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ISSN 1517-2422
cadernos
metrópole
direito à cidade
na metrópole
Cadernos Metrópole
v. 14, n. 28, pp. 283-580
jul/dez 2012
Catalogação na Fonte – Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Cadernos Metrópole / Observatório das Metrópoles – n. 1 (1999) – São Paulo: EDUC, 1999–,
Semestral
ISSN 1517-2422
A partir do segundo semestre de 2009, a revista passará a ter volume e iniciará com v. 11, n. 22
1. Regiões Metropolitanas – Aspectos sociais – Periódicos. 2. Sociologia urbana – Periódicos.
I. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências
Sociais. Observatório das Metrópoles. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de
Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional. Observatório das Metrópoles
CDD 300.5
Periódico indexado na Library of Congress – Washington
Cadernos Metrópole
Profa. Dra. Lucia Bógus
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais - Observatório das Metrópoles
Rua Ministro de Godói, 969 – 4° andar – sala 4E20 – Perdizes
05015-001 – São Paulo – SP – Brasil
Prof. Dr. Luiz César de Queiroz Ribeiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional - Observatório das Metrópoles
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Secretária
Raquel Cerqueira
direito
d
i r e i to
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cidade
idade
na
n
am
metrópole
etrópole
PUC-SP
Reitor
Dirceu de Mello
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
Miguel Wady Chaia
Conselho Editorial
Ana Maria Rapassi, Cibele Isaac Saad Rodrigues, Dino Preti, Dirceu de Mello (Presidente),
Marcelo da Rocha, Marcelo Figueiredo, Maria do Carmo Guedes, Maria Eliza Mazzilli Pereira,
Maura Pardini Bicudo Véras, Onésimo de Oliveira Cardoso
Coordenação Editorial
Sonia Montone
Revisão de português
Eveline Bouteiller
Revisão de inglês
Carolina Siqueira M. Ventura
Projeto gráfico, editoração e capa
Raquel Cerqueira
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www.pucsp.br/educ
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metrópole
EDITORES
Lucia Bógus (PUC-SP)
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COMISSÃO EDITORIAL
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Orlando Alves dos Santos Júnior (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Sérgio de Azevedo (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/
Brasil) Suzana Pasternak (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil)
CONSELHO EDITORIAL
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P. Britto (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Ana Maria Fernandes (UFBa, Salvador/Bahia/Brasil) Andrea Claudia Catenazzi (UNGS, Los
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Paulo/Brasil) Brasilmar Ferreira Nunes (UFF, Niterói/Rio de Janeiro, Brasil) Carlos Antonio de Mattos (PUC, Santiago/Chile) Carlos José Cândido
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Eleanor Gomes da Silva Palhano (UFPA, Belém/Pará/Brasil) Erminia Teresinha M. Maricato (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Félix Ramon Ruiz
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Distrito Federal/Brasil) Geraldo Magela Costa (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Gilda Collet Bruna (UPM, São Paulo/São Paulo/Brasil)
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Soares de Moura Costa (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Jesús Leal (UCM, Madri/Espanha) José Antônio F. Alonso (FEE, Porto
Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) José Machado Pais (UL, Lisboa/Portugal) José Marcos Pinto da Cunha (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil)
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(UFSC, Florianópolis/Santa Catarina/Brasil) Luciana Corrêa do Lago (UFRJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Luís Antonio Machado da Silva
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Salvador/Bahia/Brasil) Maria Cristina da Silva Leme (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria do Livramento M. Clementino (UFRN, Natal/Rio
Grande do Norte/Brasil) Marília Steinberger (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Nadia Somekh (UPM, São Paulo/São Paulo/Brasil) Nelson
Baltrusis (UCSAL, Salvador/Bahia/Brasil) Ralfo Edmundo da Silva Matos (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Raquel Rolnik (USP, São
Paulo/São Paulo/Brasil) Ricardo Toledo Silva (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Roberto Luís de Melo Monte-Mór (UFMG, Belo Horizonte/
Minas Gerais/Brasil) Rosa Maria Moura da Silva (Ipardes, Curitiba/Paraná/Brasil) Rosana Baeninger (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil)
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Brasil) Eduardo César Leão Marques (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Eduardo Marandola Junior (Unicamp, Campinas/São Paulo/
Brasil) Elzira Lúcia de Oliveira (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Felipe Link Lazo (UDP, Santiago/Chile) Fernando Garrefa (UFU,
Uberlândia/Minas Gerais/Brasil) Francisco de Assis Comaru (UFABC, Santo André/São Paulo/Brasil) Gislene Aparecida dos Santos
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(UL, Lisboa/Portugal) João Farias Rovati (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) João Manuel Machado Ferrão (UL, Lisboa/
Portugal) Jorge da Silva Macaísta Malheiros (UL, Lisboa/Portugal) Jorge Manuel Gonçalves (UTL, Lisboa/Portugal) José Geraldo Simões
Junior (Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Laura Machado de M. Bueno (PUCCampinas, Campinas/São Paulo/Brasil) Lia de Mattos
Rocha (UERJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Lúcia Cony Faria Cidade (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Luciane Soares da
Silva (UENF, Campos dos Goytacazes/Rio de Janeiro/Brasil) Luciano Joel Fedozzi (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil) Luís
António Vicente Baptista (UNL, Lisboa/Portugal) Márcia da Silva Pereira Leite (UERJ, Rio de Janeiro/Rio de Janeiro/Brasil) Marcia Maria
Cabreira M. de Souza (PUC-SP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Márcio Moraes Valença (UFRN, Natal/Rio Grande do Norte/Brasil) Maria
Augusta Justi Pisani (Mackenzie, São Paulo/São Paulo/Brasil) Maria Lucia Refinetti R. Martins (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Marísia
Margarida Santiago Buitoni (PUC-SP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Marta Domínguez Pérez (UCM, Madri/Espanha) Marta Dora Grostein
(USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Milena Kanashiro (UEL, Londrina/Paraná/Brasil) Neio Lúcio de Oliveira Camps (UnB, Brasília/Distrito
Federal/Brasil) Norma Lacerda (UFPE, Recife/Pernambuco/Brasil) Olga Lucia Castreghini de F. Firkowski (UFPR, Curitiba/Paraná/Brasil)
Paulo Jorge Marques Peixoto (UC, Coimbra/Portugal) Paulo Roberto Rodrigues Soares (UFRGS, Porto Alegre/Rio Grande do Sul/Brasil)
Regina Maria Prosperi Meyer (USP, São Paulo/São Paulo/Brasil) Renato Cymbalista (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Ricardo
Libanez Farret (UnB, Brasília/Distrito Federal/Brasil) Ricardo Ojima (Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Rosana Denaldi (UFABC,
Santo André/São Paulo/Brasil) Sérgio Manuel Merêncio Martins (UFMG, Belo Horizonte/Minas Gerais/Brasil) Silvana Maria Pintaudi
(Unicamp, Campinas/São Paulo/Brasil) Sonia Lúcio Rodrigues de Lima (UFF, Niterói/Rio de Janeiro/Brasil) Sylvio Carlos Bandeira de
Mello e Silva (UCSal, Salvador/Bahia/Brasil) Vitor Matias Ferreira (ISCTE-UL, Lisboa, Portugal) Weber Soares (UFMG, Belo Horizonte/
Minas Gerais/Brasil)
sumário
291 Apresentação
dossiê: direito à cidade na metrópole
Vola le capital, dispersed city, segregated 297 Capital volá l, cidade dispersa, espaço
space: some notes on the dynamics
segregado: algumas notas sobre a dinâmica
of the contemporary urban
do urbano contemporâneo
Adriano Botelho
Direito à cidade: um estudo sobre o mercado
Right to the city: a study about the informal real 317 imobiliário informal no bairro de Mãe Luiza
estate market in the Mãe Luiza neighborhood
(Natal/RN)
(Natal/Northeastern Brazil)
Carmem Cris na Fernandes do Amaral
The metropolises also have places. The case 339 As metrópoles também têm lugares. O caso
do bairro de Setúbal Nascente, Portugal
of the Setúbal Nascente neighborhood, Portugal
Jorge Gonçalves
António Costa
Luís Sanchez Carvalho
Civil-military dictatorship and slums: 357 Ditadura civil-militar e favelas: es gma
s gma and restric ons to the debate
e restrições ao debate sobre a cidade (1969-1973)
about the city (1969-1973)
Mario Sergio Brum
O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro:
The right to the city in Rio de Janeiro’s slums: 381
conclusões, hipóteses e questões oriundas
conclusions, hypotheses and ques ons
de uma pesquisa
derived from a research study
Alex Ferreira Magalhães
Planos diretores e canais democrá cos
Master plans and democra c channels of popular 415 de par cipação popular: estudo de 25 planos
par cipa on: a study of 25 master plans
diretores da RMBH
of the Metropolitan Region of Belo Horizonte
Renato Barbosa Fontes
Léa Guimarães Souki
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289
The expansion of the Metropolitan Region 441 A expansão da RM de Belém: reflexões
of Belém: reflec ons on the developments
sobre os desdobramentos de inves mentos
of official investments in housing
oficiais em habitação
Ana Cláudia Duarte Cardoso
Marcília Regina Gama Negrão
Glaydson de Jesus Cordovil Pereira
The right to the everyday space: housing and 463 Direito ao espaço co diano: moradia
autonomy in the master plan of a metropolis
e autonomia no plano de uma metrópole
Silke Kapp
Challenges to the implementa on 485 Desafios para implementação de Zonas Especiais
of Social Housing Zones in Fortaleza
de Interesse Social em Fortaleza
Renato Pequeno
Clarissa F. Sampaio Freitas
The right to the city in dispute: 507 O direito à cidade em disputa: o caso
the case of the Zeis of Lagamar
da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
(Fortaleza – Northeastern Brazil)
Linda Maria de Pontes Gondim
Marília Passos Apoliano Gomes
Proposal of an index of sustainable mobility: 529 Proposta de índice de mobilidade sustentável:
methodology and applicability
metodologia e aplicabilidade
Laura Machado
Emilio Merino Dominguez
Miroslova Mikusova
Routes of the right to the city: state’s 553 Percursos do direito à cidade: provisão estatal
and companies’ provision of popular housing
e empresarial de moradia popular na RM de Belém
in the Metropolitan Region of Belém
Simaia do Socorro Sales das Mercês
579 Instruções aos autores
290
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Apresentação
Presenciamos uma fase paradoxal na atual trajetória das metrópoles brasileiras. Após
um longo período de reestruturação defensiva e enxugamento das principais plantas industriais,
não acompanhados por políticas tecnológica e industrial compensatórias, que era marca da
abertura descontrolada da economia nacional ao longo dos anos de 1990, verificamos, na última
década, uma retomada das taxas de crescimento econômico.
Tal crescimento também se entrelaça com uma série de políticas públicas federais que
apontam para uma perspectiva redistributivista, buscando reduzir as históricas disparidades
socioespaciais e regionais na sociedade brasileira. Isso não apenas se reflete na escala nacional
do Estado brasileiro, na retomada de um esforço sistêmico de planejamento e gestão e na (re)institucionalização de áreas como a política industrial, tecnológica, regional e urbana, mas
também repercute na criação de planos e programas específicos com maior ênfase na coesão
socioespacial, como o Plano Nacional de Desenvolvimento Regional, o Plano Nacional de
Habitação, o Bolsa Família e os territórios de Cidadania, entre outros exemplos.
A maior atuação do Estado na economia e no território encontrou respaldo em um processo
de fortalecimento institucional e jurídico, com democratização e maior controle social sobre as
políticas públicas. A aprovação do Estatuto das Cidades, por exemplo, abriu uma perspectiva
concreta para a elaboração e implantação dos Planos Diretores municipais participativos que
proporcionassem maior alavancagem do Estado sobre o mercado imobiliário e fundiário, enquanto
este processo participativo também enraizou-se mediante a proliferação dos conselhos tripartites
em várias áreas temáticas e escalas da organização do Estado brasileiro.
Houve também avanços no que diz respeito ao planejamento e gestão dos serviços de
interesse comum na metrópole, considerando a aprovação da Lei dos Consórcios Públicos, e um
arcabouço jurídico que dialoga com as premissas da governança colaborativa em setores como
o de tratamento de resíduos sólidos e o de saneamento ambiental. Ao mesmo tempo, após
um “silêncio” de quase duas décadas, vários estados lançaram mão de iniciativas em torno da
organização e gestão institucional das áreas metropolitanas. Desde meados da primeira década
de 2000, por exemplo, Minas Gerais desencadeou a discussão sobre o novo desenho institucional
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291
Apresentação
da região de Belo Horizonte, o que resultou na criação de um Conselho Deliberativo, uma
Assembleia e uma Agência Metropolitana, bem como a aprovação, em 2011, de um novo Plano
de Desenvolvimento Integrado (PDI) Participativo, elaborado em parceria com a Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG). São Paulo, por sua vez, formalizou por lei, em junho de 2011, a
reorganização de sua Região Metropolitana, assim como criou, em janeiro de 2012, a nova Região
Metropolitana do Vale do Paraíba e Litoral Norte.
Diferentemente do quadro do ajuste fiscal contínuo dos anos 90, o crescimento econômico
proporcionou maior disponibilidade de recursos financeiros para dar “um arranque” à atuação
do Estado no espaço urbano-regional, o que culminou na ampliação dos macrofinanciamentos
– principalmente via o Programa de Aceleração ao Crescimento (PAC) e o Programa Minha Casa
Minha Vida (PMCMV) – o que resultou na injeção de volumosos recursos financeiros federais para
a infraestrutura urbana, logística, energia e moradia nas cidades metropolitanas.
Entretanto, e daí o paradoxo, esse ambiente macroinstitucional e político, propício
à articulação de um projeto político alternativo – por alguns já rotulado como o novo
desenvolvimentismo – não desencadeou uma práxis transformadora para as metrópoles brasileiras.
Essas continuam marcadas por desconexões e contradições nas diversas políticas públicas
que (re)produzem o espaço, assim como pelo dinamismo econômico acompanhado por grandes
disparidades socioespaciais e de acesso aos serviços urbanos e ambientais.
Passados mais de 10 anos, cabe lembrarmos os desafios que cercaram a implementação
do Estatuto da Cidade, que representou um avanço, considerando a institucionalização de uma
agenda em torno da regulamentação e aplicação dos instrumentos urbanísticos no âmbito
dos Planos Diretores municipais. Ao mesmo tempo, à luz da herança da era tecno-burocrata
centralizada, também atrelada à agenda metropolitana, o movimento da Reforma Urbana travou
essa disputa na escala local, na qual encontraria agentes sociais e econômicos (dentro e fora do
Estado) com grande capacidade e poder de articulação de outras escalas, e em torno de um projeto
alternativo, no caso, voltado para a produção econômica e a competitividade a qualquer custo.
Nesse sentido, o primeiro balanço pós-Estatuto nas principais metrópoles brasileiras não foi
muito animador, pois apontou que, apesar da proliferação dos Planos Diretores locais participativos
formalmente alinhados com o Estatuto das Cidades, a maioria dos municípios deparou-se com
desafios para efetivamente regulamentar e aplicar os instrumentos urbanísticos “progressistas”.
Mesmo em cidades preparadas técnica e politicamente para enfrentar interesses enraizados em
torno do ambiente construído e que, de fato, discutiram e aprovaram um Plano Diretor que previa
os instrumentos e sua aplicação no território local, apresentaram dificuldade para consolidar
avanços, como foi o caso da cidade de Santo André, no período de 2003 a 2007.
De certa forma, e talvez polemizando o debate, é preciso mencionar que a escolha da
escala local como arena privilegiada para efetuar o projeto da reforma urbano-social, quando das
discussões que culminaram na Constituição de 1988, mostrou-se como aquilo que se pode chamar
de uma armadilha. Isso porque, considerando os desafios reais para viabilizar a função social da
cidade, na escala da metrópole, os obstáculos apenas se agravaram. A maioria das cidades não
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Apresentação
se articulou com as demais para definir metodologias e índices urbanísticos a serem usados no
Plano Diretor, o que fragilizou a capacidade de garantir um controle social mínimo sobre a atuação
e organização do mercado imobiliário em escala regional-metropolitana. Por sua vez, o mercado
imobiliário, como é de conhecimento comum, após a ruptura do sistema de regulação monetária
do Bretton Woods e o aprofundamento da globalização financeira, ganhou capacidade de articular
as diversas escalas e circuitos econômicos, desde o regional-metropolitano até a global.
O encolhimento da escala da metrópole como espaço da reprodução social, do valor de
uso e da própria vida, não foi apenas um desdobramento da “estratégia subversiva” do capital
imobiliário-financeiro ou da armadilha local dos agentes alinhados com a Reforma Urbana. Esse
estreitamento do horizonte foi também reforçado pelo deslocamento da agenda pautada pelo
planejamento da função social da terra e da cidade – mais complexa, demorada e contestada –
para a construção de novas engenharias financeiro-institucionais em torno do planejamento e
execução de projetos de infraestrutura e de empreendimentos habitacionais.
Em uma análise mais histórica, é possível problematizar tal démarche para muito além
do PMCMV e PAC; na realidade, trata-se de mais um passo na trajetória de financeirização da
política urbana e habitacional, alinhada com a tendência internacional marcada pela confluência
entre Estado (nacional) e o capital imobiliário e financeiro na execução dessas políticas públicas.
No caso brasileiro, esse entrosamento tardio foi iniciado nos anos 90 com a criação do Sistema
Financeiro Imobiliário e outras “inovações” regulatórias.
Portanto, diferentemente dos objetivos proclamados pela reforma urbana, as primeiras
evidências apontam que a ampliação dos financiamentos e da oferta imobiliária apenas aumentou
os preços finais dos produtos, fazendo com que o grupo alvo, que ganha até três salários mínimos,
permaneça compondo a maior parcela do déficit habitacional em áreas metropolitanas.
Para dimensionar bem as contradições socioespaciais e ambientais que estão em jogo,
cabe lembrar que a retomada de crescimento econômico transformou as metrópoles em arena
privilegiada, tanto do setor privado, quanto do Estado desenvolvimentista, para a implementação de
um conjunto de grandes projetos urbanos (novos e/ou engavetados em ciclos anteriores), os quais,
sem controle sobre a valorização imobiliária, tenderão a agravar as disparidades socioespaciais.
Esta edição reúne textos que dialogam com o paradoxo mencionado acima. Buscam
avançar na compreensão dos limites e potencialidades do direito à cidade em um cenário
pós-lefebvriano, que faz jus aos entrelaçamentos complexos de globalização dos circuitos
financeiros e produtivos, reestruturação das escalas territoriais de poder e das formas de
organização e atuação do Estado na (re)produção do espaço na metrópole contemporânea.
O texto de Adriano Botelho inicia o primeiro bloco de artigos que remete às dinâmicas
imobiliárias, retomando a tese lefebvriana acerca do papel do espaço na reprodução da dinâmica
capitalista e problematiza as metrópoles dispersas e desiguais na fase mais recente do capitalismo
mundial, marcada pelas confluências entre o circuito imobiliário e financeiro. No plano específico,
Carmen Cristina Fernandes do Amaral investiga como as tensões e disputas em torno do ambiente
construído e do direito à moradia concretizam-se no Bairro de Mãe Luiza, em Natal, que concentra
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 291-295, jul/dez 2012
293
Apresentação
grande número de assentamentos precário-informais e que se transforma, em função da sua
localização e do crescimento do turismo, em objeto de interesse do mercado imobiliário formal.
Jorge Gonçalves, Antônio Costa e Luís Sanchez Carvalho discutem, no bojo da reestruturação do
capitalismo ibérico, os limites e potencialidades de um esforço de “relançamento” da cidade de
Setúbal (Portugal), após a desindustrialização e a desestruturação da oferta de serviços públicos de
um Estado há muito em crise.
No segundo bloco, seguem dois textos que analisam as dimensões materiais e
imateriais da atuação e organização do Estado sobre as favelas. Mario Sérgio Brum aprofunda
a compreensão das condições históricas, políticas e ideológicas, já estruturadas na conjuntura
democrática, a partir de uma representação do favelado como alguém marginal, sem “direito à
cidade”, que viabilizaram a política de remoção das favelas cariocas, no período de 1968-1973,
promovida pelo regime militar. Alex Ferreira Magalhães, valendo-se do cenário da urbanização e
regularização de favelas a partir do momento que esse se tornou política nacional, problematiza
o atual “estado da arte” da regulação das favelas, suas fontes materiais e seu código de valores,
dentro e fora da favela.
O terceiro conjunto de textos analisa dinâmicas territoriais e estratégias de atuação
contemporâneas do Estado em áreas metropolitanas. Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães
Souki apresentam um balanço dos 25 Planos Diretores municipais da região metropolitana de
Belo Horizonte sob o prisma do amadurecimento do processo de participação popular; enquanto
Ana Cláudia Duarte Cardoso, Marcília Regina Gama Negrão e Glaydson de Jesus Cordovil Pereira
avaliam a permanência de contradições na reprodução do espaço urbano-regional na região
metropolitana de Belém a partir da implementação do PAC e PMCMV. Silke Kapp apresenta
elementos de uma abordagem da temática habitacional elaborada no âmbito dos estudos para
o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDIRMBH), com foco na autonomia coletiva na produção do espaço cotidiano, isto é, a habitação e o
ambiente urbano na escala que chamam de microlocal.
O último bloco de textos prioriza a análise dos diversos instrumentos e políticas setoriais
na metrópole. O texto do Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas discute os desafios para
a implementação das Zonas Especiais de Interesse Especial na cidade de Fortaleza, enquanto a
contribuição de Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes avalia a aplicação
do instrumento nessa cidade no bairro específico de Lagamar. Laura Machado, Emilio Merino
Dominguez e Miroslova Mikusova discutem o potencial de o índice de Mobilidade Sustentável
subsidiar o planejamento e a gestão de mobilidade, e apontam deficiências nessa área na região
metropolitana de Porto Alegre. Por fim, Simaia do Socorro Sales das Mercês apresenta um primeiro
balanço do Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) na região Metropolitana de Belém, com
ênfase nas questões de localização e produção do espaço urbano-metropolitano, inclusive à luz
dos resultados do PAC-urbanização.
294
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 291-295, jul/dez 2012
Apresentação
A leitura dos textos nesta edição estimula-nos a refletir sobre os limites e potencialidades
para a construção de representações alternativas, assim como uma práxis transformadora para
a vida na metrópole. Nesse sentido, são inegáveis os desafios associados à montagem de uma
“utopia concreta” para a metrópole, que não apenas passa pela articulação de escalas políticas,
circuitos econômicos (primário, secundário, terciário etc.) e de tempos (pois, no capitalismo de
débito e crédito, a renda associada ao trabalho futuro já foi hipotecada), mas também pela
elaboração de estratégias discursivas e práticas espaciais contra-hegemônicas em tempos de
globalização neoliberal.
Jeroen Klink
Orlando Alves dos Santos Jr.
Organizadores
Cadernos Metrópole
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 291-295, jul/dez 2012
295
Capital volátil, cidade dispersa,
espaço segregado: algumas notas sobre
a dinâmica do urbano contemporâneo*
Volatile capital, dispersed city, segregated space:
some notes on the dynamics of the contemporary urban
Adriano Botelho
Resumo
Nas últimas décadas, o modo de produção capitalista tem passado por importantes transformações,
dentre as quais se destacam a maior mobilidade e
flexibilidade de um capital crescentemente desregulado e financeirizado. Nesse contexto, um novo
espaço, consumido e produzido pelo capital em
mutação, surge, caracterizado pela urbanização
do planeta, na qual se destacam as grandes metrópoles dispersas e marcadas pela segregação. O
presente artigo tem por objetivo tratar algumas das
relações entre as transformações do capitalismo
contemporâneo e a produção do espaço, elemento
cada vez mais estratégico para a reprodução do capital financeirizado.
Abstract
Palavras-chave: capital financeiro; produção do
espaço; urbanização; cidade dispersa; segregação
socioespacial.
Keywords:
financial capital ; space
production; urbanization; sprawl; socio-spatial
segregation.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012
In the last decades, capitalism has been
undergoing important transformations, among
which we highlight the greater mobility and
flexibility of an increasingly deregulated and
financialized capital. In this context, a new
space, consumed and produced by this capital
in mutation, has emerged, characterized by the
world’s urbanization, in which we can highlight
the large dispersed and segregated metropolises.
This paper aims to deal with some of the relations
between the transformations in contemporary
capitalism and space production, an element
that is becoming more and more strategic to the
reproduction of the financialized capital.
Adriano Botelho
Introdução
O desenvolvimento do ambiente construído
possui estreita relação com as transformações
observadas no modo de produção capitalista.
A maior mobilidade do capital, sua expansão
geográfica, ainda que em pontos selecionados
do planeta, a “compressão espaço-temporal”
(Harvey, 1993) derivada nas revoluções nos
meios de transporte e de comunicações, o processo de crescente financeirização dos circuitos
do valor, acompanhada pela desregulamentação dos mercados, que se tornam altamente
instáveis e voláteis, são alguns dos elementos
que caracterizam esse modo de produção nas
últimas décadas e que constituem parte de sua
resposta à crise econômica iniciada na década
de 1970. Tais transformações têm seu correlato espacial: a dispersão do tecido urbano, o
aprofundamento do processo de segregação
socioespacial e a constante degradação da vida
nas grandes cidades do planeta. Pois, como nos
lembra Indovina (1982), a crise da sociedade é
também uma crise da cidade.
O presente artigo tem por objetivo relacionar os recentes movimentos de transforma-
com a acumulação do capital, até o ponto em
que é difícil extirpar uma da outra”.
Grandes operações de rearranjo urbanístico são levadas a cabo pelo Estado, atendendo
a interesses privados ligados ao capital monopolista, com a finalidade de criar novos espaços
que sirvam à lógica da reprodução capitalista.
A desregulamentação crescente do mercado,
um dos pilares do credo neoliberal hegemônico
nas políticas econômicas das últimas décadas,
tem, por sua vez, sua contraparte espacial: a
dispersão do espaço construído, a proliferação
de áreas cercadas e de acesso restrito, a segregação dos mais pobres em áreas distantes dos
centros de produção, consumo e lazer.
No próximo item do presente artigo, serão tratadas algumas das recentes transformações no modo de produção capitalista, que culminam na predominância do capital financeiro
e de sua expressão mais atual: a instabilidade
dos mercados. Em seguida, serão estudados
dois fenômenos inter-relacionados entre si e
com a dinâmica do capital: a dispersão do tecido urbano e a segregação socioespacial. E, por
fim, serão apresentadas as considerações finais
do presente artigo.
ção do capital, sobretudo sua financeirização
e sua desregulamentação, com a dinâmica
urbana de dispersão e de aprofundamento da
segregação socioespacial, em um contexto
em que a produção e o consumo do espaço
passam a ser elementos estratégicos para a
acumulação do capital, acumulação que é cada
A dinâmica do capital
contemporâneo:
financeirização
e desregulamentação
vez mais dependente dessa produção e desse
consumo (Lefebvre, 1999). Segundo Harvey
Segundo Belluzzo (1997, p. 184), escrevendo
(2010, p. 146), a produção do urbano, onde
na década de 1990, “mudanças relevantes
vive a maior parte da população mundial ho-
vêm ocorrendo no mercado mundial, nas for-
je, “tornou-se mais estreitamente entrelaçada
mas de organização empresarial, nas normas
298
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Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado
de competitividade, para não falar das trans-
Os novos sistemas financeiros imple-
formações na órbita financeira e monetária, de
mentados a partir de 1972 mudaram o equilí-
longe as mais significativas”. Tais mudanças
brio de forças em ação no capitalismo global,
foram uma resposta à crise vivenciada pelos
dando muito mais autonomia ao sistema ban-
países capitalistas a partir da década de 1970,
cário e financeiro em comparação com o finan-
quando um novo conjunto de estratégias in-
ciamento corporativo, estatal e pessoal (Harvey,
terligadas de reprodução do capital passou a
1993). O capital financeiro passou a ser, então,
tomar forma. Problemas de rigidez nos merca-
um fator decisivo nas estratégias de reprodu-
dos, nos investimentos, nas formas de produ-
ção do capital. Ao lado da explosão de novos
zir e nas relações entre o capital e o trabalho
instrumentos e produtos financeiros, observou-
passaram a emperrar a acumulação, marcada
-se um incremento dos valores transacionados
por duas décadas de crescimento vigoroso no
no mercado financeiro mundial.
pós-Segunda Guerra. Medidas de flexibiliza-
O peso do capital financeiro na maior
ção das atividades no interior das fábricas,
economia do planeta, a dos Estados Unidos,
de liberalização dos mercados financeiros, de
é ilustrativo de sua importância e magnitude
desregulamentação da economia (com espe-
no modo de produção capitalista contempo-
cial desmantelamento das regulamentações
râneo. Segundo o informe “Financial Crisis
do mercado de trabalho), uniram-se ao fim dos
Inquiry Report” do Congresso norte-americano
compromissos historicamente assumidos entre
(Financial Crisis Inquiry Comission, 2011), em
o Estado, o capital corporativo e os sindicatos
2006, os lucros do setor financeiro nos Estados
nos países economicamente desenvolvidos pa-
Unidos representavam 27% do total de lucros
ra superar os problemas de rigidez enfrentados
auferidos por todas as corporações do país. E
pelo capital. Nesse contexto, “a inovação nos
os chamados commercial papers (notas pro-
sistemas financeiros parece ter sido um requisi-
missórias, emitidas por sociedades por ações,
to necessário para superar a rigidez geral, bem
destinadas à oferta pública), que em 1980,
como a crise temporal, geográfica e até política
somavam US$125 bilhões, chegaram à cifra de
peculiar em que o fordismo caiu no final da dé-
US$1,6 trilhão em 2000 (idem).
cada de 60” (Harvey, 1993, p. 184).
As condições políticas para a liberaliza-
O advento da maior importância do ca-
ção dos mercados financeiros (mas também
pital financeiro está intimamente ligado ao
comerciais, de investimentos externos diretos e
aumento de sua mobilidade em suas diversas
de trabalho) foram reunidas, em primeiro lugar,
formas e à sua expansão geográfica, através
nos Estados Unidos de Ronald Reagan e no Rei-
de praças financeiras offshore (chamadas de
no Unido de M. Tatcher, com a chamada “revo-
paraísos fiscais) e da transnacionalização cres-
lução conservadora” (Chesnais, 1997) por eles
cente de empresas e bancos ocorrida a partir
levada a termo, como resposta ao fracasso das
de fins da década de 1960 e intensificada a
políticas keynesianas de retomada da deman-
partir da crise capitalista da década de 1970
da, à estagflação do final da década de 1970
(Hymer, 1983).
e à vontade de acabar com as condições que
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299
Adriano Botelho
ainda permitiam aos assalariados defenderem
de seus clientes por meio da especulação que
seu poder de compra e suas conquistas sociais.
se dá em nível internacional e num ritmo cada
Segundo Martin & Schumann (1998, p. 72), “foi
vez mais desenfreado.
por ação política e legislação direcionada, de
Esses agentes financeiros buscam, in-
parte dos governos democraticamente eleitos,
cansavelmente, para sua própria sobrevivên-
que se desenvolveu o sistema econômico ho-
cia, melhores oportunidades para aplicar seus
je independente chamado mercado financeiro
recursos. Essas oportunidades foram, em gran-
global”. A liberalização dos mercados financei-
de parte, atendidas pelos governos que busca-
ros correspondeu à necessidade dos governos
vam formas de financiamento pouco traumá-
de financiarem suas dívidas e seus déficits de
ticas em termos de custos políticos por meio
forma não inflacionária (sem recorrer à emissão
da emissão de títulos de dívidas (também
de moeda) ou sem efetuarem grandes ajustes
chamada de securitização1 da dívida pública).
políticos em um contexto de crise econômica.
Trata-se da substituição do empréstimo con-
Os avanços tecnológicos nas comunica-
vencional (tradicionalmente conduzido pelos
ções de larga distância (através de satélites,
bancos) pela emissão de bônus e outros títulos
fibra ótica, etc.) também contribuíram para
públicos comercializáveis. E a partir desses tí-
manter as diversas praças financeiras conecta-
tulos, surge um grande número de instrumen-
das entre si em tempo real por via eletrônica e
tos para minimização dos riscos, chamados
para o surgimento de novos produtos e mer-
geralmente de derivativos, podendo ser swaps,
cados financeiros (Harvey, 1993). As atividades
opções em datas futuras, contratos de com-
em bolsas de valores e mercados futuros ope-
pra e venda, etc. O fundamento de todos eles
ram hoje praticamente vinte e quatro horas por
é o mesmo, apesar da aparente diversidade e
dia, tirando proveito dos fusos horários entre
confusão causada por tantos nomes difíceis:
os distintos mercados e das informações (corri-
eles seriam instrumentos de proteção (hedge),
queiras ou privilegiadas) obtidas pela moderna
“que buscam neutralizar os riscos de perda
infraestrutura de conexão das diversas praças
de rendimento e/ou de capital, dada a vola-
financeiras. Paralelamente à maior disposição
tilidade dos ativos financeiros securitizados”
dos governos de importantes países capita-
(Belluzo, 1997, p. 176).
listas em liberar seus mercados financeiros,
Tal forma de financiamento, pela libe-
cujo melhor paradigma são os Estados Unidos
ralização dos fluxos financeiros e de sua au-
e o Reino Unido, ocorreu um crescimento do
tonomização diante do capital bancário le-
poder de novos agentes no mercado finan-
vou, entretanto, a uma maior instabilidade do
ceiro global, ao lado dos tradicionais bancos,
mercado financeiro internacional e da própria
como os fundos de investimento, os fundos
dinâmica de acumulação capitalista (Harvey,
de pensão, os grupos de seguros e os conglo-
1993). Com a crescente securitização dos títu-
merados financeiros (ligados a grandes cor-
los de dívidas e de financiamento, observa-se
porações). No caso dos três primeiros, seus
o aumento da liquidez e da mobilidade dos
recursos são provenientes da poupança das
mercados financeiros, ou seja, a facilidade de
famílias, e eles buscam maximizar os ganhos
entrada e saída das posições assumidas pelos
300
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Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado
agentes financeiros, bem como a profundidade
intervenção no espaço urbano das empresas do
dos mercados secundários e de derivativos, que
setor imobiliário se amplia, garantindo recursos
assumem grande porte, garantindo elevado
necessários tanto para a superação da barreira
grau de negociabilidade aos papéis de distin-
colocada pelos altos preços da terra urbana nas
tas características, denominações monetárias e
áreas mais valorizadas, quanto para a disper-
prazos de maturação. O exemplo mais recente
são do risco de financiamento aos comprado-
do chamado subprime no mercado financeiro
res e para a aceleração do tempo de rotação
norte-americano é elucidativo de como os de-
do capital no setor da construção. Abre-se a
rivativos, muitas vezes de alto risco, assumiram
possibilidade de execução de projetos de maior
importância no mercado financeiro contempo-
escala, mais complexos e de uso múltiplo, e,
râneo. A remuneração oferecida por esses pa-
com o auxílio de um capital autonomizado, a
péis passa a ser central no processo de avalia-
apropriação da renda resultante da valorização
ção capitalista da riqueza. O capital financeiro
dos empreendimentos torna-se viável.
se diversifica, se complexifica e assume cada
Diante da crise econômica das últimas
vez mais importância para a reprodução e para
décadas, o planejamento urbano e o urbanis-
o cálculo de rentabilidade do capital em geral
mo adquirem uma nova função – não mais
(que se financeiriza, dessa forma), expandindo-
restrita à regulamentação das ações do setor
-se para outros setores da economia contem-
privado –, ligada à promoção do crescimento
porânea, como o imobiliário.
econômico, baseada nas atrações de investi-
A constituição de fundos de investimen-
mentos em setores de alta tecnologia, serviços
tos imobiliários, a securitização de proprieda-
e/ou eventos, como forma de inserir-se em uma
des e os títulos derivados de contratos hipo-
lógica global de competição inter-metropolita-
tecários são importantes elos de ligação entre
na. Essa postura dos poderes públicos munici-
o capital financeiro e o imobiliário. Os fundos
pais é chamada por Harvey (1996) de “empre-
de investimento têm por objetivo reunir capital
sariamento urbano”, caracterizado pelo apelo
para realização de novos projetos, geralmente
à racionalidade do mercado e da privatização
de uso misto e de alto padrão, e/ou compra de
e baseado na constituição de parcerias entre
imóveis para extração da renda por eles gera-
o setor público e o privado para execução de
da. A securitização, por sua vez, transforma a
projetos de atração dos fluxos de investimen-
propriedade imobiliária em ativos mobiliários,
to e de consumo. Os projetos urbanísticos do
possibilitando uma mais rápida circulação do
capital financeiro globalizado têm por objetivo
capital do setor da construção. Já os derivativos
a criação da cidade como cenário, esterilizada,
de títulos hipotecários (subprime) permitem aos
livre de contradições e do perigo, com ruas res-
originadores desses títulos, após sua venda no
tauradas e “yuppieficadas”, transformando-se
mercado, recuperar o valor investido e lançá-lo
em um “espaço urbano imaginário de um fil-
uma vez mais no sistema financeiro, como cré-
me da Disney” (Hall, 1996, p. 361). Exemplos
dito para novos tomadores de empréstimos.
de tal “utopia” do urbanismo contemporâneo
Com a criação dos novos instrumentos
são os projetos (privados, mas que contam com
de captação de recursos financeiros, o poder de
importantes fundos públicos) de remodelação
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Adriano Botelho
e revalorização de áreas urbanas degradas, co-
bancos em busca de maior rentabilidade. A
mo antigas instalações portuárias (Port Vell em
compra desses papéis de alto risco pelas ins-
Barcelona, Docklands em Londres ou Puerto
tituições financeiras permitia que recursos fos-
Madero em Buenos Aires) ou fabris.
sem lançados uma vez mais no mercado para
Dessa forma, o ambiente construído pas-
serem novamente emprestados. Trilhões de dó-
sa a inserir-se crescentemente nos circuitos fi-
lares em hipotecas de risco foram incorporados
nanceiros do capital. O circuito do imobiliário
ao sistema financeiro norte-americano (e via
foi durante muito tempo um setor subalterno,
grandes instituições, também ao mundial), na
subsidiário, e paulatinamente se converteu em
medida em que títulos derivados dessas hipote-
um setor paralelo, destinado a inserir-se no cir-
cas eram “embalados”, “reembalados” e ven-
cuito de reprodução capitalista, podendo, inclu-
didos a investidores ao redor do mundo como
sive, tornar-se o setor principal se o circuito de
ativos livres de risco, segundo as agências de
reprodução capitalista, baseado na produção-
classificação (Financial Crisis Inquiry Comission,
-consumo, se vê interrompido por algum moti-
2011). Quando a “bolha” financeiro-imobiliária
vo conjuntural ou mesmo estrutural (Lefebvre,
explodiu em 2007-2008, centenas de bilhões
1976). Os capitais buscam, assim, um circuito
de dólares em perdas em hipotecas e em de-
alternativo, que se torna, nas últimas déca-
rivativos de créditos imobiliários ameaçaram a
das, fundamental para a cumulação capitalis-
própria existência não só das maiores institui-
ta (Harvey, 2010), baseado na mercantilização
ções financeiras norte-americanas e europeias,
da terra e do habitat, anexo com respeito ao
mas também de todo o sistema bancário. A
circuito mais tradicional de produção-consumo
crise atingiu dimensões sistêmicas nos Estados
de mercadorias. Essa mercantilização, na atual
Unidos em setembro de 2008, com a falência
fase do capitalismo, passa por um processo de
do Lehman Brothers e o iminente colapso da
crescente financeirização, que, por sua vez, tem
“Amerivan International Group” (AIG). Para
como resultado o aumento da instabilidade no
evitar a quebra do sistema financeiro do país,
setor imobiliário.
o governo norte-americano acabou por intervir
O melhor exemplo desse fenômeno pode
no sistema bancário, injetando trilhões de dó-
ser observado na chamada “crise do subprime”
lares (o que não levou, entretanto, devido ao
de 2007. A tendência altista nos preços de
lobby do setor, à sua maior regulamentação).
imóveis nos Estados Unidos até 2006 e a alta
O mercado imobiliário, por sua vez,
liquidez no mercado internacional incentiva-
sofreu expressivo impacto, com paralisação
ram empréstimos hipotecários para tomadores
das vendas, execução de processos de despe-
com pior histórico de crédito e renda inferior à
jo, atingindo principalmente os setores mais
média pela qual tais empréstimos eram tradi-
vulneráveis da sociedade norte-americana
cionalmente concedidos pelos agentes finan-
(Reuters, 2008; Harvey, 2010) e queda vertigi-
ceiros.2 Como tais empréstimos representavam
nosa nos preços. Segundo relatório do Con-
maior risco, pagavam taxas de juros mais altas,
gresso dos Estados Unidos (Financial Crisis
o que os tornava mais atrativos para gestores
Inquiry Comission, 2011), cerca de quatro mi-
de fundos de pensão, de investimentos e de
lhões de famílias norte-americanas perderam
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Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado
suas casas, outras quatro milhões e meio en-
exemplo, é responsável por 40% da demanda
traram em processo de perda de suas hipotecas
do total de aço produzido na China (Cárdenas,
ou apresentavam atrasos significativos em seus
7/10/2011). Na Índia, igualmente, estaria ocor-
pagamentos. O prejuízo estimado no estoque
rendo uma diminuição dos lançamentos de no-
de riqueza imobiliária residencial ao longo da
vos projetos em virtude da diminuição da de-
crise de 2007-2008 é de quase onze trilhões
manda conjugada com menor oferta de crédito,
de dólares, segundo o informe. Extensas áreas
gerada pela desconfiança dos bancos locais em
urbanas norte-americanas sofrem, desde então,
realizar empréstimos em um contexto de crise
processo de degradação, em virtude da expul-
financeira internacional (idem).
são dos moradores inadimplentes e criação de
vazios de ocupação.
Conclui-se, portanto, que há limites para a absorção de capitais por parte do setor
Segundo a Comissão do Congresso
imobiliário, e, considerando-se a crescente in-
norte-americano (Financial Crisis Inquiry
tegração do setor imobiliário à reprodução ca-
Comission, 2011), diferentemente de outras
pitalista, tal setor estaria cada vez mais sujeito
bolhas – como a das tulipas na Holanda no sé-
às oscilações cíclicas desse modo de produção,
culo XVII, as ações dos Mares do Sul no século
diminuindo, assim, sua margem de autonomia
XVIII, as ações de Internet no final dos anos 90
para a absorção de capitais excedentes.
do século XX – , a bolha do mercado financeiro
Dessa forma, o espaço, consumido pro-
de 2007-2008 envolveu não uma mercadoria
dutivamente nas estratégias de acumulação
qualquer, mas a base da comunidade, da vida
capitalista é transformado, tem suas qualida-
social e da economia do país, a moradia. Não
des alteradas pelo consumo, porém, possui a
obstante, nas palavras de um agente do mer-
capacidade de, ao ser transformado, também
3
cado financeiro, teria havido uma mudança
transformar e produzir o novo; como nos lem-
cultural na sociedade norte-americana: a casa
bra Henri Lefebvre, o consumo do espaço é du-
teria de ser considerada como a moradia, o lar,
plamente produtivo na medida em que produz
para se tornar uma mercadoria.
tanto mais-valia como outro espaço (Lefebvre,
O desenvolvimento da crise ao longo de
2000). A seguir, serão analisadas duas mani-
2011 teve efeitos em dois mercados emergen-
festações desse “novo espaço”: a dispersão do
tes, considerados como as “fronteiras” da ur-
tecido urbano e a segregação socioespacial.
banização (e da acumulação) do século XX: a
China e a Índia. A queda observada, em 2011,
nos preços imobiliários do superaquecido mercado chinês, como consequência de medidas
A dispersão do tecido urbano5
oficiais de restrição ao crédito tomadas para
evitar uma aceleração inflacionária, teria como
Um amplo espectro de mudanças urbanas
resultado, além de dificuldades financeiras para
fundamentais, cujas causas tomam forma há
o setor da construção e de desenvolvimento ur-
algum tempo, teve lugar ao longo da década
4
bano, uma importante queda na produção in-
de 1980, resultando em uma transformação
dustrial do país, pois o setor da construção, por
da forma e do caráter da cidade (Sudjic, 1992).
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Adriano Botelho
Algumas dessas mudanças se relacionariam
convívio familiar mais íntimo e privado, o con-
a como as pessoas vivem, outras teriam uma
tato com a natureza e a distância com relação
influência na forma física da cidade e algumas
às tentações mundanas da cidade. Outra linha
estariam ligadas às relações entre as cidades.
sugere que o fenômeno da dispersão tem ori-
Dentre essas mudanças, uma das mais impor-
gem na suburbanização dos Estados Unidos,
tantes é o que no presente artigo se denomina
que se inicia na segunda metade do século XIX
“dispersão urbana”.
(Jackson, 1985), pela ação conjunta de agentes
Cidade dispersa (Monclús, 1998), Città
imobiliários, empresas de transporte urbano e
diffusa (Indovina, 2004), Zwischenstadt
de agentes do poder público. Há também aque-
(Sieverts, 2003), Tecnurbia (Fishman, 2004),
les que pensam o fenômeno como algo mais
Exurbia (Bruegmann, 2005), Edge City
recente, ligado às transformações ocorridas no
(Garreau, 1991), Edgeless City (Lang, 2003),
capitalismo a partir da Segunda Guerra Mun-
Limitless City (Gillham, 2002), Metápolis
dial, e que se aceleraram a partir da década de
(Ascher, 1995), Exopolis (Soja, 2000) são
1970 (Ascher, 1997; Sudjic, 1992; Soja, 2000;
alguns dos exemplos de como a literatura
Harvey, 2007).
especializada no fenômeno urbano tem tratado
Esquematicamente, é possível dividir as
a questão da dispersão. A grande profusão de
explicações sobre as causas da dispersão urba-
denominações dada ao fenômeno revela tanto
na em algumas linhas, a saber:
sua importância, como também as diferentes
a) Naturalista: o fenômeno da dispersão
percepções e concepções sobre a questão, além
seria consequência natural do crescimento das
da busca de fatores explicativos por parte dos
cidades, quando essas adquirem um certo grau
autores. A falta de consenso é, acima de tudo,
de maturidade e afluência. Os moradores das
resultado do caráter complexo da realidade
áreas centrais congestionadas passam a ter
urbana contemporânea.
a escolha de habitar em locais com menores
Para alguns autores, a dispersão é um fe-
densidades, menos poluição, custos reduzidos
nômeno que esteve presente já nos primeiros
e maiores espaços. Com o tempo, a densidade
momentos da história da cidade (Bruegmann,
populacional dessas áreas também cresce, con-
2005): as vilas dos prósperos cidadãos na Ro-
figurando um quadro de dispersão urbana;
ma antiga e os bairros construídos fora das
b) Tecnicista: segundo essa concepção, a
muralhas na Europa medieval seriam exem-
dispersão seria possibilitada pela maior mobi-
plos de como as pessoas muitas vezes prefe-
lidade proporcionada pelos avanços tecnológi-
riram edificar suas moradias a certa distância
cos nos meios de transporte e comunicações.
dos centros da cidade em épocas históricas
A carruagem no século XVIII e início do XIX, o
remotas, seja por busca de maior comodidade,
trem e o bonde, no século XIX e início do sé-
seja para fugir das imposições e controles das
culo XX, e finalmente o automóvel a partir da
autoridades. Para outros, os subúrbios tiveram
década de 1920, seriam elementos essenciais
origem na Inglaterra do século XVIII (Fishman,
na explicação do fenômeno da dispersão, ao
1987), quando as classes médias e altas bus-
proporcionarem a necessária mobilidade aos
caram no isolamento dos centros históricos o
moradores dos subúrbios, seja em direção às
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Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado
áreas urbanas centrais tradicionais, num pri-
afastadas dos centros tradicionais e a constru-
meiro momento, seja em direção aos novos
ção de conjuntos habitacionais para os mais
centros de trabalho, consumo e lazer. Por outro
pobres em áreas distantes.
lado, com a difusão da telemática nas últimas
f) Liberal : a dispersão urbana seria o
décadas do século XX, a separação entre a ges-
efeito da escolha individual e racional dos
tão e a produção, o trabalho a domicílio e a dis-
membros da sociedade. A opção pela moradia
persão geográfica dos locais de trabalho se tor-
em áreas mais afastadas seria possível a par-
naram possíveis, afetando também a estrutura
tir da democratização do sistema político, que
urbana no sentido de uma maior dispersão;
daria maior liberdade de escolha às famílias; da
c) Culturalista: a dispersão teria como
prosperidade causada pelo crescimento econô-
causa principal um sentimento antiurbano, li-
mico; e da mobilidade garantida pelos meios
gado a um ferrenho individualismo e à busca
de transporte.
por vizinhanças homogêneas, dominante em
As linhas explicativas listadas acima
algumas sociedades, notadamente as anglo-
não esgotam as formas possíveis de compre-
-saxônicas. Com a expansão do american way
ender o fenômeno, e cada uma delas, tomada
of life, o padrão de moradia suburbana dos Es-
individualmente, mostra-se insuficiente para
tados Unidos passaria a ser adotado por outras
dar conta da explicação da dispersão urbana,
sociedades da Europa, Ásia e América Latina.
pois no caso de um fenômeno complexo como
d) Economicista: o crescimento urbano
esse, não haveria uma relação simples entre
seria consequência das atividades econômicas,
causa e efeito. Ao contrário, existiriam “inu-
e a dispersão seria efeito direto da falta de re-
meráveis forças, sempre agindo umas sobre as
gulação predominante no modo de produção
outras de maneiras complexas e imprevisíveis”
capitalista. No capitalismo, a busca pelo bem
(Bruegmann, 2005, p. 112).
individual por parte dos compradores e ven-
A dispersão urbana corresponderia
dedores levaria a uma situação marcada pela
a uma mudança de escala do urbano, mu-
especulação imobiliária e espalhamento, que
dança essa que teria relação com a pró-
beira à irracionalidade no uso dos recursos na-
pria mudança de escala na acumulação
turais, da superfície edificada;
do capital. Segundo Harvey (2007; 2010), as
e) Estatista : o Estado seria um agente
reformas de Paris por Haussmann no século
fundamental para a compreensão da disper-
XIX, a suburbanização dos Estados Unidos no
são urbana, por meio de uma série de ações,
pós-Segunda Guerra e a urbanização chinesa
algumas vezes contraditórias entre si, tais co-
do início do século XXI seriam formas de ab-
mo: a concessão de subsídios e financiamen-
sorver o superávit de capital existente em de-
to aos moradores dos subúrbios, a falta de
terminado momento histórico. E quanto maior
controle sobre a ação dos agentes privados,
o superávit, maior a escala da urbanização
o zoneamento e o planejamento que garan-
necessária. Trata-se de um fenômeno mundial,
tiriam a desejada homogeneidade funcional
atingindo, em diferentes momentos, diversas
nos subúrbios, a oferta de infraestrutura viária
sociedades, mas que não se restringe a deter-
que garantiria a acessibilidade às áreas mais
minações culturais ou geográficas.
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Os empreendimentos de grande esca-
para a aquisição e a comunicação de informa-
la – escritórios, shopping centers, hotéis, con-
ções entre as empresas (Choay, 2004). A des-
domínios de luxo –, ligados ao capital finan-
concentração de atividades produtivas e de
ceiro mundializado, moldam o tecido da cidade
investigação científico-tecnológica também
contemporânea. Na sua versão mais atual, o
contribui para tornar as áreas dispersas mais
desenvolvimento de empreendimentos imobi-
atraentes para uma população trabalhadora de
liários pode ser caracterizado pela internacio-
nível médio e de alta qualificação.
nalização e corporatização (Sudjic, 1992). As
Há, entretanto, autores (Jackson, 1985;
estruturas de emprego e produção, de comércio
Barnett, 1995; Bruegmann, 2005) que chamam
e moradia passam por transformações profun-
a atenção também para os aspectos contradi-
das nas últimas décadas, contribuindo para a
tórios da dispersão do tecido urbano, devido ao
produção de um espaço urbano cada vez mais
consumo exagerado de terras, água, energia,
amplo, disperso e em grande escala.
seus custos de instalação de infraestrutura e
A securitização da propriedade e a for-
falta de planejamento e controle.
mação de fundos de investimentos imobiliários
A dispersão urbana pode ser caracteri-
são instrumentos que permitem, como visto, a
zada, segundo pesquisa coordenada por Reis e
potencialização da ação dos agentes urbanos.
Tanaka (2007; 2009): a) pelo espaçamento dos
Paralelamente à maior inserção do capital nos
tecidos urbanos dos principais centros; b) pe-
circuitos financeiros, ocorre a financeirização
la formação de constelações ou nebulosas de
do mercado imobiliário, e a falta de regula-
núcleos urbanos de diferentes dimensões, inte-
mentação, a volatilidade e a mobilidade dos
grados em uma área metropolitana ou em um
mercados financeiros têm como contrapartida
conjunto ou sistema de áreas metropolitanas;
a desregulamentação do mercado e do finan-
c) pela transformação de um sistema de vias
ciamento imobiliário (Botelho, 2007). Quanto
de transporte diário inter-regional, ferroviário e
maior o controle na produção imobiliária (e,
rodoviário, em apoio ao transporte diário intra-
particularmente, a habitacional) pela lógica do
metropolitano de passageiros; d) pela adoção
mercado, maior será o nível de fragmentação e
de modos metropolitano de consumo, também
de segregação socioespacial na cidade, já que
este disperso pela área metropolitana ou siste-
só os que podem pagar poderão ter acesso ir-
ma de áreas metropolitanas.
restrito ao que Henri Lefebvre (1999) chamou
Como sugere Indovina (2004), o modo
de “as positividades do urbano”, sem que isso
de os indivíduos e das famílias relacionarem-se
signifique, para esses privilegiados, uma ver-
com a cidade não constitui nem uma constan-
dadeira fruição dessas positividades – dado o
te, nem uma determinação “natural”, mas sim
clima de tensão, medo e insegurança reinante
um produto cultural e político. O marketing e
nas grandes metrópoles.
a ideologia utilizados pelos agentes imobiliá-
Mudanças tecnológicas permitem, igual-
rios urbanos, por sua vez, buscam convencer
mente, a dispersão dos empreendimentos, co-
os consumidores de que há novas necessidades
mo a compressão do tempo necessário para
(como a segurança privada, o “contato com a
os deslocamentos em autopistas, assim como
natureza”, a existência de certos equipamentos
306
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Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado
de uso coletivo no interior dos empreendi-
para os mais pobres, significa morar em casas
mentos, etc.) a serem satisfeitas, geralmente
autoconstruídas em loteamentos quase sem-
em áreas de expansão dispersa da cidade, ou
pre irregulares, sem infraestrutura e equipa-
seja, distantes das áreas de centralidade tra-
mentos adequados, distantes das opções de
dicionais. Por outro lado, o centro das cidades
emprego, consumo e lazer.
passa a ser visto como o lugar da violência,
A questão da segregação socioespa-
da sujeira, do barulho, entre outros elementos
cial, por sua vez, também se complexifica,
degradantes. Busca-se então o isolamento em
pois os empreendimentos alavancados pelo
áreas fechadas (loteamentos ou condomínios),
grande capital (principalmente condomínios
fenômeno presente na metrópole de São Paulo
residenciais de alto padrão e centros empre-
(Caldeira, 2000), mas não restrito à realidade
sariais) muitas vezes encontram-se isolados
brasileira, como se pode observar em Los Ange-
de seu entorno, formado por áreas pobres ou
les, Berlim, Nova York (Marcuse, 2004), Buenos
de favelas, tornando-se verdadeiros “enclaves
Aires (Svampa, 2001), entre outras cidades do
fortificados” (Caldeira, 2000), que adotam
mundo. Mas não se trata somente da dispersão
sofisticadas técnicas de distanciamento e divi-
da moradia. Outras formas de construção, des-
são social, constituindo o cerne de uma nova
tinadas à produção e ao consumo, como “con-
maneira de organizar a segregação, a discrimi-
domínios” industriais, áreas de lazer, centros
nação social e a reestruturação econômica nas
comerciais, entre outros, também fazem parte
metrópoles. Dessa forma, “diferentes classes
da urbanização dispersa.
sociais vivem mais próximas umas das outras
Por outro lado, somando-se à dispersão
em algumas áreas, mas são mantidas separa-
das atividades produtivas e da moradia das ca-
das por barreiras físicas e sistemas de identifi-
madas de renda média e alta da população, há
cação e controle” (Caldeira, 2000, p. 255). Os
também a dispersão da sua parcela mais po-
enclaves são pontos opostos à idéia de cidade
bre, que é a maioria, concentrada em bairros
e de urbano, representados no imaginário do
com precária infraestrutura urbana e de difícil
marketing imobiliário como um mundo dete-
acesso, com graves problemas de regulariza-
riorado, no qual há poluição, violência, confu-
ção fundiária e gestão administrativa. É a mão
são e ... mistura!
de obra barata utilizada na construção civil, na
indústria, no terciário em geral, nos serviços
domésticos, etc. No caso de países marcados
pela iniquidade social, como o Brasil, as for-
A segregação socioespacial
mas nas quais a dispersão se materializa se
revelaria ainda mais perversa para a vida ur-
Paralelamente à crescente união do capital fi-
bana: para os mais ricos, a dispersão significa
nanceiro com o imobiliário, que afeta, em gran-
a reclusão em condomínios murados, a depen-
de medida, tanto a estrutura quanto o tecido
dência do automóvel, a perda de preciosas ho-
urbano das grandes metrópoles, observa-se o
ras no trânsito, o confinamento em shopping
aprofundamento do processo de segregação
centers e o abandono dos centros históricos;
socioespacial nas metrópoles. O capital flexível
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307
Adriano Botelho
e livre de regulamentações materializa-se em
etc.) – o subequipamento dos conjuntos “operá-
um espaço urbano marcado por grandes em-
rios” opondo-se a “superequipamento” dos con-
preendimentos de uso misto, cercados e iso-
juntos burgueses;
lados das áreas de residência e circulação dos
●
segregação no nível do transporte domicí-
mais pobres. A distância física entre as duas
lio-trabalho – a crise dos transportes coletivos
rea lidades pode ser ínfima, mas a distância
para o “operariado” contrastando com os privi-
econômica e social é praticamente intranspo-
légios “burgueses” do uso do automóvel.
nível, simbolizada por muros e aparatos de segurança privada.
A lista acima que não esgota as formas
de segregação socioespacial observadas no ur-
Para Lipietz (1974), existiria uma hie-
bano, que também sofre um processo de trans-
rarquia de usos do solo determinada pelo
formação e complexificação, mas serve para
valor de uso da centralidade (ou qualquer
dar uma ideia geral de como o modo de produ-
outra particularidade do lugar) e pela capa-
ção capitalista, em sua lógica de acumulação,
cidade dos usuários de pagar, e o mecanismo
contribui para a produção de um espaço cada
da renda da terra estabilizaria e reproduziria
vez mais fragmentado e segregador.
essa hierarquia em sua coincidência com uma
Topalov, analisando os trabalhos de pes-
Divisão Social e Econômica do Espaço. Ainda
quisa sobre a região parisiense desde 1954, em
segundo o mesmo autor, o mecanismo da ren-
obra publicada na década de 1980 (Topalov,
da seria um instrumento econômico de repro-
1984), chega à conclusão de que dois tipos de
dução da divisão social e econômica do espa-
práticas do espaço urbano se opõem claramen-
ço, assegurando a adequação dos usos do solo
te, com dois polos de estratificação social: o
e das classes sociais aos distintos lugares do
das camadas superiores e o dos trabalhadores.
aglomerado urbano.
Para ele, cada uma dessas categorias possui
Entre as formas de segregação, Jean
um espaço próprio, fortemente segregado um
Lojkine (1997, p. 189 e 244-245) destaca as
do outro. As camadas intermediárias, ao con-
seguintes:
trário, não possuem um espaço que lhes seja
●
a oposição entre o centro, onde o preço do
solo é mais caro, e a periferia;
particular: nisso residiria sua especificidade.
Segundo esse autor, os “belos bairros”
separação entre zonas e moradias reser-
das camadas superiores não o são somente
vadas às camadas sociais mais privilegiadas e
nas representações coletivas, mas também na
zonas de moradia popular;
materialidade dos meios de consumo que es-
●
esfacelamento generalizado das “funções
tão disponíveis; os privilégios espaciais estão
urbanas”, disseminadas em zonas geografica-
relacionados com a oferta de equipamentos
mente distintas e cada vez mais especializadas
urbanos (Topalov, 1984). Para ele, o espaço
(zonas de escritórios, zonas residenciais, zona in-
das camadas superiores é objetivamente dife-
dustrial, etc.). É o que a política urbana sistema-
rente. Essas diferenças resultam dos processos
tizou e racionalizou sob o nome de zoneamento;
de produção material: predomínio massivo das
segregação no nível dos equipamentos cole-
formas mais capitalistas de construção das ha-
tivos (creches, escolas, equipamentos esportivos,
bitações, privilégios por longos períodos em
●
●
308
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Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado
matéria de infraestruturas e de equipamentos
uso social (Lojkine, 1997). Existiria, assim, “uma
públicos de consumo coletivo e concentração
segregação espacial e social fundamental entre
“espontânea” dos serviços requeridos por uma
o espaço urbano “central” monopolizado pelas
clientela altamente solvente em termos mone-
atividades de direção dos grandes grupos capi-
tários. Esses processos tendem, pelo jogo dos
talistas e do Estado e as zonas periféricas onde
preços, a operar a segregação espacial que
estão disseminadas as atividades de execução
requer a legibilidade simbólica dos espaços. A
assim como os meios de reprodução empobre-
concentração espacial das camadas superiores
cidos, mutilados, da força de trabalho” (Lojkine,
opera uma transformação qualitativa de con-
1997, p. 172).
teúdo dos equipamentos públicos e dos equi-
Nesse processo de formação de um es-
pamentos comerciais privados, tornando-os
paço urbano segregado, o Estado possui um
mais seletivos. A especificidade do espaço das
papel importante, pois, como lembra Peter
camadas superiores é signo de distinção social,
Marcuse (2004), nenhum mercado “privado”
participa do sistema de expressão e de reite-
poderia funcionar se o Estado não sancionas-
ração simbólica da hierarquia das situações de
se as cláusulas contratuais e administrasse os
classe. As camadas superiores e as camadas
remédios para sua quebra, estando, pois, no
populares se excluem no espaço pelo proces-
âmbito dos poderes mais abrangentes do Esta-
so de expulsão derivado do preço cobrado pelo
do a permissão ou a proibição da segregação.
uso do espaço.
Por outro lado, áreas selecionadas pelo capital
As zonas de emprego dos trabalhadores
financeirizado para valorização nas metrópoles,
se transformam ao ritmo das mudanças nos
tradicionais ou emergentes, são, quase sempre,
processos produtivos. Cada fase da divisão
obtidas pela ação estatal de “realocação” (vio-
capitalista do trabalho induz à formação de
lenta, em mais de um sentido) de moradores de
espaços produtivos que lhes correspondem, e
baixa renda.6
transforma profundamente a estrutura urbana,
A crescente inserção do imobiliário no
notadamente as condições de residência dos
mercado financeiro contribui, em boa medida,
trabalhadores (Topalov, 1984). O processo de
para aumentar o poder dos empreendedores
desindustrialização de uma área pode afetar de
sobre o urbano, mas também para intensificar
maneira intensa a coletividade que aí habita,
o processo triádico de homogeneização, frag-
desestruturando as relações de trabalho, so-
mentação e hierarquização do espaço descrito
ciais, etc. A contradição social que se desenvol-
por Lefebvre (2000).
ve no interior do espaço urbano se materializa
Para Lefebvre (1980), por homogenei-
na oposição entre, de um lado, a fração mono-
zação entende-se a repetição monótona de
polista do capital que tende a garantir para si
elementos no espaço e que conformam tal
o monopólio exclusivo do uso dos equipamen-
espaço: aeroportos, vias expressas, rodovias,
tos coletivos mais ricos, fundamentais para a
cidades verticais de concreto, cidades horizon-
reprodução ampliada do capital, e, de outro, o
tais de casas unifamiliares, etc., criando um
conjunto das camadas não monopolistas, tanto
consumo repetitivo de coisas no espaço e do
capitalistas como assalariadas, excluídas desse
espaço que engendra um tédio indelével. É um
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Adriano Botelho
espaço produzido para ser visto, com suas ca-
formas gerais e específicas: a distinção entre
racterísticas óptico-geométricas. Esse espaço
os “pontos fortes” do espaço e os centros
homogeneizado é também o locus de ligação
(de poder, de riqueza, de trocas materiais ou
das relações capitalistas mundializadas, com
espirituais, de lazeres, de informação) e as
seus pontos fortes (os centros) e as bases mais
periferias (elas também hierarquizadas, mais
frágeis e dominadas (as periferias).
ou menos afastadas de um centro principal ou
Segundo o mesmo autor, a fragmenta-
secundário, até tomar a forma de um lugar de-
ção relaciona-se com o espaço partido em es-
serto, abandonado). A dominação dos centros
paços separados, ocupados pelas funções que
sobre os espaços dominados garantiria o cará-
se exercem nesses espaços distintos: trabalho,
ter homogêneo do espaço.
moradia, lazeres, transportes, produção, consu-
Esse processo triádico de fragmentação,
mo. “O espaço – como o trabalho – se torna
homogeneização e hierarquização do espaço
parcelado: justaposição de parcelas fixadas a
apontaria para o surgimento da não cidade (ou
uma atividade parcial no qual o conjunto, o
anticidade; Lefebvre, 1991,1999), na medida
processo do habitar, escapa aos participantes”
em que intensificaria a segregação socioespa-
(Lefebvre, 1980, p. 154). Rigidamente quanti-
cial no urbano, criando obstáculos para o en-
ficado, medido em metros quadrados, como
contro e a reunião de pessoas, para o consumo
em dinheiro, esse espaço “fatiado” é entregue
coletivo de objetos, de ideias, etc. Ou seja, na
ao mercado em parcelas, quase sempre míni-
medida em que o valor de uso subordina-se ao
mas. Não se trata somente da atomização do
valor de troca e a mercadoria generaliza-se no
social em indivíduos separados, em individua-
urbano, a cidade e a realidade urbana tendem
lidades hostis e desprezíveis, mas sim da di-
a ser destruídas (Lefebvre, 1991), pois a cidade
visão quase sem limites do “continente” da
não é vivida em sua totalidade, e sim fragmen-
sociedade, continente que não é indiferente
tariamente e através de crescentes constrangi-
ao conteúdo, é o suporte das relações sociais.
mentos a seus habitantes.
Dessa forma, a fragmentação é um instrumen-
Dessa forma, a segregação socioespacial
to de poder político, pois “separa para reinar”,
torna-se a regra da urbanização contemporâ-
transformando os membros da sociedade em
nea, marcada pelo capital financeiro e desre-
indivíduos indiferentes entre si, unidos em gru-
gulamentado. As parcelas mais abonadas da
pos de interesses contrapostos, isolados por
população urbana crescentemente buscam o
barreiras visíveis e invisíveis.
isolamento em áreas fechadas (loteamentos ou
E, por fim, os espaços dissociados no
condomínios fechados, shopping centers, cen-
homogêneo se hierarquizam: espaços no-
tros empresariais e complexos de escritórios),
bres e vulgares, espaços residenciais, espa-
fenômeno presente na metrópole de São Paulo,
ços funcionais, guetos diversos, conjuntos
mas não restrito à realidade brasileira, como
de alto padrão, áreas para os migrantes e
se pode observar em Los Angeles, Berlim, Nova
para os autóctones, espaços das classes mé-
York, Buenos Aires, Lagos, Nairobi, Cidade do
dias. Em resumo, segundo Lefebvre (1980),
México, Xangai, Bombaim, Calcutá, entre ou-
ocorre a segregação. A hierarquização toma
tras cidades do mundo.7
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Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado
Por outro lado, a população mais po-
de seu nível de renda, direcionando suas per-
bre é segregada em áreas mais distantes do
cepções e vivências com relação ao espaço que
tecido urbano disperso ou nos interstícios das
habitam. O resultado, entre outros, é a produ-
áreas centrais das metrópoles contemporâ-
ção de um espaço marcado pela fragmentação,
neas, mas que são pouco valorizadas (beira
homogeneização, hierarquização, bem como
de córregos, encostas, áreas de instabilidade
pela segregação. A utopia lefebvriana do urba-
geológica, etc.), onde falta a maior parte da
no caracterizado pela reunião e pela troca pa-
infraestrutura e dos equipamentos urbanos,
rece cada vez mais distante, devido à crescente
configurando o “Planeta favela” descrito por
separação física, econômica e simbólica dos
Mike Davis (2006).
indivíduos nas metrópoles.
A nova encarnação da metrópole mundial dispersa, espalhada, e com movimento
Considerações finais
sem fim, é fundamentalmente diferente da
cidade como era conhecida até algumas décadas atrás, correspondendo à fase do capi-
Segundo Pavia (2004), o rechaço ao crescimen-
talismo financeirizado, marcado pela extrema
to urbano, tanto no plano social como no plano
mobilidade, volatilidade e desregulamenta-
estético, seria “o exemplo mais evidente dos
ção, e por que não, pela crise. A paisagem ur-
medos que invadem a disciplina urbanística”
bana é, então, caracterizada pela proliferação
(Pavia, 2004, p. 105). Tal temor não seria de
de projetos de alto padrão inspirados em um
hoje, tendo origens na concepção renascentis-
urbanismo excludente; pela degradação de
ta da cidade como forma fechada, geométrica,
áreas que sofrem processo de desindustrializa-
limitada. Uma cidade concebida como sistema
ção derivado da maior mobilidade do capital
unitário, no qual todas as partes estariam re-
industrial; pela formação de metrópoles nos
lacionadas. Ainda segundo esse autor, o medo
países emergentes nas quais as condições ha-
do crescimento urbano se torna obsessivo com
bitacionais precárias são a regra para a maior
o triunfo da cidade capitalista. É justamente
parte da população; e, igualmente, pela proli-
quando o desenvolvimento da produção e da
feração de bolsões de pobreza nos países mais
circulação das mercadorias parece poder asse-
ricos, marcados pelo desemprego massivo,
gurar um crescimento ilimitado, o rechaço da
pelo confinamento dos pobres nos “bairros
grande dimensão da cidade se torna cada vez
despossuídos” de recursos públicos e privados
mais contundente. Dessa forma: “Em nível teó-
e pela estigmatização dos habitantes desses
rico e dos conteúdos operativos, o urbanismo
bolsões (Wacqant, 2007).
moderno será, desde suas origens, profundamente anti-urbano” (Pavia, 2004, p. 106).
Os teóricos, ao se posicionarem contrários à dispersão urbana dos ricos e dos
A lógica de reprodução do capital, me-
pobres – considerada irracional em termos
diada pela propriedade privada, domina a lógi-
urbanísticos, econômicos e ambientais –,
ca de reprodução dos diferentes grupos sociais,
não podem simplesmente dar as costas pa-
em maior ou menor grau, independentemente
ra o fenômeno e deixar de levar em conta as
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Adriano Botelho
transformações que afetam a vida cotidiana
empreendedores, não só para compreender o
da vasta maioria da população das áreas me-
que estaria ocorrendo com o espaço urbano
tropolitanas. Entender os efeitos positivos e
contemporâneo, mas também, e principalmen-
negativos dessas transformações seria a ta-
te, para dar uma direção mais humana, ou seja,
refa essencial daqueles que estudam o urba-
menos segregacionista e mais inclusiva, à dinâ-
no, bem como dos planejadores, arquitetos e
mica de produção e reprodução desse espaço.
Adriano Botelho
Economista e Geógrafo. Mestre e Doutor em Geografia Humana. Diplomata, servindo na Embaixada
do Brasil em Buenos Aires, Argentina.
[email protected]
Notas
(*) As opiniões con das no presente ar go são de caráter pessoal e de responsabilidade do autor.
(1) Vendrossi (2002, p. 21) define securi zação como a “emissão de tulos mobiliários com vínculo
em um determinado ativo”. Para um estudo mais detalhado da securitização de recebíveis
imobiliários, ver Vendrossi (2002).
(2) Além do “subprime”, outras modalidades de securitização de hipotecas de alto risco foram
desenvolvidas pelas ins tuições financeiras, como as baseadas nos emprés mos “ninja” (no
income, no job, no assest).
(3) Depoimento de Ângelo Mozilo, CEO da “Countrywide Financial”, à Financial Crisis Inquiry
Comission (2011, p. 4).
(4) Segundo Cárdenas (7/10/2011), o volume de dívidas e ações das empresas ligadas ao setor de
construção e de desenvolvimento urbano chinesas seria da ordem de US$19 bilhões.
(5) As ideias desenvolvidas nesse item são tributárias de minha par cipação no projeto Urbanização
dispersa e mudanças no tecido urbano – Estudo de Caso: Estado de São Paulo, do Laboratório
de Estudos sobre Urbanização, Arquitetura e Preservação da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo, coordenado pelos professores Nestor Goulart Reis e
Marta Soban Tanaka.
(6) Ver, exemplo, Harvey, 2010, pp. 178-181.
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Capital volátil, cidade dispersa, espaço segregado
(7) O fenômeno dos condomínios fechados no Brasil foi estudado no livro de Maria Teresa Pires do
Rio Caldeira, Cidade de muros – crime, segregação e cidadania em São Paulo (São Paulo, Editora
34/Edusp, 2000). Para o caso dos condomínios e comunidades fechadas nos Estados Unidos,
ver, por exemplo, Blakely, E. J. and Snyder, M. G. Fortress America – Gated Communi es in the
United States. Massachuse s, The Brookins Ins tu on Press, 1999. O caso argen no pode ser
analisado em Svampa, M. Los que ganaron: La vida en los countries y barrios privados. Buenos
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Texto recebido em 12/out/2011
Texto aprovado em 22/nov/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 297-315, jul/dez 2012
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Direito à cidade: um estudo
sobre o mercado imobiliário informal
no bairro de Mãe Luiza (Natal/RN)*
Right to the city: a study about the informal real estate market
in the Mãe Luiza neighborhood (Natal/Northeastern Brazil)
Carmem Cristina Fernandes do Amaral
Resumo
Diante da dificuldade do poder público em atender
à demanda por habitação digna e acesso ao solo
urbano da população brasileira, principalmente da
mais carente, alternativas, como a informalidade,
têm sido buscadas como o meio mais rápido e eficaz de garantir o direito à cidade àqueles de menor
poder aquisitivo. Desse modo, este artigo tem por
finalidade discutir a dinâmica imobiliária informal
de Mãe Luiza – bairro de população carente de Natal/RN – com base em dados obtidos por meio de
entrevistas por questionário, com questões abertas
e fechadas, junto a uma amostra representativa e
aleatória dos moradores do bairro, distribuídos nos
setores censitários estabelecidos pelo IBGE.
Palavras-chave: dinâmica imobiliária; informalidade; habitação; direito à cidade; Mãe Luiza.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012
Abstract
In view of the government’s poor performance
regarding provision of social housing and
improvement in the urban conditions for the
poor, informal solutions have been found by
urban dwellers in Brazilian cities, granting some
sort of urban insertion and access to the city’s
infrastructure and services. This paper aims
at discussing the informal real estate market
– especially the housing market – in a poor
neighborhood in the city of Natal, Northeastern
Brazil. It draws on data from interviews with 290
households, a representative sample of dwellers in
the Mãe Luiza neighborhood.
Keywords: real estate market; informality;
housing; right to the city; Mãe Luiza, Natal.
Carmem Cristina Fernandes do Amaral
O acesso ao solo urbano e à moradia
digna, desde que os centros urbanos passaram
a ser polos de atração de pessoas em busca
de uma melhor qualidade de vida, é um dos
solo, especulação imobiliária e, sobretudo, nas definições da legislação urbanística, desde os seus primórdios, política
segregadora e excludente. (Souza e Monteiro, 2009, p. 81)
grandes problemas enfrentados pela população de baixo poder aquisitivo, principalmente,
A cidade de Natal, capital do Rio Gran-
nas grandes cidades latino-americanas. Hoje,
de do Norte, seguindo uma tendência nacional,
um dos grandes desafios do poder público, em
vem, desde meados do século XX, experimen-
todas as suas instâncias, é prover a população
tando um acelerado processo de urbanização
mais carente de moradia em condições dignas
cujas consequências se refletem diretamente
de habitabilidade e promover o acesso ao solo
sobre a sociedade e sobre o espaço urbano,
urbano como garantia do seu direito à cidade.
que se apresenta altamente segregado. A po-
O Brasil, ao longo dos anos, tem imple-
pulação de baixo poder aquisitivo, historica-
mentado diversas políticas habitacionais; con-
mente, tem se apoiado em meios informais e
tudo estas iniciativas vêm se mostrando inca-
irregulares para ter “direito” à moradia urba-
pazes de atender à necessidade de moradia
na. É o caso de muitos moradores do bairro de
das populações de baixa renda, que, para suprir
Mãe Luiza, localizado na região administrativa
esse problema, buscaram ou buscam alterna-
Leste da cidade de Natal. Esse bairro possui
tivas que, na maioria das vezes, estão fora do
uma história baseada na ocupação de uma
que se convencionou chamar de legal ou for-
duna por migrantes vindos do interior do Esta-
mal. A informalidade dentro do mercado imo-
do, na década de 1940, que, ao se instalarem
biliário brasileiro, e não só neste, mas também
ali, iniciaram um processo de consolidação da
em outros países latino-americanos, é uma
área, como locus de resistência de uma popula-
prática comum. Muitos estudos remetem a es-
ção de baixa renda.
se problema, que não é mais uma exceção e,
O bairro, atualmente, possui quatro as-
sim, uma regra. Especialmente no Brasil, a cida-
sentamentos precários, segundo dados da
de informal tem sido um grande problema de
prefeitura, e apresenta uma dinâmica própria
cunho “social e ambiental que afeta cerca de
quanto às transações imobiliárias que aconte-
metade da população das grandes cidades no
cem ali. Dessa forma, a partir de uma pesquisa
país” (Souza e Monteiro, 2009, p. 81). As raízes
realizada em Mãe Luiza e com o objetivo de
desse problema, segundo os autores, estão na
fazer uma análise da dinâmica imobiliária do
combinação dos seguintes fatores históricos:
bairro – que é pautada na informalidade das
transações de compra, venda e aluguel de imó-
altos índices migratórios para as principais áreas urbanas, grandes desníveis
de renda na sociedade, baixos salários
da maioria da população, altas taxas de
desemprego, baixa escolaridade, atuação pública insuficiente na oferta de
habitação social e controle do uso do
318
veis –, este artigo propõe uma discussão sobre
as estratégias utilizadas por determinados grupos sociais para garantir seu direito às benesses proporcionadas pelo espaço urbano.
