reformas administrativas, o Governo Esta- Fato é que os recursos obtidos finda- dual desmontou a maior parte de sua estrutura ram por ser utilizados para a contratação de Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 489 Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas serviços de consultoria, os quais em nada con- dissociação entre planejamento e gestão, re- tribuíram para o desenvolvimento institucional velando a necessidade de integrar as políticas e muito menos para estabelecer uma base de urbana e habitacional. dados que permitisse um diagnóstico preciso da situação da moradia em Fortaleza. Porém, em fins de 2004, ocorre a criação da Fundação Habitacional de Interesse Social de Fortaleza (Habitafor), substituindo a Comhab. Ainda que voltadas para as diversas formas de moradia Interfaces entre as políticas urbana e habitacional de interesse social precária, as ações empreendidas por essa Fundação vêm sendo focalizadas nas áreas de fa- Alvo de diversos processos de planejamento vela em situação de risco ambiental, considera- urbano, Fortaleza teve, ainda em meados do das como os setores mais vulneráveis no aten- século XIX, a formulação de planta urbanís- dimento com a provisão de moradia (Fortaleza, tica com viés embelezador da área central. 2001). Ao priorizar as áreas de risco, reduz-se Em seguida, nos anos 1930 e 1940, foram substancialmente o alvo de intervenção, dimi- formuladas propostas de estruturação viária, nuindo a dimensão do problema a ser enfren- estabelecendo-se as direções para a expansão tado, não havendo qualquer critério de escolha da cidade. 3 para a intervenção. A partir dos anos 1960, passaram a vi- Até aqui, a maior parte das famílias foi gorar proposições com a roupagem de plano removida com o posterior reassentamento em de desenvolvimento integrado, definindo dire- edifícios multifamiliares de baixa altura e alta trizes setoriais diversas nas escala local e me- densidade. Diante do que vinha sendo realiza- tropolitana. Décadas depois, no início dos anos do esses projetos inovam nos seguintes aspec- 1990, deu-se a elaboração do Plano Diretor tos: inclusão de cômodo para uso comercial; di- de Desenvolvimento Urbano (PDDU), preten- ferenciação de casas pelo número de dormitó- samente reformista, porém inexequível, visto rios; redução dos espaços comuns, evitando-se que nem os meios foram viabilizados, nem os gastos condominiais. Entretanto, alguns aspec- procedimentos para implementação dos instru- tos negativos podem ser apontados: dimensões mentos foram elaborados. reduzidas dos compartimentos; precariedade Verifica-se que, apesar das diferentes dos acabamentos; densidade excessiva de abordagens adotadas para os processos de pla- ocupação das áreas de reassentamento; forma nejamento urbano empreendidos ao longo do de tratamento dos espaços livres; segregação século XX, alguns aspectos negativos podem em relação ao entorno. ser mencionados como recorrentes e comuns a Em seus primeiros anos, constata- todos: sua realização por consultores externos -se que o modelo de gestão adotado pela ao corpo funcional do município, desperdiçan- Habitafor apresenta limitações, reduzindo do oportunidades de promover a formação de o impacto de suas ações, explicitando a frá- recursos humanos municipais; a elaboração de gil inter-setorialidade na esfera municipal, a diagnósticos superficiais, os quais induziram 490 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza soluções inadequadas à realidade local; as município em que a favela e o vazio tomam proposições com caráter generalista, predomi- parte da paisagem, em seus diferentes ângulos, nando diretrizes de planejamento sob a for- tornava-se de fácil assimilação a aplicação do ma de recomendações em linguagem jurídica Estatuto da Cidade. e índices paramétricos homogeneizantes que Cedendo às pressões da sociedade civil desconsideraram a diversidade sociocultural organizada, a Prefeitura Municipal promoveu com a qual o espaço intraurbano vem sendo a contratação de consultores externos prove- produzido; a exclusão da cidade informal, ine- nientes do quadro docente da Universidade xistindo ações voltadas para seu enfrentamen- Federal do Ceará (UFC), compondo equipe mul- to, indicando a dissociação entre a política ur- tidisciplinar classificada com notório saber, com bana e habitacional, apesar do ritmo acelerado fácil diálogo com os diferentes agentes sociais, com que se deu o crescimento da favelização para a realização da revisão do PDDU. Alegava- na cidade. -se, na época, que, dada a reforma administra- Com isso, desde a discussão dos conteú- tiva municipal, seus quadros encontravam-se dos do Projeto de Lei do Estatuto da Cidade, ao desfalcados, notadamente desde a extinção do final dos anos 1990, verificou-se a necessida- Instituto de Planejamento Municipal (IPLAM) de de revisão do plano diretor municipal tendo em 1999, ficando a coordenação do processo como questão norteadora a busca por proposi- sob o encargo da Secretaria de Infraestrutura. ções para a questão da moradia. Esta passou a Todavia, simultaneamente, o executivo tomar parte da agenda dos movimentos sociais municipal mantinha, em paralelo, a revisão urbanos locais, estimulados pelas ações de da lei de uso e ocupação do solo, visando à exigibilidade de direitos coordenadas pelas or- liberação de gabarito em determinados eixos ganizações não governamentais e associações viários, favorecendo sobremaneira o mercado classistas. Tal processo se intensificou em 2001, imobiliário. Com isso, os consultores anterior- desde a aprovação da Lei 10.257, ampliando-se mente convocados para a revisão do PDDU re- as articulações pró-elaboração de novo plano tiraram-se do processo, desfazendo a equipe da diretor, em que fosse garantida a inserção de qual a universidade tomava parte, sendo essa princípios norteadores e instrumentos associa- substituída por outros consultores oriundos de dos à reforma urbana. escritórios de arquitetura e, em grande parte, Para tanto, o papel das ONGs apoiadas associados ao ramo da construção civil. por setores progressistas das universidades Conduzido ao longo de três anos, esse públicas na capacitação dos atores sociais processo de planejamento foi marcado por merece ser destacado. Com o uso de dinâmi- manifestações da parte da sociedade, que co- cas inovadoras, ampliou-se o conhecimento brava transparência e participação. Enviado por parte dos setores populares a respeito dos em fins de 2004 à Câmara dos Vereadores pa- instrumentos da política urbana, passando-se ra votação, o projeto de lei sob a denominação a reconhecer sua pertinência como estratégias de Plano Diretor de Fortaleza (PDFor) apre- de combate à especulação imobiliária e pro- sentava como principais problemas técnicos: moção da regularização fundiária. Afinal, num a desconsideração da escala metropolitana; a Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 491 Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas adoção de dados ultrapassados no diagnósti- Graças à histórica realização de progra- co; o uso genérico dos instrumentos do estatu- mas de sensibilização e capacitação de lide- to, sem localizá-los. ranças do movimento popular, bem como à Como raiz desses problemas, é possível recente experiência de reação contra o autori- reconhecer o não enfrentamento da questão tarismo e tecnocracia contrárias ao novo ideá- habitacional por parte dos gestores e da equipe rio das práticas de planejamento participativo, contratada, dado que os momentos de debate esse novo processo não se realizou de forma foram meros exercícios de tecnocracia volta- avassaladora sobre as entidades comunitárias dos para projetos urbanos. Ao evitar quais- e instituições não governamentais. quer mecanismos de participação popular, os Fato é que o debate em torno dos ins- responsáveis pela elaboração do plano deram trumentos e dos índices urbanísticos foi es- elementos para que a sociedade civil entrasse tendido. Porém, na derradeira oportunidade com ação junto ao ministério público pedindo para discussão dos conteúdos, ficou evidente sua anulação, bem como para que a nova ges- a construção de acertos políticos entre o poder tora municipal retirasse o projeto de lei da câ- público municipal e os empresários do mercado mara municipal, consolidando sua invalidação. imobiliário, respaldados por setores dos movi- Cumpre aqui apontar que, paralelamente à revisão do PDDU, dava-se a elaboração mentos sociais que passaram a tomar parte da gestão municipal. da política municipal de habitação, bem como Passados dois anos na Câmara Muni- de diversas ações integradas através do HBB. cipal, somente em março de 2009, a tramita- A ausência de inter-setorialidade entre as polí- ção do projeto foi concluída, culminando com ticas urbana e habitacional deve ser reiterada, sua aprovação, completando-se oito anos de bem como os malefícios decorrentes da contra- revisão do Plano Diretor. Ressalta-se que nes- tação de serviços externos de consultoria. se intervalo, a política urbana municipal ficou Posteriormente, uma nova tentativa de vulnerável a intervenções do setor imobiliário revisão do plano veio a ser feita, remanes- privado e dos próprios executivos estadual e cendo porém alguns problemas já vivenciados municipal, favorecendo projetos desconectados anteriormente. Mais uma vez optava-se pela de processos de planejamento. contratação de consultores com dispensa de li- Desde então, aguarda-se a implemen- citação, desta vez sob a coordenação da Secre- tação dos instrumentos inseridos no PDFor, taria de Planejamento. Além disso, mantinham- recaindo-se todavia em algumas dinâmicas -se reduzidos os momentos de participação da que comprometem o planejamento territorial sociedade civil, alegando-se o curto intervalo do município: a descontinuidade dos proces- de tempo disponível para sua realização. Com sos de planejamento urbano decorrente das isso o diagnóstico ficou bastante prejudicado mudanças na orientação política da gestão; a em decorrência do fraco confronto de visões fragmentação política da gestão municipal fra- entre os técnicos envolvidos e os setores popu- gilizando a inter-setorialidade; a inexistência lares, bem como da ausência de debate entre de quadros técnicos e a situação rudimentar da os agentes sociais antagônicos. instituição responsável por sua implementação; 492 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza a subtração das práticas de planejamento par- passando a adotar como alvo da política urba- ticipativos da política municipal. na aqueles setores que reúnam como caracte- Entretanto, avanços devem ser reconhe- rísticas: irregularidade fundiária, precariedade cidos, considerados as condições e os resulta- das infraestruturas, desordem urbanística, con- dos dos planos anteriores. Afinal, a elaboração dição de pobreza e densidade excessiva (Souza, do PDFor, segundo os conteúdos do Estatuto da 2001). Identificando-se esses setores por conta Cidade em si, garante à sociedade elementos da situação crítica em que os mesmos se en- para que possa dele tomar parte. Nesse senti- contram, caberia a adoção de procedimentos do, serão discutidos na próxima seção os desa- que revertessem a situação, reduzindo-se, as- fios enfrentados com vistas à inserção das ZEIS sim, o fosso social entre esses fragmentos de na agenda da política urbana de Fortaleza. degradação socioambiental. Entretanto, nem sempre a solução para as precariedades apontadas encontra-se no próprio setor. Ao con- Processo de inclusão das ZEIS no Plano Diretor de Fortaleza trário, é possível reconhecer a seu lado vazios urbanos ou edificações subutilizados que contribuiriam com a reversão dessa situação. Vale ainda ressaltar que conforme Rolnik, As Zonas Especiais de Interesse Social vêm sen- as ZEIS podem ser reconhecidas como o instru- do alvo de estudos desde sua criação nos anos mento síntese das diretrizes e princípios norte- 1980 como estratégia para viabilizar a regula- adores do Estatuto da Cidade, dado que podem rização fundiária de assentamentos precários, ser realizadas a partir das mesmas ações: o permitindo a flexibilização dos índices urbanís- combate à especulação imobiliária, impedindo- ticos presentes na cidade espontânea, via de -se o remembramento de lotes e consolidando- regra, distintos daqueles presentes nas áreas -se áreas de ocupação sob pressões do setor produzidas pelas políticas públicas de habita- imobiliário forma; a promoção da regulariza- ção de interesse social, bem como nas áreas da ção fundiária graças à flexibilização dos índi- 4 cidade formal. No caso do PDFor, a inserção ces urbanísticos, reduzindo-se as necessidades das ZEIS pode vir a ser um diferencial no sen- apontadas para a cidade formal; a adoção de tido de viabilizar transformações estruturais na práticas de gestão democrática e participativa implementação da política urbana. Tratando-se mediante a formação de conselhos locais que de instrumento que congrega setores da cidade atuam nas diferentes fases dos planos urbanís- em que o conflito socioespacial e as disputas ticos, desde os levantamentos preliminares até territoriais tendem a eclodir, desde já reconhe- a tomada de decisão (Rolnik, 2001). cemos no mesmo nosso foco temático de pes- Fazendo valer as palavras de Rodrigues, quisa para o acompanhamento do processo de que identifica como aspecto mais positivo do planejamento urbano municipal. Estatuto da Cidade, o fato de explicitar as con- Como afirma Souza, as ZEIS correspon- tradições presentes na cidade, reconhecendo as dem a um instrumento ímpar a partir do qual desigualdades sociais decorrentes da produção se pode viabilizar a inversão de prioridades, social do espaço, dando às mesmas nome e Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 493 Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas endereço, foi organizada uma ação de exigibili- na plataforma do Google Earth para formula- dade por ONGs em parceria com setores enga- ção das propostas. 5 jados da universidade (Rodrigues, 2004). Nas audiências públicas setoriais, rea- Neste sentido, as ZEIS foram adotadas lizadas nas diferentes áreas de participação como tema específico das atividades de ca- instituídas pelo Comitê Gestor do PDFor, fo- pacitação promovidas pelo coletivo de ONGs ram apresentadas propostas pelas lideranças e movimentos sociais de modo a qualificar e comunitárias, correspondentes às suas respec- aglutinar os representantes de comunidades, tivas áreas, seguindo procedimentos comuns, apoiados no reconhecimento de áreas que ex- os quais garantiram unidade às propostas pusessem as contradições presentes na cidade, apresentadas. Com isso, ao final dessa ação, onde o desenvolvimento e a degradação so- foram incorporados ao plano diretor em revi- cioambiental disputavam territórios (Pequeno, são dezenas de ZEIS, atrelando de modo com- 2002). Ao longo de quinze dias, foi conduzida plementar áreas de ocupação, vazios urbanos uma formação reunindo os seguintes conteú- e terrenos subutilizados. dos: conceituação do instrumento e inserção Além disso, foram incluídas como alvo do mesmo como parte integrante da política desse instrumento, algumas dezenas de con- urbana municipal; apresentação de resultados juntos habitacionais construídos pela Prefeitu- obtidos noutros municípios; entraves e poten- ra Municipal de Fortaleza no período de 1988 cialidades de sua aplicação na realidade socio- a 2004, contraditoriamente em situação fun- ambiental de Fortaleza; procedimentos neces- diária irregular. Observa-se aqui que o próprio sários para sua apresentação como proposta poder público passou a adotar as ZEIS como es- na elaboração do plano diretor. tratégia que permitisse a regularização fundiá- Tomaram parte dessa atividade lideran- ria, flexibilizando os instrumentos urbanísticos ças selecionadas com as seguintes caracterís- que a própria prefeitura não havia considerado, ticas: localização em setores de maior precarie- denunciando que mesmo os assentamentos ha- dade urbana; vinculadas às comunidades que bitacionais de interesse social estavam aquém estivessem próximas aos vazios urbanos; inte- das exigências legais. grantes de atividades de capacitação promovi- Após análise da Procuradoria Geral do das pelas instituições organizadoras, portanto Município, o PDFor permaneceu em discussão com conhecimento prévio sobre o Estatuto da no legislativo municipal. Como um dos temas Cidade, suas diretrizes e instrumentos. Também mais polêmicos, a adoção das ZEIS provocou foram incorporados à capacitação, estudantes reações dos vereadores que representam os dos cursos de Geografia, Direito e Arquitetura setores mais retrógrados e contrários à regu- e Urbanismo, os quais colaboraram nas ativida- larização fundiária de ocupações situadas nas des práticas: realização de trabalhos de campo áreas de maior valorização imobiliária. junto às lideranças identificando ocupações e No caso do Projeto de Lei do PDFor, ela- vazios complementares; discussão dos resulta- borado com a assessoria contratada, atesta-se dos preliminares nas comunidades; mapeamen- a qualidade técnica do mesmo, dada a perti- to das informações e inserção das informações nência dos instrumentos apontados para as 494 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza diferentes zonas que compõem o macrozoneamento. Todavia, merece ser destacado o problema decorrente da terceirização de tal atividade, visto que ao se delegar a outrem a responsabilidade sobre os rumos da política urbana, ao invés de desenvolvê-la no seio da própria instituição, tende a ocorrer dificuldades para sua efetiva implementação nas etapas seguintes, tais como: a discussão junto à Câmara Municipal das diretrizes propostas, a definição de índi- à regularização fundiária e urbanística (Artigo 129); ZEIS III: compostas de áreas dotadas de infraestrutura, com concentração de terrenos não edificados ou imóveis subutilizados ou não utilizados, devendo ser destinadas à implementação de empreendimentos habitacionais de interesse social, bem como aos demais usos válidos para a Zona onde estiverem localizadas, a partir de elaboração de plano específico (Artigo 133). ces e parâmetros urbanísticos de uso e ocupação do solo, a escolha de projetos prioritários, a atualização do diagnóstico, entre outros. No que se refere às interrelações entre as ZEIS e os demais instrumentos da política urba- Ainda que de forma genérica, as ZEIS na incluídos no PDFor, é possível reconhecer al- foram conceituadas e classificadas no Plano guns vínculos a serem utilizados: parcelamento Diretor de Fortaleza (Fortaleza, 2009) da se- compulsório, para o caso das ZEIS tipo III (va- guinte maneira: zios urbanos), desde já indicando a necessidade As Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS – são porções do território, de propriedade pública ou privada, destinadas prioritariamente à promoção da regularização urbanística e fundiária dos assentamentos habitacionais de baixa renda existentes e consolidados e ao desenvolvimento de programas habitacionais de interesse social e de mercado popular nas áreas não edificadas, não utilizadas ou subutilizadas, estando sujeitas a critérios especiais de edificação, parcelamento, uso e ocupação do solo (Artigo 123). ZEIS I: compostas por assentamentos irregulares com ocupação desordenada, em áreas públicas ou particulares, constituídos por população de baixa renda, precários do ponto de vista urbanístico e habitacional, destinados à regularização fundiária, urbanística e ambiental (Artigo 126); ZEIS II: compostas por loteamentos clandestinos ou irregulares e conjuntos habitacionais, públicos ou privados, que estejam parcialmente urbanizados, ocupados por população de baixa renda, destinados Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 de que esses territórios cumpram com a função social da propriedade; outorga onerosa do direito de construir, sendo as ZEIS tipo I e II (favelas, conjuntos e loteamentos precários, alvo de recursos de contrapartida para sua regularização urbanística; transferência do direito de construir como forma de compensação para os proprietários de terras definidas como ZEIS tipo III que terão reduzido seu potencial construtivo; consórcio imobiliário, também para as ZEIS tipo III, garantindo a possibilidade de formação de parceria entre o proprietário e o poder local, no sentido de ampliar a oferta de habitação de interesse social; operações urbanas consorciadas tendo as áreas de ZEIS como prioritárias para intervenções, favorecendo a recuperação urbano-ambiental de áreas degradadas de forma inclusiva. As possibilidades supracitadas apontam a potencialidade do instrumento dada a sua flexibilidade no estabelecimento de índices urbanísticos específicos e sua capacidade de atrelamento aos demais instrumentos. 495 Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas Numa primeira análise sobre a distribui- das ZEIS no plano, sem que o posterior deta- ção espacial das áreas de ZEIS em relação ao lhamento de seus procedimentos, com vistas à crescimento urbano da cidade, é possível afir- implementação, venha a ser realizado.6 mar que, apesar do crescente número de famí- Observa-se, ainda, que as áreas apro- lias vivendo em áreas de favela em Fortaleza vadas como ZEIS se concentram nas faixas de e da quantidade de conjuntos habitacionais praia e nas suas imediações, configurando- ainda em situação fundiária irregular, um pri- -se como reação das comunidades que vivem meiro olhar sobre as áreas definidas como ZEIS nesses setores em relação às históricas pres- nos leva a considerar o baixo impacto de sua sões do setor imobiliário, verdadeira estratégia adoção no PDFor. Entretanto, considerando que de resistência dos moradores destas favelas. esse primeiro agrupamento possa representar Desde já, indica-se como questão para futuras apenas o iniciar de uma dinâmica, é possível pesquisas, a capacidade real do instrumento apontar que a mesma poderá, em caso de ex- em conter a valorização imobiliária das áreas periência bem-sucedida, vir a ser utilizada para circunvizinhas, dado que a sua aprovação e as outras partes da cidade. Há que se ressal- implementação tendem a depreciar o valor dos tar também que não basta a simples inserção imóveis situados nas proximidades. Figura 2 – Fortaleza: ZEIS tipos 1, 2 e 3 Legenda Tipo de Zeis Zeis1–ocupação Zeis2–conjunto Zeis3–vazio Rodovias Limite municipal RMFOR–arruamento Limite municipal Fonte: PDP2009. Organizado pelos autores. 496 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza Analisando-se algumas características gestão municipal, o que provoca reações dos das ZEIS, até aqui aprovadas em termos quan- movimentos sociais. Todavia, as ZEIS, ponto de titativos, é possível tecer algumas considera- maior destaque do referido PD, têm consegui- ções: o número de ZEIS tipo I (favela) represen- do ser alvo de discussão, quase sempre atre- ta pequena parcela do universo de ocupações lada à agenda de debates sobre intervenções irregulares identificadas na cidade; o total em urbanas conduzidas pelo Estado e, por vezes, hectares das ZEIS tipo III (vazios e edificações indo em desencontro aos interesses de inves- subutilizadas) representa pouco mais de 60% tidores privados. do total de ZEIS tipo I; a área média dos assen- Inserida no PDFor a partir de proposta tamentos habitacionais de interesse social (ZEIS formulada pelos movimentos sociais, com o Tipo II) correspondente a 2,4 hectares indica o apoio de organizações não governamentais, as pequeno porte dos conjuntos realizados pelo ZEIS tendem a ser alvo de disputas territoriais. município nesta fase pós-BNH; a ocorrência de O acompanhamento desta dinâmica urbana 34 ZEIS tipo III indica a necessidade de política tem fornecido elementos para compreender o de combate à especulação fundiária, especial- papel, a força e os interesses dos agentes so- mente se considerarmos que, em média, cada ciais envolvidos, visto que as áreas incluídas um deles teria cerca de 20 hectares, represen- como ZEIS possuem alto valor imobiliário, se- tando quase cinco vezes a área dos conjuntos jam elas ocupações, vazios urbanos ou terre- municipais (ZEIS tipo II) (Ver tabela 1). nos subutilizados. Os processos apresentados Passados quase dois anos de sua apro- a seguir buscam indicar os caminhos adotados vação, observa-se que a implementação do para aprofundamento dos estudos, em vias de PDFor vem sendo lentamente conduzida, realização, confirmando a adoção das ZEIS co- demonstrando falta de interesse político da mo objeto de nossa agenda de pesquisa. Tabela 1 – Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza – 2009 Caracterís cas Número de áreas Área total (hectares) Área média (hectares) Número de áreas acima da média Zeis Tipo I Zeis Tipo II Zeis Tipo III 45 56 34 1067,7 136,64 661,3 23,7 2,4 19,5 9 11 11 Fonte: organizado pelos autores Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 497 Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas Realização de empreendimentos imobiliários em ZEIS Reconhecimento das ZEIS pelo poder local e aproveitamento político Mesmo antes da aprovação de um conjunto Desde a aprovação do PDFor, o próprio poder de ZEIS no conteúdo do PDFor, verificou-se a local já demonstrou por algumas vezes ter a aceleração da aprovação de empreendimentos compreensão da importância das ZEIS como imobiliários em terrenos inseridos em ZEIS do instrumento da política urbana. Diante da pos- tipo III (vazios urbanos e edificações subutiliza- sibilidade de implementação de um estaleiro dos), os quais foram protocolados logo após a junto ao terminal portuário, numa parceria en- divulgação do mapeamento anexado ao PDFor. tre o Governo Estadual, a Transpetro e um in- Estudos recentemente realizados revelam vestidor do setor privado, a Prefeitura fez uso que várias ZEIS situadas nas áreas de maior in- da determinação da área como zona especial teresse do setor imobiliário na faixa litorânea pelo PD, impedindo assim a implantação do ao leste, no eixo de segregação residencial complexo industrial. direção sudeste, nas frentes de expansão imo- Ao se opor a este projeto de cunho de- biliária, foram rapidamente ocupadas por con- senvolvimentista, foi alegado que a reversão domínios residenciais horizontais, desfazendo da ZEIS, antes mesmo de sua implementação, a complementaridade pretendida entre as ZEIS desvirtuaria todo o esforço em realizar o PDFor, tipo I – favelas e tipo III vazios. garantindo com isso a permanência de mais de Por outro lado, constata-se a periferiza- 5.000 famílias que seriam removidas da área. ção das demandas oriundas do Programa Mi- Mais ainda, que o uso industrial do setor es- nha Casa Minha Vida para famílias com renda taria se opondo diretamente à vocação do inferior a três salários mínimos. Em sua grande município, como porta de entrada de destino maioria, esses novos empreendimentos imobi- turístico. Tratando-se de área de propriedade liários conduzidos pelo mercado imobiliário e da União, a qual se encontra em fase de re- associados ao poder local, vem sendo implan- gularização fundiária, a mesma foi incluída na tados nos municípios vizinhos a Fortaleza – segunda edição do Programa de Aceleração do Maracanaú e Caucaia – cuja conurbação com Crescimento, a iniciar em 2011. a capital se deu desde o período áureo do BNH através de grandes conjuntos habitacionais. Recentemente, outra área conhecida como Campo do América, incluída no PDfor como Vantagens locacionais como a disponibi- ZEIS, de propriedade do Instituto Nacional de lidade de terra barata e a doação de terras pe- Serviço Social (INSS), foi alvo de ação positiva los municípios para estes novos assentamentos da Prefeitura. Ao ser divulgado sua inclusão em têm contribuído para esta escolha, bem como o processo de leilão para venda, a gestora muni- caráter especulativo que esses empreendimen- cipal entrou em cena dispondo-se a adquirir a tos apresentam, visto que espaços vazios, ou área com vistas à implantação de equipamento mesmo subutilizados, remanescem nos bairros social voltado para o desenvolvimento e forta- intermediários e mesmo periféricos de Fortaleza. lecimento da comunidade. 