Essa é uma temática bastante atual,
mas que pouco tem sido discutida no campo
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012
Direito à cidade
acadêmico e nas instâncias administrativas
Quanto à metodologia adotada, foi de-
da cidade de Natal. Mãe Luiza é um bairro de
finido para a presente pesquisa trabalhar com
população pobre (com renda familiar, em mé-
uma amostragem de 290 domicílios contidos
dia, de 2,05 salários, segundo o Censo 2000),
nos 13 setores censitários de Mãe Luiza, de
inserido em meio a bairros nobres como Tirol,
acordo com o estabelecido pelo Instituto Bra-
Petrópolis e Areia Preta. Tem uma localização
sileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Com
privilegiada, do ponto de vista das amenidades
o número de domicílios definidos, foi realizado
ambientais, já que de diversos pontos do bairro
um sorteio das residências onde iria ser aplica-
se avista o mar e o verde da vegetação do Par-
do o questionário, que se divide em três par-
que das Dunas, uma grande área de preserva-
tes: perfil socioeconômico do morador de Mãe
ção de Mata Atlântica. Devido a esses aspectos,
Luiza; características da habitação e percepção
o bairro sofre constantemente com a pressão
do morador acerca do bairro. Os questionários,
do mercado imobiliário formal. Contudo, Mãe
com perguntas abertas e fechadas, destinadas
Luiza, ao longo do tempo, resiste às ações dos
aos proprietários e inquilinos das casas sortea-
diversos grupos de interesse, por meio de es-
das, foram aplicados no período entre janeiro
tratégias adotadas por sua população, como,
e março do ano de 2010. Concluídas as entre-
por exemplo, o esforço empreendido para que
vistas por questionário, os dados foram tabula-
a localidade fosse instituída como Área Espe-
dos, e, posteriormente, foi realizada a análise
cial de Interesse Social (AEIS), o que acabou
dos resultados.
acontecendo em 31 de julho de 1995, com a
Primeiramente, neste trabalho, discutire-
aprovação da Lei nº 4.663, que dispõe sobre o
mos a relação entre a segregação espacial e o
uso do solo, limites e prescrições urbanísticas
mercado imobiliário. Mais especificamente, co-
da área em questão.
mo os espaços segregados, principalmente na
A dinâmica imobiliária de Mãe Luiza,
América Latina, são locus privilegiado da infor-
como já foi dito, é pautada na informalidade
malidade no setor imobiliário. Em seguida, se-
das transações de compra, venda e aluguel e
rão apresentados e discutidos os resultados da
na irregularidade urbanística dos imóveis, que
pesquisa sobre a dinâmica imobiliária informal
podemos, antecipadamente, concluir que seja
de Mãe Luiza, dando destaque ao perfil socioe-
fruto da forma como o espaço urbano natalen-
conômico dos moradores do bairro, à caracteri-
se foi produzido. Para a discussão e análise de
zação dos imóveis e às transações imobiliárias
tal situação, foi realizada a leitura de diversos
de compra, venda e aluguel estabelecidas ali.
autores, que discutem sobre a questão urbana
Por fim, através de uma análise qualitativa,
e a produção do espaço do ponto de vista do
mostramos os motivos pelos quais os morado-
desenvolvimento desigual promovido pelo mo-
res de Mãe Luiza escolheram o bairro como seu
delo econômico vigente.
local de moradia.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012
319
Carmem Cristina Fernandes do Amaral
Mercado imobiliário (in)formal
e segregação espacial
Em Natal, este fenômeno é bastante claro.
A cidade é administrativamente dividida em
quatro zonas – Norte, Sul, Leste e Oeste. Essas
áreas apresentam-se bastante heterogêneas,
De acordo com Silva (2008), o termo segrega-
embora, em cada uma delas haja espaços de
ção surgiu com a Escola de Chicago, ao estu-
homogeneidade. Por exemplo, a Zona Sul (ZS)
dar o arranjo étnico-cultural de demarcação
é uma área onde a predominância é de bair-
do território dos migrantes que chegaram e se
ros de população de classe média a alta como:
estabeleceram em Chicago. No que se refere ao
Lagoa Nova, Candelária, Capim Macio e Ponta
mercado imobiliário, a compreensão deste pro-
Negra. A Zona Leste (ZL) é a mais rica da cida-
cesso é de fundamental importância, visto que
de, muito embora haja algumas áreas carentes,
o desenvolvimento dessa atividade depende
como Mãe Luiza, Brasília Teimosa e Rocas. Já
diretamente da forma urbana, da organização
nas Zonas Oeste (ZO) e Norte (ZN) a maior con-
espacial da cidade, melhor dizendo, da valori-
centração é de bairros de população de classe
zação ou não dos espaços, objeto de lucro dos
média a baixa, como por exemplo: Felipe Ca-
agentes imobiliários, como bem analisou Ribei-
marão e Guarapes (ZO) e Nossa Senhora da
ro (1997).
Apresentação (ZN).
Ao discutir sobre os espaços dentro das
Como se percebe, o fenômeno da segre-
cidades, Villaça (2001, p. 141) afirma que “uma
gação espacial não é tão simples. Há autores,
das características mais marcantes da metrópo-
como Peter Marcuse, que defendem a existên-
le brasileira é a segregação espacial dos bairros
cia da segregação voluntária e da não volun-
residenciais das distintas classes sociais”. Esse
tária. Num artigo publicado na revista Espaço
fenômeno pode ser definido como segregação
& Debates, o referido autor faz essa distinção.
espacial de grupos socioeconômicos e a ideia
Na sua concepção, Marcuse (2004) aponta co-
que se adota aqui é a de homogeneidade, ou
mo voluntária aquela segregação oriunda da
seja, entendemos, assim como Castells (2006,
reunião, por decisão própria, de um grupo po-
p. 186), que a segregação se dá pelo processo
pulacional que deseja se autoproteger e desen-
de agrupamento de grupos sociais homogêneos
volver seus interesses sem o recurso à domi-
no espaço: “a segregação refere-se ao processo
nação ou à exclusão, como, por exemplo, aglo-
pelo qual o conteúdo social do espaço torna-se
meração de grupos étnicos ou religiosos. Já a
homogêneo no interior de uma unidade e se
segregação involuntária ocorre quando certo
diferencia fortemente em relação às unidades
grupo social é forçado a se aglomerar em uma
exteriores, em geral conforme a distância social
determinada área espacial, como os guetos
derivada do sistema de estratificação”.
americanos ou as favelas brasileiras. Contudo,
De acordo com Villaça (2001), há, den-
há uma evidência de que são as razões socio-
tro da cidade, uma tendência à concentração
econômicas que levam às diferentes formas de
de classes ou camadas sociais, apesar de essa
apropriação do espaço.
concentração não impedir a presença ou cres-
Villaça (2001) afirma que os padrões
cimento de outras classes no mesmo espaço.
espaciais são produto da estrutura social, ou
320
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012
Direito à cidade
seja, da conjuntura econômica, política e ideo-
pobre, como chama a atenção Smolka, citado
lógica que domina a sociedade capitalista,
por Sabatini, Cáceres e Cerda (2004, p. 70): “a
sendo o mercado imobiliário um instrumento
ilegalidade, irregularidade e informalidade têm
de segregação, por ser, o mercado em si, “um
sido peculiaridades de assentamentos pobres e
instrumento de dominação e exclusão econô-
do mercado imobiliário latino-americano”.
mica que quase sempre apresenta uma mani-
Abramo (2003) e Fernandes (2008)
festação espacial” (Villaça, 2003, p. 341). Essa
chamam a atenção para esse fato. Segundo
ideia é corroborada por Santos (2008), quan-
eles, em boa parte das cidades localizadas na
do faz uma análise dos fatores que levam à
América Latina, a informalidade fundiária e/
especulação imobiliária e, como essa, rebate na
ou urbanística é que se destaca nas formas de
forma espacial:
acesso ao solo urbano. Para Abramo (2003),
pode-se entender este processo a partir de três
A especulação imobiliária deriva, em última análise, da conjugação de dois movimentos convergentes: a superposição de
um sítio social ao sítio natural; e a disputa entre atividades ou pessoas por dada
localização. A especulação se alimenta
dessa dinâmica, que inclui expectativas. Criam-se sítios sociais, uma vez que
o funcionamento da sociedade urbana
transforma seletivamente os lugares, afeiçoando-os às suas exigências funcionais.
É assim que certos pontos se tornam mais
acessíveis, certas artérias mais atrativas e,
também, umas e outras, mais valorizados.
Por isso, são as atividades mais dinâmicas
que se instalam nessas áreas privilegiadas; quanto aos lugares de residência,
a lógica é a mesma, com as pessoas de
maiores recursos buscando alojar-se onde
lhes pareça mais conveniente, segundo os
cânones de cada época, o que também inclui a moda. É desse modo que diversas
parcelas da cidade ganham ou perdem
valor ao longo do tempo. (Santos, 2008,
pp. 106-107)
Como se percebe, a segregação residencial influencia o preço do solo e não só isso. Fenômenos como a informalidade, a ilegalidade
e a irregularidade, de modo geral, são mais visíveis em áreas de concentração de população
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012
lógicas da ação social, em que a primeira seria
a lógica de Estado. Nesse caso, o autor afirma
que o Estado é quem define e escolhe a localização, a forma e o público-alvo que terá acesso a um espaço no meio urbano, de modo que
se garanta o maior grau de bem-estar para a
sociedade e indivíduos.
A segunda lógica é a de mercado. Aqui
o mercado se transforma num mecanismo social que torna possível a transação imobiliária
entre aqueles que querem adquirir um terreno
em área urbana (consumidores fundiários ou
imobiliários) e aqueles que, por diversos fatores, estão dispostos a repassar seu direito de
uso da terra urbana. Nesse caso, os terrenos ou
imóveis transacionados podem estar enquadrados ou não nas normas e regras jurídicas e
urbanísticas da cidade onde estão localizados,
o que confere à lógica de mercado características institucionais diferentes.
Podemos encontrar mercados cujo objeto está inscrito na normalidade jurídica
e urbanística, que chamamos “mercados
formais”, e mercados cujo objeto transacionado não se enquadra nos requisitos
normativos e jurídicos, que chamamos
“mercados informais de terra”. (Abramo,
2003, p. 8)
321
Carmem Cristina Fernandes do Amaral
A terceira lógica, que o autor chama de
estadual ou municipal, está ilegal, irregular. É
lógica da necessidade, está relacionada à in-
informal. Sendo o mercado imobiliário um setor
capacidade do indivíduo ou de um grupo so-
da economia, a informalidade não se dá ape-
cial de “suprir uma necessidade básica a par-
nas, por exemplo, na sonegação de impostos.
tir dos recursos monetários que permitiriam
As formas de informalidade ou de ilegalidade
o acesso ao mercado” (Abramo, 2003, p. 8).
são diversas. Ela está presente na ocupação
Porém, para Abramo, essa lógica não é condi-
ilegal de terras públicas ou privadas, no mo-
cionada apenas por esse fator, e ele adiciona
do irregular como são construídos os imóveis,
ainda o que chama de “carência institucio-
fora dos padrões urbanísticos, e nas formas de
nal”, caracterizada, por exemplo, pela falta de
transação imobiliária, que se dão à margem do
políticas públicas habitacionais, voltadas para
mercado formal.
a população de baixa renda, o que leva essa
Para Baltrusis (2005), o mercado imobi-
classe a se valer de meios que garantam seu
liário informal não se constitui num setor. É um
acesso ao espaço urbano, como as ocupações
novo segmento, um submercado do mercado
de terrenos ou imóveis, que eventualmente
imobiliário formal: um complemento desse se-
implica conflitos políticos e sociais e procedi-
tor produtivo.
mentos judiciais.
Diferentemente das outras duas lógicas,
o acesso ao solo urbano a partir da lógica
da necessidade não exige um capital político, institucional ou pecuniário acumulado; em princípio, a necessidade absoluta de dispor de um lugar para instalar-se
na cidade seria elemento suficiente para
acionar essa lógica de acesso à terra urbana. (Abramo, 2009, p. 6)
[...] a informalidade seria um complemento do setor produtivo, um sub-mercado, e
o que diferencia dos segmentos formais
seriam os baixos salários pagos e o baixo valor da mercadoria produzida, o não
pagamento de taxas e impostos e a não
submissão às normas e regulação do Estado. (Baltrusis, 2005, p. 4)
Assim, o que diferencia, de acordo com o
autor, o mercado imobiliário informal e o mer-
Neste artigo, não entraremos no mérito
cado imobiliário formal seria a irregularidade
de conceituar as atividades informais, “uma
jurídica do primeiro, “em relação à posse dos
vez que dificilmente uma atividade formal obe-
terrenos, normas de edificação entre outras
dece a todas as leis que regem as atividades
coisas” (Baltrusis, 2005, p. 4).
econômicas. Da mesma forma, as informais,
Apesar de Abramo (2009) não se utilizar
muitas vezes, pagam algum tipo de imposto ou
do termo submercado, como o faz Baltrusis
taxa” (Lacerda e Melo, 2009, p. 114). Basta di-
(2005), para se referir à condição do merca-
zer que entendemos, assim como Silva (2008),
do imobiliário informal em relação ao formal,
que aquilo que o Estado não consegue contro-
ele considera que o primeiro complementa o
lar e manter dentro do que é condizente com o
segundo e até existe entre eles certo grau de
que está instituído, com o que está normatiza-
influência de um para o outro e vice-versa. Isso,
do pela legislação existente, dentro de uma de-
no entanto, não anula a concorrência existente
terminada instância de poder, seja ela nacional,
entre os dois mercados – o formal e o informal.
322
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012
Direito à cidade
[...] as formas de interação entre os mercados formais e informais de solo podem
ser de natureza complementar, de concorrência ou de efeitos de borda com mútua
influência no comportamento e estratégias dos agentes dos dois mercados.
(Abramo, 2009, p. 60)
Contudo, Abramo (2009) afirma que o
mercado informal de terras é constituído de
dois grandes submercados, quais sejam: o fundiário e o imobiliário. O autor os denominou da
seguinte maneira: Submercado de Loteamen-
tos, o qual é subdividido em clandestinos ou
irregulares, e o Submercado de Áreas Consoli-
dadas, subdividido em residencial e comercial;
ambos envolvem a comercialização e os aluguéis dos imóveis.
Foi também o que concluiu Lacerda e
Melo (2009), numa pesquisa realizada no que
elas chamaram de conjunto de áreas pobres
da Região Metropolitana do Recife (RMR), formado por quatro áreas: Brasília Teimosa, Mustardinha, Pilar e Passarinho. Neste trabalho,
as autoras observaram que “o mercado imobiliário informal na RMR funciona a partir de
submercados” (Lacerda e Melo, 2009, p. 138).
Esses submercados possuem um caráter autorreferencial, ou seja, o vendedor de um imóvel,
antes de anunciá-lo à venda, busca informação
no seu entorno a respeito do preço praticado
dos imóveis.
O mercado de habitações de áreas pobres funciona a partir de submercados.
Cada um deles corresponde a uma área
pobre, onde os compradores, os vendedores e os inquilinos não se informam
dos preços em outras localidades. Esses
submercados são, portanto, mais atomizados e mais delimitados territorialmente
quando comparados aos submercados
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012
formais, caracterizados na RMR por certa
continuidade espacial. (Lacerda e Melo,
2009, p. 137)
Baltrusis (2005), em suas pesquisas, observou que a classificação e estruturação dos
submercados do mercado imobiliário informal
nas favelas de São Paulo vão depender da
área, da localidade, ou melhor, da realidade e
da dinâmica que se impõem. Na pesquisa que
fez nas favelas de Paraisópolis e São Remo,
Baltrusis (2005) pode identificar os seguintes
submercados: o imobiliário informal de moradias de alvenaria com acabamento, situadas
em ruas ou vielas principais; o de moradias de
alvenaria com ou sem acabamento, localizadas
em áreas periféricas da favela; o de locação,
porta de entrada para muitos na favela; e o
submercado de imóveis comerciais, ou comerciais residenciais, que, segundo o autor, permite
ao comprador a possibilidade de gerar renda.
Para Abramo (2009), no que se refere ao
solo urbano, a informalidade é algo que está
fora do marco institucional do direito que regula seu uso, estando nesta esfera o direito urbanístico, econômico, comercial, de propriedade,
entre outros direitos civis, como bem destaca
Alegria, citado por Abramo (2009, p. 55):
[...] podemos dizer que a informalidade
urbana seria um conjunto de irregularidades em relação aos direitos: irregularidade urbanística, irregularidade construtiva
e irregularidade em relação ao direito de
propriedade da terra.
Com relação ao mercado imobiliário informal, esse também apresenta as irregularidades apresentadas acima, mas, de acordo com
Abramo (2009, p. 55), existem outras irregularidades que ferem o direito econômico, como os
323
Carmem Cristina Fernandes do Amaral
“contratos de mercado que regulam as transa-
e Julia Morim Melo, retratam esta realidade.
ções mercantis. Assim, o mercado informal de
Nos trabalhos desses autores, ficou evidente
uso do solo é a somatória de duas dimensões
que aqueles que compraram, venderam ou
da informalidade: a informalidade urbana e a
alugaram seus imóveis nas favelas tiveram
informalidade econômica.”
por base a confiança no outro, e esse outro,
No mercado imobiliário informal, as tran-
na maior parte das vezes, foi um amigo ou
sações imobiliárias que são estabelecidas não
parente, ou seja, ocorre o que Abramo (2009)
possuem, na lei, no marco do direito regula-
chama de personalização das relações contra-
tório, garantias e segurança de efetivação, ou
tuais, condição necessária para a existência
seja, no caso de conflito, sua resolução não
das transações imobiliárias no mercado infor-
poderá se dar pelos instrumentos legais de
mal de imóveis.
mediação e execução, como chama a atenção
Abramo (2009). Contudo, o mercado imobiliário informal é uma realidade nos países latino-americanos e, apesar de ser algo novo nos estudos atuais sobre o urbano, não é uma prática
ou uma atividade recente,1 o que configura a
existência do que Abramo (2009) chama de
“instituições” que possibilitam seu funcionamento, inclusive garantindo o cumprimento
dos contratos estabelecidos nas transações
imobiliárias. Tais instituições devem ser de caráter também informal, configuram-se numa
base sustentadora, que permitem que o mercado imobiliário informal continue a funcionar.
uma base importante que garante o funcionamento do mercado e da sua cadeia
contratual são as relações de confiança
e de lealdade que as duas partes contratantes estabelecem entre si; assim,
os compradores e os vendedores, da
mesma maneira que os locadores e locatários, depositam no outro uma relação de confiança que tem como base a
expectativa de reciprocidade a partir de
uma relação de lealdade entre as partes.
(Abramo, 2009, p. 57)
No caso do mercado informal e popular
de solo, em que a relação de reciprocidade confiança-lealdade é uma das instituições fundadoras da possibilidade de existência da troca mercantil informal, temos
a necessidade de uma personalização das
relações contratuais. Essa personalização
pode não ser totalmente transparente e
assumir um caráter opaco, mas a personalização (alguém que vendeu ou alugou e alguém que comprou ou alugou)
introduz a possibilidade da relação de
confiança-lealdade na constituição de
uma relação contratual que por definição é implícita (informal), isto é, não está
garantida pelos direitos que regulam os
contratos econômicos. Assim, no mercado
informal de solo são justamente a eliminação da impessoalidade e a personalização da relação contratual que garantem o
mecanismo de confiança e lealdade que
permite um contrato de compra e venda
ou locação informal. (Abramo, 2009, citado por Abramo, 2009, p. 57)
Outro aspecto que aparece nas pesquisas dos dois autores – Abramo e Baltrusis – e
que está presente não só no mercado imobiliário informal, mas também no mercado formal
As pesquisas de Pedro Abramo e Nelson
de imóveis, é a questão das preferências loca-
Baltrusis, além do trabalho de Norma Lacerda
cionais das famílias. Diante da realidade em
324
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 317-338, jul/dez 2012
Direito à cidade
que muitas famílias se encontram, de muitas
de favelas veem neste espaço a possibilidade
vezes viverem no limite de sua renda, o fator
de reviver ou recriar “certos elementos do
localização se torna preponderante na hora de
cotidia no rural e/ou de cidades de pequeno
decidir onde morar. Nas pesquisas de Abramo
porte, impossíveis de serem reproduzidos em
e Baltrusis, dentro de favelas, isso ficou muito
outras localizações da metrópole” (Abramo,
claro. Os autores observaram que os fatores
2003, p. 205). Por exemplo, criar animais ou
de proximidade do emprego e fatores de vizi-
fazer uma roça no quintal ou mesmo sentar
nhança são os principais motivos que os levam
na calçada para conversar com os vizinhos
a decidir por se instalar em determinado lugar
são práticas possíveis. Ou seja, a escolha por
em detrimento de outro: “Os fatores proximi-
determinado modo/estilo de vida também in-
dade de uma eventual fonte de rendimento e
fluencia as preferências locacionais.
os fatores de vizinhança são frequentemente
Consequentemente, essa demanda ge-
citados como os principais motivos na decisão
rada por determinadas localizações também
da escolha locacional dos pobres urbanos”
vai influenciar os preços dos imóveis, o que
(Abramo, 2003, p. 190).
pode ser observado em várias escalas, seja
Então, a localização do imóvel está di-
ela no âmbito da cidade (um bairro que apre-
retamente ligada à possibilidade dos mais
sente uma infraestrutura melhor é mais valo-
pobres de economizar, por exemplo, em pas-
rizado que aqueles que não possuem ou que
sagens de transporte, por estarem mais próxi-
possuem, mas é precária), do bairro (uma rua
mos do local de emprego ou da escola onde
mais calma, mais larga ou com fácil acesso, por
os filhos estudam. Além disso, também há de
exemplo, possui imóveis mais valorizados) ou
se considerar que, em muitos casos, o empre-
do logradouro (uma casa, para fins de moradia,
go ou a possibilidade de conseguir trabalhos
localizada em determinado ponto da rua terá
temporários pode estar no próprio bairro. Con-
seu valor mais elevado em relação àquela que
tudo, ainda há outros fatores que devem ser
está próxima de uma fonte de poluição, como
considerados. Abramo (2003, p. 199) divide
um bar, uma padaria, uma oficina, etc.).
os “fatores locacionais mais importantes na
Como se vê, o mercado imobiliário infor-
decisão residencial das famílias pobres” em
mal é algo que possui uma dinâmica própria
três grupos: o primeiro está ligado à preferên-
e contribui diretamente para a produção do
cia por acessibilidade à cidade, aos centros de
espaço urbano, já que esse é fruto das ações
emprego, às áreas melhores dotadas de infra-
sociais, políticas e econômicas de agentes que
estrutura, ao comércio e aos serviços urbanos;
transformam a cidade. A interferência desses
o segundo diz respeito à preferência por vizi-
agentes pode se dar tanto pelas vias formais
nhança. Nesse caso, a presença de familiares
como informais, e a informalidade, principal-
e de amigos, ou seja, de uma rede social, é
mente no que diz respeito ao acesso ao solo e
uma variável de total relevância na escolha
à moradia, tem sido recorrente no meio urbano,
locacional. Por último, no terceiro grupo, está
principalmente em países ditos em desenvolvi-
a preferência por estilo de vida. Nos seus estu-
mento. No Brasil, não é diferente. O processo
dos, Abramo percebeu que muitos moradores
de produção do espaço por meio de mercados
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Carmem Cristina Fernandes do Amaral
informais e/ou ilegais virou regra, o que se dá,
manicure, auxiliar de cozinha, merendeira,
em muitos dos casos, pela falta de políticas
varredor, serviços gerais, porteiro, etc. E o lo-
públicas que possam auxiliar a população de
cal de trabalho, normalmente, fica no próprio
baixa renda no acesso à moradia. É essa a rea-
bairro ou em áreas próximas; para ir ao ser-
lidade do bairro de Mãe Luiza.
viço, alguns se utilizam de transporte público
(48,4%) e outros vão a pé (26,1%), de carro
(4,5%), de moto (3,8%), de bicicleta (2,5%)
A dinâmica imobiliária
em Mãe Luiza
ou, simplesmente, trabalham no próprio imóvel; têm renda familiar entre um e dois salários
mínimos (68,3% dos entrevistados) e 14,8%
das famílias sobrevivem com menos de um
No Brasil e também na América Latina, a in-
salário mínimo; 12,1% percebem de 3 a 4 salá-
formalidade urbana não se trata mais de um
rios mínimos e apenas 1,4% contam com mais
conjunto de casos isolados, mas de um pa-
de quatro salários mínimos; 3,4% preferiram
drão que cresce cada vez mais, principalmente
não declarar sua renda.
quando se trata do mercado imobiliário infor-
Esse é o perfil social de Mãe Luiza que,
mal. Apesar de não ser uma prática restrita aos
como poderemos constatar mais adiante, se
pobres, a informalidade se dá principalmente
reflete nas condições habitacionais existentes
nas camadas de menor poder aquisitivo, que
no bairro, no que se refere ao estado de con-
acabam ocupando locais, muitas vezes, de alta
servação, às características edilícias e à regu-
vulnerabilidade ambiental ou de difícil acesso.
larização dos imóveis.
Com base em autores como Edésio Fernandes,
Nelson Baltrusis, Pedro Abramo e outros, que
há muito estudam e observam as questões do
urbano, entendemos que, para poder compre-
Caracterização dos imóveis
ender a existência de um mercado imobiliário
informal de imóveis, dentro do bairro de Mãe
A caracterização das habitações se mostra de
Luiza, faz-se necessário conhecer o perfil so-
suma importância, uma vez que esse quesi-
cioeconômico de seus moradores.
to influencia diretamente o valor dos imóveis,
De modo geral, a pesquisa revelou que
sejam eles negociados no mercado imobiliário
os moradores entrevistados são pessoas consi-
formal ou informal. Sendo assim, a pesquisa de
deradas maduras: cerca de 45% estão na faixa
campo realizada em 290 domicílios evidenciou
etária de 25 a 69 anos; são de nacionalidade
que 95,9% desses são constituídos de casas
brasileira, sendo a maioria nascida em Natal/
(Figuras 1) e 4,1% são sobrados (Figuras 2 e
RN, mas parte significativa é proveniente do
3), ou seja, edificações com dois ou mais pa-
interior do Estado; possuem baixo grau de
vimentos. Quanto à natureza da habitação,
instrução; são, na maioria (60%), casados e
quase 80,0% do universo amostral é composto
com filhos; trabalham em atividade que re-
por imóveis próprios, quase 15% são imóveis
quer pouca especialização profissional, como
alugados e cerca de 5% são cedidos.
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Direito à cidade
Figura 1 – Casas horizontais em Mãe Luiza (R. João XXIII)
Fonte: Acervo particular (2009).
Figura 2 – Sobrados localizados na ladeira de Mãe Luiza (R. João XXIII)
Fonte: Acervo particular (2009).
Figura 3 – Sobrado localizado na R. João XXIII
Fonte: Acervo particular (2009).
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Carmem Cristina Fernandes do Amaral
Figura 4 – A maioria dos imóveis de Mãe Luiza é de alvenaria e concreto
Fonte: Acervo particular (2009).
As casas no bairro são construídas de al-
esses, normalmente, estão localizados nas vias
venaria e concreto: 100% dos imóveis visitados
principais do bairro, como as ruas João XXIII e
são de alvenaria, e 88,6% possuem acabamen-
Guanabara (Mapa 1).2
to e 11,4% não possuem. Quanto ao estado de
Quanto à divisão interna dos imóveis, a
conservação, boa parte das habitações apre-
média de cômodos por habitação em Mãe Lui-
senta-se num estado de bom a regular. Apenas
za é de quatro a seis, o que representa 63,4%
cerca de 4,0% estão num estado de ruim a pés-
da amostra. Esses, em média, possuem sala,
simo (Figura 4).
banheiro, cozinha e quarto. Contudo, também
No que diz respeito ao uso do imóvel,
existem imóveis com apenas dois cômodos e
Mãe Luiza é um bairro eminentemente habi-
outros (4,5%) com mais de onze. Dentro desse
tacional. Dos imóveis visitados, mais de 80%
percentual, existe um imóvel com 19 cômodos:
servem apenas de moradia. Os outros quase
cinco salas, cinco banheiros, duas áreas de ser-
20% , além de servir de moradia, possuem
viços, cinco quartos, uma cozinha e uma gara-
algum tipo de comércio ou serviço, do tipo
gem. Esse imóvel fica localizado na divisa entre
mercearia, salão de beleza, lan house, lan-
Mãe Luiza e Petrópolis. Segundo o proprietário,
chonete, bar, armarinho, etc. Ressalte-se que
a casa está avaliada em 300 mil reais.
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Direito à cidade
Mapa 1 – Uso e ocupação do solo de Mãe Luiza, Natal/RN
Fonte: SEMURB, 2006. Projeção Universal Cartográfica de Mercator. Datum: SAD 1969 Zona 25S.
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Carmem Cristina Fernandes do Amaral
residência foi adquirida através de imobiliária,
Transações imobiliárias
o que representa 0,4% dos imóveis próprios ou
cedidos. A maior parte destes, 63,2%, foi nego-
Para facilitar a compreensão, dividimos a análi-
ciada diretamente com os proprietários ante-
se entre imóveis próprios ou cedidos e imóveis
riores. Os demais imóveis dividem-se entre pos-
alugados, já que a dinâmica entre essas cate-
se, doação, herança, troca e imóvel cedido. Vale
gorias apresentam diferenciações que precisam
salientar que as transações de troca se deram
ser consideradas.
no próprio bairro. É o caso de uma moradora,
de 63 anos, da Rua Atalaia. Ela resolveu trocar
sua casa com uma conhecida (a Sra. Benedita),
Imóveis próprios ou cedidos
porque sua residência ficava muito distante da
rua principal e, como a outra queria uma casa
Percebe-se, a partir da leitura da Tabela 1, que
um pouco maior, elas entraram em acordo e fi-
a dinâmica imobiliária em Mãe Luiza inicia-se
zeram a troca dos imóveis.
na década de 40, dados validados pela histo-
Quanto à condição de pagamento, cha-
riografia do bairro. Vê-se que esse processo se
ma a atenção o fato de que 57,1% dos imóveis
intensifica com o passar do tempo, havendo
foram pagos à vista e em 27,1% das transa-
uma pequena queda na década de 1980. Con-
ções não houve pagamento em dinheiro. Con-
tudo, os dados mais expressivos são após o ano
frontando esses dados com a forma como
2000, quando 24,7% dos imóveis próprios ou
se adquiriu os imóveis, vê-se que esse núme-
cedidos foram adquiridos ou ocupados nesse
ro, de 27,1%, é correspondente à soma dos
período, caracterizando-se aí uma maior co-
percentuais de imóveis que foram adquiridos
mercialização ou transação de imóveis em re-
por meio de trocas, doações, heranças ou pos-
lação às décadas anteriores.
ses, que é de aproximadamente 27%. Contudo,
Os dados referentes a como os proprie-
percebe-se que houve também pagamentos
tários adquiriram seus imóveis apresentam
parcelados e até financiamento, embora esse
uma peculiaridade interessante: apenas uma
seja um número quase irrisório.
Tabela 1 – Tempo em que os imóveis foram adquiridos ou ocupados
Ano que adquiriu o imóvel
Década de 40
Década de 50
Década de 60
Década de 70
Década de 80
Década de 90
Década de 2000
NR
Total
330
Abs.
%
2
1
24
36
34
38
61
51
0,8
0,4
9,7
14,6
13,8
15,4
24,7
20,6
247
100,0
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Direito à cidade
Tabela 2 – Transações imobiliárias
Transação imobiliária
Contrato de compra/venda registrado em cartório
Contrato de compra/venda sem registro em cartório
Recibo particular
Acordo verbal
Sem transação imobiliária
NR
Total
Abs.
%
99
16
17
55
31
29
40,1
6,5
6,9
22,3
12,6
11,7
247
100,0
As transações imobiliárias, no que se refe-
carta de aforamento – era simplesmente repas-
re à documentação que garante a posse da ca-
sado do vendedor para o comprador, sem ne-
sa, não constituem fator de preocupação entre
nhuma preocupação em oficializar a questão,
os negociadores, ou seja, entre o comprador e o
perante os órgãos públicos.
vendedor. A Tabela 2 mostra bem essa realida-
Em relação ao preço dos imóveis, há
de. Percebe-se um percentual bastante elevado
uma variação muito grande. Existem imóveis
de acordos verbais, em torno de 22%. Alguns ti-
de R$2.000,00 até R$300.000,00. Metade dos
veram a preocupação de emitir um simples reci-
imóveis apresenta valores abaixo de 50 mil
bo particular, outros até firmaram um contrato,
reais e os imóveis que aparecem mais valoriza-
porém não houve registro em cartório algum. O
dos estão, normalmente, inseridos nas bordas
percentual de 40,1% de imóveis cuja transação
ou vias mais pressionadas pelo mercado imo-
imobiliária foi registrada em cartório engloba os
biliário formal. Como exemplo, temos algumas
registros realizados em cartório de imóveis e em
residências localizadas na Rua João XXIII, na
outros cartórios.
Rua Guanabara e na Rua Desembargador Bení-
Dos imóveis visitados, apenas 19,8% da-
cio Filho, limite do bairro com Petrópolis.
queles que são próprios ou cedidos possuem
Percebe-se, assim, que a dinâmica imo-
escritura pública; 24,3% possuem escritura
biliária de Mãe Luiza está em consonância
particular; 6,1% não possuem documentação
com o mercado imobiliário formal, em que o
alguma e 42,9% possuem carta de aforamen-
fator localização do imóvel é de extrema re-
to, um documento expedido pela Prefeitura e
levância para se definir o preço de um imóvel.
entregue aos ocupantes de terrenos apossados,
Os imóveis mais valorizados estão justamente
garantindo a esses a posse definitiva sobre o
nas ruas e avenidas mais importantes do bair-
imóvel ou sobre a terra. Contudo, nas transa-
ro, principalmente no corredor de transporte
ções imobiliárias, de acordo com declarações
coletivo, que se dá pela Avenida João XXIII e
de alguns entrevistados, tal documento – a
Rua Guanabara.
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Carmem Cristina Fernandes do Amaral
Imóveis alugados
Um dado importante de se ressaltar
é o tempo em que um imóvel alugado passa
No que se refere aos imóveis de aluguel, os
dados revelaram que 97,7% dos inquilinos negociaram o aluguel do imóvel diretamente com
os proprietários, enquanto apenas 2,3% tiveram como mediador um parente. Com relação
à documentação referente ao compromisso de
aluguel, apenas 58% dos inquilinos se comprometeram verbalmente em honrar com suas
responsabilidades perante o imóvel do locador;
outros 42% firmaram algum tipo de contrato,
ocupado. De acordo com a Tabela 3, podemos
inferir que o mercado imobiliário de imóveis
de aluguel em Mãe Luiza é bastante dinâmico,
ou seja, a maioria dos inquilinos, quase 70%,
não passa mais do que dois anos num imóvel.
Os outros 30% já estão há mais de dois anos
morando no mesmo imóvel. Porém, dentro
desse percentual, apenas 11,6%, ou seja, cinco
inquilinos da amostragem, ocupam a mesma
residência há mais de cinco anos.
seja ele com ou sem registro em cartório, mas,
ainda, os contratos sem registro sobressaem.
Cabe ressaltar que esse registro significa ape-
A ponte entre a demanda e a oferta
nas o reconhecimento de uma assinatura.
Quanto ao valor dos aluguéis, estes es-
A pesquisa de campo revelou que os agentes
tão entre R$80,00 e R$400,00. Fato interes-
imobiliários que se destacam em Mãe Luiza são
sante de se observar é que o valor do aluguel
parentes ou conhecidos, que facilitam o acesso
não só vai depender das características da ha-
ao bairro daqueles que estão procurando um
bitação, mas a localização, em muitos casos,
imóvel que possa ser comprado ou alugado
é fator preponderante na hora de negociar o
por um preço que seja adequado ao seu orça-
preço, mesmo que o imóvel não apresente ca-
mento, sem muita burocracia, e que esteja bem
racterísticas edilícias condizentes com a neces-
localizado e servido por serviços públicos e in-
sidade da família que o pleiteia.
fraestrutura urbana.
Tabela 3 – Tempo de moradia no imóvel alugado
Tempo que mora no imóvel alugado
332
Abs.
%
Até 1 ano
De 1 a 2 anos
De 2 a 3 anos
De 3 a 4 anos
Acima de 5 anos
NR
22
8
4
3
5
1
51,2
18,6
9,3
7,0
11,6
2,3
Total
43
100,0
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Direito à cidade
É através desses parentes ou conhecidos
imóveis (casas e terrenos), em frente a sua
que se dão as transações imobiliárias formais
residência. Ou seja, talvez Mãe Luiza só não
e informais de compra/venda e/ou aluguel
sofra mais com a especulação imobiliária da
dentro de Mãe Luiza. Foi possível constatar,
cidade, devido às limitações impostas pela Lei
através da observação direta, que a presença
nº 4.663/95, que o regulamentou como área de
de imobiliárias e corretores formais é bastante
interesse social.
insipiente. Isso talvez se dê pelo fato de que a
maioria dos imóveis está dentro da informalidade ou da ilegalidade urbanística, o que im-
A escolha pelo local de moradia
possibilita a atuação desses agentes que trabalham dentro do mercado imobiliário formal;
Através de uma análise qualitativa da percep-
ou mesmo, como chamam a atenção Lacerda
ção do morador de Mãe Luiza a respeito do
e Melo (2009, p. 127), “talvez porque esse ti-
bairro, quisemos entender quais os motivos
po de intermediação acaba onerando o preço
que levaram uma pessoa ou uma família a se
final da habitação”. Normalmente, os imóveis
instalar ali; que tipos de problemas o bairro
que se apresentavam para vender no bairro,
apresenta; quais os pontos positivos de se mo-
através de imobiliária formalizada, eram ou
rar em Mãe Luiza e o interesse em permanecer
são legalizados, principalmente na Prefeitura,
no local.
já que para efetuar transações de compra e
Ressalta-se, primeiramente, que pelo
venda de um imóvel, através de financiamento
menos 78% da população entrevistada está no
bancário, faz-se necessária sua escritura públi-
bairro há mais de 20 anos. Ou seja, são pes-
ca, principal documento solicitado pelas agên-
soas que realmente conhecem o lugar onde
cias financiadoras.
moram e as dificuldades enfrentadas pela po-
Contudo, a proeminência da informa-
pulação residente.
lidade imobiliária no bairro não impede que
Ao serem questionados sobre o porquê
algumas áreas sofram com a especulação imo-
de ter escolhido o bairro de Mãe Luiza para mo-
biliária. Existem exemplos disso em Mãe Luiza,
rar, os moradores alegaram diversos motivos,
principalmente na Rua Guanabara, onde foram
mas o que sobressaiu foi o fator localização.
compradas várias residências, normalmente
Em consonância com diversos estudos
juntas umas das outras, com fins especulativos.
acadêmicos, o quesito localização se mostrou
Algumas vezes, os compradores mantêm de pé
como o principal motivo para a escolha de um
os imóveis; outras vezes, as casas são derruba-
local ou um imóvel para morar. Dentro desse
das e os terrenos são murados como se fossem
grupo, os entrevistados indicaram diversas cau-
um só. Os especuladores, segundo alguns mo-
sas para a escolha por Mãe Luiza como local de
radores do bairro, são empresas construtoras
moradia, entre elas estão: a oportunidade que
ou empresários de ramos diversos. De acordo
tiveram, na época, de possuir ou alugar o imó-
com uma senhora que mora na Rua Largo do
vel; a oportunidade de se apossar de um terre-
Farol, existe uma grande indústria de doces –
no, onde construíram sua casa e a escolha ou
balas e pirulitos – do Estado, que possui vários
decisão voluntária da família. Nessa resposta,
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Carmem Cristina Fernandes do Amaral
as pessoas simplesmente diziam ter escolhido
Mãe Luiza. Para muitos deles, mudar-se dali
o bairro como o local onde queriam viver.
significaria perder qualidade de vida. Eles gos-
Essas respostas estão em conformidade
tam do bairro, especialmente por ficar próximo
com o que Abramo (2003) chama de Lógica da
de “tudo”. Além disso, há uma infraestrutura
Necessidade. Os moradores de Mãe Luiza estão
que os atende, mesmo que precariamente. Mui-
ali empurrados por sua incapacidade financei-
tos deles alegaram possuir familiares no bairro
ra de adquirir um imóvel em partes da cidade
que, sempre que necessário, se disponibilizam
mais valorizadas. Aliada a isso, está também a
a ajudar, seja para ficar com seus filhos na hora
incapacidade do Estado em suprir a necessida-
de trabalhar, seja para emprestar uma xícara
de dos mais pobres por habitação.
de açúcar, um pouco de café, uma passagem
Quanto aos problemas que o bairro apre-
de ônibus ou mesmo prestar socorro. Ou seja,
senta, 67,6% dos entrevistados indicaram que
a rede de solidariedade (Abramo, 2003, 2009;
o que mais os preocupa é a falta de segurança.
Baltrusis, 2005), também em Mãe Luiza, é um
O bairro possui duas delegacias de polícia, mas,
fator a se considerar no momento em que há a
ainda assim, a segurança deixa a desejar. Em
necessidade de escolher se fica ou não no bair-
seguida, 10,7% dos entrevistados disseram que
ro. Os outros quase 30% realmente gostariam
a assistência à saúde é deficitária. Os dois pos-
de mudar-se para outro local e a maioria deste
tos de saúde que existem em Mãe Luiza não
percentual alegou a falta de segurança como o
são suficientes para o atendimento à popula-
principal fator de expulsão.
ção local. Além disso, faltam médicos, enfer-
Claramente, os fatores locacionais, ci-
meiros e medicamentos. Já 5,9% das pessoas
tados por Abramo (2003) e confirmados pe-
reclamaram da falta de água, pois, muito em-
los trabalhos de outros autores que tratam
bora o bairro seja contemplado com a rede de
do tema, como Baltrusis (2005) e Lacerda e
abastecimento da companhia de água e esgoto
Melo (2009), como as preferências por aces-
do Estado, em muitos locais a água não che-
sibilidade, vizinhança e estilo de vida, são
ga, principalmente nos terrenos de cotas mais
determinantes na escolha dos moradores de
elevadas. Outros 4,5% do pessoal entrevistado
Mãe Luiza em permanecer no local ou mesmo
indicaram o tráfico de drogas como o principal
quando estavam a “escolher” o lugar onde
problema de Mãe Luiza, depois vem a falta de
iriam morar.
infraestrutura, a falta de educação, a falta de
Este é o perfil da dinâmica imobiliária em
saneamento, os problemas com a limpeza pú-
Mãe Luiza: um bairro segregado, de população
blica e com os alagamentos. Ainda houve quem
de baixa-renda (83,1% dos entrevistados pos-
dissesse, cerca de 3% da amostra, que o bairro
suem renda familiar entre um a dois salários-
não apresenta problema algum.
-mínimos), que resiste à pressão do mercado
Mesmo com o resultado apresentado,
formal de imóveis, por meio de estratégias co-
com todos os problemas apontados pelos en-
muns entre localidades onde residem pessoas
trevistados, a maioria deles não tem vontade
de baixo poder aquisitivo, que precisam buscar
de mudar-se do bairro. Cerca de 70% dos res-
meios para atender suas necessidades mais bá-
pondentes dizem estar satisfeitos em morar em
sicas, como é a questão de ter onde morar.
334
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Direito à cidade
Já que o Estado não exerce seu papel de
bairro, constituído de uma população de bai-
prover essa população de moradia ou de pro-
xa renda, totalmente integrada à vida urbana
mover seu acesso ao solo urbano, ela vai buscar
de Natal, e inserido numa das áreas mais bem
na informalidade o atendimento de suas neces-
localizadas da cidade, com diversos atributos
sidades, o que termina por contribuir para que
naturais que chamam a atenção do mercado
o mercado informal de imóveis seja mais um
imobiliário local. Contudo, este mercado, o
processo pelo qual o espaço urbano se molda.
formal, não consegue ter uma atuação significativa dentro do bairro, embora haja indícios
de que isso poderá mudar.
Considerações finais
A dinâmica imobiliária informal em Mãe
Luiza é bastante expressiva. Talvez pelo fato
de boa parte de seus moradores ter uma renda
Do local para o global, foi esse o pensamento
familiar entre um e dois salários mínimos, a in-
que norteou o presente trabalho. O interesse
formalidade dos imóveis seja tão significante.
em contribuir para a compreensão do urbano,
Esse fato é resultado da dificuldade que essa
considerando a complexidade que lhe é ineren-
população tem de ter acesso ao solo e à mo-
te e entendendo que a fragmentação das par-
radia urbanos, devido aos altos preços pratica-
tes pode também ajudar a entender o todo, fez-
dos no mercado formal de imóveis e à burocra-
-nos optar por um estudo de caso que, embora
cia imposta na hora de adquirir ou alugar um
tenha suas particularidades, na verdade, reflete
imóvel por meios formais.
uma realidade bastante presente nos países da
Toda esta reflexão foi bastante proveito-
América Latina – a informalidade dentro do
sa, uma vez que, com o exemplo de Mãe Luiza,
mercado habitacional.
pudemos entender como se dão as relações e
Mãe Luiza não é o primeiro nem o último
as contradições promovidas pelo modelo eco-
bairro ou área, num núcleo urbano, a apresen-
nômico que vivenciamos. Esse capitalismo “sel-
tar um mercado imobiliário alicerçado na infor-
vagem”, que sobrevive através da perpetuação
malidade. Apesar de ser um novo campo de es-
de um modelo de desenvolvimento desigual e
tudo, esse tipo de “economia marginal” não é
que encontrou na cidade o meio ideal para se
recente. Abramo (2009) afirma que há evidên-
reproduzir, promove a diferenciação dos espa-
cias de que, no tempo da colônia, em muitos
ços, pela segregação social que, diretamente,
países de colonização portuguesa e espanhola,
influencia a valorização ou não do solo.
esse modelo de mercado já existia, embora não
fosse tão significativo.
O solo urbano e a habitação são, no capitalismo, mercadorias valiosas, que se distin-
Mãe Luiza é resultado do processo ace-
guem de outras por seu caráter monopolista.
lerado de urbanização por que passou Natal.
Por serem mercadorias de valor de uso especial,
Na verdade, desde seu surgimento, os mora-
difíceis de produzir ou irreprodutíveis, como
dores do bairro convivem com essa realida-
chamou a atenção Valença (2003), podem ge-
de, e a configuração espacial de Mãe Luiza
rar ao seu detentor uma renda. Devido a isso, o
denuncia sua história: uma favela que virou
espaço urbano possui áreas de maior ou menor
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Carmem Cristina Fernandes do Amaral
valorização, o que vai depender, de acordo com
Este artigo não teve a pretensão de es-
vários autores estudiosos do assunto, de diver-
gotar a discussão em torno de um tema tão
sos fatores, como o perfil social da população
importante na atualidade que é a informalida-
que ocupa a área, as amenidades ambientais, a
de no mercado imobiliário de habitações. Ao
infraestrutura, etc. Mas o fato é que paga pelo
contrário, uma de suas intenções é suscitar in-
melhor espaço quem pode, ou seja, os terrenos
teresse por uma questão que cada vez mais es-
ou habitações melhor localizados pertencerão
tá presente na vida dos moradores dos centros
àqueles que detêm poder econômico para tal,
urbanos, principalmente nos países ditos em
sobrando à população mais pobre apenas as
desenvolvimento. A informalidade do merca-
áreas desprezadas pela classe de maior poder
do imobiliário é uma característica dos países
econômico, como encostas de morro, áreas ala-
que passaram por um processo acelerado de
gadiças e de difícil acesso.
urbanização e apresentam alto grau de segre-
Quem se beneficia dessa diferenciação
gação dos espaços. O acesso ao solo urbano
que existe na cidade são os agentes (o pro-
para aqueles que podem pagar pela superva-
prietário de terra, o incorporador, o constru-
lorização dos espaços se dá pelas vias formais
tor, o financiador, o corretor, o investidor imo-
e legais; para quem é desprovido de recursos
biliário...) do mercado formal ou informal de
financeiros, se dá por meios que driblam as
imóveis, que retiram sua renda através do uso
leis impostas pelo Estado, o qual tem sido ne-
e da transformação do espaço urbano. Con-
gligente no atendimento às necessidades des-
cordamos, assim, com Edésio Fernandes, Pe-
te segmento da sociedade. Natal, assim como
dro Abramo e outros, quando afirmam que a
outros centros urbanos, apresenta problemas
informalidade, seja em qualquer área ou cam-
relacionados ao acesso ao solo urbano, que
po econômico, não é um fato isolado e, sim,
cada vez mais tem se valorizado. Por isso, vê
uma tendência, um padrão, uma regra em
acentuar-se a segregação de seus espaços ur-
países como o Brasil, principalmente quando
banos e a desigualdade social. Em Natal, em
o assunto é habitação, ou melhor, acesso à
vista da dimensão do problema, pouco se tem
cidade e às “benesses” que ela proporciona.
discutido sobre este assunto.
Carmem Cristina Fernandes do Amaral
Licenciada e Mestra em Geografia. Lotada na Secretaria Municipal de Meio Ambiente e Urbanismo
de Natal/RN no Departamento de Fiscalização Urbanística e Ambiental.
[email protected]
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Direito à cidade
Notas
(*)Este artigo é fruto da dissertação de mestrado apresentada ao programa de Pós-Graduação e
Pesquisa em Geografia da UFRN, no ano de 2011.
(1) De acordo com Abramo (2009), existem evidências de que o mercado imobiliário informal já
exis a no tempo da colônia em muitos países de colonização portuguesa e espanhola. Mas foi
o processo acelerado de urbanização no século XX que contribuiu de forma significa va para a
ampliação desse mercado.
(2) Foram consideradas na elaboração do Mapa de Uso e Ocupação do Solo apenas ruas que
apresentavam uma concentração maior de imóveis com comércio e serviços.
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Texto recebido em 1º/ago/2011
Texto aprovado em 16/nov/2011
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As metrópoles também
têm lugares. O caso do bairro
de Setúbal Nascente, Portugal
The metropolises also have places. The case
of the Setúbal Nascente neighborhood, Portugal
Jorge Gonçalves
António Costa
Luís Sanchez Carvalho
Resumo
A abordagem estratégica revela-se essencial como
forma de, partindo dos recursos existentes e da dinâmica de atores, conceber cenários credíveis de
futuro que, longe de permitir adivinhar o futuro,
fornecem instrumentos para a construção de parte
significativa desse futuro desejado. Dessa renovada
abordagem aos conjuntos de habitação de interesse social em crise na Área Metropolitana de Lisboa
resultou um conjunto de medidas inovadoras e
consensualizadas. Este artigo visa descrever a experiência do Plano Estratégico de Setúbal Nascente que incidiu num dos mais emblemáticos bairros
sociais da Área Metropolitana de Lisboa que optou
por uma abordagem metodológica diferenciada,
equacionando vários cenários de desenvolvimento
e assumindo uma solução que teria de ser a várias
escalas – do local ao regional –, fazendo convergir
o direito à habitação com o direito à cidade.
Palavras-chave: cidade; plano estratégico; bairro
social; coesão urbana; integração metropolitana.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012
Abstract
The strategic approach is essential as a way to,
from existing resources and the dynamics of
actors, design credible scenarios for the future.
These scenarios, far from enabling to divine the
future, provide tools to build a significant part of
that desired future. This renewed approach to the
social neighborhoods that have been in crisis in the
Metropolitan Area of Lisbon has produced a number
of consensual and innovative measures. This paper
aims to describe the experience of the Strategic Plan
for Setúbal Nascente (Portugal), which focused on
one of the most emblematic social neighborhoods
in the Metropolitan Area of Lisbon. The Plan opted
for a different methodological approach, equating
various development scenarios and assuming a
solution that would have to be at different scales –
from local to regional –, bringing together the right
to housing and the right to the city.
Keywords: city; strategic plan; social neighborhood;
urban cohesion; metropolitan integration.
Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho
Introdução
Essas mudanças tornam óbvios os efeitos no entendimento de todas as questões
quotidianas que se colocam às sociedades e,
Quase século e meio após a revolução industrial, a habitação continua a afirmar-se como
um dos problemas maiores das nossas sociedades, pois, ao mesmo tempo que se considera
que é central para a dignidade humana e para
a plena inclusão social, também é verdade que
ainda não foi possível encontrar uma solução
definitiva. Engels (1975), aliás, vai mesmo mais
longe afirmando que é impossível sua resolu-
muito em particular, à habitação. Esta esteve,
aliás, no olho do furacão financeiro que ainda
hoje deambula pelas pequenas e menos pequenas economias financeiras europeias.
Todavia, permaneceu invisível durante
muito tempo, como que a incubar, quando apenas afetava segmentos sociais marcados pelo
preconceito e pelas limitações econômicas. Como lembra oportunamente Harvey (2010),
ção no quadro do sistema burgês de funcionamento da sociedade.
Para lá da diacronia presente em quase
todos os países ocidentais – reveladora de uma
sucessão de políticas de habitação que ora
ampliam ora reduzem seus públicos-alvo ou
oscilam entre um maior envolvimento público
e uma maior participação do setor privado ou
ainda enveredam alternativamente entre o arrendamento e o estímulo à aquisição (Kemeny,
Algo de sinistro despontou nos Estados
Unidos em 2006. A taxa de execuções nas
hipotecas à habitação em zonas de baixo rendimento de cidades antigas como
Cleveland e Detroit registou um aumento
súbito. Mas os burocratas e os média não
repararam porque os indivíduos atingidos
eram sobretudo negros, imigrantes (latino-americanos) ou mulheres de famílias
monoparentais, com baixos rendimentos.
(p. 13)
1992, 1995) – é também evidente uma sincronia diversificada pela realidade múltipla, consoante países e regiões, que relaciona o problema com as políticas de enfrentamento (King,
2003, 2004, 2006, 2009).
Esses pilares históricos têm agora de conviver com um mundo em transformação profunda, em grande parte motivada pelas ondas
de choque produzidas pela globalização nos
domínios econômico-financeiro, social e político. Estamos, por isso, de acordo com Bógus
Já nos anos 90, o problema existia para
os negros em especial:
Entre 1998 e 2006, antes de a crise das
execuções se evidenciar em toda a sua
extensão e gravidade, estimava-se que
os negros tinham perdido entre 17 mil
milhões de dólares em valores de ativos,
por terem contraído os chamados empréstimos de alto risco (subprime) para compra de habitação própria. (Harvey, idem,
ibidem)
quando afirma que “(…) as cidades contemporâneas têm passado por constantes mudanças
Foi durante o ano de 2007 que tudo se
em sua dinâmica socioespacial, fato que tem
tornou mais claro. A classe média branca come-
promovido a valorização e ampliado o debate
çava a ficar afetada pela crise e pelas execuções
das questões urbanas (…)” (2008, p. 126).
hipotecárias até aí apenas circunscritas às
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As metrópoles também têm lugares
minorias negra e latino-americana. Por outras
Algumas décadas passadas e várias po-
palavras, a pobreza chegou também aos subúr-
líticas de habitação depois, em Portugal os
bios da América. O aumento da pobreza nos
working poor constituiam 12% dos 1,8 milhões
EUA, na primeira década do século XXI, foi de
em risco de pobreza (INE, 2009). Mais uma vez
53% nos subúrbios e menos de metade desse
a habitação assume sua centralidade nos dra-
valor nas cidades. Convém ainda sublinhar que
mas individuais. A redução dos rendimentos
dois terços dessa variação ocorreu entre 2007
mensais, o aumento dos impostos sobre o imo-
e 2010 (USA Census, 2011). Estourou assim a
biliário e ainda o de todos os consumos ineren-
bolha do mercado imobiliário.
tes à habitação, conjugados com a ocorrência
Em Portugal, a crise não demorou a
ou iminência do desemprego, implicaram o
chegar e, mais uma vez, a eleger a habitação
agravamento do endividamento familiar sem-
como um alvo fácil. Todavia, relembre-se que,
pre estimulado pelo setor financeiro. Com ele
já desde os meados do século passado, se
chegaram as dificuldades no pagamento das
sentiam mudanças na sociedade portuguesa
hipotecas da habitação própria explicando-se
com “o desenvolvimento tecnológico e a ex-
assim a multiplicação de anúncios na comuni-
tensão da produção capitalista à agricultura,
cação social relativos a leilões e execuções fis-
a abertura ao mercado externo e a integração
cais de imóveis particulares.
transnacional por via da adesão à EFTA (1959),
bem como o regresso dos ex-colonos” (Ferrei-
Da perda da habitação à perda da cidadania é um passo excessivamente curto.
ra, 1987, p. 22). Compreende-se assim que, na
década de 60 do século passado, as estimativas apontavam para uma carência de 500 mil
fogos (Ferreira, idem).
Nos EUA como em Portugal (entre ou-
Bairro social
ou bairro problemático
tros países), por motivos e estratégias diferentes, a habitação estando presente ativamente
As cidades são, antes de mais nada, feitas de
nos sonhos individuais é usada como instru-
pessoas. São essas pessoas que dão viabilida-
mento de manipulação pelo poder quer políti-
de às atividades e funções urbanas. Sem elas
co – por meio das políticas de habitação social
não haveria promoção imobiliária, dinamismo
ou das políticas de apoio ao arrendamento ou
econômico, investimento cultural. Por mais que
ainda ao acesso ao crédito bonificado – quer
a desmaterialização da vida coletiva que pare-
econômico – através do interesse financeiro
ce aprofundar-se e a cada vez mais evidente
que ali vê uma forma muito segura de se
compressão espaço-temporal inicialmente vis-
ampliar e aplicar os excedentes de capital. A
lumbrada por Harvey (1989) nos queiram fazer
lógica produtivista da habitação predominava
esquecer sua centralidade.
sobre qualquer outra preocupação (qualificação, gestão, …).
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Mestre nesse percurso de despersonalização, o neoliberalismo reafirma o reinado
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Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho
da racionalidade econômica e a pertinência
importava atrair e fixar populações. Estimava-
da irrealidade financeira na ação do Estado.
-se a produção de 50 mil alojamentos, e para
É transversal a ideia que os serviços públicos
isso criou-se o Fundo de Fomento da Habita-
se devem pagar a si próprios embora, se assim
ção (FFH). Foram os casos, na Área Metropo-
fosse, o Estado na verdade não seria neces-
litana de Lisboa do PIS – Plano Integrado de
sário, o Estado seria obrigado a uma função
Setúbal e do PIA – Plano Integrado de Alma-
supletiva. Teria sido a dinâmica “natural” do
da, entre outros.
sistema de mercado a encontrar as melhores
À mesma perspectiva corresponderam
fórmulas para levar esses serviços a todos sem
problemas semelhantes, isto é, essas áreas
exceção. Teria sido assim com a educação,
pela sua extensão encontraram sempre locais
com a saúde, com o apoio social, transportes
de implantação à margem dos tecidos urbanos
públicos, cultura, entre outros campos essen-
consolidados revelando por tal problemas de
ciais à vida coletiva.
articulação com a cidade acoplada. Por outro
A percepção que a habitação é um di-
lado, e contrariando os objetivos iniciais de
reito fundamental está consagrado na Consti-
integração, o caráter modernista do desenho
tuição da República Portuguesa, no seu artigo
urbano adotado acaba por lhe conferir, pela
65. Surge, aliás, na sequência do entendimento
amplitude da rede viária, do estacionamento e
que é ao Estado que incumbe corrigir as limita-
do restante espaço público, questões de coesão
ções da promoção privada, bem como a enor-
interna. Finalmente, a própria arquitetura dos
me carência instalada. As políticas visando a
edifícios acaba por conferir a esses territórios
correção desse déficit foram muitas e diversas,
a ideia de uma tripla exclusão física-urbana, ur-
recuando muitas décadas até 1974. O objetivo
banística e arquitetônica.
nunca foi alcançado.
Acresce a essa forte exclusão, que o ter-
Para a descompressão do problema
ritório se impôs a si próprio, a que resulta de
muito contribuiram as estratégias informais
uma polarização social decorrente de uma ho-
seguidas pelas famílias muitas vezes com a co-
mogeneidade das populações alojadas.
nivência das autoridades centrais e locais: alo-
Foi da condensação dessas particula-
jamentos com materiais precários, alojamentos
ridades que gradualmente a ideia de Bairro
clandestinos, subarrendamentos/sublocação,
Social foi migrando para Bairro Problemático,
ocupação de alojamentos degradados, coexis-
não obstante o esforço financeiro feito para
tência familiar, sobreocupação do fogo, …
colmatar a degradação física do edificado e
Os Planos Integrados foram uma das po-
do espaço público e ainda na desnificação das
líticas dirigidas à habitação para populações
redes de equipamentos e de apoio social. Em
com menores rendimentos consagrados no III
alguns casos ocorreram mesmo programas di-
Plano de Fomento (1968-1973), mas que se
rigidos a famílias e indivíduos ampliando com-
relacionavam com áreas particularmente inte-
petências, estimulando a organização coletiva,
ressantes para o desenvolvimento econômico
promovendo a participação pública, entre ou-
(polos de indústria pesada) e que para isso
tros objetivos.
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As metrópoles também têm lugares
Essas soluções, ao mesmo tempo que
locais – associações, condomínios, … – ou do
revelam uma genuína preocupação com es-
movimento cooperativo, por exemplo, quase
ses territórios e comunidades, não deixavam,
nunca foi considerado.
paradoxalmente, de confirmar o estigma que
Chega-se, então, a uma situação em
sobre eles pende ampliando o fechamento de
que, diante dos múltiplos problemas suscita-
famílias e bairros. Não negando os progressos
dos por esses territórios, era inadiável uma
alcançados e a eventual dificuldade de sempre
reflexão sobre o futuro e a operacionalização
dispôr de paradigmas alternativos de interven-
de uma estratégia coerente de enfrentamento
ção continuam por delimitar os efeitos dos pro-
desses desafios.
gramas, projetos e ações a que se submetem os
mesmos territórios, indiciando o caráter avulso
e provisório de cada um. Perpetuam-se as difi-
Do direito à habitação…
culdades de inclusão de famílias e territórios e
ganha renovada projeção a oposição do direito
A história de um bairro de interesse social –
à habitação com o direito à cidade.
administração direta, indireta e autônoma –,
Assim, entre a pressão da visão neolibe-
dirigido a populações de baixos rendimentos
ral e a repetição de intervenções estereotipa-
ou de rendimentos pouco adequados aos valo-
das, as políticas de habitação dirigidas a seg-
res praticados pelo mercado imobiliário, pode
mentos mais vulneráveis da população conti-
ter um perfil ascendente ou um perfil descen-
nuam a prosseguir o objetivo de contribuir para
dente. No primeiro caso encontramos, no caso
a construção de territórios mais integrados e
de Lisboa, Portugal, as áreas residenciais das
tolerantes (Mendes e Malheiros, 2007).
décadas de 40 a 60 do século passado, tendo
Se essas eram questões situadas no cam-
começado alguns (Bairros de Madre de Deus,
po da produção da habitação, muitas outras se
Caselas, Encarnação, Santa Cruz, …) a ser
poderiam colocar no campo da gestão do par-
pensados inicialmente na sequência do “Estu-
que habitacional que foi sendo criado. Em par-
do de Bairros Operários” confluindo depois no
ticular, a demissão que afetou as administra-
projeto “novos bairros”, moradias organizadas
ções centrais locais no acompanhamento dos
sob o princípio da cidade-jardim. Outras tipo-
trajetos feitos pelas famílias em termos sociais,
logias podem encontrar-se segundo os prin-
desistindo de considerar a habitação social co-
cípios modernistas da Carta de Atenas como
mo um apoio transitório (embora possa acabar
Alvalade ou os Olivais, também em Lisboa. No
por ser para a vida, por incapacidade financeira
segundo caso, parece encontrar-se a produção
da família).
habitacional dos anos 70 do século XX (ou
Um outro sinal do alheamento do Esta-
que maturou a partir dessa data) que, após os
do das preocupações de gestão foi o que de-
efeitos iniciais (elevação da autoestima dos re-
rivava dos modelos de gestão muito centrali-
sidentes, o alargar de expectativas pessoais e
zados em estruturas administrativas distantes
familiares), o passar dos anos revelou circuns-
(mesmo se desconcentradas no seio dos pró-
tâncias mais amargas, estreitando as relações
prios bairros). O envolvimento de estruturas
entre bairros sociais e bairros problemáticos.
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Esse percurso divergente de bairros de
pacífica. A migração ascendente, no fundo, cor-
habitação de interesse social com gênese se-
responde à aspiração de fazer evoluir o direito
melhante mereceria uma atenção exclusiva,
à habitação para um direito à cidade.
mas que não é oportuno abordar neste artigo.
Porém, interessa pelo menos sublinhar as intervenções efetuadas nos que apresentaram
processos descendentes. A generalidade dos
programas foi concebida e concretizada com o
apoio de fundos comunitários e acabou por incorporar os princípios que moldavam todas as
… ao direito à cidade:
repensar o Plano Integrado
de Setúbal
intervenções dessa natureza na União Europeia.
No fundamental celebravam a necessidade de
O Plano Estratégico de Setúbal Nascente
abordar a dimensão social, econômica e fisica,
(PESN) foi lançado pelo Instituto da Habitação
na convicção de que só esse tripé daria coerên-
e Reabilitação Urbana (IHRU) em colaboração
cia e viabilidade às ações. Em Portugal, desde o
com a Câmara Municipal de Setúbal (CMS) no
Programa de Iniciativa Comunitária Urban I e II,
contexto de um protocolo realizado entre as
passando pelo Programa de Reabilitação Urba-
duas entidades em 2007.
na (PRU) até o Programa Integrado de Qualifi-
Objetivos centrais – Tinha como objetivo,
cação das Áreas Suburbanas da Área Metropo-
baseado num diagnóstico social, educacional,
litana de Lisboa (PROQUAL) ou à recente Inicia-
cultural, habitacional, econômico e urbanístico,
tiva Bairros Críticos (IBC), não houve sinificativo
propor políticas integradas que permitissem a
desvio a essa filosofia de intervenção.
progressiva ocupação, recuperação e integra-
Como curiosidade, refira-se que o mesmo
ção daquela parcela do território na cidade.
bairro poderá ter sido submetido a mais do que
O PESN (sujeito a apresentação pública
um destes programas, denunciando insuficiên-
até 18 de março de 2011 e, entretanto, já apro-
cias ou necessidade de complementaridades
vado pelo IHRU e CMS), visa também a defini-
com outras ações.
ção de um modelo de ocupação que incluísse
A criação do bairro satisfaz uma necessi-
a reabilitação integrada do tecido urbano e a
dade fundamental – o direito à habitação – es-
elevação dos padrões de qualidade arquitetô-
tendendo-se até hoje as intervenções de manu-
nica e construtiva, envolvendo interesses pri-
tenção e reabilitação que, ao se centrarem em
vados e públicos.
exclusivo nestes territórios, acabam por lhes
A metodologia seguida estruturou-se do
negar ou dificultar outro direito essencial – o
seguinte modo:
direito à cidade.
Fase 1 – Análise e Diagnóstico
Dito de outro modo, a desmontagem
Fase 2 – Proposta
do efeito ilha continuamente recriado até em
Etapa 1 – Visão
intervenções razoavelmente recentes é hoje
Etapa 2 – Modelo Territorial
uma prioridade embora nem sempre fácil ou
Etapa 3 – Quadro de Intervenção e Desenvolvimento
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As metrópoles também têm lugares
Figura 1 – Setúbal no contexto da Área Metropolitana de Lisboa
e do Litoral Alentejano
Fonte: IHRU, Atkins e Espaço e Desenvolvimento, 2011.
Na sequência da aprovação do PESN, se-
texto marítimo portuário oferecido pelo Porto
gue-se a elaboração do Plano de Urbanização
de Setúbal e Sesimbra e está na charneira de
para dar forma às orientações estratégicas com
duas das áreas de maior dinamismo em nível
um Instrumento de Gestão territorial.
nacional: Lisboa e o Litoral Alentejano.
A matriz territorial – dinâmicas e po-
Essa posição privilegiada em conjugação
sição – A cidade de Setúbal tem um contexto
com uma capitalidade resultante da presença
de localização local, regional e nacional ex-
de funções de nível superior permite explicar
cepcional. Beneficia da articulação do sistema
a manutenção de uma expressiva capacida-
rodoviário e ferroviário; contexto logístico pela
de centrípeta dirigida a indivíduos (+6% de
proximidade da (prevista) maior plataforma lo-
2001 para 2011), famílias (+14%), alojamentos
gística do país a instalar no Poceirão, do con-
(+13,4%) e edifícios (+16,7%).
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Figura 2 – Expressão da área do PESN na cidade de Setúbal
Fonte: IHRU, Atkins e Espaço e Desenvolvimento, 2011.
Figura 3 – As múltiplas pressões e centralidades envolventes à área do PESN
Fonte: IHRU, Atkins e Espaço e Desenvolvimento, 2011.
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As metrópoles também têm lugares
A contribuir para essa atração também
A área do PESN encontra-se numa po-
não deve ser alheio o fato de Setúbal surgir co-
sição (na acepção da relação com elementos
mo muito competitiva no mercado imobiliário
espaciais estruturantes, proposta por Ribeiro
na zona sul e, sobretudo, no que respeita ao va-
(1986) interessante e até chave, diante das
2
lor/m dos imóveis usados (cf. Associação dos
polaridades difusas envolventes – Instituto
Profissionais e Empresas de Mediação Imobiliá-
Politécnico de Setúbal, Porto de Setúbal, Ur-
ria de Portugal-APEMIP).
banização de Vale da Rosa, Área Industrial e a
A zona integrada no PESN ocupa uma
cidade canônica.
superfície de cerca de 350 ha, situados no li-
Em uma avaliação prospectiva da Área
mite Sul/Nascente de Setúbal, cuja perificidade
de Intervenção (AI), é incontornável como as-
física e social tem marcado incontornavelmen-
pecto marcante desse território sua inserção
te sua história recente. Trata-se de um território
geográfica, tanto no contexto metropolitano,
caracterizado por um mosaico rico em diver-
como no de uma região que se alarga ao Lito-
sidade, mas cujas descontinuidades e mesmo
ral Alentejano. Igualmente determinante para
conflitualidade de usos não permitem por ago-
qualquer futuro que se desenhe no âmbito do
ra qualquer associação a uma lógica verdadei-
PESN é seu posicionamento no município.
ramente urbana.
De fato, a continuidade física que de-
As infraestruturas de acessibilidade têm
tém com o tecido urbano da cidade, sua pro-
vindo a constituir-se como elementos forte-
ximidade ao centro histórico, o potencial de
mente marcantes da ocupação e, sobretudo, da
relação com a frente ribeirinha, seu papel
vivência desse espaço, vitimizado pela lógica
de interface com as polaridades emergen-
de “atravessamento”.
tes em torno do Instituto Politécnico e Polo
Na frente Sul do PESN, é novamente um
Tecnológico e, finalmente, a extensão da sua
corredor de infraestruturas de mobilidade,
frente Sul/Nascente de cariz eminentemente
rodo e ferroviárias (Estrada da Graça e linha
portuário-industrial traduzem bem a com-
de Caminho de Ferro), que se assume como
plexidade desse território, mas também seu
suporte das ligações com as envolventes me-
caráter estratégico para o desenvolvimento e
tropolitanas, mas que, ao mesmo tempo, exer-
plena integração da Cidade.
ce um efeito barreira entre esse território e a
frente ribeirinha.
Apesar disso, e paradoxalmente, esse
posicionamento não lhe possibilitou até hoje
Os cerca de 350 ha do PESN, diante do
uma ruptura com o estatuto de perificidade
perímetro atual da cidade, representam qua-
ancorada nos pesados antecedentes e dinâ-
se sua duplicação. Essa comparação, ainda
micas de exclusão que esse território “incor-
que apenas aproximada, chama a atenção
porou”. Ainda encapsulado por barreiras di-
para as potenciais implicações que o relança-
versas, de natureza física, social e econômica,
mento urbano e econômico dessa área pode-
tem resistido às diversas operações tendentes
rá vir a significar.
à sua coesão e integração no espaço social e
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urbano da envolvente. Por tudo isso, parece
Essa marca estigmatizante é amplificada
evidente a urgência de uma centralidade forte
pela densidade dos working poor e pelas situa-
e agregadora, capaz de articular todas as pola-
ções de tensão e conflito em algumas zonas da
rizações envolventes.
AI (nomeadamente no Bairro da Bela Vista) refor-
Socioeconomia – Em 2001 (último ano
çando o estigma por via do efeito conjugado da
para o qual ainda é possível ter dados com
redução cognitiva e do evitamento experiencial
detalhe), Setúbal Nascente acolhia 8.638 indi-
(i.e., evitar ter a experiência de visitar o bairro)
víduos, representando 7,4% da população do
para as pessoas, famílias e associações aí fixadas.
município e quase um décimo da população da
Habitação e condições de habitabilida-
cidade. Apesar dos atuais baixos níveis de esco-
de – A proximidade dos bairros residenciais
laridade e de um significativo desemprego, re-
inscritos na AI ao centro urbano e as vistas
gista-se um gradual aumento dos níveis de es-
largas e sugestivas – a Bela Vista – sobre o
colaridade da população o que é, certamente,
Estuário são marcas distintivas desse terri-
um fator indutor da qualificação do tecido so-
tório. Em 2001, eram 892 edifícios os que se
cial a médio-longo prazo e indicador de inclu-
implantavam em Setúbal Nascente, sendo
são social. Todavia, são ainda muito marcantes
quase dois terços posteriores aos anos 70. Es-
a dependência dos apoios sociais (rendimento
se universo correspondia a 4% do município.
social de inserção, desemprego, habitação, …),
Por seu lado, os 32.659 fogos existentes na AI
a fragilidade das competências profissionais ou
elevavam-se a 5,9% do total concelhio, reve-
a desestruturação familiar.
lando maior densidade residencial.
Figura 4 – Principais eixos e ligações de transporte
(rodoviário, ferroviário e marítimo)
Fonte: IHRU, Atkins e Espaço e Desenvolvimento, 2011.
348
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012
As metrópoles também têm lugares
A existência de equipamentos sociais
●
Degradação da imagem urbana e presença
de proximidade e de outros equipamentos re-
de fatores de desqualificação da paisagem
centes no bairro (nomeadamente de eendoge-
●
neizounsino) ou nas proximidades, a presença
acessibilidade
de espaços físicos de qualidade na envolvente
(Parque Verde da Bela Vista e zonas verdes) e
as acessibilidades e rede de transportes bastante aceitáveis reforçam essa caracterização
de uma parte de Setúbal que, geralmente, não
está associada a fatores positivos como os
elencados. Perdura, ainda, a imagem da “outra face” da AI, marcada pela degradação do
edificado e a deterioração das infraestruturas
do fogo, pela limitada diversidade funcional
dos edifícios (explicando a falta de comércio e
serviços em algumas zonas), pelo fechamento
dos bairros – barreiras e fronteiras bem definidas – sem propiciar o contato com o exterior. Marcas essas que são sublinhadas, pelo
recente e expressivo aumento dos fogos vagos
e devolutos.
É possível sistematizar assim as debilidades e potencialidades:
Síntese – Debilidades
●
Vulnerabilidade do tecido social pelas dificul-
dades de inserção na vida ativa
Efeito de barreira das infraestruturas de
Síntese – Potencialidades
●
Sentimento de pertença ao Bairro (em contex-
tos problemáticos)
●
Forte papel das organizações de ação local e
movimentos associativos
●
Boa cobertura de equipamentos coletivos di-
rigida a diferentes públicos-alvo
●
Muito boa acessibilidade local e regional
●
Continuidade física com o tecido consolidado
da cidade
●
Capacidade construtiva disponível
●
Dimensão cadastral e expressão da proprie-
dade pública do solo
●
Excepcional perspectiva visual sobre o Estuá-
rio e referenciação do território
●
Diversidade e riqueza de ambientes naturais
e valores paisagísticos
Visão Estratégica – A necessidade de
identificar um fio condutor para a intervenção
conduziu à visão de um território que “aproveitará os seus recursos naturais e paisagísticos de excelência para, em conjugação com a
Estigma do Bairro da Bela Vista, por via da
promoção dos valores da cidade e da sua lo-
redução cognitiva e do evitamento experiencial
calização de interface entre a Península de Se-
●
●
Fraca integração/articulação institucional
túbal e o Litoral Alentejano, contribuindo para
●
Degradação urbanística e forte expressão dos
reposicionar Setúbal como centro metropolita-
sinais de insegurança
●
Irradiação dos equipamentos limitada aos
Bairros de Setúbal Nascente
●
Fraca atratividade e dinâmica da AI, perma-
nência de áreas expectantes
●
Monofuncionalidade e descontinuidade do
tecido urbano
●
Fraca permeabilidade e articulação com o te-
cido consolidado da Cidade
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012
no de relevo e permitindo o reassumir da sua
condição de capital no contexto da Costa Azul”
(IHRU, 2011, p. 18).
A Música assume-se como o elemento
mobilizador da mudança, afirmando Setúbal
Nascente, Cidade da Música: Um Território
de Cultura e Conhecimento; Um Destino de
Turismo e Lazer; Um Espaço Qualificado para Habitar.
349
Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho
Justifica-se especificar sobretudo o que
Frente de Estruturação e Consolidação
respeita à Habitação já que Setúbal Nascente
Urbana – Será criada uma nova frente edifi-
encorajará o re-equilíbrio da Cidade bem como
cada multifuncional, densa e contínua, que
a requalificação e diversificação das formas de
integre espaços para habitação, comércio,
habitar, favorecendo a criação de diferentes es-
serviços e equipamentos ao longo de um eixo
paços residenciais atractivos, orientados para
de mobilidade, com um perfil e um tratamen-
segmentos distintos do mercado de habitação:
to do espaço público de caráter intensamente
Frente de Reabilitação Urbana – O novo
urbanos.
quadro jurídico-administrativo da reabilitação
Assegurando a continuidade do tecido
será convocado para uma operação de van-
da cidade bem como a articulação entre a Be-
guarda, que garanta a preservação dos valores
lavista e as Manteigadas/IPS/Polo Tecnológico,
locais, conjugada a uma alteração significativa
esse eixo afirmará o transporte público e os
dos padrões de intervenção sociourbana.
modos suaves e constituir-se-á como um marco
Essa estratégia será articulada com a lógi-
referenciador de Setúbal Nascente.
ca de revitalização do Centro Histórico e deve
Frente de Promoção – O aproveitamen-
promover a continuidade e permeabilidade do
to das qualidades cênicas e naturais bem co-
tecido urbano de toda a cidade, associados a
mo dos recursos urbanos de Setúbal Nascente
uma intensa qualificação do espaço públi-
serão potenciados com a criação de espaços
co; à promoção da segurança; uma mobilidade
turístico-residenciais de elevada qualidade,
mais sustentável; à dinamização do comércio lo-
muito baixa densidade e forte integração na
cal; à valorização dos equipamentos existentes.
paisagem e valores locais.
350
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012
As metrópoles também têm lugares
Objetivos das Propostas
Objetivos gerais
Sustentabilidade socioeconômica
Tecido urbano e mobilidade
Paisagem e ambiente
Dinamizar a estratégia global por via de
uma nova lógica – de modernização – da
reabilitação urbana.
● Sustentar a instalação de equipamentos
indutores de centralidade territorial e,
consequentemente, indutores de dinâmica
econômica.
● Qualificar e abrir para e à cidade a rede
de equipamentos existente: de cultura,
desporto, recreio e lazer, mas também de
educação.
● Qualificar, diversificar e ajustar a oferta
de habitação.
● Promover a multifuncionalidade,
favorecendo a qualificação e diversificação
do comércio (nomeadamente restauração)
e dos serviços.
● Reforçar a lógica da multifuncionalidade
por via da promoção de (novas) atividades
relacionadas com o turismo de elevada
qualidade ou com a indústria de grande
sofisticação tecnológica.
● Promover o emprego e a qualificação
socioprofissional da população.
● Reforçar o envolvimento das
comunidades locais na implementação das
ações de regeneração urbana.
Garantir a articulação e/ou continuidade da área
do PESN com o tecido envolvente, urbano, terciário
e logístico-industrial.
● Preencher, consolidar e referenciar a malha urbana,
mas garantir a preservação de áreas de reserva para
expansão de longo prazo da cidade.
● Valorizar os elementos patrimoniais locais, de
caráter urbanístico e arquitetônico.
● Promover a legibilidade do tecido urbano e
sua projeção exterior, aproveitando os marcos
urbanísticos e paisagísticos do local e envolvente.
● Definir uma rede de espaços públicos qualificada
e hierarquizada que se articule com as novas
centralidades a criar e com os espaços existentes ou
previstos na envolvente
● Incrementar a multifuncionalidade dos usos do solo.
● Articular a densificação do tecido construído com
a escala do espaço público e com a política de
transporte público.
● Completar e hierarquizar a rede viária local,
articulando as ligações com a cidade, o concelho e
a AML.
● Reduzir as necessidades de deslocações, minimizar
a dependência do automóvel e favorecer a utilização
do transporte público.
● Assegurar a integração entre os diferentes modos de
transporte e promover os modos suaves.
● Implementar uma rede ecológica local em
●
●
articulação com a rede ecológica da cidade,
do concelho e da área metropolitana de
Lisboa.
● Apostar intensamente na preservação e
valorização dos valores naturais locais.
● Usar as áreas verdes como áreas tampão,
áreas de proteção a usos sensíveis e áreas
de remate.
● Proteger e valorizar o sistema de
vistas de e para a baía e zona ribeirinha,
favorecendo ativamente sua função.
● Aproveitar as características da ZE para o
desenvolvimento de atividades de ar livre,
potencializando a utilização do espaço
público, das zonas naturais e das áreas
verdes.
● Promover um modelo territorial que
contribua para a redução de necessidades
energéticas e favoreça o conforto acústico.
Essas áreas complementarão a oferta da
fundamentais não só para esse território como
envolvente (Sesimbra, Palmela, Alcácer do Sal e
para a afirmação de regional de Setúbal. O Mo-
Grândola) integrando Setúbal na rede regional
delo Territorial assenta em uma rede de corre-
de turismo residencial, contribuindo para sua
dores de mobilidade, com funções muito distin-
afirmação como destino turístico e Capital da
tas no quadro global da intervenção, mas que
Costa Azul. O funcionamento desses equipa-
genericamente completam e consolidam a ain-
mentos deverá satisfazer parte da procura de
da inacabada rede radio-concêntrica da Cidade.
emprego de Setúbal Nascente.
São quatro grandes eixos longitudinais
Como forma de agilizar a concepção do
que asseguram as ligações Nascente/Poente,
modelo de intervenção foi ainda definido um
ou seja, permitem consolidar as relações entre
conjunto de objetivos de referência. Trata-se ago-
o centro da Cidade e as diferentes polaridades
ra de concretizar esse conjunto de referências
que se têm vindo a organizar na franja oriental
nos seus suportes mais operativos de natureza
periurbana (área portuária-industrial, Instituto
territorial, sendo esse o propósito da construção
Politécnico de Setúbal, zona logística), e duas
do Modelo Territorial para Setúbal Nascente.
potentes distribuidoras circulares. Essa malha
O Modelo de Intervenção – A Visão pa-
acaba por ajudar a delimitar as duas grandes
ra o território de Setúbal Nascente promove a
centralidades propostas: Centralidade Urbana e
afirmação de um conjunto de eixos estratégicos,
Centralidade Metropolitana.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012
351
Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho
Figura 5 – Modelo Territorial aprovado para a área do PESN
Programas Estratégicos – A este modelo
As dinâmicas sociodemográficas co-
de expressão territorial associam-se um con-
nhecidas, quer da cidade de Setúbal quer do
junto de cinco programas estratégicos que lhe
interior do PESN, manifestam claras opor-
conferem conteúdo e o caráter inovador em
tunidades e urgência de integração, funda-
nosso entender. Destaca-se naturalmente o sis-
mentalmente a partir de vários instrumentos
tema de sustentabilidade socioeconômica que
e ações: mobilidade residencial; diversificar
se desdobra em dois Programas:
o tecido social; complexificar a oferta resi-
1) Programa de Intervenção Sociourbana:
dencial; capacitação da população para a
programa que pretende a articulação da di-
vida ativa e empreendedorismo; integração
mensão social com a dimensão urbana conver-
das respostas sociais oferecidas; alargamen-
gindo para uma nova relação desta área com a
to e diversificação da oferta de oportunida-
Cidade e a AML no seu todo.
des de emprego.
352
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012
As metrópoles também têm lugares
Esquema geral de programas a desenvolver
Sistema
Programa
Intervenções estratégicas
Programa de Espaços Públicos
Sistema de Desenvolvimento Urbano
Rede de grandes praças
Rede de pequenas praças
Rede linear
Programa de Reabilitação Urbana
Sistema de Equipamentos
de Utilização Coletiva
Programa de Equipamentos
Parque Central
Parque da Cidadania
Parque da Música e do Som
Sistema de Mobilidade
Programa de Mobilidade
Rede viária e modos suaves
Metrô de superfície
Programa de Proteção Ambiental
e Paisagística
Sistema de Ambiente e Paisagem
Valorização da encosta
Proteção da várzea
Rede ecológica local
Programa de Valorização
Urbano-Turística
Campo de golfe
Estrada panorâmica/Miradouros
Programa de Intervenção
Sociourbana
Gestão do parque residencial público
Plano de capacitação da população ativa
Plano de intervenção social integrada
Sistema de Sustentabilidade
Socioeconômica
Programa de Promoção Territorial
Plano de marketing territorial
Programa de ação para o reforço e diversificação
funcional
Programa de eventos
Projetos estratégicos
Identificação
Descrição
Peso estratégico
Otimização da gestão do
parque residencial público
Redefinir critérios de atribuição, gestão e responsabilização dos
alojamentos de caráter social, favorecendo a mobilidade residencial
das famílias
Fundamental
Plano de capacitação da
população ativa
Definir um quadro completo, ambicioso e dinâmico capaz de um maior
sucesso na integração da população em idade ativa desocupada
Fundamental
Integração das respostas
sociais oferecidas
Ação a desenvolver no sentido de articular a significativa densidade e
complexidade da intervenção social, buscando sinergias e uma maior
eficiência
Fundamental
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353
Jorge Gonçalves, António Costa, Luís Sanchez Carvalho
Seus principais objetivos são: qualificar e
abrir para e à Cidade a rede de equipamentos
Conclusão
existente: de cultura, desporto, recreio e lazer,
Os tempos não estão de feição para as mega-
mas também de educação; reforçar o envolvi-
operações urbanísticas que sempre esperam a
mento das comunidades locais na implementa-
existência de fôlego financeiro, quer público
ção das ações de regeneração urbana.
quer privado (ou ainda dos dois em simultâ-
Tem como intervenções estratégicas: a
neo). Ciente destas limitações, a opção do PESN
Gestão do Parque Residencial Público; Plano
passou por reconhecer o processo de exclusão
de Capacitação da População Ativa; Plano de
de múltiplas faces porque atravessa essa área e
Intervenção Social Integrada:
identifica a necessidade de relação da interven-
2) Programa de Promoção territorial:
ção a desenhar com a cidade existente e com
as áreas de habitação social têm sido desde
a região, não se fechando no crônico erro de
há largos anos afetadas por uma imagem
apenas olhar para a AI.
negativa por múltiplas razões. Uma locali-
Nascem assim as ideias de relançamento
zação demasiado excêntrica e com pouca
da cidade de Setúbal com uma capitalidade em
visibilidade acabou por lhes conferir a ideia
risco após a desindustrialização a que os espa-
de gueto e, aos residentes, a ideia de reclu-
ço urbanos em geral foram submetidos e pelo
sos do espaço.
esvaziamento funcional ligado à oferta de ser-
A existência de um “dentro” e um “fo-
viços públicos de um Estado há muito em crise.
ra” do bairro contribuiu para estigmatização
Seu posicionamento metropolitano, suas con-
persistentemente construída quer no seu inte-
dições naturais e sua relação com a interface
rior quer no exterior. A reversão deste quadro
regional deixam em aberto um amplo campo
é imperativa, mas complexa. Esse programa
de possibilidades a explorar como acabou por
pretende assim: desmontar as imagens nega-
suceder com as propostas do Parque Temático
tivas produzidas sobre a área; produzir novas
da Música e do Som, do campo de Golfe e da
identidades a partir de ideias-âncora; patro-
oferta científico-cultural ligada ao Instituto Po-
cinar maior densidade de serviços públicos e
litécnico de Setúbal.
privados de nível urbano e metropolitano.
Por outro lado, num contexto mais local,
Seus objetivos são: reforçar o envol-
a cidade, como muitas outras, registra um de-
vimento das comunidades locais na imple-
clínio de seu centro histórico que urge enfren-
mentação das ações de regeneração urbana;
tar repovoando-o e refuncionalizando-o. Esti-
qualificar e abrir para e à cidade a rede de
mular a mobilidade residencial a partir de Setú-
equipamentos existente: de cultura, desporto,
bal Nascente poderá ser uma boa opção, desde
recreio e lazer, mas também de educação.
que bem conduzida ou, se se quiser, desde que
Avança com três intervenções estratégi-
conheça bem as narrativas familiares e que, em
cas: Plano de Marketing Territorial; Programa
função de sua avaliação, se possa determinar/
de Ação para o reforço e diversificação funcio-
sugerir novos percursos residenciais na linha,
nal; Programa de Eventos.
aliás, do que defendem Hita e Gledhill (2010).
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 339-356, jul/dez 2012
As metrópoles também têm lugares
Finalmente, na AI a questão da habi-
O Plano de Urbanização irá agora espa-
tação passará por um “apagão” dos bairros
cializar e formalizar as orientações estratégicas
mais problemáticos, por uma transferência de
do PESN. A favorável opinião dos parceiros e
algumas famílias (mais disponíveis para a in-
agentes presentes no território deixam funda-
clusão) e por exercícios de renovação de gestão
das esperanças no sucesso desse novo entendi-
do parque habitacional (com novos parceiros e
mento de processos de requalificação e revitali-
mais atenção ao percurso social registado pe-
zação de áreas historicamente fragilizadas nas
las famílias).
dimensões sociais e urbanas.
Jorge Gonçalves
Geógrafo, Professor Auxiliar do Instituto Superior Técnico, Lisboa, Portugal.
[email protected]
António Costa
Arquiteto, Professor Auxiliar do Instituto Superior Técnico, Lisboa, Portugal.
[email protected]
Luís Sanchez Carvalho
Arquiteto, Mestre em Planejamento Regional e Urbano, Assistente convidado na Faculdade de
Arquitetura da Universidade Técnica de Lisboa. Lisboa, Portugal.
[email protected]
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Texto recebido em 5/out/2011
Texto aprovado em 4/jan/2012
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Ditadura civil-militar e favelas:
estigma e restrições ao debate
sobre a cidade (1969-1973)
Civil-military dictatorship and slums: stigma
and restrictions to the debate about the city (1969-1973)
Mario Sergio Brum
Resumo
O presente artigo busca contribuir para a compreensão das condições políticas e econômicas que
possibilitaram a execução da política de remoção
de favelas promovida pela Ditadura Civil-Militar
instaurada em 1964, no então Estado da Guanabara, bem como o entendimento de como este plano
seguia pressupostos estruturados na conjuntura
democrática anterior, a partir da permanência do
estigma de favelado como alguém marginal, ilegal e sem ‘direito à cidade’. Dessa forma, o artigo
destaca como idéias e teses sobre o favelado eram
expostas pelas autoridades sem que pudessem ser
questionadas pelos diversos atores, com a remoção de favelas se consolidando como praticamente
a única política de Estado para as favelas cariocas
no período 1968-1973.
Abstract
This study contributes to the understanding of the
political and economic conditions that enabled the
execution of the policy of slum clearance promoted
by the Military Dictatorship established in the
then State of Guanabara in 1964. In addition, it
contributes to the understanding that the origins
of this policy remain in a previous period, since
the “favelado” (slum dweller) was already seen by
society and the State as someone marginal, living
in illegal conditions and without citizenship rights
in the city. This paper also highlights how the idea
of the “favelado” was exposed by the authorities
without being properly questioned by the various
actors of the society. Therefore, the removal of
the slums was consolidated practically as the only
State’s public policy for slums between 1968-1973.
Palavras-chave: favelas; favelado; remoção de favelas; CHISAM; planejamento urbano.
Keywords: favelas; slum dweller; slums removal;
CHISAM; urban planning.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012
Mario Sergio Brum
Introdução
Na década de 1960, a política de segregação
espacial da cidade promovida pelos governos
Federal e da Guanabara tomou proporções
inéditas, com a remoção de favelados das
áreas centrais da cidade, particularmente na
valorizada Zona Sul, e a consequente transferência desses para terrenos vazios na periferia, a algumas dezenas de quilômetros do
centro da cidade e de seus antigos empregos.
Esse período pode ser caracterizado como a
“era das remoções”, quando foi implementada uma política sistemática de erradicação
das favelas.
Esse período trouxe uma mudança drástica na relação entre Estado e favelas: a partir de 1969, no contexto ditatorial, a remoção,
ameaça sempre presente na vida das favelas,
pôde ser executada com força total, garantida
por uma repressão nunca vista antes. O poder
do voto, que anteriormente havia sido utilizado pelos favelados através de diversas estratégias de sobrevivência, estava bastante enfraquecido, e os favelados veriam drasticamente
reduzidas suas margens de manobra para se
contraporem aos interesses envolvidos na erradicação das favelas.
da sociedade, por uma solução urgente, tendo
o número de habitante destas praticamente
dobrado entre 1950 e 1960, passando de cerca
de 170 mil moradores, correspondendo a 7,2%
do total da população da cidade, para 335
mil, 10% da população total (Ribeiro e Lago,
1991), cifras que alarmavam os que viam a favela como uma infestação urbana que crescia
sem controle.
Na imprensa, o crescimento das favelas
é noticiado com certo alarde: “De Vigário Geral até a Barra da Tijuca, contudo, não há quem
não saiba que as favelas estão crescendo”
(Jornal do Brasil, 1968c). Num editorial do Jor-
nal do Brasil por ocasião das chuvas de 1966,
quando ocorreram deslizamentos e mortes em
várias favelas do Rio de Janeiro, a defesa da remoção é veemente:
No ponto em que chegamos, não há no
Rio qualquer outro problema que apresente tanta urgência em ser resolvido
quanto as favelas (…). A extinção das
favelas justifica a paralisação de todos os
programas de embelezamento urbanístico
da cidade, pois não há melhor forma de
ressaltar o esforço de melhoria da Guanabara do que a eliminação do contraste
brutal e injusto das favelas com o perfil
dos edifícios e a linha da paisagem favorecida. (Jornal do Brasil, 1966)
Num documento do Governo da Gua-
Ditadura Civil-Militar
de 1964 e as favelas
nabara, já sob a gestão de Negrão de Lima
(1965-1971), em que o programa de remoções
é apresentado, diz-se que ele é necessário para a cidade: “quando se libera das desoladoras
Com o regime instaurado a partir do golpe
favelas que se espalhavam já por 230 pontos
ocorrido de 31 de março para 1 de abril de
diferentes e que, segundo os futurologistas,
1964, a ideia da remoção de favelas ganharia
tendiam a abranger, nos próximos 30 anos
um ímpeto nunca tido antes. O “problema-fa-
mais de três milhões e meio de habitantes”
vela” clamava, segundo autoridades e setores
(Governo da Guanabara, 1969).
358
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012
Ditadura civil-militar e favelas
A centralização política e administrativa
Uma fonte bastante esclarecedora de
do período da ditadura, por sua vez, traduziu-
quanto as discussões sobre as dificuldades
-se numa maior disponibilidade de recursos
de uma “solução” para o problema favela já
técnicos e financeiros, propiciando as condi-
vinham permeando a esfera governamental é
ções para a execução do propósito de ordenar
um documento de 1952, de apresentação da
o território urbano numa escala jamais vista.
Subcomissão de Favelas da Comissão Nacional
Santos aponta que:
de Bem-Estar Social, ligada ao Ministério do
O país tem enfim os recursos tecnológicos e financeiros para levar à prática as
ideologias “ordenadoras” das cidades.
Melhor ainda: existe uma força política
concentrada e coerente que é potenciada
exatamente por sua exclusividade discricionária e pelos meios materiais de ação
que não existiam nas primeiras décadas
do século [XX], por maiores que fossem
as elaborações teóricas e as intenções
decorrentes. (Santos, 1984)
Trabalho, Indústria e Comércio (Subcomissão
de Favelas, 1952). Várias recomendações desta
Subcomissão foram seguidas posteriormente,
em contexto bem diferente, com a criação do
BNH e da CHISAM.
O documento é preparatório a uma semana de estudos sobre favelas, e foi encaminhado às autoridades municipais e estaduais
por todo país, com uma curta análise da questão da sub-habitação no âmbito nacional,
compreendendo-a, principalmente, como um
Podemos comprovar a hipótese, narrada
com certo orgulho, num material da CHISAM
(Coordenação de Habitação de Interesse Social
da Área Metropolitana), autarquia do governo
federal responsável pelo programa de remoções na Guanabara e Grande Rio, ao reproduzir
uma reportagem do jornal Diário de Notícias:
Ninguém tem a menor dúvida – antes,
tem a sólida experiência – de que, antes
de 31 de março de 1964, tentar efetivamente a extinção das favelas, com a indispensável remoção dos favelados, seria
obra praticamente impossível. E não só
pelas dificuldades financeiras, na obtenção de novas moradias em que alojar os
moradores das favelas; principalmente,
pela reação organizada, não tanto pelos favelados, mas sobretudo pelos que
tinham e têm grandes interesses na exploração desses infelizes conglomerados
humanos. (Diário de Notícias, 1971, apud
CHISAM, 1971)
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012
problema de déficit habitacional. Também são
apontados os obstáculos ao encaminhamento
de uma solução do problema, dentre os quais
estavam: “a indústria da construção civil não
se acha suficientemente desenvolvida e adaptada às necessidades de empreendimentos de
construções populares” e a “ausência de um
zoneamento ou de razoável proporção entre
os bairros de uma mesma cidade em termos de
equilíbrio da função social e econômica”(idem).
O maior problema era levantar recursos financeiros para um programa de grande
envergadura, procurando conjugar recursos
do Estado aos da iniciativa privada: “Torna-se
necessário, portanto, que se pense em buscar
novas fontes de capitais na administração pública e na economia privada, sem o que será
inexequível a execução de qualquer plano de
construção de habitações em grande escala e
de envergadura nacional”(idem).
359
Mario Sergio Brum
Como forma de superar esses obstáculos,
a Subcomissão recomenda uma série de medidas para que houvesse uma ampla e rápida
oferta de moradias populares, dentre as quais:
“averiguar a soma do capital privado disponível para a construção de moradias” e “as do-
então praticamente estacionário – pouco
mais à frente no documento, é dito ainda que o programa – possibilitou o surgimento de uma indústria de construção
civil que até 1966 passava por um agudo
período de recessão. (Governo da Guanabara, 1969)
tações a serem previstas para a Fundação Casa
Popular durante dez anos sucessivos” (idem).
No já citado editorial de 1966, o Jornal
Tais requisitos seriam amplamente pre-
do Brasil cobrava do Governo do Estado uma
enchidos com a criação, em agosto de 1964
atitude firme pela remoção de favelas, posicio-
(Lei 4380, de 21/8/1964), do Banco Nacional
nando-se enfaticamente contra qualquer políti-
de Habitação (BNH), órgão financiador e res-
ca que fugisse a isso:
ponsável por programas habitacionais, que
seriam estabelecidos pelo Sistema Financeiro
de Habitação.
Segundo autoridades federais, como o
ministro do Planejamento Roberto Campos,
o BNH deveria, além de fornecer habitações
às camadas populares, funcionar como um
impulso à economia do país, através do apoio
à construção civil, estimulando as várias indústrias ligadas ao setor, gerando empregos desta
forma e reaquecendo o mercado de capitais,
já que o BNH seria um organismo de financiamento da casa própria, através da administração da Carteira de Operações de Natureza Social, com os recursos vindo de 1% dos salários
sob Regime de CLT.
Resumindo: a construção de habitações
populares deveria ao mesmo tempo resolver o problema-favela e aquecer a economia
(Bolaffi, 1982), elemento que consta como
Com o retorno do sol, reapareceram
também os apologistas da favela com
propostas sobre urbanização dos morros
localizados nos bairros de maior densidade populacional. A essa mistificação,
devemos todos nos opor corajosamente,
porque provado ficou que não existe nos
terrenos, onde se constroem esses arremedos de habitação, o mínimo de segurança para tantas vidas. (…) não é lícito
sequer admitir as insinuações de que o
Poder Público deve as favelas como uma
realidade permanente e partir para o que
impropriamente se denominou urbanização dos morros. Não há o que se urbanizar na favela, onde tudo é condenado.
(Jornal do Brasil, 1966)
Mais à frente, o editorial defende que, ao invés
de se gastar recursos na urbanização, financie-se “a construção de moradias para alojar toda
a população favelada”.
um dos pontos positivos do programa no
documento oficial do Governo da Guanabara:
A execução de uma reforma habitacional
de tal envergadura trouxe, forçosamente,
implicações colaterais, em particular no
campo econômico, que conheceu poderosos estímulos originários de um setor até
360
A conjuntura política
A conjuntura política de fechamento cada vez
maior dos canais democráticos é um ponto fundamental para entendermos como a remoção
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012
Ditadura civil-militar e favelas
pôde ser implementada sem que uma resistência ativa fosse feita, visto o movimento social,
e neste caso particular, as associações de moradores de favelas e sua federação, a FAFEG
(Federação das Associações de Moradores de
Favelas do Estado da Guanabara), estarem sofrendo forte vigilância e vivendo episódios de
pesada repressão.
Por outra via, o estigma de favelado
prevaleceu no programa de remoção sem que
ele pudesse ser contestado por outros setores,
incluindo aí os favelados. “Verdades” sobre a
favela apresentadas pelas autoridades à frente do programa de remoção não tinham como
ser rebatidas.
Exemplo disso está em um artigo do
coordenador geral da CHISAM, Gilberto Coufal,
dizendo, sem apresentar de onde tirou tal dado,
que “já é fato constatado, por exemplo, que os
moradores das favelas da Zona Sul trabalham
na Zona Norte e que o tempo de locomoção
e o custo das passagens lhes trazem pesados
ônus” (Agente, 1969).
Para os contrários à remoção, inclusive os
principais interessados, os moradores de favela,
Ao completarmos o planejamento estabelecido para o desfavelamento progressivo
da área do Grande Rio, defrontamo-nos
com alguns problemas relacionados a
teses, ideias e teorias sobre a favela e o
favelado (…) As opiniões ouvidas, a bibliografia consultada, a pouco nos conduziram. (CHISAM, 1971)
E outro é quando a CHISAM, tendo tornado públicas suas intenções, foi alvo de críticas:
À medida que a programação, diretrizes e
filosofia das atividades a serem desenvolvidas pela CHISAM foram se concretizando através de documentos escritos, entrevistas oficiais e divulgação pela imprensa,
desabou nas favelas uma avalanche de
comentários e boatos sobre o que se pretendia realizar (…) Uma infinidade de técnicos e pseudo-técnicos emitiam opiniões,
defendiam teses, propunham soluções, porém os interessados diretos ficavam mudos [refere-se aos favelados, com fortes
razões para ficarem mudos, dado o clima
de repressão e controle sobre as associações]. Utilizando o processo de trabalhar
com dedicação e convicção de que estávamos certos, virtualmente nenhuma crítica
foi oficialmente rebatida. (Idem)
não havia espaço para contestar tal informação, embora a FAFEG fosse radicalmente con-
Essa postura autista foi possível na at-
trária às remoções, como se lê em matéria do
mosfera de intensa repressão e fechamento
Jornal do Brasil: “Os favelados cariocas prepa-
dos canais democráticos. A razão para os fave-
ram-se para lutar contra as remoções e a favor
lados estarem “mudos”, embora o movimento
da urbanização do local onde vivem”(Jornal do
comunitário no ano de 1968 tenha se posicio-
Brasil, 1968d).
nado contra a remoção, deve-se ao emblemá-
Em documento da CHISAM, em que é fei-
tico episódio da remoção da favela Ilha das
to o balanço da sua atuação nos primeiros anos,
Dragas, na Lagoa, em 1968. Numa matéria
em dois trechos fica evidente a postura “autis-
publicada em O Jornal, sobre a remoção da
ta” da autarquia. O primeiro fala sobre o proces-
Ilha das Dragas, fica patente a contrariedade
so de elaboração do plano de desfavelamento
da diretoria da associação de moradores local
que levou à criação da CHISAM:
em relação à remoção para Cidade de Deus.
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361
Mario Sergio Brum
Ao se referirem sobre as visitas de moradores
ao conjunto, promovidas pelo Estado, os diretores da associação diziam que os moradores não
a queriam: “Visitam a Cidade de Deus apenas
pelo passeio, pois logo ao retornarem, explicam
‘sair daqui, não saio nunca’” (O Jornal, 1968).
Numa matéria do jornal Luta Democráti-
ca sobre a Ilha das Dragas, a remoção se evidencia numa imposição do governo:
Um grupo de assistentes sociais intimou
as 600 famílias residentes na Ilha das
Dragas, na Praia do Pinto, a dali saírem no
prazo de 60 dias, findo o qual terão que
sair ‘mesmo à força’. Perguntadas para
onde iriam os favelados, disseram as assistentes sociais que as famílias da Ilha
das Dragas poderiam ir para onde quisessem, às suas próprias custas, mas que,
por conta do governo do Estado, somente
para a Cidade de Deus. (Luta Democrática, 1968)
Como houvesse ainda resistência por parte da
urbano, ainda não ocupadas, superiores
a 11 milhões de metros quadrados, que
permitiam a construção de aproximadamente 45.000 novas habitações. A estas,
além das áreas de propriedade dos governos dos Estados da Guanabara e do Rio
de Janeiro, poderiam ser somadas parcelas consideráveis de áreas ocupadas por
favelas, possíveis, técnica, econômica e
urbanisticamente, de sofrerem um processo de renovação urbana, integrando-se, e
a seus moradores, no contexto urbano e
social das cidades. (CHISAM, 1969)
De modo que os termos “Renovação Urbana” ou “desfavelamento” são usados amplamente nesse documento. Embora “Renovação
Urbana” na maioria das vezes seja usado como
sinônimo de urbanização da favela, em outros
trechos não fica claro se a intenção era urbanizar as favelas ou liberar a área para empreendimentos residenciais dirigidos à classe média e
indústrias, o que acabou sendo a tônica.
associação de moradores, quatro membros de
Segundo material da CHISAM, a ação da
sua diretoria foram presos por homens à paisa-
autarquia não se limitava apenas a construções
na em carros com placas frias, segundo repor-
de conjuntos e remoções de favelas, e, sim, que
tagem do jornal Correio da Manhã (1969), e a
havia um sentido de recuperação e integração
remoção acabou se concretizando.
social dos favelados com o alcance dos seguin-
Como diversos autores apontam, uma
das características dos regimes militares do Cone Sul é dotar suas políticas de um caráter eminentemente técnico, estando fora do âmbito da
política1. Desse modo, a remoção revestia-se de
um caráter neutro, conforme podemos ver no
documento da CHISAM:
Concluiu-se em primeiro estudo que somente na área do Grande Rio existiam
áreas federais, situadas no perímetro
362
tes objetivos:
a) propiciar a aquisição de casa própria a
famílias de baixa renda, desenvolvendo-lhes o sentido de propriedade e confiança nas autoridades legalmente constituídas; b) retirá-los de um ambiente
irrecuperável, propiciando-lhes a abertura de novos horizontes e oportunidades;
c) recuperá-los social e economicamente para poderem integrar a sociedade
constituída. (CHISAM, 1971)
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Ditadura civil-militar e favelas
A CHISAM
Em 1967, o BNH passa a contar com recursos
oriundos do FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço), que ampliou consideravelmente
o capital disponível ao banco, de modo que lhe
foi assegurado “um fluxo amplo e contínuo de
capital inteiramente independente do retorno
do investimento” (Langsten, 1973). De modo
que outra recomendação feita pela Subcomissão de favelas do período varguista, a de
construir habitações em larga escala usando
recursos de fundos previdenciários dos trabalhadores, era seguida pelo regime de 1964
(Subcomissão de Favelas, 1952).
A partir de 1968, o programa remocionista ganha ímpeto com a criação da CHI-
Com reduzidos recursos e com soluções
incompletas por falta de condições financeiras ou alterações de diretrizes da política de desfavelamento, as obras executadas são até hoje altamente controvertidas, quanto aos seus objetivos. (Idem)
Como obter, então, os resultados que seriam satisfatórios para os diversos setores da
sociedade que clamavam por uma solução definitiva para as favelas? A opção da remoção
era preconizada, por exemplo, num editorial do
Jornal do Brasil em março de 1969:
Parece que não há mais nada a discutir no
caso das favelas. Cerca de 80% da população do Rio aprovam a extinção progressiva desses núcleos com a remoção simultânea de seus moradores para conjuntos
habitacionais. (Jornal do Brasil, 1969a)
SAM através do Decreto Federal n. 62.654, em
3/5/1968, vinculada ao Ministério do Interior,
Voltando ao documento da CHISAM de
junto com o BNH, com a autarquia assumindo
1969, é dito que, mesmo com os programas
o controle direto de vários órgãos do governo
desenvolvidos para as famílias de baixa renda
do estado da Guanabara.
desde a criação do BNH, também não foram
Numa entrevista de Gilberto Coufal ao
obtidos resultados satisfatórios. Entre as ra-
Jornal do Brasil em 1971, já como ex-coordena-
zões, além da “grandeza do dimensionamento
dor da CHISAM, esse reafirmou a visão positi-
das favelas”, estavam: falta de recursos dos
va sobre o viés remocionista do ex-governador
governos dos estados; falta de terrenos viáveis,
Carlos Lacerda: “As primeiras iniciativas, no
sob vários aspectos para a construção de habi-
governo Carlos Lacerda, foram válidas, no meu
tações de baixo custo; diversificação de órgãos
modo de entender, apesar dos protestos que ge-
públicos e privados atuando de forma desorde-
raram. Pelo menos fixou-se numa diretriz, uma
nada, a falta de uma política única e contínua;
política a ser seguida” (Jornal do Brasil, 1971b).
multiplicidade de soluções e improvisações.
Para as autoridades da CHISAM, as re-
A CHISAM assegurava que a política pa-
moções da época de Lacerda não lograram re-
ra as favelas na Guanabara e na região metro-
sultados satisfatórios porque
politana, no Estado do Rio, ficaria sob controle
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363
Mario Sergio Brum
do governo federal, como demonstra, de forma
inequívoca, Gilberto Coufal, seu coordenador
geral, ao falar das funções da autarquia:
Evitar que cada órgão tenha sua diretriz
própria; evitar que cada pessoa ou administrador manifeste opiniões diferentes a
respeito do problema específico de cada
favela. (…) É uma necessidade imperiosa
de fixação de diretrizes e de uma política
única do Governo Federal e dos dois Estados. (Agente, 1969).
caminho certo – finalmente – no caso das
favelas. Mas falta-lhe um pouco mais de
entusiasmo para resolver a questão em
definitivo, o que só será possível quando
tombar o último barraco da paisagem carioca. (Jornal do Brasil, 1969b)
Por esse editorial, é possível perceber
um período de indefinição por parte de Negrão
de Lima, no que a Codesco (Companhia de
Desenvolvimento de Comunidades) é tratada
por parte da bibliografia que aborda o perío-
Vale dizer que Negrão de Lima, em repor-
do como expressão máxima dessa indefinição
tagem do Jornal do Brasil logo após a criação
entre urbanização X remoção. O órgão era su-
da CHISAM, diz que o fato foi comunicado com
bordinado à Companhia Progresso do Estado
bastante antecedência pelo Ministro do Inte-
da Guabanara (COPEG), tendo sido criada pelo
rior, o General Albuquerque Lima, com quem,
Governo da Guanabara em 1968, que contou
segundo Negrão “sempre mantive excelente
com verba doada pelo governo estadunidense,
entendimento”. Ao longo da matéria, constan-
além de recursos do governo do estado e, em
do ser o primeiro pronunciamento de Negrão
menor quantidade, do BNH (que quatro meses
sobre a autarquia, o tom dado pelo governador
depois criou a CHISAM). A Codesco defendia a
à medida é elogioso e que para ele, mais do
permanência dos favelados nas áreas próximas
que uma “intervenção” do Governo Federal na
ao seu local de trabalho, realizando a urbani-
Guanabara, ocorria uma soma de esforços (Jor-
zação somando os estudos de técnicos com o
nal do Brasil, 1968b).
conhecimento e vontade dos moradores para
Se antes o Governo da Guanabara era
acusado na imprensa de “inação” por não
as obras na comunidade e no desenho de suas
“novas” casas (Valla, 1986; Santos, 1981a).
combater o crescimento das favelas: “não há
Em reportagem sobre uma cerimônia
quem não saiba que as favelas estão crescen-
no ano de 1967, por exemplo, Negrão de Li-
do. O noticiário dos jornais vem denunciando
ma ainda se posicionava pela urbanização de
isso, em vão, porque o Estado não sabe e não
favelas, instalando comissões de luz e, se-
tem como resolver o problema” (Jornal do Bra-
gundo ele, “chegará a vez do abastecimento
sil, 1968c), o tom muda conforme a opção pela
de água entrosar-se ao sistema de prestação
remoção ganha forma, como podemos ver:
de serviços aos favelados, segundo o mesmo
A principal preocupação do Governo da
Guanabara, agora que optou pela remoção, deve ser a de executar com urgência o seu plano (…) O governo está no
364
credo – integrar a comunidade na favela e
esta na comunidade. Nunca segregar uma da
outra, abrindo abismos na cidade” (Jornal do
Brasil, 1967).
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Ditadura civil-militar e favelas
Entretanto, o “entusiasmo” cobrado pe-
Assim, num primeiro momento, havia
lo editorial do Jornal do Brasil não demorou a
uma fina sintonia entre governos federal e
surgir. Através dos jornais e das fontes produ-
da Guanabara, que pôde ser demonstrada na
zidas pelo próprio Governo da Guanabara, ve-
Apresentação do relatório da Cohab-GB para
mos que a remoção passou a não ser tratada
o ano de 1969, feita pelo próprio coordenador-
como algo estranho às políticas habitacionais
-geral da CHISAM, Gilberto Coufal:
executadas pelas autoridades do Estado. Pelo
contrário, ela não apenas foi defendida como
reivindicada.
No documento Rio: Operação Favela, o
Governo da Guanabara defende o programa
remocionista, destacando seu papel de protagonista no programa. Logo na apresentação
do documento, escrita por Carlos Leite Costa,
chefe da Casa Civil é dito que: “A política habitacional do Governo da Guanabara é atuan-
As diversas citações feitas ao BNH e à
CHISAM, caracterizam o perfeito entendimento e afinidade existentes entre
organismos do Governo Federal e do
Governo do Estado da Guanabara representados pela Companhia de Habitação
Popular do Estado da Guanabara, os
quais irmanados a um extraordinário esforço buscam encaminhar e dar solução a
um dos mais graves problemas sociais da
Guanabara. (Cohab-GB, 1969)
te, ambiciosa, mas realista” [o grifo é meu].
Também é justificada a presença da CHISAM
no programa: “Ninguém ignora, na atual administração carioca, que o fenômeno do favelamento tem raízes extra-regionais e que seu
tratamento exige uma soma considerável de
recursos, que o Estado da Guanabara jamais
poderia gerar isoladamente” (Governo da Guanabara, 1969).
O papel do governo federal, ainda que
seja elogiado, é posto como auxiliar:
Outra forma de o Governo da Guanabara reivindicar a “paternidade” nas remoções
e transferência para os conjuntos foi o lançamento, ainda em 1969, do Programa 7 de Setembro: “Seguramente o maior programa já
realizado em nosso País e na América do Sul,
no campo da habitação social” (Jornal do Bra-
sil, 1968c). O programa previa que, em parceria com a CHISAM, até o fim do mandato de
Negrão de Lima ocorreria a remoção de todas
as favelas da Zona Sul, exceto a Rocinha, e a
Deve ser registrado com a devida ênfase
que o programa habitacional vigente ganhou maior aceleração e entusiasmo com
a direta participação do Governo Federal
na matéria, inicialmente através dos ponderáveis recursos do Banco Nacional de
Habitação e, mais recentemente, com a
criação da CHISAM. O entrosamento dos
órgãos federais com a Casa Civil do Governo do Estado, a Secretaria de Serviços
Sociais e a COHAB representou, de imediato, um avanço considerável nos projetos estabelecidos. (Idem)
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entrega de 50 mil unidades habitacionais nos
conjuntos da Cohab-GB.
Na revista Agente, publicação institucional do Estado da Guanabara, vemos uma matéria com o presidente da Fundação Leão XIII
(apresentada como “órgão que cuida do problema [favela]”), Délio Santos, que “aplaude a
política habitacional do BNH e vê, com bastante entusiasmo, o trabalho que está sendo desenvolvido pela CHISAM para o desfavelamento do Grande Rio” (Agente, 1969).
365
Mario Sergio Brum
A opção pela remoção
atual [o grifo é meu]” (idem). As famílias que
poderiam ser classificadas como tendo necessidade de desocupar a “habitação atual” eram
No decreto de criação da CHISAM, são defini-
as que morassem em locais destinados a rece-
das entre suas atribuições:
ber obras públicas; áreas instáveis com risco à
promover levantamento econômico, social
vida dos moradores; moradores de “cabeças-
e territorial, bem como propor legislação espe-
-de-porco” ou prédios desapropriados por inte-
cífica visando à formulação e execução de um
resse público; com ações de despejo compro-
programa continuado de desfavelamento a cur-
vado e cuja solução seria a favela; vítimas de
to, médio e longo prazos;
calamidades; moradores dos Centros de Habi-
●
●
credenciar, dentre os diversos órgãos e
tação Social do Estado que tenham renda.
entidades existentes nos dois estados, aqueles
Curiosamente, a urbanização de favelas
que terão a responsabilidade de agentes exe-
também é apresentada como um dos objetivos
cutores, para efetivação do programa de desfa-
da CHISAM, com o programa de urbanização,
velamento (CHISAM, 1969).
aqui claramente entendido como Renovação
Não há uma definição clara nos do-
Urbana, executado pela Codesco (posta tam-
cumentos oficiais da remoção sobre quais eram
bém sob controle da CHISAM) na favela de
os significados de Renovação Urbana ou desfa-
Brás de Pina, sendo usado como referência:
velamento. De forma que acabar com as fave-
“Programas desta natureza deverão ser de-
las poderia se traduzir em urbanização destas,
senvolvidos em outras áreas faveladas (…)
de modo que se integrariam aos bairros ao não
buscando-se evitar o deslocamento do favela-
possuírem mais contrastes urbanísticos com es-
do de seu atual local de moradia (…) ao mes-
ses, quanto a arruamento, materiais das casas,
mo tempo em que se executa a transformação
serviços públicos, etc.
da área favelada em novo bairro ou conjunto
Ao apresentar os objetivos de longo pra-
residencial integrado na região, realizando
zo da autarquia, além da referência sobre a
uma verdadeira Renovação Urbana da área
recuperação e integração moral, econômica e
favelada” (idem). Previa-se, então, a urbaniza-
social das famílias faveladas, consta também:
ção de 13 favelas, além da Brás de Pina.
“A alteração da paisagem urbana, atualmente
Isso não impedia que a urbanização
deformada pelos núcleos de sub-habitações,
fosse fortemente criticada pelas autoridades
através da substituição de barracos por habi-
da CHISAM desde o primeiro material da au-
tações, obras públicas, ou pela própria natureza
tarquia: “A Cruzada São Sebastião, os progra-
violentada” (idem). Essa substituição poderia
mas de urbanização desenvolvidos pelo extinto
se dar tanto através da remoção quanto da ur-
SERPFHA, pelo Departamento de Recuperação
banização: “O processo adotado será o da ven-
de Favelas do Estado, e por inúmeras outras
da das habitações construídas ou em final de
entidades públicas e privadas, não surtiram o
construção levando-se em conta o atual merca-
efeito desejado, não conduziram a soluções
do de trabalho, a renda, o desejo de aquisição
e nem sequer a um equacionamento lógico e
ou a necessidade de desocupação da habitação
realista do problema” (idem).
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Ditadura civil-militar e favelas
Na análise do coordenador geral da
CHISAM, Gilberto Coufal, todo o investimento
anterior em urbanização deveria ser questionado: “A urbanização das favelas do Escondidinho, Mangueira, Pavão e Pavãozinho (…) com
a mudança, teriam seus ocupantes deixado
de pensar e viver como favelados? As urbanizações nas favelas anteriormente citadas fizeram com que aquelas favelas deixassem de ser
favelas? Ou seus moradores deixassem de ser
favelados?”. Por fim, Coufal conclui: “Se verificarmos os investimentos feitos nessas obras
(…) ficaríamos perplexos com os gastos que a
nada conduziram” (Agente, 1969).
Na Fundação Leão XIII, do Governo da
Guanabara, a linha de pensamento é a mesma.
A defesa de seu presidente, Délio Santos, contra a urbanização, é explícita:
À utópica aspiração de urbanizar as favelas opunham-se os mais elementares princípios da lógica administrativa. O ideal
não é estimular a favela, mas eliminá-la.
Para isso, o único caminho é a mudança
de seus moradores para residências populares em conjuntos construídos especialmente para esse fim. (Jornal do Brasil,
1969b)
Coufal explica que a urbanização de favelas poderia ser feita em favelas que se encaixassem nos seguintes critérios:
1) estivessem em locais que não oferecessem riscos para estabilidade ou segurança das
construções ;
2) estivessem em locais que a curto e médio
prazos recebessem obras públicas, como praças, ruas, etc.;
3) estivessem em locais onde o investimento
Se por um lado a favela é uma solução,
por outro, entretanto, traz problemas
para a comunidade, problemas para o
homem da própria favela. Maior para a
comunidade, porque a existência destes
aglomerados habitacionais subnormais
implica numa série de investimentos
por parte do governo nas próprias favelas: a necessidade do aumento da rede
d’água, a criação de novas escolas e determinados equipamentos comunitários,
trazendo também problemas de saúde.
Em muitas favelas, principalmente as localizadas em terreno plano, as condições
de salubridade são as piores possíveis.
( Agente, 1969)
em urbanização fosse economicamente viável;
4) sua posição não impedisse o desenvolvimento industrial ou comercial do bairro onde
se localizam;
5) não estivessem situadas em terrenos
que, por seu valor, em função da vocação do
bairro, fosse possível, através da comercialização, carrear-se para o programa recursos que
permitissem sua utilização;
6) houvesse possibilidade econômica de
transferência de propriedade da terra a seus
moradores. Além desses, levar-se-iam em
conta os tipos de mercado de trabalho e tipos de emprego que a região ofereceria e aos
O discurso, baseado em “razões técni-
moradores. O não-atendimento a um desses
cas”, contra a urbanização e pela remoção tam-
critérios impediria a urbanização e a favela
bém encontrava defensores na imprensa, como
seria classificada como passível de remoção
vemos no já citado editorial do Jornal do Brasil:
( Agente, 1969).
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O critério número 1 era passível de dis-
Em janeiro de 1968, numa palestra
cussões técnicas. O 2 e o 6 dependiam de ou-
montada por um órgão do próprio Governo
tros atores, dentre os quais e, principalmente, o
Federal, o SERPHAU (Serviço Federal de Ha-
Estado, visto que muitas vezes eram decisões
bitação e Urbanismo), o renomado urbanista
pertinentes a esse, se haveria ou não investi-
americano, John Turner, fez uma condenação à
mentos na área ou possibilidade de transferên-
remoção apontando que o favelado, com bai-
cia de propriedades.
xo orçamento, não suporta as despesas extras
Os critérios 3, 4 e 5 se dariam por deci-
que o deslocamento para as periferias distan-
sões políticas, em que o fato da favela se en-
tes dos locais de trabalho ocasionava (Jornal
caixar ou não nestes critérios era uma decisão
do Brasil, 1968a).
exclusiva das autoridades. Vemos então que,
Por outro lado, ainda, é possível perce-
a seguir aqueles critérios, simplesmente todas
ber que a premissa básica de orientação da
as favelas do Rio poderiam não ser urbaniza-
CHISAM era de que a favela destoava do am-
das, e sim removidas.
biente ao redor, por várias razões, conforme
Lembrando mais uma vez que isso se dava numa conjuntura em que os espaços para
o debate público e para a divergência às políticas de Estado estavam bem restritos, pois,
se a remoção tinha uma variada gama de defensores, podemos encontrar vozes contrárias
a ela também em diversos setores, além do
movimento comunitário de favelas.
Para exemplificar, num artigo de outu-
documento da autarquia:
Os aglomerados de favelas construídos
de forma irregular, ilegal e anormais ao
panorama urbano em que se situam não
integram o complexo habitacional normal
da cidade, pois, não participando de tributos, taxas e demais encargos inerentes
às propriedades legalmente constituídas,
não deveriam fazer jus aos benefícios advindos daqueles encargos. (CHISAM,1969)
bro de 1968, cujo mote é a questão remoção
X urbanização, o sociólogo e ex-secretário de
Ou seja, por sua condição de ilegalidade quan-
Serviço Social da Guanabara, José Artur Rios,
to à posse da terra e pelo suposto não paga-
analisava: “Infelizmente, a ideia da ‘erradica-
mento de tributos, as favelas não deveriam re-
ção’, em qualquer hipótese, está ganhando
ceber investimentos de urbanização.
terreno na mentalidade dos nossos urbanistas
É interessante perceber também o con-
e administradores que imaginam tratar-se de
traste entre os documentos da CHISAM de
uma operação tão simples como a remoção
1969 e o de 1971. No primeiro, além de abrir
de uma fita durex. Muitas vezes não tomam
a possibilidade de algumas favelas serem urba-
consciência sequer dos valores que os levam
nizadas, o termo Remoção não aparece. Cons-
a adotar essa posição, como ideais de recupe-
tam no documento as palavras erradicação,
ração paisagística, válidos em outro contexto,
desfavelamento, desocupação da área. Apenas
ou o que é pior, uma vaga noção puritana de
quando se fala de favelas específicas, como
‘limpeza’ que exclui o convívio de pessoas di-
a Praia do Pinto e Ilha das Dragas, o adjetivo
ferentes categorias étnicas ou sociais” (Rios et
“removidos(as)” é utilizado para referir-se a
al., 1968).
barracos ou famílias. Já no documento de 1971,
368
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012
Ditadura civil-militar e favelas
o termo Remoção é largamente utilizado, en-
barraco no local da própria favela” (Jornal do
quanto a “urbanização de favelas” é pratica-
Brasil, 1968b).
mente descartada como possibilidade.
Entretanto, já no documento de 1969, o
Em ambos os documentos é explicado
setor 1, correspondendo espacialmente à Zona
que a área metropolitana do Grande Rio fora
Sul, especificamente aos bairros da Gávea, La-
dividida em setores englobando algumas fave-
goa e Jardim Botânico, aparecem como as fave-
las e onde seriam construídas as novas habita-
las daquela região: Ilha das Dragas, Jockey Clu-
ções, de modo que em cada setor estivessem
be ou Piraquê, Rio Rainha, Parque da Cidade,
adequadas à renda das famílias a permanência
Monte Carlo, Alto Solar, Praia do Pinto e CHS-3
no local ou a transferência para um conjunto:
(ex-Parque Proletário do Leblon), Catacumba
Procurou-se estabelecer um equilíbrio de
oferta, em função das necessidades estimadas de habitação de cada favela selecionada. Quando isto não for possível,
devido à carência de terrenos no setor,
far-se-á o deslocamento dos favelados
para os locais mais próximos de seu atual
mercado de trabalho, ou serão estudadas
as favelas com vistas ao programa de Renovação Urbana. (Idem)
Isso também aparece na imprensa, logo
após a criação da CHISAM, em maio de 1968.
Em reportagem no Jornal do Brasil, ao falar sobre a construção das moradias destinadas aos
removidos, é dito na matéria: “Essas moradias
serão feitas para todos os que habitam em favelas e desejam adquiri-las. Ninguém será obrigado a comprar uma nova casa. E o principal
é que as novas casas serão construídas o mais
perto possível das atuais favelas, de modo que
ninguém fique longe de seu trabalho” – mais
à frente na matéria, vemos a ênfase na remoção como uma ‘livre escolha’ e mesmo o aceno com a não-remoção/urbanização – “O sr.
Gilberto Coufal acredita que esta é a primeira
vez que se dará ao favelado ‘o direito de morar
condignamente em local de sua livre escolha,
incluindo-se, em alguns casos, a possibilidade de uma nova moradia em substituição ao
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012
e CHS-1 (ex-Parque Proletário da Gávea). Porém, ao citar os conjuntos construídos ou em
construção para abrigar os removidos daquelas
favelas, incluíam-se conjuntos localizados nas
Zonas Norte e Oeste, como Cordovil (Cidade Alta), com 2597 unidades habitacionais; Cidade
de Deus, com 500; além da misteriosa designação “outros locais”, não quantificada.
Dois eram localizados na Zona Sul, um
na rua Marquês de São Vicente (Gávea), que
já fora construído em 1965 e segundo o sítio
eletrônico da CEHAB-RJ (que uniu a COHAB-GB
e a COHAB-RJ a partir da fusão dos Estados do
Rio de Janeiro e Guanabara em 1975) se destinou a funcionários do Estado2; o outro, que
ficaria na rua Pacheco Leão, prevendo a construção de 900 unidades, acabou não se realizando, conforme a própria CHISAM antecipava
a possibilidade:
Sabe-se, entretanto, que o atendimento
setorial físico não será totalmente viável,
porquanto em muitos casos não se tornará possível e conveniente para o próprio
favelado a aquisição de moradia no setor
em que está compreendida a sua favela.
Sabe-se, também, que muitas famílias não
têm condições econômicas que permitam
a compra de uma habitação, por mais modesta que seja.3
369
Mario Sergio Brum
Vale destacar ainda que, como vimos aci-
ocorrência de processos em que o favelado te-
ma, os limites da “livre-escolha” pela remoção
nha montado sua casa próxima ao seu empre-
ou permanência na favela, como no episódio
go na época e tenha depois mudado de empre-
da remoção da Ilha das Dragas. Assim, a única
go. Podemos questionar, no entanto, por que
solução era a transferência dessas famílias pa-
não ocorreram transferências de moradores de
ra os conjuntos ou para os Centros de Habita-
favelas na Zona Norte para Zona Sul?
ção Provisória distantes da Zona Sul:
Com a oferta de moradias condignas, em
vários setores da Área do Grande Rio,
terão os favelados o direito de optar pela solução de sua maior conveniência,
ocasião em que lhes será mostrado que:
1) PODEM escolher uma habitação EM
QUALQUER SETOR; 2) DEVEM escolher
a habitação que for construída no local
mais próximo de seu trabalho ou de melhor conveniência para sua locomoção; 3)
PODEM E DEVEM escolher uma habitação
compatível com sua capacidade econômica-financeira, mesmo que não seja a
moradia ‘ideal’. (Destaques no original)
(CHISAM, 1969)
Já o Secretário de Serviços Sociais da
Guanabara, Vítor de Oliveira Pinheiro, apresentava outra razão para as favelas da Zona
Sul serem o alvo preferencial do programa remocionista: “Encontramos na Guanabara dois
tipos de favela bem distintas: os situados nas
zonas Sul e Centro do Estado e os situados nas
zonas Norte e Suburbanas. De uma maneira
geral, as favelas situadas nas zonas Sul e Centro apresentam, em sua maioria, a necessidade
de um trabalho visando sua remoção parcial
ou total. As favelas das zonas Norte e Suburbana já se caracterizam por um grau muito
maior de possibilidade de urbanização” (Rios
et al.,1968). O secretário concluía, então, que
Em outro trecho, verificam-se argumen-
o custo financeiro da urbanização em favelas
tos semelhantes aos que Coufal já tinha apre-
das zona Sul e Centro tornava-a inviável; pari
sentado em 1969, para justificar a ação do Es-
passu, o Governo da Guanabara admitia, no
tado em não urbanizar as favelas e que, no re-
documento oficial do programa, que os conjun-
gime ditatorial, não podiam ser rebatidas: “Em
tos eram “localizados na zona suburbana, por
outros casos, verifica-se que o atual mercado
força dos preços menores do terreno” (Gover-
de trabalho do favelado já se situa longe da fa-
no da Guanabara, 1969).
vela onde vive, não tendo ocorrido a mudança
O programa desconsiderou então, delibe-
da família ou indivíduo, entre várias razões, por
radamente, informações importantes a respeito
não haver encontrado próximo ao novo local
das favelas e dos favelados, como a relação
de trabalho moradia mais conveniente por falta
intrínseca entre a moradia numa determinada
de condições financeiras” (idem).
favela e o mercado de trabalho próximo. Não
Pelos dados do Censo das Favelas, de
se trata apenas de “não rebater críticas”, mas
20 anos antes, 58,44% dos favelados da Zona
de ignorar informações que eram de conheci-
Norte trabalhavam na própria zona onde mora-
mento dos próprios órgãos oficiais sobre a rea-
vam, e na Zona Sul, esse percentual aumenta-
lidade das favelas. Num relatório produzido pa-
va para 78,53% (Prefeitura do Distrito Federal,
ra a Codesco, por exemplo, é dito: “Parece que
1949). Logicamente, não podemos descartar a
os núcleos [favelados] localizados em bairros
370
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 357-379, jul/dez 2012
Ditadura civil-militar e favelas
onde exista mercado estável, com níveis sala-
‘problemas’ causados por esses aos bairros de
riais relativamente altos, são os mais desenvol-
sua vizinhança: “Queixam-se os moradores dos
vidos (com maior economia interna, diferencia-
conjuntos circunvizinhos, habitados por quem
ção ocupacional mais ampla e níveis de renda
pode pagar aluguéis altos, contra a presença
diversificados)” – mais à frente, a remoção é
do conjunto da Cruzada com seus problemas
fortemente criticada: “[O] deslocamento de
sociais, gritantes, aparentemente insolúveis”
uma população já estabelecida, desorganizan-
(Jornal do Brasil, 1973).
do-a socialmente, de vez que a favela significa para o indivíduo uma forma de adaptação,
na qual a proximidade ao mercado ocupacional é fator primordial” (Boschi e Goldschmidt,
Balanço geral do programa
1970).4 Ainda nessa pesquisa para a Codesco,
constava que 66,45% dos entrevistados consi-
Tracemos algumas considerações finais sobre
deravam ruim uma mudança para um conjun-
o programa e as razões pela qual ele não foi
to residencial, enquanto 18,46% achavam-na
plenamente cumprido. Dito de outro modo, por
boa, e 11,63% eram indiferentes. Talvez pela
que a proposta inicial das autoridades, ao me-
forte ligação que os favelados tinham com o
nos declarada, de acabar com todas as favelas
mercado de emprego ao redor deles: 24% iam
da cidade do Rio de Janeiro e a “promoção so-
a pé para o trabalho, e 43, 97% tomavam ape-
cial do favelado” acabaram não ocorrendo.
nas uma condução para chegar nele.
Nos planos originais da autarquia, se-
Novamente, recorremos à imprensa pa-
riam removidas todas as favelas do Rio de Ja-
ra compreendermos melhor que discussões e
neiro até 1976. Antes de a meta ser cumprida
interesses envolviam as remoções. Num edito-
porém, a CHISAM foi extinta, em setembro de
rial do Jornal do Brasil de 1969, lemos: “Hoje,
1973, tendo a autarquia removido mais de 175
quando dispõe de poderes suficientes para
mil moradores de 62 favelas (remoção total
adotar medidas drásticas na solução de proble-
ou parcial), transferindo-os para novas 35.517
mas que afligem a coletividade, o Governo de-
unidades habitacionais em conjuntos, estan-
ve estar alertado para não incidir no equívoco
do a maioria destes nas zonas Norte e Oeste
de construir parques proletários em áreas valo-
(Perlman, 1977).
rizadas” (Jornal do Brasil, 1969b).
Em 1971, sob o governo Chagas Freitas,
E quatro anos depois, já tendo sido remo-
reportagem do Jornal do Brasil expunha a de-
vidas várias favelas da orla da Lagoa, a cobran-
cepção com as cada vez mais remotas perspec-
ça continuava numa matéria, cuja cabeça não
tivas do plano de erradicação total das favelas
deixa dúvidas “Cruzada São Sebastião abriga
se concretizar: “Estimativas oficiais previam que
70% dos crimes da Zona Sul”. Tendo chegado
em 1976 não haveria mais favelas no Rio. O cál-
a tal cifra através de informações da polícia.
culo é otimista e dificilmente será transformado
Na matéria, de meia página, podemos ler so-
em realidade” (Jornal do Brasil, 1971a).
bre as dificuldades vividas pelos moradores do
A maior parte das favelas removidas lo-
conjunto, caracterizado como uma favela, e dos
calizava-se na Zona Sul, tendo sido removidas
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371
Mario Sergio Brum
as da orla da Lagoa e do Leblon: Catacumba,
Pois se várias favelas na Zona Sul haviam
Jóquei Clube, Ilha das Dragas e Praia do Pin-
sido removidas, para a Rocinha, os planos de
to. Esse fato não deve ser menosprezado, pois
remoção não passaram dos anúncios de in-
aproximadamente 60% dos barracos demo-
tenção; e a favela passou a viver um intenso
lidos pela CHISAM para a remoção, se locali-
processo de crescimento no início da década de
zavam na Zona Sul (Cohab-GB apud Grabois,
1970, constituindo-se em polo de atração para
1973). Em 1969, o documento Rio: Operação
ex-removidos que retornavam para um local
Favela do Governo da Guanabara anunciava
de moradia, ainda que precário, mas próximo
que até o fim de seu mandato, em março de
do mercado de trabalho da Zona Sul (Jornal do
1971, “pelo menos 250 mil moradores de di-
Brasil, 1977).
versas favelas cariocas, incluindo praticamente
No relatório da Cohab-GB para o ano
todas as da Zona Sul, passarão a morar em ha-
de 1969, direcionado principalmente aos seus
bitações de pedra e cal” (Governo da Guana-
acionistas, encontramos um trecho ainda mais
bara, 1969).
emblemático sobre os objetivos do programa e
Em meados da década de 1970, após
o alcance (ou o limite) esperado, ao menos por
o ímpeto remocionista levado a cabo pela
parte do Governo da Guanabara na adminis-
CHISAM, a região que continha mais favelas
tração Negrão de Lima:
passara a ser a que compreendia os bairros da
Leopoldina como Ramos, Olaria, Bonsucesso e
adjacências (22 no total); não sendo mais a da
área da Lagoa, a primeira colocação (Jornal do
Brasil, 1977).
Um editorial do Jornal do Brasil é revelador da forma como a favela era tratada por
parte da sociedade e da cobrança para que
o programa tivesse um fôlego maior para
remover todas as favelas de, ao menos, parte
da cidade, quando na ocasião que a avenida
Niemeyer, que ligava os bairros do Leblon e
São Conrado, na Zona Sul, foi interditada e a
Mantido o ritmo verificado no exercício
ora findo, até o fim do mandato da administração estadual terão sido concluídos os programas CHISAM e Sete de
Setembro (…) Isso significará o atendimento de cerca de 250.000 favelados,
representando um índice de erradicação
de 38%, tomando-se como base os mais
recentes levantamentos de população
das favelas cariocas. Como resultado paralelo, ter-se-á modificada a fisionomia
da Zona Sul do Estado, onde a favela deverá, então, constituir exceção residual.
(Cohab-GB, 1969)
passagem passou a ser feita obrigatoriamente
De fato, o programa CHISAM começou a ar-
pela favela da Rocinha e que, de acordo com o
refecer após o fim da gestão Negrão de Lima,
jornal: “Em consequência, a visão do que tem
sendo lentamente desmontado o programa de
sido este governo piorou bastante. Evidencia-se
remoções por vários fatores.
a olho nu a incapacidade de atacar o problema
O primeiro deles diz respeito à trans-
das favelas com a disposição requerida, pelo
formação dos favelados em proprietários
menos daquelas localizadas em pontos incom-
incorporados; o que não ocorreu como pla-
patíveis com o progresso da cidade” (Jornal do
nejado por diversos problemas, tais como: a
Brasil, 1970).
precariedade das novas habitações; o choque
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Ditadura civil-militar e favelas
dos transferidos com a vida num local onde
1969). Apesar dessa ressalva, com o passar do
foram obrigados a criar novas relações de vi-
tempo, o custo com as prestações se mostrou
zinhança; a distância dos postos de trabalho
além das possibilidades de muitas famílias.5
ocupados pelos moradores na época da re-
O segundo fator é tanto de ordem eco-
moção; a inadimplência por parte dos remo-
nômica quanto política. No período da Dita-
vidos, que tiveram um aumento brusco nas
dura Civil-Militar foram aprofundadas as rela-
suas despesas mensais (visto existirem custos
ções capitalistas e reprimidos os movimentos
extras, como contas de condomínio, luz, água
sociais e setores oposicionistas que pudessem
e transporte, que muitas vezes inexistiam na
reivindicar a manutenção das mínimas polí-
moradia anterior) e tendo muitos perdido o
ticas de Bem-Estar Social da era Vargas para
emprego, já que o mesmo se localizava próxi-
habitação, que faziam com que o Estado, ain-
mo à favela de origem.
da que agisse no sentido de remover as fave-
Essas dificuldades dos removidos são re-
las, oferecesse alguma opção de moradia, por
veladas de maneira categórica numa reporta-
mais questionáveis que fossem os métodos e
gem feita, em 1972, num conjunto da Cohab em
essa opção em si.
Benfica: “A Cohab começou a despejar ontem as
Em meados da década de 1970, o Esta-
famílias que estão em maior dívida com ela no
do desviou o foco da manutenção da ordem
conjunto de Benfica – dizem que, pelo menos,
urbana em prol do interesse público (no que
60% das 680 famílias devem mais de um ano.
as remoções de favelas e a realocação em con-
(…) com destino às casas da fazenda Coqueiros
juntos habitacionais era uma ação em função
em Senador Câmara, onde todas sonham voltar
desse interesses) para uma maior entrada do
às favelas”. Uma autoridade da Cohab entre-
mercado em que o capital atende, não mais a
vistada na matéria explica ainda que a ação se
cidadãos, mas a compradores. Começava ali
deveu ao fato de que a Cohab precisava pagar
também a era dos condomínios fechados vol-
os imóveis ao BNH, e por isso não podia tolerar
tados para a classe média.
mais a alta inadimplência, embora esta mesma
Na habitação de interesse social, isso
autoridade dissesse: “Sei que é difícil para eles.
se refletiu no fim da tolerância à inadimplên-
A maioria ganha salário-mínimo. Agora, com o
cia nos conjuntos, em que as ações de despejo
aumento de 20% nas prestações, a coisa pio-
se tornaram mais freqüentes. Na ata de expo-
rou” (Jornal do Brasil, 1972).
sição de motivos de reunião do Conselho de
Embora já constasse nos documentos
Desenvolvimento Social com o presidente da
da CHISAM, quando se apresentou de onde
República, em dezembro de 1974, por exemplo,
viriam os recursos, a dificuldade que as fa-
é apresentado um panorama geral dos proble-
mílias teriam de assumir altos custos com a
mas pelos quais passava o Sistema Financeiro
moradia: “Tratando-se de famílias de baixa
de Habitação em continuar a oferecer moradia
renda, pouquíssimos recursos originários de
à população de baixa renda, e dos problemas
suas poupanças poderão ser adicionados aos
de rentabilidade do sistema, afinal, tratava-se
investimentos governamentais” (CHISAM,
de um banco. Nesta reunião foi dito que
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Mario Sergio Brum
As análises efetuadas pelo Banco Nacional de Habitação sobre a distribuição do
número de unidades contratadas, revelam
uma oferta percentualmente mais elevada em função da demanda existente,
para os grupos familiares de maior poder
aquisitivo, em decorrência das melhores
possibilidades de absorção pelo mercado
nessas faixas. (Banco Nacional de Habitação, 1975)
• possibilidade de os Agentes Financeiros
atuarem em faixas mais amplas do mercado
habitacional, ampliando desta forma escala
das operações;
• ampliação do limite máximo de financiamento unitário a ser concedido pelas
COHABs de 320 (Cr$32.000,00) para 500
(Cr$50.000,00). Essa providência tem elevado
alcance social, pois permite o ingresso na fai-
Essa reunião levanta ainda alguns pro-
xa de atuação das Companhias de Habitação
blemas em obter um equilíbrio entre a rentabi-
Popular – Cohabs de famílias de nível médio
lidade e a oferta de habitação para as faixas da
inferior de renda” (idem).
população de menor poder aquisitivo. Entre es-
Assim, as dificuldades do Sistema Fi-
tes problemas estava “que o aumento real ve-
nanceiro de Habitação em manter a solvência
rificado ultimamente nos preços dos terrenos e
fizeram com que o BNH fosse substituindo sua
dos materiais de construção provocou elevação
ação voltada para a habitação de interesse so-
no preço dos imóveis – de modo que esses pro-
cial pelo financiamento do mercado imobiliário
blemas – têm constituído fator de desestímulo,
de classe média, atendendo tanto a demanda
na construção de habitações de menor valor
de uma revigorada indústria de construção civil,
unitário, a reduzida remuneração dos agentes
quanto a classe média que emergiu nos anos
nas faixas de rendimentos familiares baixos e
do Milagre Econômico (Santos, 1981b). Segun-
médios”(idem). Destacando-se ainda que as
do Pozzi de Castro, o boom da produção (60%)
Cohabs em todo o Brasil acabam por não voltar
das cooperativas habitacionais, que destinavam
sua atuação para as faixas de rendimento infe-
imóveis para famílias de maior poder aquisiti-
rior “em decorrência de perceberem remunera-
vo do que as de habitação de Interesse Social,
ção insuficiente para os seus serviços e riscos”.
sob financiamento do BNH, se deu entre 1976 e
Curiosamente, nesta reunião que estabe-
1982, com 60% da produção de todo o período
lece as novas diretrizes para o BNH, a solução
de existência do banco (Pozzi de Castro, 1999).
apresentada para o problema parecia ser “mais
O terceiro fator é de ordem política. Den-
veneno”. Para resolver o problema de solvência
tro da reduzidíssima margem de manobra do
do sistema, aumentando a rentabilidade dos
período, os favelados conseguiram encontrar
agentes financeiros, as Cohabs, de modo que
algum apoio dentro do sistema político-eleito-
estas expandissem a oferta de imóveis, reco-
ral montado pela Ditadura através de Chagas
mendara-se, entre outras medidas:
Freitas, eleito governador em 1971, e que, co-
• “ampliação da parcela da população a ser
mo seu antecessor, havia sido um crítico da re-
atendida pelo Plano Nacional de Habitação Po-
moção. No entanto, Chagas havia estabelecido
pular-PLANHAP, através da elevação do limite
uma nova relação com os moradores das fave-
máximo admissível de renda familiar do PLA-
las, não demonstrando o entusiasmo do gover-
NHAP 3 para 5 salários mínimos;
no anterior pelo remocionismo.
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Ditadura civil-militar e favelas
Foi no fim dos anos de 1960 que este po-
cobrando das autoridades ações para resolvê-
lítico afirmou seu controle da máquina do Mo-
-los. Incluíam-se conjuntos habitacionais nas
vimento Democrático Brasileiro (MDB) carioca,
visitas dos ‘Comandos em Ação’, destacando-
dominando os diretórios regionais da Guana-
-se a continuidade dos mesmos problemas das
bara e os zonais do estado (Diniz, 1982), e con-
favelas somados aos problemas da distância e
tando também com seus jornais, A Notícia e O
das prestações da casa.
Dia, usados como arma de propaganda política
Para auxiliar na compreensão da relação
por esse e seu grupo, quer fosse para elogiar,
de Chagas Freitas com as favelas, temos a re-
quer fosse para criticar, de acordo com seus
lação consolidada no fim da década de 1970
interesses no período, e, assim, arregimentar
entre a FAFERJ, entidade que congregava as
eleitores para si e seus aliados (Motta, 1999).
associações de moradores das favelas, e a Fun-
Numa matéria do jornal O Dia sobre a resistên-
dação Leão XIII, órgão estadual que ficou res-
cia dos moradores à remoção na Catacumba, é
ponsável pelas favelas a partir da Fusão entre
contado, inclusive, que Chagas esteve no local,
os estados da Guanabara e do Rio de Janeiro.
ainda como deputado, dando apoio aos mora-
De modo que, no fim da década, no ambiente
dores (O Dia, 1968).
de redemocratização do país, a polarização do
Este jornal foi largamente utilizado por
movimento comunitário era, grosso modo, en-
Chagas Freitas e políticos ligados ao seu grupo
tre a “esquerda” e os chaguistas (Brum, 2006),
“para divulgação dos problemas das reivindi-
cuja “máquina” havia sido montada ao longo
cações dos moradores de diversas regiões da
dos dois mandatos (Chagas foi governador
Guanabara, em especial dos subúrbios, ricos
também entre 1979 e 1983), baseando-se na
de eleitores, porém carentes de serviços co-
arregimentação de apoio em troca de obras
mo limpeza, iluminação e calçamento de ruas,
pontuais em favelas, que ficara conhecido co-
água e esgoto, posto de saúde, escolas, etc.”
mo política-da-bica d’água (Diniz, 1982).
(Motta, 2000). Havendo inclusive uma coluna
Assim, no primeiro mandato de Chagas,
para denunciar/atender as queixas, o que in-
até 1975, foram removidas pouco mais de um
cluía os moradores de favelas, conforme vemos
terço de pessoas do que o total do governo
no relato de Guida Nunes, na época estagiária
anterior (26.665 X 70.595) (Cohab-GB apud
de jornalismo dos jornais chaguistas, na aber-
Valladares, 1978), devendo ser considerado
tura de seu livro Rio: Metrópole de 300 fave-
que vários conjuntos habitacionais tiveram sua
las: “Fui a ‘comandeira’, como chamavam-me
construção iniciada ainda na gestão de Negrão
no jornal, porque fazia os famosos ‘Comandos
de Lima.
em Ação’, juntamente com a então candidata,
Em dezembro de 1973, o Governo Cha-
hoje deputada, Sandra Salim” (Nunes, 1976).
gas Freitas, ainda anunciaria um ousado Plano
Nesse livro, é traçado um panorama de várias
de Desfavelização da Guanabara que previa a
favelas em todo o Rio de Janeiro, a partir das
remoção de 500 mil moradores para 120 mil
reportagens feitas para o jornal, destacando
novas residências; além de urbanizar algumas
principalmente aspectos ligados à precarie-
poucas favelas (oito, no total) que não cons-
dade, pobreza e falta de serviços públicos e
tariam do plano de erradicação. Além disso, já
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Mario Sergio Brum
não mais existindo a CHISAM, o plano era de
Sudebar, conforme afirmam os urbanistas Gerô-
autoria exclusiva do Estado, ainda que preves-
nimo Leitão e Vera Rezende: “Com isso, a partir
se receber recursos do BNH.
da segunda metade da década de 70, são cons-
No entanto, após o primeiro mandato de
truídos diversos empreendimentos imobiliários
Chagas Freitas, em 1975, quando os estados da
em que se destacam os condomínios privados”.
Guanabara e do Rio de Janeiro viveram o pro-
Os autores continuando o argumento em nota:
cesso de fusão, sob a gestão de Almirante Fa-
“Os primeiros condomínios privados implanta-
ria Lima, nomeado pelo Governo Federal, esse
dos na Barra da Tijuca denominavam-se Nova
priorizou os assuntos ligados à fusão, tanto no
Ipanema e Novo Leblon, numa alusão aos tradi-
âmbito administrativo quanto na infraestrutura
cionais bairros da Zona Sul carioca, agora numa
de integração, como a ponte Rio-Niterói.
versão moderna” (Rezende e Leitão, 2004).
Como último fator, temos a questão da
Não à toa, foi na Barra que prevalece-
demanda de terrenos para a expansão imobi-
ram as campanhas pela remoção de favelas
liária voltada principalmente para a classe mé-
na década de 1980, como vemos na matéria
dia, que passou a ser resolvida com a execução
de O Globo de março de 1989, com o título
do Plano Lúcio Costa para a Baixada de Jaca-
de “As favelas se multiplicam na Barra da Ti-
repaguá. Em 1974, ainda no Governo Chagas
juca” (1989) que se concretizou com despe-
Freitas, duas medidas importantes demonstram
jos das favelas Via Park, nas imediações do
que o foco da expansão deixara de ser a Zona
Barrashopping, e Vila Marapendi, próxima de
Sul e passara a ser a Barra da Tijuca, reduzindo
onde hoje está o Shopping Downtown, áreas
a pressão sobre as favelas e a necessidade da
extremamente valorizadas.6
“conquista” dos terrenos por elas ocupados.
De qualquer modo, com a extinção da
A primeira foi a conclusão do elevado do
CHISAM, em 1973, as políticas de remoção de
Joá, como a principal via de acesso da Zona Sul
favelas, ainda que não tivessem sido totalmen-
à Barra da Tijuca; e a segunda foi a transforma-
te descartadas pelo Estado, perderam a força
ção do Grupo de Trabalho em Superintendên-
que tiveram durante o período em que esta au-
cia de Desenvolvimento da Barra da Tijuca –
tarquia coordenou a Era das Remoções.
Mario Sergio Brum
Historiador, doutor em História, professor e pesquisador de temas urbanos. Rio de Janeiro/RJ, Brasil.
[email protected]
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Ditadura civil-militar e favelas
Notas
(1) Em Castells, falando especificamente sobre os conflitos urbanos, também temos esta análise em
que o Estado se apresenta (à sociedade) como um racional administrador, regulando possíveis
conflitos através da planificação urbana, tornando “técnicos” todos os problemas relacionados
ao espaço urbano, em busca de controle social (Castells, 1983).
(2) Disponível em: h p://www.cehab.rj.gov.br/empresa/. Acesso em: 7/12/2009.
(3) Estas explicações constam nos dois documentos. A única diferença é o destaque dado a elas,
menor no de 1969, constando no final como um subitem, enquanto no de 1971 figura como um
dos itens do programa (CHISAM, 1969 e 1971).
(4) Essa pesquisa foi realizada em seis favelas distintas entre si, a partir dos seguintes critérios:
localização (zona Norte/Sul), tamanho (pequena/média/grande) e grau de intervenção do
Estado (não-intervenção/intervenção superficial/intervenção maciça), de modo que os
resultados colhidos nessas seis favelas traçariam um panorama geral acerca do perfil, opiniões
e expecta vas da população favelada em geral. Ainda que metodologicamente discu vel, as
reflexões da pesquisa eram e ainda são válidas para ques onar os pressupostos que orientavam
a ação da CHISAM.
(5) Este processo de inadimplência foi profundamente trabalhado em Valladares (1978) e Zaluar (1985).
(6) Ver “Vila Marapendi será removida”, O Globo, 9/6/1989, e “Suspenso despejo na Via Park”, O Dia,
16/2/1990. Em que pesem as resistências por parte dos moradores que se leem nas matérias,
ambas acabaram ocorrendo pouco tempo depois das reportagens.
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Texto recebido em 21/out/2011
Texto aprovado em 28/fev/2012
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O direito à cidade nas favelas
do Rio de Janeiro: conclusões, hipóteses
e questões oriundas de uma pesquisa
The right to the city in Rio de Janeiro’s slums: conclusions,
hypotheses and questions derived from a research study
Alex Ferreira Magalhães
Abstract
Resumo
Artigo que sintetiza as conclusões de pesquisa voltada às recentes transformações na regulação das
favelas, notadamente quanto à formalização da
propriedade imobiliária e ao direito edilício. Com
base em pesquisa empírica original e dados de
pesquisas anteriores, buscou-se mapear o “estado
da arte” dessa regulação. Dialoga-se com o debate contemporâneo a respeito da configuração das
favelas e das políticas urbanas a elas direcionadas,
interpelando hipóteses frequentes, especialmente
aquelas que creem no desaparecimento de processos negociais, supostamente subsumidos pela sociabilidade violenta, ou que veem as favelas como
regiões anômicas, de onde o Estado estaria ausente. Sugere-se a revisão dessas hipóteses, à vista das
recentes intervenções do Estado, nas quais se verificam conflitos em torno do “novo” ordenamento
proposto para as favelas.
This paper synthesizes the conclusions of a research
conducted into the recent changes underwent
by slums regulation, especially regarding the
formalization of real estate property and the right
to build. Based on an original empirical research
and on data from previous studies, we aimed to
map the “state of the art” of such regulation. A
dialogue with the contemporary debate on slums
configuration and on urban policies addressed to
slums is also developed. In this sense, common
hypothesis are questioned, especially those which
argue that dialogic processes have disappeared,
since they have been subsumed by a violent
sociability, or even those which conceive slums
as anomic spaces, where the State is seen as an
absent agent. A revision of such hypothesis is
suggested due to the recent State policies, in which
conflicts over the “new” order proposed to the
slums can be widely observed
Palavras-chave: regularização urbanística; regularização fundiária; urbanização; direito de construir;
direito de propriedade.
Keywords : informal settlements regulation;
land regulation; slums upgrading; right to build;
property right.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012
Alex Ferreira Magalhães
Introdução
Tal dimensão implica indagar qual o grau de
vigência do Estado Legal1 nas favelas ou, em
outras palavras, até que ponto as favelas cons-
O presente artigo decorre de pesquisa que
tituiriam territórios dentro ou fora do alcance
realizamos, e que tem por objeto as transfor-
do poder do Estado de editar leis e fazê-las
mações no processo de regulação jurídica das
cumprir, ab-rogando outras ordens normativas
favelas no que tange às formas de apropriação,
não reconhecidas eventualmente existentes em
uso e ao aproveitamento do espaço, notada-
seu respectivo território.
mente no caso da cidade do Rio de Janeiro.