498 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza Outros projetos urbanísticos e habita- após a aprovação pela Câmara, que a mesma cionais vêm sendo implementados visando não mais constava do plano. Estudos iniciais atender a demandas localizadas, definidas divulgados pelo Governo Estadual mostraram mesmo antes do PDFor, como o Projeto Vila que as vias lindeiras a essa comunidade seriam do Mar, que envolve a maior ZEIS de Fortale- alargadas, bem como viadutos e mesmo um za, com mais de 280 hectares, compreendendo ramal de sistema de veículos leve sobre trilhos três bairros da cidade. Nesse caso, vem sendo seriam implantados sobre essa área. construídas 1.500 unidades habitacionais em Diante das pressões dos movimentos so- vazios situados nas proximidades, somadas a ciais, a Prefeitura recuou e encaminhou à Câ- 3.000 melhorias habitacionais e 7.000 ações de mara Municipal projeto complementar. Entre- regularização fundiária, todos eles associados tanto, foi inserido artigo que diz: a um antigo projeto urbanístico de avenida paisagística a beira-mar, que previa a remoção das famílias para conjuntos periféricos. Diante dessas situações, é possível reconhecer a ocorrência de reversão de procedimentos e prioridades por parte do município, ainda que se mantenha em condições precárias a interoperabilidade entre os órgãos e os programas. Parcerias público-privadas, megaeventos e fragilização das ZEIS Art. 5º– Fica a Chefe do Poder Executivo, em consonância com o que estabelece o artigo 4o., autorizada a, por decreto, estabelecer exceção aos parâmetros urbanísticos da área em que está inserida a ZEIS 1 do Lagamar, quando o interesse público justifica, ou quando estiverem envolvidas ações de infraestrutura viária ou infraestrutura urbana ou ambiental, ou ainda, quando se tratar de projetos que tenham relação com a Copa 2014. (Projeto de lei complementar, 21/12/2009) Assim, mesmo que se tenha nomeado Todavia, as manifestações do poder público um conselho gestor reunindo representantes têm sido contraditórias, demonstrando ambi- da comunidade e do município, e que venham guidade na forma de compreender o instru- a ser desenvolvidas as diferentes etapas (o mento, ao condicionar a inclusão de determina- diagnóstico específico da área, a normatiza- da área de ocupação como ZEIS à necessidade ção especial de parcelamento, edificação, uso de sua remoção em caso de intervenções urba- e ocupação do solo; os planos urbanísticos, de nas associadas aos megaeventos esportivos. regularização fundiária, de trabalho e renda e No caso da ZEIS do Lagamar, onde vivem de participação comunitária e desenvolvimento mais de 3.500 famílias, a qual havia sido inclu- social), fica a área à mercê de sua revogação, ída nas propostas iniciais do PDFor a partir das prevalecendo a definição técnica e os interes- ações das lideranças comunitárias, verificou-se, ses associados à Copa de 2014. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 499 Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas Desconhecimento quanto ao conteúdo urbanístico das ZEIS Diversidade das condições de moradia nas ZEIS e nas vizinhanças Outra questão associada à implementação das Buscando-se compreender o conteúdo urbanísti- ZEIS diz respeito à necessária complementari- co das áreas definidas como ZEIS tipo I (favelas) dade entre as ZEIS tipo I e tipo III, visto que, com vistas à regularização fundiária, algumas dada a falta de conhecimento prévio sobre o análises prospectivas têm sido feitas no sentido conteúdo urbanístico e habitacional das áreas de conhecer a realidade dos índices de ocupação de ocupação, pode levar à simples consolida- do solo e, assim, poder estabelecer procedimen- ção da condição precária em que as famílias tos condizentes com a realidade social. se encontram. Estudos realizados em ocupação com No caso, é importante ressaltar que, de 200 unidades domésticas, situada no litoral acordo com estudos realizados em 2004 por oeste de Fortaleza, mostraram que 70% dos consultores contratados pela Prefeitura, foi in- lotes apresentam área inferior a 60,0 m2, invi- cluído, em projeto de lei, a adoção como área áveis de serem regularizados caso a área mí- mínima a ser regularizada, em se tratando nima exigida pelo município para implantação de áreas de ocupação, 25,0 m2, com taxa de de programas habitacionais de interesse social ocupação máxima de 80%. Outrossim, desde fosse o parâmetro adotado. Todavia, caso fos- 1999, o Município passou a adotar em sua lei se considerado como limite para regularização 2 2 de uso e ocupação do solo, 60,0 m (4X15 m ) fundiária a área média do lote na ocupação, a como área mínima de lote para conjuntos ha- qual gira em torno de 36 m2, quase 30% dos bitacionais de interesse social voltados para o mesmos ficariam fora do padrão adotado. reassentamento de famílias. Ambos os índices Todavia, deve ser reconhecida a própria supracitados, apesar de aleatórios, demons- diversidade morfológica presente nas áreas de tram o desconhecimento da realidade nessas ocupação no que se refere aos padrões urbanís- áreas, apresentando, no primeiro caso, o sé- ticos, visto que, dependendo da sua localização rio risco de viabilizar a regularização fundiá- na cidade, as mesmas podem ainda dispor de ria associada à inadequação domiciliar e, no espaços para a expansão dos domicílios para segundo, o estabelecimento de modelos de os fundos dos terrenos ou, em caso de ocupa- ocupação superadensados e com dificuldade ções mais antigas, prevaleça como alternativa de expansão. a sua autoverticalização. 500 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza De acordo com resultados preliminares de infraestrutura e mobilidade, tendem a ser feitos junto às ocupações consideradas como mais densamente e intensamente ocupadas, no ZEIS que representam as diferentes tipologias sentido de complementar a renda, até como es- socioespaciais nas quais se estrutura a Região tratégia de resistência de seus moradores para 7 Metropolitana de Fortaleza, verificou-se que a conseguir permanecer na área. localização, a valorização imobiliária e a com- Por outro lado, as áreas mais distan- posição sócio-ocupacional dos bairros em que tes e em condições precárias apresentam as mesmas encontram-se inseridas interferem áreas maiores, menor número de pessoas por diretamente nos rendimentos da família, nos unidade doméstica e por conseguinte maior padrões urbanísticos e de moradia. quantidade de área por habitante. A significa- Destaca-se que a diminuição da renda ção desses indicadores se amplia se conside- média familiar e a redução do número de pes- rarmos os valores supracitados, estabelecidos soas por domicílio seguem a hierarquia social nos projetos de lei de regularização fundiária em que as tipologias foram definidas, enquan- (25 m2), indicando que a área média por famí- to a área média do lote e o número de metros lia em áreas de ocupação é bastante superior, quadrados por habitante aumentam contra- aproximando-se da área do lote para conjuntos riando a mesma hierarquia. Isso pode signi- de habitação social previstas pela lei de uso e ficar que as favelas bem localizadas, dotadas ocupação do solo. Tabela 2 – Indicadores urbanos – ZEIS em relação às tipologias socioespaciais – 2010 Comunidade: tipologia – características urbanas Renda (S.M.) Hab./UH Área média do lote (m2) M2/hab. 2 5,3 46 8,7 Lagamnar: média superior, entorno do centro 1,9 4,7 46,4 9,9 Caça e pesca: média, frente expansão imobiliária 1,8 4,1 66,7 16,3 Barra do Ceará: popular operária, conjuntos HIS 1,8 3,9 66,4 17 Planalto do Pici: inferior – bairros precários 1,5 4,3 69,5 16,2 Campo do América: superior, zona nobre central Fonte: organizado pelos autores. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 501 Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas Considerações finais suas relações de poder e com seus interesses, a realização de ações de exigibilidade de direitos pela sociedade civil pode vir a render Retomando o encadeamento entre as ques- resultados positivos. Tudo isso denota que es- tões que norteiam este trabalho, reforça-se, tamos diante de um processo, ainda em fase para o caso de Fortaleza, a interligação entre embrionária, cujos efeitos, acredita-se pode- o crescimento acelerado de sua favelização rão vir a ser percebidos no médio prazo. e a necessidade de adoção de instrumentos Mais recentemente, observa-se que as urbanos flexíveis capazes de atender às de- reações da sociedade passam a ter efeitos mandas diversificadas que a cidade informal e prolongados e educativos, na medida em que espontânea tem apresentado. Todavia, diante o próprio poder local passa a reconhecer a de ambiente político institucional desfavorá- importância da adoção de processos partici- vel e precário, as tentativas de implementa- pativos, que possam garantir legitimidade aos ção de políticas urbana e habitacional, enfren- mesmos. No caso, o Plano Municipal de Ha- taram dificuldades cujos efeitos perversos da bitação de Interesse Social de Fortaleza, em dissociação entre as mesmas se reiteram nas realização desde meados de 2010, é possível precárias condições de moradia. reconhecer, como diferencial positivo em rela- Progressivamente, observa-se que se abrem perspectivas favoráveis para que as ção aos anteriores, sua realização no âmbito da própria Prefeitura. mudanças venham a ser implementadas. É Configura-se, dessa maneira, um avanço possível reconhecer que as condições para na forma recente de planejar a cidade, visto que o debate seja estabelecido encontram-se que, nas últimas duas décadas, grande parte melhoradas, ainda que a responsabilidade re- do planejamento urbano foi terceirizada. Com caia sobre a sociedade civil. Graças às diretri- isso, além do desperdício da possibilidade de zes e aos instrumentos presentes no Estatuto formação de recursos humanos das próprias da Cidade, processos que outrora consegui- instituições envolvidas, transferiu-se para con- riam passar despercebidos, favorecendo os in- sultorias privadas a responsabilidade de formu- teresses de certos grupos e parcerias, podem lar as diretrizes da política urbana municipal. agora ser compelidos e enfrentados pela sociedade civil. Toma parte destes trabalhos a organização de diagnóstico das áreas de favela do mu- O exemplo aqui apresentado com o ca- nicípio voltado para indicar o dimensionamen- so da revisão do Plano Diretor de Fortaleza, to real do problema habitacional, bem como enfocando a inserção das ZEIS no seu conte- o estabelecimento de programas classificados údo, inclusive especificando as áreas a serem segundo diferentes linhas de ação. Com isso, contempladas é emblemático. Através do um novo universo das condições de moradia mesmo é possível demonstrar que, ainda que precária em Fortaleza tende a ser revelado, o Estado não se mostre favorável à adoção ampliando com isso a responsabilidade da im- de determinadas práticas que colidam com plementação das ZEIS como instrumento capaz 502 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza de promover a regularização fundiária, resistir Ressalta-se, todavia, que as questões à especulação imobiliária e fomentar as prá- aqui apontadas decorrem de análises ainda ticas de planejamento e gestão participativos. não conclusivas, mas que já indicam que, Alguns processos foram aqui elencados, desde a inserção desses instrumentos no pla- os quais se associam à atual política urbana e nejamento urbano do município e, mantida a habitacional de Fortaleza: a realização de em- vigilância e as articulações dos movimentos preendimentos imobiliários em ZEIS, o uso po- sociais urbanos, é possível que se possa vir lítico das mesmas pelo poder local, a organiza- a obter êxito na sua implementação. Além ção de parcerias público-privadas associadas disso, deve ser mencionado que as ZEIS co- a megaeventos, fragilizando os instrumentos, mo instrumento da política urbana municipal além do desconhecimento quanto ao conteúdo ainda requer estudos mais aprofundados, urbanístico e à diversidade das condições de deixando claro suas possibilidades positivas moradia nas zonas especiais e nas vizinhanças. de intervenção em prol de uma cidade so- Todos eles indicam a presença de conflitos e cialmente mais justa, porém com debilidades disputas territoriais, em que os diferentes ato- recorrentes que possam vir a comprometer res tendem a explicitar seus interesses, abrin- seus objetivos. do-se o debate em torno da questão fundiária. Deve ainda ser destacado que os estu- Na atual conjuntura, apesar da disponi- dos aqui apresentados correspondem a tenta- bilidade de recursos para produção habitacio- tivas de investigação a respeito do conteúdo nal pelo Estado, as dificuldades em obter terre- das áreas a serem beneficiadas com o instru- nos para sua implementação demonstram que mento das ZEIS, o qual traz como principal ca- esse instrumento pode vir a ser adotado pelo racterística a flexibilidade de sua adoção de Estado para ações de provisão habitacional. acordo com seu conteúdo urbanístico. Renato Pequeno Arquiteto e Urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Professor adjunto IV da Universidade Federal do Ceará – Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Fortaleza/CE, Brasil. [email protected] Clarissa F. Sampaio Freitas Arquiteto e Urbanista. Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Professor adjunto I da Universidade Federal do Ceará – Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Fortaleza/CE Brasil. [email protected] Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 503 Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas Notas (1) A par r da leitura do relatório, destaca-se a presença de áreas com alguns milhares de pessoas como o Pirambu (41 mil); Mucuripe (15 mil); Lagamar (14 mil); Verdes Mares/Trilho (13 mil); Moura Brasil e Serviluz (7 mil cada). Outras 19 áreas encontravam-se na faixa de 5 a 2 mil moradores. Atualmente, muitas destas áreas de ocupação remanescem, inclusive incluídas como Zonas Especiais de Interesse Social no Plano Diretor de Fortaleza, aprovado em março de 2009. (2) Pesquisa LabHab/FAUUSP realizada em 1999, sob a coordenação das professoras Ermínia Maricato e Laura Bueno, analisou o Programa de Urbanização de Favelas conduzido pela Cohab-CE, compreendendo o alcance geral do mesmo e realizando estudo de caso para área urbanizada. (3) A adoção das áreas de risco como alvo das ações do Habitafor tem como ponto de partida levantamento realizado pelo Centro de Defesa e Promoção de Direitos Humanos da Arquidiocese de Fortaleza, em 1998, o qual serviu de subsídio para a formulação de Plano de Intervenção em Áreas de Risco do HBB, realizado pela Comhab em 2001. Nesse levantamento foram contabilizadas 79 áreas com mais de 9.300 famílias. (4) As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) têm sido objeto de estudo de diversos pesquisadores na área do direito urbanís co e do planejamento urbano. No âmbito jurídico, as análises de Nelson Saule, Edésio Fernandes e Betânia Alfonsín na literatura especializada merecem ser ressaltadas. Os casos de Recife e Natal, abordados por Lívia Miranda e Dulce Bentes, respectivamente, se destacam por conta dos resultados obtidos com a implementação nestes municípios. Todavia, por conta da inserção deste instrumento como alterna va para a formulação de programas de regularização fundiária nos planos diretores revistos ou elaborados nos últimos anos, tende a ocorrer um maior espectro de situações a serem analisadas. O trabalho apresentado por Ferreira e Motsuke (2007) traz avanços no sen do de problema zar um estudo mais compreensivo sobre as possibilidades do instrumento como parte da polí ca urbana municipal. (5) Atividades de capacitação realizada com recursos da OXFAM/ Comunidade Europeia, sob a coordenação da ONG Cearah Periferia em parceria com o Observatório das Metrópoles/Núcleo de Fortaleza, em março de 2006. (6) No caso de Fortaleza, desde o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de 1992, já se encontrava inserido o instrumento das Zonas Especiais de Interesse Social com uma nomenclatura diferente, vide os ar gos 73º ao 76º, os quais tratam dos assentamentos espontâneos e suas possibilidades de urbanização e regularização fundiária. Todavia, nenhuma área veio a ser mapeada, fazendo com que este plano (ainda em vigor) seja progressista no seu conteúdo e ao mesmo tempo vazio na sua aplicabilidade e implementação. (7) Neste trabalho, adotou-se a metodologia u lizada pela Rede Observatório das Metrópoles, a qual classifica as áreas de ponderação de dados de cada metrópole segundo os percentuais e as densidades rela vas das diferentes categorias sócio-ocupacionais predefinidas, as quais são ob das a par r dos dados censitários do IBGE. Em cada uma das pologias foi selecionada uma área de favela, incluída no PD de Fortaleza como ZEIS, para que se possa verificar as diferenças presentes em seus conteúdos urbanísticos e habitacionais. Maiores informações a respeito desse estudo podem ser ob das em PEQUENO, R. (2009). Como Anda Fortaleza. Rio de Janeiro, Letra Capital. Disponível em: www.observatoriodasmetropoles.net. 504 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza Referências AZEVEDO, S. e GAMA, L. (1982). Habitação e poder. Rio de Janeiro, Zahar. CARDOSO, A. L. (2001). Polí ca habitacional: a descentralização perversa. Cadernos IPPUR/UFRJ. Rio de Janeiro, pp. 105-122. CASTRO, J. L. (1976). A Planta de Fortaleza em 1887. Fortaleza (mimeografado) CEARÁ – Governo do Estado do, Secretaria do Trabalho de da Ação Social (1991). Assentamentos subnormais em Fortaleza, Fortaleza. CORREA, R. L. (1995). O espaço urbano. São Paulo, Á ca. FERREIRA, J. S. W. e MOTISUKE, D. (2007). “A efe vidade da implementação das zonas especiais de interesse social no quadro habitacional brasileiro”. In: BUENO, L. e CYMBALISTA, R. Planos diretores municipais: novos conceitos. São Paulo, Annablume. FORTALEZA – Prefeitura Municipal (1973). Programa integrado de desfavelamento. ______ (2009). Plano Diretor de Fortaleza (Lei 062/2009). 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Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012 505 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) The right to the city in dispute: the case of the Zeis of Lagamar (Fortaleza – Northeastern Brazil) Linda Maria de Pontes Gondim Marília Passos Apoliano Gomes Resumo Este trabalho discute as Zeis, instrumento regulamentado pelo Estatuto da Cidade. Considera-se sua contribuição potencial para diminuir o déficit habitacional, ordenar o crescimento urbano e promover a redistribuição de renda real na cidade. O trabalho aborda a origem das Zeis no contexto da história recente dos movimentos sociais urbanos no Brasil. Por fim, problematiza-se o caso da Zeis do Lagamar em Fortaleza-CE, em virtude das peculiaridades do processo que levou à sua inclusão no Plano Diretor Participativo de Fortaleza, aprovado em 2009. Palavras-chave: estatuto da cidade; plano diretor; zona especial de interesse social; movimentos sociais urbanos; Lagamar. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 Abstract This work discusses the Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis – Social Housing Zones), an instrument regulated by the City Statute. Their potential contribution to reduce the housing deficit, to control urban growth and to promote real income redistribution in the city, are considered. The paper approaches the origin of the Zeis in the context of the recent history of Brazil’s urban social movements. Finally, the case of the Zeis of Lagamar in the city of Fortaleza (Northeastern Brazil) is discussed, due to the peculiarities of the process that led to its inclusion in Fortaleza’s Participatory Master Plan, approved in 2009. Keywords: city statute; master plan; social housing zone; urban social movements; Lagamar. Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes Introdução Este trabalho tem por objeto as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS e a possibilidade de sua utilização como mecanismo de redistribuição de renda real na cidade, a partir de inovações legislativas e urbanísticas trazidas pelo Estatuto da Cidade. A presente discussão envolve ainda a problematização do direito à moradia no Brasil, como um dos elementos que compõem o direito à cidade. Já se tornou lugar-comum afirmar que grande parte dos problemas urbanos decorre da falta de planejamento ou mesmo da omissão quase completa do Estado. Não se nega que esse é um fator relevante, mas é preciso reconhecer que as razões da falta de efetividade das políticas públicas vão muito além de simples inércia dos governantes. O processo de segregação socioespacial não acontece por acaso, nem decorre simplesmente da expansão das cidades. O mercado imobiliário e os interesses a serem ponderadas. As áreas ocupadas pelos pobres são, de fato, as únicas que não são (ainda) de interesse do mercado imobiliário. Trata-se da “lógica da necessidade”: a população de baixa renda não encontra espaço no mercado formal de habitação e recorre às ocupações irregulares por conta da necessidade, que é a lógica que a move (Alfonsín, 2006). Nesse contexto é que serão analisadas as Zonas Especiais de Interesse Social e, especificamente, o processo de mobilização social em torno do reconhecimento da ZEIS do Lagamar, em Fortaleza-CE. O presente trabalho foi realizado por meio de pesquisa de campo1 e levantamento bibliográfico nas áreas de planejamento urbano, sociologia urbana e direito urbanístico, em especial estudos sobre a cidade de Fortaleza, realizados pelo Observatório das Metrópoles. Além da pesquisa bibliográfica, utilizou-se como referência a recente legislação urbanística, em particular aquela relativa ao município de Fortaleza. privados têm forte poder na correlação de forças exercida nas disputas pelo espaço urbano, apropriando-se das áreas mais bem dotadas de infraestrutura, serviços e equipamentos urbanos. Como a oferta de habitação popular pelo Poder Público tem sido historicamente insuficiente, os pobres têm que recorrer a mecanis- Crescimento urbano e mudanças político-institucionais no planejamento e na gestão das cidades mos informais, como ocupações ou aquisição de terrenos em loteamentos irregulares. Configuram-se, assim, situações de ilegalidade não Crescimento urbano desordenado e regime autoritário só no que diz respeito ao local das habitações, mas também ao tipo de construção, à existência As cidades brasileiras experimentaram intenso ou não de licenciamento da Prefeitura e à regu- e desordenado crescimento, sobretudo a partir larização fundiária. Nesses casos, não se trata de meados do século passado. Na década de propriamente de “escolhas” do lugar onde 1970, a população urbana já era majoritária, morar, pois praticamente não existem opções correspondendo a 55,9% da população total, 508 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) percentual que em 2000 elevou-se para 81,2% serviços urbanos. Já a construção habitacional (Rolnik, 2005). No entanto, somente em 1976 o destinada às classes média e alta ocorreu pre- governo federal, por meio da Comissão Nacio- dominantemente nas áreas mais centrais, supe- nal de Política Urbana e Regiões Metropolitanas requipadas, cujo adensamento e consequente (CNPU), do Ministério do Interior, elaborou o valorização levaram ao recrudescimento de es- primeiro anteprojeto de lei de desenvolvimento peculação imobiliária (Monte-Mór, 2007). Des- urbano. Tal iniciativa não foi adiante devido a sa forma, consolidou-se um padrão segregador pressões de setores conservadores, que a de- e oneroso de urbanização, em que a intensa nunciavam como uma tentativa de “socializar o ocupação das áreas centrais e a expansão peri- solo urbano” (Ribeiro e Cardoso, 2003, p. 12). férica coexistem com a permanência de vazios O contexto político de então era marcado pelo autoritarismo do regime militar, que res- nas proximidades ou mesmo dentro de áreas bem equipadas. guardava um modelo de desenvolvimento eco- Os planos diretores patrocinados pelo nômico concentrador. O governo federal formu- SERFHAU, órgão do próprio BNH, pouco ou lava e implementava políticas públicas setoriais nada contribuíram para alterar esse quadro. A de grande impacto para as cidades – habitação, atuação do órgão federal de planejamento ur- transportes, saneamento e outras – enquanto bano limitou-se a municípios pequenos e mé- o controle do uso e da ocupação do solo ur- dios, fomentando trabalhos na linha do urba- bano ficava a cargo dos governos municipais, nismo racionalista, de corte tecnocrático, que premidos pela falta de recursos e limitados em produziram extensos diagnósticos e diretrizes sua autonomia. Na prática, a União centraliza- gerais de pouca eficácia para a ação das pre- va as decisões cruciais para o crescimento das feituras municipais (Santos e Baratta, 1997). cidades, como o financiamento massivo para Tampouco foram executados os planos dire- o setor habitacional, por intermédio do Banco tores elaborados pelos próprios municípios de Nacional da Habitação (BNH), criado em 1964. grande porte, mas esses, via de regra, imple- Embora a criação do BNH tivesse como mentavam uma legislação urbanística rigorosa um de seus propósitos ampliar a oferta de ha- e elitista, que contribuía para elevar os preços bitação de baixa renda, de modo a legitimar o dos terrenos urbanizados, tornando-os ina- então novo regime autoritário, a maior parte cessíveis à população de baixa renda. Deriva dos recursos aplicados no setor beneficiou a daí a contínua expansão dos assentamentos classe média (Azevedo e Andrade, 1982). Os informais: favelas, ocupações de áreas de ris- recursos destinados à moradia de baixa renda co ou loteamentos irregulares ou clandestinos foram utilizados pelas companhias estaduais (Maricato, 1996; Villaça, 2005). Nesse quadro, e municipais de habitação (COHABs) na cons- o território das cidades, ao invés de exibir de- trução de grandes conjuntos habitacionais senvolvimento e bem-estar, retrata e reproduz localizados nas periferias urbanas e metropoli- as injustiças e desigualdades sociais, configu- tanas, onde são baixos preços dos terrenos, jus- rando uma “urbanização de risco” (Rolnik et tamente pelas dificuldades de acesso a bens e al., 2005, p. 23). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 509 Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes Mudanças políticas e institucionais na sociedade brasileira pós-Constituição de 1988: participação popular e novos direitos 1988). As articulações presentes nas periferias urbanas passam a se expressar por meio de ações diretas como abaixo-assinados, ida de comissões a órgãos públicos, marchas e mesmo enfrentamentos diretos, como ocorreu em Durante a maior parte da década de 1970, a Fortaleza, na resistência à remoção da favela repressão da ditadura militar levou à desmo- da José Bastos, em 1978 (Barreira, 1992). bilização dos críticos do regime nos marcos De um modo geral, esses “novos mo- da legalidade instituída (mídia, parlamentos, vimentos sociais” tinham em comum a arti- sindicatos, partidos políticos, etc.). O descon- culação entre as dimensões da política e da tentamento com as precárias condições de vida cultura, expressas numa nova concepção de dos trabalhadores expressava-se no cotidiano cidadania, vinculada não a direitos abstratos dos bairros populares, mediante organizações formalmente reconhecidos, mas a interesses cuja dimensão política não era explícita, como e valores historicamente definidos. Tratava-se clubes de mães, associações de moradores e as não apenas de pleitear os direitos existentes, Comunidades Eclesiais de Base. As reivindica- mas de “inventar” novos, a partir de lutas e ções se relacionavam com interesses ligados à práticas cotidianas: direito à igualdade entre os esfera da reprodução social, como nas campa- gêneros, direito ao meio ambiente e direito à nhas contra o alto custo de vida, pelo acesso à habitação. Houve, assim, um “alargamento do posse da terra e por serviços de saúde, sanea- âmbito da cidadania”, no sentido de ir além mento e transportes coletivos (Doimo, 1995; de buscar o pertencimento ao sistema político: Sader, 1988). Na época, outros movimentos tratava-se de uma “proposta de sociabilidade” sociais também se constituíram, transcendendo cujo foco não mais se centrava na relação en- o nível local e tendo como sujeitos categorias tre Estado e indivíduos, transferindo-se para as transversais às classes sociais: mulheres, ne- relações que se dão no interior da sociedade gros, homossexuais, ecologistas e outros. civil (Dagnino, 1996, p. 108). Essa concepção A partir do final da década de 1970, o combinava-se com uma postura espontaneísta modelo econômico concentrador e o autorita- e “anti-Estado”, que preconizava a democracia rismo do regime começam a ser questionados direta, resistia à presença de militantes de par- de forma cada vez mais visível, por associações tidos políticos e recusava a institucionalização profissionais como a Ordem dos Advogados dos movimentos sociais (Gondim, 1991; Doimo, do Brasil e a Associação Brasileira de Impren- 1995; Cardoso, 1996). sa, pela Igreja Católica e até por empresários Na nova conjuntura de redemocratização insatisfeitos com a excessiva intervenção do que se delineia no início da década de 1980, a Estado na economia. Um novo movimento postura “autonomista” dos movimentos sociais sindical começa a se articular no ABC paulista, começou a arrefecer. Não se tratava apenas de enfatizando, assim como os demais movimen- uma tendência interna, mas de uma resposta tos sociais, sua autonomia em relação a parti- a mudanças mais amplas, como o pluripartida- dos políticos e a estruturas burocráticas (Sader, rismo e o retorno da dinâmica eleitoral, com a 510 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) consequente aproximação dos partidos políti- diretor, tornado obrigatório para as cidades cos aos movimentos sociais (Cardoso, 1996). com mais de 20 mil habitantes.3 A tramitação De parte do Executivo, a transformação expres- da lei complementar, que viria a ser o Estatuto sou-se na abertura para formas participativas da Cidade, foi longa e pontuada por conflitos de elaborar e implementar políticas públicas, entre os partidários da reforma urbana, de um incentivando a formação de associações locais lado, e, de outro, representantes de setores que (Tatagiba, 2002). A ascensão de administrações têm se beneficiado de um processo de urbani- de esquerda em grandes cidades enfatizou a zação predatório e excludente para muitos, e “participação popular”, ainda que enfrentas- lucrativo para poucos (Bassul, 2005). sem oposição não só de setores conservadores, mas dos próprios movimentos sociais (Soares e Gondim, 1998). Chamados a participar da formulação e execução de políticas, programas e projetos do Promessas do Estatuto da Cidade setor público, os movimentos sociais entram em uma nova fase, confrontando-se com a ne- Em 10 de julho de 2001, foi aprovado, final- cessidade de maior capacitação técnica e po- mente, o Estatuto da Cidade, o qual estabele- lítica – o que, por sua vez, reforça o papel das ceu um novo marco político-institucional para o entidades que prestam assessoria e treinamen- tratamento da questão urbana, particularmen- to, como organizações não-governamentais te no que concerne à função social da proprie- (ONGs), centros de pesquisa, associações pro- dade e à democratização do planejamento e da fissionais e outras (Cardoso, 1996; Albuquer- gestão das cidades. Ao condicionar o direito de que, 2004). Uma expressão significativa da no- propriedade à sua função social e ao separá-lo va fase dos movimentos sociais foi a formação do direito de construir, a nova lei fez com que do Movimento Nacional de Reforma Urbana o planejamento urbano deixasse de ter função 2 (MNRU), ampla rede de organizações popu- meramente regulatória, podendo ensejar políti- lares, associações profissionais, centros de pes- cas habitacionais mais equitativas e exercer o quisa, técnicos e militantes (Grazia, 2003; Silva, papel de indutor da ocupação urbana. 1991). Sua atuação foi crucial para a inclusão Em relação às políticas habitacionais, de um capítulo dedicado ao desenvolvimento a lei federal trouxe instrumentos que facili- urbano na Constituição de 1988, incorporando, tam a regularização fundiária e urbanística parcialmente, medidas propostas na Emenda de assentamentos informais. Entre estes, des- Popular articulada pelo MNRU, como a função tacam-se a usucapião urbana coletiva, a con- social da propriedade urbana, penalidades para cessão de uso especial para fins de moradia e coibir a retenção de terrenos vazios (art. 182) a concessão do direito real de uso. O primeiro e a usucapião urbana (art. 183). Entretanto, o desses instrumentos tornou possível regularizar texto constitucional condicionou essas medidas a situação de posse em favelas onde a ocupa- à edição de lei complementar e vinculou a defi- ção densa e desordenada torna difícil, senão nição da função social da propriedade ao plano impossível, a demarcação de propriedades Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 511 Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes individuais. Já a concessão de uso para fins de menores na implementação da lei. Dada uma moradia e a concessão do direito real de uso situação inicial de desigualdade de renda (real são instrumentos que possibilitam a regulariza- ou monetária), qualquer incremento de valor ção de favelas situadas em imóveis públicos.4 pode ser repartido de duas formas: igualmente Outros instrumentos afetos à intervenção do entre os indivíduos ou grupos sociais (distribu- Poder Público municipal no que tange ao uso tividade); ou desigualmente, seja beneficiando e à ocupação do solo urbano também foram os que têm menos (redistributividade), seja regulamentados pelo Estatuto da Cidade: as favorecendo os que têm mais (regressividade). Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis); a exi- No caso das políticas distributivas, todos ga- gência de parcelamento, edificação e utilização nham, sem que se altere fundamentalmente a de imóveis vazios ou subutilizados, seguida, situação inicial de desigualdade. Já as políticas em caso de descumprimento, da cobrança de redistributivas, ao contrário das distributivas, IPTU progressivo no tempo e da imposição da implicam uma situação do tipo “jogo de soma desapropriação com pagamento em títulos da zero”: alguém só pode ganhar se outro perder, dívida pública; o direito de superfície; o direito o que remete a uma possível disputa ou conflito de preempção; a outorga onerosa e a transfe- por recursos relativamente escassos. rência do direito de construir; as operações urbanas consorciadas. No Brasil, a concentração da renda monetária nos extratos superiores tem recebido Não há espaço, aqui, para analisar esses mais atenção do que a desigual apropriação, instrumentos per se, o que, inclusive, já feito por esses extratos, da renda advinda da va- em outros trabalhos (Dallari e Ferraz, 2002; lorização da propriedade imobiliária urbana, Mattos, 2002; Osório, 2002; Rolnik et al., em decorrência de investimentos públicos ou 2005; Saule Jr., 2004). Considerou-se perti- privados. Pouca atenção tem sido dada aos nente concentrar a discussão em torno de um efeitos regressivos, em termos de renda real, deles, as ZEIS, pelo potencial que este institu- do menor acesso que têm os pobres aos bens to apresenta para viabilizar políticas públicas e serviços urbanos (habitação, transporte, sa- distributivas e redistributivas, capazes de ul- neamento básico, equipamentos de educação, trapassar os marcos convencionais do planeja- saúde e lazer, etc.) (Vetter e Massena, 1982). mento regulatório. Entretanto, sendo o solo urbano um bem irreproduzível e sua ocupação inerentemente diferenciada, a concentração espacial de inves- O EC como instrumento de políticas distributivas e redistributivas timentos em infraestrutura e serviços urbanos terá como resultado um aprofundamento da desigualdade social (Harvey, 1975; Vetter e Na avaliação dos instrumentos do Estatuto Massena, 1982). da Cidade, a distinção entre políticas públicas Os assentamentos irregulares, princi- distributivas e redistributivas é relevante para pal forma de moradia da população de baixa que se possa aferir o alcance social dos bene- renda, tipificam a reprodução da iniquidade fícios, assim como as dificuldades maiores ou que marca o espaço urbano. A condição de 512 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) ilegalidade fundiária e urbanística gera uma espécie de subcidadania, baseada num ciclo vicioso: esses assentamentos localizam-se em terras não valorizadas no mercado imobiliário devido à falta de infraestrutura e serviços básicos e às restrições legais para sua ocupação parcela de área urbana instituída pelo Plano Diretor ou definida por outra lei municipal, destinada predominantemente à moradia de população de baixa renda e sujeita a regras específicas de parcelamento, uso e ocupação do solo (art. 47, V). (Apud Ancona, 2011) (impedimentos decorrentes de problemas ambientais, loteamentos realizados sem a autori- As regras a que se refere a lei federal zação do poder público, etc.); e a irregularidade dizem respeito a padrões urbanísticos e edi- fundiária e urbanística, a par do reduzido poder lícios mais condizentes com a realidade dos de pressão dos moradores, leva à escassez de assentamentos informais de baixa renda, em investimentos públicos para dar condições de termos de percentuais de áreas livres, sistema habitabilidade a essas áreas. Em contraparti- viário, tamanho mínimo do lote, densidades, da, a cidade legal, onde vivem os grupos de coeficiente de aproveitamento do terreno, maior renda e poder de barganha, cada vez etc. O tipo mais comum de Zeis (geralmente mais concentra os benefícios da urbanização, denominadas de “Zeis de ocupação”) abrange garantindo boas condições de vida (renda real) áreas ocupadas por assentamentos irregulares, e ganhos no valor da propriedade imobiliária que abrigam população de baixa renda, in- (renda monetária). A injustiça social é reforça- cluindo favelas e cortiços (Zeis 1) e loteamen- da por programas de remoção de favelas ou tos e conjuntos habitacionais (Zeis 2). Outro revitalização urbana, que acarretam a expulsão tipo de Zeis (chamado, em geral, Zeis de va- dos grupos de baixa renda que vivem nas pro- zios, ou Zeis 3) é constituído por áreas onde ximidades ou dentro de áreas mais bem aqui- haja terrenos, glebas e edificações vazios ou nhoadas em termos urbanísticos. O estabeleci- subutilizados. Ambos os tipos têm como ob- mento de Zeis, regulamentado pelo Estatuto da jetivo ampliar quantitativa e qualitativamente Cidade, pode ser uma estratégia para romper o a oferta de moradia popular, mas podem ser círculo vicioso que prejudica a função social da considerados como diferentes estratégias pa- propriedade e retira dos pobres o direito consti- ra a mesma finalidade. No caso das Zeis de tucional à habitação digna. ocupação, trata-se de um enfoque “curativo”, isto é, destinado a dar solução a uma situação já existente, mediante a regularização urbanís- As Zonas Especiais de Interesse Social como instrumento de políticas públicas distributivas e redistributivas tica e fundiária de assentamentos irregulares precários, de modo a garantir a permanência dos moradores no local, em condições dignas. Já as Zeis de vazios visam a ampliar a ofer- Segundo definição mais recente, contida na Lei ta de habitação de interesse social em áreas Federal nº 11.977, de 2009, as Zonas Especiais não utilizadas ou subutilizadas, mas dotadas de Interesse Social constituem de boas ou razoáveis condições de transporte Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 513 Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes público, infraestrutura e equipamentos urbanos. Neste caso, o enfoque é pró-ativo, pois almeja-se disponibilizar terrenos para a construção de moradias adequadas e acessíveis aos pobres, de modo a evitar o crescimento ou a formação de assentamentos irregulares. As primeiras experiências de criação de zonas especiais contemplaram apenas Zeis de ocupação, sendo fruto de reivindicações de movimentos sociais em Recife (1983) e Belo Horizonte (1985). Tais experiências, anteriores ao Estatuto da Cidade, tiveram como marco jurídico a Lei Federal nº 6.766, de 1979, que permitia a flexibilização dos padrões urbanísticos em casos específicos, como urbanização de favelas ou conjuntos habitacionais de interesse social. Somente 20 anos mais tarde, com a aprovação da Lei nº 9.785/99, o conceito de Zeis seria incorporado à legislação federal, que estabeleceu a possibilidade de reduzir as exigências relativas à infraestrutura em “parcelamentos situados em zonas habitacionais declaradas por lei como de interesse social – ZHIS” (apud Ancona, 2011, s. p.). Considera-se que as Zeis destinadas à regularização fundiária e urbanística são parte de uma política habitacional distributiva, pois visam à universalização do acesso aos benefícios proporcionados aos moradores da “cidade legal”. Já as Zeis de vazios têm características redistributivas, pois implicam a alteração dos padrões urbanísticos de modo a destinar para a habitação de interesse social áreas antes retidas para valorização futura, ou destinadas à ocupação por grupos de renda média e alta. Não por acaso, a utilização desse tipo de Zeis nos planos diretores aprovados depois do Estatuto da Cidade tem sido bem menor do que as Zeis do tipo 1 e 2: 514 Certamente, a reserva de área para habitação popular em áreas cobiçadas para outros usos, muito mais lucrativos, implica disputas e conflitos que ou foram perdidos na luta política e econômica, ou não foram sequer enfrentados no processo de elaboração do plano diretor. (Oliveira e Biasotto, 2011, p. 75) Quanto à ampla aceitação da Zeis como instrumento de regularização fundiária, seu papel em termos distributivos tem sido questionado, pois aceitar padrões diferenciados de urbanização para certas partes da cidade teria implicações para os direitos de cidadania e a própria democracia, na medida em que poderia consagrar um padrão segregacionista de ocupação do espaço urbano: “as Zeis institucionalizam os ‘mínimos’ de bem-estar produzidos pela espoliação urbana, legitimando esses parâmetros dentro e fora dos territórios regularizados” (Lago, 2004, p. 33). Pode-se contra-argumentar que esta crítica pressupõe uma realidade imutável, ao excluir, de saída, a possibilidade de melhorias graduais em favor dos grupos de baixa renda, o que irá depender, em grande parte, da articulação e mobilização política desses grupos e seus aliados. De qualquer forma, a inclusão de Zeis na maioria dos novos planos diretores indica o reconhecimento de que os pobres, particularmente os moradores de assentamentos precários, têm direito à habitação regularizada em termos legais e urbanísticos, com acesso a serviços e equipamentos urbanos (Oliveira e Biasotto, 2011, p. 75). A importância de tal resultado, em si, não deve ser subestimada, quando se considera que há 40 anos ou menos, a remoção de favelas era a política pública predominante, fazendo com que, muitas Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) vezes, a habitação popular se transformasse dos imóveis situados em Zeis (Ancona, 2011; num caso de polícia. A regularização de assen- Rolnik, 2005).5 tamentos de baixa renda tinha, quando mui- Evidentemente, o sucesso da utilização to, o status de um programa piloto ou ponto das Zeis como instrumento para a garantia do da plataforma política de movimentos sociais “direito à cidade” dependerá da correlação de (Santos, 1983). Por outro lado, se entendida forças e capacidade de negociação entre os como a mera obtenção da garantia de posse atores envolvidos, como será visto na experiên- da terra, a regularização fundiária está longe cia do Lagamar, em Fortaleza, discutida no pró- de ser suficiente para assegurar o direito à ha- ximo item. bitação. Como mostram Ferreira e Motisuke (2007), referindo-se à experiência de Diadema, a regularização fundiária não evita a permanência ou formação de assentamentos com O caso da Zeis do Lagamar tipologias construtivas e padrões urbanísticos tão precários quanto os de favelas e loteamentos periféricos. A efetivação da Zeis de vazios, por sua O processo de expansão urbana e metropolitana de Fortaleza e a questão habitacional vez, deve ser articulada a outros instrumentos previstos no Estatuto da Cidade, de modo a es- Fortaleza, atualmente com cerca de 2,5 mi- tabelecer incentivos e sanções para a compati- lhões de habitantes, cresceu de forma intensa e bilização entre os interesses dos proprietários desordenada, sem fugir à regra das metrópoles dos imóveis e o cumprimento da função social brasileiras. Na década de 1930, surgem as pri- da propriedade. Nesse sentido, as áreas consi- meiras favelas, destacando-se o Pirambu, situa- deradas Zeis de vazios no plano diretor devem da nas dunas da faixa litorânea oeste, próximo receber preferência quando se trata do parce- à zona industrial, e o Lagamar, nas proximida- lamento, edificação ou utilização compulsórios, des do Rio Cocó, principal recurso hídrico da bem como da aplicação do IPTU progressivo no Bacia Metropolitana de Fortaleza (Benevides, tempo e a desapropriação com pagamento em 2009). Entre 1950 e 1970, o contingente popu- títulos da dívida pública. Exemplos de outras lacional da cidade quase dobrou, elevando-se medidas possíveis são: a transferência do po- de 270 mil para mais de 500 mil habitantes. Em tencial de uso, que autoriza o proprietário que fins da década de 1960 começa a expansão pe- doar ao poder público seu imóvel a vender o riférica, fomentada pela construção de grandes respectivo potencial construtivo, ao qual pode conjuntos habitacionais financiados pelo BNH. ser adicionado um bônus; a operação urbana Novas favelas surgiam, em geral ocupando consorciada, que possibilita a desapropriação áreas destinadas a ruas e praças em loteamen- do imóvel em Zeis, mediante pagamento em tos irregulares, dunas na zona costeira e terre- Certificado de Potencial Construtivo Adicional; nos de marinha. o direito de preempção, que estabelece a De modo geral, os programas habitacio- preferência de compra pelo Poder Público nais, inclusive aqueles com maior participação Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 515 Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes do Estado e da Prefeitura, não foram capazes cutivo Municipal tem sido limitada, tanto no de alterar o quadro de exclusão espacial vigen- que diz respeito à provisão de moradias popu- te na cidade. Tanto é que o número de favelas lares, quanto no que se refere à utilização dos cresceu de 313, em 1991, para mais de 600, instrumentos previstos pelo Estatuto da Cidade em 2000 (PMF, 2003, p.75). Estudo patrocina- para ordenar o crescimento da cidade, com ba- do pelo Ministério das Cidades constatou que se no Plano Diretor. mais de 27% dos domicílios de Fortaleza estão localizados em assentamentos precários, onde reside uma população de mais de 600 mil pes- O Plano Diretor e as ZEIS em Fortaleza soas (Marques, 2007, pp. 87-88). A maior concentração de população de baixa renda ocorre Na época de aprovação do Estatuto da Cida- nas partes oeste e sul da cidade, ainda que ha- de, Fortaleza contava com o Plano Diretor de ja favelas situadas em bairros de alto ou médio Desenvolvimento Urbano – PDDU-For, o qual padrão (Campo do América e Favela das Placas estava bastante defasado, pois fora aprovado na Aldeota, por exemplo). em 1992; portanto, precisaria ter sido revisto A valorização da terra nos bairros mais em 2002, para cumprir o prazo legal estabe- aquinhoados com infraestrutura, equipamen- lecido pelo Estatuto da Cidade (revisão após tos e serviços urbanos, bem como a retenção dez anos da aprovação). A Prefeitura Muni- de terrenos em áreas de vazios urbanos tem cipal, na gestão do Prefeito Juraci Magalhães acarretado a expansão do mercado imobiliário (PMDB), contratou para revisão e atualização em direção aos municípios vizinhos, onde vêm do PDDU-FOR a Associação Técnico-Científica sendo implantados loteamentos para a popu- Engenheiro Paulo de Frontin – ASTEF, integrada lação de renda média e baixa, que não conse- por técnicos e professores ligados à Universi- gue arcar com os preços dos imóveis na capital dade Federal do Ceará (UFC). Em fins de 2004, (Bernal, 2004). Paralelamente, intensifica-se quando o documento já tramitava na Câmara a ocupação de áreas ambientalmente frágeis, Municipal de Fortaleza, o Ministério Público, tais como dunas e baixadas próximas a rios e em conjunto com a Federação de Entidades de lagoas (Gondim, 2012). Bairros e Favelas de Fortaleza – FBFF interpôs Desde 2006, a Prefeitura de Fortaleza ação civil pública contra o Município de Forta- vem realizando programas de regularização leza e a ASTEF. Questionavam-se, entre outros fundiária e construção de conjuntos habitacio- aspectos, a má qualidade do diagnóstico do nais, com o objetivo de diminuir o déficit ha- plano diretor, que não considerara a realidade bitacional e eliminar áreas de risco. Contudo, específica de cada zona da cidade, e a falta de tais conjuntos, em sua maioria, localizam-se participação popular efetiva durante o processo em bairros periféricos, devido ao alto preço dos de elaboração do Plano. Tal controvérsia levou terrenos com melhor localização – o que, inclu- a Prefeita Luizianne Lins (Partido dos Trabalha- sive, tem dificultado a utilização de recursos do dores), recém-empossada, a retirar, em maio de Programa Minha Casa, Minha Vida (Freitas e 2005, o projeto de lei da Câmara, a fim de dar Pequeno, 2011). De modo geral, a ação do Exe- início a um novo processo de planejamento. 516 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) Outra proposta de plano diretor foi elaborada não era verdadeiramente pacífico, e, sobretu- por técnicos contratados pela Prefeitura e dis- do, postergar as matérias mais importantes, a cutida com a população em várias audiências exemplo das Zeis. públicas. Assim, o novo Plano Diretor Partici- Em outubro de 2008, a Câmara Munici- pativo de Fortaleza (PDP-For) foi aprovado em pal de Fortaleza acenou para a possibilidade de dezembro de 2008. votar o Plano Diretor somente em 2009. Diante Inúmeras críticas têm sido apresentadas disso, foi realizado um ato popular em frente à ao processo participativo conduzido pela pre- Câmara Municipal com o objetivo de sensibi- feitura, tais como: insuficiente divulgação das lizar os vereadores e a população, através da atividades, manipulação de decisões das as- mídia, a respeito da importância de se aprovar sembleias por parte de técnicas da prefeitura, o Plano Diretor ainda em 2008. O “Campo Po- normas de procedimentos impostas às assem- pular” entendia que, quanto mais se retardasse bleias, etc. Não caberia aqui discutir em detalhe a votação, maior o risco de que as questões po- esses problemas, que já foram objeto de outro lêmicas, a exemplo das Zeis, ficassem relegadas trabalho (Machado, 2011); importa destacar, à matéria de Lei Complementar, a serem apro- porém, as repercussões negativas para a inclu- vadas posteriormente ao Plano Diretor. são das Zeis no plano diretor de Fortaleza. No Ao fim, a votação ocorreu de fato em decorrer das audiências públicas, algumas das 2008 e o Plano Diretor Participativo de Forta- maiores polêmicas giravam em torno desse ins- leza (PDP-FOR) foi sancionado e publicado em trumento urbanístico e envolviam o chamado 2009, definindo mais de 60 áreas de Zeis, distri- 6 “Campo Popular”, pleiteando a inclusão das buídas de forma esparsa pela cidade (Figura 1). zonas especiais; e representantes e técnicos Algumas áreas são bem extensas, a exemplo contratados pelo setor imobiliário, liderados da Zeis do Bom Jardim e da Praia do Futuro. Já pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil outras não são tão grandes, como a do Passaré. do Ceará (Sinduscon-CE), que reivindicavam a O temor dos movimentos populares de que fos- não-inclusão das Zeis ou, no mínimo, a inserção sem necessárias leis complementares ao plano de limitações para inviabilizá-las na prática. diretor se concretizou: o Lagamar, comunidade Uma das limitações propostas com relação às que participou intensamente do processo de Zeis de vazios, por exemplo, foi a regulamenta- elaboração do PRP-FOR, só foi incluído neste ção posterior para aquelas situadas nas proxi- como Zeis por meio de uma lei complementar 7 midades de hotéis e outros equipamentos. A metodologia de votação das emendas à lei do Plano Diretor foi questionada em vá- aprovada em fevereiro de 2010. O projeto dessa lei recebeu os votos de 21 vereadores, o mínimo necessário para aprovação rios momentos pelos movimentos populares, Para complementar o PDP-FOR, os ins- pois a Câmara Municipal deu prioridade à vo- trumentos legais mais importantes, do ponto tação das propostas ditas “consensuais”, dei- de vista da implementação das Zeis, são: a lei xando para votar as emendas “polêmicas” ao de uso e ocupação do solo de Fortaleza, que final dos trabalhos. Esse procedimento trazia o ainda precisa ser atualizada; os decretos es- risco de se votar como “consensual” algo que pecíficos necessários para elaborar os planos Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 517 Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes urbanísticos próprios às Zeis, bem como o de- terrenos de brejo e áreas de mangues, sob creto que regulamentará o funcionamento dos influência direta do Rio Cocó e do Riacho Taua- Conselhos Gestores de cada uma delas. pe. Mesmo atualmente, após a realização de Outra dificuldade para a implementação algumas obras de drenagem e urbanização, das Zeis são as grandes obras que serão reali- a área está sujeita a enchentes, sobretudo na zadas em Fortaleza, uma das cidades-sede da estação