A segunda dimensão de nossa questão
Nessa pesquisa, interessa-nos, em primeiro
consistiria numa apreciação crítica a respeito
lugar, conhecer – com base em pesquisas de
da natureza e do significado sociopolítico da
campo, aliadas aos dados propiciados por pes-
regulação das favelas, isto é, de que espécie
quisas já realizadas em outras favelas – o atual
de código de valores essa regulação estaria
“estado da arte” da regulação das favelas,
imbuída? Seriam valores compatíveis com o
construindo uma descrição desse estado com
Estado Democrático de Direito e com a cons-
o máximo grau de objetividade, a fim de que
tituição da cidadania? Seriam valores de na-
tenhamos a base empírica ideal para os exercí-
tureza libertária ou emancipatória das classes
cios de natureza teórico-especulativa.
populares? Seriam valores tendentes a preco-
No âmbito desse esforço, coloca-se a
nizar o despotismo, o arbítrio, a violência e/ou
questão central que nos ocupa, referente à
o uso indiscriminado da força no equaciona-
qualificação dessa regulação, questão que,
mento dos conflitos de interesse em uma de-
do ângulo em que a vemos, possui três di-
terminada localidade ou microcosmo no seio
mensões básicas.
da sociedade nacional? A propósito da inter-
A primeira dessas dimensões consistiria
pretação embutida nessa última questão, essa
no esclarecimento a respeito de quais seriam
nos parece gozar de forte aceitação social, a
as fontes materiais de tal regulação, isto é, pro-
partir de sua constante difusão por grandes ór-
viria ela do sistema legal, de costumes locais,
gãos de comunicação. Assim, o debate dessa
de imposições de autoridades privadas, de pro-
questão nos permitirá refletir a respeito de um
cessos de reprodução de normas adotadas em
senso comum de grande penetração na socie-
outras localidades (estandardização da produ-
dade carioca, e talvez mesmo além das fron-
ção normativa extra-estatal), ou de que outras
teiras da cidade e do país.
possíveis fontes? As transformações ocorridas
A terceira, e última dimensão, consistiria
no período recente, por força das políticas ur-
numa avaliação do grau de especificidade des-
banas em curso, estariam diluindo as normas
sa regulação, isto é, até que ponto essa regu-
costumeiras e as instituições locais, fazendo
lação se diferencia daquela que se coloca para
com que sejam minimizadas as diferenças en-
outras localidades e para o conjunto da socie-
tre os sistemas locais e centrais e paulatina-
dade? Tratar-se-ia – aquela – de uma regulação
mente impondo a ordem normativa oficial? Até
autônoma em relação a estas últimas ou cons-
que ponto as favelas estariam legalizando-se?
tituiria um capítulo, parte ou aspecto destas?
382
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012
O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
Entendemos que o advento das políticas
sentir, a noção de regularização converteu-se
e programas de regularização – urbanística e
no grande símbolo, e/ou no principal eixo arti-
fundiária – demarcado, na cidade do Rio de
culador, de políticas integradas de intervenção
Janeiro, pela edição, em 1992, do Plano Dire-
do Estado nas favelas, englobando-se debaixo
tor Decenal, bem como pelo desenvolvimento,
desse conceito uma série diversificada de medi-
a partir de 1994, do Programa Favela-Bairro,
das, algumas delas de difícil conjugação.
configuram um novo e particular período na
A questão delineada nos parágrafos an-
trajetória da regulação das favelas cariocas.
teriores pode ser amplamente revigorada e re-
Em nossa leitura dos fatos, esse Programa,
colocada no processo de difusão, fortalecimen-
dentre inúmeros significados que se poderiam
to e institucionalização das políticas de regula-
desvendar a seu respeito, representou uma no-
rização, que parece-nos demarcar um momen-
va tentativa de entrada do Estado nas favelas,
to de necessária renovação da reflexão sobre
com uma série de especificidades, que cabe à
tal questão. Uma das dimensões centrais des-
análise pormenorizar. Essa entrada tem se da-
sas políticas consiste precisamente na formu-
do de diversas formas, dentre elas, na forma
lação de uma legislação disciplinadora do uso
do Estado Legal, que se propõe a intervir nas
do espaço, que tem sido pensada como plena-
favelas no sentido de induzir seus moradores
mente adaptada às circunstâncias físico-ter-
a superar e reformular os costumes locais e
ritoriais e socioculturais das favelas, ao con-
as práticas normativas adotadas e seguidas
trário do que se observou historicamente na
até então, introduzindo um novo ordenamen-
legislação urbanística brasileira. Dessa forma,
to jurídico, editado pelo próprio Estado. Isso
almeja-se garantir o desenvolvimento ordena-
exigiria dos moradores das favelas a adesão
do e racional desses espaços, bem como deixar
a um processo de assunção de novos compor-
marcado que o Estado não mais está ausente
tamentos – no tocante a inúmeros aspectos
dessas áreas, que deixariam de se configurar
da vida coletiva – o que vem sendo definido
como espaços literalmente excluídos do plane-
pelos agentes púbicos como um processo de
jamento e ordenamento da cidade, sem qual-
mudança cultural, que envolveria ações espe-
quer espécie de esforço por parte do Estado de
cíficas de natureza “socioeducativa”, confor-
aí exercer o seu poder de regulação jurídica.
me documen tos institucionais editados pela
De fato, as políticas de regularização ostentam
Prefeitura da Cidade (a título de exemplo, vide
a meta de atacar um problema que, no âmbi-
Rio de Janeiro, 2008).
to das ciências sociais, é classificado como um
Assim, a construção de nosso objeto
problema estrutural da experiência democráti-
toma como ponto de partida o processo de
ca latino-americana, que consiste na formação
consolidação de políticas estatais voltadas à
de regiões mais ou menos extensas em que o
melhoria das condições de moradia nas fave-
estabelecimento e a vigência do sistema legal
las, especialmente as políticas genericamente
defronta-se com uma série de problemas pe-
identificadas como Políticas de Regularização,
culiares, conquanto essas regiões estejam in-
forma que a maioria dos programas tem se
tegradas do ponto de vista político, territorial
apresentado nas últimas décadas. Em nosso
ou econômico, o que eventualmente dá ensejo
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Alex Ferreira Magalhães
à constituição de formas privatizadas de regu-
outras, ainda não abrangidas por tais ações,
lação social. A maneira como tais problemas
nas quais poderia se verificar uma espécie de
são enfrentados, seja por meio das políticas
efeito onda ou efeito dominó, resultantes dos
de regularização seja por outros mecanismos,
impactos urbanos mais amplos desencadeados
constituiria um poderoso indicador das possi-
por ações executadas em localidades determi-
bilidades de êxito da proposta de integração,
nadas. O reordenamento a que ora aludimos
da qualidade desta e, logo, dos impactos e/ou
consistiria num novo arranjo entre normas lo-
resultados das políticas de regularização para
cais e oficiais na composição da regulação das
a consolidação do projeto democrático. Assim,
favelas, que se distinguiria do anterior em fun-
outro dos objetivos da pesquisa é o de reunir
ção da nova conjuntura física e sociopolítica in-
elementos que permitam uma avaliação, a
troduzida pela urbanização e regularização. En-
mais aproximada possível, da medida do êxito
tre outros aspectos, essas ações têm incluído a
na realização dessa meta, tendo claro que não
edição de legislação específica para cada área
se trata de uma avaliação definitiva, uma vez
urbanizada, bem como o desenvolvimento de
que estamos lidando com processos em curso,
ações e criação de órgãos de implementação
isto é, com objetos em franco movimento.
dessa legislação, o que vemos como um novo
O novo cenário da regulação das favelas
constituído pelo desenvolvimento dos progra-
vetor a pressionar os limites do arranjo normativo anterior, induzindo à sua redefinição.
mas de regularização constitui um dos fatos
que tomamos no sentido de justificar a pertinência histórica (ou social) e teórica de nosso
objeto e das questões que elaboramos a seu
respeito. Nesse sentido, nossa pesquisa integraria o esforço coletivo de avaliar sistematica-
Especificidades na pesquisa
jurídica em favelas:
algumas demarcações
mente as transformações no tecido urbano introduzidas pelas políticas de regularização ur-
Desde a década de 1970, a obra de Boaventura
banística e fundiária ora em curso no país – em
de Sousa Santos tem sido considerada uma re-
escala nacional e com ares de política urbana
ferência fundamental para a pesquisa sobre as
prioritária – contribuindo para seu aprimora-
relações jurídicas encontradas nas favelas. Não
mento. Como fator distintivo das demais ava-
obstante, algumas diferenças relevantes, entre
liações já realizadas, aquela que ora propomos
a abordagem desse intelectual e a que nos pro-
teria a singularidade de dirigir seu foco a um
pomos desenvolver, podem ser demarcadas. Em
dos impactos que essas políticas inescapavel-
primeiro lugar, embora as referências empíricas
mente estariam buscando, consistente na ten-
de nossa pesquisa tenham reafirmado a centra-
tativa de reordenamento jurídico das favelas
lidade da Associação de Moradores de Favelas
nas quais essa intervenção estatal se processa.
para a reprodução das relações jurídicas e ad-
Tal impacto, talvez, não se reduza àquelas fa-
ministração de conflitos nesses espaços, que
velas nas quais se executaram diretamente as
constitui uma das descobertas fundamentais
ações de regularização, podendo vir a alcançar
da obra de Santos, nossa pesquisa não tinha
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
por objetivo investigar práticas jurídicas que,
natureza de sua presença variam bastante con-
necessariamente, girassem em torno dessa
forme os campos sociais;
instituição, mas, ao contrário, perquirir de que
3) possui prioridade organizativa entre as
modo essa centralidade tem se transformado,
diversas formas jurídicas, dado que “todas as
nos últimos dez a quinze anos. A rigor, nossa
outras formas de direito tendem a tornar a sua
pesquisa procurou mapear as instituições con-
presença garantida e a organizarem e maximi-
temporâneas do que denominamos Direito da
zarem a sua própria intervenção e eficácia re-
Favela – o que Santos, em seus escritos, cha-
gulatória em redor dos limites, falhas e fraque-
ma de Direito de Pasárgada ou, de modo mais
zas do direito estatal” (Santos, 2001, p. 300);
abrangente, de Direito Comunitário – quais se-
4) ao contrário de outras formas de poder,
riam seus agentes e que posições ocupam no
funciona “como se estivesse desincorporado de
campo em que se inserem. Assim, valemo-nos
qualquer contexto específico, com uma mobi-
em nosso trabalho, com as necessárias adap-
lidade potencialmente infinita e uma enorme
tações, da distinção fundamental, elaborada
capacidade de disseminação nos mais diversos
desde a obra de Santos, entre Direito Estatal e
campos sociais” (idem, idem);
Direito da Favela.
5) tende a superestimar, ou sobreestimar,
O Direito Estatal – também designado
suas capacidades regulatórias, prometendo
por Santos por Direito Territorial do Estado ou
mais do que aquilo que pode efetivamente ofe-
Direito do Espaço da Cidadania – é, nas socie-
recer e garantir;3
dades modernas, o Direito central na maioria
6) é a única forma de Direito autorreflexiva,
das ordens jurídicas, sendo qualificado como
isto é, a única que vê a si mesma como Direito;
forma cósmica de Direito, enquanto todas as
7) tende a considerar o campo jurídico como
demais constituiriam formas caósmicas (San-
exclusivamente seu, recusando-se a reconhecer
tos, 2001, p. 301).2 Seu valor estratégico reside
que seu funcionamento se integra em constela-
no poder do Estado, que o sustenta, “um poder
ções de Direitos mais vastas:
altamente organizado e especializado, movido
por uma pretensão de monopólio e comandando vastos recursos em todos os componentes
estruturais do direito (violência, burocracia
e retórica)” (Santos, 2001, p. 300). É aquele
que, dentre todas as formas jurídicas, possui as
seguintes peculiaridades, ou notas distintivas
fundamentais (cf. Santos, 2001, p. 291 e ss.):
1) tende a estar mais difundido do que as
Ao longo dos últimos duzentos anos ele
foi construído pelo liberalismo político e
pela ciência jurídica como a única forma
de direito existente na sociedade. Apesar
de seu caráter arbitrário inicial, esta concepção, com o decorrer do tempo, foi invadindo o conhecimento de senso comum
e instalou-se nos costumes jurídicos dos
indivíduos e dos grupos sociais. (Santos,
2001, p. 299);
outras formas jurídicas nos diferentes campos
sociais (ou espaços estruturais);
8) é um campo jurídico extremamente di-
2) sua presença na manifestações concretas
versificado, abrangendo uma multiplicidade
do Direito é muito irregular, isto é, o alcance e a
de subcampos – cada um deles tendo um
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Alex Ferreira Magalhães
modo específico de se articular com as outras
Pasárgada e aplicadas na favela – na verdade
formas jurídicas – uma variedade de tipos de
Santos registra que, via de regra, o princípio
4
da propriedade privada é acatado no Direito
e uma trajetória histórica específica (Santos,
de Pasárgada do mesmo modo que o é no Di-
2001, p. 301);
reito Estatal brasileiro.
juridicidade, cada uma com caráter próprio,
9) é a única forma de Direito capaz de pensar
A impressão geral de Santos a respeito
o campo jurídico como uma totalidade integra-
do Direito da Favela pode ser expressa da se-
da, ainda que se trate de uma totalidade ilusó-
guinte forma:
ria (Santos, 2001, p. 300).
[...] um direito paralelo não oficial,5 cobrindo uma interação jurídica muito intensa à margem do sistema jurídico estatal (o direito do asfalto, como lhe chamam
os moradores das favelas, por ser o direito
que vigora apenas nas zonas urbanizadas
e, portanto, com pavimentos asfaltados).
(Santos, 1988, p. 14)
Apesar de toda a sua precariedade, o direito de Pasárgada representa a prática
de uma legalidade alternativa e, como tal,
um exercício alternativo do poder político, ainda que muito embriônico. Não é
um direito revolucionário, nem tem lugar
numa fase revolucionária da luta de classes; visa resolver conflitos intraclassistas
num espaço social “marginal”. Mas, de
qualquer modo, representa uma tentativa
para neutralizar os efeitos da aplicação
do direito capitalista de propriedade no
seio dos bairros de lata e, portanto, no
domínio habitacional e da reprodução
social. E porque se centra à volta de uma
organização eleita pela comunidade, o
direito de Pasárgada representa, como aspiração, pelo menos, a alternativa de uma
administração democrática da justiça.
(...) O direito de Pasárgada, e muito especialmente a sua importante dimensão
retórica, são fatores de consolidação das
relações sociais no interior de Pasárgada.
(Santos, 1988, pp. 99 e 101)
Trata-se de um Direito vigente apenas no es-
A partir desses pressupostos teóricos,
paço territorial da favela e sua estrutura nor-
identificamos, na pesquisa de nossa autoria,
mativa assenta na inversão da norma básica
os seguintes agentes relevantes, que intera-
do estatuto jurídico da propriedade da terra:
gem no campo jurídico da favela:
Já o assim chamado Direito da Favela
constituiria uma referência direta aos padrões
normativos que efetivamente vigoram nas favelas, que nelas ordena as relações sociais e
que nelas são vistos como possuindo uma natureza ou poder jurídico – o que, em muitos casos, será verdadeiro à luz do próprio Direito Estatal, embora esta circunstância não constitua
uma condição sine qua non para que se possa
falar em Direito da Favela. Como dito anteriormente, essa noção se inspira no que Santos denomina Direito de Pasárgada, isto é,
posses que seriam ilegais segundo a legali-
●
o Estado, basicamente, por meio de seus
dade do asfalto, convertem-se em proprieda-
órgãos localizados na própria favela (CRAS,6
des legais para o Direito de Pasárgada. Nes-
PSF,7 etc.), destacadamente o POUSO,8 embora
se contexto, admite-se que algumas normas
esses órgãos estejam articulados à direção su-
que regem a propriedade do asfalto possam
perior da administração municipal (no caso do
ser seletivamente incorporadas ao Direito de
POUSO, a SMU);
386
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
●
as organizações que agem a serviço do
Estado, que muitas vezes são instituições de
Direito privado, porém, desenvolvem ações ins-
age em nome de um determinado conhecimento técnico-científico;
●
vizinhos do bairro de entorno à favela,
trumentais à intervenção do Estado, na favela,
cujos movimentos, por vezes, repercutem na
tais como estudos físico-territoriais e/ou socio-
dinâmica interna da favela; logo, interagem
econômicos, projetos de urbanização e cadas-
(talvez imperceptivelmente) com os agentes,
tramento de moradores e imóveis;
nela inseridos, ressaltando os condicionamen-
os moradores, considerados de maneira in-
tos que ocorrem “de fora para dentro”, como
dividual e coletiva, uma vez que sua ação não
demonstramos, em diversos casos relatados
se subsume àquela da associação, impondo à
na tese.
●
análise o tratamento de ambos como agentes
diversos e relativamente autônomos entre si;
Desse modo, a favela em questão se
configura como um campo jurídico plural e
as lideranças comunitárias, que desempe-
complexo, não obstante as intenções, por ve-
nham um papel proeminente, dentro do con-
zes, monocráticas, da Associação de Morado-
junto dos moradores;
res, que reproduz, em parte, os movimentos
●
os agentes comunitários, que, apesar de
do Estado moderno, no sentido de chamar pa-
moradores da favela, são agentes a serviço
ra si um determinado monopólio político, que,
do Estado, nela atuando, conforme a orienta-
assim como no caso do Estado, não se realiza
ção, as pautas e as prioridades, estabelecidas
plenamente, e talvez jamais tenha existido,
pelo Estado, constituindo um agente, no qual
concretamente, valendo mais como orienta-
se concentram os hibridismos e as contradições
ção ideológica.
●
entre o campo estatal e o comunitário;
Por outro lado, nossa pesquisa não é
os corretores de imóveis, agentes profissio-
centrada, propriamente, na realização de um
nalizados, que agem como mediadores, entre
mapeamento ou diagnóstico dos mecanismos
as partes, do mercado imobiliário local, cuja
e instrumentos de resolução de conflitos, que
ideologia e gama de interesses também guarda
se encontrem em operação nas favelas, em-
●
relativa autonomia, em relação a seus clientes.
bora tenhamos abordado essa temática, en
Eles podem, por sua vez, ser distinguidos entre
passant, em diversos momentos. Voltamo-
aqueles, que atuam profissionalmente apenas
-nos, antes, às práticas locais, relativas à
dentro da favela, e os que atuam dentro e fora
formalização da propriedade, bem como aos
dela, no chamado “mercado formal”;
diversos aspectos envolvidos na regulação
a boca de fumo, uma agência que, mes-
da atividade edilícia, na qual se destacam
mo quando não chamada a atuar diretamen-
as diversas constelações, imbricações ou ar-
te, exerce um relevante condicionamento das
ticulações entre o Direito Estatal e o Direito
linhas de ação dos demais agentes do campo;
da Favela. Na obra de Santos, não se confere
●
profissionais diversos, que desenvolvem
destaque, dentro das atribuições ou funções
projetos ou trabalhos, na favela, operando co-
exercidas pela Associação de Moradores, ao
mo assessores de movimentos organizados; um
aspecto da organização, coordenação e con-
agente “supralocal” (ou externo à favela), que
trole dos processos de edificação ou mesmo
●
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387
Alex Ferreira Magalhães
de apropriação de novas áreas, no processo
A teoria da pluralidade jurídica retoma
de expansão da favela, tal como procuramos
uma tradição teórica que aborda o fenôme-
registrar. Parece-nos que essa configura uma
no jurídico sob uma perspectiva antiforma-
dimensão inescapável, para abordagens que
lista, tradição essa que surge nos finais do
se proponham atualizar o debate a respeito
século XIX, na chamada Escola do Direito
do Direito que materialmente tem vigorado
livre, que tem na obra do jurista alemão Eu-
nas favelas.
gen Ehrlich – especialmente em seu Princípios
O debate sobre as relações locatícias
Fundamentais de Sociologia do Direito, de
também nos parece constituir outro aspecto de
1913 – uma de suas expressões mais proemi-
grande relevância para os estudos contemporâ-
nentes (e considerado o grande precursor das
neos sobre essa matéria, que, igualmente, não
correntes pluralistas como um todo), bem co-
foi explorada, nos trabalhos de Santos. Nessas
mo na Antropologia Jurídica anglo-saxônica.
relações se acentuaria a importância de alguns
Inspirando-se nelas, Santos busca desenvol-
dos agentes acima relacionados, reafirmando-
ver uma teoria jurídica de sólida fundamenta-
-se a pluralidade e complexidade que extrapola
ção empírica e de um sentido epistemológico
a instituição Associação de Moradores. A ques-
crítico, que denuncie a ocultação, e a tenta-
tão das locações constitui matéria imprescin-
tiva de supressão, levada a cabo pelo Estado
dível de ser desenvolvida no sentido de irmos
capitalista como estratégia de dominação
construindo uma visão mais aproximada do
(Santos, 1990, p. 17), de formas marginais,
que seria a totalidade do campo do Direito da
subalternas e centrífugas de direito, “formas
Favela, ao qual, também, pode ser agregado o
jurídicas e epistemológicas que asseguram a
problema dos processos de transmissão inter-
ordem e a desordem em comunidades social,
geracional da propriedade imobiliária.
política e culturalmente subalternas e mesmo
marginais” (Santos, 2001, p. 19). Trata-se
de um problema que teve amplo tratamento
A teoria da pluralidade jurídica
e sua relevância como ferramenta
analítica para o conhecimento
e exploração do Direito da Favela
na teoria do Direito ao longo do século XX,
produzindo um dos seus temas clássicos, a
ele fazendo referência autores como George
Gurvitch ( L’Idée du droit social, 1932), Santi
Romano ( L’Ordre juridique, 1946), Giorgio Del
Vecchio ( Persona, Estado y derecho, 1957),
Hermann Kantorowicz ( The definition of law,
Em nossa pesquisa, trabalhamos com a teoria
1958), Jean Carbonnier ( Sociologia jurídica,
da pluralidade jurídica, no sentido de favore-
1979) e Norberto Bobbio ( As ideologias e o
cer a aproximação de nosso objeto – a regu-
poder em crise, 1982), destacando-se, no Bra-
lação jurídica das favelas – a fim de que não
sil, a obra de Cláudio Souto ( Teoria sociológi-
ficássemos limitados a um olhar externo a
ca do Direito e prática forense, 1978).
respeito desse fenômeno, mas apreendendo-o
em sua materialidade.
388
Segundo Santos, “existe uma situação
de pluralismo jurídico sempre que no mesmo
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
espaço geopolítico vigoram (oficialmente ou
supraestatais, não oficiais e “mais ou menos
não) mais de uma ordem jurídica”, o que po-
costumeiras”, isto é, que não configuram “um
de ter uma fundamentação econômica, racial,
direito costumeiro no sentido tradicional do
profissional ou outras, bem como pode corres-
termo. Só poderá ser considerado costumeiro
ponder a um período de ruptura social e trans-
se admitirmos a possibilidade de práticas
formação revolucionária, ou, ao contrário, “re-
novas ou recentes darem origem ao que po-
sultar da conformação específica do conflito de
deríamos designar quase paradoxalmente
classes numa área determinada da reprodução
por costumes instantâneos” (Santos, 1996,
social”, como seria o caso das favelas cariocas
pp. 260-261, grifo nosso). O autor excetua a
por ele estudadas (Santos, 1999, p. 87). Ao ver
lex mercatoria internacional – isto é, as rela-
desse autor, o pluralismo jurídico constitui um
ções contratuais estabelecidas pelas empre-
fato social inconteste:
sas multinacionais – do caráter “não oficial”,
Parto da verificação, hoje pacífica na sociologia do direito (e fundamentada em
múltiplas investigações empíricas), de
que, ao contrário do que pretende a filosofia política liberal e a ciência do direito
que sobre ela se constituiu, circulam na
sociedade não uma, mas várias formas de
direito ou modos de juridicidade. O direito
oficial estatal, que está nos códigos e é
legislado pelo governo ou pelo parlamento, é apenas uma dessas formas, se bem
que tendencialmente a mais importante.
(Santos, 1996, pp. 259-260)
frisando que não faria sentido considerá-la
assim, na medida em que ele cria diferentes
formas de imunidade diante das formas estatais nacionais, vindo a constituir sua própria
oficialidade. Porém, parece-nos que não seria
equivocado reconhecer, em coerência com os
pressupostos metodológicos não etnocêntricos
e não estatocêntricos adotados pelo próprio
Santos, essa mesma oficialidade não estatal
nas demais formas jurídicas encontradas nas
relações sociais, tais como aquelas que compõem o Direito de Pasárgada. A crítica ao esta-
O autor critica o fato de a Sociologia do
tocentrismo jurídico, em outras palavras, a crí-
Direito ter aceito, acriticamente e por longo
tica à ideia do monopólio da produção jurídica
tempo, o pressuposto reducionista de que o Di-
pelo Estado moderno, elaborada no sentido de
reito opera segundo uma única escala, a escala
negar, neutralizar, eliminar autoritariamente,
do Estado-nação – isto é, do Direito Nacional –
submeter e/ou apresentar como irrelevante
ao passo que as investigações sobre o pluralis-
toda e qualquer produção jurídica não estatal,
mo jurídico realizadas desde a década de 1960
comparece amplamente na fundamentação
já vinham chamando atenção para a existência
teórica da perspectiva da pluralidade do Di-
de Direitos Locais em diversos espaços sociais,
reito, sendo vista como o ponto de partida de
tais como nas zonas rurais, nos bairros urbanos
uma hermenêutica crítica do Direito moderno.
marginais, nas igrejas, nas empresas, no desporto, nas organizações profissionais, etc.
No âmbito dessa teoria desenvolve-se uma aguda crítica da noção de monopólio
A teoria da pluralidade do Direito pro-
estatal da produção jurídica, colocando-se a
cura reconhecer formas jurídicas que se
mesma em perspectiva histórica, perspectiva
distinguem pelas notas de serem infra ou
em que aparece como uma “naturalização do
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389
Alex Ferreira Magalhães
direito moderno como estatal”. Nesse senti-
atenção ao longo de toda sua obra: as formas
do, Santos afirma que “a absorção do direito
de poder, de conhecimento, e de Direito, que
moderno pelo estado foi um processo histórico
funcionam geralmente como meio ou condição
contingente que, como qualquer outro proces-
de exercício umas das outras (Santos, 2001,
so histórico, teve um início e há de ter um fim”
p. 291). Assim, define a sociedade capitalista
(Santos, 2001, p. 170). Indo mais a fundo, o
como aquela que se caracteriza “por uma su-
autor sentencia que “na realidade, o Estado
pressão ideológica hegemônica do caráter po-
nunca deteve o monopólio do direito”, tendo
lítico de todas as formas de poder excetuando
em vista que formas de Direito infra (ordens
a dominação, do caráter jurídico de todas as
jurídicas locais, com ou sem base territorial)
formas de direito, excetuando o direito estatal,
ou supraestatais (os mecanismos do sistema
e do caráter epistemológico de todas as for-
mundial) coexistiram, subsistiram ou surgiram
mas de conhecimento, excetuando a ciência”
em paralelo à forma própria do Estado-nação
(Santos, 2001, p. 325).
(Santos, 2001, p. 171). De outro lado, o mo-
Outra fonte da ideia do monopólio jurí-
nopólio estatal do Direito, se algum dia exis-
dico estatal residiria no pensamento burguês
tiu, não foi sequer igualmente distribuído por
em suas várias vertentes – como liberalismo,
todos os campos jurídicos, alguns deles his-
contratualismo e iluminismo. Hoje, esse mo-
toricamente mais receptivos às juridicidades
nopólio é um cânone político e epistemológico
emanadas de fora do Estado – Santos oferece
que vem sendo objeto de crítica entre os her-
o exemplo do reconhecimento do Direito Indí-
deiros do pensamento burguês, isto é, por parte
gena – embora o faça de maneira submetida
de seus próprios arautos (Santos, 1982, p. 13).
ao Direito Estatal (Santos, 1982, p. 13). A ideia
Sob a crise do contrato social e no contexto do
do monopólio estatal é atribuída por Santos,
chamado capitalismo desorganizado,9 mais do
dentre outros fatores, aos mútuos compromis-
que nunca estaria evidenciada a fragmentação
sos entre estatismo, cientificismo e positivis-
do poder e o relativo declínio do poder jurídico
mo, que geraram o pressuposto ideológico de
centrado no Estado, obrigado a coexistir com
que o Direito moderno, para se constituir, deve
outras formas de regulação da sociedade, ad-
desconhecer o conhecimento da sociedade a
vindas dos “múltiplos legisladores não-estatais
esse respeito, para, a partir dessa ignorância,
de fato, os quais, por força do poder político
construir uma afirmação epistemológica pró-
que detêm, transformam a faticidade em nor-
pria (Santos, 2001, p. 165). À medida que o Di-
ma, competindo com o Estado pelo monopólio
reito foi se “tornando” estatal, foi se tornando
da violência e do direito” (Santos, 2003, p. 13).
também científico, e, consequentemente, des-
Santos situa a separação entre Direito e
politizando a dominação estatal, que transita
Estado como ponto de partida para pensar cri-
de dominação política a dominação técnico-
ticamente o Direito – a rigor, des-pensar – num
-jurídica (Santos, 2001, p. 165). Nesses enun-
contexto de transição paradigmática, uma vez
ciados comparecem as três dimensões básicas
que serviria a alguns propósitos fundamentais:
que se articulam para formar as sociedades capitalistas, para as quais Santos procura chamar
390
●
mostrar a não-historicidade do monopó-
lio estatal do Direito (“não só o Estado nunca
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
deteve o monopólio do direito como também
negativa) influência, no âmbito do pensamen-
nunca se deixou monopolizar por ele”);
to jurídico. Assim, a teoria da pluralidade pode
mostrar que o Estado moderno funcionou –
constituir uma inspiração teórica fértil, na me-
e funciona – tanto por meios legais como por
dida em que ocorra uma constante vigilância
meios ilegais, variando essa conjugação con-
epistemológica, que incorpore diretivas como
forme as áreas de intervenção do Estado, sua
as seguintes:
●
própria definição de legalidade ou sua posição
no sistema mundial;
●
evitar pré-noções ou determinismos ideo-
lógicos, que conduzam a um maniqueísmo em
mostrar que a rejeição arbitrária da plura-
relação ao Estado, ou a uma apologia do Direi-
lidade de ordens jurídicas eliminou ou reduziu
to da Favela, e/ou a uma visão mecanicista das
drasticamente o potencial emancipatório do
relações de dominação;
●
Direito moderno (Santos, 2001, pp. 171-172).
●
distinguir o debate a respeito do ser, em
De outro lado, a perspectiva que só con-
relação ao debate a respeito do dever ser, dos
sidera como Direito aquelas regras e padrões
sistemas jurídicos, em outras palavras, não
normativos emanados pelo Estado e exercidos
passar, desatentamente, de um movimento
por ele configura, para Santos, um reducionis-
descritivo e crítico a um movimento prescritivo
mo arbitrário, que deu origem a duas oculta-
e normativo;
ções fundamentais para a legitimação do capitalismo como relação social global:
●
captar as nuanças da experiência jurídica
em curso nas favelas, quer em seus aspectos
o poder relativamente democrático e não
violentos e dialogais, quer em seus mecanismos
despótico do Estado só tem condições objeti-
de acomodação e de resistência, quer em seus
vas de se viabilizar em constelação com outras
movimentos de apropriação da ordem jurídica
formas de poder, geralmente mais despóticas
estatal e de construção original;
●
que ele;
●
abandonar as abordagens evolucionistas
o Estado Democrático de Direito somen-
a respeito dos sistemas jurídicos, nas quais o
te viabiliza seu funcionamento em constelação
Direito da Favela caminharia, irrefreavelmen-
com formas jurídicas mais despóticas do que
te, para sua absorção pelo Direito Estatal,
ele, em suma, Direitos Infraestatais despóticos
numa má compreensão do que já se chamou
são condições de viabilidade de um Direito Es-
de “normalização”, enxergando-se não mais
tatal democrático (Santos, 2001, p. 320).
do que uma linha de convergência entre as
●
Entendemos que a teoria da pluralidade
distintas formas jurídicas, que parece buscar,
se mostra uma ferramenta útil no esforço de
no fundo, uma confirmação sociológica para
compreensão da concretude das relações jurí-
o postulado político do monopólio estatal da
dicas socialmente estabelecidas, tanto no caso
produção jurídica.
das favelas como de outras regiões ou campos
Baseados nas diretrizes acima, diríamos
sociais, na medida em que estimularia o sujeito
que a hipótese, presente em parte da literatura
cognoscente a liberar-se das amarras teóricas
especializada, segundo a qual, no caso brasilei-
representadas pelas perspectivas formalistas
ro e latino-americano, os movimentos popula-
ou, ainda, etnocêntricas, ambas de especial (e
res teriam uma característica marcadamente
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391
Alex Ferreira Magalhães
centrípeta, de luta pela legalidade estatal
um sentido específico de função social, bem
e jamais de ruptura com ela e construção de
como se sujeita a uma série de circunstâncias
uma nova legalidade, mostra-se, quanto muito,
da economia doméstica e das redes de relações
parcialmente verdadeira. De fato, alguns dados
pessoais do titular, que configuram uma insti-
empíricos sugerem que muitas das instituições
tuição mais complexa do que aquela. Apesar
jurídicas em uso nas favelas teriam sido desen-
da inegável intensificação do aproveitamento
volvidas sob a inspiração das instituições esta-
dos imóveis e de sua aplicação em moldes ren-
tais – numa espécie de emulação ou simulacro
tistas, tais processos não ocorrem de maneira
dessas últimas ou, ainda, como atendimento
descolada de outros valores, que não se redu-
de necessidades simbólicas e políticas – bem
zem ao proveito econômico a ser extraído da
como parece bastante concreta a expectativa
propriedade do solo.
dos moradores de favelas no sentido do reco-
O mesmo pode se dizer no tocante ao
nhecimento de suas propriedades pelo Estado.
chamado Direito de Construir, no qual o mo-
No entanto, observa-se, também, a instituição
vimento real dos moradores de favelas parece
de solenidades específicas ou a admissão de
longe de configurar-se como a busca de uma
possibilidades inexistentes no âmbito do Di-
regularidade edilícia e urbanística, nos termos
reito estatal. Mais ainda, se bem consideradas
como essa se encontra colocada pela prefei-
as expectativas dos moradores de favelas com
tura, a despeito dessa regularidade ser algo
relação à formalização da propriedade, bem co-
que, como concepção geral, seria de interesse
mo os conflitos envolvidos na regulação, pelo
dos moradores. A aplicação, ao caso estuda-
Estado, do uso e ocupação do solo nas favelas,
do, da hipótese dos movimentos centrípetos e
estas constituiriam pautas para a própria re-
sem caráter de rejeição ou desconfirmação da
formulação das bases legais referidas a essas
ordem estatal estabelecida implicaria descon-
matérias, e da própria política de intervenção
siderar os jogos de força – latentes ou explíci-
estatal nas favelas, incluídas aí as estratégias
tos – entre Estado e classes subalternas, que,
de construção e de implementação da norma-
no caso, envolvem disputas relativas a um
tividade estatal.
novo sistema de classificação dos espaços na
Portanto, o movimento real, captado em
favela. Tal movimento teórico corresponderia,
nossas pesquisas, não se caracterizaria como
em linhas gerais, ao movimento que tem si-
um movimento puro e simples em direção à
do feito, pela prefeitura, no campo político,
legalidade estatal, tal como ela já está posta,
interpretando que o mesmo está imbuído
mas a uma legalidade, em parte, transformada
de diversos aspectos de violência simbólica,
pela incorporação das instituições das favelas e
pautado na eterna busca de uma “reforma
das aspirações de seus agentes. Uma das evi-
cultural” dos moradores da favela, usualmen-
dências nesse sentido residiria nos contornos
te proposta no âmbito dos processos de regu-
que a instituição da propriedade assume nas
larização e de implementação da normativa
favelas. A despeito da mercantilização dos imó-
urbanística estatal, e que constitui uma das
veis, que evocaria a concepção de propriedade-
faces visíveis do projeto político subjacente
-mercadoria, essa mesma instituição assumiria
aos referidos processos.
392
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
O processo de desjuridicização
suporte dessa proposição, dentre elas a própria
expectativa dos moradores de favelas, em que
a titulação da propriedade de que dispõem te-
Buscamos retomar a senda aberta por Santos,
nha validade tanto dentro, como fora da favela.
em sua pesquisa nas favelas cariocas, redis-
Nesse sentido, deve-se reconhecer que
cutindo suas hipóteses e interpretações, nu-
os contratos de compra e venda de imóveis nas
ma reapropriação de sua teoria sociojurídica
favelas, mesmo que não transfiram proprieda-
no contexto contemporâneo. Nesse contexto,
de, entendida como um dos Direitos Reais que
verificaram-se amplas transformações na con-
figuram no Código Civil brasileiro, geram efei-
figuração tanto da ordem jurídica, quanto das
tos nada desprezíveis à luz dessa mesma codi-
próprias favelas, em relação àquele contexto
ficação; direitos esses de natureza obrigacional
que aquele autor tinha diante de si, quando
(decorrentes quer do contrato, quer da realiza-
de sua pesquisa original, no início da década
ção de acessões e benfeitorias) e de natureza
de 1970. Assim, um dos pontos, que mereceria
possessória. Assim, os contratantes são sujei-
ser rediscutido e recolocado, versa sobre o pro-
tos de diversos direitos e de outras situações
blema da “exclusão jurídica oficial” a que ele
jurídicas subjetivas, reconhecidas pela ordem
alude, indagando-se até que ponto persistiria
jurídica estatal, algumas delas em processo de
essa situação.
amplo fortalecimento – na legislação, na teoria
Em nossa compreensão, a adoção da
e na jurisprudência – havendo fundamentos ju-
teoria da pluralidade jurídica, como referencial
rídicos razoáveis e consolidados para sustentá-
epistemológico e metodológico, não implica
-los e reconhecê-los em juízo. Em suma, dos
abandonarmos a reflexão, feita do ângulo do
negócios jurídicos realizados nas favelas decor-
Direito Estatal, a respeito das relações jurídi-
rem diversas implicações jurídicas da ordem do
cas existentes num determinado espaço social.
Direito Estatal, não constituindo um tema que
Muito embora sejamos de entendimento que
deva ficar relegado ao plano paraestatal ou ex-
tais relações podem e devem ser interpretadas
traestatal, o que configuraria a maneira como
com base na noção clássica de Direito Con-
compreendemos a “exclusão jurídica oficial”,
suetudinário – parecendo-nos apropriado o
em sua acepção contemporânea.
conceito de “costume instantâneo”, proposto
O reconhecimento das implicações ju-
por Santos (1996), para designar os costumes
rídicas atuais – que independem de mudan-
novos ou recentes, próprios da sociedade con-
ças legislativas necessárias, ou daquilo que as
temporânea e incomparáveis aos costumes das
políticas de regularização possam acrescentar
chamadas “comunidades tradicionais”, sob pe-
– dos negócios e dos procedimentos adota-
na de rigorosa inaplicabilidade desse conceito
dos nas favelas, constitui, a nosso sentir, um
à sociedade contemporânea –, isso, de forma
exercício estratégico, quer do ângulo teórico-
alguma, excluiria o reconhecimento de que a
-jurídico, quer do ângulo das suas implicações
matéria sob análise é recepcionável juridica-
sociopolíticas. Do ângulo teórico, tal exercício
mente, no âmbito do Direito positivado nas
pode esclarecer as possibilidades de efetivação
leis. Várias razões poderiam ser invocadas em
dos direitos, o que nos parece constituir um
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Alex Ferreira Magalhães
indicador indispensável para aquilatar a quali-
“zangão” aqueles que delas participam – e
dade e/ou o grau da integração das favelas à
práticas curiosas, exóticas, diferentes, fruto
cidade. Do ângulo sociopolítico, ele muito po-
de uma particularíssima criatividade, da qual
de contribuir para a afirmação da cidadania e
seriam dotados os moradores de favelas. Em
da condição de sujeito de direito, por parte das
nosso juízo, trata-se de duas variações de vi-
coletividades que são objeto de segregação so-
sões estereotipadas: a primeira, de caráter as-
cioespacial. Julgamos que, até o presente mo-
sumidamente negativo, colorindo as práticas
mento, tal exercício foi pouco realizado, aquém
comunitárias com as tintas da ilicitude e da
do que seria possível e necessário, sendo esse
condenação moral, e a segunda, uma estereo-
mais um dos efeitos da barreira ideológica,
tipação com algum verniz de generosidade e
de natureza dualista, que atira, acriticamente,
condescendência para com os extratos sociais
uma grande parcela das relações e negócios
subalternos, porém, igualmente excludente –
jurídicos, realizados entre pobres, no terreno
ou, nos termos de Santos, igualmente antie-
da extra ou paralegalidade, reproduzindo o
mancipatória. Em termos jurídicos, de um lado
processo que Santos (1999) denominou “ilega-
teríamos a perspectiva que inquina de nulidade
lidade existencial”. Essa seria, provavelmente,
todos esses atos, e de outro teríamos aquela
uma das grandes barreiras para que se possa
que nada enxerga neles além de um suposto
configurar a almejada integração das favelas,
“Direito Alternativo”, ao qual parte dos juristas
que configuraria a vigência do Estado de Di-
se refere, categoria que não adotamos e que,
reito nesses espaços. Em outras palavras, com
outrossim, não comparece nos textos de San-
o aludido exercício, estaríamos prevenindo o
tos. Muito embora não neguemos, in totum, a
problema que temos conceituado como desju-
validade da categoria “Direito Alternativo”, cri-
ridicização das práticas jurídicas encontráveis
ticamos e rejeitamos a perspectiva que esgota
no espaço das favelas.
nessa categoria as possibilidades de represen-
A perspectiva da desjuridicização seria
tação e de qualificação jurídica das instituições,
aquela que não reconhece os efeitos jurídicos,
dos atos, dos procedimentos e das normas
produzidos na ordem jurídica estatal atualmen-
fundiárias e urbanísticas encontráveis nas fa-
te em vigor, por exemplo, por atos de compra
velas. Entendemos que tal perspectiva produz
e venda realizados perante a Associação de
um confinamento indevido desse corpus ins-
Moradores de uma determinada favela, não
titucional numa região do campo jurídico que
assinalando os direitos e obrigações que dele
as coloca eternamente entre aspas, lançando
emergem, que seriam exigíveis com os ins-
dúvidas (essencialmente ideológicas) sobre sua
trumentos do Direito Estatal. Nas entrevistas
validade e licitude.
que realizamos, o depoimento de um corretor
De outro lado, a noção de desjuridici-
de imóveis, atuante no chamado “mercado
zação não se confunde, não implica e não se
formal”, pareceu-nos bastante representativo
reduz à noção de regulação, em outras pala-
dessa perspectiva: em sua avaliação, tais atos
vras, afirmarmos a existência de um processo
oscilam entre práticas eticamente inadmis-
de desjuridicização não significa ou implica a
síveis para um corretor – classificando como
afirmação da desregulação da região da favela.
394
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012
O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
Ao contrário, parece-nos que a intensa regula-
fortalecimento do Estado democrático e da ci-
ção, que cartografamos em nossas pesquisas,
dadania, uma vez que, através dele, confinam-
não tem assegurado plenamente, até aqui, a
-se as relações jurídicas que interessam aos
juridicização das práticas, das instituições e
moradores de favelas ao plano que Eduardo
das relações jurídicas de interesse imediato dos
Carvalho (1991) definiu como o das necessida-
moradores de favelas, processo cuja evidência
des, impedindo-se que sejam alçados ao plano
maior residiria no não reconhecimento dos
dos direitos subjetivos e avaliados, percebidos
efeitos delas no âmbito do Direito Estatal – o
ou representados, juridicamente, como tais. E
que observamos, por exemplo, em acórdãos do
isso não ocorre a despeito do fato de ser ra-
Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (citados
cionalmente e razoavelmente possível que se
por Magalhães, 2007). Tais posicionamentos
chegue a tal conclusão, mediante os procedi-
reforçam os atuais obstáculos objetivos ao
mentos, já conhecidos e disponibilizados pela
exercício pleno dos direitos por parte dos mo-
ciência jurídica, e amparados pelas normas já
radores de favelas, bem como a visão das fave-
positivadas no ordenamento estatal. Ele impor-
las como regiões anômicas. Trata-se, portanto,
ta num descolamento entre as transformações
de um relevante processo de dominação, em
na posição das favelas no ordenamento jurídi-
funcionamento, especialmente, nas sociedades
co estatal e o status jurídico objetivo das suas
latino-americanas, no qual determinados fatos
instituições. Representaria, assim, um fecha-
e relações são juridicamente desqualificados, e
mento do Direito Estatal em relação a essas,
essa representação seria resistente mesmo ao
uma clivagem entre dois mundos jurídicos, de
fato de se dispor de um sistema legal e político,
modo que se tornaria insuperável o problema
tendencialmente, poliárquico, tal como ocorre
que verificamos em nossas pesquisas: a forma-
no Brasil, a partir de 1988. Assim, não consi-
lização da propriedade imobiliária nas favelas,
deramos que o problema em tela se resolva,
quando feita via Associação de Moradores, não
ou decorra, com base em reformas no sistema
alcança validade fora da favela; de outro lado,
legal estatal, posto que é um problema que
aquela proporcionada pelos órgãos estatais
transcende esse patamar. Não consideramos,
não alcança validade dentro da favela. Nesse
também, o enquadramento jurídico dos fatos
contexto, ganha sentido a hipótese que a teoria
sociais como um movimento estritamente ra-
jurídica vem chamando de constitucionalização
cional, redutível aos procedimentos dedutivos
simbólica (vide Neves, 2003): o maior nível de
e/ou lógico-formais, mas, sim, matéria que pos-
(à falta de melhor termo) inclusão jurídica das
sui uma inexpugnável dimensão ideológica.
situações relativas aos moradores de favelas,
Embora os procedimentos lógico-formais sejam
nos quadros do Direito estatal, corresponderia
parte efetiva do pensamento jurídico, eles es-
a uma aparência enganosa, uma vez que, em-
tariam longe de esgotar a complexidade das
bora tenha surgido uma legislação voltada a
operações mentais do jurista, o que constituiria
tratar, especificamente, das favelas, essa não se
uma utopia científica, de caráter racionalista.
mostra estruturada a conferir garantias legais
O processo de desjuridicização do Direito
às relações jurídicas aí constituídas. Em outras
da Favela constituiria, assim, um obstáculo ao
palavras, teríamos regulação sem emancipação.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012
395
Alex Ferreira Magalhães
Nesse contexto, o Direito da Favela continua-
as normas estatais ou comunitárias. O conjunto
ria a se reproduzir com crescente necessidade
de dados de que dispomos levou-nos a descar-
simbólica de incorporação de artefatos do Di-
tar tanto a hipótese da liberdade urbanística,
reito Estatal, isto a fim de suprir o permanen-
como aquela que encara o crescimento das
te déficit de legalidade a que se encontraria
favelas como pautado por dinâmicas especula-
condenado. Com a desjuridicização, portanto,
tivas que seriam, paradoxalmente, mais acen-
expande-se o fenômeno da ilegalidade exis-
tuadas do que aquelas verificadas nas regiões
tencial, que passa do plano dos moradores de
tradicionalmente integradas à cidade, vendo-se
favelas para o plano das estruturas jurídicas
na favela uma espécie de locus de um capita-
desenvolvidas na favela.
lismo selvagem, que já não teria lugar no restante da cidade. Parece-nos que tal perspectiva
baseia-se em idealizações de ambos os espa-
Os componentes da regulação
das favelas
ços urbanos em questão – a favela e, grosso
modo, a “não favela”.
Buscamos trabalhar com a hipótese de
uma regulação contraditória e conflituosa, uma
Um dos resultados de nossas pesquisas con-
vez que marcada pelo relativo – mas não des-
siste na demonstração do caráter regulado das
prezível – divórcio entre normas jurídicas esta-
favelas, regulação na qual se articulam Direito
tais e expectativas normativas dos moradores
Estatal e Direito de origem comunitária ou lo-
de favelas. De outro lado, se a regulação não
cal, não havendo forma jurídica que opere, con-
se dá somente por força das normas jurídicas,
cretamente, em estado puro, separada de ou-
também não se dá, exclusivamente, pelo mer-
tras formas de juridicidade e de outras formas
cado. O mercado imobiliário, constituído nas
de controle social. Muito embora tenhamos
favelas, não se mostra nem como um mercado
identificado a existência, nas favelas, de uma
desregulado – o que o converteria num pro-
aspiração ao exercício de faculdades construti-
tótipo do mercado perfeito e equilibrado, do
vas que, por vezes, não são admitidas pelo or-
qual cogitam utopicamente as vertentes mais
denamento estatal, tal expectativa não se des-
radicais do liberalismo econômico – nem co-
dobra num campo marcado por uma caótica
mo um mercado isento de algumas caracterís-
ausência de regulação ou pelo crescimento de-
ticas não mercantis. Isso porque nele operam
sordenado, tomados no sentido de inexistência
agentes movidos não apenas por determina-
de qualquer forma de controle ou limitação de
ções de natureza especulativa, não se redu-
ordem social. Ao contrário, além dos controles
zindo ao clássico homo aeconomicus, o que
propriamente jurídicos, interagem outros, de
constitui outra construção abstrata em rela-
diversas ordens, ditos extrajurídicos (tais como
ção aos agentes sociais concretos. Assim, à
disponibilidade de recursos, conveniências fa-
busca utilitária do maior proveito, articulam-
miliares e circunstâncias técnico-construtivas),
-se ditames de reciprocidade e de preservação
que muitas vezes se revelam mais decisivos e
de determinados bens de natureza não patri-
determinantes das decisões individuais, do que
monial, o que acreditamos não ser, sequer,
396
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012
O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
uma característica exclusivamente observável
contenção desses mecanismos. Com isso, nos
no caso das favelas.
afastamos das teorias que interpretam os pro-
Por outro lado, observamos a reação
cessos sociais, nas favelas, com base na noção
negativa dos moradores das favelas diante do
de ausência ou carência do Estado, o que reme-
controle edilício ensaiado pelo Estado, inclusive
teria os moradores de favelas, inescapavelmen-
com a possibilidade de resolução desse conflito
te, à legalidade de fato dos agentes nela esta-
mediante o uso da força. Em nossa perspectiva,
belecidos, numa versão moderna do estado de
esse fato sinaliza para o que, baseados em San-
natureza hobbesiano. Julgamos mais adequado
tos, nomeamos como o componente violento,
o esforço teórico em se tentar apurar as formas
observável em diversos momentos do processo
específicas de atuação do Estado nas favelas,
de regulação das favelas, no qual visualizamos,
as vicissitudes, nuanças e estratégias que esse
além desse, as normas costumeiras, oriundas
desenvolve diante delas. Consideramos que o
dos pactos estabelecidos entre os moradores e,
estabelecimento de um ângulo de análise, co-
por fim, as próprias normas editadas pelo Esta-
mo aquele que aqui propomos, estaria mais ap-
do, configurando uma tríade em relação dialé-
to a captar e analisar os movimentos dos agen-
tica e contraditória. Nossa hipótese é a de que
tes desse campo, caminhando numa linha que
a importância do componente violento, no caso
busca reconhecer o que as favelas objetiva-
de cada favela, seria determinada de acordo
mente têm, isto é, qual o conteúdo das relações
com o status e o perfil de atuação dos agen-
sociais que a envolvem, quais as instituições e
tes que operam no campo que nelas se confi-
agentes que nela interagem, de que modo es-
gura. Em outras palavras, dada a importância
ses operam, escapando, assim, do viés analítico
relativa dos agentes que operam baseados em
que procura “conhecê-las” com base naquilo
mecanismos violentos – como a boca de fumo
que, real ou supostamente, lhes faltaria.
e as agências do Estado (não exclusivamente,
aquelas de natureza policial) – importância
que é dada pelo grau de legitimidade local de
outros agentes, que possam representar um
contraponto ou alternativa em relação a esses,
a capacidade de influenciar – e, no limite, de
As constelações entre o estatal
e o comunitário e a crítica
à perspectiva dualista
“contaminar” – as relações estabelecidas nesse local, pode ser maior ou menor.
Os dados revelados, por nossa pesquisa, pare-
As agências do Estado, na verdade, te-
cem reforçar a tese de que as ordens jurídicas
riam a capacidade de atuar nos dois pólos que
estatal e da favela encontram-se em um contí-
acima definimos, quer como um agente que
nuo e conflituoso processo de diálogo, havendo
pode atuar no sentido de reforçar (pela ação,
diversas formas em que uma é condicionada
precária ou não, e pela omissão) os mecanis-
pela outra, por exemplo, no processo em que as
mos violentos de construção e imposição da
instituições, rituais e procedimentos, adotados
ordem jurídica e urbanística local, quer como
no âmbito da favela, constituem-se recorren-
agente capaz de intervir como contraponto ou
do à incorporação de elementos originários da
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397
Alex Ferreira Magalhães
ordem jurídica estatal. Vemos nesse processo
apresentaria a vantagem de melhor levar em
um capítulo dos conflitos sociais mais amplos,
conta as transformações ocorridas, especial-
próprios de sociedades capitalistas como a
mente, nas últimas três décadas, em que uma
brasileira, isto é, tratar dessas ordens jurídicas
série de equipamentos e serviços públicos che-
constitui nada mais do que um ângulo para tra-
gou às favelas, que culmina com a difusão de
tar de como se constitui a ordem social, como
políticas públicas de regularização. Tais fatores
um todo. Não estamos, pois, diante de duas
seriam determinantes de dinâmicas novas, mul-
ordens estanques, isoladas entre si, o que re-
tiplamente determinadas e, logo, mais com-
presentaria uma perspectiva dualista a respeito
plexas do que a tradicional noção de exclusão
do objeto estudado, perspectiva que refutamos
pode comportar.
em nossas referências teórico-metodológicas.
Nossa crítica ao dualismo também signi-
Pode-se afirmar, com maior rigor, que estamos
fica que recusamos uma perspectiva moral na
diante de uma juridificação híbrida, isto é, o
abordagem das duas ordens jurídicas em ar-
Direito da Favela, a que aqui nos referimos, re-
ticulação, visão que promoveria a associação
presenta não uma “outra” ordem, inteiramente
intrínseca de virtudes positivas (democráticas,
diversa e apartada da estatal – daí porque não
liberais e/ou emancipatórias) a uma delas e
nos valemos da expressão Direito Alternativo,
negativas (autoritárias, opressivas, excluden-
adotada em parte da literatura – ou, ainda, de
tes), à outra, ou vice-versa. O fato de falarmos
uma ordem necessariamente em déficit, peran-
de uma ordem jurídica interna à favela não
te a estatal, mas de uma ordem jurídica cons-
significa que ela seja, necessariamente, me-
truída no embate, no diálogo e na contradição
lhor ou pior, mais ou menos democrática, do
com aquela posta pelo Estado.
que a ordem legal estatal. De fato, na ordem
Por outro lado, o fato de recusarmos o
estatal encontramos uma retórica democráti-
dualismo metodológico, acima referido, não se
ca mais consistente do que na ordem comu-
confunde com a negativa do reconhecimento
nitária, bem como instrumentos mediante os
da situação de subordinação, à qual as coleti-
quais essa ordem democrática pode ser rea-
vidades favelizadas encontram-se submetidas,
lizada, sobretudo no que tange à legislação
posto que a comunicação e os fluxos existen-
produzida na esteira da Constituição de 1988.
tes, entre essas ordens, são profundamente
No entanto, a ordem legal estatal possui uma
desiguais, parecendo-nos correta a hipótese de
série de contradições no que diz respeito à
Santos a respeito da “troca desigual de juridi-
regulação das favelas, ensaiando a retomada
cidade”, que vigoraria entre Estado e favelas.
de instituições – como as do congelamento
Nossa recusa do apontado dualismo signifi-
urbanístico, da regularização a título precário,
ca, diversamente, não recorrermos à noção
e da remoção – que não parecem inspirados,
de exclusão como ferramenta explicativa dos
propriamente, em propósitos democráticos e/
processos sob análise, uma vez que nossa in-
ou emancipatórios.
terpretação caminha na perspectiva da integra-
O dualismo metodológico, que critica-
ção subordinada, que nos parece mais acertada
mos, parece comparecer em trabalhos acadê-
e fértil ao trabalho analítico. Tal perspectiva
micos e jornalísticos que tratam do problema da
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
não vigência, de fato, do Estado legal e/ou das
ciações de Moradores de Favelas, de princípios
ambiguidades do funcionamento do sistema
bastante assemelhados aos cultivados no âm-
legal, como um problema restrito às favelas e
bito do Direito estatal que rege os registros
às outras regiões, definidas, costumeiramen-
imobiliários, constituiria, a nosso ver, a ponta
te, como cidade informal. Na verdade, esse
do iceberg de um processo maior de apro-
é um problema que diz respeito ao conjunto
priação das instituições oficiais. Por mais que
da cidade e ao Direito Urbanístico de maneira
algumas dinâmicas sociais sejam efetivamente
geral, este último histórica e recorrentemente
duais, e que a própria visão dos moradores de
marcado por crônica inefetividade, o que tem
favelas, a respeito do espaço em que vivem, se-
motivado a hipótese de que não representaria
ja, em grande medida, marcada por uma pers-
uma área central dos processos de dominação
pectiva dualista, tais aspectos não podem ser
jurídica e política (Santos, 1982) e/ou de que
transportados acriticamente para o plano da
não teria sido adequadamente articulado, no
teoria social, de forma a determinar a aceita-
pacote de intervenções e de direitos básicos,
ção do dualismo metodológico, o que compro-
que surgem no bojo da formação do Estado
meteria seus resultados analíticos.
de Bem Estar Social, no caso brasileiro (Cardoso, 2003). Com base nessas hipóteses, preferimos afirmar que o sistema legal, de maneira geral, apresenta graduações em sua efetividade, ao longo do tempo e do espaço social e
A qualificação da regulação
das favelas: nossas hipóteses
em função de diversas circunstâncias, que não
se reduzem de maneira alguma aos espaços
O debate a respeito da regulação das favelas
ditos “informais”, “de exceção”, dentre outras
impõe o enfrentamento de algumas questões
já propostas. Entre as variáveis condicionan-
atinentes à qualificação dessa regulação, o que
tes dessa graduação, que pode afetar a medi-
dispomos em três dimensões:
da e a maneira como as normas legais se im-
1) quais as fontes materiais dessa regulação?
plementem, poderíamos citar tanto o aparato
2) de que valores essa regulação estaria imbuída?
institucional organizado pelo Estado a fim de
3) qual a especificidade dessa regulação em
fazer cumprir as normas estabelecidas, como
relação àquela vigente para as demais regiões
as estruturas sociais, que podem opor resis-
da cidade?
tências ou operar como facilitadores.
Partimos da hipótese de que a regulação
Apesar de alguns moradores de favelas
das favelas possui dois pilares – o do Direito
fazerem distinções rígidas entre as normas que
Estatal e o do que Santos denomina Direito
valem dentro e fora da favela, o fato é que o
Comunitário – e, mais do que isso, ela decorre,
espaço da favela parece ser amplamente re-
concretamente, das constelações de juridicida-
gulado, bem como, nele, observa-se a presen-
des, elaboradas a partir das interações, com-
ça relevante de diversas instituições oficiais. O
binações e articulações de princípios, regras e
caso paradigmático da absorção, pelas Asso-
procedimentos, oriundos desses dois campos.
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399
Alex Ferreira Magalhães
O Direito Estatal teria por fonte principal o
jurídicas, que regulam o campo das favelas,
sistema legal – composto pelos atos norma-
com as quais buscamos responder às questões
tivos, expedidos pelo Legislativo e, também,
acima colocadas. Tais hipóteses poderiam ser
pelo Poder Executivo –, enquanto o Direito
enunciadas, na forma abaixo:
Comunitário decorreria de usos e costumes,
1) as mudanças em curso nas favelas, desde
elaborados localmente, que se traduzem, por
o início do processo de regularização urbanís-
exemplo, na concepção de um código de obras
tica e fundiária, não indicam a ocorrência de
comunitário ou de um sistema comunitário de
contestação ou esvaziamento da autoridade
formalização da propriedade. Essas estruturas
e/ou da legitimidade da Associação de Mora-
regulatórias, provavelmente, estão relaciona-
dores, no desempenho da função de controle e
das a práticas jurídicas trazidas dos locais de
formalização da propriedade imobiliária, isto é,
origem dos moradores de favelas, visto que um
de registro, reconhecimento e publicidade dos
grande contingente deles é natural de outras
atos de aquisição e transmissão de imóveis, na
regiões do Estado do Rio de Janeiro e do país,
escala local. As tendências captadas não apon-
ou mesmo de outras favelas.
tam para a dissolução ou superação desse sis-
No caso da cidade do Rio de Janeiro, a
tema, que, em tese, pode vir a se combinar com
última década se caracteriza pelo fato de a Pre-
um sistema estruturado pela Prefeitura e/ou
feitura iniciar um investimento institucional no
com outros sistemas (estruturados em outros
sentido de estabelecer uma legislação urbanís-
órgãos públicos, como os cartórios ou agências
tica voltada às favelas, na esteira dos progra-
de serviços públicos), aos quais os moradores
mas de urbanização e regularização, o que im-
recorram a partir de suas conveniências, os
poria a negociação de novos limites e frontei-
quais têm operado, até aqui, como mecanismos
ras com o Direito Comunitário. Nesse contexto,
preparatórios ou complementares àquele geri-
emergem questões que dizem respeito:
do pela Associação.
• aos significados dessa legislação editada
pelo município;
• aos impactos do advento dessa legislação
sobre os usos e pactos pré-estabelecidos;
• aos impactos do advento dessa legislação
sobre as percepções e sensibilidades dos moradores, com relação àquilo que constituiriam
seus direitos sobre o espaço em que vivem;
2) a hipótese anterior não significa afirmar a
não importância dos sistemas de formalização
da propriedade imobiliária que coexistem com
aquele centrado na Associação de Moradores,
que podem ser quantitativa e qualitativamente
tão expressivos quanto esse.
3) os diversos sistemas de formalização não
parecem operar de maneira competitiva ou an-
• ao que resultaria, em termos de dinâmicas
tinômica entre si, mas, ao contrário, parecem
de regulação, da dialética entre as novas nor-
ser mutuamente dependentes, de forma que
mas legais e as normas comunitárias, tradicio-
o advento do sistema centrado e gerido pelo
nalmente vigentes.
Estado poderia vir a fortalecer, indiretamente,
Resultaram de nossas pesquisas algumas
aquele centrado na Associação de Moradores,
hipóteses relacionadas ao que seria o estado
até mesmo porque aquele se organiza, em boa
atual das interações entre as diversas formas
medida, apoiado nesse.
400
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
4) sob determinados aspectos, o Direito da
venda de imóveis. Em ambos, não se verifica
Favela tem se mostrado mais formal ou solene
uma regulamentação extensa, meticulosa, de-
do que o Direito Estatal, de modo que não se re-
talhada e ampla de seu objeto. Ambas estabe-
vela verdadeira, para todos os casos, a hipótese
lecem normas sumárias e simplificadas, sobre-
comum segundo a qual as práticas jurídicas
tudo se comparadas, de um lado, à legislação
dos segmentos subalternos seriam, tendencial-
urbanística em vigor, relativa aos bairros de
mente, menos formais do que aquelas que se
entorno das favelas, e, de outro, às escrituras
baseiam mais estritamente no Direito estatal,
públicas de compra e venda, elaboradas pelos
sistema cuja dominação seria estruturalmente
notários, para os imóveis regularmente matri-
assentada em mecanismos burocráticos. Tal hi-
culados no registro imobiliário. O espírito que
pótese se veria reforçada, no contexto das re-
parece estar patenteado nos documentos for-
centes reformas do Direito Estatal, no sentido de
mais, de caráter legal e abstrato ou contratual
sua deformalização, verificando-se movimento
e particular, seria o da regulação mínima das
contrário – incorporação de formalidades não
relações jurídicas estabelecidas no âmbito da
utilizadas outrora – nas práticas jurídicas mais
favela. Assim, a colocação de Santos, segundo
recentes dos moradores das favelas.
a qual o padrão de regulação do Direito da Fa-
5) em que pese o fato de o sistema de for-
vela seria marcado por uma visão de grande
malização da propriedade predominante nas
escala, plena de detalhes e discursos particula-
favelas valer-se de documentação escrita, não
rísticos, não se objetiva em termos de uma re-
se pode afirmar que o mesmo seja baseado em
gulação minuciosa, mas como uma perspectiva
fontes documentais, configurando um sistema
mais contextualizada a respeito dos conflitos
aparentemente burocrático, no qual, em verda-
locais, com baixo ou nenhum recurso aos tipos
de, as bases documentais possuem importân-
gerais e abstratos que marcam o Direito Esta-
cia secundária. Nesse sistema, o aspecto fun-
tal, de menor escala.
damental residiria na tradição oral vigente no
7) a força adquirida pelas instituições do
local e nos conhecimentos prévios, acumulados
Direito da Favela na regulação local seria de
pelas lideranças comunitárias, a respeito dos
tal ordem que induziria à sua observância até
moradores, mecanismo cuja manutenção seria
mesmo os agentes do Estado e outros agentes
assegurada pelo capital social e pelas redes so-
externos, teoricamente comprometidos com
ciais aí estabelecidas.
uma atuação conforme o Direito Estatal, levan-
6) há um paralelismo entre a regulação es-
do-os a incorporar noções que seriam exclusi-
tatal, contida na legislação urbanística aprova-
vas da institucionalidade das favelas, num mo-
da pela Prefeitura, e aquela contida nos formu-
vimento de acoplamento entre instituições dos
lários padronizados, utilizados pela Associação
dois campos jurídicos, o que pode estar sendo
de Moradores para as operações de compra e
motivado por razões de ordem pragmática.
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401
Alex Ferreira Magalhães
A troca desigual
de juridicidades:
condicionamentos do Direito
da Favela pelo Estatal
No segundo caso, incluiríamos a compra
e venda de imóvel realizada verbalmente, nos
negócios envolvendo parentes ou na chamada
“compra feita na Light”, bem como o senso comum segundo o qual a Associação de Moradores seria uma instituição pública e não privada.
No que concerne ao debate a respeito das in-
Logo, o Termo de Transferência de Benfeitoria,
fluências do Direito Estatal na conformação do
expedido por essa, é visto como documento
Direito da Favela, observamos a coexistência
oficial, hipótese que não deixa de se incluir,
de três dinâmicas distintas:
também, no caso nº 3, acima identificado.
1) certas instituições do Direito Estatal são
No terceiro caso, podemos incluir o status
apropriadas e reproduzidas, pelo Direito da
conferido ao documento “registrado em cartó-
Favela, como símbolos da oficialidade estatal,
rio”, que muitas vezes conta, tão somente, com
que estariam estampados nesse;
um reconhecimento de firma, ao qual se atribui
2) no Direito da Favela criam-se instituições
uma superioridade sobre os documentos sem
contrastantes com aquelas do Direito Estatal,
essa condição, valor que esse ato não possui,
incapazes de serem aceitas como válidas, à luz
se encarado, exclusivamente, sob o ângulo do
das normas nesse estabelecidas;
Direito estatal.
3) no Direito da Favela opera-se uma resig-
Essas três espécies de influência do Direi-
nificação (isto é, a produção de novos senti-
to Estatal sobre o da Favela podem se poten-
dos) de instituições criadas no âmbito do Di-
cializar pelo fluxo, para a favela, de moradores
reito Estatal.
vindos de áreas externas a ela, isto é, que resi-
No primeiro caso, incluiríamos os casos
diram fora da favela e que se orientam pelos
(1) da continuidade registrária e da obrigato-
padrões de sociabilidade predominantes nas
riedade da matrícula (que evidenciam que os
regiões da cidade classificadas como bairros.
procedimentos da Associação de Moradores
Com isso, começariam a ser transpostas, para
vão num sentido assemelhado àqueles que
a favela, as referências jurídicas predominantes
a lei determina para os registradores imobi-
em outros espaços urbanos, contribuindo para
liários); (2) da utilização de expressões como
acelerar as transformações das práticas jurídi-
valor venal, a fim de designar o valor do imó-
cas comunitárias.
vel legalizado, conforme a estimativa de seu
Outra hipótese fértil no sentido de com-
titular, ou legalização, na nomenclatura do do-
preender e explicar as analogias entre ins-
cumento em que se registra o imóvel, perante
tituições estatais e aquelas da favela nos é
a associação, o que sugere uma valorização
oferecida na obra de Norbert Elias, na qual se
moral da condição de legalidade. Esses seriam
registraram “as práticas de imitação que le-
alguns dos casos mais institucionalizados, aos
varam pobres europeus de muitas gerações a
quais poderiam ser agregados outros, de apro-
se espelharem em figurinos aristocráticos ou
priação mais recente, e não tão estabilizados
socialmente mais elevados que o seu” (Car-
nas práticas locais.
valho, 2009), configurando um movimento de
402
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012
O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
emulação de cima para baixo. Os dados de nos-
Uma hipótese que nos parece mais rudi-
sas pesquisas apontam na direção da operação
mentar, a respeito da questão colocada, afirma-
de processos de comunicação, de alguns rituais
ria que as semelhanças em tela constituiriam
e procedimentos legais definidos pelo Estado,
uma espécie de necessidade lógica e/ou uma
aos costumes vigentes na favela, hoje menos
necessidade operacional, isto é, as normas es-
discreta e imperceptível do que em contextos
tatais, incorporadas à prática jurídica dos mo-
passados, não merecendo sequer o rótulo de
radores de favelas, decorreriam do bom senso
um processo novo, uma vez que já estaria em
na administração dos negócios imobiliários,
curso há algum tempo. A despeito dos proces-
sem o qual essa perderia sua racionalidade.
sos, históricos e estruturais, de segregação so-
Mais forte, no entanto, parece-nos ser a pers-
cioespacial, tal fator não tem sido impeditivo
pectiva que toma esse movimento, de emula-
de que haja certo intercâmbio e/ou apropria-
ção e de reapropriação das instituições esta-
ção, de instituições oficiais do Estado, por parte
tais, como estratégia, talvez não rigorosamente
das coletividades favelizadas. O processo opos-
planejada, de pavimentação das relações da fa-
to também ocorreria, porém, possivelmente, em
vela com os mundos do Estado e da legalidade,
escala menor e de uma maneira mais racionali-
conferindo, assim, maior força à sua posição.
zada, exprimindo-se, por exemplo, no princípio
Tratar-se-ia de uma via de acesso à cidadania,
do respeito à tipicidade local nas intervenções
desenvolvida pelos segmentos sociais faveli-
do Estado em favelas, princípio incorporado ao
zados, que, por meio da apropriação das ins-
Plano Diretor e à legislação específica, para
tituições do Estado, buscaria legitimar, interna
as favelas cariocas. Assim, as favelas estariam
e externamente, suas próprias instituições. Tal
mais integradas à vida social do que aparen-
hipótese confirmaria a percepção clássica do
tariam, à primeira vista, com o que se reitera a
poder simbólico do Direito Estatal nas relações
crítica à interpretação dualista da sociedade. À
sociais modernas e contemporâneas, reconhe-
medida que as estruturas jurídicas internas das
cida tanto por Santos, como por outros cientis-
favelas se institucionalizam, elas parecem ten-
tas sociais (v. g., Bourdieu, 2004), que induziria
der a absorver algumas técnicas e instrumentos
os mais diversos agentes sociais (não somente
de administração da vida coletiva incorporadas
aqueles das favelas, portanto) a buscarem, sis-
ao ordenamento estatal, apropriadas, há mais
tematicamente, recobrir legalmente seus inte-
tempo, pelos agentes extralocais. Cogitamos
resses e instituições, produzindo uma narrativa
de tal processo sem deixar de frisar, conforme
jurídica a respeito deles, inspirada na institucio-
acima colocado, que ele ocorre em paralelo e
nalidade jurídica dominante – aquela oriunda
em combinação com pelo menos outros dois,
do Estado. Em nossas pesquisas, deparamo-nos
que identificamos como processos de resignifi-
com uma série dessas narrativas, nas quais os
cação das instituições estatais e como criações
entrevistados (de moradores de favelas a téc-
originais da experiência jurídica da favela, que
nicos da Prefeitura) elaboravam suas próprias
assinalam o fato de o Direito Comunitário não
leituras, representações e interpretações acerca
se resumir a uma cópia “de segunda mão” do
daquilo que figuraria na legislação em vigor, as
Direito estatal.
quais soavam para nós, enquanto advogados,
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Alex Ferreira Magalhães
como noções equivocadas e sem suporte legal
cariocas, os quais, a princípio, possuíam vín-
objetivo, mas que demandam serem olhadas
culos com instituições externas a elas,10 e que,
como resultado do processo social de apro-
mais recentemente, passaram a se estabele-
priação jurídica, a que aqui nos referimos. Uma
cer na favela ou mesmo a serem moradores
questão teórica, a ser explorada futuramente,
e lideranças comunitárias, num processo de
no sentido do aprimoramento teórico da hipó-
progressiva internalização do capital técnico
tese que aqui ensaiamos, consistiria em discuti-
do Direito. Um dos casos mais emblemáticos
-la à luz de alguns conceitos, elaborados no
e remotos que encontramos recai sobre a fi-
âmbito do pensamento social brasileiro, a fim
gura de Magarinos Torres, que, ao longo das
de dar conta das relações entre dominantes e
décadas de 1950 e 1960, além de advogado,
subalternos no sistema social.
foi um importante presidente de Associação
A similitude de procedimentos aqui de-
de Moradores na favela da Maré, tendo lide-
batida, a princípio, surpreendeu-nos, na medi-
rado e organizado os processos de ocupação e
da em que não supúnhamos que as lideranças
parcelamento do solo em áreas como Parque
comunitárias tivessem qualquer formação ju-
União e Rubens Vaz, além de ter sido quadro
rídica. No entanto, apuramos, em mais de um
do PCB.
dos casos estudados, que antigas lideranças
A questão da participação de advogados
comunitárias – ex-presidentes e ex-diretores –
em movimentos comunitários de favelas, e sua
haviam cursado faculdades de Direito, alguns
contribuição com esses movimentos no senti-
deles tendo obtido inscrição nos quadros da
do da instrumentação jurídica das lutas dos
OAB e encontrando-se em franca atuação ad-
moradores dessas localidades, afigura-se como
vocatícia. No período recente, tem aumentado
outra dentre as questões que resultaram de
a presença de profissionais do Direito nas fave-
nossas pesquisas, e que ficam em aberto para
las. Numa delas, verificamos que uma advoga-
sua retomada em pesquisas futuras.
da aí estabeleceu seu escritório, que lá funcio-
Diante do exposto, chegamos às seguin-
na há quase dois anos, tendo o projeto de abrir
tes proposições gerais, com relação às influên-
uma sucursal em favela vizinha. No mesmo lo-
cias do Direito Estatal, na conformação do Di-
cal, a Associação de Moradores oferece orien-
reito da Favela:
tação jurídica gratuita aos moradores, através
a) as leis do Estado possuem uma vigência
de um advogado que faz plantões semanais na
relativa nas favelas, na medida em que (1) en-
sede da própria associação. Por fim, identifica-
contram estruturas jurídicas que não se con-
mos a atuação de três corretores imobiliários
formam facilmente às suas disposições, (2) o
nessa mesma favela, um deles morador do
investimento institucional do Estado, em sua
local, além de ex-dirigente associativo e atual
efetivação, revela-se, muitas vezes, limitado,
pastor protestante. Em outras localidades, ob-
e (3) a debilidade de espaços públicos como
servamos que advogados integram a própria
fontes produtoras da normatividade estatal
diretoria da Associação de Moradores. Nossas
recém-estabelecida cria um déficit considerá-
pesquisas legaram-nos a percepção de que é
vel entre os comandos legais e as expectati-
antiga a presença de advogados nas favelas
vas normativas dos moradores de favelas.
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
b) se, em parte, o Direito da Favela absorve
pós-1988. Contudo, a sensibilidade jurídica
e/ou importa as instituições estatais, a análi-
comunitária, em alguns aspectos, estrutura-se
se deve igualmente estar atenta ao processo
com base em noções como a de tratamento
inverso, no qual são as leis da favela que “en-
equânime e isonômico de todos os moradores
tram” no Estado, passando os seus agentes a
da favela, bem como nela adquire relevância a
operar e apoiar sua atuação nas instituições
consideração do estado de necessidade de de-
de origem comunitária. Muito embora se tra-
terminados agentes, o que justificaria certa fle-
te de uma “troca desigual de juridicidade”,
xibilidade, na exigência das obrigações a eles
como afirma Santos, há que se ter em vista
atribuídas. Nesses casos, podemos afirmar que
que se trata de um processo dialético ou “de
o código valorativo adotado é, em boa parte,
mão dupla”, no qual um sistema se alimenta,
harmônico com aquele que seria próprio do Es-
em parte, do outro. Tanto o Estado chegou às
tado democrático.
favelas, quanto aquelas, em diferente medida,
estão nesse.
e) não encontramos evidências que deem
suporte adequado à hipótese segundo a qual
c) pelas razões indicadas acima, as normas
as favelas se caracterizam como regiões em
urbanísticas promulgadas pelo Estado têm se
que as relações jurídicas estariam dominadas,
revelado escassamente efetivas no espaço das
de maneira geral, por formas privatizadas de
favelas, assim como ocorre em outras regiões
regulação social, muito embora possam ser en-
urbanas. A diferença, analiticamente relevante,
contradas situações concretas que evocariam
entre os dois casos, seria dada pelo histórico
esse padrão.
não reconhecimento dos moradores de favelas como agentes numa relação política com
o Estado; são encarados, antes, como um grupo que deve ser educado e/ou “culturalmente
reformado”, no sentido do cumprimento da
normatividade estatal, o que configura uma negativa indireta de faculdades próprias da cidadania, a exemplo do poder colocar em questão
essa própria normatividade. Tal problema se veria agravado em função de a regulação estatal
As políticas de regularização
urbanística e fundiária:
o que têm representado
e o que podem representar,
na redefinição da regulação
das favelas
operar, no caso das favelas, numa região que
ainda apresenta déficits consideráveis no que
Consideramos que nossas pesquisas integram
concerne aos patamares mínimos de qualidade
o esforço coletivo de avaliar, sistematicamen-
urbanística da moradia.
te, as transformações no tecido urbano intro-
d) não encontramos evidências de que a
duzidas pelas políticas de urbanização e regu-
normatividade, presente no caso das favelas
larização urbanística e fundiária, ora em curso
estudadas, caracterize-se por traços marcan-
em escala internacional e com status de polí-
tes de valores democráticos e cidadãos, que
tica urbana prioritária, contribuindo, assim,
seriam estruturantes do ordenamento estatal
para seu aprimoramento. Como fator distintivo
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Alex Ferreira Magalhães
das demais avaliações já realizadas, aquela
a controlar e intermediar suas transferências,
que tencionamos desenvolver teria a singula-
concomitantemente aos sistemas de controle e
ridade de dirigir seu foco a um dos aspectos
registro mantidos pela Prefeitura.
da intervenção do Estado nas favelas, que
Por outro lado, a introdução de práticas
nelas se materializa, consistente na tentativa
jurídicas sob a inspiração direta do Direito Es-
11
tatal tem redundado no acoplamento dessas
Isso tem sido buscado, de um lado, mediante
às práticas anteriormente vigentes, de origem
a introdução de um sistema de formalização
comunitária, numa combinação de práticas vi-
da propriedade, organizado e validado, pelo
gentes dentro e fora da favela, constelando-se
Direito Estatal, e, de outro, mediante a edição
os instrumentos jurídicos estatais e comunitá-
de legislação urbanística específica para cada
rios. Assim, o documento comprobatório das
favela, sucedida de instalação do respectivo
alienações de imóveis, expedido pelas Asso-
órgão de orientação e controle.
ciações de Moradores, adquire idêntico status
de promover seu reordenamento jurídico.
Quanto ao aspecto da formalização
e efeito prático em relação à escritura lavrada
da propriedade, observamos que o início do
em cartório de notas – comumente chamada
processo de regularização não implicou o de-
de escritura definitiva – representando ora um
saparecimento ou refluxo dos mecanismos
equivalente, ora uma alternativa em relação a
de formalização da propriedade. Continuam
essa. Assim, a introdução nas favelas dos con-
a ocorrer aquisições – da propriedade ou, ao
tratos de Promessa de Compra e Venda, a fim
menos, dos direitos possessórios – mediante
de instrumentalizar as operações imobiliárias
compra, doação, empréstimo, locação, suces-
com pagamento parcelado (o que se deve à
são hereditária e uniões conjugais. A ação do
atuação dos corretores imobiliários), não tem
Estado viria no sentido de confirmar, e não de
conduzido à substituição ou diluição do proce-
quebrar, a cadeia dominial constituída des-
dimento típico, adotado localmente até então.
de as origens da favela, estruturando-se um
As alternativas abertas para a realização da
sistema estatal a partir daquele organizado
operação de venda ficam à escolha do compra-
anteriormente, com os recursos internos das
dor, pois é dele o interesse da prova da aquisi-
organizações dos moradores de favela. Para
ção, bem como será dele o ônus de arcar com
muitos moradores, a introdução de um siste-
os custos inerentes à alternativa que escolher, o
ma estatal de reconhecimento das proprieda-
que representa uma inversão da lógica vigente
des imobiliárias é aguardado como um reforço
nas operações do chamado mercado formal,
e não como substituição do sistema comuni-
no qual se costuma afirmar que “é o vendedor
tário. Mesmo os imóveis construídos pela Pre-
quem dita a lei do contrato”.
feitura, que a princípio estariam sujeitos a um
Anotamos uma série de circunstâncias
sistema de titulação exclusivamente estatal,
em que o Estado se apóia na institucionalida-
não deixam de ser atraídos e englobados pelo
de das favelas a fim de desenvolver as ações
sistema das instituições locais: em curto perío-
que lhe cabem: os garis comunitários; o car-
do de tempo, terminam por serem cadastra-
teiro comunitário; a entrega de intimações ju-
dos na Associação de Moradores, que passa
diciais (serviços mantidos pela Associação de
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
Moradores, à míngua de qualquer convênio
favor, deve-se atentar, por outro lado, para os
com os órgãos estatais competentes); a requi-
sinais contidos nos movimentos contrários aos
sição judicial (dirigida à Associação de Morado-
projetos estatais, muitas vezes apressadamente
res) de informações a respeito de imóveis situa-
desqualificados, conforme verificamos nas pu-
dos na favela; as ordens judiciais no sentido de
blicações oficiais da Prefeitura do Rio de Janei-
que se promova (nos registros da associação) a
ro (a exemplo de Rio de Janeiro, 2008) e mes-
partilha de imóveis de casal que se divorciou,
mo em algumas entrevistas com seus agentes.
tal como é feito em relação aos cartórios do re-
Tais movimentos são indicativos de que muito
gistro imobiliário.
embora intervenções de urbanização e regu-
Quanto ao aspecto da titulação da pro-
larização sejam, de maneira geral, desejáveis,
priedade, prometida pelo Estado, no processo
isso não autoriza a supressão do complexo e
de regularização – à qual os moradores se refe-
necessário debate a respeito dos interesses que
rem como “passar a escritura da casa” – muito
estaria concretamente atendendo, bem como
embora os moradores de favelas costumem ser
de seu modus faciendi, o que exige que a aná-
enfáticos em afirmar seu interesse em que tal
lise desça aos pormenores de seus procedimen-
medida seja implementada – o que sugeriria
tos e considere as inúmeras questões que aí se
a idéia de que ela seria, no mínimo, algo mo-
abrem. Nos casos que estudamos, e mesmo em
ralmente válido – também avaliam, por outro
outros citados na literatura especializada, ob-
lado, que a eficácia dessa medida será pequena
servamos que os movimentos dos moradores
caso não acompanhada de outras, no sentido
da favela mostram que os mesmos pretendem
de garantir a efetiva segurança da posse. Po-
assegurar alguns valores que podem não es-
demos afirmar que um dos desafios para as
tar contidos nos projetos urbanísticos, não se
políticas de regularização, na Cidade do Rio de
reduzindo suas expectativas à segurança da
Janeiro, consistiria em propiciar uma titulação
posse e à dotação de infraestruturas e serviços
que se revele eficaz tanto para dentro da fave-
públicos, conquanto tais medidas sejam de ine-
la – considerando-se as circunstâncias de sua
gável relevância. Tais movimentos reafirmam
ordem interna – quanto para fora dela. Os me-
que, mesmo em meio à precariedade física e
canismos de formalização da propriedade de-
urbanística, existem determinadas conquistas
senvolvidos nas favelas, muito embora tenham
e aquisições que também estão em jogo, nos
cumprido um importante papel na estabiliza-
momentos em que se implantam projetos ur-
ção das relações sociais referentes ao acesso à
banísticos. Assim, a não consideração atenta
terra e à moradia, em geral defrontam-se com
de tais valores constituirá, fatalmente, objeto
a última das duas limitações acima referidas.
de conflitos e resistências, nem sempre inter-
Se é passível de crítica a concepção de
pretados corretamente, uma vez que, frequen-
que os moradores de favela seriam portadores
temente, atribuídos a qualidades negativas dos
de uma cultura autóctone, que buscaria se re-
moradores e/ou de suas respectivas lideranças.
produzir sem a interferência do Estado, sendo
No tocante ao Direito de Construir, tam-
mais verossímil afirmar que possuiriam a ex-
bém se coloca de maneira bastante evidencia-
pectativa de que o Estado intervenha em seu
da o projeto de reordenamento jurídico das
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Alex Ferreira Magalhães
favelas por parte do Estado. Muito embora os
enumerar (1) a desorganização dos controles
processos de controle, estabelecidos pela Pre-
comunitários preexistentes à intervenção esta-
feitura, busquem, em alguma medida, se arti-
tal; (2) a tendência à expropriação dos espaços
cular com as forças internas da favela – v. g.
públicos; (3) a imposição de novas normas de
imbricando-se com a Associação de Moradores
maneira apartada de processos consistentes
e valendo-se de instrumentos como os agentes
de negociação e deliberação; e (4) o recurso a
comunitários e representantes de rua – não há
expedientes de violência simbólica, tais como
como esconder a gama de conflitos envolvidos
a proposta dita “socioeducativa” e de “reedu-
nessa proposta. Dado o alcance considerável
cação cultural” (cf. Rio de Janeiro, 2008), aos
desses conflitos, os mecanismos de imbricação
quais podem eventualmente se somar aqueles
comunitária da regulação e controle urbanísti-
de coação direta, como a realização de demoli-
co afiguram-se-nos indiscutíveis mecanismos
ções. Tudo isso transcorre num quadro em que
de amortecimento desses conflitos, a fim de mi-
não se acena com a realização de investimen-
nimizar as dificuldades inerentes ao processo
tos permanentes em infraestruturas e serviços
de reordenamento, fatalmente percebidas pe-
nas favelas objeto dessa regulação – aquelas
los agentes públicos logo no primeiro momen-
que já receberam obras de urbanização – que
to de sua implantação. Tais dificuldades não se
venham, ao menos, assegurar a manutenção
reduzem às resistências opostas, pelos morado-
dos benefícios implantados quando da exe-
res, à implementação da nova ordem urbanís-
cução do projeto de urbanização. Em suma,
tica projetada para o local em que vivem, mas
trata-se de uma combinação de fatores na qual
são agravadas pelos problemas de ordem polí-
se acentua o aspecto regulador da ação do
tico-administrativa, que também acompanham
Estado, não se abrindo espaços para medidas
a trajetória dos programas para favelas desde
de caráter emancipatório, a essa altura funda-
seu surgimento. Parece-nos haver um grande
mentais não somente para atender demandas
descompasso entre a ousadia da proposta de
acumuladas, como para modificar a imagem, já
reordenamento territorial e os meios e condi-
muito desgastada, de que o Estado goza nas
ções objetivas disponíveis para tanto, o que faz
favelas, não se vislumbrando perspectivas de
com que sejam incertos os efeitos dos mencio-
superação dos problemas reais, relativos ao
nados programas.
seu desenvolvimento como partes da cidade.
Entre os efeitos perceptíveis que a inter-
Nesse quadro, as estratégias defensivas e rea-
venção do Estado nas favelas cariocas estaria
tivas ora em curso – tipificadas, de um lado,
engendrando, registramos alguns classificáveis
pelo discurso da irregularidade articulado pelos
como positivos – alguma orientação técnico-
agentes públicos, e, de outro, pelo discurso do
-construtiva, abertura de mais um possível
desconhecimento manejado pelos moradores
canal de processamento de litígios relativos
de favelas – podem assumir tons mais graves,
ao aproveitamento do espaço, e prevenção
que denotem o recrudescimento desse conflito.
de acidentes – ao lado de outros, bastan-
Conforme já debatido, concebemos as
te preocupan tes e que configurariam seu
relações jurídicas, nas favelas, como sendo
legado negativo. Entre esses últimos, podemos
marcadas por três distintas vertentes: a) os
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
usos e costumes locais; b) as apropriações do
●
vertente “b”: ocorreria de maneira bastan-
sistema legal estatal; c) as imposições e/ou
te seletiva, uma vez que estaria se aprofundan-
soluções arbitrárias. Uma das questões que se
do o gap entre a ordem legal e as expectativas
colocam, a partir do advento dos programas
normativas dos moradores da favela, que po-
de regularização, consistiria em saber que im-
deria realimentar dinâmicas como as do com-
pacto esses programas estão produzindo so-
portamento ambivalente diante da lei (a exem-
bre esses três determinantes. Na medida em
plo do aludido “discurso do desconhecimen-
que alguns dados apontam para uma inter-
to”), ou, ainda, as apropriações com caráter de
venção do Estado caracterizada pelo recurso à
resignificação, a fim de filtrar a normatividade
violência simbólica, tendo pouca consistência
estatal de seus aspectos mais contraditórios
os espaços públicos de negociação e delibera-
com as instituições, interesses e expectativas
ção do novo ordenamento anunciado para as
dos mesmos moradores;
favelas, poderíamos prognosticar os seguintes
possíveis resultados:
●
vertente “c”: poderia, paradoxalmente,
se ver reforçada com a intervenção do Estado,
vertente “a”: seria enfraquecida, uma vez
uma vez que constitui um elemento integran-
que o processo de instituição da legislação não
te da própria tônica (ou metodologia) de sua
buscou dialogar com ela, bem como foi estru-
operacionalização, funcionando como pedago-
turado de maneira a repelir e abolir tais parâ-
gia violenta e excludente, que engendraria os
metros, considerados como fonte de práticas
processos classificados na literatura como de
negativas com relação aos espaços públicos;
privatização do Direito.
●
Alex Ferreira Magalhães
Advogado. Especialista em Sociologia Urbana, Mestre em Direito da Cidade, Doutor em Planejamento Urbano e Regional. Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro e Consultor Jurídico. Rio
de Janeiro/RJ, Brasil.
[email protected]
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Alex Ferreira Magalhães
Notas
(1) Conceito que extraímos da obra de Guillermo O´Donnell, que o define como a parte do Estado
que é personificada num sistema de leis, que, penetrando e estruturando a sociedade como um
todo, fornece um quadro básico para as a vidades sociais, conferindo rela va estabilidade e
previsibilidade às relações sociais (O’Donnell, 1998, pp. 45-46). O Estado legal é um dos pilares
da aposta democrática, que não pode prescindir desse instrumento para sua constituição e
perpetuação. Assim, para falar em democracia deve-se ter em conta não apenas aspectos
rela vos ao regime polí co, como também aspectos rela vos ao Estado. Requer-se, portanto,
que “as pessoas devam ser capazes de confiar na lei quando agem, [...] que ela [a lei] exista, que
seja conhecível, que suas implicações sejam rela vamente determinadas e que se possa esperar
com confiança que ela estabeleça limites dentro dos quais os principais atores, incluindo-se o
governo, agirão” (O’Donnell, 1998, p. 50).
(2) Trata-se de uma dis nção inspirada na obra de Foucault. O poder cósmico consis ria naquele
poder centralizado, fisicamente localizado em instituições formais e hierarquicamente
organizado; é o macropoder que encontra sua realização mais completa no poder do Estado.
O poder caósmico alude aos micropoderes presentes na família, na escola, Igreja, clube, etc.,
um poder sem centro, atomizado, móvel, múltiplo, sem localização específica (cf. Santos,
1982, p. 27).
(3) Esta nota peculiar se relaciona diretamente às colocações de Santos a respeito das promessas não
cumpridas da modernidade, incorporadas nas Cons tuições polí cas modernas, e conver das
em direitos da cidadania, e que estão sendo literalmente abandonadas no contexto da pósmodernidade, sendo essa uma das questões de fundo que corta transversalmente as reflexões
desse autor (especialmente Santos, 2001; 2004).
(4) Colocação que nos parece ser uma referência às chamadas fontes formais do Direito.
(5) Esta também é uma categoria que, em outros momentos, é cri cada por Santos, pois também
afirma que não faria sentido considerar o Direito de Pasárgada como não oficial na medida
em que este – e quaisquer outras formas jurídicas não estatais – são capazes de cons tuir sua
própria oficialidade (Santos, 1996, p. 261).
(6) Conforme definição do Ministério do Desenvolvimento Social (vide http://www.mds.gov.br/
programas/rede-suas/protecao-social-basica/paif), o CRAS – Centro de Referência de Assistência
Social – “é uma unidade pública da polí ca de assistência social, de base municipal, integrante
do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), localizado em áreas com maiores índices de
vulnerabilidade e risco social, des nado à prestação de serviços e programas socioassistenciais
de proteção social básica às famílias e indivíduos, à ar culação destes serviços no seu território
de abrangência, e a uma atuação intersetorial na perspectiva de potencializar a proteção
social”. Correspondem aos an gos CEMASI (Centros Municipais de Assistência Social Integrada),
cuja nomenclatura foi alterada pela Prefeitura em 2006, seguindo as determinações da Polí ca
Nacional de Assistência Social.
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O direito à cidade nas favelas do Rio de Janeiro
(7) Conforme o Ministério da Saúde (vide http://portal.saude.gov.br/portal/saude/cidadao/
area.cfm?id_area=149), o PSF – Programa de Saúde da Família – cons tui uma estratégia de
reorientação do modelo assistencial, operacionalizado mediante a implantação de equipes
mul profissionais em unidades básicas de saúde, que ficam responsáveis pelo acompanhamento
de um número definido de famílias, localizadas em uma área geográfica delimitada. As equipes
atuam com ações de promoção da saúde, prevenção, recuperação, reabilitação de doenças
e agravos mais frequentes, e na manutenção da saúde desta comunidade. No estado do
Rio de Janeiro, esse programa foi antecedido por um outro – o Projeto Médico de Família –
desenvolvido por algumas prefeituras, com o qual possui algumas semelhanças, muito embora
algumas análises indiquem que esse úl mo levasse melhor em conta “o lugar, suas lutas, seu
saber, suas necessidades, os modos de agir do lugar, suas lógicas de reflexão, seus modos de
cuidar (Ozório, 2005, pp. 131-132).
(8) Após a fase inicial de projetos, as obras do Programa Favela-Bairro veram início em 1995, em
16 favelas distribuídas pelas cinco Áreas de Planejamento (APs) definidas no Plano Diretor. As
primeiras obras são inauguradas em fins de 1996, e, nesse mesmo ano, foram concebidos e
ins tuídos oficialmente os Postos de Orientação Urbanís ca e Social (POUSOs) nas favelas que
recebiam as obras, que começaram a funcionar efe vamente a par r de 1997. Foram criados
com os obje vos de “orientar a execução de novas construções ou ampliações das existentes,
bem como o uso dos equipamentos públicos implantados” e de “exercer fiscalização urbanís ca
e edilícia” (art. 1º do Decreto 15.259). A fiscalização a ser exercida pelos POUSOs deverá
“controlar a expansão das edificações (tanto horizontal, como verticalmente), de forma que
os equipamentos implantados não se tornem insuficientes” (art. 2º, III do mesmo Decreto),
buscando evitar a “refavelização” das áreas atendidas por projetos de urbanização, procurando
dar-se um des no melhor a elas após sua urbanização (Rio de Janeiro, 2008, p. 12). Esse ponto
de vista, encampado pela Prefeitura do Rio de Janeiro, parte do pressuposto, a nosso ver
analiticamente discutível, de que, com as obras de urbanização, os locais que as receberam
efe vamente deixaram de configurar-se como favelas, do contrário não teria sen do falar-se em
refavelização. Os POUSOs cons tuem, ainda, o veículo de ar culação das ações do Município na
favela, cabendo-lhes subsidiar os órgãos competentes para a elaboração da legislação edilícia
a ser estabelecida para cada uma das favelas que receberam as obras de urbanização. As
equipes de cada posto devem ser compostas por profissionais de nível superior (um arquiteto ou
engenheiro e um profissional da área social), além de agentes comunitários. No caso da cidade
do Rio de Janeiro, falar-se em regulação das favelas pelo Estado implica uma menção obrigatória
à trajetória desses organismos, que cons tuem um dos mais relevantes legados deixados pela
execução de obras de urbanização.
(9) Santos (2001, p. 139) recepciona da obra de Claus Offe a clássica periodização do capitalismo
em liberal (cobre todo o século XIX), organizado (desde fins do século XIX, a ngindo seu ápice
entre as duas guerras e nas duas décadas do pós-2ª guerra) e desorganizado (desde fins da
década de 1960 até o momento atual). O período do capitalismo desorganizado seria marcado
pela consciência de quatro ideias: nada que a modernidade concre zou é irreversível; não há
garan a de permanência para aquilo que da modernidade deva ser preservado; as promessas
não cumpridas ainda continuarão por cumprir; o déficit da modernidade entre promessas
e realizações é maior do que o imaginado no período anterior (Santos, 2001, p. 139). Santos
reconhece que essa denominação é traiçoeira na medida que o capitalismo contemporâneo
estaria mais organizado do que nunca, devendo ser recebida como uma reconstituição das
formas de regulação social do período anterior num nível de coerência muito mais baixo;
como crescente desajuste e autoritarismo dos aparelhos burocrá cos; como ruptura do pacto
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012
411
Alex Ferreira Magalhães
anterior envolvendo Estado, classes trabalhadoras e classes empresariais; e/ou como crise dos
paradigmas fordista e keynesiano (Santos, 2001, pp. 153-164).
(10) Tais como a Fundação Leão XIII, a Pastoral de Favelas da Arquidiocese do Rio de Janeiro, a Ordem
dos Advogados do Brasil, a Fundação Bento Rubião e o Projeto Balcão de Direitos, man do pelo
movimento Viva Rio.
(11) Optamos por u lizar essa categoria, e não a categoria “ordenamento”, de acordo com nossas
premissas a respeito do caráter regulado, e não anômico ou de “folha de papel em branco”,
das favelas.
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Texto recebido em 21/out/2011
Texto aprovado em 13/jan/2012
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 381-413, jul/dez 2012
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Planos diretores e canais democráticos
de participação popular: estudo
de 25 planos diretores da RMBH
Master plans and democratic channels of popular
participation: a study of 25 master plans
of the Metropolitan Region of Belo Horizonte
Renato Barbosa Fontes
Léa Guimarães Souki
Resumo
A possibilidade de instaurar novas práticas de planejamento e gestão democrática nas políticas urbanas no Brasil vem se tornando mais factível, especialmente, após a aprovação do Estatuto da Cidade
em 2001. A retomada dessa discussão assume uma
grande importância, tendo em vista o quadro de
desigualdades socioespaciais e crise urbana presentes nas cidades. O presente artigo baseia-se em
um estudo exploratório nas leis de Planos Diretores
de 25 municípios da Região Metropolitana de Belo Horizonte. Na análise foi considerado, especialmente, o sistema de intermediação de interesses
entre sociedade civil e Estado, previsto e descrito
no Estatuto da Cidade. Buscou-se identificar e compreender as diretrizes e os instrumentos de participação popular prescritos no Estatuto da Cidade e
manifestos nos planos.
Abstract
The possibility of introducing new practices of
planning and democratic management into the
urban policies in Brazil has become more feasible,
especially after the approval of the City Statute
in 2001. The resumption of this discussion is
important, in light of the socio-spatial inequalities
and urban crisis that are present in the cities. This
paper is based on an exploratory research into
the laws of the Master Plans for 25 municipalities
in the metropolitan region of Belo Horizonte.
The analysis considered especially the system of
intermediation of interests between civil society
and the State, predicted and described in the City
Statute. We sought to identify and understand
the guidelines and tools for popular participation
prescribed in the City Statute and manifested in
the plans.
Palavras-chave: Estatuto da Cidade; planos diretores; planejamento urbano; participação popular;
Região Metropolitana de Belo Horizonte.
Keywords: city statute; master plans; urban
planning; popular participation; Metropolitan
Region of Belo Horizonte.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
Neste artigo serão analisados alguns limites e potencialidades dos instrumentos de
participação popular presentes nas Leis de
Planos Diretores de 25 municípios da Região
Metropolitana de Belo Horizonte. Para tanto,
Considerações sobre os dados
dos 25 municípios escolhidos
da Região Metropolitana
de Belo Horizonte
será considerado, especialmente, o sistema de
intermediação de interesses entre sociedade
Para debater sobre os instrumentos de parti-
civil e Estado previsto, e parcialmente descrito
cipação popular em torno dos Planos Direto-
no Estatuto da Cidade.
res (PDs) na RMBH e definir o universo a ser
Seguem-se, no decorrer do texto, as
pesquisado foi necessário levantar, além de
análises das Leis dos Planos Diretores, seus
uma bibliografia sobre o tema, pesquisas já
diversos formatos de participação popular, ar-
existentes que dessem subsídio a uma análise
ranjos, formas de organização, possibilidades
empírica e para a formulação de algumas hipó-
institucionais como arenas políticas de inter-
teses. Inicialmente, foi feito um levantamento
mediação de interesses. O artigo será desen-
de fontes diversas: 1) legislações dos PDs dos
volvido em quatro partes, inicialmente, serão
municípios da RMBH e de seu estágio, não ela-
feitas algumas considerações metodológicas
borado, em aprovação e aprovado;1 2) dados
sobre o universo da pesquisa; a segunda, so-
disponibilizados no site do Ministério das Cida-
bre os processos de divulgação e debate na
des referentes à elaboração dos PDs nos vinte e
fase de elaboração dos Planos Diretores; a
cinco municípios; e 3) informações contidas na
terceira, sobre instrumentos de participação
pesquisa da Confederação Nacional de Arquite-
popular prescritos nos Planos Diretores e por
tos, Engenheiros e Agrônomos (Confea) sobre a
último, serão tecidas algumas considerações
existência de conselhos e processo de elabora-
sobre os limites e avanços dos arranjos de
ção dos PDs durante o ano de 2006.
participação popular nos Planos Diretores dos
Com o levantamento documental feito,
municípios avaliados. Isto é, em que medida
adotou-se o seguinte recorte temporal para se-
os elementos contidos nos Planos traduzem e/
leção do universo da pesquisa: municípios da
ou refletem os instrumentos prescritos no Es-
RMBH com leis PDs aprovados e sancionados
tatuto da Cidade e como se adaptam em dife-
após a Lei 10.257/2001: Estatuto das Cidades
rentes realidades?
até 30 junho de 2008, o último prazo do Minis-
Acredita-se que o estudo desses cená-
tério das Cidades para a aprovação dessas leis
rios possa incentivar a discussão das condi-
pelos municípios. A partir dos critérios acima
ções em que se fazem os arranjos institucio-
descritos, é possível estabelecer quais são os
nais de participação popular no planejamento
municípios que terão seus planos analisados:
e na gestão urbana a partir dos novos Planos
Betim, Brumadinho, Caeté, Capim Branco, Con-
Diretores.
fins, Contagem, Esmeraldas, Itaguara, Itatiauçu,
416
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Planos diretores e canais democráticos de participação popular
Jaboticatubas, Juatuba, Lagoa Santa, Mário
Diante dessas dificuldades e a necessi-
Campos, Mateus Leme, Nova Lima, Nova União,
dade de confirmar a autenticidade do material
Pedro Leopoldo, Ribeirão das Neves, Rio Acima,
levantando, foi necessário contrastá-lo com
Sabará, Santa Luzia, São Joaquim de Bicas, São
as leis levantadas por outra pesquisa: “Insti-
José da Lapa, Sarzedo e Vespasiano.
tucionalizando a cooperação intermunicipal:
Dos 34 municípios que compõem a Região Metropolitana, 12 municípios tiveram
a gestão metropolitana e a política hídrica na
RMBH”.3
seus Planos Diretores disponibilizados pela
Por meio da leitura crítica das Leis dos
Secretaria Estadual de Desenvolvimento Regio-
PDs de municípios da RMBH, buscou-se levan-
nal e Política Urbana – SEDRU, mais especifi-
tar as características da gestão democrática e
camente pela Subsecretaria de Programas Ur-
os instrumentos de participação destes planos,
banos.2 O restante das informações, referentes
identificando se as diretrizes e concepções do
a 22 municípios, foi solicitado diretamente às
Estatuto da Cidade foram instituídos nos Pla-
prefeituras. Considerando a diretriz do Estatu-
nos. Foram cinco os arranjos institucionais con-
to, Art. 40, parágrafo III “da publicidade quan-
siderados relevantes para nossa análise.4
to aos documentos e informações produzidas”
(Brasil, 2001), ressalta-se a dificuldade do acesso a esses Planos. Refere-se aqui especialmente
às dificuldades de encontrar o setor responsável nas prefeituras pela elaboração dos Planos
Diretores, ou mesmo algum funcionário que
pudesse cedê-lo, o que pode refletir, em parte,
as dificuldades que um cidadão comum poderia ter em acessar as leis. Ao contatar as prefei-
Arranjos institucionais
de participação popular,
prescritos nos Planos
Diretores de 25 municípios
da RMBH
turas e ao indagar sobre um setor responsável
pela elaboração dos planos ou mesmo de polí-
O primeiro passo para delimitar a amostra a ser
tica urbana ou habitação, deparou-se com os
estudada foi conhecer o estágio de aprovação
mais diversos setores: desde uma Secretaria de
dos Planos. Como foi mencionado anterior-
Planejamento, de Meio Ambiente, de Obras e
mente, classificou-se os PDs de 34 municípios
Infraestrutura Urbana, Desenvolvimento Social,
da RMBH e seu estágio de aprovação, da se-
Assistência Social passando, em um dos casos,
guinte forma: não aprovado, em aprovação e
por uma Secretaria de Educação e, em outro,
aprovado. Pode-se observar, na Tabela 1, que
sendo necessário conversar com o próprio Pre-
25 (74%) municípios têm seus PDs aprovados
feito. Além disso, houve quem confundisse o PD
entre junho de 2001 e 30 de junho de 2008;
com o Código de Obras, Lei do Parcelamento
5 (14%) municípios têm Planos aprovados no
do Solo e quem enviasse os Projetos de Lei dos
período anterior ao Estatuto da Cidade; 3 (9%)
Planos, sem aprovação.
tem suas leis em estágio de aprovação nas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
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Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
Tabela 1 – Planos Diretores dos municípios da RMBH
e estágio de aprovação em novembro de 2009
Municípios
Baldim
Belo Horizonte
Betim
População (2007)
8.724
2.412.937
415.098
Lei PD
Não elaborado
Aprovado (7165/96)
Aprovado (4574/07)
Brumadinho
31.965
Aprovado (10/06)
Caeté
39.039
Aprovado (2496/07)
Capim Branco
8.763
Aprovado (01078/06)
Confins
5.680
Aprovado (438/06)
Contagem
608.650
Esmeraldas
55.436
Aprovado (0132/2007)
5.928
Aprovado (015/2001)
Florestal
Ibirité
148.535
Aprovado (33/2006)
Aprovado (0211/99)
Igarapé
31.135
Aprovado (1205/2000)
Itaguara
12.292
Aprovado (022/2007)
Itatiaiuçu
8.953
Aprovado (1009/06)
Jaboticatubas
15.496
Aprovado (1905/06)
Juatuba
19.528
Aprovado (112/06)
Lagoa Santa
44.922
Aprovado (02633/06)
Mário Campos
11.421
Aprovado (011/06)
Mateus Leme
25.627
Aprovado (25/06)
Matozinhos
33.317
Aprovado (1624/01)
Nova Lima
72.207
Aprovado (2047/2007)
Nova União
5.461
Aprovado (16/2006)
56.518
Aprovado (3034/08)
Pedro Leopoldo
Raposos
Ribeirão das Neves
Rio Acima
Rio Manso
14.874
329.112
Em aprovação
Aprovado (036/06)
8.257
Aprovado (11/06)
5.007
Em aprovação
Sabará
120.770
Aprovado (003/04)
Santa Luzia
222.507
Aprovado (2699/06)
São Joaquim de Bicas
22.214
Aprovado (215/04)
São José da Lapa
17.900
Aprovado (575/06)
Sarzedo
23.282
Aprovado (027/06)
Taquaraçu de Minas
Vespasiano
3.757
94.191
Em aprovação
Aprovado (02/06)
Fontes: IBGE/Contagem 2007; Leis de Planos Diretores dos Municípios da RMBH (levantamento: setembro à novembro de
2009); elaboração dos autores.
418
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Planos diretores e canais democráticos de participação popular
respectivas câmaras municipais e 1 (3%) município não tem seu PD aprovado e nem iniciou
seu processo de elaboração, no caso, o município de Baldim. Outro dado a ser considerado
Processos participativos
na elaboração e discussão
dos Planos Diretores
é que a metade dos municípios (17) tem seus
Planos Diretores aprovados até outubro de
2006. Provavelmente esse possa ser um resul-
Divulgação e debate na fase
de elaboração
tado da campanha de sensibilização da elaboração dos Planos Diretores “Cidade para To-
No art. 40, parágrafo IV do Estatuto da Cida-
dos”, organizada pelo Conselho Nacional das
de, estabelece-se que os poderes Legislativo
Cidades/Ministério das Cidades com data limite
e Executivo devem garantir, no processo de
para aprovação dos planos pelos municípios
elaboração do Plano Diretor, a participação
estabelecida pelo mesmo Ministério, posterior-
de vários segmentos da sociedade, a publici-
mente prorrogada para julho de 2008.
dade e o acesso de qualquer interessado aos
Observa-se que os quatro municípios que
documentos e informações produzidos. Assim,
têm seus PDs na categoria de em aprovação ou
torna-se importante saber quais espaços de
não elaborado são municípios com população
discussão foram criados nesses municípios no
abaixo de 20.000 habitantes: Baldim, Raposos,
processo de elaboração dos Planos. No Qua-
Taquaraçu de Minas e Rio Manso. Entretanto,
dro 1, é possível visualizar quais arranjos de
deve-se lembrar que, segundo Art. 41 do Es-
participação foram criados, se conferências,
tatuto, apenas os municípios acima de 20.000
debates públicos e/ou audiências públicas.
habitantes são obrigados a elaborar seus Pla-
Os dados que subsidiaram a análise fa-
nos. No entanto, o parágrafo II, do mesmo arti-
zem parte de um levantamento feito pela Con-
go, compromete todos os municípios que inte-
federação Nacional de Engenharia, Arquitetura
gram regiões metropolitanas, independente da
e Agronomia (Confea, 2007) a respeito dos pro-
faixa populacional a elaborar seus planos.
cessos de elaboração dos PDs.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
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Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
Quadro 1 – Realização de processos diversificados
e descentralizados de debate do Plano Diretor durante sua elaboração
Municípios
Conferências
Debates públicos
Nº audiências públicas
na Câmara
X
5
Betim
Brumadinho
Caeté
X
X
Capim Branco
X
X
1
Confins
X
X
2
Contagem
X
Esmeraldas
X
Itaguara
Itatiaiuçu
1
X
2
X
1
X
1
Jaboticatubas
X
X
Juatuba
X
X
Lagoa Santa
2
2
Mário Campos
Mateus Leme
X
Nova Lima
X
X
5
Nova União
Pedro Leopoldo
2
4
X
X
Ribeirão das Neves
X
Rio Acima
X
Sabará
X
Santa Luzia
X
1
1
São Joaquim de Bicas
X
X
São José da Lapa
X
X
Sarzedo
X
Vespasiano
X
Fonte: Pesquisa Confea (2007). Reelaboração dos autores.
420
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Planos diretores e canais democráticos de participação popular
Supõe-se que as conferências e os debates públicos devam ser usados para definir
a metodologia de elaboração do Plano Diretor
III - publicação e divulgação dos resultados
dos debates e das propostas adotadas nas
diversas etapas do processo (Brasil, 2005).
e para possibilitar a participação em todas as
etapas de discussão dos grandes temas que
estarão contidos nos planos. No âmbito do legislativo municipal, as audiências públicas são
obrigatórias para a votação do Plano Diretor,
como condição de validade da lei.
Os municípios de Betim e Mário Campos, segundo os dados levantados, foram os
únicos que não realizaram nenhum tipo de debate em torno da elaboração dos Planos. As
audiências estão presentes em 14 municípios
da amostra, as conferências em 15 municípios
e os debates públicos em 16 municípios. Apenas quatro municípios (Confins, Jaboticatubas,
Mateus Leme e São Joaquim de Bicas) realizaram discussões em todos os três espaços de
discussão levantados.
Quanto à publicidade em torno dos espaços de elaboração dos PDs para toda sociedade,
fundamental para ampliar a participação nesses
espaços, a Resolução do Conselho Nacional das
Cidades nº 25, de 2005, art. 4º, é clara:
No processo participativo de elaboração
do plano diretor, a publicidade, determinada pelo inciso II, do § 4º do art. 40 do
Estatuto da Cidade, deverá conter os seguintes requisitos:
I - ampla comunicação pública, em linguagem acessível, através dos meios
de comunicação social de massa
disponíveis;
II - ciência do cronograma e dos locais
das reuniões, da apresentação dos estudos e propostas sobre o plano diretor com
antecedência de no mínimo 15 dias;
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
No caso dos 25 municípios da RMBH, a
divulgação em jornal local ou regional foi a mídia mais utilizada (18 municípios), seguida das
rádios (12 municípios). Apenas os municípios de
Betim e Mário Campos não realizaram nenhum
processo de divulgação. O Quadro 2 apresenta
as formas de divulgação mais utilizadas.
Dos formatos de mídia elencados, no
quadro acima, pela pesquisa CONFEA (2007),
o “jornal local/regional” (18 municípios) foi o
mais usado na divulgação pública das atividades
relacionadas à elaboração do Plano Diretor, seguidos da “rádio local” (13 municípios) e “panfletagem” (11 municípios). Alguns municípios
como Contagem, Pedro Leopoldo e Vespasiano,
utilizaram diversos instrumentos de divulgação.
Além do aspecto quantitativo, da construção de espaços de debate na elaboração dos
PDs e de divulgação pública destas atividades,
não se deve desconsiderar a linguagem utilizada, especialmente quando se trata de um projeto de participação popular. Supõe-se que nas
instâncias de participação popular, a linguagem
deve ser condizente com sua função. Assim como o Legislativo e o Judiciário possuem linguagens condizentes com suas funções técnicas e
políticas, isso também deve ocorrer na esfera da
participação popular. Para tanto, seria necessário o investimento em capacitação, realização
de seminários, divulgação de material informativo, mobilização e convocação periódica da população. Contudo, o aspecto comunicativo, embora considerado, não é o objetivo deste artigo.
421
Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
Quadro 2 – Divulgação pública de atividades
para discussão da elaboração do PD
Municípios
Jornal local/
regional
Outdoor
Panfletagem
Publicação
no DOM
Rádio local
Site da
Prefeitura
Betim
Brumadinho
X
X
Caeté
X
X
Capim Branco
X
X
Confins
Contagem
X
Esmeraldas
X
Itaguara
X
X
X
X
X
X
X
X
Itatiaiuçu
X
Jaboticatubas
X
X
Juatuba
X
X
Lagoa Santa
X
X
Mário Campos
X
X
X
X
X
X
Nova Lima
X
X
Nova União
X
Pedro Leopoldo
X
Ribeirão das Neves
X
X
X
Rio Acima
Sabará
X
Santa Luzia
X
São Joaquim de Bicas
X
X
X
Mateus Leme
X
X
X
X
X
X
São José da Lapa
X
X
X
X
X
X
X
Sarzedo
Vespasiano
X
X
X
X
X
X
X
X
Fonte: Pesquisa Confea (2007). Reelaboração dos autores.
422
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Planos diretores e canais democráticos de participação popular
Os instrumentos de participação
popular prescritos nos Planos Diretores
municípios (80%). Interessante destacar que
os cinco municípios que não prescrevem esse
instrumento têm população abaixo de 20.000
Os artigos do Estatuto da Cidade trazem,
habitantes. As audiências públicas aparecem
dentre outras diretrizes, dois elementos que
em 17 Planos dos 25 (68%), seguidos, de me-
buscam reverter o processo histórico de
nos da metade da amostra, das conferências
desenvolvimento desigual das cidades: a
em 12 municípios (48%).
função social da propriedade e a participação
Apenas dois municípios não citaram ne-
popular no planejamento e na gestão das ci-
nhum desses instrumentos (ou qualquer outro
dades. Esses dois elementos devem constar
similar): São Joaquim de Bicas e Mário Cam-
no PD de cada município, considerando as de-
pos. O município de Mário Campos, como po-
mandas e necessidades locais. Tornar viável e
de ser visualizado no Quadro 1, é um dos dois
efetivar esses elementos no planejamento são
municípios, ao lado de Betim, que não realizou
os primeiros grandes desafios para construir
nenhum processo de debate que envolvesse a
o processo de gestão democrática. Neste ítem
sociedade civil no processo de elaboração. To-
serão tratados, especificamente, os arranjos de
davia, o município de São Joaquim de Bicas,
participação popular presente nos Planos dos
apesar de realizar conferência, debates públi-
25 municípios estudados.
cos e uma audiência pública na Câmara no pro-
Os instrumentos de participação popular
cesso de elaboração do seu planejamento, não
contidos no Estatuto da Cidade, art. 42, inciso
prescreveu nenhum instrumento de controle
III, no capítulo IV, “sistema de acompanhamen-
social em seu Plano.
to e controle” são: i) os conselhos de política
Cabe ressaltar que outros instrumentos,
urbana; ii) os debates, audiências e consultas
diferentes dos prescritos no Estatuto da Cidade,
públicas; iii) conferências de política urbana; e
apareceram em algumas leis, apontando para
iv) projetos de iniciativa popular de leis, proje-
inovações ou adaptações dos instrumentos ao
tos e programas. Cabe avaliar, neste momento,
contexto local. Esse é o caso de Santa Luzia
como esses instrumentos foram traduzidos do
que criou o Fórum da Cidade, uma espécie de
processo de elaboração para os Planos, como
conferência, ou mesmo uma grande audiência
aparecem assim como seus limites e potenciais.
pública, que reúne diversos seguimentos da
O Quadro 1 demonstra que, den-
sociedade civil e do poder público, anualmente,
tre esses instrumentos, o Conselho é o que
para discutir diretrizes e encaminhamentos da
está mais presente nas leis avaliadas, em 20
política urbana.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
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Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
Quadro 3 – Instrumentos e mecanismos de controle social
prescritos no Plano Diretor
Conselho
Audiências
Conferências
Betim
Municípios
X
X
X
Brumadinho
X
X
X
Caeté
X
X
Capim Branco
X
X
Confins
X
Contagem
X
Esmeraldas
X
Itaguara
X
Itatiaiuçu
Jaboticatubas
X
X
Juatuba
Lagoa Santa
X
X
X
X
X
Mário Campos
Mateus Leme
X
X
X
Nova Lima
X
Nova União
X
Pedro Leopoldo
X
X
X
Ribeirão das Neves
X
X
X
Rio Acima
X
X
X
Sabará
X
X
X
Santa Luzia
X
São Joaquim de Bicas
São José da Lapa
X
X
X
Sarzedo
X
X
X
Vespasiano
X
X
X
Fontes: Leis de Planos Diretores dos Municípios da RMBH (levantamento feito entre fevereiro de 2009 a novembro de 2009).
Elaboração pelos próprios autores.
424
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Planos diretores e canais democráticos de participação popular
Os Conselhos de Política Urbana têm se
criar mais uma coluna, no Quadro 4, para dar
tornado espaços estratégicos de decisões dian-
conta do universo de conselhos de outras po-
te das atribuições que têm recebido, tais como:
líticas que foram previstas nos PDs. Esse é o
estabelecer normas e prioridades para a Políti-
caso do município de Itaguara, de pouco mais
ca Nacional de Desenvolvimento Urbano; emi-
de 12.000 habitantes que prevê, além da cria-
tir recomendações sobre a aplicação do Estatu-
ção do Conselho da Cidade, a criação de ou-
to da Cidade; propor diretrizes e critérios para a
tros seis conselhos dos mais variados temas:
distribuição local e setorial do orçamento anual
Desenvolvimento Municipal, Conservação do
e do Plano Plurianual; e outras (Brasil, 2006).
Patrimônio Histórico, Turismo, etc. Já Pedro
No Quadro 4, é possível observar a cria-
Leo poldo prevê a criação de sete conselhos,
ção dos Conselhos setoriais de política urbana,
além dos Conselhos da Cidade e Habitação,
tais como: Conselho das Cidades, Habitação,
tais como Anti-Drogas, Idoso e Cultura, entre
Saneamento, Meio Ambiente, Transporte e Ges-
outros. Interessante destacar, também, a pre-
tor do Fundo de Habitação de Interesse Social.
sença do Conselho Gestor do Fundo Municipal
Foi possível identificar uma presença grande
de Interesse Social. Ainda que a criação do
de Conselhos da Cidade, em 17 municípios, um
Conselho Gestor do Fundo seja condição para
número relativamente alto, se for considerado
o recebimento de recurso do governo federal,
que este é um modelo recente de conselho, ori-
apenas três municípios – Lagoa Santa, Pedro
ginado no final de 2003, na I Conferência Na-
Leopoldo e Sarzedo – previram sua criação, e
cional das Cidades e ainda pouco disseminado,
nenhum desses receberam recursos do Fundo
especialmente, nas esferas estadual e munici-
Nacional de Habitação de Interesse Social, FH-
pal. No aspecto do Conselho das Cidades ainda
NIS, no ano de 2008 (Quadro 4). Já o PD no
é importante afirmar que esse aparece com ou-
caso de Vespasiano é bem genérico e sintético
tros nomes e formatos,5 ainda que com atribui-
ao tratar no seu capítulo “Da Gestão Partici-
ções ligadas à política urbana.
pativa”, art. 150: “deverão ser implementados
Os Planos apresentaram também, nos
Conselhos Temáticos de Caráter Deliberativo”.
seus conteúdos, a criação de outros conselhos
Mas não define quais conselhos, funcionamen-
não só ligados à política urbana. Foi necessário
to e outras definições.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
425
426
X
X
Capim Branco
X
Sabará
Santa Luzia
X
X
X
X
Saneamento
X
X
X
X
X
Meio
Ambiente
X
X
Transporte
X
X
X
Gestor do fundo
de habitação
Segurança Alimentar, Patrimônio e Desenvolvimento Rural Sustentável
Outros
Conselhos Temáticos
Planejamento e Desenvolvimento Sustentável
Esportes, Tutelar, Entorpecentes, Defesa do Consumidor
Desenvolvimento Econômico, Desenvolvimento Rural Sustentável, Turismo,
Cultura, Anti-drogas, Idoso
Desenvolvimento Econômico e Social
Desenvolvimento Municipal; Conservação do patrimônio histórico, Turismo e
Defesa do Meio Ambiente
Desenvolvimento, Turismo e Segurança Pública
Fontes: Leis de Planos Diretores dos Municípios da RMBH (levantamento: fevereiro a novembro de 2009). Elaboração pelos próprios autores.
Vespasiano
Sarzedo
São José da Lapa
X
X
Rio Acima
São Joaquim de Bicas
X
X
Ribeirão das Neves
X
X
Pedro Leopoldo
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
X
Habitação
Nova União
Nova Lima
Mateus Leme
Mário Campos
Lagoa Santa
Juatuba
Jaboticatubas
Itatiaiuçu
Itaguara
Esmeraldas
Contagem
X
X
Caeté
Confins
X
Brumadinho
Cidades
Betim
Municípios
Quadro 4 – Criação de conselhos setoriais nos Planos Diretores
Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Planos diretores e canais democráticos de participação popular
O fato de os conselhos serem previstos
nos PDs não significa, necessariamente, a par-
possível, com precisão, inferir o que se encaixa nessas categorias.
ticipação ou representação da sociedade civil.
Os conselhos de São José da Lapa e Sar-
A representação garantida de alguns segmen-
zedo apresentam a peculiaridade de terem as-
tos, o porcentual maior ou menor de represen-
sentos permanentes para membros de outros
tantes da sociedade civil ou do governo pode
conselhos. Desta forma, o peso entre repre-
interferir no peso das decisões, especialmente
sentantes do poder público e sociedade civil,
naquelas mais polêmicas que influenciam o
pode ser alterado ou reinterpretado, depen-
mercado imobiliário, a regulação fundiária e
dendo de que setores eles representam nos
os zoneamentos.
respectivos conselhos.
A composição dos conselhos e a repre-
Dahl (1993) entende a democracia mo-
sentatividade dos segmentos do poder público
derna como uma poliarquia, combinações
e da sociedade civil são importantes na medi-
variadas de formas de autoridade cujo movi-
da em que revelam um aspecto do envolvimen-
mento varia em duas direções, uma no sentido
to da sociedade na formulação dos interesses
de cada vez incluir mais pessoas e grupos no
do município. A Tabela 2 apresenta a compo-
processo democrático e outra no sentido de
sição dos seguimentos do poder público e da
aperfeiçoar as instituições. Portanto condições
sociedade civil, tomando como base de análise
institucionais necessárias para garantia da par-
o Conselho das Cidades ou Desenvolvimento
ticipação e da organização da sociedade civil
Urbano ou outro em que a lei do município
podem diferenciar-se e aprimorar-se a partir do
considera responsável pelo acompanhamento
tipo de governo e da maneira como esses utili-
da política urbana.
zam as novas condições institucionais. Da mes-
Dos 20 municípios que propõem a cria-
ma forma as condições de governar também
ção de conselhos nos seus planos, apenas 13
variam na proporção da população habilitada
descrevem a composição, sendo que seis PDs
a participar no controle e na oposição às ações
descrevem a composição do seu respectivo
do governo.
conselho como paritário, outros sete têm repre-
No caso das legislações analisadas, os
sentação do poder público maior do que a so-
“graus de participação” se diferenciam de
ciedade civil. Destaca-se o município de Betim,
modo complexo, não apenas na correlação de
em que a diferença de representação chega a
forças da representação da sociedade civil e
37% sociedade civil e 63% governo municipal.
Estado (Tabela 2), mas também na capacida-
Daqueles que detalham a composição,
de institucional dos conselhos. Alguns destes
pode-se observar uma presença significati-
se restringem à formulação de sugestões ou
va, na sociedade civil, do setor empresarial.
ao encaminhamento de demandas (atribuição
Também aparecem nos planos termos que
“consultiva”); já outros, abrangem a delibera-
sugerem ambiguidades, especificamente em
ção sobre as diretrizes das políticas temáticas,
relação a quem ocupará a cadeira no conse-
a aprovação da normatização e da regulação
lho, por exemplo, “Associações comunitá-
das ações do governo, e a aprovação da pro-
rias”, “Setor Popular” e “Comunidade”. Não é
posta orçamentária (atribuição deliberativa).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
427
Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
Tabela 2 – Composição dos Conselhos prescrita no Plano Diretor
Sociedade
Civil
Poder
Público
37% (6)6
63% (11)
Brumadinho
50%
50%
Não trata
Caeté
50%
50%
Não trata
Municípios
Betim
Capim Branco
Trabalhadores(1); Empresarial(3); Comunidade(2)
Não trata
Confins
Contagem
Segmentos da S.C. representados
Não trata
50%
50%
Não trata
Esmeraldas
Não trata
Itaguara
Não trata
Itatiaiuçu
Não trata
Jaboticatubas
Não trata
Juatuba
Não trata
Lagoa Santa
50% (6)
50% (6)
Mário Campos
Mateus Leme
Não trata
40% (9)
60% (14)
Nova Lima
Não trata
50% (8)
50% (8)
Ribeirão das Neves
Rio Acima
Setor Popular(4); Empresarial(3); Trabalhadores(2)
Não trata
Nova União
Pedro Leopoldo
Empresarial(2); Trabalhadores(1); Setor Popular(3)
Empresarial(2); Associações Comunitárias(2);
Trabalhadores(2); ONGs(2)
Não trata
50%
50%
Sabará
43% (6)
57% (7)
Setor Técnico(2); Empresarial(2); Setor Popular(2)
Santa Luzia
35% (4)
65% (7)
Setor Técnico(1); Empresarial(1); ONGs(1);
Trabalhadores(1)
São Joaquim de Bicas
Não trata
Não trata
São José da Lapa
30% (3)
70% (7)
Empresarial(1); Associações(1); Codema(1)
Sarzedo
43% (6)
57% (7)
Produtores Rurais(1); Associação dos Comerciários(1);
Comunitária(12); Conselhos da Assistência Social(1);
Saúde(1); Codema(1)
50%
50%
Não trata
Vespasiano
Fontes: Leis de Planos Diretores dos Municípios da RMBH (levantamento: fevereiro a novembro de 2009). Elaboração pelos
próprios autores.
428
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Planos diretores e canais democráticos de participação popular
Ainda que os Conselhos de Política Ur-
Os debates, consultas e audiências pú-
bana tenham se inserido, em parte, na agenda
blicas são, na maioria das vezes, apresenta-
das políticas públicas dos municípios, ape-
ções e discussões, nas quais são expostos e
nas cinco PDs preveem seus conselhos como
debatidos análises e projetos de interesse pú-
deliberativos, outros três PDs definem seus
blico, para sua crítica ou avaliação pelos diver-
conselhos como consultivos e dois PDs carac-
sos setores da sociedade. O art. 20 do Estatuto
terizaram-se como consultivo e deliberativos
da Cidade pontua:
(ambos). A maioria das legislações analisadas,
dois maiores municípios da amostra, Conta-
a política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade
urbana, mediante as seguintes diretrizes
gerais:
gem (608.650 habitantes) e Betim (415.098
(...)
habitantes), descreveram seus Conselhos co-
XIII – audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente
natural ou construído, o conforto ou a
segurança da população. (Brasil, 2001)
15, não atribuiu aos seus conselhos o “poder
de decisão”.
Pertinente destacar, também, que os
mo consultivos. O PD de Lagoa Santa, segundo seu Art. 94, “terá função deliberativa”, mas
no Art. 93 que trata das atribuições, é passível
de gerar ambiguidades, já que a maioria das
atribuições inicia-se com o verbo opinar.7
Deve-se tomar cuidado para não cair na
armadilha do formalismo, buscando fronteiras
E complementa a resolução nº 15 do
muito claras onde elas nem sempre existem,
Conselho Nacional das Cidades: “a audiência
ignorando-se que, em um mesmo município,
pública poderá ser convocada pela própria so-
em uma mesma administração e até no inte-
ciedade civil quando solicitada por no mínimo
rior de uma mesma institucionalidade, níveis
1% (um por cento) dos eleitores do município”
distintos de participação possam coexistir, de
(Brasil, 2005).
modo às vezes, bem contraditório.
Já o Art. 40 vem garantir a “promo-
Quanto à forma de definição da eleição
ção de audiências públicas e debates com a
dos Conselheiros, apenas o município de Con-
participação da população e de associações
tagem estabeleceu a eleição através da Confe-
representativas dos vários segmentos da co-
rência, conforme orienta a Resolução nº15 do
munidade” (Brasil, 2001) no processo de ela-
Conselho Nacional das Cidades, e a maioria
boração do plano diretor e na fiscalização de
dos PDs, 11, não menciona a forma de eleição
sua implementação, os Poderes Legislativo e
praticada nos Conselhos. Chama atenção tam-
Executivo municipais.
bém nesse levantamento os PDs que definem a
No caso em estudo, as audiências es-
forma utilizada para eleição por indicação do
tão presentes em 15 PDs, dos 25 avaliados.
Poder Executivo (e não por eleição em algum
No entanto, poucos municípios descrevem a
processo democrático): Betim, Mateus Leme e
utilização desses instrumentos; geralmente
São José da Lapa.
quando aparecem, têm a finalidade de debater
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
429
Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
a implementação de empreendimentos de im-
apontam a periodicidade em que devem ocor-
pacto urbanístico e do plano plurianual.
rer as conferências. Nenhum PD cita quais os
As Conferências das Cidades (ou de de-
seguimentos participam das Conferências.
senvolvimento urbano ou de política urbana)
De fato, os dados aqui avaliados demons-
são encontros, repetidos periodicamente, que
tram uma riqueza de processos diversos e com-
podem alcançar um grande número de partici-
plexos. Numa avaliação geral, é possível inferir
pantes, podendo ocorrer nos três níveis da fe-
que na maioria dos municípios estudados os
deração. As conferências têm por finalidade de-
artigos do Estatuto da Cidade, especialmente,
finir diretrizes e prioridades para o Plano Dire-
o Cap. IV “Sistema de Gestão Democrática”8
tor ou para a política urbana de forma geral, e
estão presentes nos PDs, porém com diferen-
escolher os membros do conselho das cidades.
tes interpretações. Esses distintos formatos
No caso de haver Conselho, ele tem a prerroga-
configuram-se como maior ou menor detalha-
tiva de coordenar todo o processo de elabora-
mento dos arranjos, maior ou menor oferta de
ção do Plano Diretor e cabe-lhe encaminhar a
esferas e espaços para a participação, maior ou
implementação de instrumentos participativos,
menor publicidade desses espaços, reprodução
além de acompanhar a execução. Se ainda não
parcial ou total dos artigos do Estatuto, inova-
houver conselho, o processo pode ser iniciado
ções e adaptações aos contextos locais. Caberá
com uma audiência pública, na qual será pla-
então, refletir e problematizar a que se deve o
nejado o encaminhamento dos instrumentos,
surgimento de alguns instrumentos, bem como
além de serem definidas as etapas do plano
a ausência de outros.
diretor. A resolução nº 13 do Conselho Nacional
Trata-se de analisar as possibilidades da
das Cidades afirma: “a realização de conferên-
construção de canais e mecanismos de partici-
cias municipais será um referencial importante
pação popular nas políticas prescritas nos Pla-
para a discussão da política urbana a nível lo-
nos, tendo como pano de fundo as seguintes
cal e eleger os membros do novo Conselho de
indagações: existem nos PDs instrumentos de
forma democrática” (Brasil, 2004).
participação popular adequados para o desen-
As conferências permitem, a princípio, a
volvimento da participação popular no plano
participação de um número maior de delega-
local? Existem nos PDs condições políticas ins-
dos do poder público e da sociedade civil. Ge-
titucionais, que favorecem o desenvolvimento
ralmente, elegem os conselhos locais e encami-
da participação popular no plano local? Isto é,
nham diretrizes para serem discutidas no con-
a intensidade e o “peso” das diferentes forças
selho local de políticas urbanas. Outra caracte-
políticas e econômicas (equipe técnica, executi-
rística é a eleição de delegados na esfera local
vo e sociedade civil organizada) que interferem
para representar os municípios nas discussões
no plano podem garantir sua implementação
em escala estadual e nacional.
ou condená-lo à ineficácia?
Apenas seis PDs citam as Conferências
Ainda que os instrumentos de participa-
em suas leis como instrumento de participação,
ção apresentem-se, por vezes, com uma es-
outros dez PDs não as mencionam. Apenas os
tratégia desarticulada de especificações que
municípios Mateus Leme, Sarzedo e Vespasiano
auxiliam sua operacionalização – tais como
430
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Planos diretores e canais democráticos de participação popular
o prazo para implementação dos conselhos,
para torná-los visíveis e adotar normas e
a forma de eleição dos conselheiros, a repre-
padrões para sua administração, fundados em
sentação dos seguimentos e da performance
regras de regulação e objetivos gerais a serem
dos conselheiros.
preservados. Porém, não é sempre que a complexidade das relações societárias e as contradições e os conflitos em torno da apropriação
Considerações finais:
possibilidades e limites
dos arranjos de participação
popular dos Planos Diretores
da RMBH
e gestão do espaço urbano conseguem ser
sintetizados e ter o devido tratamento em um
documento/lei como o Plano Diretor.
De fato, os limites observados nas Leis
de Planos Diretores são complexos. Podem-se
identificar fronteiras decorrentes da ausência
de instrumentos de gestão democrática ou,
Quando o Estatuto das Cidades foi promulga-
mesmo quando presentes, limitações no que
do, criaram-se instrumentos e arranjos institu-
diz respeito à composição, eleição, atribuição,
cionais na direção da democratização do aces-
entre outros aspectos vitais para o funciona-
so à terra urbana e da gestão das cidades. A
mento desses espaços. Ainda que os debates
partir do que foi discutido no presente artigo,
sobre o Estatuto e o Plano Diretor expressem
é possível refletir sobre a dimensão da ruptura
um avanço em termos da experiência do pla-
com o modelo anterior e o surgimento de um
nejamento urbano e da abertura para um de-
novo, no que diz respeito ao tratamento legal
bate democrático, é importante ponderar que
dispensado ao cumprimento da função social
parte desses avanços pode não se concretizar
da propriedade e à gestão das cidades.
em razão das fortes heranças tecnocráticas
Parte dessa ruptura, para autores como
ou de tipo populista. Apesar de todos os ins-
Rolnik (2001), Ribeiro (2004, 2005, 2007),
trumentos que vêm agregar um novo valor ao
Santos Junior (2008) e Souza (2008), tem em
planejamento urbano, é importante ter clareza
seu cerne a concepção de que o Plano Diretor
que a incorporação desses elementos, ainda
constitua-se em um mapeamento dos interes-
que discutidos com ampla participação, não
ses dos diversos agentes locais, a partir de
garante que esses planos sejam posteriormen-
um acordo socioterritorial que servirá de base
te implementados.
para construção de uma gestão democrática
da cidade.
Nestas considerações, procuraremos
identificar em que medida esse processo tem
Para uma tarefa tão complexa, segun-
gerado oportunidades e condições para a
do estes autores, é necessário que o plane-
criação de novos canais e mecanismos que
jamento evoque a cidade “ideal”, de formas
propiciem maior participação dos cidadãos e
“adequadas” de apropriação do território e da
aumentem a transparência e a responsabili-
produção democrática do espaço. Nesse sen-
dade dos governos locais, significando aqui a
tido, os conflitos e disputas de interesses são
ampliação da participação direta da sociedade
inevitáveis. Os arranjos de gestão são espaços
nos processos de gestão.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
431
Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
Acredita-se que o estudo desses cenários
política urbana; segundo Santos Junior (2001),
permite contribuir para a discussão das condi-
a abertura de canais para a participação da so-
ções de constituição de arranjos institucionais
ciedade não aparece apenas como resultado de
de participação popular no planejamento e na
um projeto local, mas se mostra fortemente im-
gestão urbana destas cidades.
pulsionada pela legislação federal, como con-
Diante dos levantamentos feitos e das
dição para repasse de recursos, vinculada a um
informações coletadas, destacam-se algumas
amplo espectro de políticas públicas descentra-
considerações:
lizadas. Torna-se necessária uma reflexão sobre
a) embora a concepção do Conselho das Ci-
possíveis “efeitos colaterais” embutidos na
dades seja algo relativamente recente (a par-
agenda de discussão e nos instrumentos que
tir da criação do Ministério das Cidades e do
têm sido propostos na elaboração dos PDs. Os
Conselho Nacional das Cidades, em 2003), sua
mesmos instrumentos de participação podem
presença, na amostra dos 25 municípios, se deu
ter sido criados como instrumento de legitima-
em 80% dos municípios avaliados, o que refle-
ção que possibilita o controle do Estado dian-
te a expressiva absorção desse tipo de Conse-
te de tensões decorrentes de conflitos sociais.
lho no processo de elaboração dos PDs, ainda
Neste contexto, através da participação indu-
que em diferentes formatos. O grande número
zida, visar-se-ia eventualmente a neutralização
de Conselhos, prescritos no Plano, pode ser
dos conflitos, ou seja, a sociedade é estimulada
resultado, em parte, da mobilização feita pela
a cooperar a fim de “integrar-se” socialmente
campanha “Plano Diretor Participativo: Cida-
para mascarar o caráter excludente das políti-
de de Todos”.9 Ao final do projeto, em Minas
cas públicas.
Gerais, aconteceram 46 cursos fornecidos para
c) o PD é descrito pelo Estatuto como “ins-
técnicos do poder público legislativo e executi-
trumento básico da política de desenvolvimen-
vo, sociedade civil e movimento popular; 225
to e expansão urbana” (Brasil, 2001), porém
municípios atendidos e, no total, 3.821 pessoas
os documentos analisados revelaram mais um
capacitadas. Especificamente na RMBH, acon-
espaço de oportunidades para encaminha-
teceram 13 cursos fornecidos; 29 municípios
mento e regulação de outras políticas/deman-
atendidos e 973 pessoas capacitadas;
das reprimidas. Como pode ser visualizado no
b) o fato de a elaboração dos PDs ser legal-
Quadro 4, a maioria dos PDs apresentou-se
mente obrigatória, sob pena de o Prefeito in-
como um grande “guarda-chuva” de políticas
correr em improbidade administrativa – e, caso
sociais, educacionais, de saúde, entre outras,
não promova “audiências públicas e debates
extrapolando a questão urbana, de diversas
com a participação da população e de associa-
políticas para um planejamento municipal.
ções representativas dos vários segmentos da
Neste contexto foi proposta a criação dos mais
10
comunidade” (Brasil, 2001) – pode ter sido
diversos Conselhos (Segurança Alimentar, De-
um fator que tenha impulsionado a presença
senvolvimento Rural, Esportes, Cultura, Anti-
desses órgãos colegiados nos PDs. De certa
-Drogas, Esportes, Assistência Social, Conselho
forma, essa seria uma característica não só da
Tutelar, entre outros). Outra hipótese é que
432
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
Planos diretores e canais democráticos de participação popular
parte significativa dos segmentos sociais, prin-
relação a esses pontos, chama atenção o fato
cipalmente os mais vulneráveis com demandas
de que: apenas o município de Lagoa Santa
materiais urgentes como moradia, terra, sanea-
condiciona a eleição dos Conselheiros em Con-
mento, entre outras, não têm sua agenda de
ferência à temática urbana, como recomenda
demandas representada nessas arenas públicas
a resolução do Conselho Nacional das Cidades
de planejamento, uma vez que não possuem
nº 13 de 2004; nos municípios de Betim, Ma-
vínculos associativos com organizações sociais
teus Leme e São José da Lapa não há nenhum
que a representem.
tipo de eleição, sendo todos conselheiros indi-
d) chama atenção o excesso de Conselhos
cados pelo Poder Executivo; esses três muni-
criados nos mesmos municípios, especialmen-
cípios, somados aos municípios Sabará, Santa
te nos de médio e pequeno porte na RMBH.
Luzia e Sarzedo têm seus conselhos com maior
Alguns PDs, como é o caso de Caeté, Lagoa
representatividade do Poder Público (chegan-
Santa, Nova Lima, Pedro Leopoldo, Rio Acima
do a 70%), sendo todos estes citados, com
e Sabará, prescrevem a criação de Conselhos
exceção de Lagoa Santa, caracterizados como
da Cidade e Habitação. Se, de um lado, pode
consultivos. É necessário considerar que as
configurar-se como prioridade no planejamen-
desigualdades de poder podem intervir sobre
to da gestão local, de outro pode pulverizar o
a manutenção e a reprodução dos processos
debate e criar duas esferas, duas agendas e
de hierarquização e segregação das cidades, o
diferentes encaminhamentos sobre o mesmo
que torna a implementação da concepção de
tema. Soma-se a isso a possibilidade de repro-
reforma urbana um desafio maior;
duzir a histórica fragmentação das políticas
f) o PD do município de Betim apresentou-se
públicas e a ausência de diálogo entre elas. O
como um caso instigante. Possui uma popula-
formato adotado pelo Conselho Nacional das
ção de 415.098 (IBGE, 2007), possui a maior
Cidades parece buscar ultrapassar esse debate
taxa de crescimento populacional, é 16º PIB
setorializado da política urbana, reunindo em
do Brasil e o 2º PIB de Minas Gerais (2007),11
único conselho, quatro câmaras técnicas re-
recebeu um aporte de R$230 milhões de reais
presentando as políticas setoriais urbanas: ha-
em recursos do PAC e de FHNIS (2008). No en-
bitação, saneamento, transporte e programas
tanto, foi o PD que mais se destoou dos demais
urbanos. Nenhum dos Conselhos prescritos
no que se refere aos processos de divulgação
nos PDs apresentaram-se nesse formato, arti-
e debate na elaboração dos Planos Diretores,
culando as políticas setoriais urbanas.
no peso entre as representações dos órgãos
e) em termos do funcionamento dos Conse-
colegiados e na forma de eleição de conselhei-
lhos, os limites mais significativos parecem si-
ros. Segundo os dados levantados, não pro-
tuar-se exatamente em três aspectos: primeiro
moveu debates nos processos de elaboração
na forma de eleição dos conselheiros, segun-
do PD; criou o Conselho de Política Urbana,
do na representação dos seguimentos e, ter-
mas com representatividade de 37% socieda-
ceiro, na capacidade decisória dos Conselhos
de civil e 63% poder público; não há eleição
Municipais. Ainda que haja pouca precisão em
para os conselheiros, todos são indicados pelo
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
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Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
executivo; o conselho possui atribuição con-
Tal identificação encontra diversos obs-
sultiva e não possui nenhuma definição sobre
táculos influenciados pelas concepções tradi-
a Conferência. Tais dados demonstram que o
cionais de planejamento urbano, que até onde
município de Betim parece não acompanhar
se pode ver, ainda não foram superadas por
a reconfiguração dos mecanismos e dos pro-
completo. Essas podem obstaculizar a afirma-
cessos de tomada de decisão pós-Constituinte
ção dos novos padrões democráticos prova-
e Estatuto das Cidades. Tampouco parece ter
velmente por manter a separação total entre
sido afetado pelas resoluções do Conselho Na-
planejamento e gestão, operando o planeja-
cional das Cidades, que buscam fazer emergir
mento apenas na esfera técnica e a gestão na
novas formas de participação entre governo
dimensão política (Souza, 2008). Também po-
local e sociedade na discussão das políticas
dem ser inviabilizadas pelo desconhecimento
urbanas, por meio de canais e mecanismos de
de normas e leis municipais, estaduais e nacio-
participação popular.
nais por parte do executivo, técnicos, formado-
Os Planos avaliados apresentam, de for-
res de opinião e população. Outro fator a ser
ma geral, instrumentos de participação popular
considerado diz respeito às exposições hermé-
na gestão das políticas urbanas o que, a princí-
ticas e tecnicistas das equipes de planejadores,
pio, fortalece a cidadania e integra o planeja-
o que resulta em incomunicabilidade e distan-
mento, a elaboração e a execução das políticas
ciamento entre interlocutores. Por fim, um fator
desenvolvidas no município com a gestão urba-
recorrente é o desinteresse de grande parte da
na visando democratizar o processo de tomada
população para com os temas a serem discuti-
de decisões. No entanto, os pontos discutidos
dos, provavelmente por seu apelo coletivista,
acima são exemplos da fragilidade da imple-
mesmo com toda publicidade dada ao evento
mentação destes processos.
(Matos, 2008).
Parte dessa fragilidade se deve ao PD es-
Estas barreiras parecem ter suas raízes
tar submetido a forças (equipe técnica, executi-
plantadas nas práticas históricas de corrupção,
vo e sociedade civil organizada) que podem
clientelismo, disputa de interesses particulares,
ou não sustentar a inserção dos instrumentos
fragmentação das políticas, na excessiva tecno-
de participação e suas respectivas regulações
cracia, na máquina pública despreparada para
quanto à aplicabilidade, como por exemplo:
servir a população.
prazo para implementação, eleição dos conse-
Nesse sentido, é importante recorrer à
lheiros, representação de seguimentos, poder
Putnam para uma reflexão sobre os desempe-
de decisão dos órgãos.
nhos das instituições políticas. Trata-se do que
A construção dos Planos Diretores, por
o autor e a tradição do “neo-institucionalis-
meio de um contrato socioterritorial, tal como
mo” chamam de “subordinação à trajetória”.
formulado na concepção do Estatuto da Cida-
Até que ponto a cultura organizacional, os
de, implica identificar os processos sociais e
costumes e as relações societárias condicionam
econômicos de produção do espaço urbano e
as decisões políticas e podem obstacularizar as
os agentes coletivos e individuais que atuam
aspirações e projetos de mudança, afetando o
nesse processo (Santos Junior, 2008).
desempenho institucional?
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Planos diretores e canais democráticos de participação popular
A cooperação ou a omissão e a exploração tornam-se entranhadas. As regras informais e a cultura não só mudam mais
lentamente do que as regras formais,
como tendem a remodelá-la, de modo
que a imposição externa de um conjunto
comum de regras formais acarreta resultados amplamente divergentes. (Putnam,
2002, p. 188)
se trata de instituir regras de reciprocidade e
sistemas de participação cívica” (p. 193) e, sabiamente, fez o seguinte aconselhamento: os
que edificam novas instituições e os que as avaliam precisam ser pacientes (p. 193). O que, por
sua vez, exige das forças democráticas e democratizadoras, no caso os movimentos sociais urbanos, os conselhos de políticas urbanas, entre
outros agentes, a continuidade de uma atitude
Pode-se dizer, dessa forma, que a inser-
perseverante e uma ação mais sistemática e
ção dos arranjos de participação popular nos
permanente contra as crenças, valores, práticas,
PDs explicaria, em grande medida, a constru-
costumes e procedimentos da “velha” cultura
ção sociopolítica e cultural de uma “comunida-
política, por vezes predominante no Brasil. É
de cívica”, além de promover a acumulação de
preciso ponderar que a construção de políticas,
capital social. Condição que por sua vez é deci-
diretrizes e instrumentos de participação popu-
siva para o bom desempenho das instituições
lar, ainda que de forma limitada e setorial, não
de governo.
deva ser desprezada. No mesmo sentido, Santos
Putnam observa, com muita proprieda-
Júnior pondera sobre a importância da expe-
de, que “a mudança institucional refletiu-se
riência democrática cotidiana e a importância
(gradualmente) na mudança de identidades,
do processo de aprendizado político que essa
valores, poderes e estratégias” (p. 193). Nessa
prática acrescenta aos cidadãos participantes
linha de pensamento, permite-se alimentar um
dos debates públicos. Para ele só a prática pode
relativo otimismo quanto ao importante papel
efetivamente consolidar as novas experiências
que a democratização da gestão de governo,
de participação assim como resignificar as an-
especialmente nas políticas urbanas, em curso
tigas no novo espaço democrático (Santos Jú-
no Brasil, pode desempenhar na proliferação e
nior, 2010). O que significa, finalmente, que os
difusão das estratégias, valores e poderes
arranjos de participação contidos nos PDs, ao
democráticos e democratizadores. Entretanto,
lado e para além da ação no plano da política
pode-se apostar em sociedades civis vigorosas
e da mudança das instituições, devem ocorrer
no conjunto das cidades brasileiras?
também – e talvez com maior intensidade – no
Putnam alerta os pesquisadores que “a
história evolui ainda mais lentamente quando
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difícil e sedimentado terreno da cultura política
brasileira pré-existente.
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Renato Barbosa Fontes e Léa Guimarães Souki
Renato Barbosa Fontes
Assistente Social e mestre em Ciências Sociais. É professor dos cursos de Arquitetura & Urbanismo e
Serviço Social no Centro Universitário Metodista Izabela Hendrix. Belo Horizonte/MG, Brasil.
[email protected]
Léa Guimarães Souki
Socióloga e Doutora em Sociologia Política. Professora na Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais. Belo Horizonte/MG, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Os dados foram coletados no período de setembro de 2009 a fevereiro de 2010. Eles estão
originalmente citados na dissertação de mestrado de um dos autores, Renato Barbosa Fontes,
defendida no Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais da PUC Minas (2010).
(2) Os PDs disponibilizados pela SEDRU são os mesmos que estão disponíveis nos sites das Prefeituras.
(3) Pesquisa realizada em 2008/09 no Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC Minas,
financiada pela Fapemig e coordenada pelo Prof. Carlos Alberto Rocha.
(4) a) instituição do Conselho das Cidades (composição por segmento, caráter deliberativo ou
consul vo, definição da eleição dos conselheiros); b) ins tuição de outros conselhos ligados
à política urbana (conselho gestor do fundo de habitação de interesse social, de habitação,
saneamento, transporte, etc.); c) definições rela vas às Conferências das Cidades (periodicidade,
segmentos par cipantes); d) definições rela vas às consultas públicas (plebiscito, referendo
popular ou outros); e) previsão de audiências públicas obrigatórias (previsão da par cipação de
en dades representa vas dos vários segmentos da sociedade civil na formulação, execução e
acompanhamento dos planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano).
(5) Conselho de Desenvolvimento Urbano, Conselho de Gestão Urbana, Conselho de Política
Urbana, Conselho de Desenvolvimento Sustentável, Conselho do Plano Diretor e Conselho de
Desenvolvimento Municipal.
(6) Como a base numérica é baixa para o cálculo de porcentagem, acrescentou-se na tabela o número
absoluto.
(7) “(...) I – opinar sobre propostas encaminhadas deliberando, em nível de recursos, sobre processos
administra vos afetos ao Plano Diretor; II – coordenar, acompanhar e avaliar a implementação
do Plano Diretor, nos seus aspectos territorial, econômico e social, assim como coordenar o seu
processo de revisão; III – opinar sobre a instalação de empreendimentos de impacto; IV – opinar
sobre casos omissos nos disposi vos legais municipais; V – opinar sobre compa bilidade de
obras con das nos Planos Plurianuais e Orçamentos Anuais com as diretrizes do Plano Diretor”
(Lagoa Santa, 2006).
(8) O capítulo IV do Estatuto das Cidades (Brasil, 2001) é integralmente dedicado à sua garan a,
prevendo instrumentos como os conselhos de política urbana; os debates, audiências e
consultas públicas; as conferências de desenvolvimento urbano; a inicia va popular de projetos
de lei e planos.
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Planos diretores e canais democráticos de participação popular
(9) Campanha organizada pelo Conselho Nacional das Cidades/Ministério das Cidades por meio
da Resolução nº 15. Um dos eixos da campanha foi a “gestão democrá ca da cidade”, com a
ins tuição de canais e mecanismos para a “par cipação de quem vive e constrói a cidade nas
decisões e na implementação do Plano” (Brasil, 2006).
(10) Art. 52, Lei. 10.257 – Estatuto da Cidade.
(11) No final da década de 1960, cabe destacar o grande incen vo do governo mineiro para o setor
industrial. Como apontam Andrade e Mendonça (2009), a Lei Estadual nº 5261 concedeu
isenção de até 32% do ICMS para indústrias que se instalassem no Estado e para aquelas que
promovessem a expansão de sua produção em pelo menos 40%. O grande impulso econômico,
da região, aconteceu na década de 1960, com a instalação da Refinaria Gabriel Passos e da Fiat
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Texto recebido em 20/out/2011
Texto aprovado em 6/abr/2012
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 415-439, jul/dez 2012
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A expansão da RM de Belém:
reflexões sobre os desdobramentos
de investimentos oficiais em habitação
The expansion of the Metropolitan Region
of Belém: reflections on the developments
of official investments in housing
Ana Cláudia Duarte Cardoso
Marcília Regina Gama Negrão
Glaydson de Jesus Cordovil Pereira
Resumo
Este texto se inicia com paralelos entre a
urbanização da Amazônia Oriental e a produção
de seu espaço urbano, destacando aspectos da
articulação de escalas, para a compreensão da
distribuição de investimentos em áreas urbanas
na última década. Os investimentos se concentram
na Região Metropolitana de Belém, alinhados com
estratégias do capital, e longe do atendimento das
peculiaridades socioambientais locais. As áreas
de estudo foram selecionadas em função de sua
inserção na área metropolitana e adjacências,
verificando-se que investimentos recentes do PAC
e PMCMV reproduzem padrões de uso e ocupação
antigos, pautados prioritariamente pelo fator custo.
O artigo é finalizado com a sugestão de categorias
de análise qualitativa que devem ser observadas no
enquadramento de empreendimentos habitacionais
realizados na região.
Abstract
This paper begins with comparisons between the
Eastern Amazon urbanization and the production
of its urban space, highlighting aspects of the
articulation of scales for the understanding of
investments distribution in urban areas over the
last decade. The investments are concentrated
in the Metropolitan Area of Belém, aligned with
capitalist strategies, and far from meeting local
socio-environmental requirements. The investigated
areas were selected according to their insertion
in the metropolitan area or its adjacencies, and it
was found that recent investments of Programa
Minha Casa, Minha Vida (PMCMV – My House, My
Life Program) and of Programa de Aceleração do
Crescimento (PAC – Accelerated Growth Program)
reproduce old usage and occupation patterns,
defined mainly by costs. The paper is concluded
with the suggestion of categories of qualitative
analysis that should be observed in order to approve
investments in housing made in that region.
Palavras-chave: urbanização da Amazônia; Região Metropolitana de Belém; investimentos em
áreas urbanas; PAC; PMCMV.
Keywords: Amazon urbanization; Metropolitan
Region of Belém; investments in urban areas; PAC;
PMCMV.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.