chuvosa, quando o canal do Lagamar Copa do Mundo de 2014. Algumas das inter- transborda e atinge as casas próximas. venções previstas, sobretudo viárias, tem im- O acesso e a mobilidade urbana são pon- pacto direto em áreas de Zeis, como é o caso tos bastante destacados na fala dos moradores do Lagamar. como fatores positivos do local onde vivem, pois as ligações de transporte são numerosas, e muitos se orgulham de morarem “praticamen- O Lagamar e sua história te no centro da cidade”, “perto de tudo”.10 Esses mesmos fatores, contudo, fazem com que o 8 O Lagamar é uma comunidade inserida en- setor imobiliário tenha grande interesse na re- tre bairros populares (Aerolândia, São João moção da comunidade. O próprio Poder Público do Tauape, Pio XII e Alto da Balança), situada compartilha esse interesse, na medida em que à margem da BR-116, no sentido sul-norte. a retirada de parte da ocupação dará espaço Trata-se de uma área privilegiada em termos para a construção de grandes obras viárias co- de acesso a grandes equipamentos urbanos mo a duplicação e o viaduto na Avenida Raul e institucionais, comércio, shopping centers e Barbosa, para privilegiar o acesso ao Estádio serviços. As grandes vias que fazem limite com do Castelão e ao Aeroporto. o Lagamar, a Av. Raul Barbosa e a BR-116 (Figura 2), dão acesso direto ao Aeroporto Internacional Pinto Martins e ao Castelão, estádio que receberá os jogos da Copa de 2014. Dessa O Lagamar e os conflitos pelo direito à cidade forma, além de área de grande interesse imobiliário, o Lagamar é um ponto estratégico em O histórico de resistência dos moradores pela termos de mobilidade urbana e acesso ao me- permanência no Lagamar é antigo: há relatos gaevento que ocorrerá em Fortaleza. de conflitos pela posse da terra desde 1950, in- A comunidade é uma das mais antigas tensificados nas décadas de 1960 e 1970, quan- de Fortaleza, datando da década de 1930 a do ocorreu grande valorização da área, em vir- chegada das primeiras famílias àquela locali- tude da construção da Avenida Perimetral e do dade (Oliveira, 2003). Sua população, estima- adensamento do bairro Água Fria, situado nas 9 da atualmente em 12 mil moradores, teve um proximidades. Na década de 1980, houve uma expressivo crescimento na década de 1950, intensa mobilização da comunidade por obras em decorrência do êxodo rural para Fortaleza, de urbanização, paralelamente à resistência às provocado por uma grande seca. A área ocupa- remoções realizadas pelo Governo para a cons- da pelos primeiros moradores consistia em trução do prolongamento da Avenida Borges 518 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) de Melo (Gomes, 2010). Na mesma época, cen- luta contra a ‘Proafa’ [órgão do governo es- tenas de famílias do Lagamar foram reassenta- tadual encarregado da política de remoção de das no Conjunto Habitacional Tancredo Neves, favelas]” (Diógenes, 1991, p. 231). Também situado nas proximidades. desempenhou um papel importante na mobi- Em contrapartida às ameaças de remo- lização de moradores a Fundação Marcos de ção, os moradores discutiam a permanência na Brüin, organização não-governamental cria- área não apenas como reivindicação pontual, da em 1990, por iniciativa de um grupo de mas como expressão do direito à moradia, alemães e lideranças da comunidade ligados parte de um conjunto maior de direitos (Dió- às CEB’s, com o objetivo de desenvolver proje- genes, 1991). As estratégias de luta, por um tos educacionais e profissionalizantes na área lado, enfatizavam a “conscientização” e o uso do Lagamar. de recursos institucionais, como uma ação de Na década de 1990, refletindo a nova reintegração de posse, assinada inicialmente conjuntura política, torna-se mais conspícua por 26 moradores, número que se elevou para a presença do Estado não só no Lagamar, co- 600, em 1981; por outro lado, recorria-se a mo em todas as comunidades de baixa renda. “ações mais visíveis e ofensivas” como atos O chamado à “participação” em programas públicos, passeatas e ocupações (Diógenes, e projetos governamentais, inclusive em mu- 1991, p. 237). Chamou a atenção da mídia e tirões habitacionais, tenta transformar as as- dos órgãos governamentais as “invasões” às sociações de moradoras em “parceiras”, com unidades habitacionais ainda não concluí- riscos de cooptação e divisões dentro das co- das no Conjunto Tancredo Neves, após fortes munidades. Essa estratégia foi reforçada nas chuvas, em fevereiro de 1983. Com a publici- gestões de Juraci Magalhães (PMDB), político- zação do conflito, fica evidente a presença de -populista que controlou a administração mu- outros articuladores políticos dividindo espaço nicipal, direta ou indiretamente, entre 1991 e com o movimento social: além de duas asso- 2004 (Gondim, 2007). ciações de moradores e das CEB’s, militantes A “era Juraci” chegou ao fim em 2005, de partidos políticos e representantes de as- quando tomou posse a prefeita Luizianne Lins, sociações de classe (tais como o Partido dos do Partido dos Trabalhadores. As cidades bra- Trabalhadores – PT e a Central Única dos Tra- sileiras dispunham então dos instrumentos balhadores – CUT). Note-se que os movimen- criados ou regulamentados pelo Estatuto da tos sociais do Lagamar são exemplares das Cidade, contando com o apoio do Ministério tendências discutidas na primeira parte deste das Cidades para dar efetividade ao direito à trabalho: muitas das atuais lideranças comuni- habitação e à democratização do planejamento tárias iniciaram sua trajetória nas Comunida- e da gestão urbana. A partir de 2005, morado- des Eclesiais de Base ou no Conselho de Mora- res do Lagamar, articulados em torno da Fun- dores do Lagamar, cuja ação, com forte cunho dação Marcos de Brüin, passaram a participar religioso, “[...] desde o início estava ancorada de várias instâncias de deliberação popular na vida e nos problemas dos moradores do sobre a cidade, como o Orçamento Participati- bairro; como também na questão relativa à vo e os Conselhos de Desenvolvimento Social e Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 519 Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes de Segurança Pública. Esses atores sociais esti- o Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária veram, também, presentes desde as primeiras (Najuc) e o Centro de Assessoria Jurídica Uni- audiências públicas para elaboração do Plano versitária (Caju). O bairro foi dividido em oito Diretor, e integraram uma frente de movimen- quadras, cada uma delas com uma comissão de tos sociais – o Campo Popular, já mencionado – mobilização. Por meio de atividades de teatro, para discutir os artigos propostos para a Lei do música e cinema realizavam-se debates sobre Plano Diretor. Segundo depoimentos de alguns a cidade e especificamente sobre o Lagamar, moradores, havia um compromisso, por parte fomentando a participação dos moradores na da Prefeitura de Fortaleza, de que o Lagamar, discussão e na pressão política pela Zeis. com a aprovação do Plano, seria uma das Zeis. Essa mobilização culminou com a Gran- Entretanto, na lei do Plano Diretor aprovada de Marcha pela ZEIS do Lagamar, realizada em pela Câmara Municipal de Fortaleza em 2008, 17 de novembro de 2009. Os participantes per- o Lagamar não constava nem no texto, nem correram cerca de dois quilômetros ao longo nos mapas referentes às Zeis – ausência tanto da Avenida Murilo Borges, via de considerável mais chocante para os moradores, quando se fluxo de veículos. O ponto de chegada da mar- considera que, dentre todas as comunidades cha foi a Câmara Municipal de Fortaleza, onde que participaram ativamente nos debates na foi realizado um ato pela votação da Lei Com- Câmara Municipal sobre o PDP-For, o Lagamar plementar referente à Zeis do Lagamar. Essa foi a única não incluída como Zeis. manifestação contou com a participação de De janeiro a junho de 2009, alguns mora- cerca de 500 pessoas, entre moradores, lide- dores, lideranças comunitárias e entidades não- ranças comunitárias, membros de ONG´s, estu- -governamentais tentaram discutir a questão dantes e apoiadores do Lagamar, repercutindo com representantes da Prefeitura, mas as reu- junto ao Poder Público e às mídias locais.11 O niões costumavam ser desmarcadas pela asses- objetivo da caminhada era dar publicidade ao soria da Administração Municipal. Durante esse movimento e reivindicar junto à Câmara e a período, os moradores buscaram o apoio de Prefeitura a aprovação da Lei Complementar outros movimentos populares e de setores da referente à Zeis, em caráter de urgência, ainda Universidade, para aprofundar o debate sobre no ano de 2009. as Zeis e divulgar as demandas do Lagamar. A A marcha é citada de forma recorrente fim de se contrapor à inércia governamental, no discurso dos moradores que falam da “luta em julho do mesmo ano foi formado o Fórum pela Zeis”, como um ato importante para afir- da Zeis do Lagamar, que promoveu várias ativi- mação de seus direitos e de sua expressão po- dades com o objetivo de chamar a atenção dos lítica, possuindo forte carga simbólica, percep- moradores, sobretudo dos jovens, para a neces- tível mesmo nas conversas informais. De fato, o sidade da inclusão da área como Zeis. Um papel evento foi um marco para o movimento social, importante nesse momento foi desempenhado sobretudo porque em março de 2010 foi apro- pela Fundação Marcos de Brüin, com a parti- vada a lei que reconhece a Zeis do Lagamar. Ao cipação de três projetos de extensão da UFC: longo desse ano, o Fórum da Zeis do Lagamar o Núcleo de Psicologia Comunitária (Nucom), promoveu discussões sobre o significado desse 520 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) instrumento urbanístico e seu conselho ges- a 7 metros à direita e a 17 metros à esquerda tor, como possibilidade de controle social das terão que ser demolidas. políticas públicas dentro da Zeis. Especialistas Um dos problemas com relação a essa das áreas do Direito e da Arquitetura, alguns obra é que ela é de responsabilidade do Gover- inclusive técnicos da Prefeitura Municipal, pres- no do Estado, e quem discute a Zeis com o La- taram esclarecimentos sobre o papel do Conse- gamar é o Município. Até o momento, segundo lho, suas atividades, os direitos e deveres dos os moradores, não houve reunião oficial entre conselheiros, e ainda sobre a eleição de seus os dois entes governamentais para discutir a membros. Algum tempo depois, a comunidade situação das comunidades afetadas. No discur- foi a primeira em Fortaleza a eleger seu Conse- so dos moradores, essa falta de diálogo entre 12 lho Gestor, o que demonstra a possibilidade as instâncias governamentais configura uma de ser a primeira Zeis a ser de fato implemen- afronta ao Plano Diretor, pois esse define que tada no município. uma das prioridades em áreas Zeis é a não re- Atualmente, uma das maiores preocupa- moção forçada da população, remoção esta que ção dos moradores do Lagamar são as obras ocorrerá se a obra do VLT for levada adiante. para a Copa de 2014, que preveem a remoção Quanto à Avenida Raul Barbosa, em 18 de maio de parte das casas da comunidade. São pre- de 2011 a Prefeitura Municipal de Fortaleza dis- vistas duas grandes intervenções para a área: se13 ter desistido deste e de duas outras obras a construção de uma estação do Veículo Leve de alteração viária, mas a decisão ainda não foi sobre Trilhos (VLT); e a duplicação e construção comunicada oficialmente aos moradores. de um viaduto sobre a Avenida Raul Barbosa. Os conselheiros afirmam que sendo o La- O VLT é uma obra de grande porte que passará gamar uma Zeis, o Poder Público está vinculado por quase toda a cidade, sendo estimada a re- às diretrizes urbanísticas previstas para aque- moção de cerca de 2 mil famílias em Fortaleza. la área, e quaisquer alterações (sejam ou não No Lagamar, será construída uma das estações para a Copa) deverão contar com a aprovação do VLT, e esse passará sobre um antigo trilho do Conselho Gestor. Para eles, a remoção das ferroviário já existente na comunidade. No en- famílias deve ser a última alternativa, aceita tanto, segundo o planejamento da obra, um somente após serem consideradas todas as trilho não será suficiente, de forma que haverá demais possibilidades, e mesmo assim com a construção de mais dois além do que já existe. garantia de que os moradores sejam reassen- Para a realização do empreendimento, o Gover- tados em áreas próximas – ou seja, a remoção no do Estado estima que cerca de 800 famílias deve ser entendida como medida excepciona- terão de ser removidas, em razão da proximida- líssima. É interessante notar como essas falas de das casas com o trilho que já existe. No sen- convergem com o discurso técnico, ao reprodu- tido Parangaba-Mucuripe, orientação prioritá- zirem o Plano Diretor de Fortaleza, que, em seu ria do VLT, está previsto que as casas existentes artigo 5º, XVI, afirma: Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 521 Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes São diretrizes da política de habitação e regularização fundiária: [...] XVI — garantia de alternativas habitacionais para a população removida das áreas de risco ou decorrentes de programas de recuperação e preservação ambiental e intervenções urbanísticas, com a participação das famílias na tomada de decisões e reassentamento prioritário em locais próximos às áreas de origem do assentamento. (grifo nosso) Especiais de Interesse Social são uma possibilidade de enfrentamento destas contradições, pois nelas a legislação estabelece que o investimento em políticas públicas é prioritário. É importante destacar que a Zona Especial de Interesse Social é um instituto ao mesmo tempo político, jurídico e social, permitindo que a discussão em torno da habitação popular não aponte como caminho único as remoções de favelas e a construção de conjuntos habitacionais. Um dos objetivos da Zeis é Apesar de já instituído e em pleno funcio- a fixação das populações locais no território namento, o Conselho Gestor da Zeis do Laga- onde elas já residem, ressalvados os casos em mar apresenta dificuldades no que diz respeito que removê-las seja a única alternativa para se à efetividade de suas decisões. Os conselheiros garantir a melhoria do padrão de vida e a se- apontam para a falta de investimentos munici- gurança dos habitantes, como ocorre em áreas pais para a comunidade, ainda que o PDP-For de risco ambiental. tenha definido as Zeis como áreas prioritárias Ademais, destaca-se a importância das para investimentos governamentais em habi- chamadas Zeis de vazio para o ordenamento tação, saúde, educação e geração de trabalho urbano, uma vez que estas visam assegurar a e renda. Identificam, ainda, falta de vontade destinação de terras bem localizadas e dota- política da Administração Municipal para imple- das de infraestrutura para as classes popula- mentar os planos de regularização fundiária e res, criando uma reserva de mercado de terras urbanística, isto é, ações integradas que visem para a habitação de interesse social. Assim, tanto à expedição de títulos de propriedade aos a instituição das Zeis de vazio tanto amplia a moradores, quanto à adequação das ocupações oferta de terras urbanizadas para a população irregulares aos padrões urbanísticos locais. de baixa renda, como permite melhores condições de negociação da prefeitura com os proprietários de terras bem localizadas. Conclusão A análise de um movimento social como o do Lagamar aponta para as contradições urbanas decorrentes da concentração de investimentos públicos nas áreas onde vivem as classes média e alta, em detrimento das áreas onde vivem os pobres, ou seja, a maioria da população urbana (Kowarick, 2000). As Zonas 522 A pesquisa sobre a qual se baseia o presente trabalho indica o potencial das Zeis para permitir o acesso à habitação, entendida como um bem que não se limita à moradia em si, requerendo também condições adequadas de habitabilidade – o que, por sua vez, pressupõe o acesso à terra urbanizada. Nesse sentido, a luta pela demarcação da Zeis do Lagamar é uma manifestação das disputas pelo espaço urbano em Fortaleza, pois estão em jogo a Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) garantia do acesso à terra, ao transporte e aos da garantia ao direito à cidade, mediante serviços públicos em geral. políticas redistributivas, na medida em que Para os moradores do Lagamar, a Zeis se concretize a prioridade, estabelecida em significa uma real inserção na cidade, a pos- lei, de localização de investimentos públi- sibilidade de sair de uma situação de irregu- cos nas áreas incluídas em Zeis. No entanto, laridade, seja do ponto de visto urbanístico, como se trata de instrumentos recentes na jurídico ou social. A Zeis do Lagamar represen- realidade social e jurídica nacional, fazem- ta, assim, a concretização do direito à cidade, -se necessários mais estudos e observações ao menos em termos de expectativa, já que os acerca de sua implementação em várias moradores também percebem que a disputa cidades brasileiras, a fim de que se possa ainda não acabou. avaliar sua efetiva contribuição para um de- De um modo geral, as Zeis permitem tratar o problema da habitação no contexto senvolvimento urbano mais compatível com a justiça social. Linda Maria de Pontes Gondim Socióloga. Doutora em Planejamento Urbano e Regional. Professora Associada do Departamento de Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Coordenadora do Laboratório de Estudos da Cidade – LEC/UFC. Fortaleza/CE, Brasil. [email protected] Marília Passos Apoliano Gomes Advogada pesquisadora do Laboratório de Estudos da Cidade – LEC/UFC. Mestranda no Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza/CE, Brasil. marí[email protected] Notas (1) Trata-se da pesquisa que vem sendo realizada com o apoio do CNPq para a dissertação de Mestrado de Marília Passos, sob a orientação da profa. Linda Gondim, junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFC. (2) Os princípios do MNRU remontam ao período anterior ao governo militar, tendo sido discu dos no Seminário de Habitação e Reforma Urbana, promovido pelo Instituto dos Arquitetos do Brasil em Petrópolis-RJ, em 1963. Na ocasião foram propostas a criação de um órgão federal de polí ca urbana, a elaboração de um plano nacional de habitação e a desapropriação sem pagamento de prévia indenização em dinheiro, para fins de habitação popular, localização de equipamentos públicos e “aproveitamento do território” (apud Bassul, 2005). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 523 Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes (3) O EC incluiria nessa exigência as cidades integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas, áreas especiais de interesse turístico e as cidades onde o Poder Público municipal queira u lizar os instrumentos de sanção previstos no ar go 182 da Cons tuição Federal. (4) Os ar gos do Estatuto da Cidade rela vos à regularização fundiária em imóveis públicos foram vetados pelo Executivo, mas logo em seguida, a Medida Provisória n. 2.220, de 4/9/2001 aprovou, com modificações, a concessão especial para fins de moradia como instrumento para permi r essa regularização. Ver, a respeito, Alfonsín, 2002. (5) Ressalte-se que esses instrumentos podem ser utilizados para outras finalidades além da habitação popular. Por exemplo, o direito de preempção pode ser utilizado para adquirir imóveis necessários ao ordenamento e direcionamento da expansão urbana, o que confere ampla flexibilidade à sua des nação. (6) O Campo Popular de Ar culação pelo Plano Diretor Par cipa vo de Fortaleza era integrado pelo Movimento dos Conselhos Populares (MCP), a ONG Periferia, a Fundação Marcos de Bruin, o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), a Federação de En dades de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF), a Central dos Movimentos Populares (CMP) e a Rede Estadual de Assessoria Jurídica Universitária (REAJU). (7) Art. 138, parágrafo único: “A regulamentação das Zeis especificará regras em imóveis situados nos alinhamentos de vias públicas que limitem hotéis, postos de combus vel, depósitos de gasolina, depósitos de gás, depósitos de explosivos, depósitos de cimento, subestações rebaixadoras de tensão da Coelce, rotatórias de trânsito de veículos, pontes e viadutos e imóveis não edificados que não atendam aos critérios estabelecidos nesta Lei, para serem parte de Zeis 3, incluídos os demarcadores descritos, respec vamente, nos mapas e anexos desta Lei”. (8) U lizamos preferencialmente o termo “comunidade” ao nos referirmos a situações concretas como a do Lagamar, devido ao es gma associado à designação de “favela”. Para uma discussão mais aprofundada sobre a per nência destes e de outros termos, ver: Gondim, 2010; Piccolo, 2006; Zaluar, 1997. (9) A es ma va populacional advém de recente levantamento da Prefeitura Municipal de Fortaleza, exposto em reportagem do jornal Diário do Nordeste, disponível em h p://diariodonordeste. globo.com/materia.asp?codigo=693159. (10) As citações de falas de moradores são provenientes da pesquisa de campo para a dissertação de Mestrado de Marília Passos, como foi mencionado na Introdução. (11) A marcha, além de ser tema de matéria nos grandes jornais locais, também foi divulgada em vários outros sites e blogs, a exemplo das seguintes no cias selecionadas: h p://www.cutceara. org.br/no cias/2008_texto2.asp?id=5639&a=c e h p://movimentogritodajuventude.blogspot. com/2009/11/grande-marcha-em-defesa-do-lagamar.html. Acesso em: 18 nov 2009. (12) O Conselho Gestor da ZEIS do Lagamar é composto por seis membros da Administração Municipal e seis moradores da comunidade. (13) O anúncio da Prefeitura Municipal de Fortaleza sobre a desistência do alargamento da Avenida Raul Barbosa foi veiculado na seguinte matéria do jornal O Povo Online: h p://www.opovo. com.br/app/opovo/fortaleza/2011/05/28/no ciafortalezajornal,2250022/prefeitura-desistede-alargar-parte-das-vias-de-acesso-ao-castelao.shtml. Acesso em: 20 jun 2011. 524 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE) Referências ALBUQUERQUE, M. do C. (2004). “Par cipação cidadã nas polí cas públicas”. In: HERMANNS, K. (org.). Par cipação cidadã: novos conceitos e metodologias. Fortaleza, Fundação Konrad Adenauer. ALFONSIN, B. (2006). “Para além da Regularização Fundiária: Porto Alegre e o Urbanizador Social”. In: FERNANDES, E. e ALFONSIN, B. (orgs.). Direito à moradia e segurança da posse no Estatuto da Cidade: diretrizes, instrumentos e processos de gestão. Belo Horizonte, Fórum. ANCONA, A. L. 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Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012 527 Proposta de índice de mobilidade sustentável: metodologia e aplicabilidade Proposal of an index of sustainable mobility: methodology and applicability Laura Machado Emilio Merino Dominguez Miroslova Mikusova Resumo O Índice de Mobilidade Sustentável (IMS) foi desenvolvido como uma ferramenta de auxílio no planejamento e na gestão da mobilidade. Além de quantificar os deslocamentos das pessoas, traduz qual o modo utilizado e quantifica os impactos decorrentes destas escolhas na sustentabilidade urbana e pode, portanto, apontar as prioridades de investimento dos recursos públicos. Para a composição do IMS foram selecionados indicadores a partir de dois critérios básicos: a existência dos dados e que esses fossem coletados anualmente. Ao ser aplicado em dez cidades da Região Metropolitana de Porto Alegre, revelou as deficiências no planejamento e na gestão da mobilidade regionais. No âmbito local, percebeu-se a incapacidade das prefeituras em obter informações das operadoras do transporte coletivo e a ausência de diretrizes para promover o transporte não-motorizado. Abstract The Index of Sustainable Mobility (ISM) was developed to be a tool to assist in mobility planning and management, so as to indicate priorities of public resources investment. The ISM quantifies the movements of people, translates the mode used for travel and quantifies the impacts of these choices on urban sustainability. For the composition of the ISM, indicators were selected based on two basic criteria: the existence of data and that they were collected annually. The application of the ISM to ten cities in the Metropolitan Region of Porto Alegre (southern Brazil) revealed deficiencies in regional mobility planning and management. Locally, the inability of municipal governments to obtain information from public transport operators was noted, as well as the lack of guidelines to promote nonmotorized transport. Palavras-chave: mobilidade; sustentabilidade; indicadores. Keyworks: mobility; sustainability; indicators. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Laura Machado et al. Introdução seja, acompanhar o comportamento ou resultados de determinadas ações. Uma ferramenta que pode auxiliar nesta questão é o uso de in- Ainda que as cidades sejam todas diferentes, dicadores, pois são considerados tecnicamente enfrentam desafios semelhantes e por isso apropriados para comparações geográficas e procuram soluções comuns para enfrentar seus temporais. Bons indicadores são aqueles que problemas. O aumento dos impactos negativos levam informações aos planejadores de forma advindos das altas taxas de motorização impõe rápida e confiável. Dependendo da quantidade uma reflexão sobre a questão da mobilidade de informações que traduzem da situação que urbana (Braga, 2006; Keinert et al., 2002). está sendo avaliada, possibilitam o entendi- A massificação do uso do automóvel per- mento das inter-relações, ou seja, apresentam mitiu o espraiamento do perímetro urbano, o uma visão holística da realidade (Campos e que aumentou as distâncias, gerou mais deslo- Rramos, 2005; Litman, 2007). camentos, maiores congestionamentos, aumen- Devido a sua complexidade e abrangên- to dos níveis de poluição sonora e atmosférica. cia, os indicadores de sustentabilidade da mo- Estima-se que, em regiões congestionadas, o bilidade tem sido tema de diversos estudos, tráfego de veículos responda por cerca de 90% pois ainda não há um consenso sobre quais das emissões de CO, 80% de NOx, hidrocarbo- são os indicadores-chave que devam compor netos e uma boa parcela de particulados, cons- um conjunto padrão ou uma “linha de base”. tituindo uma ameaça à saúde (Teixeira et al., No entanto, não basta um bom conjunto de 2008). Mais carros também significam maior indicadores se não há dados para alimentá- insegurança viária, pois aumenta o risco de -los. E é esse o quadro que se apresenta na acidentes, atropelamentos e mortes no trânsito. maioria das cidades brasileiras a escassez de Esse contexto pode piora quando se tra- informações. Afora nas capitais e nas grandes ta da população de baixa renda, pois aumenta cidades, na maioria dos municípios o poder sua dependência do transporte público para público não possui rotinas de coleta de dados, acessar os serviços e equipamentos urbanos, suas secretarias não possuem infraestrutura gera mais uma despesa no orçamento domés- ou pessoal qualificado para este fim. Quando tico, aumenta o tempo despendido no trânsito, o problema não é político a grande dificuldade questões que impactam diretamente na quali- é financeira. Esta realidade fez com que se se- dade de vida desta população. lecionasse um conjunto básico de indicadores Acredita-se que um ponto-chave para com dados existentes fornecidos por órgãos recuperar a qualidade de vida urbana, requa- estatísticos nacionais e regionais a fim de lificar os espaços públicos, promover a equi- tornar o sistema factível e menos oneroso ao dade nos deslocamentos e reduzir a poluição poder público quando da sua aplicação. Este ambiental está no planejamento e no gerencia- artigo apresenta a proposta metodológica do mento da mobilidade (Costa, 2008; Magagnin, Índice de Mobilidade Sustentável e sua aplica- 2008). Um bom gerenciamento necessita de ção em dez municípios da Região Metropolita- monitoramento e avaliações periódicas, ou na de Porto Alegre. 