O contexto
regras próprias até que ocorresse a integração
econômica da região ao país, época em que
o planejamento regional foi introduzido pelo
A transformação do espaço da cidade e a evo-
governo federal, sob influência das teorias per-
lução das concepções de desenvolvimento e
rouxianas,4 mas de forma desconectada da rea-
particularmente de desenvolvimento urbano,
lidade local. Ao invés de polos de irradiação de
no decorrer do século XX e início do século XXI,
desenvolvimento, foram criados enclaves, man-
constituem rico campo de investigação, que re-
tidos artificialmente pelas políticas de crédito, e
quer cada vez mais a incorporação de formu-
que resultaram na transferência de renda para
lações oriundas de diferentes disciplinas, para
centros de decisão localizados fora da região.
que se compreenda a relação entre investimen-
As mudanças realizadas expuseram a popula-
tos recentes, realizados pelos setores público e
ção nativa aos novos códigos do capitalismo
privado, e o debate sobre a cidade desejável,
concorrencial e a práticas de dominação que
em curso no âmbito da formulação de uma po-
associaram domínio da terra, poder econômico
lítica de desenvolvimento urbano no país.
e poder político.5
Na Amazônia, a associação histórica en-
As novas manifestações do capitalismo e
tre dinâmica econômica e processo de urbani-
as políticas públicas criadas para a mitigação
zação nos ajuda a compreender a origem de
de seus efeitos focaram o planejamento prin-
formações urbanas, por vezes assumidas como
cipalmente na escala regional. Isso viabilizou
tradicionais, por terem florescido à margem dos
mudanças no papel das aglomerações e cida-
grandes rios, sob dinâmicas fortemente orien-
des, que nunca se tornaram grandes centros
tadas para a atividade mercantilista; noutras
produtivos industriais, mas mantiveram sua
como cidades que se desenvolveram a partir da
condição de ponto de apoio à exploração de
instalação de novos modais, como o ferroviário
recursos naturais. Desde então, assumiram a
que, no início do século XX estruturou a área
condição de pontos de controle e difusão de
dedicada à produção rural e abastecimento de
novos padrões de consumo, de novas condi-
Belém1 e deu origem às cidades que hoje cons-
ções de troca e controle da força de trabalho.
tituem a Região Metropolitana de Belém,2 e o
Foram garantidas as condições de reprodução
rodoviário, que, a partir da segunda metade do
do capital, mas as soluções foram insuficien-
século XX, intensificou o processo de urbani-
tes e inadequadas para a reprodução da força
zação em toda a região, com criação de novas
de trabalho, importadas de outros contextos,
aglomerações e expansão das existentes.
e comprometidas, sobretudo, com interesses
Ainda que a urbanização seja, em regra
geral, articulada à industrialização, no caso de
imobiliários e o fortalecimento da indústria da
construção civil.6
Belém e sua área de influência, a urbanização
Nessa perspectiva, a condição de frontei-
foi fomentada por atividades extrativistas e
ra econômica destaca o uso das escalas como
pela exportação de produtos que à época de-
recorte para tomada de decisão, em relação à
tinham grande importância econômica, como a
tradicional aplicação na representação do ter-
3
borracha. Tudo se foi organizando a partir de
442
ritório.7 A tomada de decisão nas altas esferas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
A expansão da RM de Belém
dos setores público e privado, por ocasião da
importantes no processo de gestão nas escalas
implantação dos grandes projetos federais na
regional, municipal e urbana, que não evoluí-
região, iniciou um processo de invisibilidade de
ram da mesma forma na região Norte, que em
segmentos e atores sociais de base local, que
municípios de outras regiões do país, agravan-
apresenta fortes consequências no presente.
do a desatenção para os conflitos criados entre
O desconhecimento de gestores sobre
práticas tradicionais e os novos arranjos insti-
a realidade local refletiu-se na desarticula-
tucionais, comprometidos com interesses eco-
ção entre investimento e planejamento, e na
nômicos e políticos.10
deficiência crônica da gestão local. Os arranjos
As intervenções realizadas em Belém no
institucionais criados no início do processo, em
decorrer do período citado se alinharam aos
meados dos anos 1960 e 1970, para a formula-
códigos socioespaciais importados, intensifi-
ção de diagnósticos e propostas, formulação e
cando as obras de saneamento e macrodrena-
operação das políticas tiveram duração efême-
gens, fomentaram uma expansão urbana que
8
ra. Esses arranjos abrangeram diversas insti-
substituiu usos de glebas rurais por extensos
tuições envolvendo os responsáveis pelas polí-
conjuntos habitacionais, com interstícios que
ticas urbanas da época, tais como o Ministério
posteriormente deram lugar a invasões, nos
do Interior e o INCRA (Instituto Nacional de
anos 1980 e 1990, enquanto as glebas res-
Colonização e Reforma Agrária), os órgãos vol-
tantes bem localizadas foram ocupadas pelos
tados para a formulação de estratégias e pro-
novos condomínios fechados dos anos 2000
cessos de gestão, tais como o Serfhau (Serviço
em diante. Após o fenômeno da globalização,
Federal de Habitação e Urbanismo), o IBAM
intensificou-se a valorização cenográfica da
(Instituto Brasileiro de Administração Munici-
paisagem, buscada com abertura das “janelas
pal), as Secretarias Estaduais de Planejamento,
para o rio”, revitalização de áreas históricas,
a participação da academia através do projeto
e pela artificialização da natureza nos novíssi-
Rondon, e de equipes técnicas locais, além de
mos condomínios.11
órgãos de operação como o Banco Nacional
9
Antes que as mudanças ocorridas fos-
de Habitação. Atualmente os níveis interme-
sem devidamente interpretadas, no sentido
diários de implementação dessas políticas fo-
da substituição do espaço coletivo pelo espa-
ram eliminados, restringindo-se à atuação do
ço privado, foram estabelecidos processos de
Ministério das Cidades e de outras pastas es-
periferização e desarticulação entre padrões
tratégicas do governo federal, e à operação de
de uso e ocupação do solo e práticas socio-
recursos pela Caixa. Este formato causa forte
culturais, com desconexões entre os tempos e
dependência de recursos federais pelos Esta-
ciclos da natureza, das pessoas, e dos fluxos
dos e Municípios.
econômicos e de informação.12 A cidade, de
Após a introdução de novas ferramentas
origem ribeirinha e de economia fortemente
de planejamento pela Constituição de 1988,
pautada pelos produtos da floresta, assimilou
estados e municípios dedicaram-se à opera-
a manifestação de “ilhas” desarticuladas no
ção do Plano Plurianual, em substituição ao
seu interior, correspondentes a espaços dis-
planejamento do território, abrindo lacunas
tintos (manifestações formais ou informais),
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443
Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.
voltadas para perfis socioeconômicos diversos,
Essa atuação foi particularmente estru-
que recriam ou evocam a natureza para os ri-
turante no território de Belém e posteriormen-
cos e tornam invisíveis os pobres, tendendo a
te foi transferida para o município de Ananin-
negar a própria cidade.
deua, na segunda légua patrimonial de Belém,
sua atual área de expansão. As características
espaciais dessas intervenções eram típicas do
Da região para a metrópole:
investimentos versus perfil
de municípios
padrão BNH, com grandes áreas parceladas,
e ocupadas por lotes urbanizados com unidades habitacionais padronizadas, afastados das
áreas urbanas consolidadas e carentes de serviços e equipamentos de uso coletivo.13 Após
Os investimentos em habitação social finan-
30 anos, áreas destinadas a tais usos ainda
ciados pelo BNH e operados pela COHAB/
aguardam tratamento, as casas foram amplia-
PA no decorrer do período entre 1965 e 1988
das e as ruas e calçadas foram pavimentadas,
(Tabela 1) expressam a contribuição da ação
explicitando a regularidade que distingue tais
federal para a consolidação da Região Metro-
áreas das ocupações informais. A implantação
politana de Belém (Belém e Ananindeua) e de
dos condomínios fechados nas glebas lindei-
outras cidades relacionadas aos projetos fe-
ras aos grandes eixos urbanos (tais como as
derais de mineração (Marabá) e produção de
rodovias Augusto Montenegro e BR-316), no
energia (Tucuruí).
decorrer da última década, tem viabilizado
Tabela 1 – Produção de Habitação de 1965 a 1988 pela Cohab/PA
Municípios atendidos
Unidades habitacionais produzidas
Belém
6.635
Ananindeua
16.636
Castanhal
104
Soure
52
Santarém
288
Marabá
1.025
Tucuruí
1.418
São Geraldo do Araguaia
100
Vários municípios
2.130
Total
28.388
Fonte: Holanda (2011) a partir de dados do IDESP (1990).
444
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
A expansão da RM de Belém
uma diversidade de perfis socioeconômicos e
Se destacarmos dos totais apresentados,
a chegada de serviços e equipamentos dentro
como mostrado no Gráfico 2, o montante de
14
de uma concepção de subúrbio americano,
recursos destinados para habitação com provi-
em razão da forte dependência dos veículos e
são de infraestrutura e equipamentos urbanos,
da desarticulação espacial entre as malhas de
contratados no mesmo período, e, portanto já
ocupações e conjuntos habitacionais.
abrangendo a primeira geração do PAC, obser-
Ao analisarmos as classes de investimen-
vamos que a tendência histórica se mantém.
tos contratados entre os vinte municípios mais
Contudo o processo de consolidação decor-
populosos do Pará e a Caixa, no decorrer dos
rente desses investimentos tem sido cada vez
15
anos de 2003 a 2009 (ver Gráfico 1), oriundos
mais apropriado pelas estratégias do capital,
dos Ministérios das Cidades, Lazer e Turismo,
na medida em que permite que novas terras
observamos o destaque para a RMB e para os
sejam incorporadas ao mercado formal sem
municípios que desde os anos 1960 recebem
que haja uma ação programada para o enfren-
investimentos federais em habitação. Todas as
tamento dos déficits, seja no âmbito munici-
faixas de recursos tendem a se concentrar nes-
pal, seja no metropolitano.
tas cidades e mais ainda em Belém e Ananindeua, nos casos dos contratos de maior valor.
A perspectiva de favorecimento no acesso a recursos favorece demandas crescentes
Gráfico 1 – Total dos investimentos
dividido por tipologia de capital financeiro – 2003 a 2009
180
160
140
120
100
80
60
40
20
0
até R$100.000,00
de R$100.001,00 a R$500.000,00
de R$500.001,00 a R$1.000.000,00
de R$1.000.001,00 a R$5.000.000,00
de R$5.000.001,00 a R$10.000.000,00
de R$10.000.001,00 a R$20.000.000,00
mais de R$20.000.001,00
Fonte: Dados da planilha da Caixa Econômica Federal 2009, elaboração Souza (2011).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
445
Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.
Gráfico 2 – Total de investimentos para a construção de habitação,
equipamentos e serviços urbanos de 2004 a 2009
60
50
até R$100.000,00
40
de R$1.000.001,00 a R$5.000.000,00
30
20
10
de R$5.000.001,00 a R$10.000.000,00
de R$10.000.001,00 a R$20.000.000,00
0
mais de R$20.000.001,00
Fonte: Dados da planilha da Caixa Econômica Federal 2009, elaboração Sousa (2011).
de ampliação da RMB que, em 2010 agregou
Observa-se que, nos municípios de pequeno
o município de Santa Isabel, e conta com de-
porte ocorrem impactos de grandes projetos
mandas de agregação de municípios localiza-
ligados à mineração e geração de energia que
dos do outro lado da Baía do Guajará, caso de
acarretaram taxas de crescimento elevadas,
Barcarena e Abaetetuba, e ao longo da BR 316
mas que não superaram os 50.000 habitantes,
incorporando o município de Castanhal.
permanecendo fora do alcance dos recursos fe-
Na leitura do estudo de Regiões de
derais mais expressivos.16
Influên cia das Cidades realizado pelo IBGE
A desconexão entre o perfil de municí-
(2008), observa-se que o menor grau de
pios da região norte e as premissas do gover-
influên cia de uma cidade sobre seu territó-
no federal para alocação de recursos, privile-
rio, correspondente ao centro local, segue um
giando os municípios com população maior
corte aproximado de municípios com popu-
que 150 mil habitantes para investimentos em
lação acima de 50.000 habitantes, o que ex-
habitação com infraestrutura e equipamentos,
clui 85,6% dos municípios da região norte e
demonstra que no decorrer de quatro décadas
72,02% dos municípios paraenses (ver Tabela
o governo federal afasta-se da escala regio-
2) e suas dinâmicas específicas, cujas centra-
nal e aproxima-se da escala metropolitana e
lidades, muitas vezes, definem-se de acordo
intraurbana, acompanhando o debate, inicial-
com a sazonalidade das colheitas, nível dos
mente focado na abertura de novas frentes de
rios, manifestações culturais, entre outros.
ocupação e na urbanização, travado no âmbito
446
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
A expansão da RM de Belém
das conferências e fóruns da UN-Habitat (1976;
interesse, como da habitação (criação do SHNIS
1996), mas que, no curso do processo histórico
e do FHNIS, Lei nº 11.124/2004) e do sanea-
de urbanização da região norte, significa uma
mento (Lei nº 11.445/2007), pouco se tem alte-
forte mudança de foco, uma vez que as cidades
rado em termos de distribuição quantitativa ou
e aglomerações fomentadas pelas ações dos
aos padrões qualitativos dos empreendimentos
anos 1960 e 1970, progressivamente manifes-
na região em foco.
tam problemas semelhantes aos das grandes
Mesmo que as determinações das novas
cidades, sem contarem com a faixa de popula-
políticas urbanas acrescentem novas dimen-
ção que lhes garanta prioridade de investimen-
sões a serem cobradas em novas interven-
to federal, ou permita a melhoria da gestão pú-
ções, pouco tem sido garantido em termos de
blica nas diversas áreas de interesse.
inovação de propostas. Os projetos ainda não
Em que pesem os avanços ocorridos após
conseguiram incorporar aspectos relacionados
a criação do Ministério das Cidades, em 2003,
à gestão democrática, à possibilidade de ação
tais como: a instalação do Conselho e Confe-
consorciada entre entes federados, à necessi-
17
municipais, estaduais
dade de articulação com prioridades apontadas
e nacionais; o estabelecimento de diretrizes
em planos setoriais municipais, que conduzam
para as políticas urbanas brasileiras; o fomen-
à realização de objetivos associados à garantia
to a processos de gestão democrática e parti-
de cidadania, como acesso universal ou redu-
cipativa iniciado com a campanha dos planos
ção de exclusão e desigualdade, e sustentabili-
diretores participativos,18 e o avanço na regu-
dade ambiental, social e econômica nos proje-
lamentação em âmbito federal de políticas de
tos de habitação e saneamento.
rências das Cidades,
Tabela 2 – Distribuição da população
da região Norte por porte de município
Habitantes
AM
RO
1
0
6
0
1
4
74
86
19,15
De 5.001 até 10.000
11
5
10
7
6
3
39
81
18,04
De 10.001 até 20.000
30
24
19
6
8
5
16
108
24,05
De 20.001 até 50.000
61
25
10
1
5
2
7
111
24,72
De 50.001 até 100.000
30
6
5
0
1
0
1
43
9,58
De 100.001 até 500.000
9
1
2
1
1
2
2
18
4,01
Mais de 500.000
1
1
0
0
0
0
0
2
0,45
143
62
52
15
22
16
139
449
100,00
Até 5.000
Total
PA
RR
AC
AP
TO
Total
%
Fonte: IBGE, 2010.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
447
Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.
As intervenções como indutoras
no processo de expansão
da RM de Belém
de investimentos, diferentemente de municípios isolados que dependem de acesso fluvial, para os quais os custos da produção da
construção civil são maiores.
Quando obser vamos o escopo dos
As intervenções ora em curso no âmbito dos
normativos do Ministério das Cidades, ve-
programas federais dirigidos para o público
rificamos que cinco variáveis básicas são re-
com renda entre zero e três salários mínimos,
gulamentadas, referentes ao que poderá ser
19
no âmbito do PAC e do PMCMV, são estru-
objeto do investimento em uma dada ação:
turadas a partir de três segmentos principais:
urbanização sem construção (melhoria em
órgão gestor – Ministério das Cidades; agen-
infraestrutura de assentamento); urbanização
te operador – Caixa Econômica Federal; e
com construção de unidade habitacional hori-
agente proponente/executor – setor público
zontal; urbanização com construção de unida-
e terceiro setor.
de habitacional vertical; elaboração e implan-
Para garantir a ação coordenada desses
segmentos e a transparência do processo, o
tação de trabalho técnico social e elaboração
de projetos técnicos.
Ministério das Cidades publica, no seu sítio
É necessário esclarecer que o custo da
eletrônico, instruções normativas que regu-
terra só pode compor o investimento como
lamentam o enquadramento dos projetos
contrapartida, no caso de o terreno já ser pro-
nos programas, definindo diretrizes gerais e
priedade do proponente, que dependeria de
específicas. Essas regulamentações são es-
um estoque de terras públicas, ou da utiliza-
pelhadas pela Caixa, tendo em vista a aná-
ção de terras cada vez mais afastadas e, em
lise dos projetos e documentos técnicos a ela
função disso, de baixo valor imobiliário. Por
submetidos, em conformidade com a Lei de
outro lado, o empreendimento poderá ter até
Diretrizes Orçamentárias que, entre outras
40% dos domicílios ocupados por população
coisas, estabelece a utilização obrigatória
com faixa de renda superior ao determinado
do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos
pelo programa, prevendo o caso de famílias
e Índices da Construção Civil – Sinapi, como
que conseguem elevar a composição da renda
referência de custo para todo o Brasil. Essa
a partir da soma de diversas atividades.
decisão tem forte repercussão sobre a aqui-
Apresentamos dois quadros com parâ-
sição de insumos para obras realizadas na
metros de operação de programas dedicados
região Norte, concebidas dentro da tecnolo-
a situações distintas, o Projeto Piloto de In-
gia estabelecida nacionalmente (alvenaria e
vestimentos, voltado para Intervenções de Fa-
concreto), e bastante diversa da tecnologia
velas, e o Pró-moradia, dedicado à produção
vernácula local (madeira). Nesse aspecto na
de conjuntos habitacionais, nas versões ori-
Região Metropolitana de Belém há maior fa-
ginais (2007) e atual (2011). Cabe ressaltar
cilidade de acesso de insumos (tijolos, cimen-
que, em 2011, esses e todos os demais progra-
to, seixo), e é área preferencial à realização
mas dirigidos para a produção habitacional de
448
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
A expansão da RM de Belém
interesse social foram incorporados ao Pro-
O Quadro 2 apresenta os parâmetros do
grama Minha Casa Minha Vida, o que em ter-
programa Pró-Moradia, cuja principal alteração
mos práticos aumenta os valores praticados e
é a definição de valores específicos para cada
concentra as estatísticas habitacionais do país
estado, e a eliminação da equiparação de va-
em um só programa.
lores para regiões metropolitanas aos valores
No Quadro 1 são apresentados os pa-
praticados nos estados do RJ, SP e DF. Para
râmetros para a operação do Projeto Piloto
2011, também houve a agregação de tipolo-
de Investimentos – Intervenções de Favelas,
gias vertical e horizontal em uma única cate-
demonstrando que a evolução principal se
goria. De um modo geral, observa-se que os
refere à alocação de recursos para estudos,
normativos atêm-se a questões específicas de
planos e projetos, necessários para a orien-
custo, e, grosso modo, à tipologia a ser adota-
tação inicial da proposta. Entretanto, a falta
da. Existem orientações mais detalhadas refe-
de clareza quanto ao que pode ser financiado
rentes a enquadramento por porte populacio-
na variável projeto, induz a uma interpreta-
nal do município (se pulverizado ou concentra-
ção de sombreamento desta com a nova ca-
do), aspectos fundiários e titularidade da área e
tegoria. Houve também uma agregação das
limites de financiamento por grupos de estados
tipologias vertical e horizontal em uma só ca-
em outras camadas dos normativos, que indu-
tegoria, e, apesar dos contratempos relacio-
zem a um afunilamento do foco dos técnicos
nados ao trabalho técnico social no decorrer
responsáveis pelas análises dos projetos, cada
destes quatro anos de operação, nada mudou
vez maior para as condições de garantia e con-
neste quesito.
tratação dos imóveis.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
449
450
R$21.600,00/família
(demais municípios)
R$ 27.600,00 / família
(correspondente ao acréscimo de
20% sobre o valor de UH Horizontal)
(capitais estaduais ou integrantes de
RM ou RIDE ou aglomerado urbano)
R$23.000,00/família
(capitais estaduais ou
integrantes de RM ou RIDE
ou aglomerado urbano)
R$18.000,00/família
(demais municípios)
Urbanização com construção de UH
vertical20
Urbanização com
construção de UH horizontal
É recomendável a aplicação de,
no mínimo, 2,5% do valor de
investimento
Trabalho técnico-social21
Ministério das Cidades: Instrução Normativa nº 27 -14/6/2007; Instrução Normativa nº 49 – 17/10/2007
Estudos, planos e projetos
de urbanização de
assentamentos precários
Limitado a 3% do valor
previsto para execução do
empreendimento
Ações necessárias à execução do
empreendimento, incluindo obras e
trabalho técnico-social
Valores Limite
(regiões beneficiadas)
R$13.000,00/família
(todos os municípios)
Urbanização sem
construção de UH
Trabalho técnico-social
É recomendável a aplicação de,
no mínimo, 2,5% do valor de
investimento
Urbanização com construção de UH
Valores do PMCMV/FAR para
construção/aquisição habitacional
R$43.000,00 (apartamento)
R$39.000,00 (casa)
(para os municípios do estado do
Pará)
Projetos
Limitado a 3% do
valor de repasse
Projetos
Limitado a 3% do
valor de repasse
Ministério das Cidades: in MCidades nº 8, de 26/3/2009; Lei nº 12.309, de 9/8/2010; Portaria MCidades nº 228, de 11/5/2010.
Portaria Interministerial MPOG/MF/CGU nº 127, de 29/5/2008, e suas alterações
R$11.000,00/família
(todos os municípios)
Valores limite (regiões beneficiadas)
Normativos vigentes atualmente
Urbanização sem
construção de UH
Ações necessárias à execução do
empreendimento, incluindo obras e
trabalho técnico-social
Normativos vigentes em 2007
Quadro 1 – Quadro resumo dos parâmetros normativos dos programas do governo federal
voltados à produção de habitação de interesse social – Projetos Piloto de Investimento – PPI – Intervenções em favelas
Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
Valores limite
(regiões beneficiadas)
É recomendável a aplicação de,
no mínimo, 2,5% do valor de
investimento
Trabalho técnico-social
Trabalho técnico-social
É recomendável a aplicação de,
no mínimo, 2,5% do valor de
investimento
Urbanização com construção de UH
Valores do PMCMV/FAR para construção/ aquisição habitacional
R$43.000,00 (apartamento)
R$39.000,00 (casa)
(para os municípios do estado do Pará)
Ações necessárias à execução
do empreendimento, incluindo
obras e trabalho técnico-social
Valores limite
(regiões beneficiadas)
Instrução Normativa MCIDADES nº 16, de 17/3/2011 – Regulamenta o Programa de Atendimento Habitacional
através do Poder Público – Pró-Moradia
R$ 36.000,00 / família
R$ 33.600,00 / família
R$ 24.000,00 / família
(correspondente ao acréscimo
de 20% sobre o valor de UH
horizontal)
R$30.000,00/família
(municípios integrantes de região metropolitana ou equivalentes
dos estados do RJ, SP ou DF)
R$28.000,00/família
(municípios com população urbana igual ou superior a cem mil
habitantes, capitais estaduais, ou integrantes de demais RM’s ou
equivalentes)
R$20.000,00/família
(demais municípios)
Normativos vigentes atualmente
Urbanização com construção
de UH vertical
Urbanização com construção de UH horizontal
Limitado a 1,5% do
valor de repasse
Projetos
Limitado a 3% do
valor de repasse
Projetos
Instrução Normativa MPO nº 11, de 6/8/1998 - Regulamenta a Res. CCFGTS nº 288, de 30/6/998;
Instrução Normativa MCIDADES nº 16, de 4/5/2007 – Regulamenta o Programa de Atendimento Habitacional através do Poder Público – Pró-Moradia
e revoga a IN nº 21, de 15/7/2005
Ações necessárias à execução
do empreendimento, incluindo
obras e trabalho técnico-social
Normativos vigentes em 2007
Quadro 2 – Quadro resumo dos parâmetros normativos dos programas do governo federal voltados à produção de habitação
de interesse social – Projetos Piloto de Investimento – Pró-Moradia – Modalidade produção de conjuntos habitacionais
A expansão da RM de Belém
451
Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.
Como ilustração da manifestação dessas
nascentes e cabeceiras de cursos d’água que
ações na Região Metropolitana de Belém, fo-
compõem as Bacias Hidrográficas de Belém
ram selecionados projetos habitacionais diver-
(Belém, 2008), no caso em questão a bacia do
sos na sua localização e no seu enquadramen-
Mata Fome. Segundo o PDU (Belém, 2008),
to para uma breve comparação e análise.
na ZEIA “nenhum uso será permitido”. A so-
O primeiro deles é o Projeto Liberdade,
lução adotada retifica o parcelamento pré-
localizado na periferia da área central de Be-
-existente e adota tipologia de casas de área
lém, em área de baixada que vem sendo objeto
mínima (39m²) assemelhadas à tipologia de
de intervenção de saneamento e viária (macro-
conjuntos populares construídos pelo BNH/
drenagem e adequação do sistema viário do
Cohab na década de 1970. A requalificação
entorno do Igarapé Tucunduba). O projeto ci-
da área permitiu a integração das ruas do as-
tado se articula a outras ações iniciadas no seu
sentamento com as principais vias do sistema
entorno, no âmbito do programa Habitar Brasil
viário (Rod. Arthur Bernardes, Ruas Yamada e
BID e continuada como PPI – Intervenções em
John Engelhard), onde se concentram ativida-
favelas, Pró-Moradia e do FNHIS, recebendo
des comerciais e serviços, como o transporte
famílias remanejadas das obras de duplicação
público, melhorando a acessibilidade da área.
da Av. Perimetral e de Urbanização do Igara-
A densidade na área de entorno é baixa, com
pé do Tucunduba. A solução arquitetônica e de
ocupação predominante de habitações verná-
urbanização adotadas neste projeto reproduz
culas e condomínios habitacionais antigos, e
uma tipologia testada em situação semelhan-
usos industriais na avenida paralela à orla (Av.
te, na orla da Baía do Guajará, em um projeto
Arthur Bernardes).
denominado Vila da Barca, em execução pela
Na atual periferia metropolitana, en-
Prefeitura Municipal de Belém há aproxima-
contra-se o Residencial Jardim das Garças,
damente dez anos. O Residencial Liberdade é
localizado no município de Santa Izabel. É o
a maior intervenção do PAC no município de
caso mais segregado dentre todos os citados,
Belém, e apresenta a mais alta densidade po-
localizado em um ramal da Rod BR 316. A ti-
pulacional da RMB, 624 hab/ha, superando a
pologia adotada é a mesma da comunidade
densidade demográfica do bairro em que está
Pratinha, e os recursos são provenientes do
inserido, e que foi capaz de induzir uma dupla
PAC e PMCMV, aproveitando áreas de pro-
excepcionalização do enquadramento da área
priedade do proponente, a Cohab/PA. O em-
na legislação municipal, quanto ao uso per-
preendimento é desarticulado de serviços e
mitido e quanto à extrapolação da densidade
equipamentos até do centro da área urbana de
máxima admitida.
Santa Izabel, em uma situação que, apesar de
O segundo projeto apresentado chama-
periurbana do ponto de vista da localização,
-se Comunidade Pratinha, localizado na área
não permite usos periurbanos, ou rurais, tais
de expansão urbana de Belém, está inserido
como hortas ou criações, diante do tamanho
em uma Zona Especial de Interesse Ambien-
do lote praticado (160 m²).
tal (ZEIA) da macrozona do Ambiente Urbano
O último empreendimento citado é a
(ZAU 4), a qual caracteriza-se por conterem
Comunidade Jaderlândia, enquadrado como
452
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
A expansão da RM de Belém
PPI – Intervenções em Favelas, para requali-
quantitativos cobrados pelas normativas da
ficação de uma área ocupada nos anos 1980,
Caixa. Entretanto, destaca-se a informação do
parte de um empreendimento da COHAB/
período de tramitação dos processos de apro-
PA, ocupado ilegalmente antes da provisão
vação dos projetos físico, social e do licencia-
de infraestrutura. Esse empreendimento está
mento ambiental de cada empreendimento,
localizado a 77 km de Belém, no município
que revela a inversão existente entre levanta-
22
o qual reivindica inclusão na
mento do perfil e das necessidades dos futuros
RMB. O projeto prevê ações de remanejamen-
beneficiários, a compreensão dos limites am-
to, para liberação de margem de manancial,
bientais da área objeto de intervenção e a con-
construção de novas unidades (450 famílias)
cepção da proposta física, ou de engenharia,
e provisão de infraestrutura para a comunida-
uma vez que o projeto social sequer foi con-
de em geral (2.250 famílias). Já se observa na
cluído em todos os empreendimentos, e que o
área movimentos de retorno de famílias que
processo de licenciamento ambiental é parale-
não se adaptaram às novas moradias, para as
lo e mais longo que o tempo de elaboração do
áreas adjacentes ao projeto, em consequência
projeto de engenharia.
de Castanhal,
da mudança de modo de vida (de uma realidade periurbana para urbana).
Essas dificuldades estão associadas à
existência de diferentes instâncias de aprova-
A Figura 1 apresenta a região metropo-
ção (Caixa para projetos físico e social, Estados
litana, com limites municipais e localização
e Municípios para licenciamento ambiental,
dos empreendimentos citados. No Quadro
Município para controle urbanístico), à desar-
3, é apresentada uma síntese dos quatro
ticulação entre as mesmas e às assimetrias na
projetos citados acima, com ilustrações e
capacidade de análise nas diferentes equipes.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
453
Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.
Figura 1 – Localização dos empreendimentos PAC e PMCMV
objetos de estudo na RMB mais o muncípio de Castanhal – PA
Legenda:
Rodovia
Municípios
Residencial Liberdade
Comunidade Pra nha
Jardim das Garças
Comunidade Jaderlândia
Fonte: Cohab; Celpa; IBGE, 2000; CEF, 2012. Elaboração: Raul da Silva Ventura Neto; Taynara do Vale.
Adaptado a partir de imagem do Google Earth – 2010.
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R$41.353.141,98
Valor do
investimento
2010
2.250
2009
População
beneficiada
2008
450
2007
Comunidade Jaderlândia
Castanhal
Número
de UH
Fonte: CAIXA, 2011 – GIDUR/BE
A área
do projeto
Tipologia
arquitetônica
Processo de aprovação
Variáveis
2011
2007
2009
2010
R$27.798.059,81
11.030
350 UH + 1.856 melhorias
de infraestrutura
2008
Comunidade Pratinha
Belém
2011
2007
11.680
2.336
2009
2010
R$128.862.226,09
2008
Residencial Liberdade
Belém
Projetos habitacionais – Localização
Quadro 3 – Situação dos estudos de caso
Legenda
2011
1.120
224
2009
2010
R$7.731.163,36
2008
Projeto técnico-social (CAIXA)
Licença ambiental (SEMA)
Projeto físico (CAIXA)
2007
Jardim das Garças
Santa Izabel do Pará
2011
A expansão da RM de Belém
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Ana Cláudia Duarte Cardoso et al.
Considerações finais
expulsão dos ocupantes da área, que resultará
À exceção do Residencial Liberdade, os proje-
de uso e ocupação do solo a ser fomentado,
tos são parecidos independentemente de sua
de modo a compatibilizar investimento, tipolo-
inserção no contexto regional, demonstrando
gia e modo de vida da população a ser fixa-
maior atenção ao atendimento dos padrões
da na área. Este aspecto está intrinsecamente
quantitativos dos programas, e ao acesso dos
articulado a atributos do projeto adotado, no
recursos, facilitado pela condição metropoli-
que se refere à seleção de tipologias, densi-
tana (valores mais altos, melhores condições
dades praticadas, conexões criadas com a ci-
logísticas, disponibilidade de empresas, mão
dade pré-existente ou consolidada, mudanças
de obra e material de construção), além da
na acessibilidade e no potencial de ampliação
possibilidade de expansão progressiva da pe-
da oferta de serviços e diversificação de usos.
riferia da RMB. No entanto, dentro desse uni-
Esses atributos são raramente considerados
verso, existem condições ambientais e sociais
em virtude da escassez de tempo para reali-
não consideradas, exatamente da mesma for-
zação de diagnóstico e formulação de uma
ma como ocorrido há 40 anos, por ocasião das
agenda social e física para os empreendimen-
intervenções federais indutoras da urbanização
tos, e agravados pela busca de ampliação da
da região.
margem de lucro dos executores, que se valem
na inversão dos objetivos dos programas.
O segundo foco de atenção é o padrão
Em todos os projetos há atenção para
da repetição indistinta das tipologias, e das
com acesso universal e recuperação ambiental,
velhas fórmulas de localização e estruturação
temas mais facilmente contemplados na escala
espacial desses assentamentos.
do assentamento do que na unidade habita-
Além desses aspectos, merece atenção
cional, indicando que entre a diretriz (norma,
a capacidade de gestão instalada, refletida
regulamento, etc.) e a execução, ainda há di-
na capacidade de diagnóstico, planejamento,
versos obstáculos a suplantar.
formulação de projetos, captação de recur-
Diante de todo o exposto, observamos
sos, e controle urbanístico dos municípios,
que algumas contribuições das formulações
tanto menor quanto maior a distância do cen-
recentes da política urbana brasileira são pre-
tro metropolitano.
mentes na avaliação dos empreendimentos,
A negligência dos atributos citados re-
apesar de negligenciadas pelas instruções
força a tese da invisibilidade de atores sociais
normativas e por mecanismos de gestão que
estabelecidos na escala local (os supostos
deveriam atentar para aspectos regionais e
beneficiários), quando a tomada de decisão
locais. A primeira delas é uma rigorosa análise
acontece em outras esferas, como vem ocor-
da inserção da ação no contexto fundiário em
rendo com a aplicação estrita dos normativos
questão, visto que a inversão entre diagnóstico
do Ministério das Cidades e da Caixa, sem
das necessidades e elaboração de projeto pode
mediação de órgãos estaduais ou municipais
resultar na mera incorporação das áreas bene-
dedicados ao planejamento ou formulação de
ficiadas ao mercado de terras formal, e futura
políticas urbanas.
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A expansão da RM de Belém
Ana Cláudia Duarte Cardoso
Arquiteta e Urbanista. Professora Adjunta da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade
Federal do Pará e Pesquisadora do Instituto Tecnológico Vale. Belém/Pará, Brasil.
[email protected]
Marcília Regina Gama Negrão
Arquiteta e Urbanista. Mestre em Engenharia Civil. Educadora não formal, Fase Amazônia, Núcleo
Cidadania. Belém/Pará, Brasil
[email protected]
Glaydson de Jesus Cordovil Pereira
Arquiteto e Urbanista. Especialista em Gestão da Qualidade na Construção Civil e Mestrando da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal do Pará. Arquiteto da Caixa Econômica
Federal – GIDUR/BE. Belém/Pará, Brasil.
[email protected]
Agradecimento
Agradecemos ao CNPq pelo apoio financeiro à pesquisa “Contribuições para a construção de uma
polí ca urbana para regiões periféricas no Brasil: Ar culações entre o planejamento da região e
a construção do espaço intra-urbano na Amazônia (FASE I)”, e à revisora Laís Zumero.
Notas
(1) Ver Idesp, 2007 e entrevista concedida em janeiro de 2011 por Lenilson Holanda. Economista
do Serfhau e Secretaria de Estado de Planejamento do Governo do Pará e Ex-Secretário de
Planejamento de Castanhal e Marabá.
(2) A Região Metropolitana de Belém é composta pelos municípios de Belém, Ananindeua, Marituba,
Benevides, Santa Bárbara e Santa Isabel do Pará.
(3) Ver Cardoso, 2011.
(4) Ver Perroux, 1967.
(5) Leitão, 2009.
(6) Ver Valença e Bonates, 2010; Maricato, 2001.
(7) Ver FVPP/UFPA, 2005.
(8) Ver Rolnik (1997).
(9) Ver MINTER/SERFHAU, 1972.
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(10) Ver Rezende 2009, p. 49.
(11) Ver Araújo (2008) e Rolnik, 2011.
(12) Ver Emillianof (1997) citada por Copams (2009)
(13) Ver Maricato (1996) e Villaça (1999).
(14) Ver Lima et al. (2005).
(15) Dados da planilha da Caixa Econômica Federal 2009, elaborada por Sousa (2010)
(16) Juruti ilustra essa afirmação. O município tinha população de 31.198 habitantes em 2000,
ampliada para 47.086 habitantes em 2010, após a instalação da exploração de bauxita pela Alcoa.
(17) As Conferências das Cidades como prá cas polí co-sociais se cons tuem em um espaço no
processo de Gestão Democrá ca da cidade. Foram estabelecidas através do Estatuto da Cidade,
Lei 10.257/2001, e implementadas a par r do ano de 2003 com a criação do Ministério das
Cidades e visam a propiciar a discussão de temas relacionados à produção do espaço urbano com
movimentos e en dades (atores sociais) – organizados em segmentos, tais quais Trabalhadores,
Empresários ligados a construção civil, Ong’s, Movimentos Populares, Poder Público (nas
três esferas de governo no Execu vo e Legisla vo) e En dades Acadêmicas, Profissionais, de
Pesquisa e Conselhos Federais (profissionais).
(18) A obrigatoriedade de elaboração de Plano Diretor para municípios acima de 20.000 habitantes
e para municípios onde se situam grandes projetos foi estabelecida pela Cons tuição Federal
de 1988 que regulamentou o Estatuto da Cidade. Apesar da obrigatoriedade, segundo as
informações do IBGE – Perfil dos Municípios Brasileiros 2005 – em 2001, apenas 17,6% dos
5.560 municípios no país possuíam Plano Diretor no ano de ins tuição da Lei. Considerando
apenas o conjunto dos municípios com população residente acima de 20.000 habitantes, o
percentual alcançava 38,2%, sinalizando que a existência desse instrumento de gestão urbana
está fortemente condicionada pelo porte populacional. Quanto à distribuição geográfica,
destaca-se a região Sul como aquela onde havia o maior percentual de municípios (33,7%) com
Plano Diretor, contra o Nordeste que apresentava apenas 10%. Nesse cenário, o Ministério das
Cidades reuniu esforços no sen do de orientar os municípios na elaboração de seus Planos
Diretores (PDs) a par r de uma campanha nacional finalizada no ano de 2006 (Lubambo, 2005).
(19) Programa de Aceleração do Crescimento e Programa Minha Casa Minha Vida
(20) Entende-se por unidade habitacional ver calizada a unidade habitacional cujo(s) pavimento(s)
superior(es) e térreo sejam des nados a núcleos familiares dis ntos.
(21) Corresponde à realização das ações de par cipação, mobilização e organização comunitária,
educação sanitária e ambiental e a vidades ou ações de geração de trabalho e renda, des nadas
à população diretamente beneficiada.
(22) Castanhal foi adotado como município-modelo de uma concepção de planejamento local
também no âmbito estadual, e que, apesar da descon nuidade da trajetória de planejamento
e mudança de gestão ocorrida nos anos 1990 e 2000, hoje conta com um raro atributo: zerou
o déficit habitacional acumulado com as contratações realizadas a par r de 2007, a par r das
contratações dos Programa de Aceleração do Crescimento e do Programa Minha Casa Minha
Vida (Pará, 2009).
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A expansão da RM de Belém
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Texto recebido em 21/out/2011
Texto aprovado em 25/mar/2012
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 441-461, jul/dez 2012
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Direito ao espaço cotidiano: moradia
e autonomia no plano de uma metrópole
The right to the everyday space: housing
and autonomy in the master plan of a metropolis
Silke Kapp
Resumo
A proposição de Henri Lefebvre de um direito à
cidade tem sido amplamente utilizada em meios
acadêmicos e extra-acadêmicos, com tendência a
uma certa banalização. O presente artigo retoma
alguns aspectos dessa proposição aqui considerados fundamentais, para então discutir sua relação com a ordem jurídico-urbanística inaugurada
pelo Estatuto da Cidade, particularmente no que
diz respeito aos princípios de participação e autonomia. A terceira parte explora uma possibilidade
de ampliação concreta da autonomia coletiva na
escala microlocal, partindo dos estudos da temática habitacional elaborados para o Plano Diretor de
Desenvolvimento Integrado da Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI-RMBH). Ainda com
base nesses estudos, a quarta parte sintetiza os
entraves à autonomia nas instituições existentes, e
a última parte expõe a proposta de uma Tipologia
de espaços cotidianos para estruturar articulações
que a favoreçam.
Palavras-chave: espaço cotidiano; habitação; autonomia; planejamento; Região Metropolitana de
Belo Horizonte.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Abstract
Lefebvre’s proposition of a right to the city has
been widely used in academic and extra-academic
circles, with a tendency to oversimplification.
This paper resumes some aspects of this
proposition that we consider fundamental, and
then discusses their relationship to the legal
order inaugurated by the City Statute, particularly
with regard to the principles of participation and
autonomy. The third part explores a possibility
of concrete amplification of collective autonomy
at the microlocal scale, drawing from studies
developed for the Master Plan for the Integrated
Development of the Metropolitan Region of
Belo Horizonte (Brazil). Also based on these
studies, the fourth part summarizes the barriers
to autonomy in the existing institutions, and the
last part outlines the proposal for a typology of
everyday spaces to structure articulations that
could favor it.
Keywords: everyday space; housing; autonomy;
planning; Metropolitan Region of Belo
Horizonte.
Silke Kapp
Imaginar a cidade
tais como são. Pelo contrário, trata-se de
“prospectar as novas necessidades, sabendo que tais necessidades são descobertas no
Há uma entrevista do psicólogo social Erich
decorrer de sua emergência e que elas se re-
Fromm à rede de televisão norte-americana
velam no decorrer da prospecção” (Lefebvre,
ABC no ano de 1958 em que, a certa altura, ele
2001 [1968], p. 125). O direito à cidade é o
se diz a favor do socialismo desde que o termo
direito de imaginar e realizar a cidade, contí-
não fosse identificado com o regime então em
nua e concomitantemente. Lefebvre associa
vigor na União Soviética, mas com “uma socie-
esse processo aos procedimentos artísticos e
dade na qual o objetivo da produção não é o
propõe “pôr a arte ao serviço do urbano” para
lucro, mas o uso, na qual o cidadão individual
abrir uma “práxis e poiesis em escala social”
participa de modo responsável no seu traba-
(Lefebvre, 2001 [1968], pp. 134-135).
lho e em toda a organização social, e na qual
ele não é um meio empregado pelo capital”
(Fromm, 1958). O jornalista Mike Wallace, reproduzindo o discurso típico da grande mídia
ocidental, retruca que o trabalhador que não
fosse empregado do capital se tornaria empregado do Estado e estaria numa situação ainda
pior. E Fromm, como que solicitando ao inter-
O direito à cidade se manifesta como
forma superior dos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à
obra (à atividade participante) e o direito
à apropriação (bem distinto do direito à
propriedade) estão implicados no direito
à cidade. (Lefebvre, 2001 [1968], p. 135;
grifos do autor)
locutor e ao público a ultrapassagem do raciocínio polarizado entre uma ou outra forma de
A expressão lefebvriana tem estado na
dominação social, responde: “Temos sido incri-
pauta das discussões nacionais e internacio-
velmente imaginativos em tudo o que diz res-
nais, acadêmicas e extra-acadêmicas, especial-
peito à técnica e à ciência. Mas quando se trata
mente entre grupos que intencionam uma ou
de mudanças nos arranjos sociais, tem nos fal-
outra forma de resistências à globalização de
tado totalmente a imaginação” (Fromm, 1958).
modelo neoliberal e à governança corporativa
Uma tal imaginação para mudanças
das cidades que ela tende a promover. Além
nos arranjos sociais também me parece im-
de inúmeras publicações e da Carta Mundial
prescindível à concepção de direito à cidade
pelo Direito à Cidade , são exemplos nesse
formulada por Henri Lefebvre. Como sugere
sentido conferências como Rights to the City:
Harvey (2012, p. xiii), a gênese dessa con-
Citizenship, Democracy and Cities in a Global
cepção pouco antes dos eventos de maio de
Age (Toronto, 1998) e Rights to the City (Ro-
1968 provavelmente deva mais ao ativismo
ma, 2002), diversos eventos no Fórum Social
nas ruas e vizinhanças de Paris do que à tradi-
Mundial, movimentos como o Right to the City
ção intelectual em que ela (também) se apóia.
Alliance (EUA) e o Recht auf Stadt-Netzwerk
O pleito de Lefebvre não é simplesmente um
(Alemanha), e legislações como a Lei de Desen-
pleito pela satisfação de necessidades defi-
volvimento Territorial na Colômbia e o Estatuto
nidas ou induzidas na cidade e na sociedade,
da Cidade no Brasil.
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Direito ao espaço cotidiano
Nesse contexto de difusão relativamente
ampla, o significado da expressão “direito à
cidade” se tornou objeto de disputa. Diversos
autores têm protestado contra sua banalização como simples análogo ou somatório do
acesso ampliado a serviços e equipamentos de
habitação, saúde, educação, transporte e lazer.
Mitchell (2003) discutiu em profundidade o que
significaria habitação e apropriação da cidade
no sentido lefebvriano, muito além da acomodação de cada família numa unidade habitacional de determinado padrão. Harvey (2008) vem
tentando resgatar o caráter emancipatório do
direito à cidade, enfatizando que se trata “do
exercício de um poder coletivo de dar uma nova forma ao processo de urbanização”. Souza
(2010, p. 319) argumenta que sua “trivialização e corrupção” tende a tornar essa expressão
inútil para quaisquer propósitos críticos. Merrifield (2011) retoma as possibilidades de transformação criativa hoje, explorando um artigo
tardio em que o próprio Lefebvre abandona a
ideia do direito à cidade (“entrega-a ao inimigo”) por considerá-la ultrapassada “quando a
cidade se perde numa metamorfose planetária” (Lefebvre, 1989). E principalmente Purcell
(2002) se opôs, já há alguns anos, a leituras
políticas e econômicas na cidade e para
além dela. (Purcell, 2002, p. 101)
Segundo Purcell, a diferença entre o direito à cidade intencionado por Lefebvre e as
ideias que têm sido veiculadas em seu nome
equivale à diferença entre uma democratização parcial das decisões hoje tomadas na esfera do Estado e uma democratização radical
de todas as decisões que afetam a produção do
espaço urbano, isto é, também daquelas hoje
tomadas na esfera do capital. Isso significaria
nada menos do que uma rearticulação mundial
de escalas de governança, com a substituição
da atual hegemonia do Estado-nação por uma
hegemonia das cidades governadas diretamente por seus habitantes. Os resultados disso são
inteiramente abertos, imprevisíveis, porque
não se limitariam à redistribuição socialmente
mais justa das possibilidades disponíveis, nem
estacionariam diante dos entraves operacionais determinados pelas instituições existentes.
Elas mobilizariam aquele tipo de imaginação
solicitado por Erich Fromm, mas nada garante
que levariam a um estado de coisas que, nas
perspectivas que a cidade e a sociedade atual
oferecem, fosse considerado ideal.
superficiais, “escavando” as proposições de Lefebvre até as últimas consequências:
Reformar a cidade
[...] o direito à cidade de Lefebvre é um
argumento para mudar profundamente
tanto as relações sociais do capitalismo
quanto as estruturas vigentes de cidadania democrático-liberal. Seu direito à
cidade não é uma sugestão de reforma,
nem visa a uma resistência fragmentada, tática, passo-a-passo. Sua ideia é em
vez disso uma convocação para uma reestruturação radical de relações sociais,
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No Brasil, a resposta à chamada crise urbana centrou-se por décadas na ideia da reforma urbana; e reforma, como se sabe, não é
revolução, pois ocorre dentro de estruturas
e instituições sociais existentes. Inaugurada
formalmente com o Seminário de Habitação
e Reforma Urbana de 1963 (Bonduki e Koury,
465
Silke Kapp
2010), a mobilização por essa ideia se tornou
leis, planos e instrumentos jurídicos tende a
mais expressiva com a elaboração da Emenda
ser inútil porque, no melhor dos casos, resulta
Popular da Reforma Urbana (Silva, 1991), par-
em documentos de conteúdo escorregadio e de
cialmente acatada nos Artigos 182 e 183 da
uma linguagem que permite apropriações por
Constituição Federal de 1988. A regulamen-
agendas opostas, ao ponto de simplesmente le-
tação desses artigos pelo Estatuto da Cidade,
gitimar o status quo. No segundo caso, caberia
que pode ser considerada uma conquista dos
o contra-argumento de Mitchell (2003), de que
movimentos e entidades reunidos no Fórum
pressões populares podem, sim, levar o Estado
Nacional da Reforma Urbana, permite afir-
de Direito a proteger os socialmente mais fra-
mar que “o Brasil incorporou formalmente a
cos e a fortalecer agendas emancipatórias.
noção de ‘direito à cidade’ em [seu] sistema
Ermínia Maricato, que foi responsável
legal” (Fernandes, 2007, p. 202). O processo
pela defesa da Emenda perante a Comissão
possibilitou a criação de uma ordem jurídico-
de Sistematização da Constituinte e teve im-
-urbanística na qual as chamadas funções
portantes atuações na Prefeitura de São Paulo
sociais da propriedade e da cidade são decla-
e no Ministério das Cidades, assumiu recente-
radas prioritárias, bem como a criação de um
mente a alternativa mais pessimista. Ela diag-
Ministério das Cidades para articular políticas
nostica que o ciclo de mobilização no Brasil se
habitacionais e urbanas, um Sistema Nacional
encerrou sem alcançar “uma mudança de rota
e um Fundo Nacional de Habitação, e inúme-
no rumo que orientou a construção das cida-
ros órgãos e conselhos estaduais e municipais
des” (Maricato, 2011, p. 77). A disputa dos ca-
para detalhá-las e pô-las em prática.
pitais por localização e pelo valor de uso com-
Na perspectiva de transformação radi-
plexo das cidades, a indústria imobiliária e as
cal, aberta e imprevisível que Lefebvre levan-
operações especulativas continuam muito mais
ta, a incorporação do direito à cidade num
determinantes na produção do espaço urbano
sistema legal existente seria contraditória. Há
do que qualquer participação popular nas de-
de se convir então que o direito à cidade ins-
cisões do Estado ou qualquer função social da
titucionalizado no Brasil não tem caráter re-
propriedade. Muito se fez em termos institu-
volucionário. Declaradamente, a “bandeira de
cionais, abriram-se alguns canais novos, houve
luta” da reforma urbana desde os anos 1980
um aprimoramento politicamente correto dos
visa, sobretudo, a amenizar a dicotomia entre
discursos (inclusive das frentes mais conser-
cidade legal e clandestina, cidade moderna e
vadoras) e um aporte significativo de meios,
precária, cidade rica e pobre (Silva, 1991, p. 7).
mas as cidades estão piorando e os supostos
A questão é se esse enquadramento mais limi-
avanços dificilmente chegam aos meandros do
tado constituirá um dos muitos expedientes de
cotidiano, seja da própria população, seja da
neutralização das energias críticas nessa socie-
administração pública ou do trabalho técnico.
dade ou se ele pode avançar paulatinamente
Enquanto isso, “o ideário da ‘reforma urbana’
rumo a mais espaços de democracia direta. No
que tem o ‘direito à cidade’ ou a justiça urbana
primeiro caso, caberia aplicar-lhe o argumento
como questão central [...] parece ter se evapo-
de Tushnet (1984), de que o engajamento por
rado” (Maricato, 2011, p. 29).
466
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
Cardoso e Silveira (2011) chegam a
Nesse sentido, uma fragilidade funda-
conclusões semelhantes, se bem que não tão
mental do Estatuto é o papel acessório que
categóricas, acerca dos Planos Diretores ela-
nele se atribui à participação popular. Não
borados a partir do Estatuto da Cidade: in-
que ela não seja mencionada inúmeras ve-
tenções e objetivos relevantes estão em toda
zes. Mas as menções têm justamente aquele
parte, mas há poucas medidas e estratégias
caráter vago criticado por Tushnet (1984). Co-
concretas para sua realização. Poder-se-ia
mo Souza (2006, p. 221) analisa com muita
acrescentar que esse efeito estava quase pré-
contundência, “a maneira como o Estatuto
-programado no Estatuto porque, paradoxal-
a esta se refere é, quase sempre, indefinida –
mente, a mesma legislação federal que esta-
admitindo-se uma interpretação que privilegie,
belece a função social da propriedade torna
a depender da Prefeitura, um processo delibe-
sua aplicação inteiramente dependente das
rativo ou meramente consultivo – ou então a
instâncias legislativas e executivas municipais
tônica é claramente consultiva”. Discutimos
(e aos agentes privados capazes de influenciá-
em outra ocasião (acrescentar depois) que a
-las localmente), dando-lhes poder suficien-
participação institucionalizada, orquestrada
te para procrastinar tal aplicação por mais
por técnicos e administradores públicos para
algumas décadas. Soma-se a isso a incoe-
satisfazer exigências formais, não é apenas
rência de programas federais mais recentes,
insuficiente, mas perniciosa. Ela não constitui
cujos recursos podem atropelar o mais bem
um “degrau” numa “escada da participação”
intencionado planejamento municipal, como
(Arnstein, 1969) cujo topo seria a autogestão
vem ocorrendo em muitos empreendimentos
ou a autonomia coletiva dos habitantes da ci-
do Programa Minha Casa Minha Vida ou do
dade (Souza, 2001), mas burocratiza, frustra e
Programa de Aceleração do Crescimento.
arrefece o engajamento. Isso vale muito parti-
Por outro lado, assumindo a alternativa
cularmente para o contexto de intervenções em
menos pessimista, pode-se considerar que a
áreas habitadas pela população política e eco-
formalização de direitos que o Estatuto ofere-
nomicamente mais pobre, isto é, naquelas por-
ce, com todas as suas limitações, também pro-
ções da cidade para as quais a ideia da reforma
tege e fortalece interesses tradicionalmente
urbana e o próprio Estatuto foram formulados.
obliterados nas legislações urbanas brasileiras;
Nesse âmbito, técnicos e administradores ten-
ou, indo um pouco mais longe, que “a reforma
dem a tomar a participação como uma tarefa
da ordem legal é uma das principais condições
entre outras, a ser realizada pelo “pessoal do
para transformar a natureza do processo de
social” (os assistentes sociais que compõem as
desenvolvimento urbano” (Fernandes, 2007,
equipes de orgãos públicos e empresas priva-
p. 208). Uma condição, no entanto, não sig-
das) sem influência decisiva sobre os proces-
nifica realização. Mesmo a possibilidade de
sos e produtos de intervenções urbanísticas ou
reformar a cidade – sem revolucioná-la por
construções novas.
ora – dependerá da mobilização continuada e
Ora, a participação não é apenas uma
crítica da imaginação coletiva para criar suas
entre outras ideias relacionadas ao direi-
formas concretas.
to à cidade. Ela é seu cerne. Talvez a escolha
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
467
Silke Kapp
do termo seja infeliz, porque participação,
Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado da
independentemente do adjetivo que a qualifi-
Região Metropolitana de Belo Horizonte (PDDI-
que (plena, verdadeira, genuína, etc.), sempre
-RMBH), aprovado em 2011. 1 Não obstante
sugere uma outra instância, não composta pe-
suas especificidades, as contradições dessa
los próprios “participantes”, que determina e
situação são aplicáveis a muitas outras. Como
coordena o processo. Isso vale mais ainda para
um plano que está inserido em estruturas insti-
a sua especificação como participação popular,
tucionais relativamente convencionais, inclusi-
pois se há o popular, deve haver o não popular.
ve no que diz respeito à participação, poderia
Qualquer interpretação do significado
político da palavra “povo” tem de partir
do fato singular de, nas línguas europeias
modernas, ela designar sempre também
os pobres, os deserdados, os excluídos.
Uma mesma palavra nomeia, assim,
tanto o sujeito político constitutivo [da
democracia] como a classe que de fato,
senão de direito, está excluída da política.
(Agamben, 2010, p. 31)
abir caminho para uma produção do espaço
com maior autonomia?
Habitar a cidade, no sentido enfático do
“direito à obra [...] e à apropriação” (Lefebvre,
2001, p. 135), significa poder determinar como
se quer habitar, incluíndo as características de
espaços privados e públicos, as relações entre
uns e outros, com o meio natural, com a vizinhança imediata e mediata, com as centralidades e redes urbanas mais abrangentes e assim
Ampliar e concretizar o direito à cidade
por diante. As políticas públicas de habitação
para além das legislações exige criar possi-
no Brasil estão longe dessa compreensão am-
bilidades, não apenas de maior participação
pla. Quando são destinadas à produção de
popular, mas de autonomia socioespacial, isto
novos espaços de moradia, via de regra, par-
é, possibilidades para que diferentes coletivida-
tem da premissa de grande conjuntos de uso
des adquiram o direito e a capacidade de de-
exclusivamente habitacional, com unidades-pa-
finir a produção do espaço, em contraposição
drão para famílias-padrão e espaços coletivos
à heteronomia ou à definição dessa produção
e públicos tratados, senão como sobra entre
por instâncias alheias. O dilema nesse raciocí-
edificações, como circulação ou equipamento
nio – ao qual volto em seguida – é a escala de
de uso predefinido e monitorado.
abrangência de tais “coletividades”.
Tomem-se por exemplo as recomendações do Ministério das Cidades para a elaboração dos Planos Locais de Habitação de
Direito à cidade
e espaço cotidiano
Interesse Social (PLHIS), que sugerem que os
municípios comecem por “conhecer [quantitativamente] o conjunto das necessidades
habitacionais e dimensionar os recursos ne-
As concepções delineadas acima constituíram
cessários” (MCidades, 2009, p. 171). Esse
algumas das balizas de uma abordagem da
dimensionamento de recursos deve ser feito
temática habitacional elaborada sob coordena-
por faixas de renda, com base no custo pra-
ção da autora no contexto dos estudos para o
ticado por unidade habitacional convencional
468
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
Direito ao espaço cotidiano
(“vertical e horizontal”) e no valor médio da
se essa última é “aquilo que ‘resta’ quando se
terra no respectivo setor urbano (MCidades,
subtraem todas as atividades distintas, supe-
2009, p. 173). Ainda que se trate apenas de
riores, especializadas, estruturadas” (Lefebvre,
uma estimativa e que o processo possa, em
1991, p. 97), espaço cotidiano seria o que resta
teoria, incluir a concepção de novos parâmetros
quando se subtraem espaços ‘distintos, supe-
urbanísticos e tipos arquitetônicos, a quantifi-
riores, especializados, estruturados’, como mo-
cação ocorre num momento em que, do pon-
numentos e redes e equipamentos urbanos de
to de vista operacional, é improvável que uma
amplo alcance. Define-o o fato de não deman-
prefeitura consiga elaborar e orçar alternativas
dar organização para funções especializadas,
concretas para espaços específicos ou novas or-
nem tampouco organização por especialistas.
ganizações da produção por associações, coo-
Mas o cotidiano não é como uma “planície”
perativas e outras entidades comunitárias. A
contraposta aos “picos” dos momentos criati-
tendência é que sejam reproduzidos processos
vos; ele é o “solo fértil” no qual surgem avan-
e rotinas já consolidados e que elas acabem
ços criativos e no qual eles são reincorporados
sendo mantidas mais tarde. Existem exceções
(Lefebvre, 1991, p. 87; cf. Lefebvre, 2002).
como os empreendimentos autogestionários,
mas quantitativamente são pouco expressivas.
O espaço cotidiano seria, assim, a menor
escala de um exercício concreto do direito à ci-
Já políticas e programas destinados à
dade entendido como direito coletivo de trans-
melhoria de assentamentos existentes tendem
formá-la. A autonomia na sua produção implica
a reproduzir procedimentos de urbanização da
que grupos locais e microlocais determinem
cidade formal, também heterônomos. A popu-
seus processos e desenvolvam-nos ao longo
lação é convidada a participar de processos
do tempo. Essa possibilidade está focada em
cuja estrutura está prefixada e nos quais suas
relações de vizinhança, na negociação e ação
informações e opiniões têm pouco ou nenhum
numa coletividade territorial, na capacidade de
peso diante de ditames técnicos, econômicos e
solucionar diretamente e sem complexos meca-
burocráticos. Embora seja preferível a proces-
nismos burocráticos os fatores de desconforto
sos sem nenhuma participação, essa modali-
de ambientes privados, coletivos ou públicos,
dade de “participação restrita ou instrumen-
nas oportunidades de transformar rotinas ou
tal” (Azevedo, 2008, p. 90) satisfaz o princípio
levar a cabo empreendimentos criativos, na
de gestão democrática apenas formalmente e,
perspectiva de definir serviços ou equipamen-
como já indicado, até dificulta avanços para a
tos disponíveis.
autonomia. O direito à moradia entendido nes-
O dilema dessa proposição é, como já
ses termos contradiz o direito à cidade em vez
indicado acima, a abrangência de uma tal
de ampliá-lo.
“menor escala” e sua articulação com as de-
Para tentar fugir a tais entendimentos
mais. Assim como as atividades especializadas
naturalizados, a abordagem da temática ha-
não são da ordem da vida cotidiana, mesmo
bitacional do PDDI-RMBH se deu com foco no
que muita gente se envolva com elas diaria-
que denominamos espaço cotidiano. O concei-
mente, um grande equipamento urbano não é
to foi introduzido em analogia à vida cotidiana:
um espaço cotidiano segundo essa definição,
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
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Silke Kapp
mesmo que muitos o frequentem todos os dias.
para a redução de investimentos públicos nas
Só cabem no espaço cotidiano assim definido
comunidades pobres. Tome-se, por exemplo,
porções urbanas cuja influência seja relativa-
os programas de autoajuda do Banco Mundial
mente limitada. No entanto, como determinar
incitados por John F. C. Turner, que Mike Davis
esse limite? E como evitar o paroquialismo?
critica: “elogiar a práxis dos pobres tornou-se
Como fugir do fechamento dessas porções ur-
uma cortina de fumaça para revogar compro-
banas sobre si mesmas que, no pior dos casos,
missos estatais históricos de reduzir a pobreza
resulta em guetos com autoritarismos locais e
e o déficit habitacional” (Davis, 2006, p. 81).
sem nenhuma articulação política mais ampla?
Seria importante, no entanto, compreender
O já citado Purcell (2006) formulou críticas
até que ponto as tentativas de incremento da
contundentes nesse sentido, batizando de local
autonomia na escala microlocal engendradas
trap a crença de que a escala local teria uma
por Turner e outros se fragilizaram por falta de
virtude inerente e seria sempre e necessaria-
uma discussão mais abrangente da economia
mente mais propícia à justiça social (ou socio-
política da produção social do espaço. Como
espacial) do que a grande escala.
nota Cardoso (2008, p. 31), Turner pressupõe
A armadilha local [local trap] na literatura sobre a democracia urbana está na
pressuposição de que a restituição da
autoridade produzirá maior democracia.
Assume-se que quanto mais localizadas
as instituições de governo, mais democráticas serão. Mais especificamente, o
pressuposto é que quanto mais autonomia a população local tiver sobre sua área
urbana, mais democráticas e justas serão
as decisões sobre aquele espaço. (Purcell,
2006, p. 1925)
um processo evolutivo de integração social
concomitante ao desenvolvimento econômico
dos países “atrasados”, deixando de lado as
desigualdades estruturais que marcam esse
desenvolvimento e que não serão eliminadas
pelo simples crescimento. Na mesma linha dos
advogados da nova direita, os engajados nessa autonomia restrita tenderam a identificá-la
com “empreendedorismo” (Frank, 2000, p. 35;
cf. Ronneberger, 2008).
Por outro lado, assim como não cabe
O principal argumento contra a hipósta-
uma hipóstase da escala local ou microlocal,
se da escala local é que ela abre mão de outras
não cabe seu oposto. O espaço cotidiano e
articulações, sem nem mesmo examiná-las,
particularmente a habitação não constituem,
e assim abre mão também da constituição
em si mesmos, um equipamento ou serviço que
democrática de coletividades amplas, organi-
possa ser determinado a partir de um planeja-
zadas, por exemplo, em redes e não em ilhas
mento em escala metropolitana. Mesmo que
territoriais. Tudo isso acaba por favorecer as
ele fosse plenamente participativo, não poderia
agendas às quais o “localismo” pretende se
contemplar as características específicas que
contrapor, já que em escala regional, nacional
definem qualidades e mazelas de cada peque-
ou global deixa de lhes fazer qualquer oposi-
na porção do território. Então, é preciso admitir
ção. Experiências de produção relativamente
a impossibilidade de que se faça jus a todas as
autônoma de habitações e vizinhanças nas
nuances da escala microlocal em discussões de
décadas de 1960 e 1970 abriram caminho
tal abrangência, em vez de ceder à “propensão
470
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Direito ao espaço cotidiano
ao gigantismo” (Schumacher, 1981) estimulada
texto. A primeira parte consistiu num exame
por uma aparente eficiência técnica e adminis-
de como o espaço cotidiano comparece nas
trativa. Além de anular qualidades microlocais
estruturas institucionais existentes, incluindo
e possibilidades de ação dos habitantes ao
marcos regulatórios, programas públicos habi-
longo do tempo, ela favorece as interferências
tacionais e práticas das prefeituras municipais.
sistemáticas de instâncias “superiores” no co-
Seu objetivo foi evidenciar em que medida ca-
tidiano – essa “mistificação profissional das
da uma dessas instâncias promove ou interdita
atividades cotidianas” (Turner, 1976, p. 26) por
as possibilidades de autonomia, considerando
administradores, sanitaristas, urbanistas, ar-
mecanismos participativos, estrutura de ges-
quitetos e afins – que certamente não garante
tão, incentivos a associações e cooperativas
maior justiça social e, ainda por cima, perpetua
de habitação e de construção, e o caráter mais
a dominação social na forma da tutela.
ou menos determinista das legislações quanto
No processo de discussão da temática
às formas urbanas e edificadas. Disso resultou
da habitação no PDDI-RMBH, entendemos que
um diagnóstico que, embora se refira a dados
uma saída possível para esse dilema seria um
colhidos na RMBH,2 pode ser lido como uma
planejamento metropolitano que, em vez de
análise qualitativa mais geral dos efeitos que
projetar esse ou aquele modo de vida, garantis-
a nova ordem jurídico-urbanística baseada na
se alguns limites à interferência das operações
noção de direito à cidade gerou até agora. A
de grande escala nas menores porções urbanas
segunda parte consistiu numa tentativa de es-
e, ao mesmo tempo, oferecesse condições favo-
truturar, mediante uma tipologia de espaços
ráveis para que essas porções se articulassem
cotidianos, as articulações futuras entre por-
entre si e com escalas mais abrangentes. Qual-
ções distintas e por vezes dispersas no territó-
quer espaço cotidiano numa metrópole sofre,
rio, mas que têm características semelhantes
com maior ou menor intensidade, impactos me-
quanto à inserção metropolitana e à resposta
tropolitanos produzidos por fenômenos como
aos impactos dela decorrentes.
dinâmica imobiliária, investimentos públicos,
grandes empreendimentos produtivos, condições ambientais ou estrutura de transporte e
mobilidade. O planejamento deveria ajudar a
criar uma relação de forças mais equilibrada entre essas escalas, removendo obstáculos a uma
Estruturas instituídas
e autonomia
no espaço cotidiano
maior autonomia microlocal, examinando como
instâncias de governança mais abrangentes
Uma característica que perpassa todas as ins-
podem apoiar ações nessa escala e ampliando
tâncias de regulação, planejamento e gestão
as possibilidades de constituição de redes entre
habitacional que examinamos nos estudos
espaços cotidianos microlocais.
para o PDDI-RMBH é o fato de mencionarem
A abordagem então se desdobrou
e até enfatizarem a participação popular e
em duas par tes, cujos resultados estão
a função social da cidade e da propriedade,
sintetizados nos dois próximos itens deste
mas não levarem esses princípios às últimas
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
471
Silke Kapp
consequências, nem reverterem rotinas prove-
seriam o instrumento mais importante para
nientes da tradição de produção heterônoma
que os municípios construíssem suas políticas
pública e privada.
habitacionais. No período dos estudos para o
A análise comparativa dos Planos Direto-
PDDI-RMBH (2009-2010), esses planos não
res de 22 dos 34 municípios da RMBH mostrou
estavam concluídos em nenhum município da
que a maioria foi elaborada ou revisada após
RM. Em contrapartida, quase todos os Planos
a aprovação do Estatuto da Cidade (2001) e
de Regularização Fundiária Sustentável (PRFS),
adere aos seus princípios e instrumentos. No
que deveriam se basear nos respectivos PLHIS,
entanto, talvez pelo fato de terem sido ela-
haviam sido elaborados em função de uma
borados em grande parte por terceiros e com
mudança na alocação de recursos federais que
participação social reduzida (ao menos os re-
estabeleceu a exigência do PRFS para acesso
gistros a esse respeito são escassos e surpre-
ao Programa de Aceleração do Crescimento
endentemente semelhantes entre si), os Planos
(Orientação operacional nº 12, de 30/10/2009).
Diretores trazem pouca articulação entre tais
Os Planos de Regularização da RMBH
princípios e as especificidades locais. Muitos
resultantes dessa antecipação seguem as fór-
destacam o incentivo a formas alternativas de
mulas de regularização consolidadas em Belo
construção, à criação de cooperativas, asso-
Horizonte, a partir dos princípios da função so-
ciações e sindicatos habitacionais autogestio-
cial da propriedade e do direito da população
nários e à capacitação de iniciativas coletivas
de permanecer nas áreas ocupadas. Remoções
por meio de assessoria técnica, sem explicitar
são recomendadas apenas em casos de risco
como isso seria implementado. Já as parcerias
ou quando há necessidade de desadensamen-
com o setor privado para a implementação de
to e implantação de infraestrutura. Em tese,
programas habitacionais são estimulados me-
famílias removidas devem ser reassentadas
diante operações urbanas consorciadas e flexi-
em áreas próximas, embora se saiba que isso
bilização de parâmetros de uso e ocupação do
nem sempre é possível e que a própria noção
solo. Alternativas de menor porte, mais pulveri-
“necessidade” de remoção também dê mar-
zadas do que os grandes empreendimentos pri-
gem a ações autoritárias. Os PRFS propõem
vados, quase não comparecem senão abstrata-
“cardápios” de instrumentos do Estatuto da
mente. Com relação à regularização jurídica de
Cidade, para que o corpo técnico-administra-
assentamentos consolidados, há uma tendên-
tivo (não a população) discuta mais tarde as
cia de reconhecimento do direito individual de
opções mais viáveis para cada assentamento:
propriedade plena, desconsiderando a titulação
delimitação e regulamentação de ZEIS, trans-
coletiva no caso de regularização por usuca-
ferência de título pela aplicação da Concessão
pião em imóveis privados, bem como a Conces-
de Direito Real de Uso, doação e Usucapião,
são de Uso Especial para Fins de Moradia e a
além de aprovação e registro de áreas repar-
Concessão de Direito Real de Uso, previstas no
celadas e legalização individual por emissão
Estatuto da Cidade.
onerosa de título.
Depois dos Planos Diretores, os Planos
No entanto, a enunciação genérica
Locais de Habitação de Interesse Social (PLHIS)
desses instrumentos nos PFRS e nos Planos
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Direito ao espaço cotidiano
Diretores, sem regulamentação por outras leis
de 100hab/km2). As secretarias de assistência
municipais, torna rara sua execução. As en-
social, meio ambiente, obras e planejamento
trevistas nas prefeituras apontaram questões
urbano dividem as atribuições para possibilitar
concretas nesse sentido. Quando perguntamos
algum acesso a programas federais e atender a
quais dos instrumentos do Estatuto da Cida-
demandas pontuais da população. Esse atendi-
de presentes nos respectivos Planos Diretores
mento se dá muitas vezes pela solução imedia-
têm sido utilizados de fato, as respostas foram
ta de casos de risco ou precariedade habitacio-
quase sempre evasivas. Muitos técnicos muni-
nal sem o acionamento de programas específi-
cipais estão convencidos de que quaisquer ins-
cos e de uma maneira que até reforça situações
trumentos que atacam o direito de propriedade
irregulares. Em muitos municípios, os técnicos
privada são inviáveis na prática. Assim, o Direi-
da prefeitura só vão a campo quando solicitado
to de Superfície e a Outorga Onerosa são con-
pelo setor de obras ou planejamento ou pela
siderados aplicáveis, mas medidas como o IPTU
vizinhança. Essas situações podem ser vistas
progressivo e outras que alterariam a lógica de
como uma maneira assistencialista de enfren-
especulação, gentrificação, vacância e irregula-
tar os problemas urbanos, mas, por outro lado,
ridade são descartadas. Segundo os técnicos,
indicam que os planos e os programas federais,
gerariam conflitos políticos e econômicos que
cuja estrutura é fundamentalmente a mesma
as administrações não estão dispostas a en-
para municípios de quaisquer tamanhos, não
frentar. Ao mesmo tempo, faltam experiências
correspondem à realidade administrativa e fi-
próximas que inspirem ações mais incisivas e
nanceira dos municípios menores. Ainda que o
aumentem a confiança na aplicabilidade de
estabelecimento de prazos para a elaboração
instrumentos jurídicos menos conservadores.
dos diversos planos municipais tenha decor-
Para vencer tais dificuldades e possibilitar uma
rido da “necessidade de que [o Estatudo da
execução justa dos planos seria necessário um
Cidade] não se transformasse imediatamente
processo de conscientização que incluísse a po-
em “lei que não pega” antes mesmo de ser
pulação interessada. Sua própria avaliação dos
experimentado” (Rolnik et al., s.d., pp. 33-34),
benefícios e prejuízos de cada instrumento do
os prazos acabam transformando os planos em
Estatuto da Cidade e as reinvindicações feitas
meros instrumentos de acesso a recursos. Em
a partir disso seriam cruciais para modificar as
vez de “leis que não pegam”, acumulam-se
práticas políticas e administrativas.
planos que não refletem a realidade urbana,
Outra questão evidenciada nas entrevis-
não têm reflexo nessa realidade e constituem
tas foi o descompasso entre programas fede-
apenas expedientes burocráticos sem nenhuma
rais, com suas agendas e pré-requisitos, e os
possibilidade de inovações locais e microlocais
problemas enfrentados pelas prefeituras no
a partir de uma participação ampla.
dia a dia. Em muitas delas não existe nenhum
Outro imenso entrave a transformações
órgão especificamente responsável pelas políti-
nesse sentido são os normativos da Caixa Eco-
cas habitacionais e urbanas (a RMBH inclui 14
nômica Federal. Não apenas inúmeras famílias
municípios com menos de 20 mil habitantes e
se engajam em programas participativos e
14 municípios – não os mesmos – com menos
depois são reprovadas na análise de crédito,
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473
Silke Kapp
como também os normativos induzem à uni-
providos de infraestrutura estão pulverizados e
formização das soluções técnicas e espaciais.
a verticalização contrasta agressivamente com
Dado que a Caixa toma os imóveis financia-
as construções existentes e com os hábitos da
dos por garantia, seus agentes privilegiam os
população. As prefeituras se veem diante de
processos e produtos que estão habituados a
um impasse, pois as propostas lhes chegam co-
financiar e fiscalizar, vale dizer, aqueles usuais
mo que em pacotes fechados e os técnicos des-
em empreendimentos com fins lucrativos. Co-
conhecem arranjos produtivos que envolvam
mo nos tempos do Banco Nacional de Habita-
as comunidades e viabilizem empreendimentos
ção, não se estruturou “qualquer ação signifi-
menores. Resta-lhes a implantação em novas
cativa para apoiar, do ponto de vista técnico,
áreas, mesmo quando a malha urbana existen-
financeiro, urbano e administrativo, a produção
te comportaria moradias em número suficiente.
de moradia ou urbanização por processos alter-
À medida que aumenta essa “sinergia”
nativos, que incorporassem o esforço próprio
entre capital privado e programas públicos,
e capacidade organizativa das comunidades”
a ideia da autogestão dos empreendimentos
(Bonduki, 2009, p. 74). A atual política nacional
pelos futuros moradores tem sido deixada de
inclui processos participativos na elaboração
lado. Muitas prefeituras parecem conhecer
dos planos urbanos e habitacionais e propõe
apenas os mutirões geridos pelo poder públi-
programas de autogestão, mas faltam arranjos
co, nos quais a participação da população nada
institucionais mais adequados a essa e outras
mais visa do que a reduzir custos. Belo Horizon-
formas alternativas de gestão. Tais arranjos
te é o único município da RMBH onde houve
são mencionados, mas, na prática, os recursos
empreendimentos autogestionários na década
continuam geridos pela Caixa, agente operador
de 1990 e, mais tarde, pelo Programa de Cré-
de todos os programas com recurso da União e
dito Solidário, mas não há previsão concreta de
agente financeiro da grande maioria.
continuidade dessa prática. Ela tem esbarrado
Quanto ao Programa Minha Casa Minha
num alto nível de burocratização e controle,
Vida, ele promove empreendimentos habita-
e é considerada de difícil execução pela Se-
cionais financiados com recursos públicos, mas
cretaria Municipal de Habitação, embora seus
propostos, planejados e executados por empre-
resultados sociais sejam assumidamente mais
sas privadas, à revelia de toda a ordem jurídica
positivos do que os da gestão pública. Assim,
instituída a duras penas para uma – ainda que
a previsão de que o PMCMV enfraqueceria os
relativa – democratização. Dado que as rotinas
movimentos sociais urbanos se confirma na
de produção das empresas são mais lucrativas
RMBH (Arantes e Fix, 2009). Assim como os
quando repetidas em grande escala, empre-
recursos do Programa de Aceleração do Cres-
endedores e construtores têm pressionado as
cimento destinados às favelas, o PMCMV tem
prefeituras para acatar empreendimentos de
gerado uma onda de produção heterônoma,
prédios de apartamentos com 500 unidades
que não potencializa, mas esfacela os proces-
(limite máximo do Programa). Esse pressupos-
sos de aprendizado para a autonomia iniciados
to é conflitante com a estrutura do espaço ur-
anteriormente, num período de pouquíssimas
bano de muitos municípios, onde lotes vagos
políticas habitacionais.
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Direito ao espaço cotidiano
Em suma, a análise no âmbito municipal
perspectivas de maior abertura nas instâncias
mostrou que ainda são escassos os instru-
que hoje tendem a promover uma massifica-
mentos para promover a autonomia ou, pelo
ção de soluções convencionais.
menos, ampliar uma participação mais efetiva. Há uma retórica de democratização, enquanto legislações e rotinas frequentemente
impedem que decisões sejam de fato tomadas
Tipologia de espaços cotidianos
pelos habitantes. Com as devidas ressalvas,
isso vale também para a infinidade de agentes públicos e privados envolvidos na questão
habitacional, de organismos internacionais a
movimentos sociais, de empresas a entidades
do terceiro setor e universidades. Seja qual
for o foco de uma entidade, o engajamento
Como já mencionado, um segundo desdobramento da abordagem da temática habitacional nos estudos para o PDDI-RMBH consistiu
numa tipologia de espaços cotidianos, isto
é, numa ferramenta conceitual para descrever diferentes situações típicas de moradia e
no tema da habitação traz ganhos peculiares,
ambiente urbano na RMBH. Seu objetivo é es-
tais como o acesso a recursos, a melhoria da
truturar as articulações futuras, tanto no pla-
imagem corporativa ou o incremento de capi-
nejamento metropolitano e municipal, como
tal político. No entanto, constatamos de mo-
em novas formas de planejamento pela popu-
do geral a predominância de uma abordagem
lação e na relação entre as diferentes escalas
convencional. A meta da regularização fundiá-
que isso implica.
ria é central, sem que se questione, por exem-
Uma tipologia é uma maneira de descre-
plo, o título de propriedade individual em
ver um conjunto de fenômenos organizando-
contraposição à possibilidade de propriedade
-os de acordo com suas características.3 A es-
coletiva. Ao lado da regularização, promove-
colha dessas características ou variáveis define
-se a produção de unidades habitacionais no-
a tipologia, isto é, a lógica de articulação entre
vas nos moldes dos clássicos conjuntos habi-
os tipos, que não é hierárquica, mas pode ter
tacionais horizontais ou verticalizados, tendo
diferentes níveis de generalidade ou especifi-
por pressuposto a gestão ou execução dos
cidade. Dada a diversidade dos espaços coti-
empreendimentos pelo capital privado. Até
dianos da RMBH, uma tipologia que refletisse
mesmo a porção mais consolidada dos movi-
cada um de seus meandros seria inútil, porque
mentos sociais pela moradia está afinada com
teria a mesma complexidade. Inversamente,
essa abordagem. Na contramão, encontramos
uma tipologia ordenada por alguns critérios
os movimentos sociais mais frágeis, a própria
universalmente aplicados a quaisquer espaços
sociedade civil não organizada, bem como al-
também significaria reduzir a realidade. Por
gumas instituições de pesquisa, que tentam
essa razão, procuramos extrair as variáveis
abordagens mais abertas e mais condizentes
mais decisivas a partir de dados do Censo, das
com o direito à cidade como direito de trans-
análises, entrevistas e oficinas, de bases car-
formar a cidade. O desafio seria conseguir
tográficas e aerofotogramétricas disponíveis
articular entre esses extremos, introduzindo
e de pesquisas acadêmicas existentes acerca
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475
Silke Kapp
dos espaços em questão (sobretudo estudos
O grupo denominado Conjuntos abrange
de caso). Cristalizou-se por fim um aspecto
as situações em que um planejamento centrali-
elementar, que se reflete nas formas visí-
zado define arruamento, parcelamento, equipa-
veis dos espaços cotidianos da RMBH, tanto
mentos e edificações numa única operação ou
quanto em seus processos de transformação e
em operações conjugadas. O empreendimento
suas potencialidades: o próprio grau de auto-
assim planejado e construído define, por si só,
nomia ou heteronomia da população no que
um ambiente urbano, uma vizinhança específi-
diz respeito às decisões sobre espaço urbano,
ca ou, enfim, um certo espaço cotidiano. Por-
incluindo o impacto das dinâmicas metropoli-
tanto, trata-se de um espaço que não resulta
tanas nesses espaços. A partir disso definimos
de um processo histórico ou orgânico de produ-
quatro grandes grupos, a cada um dos quais
ção, mas de deliberações feitas principalmente
corresponde um critério primário de diferen-
no momento do planejamento com o pressu-
ciação, que leva aos Tipos propriamente ditos,
posto de que, uma vez construído, o empreen-
elencados no Quadro 1.
dimento estará “pronto” e não precisará ser
Quadro 1 – Tipos de espaços cotidianos da RMBH
Conjuntos
Parcelamentos
Aglomerados
Moradias rurais
... são situações em que as decisões mais relevantes sobre a moradia e seu ambiente imediato são tomadas ...
... por uma instância única
(planejador, empreendedor)
num momento determinado
... em parte por uma instância
única num momento
determinado e em parte por
muitos indivíduos ao longo
do tempo
... por muitos indivíduos ao
longo do tempo
... por uma instância única ao
longo do tempo
Seu principal aspecto de diferenciação é...
... a faixa de renda dos
moradores
... o tamanho das parcelas
(lotes)
... o grau de consolidação
... a relação entre trabalho e
moradia
Essa diferenciação dá origem aos tipos:
(1) Conjunto de interesse
social
(4) Parcelamento de lotes
pequenos (< 360m2)
(7) Aglomerado frágil
(10) Unidade agrária familiar
(2) Conjunto popular
(5) Parcelamento de lotes
médios (360m2 a 1.000m2 )
(8) Aglomerado consolidado
(11) Unidade agrária
empregadora
(3) Conjunto de classe média
ou alta
(6) Parcelamento de lotes
grandes (> 1.000m2 )
(9) Aglomerado histórico
(12) Unidade rural não
produtiva
Fonte: PDDI-RMBH, Produto 6, 2010.
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Direito ao espaço cotidiano
modificado. Os empreendimentos desse grupo,
expulsão da população mais pobre. Já nos Con-
encontrados na RMBH, são sempre: grandes
juntos de classe média a alta a questão da lo-
(alguns com 5 mil habitantes ou mais), por isso
calização urbana se apresenta de modo inver-
mesmo implantados em áreas periféricas (que
so. Eles frequentemente abrem novas frentes
podem se tornar centrais em razão de um pro-
de expansão, inclusive externas ao perímetro
cesso posterior); destinados a um público numa
urbano previsto nos Planos Diretores dos muni-
faixa de renda específica, nunca a um público
cípios, em áreas rurais ou áreas de preservação
heterogêneo; promovidos pelo poder público
ambiental, mas tendem a criar sua articulação
ou pelo capital privado (nunca pelos futuros
urbana com a própria implantação, além de
moradores); formalmente homogêneos e até
gerar também novos Aglomerados frágeis em
monótonos; com espaços públicos e coletivos
suas proximidades, já que raramente preveem
predeterminados (funcionalistas); e regulariza-
moradias ou serviços para os trabalhadores dos
dos juridicamente ou com irregularidades de
quais dependem.
solução relativamente simples. Tudo isso vale
O grupo denominado Parcelamentos,
para os três tipos incluídos no grupo dos Con-
o mais comum na malha urbana da RMBH,
juntos: Conjunto de interesse social, Conjunto
abrange as situações em que a estrutura ur-
popular e Conjunto de classe média a alta.
bana e as parcelas com suas respectivas edifi-
Tais tipos se diferenciam entre si prima-
cações são decididas por instâncias diferentes
riamente pela faixa de renda do público ao
e em tempos diferentes. A estrutura urbana é
qual se destinam ou pelo qual são ocupados
fruto de um planejamento realizado por téc-
ao longo do tempo. Assim, por exemplo, uma
nicos e encomendado pelo poder público, por
característica decisiva para todos os espaços
um loteador privado ou até pelos próprios (fu-
cotidianos, a sua localização na metrópole, têm
turos) moradores. Já a parcela é uma porção
consequência muito distintas para os Conjun-
da terra urbana sobre a qual os proprietários
tos de interesse social e Conjuntos de classe
ou usuários dispõem, dentro das limitações
média a alta. Os primeiros, quando implanta-
postas pela legislação – mais ou menos efeti-
dos em periferias sem articulação urbana ten-
va – ou pela vizinhança. O critério primário de
dem a degradar rapidamente não apenas pela
diferenciação no grupo dos Parcelamentos é o
de falta de acesso a oportunidades de trabalho
tamanho das parcelas – lotes grandes, médios
e renda (que afeta igualmente áreas perifé-
ou pequenos – que também define muito de
ricas de outros tipos), mas também pelo fato
sua inserção na dinâmica urbana (como co-
de que o espaço é definido, restringe ao extre-
mentado adiante). Não foi adotada a distinção
mo as possibilidades de criação de trabalho e
primária de parcelamentos regulares e irregu-
renda por iniciativa dos próprios moradores. O
lares porque entre a situação de plena regulari-
desenvolvimento socioeconômico só se dá por
dade e a de total irregularidade os matizes são
iniciativa externa, que, via de regra, precisa ser
inúmeros. Também não foi utilizada a distinção
realizada ou estimulada pelo poder público, ou
primária por bairros populares, médios, de alto
então pela própria expansão da malha urba-
padrão e de luxo, como o faz a Fundação Insti-
na, mas que implica também uma ameaça de
tuto de Pesquisas Econômicas, Administrativas
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e Contábeis de Minas Gerais (IPEAD) no mo-
lotes. Assim, as parcelas absorvem, acomodam
nitoramento do mercado imobiliário formal de
e amortecem mudanças condicionadas por di-
Belo Horizonte. Como essa classificação se ba-
nâmicas urbanas mais amplas (o que se reflete
seia na renda média dos chefes de família, não
em preços de venda e aluguel, grau de ocupa-
registra o grau de heterogeneidade na renda
ção ou vacância, construção de barracos de
da população residente, que é o principal indí-
fundos, novas instalações comerciais, reformas
cio de integração ou segregação socioespacial.
ou degradação nas unidades, etc.), enquanto a
Cabe observar ainda que estão incluídos no ti-
estrutura urbana tende a permancer a mesma,
po Parcelamentos de lotes pequenos aqueles
até um ponto de colapso.
iniciados pela própria população, tais como as
Já o grupo denominado Aglomerados
ocupações por movimentos sociais organiza-
abrange situações em que a estrutura urbana
dos. Essas iniciativas têm reproduzido a lógica
tem um grau de flexibilidade mais próximo ao
dos parcelamentos formais, sempre na pers-
de suas parcelas (em muitos casos não formali-
pectiva de regularização posterior: as decisões
zadas como lotes). Isso inclui as cidades histó-
são tomadas num único momento e segundo
ricas, tanto quanto as ocupações mais recentes
um plano geral, que define lotes individuais de
que não tiveram planejamento técnico prévio.
propriedade privada.
A fluidez espacial e as possibilidades de nego-
Uma característica decisiva dos diferen-
ciação são maiores do que nos tipos do grupo
tes tipos de Parcelamentos é como são afeta-
parcelamentos: pedaços do terreno de um vi-
dos pela dinâmica urbana (sobretudo imobiliá-
zinho são usados como passagem, ventilação
ria) e, inversamente, afetam essa dinâmica.
ou depósito, e eventualmente comprados ou
Dado que as edificações nas parcelas estão a
alugados; o lote privado tem seus limites rigo-
cargo de inúmeras iniciativas e decisões indi-
rosamente definidos apenas com a ação exter-
viduais, que se fazem ao longo do tempo, há
na de regularização. Assim, os aglomerados de
certa inércia em relação a novas ações plane-
todos os tipos se caracterizam, não tanto pela
jadas pelo poder público e em relação à pró-
ausência total de planejamento, mas por plane-
pria produção capitalista do espaço em gran-
jamentos contínuos, mais ou menos fragmenta-
de escala. É mais difícil alterar parâmetros
dos ou coletivos. Um dos maiores atrativos das
urbanísticos, arruamentos ou espaços públicos
cidades históricas está justamente na diversi-
em áreas parceladas do que em áreas de ex-
dade de seus espaço urbanos, nas surpresas e
pansão, pois as alterações na estrutura urbana
peculiaridades que proporcionam: em lugar de
implicam acordos com muitos proprietários. Já
malhas geométricas regulares e cursos d’água
a ocupação das parcelas tem, pelo contrário,
retificados, tem-se traçados surgidos em fun-
relativa flexibilidade, especialmente quando se
ção do relevo e dos percursos; em lugar de um
trata de parcelas de dimensões médias (entre
espaço público indiferente aos usos de seus
360m2 e 1000m2). Elas possibilitam mudanças
lotes, tem-se espaços públicos que reagem a
de usuários e usos, alteração e substituição das
esses usos.
edificações, adensamento, verticalização e até
As vilas e favelas da RMBH apresentam,
alterações subdivisão ou remembramento de
em muitos casos, qualidades semelhantes.
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Direito ao espaço cotidiano
A grande diferença entre os apreciados
infraestrutura, o risco e a vulnerabilidade so-
núcleos históricos e as depreciadas ocupa-
cial. Cabe perguntar então se, no século XXI,
ções informais é a disponibilidade de tempo,
daremos continuidade a esse padrão ou se há
recursos e conhecimento na constituição de
outros procedimentos possíveis, para além de
sua estrutura urbana. Núcleos históricos, mes-
um processo técnico convencional. Isso signi-
mo quando surgidos com características de
ficaria proteger os contextos microlocais do
urbanidade moderna, isto é, como centros de
“atropelamento” pela dinâmica urbana mais
produção, distribuição e reprodução da ativi-
abrangente e, ao mesmo tempo, seria o oposto
dade mineradora (Monte-Mór, 2001), puderam
da preservação inerte do patrimônio histórico,
dispor de grande parte dos conhecimentos e
que desemboca facilmente em congelamento
recursos disponíveis no período de seu desen-
e supressão dos processos múltiplos de desen-
volvimento e tiveram um ritmo de crescimento
volvimento microlocal. Em lugar de congelar a
mais compatível com decisões, negociações e
cidade histórica e “tecnificar” a favela, talvez
ajustes feitos ao longo do tempo. Na RMBH
haja maneiras para que diversidade e imprevi-
do século XX, pelo contrário, esse desenvolvi-
sibilidade existam sem precariedade.
mento paulatino e aberto ficou reservado aos
A relativa dispersão espacial das Mora-
pobres e exposto a toda espécie de cataclis-
dias Rurais, o último dos quatro grande grupos
mas, enquanto os recursos para a urbanização
da tipologia em questão, faz com que as de-
se concentraram em instâncias que operam via
cisões de um indivíduo ou uma família acerca
planejamento técnico centralizado, tais como
do espaço cotidiano pouco ou nada afetem
o poder público e o grande capital privado.
seus vizinhos: são situações em que uma ins-
Ações e programas públicos para a me-
tância única (a família ou um grupo pequeno)
lhoria de aglomerados consolidados e a conso-
produz o espaço ao longo do tempo. A forma
lidação ou eliminação de aglomerados frágeis
como se dá essa produção está diretamente
têm sido reunidos sob a bandeira da regulari-
vinculada à propria relação entre a moradia e
zação fundiária, que também abrange lotea-
o trabalho rural, mais do que ao tamanho da
mentos irregulares e conjuntos degradados. A
unidade rural em que a moradia está implan-
escolha dessa bandeira tem a vantagem de re-
tada. Embora os dados que obtivemos nas pre-
tirar as ações de um contexto ideológico assis-
feituras e em trabalhos acadêmicos acerca das
tencialista. Não se trata de “ajudar os pobres”,
moradias rurais sejam muito mais escassos do
mas de tentar remediar um processo histórico
que os dados acerca das moradias urbanas, é
de supressão dos direitos de grande parte da
possível afirmar que muitos municípios da RM-
população. No entanto, a noção de regulariza-
BH preservam tradições rurais. Há zonas urba-
ção também dá margem a um entendimento
nas com características de cidades pequenas,
por vezes formalista e burocratizado dos pro-
interioranas, onde os habitantes zelam, eles
blemas reais. Irregularidade, como situação ju-
mesmos, pela qualidade do espaço cotidiano
rídica, não é o problema mais importante, nem
e organizam-se coletivamente com mais faci-
é exclusividade dos pobres. Mais importante é
lidade do que nos grandes centros. Contudo,
sua conjunção com a precariedade, a falta de
a questão da moradia rural vai muito além de
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uma preservação de tradições antigas, romanti-
a partir deles; e de um conjunto de interfaces
zadas em hotéis-fazenda. Trata-se, na verdade,
digitais abertas a toda a população para au-
de possibilitar a criação de novas relações en-
mentar a disponibilidade e a troca de informa-
tre campo e cidade na RMBH, como, aliás, já
ções. A tipologia deveria facilitar a cooperação
vem ocorrendo em alguns municípios. Projetos
entre prefeituras e, sobretudo, a organização
de assentamento e acampamentos, assim co-
coletiva dos habitantes, já que lugares de mes-
mo os projetos “rururbanos” das Brigadas Po-
mo tipo tendem a compartilhar problemas, in-
pulares, apontam interações entre o rural e ur-
teresses e possibilidades de ação.
bano de caráter emancipatório. Como constata
De qualquer modo, considero que a com-
Silva (2008), é patente a intenção de um “re-
preensão ampliada (não restrita aos técnicos)
torno ao campo” de parte da população que
das relações entre os diferentes espaços cotidia-
em décadas passadas foi forçada a migrar para
nos e deles com operações e dinâmicas metro-
os centros urbanos. Evidentemente, essa po-
politanas mais amplas seria essencial à possibi-
pulação, que passou pela experiência urbana,
lidade de maior autonomia coletiva dos habitan-
não se restringirá a reproduzir antigas tradi-
tes da cidade numa articulação metropolitana
ções rurais, mas poderá constituir novos modos
congruente e politicamente expressiva. Em pes-
de vida e, portanto, também novas formas de
quisas de campo nas vilas, favelas e periferias
moradia. Ao mesmo tempo, há na RMBH 519
de Belo Horizonte, realizadas mais recentemen-
grandes propriedades improdutivas passíveis
te com a mesma equipe, vem se tornando cada
de desapropriação, além de inúmeros parcela-
vez mais evidente que boa parte da população
mentos vagos e imensas reservas de terra de
ignora como aqueles espaços se constituem, os
empresas mineradoras que devem ser incluídas
direito que – com todas as limitações – a legis-
no planejamento.
lação atual lhes confere, bem como a existência
de muitos outros grupos em situações espaciais
semelhantes. A construção de canais de compar-
Uma observação final
tilhamento entre esses grupos a partir de uma
estrutura capaz de criar conexões pertinentes –
a tipologia é uma proposta nesse sentido, mas
Nos estudos para o PDDI, baseamos na tipo-
haverá outras – pode criar uma base comum
logia acima resumida as ações da “Política
de informações acerca do território e uma ba-
metropolitana integrada de direito ao espaço
se comum de acesso a essas informações no
cotiadiano: moradia e ambiente urbano”, que
território, favorecendo tanto as atuações das
constituiu o produto final do trabalho da equi-
prefeituras, quanto as atuações de associações
pe. Entre outras coisas, essa proposta de polí-
de moradores e entidades afins, inclusive para
tica incluiu: um acordo metropolitano de regu-
discutir com elas (as prefeituras) e em outros fó-
lamentação de instrumentos urbanísticos, que
runs quais serão os rumos da cidades. Grupos
poderiam ser estruturados conforme os tipos
locais poderiam decidir diretamente sobre a
em questão; um programa de apoio à gestão
utilização dos espaços públicos, as intervenções
dos espaços cotidianos, também estruturado
de melhoria numa vizinhança, os padrões
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Direito ao espaço cotidiano
urbanísticos, etc., na pequena escala e poderiam
rumo a um direito mais concreto à cidade e rom-
se inserir em processos mais abrangentes ten-
per a inércia de uma tradição que, por ora, não
do maior conhecimento e clareza na defesa de
incorporou esse direito nas suas práticas e roti-
seus interesses. Mesmo que (ainda) não haja ne-
nas, mesmo que muitos de seus agentes o tenha
nhuma revolução, poderíamos alcançar ganhos
incorporado em suas intenções.
Silke Kapp
Arquiteta e doutora em Filosofia. Professora associada da Escola de Arquitetura da Universidade
Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, Minas Gerais, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Nomes dos membros da subequipe envolvida com a área temá ca, bem como os nomes dos
coordenadores gerais do PDDI-RMBH e alguns dados sobre seu contexto ins tucional, serão
inseridos posteriormente, dependendo do parecer. O material apresentado deste ponto em
diante é fruto do trabalho conjunto da equipe, mas eventuais inconsistências ou lacunas da
interpretação e do formato dados ao material neste ar go se devem exclusivamente à autora
(incorporei trechos de textos dos estudos do PDDI-RMBH, desde que redigidos de próprio
punho já naquela ocasião). Os estudos da temá ca habitacional para o PDDI-RMBH abrangeram
também outras questões que não são discutidas aqui, tais como: redução da vacância,
regularização fundiária, tratamento de Zonas Especiais de Interesse Social, áreas de risco e áreas
centrais, etc.
(2) Além das fontes documentais, as informações foram ob das mediante entrevistas em todas as
prefeituras municipais e oficinas par cipa vas. As entrevistas foram realizadas entre março e
maio de 2010, sempre com técnicos responsáveis pela polí ca urbana e habitacional. As oficinas
participativas foram conduzidas pela subequipe de Mobilização Social do PDDI-RMBH, não
sendo especificamente dedicadas aos temas habitação e espaço co diano. Mas elas fornecerem
dados adicionais, permi ram conhecer posturas de outros atores ins tucionais e reforçaram
muitos dos relatos ob dos nas entrevistas.
(3) No campo da arquitetura e do urbanismo, o conceito de tipologia é comumente aplicado a
edificações – e até erroneamente confundido com a noção de modelo –, enquanto a descrição
de ambientes urbanos se faz por morfologia, isto é, uma classificação das formas urbanas
(cf. Cataldi et al., 2002). Contudo, a tipologia proposta contempla também processos e
caracterís cas que não se refletem necessariamente nas formas sicas, como taxa de vacância
das edificações, arranjos produ vos ou irregularidade fundiária.
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Silke Kapp
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Texto recebido em 7/out/2011
Texto aprovado em 22/abr/2012
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 463-483, jul/dez 2012
483
Desafios para implementação de Zonas
Especiais de Interesse Social em Fortaleza
Challenges to the implementation
of Social Housing Zones in Fortaleza
Renato Pequeno
Clarissa F. Sampaio Freitas
Resumo
Apesar da crescente favelização de Fortaleza, ao
longo do tempo, os processos de planejamento
urbano não formularam soluções para enfrentá-la. Para tanto contribuem: a histórica dissociação
entre as políticas urbana e habitacional, as interferências de diferentes esferas de governo, a fragilidade institucional e a reduzida inter-setorialidade.
Neste trabalho, apresentam-se: um panorama geral
da favelização do município a partir de dados dos
censos de favelas; uma discussão da revisão do
Plano Diretor de Fortaleza, segundo os princípios e
diretrizes do Estatuto da Cidade; os desafios decorrentes da inserção das zonas especiais de interesse
social como instrumento da política urbana local,
elencando-se processos associados aos papéis dos
agentes envolvidos e a necessidade de aprofundamento sobre as condições urbanísticas e habitacionais nestas áreas.
Palavras-chave: favela; plano diretor; estatuto da cidade; zonas especiais de interesse social;
Fortaleza.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012
Abstract
Despite the urban informality that has been increasing
in the city of Fortaleza (Northeastern Brazil) in
recent decades, the local planning policies have not
developed solutions to deal with the problem. Among
the causes we can mention: the historical dissociation
between housing and urban policies, the interference
of different government spheres, lack of institutional
capacity, and deficiencies in the integration among
different sectors. In this paper we present: a portrait
of the urban informality phenomenon in Fortaleza,
a review of the political process that updated
Fortaleza’s Master Plan according to the principles
of the City Statute; the challenges associated with
the implementation of the Social Housing Zones
delimited by the Master Plan, including an analysis of
the role of the different stakeholders in the process
and the necessity to deepen the knowledge about the
urban and housing conditions of these Zones.
Keywords: favela (slum); master plan; city statute;
social housing zones; Fortaleza.
Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
Introdução
princípios e diretrizes presentes nas políticas
setoriais de desenvolvimento urbano e habitacional, bem como nos programas a elas as-
Um olhar atento sobre o acelerado crescimen-
sociados. Por outro, na escala local, a partir de
to da favelização na cidade de Fortaleza indi-
manifestações oriundas de bairros e comunida-
ca a presença das condições mais precárias
des que compõem a cidade, cuja articulação e
de moradia nas áreas de ocupação irregular.
integração passam a compor ações integradas
Em resposta a essa problemática, observa-se
dos movimentos sociais e das demais formas
que a atuação do Estado ao longo das últimas
de organização da sociedade civil. Com isso,
décadas tem sido insuficiente, denotando-se,
o espaço urbano assume sua condição como
como uma das causas maiores, a dissociação
palco de lutas entre os atores sociais que o
das políticas urbana e habitacional. Com isso,
compõem, fortemente marcado pelas desigual-
retarda-se a adoção de medidas efetivas que
dades sociais derivadas das relações de força
contribuam com a solução do problema, adian-
entre os mesmos (Correia, 1995).
do-se o enfrentamento da questão fundiária.
Com o intuito de aprofundar essa discus-
Ainda que se trate de processo vigente
são, adota-se neste trabalho como objeto de
nas demais cidades brasileiras, em Fortaleza a
estudo o processo de revisão do Plano Diretor
produção da cidade informal assume contor-
de Fortaleza (PDFor), ocorrido ao longo da dé-
nos específicos devido à forma como o plane-
cada de 2000. Utiliza-se a inclusão de zonas
jamento urbano é implementado ao longo de
especiais de interesse social como fio condutor
sua história, evidenciando-se a superposição
para sua análise, visto que as mesmas assumi-
de papéis dos atores envolvidos em virtude da
ram papel de destaque no processo como um
confluência de seus interesses.
todo, configurando-se em campo de disputas
Via de regra, os planos resultantes desses
entre os agentes sociais envolvidos. Tratando-
processos findam por não serem implemen-
-se de inovação na política urbana local, bus-
tados, configurando-se em subterfúgios que
ca-se reconhecer os elementos que possam
garantem a manutenção do status quo carac-
levar à sua subutilização, bem como aqueles
terístico de uma cidade com marcas evidentes
que venham a superestimar sua efetividade
de desenvolvimento desigual (Smith, 1988):
como instrumento das políticas locais urbana
concentração de investimentos, centralização
e habitacional.
de poder, diferenciação de suas partes na for-
Como procedimentos metodológicos,
ma como se dá o atendimento às demandas e
além do acompanhamento do processo como
desconsideração da diversidade social presente
urbanista e pesquisador, foram realizadas: lei-
no espaço.
turas de relatórios técnicos; entrevistas com
Todavia, é possível reconhecer um qua-
atores sociais envolvidos; trabalhos de campo
dro recente de mudanças, dada a emergên-
em áreas especificas associadas à capacitação
cia de novas dinâmicas urbanas vinculadas
de lideranças comunitárias; estudos de caso
a processos advindos de frentes diversas: por
sobre o conteúdo urbanístico de áreas selecio-
um lado, desde a escala nacional, a partir dos
nadas segundo as tipologias socioespaciais que
486
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012
Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
compõem a estrutura intraurbana metropolita-
ocupação com vistas a encaminhar solicitação
na de Fortaleza (Pequeno, 2009).
de recursos junto ao Banco Nacional de Habi-
Este trabalho se subdivide em três partes:
tação (BNH), numa das primeiras iniciativas de
a primeira contextualiza a favelização da cida-
associar a política municipal de habitação à po-
de. Em seguida, discute-se a necessidade de
lítica de desenvolvimento urbano. Assim, data
interfaces entre as políticas urbana e habitacio-
de 1973 o primeiro levantamento de favelas de
nal no município ao longo das últimas décadas.
Fortaleza, quando foram identificadas 81 fa-
Por fim, analisa-se a revisão do plano diretor,
velas, somando 34 mil domicílios onde viviam
investigando-se as perspectivas que se abrem
mais de 205 mil pessoas, correspondendo a
a partir das zonas especiais de interesse social
cerca de 20% da população do município.1
como instrumentos de planejamento e gestão
No primeiro plano de desfavelamento
do solo urbano com vistas à urbanização de fa-
proposto pela Fundação do Serviço Social de
velas e regularização fundiária.
Fortaleza, 32 áreas (14.500 famílias) seriam
alvo de erradicação total, em sua maioria associadas à implantação do sistema viário prin-
Dinâmicas associadas
ao crescimento da favelização
em Fortaleza
cipal. A princípio, pretendia-se reassentá-las em
grandes vazios periféricos situados ao sul e ao
sudoeste do município. Outras 49 favelas, onde viviam mais de 19.700 famílias, seriam alvo
de programas de renovação e remanejamento,
A ilegalidade urbana, quando associada às
observando-se a possibilidade de permanência
condições precárias de moradia se coloca como
desde que houvesse ações de recuperação e
um problema histórico da produção do espa-
remanejamento das unidades subnormais (For-
ço intraurbano da capital cearense. Castro, ao
taleza, 1973).
analisar a planta de Fortaleza de 1887, indica
Previa-se, na época, a aquisição de gran-
que 30% das famílias viviam em choupanas de
des glebas a serem parceladas, com objetivo de
palha nas proximidades da faixa de praia e às
destinar para cada família lotes de 120 metros
margens de riachos, num claro indício de faveli-
quadrados, além da indenização vinculada à
zação (Castro, 1976).
remoção da antiga moradia. Chama atenção
A acelerada expansão das áreas de
neste plano de desfavelamento a compreensão
ocupação da cidade, desde meados do século
da possibilidade de urbanização e permanência
XX, vinculada aos fluxos migratórios prove-
de muitas das favelas cadastradas. Pretendia-
nientes do Sertão nordestino, motivados pe-
-se, ainda: a construção de módulos sanitários,
la estiagem, levou ao comprometimento dos
a difusão da autoconstrução tecnicamente as-
recursos naturais, dado que as famílias não
sistida, a implantação de redes de infraestrutu-
dispunham de condições para adquirir terreno
ra e equipamentos sociais, porém não se fazia
ou moradia.
qualquer menção à regularização fundiária.
Esse crescimento da favelização levou a
Todavia, grande parte dos conjuntos
que o poder local contabilizasse as áreas de
implantados pelo BNH não teve a população
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Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
desses assentamentos precários como público-
Algumas iniciativas vieram a ser imple-
-alvo, o qual foi redefinido por problemas as-
mentadas atendendo ao reassentamento perifé-
sociados à inadimplência (Azevedo e Gama,
rico, em parte associadas aos novos programas
1982). Além disso, optou-se pela implantação
criados pelo BNH, específicos para populações
de programas habitacionais em glebas mais
removidas de áreas de ocupação. Todavia, com
distantes do centro, situadas em zonas de tran-
o fim do BNH, o empobrecimento se acentuou
sição urbano-rural, tanto em Fortaleza, como
tornando a favela uma forma predominante de
em outros municípios da Região Metropolitana
moradia dos mais pobres, expandindo-se o mer-
(Maracanaú e Caucaia). Disso decorreu a co-
cado informal de terrenos ditos ”de prefeitura”
nurbação ao sul e ao oeste, assim como a es-
para aquisição e posterior construção. Em 1991,
peculação imobiliária, valorizando-se terrenos
um novo censo de favelas (Figura 1) foi realiza-
entre o centro e as novas periferias, além da
do pela Cohab-CE, quando foram identificadas
definição de frentes de expansão ao leste para
314 favelas, com 108 mil famílias, cerca de 30%
o setor imobiliário formal.
da população de Fortaleza (Ceará, 1991).
Figura 1 – Fortaleza: localização das favelas –1991
Fonte: organização de Pequeno, 2009.
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012
Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
Nessa última data, já se detectava a
formação de pequenos núcleos de favelas nos
setorial, sem que as prefeituras tivessem se
preparado para assumir tal tarefa.
municípios vizinhos de Caucaia e Maracanaú,
No caso de Fortaleza, as práticas as-
situados nas áreas verdes dos conjuntos habi-
sistencialistas e clientelistas conduzidas pela
tacionais e nas margens de rios, riachos e la-
Fundação de Serviço Social, remanesceram di-
goas. Além disso, a partir desse censo é possí-
retamente vinculadas ao gabinete do Prefeito,
vel verificar a forma como a favelização passa
através da Comissão Especial para Implantação
a interferir na estruturação da cidade a partir
de Programas Habitacionais de Interesse Social
de sua concentração nas faixas litorâneas e ao
(Comhab). Nesse período, pequenos conjun-
longo dos cursos d´água e lagoas, bem como a
tos foram construídos em regime de mutirão,
configuração de áreas contínuas nas periferias
tendo como similaridades: um mesmo projeto
e pequenos fragmentos que se disseminam nas
arquitetônico, as infraestruturas e a adoção de
partes intermediárias.
títulos de concessão precários para fins de mo-
Como reflexo desse levantamento, o Go-
radia de curto prazo.
verno do Estado, através da Cohab-CE e diante
Todavia, ao final dessa década, Fortale-
da possibilidade de obtenção de recursos junto
za passou a tomar parte do Programa Habitar
à Caixa Econômica Federal, através do Promo-
Brasil (HBB), financiado pelo Banco Interame-
rar, passou a conduzir um programa especial de
ricano de Desenvolvimento (BID) e pela Caixa
urbanização de favelas tendo claramente como
Econômica Federal (CEF). Com o intuito de
critérios de escolha: a abertura de eixos viários,
favorecer a municipalização das políticas ha-
a adequação do uso em margens de recursos
bitacionais de interesse social, esse programa
hídricos, especialmente vinculados às interven-
trazia em seu conteúdo duas linhas de ação: o
ções urbanas em setores de renda média-alta.
desenvolvimento institucional e a urbanização
O escopo desses projetos incluía, além de infra-
de assentamentos subnormais. Realização de
estrutura e de equipamentos sociais, a constru-
cadastros, formulação de políticas e programas,
ção de casas em mutirão para famílias removi-
composição de cadernos de normas específicas
das por motivos diversos: densidade excessiva,
para HIS, contratação de projetos, capacitação
ordenamento das vias internas, saneamento,
de técnicos, aquisição de equipamentos, tudo
2
drenagem e risco ambiental.
isso fazia parte desse programa, que permane-
Ao longo da década de 1990, o perver-
ceu na Prefeitura entre 1999 e 2006, visto que
so desmonte das instituições responsáveis
o mesmo foi incorporado pelo Ministério das
pela implementação da política habitacional
Cidades em 2003.
de interesse social em todo o Brasil (Cardoso,
Entretanto, poucos foram os benefícios
2001) trouxe como efeito, no âmbito estadual,
obtidos com o HBB, visto que a questão da
a extinção da Cohab-CE, transferindo-se aos
moradia não chegou a sensibilizar os gestores
municípios a responsabilidade pela provisão de
municipais no período de 1993 a 2004, apesar
moradia. Seguindo o receituário neoliberal em
das intensas pressões dos movimentos sociais.
suas reformas administrativas, o Governo Esta-
Fato é que os recursos obtidos finda-
dual desmontou a maior parte de sua estrutura
ram por ser utilizados para a contratação de
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Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
serviços de consultoria, os quais em nada con-
dissociação entre planejamento e gestão, re-
tribuíram para o desenvolvimento institucional
velando a necessidade de integrar as políticas
e muito menos para estabelecer uma base de
urbana e habitacional.
dados que permitisse um diagnóstico preciso
da situação da moradia em Fortaleza. Porém,
em fins de 2004, ocorre a criação da Fundação
Habitacional de Interesse Social de Fortaleza
(Habitafor), substituindo a Comhab. Ainda que
voltadas para as diversas formas de moradia
Interfaces entre as políticas
urbana e habitacional
de interesse social
precária, as ações empreendidas por essa Fundação vêm sendo focalizadas nas áreas de fa-
Alvo de diversos processos de planejamento
vela em situação de risco ambiental, considera-
urbano, Fortaleza teve, ainda em meados do
das como os setores mais vulneráveis no aten-
século XIX, a formulação de planta urbanís-
dimento com a provisão de moradia (Fortaleza,
tica com viés embelezador da área central.
2001). Ao priorizar as áreas de risco, reduz-se
Em seguida, nos anos 1930 e 1940, foram
substancialmente o alvo de intervenção, dimi-
formuladas propostas de estruturação viária,
nuindo a dimensão do problema a ser enfren-
estabelecendo-se as direções para a expansão
tado, não havendo qualquer critério de escolha
da cidade.
3
para a intervenção.
A partir dos anos 1960, passaram a vi-
Até aqui, a maior parte das famílias foi
gorar proposições com a roupagem de plano
removida com o posterior reassentamento em
de desenvolvimento integrado, definindo dire-
edifícios multifamiliares de baixa altura e alta
trizes setoriais diversas nas escala local e me-
densidade. Diante do que vinha sendo realiza-
tropolitana. Décadas depois, no início dos anos
do esses projetos inovam nos seguintes aspec-
1990, deu-se a elaboração do Plano Diretor
tos: inclusão de cômodo para uso comercial; di-
de Desenvolvimento Urbano (PDDU), preten-
ferenciação de casas pelo número de dormitó-
samente reformista, porém inexequível, visto
rios; redução dos espaços comuns, evitando-se
que nem os meios foram viabilizados, nem os
gastos condominiais. Entretanto, alguns aspec-
procedimentos para implementação dos instru-
tos negativos podem ser apontados: dimensões
mentos foram elaborados.
reduzidas dos compartimentos; precariedade
Verifica-se que, apesar das diferentes
dos acabamentos; densidade excessiva de
abordagens adotadas para os processos de pla-
ocupação das áreas de reassentamento; forma
nejamento urbano empreendidos ao longo do
de tratamento dos espaços livres; segregação
século XX, alguns aspectos negativos podem
em relação ao entorno.
ser mencionados como recorrentes e comuns a
Em seus primeiros anos, constata-
todos: sua realização por consultores externos
-se que o modelo de gestão adotado pela
ao corpo funcional do município, desperdiçan-
Habitafor apresenta limitações, reduzindo
do oportunidades de promover a formação de
o impacto de suas ações, explicitando a frá-
recursos humanos municipais; a elaboração de
gil inter-setorialidade na esfera municipal, a
diagnósticos superficiais, os quais induziram
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Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
soluções inadequadas à realidade local; as
município em que a favela e o vazio tomam
proposições com caráter generalista, predomi-
parte da paisagem, em seus diferentes ângulos,
nando diretrizes de planejamento sob a for-
tornava-se de fácil assimilação a aplicação do
ma de recomendações em linguagem jurídica
Estatuto da Cidade.
e índices paramétricos homogeneizantes que
Cedendo às pressões da sociedade civil
desconsideraram a diversidade sociocultural
organizada, a Prefeitura Municipal promoveu
com a qual o espaço intraurbano vem sendo
a contratação de consultores externos prove-
produzido; a exclusão da cidade informal, ine-
nientes do quadro docente da Universidade
xistindo ações voltadas para seu enfrentamen-
Federal do Ceará (UFC), compondo equipe mul-
to, indicando a dissociação entre a política ur-
tidisciplinar classificada com notório saber, com
bana e habitacional, apesar do ritmo acelerado
fácil diálogo com os diferentes agentes sociais,
com que se deu o crescimento da favelização
para a realização da revisão do PDDU. Alegava-
na cidade.
-se, na época, que, dada a reforma administra-
Com isso, desde a discussão dos conteú-
tiva municipal, seus quadros encontravam-se
dos do Projeto de Lei do Estatuto da Cidade, ao
desfalcados, notadamente desde a extinção do
final dos anos 1990, verificou-se a necessida-
Instituto de Planejamento Municipal (IPLAM)
de de revisão do plano diretor municipal tendo
em 1999, ficando a coordenação do processo
como questão norteadora a busca por proposi-
sob o encargo da Secretaria de Infraestrutura.
ções para a questão da moradia. Esta passou a
Todavia, simultaneamente, o executivo
tomar parte da agenda dos movimentos sociais
municipal mantinha, em paralelo, a revisão
urbanos locais, estimulados pelas ações de
da lei de uso e ocupação do solo, visando à
exigibilidade de direitos coordenadas pelas or-
liberação de gabarito em determinados eixos
ganizações não governamentais e associações
viários, favorecendo sobremaneira o mercado
classistas. Tal processo se intensificou em 2001,
imobiliário. Com isso, os consultores anterior-
desde a aprovação da Lei 10.257, ampliando-se
mente convocados para a revisão do PDDU re-
as articulações pró-elaboração de novo plano
tiraram-se do processo, desfazendo a equipe da
diretor, em que fosse garantida a inserção de
qual a universidade tomava parte, sendo essa
princípios norteadores e instrumentos associa-
substituída por outros consultores oriundos de
dos à reforma urbana.
escritórios de arquitetura e, em grande parte,
Para tanto, o papel das ONGs apoiadas
associados ao ramo da construção civil.
por setores progressistas das universidades
Conduzido ao longo de três anos, esse
públicas na capacitação dos atores sociais
processo de planejamento foi marcado por
merece ser destacado. Com o uso de dinâmi-
manifestações da parte da sociedade, que co-
cas inovadoras, ampliou-se o conhecimento
brava transparência e participação. Enviado
por parte dos setores populares a respeito dos
em fins de 2004 à Câmara dos Vereadores pa-
instrumentos da política urbana, passando-se
ra votação, o projeto de lei sob a denominação
a reconhecer sua pertinência como estratégias
de Plano Diretor de Fortaleza (PDFor) apre-
de combate à especulação imobiliária e pro-
sentava como principais problemas técnicos:
moção da regularização fundiária. Afinal, num
a desconsideração da escala metropolitana; a
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Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
adoção de dados ultrapassados no diagnósti-
Graças à histórica realização de progra-
co; o uso genérico dos instrumentos do estatu-
mas de sensibilização e capacitação de lide-
to, sem localizá-los.
ranças do movimento popular, bem como à
Como raiz desses problemas, é possível
recente experiência de reação contra o autori-
reconhecer o não enfrentamento da questão
tarismo e tecnocracia contrárias ao novo ideá-
habitacional por parte dos gestores e da equipe
rio das práticas de planejamento participativo,
contratada, dado que os momentos de debate
esse novo processo não se realizou de forma
foram meros exercícios de tecnocracia volta-
avassaladora sobre as entidades comunitárias
dos para projetos urbanos. Ao evitar quais-
e instituições não governamentais.
quer mecanismos de participação popular, os
Fato é que o debate em torno dos ins-
responsáveis pela elaboração do plano deram
trumentos e dos índices urbanísticos foi es-
elementos para que a sociedade civil entrasse
tendido. Porém, na derradeira oportunidade
com ação junto ao ministério público pedindo
para discussão dos conteúdos, ficou evidente
sua anulação, bem como para que a nova ges-
a construção de acertos políticos entre o poder
tora municipal retirasse o projeto de lei da câ-
público municipal e os empresários do mercado
mara municipal, consolidando sua invalidação.
imobiliário, respaldados por setores dos movi-
Cumpre aqui apontar que, paralelamente à revisão do PDDU, dava-se a elaboração
mentos sociais que passaram a tomar parte da
gestão municipal.
da política municipal de habitação, bem como
Passados dois anos na Câmara Muni-
de diversas ações integradas através do HBB.
cipal, somente em março de 2009, a tramita-
A ausência de inter-setorialidade entre as polí-
ção do projeto foi concluída, culminando com
ticas urbana e habitacional deve ser reiterada,
sua aprovação, completando-se oito anos de
bem como os malefícios decorrentes da contra-
revisão do Plano Diretor. Ressalta-se que nes-
tação de serviços externos de consultoria.
se intervalo, a política urbana municipal ficou
Posteriormente, uma nova tentativa de
vulnerável a intervenções do setor imobiliário
revisão do plano veio a ser feita, remanes-
privado e dos próprios executivos estadual e
cendo porém alguns problemas já vivenciados
municipal, favorecendo projetos desconectados
anteriormente. Mais uma vez optava-se pela
de processos de planejamento.
contratação de consultores com dispensa de li-
Desde então, aguarda-se a implemen-
citação, desta vez sob a coordenação da Secre-
tação dos instrumentos inseridos no PDFor,
taria de Planejamento. Além disso, mantinham-
recaindo-se todavia em algumas dinâmicas
-se reduzidos os momentos de participação da
que comprometem o planejamento territorial
sociedade civil, alegando-se o curto intervalo
do município: a descontinuidade dos proces-
de tempo disponível para sua realização. Com
sos de planejamento urbano decorrente das
isso o diagnóstico ficou bastante prejudicado
mudanças na orientação política da gestão; a
em decorrência do fraco confronto de visões
fragmentação política da gestão municipal fra-
entre os técnicos envolvidos e os setores popu-
gilizando a inter-setorialidade; a inexistência
lares, bem como da ausência de debate entre
de quadros técnicos e a situação rudimentar da
os agentes sociais antagônicos.
instituição responsável por sua implementação;
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Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
a subtração das práticas de planejamento par-
passando a adotar como alvo da política urba-
ticipativos da política municipal.
na aqueles setores que reúnam como caracte-
Entretanto, avanços devem ser reconhe-
rísticas: irregularidade fundiária, precariedade
cidos, considerados as condições e os resulta-
das infraestruturas, desordem urbanística, con-
dos dos planos anteriores. Afinal, a elaboração
dição de pobreza e densidade excessiva (Souza,
do PDFor, segundo os conteúdos do Estatuto da
2001). Identificando-se esses setores por conta
Cidade em si, garante à sociedade elementos
da situação crítica em que os mesmos se en-
para que possa dele tomar parte. Nesse senti-
contram, caberia a adoção de procedimentos
do, serão discutidos na próxima seção os desa-
que revertessem a situação, reduzindo-se, as-
fios enfrentados com vistas à inserção das ZEIS
sim, o fosso social entre esses fragmentos de
na agenda da política urbana de Fortaleza.
degradação socioambiental. Entretanto, nem
sempre a solução para as precariedades apontadas encontra-se no próprio setor. Ao con-
Processo de inclusão das ZEIS
no Plano Diretor de Fortaleza
trário, é possível reconhecer a seu lado vazios
urbanos ou edificações subutilizados que contribuiriam com a reversão dessa situação.
Vale ainda ressaltar que conforme Rolnik,
As Zonas Especiais de Interesse Social vêm sen-
as ZEIS podem ser reconhecidas como o instru-
do alvo de estudos desde sua criação nos anos
mento síntese das diretrizes e princípios norte-
1980 como estratégia para viabilizar a regula-
adores do Estatuto da Cidade, dado que podem
rização fundiária de assentamentos precários,
ser realizadas a partir das mesmas ações: o
permitindo a flexibilização dos índices urbanís-
combate à especulação imobiliária, impedindo-
ticos presentes na cidade espontânea, via de
-se o remembramento de lotes e consolidando-
regra, distintos daqueles presentes nas áreas
-se áreas de ocupação sob pressões do setor
produzidas pelas políticas públicas de habita-
imobiliário forma; a promoção da regulariza-
ção de interesse social, bem como nas áreas da
ção fundiária graças à flexibilização dos índi-
4
cidade formal. No caso do PDFor, a inserção
ces urbanísticos, reduzindo-se as necessidades
das ZEIS pode vir a ser um diferencial no sen-
apontadas para a cidade formal; a adoção de
tido de viabilizar transformações estruturais na
práticas de gestão democrática e participativa
implementação da política urbana. Tratando-se
mediante a formação de conselhos locais que
de instrumento que congrega setores da cidade
atuam nas diferentes fases dos planos urbanís-
em que o conflito socioespacial e as disputas
ticos, desde os levantamentos preliminares até
territoriais tendem a eclodir, desde já reconhe-
a tomada de decisão (Rolnik, 2001).
cemos no mesmo nosso foco temático de pes-
Fazendo valer as palavras de Rodrigues,
quisa para o acompanhamento do processo de
que identifica como aspecto mais positivo do
planejamento urbano municipal.
Estatuto da Cidade, o fato de explicitar as con-
Como afirma Souza, as ZEIS correspon-
tradições presentes na cidade, reconhecendo as
dem a um instrumento ímpar a partir do qual
desigualdades sociais decorrentes da produção
se pode viabilizar a inversão de prioridades,
social do espaço, dando às mesmas nome e
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Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
endereço, foi organizada uma ação de exigibili-
na plataforma do Google Earth para formula-
dade por ONGs em parceria com setores enga-
ção das propostas.
5
jados da universidade (Rodrigues, 2004).
Nas audiências públicas setoriais, rea-
Neste sentido, as ZEIS foram adotadas
lizadas nas diferentes áreas de participação
como tema específico das atividades de ca-
instituídas pelo Comitê Gestor do PDFor, fo-
pacitação promovidas pelo coletivo de ONGs
ram apresentadas propostas pelas lideranças
e movimentos sociais de modo a qualificar e
comunitárias, correspondentes às suas respec-
aglutinar os representantes de comunidades,
tivas áreas, seguindo procedimentos comuns,
apoiados no reconhecimento de áreas que ex-
os quais garantiram unidade às propostas
pusessem as contradições presentes na cidade,
apresentadas. Com isso, ao final dessa ação,
onde o desenvolvimento e a degradação so-
foram incorporados ao plano diretor em revi-
cioambiental disputavam territórios (Pequeno,
são dezenas de ZEIS, atrelando de modo com-
2002). Ao longo de quinze dias, foi conduzida
plementar áreas de ocupação, vazios urbanos
uma formação reunindo os seguintes conteú-
e terrenos subutilizados.
dos: conceituação do instrumento e inserção
Além disso, foram incluídas como alvo
do mesmo como parte integrante da política
desse instrumento, algumas dezenas de con-
urbana municipal; apresentação de resultados
juntos habitacionais construídos pela Prefeitu-
obtidos noutros municípios; entraves e poten-
ra Municipal de Fortaleza no período de 1988
cialidades de sua aplicação na realidade socio-
a 2004, contraditoriamente em situação fun-
ambiental de Fortaleza; procedimentos neces-
diária irregular. Observa-se aqui que o próprio
sários para sua apresentação como proposta
poder público passou a adotar as ZEIS como es-
na elaboração do plano diretor.
tratégia que permitisse a regularização fundiá-
Tomaram parte dessa atividade lideran-
ria, flexibilizando os instrumentos urbanísticos
ças selecionadas com as seguintes caracterís-
que a própria prefeitura não havia considerado,
ticas: localização em setores de maior precarie-
denunciando que mesmo os assentamentos ha-
dade urbana; vinculadas às comunidades que
bitacionais de interesse social estavam aquém
estivessem próximas aos vazios urbanos; inte-
das exigências legais.
grantes de atividades de capacitação promovi-
Após análise da Procuradoria Geral do
das pelas instituições organizadoras, portanto
Município, o PDFor permaneceu em discussão
com conhecimento prévio sobre o Estatuto da
no legislativo municipal. Como um dos temas
Cidade, suas diretrizes e instrumentos. Também
mais polêmicos, a adoção das ZEIS provocou
foram incorporados à capacitação, estudantes
reações dos vereadores que representam os
dos cursos de Geografia, Direito e Arquitetura
setores mais retrógrados e contrários à regu-
e Urbanismo, os quais colaboraram nas ativida-
larização fundiária de ocupações situadas nas
des práticas: realização de trabalhos de campo
áreas de maior valorização imobiliária.
junto às lideranças identificando ocupações e
No caso do Projeto de Lei do PDFor, ela-
vazios complementares; discussão dos resulta-
borado com a assessoria contratada, atesta-se
dos preliminares nas comunidades; mapeamen-
a qualidade técnica do mesmo, dada a perti-
to das informações e inserção das informações
nência dos instrumentos apontados para as
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012
Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
diferentes zonas que compõem o macrozoneamento. Todavia, merece ser destacado o problema decorrente da terceirização de tal atividade,
visto que ao se delegar a outrem a responsabilidade sobre os rumos da política urbana, ao
invés de desenvolvê-la no seio da própria instituição, tende a ocorrer dificuldades para sua
efetiva implementação nas etapas seguintes,
tais como: a discussão junto à Câmara Municipal das diretrizes propostas, a definição de índi-
à regularização fundiária e urbanística
(Artigo 129);
ZEIS III: compostas de áreas dotadas de
infraestrutura, com concentração de terrenos não edificados ou imóveis subutilizados ou não utilizados, devendo ser
destinadas à implementação de empreendimentos habitacionais de interesse
social, bem como aos demais usos válidos
para a Zona onde estiverem localizadas, a
partir de elaboração de plano específico
(Artigo 133).
ces e parâmetros urbanísticos de uso e ocupação do solo, a escolha de projetos prioritários, a
atualização do diagnóstico, entre outros.
No que se refere às interrelações entre as
ZEIS e os demais instrumentos da política urba-
Ainda que de forma genérica, as ZEIS
na incluídos no PDFor, é possível reconhecer al-
foram conceituadas e classificadas no Plano
guns vínculos a serem utilizados: parcelamento
Diretor de Fortaleza (Fortaleza, 2009) da se-
compulsório, para o caso das ZEIS tipo III (va-
guinte maneira:
zios urbanos), desde já indicando a necessidade
As Zonas Especiais de Interesse Social –
ZEIS – são porções do território, de propriedade pública ou privada, destinadas
prioritariamente à promoção da regularização urbanística e fundiária dos assentamentos habitacionais de baixa renda
existentes e consolidados e ao desenvolvimento de programas habitacionais de
interesse social e de mercado popular nas
áreas não edificadas, não utilizadas ou
subutilizadas, estando sujeitas a critérios
especiais de edificação, parcelamento,
uso e ocupação do solo (Artigo 123).
ZEIS I: compostas por assentamentos
irregulares com ocupação desordenada,
em áreas públicas ou particulares, constituídos por população de baixa renda,
precários do ponto de vista urbanístico
e habitacional, destinados à regularização fundiária, urbanística e ambiental
(Artigo 126);
ZEIS II: compostas por loteamentos clandestinos ou irregulares e conjuntos habitacionais, públicos ou privados, que estejam parcialmente urbanizados, ocupados
por população de baixa renda, destinados
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012
de que esses territórios cumpram com a função
social da propriedade; outorga onerosa do direito de construir, sendo as ZEIS tipo I e II (favelas, conjuntos e loteamentos precários, alvo
de recursos de contrapartida para sua regularização urbanística; transferência do direito de
construir como forma de compensação para os
proprietários de terras definidas como ZEIS tipo
III que terão reduzido seu potencial construtivo;
consórcio imobiliário, também para as ZEIS tipo
III, garantindo a possibilidade de formação de
parceria entre o proprietário e o poder local, no
sentido de ampliar a oferta de habitação de interesse social; operações urbanas consorciadas
tendo as áreas de ZEIS como prioritárias para
intervenções, favorecendo a recuperação urbano-ambiental de áreas degradadas de forma
inclusiva. As possibilidades supracitadas apontam a potencialidade do instrumento dada a
sua flexibilidade no estabelecimento de índices
urbanísticos específicos e sua capacidade de
atrelamento aos demais instrumentos.
495
Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
Numa primeira análise sobre a distribui-
das ZEIS no plano, sem que o posterior deta-
ção espacial das áreas de ZEIS em relação ao
lhamento de seus procedimentos, com vistas à
crescimento urbano da cidade, é possível afir-
implementação, venha a ser realizado.6
mar que, apesar do crescente número de famí-
Observa-se, ainda, que as áreas apro-
lias vivendo em áreas de favela em Fortaleza
vadas como ZEIS se concentram nas faixas de
e da quantidade de conjuntos habitacionais
praia e nas suas imediações, configurando-
ainda em situação fundiária irregular, um pri-
-se como reação das comunidades que vivem
meiro olhar sobre as áreas definidas como ZEIS
nesses setores em relação às históricas pres-
nos leva a considerar o baixo impacto de sua
sões do setor imobiliário, verdadeira estratégia
adoção no PDFor. Entretanto, considerando que
de resistência dos moradores destas favelas.
esse primeiro agrupamento possa representar
Desde já, indica-se como questão para futuras
apenas o iniciar de uma dinâmica, é possível
pesquisas, a capacidade real do instrumento
apontar que a mesma poderá, em caso de ex-
em conter a valorização imobiliária das áreas
periência bem-sucedida, vir a ser utilizada para
circunvizinhas, dado que a sua aprovação e
as outras partes da cidade. Há que se ressal-
implementação tendem a depreciar o valor dos
tar também que não basta a simples inserção
imóveis situados nas proximidades.
Figura 2 – Fortaleza: ZEIS tipos 1, 2 e 3
Legenda
Tipo de Zeis
Zeis1–ocupação
Zeis2–conjunto
Zeis3–vazio
Rodovias
Limite municipal
RMFOR–arruamento
Limite municipal
Fonte: PDP2009. Organizado pelos autores.
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Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
Analisando-se algumas características
gestão municipal, o que provoca reações dos
das ZEIS, até aqui aprovadas em termos quan-
movimentos sociais. Todavia, as ZEIS, ponto de
titativos, é possível tecer algumas considera-
maior destaque do referido PD, têm consegui-
ções: o número de ZEIS tipo I (favela) represen-
do ser alvo de discussão, quase sempre atre-
ta pequena parcela do universo de ocupações
lada à agenda de debates sobre intervenções
irregulares identificadas na cidade; o total em
urbanas conduzidas pelo Estado e, por vezes,
hectares das ZEIS tipo III (vazios e edificações
indo em desencontro aos interesses de inves-
subutilizadas) representa pouco mais de 60%
tidores privados.
do total de ZEIS tipo I; a área média dos assen-
Inserida no PDFor a partir de proposta
tamentos habitacionais de interesse social (ZEIS
formulada pelos movimentos sociais, com o
Tipo II) correspondente a 2,4 hectares indica o
apoio de organizações não governamentais, as
pequeno porte dos conjuntos realizados pelo
ZEIS tendem a ser alvo de disputas territoriais.
município nesta fase pós-BNH; a ocorrência de
O acompanhamento desta dinâmica urbana
34 ZEIS tipo III indica a necessidade de política
tem fornecido elementos para compreender o
de combate à especulação fundiária, especial-
papel, a força e os interesses dos agentes so-
mente se considerarmos que, em média, cada
ciais envolvidos, visto que as áreas incluídas
um deles teria cerca de 20 hectares, represen-
como ZEIS possuem alto valor imobiliário, se-
tando quase cinco vezes a área dos conjuntos
jam elas ocupações, vazios urbanos ou terre-
municipais (ZEIS tipo II) (Ver tabela 1).
nos subutilizados. Os processos apresentados
Passados quase dois anos de sua apro-
a seguir buscam indicar os caminhos adotados
vação, observa-se que a implementação do
para aprofundamento dos estudos, em vias de
PDFor vem sendo lentamente conduzida,
realização, confirmando a adoção das ZEIS co-
demonstrando falta de interesse político da
mo objeto de nossa agenda de pesquisa.
Tabela 1 – Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza – 2009
Caracterís cas
Número de áreas
Área total (hectares)
Área média (hectares)
Número de áreas acima da média
Zeis Tipo I
Zeis Tipo II
Zeis Tipo III
45
56
34
1067,7
136,64
661,3
23,7
2,4
19,5
9
11
11
Fonte: organizado pelos autores
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Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
Realização de empreendimentos
imobiliários em ZEIS
Reconhecimento das ZEIS pelo poder
local e aproveitamento político
Mesmo antes da aprovação de um conjunto
Desde a aprovação do PDFor, o próprio poder
de ZEIS no conteúdo do PDFor, verificou-se a
local já demonstrou por algumas vezes ter a
aceleração da aprovação de empreendimentos
compreensão da importância das ZEIS como
imobiliários em terrenos inseridos em ZEIS do
instrumento da política urbana. Diante da pos-
tipo III (vazios urbanos e edificações subutiliza-
sibilidade de implementação de um estaleiro
dos), os quais foram protocolados logo após a
junto ao terminal portuário, numa parceria en-
divulgação do mapeamento anexado ao PDFor.
tre o Governo Estadual, a Transpetro e um in-
Estudos recentemente realizados revelam
vestidor do setor privado, a Prefeitura fez uso
que várias ZEIS situadas nas áreas de maior in-
da determinação da área como zona especial
teresse do setor imobiliário na faixa litorânea
pelo PD, impedindo assim a implantação do
ao leste, no eixo de segregação residencial
complexo industrial.
direção sudeste, nas frentes de expansão imo-
Ao se opor a este projeto de cunho de-
biliária, foram rapidamente ocupadas por con-
senvolvimentista, foi alegado que a reversão
domínios residenciais horizontais, desfazendo
da ZEIS, antes mesmo de sua implementação,
a complementaridade pretendida entre as ZEIS
desvirtuaria todo o esforço em realizar o PDFor,
tipo I – favelas e tipo III vazios.
garantindo com isso a permanência de mais de
Por outro lado, constata-se a periferiza-
5.000 famílias que seriam removidas da área.
ção das demandas oriundas do Programa Mi-
Mais ainda, que o uso industrial do setor es-
nha Casa Minha Vida para famílias com renda
taria se opondo diretamente à vocação do
inferior a três salários mínimos. Em sua grande
município, como porta de entrada de destino
maioria, esses novos empreendimentos imobi-
turístico. Tratando-se de área de propriedade
liários conduzidos pelo mercado imobiliário e
da União, a qual se encontra em fase de re-
associados ao poder local, vem sendo implan-
gularização fundiária, a mesma foi incluída na
tados nos municípios vizinhos a Fortaleza –
segunda edição do Programa de Aceleração do
Maracanaú e Caucaia – cuja conurbação com
Crescimento, a iniciar em 2011.
a capital se deu desde o período áureo do BNH
através de grandes conjuntos habitacionais.
Recentemente, outra área conhecida como Campo do América, incluída no PDfor como
Vantagens locacionais como a disponibi-
ZEIS, de propriedade do Instituto Nacional de
lidade de terra barata e a doação de terras pe-
Serviço Social (INSS), foi alvo de ação positiva
los municípios para estes novos assentamentos
da Prefeitura. Ao ser divulgado sua inclusão em
têm contribuído para esta escolha, bem como o
processo de leilão para venda, a gestora muni-
caráter especulativo que esses empreendimen-
cipal entrou em cena dispondo-se a adquirir a
tos apresentam, visto que espaços vazios, ou
área com vistas à implantação de equipamento
mesmo subutilizados, remanescem nos bairros
social voltado para o desenvolvimento e forta-
intermediários e mesmo periféricos de Fortaleza.
lecimento da comunidade.
498
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012
Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
Outros projetos urbanísticos e habita-
após a aprovação pela Câmara, que a mesma
cionais vêm sendo implementados visando
não mais constava do plano. Estudos iniciais
atender a demandas localizadas, definidas
divulgados pelo Governo Estadual mostraram
mesmo antes do PDFor, como o Projeto Vila
que as vias lindeiras a essa comunidade seriam
do Mar, que envolve a maior ZEIS de Fortale-
alargadas, bem como viadutos e mesmo um
za, com mais de 280 hectares, compreendendo
ramal de sistema de veículos leve sobre trilhos
três bairros da cidade. Nesse caso, vem sendo
seriam implantados sobre essa área.
construídas 1.500 unidades habitacionais em
Diante das pressões dos movimentos so-
vazios situados nas proximidades, somadas a
ciais, a Prefeitura recuou e encaminhou à Câ-
3.000 melhorias habitacionais e 7.000 ações de
mara Municipal projeto complementar. Entre-
regularização fundiária, todos eles associados
tanto, foi inserido artigo que diz:
a um antigo projeto urbanístico de avenida paisagística a beira-mar, que previa a remoção das
famílias para conjuntos periféricos. Diante dessas situações, é possível reconhecer a ocorrência de reversão de procedimentos e prioridades
por parte do município, ainda que se mantenha
em condições precárias a interoperabilidade
entre os órgãos e os programas.
Parcerias público-privadas,
megaeventos e fragilização das ZEIS
Art. 5º– Fica a Chefe do Poder Executivo,
em consonância com o que estabelece o
artigo 4o., autorizada a, por decreto, estabelecer exceção aos parâmetros urbanísticos da área em que está inserida a ZEIS
1 do Lagamar, quando o interesse público
justifica, ou quando estiverem envolvidas
ações de infraestrutura viária ou infraestrutura urbana ou ambiental, ou ainda,
quando se tratar de projetos que tenham
relação com a Copa 2014. (Projeto de lei
complementar, 21/12/2009)
Assim, mesmo que se tenha nomeado
Todavia, as manifestações do poder público
um conselho gestor reunindo representantes
têm sido contraditórias, demonstrando ambi-
da comunidade e do município, e que venham
guidade na forma de compreender o instru-
a ser desenvolvidas as diferentes etapas (o
mento, ao condicionar a inclusão de determina-
diagnóstico específico da área, a normatiza-
da área de ocupação como ZEIS à necessidade
ção especial de parcelamento, edificação, uso
de sua remoção em caso de intervenções urba-
e ocupação do solo; os planos urbanísticos, de
nas associadas aos megaeventos esportivos.
regularização fundiária, de trabalho e renda e
No caso da ZEIS do Lagamar, onde vivem
de participação comunitária e desenvolvimento
mais de 3.500 famílias, a qual havia sido inclu-
social), fica a área à mercê de sua revogação,
ída nas propostas iniciais do PDFor a partir das
prevalecendo a definição técnica e os interes-
ações das lideranças comunitárias, verificou-se,
ses associados à Copa de 2014.
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Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
Desconhecimento quanto
ao conteúdo urbanístico das ZEIS
Diversidade das condições
de moradia nas ZEIS e nas vizinhanças
Outra questão associada à implementação das
Buscando-se compreender o conteúdo urbanísti-
ZEIS diz respeito à necessária complementari-
co das áreas definidas como ZEIS tipo I (favelas)
dade entre as ZEIS tipo I e tipo III, visto que,
com vistas à regularização fundiária, algumas
dada a falta de conhecimento prévio sobre o
análises prospectivas têm sido feitas no sentido
conteúdo urbanístico e habitacional das áreas
de conhecer a realidade dos índices de ocupação
de ocupação, pode levar à simples consolida-
do solo e, assim, poder estabelecer procedimen-
ção da condição precária em que as famílias
tos condizentes com a realidade social.
se encontram.
Estudos realizados em ocupação com
No caso, é importante ressaltar que, de
200 unidades domésticas, situada no litoral
acordo com estudos realizados em 2004 por
oeste de Fortaleza, mostraram que 70% dos
consultores contratados pela Prefeitura, foi in-
lotes apresentam área inferior a 60,0 m2, invi-
cluído, em projeto de lei, a adoção como área
áveis de serem regularizados caso a área mí-
mínima a ser regularizada, em se tratando
nima exigida pelo município para implantação
de áreas de ocupação, 25,0 m2, com taxa de
de programas habitacionais de interesse social
ocupação máxima de 80%. Outrossim, desde
fosse o parâmetro adotado. Todavia, caso fos-
1999, o Município passou a adotar em sua lei
se considerado como limite para regularização
2
2
de uso e ocupação do solo, 60,0 m (4X15 m )
fundiária a área média do lote na ocupação, a
como área mínima de lote para conjuntos ha-
qual gira em torno de 36 m2, quase 30% dos
bitacionais de interesse social voltados para o
mesmos ficariam fora do padrão adotado.
reassentamento de famílias. Ambos os índices
Todavia, deve ser reconhecida a própria
supracitados, apesar de aleatórios, demons-
diversidade morfológica presente nas áreas de
tram o desconhecimento da realidade nessas
ocupação no que se refere aos padrões urbanís-
áreas, apresentando, no primeiro caso, o sé-
ticos, visto que, dependendo da sua localização
rio risco de viabilizar a regularização fundiá-
na cidade, as mesmas podem ainda dispor de
ria associada à inadequação domiciliar e, no
espaços para a expansão dos domicílios para
segundo, o estabelecimento de modelos de
os fundos dos terrenos ou, em caso de ocupa-
ocupação superadensados e com dificuldade
ções mais antigas, prevaleça como alternativa
de expansão.
a sua autoverticalização.
500
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Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
De acordo com resultados preliminares
de infraestrutura e mobilidade, tendem a ser
feitos junto às ocupações consideradas como
mais densamente e intensamente ocupadas, no
ZEIS que representam as diferentes tipologias
sentido de complementar a renda, até como es-
socioespaciais nas quais se estrutura a Região
tratégia de resistência de seus moradores para
7
Metropolitana de Fortaleza, verificou-se que a
conseguir permanecer na área.
localização, a valorização imobiliária e a com-
Por outro lado, as áreas mais distan-
posição sócio-ocupacional dos bairros em que
tes e em condições precárias apresentam
as mesmas encontram-se inseridas interferem
áreas maiores, menor número de pessoas por
diretamente nos rendimentos da família, nos
unidade doméstica e por conseguinte maior
padrões urbanísticos e de moradia.
quantidade de área por habitante. A significa-
Destaca-se que a diminuição da renda
ção desses indicadores se amplia se conside-
média familiar e a redução do número de pes-
rarmos os valores supracitados, estabelecidos
soas por domicílio seguem a hierarquia social
nos projetos de lei de regularização fundiária
em que as tipologias foram definidas, enquan-
(25 m2), indicando que a área média por famí-
to a área média do lote e o número de metros
lia em áreas de ocupação é bastante superior,
quadrados por habitante aumentam contra-
aproximando-se da área do lote para conjuntos
riando a mesma hierarquia. Isso pode signi-
de habitação social previstas pela lei de uso e
ficar que as favelas bem localizadas, dotadas
ocupação do solo.
Tabela 2 – Indicadores urbanos – ZEIS
em relação às tipologias socioespaciais – 2010
Comunidade:
tipologia – características urbanas
Renda
(S.M.)
Hab./UH
Área média
do lote (m2)
M2/hab.
2
5,3
46
8,7
Lagamnar: média superior, entorno do centro
1,9
4,7
46,4
9,9
Caça e pesca: média, frente expansão imobiliária
1,8
4,1
66,7
16,3
Barra do Ceará: popular operária, conjuntos HIS
1,8
3,9
66,4
17
Planalto do Pici: inferior – bairros precários
1,5
4,3
69,5
16,2
Campo do América: superior, zona nobre central
Fonte: organizado pelos autores.
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Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
Considerações finais
suas relações de poder e com seus interesses,
a realização de ações de exigibilidade de direitos pela sociedade civil pode vir a render
Retomando o encadeamento entre as ques-
resultados positivos. Tudo isso denota que es-
tões que norteiam este trabalho, reforça-se,
tamos diante de um processo, ainda em fase
para o caso de Fortaleza, a interligação entre
embrionária, cujos efeitos, acredita-se pode-
o crescimento acelerado de sua favelização
rão vir a ser percebidos no médio prazo.
e a necessidade de adoção de instrumentos
Mais recentemente, observa-se que as
urbanos flexíveis capazes de atender às de-
reações da sociedade passam a ter efeitos
mandas diversificadas que a cidade informal e
prolongados e educativos, na medida em que
espontânea tem apresentado. Todavia, diante
o próprio poder local passa a reconhecer a
de ambiente político institucional desfavorá-
importância da adoção de processos partici-
vel e precário, as tentativas de implementa-
pativos, que possam garantir legitimidade aos
ção de políticas urbana e habitacional, enfren-
mesmos. No caso, o Plano Municipal de Ha-
taram dificuldades cujos efeitos perversos da
bitação de Interesse Social de Fortaleza, em
dissociação entre as mesmas se reiteram nas
realização desde meados de 2010, é possível
precárias condições de moradia.
reconhecer, como diferencial positivo em rela-
Progressivamente, observa-se que se
abrem perspectivas favoráveis para que as
ção aos anteriores, sua realização no âmbito
da própria Prefeitura.
mudanças venham a ser implementadas. É
Configura-se, dessa maneira, um avanço
possível reconhecer que as condições para
na forma recente de planejar a cidade, visto
que o debate seja estabelecido encontram-se
que, nas últimas duas décadas, grande parte
melhoradas, ainda que a responsabilidade re-
do planejamento urbano foi terceirizada. Com
caia sobre a sociedade civil. Graças às diretri-
isso, além do desperdício da possibilidade de
zes e aos instrumentos presentes no Estatuto
formação de recursos humanos das próprias
da Cidade, processos que outrora consegui-
instituições envolvidas, transferiu-se para con-
riam passar despercebidos, favorecendo os in-
sultorias privadas a responsabilidade de formu-
teresses de certos grupos e parcerias, podem
lar as diretrizes da política urbana municipal.
agora ser compelidos e enfrentados pela sociedade civil.
Toma parte destes trabalhos a organização de diagnóstico das áreas de favela do mu-
O exemplo aqui apresentado com o ca-
nicípio voltado para indicar o dimensionamen-
so da revisão do Plano Diretor de Fortaleza,
to real do problema habitacional, bem como
enfocando a inserção das ZEIS no seu conte-
o estabelecimento de programas classificados
údo, inclusive especificando as áreas a serem
segundo diferentes linhas de ação. Com isso,
contempladas é emblemático. Através do
um novo universo das condições de moradia
mesmo é possível demonstrar que, ainda que
precária em Fortaleza tende a ser revelado,
o Estado não se mostre favorável à adoção
ampliando com isso a responsabilidade da im-
de determinadas práticas que colidam com
plementação das ZEIS como instrumento capaz
502
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Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
de promover a regularização fundiária, resistir
Ressalta-se, todavia, que as questões
à especulação imobiliária e fomentar as prá-
aqui apontadas decorrem de análises ainda
ticas de planejamento e gestão participativos.
não conclusivas, mas que já indicam que,
Alguns processos foram aqui elencados,
desde a inserção desses instrumentos no pla-
os quais se associam à atual política urbana e
nejamento urbano do município e, mantida a
habitacional de Fortaleza: a realização de em-
vigilância e as articulações dos movimentos
preendimentos imobiliários em ZEIS, o uso po-
sociais urbanos, é possível que se possa vir
lítico das mesmas pelo poder local, a organiza-
a obter êxito na sua implementação. Além
ção de parcerias público-privadas associadas
disso, deve ser mencionado que as ZEIS co-
a megaeventos, fragilizando os instrumentos,
mo instrumento da política urbana municipal
além do desconhecimento quanto ao conteúdo
ainda requer estudos mais aprofundados,
urbanístico e à diversidade das condições de
deixando claro suas possibilidades positivas
moradia nas zonas especiais e nas vizinhanças.
de intervenção em prol de uma cidade so-
Todos eles indicam a presença de conflitos e
cialmente mais justa, porém com debilidades
disputas territoriais, em que os diferentes ato-
recorrentes que possam vir a comprometer
res tendem a explicitar seus interesses, abrin-
seus objetivos.
do-se o debate em torno da questão fundiária.
Deve ainda ser destacado que os estu-
Na atual conjuntura, apesar da disponi-
dos aqui apresentados correspondem a tenta-
bilidade de recursos para produção habitacio-
tivas de investigação a respeito do conteúdo
nal pelo Estado, as dificuldades em obter terre-
das áreas a serem beneficiadas com o instru-
nos para sua implementação demonstram que
mento das ZEIS, o qual traz como principal ca-
esse instrumento pode vir a ser adotado pelo
racterística a flexibilidade de sua adoção de
Estado para ações de provisão habitacional.
acordo com seu conteúdo urbanístico.
Renato Pequeno
Arquiteto e Urbanista. Doutor em Arquitetura e Urbanismo. Professor adjunto IV da Universidade
Federal do Ceará – Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Fortaleza/CE, Brasil.
[email protected]
Clarissa F. Sampaio Freitas
Arquiteto e Urbanista. Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Professor adjunto I da Universidade
Federal do Ceará – Departamento de Arquitetura e Urbanismo. Fortaleza/CE Brasil.
[email protected]
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012
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Renato Pequeno e Clarissa F. Sampaio Freitas
Notas
(1) A par r da leitura do relatório, destaca-se a presença de áreas com alguns milhares de pessoas
como o Pirambu (41 mil); Mucuripe (15 mil); Lagamar (14 mil); Verdes Mares/Trilho (13 mil);
Moura Brasil e Serviluz (7 mil cada). Outras 19 áreas encontravam-se na faixa de 5 a 2 mil
moradores. Atualmente, muitas destas áreas de ocupação remanescem, inclusive incluídas
como Zonas Especiais de Interesse Social no Plano Diretor de Fortaleza, aprovado em março de
2009.
(2) Pesquisa LabHab/FAUUSP realizada em 1999, sob a coordenação das professoras Ermínia Maricato
e Laura Bueno, analisou o Programa de Urbanização de Favelas conduzido pela Cohab-CE,
compreendendo o alcance geral do mesmo e realizando estudo de caso para área urbanizada.
(3) A adoção das áreas de risco como alvo das ações do Habitafor tem como ponto de partida
levantamento realizado pelo Centro de Defesa e Promoção de Direitos Humanos da
Arquidiocese de Fortaleza, em 1998, o qual serviu de subsídio para a formulação de Plano de
Intervenção em Áreas de Risco do HBB, realizado pela Comhab em 2001. Nesse levantamento
foram contabilizadas 79 áreas com mais de 9.300 famílias.
(4) As Zonas Especiais de Interesse Social (ZEIS) têm sido objeto de estudo de diversos pesquisadores
na área do direito urbanís co e do planejamento urbano. No âmbito jurídico, as análises de
Nelson Saule, Edésio Fernandes e Betânia Alfonsín na literatura especializada merecem
ser ressaltadas. Os casos de Recife e Natal, abordados por Lívia Miranda e Dulce Bentes,
respectivamente, se destacam por conta dos resultados obtidos com a implementação
nestes municípios. Todavia, por conta da inserção deste instrumento como alterna va para a
formulação de programas de regularização fundiária nos planos diretores revistos ou elaborados
nos últimos anos, tende a ocorrer um maior espectro de situações a serem analisadas. O
trabalho apresentado por Ferreira e Motsuke (2007) traz avanços no sen do de problema zar
um estudo mais compreensivo sobre as possibilidades do instrumento como parte da polí ca
urbana municipal.
(5) Atividades de capacitação realizada com recursos da OXFAM/ Comunidade Europeia, sob a
coordenação da ONG Cearah Periferia em parceria com o Observatório das Metrópoles/Núcleo
de Fortaleza, em março de 2006.
(6) No caso de Fortaleza, desde o Plano Diretor de Desenvolvimento Urbano de 1992, já se encontrava
inserido o instrumento das Zonas Especiais de Interesse Social com uma nomenclatura diferente,
vide os ar gos 73º ao 76º, os quais tratam dos assentamentos espontâneos e suas possibilidades
de urbanização e regularização fundiária. Todavia, nenhuma área veio a ser mapeada, fazendo
com que este plano (ainda em vigor) seja progressista no seu conteúdo e ao mesmo tempo vazio
na sua aplicabilidade e implementação.
(7) Neste trabalho, adotou-se a metodologia u lizada pela Rede Observatório das Metrópoles, a
qual classifica as áreas de ponderação de dados de cada metrópole segundo os percentuais e
as densidades rela vas das diferentes categorias sócio-ocupacionais predefinidas, as quais são
ob das a par r dos dados censitários do IBGE. Em cada uma das pologias foi selecionada uma
área de favela, incluída no PD de Fortaleza como ZEIS, para que se possa verificar as diferenças
presentes em seus conteúdos urbanísticos e habitacionais. Maiores informações a respeito
desse estudo podem ser ob das em PEQUENO, R. (2009). Como Anda Fortaleza. Rio de Janeiro,
Letra Capital. Disponível em: www.observatoriodasmetropoles.net.
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012
Desafios para implementação de Zonas Especiais de Interesse Social em Fortaleza
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Texto recebido em 15/out/2011
Texto aprovado em 17/nov/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 485-505, jul/dez 2012
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O direito à cidade em disputa:
o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
The right to the city in dispute: the case of the Zeis
of Lagamar (Fortaleza – Northeastern Brazil)
Linda Maria de Pontes Gondim
Marília Passos Apoliano Gomes
Resumo
Este trabalho discute as Zeis, instrumento regulamentado pelo Estatuto da Cidade. Considera-se
sua contribuição potencial para diminuir o déficit
habitacional, ordenar o crescimento urbano e promover a redistribuição de renda real na cidade. O
trabalho aborda a origem das Zeis no contexto da
história recente dos movimentos sociais urbanos
no Brasil. Por fim, problematiza-se o caso da Zeis
do Lagamar em Fortaleza-CE, em virtude das peculiaridades do processo que levou à sua inclusão
no Plano Diretor Participativo de Fortaleza, aprovado em 2009.
Palavras-chave: estatuto da cidade; plano diretor;
zona especial de interesse social; movimentos sociais urbanos; Lagamar.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012
Abstract
This work discusses the Zonas Especiais de
Interesse Social (Zeis – Social Housing Zones), an
instrument regulated by the City Statute. Their
potential contribution to reduce the housing deficit,
to control urban growth and to promote real
income redistribution in the city, are considered.
The paper approaches the origin of the Zeis in the
context of the recent history of Brazil’s urban social
movements. Finally, the case of the Zeis of Lagamar
in the city of Fortaleza (Northeastern Brazil) is
discussed, due to the peculiarities of the process
that led to its inclusion in Fortaleza’s Participatory
Master Plan, approved in 2009.
Keywords: city statute; master plan; social
housing zone; urban social movements; Lagamar.
Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes
Introdução
Este trabalho tem por objeto as Zonas Especiais de Interesse Social – ZEIS e a possibilidade
de sua utilização como mecanismo de redistribuição de renda real na cidade, a partir de
inovações legislativas e urbanísticas trazidas
pelo Estatuto da Cidade. A presente discussão
envolve ainda a problematização do direito à
moradia no Brasil, como um dos elementos que
compõem o direito à cidade.
Já se tornou lugar-comum afirmar que
grande parte dos problemas urbanos decorre
da falta de planejamento ou mesmo da omissão quase completa do Estado. Não se nega
que esse é um fator relevante, mas é preciso reconhecer que as razões da falta de efetividade
das políticas públicas vão muito além de simples inércia dos governantes. O processo de segregação socioespacial não acontece por acaso, nem decorre simplesmente da expansão das
cidades. O mercado imobiliário e os interesses
a serem ponderadas. As áreas ocupadas pelos
pobres são, de fato, as únicas que não são (ainda) de interesse do mercado imobiliário. Trata-se da “lógica da necessidade”: a população de
baixa renda não encontra espaço no mercado
formal de habitação e recorre às ocupações
irregulares por conta da necessidade, que é a
lógica que a move (Alfonsín, 2006).