530 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável A mobibilidade sustentável transporte público, ou seja, os elevados custos A mobilidade não pode ser considerada um social e a segregação espacial. das tarifas contribuem para agravar a exclusão propósito em si. Seu principal objetivo é pro- O Livro Verde sobre os Transportes Urba- porcionar ligações que permitam às pessoas nos, revisão do Livro Branco sobre Transportes, planejarem sua vida pessoal e profissional. O afirma a necessidade de repensar a mobilidade foco da mobilidade deve estar nas pessoas, urbana através da otimização do uso de todos incluindo aquelas com necessidades especiais os modos, da organização da intermodalidade como crianças, idosos e portadores de defi- entre os diferentes meios de transporte cole- ciência. A mobilidade, ao promover o acesso tivo (bonde, metro, ônibus, táxi) e individual aos serviços essenciais a toda a população, é (automóvel, bicicleta, deslocamento a pé) para reconhecida como um importante pré-requisi- atingir a prosperidade econômica, a qualidade to para a melhoria do padrão de vida urbana de vida e a preservação ambiental. Segundo a Organização para a Coope- (Gomide, 2003). A promoção do transporte público e dos ração e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e meios não-motorizados é considerada uma es- o Centre for Sustainable Transportation (CST), tratégia de inclusão social. No entanto, pesqui- um sistema de transportes é considerado sus- sas demonstram que, nas regiões metropolita- tentável quando apresenta as características nas brasileiras, a faixa de população com renda relacionadas no Quadro 1 (Gudmundsson, 2003; de até três salários mínimos não tem acesso ao Litman, 2007; OECD, 2009; Summa, 2004). Quadro 1 – Características da Mobilidade Sustentável Dimensão Características Ambiental Minimiza as atividades que causam problemas de saúde pública e danos ao meio ambiente; Reduz a produção de ruído; Minimiza o uso do solo; Limita os níveis de emissões e resíduos dentro daqueles que o planeta possa absorver; Utilize recursos renováveis; Potencializa fontes de energias renováveis; e Reutiliza e recicla seus componentes Social Provê acesso a bens, recursos e serviços de forma a diminuir as necessidades de viagens; Opera com segurança; Assegura o movimento seguro de pessoas e bens; Promove equidade e justiça entre sociedade e grupos; Promove equidade intragerações Econômica Possui tarifa acessível (affordability) Opera de forma eficiente para dar suporte à competitividade econômica; Assegura que os usuários paguem o total dos custos sociais e ambientais devido às suas opções pelo modo de transporte Fonte: SUMMA, 2004. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 531 Laura Machado et al. Dentro dessa visão e diante das atuais avaliadas e revisadas continuamente. Para que condições de mobilidade e dos serviços de este processo funcione é imprescindível que transporte público no Brasil, a atuação da Se- haja uma sistematização de um conjunto de cretaria de Mobilidade Urbana vem trabalhan- indicadores com uma metodologia regular de do em três eixos estratégicos: a promoção da coleta dos dados (Brasil, 2010). cidadania e a inclusão social por meio da uni- Dependendo da quantidade de informa- versalização do acesso aos serviços públicos de ção utilizada em sua definição, os indicadores transporte coletivo e do aumento da mobilida- classificam-se em simples e compostos. Os de urbana; a promoção e o aperfeiçoamento primeiros são autoexplicativos, descrevem ime- institucional, regulatório e da gestão no setor; diatamente um determinado aspecto da reali- e da coordenação das ações para a integração dade (número de automóveis, por exemplo) ou das políticas da mobilidade e destas com as de- apresentam a relação entre situações ou ações mais políticas de desenvolvimento urbano e de (relação entre o número de automóveis e tipo proteção ao meio ambiente. de combustível). Essa funcionalidade permite O cumprimento dessas ações passa, ne- que os indicadores possam ser utilizados em cessariamente, pelo desestímulo ao uso do diferentes momentos do ciclo de gestão, quais automóvel. Se, por um lado, o governo apre- sejam: (1) ex-ante: no diagnóstico de situação, senta diretrizes sustentáveis na sua política para subsidiar a definição do problema, o dese- de mobilidade, por outro, financia e promove nho de uma política ou a fixação das referên- o transporte individual por meio de incentivos cias que se deseja modificar; (2) in curso: para às montadoras de automóveis e da facilidade monitoramento e avaliação da execução, revi- de crédito para sua aquisição, com o propósito são do planejamento e correção de desvios; e de diminuir o desemprego. Essa é uma questão (3) ex-post: para avaliação de alcance de metas política que deve ser enfrentada, pois, apesar (Brasil, 2010; Kayano e Caldas, 2002; Nahas, de haver uma resistência da população neste 2005). sentido, não é socialmente viável nem ambientalmente sustentável. A seleção dos indicadores varia conforme as estratégias adotadas em cada país ou região e dependem, na prática, da existência e disponibilidade dos dados, de definições e Indicadores de mobilidade métodos consistentes de coleta. Há uma certa complexidade em relação ao que medir Indicador é um recurso metodológico que infor- quando se avalia os impactos da mobilidade ma sobre a evolução/involução do aspecto ob- motorizada sobre a qualidade de vida e a sus- servado, é útil ao planejamento quando supre tentabilidade (Quadro 2). Pesquisadores como os gestores com dados e bases comparativas Campos e Ramos (2005), Hall (2006), Jeon periódicas sobre determinada situação. De pos- (2005), Zegras (2006), Litman (2008), Cos- se de um diagnóstico do problema ou demanda ta (2008), entre outros, vêm desenvolvendo que conduzirá o planejamento ou implementa- um extenso trabalho no sentido de compilar ção de políticas, essas devem ser monitoradas, aqueles indicadores que melhor traduzam os 532 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável Quadro 2 – Principais impactos dos transportes nas três dimensões da sustentabilidade Econômicos Ambientais Sociais Acessibilidade Uso de recursos Acessibilidade e affordability Custos operacionais dos Intrusão no ecossistema Segurança e proteção transportes Emissões atmosféricas Saúde Produtividade/Eficiência Contaminação do solo e água Habitabilidade Custos para Economia Ruído Equidade Benefícios para a economia Produção de resíduos Coesão social Fonte: Litman, 2008. objetivos da mobilidade sustentável. Ao ana- estruturação da região se inicia com a indus- lisar estas iniciativas depara-se com um alar- trialização liderada pela capital e pelos muni- gamento significativo do sobre o que medir, cípios do eixo Norte-Sul (BR-116), eixo histo- como medir, quanto e quando medir. ricamente privilegiado, por receber a primeira Porém, quando não há fontes de dados ferrovia do Estado. Em sua formação original, a importantes, a realidade da maioria dos mu- região contava com quatorze municípios. Após nicípios brasileiros de pequeno e médio porte, sofrer desmembramentos, emancipações e in- condiciona, de certa forma, a seleção de indi- corporações, atualmente a RMPA conta com cadores. Nesta proposta de Índice foram ado- 31 municípios divididos em cinco sub-regiões. tados os seguintes critérios para seleção dos A RMPA1, localizada ao Norte, agrega os mu- indicadores: sua importância e relevância para nicípios do Vale dos Sinos, polarizada por No- o acompanhamento dos principais impactos da vo Hamburgo e São Leopoldo; caracteriza-se mobilidade e a disponibilidade de dados. por ser um centro com forte especialização no setor coureiro-calçadista e na educação superior. Ao Sul está a RMPA2, polarizada por Porto Caracterização da área de estudo Alegre, caracterizada por um parque industrial dos setores petroquímico, metalúrgico, alimentação e automotivo e por uma elevada hierarquia de serviços. À Leste e Oeste localizam-se A Região Metropolitana de Porto Alegre as RMPA’s 3, 4 e 5 formadas por municípios (RMPA) situa-se na zona nordeste e mais densa que possuem atributos marcadamente rurais do Estado do Rio Grande do Sul. O processo de (Mammarella, 2009). Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 533 Laura Machado et al. A busca por soluções integradas no siste- inicialmente ligou Porto Alegre a Sapucaia do ma de planejamento do transporte público da Sul e, em 2000, chegou ao município de São região remonta de 1976 quando a Empresa Bra- Leopoldo. Possui uma extensão de 34 km e 17 sileira de Planejamento de Transportes (Geipot) estações em cinco municípios da RMPA (Por- em conjunto com a Fundação Estadual de Plane- to Alegre, Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul e jamento Metropolitano e Regional (Metroplan) São Leopoldo). A expansão até Novo Hambur- elaboraram o Plano Diretor de Transportes Urba- go (9,3km) está prevista para o ano de 2012 nos Plamet-PA e, na década seguinte, o Estudo (Brasil, 2010). A frota de transporte coletivo de Corredores Metropolitanos (Comet/PA), do por ônibus metropolitano possui idade média Transporte Coletivo – Transcol (Alonso, 2008). de 7,7 anos, enquanto a do transporte coletivo Em 1980, foi constituída a Empresa de urbano da Capital é de 4,7 anos, ou seja, os Trens Urbanos de Porto Alegre S.A. (Trensurb) ônibus do sistema metropolitano possuem um com o objetivo de planejar, construir e operar índice de renovação visivelmente menor, o que o sistema de transportes de passageiros sobre reduz consideravelmente a qualidade e o con- trilhos. A Linha 1, implementada em 1985, forto das viagens. Figura 1 – Municípios selecionados para o estudo de caso Fonte: adaptado de Metroplan. 534 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável O Índice de Mobilidade Sustentável foi Esses municípios apresentam maior nível aplicado em dez municípios da formação origi- de integração com a Capital, concentram os nal da RMPA, também chamada de “A Grande maiores fluxos de movimento pendular e, ao Porto Alegre”, região onde a mancha urbana é mesmo tempo, os maiores desequilíbrios em contínua. São eles: Porto Alegre, Cachoeirinha, termos socioeconômicos (Mamarella, 2009). Gravataí no eixo NE, Alvorada e Viamão, no ei- As principais características desses municípios, xo SE, Guaíba e Eldorado, no eixo SO e, final- seus dados socioeconômicos, bem como os as- mente, no eixo N, Canoas, Esteio e Sapucaia do pectos relativos à mobilidade, são apresenta- Sul (Figura 1). dos nos Quadros 3 e 4, respectivamente. Quadro 3 – Caracterização socioespacial dos municípios selecionados* Município Área (km2) População total Densidade demográfica Tx desemprego (25 a 59 anos) PIB per capita IDESE IDH-M Alvorada 70,81 183.968 2.598,00 14,50 2.574,15 0,704 0,768 Cachoeirinha 43,77 107.564 2.457,70 10,90 10.166,36 0,788 0,813 Canoas 131,10 306.093 2.334,90 12,80 17.328,87 0,810 0,815 Eldorado do Sul 509,70 27.268 53,50 11,90 18.539,71 0,713 0,803 27,54 80.048 2.906,30 13,20 12.564,12 0,818 0,842 Gravataí 463,76 232.629 501,60 12,60 7.767,85 0,726 0,811 Guaíba 376,97 94.307 250,20 14,70 6.530,89 0,714 0,815 Porto Alegre 496,83 1.360.590 2.738,60 10,10 8.764,29 0,815 0,865 58,64 122.751 2.093,20 13,40 9.248,65 0,739 0,806 1.494,26 227.429 152,20 12,40 3.886,56 0,708 0,808 Esteio Sapucaia do Sul Viamão * Os dados referem-se ao Censo Demográfico 2000 Quadro 4 – Aspectos socioespaciais e de mobilidade dos municípios selecionados* Município Distância ao polo (km) Nível de integração ao polo Movim. pendulares pessoas > 15 anos (%) % domicílios c/carro Índice de motorização** % ocupados caráter informal *** Óbitos acidentes trânsito**** 4,35 Alvorada 30 Muito alta 56,33 32,78 11,67 37,90 Cachoeirinha 11 Muito alta 42,53 48,23 30,89 34,40 8,37 Canoas 12 Alta 28,56 46,48 27,53 32,60 11,43 Eldorado do Sul 10 Alta 45,30 39,47 13,55 41,30 33,01 Esteio 17 Alta 44,97 50,00 34,10 29,60 13,74 Gravataí 23 Alta 32,94 45,09 19,76 37,60 13,33 Guaíba 19 Alta 32,61 42,65 21,61 33,50 18,03 - Polo 9,88 49,17 46,38 31,70 26,83 Sapucaia do Sul 19 Alta 40,61 44,56 32,31 34,40 10,59 Viamão 10 Alta 46,33 37,74 14,67 37,10 7,47 Porto Alegre * Os dados referem-se ao Censo Demográfico 2000. ** veículos por 100 habitantes. *** Esta avaliação é importante por identificar trabalhadores que não recebem Vale Transporte (VT). **** Mortes por 100 habitantes. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 535 Laura Machado et al. Figura 2 – Gráfico da variação entre população/veículos/mortes no período de 2000-2007 na área de estudo. Fonte: elaboração própria. O Gráfico da Figura 2 apresenta um dias, o que representa, aproximadamente, comparativo dos dados relativos às taxas um terço do ano, a qualidade do ar oscilou de motorização, as taxas populacionais e do entre as faixas do Regular ao Inaceitável número de óbitos por acidentes de trânsito, (Fepam, 2008). no período entre 2000-2007. Observa-se que, na maioria dos municípios, o crescimento da população é bem menor se comparado ao número de veículos. Porém o crescimento do número de óbitos por acidentes de trânsito Metodologia adotada na construção do IMS chegou a aumentar em até 200% (Sapucaia do Sul e Alvorada) (Figura 2). Seleção do conjunto de indicadores As altas taxas de motorização também são responsáveis pelo aumento da poluição Apesar de haver certo consenso quanto aos atmosférica. Segundo os dados dos Boletins Temas a ser incluídos para um monitoramento de Qualidade do Ar gerados pela Fundação consistente, o mesmo não acontece quando se Estadual de Proteção Ambiental Henrique analisa os indicadores que lhes darão suporte Luiz Roessler (Fepam), coletados na estação (Quadro 5). Existe uma grande variância quan- de monitoramento localizada no Centro / to ao que e como medir, ou seja, qual indica- Rodoviá ria de Porto Alegre, dos 351 dias dor utilizar. Muitos indicadores irão variar de- monitorados em 2005, 112 apresentaram pendendo da escala e do conceito adotados. níveis indesejáveis. Ou seja, em 31,90% dos Por exemplo, ao se mensurar a acessibilidade, 536 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável podem ser utilizados indicadores como: a decisões. A simetria do conjunto também foi existência de intermodalidade, o tempo de via- levada em conta para assegurar um equilíbrio gem por modo, o percentual de crianças que no monitoramento das três dimensões da sus- vão à escola a pé, o número de pessoas que tentabilidade: Social, Ambiental e Econômica estudam e trabalham no local, o percentual de (Litman, 2008; Rossetto et al., 2004). uso do solo misto, etc. Tendo por base os Temas arrolados no Para estruturar o Índice selecionou-se Quadro 5 e, na perspectiva de uma seleção de um conjunto de indicadores que não fosse indicadores adaptados à realidade dos muni- muito extenso e não atrapalhasse a gestão cípios brasileiros, analisaram-se aqueles te- municipal ou confundisse o acompanhamen- mas cujos indicadores requeressem informa- to e, tampouco, muito reduzido que impossi- ções quantitativas e cujos dados fossem co- bilitasse uma visão sistêmica e a tomada de letados com periodicidade anual (Quadro 6). Quadro 5 – Temas mais citados pelos pesquisadores/sistemas de indicadores de mobilidade Temas/Sistemas Sociais Acessibilidade Acessibilidade universal Acidentes Mobilidade Equidade Qualidade do serviço Ambientais Poluição atmosférica Ruído Aquecimento global Uso energia Uso solo transportes Intrusão ecossistema Econômicos Custos para economia Produtividade/Eficiência Affordability Congestionamentos Confiabilidade Custos operacionais Summa (2004) Litman (2008) Transforum (2007) x x x x x x x x x x x x x x x x x x* x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x Hall (2006) Ramos (2005) Costa (2008) Jeon (2005) Term (2003) x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x x * dados parciais Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 537 Laura Machado et al. Quadro 6 – Caracterização das dimensões, temas e indicadores Dimensões/Temas Tipo quantitativo Indicadores Sociais Acessibilidade Acidentes Mobilidade Equidade Uso misto do solo Nº de mortes e feridos Passageiros transportados por modo Terminais intermodais x x x x Ambientais Poluição atmosférica Ruído Aquecimento global Uso energia Uso solo transportes Emissões por tipo de poluente % de população exposta a ruídos maiores que 65db Emissões de gases de efeito estufa Consumo de combustíveis % do solo apropriado pelos transportes x x x x x Econômicos Custos para economia Produtividade/Eficiência Affordability (custo da tarifa) Congestionamentos/Atrasos Investimento público nos transportes Índice de passageiros por Km (IPK) % orçamento doméstico gasto em transporte Custos dos congestionamentos x x x x Existência do dado Periodicidade anual x x x x x x x x x x* x x* x x x * dados parciais. Ao aplicar esses critérios observou-se futuros problemas ambientais do tipo: aumen- uma significativa redução no número de indica- to das emissões atmosféricas, ruído, congestio- dores que pudessem ser monitorados, ou seja, namentos, expansão urbana, consumo de com- confirmando que a disponibilidade dos dados é bustíveis fósseis, etc.. No conjunto proposto, a um limitante no processo de seleção. Também título de equilíbrio do sistema, desagregou-se houve dificuldade em encontrar indicadores o indicador “consumo de combustíveis” em que monitorassem as questões ambientais (po- renováveis e não renováveis, no caso o álcool. luição sonora, atmosférica, consumo do solo, Considerou-se o uso desse combustível como etc.). Na maioria dos municípios brasileiros, à um indicador negativo, pois, apesar de provir exceção das capitais, não existe uma rotina de de fontes renováveis, entende-se que o etanol coleta de dados pelos órgãos ambientais. Mui- contribui, diretamente, para a poluição atmos- tas informações ainda não foram compiladas férica e, indiretamente, para o aumento dos de forma sistemática ou não estão acessíveis congestionamentos e do consumo do solo, tan- (São Paulo, 2008). to pela necessidade de infraestrutura viária co- Para suprir essas lacunas, iniciou-se uma segunda etapa: encontrar indicadores proxy pa- mo pelo desmatamento de áreas para o plantio do insumo. ra compor o sistema. Para os indicadores am- Na dimensão social foram incluídos bientais, devido à inexistência de dados sobre indicadores referentes ao transporte públi- os níveis de poluentes, optou-se pela taxa de co já que este, segundo Gomide (2003), é motorização. Esse indicador pode alertar sobre um promotor da acessibilidade à cidade e 538 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável consequentemente da inclusão social. Devido Já na dimensão econômica, um indicador à dificuldade de obtenção dos dados do Trans- proxy proposto foi a relação entre o investimento porte Coletivo (TC) urbano, à exceção de Porto público municipal em transporte e seu PIB, con- Alegre, foram considerados apenas os dados siderando que quanto maior for o investimento do transporte metropolitano. A Metroplan dis- maior será seu efeito positivo na economia. ponibilizou os dados relativos a: passageiros A partir destas considerações estrutu- transportados, quilometragem percorrida, tari- rou-se o sistema ou conjunto de indicadores. fas, para o período 2004-07, o que determinou O detalhamento dos Temas e Indicadores sele- a série histórica analisada. Os dados referentes cionados para monitorar a mobilidade nas três a passageiros do trem metropolitano não fo- dimensões da sustentabilidade, bem como as ram considerados devido à impossibilidade de respectivas fontes dos dados, é apresentado desagregação por município. no Quadro 7. Quadro 7 – Dimensões, temas e indicadores propostos e respectiva fonte de dados Dimensão Social (SOC) Tema Ambiental (AMB) Fonte Datasus ECO01: Orçamento gasto em transporte (tarifa) ECO02: Eficiência transporte coletivo ECO03: Investimentos púbicos no setor de transportes Valor médio da tarifa*mês/ Salário mínimo Metroplan/ Ministério do Trabalho e Emprego, Metroplan, EPTC Ministério da Fazenda, FEE Dados AMB01: Taxa de motorização AMB02: Consumo de combustíveis fósseis AMB03: Consumo de combustíveis alternativos Nº de veículos em circulação per capita Venda combustível fóssil (gasolina+diesel) per capita Venda de álcool hidr. per capita SOC02: Oferta de TC SOC03: Intermodalidade Econômica (ECO) Indicador % de mortes em acidentes de trânsito/ nº de veículos Passageiros transportados per capita Número de estações intermodais SOC01: Acidentes com mortes Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Índice de Passageiros por Km (IPK) % de gastos em transporte/PIB Metroplan/EPTC, IBGE Trensurb FEE Dados FEE Dados FEE Dados 539 Laura Machado et al. Evidentemente, esses indicadores não método Analytic Hierarchy Process (AHP) para medem todos, mas alguns dos aspectos neces- obter as preferências do gestor num comparati- sários para o acompanhamento dos impactos vo par a par. No entanto, devido a dificuldades negativos da mobilidade sobre a sustentabili- de compreensão, pelos técnicos das prefeitu- dade urbana. ras municipais, optou-se por utilizar o método ordenador de 1 a 3, sendo 1 mais importante e 3 menos. O peso final, para cada Indicador, Formatação do Índice de Mobilidade Sustentável (IMS) Tema e Dimensão, obteve-se pela média aritmética de todas as avaliações. Posteriormente, esses valores foram normalizados para o inter- Elaborada a hierarquia do sistema, seguiram-se valo de zero a um, de modo que a soma dos os passos metodológicos sugeridos por Costa pesos de cada componente da avaliação resul- (2008), Campos e Ramos (2005), Magalhães tasse no valor igual a um. (2004) e Nahas (2005) para o tratamento dos Passo 4 – Determinação da direção dos dados e formulação matemática. Essa propos- indicadores: dependendo do que está sendo ta inova ao propor um ranking municipal para mensurado a avaliação será positiva ou nega- uma melhor visualização e acompanhamento tiva. Por exemplo, os indicadores que medem a do IMS (Passo 7). frequência de transporte público são positivos, Passo 1 – Padronização dos dados: procedimento necessário para obtenção de valores e aqueles que quantificam o número de acidentes, negativos. normalizados de uma dada distribuição. É ob- Passo 5 – Cálculo dos subíndices: o índi- tida pelo cálculo da média e do desvio padrão ce composto é derivado e possibilita avaliar o do intervalo de dados brutos. estado parcial de cada uma das três dimensões Passo 2 – Correlação dos indicadores: da sustentabilidade. O valor de cada dimensão necessário a fim de verificar sua independên- é computado separadamente a partir dos valo- cia e evitar a redundância de monitoramento. res padronizados dos indicadores obtidos (Pas- A correlação é obtida pela média dos produtos so 1) que, a seguir, foram multiplicados pelos dos valores reduzidos (padronizados) das variá- respectivos pesos (Passo 3) e pela direção dese- veis (Bussab e Murettin, 1987). A análise das jada (+ ou -) (Passo4). correlações, efetuada através dos valores ob- Passo 6 – Cálculo do índice total: obteve- tidos (sem os pesos) para cada indicador nos -se pela soma dos valores obtidos em cada di- diferentes municípios, demonstrou que os indi- mensão ou subíndice. cadores selecionados não apresentam correlações significativas (a 95% de confiança). Passo 7 – Obtenção do ranking dos municípios: obtida através da classificação pelo Passo 3 – Aplicação dos pesos aos indica- Esquema dos Cinco Números ou Estatísticas dores: objetiva identificar qual o grau de impor- de Ordem. Essa é dada pelo intervalo inter- tância de cada Dimensão e Tema para a avalia- quartil, ou seja, a diferença entre o terceiro e ção da mobilidade sustentável. Originalmente, o primeiro quartis (dq). É obtida pelo cálculo previu-se aplicar um questionário utilizando o das seguintes medidas: (1) da Mediana (Md): 540 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável do valor que deixa metade dos dados abaixo dos valores abaixo e três quartos acima dele. e metade acima dele; (2) dos extremos: o va- O terceiro quartil deixa três quartos dos dados lor máximo e mínimo do conjunto de dados; e abaixo e um quarto acima. O segundo quar- (3) dos quartis ou juntas (J): cada quartil faz o til é representado pela mediana (Bussab e mesmo que a mediana para as duas metades Morettin, 1987). demarcadas pela mediana. O primeiro quartil ou junta é um valor que deixa um quarto O resultado parcial desta sequência de ações é apresentado no Quadro 8. Quadro 8 – Dimensões, indicadores, direção e peso obtidos* Dimensão Peso Indicador Peso Direção SOC 0,44 SOC01 SOC02 SOC03 0,36 0,34 0,30 diminuir aumentar aumentar ECO 0,29 ECO01 ECO02 ECO03 0,40 0,31 0,29 diminuir aumentar aumentar AMB 0,27 AMB01 AMB02 AMB03 0,45 0,33 0,22 diminuir diminuir diminuir *A descrição de cada indicador pode ser observada no Quadro 7. A formulação matemática do Índice é: Mobilidade Urbana Sustentável = ʄ (IMS) = ʄ (SOC+ECO+AMB) = ʄ (W*ISOC + W*IECO + W*IAMB Onde: ISOC = [(W*-SOC01) + (W*SOC02) + (W*SOC03)] IECO = [(W*-ECO01) + (W*ECO02) + (W*ECO03)] IAMB = [(W*-AMB01) + (W*-AMB02) + (W*-AMB03)] W = Pesos atribuídos pelos especialistas Com o modelo matemático estabelecido, seguiu-se a recolha dos dados necessários para alimentar os indicadores. Estes dados foram compilados em planilhas Excel para o cálculo da série histórica 2004-07 para cada um dos dez municípios da RMPA. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 541 Laura Machado et al. dos valores obtidos para o IMS, por município, Análise da aplicação do IMS para cada ano (Quadro 10); (3) o gráfico das O resultado da aplicação do Índice de Mobi- médias do IMS na série temporal (Figura 3); lidade Sustentável (IMS) pode ser observado (4) exemplificação de gráfico com a evolução em cinco momentos: (1) apresentação dos do IMS do município no período (Figura 4); e resultados obtidos para cada Indicador, Di- (5) espacialização do ranking dos municípios mensão e IMS, nos dez municípios, para o em relação ao IMS para a série histórica (Figu- ano de 2004 (Quadro 9); (2) apresentação ras 6, 7, 8 e 9). Quadro 9 – Valores dos indicadores, dimensões e IMS para os municípios em 2004 Municípios DIM Indicador SOC DIR CAN ELD EST GRAV GUA POA SAP VIA (-) -0,430 0,429 0,264 -0,556 -0,185 -0,229 0,198 0,474 -0,165 0,200 SOC02: Pass transp TC/PC (+) 0,155 0,455 -0,153 -0,147 -0,123 -0,224 -0,262 0,692 -0,390 -0,003 SOC03: Intermodalidade (+) -0,183 -0,183 0,549 -0,183 -0,061 -0,183 -0,183 0,549 0,061 -0,183 -0,201 0,308 0,290 -0,390 -0,162 -0,280 -0,108 0,754 -0,217 0,006 ECO01: % tarifa/SM (-) 0,112 -0,123 0,251 0,096 0,361 -0,715 -0,717 0,243 0,292 0,200 ECO02: IPK (+) 0,053 -0,127 -0,012 -0,024 -0,166 -0,147 -0,217 0,848 -0,165 -0,044 ECO03: Gastos transporte/PIB (+) -0,037 0,258 -0,309 -0,309 -0,036 0,535 0,331 -0,053 -0,305 -0,075 0,037 0,002 -0,020 -0,069 0,046 -0,095 -0,175 0,301 -0,052 0,023 ECO = (ECO01 + ECO02 + ECO03)*0,29 AMB CACH SOC01: %mortes acidentes/veículos tot SOC = (SOC01 + SOC02 + SOC03)*0,44 ECO ALV AMB 01: Veículos/pc (-) 0,715 -0,298 -0,188 0,465 -0,358 0,139 0,117 -0,648 -0,412 0,468 AMB 02: Consumo comb. fóssil/PC (-) 0,323 0,150 -0,519 -0,319 -0,523 0,199 0,060 0,071 0,234 0,324 AMB 03: Cons. comb. renováveis/PC (-) 0,126 -0,490 -0,203 0,163 0,093 0,012 0,011 -0,121 0,151 0,257 0,314 -0,172 -0,246 0,083 -0,213 0,095 0,051 -0,188 -0,007 0,283 0,150 0,139 0,025 -0,376 0,329 -0,280 -0,232 0,867 -0,276 0,313 AMB = (AMB01 + AMB02 + AMB03)*0,27 IMS = SOC+ECO+AMB Quadro 10 – Valores do IMS para os municípios da área de estudo nos anos 2004-2007 Municípios IMS/ANO 542 ALV CACH CAN ELD EST GRAV GUA POA SAP VIA IMS 2004 0,150 0,139 0,025 -0,376 -0,329 -0,280 -0,232 0,867 -0,276 0,313 IMS 2005 0,533 -0,194 0,051 -0,365 -0,464 -0,117 -0,303 0,850 -0,223 0,184 IMS 2006 0,316 0,182 0,023 -0,447 -0,224 -0,233 -0,326 0,721 -0,240 0,227 IMS 2007 0,274 0,370 -0,112 -0,171 -0,158 -0,295 -0,257 0,732 -0,415 0,031 Médias 0,318 0,124 -0,003 -0,340 -0,294 -0,231 -0,279 0,792 -0,288 0,189 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável Na análise da série histórica, Porto Ale- de motorização e maior consumo de combus- gre destaca-se por apresentar os maiores va- tível) e baixa oferta de transporte público. lores para o IMS, o que já era esperado, uma Pode-se dizer que os baixos índices obtidos vez que a capital oferece maior mobilidade e pelos municípios do eixo N também podem infraestrutura tanto física quanto de recursos estar relacionados a certa inexpressividade humanos, o que proporciona maior segurança dos números de oferta de transporte coleti- e eficiência nos deslocamentos da população. vo por ônibus, se comparado aos municípios As médias mais baixas são apresen- de Viamão e Alvorada. O que pode significar, tadas pelos municípios do eixo SO (Guaíba e por outro lado, que estes municípios teriam Eldorado), e pelas cidades situadas no eixo N maiores conexões com a região da RMPA1 (Esteio e Sapucaia) (Figura 3). No entanto, as (São Leo poldo e Novo Hamburgo). Talvez razões para estes baixos índices são distintas. essas interrogações fossem respondidas ao Isso pode ser comprovado ao visualizar a es- se analisar um comparativo entre essas duas trutura interna do sistema. As cidades do eixo principais sub-regiões da RMPA (1 e 2). Outra SO apresentaram os piores valores para os in- hipótese seria que a não inclusão do número dicadores da dimensão social: maiores índice de passageiros atendidos pelo trem metro- de mortes no trânsito, maior despesa no orça- politano possa estar afetando os resultados mento doméstico com transporte e por esses (esses dados não foram computados por não municípios não oferecerem outras opções de estarem desagregados por município). transporte coletivo além do modal ônibus. Já o o baixo IMS obtido para os municí- As médias baixas dos municípios do pios de Guaíba e Eldorado, apesar de apresen- eixo N surpreenderam por estes possuírem tarem índices altos de movimentos pendulares o modal trem metropolitano. Estas médias em direção ao polo, pode indicar uma deficiên- são consequência dos valores negativos ob- cia no sistema de transporte público, tanto na tidos na dimensão ambiental (maior índice oferta quanto no custo da tarifa. Figura 3 – Gráfico das médias do IMS por município para a série 2004-2007 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 543 Laura Machado et al. Excetuando o polo, as maiores médias De um modo geral, os indicadores que obtidas no período pertencem aos municípios afetaram diretamente os resultados do Índice de Alvorada, Viamão e Cachoeirinha, cidades foram as altas taxas de motorização, o número consideradas dormitório, de menor poder aqui- de mortes em acidentes e os altos valores das sitivo, e, portanto, possuem menores taxas de tarifas. Ao se observar os valores do IMS obti- motorização e, consequentemente, menor con- dos para o conjunto da região na série (2004- sumo de combustíveis. Estes municípios tam- 2007) à luz das estatísticas de ordem a percep- bém apresentaram valores altos para o indica- ção é de um maior equilíbrio (Figura 5). dor oferta de transporte público metropolitano. No Quadro 11, são apresentados os va- O sistema também permite visualizar o lores obtidos pelas estatísticas de ordem cal- comportamento do índice individualmente, por culadas para cada ano da série histórica do município. O Gráfico da Figura 4, que representa IMS; essa metodologia permitiu a formação do o IMS do município de Alvorada no período 2004- ranking dos municípios ao serem agregados os 2007, ilustra e exemplifica esta possibilidade. resultados por quartis (Quadro 12). Figura 4 – Gráfico da evolução do IMS do município de Alvorada (2004-2007) Figura 5 – Gráfico boxplot da série histórica 544 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável Quadro 11 – Estatísticas de ordem calculadas para a série histórica do IMS Cinco números Q1 Mínimo Mediana Máximo Q3 Ano 2004 Ano 2005 Ano 2006 Ano 2007 -0,279 -0,376 -0,104 0,867 0,147 -0,283 -0,464 -0,155 0,850 0,151 -0,238 -0,447 -0,100 0,721 0,216 -0,235 -0,415 -0,135 0,732 0,213 Quadro 12 – Ranking dos municípios em relação ao IMS Classificação dos intervalos interquartis Ano MÁX- Q³ Bom Q³- MEDIANA Médio MEDIANA- Q¹ Baixo Q¹-MÍN Muito Baixo 2004 Municípios 0,867 a 0,147 Alvorada Porto Alegre Viamão 0,147 a -0,104 Cachoeirinha Canoas -0,104 a -0,279 Guaíba Sapucaia do Sul -0,279 a 0,376 Eldorado do Sul Esteio Gravataí 2005 Municípios 0,850 a 0,151 Alvorada Porto Alegre Viamão 0,151 a -0,155 Canoas -0,155 a -0,283 Cachoeirinha Gravataí Sapucaia do Sul -0,283 a -0,464 Eldorado do Sul Esteio Guaíba 2006 Municípios 0,721 a 0,216 Alvorada Porto Alegre Viamão 0,216 a -0,100 Cachoeirinha Canoas -0,100 a -0,238 Esteio Gravataí -0,238 a -0,447 Eldorado do Sul Guaíba Sapucaia do Sul 2007 Municípios 0,732 a 0,213 Alvorada Cachoeirinha Porto Alegre 0,213 a -0,135 Canoas Viamão -0,135 a -0,235 Eldorado do Sul Esteio -0,235 a -0,415 Gravataí Guaíba Sapucaia do Sul Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 545 Laura Machado et al. Do ranking apreende-se que não há nenhum município em estado crítico em relação à a apresentar dados que tangenciaram este limite (-0,447, -0,464 e -0,415, respectivamente). mobilidade, uma vez que nenhum deles apresen- Obtida a classificação de cada município, tou um IMS menor que -0,50. No entanto, Eldo- o ranking do IMS foi espacializado para cada rado do Sul, Esteio e Sapucaia do Sul chegaram ano da série histórica (Figuras 6, 7, 8 e 9): Figura 6 – Espacialização do ranking do IMS para o ano de 2004 Figura 7 – Espacialização do ranking do IMS para o ano de 2005 546 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável Figura 8 – Espacialização do ranking do IMS para o ano de 2006 Figura 9 – Espacialização do ranking do IMS para o ano de 2007 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 547 Laura Machado et al. Síntese dos resultados obtidos apresentaram os menores valores para o IMS. Entre as causas estão: valores negativos na di- O município polo apresentou os maiores valo- mensão ambiental; menor oferta de transporte res em toda a série histórica (2004-2007) de- público metropolitano por ônibus; e maiores vido a: baixos índices de acidentes; alta oferta índices de motorização e consumo de combus- de transporte coletivo por ônibus; tarifas mais tível. Também pode significar que estas cidades econômica; e maior eficiência do transporte co- possuem maior integração com a RMPA1 ou, letivo (IPK). ainda, que a não inclusão do número de passa- As médias mais altas encontraram-se nos municípios de Alvorada, localizado a NO e geiros atendidos pelo trem metropolitano possa estar afetando os resultados. Viamão no eixo L. Esses valores devem-se, prin- Em uma análise geral, pode-se dizer que cipalmente, às baixas taxas de motorização, e o sistema de transporte coletivo metropolitano aos baixos níveis de consumo de combustíveis. não está adequadamente dimensionado para O IMS médio foi diagnosticado nos mu- atender à população. As redes de serviços por nicípios do eixo NE (Cachoeirinha e Canoas) ônibus se sobrepõem e concorrem entre si. resultado de baixos índices de mortes por aci- Muitas vezes são escassas, como ocorre nos dentes e bons níveis de oferta de transporte municípios localizados no eixo SO, que tem co- metropolitano. Porém, um bom indicador de mo gargalo um único acesso ao Polo: a ponte oferta de transporte público não significa que do Rio Guaíba, que dá continuidade à BR-116. este seja de boa qualidade. Essa informação Pode-se dizer que a falta de conexão funcional poderia ser obtida ao acrescentar indicadores das redes é uma decorrência da ausência de qualitativos ao Índice a fim de aprofundar as coordenação dos sistemas urbanos e metropo- informações quanto às taxas de ocupação, aci- litanos nas três esferas governamentais. dentalidade, crimes, condições e localização das paradas, etc.. Outro aspecto a ressaltar são os valores das tarifas que pesam sobremaneira no orça- As médias mais baixas foram encontra- mento doméstico das famílias que dependem das no eixo SO (Guaíba e Eldorado) e L (Gra- do transporte coletivo. À exceção do trem me- vataí), devido a: maior índice de mortes no tropolitano, que possui tarifas subsidiadas, o trânsito; maior peso das tarifas no orçamento modal ônibus vem apresentando uma variação doméstico; e por apresentarem apenas o mo- negativa de passageiros se for levado em con- dal ônibus. Como esses municípios possuem os ta o crescimento populacional e a estabilidade maiores níveis de movimentos pendulares em da oferta. Também se observou que nas cida- direção ao polo, é um indicativo de que o trans- des do eixo N o automóvel privado é o modo porte metropolitano por ônibus deve ser redi- de transporte preferencial da população, o que mensionado em sua oferta e nas tarifas. pressupõe uma tendência de agravamento dos S u r p r e e n d e n t e m e n t e, o s m u n i c í pios do eixo N (Esteio e Sapucaia) também 548 congestionamentos e da acidentalidade no eixo da BR-116. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Proposta de índice de mobilidade sustentável Conclusões e sugestões para trabalhos futuros descaso com o acompanhamento dos serviços prestados pelas operadoras do transporte público coletivo. Afora o município de Porto Alegre, as demais prefeituras não dispõem de Ao analisar as informações do transporte pú- quaisquer dados sobre demanda, passageiros blico da RMPA verificou-se que os sistemas de transportados, evolução do preço da tarifa, etc. transporte responderam ao espraiamento da Para sanar essa deficiência, sugere-se o mancha urbana de forma isolada. Cada esfera repasse de informações por parte das opera- de governo federal, estadual e municipal ge- doras e consórcios de transporte com os mu- rencia os subsistemas de sua responsabilidade nicípios. Um passo para avançar na melhoria com pouca ou nenhuma relação com os demais dessa situação estaria em iniciar uma sistemá- transportes da região. Atualmente alguns pro- tica de coleta de dados por parte das institui- jetos de infraestrutura de transporte estão em ções (Metroplan, Famurs, Coredes) e/ou dos andamento sem uma coordenação entre eles, gestores da RMPA, tanto nas esferas munici- isto é, não é resultado de um planejamen- pais quanto regional. Também é importante to integrado. Entre eles está a construção da que se criem fontes de dados sobre o transpor- nova rodovia, a RS-010, que ligará Porto Ale- te não motorizado, com o cadastramento das gre à Novo Hamburgo, uma rota alternativa à bicicletas, por exemplo. BR116 (eixo N). A implantação da Linha 2 do Ao estruturar o IMS optou-se por traba- Trensurb, denominada Linha da Copa, que pre- lhar com um número reduzido de indicadores, vê a construção de um anel metroviário com pois um índice com muitas variáveis torna-se 34,4 quilômetros de extensão com 24 estações de difícil execução e acompanhamento. A maior convencionais e sete estações de integração dificuldade na seleção dos indicadores foi a de multimodal ligando a região central de Porto encontrar aqueles com dados existentes, desa- Alegre até as proximidades de Viamão, no eixo gregados e que possuíssem séries históricas. SE. E a construção de um terminal hidroviário O sistema de indicadores proposto não ligando o município de Guaíba à Capital, como é conclusivo e, sim, um ponto de partida para alternativa à Ponte do Guaíba. que se possa encontrar uma forma de estrutu- Ao selecionar os indicadores para a com- rar e manter um banco de dados confiável em posição do Índice, constatou-se que no âmbito relação à mobilidade urbana. Ressalta-se que municipal há uma carência de metodologia de alguns indicadores propostos podem ser refina- coleta e acompanhamento de dados e infor- dos, como é o caso do indicador renda/tarifa, mações, de recursos humanos e operacionais, mensurando-o pela renda média do município, principalmente para o monitoramento das e não pelo salário mínimo Brasil e do indicador questões ambientais, do transporte público e de intermodalidade, por exemplo. do transporte não-motorizado. Tendo em vista as limitações encontra- Nas visitas às prefeituras municipais pa- das, acredita-se que a proposta do IMS foi sa- ra aplicar os questionários junto aos técnicos, tisfatória, pois possibilitou detectar a evolução/ chamaram a atenção a falta de controle e o involução da sustentabilidade da mobilidade Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 549 Laura Machado et al. nos municípios. Obviamente, um entendimen- consenso entre os especialistas brasileiros em to mais amplo do estado da mobilidade ficará relação à importância de cada indicador, tema mais claro se houver continuidade no monito- e dimensão da sustentabilidade. Por fim, para ramento. Cabe destacar que os indicadores se- tornar o Índice mais robusto, sugere-se a reali- lecionados permitem que o IMS seja aplicado zação de análises de sensibilidade para detec- nas demais Regiões Metropolitanas desde que tar qual é o indicador que mais influencia no haja uma padronização dos pesos, ou seja, um resultado final. Laura Machado Arquiteta e Urbanista, Mestre em Planejamento Urbano e Regional, lotada na Coordenadoria de Obras, Manutenção e Projetos vinculada à Proplan – Pró-reitoria de Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação da Universidade Federal do Pampa. Alegrete/RS, Brasil. [email protected] Emilio Merino Dominguez Arquiteto e Urbanista. Doutor em Transportes. Professor Visitante da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Consultor Senior de diversas empresas de consultoria. Porto Alegre/RS, Brasil. [email protected] Miroslova Mikusova Engenheira. Professora da Facultad en Operacion y Economia de Transporte y Comunicaciones, Departamento de Transporte urbano da University of Zilina. Zilina/Região de Zilina, Eslovaquia. [email protected] Referências ALONSO, J. A. (2008) Gênese e Ins tucionalização da Região Metropolitana de Porto Alegre. Secretaria de Planejamento e Gestão. Fundação de Economia e Esta s ca Siegfried Emanuel Heuser. Texto para discussão FEE nº 29. Porto Alegre, FEE,19 p. BRAGA, T. M. (2006). Sustentabilidade e condições de vida em áreas urbanas: medidas e determinantes em duas regiões metropolitanas brasileiras. Revista Eure. Santiago de Chile, v. XXXII, n. 96, pp. 47-71. BRASIL (2010) Secretaria de Planejamento e Investimentos Estratégicos (SPI). Indicadores de programas: Guia Metodológico. 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Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade: provisão estatal e empresarial de moradia popular na RM de Belém Routes of the right to the city: state’s and companies’ provision of popular housing in the Metropolitan Region of Belém Simaia do Socorro Sales das Mercês Resumo Este artigo trata da moradia popular produzida no âmbito de programas governamentais, buscando inseri-la no quadro mais amplo da provisão da habitação urbana. Analisa as ações empreendidas na Região Metropolit ana de Belém pelos Programas Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) e de Aceleração do Crescimento – Habitação (PAC), no que concerne aos interesses e estratégias dos agentes sociais tomadores de decisões e às características da moradia, com o fim de verificar implicações para a efetivação do direito à cidade. A principal conclusão é que os determinantes das ações do PMCMV não resultam em benefícios e problemas associados às categorias Estado e mercado, em contraposição ao padrão de melhores localizações decorrente do desenho do PAC e dos interesses do Estado. Abstract This paper aims to discuss the popular housing that was produced under government programs, attempting to include it into the broader frame of urban housing provision. It analyses the actions undertaken in the Metropolitan Region of Belém (Northern Brazil) through Programa Minha Casa, Minha Vida (PMCMV – My House, My Life Program) and through Programa de Aceleração do Crescimento – Habitação (PAC – Accelerated Growth Program – Housing), in relation to the interests and strategies of social agents who make decisions and to the dwelling’s characteristics, in order to verify implications for the fulfillment of the right to the city. The main conclusion is that the determinants of the PMCMV actions do not result in benefits and problems associated with State and market categories, as opposed to the standard of best locations due to the design of the PAC and the interests of the State. Palavras-chave: moradia popular; direito à cidade; Programa de Aceleração do Crescimento; Programa Minha Casa, Minha Vida; Região Metropolitana de Belém. Keywords: popular housing; right to the city; Programa de Aceleração do Crescimento; Programa Minha Casa, Minha Vida; Metropolitan Region of Belém. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Simaia do Socorro Sales das Mercês Introdução do Crescimento – PAC, setor Habitação,2 no que concerne aos agentes sociais tomadores de decisões sobre intervenções e empreendi- Este artigo aborda o tema do direito à cidade a partir da moradia popular, buscando se aproximar do enfoque requerido por Maricato para os estudos sobre a produção da habitação, no sentido de “uma leitura mais ampla [...] da estrutura de provisão de habitação, dos interesses e agentes envolvidos” (2009, p. 34), entendida provisão de habitação como o quadro geral da produção e distribuição da habitação [...] formado pelas diversas tipologias resultantes de diferentes arranjos entre: o financiamento, a construção, a promoção, a comercialização, a participação da força de trabalho e o lugar ocupado pela propriedade da terra no contexto da regulação instituída [...] pela legislação de uso e ocupação do solo. (Maricato, 2009, pp. 35-36)1 mentos, bem como ao seu porte, localização e tipologia, com o fim de verificar os resultados das ações empreendidas para a efetivação do direito à cidade. A cidade é um “valor de uso complexo, cuja formação nasce da combinação de outros valores de uso simples” (Ribeiro, 1997, p. 45; cf. Preteceille, 1974, grifos do autor),3 materializado num espaço cujos elementos são diferenciados e articulados entre si, resultantes de “um conjunto de forças atuantes ao longo do tempo, postas em ação pelos diversos agentes modeladores, e que permitem localizações e relocalizações das atividades e da população” (Correa, 1999, p. 36). Dentre os agentes sociais produtores do espaço urbano tem destaque o Estado. Alinhado a outros autores, entende-se que esse agente reflete as lutas de classe e de- Importa ainda notar que a autora alerta sobre as limitações das abordagens isoladas, senvolve interesses próprios ligados aos grupos no poder e à burocracia. pois que as “diversas formas de provisão da Dos elementos do espaço urbano, desta- moradia [...] pelo mercado privado, pela pro- cam-se neste trabalho a área central, que con- moção pública e pela promoção informal] cons- centra as principais atividades de comércio e tituem um conjunto contínuo e interdependen- de serviços, bem como os fluxos de transporte4 te” (idem, ibidem, p. 37). e os centros de comércio e serviços hierarqui- O trabalho analisa a provisão de mora- camente inferiores, cristalizações dos processos dia na Região Metropolitana de Belém – RMB de centralização e descentralização, bem como para o segmento populacional com renda fami- as áreas de habitação resultantes do processo liar mensal entre 0 e 3 salários mínimos – SMs de segregação socioespacial. na primeira etapa do Programa Minha Casa, No Brasil, associado ao processo de se- Minha Vida – PMCMV. Situa-a no processo gregação socioespacial, estudos sobre o espaço mais geral de produção do espaço urbano na urbano realizados na década de 1970 identi- metrópole e compara-a com as ações do Pro- ficaram o padrão centro-periferia, entendido grama para o segmento acima de 3 a 10 SMs esse como “espaço de reprodução da força de e com a provisão pelo Governo do Estado do trabalho no interior da ordem capitalista pe- Pará no âmbito do Programa de Aceleração riférica e subordinada” (cf. Marques e Torres, 554 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade 2005), onde as condições materiais de existên- municipais, obrigatórios para cidades com mais cia constituíam o que foi chamado de “espolia- de 20.000 habitantes e outras especificamente ção urbana” (Kowarick, 1979). As transforma- definidas. Contudo, a implementação dos ins- ções observadas posteriormente nas periferias trumentos disponíveis para reverter o quadro urbanas reforçaram a ideia de um espaço mar- de precariedades e iniquidades urbanas não cado pela heterogeneidade (Marques e Torres, tem se mostrado de forma efetiva. 2005, entre outros autores), abrigando diver- Nos PDs instituídos nos municípios da sas classes sociais em que se mantêm, contu- RMB, o princípio da função social da cidade e do, processos de segregação socioespacial. A da propriedade é definido, entre outros e con- ocupação por camadas populacionais de alta e forme estabelece o Estatuto da Cidade, tendo média rendas passou a se configurar em “en- como referência o direito à terra e à moradia. claves fortificados” (Caldeira, 2000), com impli- Esse princípio, no entanto, não se expressou em cações negativas na cidadania. De outro lado, disposições capazes de concretizá-lo, sendo re- e mais recentemente, estão se constituindo, no duzidas as ações nesse sentido observadas em seio dos movimentos sociais ligados ao proble- alguns governos locais. ma da moradia, a utopia e a reivindicação de uma “nova periferia urbana”. A partir de 2003, iniciou-se a construção de uma política nacional de habitação, Essa utopia se insere na “utopia da cida- fundada em princípios de participação demo- de como direito [que] quer o usufruto coletivo crática, na articulação entre os entes federa- da e na cidade. O ‘valor’, para os seus defen- dos e na alocação de recursos financeiros. Em sores, é o valor de uso e pressupõe o acesso paralelo, o Governo Federal criou programas universal na apropriação e usufruto da cidade” desvincula dos desse processo. Em 2007, foi (Rodrigues, 2007). lançado o PAC, integrado, entre outros, pelo O avanço das lutas pelo direito à cidade eixo Infraestrutura Social e Urbana, que pre- e à moradia em determinado momento foi cris- via urbanização de assentamentos precários talizado em um marco jurídico-institucional. A por meio de ações integradas em habitação, percepção dos fundamentos da desigualdade saneamento e inclusão social. Nos casos de socioespacial urbana levou à mobilização de áreas com exposição a riscos ou onde não fos- segmentos da sociedade brasileira, articulados se possível a regularização e, ainda, naquelas no Movimento pela Reforma Urbana, culmi- sujeitas a fins de preservação ambiental ou nando com a aprovação dos artigos 182 e 183 implantação de infraestrutura, é admitido o da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988), remanejamento para áreas próximas ao as- do Estatuto da Cidade (Brasil, 2001) e outros sentamento original. O Programa é criticado instrumentos que incorporaram algumas das pelo deslocamento da centralidade do FNHIS principais propostas debatidas no seio da so- na política habitacional, pela ausência de con- ciedade civil desde os anos 1960. Entre essas trole social e de critérios institucionais de re- propostas, encontra-se o princípio da função distribuição (Cardoso, Aragão e Araújo, 2011). social da cidade e da propriedade, que de- O PMCMV foi criado em março de 2009 5 com veria ser estabelecido nos planos diretores o objetivo de dinamizar a economia por meio Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 555 Simaia do Socorro Sales das Mercês de incentivos à produção e à aquisição de uni- lação aos do PAC indicam que programas cujo dades habitacionais em áreas urbanas e ru- desenho destina ao Estado um papel mais de- rais, a partir da alocação de recursos públicos cisivo na provisão da moradia podem resultar e da concessão de incentivos fiscais e outros, em melhores localizações, em vista do caráter e de acordo com regras específicas segundo a interesses desse agente social. população-alvo: famílias com renda até 3, en- Por fim, o estudo comparativo do tre 3 e 6, e entre 6 e 10 SMs. De análises dis- PMCMV nas faixas de renda familiar mensal poníveis acerca das implicações do Programa, 0-3 e 3-10 SMs reafirma que, como as ações destacam-se, para os fins deste trabalho, os ocorrem no contexto geral da produção do seguintes pontos: protagonismo do mercado espaço urbano e são fortemente influenciadas na definição de importantes características pelas determinações de mercado, tem impor- da moradia, localização inadequada dos em- tância fundamental para a efetivação do direito preendimentos e habitações precárias, como à moradia na cidade a instituição de fato de forte probabilidade (Arantes e Fix, 2009; Bon- uma política que contrarreste as implicações da duki, 2009; Rolnik e Nakano, 2009) ou como propriedade da terra. fato (Cardoso, Aragão e Araújo, 2011). A implementação do PMCMV/0-3SMs na RMB em sua primeira etapa foi fortemente viabilizada pela Companhia de Habitação do Estado do Pará – Cohab que vendeu terrenos de sua propriedade para a Caixa Econômica Federal e participou da contratação dos respectivos Agentes sociais envolvidos e situação dos programas na Região Metropolitana de Belém empreendimentos, o que relativiza a constatação acerca do domínio do mercado. Tomando como referência elementos do espaço urbano e embora o Programa tenha ficado restrito aos a) Programa de Aceleração do Crescimento – Habitação municípios da periferia metropolitana, não há No estado do Pará, as intervenções do um padrão de localização inadequada dos em- PAC em habitação que contam com a partici- preendimentos que possa ser associado às ca- pação do Governo do Estado, como contrapar- tegorias Estado ou mercado. De outro lado, ain- tida, buscam beneficiar população com renda da que tenha havido a participação da Cohab familiar entre 0 e 3 SMs e são implementadas na definição dos projetos arquitetônico-urba- pela Companhia de Habitação do Estado do nísticos, as características da habitação estão Pará – Cohab, enquadradas na ação “Apoio mais relacionadas às regras do Programa e aos à Urbanização de Assentamentos Precários”, interesses do setor empresarial, observando-se modalidade “Urbanização de Assentamentos qualidade pouco melhor nos empreendimentos Precários”, bem como “Produção de Habita- verticais do que nos horizontais. ção de Interesse Social”. As ações envolvem Adicionalmente, a comparação dos re- urbanização; implantação de infraestrutura sultados obtidos na RMB pelo PMCMV em re- básica; construção e melhoria de unidades 556 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade habitacionais; regularização fundiária com a intervenções no âmbito do PAC na RMB, estas utilização, principalmente, da Concessão de Di- foram escolhidas considerando: 1) a capacida- reito Real de Uso por um período de 10 anos; e de de investimento do Governo do Estado; 2) trabalho social voltado à implantação de edu- as demandas feitas à Companhia pela popu- cação de convivência comunitária, à geração lação e pelos municípios; e 3) as normas do de emprego e renda e educação referente ao Programa Prioritário de Investimentos – PPI meio ambiente. Os recursos federais alocados do Governo Federal, por contemplarem áreas são oriundos do OGU, FNHIS e Promoradia, es- densamente ocupadas onde o proponente já te oneroso, com prazo de retorno de 15 anos tinha uma atuação. Somente a Pratinha não 6 (Cohab e Informação Verbal). Até março de se enquadrava nas condições do PPI e foi in- 2011, a maior parte das ações na RMB esta- cluída por determinação do alto escalão do va localizada em Belém (Tabela 1). As obras se Governo do Estado, em vista da incidência de encontravam em atraso, tendo sido entregue vulnerabilidade social e violência. Os residen- 17% das unidades habitacionais – UHs previs- ciais Liberdade são destinados ao assenta- tas para a região, sendo 14% das programadas mento de parte da população remanejada do para Belém e 51% para Ananindeua. Riacho Doce e também de área próxima atin- De acordo com o responsável pela Di- gida pela segunda etapa do Projeto Tucundu- retoria de Planejamento e Desenvolvimento ba, intervenção estadual no setor saneamen- da Cohab no momento de definição de suas to (Informação Verbal).7 Tabela 1 – RMB: PAC, ações da Cohab por município – março 2011 Intervenção Jardim Jader Barbalho Pratinha Fé em Deus Taboquinha (Cubatão) Pantanal Riacho Doce I Riacho Doce II Riacho Doce III Liberdade I Liberdade II Município Lote urbanizado Lote e habitação Total Executado % Ananindeua Belém Belém Belém Belém Belém Belém Belém Belém Belém 1.274 990 1.357 784 1.092 726 722 845 - 595 655 332 1.078 600 160 278 112 276 1.724 1.869 1.645 1.689 1.862 1.692 886 1.000 957 276 1.724 67,90 84,30 60,37 36,90 21,77 50,26 36,88 45,67 78,38 30,26 7.790 5.810 13.600 – RMB UHs entregues 305 201 98 352 25 32 1.013 Fonte: COHAB. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 557 Simaia do Socorro Sales das Mercês Conforme liderança de movimento social por objetivo a produção para o mercado ha- por moradia, contudo, a seleção das áreas obe- bitacional. Sabe-se que várias delas são tra- deceu a critério político para atender a base do dicionalmente prestadoras de serviços para o Governo do Estado. Não houve discussão com poder público. os movimentos sociais, mas “como tinha movi- O PAC visa a melhoria das condições de mento dentro da Cohab, isso foi determinante, habitabilidade em ocupações existentes, com a maioria dessas áreas era base de um movi- o fim de beneficiar a população já assentada 8 mento específico” (Informação Verbal). Dessa na área do projeto e entorno. No caso do Jar- forma, segundo o entrevistado, a influência do dim Jader Barbalho – JJB, contudo, a maioria movimento específico, cuja liderança também dos beneficiados com as habitações entregues ocupava cargo na Cohab, explicaria todas as até o momento é oriunda de ocupação loca- intervenções localizadas no município de Be- lizada no município de Belém e pequena par- lém. A única intervenção em Ananindeua seria cela da própria ocupação Jáder Barbalho. Tal explicada pela influência no governo do Parti- remanejamento teria sido decidido pela Secre- do do Movimento Democrático Brasileiro, que taria Estratégica de Projetos Especiais, à reve- ocupava, inclusive, a Presidência da Cohab na- lia da Cohab, para viabilizar a implantação da quele momento. Avenida Independência, integrante de projeto A contratação de empresas privadas para execução das intervenções é sujeita à concorrência. Assim, foi realizada licitação negociado com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.9 b) Programa Minha Casa, Minha Vida para escolha das empresas que executariam Em abril de 2011, os empreendimentos as obras. Todas as vencedoras das licitações contratados para construção na RMB no âm- são associadas ao Sindicato da Indústria da bito do PMCMV totalizavam 7.243 UHs, sendo Construção do Estado do Pará – Sinduscon/ 38% dos empreendimentos e 49% das UHs PA e nenhuma associada à Associação de Di- destinados à faixa de renda familiar mensal rigentes de Empresas do Mercado Imobiliário de 0 a 3 SMs. O município de Ananindeua se do Pará – Ademi/PA (Sinduscon /PA, 2011; destaca por sediar grande parte da produção Ademi/PA, 2011), o que mostra que não têm contratada (Tabela 2). 558 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade Tabela 2 – RMB: PMCMV, quantidades de empreendimentos e de UHs contratadas por município e renda familiar mensal – abril 2011 0 a 3 SMs Município Empreendimentos Quantidade Ananindeua Belém Benevides Marituba Santa Bárbara do Pará Santa Izabel do Pará RMB 3 a 10 SMs UHs Empreendimentos UHs % Quantidade % Quantidade % Quantidade % 4 0 2 4 1 1 33 17 33 8 8 1.331 0 712 1.058 221 224 38 20 30 6 6 12 5 3 - 60 25 15 - 2.017 834 846 - 55 23 23 - 12 100 3.546 100 20 100 3.697 100 Fonte: CEF/PA Obs.: Considerado o salário mínimo vigente em março de 2009, no valor de R$ 465,00. Na maioria dos empreendimentos, a exe- cronogramas físico-financeiros; selecionando cução das obras foi bastante defasada em rela- e indicando as empresas que executariam as ção ao cronograma previsto. Até o momento de obras, convocadas através de edital; e indican- conclusão deste artigo, apenas os residenciais do parte da demanda para pesquisa cadastral Paulo Fonteles II, em Ananindeua, e Jardim das pela CEF (Cohab, 2009). Andorinhas, em Santa Bárbara do Pará, haviam Os motivos encontrados para a Cohab sido entregues aos beneficiários, embora a vender seus terrenos são o receio de ocupa- construção de outros empreendimentos esteja ções ilegais, a necessidade de atender pelo concluída, segundo as empresas responsáveis menos parte da demanda ali cadastrada e a 10 (Informações Verbais). criação de condições para produção de no- A primeira etapa do PMCMV para renda vos empreendimentos, garantindo assim sua familiar mensal até 3 SMs, ainda que se consi- permanência como instituição. Em junho de dere sua característica de investimento quase 2009, a Cohab concluía serviços de infraes- sem risco, não atraiu o empresariado na RMB. trutura em terrenos próprios, os quais deve- Dos 12 empreendimentos contratados, apenas riam ser “objeto de imediata construção das três, com total de 1.107 UHs, correspondente unidades habitacionais a fim de evitar o ônus a 31% do montante metropolitano, são de ini- da manutenção, vigilância para prevenir rou- ciativa de empresas. O restante é resultado da bos, depredações e invasões, etc., diminuindo ação da Cohab, que, de acordo com normati- o déficit habitacional naqueles municípios, e va da Caixa Econômica Federal – CEF, propôs ressarcimento do investimento do Governo do a venda de terrenos de sua propriedade ao Estado no terreno e respectiva infraestrutura Fundo de Arrendamento Residencial – FAR, dos empreendimentos” (Cohab, 2009). De for- para utilização no programa. A Companhia ma aparentemente contraditória, a decisão de participaria adaptando os projetos técnicos vender os terrenos se insere em objetivos de fornecidos pela CEF, bem como orçamentos e ampliação de possibilidades de ação: Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 559 Simaia do Socorro Sales das Mercês [...] na verdade, a Cohab precisava se capitalizar, [...], mas existe a necessidade de nós termos um banco de terras objetivando oferecer as condições de trabalhar no nosso produto, hoje a Cohab não tem nenhum produto pra trabalhar, que seja dela, propriamente dito, [...]. [...] até mesmo porque a gente corria o risco destas áreas que já estavam dotadas de infraestrutura, elas foram invadidas várias vezes, várias vezes a Cohab teve que se utilizar de diálogo, às vezes até de oficial de justiça pra retirar, então diante de deixar a ocupação, existe uma fila muito grande pra se atender aqui na Companhia de Habitação [...] então nós tínhamos que sair dessa realidade, não permitir que essas áreas fossem ocupadas e a alternativa que se oferecia naquele momento era o MCMV. Então com isso se poderia captar esse recurso da CEF, adquirir novas áreas para que se pudesse fazer novo planejamento para que se tivesse condições de usufruir de uma outra oportunidade de trabalhar no nosso negócio que é ate 3 salários mínimos, as novas áreas seriam destinadas à produção de novas unidades. (Informação Verbal)11 Foram adquiridas áreas [...] num total de aproximadamente 5 mil lotes. A escolha dos municípios se deu pelo critério do déficit acumulado na Grande Belém e as localizações intraurbanas são condicionadas pela existência de áreas maiores (visto a adoção de ocupações horizontais em lotes individuais) a preços compatíveis com os financiamentos e documentadas. Influenciaram também a acessibilidade e o aproveitamento da infraestrutura existente, principalmente energia elétrica e abastecimento d’água, cujo alcance pudesse reduzir custos. Adquiridas estas áreas, foram elaborados projetos e licitadas as obras de implantação da infraestrutura: vias pavimentadas, sistema de drenagem pluvial, esgotamento sanitário (individual), abastecimento d’água e rede de distribuição de energia e iluminação pública. Estes serviços foram executados em parte (aproximadamente 50%) até o final de 2006, quando houve mudança de governo. (Informação Verbal)12 A Cohab visava com a aquisição dos terrenos “destapar a panela de pressão”, segun- De acordo com o Presidente da Cohab do o Gerente de Relações Comerciais da Com- por ocasião da compra dos terrenos vendidos panhia, referindo-se à enorme demanda não posteriormente para o FAR, esses haviam sido atendida. O grupo que assumiu o Governo do adquiridos pelo Governo do Estado com a ex- Estado em 2007 deu continuidade à implan- pectativa, não concretizada, da construção de tação de infraestrutura beneficiando os terre- parte das 30 mil casas populares negociada nos adquiridos. com a Vale do Rio Doce, como compensação O lançamento do PMCMV, em março de pela perda de investimentos e geração de em- 2009, suscitou a intenção de construção das pregos no Pará em virtude da decisão tomada unidades habitacionais pela própria Compa- por essa empresa de instalar em São Luis uma nhia.13 Contudo, as normas do programa não siderúrgica para beneficiamento do ferro gusa permitiam isso. A Cohab, então, negociou com produzido na serra de Carajás, no sudeste do a CEF a venda dos terrenos pelo valor da avalia- estado. As áreas foram escolhidas segundo o ção feita por esta, menor do que os gastos rela- atendimento de alguns critérios e parcialmente tivos à aquisição dos terrenos, à implantação da dotadas de melhorias: infraestrutura e aos projetos técnicos, ficando a 560 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade Quadro 1 – RMB: PMCMV: valores investidos pela Cohab(1) e de avaliação pela CEF, junho 2009 Natureza do gasto Infraestrutura Valor (R$1,00) 19.145.685,02 Terreno 1.176.805,87 Projeto 278.059,24 Total investido pela Cohab 21.849.939,73 Avaliação da CEF 19.433.840,00 Fonte: Cohab, 2009. (1) Nesse montante está incluído o valor de R$3.912.692,47 correspondente a captação, reservação e adução de água potável necessária a três dos empreendimentos negociados. diferença como contrapartida do estado na pro- PA, 2011). Essa se dedica à incorporação des- dução dos empreendimentos (Quadro 1). de 1979, em especial, no município de Belém,15 Em 28 de agosto de 2009, o Governo voltada ao atendimento dos segmentos de mé- do Estado, a Cohab e cinco empresas assina- dia e média-alta rendas16 . No PMCMV, atua ram contrato com a CEF para a construção de em parceria com empresa de origem mineira, nove empreendimentos (Agência Pará, 2009). com empreendimentos habitacionais na RMB Uma empresa assumiu a construção de quatro há sete anos, dirigidos à população de baixa empreendimentos, totalizando 830 unidades renda, notadamente no âmbito do PAC e do habitacionais, e outra, a construção de dois Programa de Arrendamento Residencial (Infor- empreendimentos, que somam 780 unidades; mação Verbal).17 as demais ficaram com os empreendimentos Em relação à indicação dos beneficiários, de 221, 256 e 352 unidades (CEF). As empre- o corpo técnico da Cohab também criou expec- sas contratadas não despenderam recursos tativas que não se realizaram: financeiros na negociação, inclusive para pagamento dos projetos desenvolvidos pela Cohab (Informações Verbais).14 Todas as empresas indicadas pela Cohab são filiadas ao Sinduscon/PA e apenas uma delas também à Ademi/PA, evidenciando seu objetivo principal não ligado à incorporação imobiliária. Das empresas que contrataram empreendimentos no PMCMV na faixa de renda de 0 a 3 SMs, sem a intermediação da Cohab, nenhuma é filiada ao Sinduscon/PA e somente uma à Ademi/PA (Sinduscon/PA, 2011; Ademi/ Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 nós julgávamos que nós é que tínhamos a força, nós é que indicávamos 100%, podendo eventualmente negociar com os municípios que têm lá as suas demandas. [...] hoje nós temos mais de 107 mil inscritos aqui na Cohab, [...] 90% é de 0-3SM (R$1.395,00). [...], então nós tivemos que negociar com cada um dos municípios um percentual, que ficou diferente para cada um dos municípios dependendo da capacidade do município de atender ou não a demanda lá. (Informação Verbal)18 561 Simaia do Socorro Sales das Mercês À demanda cadastrada na Cohab é atribuída uma pontuação, considerando os casos de atendimento prioritário estabelecidos pelo Governo Federal (remanejamento de moradores de áreas de risco e mulheres chefes de família); pelo Governo Estadual (residentes na mesorregião metropolitana e “casos especialíssimos, pessoas que têm doenças degenerativas”); além das legalmente definidas (idosos, pessoa da construtora falou que as primeiras pessoas que foram sorteadas não conseguiram mais apartamento em baixo [andar térreo, mais valorizado]. [...] uma pessoa daqui de dentro que é prima do meu pai me falou que ele não participou de todas essas etapas porque a mulher dele é uma líder comunitária e foi direto lá com o Helder [Prefeito de Ananindeua] conseguir o apartamento dele lá na frente e em baixo. (Informação Verbal)21 mulheres e portadores de deficiência). A pontuação resulta num ranking utilizado para indicação de beneficiários à CEF, que procede à averiguação do enquadramento nas condições 19 exigidas pelo PMCMV. Além de dividir a indicação da demanda com os municípios, da cota da Cohab, uma parte não é oriunda do sistema antes descrito: Os movimentos sociais indicam, à nossa revelia, 20% da nossa demanda, isso foi um acordo que foi feito com a Presidência da Cohab e o MCidades. Sobre essa demanda dos movimentos sociais, a gente tem pouquíssima influência, eles indicam quem eles querem, quem está cadastrado com eles, a única coisa que a gente exige é que eles estejam também cadastrados na Cohab, mas eles não constam no nosso ranking, entendeu? eles podem indicar simplesmente pessoa que é do movimento. (Informação Verbal).20 Os interesses e o papel dos agentes sociais na provisão da moradia através do PMCMV e PAC Os agentes sociais envolvidos na implementação dos programas em análise têm interesses relacionados à provisão da moradia e desempenham diversas funções no processo. No PAC, o Estado é o agente que toma as principais decisões relativas tanto à produção, quanto à distribuição do produto: define as características da moradia, inclusive a localização, na medida em que escolhe os assentamentos que serão objeto de intervenção (ainda que o programa exija participação social); providencia a liberação da terra para a produção, resolvendo o “problema Influências pessoais parecem acontecer fundiário”;22 assume o financiamento da cons- na escolha das melhores unidades habitacio- trução; seleciona os agentes construtores; e dis- nais dos empreendimentos, conforme depoi- tribui o produto, sem comercialização. Essas ati- mento de beneficiária do programa: vidades, na provisão capitalista de moradia, seriam desempenhadas pelo incorporador, agente eles [técnicos da CEF ou da Cohab] pediram que nós viéssemos aqui, pra escolher que apartamento nós escolheríamos, só que não era bem assim, né? tinha que fazer um sorteio do apto [... mas] uma 562 que se diferencia do Estado por ser detentor de um capital de circulação e ter interesse nos lucros e rendas gerados na produção e circulação de mercadoria moradia.23 Embora as exigências Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade básicas estejam definidas no escopo do Progra- integralmente pela CEF.24 Além disso, há a pos- ma, como os critérios para seleção dos benefi- sibilidade de isenções fiscais. Tais facilidades ciários e o remanejamento, caso necessário, pa- podem ser entendidas como bastante atrativas ra locais próximos dos assentamentos originais, para a iniciativa privada, visto que, resolvendo as decisões tomadas pelo Estado são sujeitas à o “problema da solvabilidade da demanda”,25 correlação conjuntural de forças políticas, em reduzem substancialmente o risco dos investi- conformidade com a natureza desse agente mentos, compensando a pequena margem de social. Assim sendo, resta às empresas privadas lucro obtido no negócio, que é restringida pelo construtoras adotar estratégias de ampliação preço final estabelecido;26 reduzem o tempo dos lucros relacionadas ao processo produtivo, necessário para todo o processo de produção em especial à forma como se insere a força de e comercialização, por conseguinte, retorno trabalho, no contexto das disputas capital-tra- ampliado do capital colocado no circuito pro- balho vigentes no setor. dutivo; e, ainda, eliminam custos da circulação. Nas áreas urbanas, o PMCMV/0-3 SMs No desenho do PMCMV, outras impor- admite a proposição de empreendimentos nas tantes decisões cabem a diversos agentes modalidades empresarial e entidades. Em de- sociais, como a escolha da localização dos corrência das normativas do Programa, algu- empreendimentos e a negociação do terreno, mas das funções na provisão de habitação são além das relativas ao processo construtivo. desempenhadas pelo Governo Federal, através Essas funções podem ser desempenhadas por da CEF, tais como: o financiamento da produ- empresas privadas, por entidades ou pelo Es- ção e do consumo, a definição do padrão míni- tado, neste caso, especificamente em relação mo do empreendimento, o estabelecimento dos à localização, dada a possibilidade de cessão prazos de entrega, o preço e a comercialização de terrenos públicos. Esses agentes buscam das unidades produzidas. Os beneficiários são reduzir o custo da produção, inclusive o pre- indicados pelos Estados e Municípios, atenden- ço pago pelo insumo terra. Às entidades e ao do a determinados critérios. Estado interessa reduzir o custo da moradia Como os recursos financeiros são ga- maximizando sua qualidade e, no caso do Es- rantidos e repassados ao agente contratado tado, também os ganhos políticos. Às empre- de acordo com o cronograma de execução da sas interessa a apropriação de rendas fundiá- obra, na modalidade empresarial, as contrata- rias e de lucros gerados no processo produtivo. das não precisam dispor de grande volume de A escolha da localização dos empreendi- capital próprio ou recorrer a outros agentes pa- mentos na primeira etapa do PMCMV deveria ra viabilizar a construção, podendo imobilizar obedecer a critérios definidos pelo Governo pequeno valor em capital de giro e por pouco Federal relativos à disponibilidade ou plane- tempo, o necessário, em condições normais, jamento de implantação de infraestrutura. para o ressarcimento pela CEF. Também não ne- A construção de empreendimentos em áreas cessitam investir em marketing nem despender com esses requisitos e bem localizadas, com valores para pagamento de corretagem imobi- boa acessibilidade a locais de trabalho e a liária, pois a compra da produção é assegurada equipamentos e serviços urbanos, depende da Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 563 Simaia do Socorro Sales das Mercês existência de terrenos em dimensões adequa- empreendimentos, embora nem sempre o pro- das, da capacidade de negociação do constru- cesso de periferização ocorra de forma absolu- tor com o proprietário fundiário com vistas a ta, conforme será visto no item seguinte deste apropriação de parte da renda fundiária e da artigo. No que concerne às estratégias relacio- concorrência com outros demandantes de terra. nadas ao processo produtivo, voltam-se à uti- Tais condicionantes são mais restritivos para a lização de métodos construtivos mais baratos, iniciativa privada do que para o poder público, como alvenaria estrutural, lajes pré-moldadas e que possui as prerrogativas de desapropriação fundação corrida direta, bem como ao aumento por interesse social e de aplicação da dação em da capacidade gerencial da empresa, em ter- pagamento, além dos instrumentos de política mos de logística, por exemplo, e ao emprego de fundiária previstos no Estatuto da Cidade. Mas mão de obra não qualificada, mal remunerada “o pacote estimula um tipo de urbanização e e, em alguns casos, em situação irregular em de captura dos fundos públicos que, por si só, relação à legislação trabalhista.27 Não encon- torna mais difícil a aplicação desses instrumen- tramos referências a investimentos em ou uti- tos” (Arantes e Fix, 2009, p. 9). lização de novas tecnologias. Adicionalmente, Assim, “o pacote entrega nas mãos da pode-se inferir que a implantação dos residen- iniciativa privada o protagonismo da provisão ciais do PMCMV promove ampliação dos lucros habitacional. São as construtoras que decidem das empresas decorrente da valorização de ter- onde construir, o que e como” (Arantes e Fix, renos contíguos de sua propriedade, onde pre- 2009, p. 8). tendem realizar posteriormente investimentos A partir da constatação da alocação da maioria dos recursos do PMCMV na modalida- direcionados para o mercado acessado por população de maior poder aquisitivo.28 de empresarial, do consequente entendimento Além das empresas privadas, o outro de que na promoção da moradia através do agente social determinante na provisão da mo- Programa o setor público é substituído pelo radia na RMB pelo PMCMV é o Estado, através setor privado e com base em Topalov (1979), da Cohab. A resolução do problema fundiário Jaramillo (1980) e Ribeiro (1997), Cardoso por esse agente, contudo, não se deu com a (2011) identifica as estratégias que podem ser cessão de terrenos, mas com sua venda ao pre- adotadas pelas empresas para ampliar seus lu- ço de mercado, o que o equipara a um proprie- cros, relacionadas ao “lucro imobiliário” e ao tário fundiário privado, que busca apropriação “lucro da construção”, e enfatiza a ampliação de rendas. Tem papel importante também a da escala dos empreendimentos, o que implica função política das ações do Estado, eviden- a utilização de terrenos maiores, reforçando o ciada pela quantidade de notas nos meios de processo de periferização urbana. comunicação, em que, a cada assinatura de Em termos gerais, essas inferências são contrato e entrega de empreendimento, os ges- confirmadas pelo estudo das ações na RMB. tores divulgam amplamente à população, na As empresas que atuam no Programa desen- busca de legitimação dos grupos políticos no volvem estratégias de ampliação do porte dos poder, em todos os níveis de governo. 564 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade A moradia popular produzida na Região Metropolitana de Belém pelo Estado e pelo mercado corporadoras, principalmente para segmentos de renda mais elevada, a maioria fora do programa em análise, e outros são mantidos não utilizados ou subutilizados (Belém, 2008). É evidenciado também pela destinação à camada de renda até 3 SMs de apenas 25% do total de empreendimentos e de 40% das UHs em Ana- a) Porte e padrões de localização nindeua, o segundo município da RMB onde se A localização dos empreendimentos do PMCMV segue, de forma geral, as determinações de mercado, pois o preço da terra parece ser componente importante. Isso é evidenciado pela não implantação de nenhum empreendimento para a faixa de renda mais baixa e de apenas 23% do total metropolitano de UHs destinados à faixa de 3 a 10 SMs no município de Belém, onde, na parcela do território que não tem restrições relativas a características do sítio, os terrenos melhor localizados são objeto de lançamentos imobiliários pelas grandes in- verifica maior dinâmica urbana e, atualmente, grande transformação no uso do solo. A dinâmica do mercado de terras está relacionada à dinâmica demográfica e ao processo de expansão da urbanização. Em 2010, a população metropolitana alcançou 2.101.883 habitantes, concentrados na ordem de 66% em Belém. Embora permaneça grande sua participação na distribuição demográfica na metrópole, os demais municípios vêm apresentando alterações na dinâmica populacional e de integração ao polo da RMB29 (Tabela 3). Tabela 3 – RMB: Dinâmica populacional e integração metropolitana, 2000-2010 Município Ananindeua Belém Benevides Marituba Santa Bárbara do Pará Santa Izabel do Pará 2000 2010 Taxa anual de crescimento geométrico da população 393.569 1.280.614 35.546 74.429 11.378 43.227 471.980 1.393.399 51.651 108.246 17.141 59.466 1,8 0,8 3,8 3,8 4,2 3,2 População Nível de integração metropolitana 2000 2010 Alta Pólo Baixa Baixa Muito baixa – Muito Alta Pólo Alta Alta Baixa – Fonte: Observatório das Metrópoles com base em IBGE, Censos Demográficos 2000 e 2010. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 565 Simaia do Socorro Sales das Mercês Analisando comparativamente os dados de residencial, que se encontra nas bordas da Ananindeua, Marituba, Benevides e Santa Bár- área central. Todos eles se localizam distantes bara do Pará (Tabela 2), observa-se que estão também de subcentros, porém com relativa diretamente relacionados à hierarquia de inte- fácil acessibilidade, dada pela proximidade ao gração ao polo, mas não à taxa de crescimen- sistema viário principal.31 Ainda considerando to da população municipal (Tabela 3).30 a faixa de renda entre 3 e 10 SMs, padrão si- As determinações de mercado também milar de localização é reconhecido nos demais são fatores explicativos das localizações intra- municípios. Em relação aos empreendimentos municipais. Os empreendimentos contratados para renda mensal até 3 SMs, observam-se através do programa para Belém estão locali- tanto proximidades quanto distanciamento de zados na periferia, com exceção de um único centralidades e de vias principais (Figura 1). Figura 1 – RMB (Parcial): PMCMV, empreendimentos por renda familiar mensal – abril 2011 Fonte: CEF e pesquisa de campo. 566 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade No que concerne à quantidade de UHs Caldeira (2000), e certamente reproduzindo, contratadas por empreendimento, observa- com especificidades, seus efeitos negativos -se concentração na faixa entre 100 e 300 na cidadania. unidades (Tabela 4) sendo vários localiza- Considerando-se o porte dos empreendi- dos próximos ou mesmo contíguos uns aos mentos, não se identifica um padrão de locali- outros, o que potencializa seus impactos no zação (Figura 2). Isso se verifica mesmo ao se- espaço urbano. Importa notar que alguns rem observados os empreendimentos segundo empreendimentos são fechados, mimetizan- o porte e as faixas de renda familiar mensal a do os enclaves fortificados estudados por que se destinam (Figuras 1 e 2). Tabela 4 – RMB: PMCMV, porte dos empreendimentos por renda salarial mensal – abril 2011 Faixa de renda 0-3 SM 3-10 SM Total Quantidade de empreendimentos até 50 UH’s 50 a 100 UH’s 100 a 300 UH’s 300 A 500 UH’s – 4 4 – 3 3 7 9 16 5 4 9 Fonte: CEF/PA Obs.: Salário mínimo vigente em março/2009, no valor de R$465,00. Figura 2 – RMB (Parcial): PMCMV, empreendimentos por quantidade de UHs – abril 2011 Fonte: CEF e pesquisa de campo. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 567 Simaia do Socorro Sales das Mercês Figura 3 – RMB (Parcial): PMCMV/0-3 SMs, empreendimentos por agente promotor e PAC, intervenções da Cohab – abril 2011 Fonte: CEF, Cohab/PA e pesquisa de campo. Figura 4 – RMB (Parcial): PMCMV/0-3 SMs e PAC, intervenções da Cohab, por quantidade de UHs – abril 2011 Fonte: CEF, Cohab/PA e pesquisa de campo. 568 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade Tendo em conta o agente social defini- equipamentos públicos de saúde e educação,32 dor das localizações de empreendimentos do sedes de instituições públicas, e outros, quanto PMCMV para a faixa de renda até 3 SMs, ob- em zonas de fronteira urbana, em que clubes serva-se que há preferência do mercado por campestres, sítios, chácaras, pequenas fazen- Ananindeua, onde estão localizados todos os das e mata fechada são observados, sem ofer- empreendimentos de iniciativa de empresas, ta próxima de serviço de transporte público e correspondendo a 83% do total de UHs si- onde a única infraestrutura existente é a rede tuadas nesse município. Quase a totalidade de energia elétrica. Nos últimos, como era de dos empreendimentos em terrenos vendidos se esperar, tornam-se indutores de mudança de pela Cohab ao FAR se localiza nos municípios uso do solo no entorno. com níveis mais baixos de integração metro- Em contraposição ao exposto em rela- politana, em comparação com Ananindeua ção ao PMCMV, 86% das intervenções do PAC (Figura 3). na RMB, de responsabilidade do Governo do A preferência do mercado por Ananin- Estado, se localiza em Belém. Nesse progra- deua para a produção de moradia popular no ma, as intervenções são voltadas à regulari- âmbito do PMCMV pode ser em parte explica- zação de áreas já ocupadas. Tais ocupações da pelas isenções de Imposto sobre Serviços ocorrem, em parte considerável dos casos, em de Qualquer Natureza e de Imposto sobre a áreas relativamente bem localizadas no terri- Propriedade Territorial e Urbana, além de Taxa tório intramunicipal e dotadas de razoável sis- de Licença para Execução da Obra (para emis- tema de transporte público de passageiros,33 são de Alvará) e de Taxas de Vistorias parciais embora com riscos ambientais, sendo, algu- e finais de obra (para emissão de Alvará e Ha- mas, inclusive, lindeiras a regiões valorizadas, bite-se) concedidas pela Prefeitura Municipal para onde a grande incorporação imobiliária (Ananindeua, 2011a, 2011b e 2010). se dirige (Figura 3). O PAC tem grande reper- No que se refere à localização intramu- cussão na melhoria de condições de vida da nicipal, ao se analisarem os empreendimentos camada popular na RMB, dada a manuten- do PMCMV para a faixa até 3 SMs segundo o ção da população na própria ocupação ou em agente definidor das localizações, observa-se áreas próximas e o porte de suas intervenções inexistência de padrão locacional (Figura 3). (Figuras 3 e 4), cabendo notar que abrangem Conclusões similares podem ser inferidas ao se a urbanização de lotes, além da construção de analisar conjuntamente o agente definidor e o unidades habitacionais. porte dos empreendimentos (Figuras 3 e 4). Em termos de vizinhança, os empreen- b) As tipologias habitacionais para renda familiar mensal até 3 SMs dimentos do PMCMV/0-3 SMs, independen- Várias características das unidades ha- temente do agente definidor da localização, bitacionais são especificadas nas normativas são implantados tanto em áreas urbanas con- do PMCMV/0-3 SMs, tais como o tamanho solidadas ou em consolidação, com uso misto das UHs, maior para a tipologia apartamento do solo, registrando-se habitação, comércio e do que casa. Na RMB, dois empreendimen- serviços, com predomínio de caráter cotidiano, tos de empresas privadas são edifícios de Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 569 Simaia do Socorro Sales das Mercês apartamentos e um é conjunto de casas. Os do PAC são abertas. Por outro lado, a tipologia empreen dimentos viabilizados pela Cohab, casa possibilita ampliação da habitação, embora conforme antes mencionado, resultam da se possa apontar esse aspecto como um “pres- adaptação de projetos já utilizados pela Com- suposto perverso da política” na medida em que panhia, sendo apenas um do tipo edifício mul- a melhoria da habitação implica autoconstrução tifamiliar. Somente uma das intervenções do e requer poupança própria dos beneficiários PAC não adota a tipologia casa e, sim, sobrado. (Arantes e Fix, 2009, pp. 7-8). A ampliação da UH Assim, parece haver relação entre tipologia ha- como forma de adaptação a necessidades fami- bitacional e agente social promotor da mora- liares específicas se mostra necessária quando dia, sendo a vertical associada ao mercado e a se observa o tamanho diminuto das unidades, horizontal, ao Estado. resultado das mínimas exigências do Programa Com a intensificação do uso do solo, que aliadas aos interesses das construtoras, bem maximiza o aproveitamento de terrenos com como que a construção em alvenaria estrutu- menores dimensões, poderíamos esperar en- ral é restrição incontornável a modificações contrar os edifícios em melhor localização do da planta original. Sob outro ponto de vista, a que os conjuntos horizontais. Isso é verdadeiro casa se apresenta mais adequada à cultura da para o empreendimento do PMCMV promovi- população beneficiária na RMB, não habituada do pela Cohab e para um dos promovidos pelo a residir em apartamentos e que confere gran- setor empresarial, mas não para o outro. De de importância a quintais (Foto 1). Em um dos toda forma, a quantidade de empreendimen- empreendimentos do PMCMV, do tipo sobrado, tos desse tipo é muito pequena para inferên- essa necessidade foi resolvida com delimitação cias a respeito. de áreas para todas as unidades, mesmo às do A construção de conjuntos horizontais pavimento superior (Foto 2). exige terrenos maiores, mais facilmente encon- No aspecto formal, ambos os programas trados em áreas distantes das centralidades, analisados adotam soluções repetitivas, tanto provocando por isso maior impacto no espaço no tipo apartamento, quanto casa, independen- urbano. Esse impacto é maior no PMCMV es- temente do agente social tomador de decisões. pecialmente porque os empreendimentos são A utilização de projetos similares resulta em fechados, enquanto a maioria das intervenções paisagem desinteressante (Fotos 3 a 8). 570 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade Foto 1 – PAC, Jardim Jader Barbalho – maio 2011 Autoria: Simaia Mercês. Foto 3 – PMCMV (Empresa), Jardim Campo Grande – abril 2011 Autoria: Simaia Mercês. Foto 5 – PAC, Residencial Taboquinha – maio 2011 Autoria: Simaia Mercês. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Foto 2 – PMCMV, Residencial Paulo Fonteles II – julho 2011 Autoria: Simaia Mercês. Foto 4 – PMCMV (Cohab), Residencial Paulo Fonteles II – julho 2011 Autoria: Simaia Mercês. Foto 6 – PMCMV (Cohab), Jardim das Jurutis – junho 2011 Autoria: Simaia Mercês. 571 Simaia do Socorro Sales das Mercês Foto 7 – PMCMV (Empresa), Residencial Ananin – julho 2011 Autoria: Simaia Mercês. Foto 8 – PAC, Jardim Jader Barbalho – junho 2011 Autoria: Simaia Mercês. Em termos de material utilizado e aca- maior custo, por instalações para condiciona- bamentos, a tipologia vertical apresenta qua- dores de ar, mais baratas por serem feitas com lidade pouco melhor do que a horizontal. As ligação a 110V. Pode-se argumentar em favor condições climáticas contraindicam a utiliza- dessa substituição com base nas condições ção de esquadrias de ferro, como adotadas em climáticas da região. Porém, se for possível alguns residenciais de ambos os programas, a beneficiários com renda até 3 SMs adquirir que superaquecem os ambientes, agravando a condicionadores de ar, dificilmente poderão situação de desconforto provocado pelo tama- assumir as despesas do consumo de energia nho diminuto dos cômodos. Além disso, a al- pelos aparelhos, principalmente considerando ta umidade na região acelera os processos de que nas ligações de 110V são mais elevadas do oxidação, implicando a necessidade de manu- que nas de 120V. tenção mais freqüente. Por esse e outros moti- Outro problema que pode ocorrer na pós- vos, já se verifica em certos casos do PMCMV -ocupação de residenciais construídos no âmbi- a necessidade de reparos antes mesmo da en- to do PMCMV se refere às condições de abaste- trega das UHs, evidenciando baixa qualidade cimento de água, dada a adoção de reservatório da construção. A baixa qualidade construtiva único para atender a todo o empreendimento. é dada também pela falta de revestimento de Em determinadas intervenções do PAC, sequer pisos e paredes. há abastecimento de água, tendo os moradores Os interesses das empresas construtoras que providenciar poços artesianos. nortearam mudanças em algumas definições Equipamentos comunitários como esco- estabelecidas pela CEF para os empreendi- la e creche não são previstos em nenhum dos mentos do PMCMV. Por exemplo, a substitui- programas. Estão presentes somente itens de ção de chuveiro com aquecedor de água, que lazer, tais como playground, churrasqueira e demandaria instalações para 120V, implicando salão comunitário. O Jardim Jader Barbalho, 572 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade construído através do PAC, por ter sido im- interpenetradas, o que coloca em discussão plantado em área onde antes funcionava um sua adequação como categorias de análise. clube recreativo, se diferencia pela excepcio- Enquanto no PMCMV, não há padrão de nalidade e quantidade de itens, dispondo além localização quando se consideram essas ca- dos antes mencionados, de piscinas e quadras tegorias, ao se analisarem as intervenções do de esportes. PAC através da Cohab; no entanto, um padrão Dificuldades adicionais advêm da proibi- claro aparece, com localizações melhores. O ção de instalação de qualquer tipo de estabe- objetivo do Programa, voltado a melhorias em lecimento comercial nas unidades do PMCMV, ocupações já existentes, em geral bem localiza- danosa sob dois aspectos: é restritiva na busca das, e, eventualmente, produção de novas UHs, de emprego e renda e dificulta as condições de certamente tem um grande peso nesse resulta- vida, uma vez que obriga muitas vezes a longos do. O processo concreto de tomada de decisões deslocamentos para satisfação de necessidades na RMB também credita o fato aos interesses cotidianas. A instalação de comércio e serviços políticos dos grupos no poder e da burocracia, é demanda evidenciada pelos usos observados muito mais evidenciados no PAC do que no nas intervenções do PAC.34 PMCMV, justamente em decorrência das diferenças no desenho dos programas, desta feita no que concerne à divisão de funções com o Considerações finais setor privado. Isso torna o determinante busca de legitimidade um fator relevante a ser considerado nas proposições de políticas de habita- São de amplo conhecimento os números do ção popular. déficit habitacional e as precárias condições de As conclusões inferidas para o PMCMV moradia das camadas populares no país e na reforçam também a necessidade de procurar RMB, o que demanda a instituição de política entender os padrões de localização tendo em pública de habitação dirigida a esse segmen- conta o processo de produção do espaço ur- to da população. Estudiosos apontam que o bano como um todo, inclusive, talvez princi- PMCMV/0-3 SMs não configura política esta- palmente, a produção de mercado para outros tal de habitação, pois as principais decisões segmentos da população, que se coloca como são tomadas pelo setor empresarial. De fato, concorrente na apropriação de terrenos bem pelas normas do Programa, as empresas divi- localizados, elevando o preço da terra. dem com o setor público importantes funções Pode-se também reafirmar a importância na provisão da moradia. A possibilidade de de dirigir a política habitacional não apenas doação de terrenos públicos, prevista nas nor- a objetivos voltados à produção de unidades mativas, imprimiria um caráter mais estatal ao habitacionais, mas ao manejo do solo urbano, programa. Entretanto, a análise dos determi- conforme outros autores já indicaram. Nesse nantes e resultados da ação da Cohab na RMB, sentido, reitera-se a importância de efetivação no âmbito do Programa, mostra que, no caso dos instrumentos com essa finalidade contidos estudado, as categorias Estado e mercado são no Estatuto da Cidade. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 573 Simaia do Socorro Sales das Mercês Simaia do Socorro Sales das Mercês Arquiteta e Urbanista. Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Professora do Núcleo de Altos Estudos Amazônicos da Universidade Federal do Pará. Belém/PA, Brasil. [email protected] Notas (1) Remetendo a Ball (1986), Maricato observa que “estrutura de provisão de moradias se refere à construção, manutenção e distribuição de um estoque, que se forma a par r de diversas formas de provisão de habitação”, e “o estoque de moradias é resultante dos diferentes arranjos existentes no interior do conjunto formado pelo mercado privado, pela promoção pública e pela promoção informal (o que inclui ainda arranjos mistos) em diferentes situações históricas de uma dada sociedade” (2009, p. 36). (2) Além das intervenções do Governo do Estado, Prefeituras Municipais na RMB desenvolvem projetos no âmbito do Programa. (3) Entre vários conceitos que privilegiam dimensões como polí co-administra va, demográfica, cultural, etc. (4) Esse conceito tem como referência empírica a RMB. Outros aspectos podem ser considerados em realidades dis ntas. (5) Através da Medida Provisória nº 459/2009. (6) Arthur Farias. Entrevista à autora. Belém, julho 2011. (7) Idem. (8) Alcir Matos. Entrevista à autora. Belém, julho 2011. (9) A COHAB estaria respondendo ao Ministério Público, provocado pela comunidade prejudicada, acerca do atendimento feito a população oriunda de ocupação fora da área do projeto e entorno, contrariando a norma do PAC e o contrato assinado entre COHAB e CEF (Arthur Farias. Entrevista à autora. Belém, julho 2011). (10) Armando C. Uchoa Jr. e Manuel Pereira. Entrevistas à autora. Belém, julho 2011. (11) Arthur Farias. Entrevista à autora. Belém, julho 2011. (12) Cicerino Cabral. Entrevista à autora. Belém, julho 2011. (13) José Otávio Figueiredo. Entrevista à autora. Belém, julho 2011. (14) Idem. (15) Conforme levantamento de dados de empresas voltadas à incorporação na RMB na Junta Comercial do Estado do Pará. (16) A análise foi desenvolvida com base em levantamento de dados junto à Secretaria Municipal de Urbanismo, órgão responsável pelo licenciamento de obras em Belém. 574 Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 Percursos do direito à cidade (17) Gilberto Souza e Cris ano Teixeira Rodrigues. Entrevistas à autora. Belém, junho 2011. (18) José Otávio Figueiredo. Entrevista à autora. Belém, julho 2011. (19) Idem. (20) Idem. (21) Walquíria Silva. Entrevista à autora.julho 2011. (22) O “problema fundiário” decorre: 1) da instituição da propriedade privada dos terrenos, que deve ser superado a cada novo processo de produção de habitação, implicando redução da rentabilidade do capital inves do; 2) da disponibilidade de terrenos adequados à construção, do ponto de vista das caracterís cas naturais e da localização em relação ao espaço socialmente construído; e 3) de conteúdos sociais atribuídos à propriedade privada pelo desenvolvimento de a vidades não incorporadas ao modo capitalista de produção (Ribeiro, 1997). (23) Conforme conceito de incorporador em Ribeiro, 1997. (24) Na visão de empresário com obra através do programa, isso caracterizaria as empresas como empreiteiras: “a empresa nasceu em cima de licitar obras públicas. No nosso modo de ver esse po de empreendimento do Minha Casa, Minha Vida é como se fosse uma obra pública porque a gente apresenta um projeto para a CEF e, depois de aprovado, ela compra o projeto e a gente vira uma empreiteira normal, executando o projeto da Caixa. Então, essa atividade postula dentro do que a gente nasceu e vinha fazendo (Armando C. Uchoa Júnior. Entrevista à autora. julho 2011). (25) “[...] o ‘problema de solvabilidade’ é definido pelo alto valor rela vo da mercadoria moradia, compara vamente ao poder de compra do conjunto da população” (Ribeiro, 1997, p. 89). (26) Todos os empresários entrevistados se referem a esse aspecto. (27) Gilberto Souza, Manuel Pereira, Armando C. Uchoa Júnior e Joanis. Entrevistas à autora, julho 2011. (28) Conforme referência a projetos e estoque de terras de empresa atuante no programa. Cris ano Teixeira Rodrigues. Entrevista à autora, julho 2011. (29) Os indicadores para iden ficação do nível de integração à dinâmica metropolitana tomam por base os dados censitários do IBGE rela vos a população, densidade populacional, pessoas que trabalham ou estudam em municípios dis ntos do residencial e ocupados não agrícolas (Moura, 2009). (30) Não se pode afirmar até o momento se os empreendimentos do PMCMV estão relacionados ao crescimento populacional dos municípios da periferia ou ao processo de mobilidade residencial da população de Belém no sen do do território dos demais municípios. Isso será objeto das próximas etapas da pesquisa. (31) Para afirmações mais conclusivas a esse respeito, o sistema de transporte será analisado em etapa posterior da pesquisa. (32) A disponibilidade não implica necessariamente acessibilidade aos serviços. (33) Considerando-se que o sistema na RMB em geral é precário. (34) Para a segunda etapa do PMCMV, estabelecida em junho de 2011 essa proibição foi suspensa. Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012 575 Simaia do Socorro Sales das Mercês Referências ADEMI/PA. (2011). Associados. Disponível em: h p://www.ademipa.org.br/associados.php Acesso em: 26 jul 2011. AGÊNCIA PARÁ. (2010). Governo assina contratos para construir quase três mil casas populares. Acesso em: 15 jul 2011. ANANINDEUA (2010). Decreto Municipal n° 14.094, de 29 de junho de 2010. Concede incentivos fiscais ao contribuinte Acrópole Construções Civis e Arquitetura Ltda e dá outras providências. Diário Oficial do Município de Ananindeua, Ano XVII, n. 1023, 5 jul, pp. 5-6. ANANINDEUA (Prefeitura Municipal de Ananindeua) (2011a). Decreto Municipal n° 14.583, de 18 de fevereiro de 2011. Concede incen vos fiscais ao contribuinte Construtora Effece Ltda e dá outras providências. Diário Oficial do Município de Ananindeua, (Ano XVIII, n. 1181), 10 mar, pp. 6-7. ______ (2011b). Decreto Municipal n° 14.584, de 18 de fevereiro de 2011. 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Trata-se de periódico dirigido à comunidade acadêmica em geral, especialmente, às áreas de Arquitetura e Urbanismo, Planejamento Urbano e Regional, Geografia, Demografia e Ciências Sociais. A revista publica textos de pesquisadores e estudiosos da temática urbana, que dialogam com o debate sobre os efeitos das transformações socioespaciais no condicionamento do sistema político-institucional das cidades e os desafios colocados à adoção de modelos de gestão baseados na governança urbana. CHAMADA DE TRABALHOS A revista Cadernos Metrópole é composta de um núcleo temático, com chamada de trabalho específica, e um de temas livres relacionados às áreas citadas. Os textos temáticos deverão ser encaminhados dentro do prazo estabelecido e deverão atender aos requisitos exigidos na chamada; os textos livres terão fluxo contínuo de recebimento. Os artigos podem ser redigidos em língua portuguesa ou espanhola. Os artigos apresentados em outros idiomas serão traduzidos para o português. AVALIAÇÃO DOS ARTIGOS Os artigos recebidos para publicação deverão ser inéditos e serão submetidos à apreciação dos membros do Conselho Editorial e de consultores ad hoc para emissão de pareceres. Os artigos receberão duas avaliações e, se necessário, uma terceira. Será respeitado o anonimato tanto dos autores quanto dos pareceristas. Caberá aos Editores Científicos e à Comissão Editorial a seleção final dos textos recomendados para publicação pelos pareceristas, levando-se em conta sua consistência acadêmico-científica, clareza de ideias, relevância, originalidade e oportunidade do tema. COMUNICAÇÃO COM OS AUTORES Os autores serão comunicados por email da decisão final, sendo que a revista não se compromete a devolver os originais não publicados. OS DIREITOS DO AUTOR A revista não tem condições de pagar direitos autorais nem de distribuir separatas. Cada autor receberá dois exemplares do número em que for publicado seu trabalho. O Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es), deve ser enviado juntamente com o artigo. O conteúdo do texto é de responsabilidade do(s) autor(es). NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DOS ARTIGOS Os trabalhos devem conter: • título, em português, ou na língua em que o artigo foi escrito, e em inglês; • texto, digitado em Word, espaço 1,5, fonte arial tamanho 11, margem 2,5, tendo no máximo 25 (vinte e cinco) páginas, incluindo tabelas, gráficos, figuras, referências bibliográficas; as imagens devem ser em formato TIF, com resolução mínima de 300 dpi e largura máxima de 13 cm; • resumo/abstract de, no máximo, 120 (cento e vinte) palavras em português ou na língua em que o artigo foi escrito e outro em inglês, com indicação de 5 (cinco) palavras-chave em português e em inglês; • identificação do autor, com as seguintes informações, por extenso: nome do autor, formação básica, instituição de formação, titulação acadêmica, atividade que exerce, instituição em que trabalha, unidade e departamento, cidade, estado, país, e-mail, telefone e endereço para correspondência; • referências bibliográficas, conforme instruções solicitadas pelo periódico. Os trabalhos devem ser encaminhados para o email: [email protected] ou para o endereço: Cadernos Metrópole – Caixa Postal 60022 – CEP 05033-970 – São Paulo, SP, Brasil. É imprescindível o envio do Instrumento Particular de Autorização e Cessão de Direitos Autorais, datado e assinado pelo(s) autor(es). REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS As referências bibliográficas, que seguem as normas da ABNT adaptadas pela Educ, deverão ser colocadas no final do artigo, seguindo rigorosamente as seguintes instruções: Livros AUTOR ou ORGANIZADOR (org.) (ano de publicação). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: CASTELLS, M. (1983). A questão urbana. Rio de Janeiro, Paz e Terra. Capítulos de livros AUTOR DO CAPÍTULO (ano de publicação). “Título do capítulo”. In: AUTOR DO LIVRO ou ORGANIZADOR (org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora. Exemplo: BRANDÃO, M. D. de A. (1981). “O último dia da criação: mercado, propriedade e uso do solo em Salvador”. In: VALLADARES, L. do P. (org.). Habitação em questão. Rio de Janeiro, Zahar. Artigos de periódicos AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico, número do periódico, páginas inicial e final do artigo. Exemplo: TOURAINE, A. (2006). Na fronteira dos movimentos sociais. Sociedade e Estado. Dossiê Movimentos Sociais. Brasília, v. 21, n. 1, pp. 17-28. Trabalhos apresentados em eventos científicos AUTOR DO TRABALHO (ano de publicação). Título do trabalho. In: NOME DO CONGRESSO, número, ano, local de realização. Título da publicação. Cidade, Editora, páginas inicial e final. Exemplo: SALGADO, M. A. (1996). Políticas sociais na perspectiva da sociedade civil: mecanismos de controle social, monitoramento e execução, parceiras e financiamento. In: SEMINÁRIO INTERNACIONAL ENVELHECIMENTO POPULACIONAL: UMA AGENDA PARA O FINAL DO SÉCULO. Anais. Brasília, MPAS/SAS, pp. 193-207. Teses, dissertações e monografias AUTOR (ano de publicação). Título. Tese de doutorado ou Dissertação de mestrado. Cidade, Instituição. Exemplo: FUJIMOTO, N. (1994). A produção monopolista do espaço urbano e a desconcentração do terciário de gestão na cidade de São Paulo. O caso da avenida Engenheiro Luís Carlos Berrini. Dissertação de mestrado. São Paulo, FFLCH. Textos retirados de Internet AUTOR (ano de publicação). Título do texto. Disponível em. Data de acesso. Exemplo: FERREIRA, J. S. W. (2005). A cidade para poucos: breve história da propriedade urbana no Brasil. Disponível em: http://www.usp.br/fau/depprojeto/labhab/index.html. Acesso em: 8 set 2005. Rede Observatório das Metrópoles Estado Instituição Coordenador Belém Universidade Federal do Pará Simaia Mercês [email protected] Belo Horizonte Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Luciana Andrade [email protected] Brasília Universidade de Brasília Rômulo Ribeiro [email protected] Curitiba Ipardes Rosa Moura [email protected] Fortaleza Universidade Federal do Ceará Clélia Lustosa [email protected] Goiânia Universidade Católica de Goiás Aristides Moysés [email protected] Maringá Universidade Estadual de Maringá Ana Lucia Rodrigues [email protected] Natal Universidade Federal do Rio Grande do Norte Maria do Livramento M. Clementino [email protected] Porto Alegre Fundação de Economia e Estatística Rosetta Mammarella [email protected] Recife Universidade Federal de Pernambuco Angela Maria Gordilho Souza [email protected] Rio de Janeiro Universidade Federal do Rio de Janeiro Luiz César de Queiroz Ribeiro [email protected] Salvador Universidade Federal da Bahia Inaiá Maria Moreira Carvalho [email protected] Santos Universidade Católica de Santos Marinez Brandão [email protected] São Paulo Pontifícia Universidade Católica de São Paulo Lucia Maria Machado Bógus [email protected] Vitória Instituto Jones dos Santos Neves Caroline Jabour [email protected] Cadernos Metrópole vendas e assinaturas Exemplar avulso: R$20,00 Assinatura anual (dois números): R$36,00 Enviar a ficha abaixo, juntamente com o comprovante de depósito bancário realizado no Banco do Brasil, agência 3326-x, conta corrente 10547-3, ou enviar cheque para a Caixa Postal nº 60022 - CEP 05033-970 - São Paulo – SP – Brasil. 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