Nesse contexto é que serão analisadas
as Zonas Especiais de Interesse Social e, especificamente, o processo de mobilização social
em torno do reconhecimento da ZEIS do Lagamar, em Fortaleza-CE. O presente trabalho
foi realizado por meio de pesquisa de campo1
e levantamento bibliográfico nas áreas de planejamento urbano, sociologia urbana e direito
urbanístico, em especial estudos sobre a cidade
de Fortaleza, realizados pelo Observatório das
Metrópoles. Além da pesquisa bibliográfica,
utilizou-se como referência a recente legislação
urbanística, em particular aquela relativa ao
município de Fortaleza.
privados têm forte poder na correlação de forças exercida nas disputas pelo espaço urbano,
apropriando-se das áreas mais bem dotadas de
infraestrutura, serviços e equipamentos urbanos. Como a oferta de habitação popular pelo
Poder Público tem sido historicamente insuficiente, os pobres têm que recorrer a mecanis-
Crescimento urbano
e mudanças político-institucionais
no planejamento e na gestão
das cidades
mos informais, como ocupações ou aquisição
de terrenos em loteamentos irregulares. Configuram-se, assim, situações de ilegalidade não
Crescimento urbano desordenado
e regime autoritário
só no que diz respeito ao local das habitações,
mas também ao tipo de construção, à existência
As cidades brasileiras experimentaram intenso
ou não de licenciamento da Prefeitura e à regu-
e desordenado crescimento, sobretudo a partir
larização fundiária. Nesses casos, não se trata
de meados do século passado. Na década de
propriamente de “escolhas” do lugar onde
1970, a população urbana já era majoritária,
morar, pois praticamente não existem opções
correspondendo a 55,9% da população total,
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Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012
O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
percentual que em 2000 elevou-se para 81,2%
serviços urbanos. Já a construção habitacional
(Rolnik, 2005). No entanto, somente em 1976 o
destinada às classes média e alta ocorreu pre-
governo federal, por meio da Comissão Nacio-
dominantemente nas áreas mais centrais, supe-
nal de Política Urbana e Regiões Metropolitanas
requipadas, cujo adensamento e consequente
(CNPU), do Ministério do Interior, elaborou o
valorização levaram ao recrudescimento de es-
primeiro anteprojeto de lei de desenvolvimento
peculação imobiliária (Monte-Mór, 2007). Des-
urbano. Tal iniciativa não foi adiante devido a
sa forma, consolidou-se um padrão segregador
pressões de setores conservadores, que a de-
e oneroso de urbanização, em que a intensa
nunciavam como uma tentativa de “socializar o
ocupação das áreas centrais e a expansão peri-
solo urbano” (Ribeiro e Cardoso, 2003, p. 12).
férica coexistem com a permanência de vazios
O contexto político de então era marcado
pelo autoritarismo do regime militar, que res-
nas proximidades ou mesmo dentro de áreas
bem equipadas.
guardava um modelo de desenvolvimento eco-
Os planos diretores patrocinados pelo
nômico concentrador. O governo federal formu-
SERFHAU, órgão do próprio BNH, pouco ou
lava e implementava políticas públicas setoriais
nada contribuíram para alterar esse quadro. A
de grande impacto para as cidades – habitação,
atuação do órgão federal de planejamento ur-
transportes, saneamento e outras – enquanto
bano limitou-se a municípios pequenos e mé-
o controle do uso e da ocupação do solo ur-
dios, fomentando trabalhos na linha do urba-
bano ficava a cargo dos governos municipais,
nismo racionalista, de corte tecnocrático, que
premidos pela falta de recursos e limitados em
produziram extensos diagnósticos e diretrizes
sua autonomia. Na prática, a União centraliza-
gerais de pouca eficácia para a ação das pre-
va as decisões cruciais para o crescimento das
feituras municipais (Santos e Baratta, 1997).
cidades, como o financiamento massivo para
Tampouco foram executados os planos dire-
o setor habitacional, por intermédio do Banco
tores elaborados pelos próprios municípios de
Nacional da Habitação (BNH), criado em 1964.
grande porte, mas esses, via de regra, imple-
Embora a criação do BNH tivesse como
mentavam uma legislação urbanística rigorosa
um de seus propósitos ampliar a oferta de ha-
e elitista, que contribuía para elevar os preços
bitação de baixa renda, de modo a legitimar o
dos terrenos urbanizados, tornando-os ina-
então novo regime autoritário, a maior parte
cessíveis à população de baixa renda. Deriva
dos recursos aplicados no setor beneficiou a
daí a contínua expansão dos assentamentos
classe média (Azevedo e Andrade, 1982). Os
informais: favelas, ocupações de áreas de ris-
recursos destinados à moradia de baixa renda
co ou loteamentos irregulares ou clandestinos
foram utilizados pelas companhias estaduais
(Maricato, 1996; Villaça, 2005). Nesse quadro,
e municipais de habitação (COHABs) na cons-
o território das cidades, ao invés de exibir de-
trução de grandes conjuntos habitacionais
senvolvimento e bem-estar, retrata e reproduz
localizados nas periferias urbanas e metropoli-
as injustiças e desigualdades sociais, configu-
tanas, onde são baixos preços dos terrenos, jus-
rando uma “urbanização de risco” (Rolnik et
tamente pelas dificuldades de acesso a bens e
al., 2005, p. 23).
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Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes
Mudanças políticas e institucionais na
sociedade brasileira pós-Constituição
de 1988: participação popular
e novos direitos
1988). As articulações presentes nas periferias
urbanas passam a se expressar por meio de
ações diretas como abaixo-assinados, ida de
comissões a órgãos públicos, marchas e mesmo enfrentamentos diretos, como ocorreu em
Durante a maior parte da década de 1970, a
Fortaleza, na resistência à remoção da favela
repressão da ditadura militar levou à desmo-
da José Bastos, em 1978 (Barreira, 1992).
bilização dos críticos do regime nos marcos
De um modo geral, esses “novos mo-
da legalidade instituída (mídia, parlamentos,
vimentos sociais” tinham em comum a arti-
sindicatos, partidos políticos, etc.). O descon-
culação entre as dimensões da política e da
tentamento com as precárias condições de vida
cultura, expressas numa nova concepção de
dos trabalhadores expressava-se no cotidiano
cidadania, vinculada não a direitos abstratos
dos bairros populares, mediante organizações
formalmente reconhecidos, mas a interesses
cuja dimensão política não era explícita, como
e valores historicamente definidos. Tratava-se
clubes de mães, associações de moradores e as
não apenas de pleitear os direitos existentes,
Comunidades Eclesiais de Base. As reivindica-
mas de “inventar” novos, a partir de lutas e
ções se relacionavam com interesses ligados à
práticas cotidianas: direito à igualdade entre os
esfera da reprodução social, como nas campa-
gêneros, direito ao meio ambiente e direito à
nhas contra o alto custo de vida, pelo acesso à
habitação. Houve, assim, um “alargamento do
posse da terra e por serviços de saúde, sanea-
âmbito da cidadania”, no sentido de ir além
mento e transportes coletivos (Doimo, 1995;
de buscar o pertencimento ao sistema político:
Sader, 1988). Na época, outros movimentos
tratava-se de uma “proposta de sociabilidade”
sociais também se constituíram, transcendendo
cujo foco não mais se centrava na relação en-
o nível local e tendo como sujeitos categorias
tre Estado e indivíduos, transferindo-se para as
transversais às classes sociais: mulheres, ne-
relações que se dão no interior da sociedade
gros, homossexuais, ecologistas e outros.
civil (Dagnino, 1996, p. 108). Essa concepção
A partir do final da década de 1970, o
combinava-se com uma postura espontaneísta
modelo econômico concentrador e o autorita-
e “anti-Estado”, que preconizava a democracia
rismo do regime começam a ser questionados
direta, resistia à presença de militantes de par-
de forma cada vez mais visível, por associações
tidos políticos e recusava a institucionalização
profissionais como a Ordem dos Advogados
dos movimentos sociais (Gondim, 1991; Doimo,
do Brasil e a Associação Brasileira de Impren-
1995; Cardoso, 1996).
sa, pela Igreja Católica e até por empresários
Na nova conjuntura de redemocratização
insatisfeitos com a excessiva intervenção do
que se delineia no início da década de 1980, a
Estado na economia. Um novo movimento
postura “autonomista” dos movimentos sociais
sindical começa a se articular no ABC paulista,
começou a arrefecer. Não se tratava apenas de
enfatizando, assim como os demais movimen-
uma tendência interna, mas de uma resposta
tos sociais, sua autonomia em relação a parti-
a mudanças mais amplas, como o pluripartida-
dos políticos e a estruturas burocráticas (Sader,
rismo e o retorno da dinâmica eleitoral, com a
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O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
consequente aproximação dos partidos políti-
diretor, tornado obrigatório para as cidades
cos aos movimentos sociais (Cardoso, 1996).
com mais de 20 mil habitantes.3 A tramitação
De parte do Executivo, a transformação expres-
da lei complementar, que viria a ser o Estatuto
sou-se na abertura para formas participativas
da Cidade, foi longa e pontuada por conflitos
de elaborar e implementar políticas públicas,
entre os partidários da reforma urbana, de um
incentivando a formação de associações locais
lado, e, de outro, representantes de setores que
(Tatagiba, 2002). A ascensão de administrações
têm se beneficiado de um processo de urbani-
de esquerda em grandes cidades enfatizou a
zação predatório e excludente para muitos, e
“participação popular”, ainda que enfrentas-
lucrativo para poucos (Bassul, 2005).
sem oposição não só de setores conservadores,
mas dos próprios movimentos sociais (Soares e
Gondim, 1998).
Chamados a participar da formulação e
execução de políticas, programas e projetos do
Promessas do Estatuto
da Cidade
setor público, os movimentos sociais entram
em uma nova fase, confrontando-se com a ne-
Em 10 de julho de 2001, foi aprovado, final-
cessidade de maior capacitação técnica e po-
mente, o Estatuto da Cidade, o qual estabele-
lítica – o que, por sua vez, reforça o papel das
ceu um novo marco político-institucional para o
entidades que prestam assessoria e treinamen-
tratamento da questão urbana, particularmen-
to, como organizações não-governamentais
te no que concerne à função social da proprie-
(ONGs), centros de pesquisa, associações pro-
dade e à democratização do planejamento e da
fissionais e outras (Cardoso, 1996; Albuquer-
gestão das cidades. Ao condicionar o direito de
que, 2004). Uma expressão significativa da no-
propriedade à sua função social e ao separá-lo
va fase dos movimentos sociais foi a formação
do direito de construir, a nova lei fez com que
do Movimento Nacional de Reforma Urbana
o planejamento urbano deixasse de ter função
2
(MNRU), ampla rede de organizações popu-
meramente regulatória, podendo ensejar políti-
lares, associações profissionais, centros de pes-
cas habitacionais mais equitativas e exercer o
quisa, técnicos e militantes (Grazia, 2003; Silva,
papel de indutor da ocupação urbana.
1991). Sua atuação foi crucial para a inclusão
Em relação às políticas habitacionais,
de um capítulo dedicado ao desenvolvimento
a lei federal trouxe instrumentos que facili-
urbano na Constituição de 1988, incorporando,
tam a regularização fundiária e urbanística
parcialmente, medidas propostas na Emenda
de assentamentos informais. Entre estes, des-
Popular articulada pelo MNRU, como a função
tacam-se a usucapião urbana coletiva, a con-
social da propriedade urbana, penalidades para
cessão de uso especial para fins de moradia e
coibir a retenção de terrenos vazios (art. 182)
a concessão do direito real de uso. O primeiro
e a usucapião urbana (art. 183). Entretanto, o
desses instrumentos tornou possível regularizar
texto constitucional condicionou essas medidas
a situação de posse em favelas onde a ocupa-
à edição de lei complementar e vinculou a defi-
ção densa e desordenada torna difícil, senão
nição da função social da propriedade ao plano
impossível, a demarcação de propriedades
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Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes
individuais. Já a concessão de uso para fins de
menores na implementação da lei. Dada uma
moradia e a concessão do direito real de uso
situação inicial de desigualdade de renda (real
são instrumentos que possibilitam a regulariza-
ou monetária), qualquer incremento de valor
ção de favelas situadas em imóveis públicos.4
pode ser repartido de duas formas: igualmente
Outros instrumentos afetos à intervenção do
entre os indivíduos ou grupos sociais (distribu-
Poder Público municipal no que tange ao uso
tividade); ou desigualmente, seja beneficiando
e à ocupação do solo urbano também foram
os que têm menos (redistributividade), seja
regulamentados pelo Estatuto da Cidade: as
favorecendo os que têm mais (regressividade).
Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis); a exi-
No caso das políticas distributivas, todos ga-
gência de parcelamento, edificação e utilização
nham, sem que se altere fundamentalmente a
de imóveis vazios ou subutilizados, seguida,
situação inicial de desigualdade. Já as políticas
em caso de descumprimento, da cobrança de
redistributivas, ao contrário das distributivas,
IPTU progressivo no tempo e da imposição da
implicam uma situação do tipo “jogo de soma
desapropriação com pagamento em títulos da
zero”: alguém só pode ganhar se outro perder,
dívida pública; o direito de superfície; o direito
o que remete a uma possível disputa ou conflito
de preempção; a outorga onerosa e a transfe-
por recursos relativamente escassos.
rência do direito de construir; as operações urbanas consorciadas.
No Brasil, a concentração da renda monetária nos extratos superiores tem recebido
Não há espaço, aqui, para analisar esses
mais atenção do que a desigual apropriação,
instrumentos per se, o que, inclusive, já feito
por esses extratos, da renda advinda da va-
em outros trabalhos (Dallari e Ferraz, 2002;
lorização da propriedade imobiliária urbana,
Mattos, 2002; Osório, 2002; Rolnik et al.,
em decorrência de investimentos públicos ou
2005; Saule Jr., 2004). Considerou-se perti-
privados. Pouca atenção tem sido dada aos
nente concentrar a discussão em torno de um
efeitos regressivos, em termos de renda real,
deles, as ZEIS, pelo potencial que este institu-
do menor acesso que têm os pobres aos bens
to apresenta para viabilizar políticas públicas
e serviços urbanos (habitação, transporte, sa-
distributivas e redistributivas, capazes de ul-
neamento básico, equipamentos de educação,
trapassar os marcos convencionais do planeja-
saúde e lazer, etc.) (Vetter e Massena, 1982).
mento regulatório.
Entretanto, sendo o solo urbano um bem irreproduzível e sua ocupação inerentemente diferenciada, a concentração espacial de inves-
O EC como instrumento de políticas
distributivas e redistributivas
timentos em infraestrutura e serviços urbanos
terá como resultado um aprofundamento da
desigualdade social (Harvey, 1975; Vetter e
Na avaliação dos instrumentos do Estatuto
Massena, 1982).
da Cidade, a distinção entre políticas públicas
Os assentamentos irregulares, princi-
distributivas e redistributivas é relevante para
pal forma de moradia da população de baixa
que se possa aferir o alcance social dos bene-
renda, tipificam a reprodução da iniquidade
fícios, assim como as dificuldades maiores ou
que marca o espaço urbano. A condição de
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O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
ilegalidade fundiária e urbanística gera uma
espécie de subcidadania, baseada num ciclo
vicioso: esses assentamentos localizam-se em
terras não valorizadas no mercado imobiliário
devido à falta de infraestrutura e serviços básicos e às restrições legais para sua ocupação
parcela de área urbana instituída pelo
Plano Diretor ou definida por outra lei
municipal, destinada predominantemente à moradia de população de baixa renda e sujeita a regras específicas de parcelamento, uso e ocupação do solo (art.
47, V). (Apud Ancona, 2011)
(impedimentos decorrentes de problemas ambientais, loteamentos realizados sem a autori-
As regras a que se refere a lei federal
zação do poder público, etc.); e a irregularidade
dizem respeito a padrões urbanísticos e edi-
fundiária e urbanística, a par do reduzido poder
lícios mais condizentes com a realidade dos
de pressão dos moradores, leva à escassez de
assentamentos informais de baixa renda, em
investimentos públicos para dar condições de
termos de percentuais de áreas livres, sistema
habitabilidade a essas áreas. Em contraparti-
viário, tamanho mínimo do lote, densidades,
da, a cidade legal, onde vivem os grupos de
coeficiente de aproveitamento do terreno,
maior renda e poder de barganha, cada vez
etc. O tipo mais comum de Zeis (geralmente
mais concentra os benefícios da urbanização,
denominadas de “Zeis de ocupação”) abrange
garantindo boas condições de vida (renda real)
áreas ocupadas por assentamentos irregulares,
e ganhos no valor da propriedade imobiliária
que abrigam população de baixa renda, in-
(renda monetária). A injustiça social é reforça-
cluindo favelas e cortiços (Zeis 1) e loteamen-
da por programas de remoção de favelas ou
tos e conjuntos habitacionais (Zeis 2). Outro
revitalização urbana, que acarretam a expulsão
tipo de Zeis (chamado, em geral, Zeis de va-
dos grupos de baixa renda que vivem nas pro-
zios, ou Zeis 3) é constituído por áreas onde
ximidades ou dentro de áreas mais bem aqui-
haja terrenos, glebas e edificações vazios ou
nhoadas em termos urbanísticos. O estabeleci-
subutilizados. Ambos os tipos têm como ob-
mento de Zeis, regulamentado pelo Estatuto da
jetivo ampliar quantitativa e qualitativamente
Cidade, pode ser uma estratégia para romper o
a oferta de moradia popular, mas podem ser
círculo vicioso que prejudica a função social da
considerados como diferentes estratégias pa-
propriedade e retira dos pobres o direito consti-
ra a mesma finalidade. No caso das Zeis de
tucional à habitação digna.
ocupação, trata-se de um enfoque “curativo”,
isto é, destinado a dar solução a uma situação
já existente, mediante a regularização urbanís-
As Zonas Especiais de Interesse Social
como instrumento de políticas públicas
distributivas e redistributivas
tica e fundiária de assentamentos irregulares
precários, de modo a garantir a permanência
dos moradores no local, em condições dignas.
Já as Zeis de vazios visam a ampliar a ofer-
Segundo definição mais recente, contida na Lei
ta de habitação de interesse social em áreas
Federal nº 11.977, de 2009, as Zonas Especiais
não utilizadas ou subutilizadas, mas dotadas
de Interesse Social constituem
de boas ou razoáveis condições de transporte
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513
Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes
público, infraestrutura e equipamentos urbanos. Neste caso, o enfoque é pró-ativo, pois
almeja-se disponibilizar terrenos para a construção de moradias adequadas e acessíveis
aos pobres, de modo a evitar o crescimento ou
a formação de assentamentos irregulares.
As primeiras experiências de criação de
zonas especiais contemplaram apenas Zeis de
ocupação, sendo fruto de reivindicações de movimentos sociais em Recife (1983) e Belo Horizonte (1985). Tais experiências, anteriores ao
Estatuto da Cidade, tiveram como marco jurídico a Lei Federal nº 6.766, de 1979, que permitia
a flexibilização dos padrões urbanísticos em
casos específicos, como urbanização de favelas
ou conjuntos habitacionais de interesse social.
Somente 20 anos mais tarde, com a aprovação
da Lei nº 9.785/99, o conceito de Zeis seria incorporado à legislação federal, que estabeleceu
a possibilidade de reduzir as exigências relativas à infraestrutura em “parcelamentos situados em zonas habitacionais declaradas por lei
como de interesse social – ZHIS” (apud Ancona, 2011, s. p.).
Considera-se que as Zeis destinadas à
regularização fundiária e urbanística são parte
de uma política habitacional distributiva, pois
visam à universalização do acesso aos benefícios proporcionados aos moradores da “cidade
legal”. Já as Zeis de vazios têm características
redistributivas, pois implicam a alteração dos
padrões urbanísticos de modo a destinar para a habitação de interesse social áreas antes
retidas para valorização futura, ou destinadas
à ocupação por grupos de renda média e alta. Não por acaso, a utilização desse tipo de
Zeis nos planos diretores aprovados depois do
Estatuto da Cidade tem sido bem menor do
que as Zeis do tipo 1 e 2:
514
Certamente, a reserva de área para habitação popular em áreas cobiçadas para
outros usos, muito mais lucrativos, implica disputas e conflitos que ou foram perdidos na luta política e econômica, ou não
foram sequer enfrentados no processo de
elaboração do plano diretor. (Oliveira e
Biasotto, 2011, p. 75)
Quanto à ampla aceitação da Zeis como
instrumento de regularização fundiária, seu
papel em termos distributivos tem sido questionado, pois aceitar padrões diferenciados de
urbanização para certas partes da cidade teria
implicações para os direitos de cidadania e a
própria democracia, na medida em que poderia consagrar um padrão segregacionista de
ocupação do espaço urbano: “as Zeis institucionalizam os ‘mínimos’ de bem-estar produzidos pela espoliação urbana, legitimando
esses parâmetros dentro e fora dos territórios
regularizados” (Lago, 2004, p. 33). Pode-se
contra-argumentar que esta crítica pressupõe
uma realidade imutável, ao excluir, de saída, a
possibilidade de melhorias graduais em favor
dos grupos de baixa renda, o que irá depender,
em grande parte, da articulação e mobilização
política desses grupos e seus aliados.
De qualquer forma, a inclusão de Zeis
na maioria dos novos planos diretores indica o
reconhecimento de que os pobres, particularmente os moradores de assentamentos precários, têm direito à habitação regularizada
em termos legais e urbanísticos, com acesso
a serviços e equipamentos urbanos (Oliveira e Biasotto, 2011, p. 75). A importância de
tal resultado, em si, não deve ser subestimada, quando se considera que há 40 anos ou
menos, a remoção de favelas era a política pública predominante, fazendo com que, muitas
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O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
vezes, a habitação popular se transformasse
dos imóveis situados em Zeis (Ancona, 2011;
num caso de polícia. A regularização de assen-
Rolnik, 2005).5
tamentos de baixa renda tinha, quando mui-
Evidentemente, o sucesso da utilização
to, o status de um programa piloto ou ponto
das Zeis como instrumento para a garantia do
da plataforma política de movimentos sociais
“direito à cidade” dependerá da correlação de
(Santos, 1983). Por outro lado, se entendida
forças e capacidade de negociação entre os
como a mera obtenção da garantia de posse
atores envolvidos, como será visto na experiên-
da terra, a regularização fundiária está longe
cia do Lagamar, em Fortaleza, discutida no pró-
de ser suficiente para assegurar o direito à ha-
ximo item.
bitação. Como mostram Ferreira e Motisuke
(2007), referindo-se à experiência de Diadema, a regularização fundiária não evita a permanência ou formação de assentamentos com
O caso da Zeis do Lagamar
tipologias construtivas e padrões urbanísticos
tão precários quanto os de favelas e loteamentos periféricos.
A efetivação da Zeis de vazios, por sua
O processo de expansão urbana
e metropolitana de Fortaleza
e a questão habitacional
vez, deve ser articulada a outros instrumentos
previstos no Estatuto da Cidade, de modo a es-
Fortaleza, atualmente com cerca de 2,5 mi-
tabelecer incentivos e sanções para a compati-
lhões de habitantes, cresceu de forma intensa e
bilização entre os interesses dos proprietários
desordenada, sem fugir à regra das metrópoles
dos imóveis e o cumprimento da função social
brasileiras. Na década de 1930, surgem as pri-
da propriedade. Nesse sentido, as áreas consi-
meiras favelas, destacando-se o Pirambu, situa-
deradas Zeis de vazios no plano diretor devem
da nas dunas da faixa litorânea oeste, próximo
receber preferência quando se trata do parce-
à zona industrial, e o Lagamar, nas proximida-
lamento, edificação ou utilização compulsórios,
des do Rio Cocó, principal recurso hídrico da
bem como da aplicação do IPTU progressivo no
Bacia Metropolitana de Fortaleza (Benevides,
tempo e a desapropriação com pagamento em
2009). Entre 1950 e 1970, o contingente popu-
títulos da dívida pública. Exemplos de outras
lacional da cidade quase dobrou, elevando-se
medidas possíveis são: a transferência do po-
de 270 mil para mais de 500 mil habitantes. Em
tencial de uso, que autoriza o proprietário que
fins da década de 1960 começa a expansão pe-
doar ao poder público seu imóvel a vender o
riférica, fomentada pela construção de grandes
respectivo potencial construtivo, ao qual pode
conjuntos habitacionais financiados pelo BNH.
ser adicionado um bônus; a operação urbana
Novas favelas surgiam, em geral ocupando
consorciada, que possibilita a desapropriação
áreas destinadas a ruas e praças em loteamen-
do imóvel em Zeis, mediante pagamento em
tos irregulares, dunas na zona costeira e terre-
Certificado de Potencial Construtivo Adicional;
nos de marinha.
o direito de preempção, que estabelece a
De modo geral, os programas habitacio-
preferência de compra pelo Poder Público
nais, inclusive aqueles com maior participação
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Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes
do Estado e da Prefeitura, não foram capazes
cutivo Municipal tem sido limitada, tanto no
de alterar o quadro de exclusão espacial vigen-
que diz respeito à provisão de moradias popu-
te na cidade. Tanto é que o número de favelas
lares, quanto no que se refere à utilização dos
cresceu de 313, em 1991, para mais de 600,
instrumentos previstos pelo Estatuto da Cidade
em 2000 (PMF, 2003, p.75). Estudo patrocina-
para ordenar o crescimento da cidade, com ba-
do pelo Ministério das Cidades constatou que
se no Plano Diretor.
mais de 27% dos domicílios de Fortaleza estão
localizados em assentamentos precários, onde
reside uma população de mais de 600 mil pes-
O Plano Diretor e as ZEIS em Fortaleza
soas (Marques, 2007, pp. 87-88). A maior concentração de população de baixa renda ocorre
Na época de aprovação do Estatuto da Cida-
nas partes oeste e sul da cidade, ainda que ha-
de, Fortaleza contava com o Plano Diretor de
ja favelas situadas em bairros de alto ou médio
Desenvolvimento Urbano – PDDU-For, o qual
padrão (Campo do América e Favela das Placas
estava bastante defasado, pois fora aprovado
na Aldeota, por exemplo).
em 1992; portanto, precisaria ter sido revisto
A valorização da terra nos bairros mais
em 2002, para cumprir o prazo legal estabe-
aquinhoados com infraestrutura, equipamen-
lecido pelo Estatuto da Cidade (revisão após
tos e serviços urbanos, bem como a retenção
dez anos da aprovação). A Prefeitura Muni-
de terrenos em áreas de vazios urbanos tem
cipal, na gestão do Prefeito Juraci Magalhães
acarretado a expansão do mercado imobiliário
(PMDB), contratou para revisão e atualização
em direção aos municípios vizinhos, onde vêm
do PDDU-FOR a Associação Técnico-Científica
sendo implantados loteamentos para a popu-
Engenheiro Paulo de Frontin – ASTEF, integrada
lação de renda média e baixa, que não conse-
por técnicos e professores ligados à Universi-
gue arcar com os preços dos imóveis na capital
dade Federal do Ceará (UFC). Em fins de 2004,
(Bernal, 2004). Paralelamente, intensifica-se
quando o documento já tramitava na Câmara
a ocupação de áreas ambientalmente frágeis,
Municipal de Fortaleza, o Ministério Público,
tais como dunas e baixadas próximas a rios e
em conjunto com a Federação de Entidades de
lagoas (Gondim, 2012).
Bairros e Favelas de Fortaleza – FBFF interpôs
Desde 2006, a Prefeitura de Fortaleza
ação civil pública contra o Município de Forta-
vem realizando programas de regularização
leza e a ASTEF. Questionavam-se, entre outros
fundiária e construção de conjuntos habitacio-
aspectos, a má qualidade do diagnóstico do
nais, com o objetivo de diminuir o déficit ha-
plano diretor, que não considerara a realidade
bitacional e eliminar áreas de risco. Contudo,
específica de cada zona da cidade, e a falta de
tais conjuntos, em sua maioria, localizam-se
participação popular efetiva durante o processo
em bairros periféricos, devido ao alto preço dos
de elaboração do Plano. Tal controvérsia levou
terrenos com melhor localização – o que, inclu-
a Prefeita Luizianne Lins (Partido dos Trabalha-
sive, tem dificultado a utilização de recursos do
dores), recém-empossada, a retirar, em maio de
Programa Minha Casa, Minha Vida (Freitas e
2005, o projeto de lei da Câmara, a fim de dar
Pequeno, 2011). De modo geral, a ação do Exe-
início a um novo processo de planejamento.
516
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012
O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
Outra proposta de plano diretor foi elaborada
não era verdadeiramente pacífico, e, sobretu-
por técnicos contratados pela Prefeitura e dis-
do, postergar as matérias mais importantes, a
cutida com a população em várias audiências
exemplo das Zeis.
públicas. Assim, o novo Plano Diretor Partici-
Em outubro de 2008, a Câmara Munici-
pativo de Fortaleza (PDP-For) foi aprovado em
pal de Fortaleza acenou para a possibilidade de
dezembro de 2008.
votar o Plano Diretor somente em 2009. Diante
Inúmeras críticas têm sido apresentadas
disso, foi realizado um ato popular em frente à
ao processo participativo conduzido pela pre-
Câmara Municipal com o objetivo de sensibi-
feitura, tais como: insuficiente divulgação das
lizar os vereadores e a população, através da
atividades, manipulação de decisões das as-
mídia, a respeito da importância de se aprovar
sembleias por parte de técnicas da prefeitura,
o Plano Diretor ainda em 2008. O “Campo Po-
normas de procedimentos impostas às assem-
pular” entendia que, quanto mais se retardasse
bleias, etc. Não caberia aqui discutir em detalhe
a votação, maior o risco de que as questões po-
esses problemas, que já foram objeto de outro
lêmicas, a exemplo das Zeis, ficassem relegadas
trabalho (Machado, 2011); importa destacar,
à matéria de Lei Complementar, a serem apro-
porém, as repercussões negativas para a inclu-
vadas posteriormente ao Plano Diretor.
são das Zeis no plano diretor de Fortaleza. No
Ao fim, a votação ocorreu de fato em
decorrer das audiências públicas, algumas das
2008 e o Plano Diretor Participativo de Forta-
maiores polêmicas giravam em torno desse ins-
leza (PDP-FOR) foi sancionado e publicado em
trumento urbanístico e envolviam o chamado
2009, definindo mais de 60 áreas de Zeis, distri-
6
“Campo Popular”, pleiteando a inclusão das
buídas de forma esparsa pela cidade (Figura 1).
zonas especiais; e representantes e técnicos
Algumas áreas são bem extensas, a exemplo
contratados pelo setor imobiliário, liderados
da Zeis do Bom Jardim e da Praia do Futuro. Já
pelo Sindicato da Indústria da Construção Civil
outras não são tão grandes, como a do Passaré.
do Ceará (Sinduscon-CE), que reivindicavam a
O temor dos movimentos populares de que fos-
não-inclusão das Zeis ou, no mínimo, a inserção
sem necessárias leis complementares ao plano
de limitações para inviabilizá-las na prática.
diretor se concretizou: o Lagamar, comunidade
Uma das limitações propostas com relação às
que participou intensamente do processo de
Zeis de vazios, por exemplo, foi a regulamenta-
elaboração do PRP-FOR, só foi incluído neste
ção posterior para aquelas situadas nas proxi-
como Zeis por meio de uma lei complementar
7
midades de hotéis e outros equipamentos.
A metodologia de votação das emendas
à lei do Plano Diretor foi questionada em vá-
aprovada em fevereiro de 2010. O projeto dessa lei recebeu os votos de 21 vereadores, o mínimo necessário para aprovação
rios momentos pelos movimentos populares,
Para complementar o PDP-FOR, os ins-
pois a Câmara Municipal deu prioridade à vo-
trumentos legais mais importantes, do ponto
tação das propostas ditas “consensuais”, dei-
de vista da implementação das Zeis, são: a lei
xando para votar as emendas “polêmicas” ao
de uso e ocupação do solo de Fortaleza, que
final dos trabalhos. Esse procedimento trazia o
ainda precisa ser atualizada; os decretos es-
risco de se votar como “consensual” algo que
pecíficos necessários para elaborar os planos
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Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes
urbanísticos próprios às Zeis, bem como o de-
terrenos de brejo e áreas de mangues, sob
creto que regulamentará o funcionamento dos
influência direta do Rio Cocó e do Riacho Taua-
Conselhos Gestores de cada uma delas.
pe. Mesmo atualmente, após a realização de
Outra dificuldade para a implementação
algumas obras de drenagem e urbanização,
das Zeis são as grandes obras que serão reali-
a área está sujeita a enchentes, sobretudo na
zadas em Fortaleza, uma das cidades-sede da
estação chuvosa, quando o canal do Lagamar
Copa do Mundo de 2014. Algumas das inter-
transborda e atinge as casas próximas.
venções previstas, sobretudo viárias, tem im-
O acesso e a mobilidade urbana são pon-
pacto direto em áreas de Zeis, como é o caso
tos bastante destacados na fala dos moradores
do Lagamar.
como fatores positivos do local onde vivem,
pois as ligações de transporte são numerosas, e
muitos se orgulham de morarem “praticamen-
O Lagamar e sua história
te no centro da cidade”, “perto de tudo”.10 Esses mesmos fatores, contudo, fazem com que o
8
O Lagamar é uma comunidade inserida en-
setor imobiliário tenha grande interesse na re-
tre bairros populares (Aerolândia, São João
moção da comunidade. O próprio Poder Público
do Tauape, Pio XII e Alto da Balança), situada
compartilha esse interesse, na medida em que
à margem da BR-116, no sentido sul-norte.
a retirada de parte da ocupação dará espaço
Trata-se de uma área privilegiada em termos
para a construção de grandes obras viárias co-
de acesso a grandes equipamentos urbanos
mo a duplicação e o viaduto na Avenida Raul
e institucionais, comércio, shopping centers e
Barbosa, para privilegiar o acesso ao Estádio
serviços. As grandes vias que fazem limite com
do Castelão e ao Aeroporto.
o Lagamar, a Av. Raul Barbosa e a BR-116 (Figura 2), dão acesso direto ao Aeroporto Internacional Pinto Martins e ao Castelão, estádio
que receberá os jogos da Copa de 2014. Dessa
O Lagamar e os conflitos
pelo direito à cidade
forma, além de área de grande interesse imobiliário, o Lagamar é um ponto estratégico em
O histórico de resistência dos moradores pela
termos de mobilidade urbana e acesso ao me-
permanência no Lagamar é antigo: há relatos
gaevento que ocorrerá em Fortaleza.
de conflitos pela posse da terra desde 1950, in-
A comunidade é uma das mais antigas
tensificados nas décadas de 1960 e 1970, quan-
de Fortaleza, datando da década de 1930 a
do ocorreu grande valorização da área, em vir-
chegada das primeiras famílias àquela locali-
tude da construção da Avenida Perimetral e do
dade (Oliveira, 2003). Sua população, estima-
adensamento do bairro Água Fria, situado nas
9
da atualmente em 12 mil moradores, teve um
proximidades. Na década de 1980, houve uma
expressivo crescimento na década de 1950,
intensa mobilização da comunidade por obras
em decorrência do êxodo rural para Fortaleza,
de urbanização, paralelamente à resistência às
provocado por uma grande seca. A área ocupa-
remoções realizadas pelo Governo para a cons-
da pelos primeiros moradores consistia em
trução do prolongamento da Avenida Borges
518
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O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
de Melo (Gomes, 2010). Na mesma época, cen-
luta contra a ‘Proafa’ [órgão do governo es-
tenas de famílias do Lagamar foram reassenta-
tadual encarregado da política de remoção de
das no Conjunto Habitacional Tancredo Neves,
favelas]” (Diógenes, 1991, p. 231). Também
situado nas proximidades.
desempenhou um papel importante na mobi-
Em contrapartida às ameaças de remo-
lização de moradores a Fundação Marcos de
ção, os moradores discutiam a permanência na
Brüin, organização não-governamental cria-
área não apenas como reivindicação pontual,
da em 1990, por iniciativa de um grupo de
mas como expressão do direito à moradia,
alemães e lideranças da comunidade ligados
parte de um conjunto maior de direitos (Dió-
às CEB’s, com o objetivo de desenvolver proje-
genes, 1991). As estratégias de luta, por um
tos educacionais e profissionalizantes na área
lado, enfatizavam a “conscientização” e o uso
do Lagamar.
de recursos institucionais, como uma ação de
Na década de 1990, refletindo a nova
reintegração de posse, assinada inicialmente
conjuntura política, torna-se mais conspícua
por 26 moradores, número que se elevou para
a presença do Estado não só no Lagamar, co-
600, em 1981; por outro lado, recorria-se a
mo em todas as comunidades de baixa renda.
“ações mais visíveis e ofensivas” como atos
O chamado à “participação” em programas
públicos, passeatas e ocupações (Diógenes,
e projetos governamentais, inclusive em mu-
1991, p. 237). Chamou a atenção da mídia e
tirões habitacionais, tenta transformar as as-
dos órgãos governamentais as “invasões” às
sociações de moradoras em “parceiras”, com
unidades habitacionais ainda não concluí-
riscos de cooptação e divisões dentro das co-
das no Conjunto Tancredo Neves, após fortes
munidades. Essa estratégia foi reforçada nas
chuvas, em fevereiro de 1983. Com a publici-
gestões de Juraci Magalhães (PMDB), político-
zação do conflito, fica evidente a presença de
-populista que controlou a administração mu-
outros articuladores políticos dividindo espaço
nicipal, direta ou indiretamente, entre 1991 e
com o movimento social: além de duas asso-
2004 (Gondim, 2007).
ciações de moradores e das CEB’s, militantes
A “era Juraci” chegou ao fim em 2005,
de partidos políticos e representantes de as-
quando tomou posse a prefeita Luizianne Lins,
sociações de classe (tais como o Partido dos
do Partido dos Trabalhadores. As cidades bra-
Trabalhadores – PT e a Central Única dos Tra-
sileiras dispunham então dos instrumentos
balhadores – CUT). Note-se que os movimen-
criados ou regulamentados pelo Estatuto da
tos sociais do Lagamar são exemplares das
Cidade, contando com o apoio do Ministério
tendências discutidas na primeira parte deste
das Cidades para dar efetividade ao direito à
trabalho: muitas das atuais lideranças comuni-
habitação e à democratização do planejamento
tárias iniciaram sua trajetória nas Comunida-
e da gestão urbana. A partir de 2005, morado-
des Eclesiais de Base ou no Conselho de Mora-
res do Lagamar, articulados em torno da Fun-
dores do Lagamar, cuja ação, com forte cunho
dação Marcos de Brüin, passaram a participar
religioso, “[...] desde o início estava ancorada
de várias instâncias de deliberação popular
na vida e nos problemas dos moradores do
sobre a cidade, como o Orçamento Participati-
bairro; como também na questão relativa à
vo e os Conselhos de Desenvolvimento Social e
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Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes
de Segurança Pública. Esses atores sociais esti-
o Núcleo de Assessoria Jurídica Comunitária
veram, também, presentes desde as primeiras
(Najuc) e o Centro de Assessoria Jurídica Uni-
audiências públicas para elaboração do Plano
versitária (Caju). O bairro foi dividido em oito
Diretor, e integraram uma frente de movimen-
quadras, cada uma delas com uma comissão de
tos sociais – o Campo Popular, já mencionado –
mobilização. Por meio de atividades de teatro,
para discutir os artigos propostos para a Lei do
música e cinema realizavam-se debates sobre
Plano Diretor. Segundo depoimentos de alguns
a cidade e especificamente sobre o Lagamar,
moradores, havia um compromisso, por parte
fomentando a participação dos moradores na
da Prefeitura de Fortaleza, de que o Lagamar,
discussão e na pressão política pela Zeis.
com a aprovação do Plano, seria uma das Zeis.
Essa mobilização culminou com a Gran-
Entretanto, na lei do Plano Diretor aprovada
de Marcha pela ZEIS do Lagamar, realizada em
pela Câmara Municipal de Fortaleza em 2008,
17 de novembro de 2009. Os participantes per-
o Lagamar não constava nem no texto, nem
correram cerca de dois quilômetros ao longo
nos mapas referentes às Zeis – ausência tanto
da Avenida Murilo Borges, via de considerável
mais chocante para os moradores, quando se
fluxo de veículos. O ponto de chegada da mar-
considera que, dentre todas as comunidades
cha foi a Câmara Municipal de Fortaleza, onde
que participaram ativamente nos debates na
foi realizado um ato pela votação da Lei Com-
Câmara Municipal sobre o PDP-For, o Lagamar
plementar referente à Zeis do Lagamar. Essa
foi a única não incluída como Zeis.
manifestação contou com a participação de
De janeiro a junho de 2009, alguns mora-
cerca de 500 pessoas, entre moradores, lide-
dores, lideranças comunitárias e entidades não-
ranças comunitárias, membros de ONG´s, estu-
-governamentais tentaram discutir a questão
dantes e apoiadores do Lagamar, repercutindo
com representantes da Prefeitura, mas as reu-
junto ao Poder Público e às mídias locais.11 O
niões costumavam ser desmarcadas pela asses-
objetivo da caminhada era dar publicidade ao
soria da Administração Municipal. Durante esse
movimento e reivindicar junto à Câmara e a
período, os moradores buscaram o apoio de
Prefeitura a aprovação da Lei Complementar
outros movimentos populares e de setores da
referente à Zeis, em caráter de urgência, ainda
Universidade, para aprofundar o debate sobre
no ano de 2009.
as Zeis e divulgar as demandas do Lagamar. A
A marcha é citada de forma recorrente
fim de se contrapor à inércia governamental,
no discurso dos moradores que falam da “luta
em julho do mesmo ano foi formado o Fórum
pela Zeis”, como um ato importante para afir-
da Zeis do Lagamar, que promoveu várias ativi-
mação de seus direitos e de sua expressão po-
dades com o objetivo de chamar a atenção dos
lítica, possuindo forte carga simbólica, percep-
moradores, sobretudo dos jovens, para a neces-
tível mesmo nas conversas informais. De fato, o
sidade da inclusão da área como Zeis. Um papel
evento foi um marco para o movimento social,
importante nesse momento foi desempenhado
sobretudo porque em março de 2010 foi apro-
pela Fundação Marcos de Brüin, com a parti-
vada a lei que reconhece a Zeis do Lagamar. Ao
cipação de três projetos de extensão da UFC:
longo desse ano, o Fórum da Zeis do Lagamar
o Núcleo de Psicologia Comunitária (Nucom),
promoveu discussões sobre o significado desse
520
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O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
instrumento urbanístico e seu conselho ges-
a 7 metros à direita e a 17 metros à esquerda
tor, como possibilidade de controle social das
terão que ser demolidas.
políticas públicas dentro da Zeis. Especialistas
Um dos problemas com relação a essa
das áreas do Direito e da Arquitetura, alguns
obra é que ela é de responsabilidade do Gover-
inclusive técnicos da Prefeitura Municipal, pres-
no do Estado, e quem discute a Zeis com o La-
taram esclarecimentos sobre o papel do Conse-
gamar é o Município. Até o momento, segundo
lho, suas atividades, os direitos e deveres dos
os moradores, não houve reunião oficial entre
conselheiros, e ainda sobre a eleição de seus
os dois entes governamentais para discutir a
membros. Algum tempo depois, a comunidade
situação das comunidades afetadas. No discur-
foi a primeira em Fortaleza a eleger seu Conse-
so dos moradores, essa falta de diálogo entre
12
lho Gestor, o que demonstra a possibilidade
as instâncias governamentais configura uma
de ser a primeira Zeis a ser de fato implemen-
afronta ao Plano Diretor, pois esse define que
tada no município.
uma das prioridades em áreas Zeis é a não re-
Atualmente, uma das maiores preocupa-
moção forçada da população, remoção esta que
ção dos moradores do Lagamar são as obras
ocorrerá se a obra do VLT for levada adiante.
para a Copa de 2014, que preveem a remoção
Quanto à Avenida Raul Barbosa, em 18 de maio
de parte das casas da comunidade. São pre-
de 2011 a Prefeitura Municipal de Fortaleza dis-
vistas duas grandes intervenções para a área:
se13 ter desistido deste e de duas outras obras
a construção de uma estação do Veículo Leve
de alteração viária, mas a decisão ainda não foi
sobre Trilhos (VLT); e a duplicação e construção
comunicada oficialmente aos moradores.
de um viaduto sobre a Avenida Raul Barbosa.
Os conselheiros afirmam que sendo o La-
O VLT é uma obra de grande porte que passará
gamar uma Zeis, o Poder Público está vinculado
por quase toda a cidade, sendo estimada a re-
às diretrizes urbanísticas previstas para aque-
moção de cerca de 2 mil famílias em Fortaleza.
la área, e quaisquer alterações (sejam ou não
No Lagamar, será construída uma das estações
para a Copa) deverão contar com a aprovação
do VLT, e esse passará sobre um antigo trilho
do Conselho Gestor. Para eles, a remoção das
ferroviário já existente na comunidade. No en-
famílias deve ser a última alternativa, aceita
tanto, segundo o planejamento da obra, um
somente após serem consideradas todas as
trilho não será suficiente, de forma que haverá
demais possibilidades, e mesmo assim com a
construção de mais dois além do que já existe.
garantia de que os moradores sejam reassen-
Para a realização do empreendimento, o Gover-
tados em áreas próximas – ou seja, a remoção
no do Estado estima que cerca de 800 famílias
deve ser entendida como medida excepciona-
terão de ser removidas, em razão da proximida-
líssima. É interessante notar como essas falas
de das casas com o trilho que já existe. No sen-
convergem com o discurso técnico, ao reprodu-
tido Parangaba-Mucuripe, orientação prioritá-
zirem o Plano Diretor de Fortaleza, que, em seu
ria do VLT, está previsto que as casas existentes
artigo 5º, XVI, afirma:
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012
521
Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes
São diretrizes da política de habitação e
regularização fundiária:
[...]
XVI — garantia de alternativas habitacionais para a população removida das áreas
de risco ou decorrentes de programas de
recuperação e preservação ambiental e
intervenções urbanísticas, com a participação das famílias na tomada de decisões
e reassentamento prioritário em locais
próximos às áreas de origem do assentamento. (grifo nosso)
Especiais de Interesse Social são uma possibilidade de enfrentamento destas contradições,
pois nelas a legislação estabelece que o investimento em políticas públicas é prioritário.
É importante destacar que a Zona Especial de Interesse Social é um instituto ao
mesmo tempo político, jurídico e social, permitindo que a discussão em torno da habitação
popular não aponte como caminho único as
remoções de favelas e a construção de conjuntos habitacionais. Um dos objetivos da Zeis é
Apesar de já instituído e em pleno funcio-
a fixação das populações locais no território
namento, o Conselho Gestor da Zeis do Laga-
onde elas já residem, ressalvados os casos em
mar apresenta dificuldades no que diz respeito
que removê-las seja a única alternativa para se
à efetividade de suas decisões. Os conselheiros
garantir a melhoria do padrão de vida e a se-
apontam para a falta de investimentos munici-
gurança dos habitantes, como ocorre em áreas
pais para a comunidade, ainda que o PDP-For
de risco ambiental.
tenha definido as Zeis como áreas prioritárias
Ademais, destaca-se a importância das
para investimentos governamentais em habi-
chamadas Zeis de vazio para o ordenamento
tação, saúde, educação e geração de trabalho
urbano, uma vez que estas visam assegurar a
e renda. Identificam, ainda, falta de vontade
destinação de terras bem localizadas e dota-
política da Administração Municipal para imple-
das de infraestrutura para as classes popula-
mentar os planos de regularização fundiária e
res, criando uma reserva de mercado de terras
urbanística, isto é, ações integradas que visem
para a habitação de interesse social. Assim,
tanto à expedição de títulos de propriedade aos
a instituição das Zeis de vazio tanto amplia a
moradores, quanto à adequação das ocupações
oferta de terras urbanizadas para a população
irregulares aos padrões urbanísticos locais.
de baixa renda, como permite melhores condições de negociação da prefeitura com os proprietários de terras bem localizadas.
Conclusão
A análise de um movimento social como o
do Lagamar aponta para as contradições urbanas decorrentes da concentração de investimentos públicos nas áreas onde vivem as
classes média e alta, em detrimento das áreas
onde vivem os pobres, ou seja, a maioria da
população urbana (Kowarick, 2000). As Zonas
522
A pesquisa sobre a qual se baseia o presente trabalho indica o potencial das Zeis para
permitir o acesso à habitação, entendida como um bem que não se limita à moradia em si,
requerendo também condições adequadas de
habitabilidade – o que, por sua vez, pressupõe
o acesso à terra urbanizada. Nesse sentido, a
luta pela demarcação da Zeis do Lagamar é
uma manifestação das disputas pelo espaço
urbano em Fortaleza, pois estão em jogo a
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012
O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
garantia do acesso à terra, ao transporte e aos
da garantia ao direito à cidade, mediante
serviços públicos em geral.
políticas redistributivas, na medida em que
Para os moradores do Lagamar, a Zeis
se concretize a prioridade, estabelecida em
significa uma real inserção na cidade, a pos-
lei, de localização de investimentos públi-
sibilidade de sair de uma situação de irregu-
cos nas áreas incluídas em Zeis. No entanto,
laridade, seja do ponto de visto urbanístico,
como se trata de instrumentos recentes na
jurídico ou social. A Zeis do Lagamar represen-
realidade social e jurídica nacional, fazem-
ta, assim, a concretização do direito à cidade,
-se necessários mais estudos e observações
ao menos em termos de expectativa, já que os
acerca de sua implementação em várias
moradores também percebem que a disputa
cidades brasileiras, a fim de que se possa
ainda não acabou.
avaliar sua efetiva contribuição para um de-
De um modo geral, as Zeis permitem
tratar o problema da habitação no contexto
senvolvimento urbano mais compatível com
a justiça social.
Linda Maria de Pontes Gondim
Socióloga. Doutora em Planejamento Urbano e Regional. Professora Associada do Departamento de
Ciências Sociais e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará.
Coordenadora do Laboratório de Estudos da Cidade – LEC/UFC. Fortaleza/CE, Brasil.
[email protected]
Marília Passos Apoliano Gomes
Advogada pesquisadora do Laboratório de Estudos da Cidade – LEC/UFC. Mestranda no Programa
de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal do Ceará. Fortaleza/CE, Brasil.
marí[email protected]
Notas
(1) Trata-se da pesquisa que vem sendo realizada com o apoio do CNPq para a dissertação de
Mestrado de Marília Passos, sob a orientação da profa. Linda Gondim, junto ao Programa de
Pós-Graduação em Sociologia da UFC.
(2) Os princípios do MNRU remontam ao período anterior ao governo militar, tendo sido discu dos
no Seminário de Habitação e Reforma Urbana, promovido pelo Instituto dos Arquitetos do
Brasil em Petrópolis-RJ, em 1963. Na ocasião foram propostas a criação de um órgão federal
de polí ca urbana, a elaboração de um plano nacional de habitação e a desapropriação sem
pagamento de prévia indenização em dinheiro, para fins de habitação popular, localização de
equipamentos públicos e “aproveitamento do território” (apud Bassul, 2005).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012
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Linda Maria de Pontes Gondim e Marília Passos Apoliano Gomes
(3) O EC incluiria nessa exigência as cidades integrantes de regiões metropolitanas, aglomerações
urbanas, áreas especiais de interesse turístico e as cidades onde o Poder Público municipal
queira u lizar os instrumentos de sanção previstos no ar go 182 da Cons tuição Federal.
(4) Os ar gos do Estatuto da Cidade rela vos à regularização fundiária em imóveis públicos foram
vetados pelo Executivo, mas logo em seguida, a Medida Provisória n. 2.220, de 4/9/2001
aprovou, com modificações, a concessão especial para fins de moradia como instrumento para
permi r essa regularização. Ver, a respeito, Alfonsín, 2002.
(5) Ressalte-se que esses instrumentos podem ser utilizados para outras finalidades além da
habitação popular. Por exemplo, o direito de preempção pode ser utilizado para adquirir
imóveis necessários ao ordenamento e direcionamento da expansão urbana, o que confere
ampla flexibilidade à sua des nação.
(6) O Campo Popular de Ar culação pelo Plano Diretor Par cipa vo de Fortaleza era integrado pelo
Movimento dos Conselhos Populares (MCP), a ONG Periferia, a Fundação Marcos de Bruin,
o Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), a
Federação de En dades de Bairros e Favelas de Fortaleza (FBFF), a Central dos Movimentos
Populares (CMP) e a Rede Estadual de Assessoria Jurídica Universitária (REAJU).
(7) Art. 138, parágrafo único: “A regulamentação das Zeis especificará regras em imóveis situados nos
alinhamentos de vias públicas que limitem hotéis, postos de combus vel, depósitos de gasolina,
depósitos de gás, depósitos de explosivos, depósitos de cimento, subestações rebaixadoras de
tensão da Coelce, rotatórias de trânsito de veículos, pontes e viadutos e imóveis não edificados
que não atendam aos critérios estabelecidos nesta Lei, para serem parte de Zeis 3, incluídos os
demarcadores descritos, respec vamente, nos mapas e anexos desta Lei”.
(8) U lizamos preferencialmente o termo “comunidade” ao nos referirmos a situações concretas
como a do Lagamar, devido ao es gma associado à designação de “favela”. Para uma discussão
mais aprofundada sobre a per nência destes e de outros termos, ver: Gondim, 2010; Piccolo,
2006; Zaluar, 1997.
(9) A es ma va populacional advém de recente levantamento da Prefeitura Municipal de Fortaleza,
exposto em reportagem do jornal Diário do Nordeste, disponível em h p://diariodonordeste.
globo.com/materia.asp?codigo=693159.
(10) As citações de falas de moradores são provenientes da pesquisa de campo para a dissertação de
Mestrado de Marília Passos, como foi mencionado na Introdução.
(11) A marcha, além de ser tema de matéria nos grandes jornais locais, também foi divulgada em
vários outros sites e blogs, a exemplo das seguintes no cias selecionadas: h p://www.cutceara.
org.br/no cias/2008_texto2.asp?id=5639&a=c e h p://movimentogritodajuventude.blogspot.
com/2009/11/grande-marcha-em-defesa-do-lagamar.html. Acesso em: 18 nov 2009.
(12) O Conselho Gestor da ZEIS do Lagamar é composto por seis membros da Administração
Municipal e seis moradores da comunidade.
(13) O anúncio da Prefeitura Municipal de Fortaleza sobre a desistência do alargamento da Avenida
Raul Barbosa foi veiculado na seguinte matéria do jornal O Povo Online: h p://www.opovo.
com.br/app/opovo/fortaleza/2011/05/28/no ciafortalezajornal,2250022/prefeitura-desistede-alargar-parte-das-vias-de-acesso-ao-castelao.shtml. Acesso em: 20 jun 2011.
524
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012
O direito à cidade em disputa: o caso da Zeis do Lagamar (Fortaleza-CE)
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Texto recebido em 4/out/2011
Texto aprovado em 12/dez/2011
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 507-527, jul/dez 2012
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Proposta de índice de mobilidade
sustentável: metodologia e aplicabilidade
Proposal of an index of sustainable mobility:
methodology and applicability
Laura Machado
Emilio Merino Dominguez
Miroslova Mikusova
Resumo
O Índice de Mobilidade Sustentável (IMS) foi desenvolvido como uma ferramenta de auxílio no
planejamento e na gestão da mobilidade. Além
de quantificar os deslocamentos das pessoas, traduz qual o modo utilizado e quantifica os impactos
decorrentes destas escolhas na sustentabilidade urbana e pode, portanto, apontar as prioridades de
investimento dos recursos públicos. Para a composição do IMS foram selecionados indicadores a partir de dois critérios básicos: a existência dos dados
e que esses fossem coletados anualmente. Ao ser
aplicado em dez cidades da Região Metropolitana
de Porto Alegre, revelou as deficiências no planejamento e na gestão da mobilidade regionais. No
âmbito local, percebeu-se a incapacidade das prefeituras em obter informações das operadoras do
transporte coletivo e a ausência de diretrizes para
promover o transporte não-motorizado.
Abstract
The Index of Sustainable Mobility (ISM) was
developed to be a tool to assist in mobility
planning and management, so as to indicate
priorities of public resources investment. The ISM
quantifies the movements of people, translates
the mode used for travel and quantifies the
impacts of these choices on urban sustainability.
For the composition of the ISM, indicators were
selected based on two basic criteria: the existence
of data and that they were collected annually.
The application of the ISM to ten cities in the
Metropolitan Region of Porto Alegre (southern
Brazil) revealed deficiencies in regional mobility
planning and management. Locally, the inability
of municipal governments to obtain information
from public transport operators was noted, as
well as the lack of guidelines to promote nonmotorized transport.
Palavras-chave: mobilidade; sustentabilidade;
indicadores.
Keyworks: mobility; sustainability; indicators.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Laura Machado et al.
Introdução
seja, acompanhar o comportamento ou resultados de determinadas ações. Uma ferramenta
que pode auxiliar nesta questão é o uso de in-
Ainda que as cidades sejam todas diferentes,
dicadores, pois são considerados tecnicamente
enfrentam desafios semelhantes e por isso
apropriados para comparações geográficas e
procuram soluções comuns para enfrentar seus
temporais. Bons indicadores são aqueles que
problemas. O aumento dos impactos negativos
levam informações aos planejadores de forma
advindos das altas taxas de motorização impõe
rápida e confiável. Dependendo da quantidade
uma reflexão sobre a questão da mobilidade
de informações que traduzem da situação que
urbana (Braga, 2006; Keinert et al., 2002).
está sendo avaliada, possibilitam o entendi-
A massificação do uso do automóvel per-
mento das inter-relações, ou seja, apresentam
mitiu o espraiamento do perímetro urbano, o
uma visão holística da realidade (Campos e
que aumentou as distâncias, gerou mais deslo-
Rramos, 2005; Litman, 2007).
camentos, maiores congestionamentos, aumen-
Devido a sua complexidade e abrangên-
to dos níveis de poluição sonora e atmosférica.
cia, os indicadores de sustentabilidade da mo-
Estima-se que, em regiões congestionadas, o
bilidade tem sido tema de diversos estudos,
tráfego de veículos responda por cerca de 90%
pois ainda não há um consenso sobre quais
das emissões de CO, 80% de NOx, hidrocarbo-
são os indicadores-chave que devam compor
netos e uma boa parcela de particulados, cons-
um conjunto padrão ou uma “linha de base”.
tituindo uma ameaça à saúde (Teixeira et al.,
No entanto, não basta um bom conjunto de
2008). Mais carros também significam maior
indicadores se não há dados para alimentá-
insegurança viária, pois aumenta o risco de
-los. E é esse o quadro que se apresenta na
acidentes, atropelamentos e mortes no trânsito.
maioria das cidades brasileiras a escassez de
Esse contexto pode piora quando se tra-
informações. Afora nas capitais e nas grandes
ta da população de baixa renda, pois aumenta
cidades, na maioria dos municípios o poder
sua dependência do transporte público para
público não possui rotinas de coleta de dados,
acessar os serviços e equipamentos urbanos,
suas secretarias não possuem infraestrutura
gera mais uma despesa no orçamento domés-
ou pessoal qualificado para este fim. Quando
tico, aumenta o tempo despendido no trânsito,
o problema não é político a grande dificuldade
questões que impactam diretamente na quali-
é financeira. Esta realidade fez com que se se-
dade de vida desta população.
lecionasse um conjunto básico de indicadores
Acredita-se que um ponto-chave para
com dados existentes fornecidos por órgãos
recuperar a qualidade de vida urbana, requa-
estatísticos nacionais e regionais a fim de
lificar os espaços públicos, promover a equi-
tornar o sistema factível e menos oneroso ao
dade nos deslocamentos e reduzir a poluição
poder público quando da sua aplicação. Este
ambiental está no planejamento e no gerencia-
artigo apresenta a proposta metodológica do
mento da mobilidade (Costa, 2008; Magagnin,
Índice de Mobilidade Sustentável e sua aplica-
2008). Um bom gerenciamento necessita de
ção em dez municípios da Região Metropolita-
monitoramento e avaliações periódicas, ou
na de Porto Alegre.
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Proposta de índice de mobilidade sustentável
A mobibilidade sustentável
transporte público, ou seja, os elevados custos
A mobilidade não pode ser considerada um
social e a segregação espacial.
das tarifas contribuem para agravar a exclusão
propósito em si. Seu principal objetivo é pro-
O Livro Verde sobre os Transportes Urba-
porcionar ligações que permitam às pessoas
nos, revisão do Livro Branco sobre Transportes,
planejarem sua vida pessoal e profissional. O
afirma a necessidade de repensar a mobilidade
foco da mobilidade deve estar nas pessoas,
urbana através da otimização do uso de todos
incluindo aquelas com necessidades especiais
os modos, da organização da intermodalidade
como crianças, idosos e portadores de defi-
entre os diferentes meios de transporte cole-
ciência. A mobilidade, ao promover o acesso
tivo (bonde, metro, ônibus, táxi) e individual
aos serviços essenciais a toda a população, é
(automóvel, bicicleta, deslocamento a pé) para
reconhecida como um importante pré-requisi-
atingir a prosperidade econômica, a qualidade
to para a melhoria do padrão de vida urbana
de vida e a preservação ambiental.
Segundo a Organização para a Coope-
(Gomide, 2003).
A promoção do transporte público e dos
ração e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e
meios não-motorizados é considerada uma es-
o Centre for Sustainable Transportation (CST),
tratégia de inclusão social. No entanto, pesqui-
um sistema de transportes é considerado sus-
sas demonstram que, nas regiões metropolita-
tentável quando apresenta as características
nas brasileiras, a faixa de população com renda
relacionadas no Quadro 1 (Gudmundsson, 2003;
de até três salários mínimos não tem acesso ao
Litman, 2007; OECD, 2009; Summa, 2004).
Quadro 1 – Características da Mobilidade Sustentável
Dimensão
Características
Ambiental
Minimiza as atividades que causam problemas de saúde pública e danos ao meio ambiente;
Reduz a produção de ruído;
Minimiza o uso do solo;
Limita os níveis de emissões e resíduos dentro daqueles que o planeta possa absorver;
Utilize recursos renováveis;
Potencializa fontes de energias renováveis; e
Reutiliza e recicla seus componentes
Social
Provê acesso a bens, recursos e serviços de forma a diminuir as necessidades de viagens;
Opera com segurança;
Assegura o movimento seguro de pessoas e bens;
Promove equidade e justiça entre sociedade e grupos;
Promove equidade intragerações
Econômica
Possui tarifa acessível (affordability)
Opera de forma eficiente para dar suporte à competitividade econômica;
Assegura que os usuários paguem o total dos custos sociais e ambientais devido às suas
opções pelo modo de transporte
Fonte: SUMMA, 2004.
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531
Laura Machado et al.
Dentro dessa visão e diante das atuais
avaliadas e revisadas continuamente. Para que
condições de mobilidade e dos serviços de
este processo funcione é imprescindível que
transporte público no Brasil, a atuação da Se-
haja uma sistematização de um conjunto de
cretaria de Mobilidade Urbana vem trabalhan-
indicadores com uma metodologia regular de
do em três eixos estratégicos: a promoção da
coleta dos dados (Brasil, 2010).
cidadania e a inclusão social por meio da uni-
Dependendo da quantidade de informa-
versalização do acesso aos serviços públicos de
ção utilizada em sua definição, os indicadores
transporte coletivo e do aumento da mobilida-
classificam-se em simples e compostos. Os
de urbana; a promoção e o aperfeiçoamento
primeiros são autoexplicativos, descrevem ime-
institucional, regulatório e da gestão no setor;
diatamente um determinado aspecto da reali-
e da coordenação das ações para a integração
dade (número de automóveis, por exemplo) ou
das políticas da mobilidade e destas com as de-
apresentam a relação entre situações ou ações
mais políticas de desenvolvimento urbano e de
(relação entre o número de automóveis e tipo
proteção ao meio ambiente.
de combustível). Essa funcionalidade permite
O cumprimento dessas ações passa, ne-
que os indicadores possam ser utilizados em
cessariamente, pelo desestímulo ao uso do
diferentes momentos do ciclo de gestão, quais
automóvel. Se, por um lado, o governo apre-
sejam: (1) ex-ante: no diagnóstico de situação,
senta diretrizes sustentáveis na sua política
para subsidiar a definição do problema, o dese-
de mobilidade, por outro, financia e promove
nho de uma política ou a fixação das referên-
o transporte individual por meio de incentivos
cias que se deseja modificar; (2) in curso: para
às montadoras de automóveis e da facilidade
monitoramento e avaliação da execução, revi-
de crédito para sua aquisição, com o propósito
são do planejamento e correção de desvios; e
de diminuir o desemprego. Essa é uma questão
(3) ex-post: para avaliação de alcance de metas
política que deve ser enfrentada, pois, apesar
(Brasil, 2010; Kayano e Caldas, 2002; Nahas,
de haver uma resistência da população neste
2005).
sentido, não é socialmente viável nem ambientalmente sustentável.
A seleção dos indicadores varia conforme as estratégias adotadas em cada país ou
região e dependem, na prática, da existência
e disponibilidade dos dados, de definições e
Indicadores de mobilidade
métodos consistentes de coleta. Há uma certa complexidade em relação ao que medir
Indicador é um recurso metodológico que infor-
quando se avalia os impactos da mobilidade
ma sobre a evolução/involução do aspecto ob-
motorizada sobre a qualidade de vida e a sus-
servado, é útil ao planejamento quando supre
tentabilidade (Quadro 2). Pesquisadores como
os gestores com dados e bases comparativas
Campos e Ramos (2005), Hall (2006), Jeon
periódicas sobre determinada situação. De pos-
(2005), Zegras (2006), Litman (2008), Cos-
se de um diagnóstico do problema ou demanda
ta (2008), entre outros, vêm desenvolvendo
que conduzirá o planejamento ou implementa-
um extenso trabalho no sentido de compilar
ção de políticas, essas devem ser monitoradas,
aqueles indicadores que melhor traduzam os
532
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Proposta de índice de mobilidade sustentável
Quadro 2 – Principais impactos dos transportes
nas três dimensões da sustentabilidade
Econômicos
Ambientais
Sociais
Acessibilidade
Uso de recursos
Acessibilidade e affordability
Custos operacionais dos
Intrusão no ecossistema
Segurança e proteção
transportes
Emissões atmosféricas
Saúde
Produtividade/Eficiência
Contaminação do solo e água
Habitabilidade
Custos para Economia
Ruído
Equidade
Benefícios para a economia
Produção de resíduos
Coesão social
Fonte: Litman, 2008.
objetivos da mobilidade sustentável. Ao ana-
estruturação da região se inicia com a indus-
lisar estas iniciativas depara-se com um alar-
trialização liderada pela capital e pelos muni-
gamento significativo do sobre o que medir,
cípios do eixo Norte-Sul (BR-116), eixo histo-
como medir, quanto e quando medir.
ricamente privilegiado, por receber a primeira
Porém, quando não há fontes de dados
ferrovia do Estado. Em sua formação original, a
importantes, a realidade da maioria dos mu-
região contava com quatorze municípios. Após
nicípios brasileiros de pequeno e médio porte,
sofrer desmembramentos, emancipações e in-
condiciona, de certa forma, a seleção de indi-
corporações, atualmente a RMPA conta com
cadores. Nesta proposta de Índice foram ado-
31 municípios divididos em cinco sub-regiões.
tados os seguintes critérios para seleção dos
A RMPA1, localizada ao Norte, agrega os mu-
indicadores: sua importância e relevância para
nicípios do Vale dos Sinos, polarizada por No-
o acompanhamento dos principais impactos da
vo Hamburgo e São Leopoldo; caracteriza-se
mobilidade e a disponibilidade de dados.
por ser um centro com forte especialização no
setor coureiro-calçadista e na educação superior. Ao Sul está a RMPA2, polarizada por Porto
Caracterização da área
de estudo
Alegre, caracterizada por um parque industrial
dos setores petroquímico, metalúrgico, alimentação e automotivo e por uma elevada hierarquia de serviços. À Leste e Oeste localizam-se
A Região Metropolitana de Porto Alegre
as RMPA’s 3, 4 e 5 formadas por municípios
(RMPA) situa-se na zona nordeste e mais densa
que possuem atributos marcadamente rurais
do Estado do Rio Grande do Sul. O processo de
(Mammarella, 2009).
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
533
Laura Machado et al.
A busca por soluções integradas no siste-
inicialmente ligou Porto Alegre a Sapucaia do
ma de planejamento do transporte público da
Sul e, em 2000, chegou ao município de São
região remonta de 1976 quando a Empresa Bra-
Leopoldo. Possui uma extensão de 34 km e 17
sileira de Planejamento de Transportes (Geipot)
estações em cinco municípios da RMPA (Por-
em conjunto com a Fundação Estadual de Plane-
to Alegre, Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul e
jamento Metropolitano e Regional (Metroplan)
São Leopoldo). A expansão até Novo Hambur-
elaboraram o Plano Diretor de Transportes Urba-
go (9,3km) está prevista para o ano de 2012
nos Plamet-PA e, na década seguinte, o Estudo
(Brasil, 2010). A frota de transporte coletivo
de Corredores Metropolitanos (Comet/PA), do
por ônibus metropolitano possui idade média
Transporte Coletivo – Transcol (Alonso, 2008).
de 7,7 anos, enquanto a do transporte coletivo
Em 1980, foi constituída a Empresa de
urbano da Capital é de 4,7 anos, ou seja, os
Trens Urbanos de Porto Alegre S.A. (Trensurb)
ônibus do sistema metropolitano possuem um
com o objetivo de planejar, construir e operar
índice de renovação visivelmente menor, o que
o sistema de transportes de passageiros sobre
reduz consideravelmente a qualidade e o con-
trilhos. A Linha 1, implementada em 1985,
forto das viagens.
Figura 1 – Municípios selecionados para o estudo de caso
Fonte: adaptado de Metroplan.
534
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Proposta de índice de mobilidade sustentável
O Índice de Mobilidade Sustentável foi
Esses municípios apresentam maior nível
aplicado em dez municípios da formação origi-
de integração com a Capital, concentram os
nal da RMPA, também chamada de “A Grande
maiores fluxos de movimento pendular e, ao
Porto Alegre”, região onde a mancha urbana é
mesmo tempo, os maiores desequilíbrios em
contínua. São eles: Porto Alegre, Cachoeirinha,
termos socioeconômicos (Mamarella, 2009).
Gravataí no eixo NE, Alvorada e Viamão, no ei-
As principais características desses municípios,
xo SE, Guaíba e Eldorado, no eixo SO e, final-
seus dados socioeconômicos, bem como os as-
mente, no eixo N, Canoas, Esteio e Sapucaia do
pectos relativos à mobilidade, são apresenta-
Sul (Figura 1).
dos nos Quadros 3 e 4, respectivamente.
Quadro 3 – Caracterização socioespacial dos municípios selecionados*
Município
Área
(km2)
População
total
Densidade
demográfica
Tx desemprego
(25 a 59 anos)
PIB per
capita
IDESE
IDH-M
Alvorada
70,81
183.968
2.598,00
14,50
2.574,15
0,704
0,768
Cachoeirinha
43,77
107.564
2.457,70
10,90
10.166,36
0,788
0,813
Canoas
131,10
306.093
2.334,90
12,80
17.328,87
0,810
0,815
Eldorado do Sul
509,70
27.268
53,50
11,90
18.539,71
0,713
0,803
27,54
80.048
2.906,30
13,20
12.564,12
0,818
0,842
Gravataí
463,76
232.629
501,60
12,60
7.767,85
0,726
0,811
Guaíba
376,97
94.307
250,20
14,70
6.530,89
0,714
0,815
Porto Alegre
496,83
1.360.590
2.738,60
10,10
8.764,29
0,815
0,865
58,64
122.751
2.093,20
13,40
9.248,65
0,739
0,806
1.494,26
227.429
152,20
12,40
3.886,56
0,708
0,808
Esteio
Sapucaia do Sul
Viamão
* Os dados referem-se ao Censo Demográfico 2000
Quadro 4 – Aspectos socioespaciais e de mobilidade dos municípios selecionados*
Município
Distância
ao polo (km)
Nível de
integração
ao polo
Movim.
pendulares
pessoas > 15
anos (%)
% domicílios
c/carro
Índice de
motorização**
% ocupados
caráter
informal ***
Óbitos
acidentes
trânsito****
4,35
Alvorada
30
Muito alta
56,33
32,78
11,67
37,90
Cachoeirinha
11
Muito alta
42,53
48,23
30,89
34,40
8,37
Canoas
12
Alta
28,56
46,48
27,53
32,60
11,43
Eldorado do Sul
10
Alta
45,30
39,47
13,55
41,30
33,01
Esteio
17
Alta
44,97
50,00
34,10
29,60
13,74
Gravataí
23
Alta
32,94
45,09
19,76
37,60
13,33
Guaíba
19
Alta
32,61
42,65
21,61
33,50
18,03
-
Polo
9,88
49,17
46,38
31,70
26,83
Sapucaia do Sul
19
Alta
40,61
44,56
32,31
34,40
10,59
Viamão
10
Alta
46,33
37,74
14,67
37,10
7,47
Porto Alegre
* Os dados referem-se ao Censo Demográfico 2000.
** veículos por 100 habitantes.
*** Esta avaliação é importante por identificar trabalhadores que não recebem Vale Transporte (VT).
**** Mortes por 100 habitantes.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
535
Laura Machado et al.
Figura 2 – Gráfico da variação entre população/veículos/mortes
no período de 2000-2007 na área de estudo.
Fonte: elaboração própria.
O Gráfico da Figura 2 apresenta um
dias, o que representa, aproximadamente,
comparativo dos dados relativos às taxas
um terço do ano, a qualidade do ar oscilou
de motorização, as taxas populacionais e do
entre as faixas do Regular ao Inaceitável
número de óbitos por acidentes de trânsito,
(Fepam, 2008).
no período entre 2000-2007. Observa-se que,
na maioria dos municípios, o crescimento da
população é bem menor se comparado ao
número de veículos. Porém o crescimento do
número de óbitos por acidentes de trânsito
Metodologia adotada
na construção do IMS
chegou a aumentar em até 200% (Sapucaia do
Sul e Alvorada) (Figura 2).
Seleção do conjunto de indicadores
As altas taxas de motorização também
são responsáveis pelo aumento da poluição
Apesar de haver certo consenso quanto aos
atmosférica. Segundo os dados dos Boletins
Temas a ser incluídos para um monitoramento
de Qualidade do Ar gerados pela Fundação
consistente, o mesmo não acontece quando se
Estadual de Proteção Ambiental Henrique
analisa os indicadores que lhes darão suporte
Luiz Roessler (Fepam), coletados na estação
(Quadro 5). Existe uma grande variância quan-
de monitoramento localizada no Centro /
to ao que e como medir, ou seja, qual indica-
Rodoviá ria de Porto Alegre, dos 351 dias
dor utilizar. Muitos indicadores irão variar de-
monitorados em 2005, 112 apresentaram
pendendo da escala e do conceito adotados.
níveis indesejáveis. Ou seja, em 31,90% dos
Por exemplo, ao se mensurar a acessibilidade,
536
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Proposta de índice de mobilidade sustentável
podem ser utilizados indicadores como: a
decisões. A simetria do conjunto também foi
existência de intermodalidade, o tempo de via-
levada em conta para assegurar um equilíbrio
gem por modo, o percentual de crianças que
no monitoramento das três dimensões da sus-
vão à escola a pé, o número de pessoas que
tentabilidade: Social, Ambiental e Econômica
estudam e trabalham no local, o percentual de
(Litman, 2008; Rossetto et al., 2004).
uso do solo misto, etc.
Tendo por base os Temas arrolados no
Para estruturar o Índice selecionou-se
Quadro 5 e, na perspectiva de uma seleção de
um conjunto de indicadores que não fosse
indicadores adaptados à realidade dos muni-
muito extenso e não atrapalhasse a gestão
cípios brasileiros, analisaram-se aqueles te-
municipal ou confundisse o acompanhamen-
mas cujos indicadores requeressem informa-
to e, tampouco, muito reduzido que impossi-
ções quantitativas e cujos dados fossem co-
bilitasse uma visão sistêmica e a tomada de
letados com periodicidade anual (Quadro 6).
Quadro 5 – Temas mais citados pelos pesquisadores/sistemas
de indicadores de mobilidade
Temas/Sistemas
Sociais
Acessibilidade
Acessibilidade universal
Acidentes
Mobilidade
Equidade
Qualidade do serviço
Ambientais
Poluição atmosférica
Ruído
Aquecimento global
Uso energia
Uso solo transportes
Intrusão ecossistema
Econômicos
Custos para economia
Produtividade/Eficiência
Affordability
Congestionamentos
Confiabilidade
Custos operacionais
Summa
(2004)
Litman
(2008)
Transforum
(2007)
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x*
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
Hall
(2006)
Ramos
(2005)
Costa
(2008)
Jeon
(2005)
Term
(2003)
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x
* dados parciais
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
537
Laura Machado et al.
Quadro 6 – Caracterização das dimensões, temas e indicadores
Dimensões/Temas
Tipo
quantitativo
Indicadores
Sociais
Acessibilidade
Acidentes
Mobilidade
Equidade
Uso misto do solo
Nº de mortes e feridos
Passageiros transportados por modo
Terminais intermodais
x
x
x
x
Ambientais
Poluição atmosférica
Ruído
Aquecimento global
Uso energia
Uso solo transportes
Emissões por tipo de poluente
% de população exposta a ruídos maiores que 65db
Emissões de gases de efeito estufa
Consumo de combustíveis
% do solo apropriado pelos transportes
x
x
x
x
x
Econômicos
Custos para economia
Produtividade/Eficiência
Affordability (custo da tarifa)
Congestionamentos/Atrasos
Investimento público nos transportes
Índice de passageiros por Km (IPK)
% orçamento doméstico gasto em transporte
Custos dos congestionamentos
x
x
x
x
Existência
do dado
Periodicidade
anual
x
x
x
x
x
x
x
x
x
x*
x
x*
x
x
x
* dados parciais.
Ao aplicar esses critérios observou-se
futuros problemas ambientais do tipo: aumen-
uma significativa redução no número de indica-
to das emissões atmosféricas, ruído, congestio-
dores que pudessem ser monitorados, ou seja,
namentos, expansão urbana, consumo de com-
confirmando que a disponibilidade dos dados é
bustíveis fósseis, etc.. No conjunto proposto, a
um limitante no processo de seleção. Também
título de equilíbrio do sistema, desagregou-se
houve dificuldade em encontrar indicadores
o indicador “consumo de combustíveis” em
que monitorassem as questões ambientais (po-
renováveis e não renováveis, no caso o álcool.
luição sonora, atmosférica, consumo do solo,
Considerou-se o uso desse combustível como
etc.). Na maioria dos municípios brasileiros, à
um indicador negativo, pois, apesar de provir
exceção das capitais, não existe uma rotina de
de fontes renováveis, entende-se que o etanol
coleta de dados pelos órgãos ambientais. Mui-
contribui, diretamente, para a poluição atmos-
tas informações ainda não foram compiladas
férica e, indiretamente, para o aumento dos
de forma sistemática ou não estão acessíveis
congestionamentos e do consumo do solo, tan-
(São Paulo, 2008).
to pela necessidade de infraestrutura viária co-
Para suprir essas lacunas, iniciou-se uma
segunda etapa: encontrar indicadores proxy pa-
mo pelo desmatamento de áreas para o plantio
do insumo.
ra compor o sistema. Para os indicadores am-
Na dimensão social foram incluídos
bientais, devido à inexistência de dados sobre
indicadores referentes ao transporte públi-
os níveis de poluentes, optou-se pela taxa de
co já que este, segundo Gomide (2003), é
motorização. Esse indicador pode alertar sobre
um promotor da acessibilidade à cidade e
538
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Proposta de índice de mobilidade sustentável
consequentemente da inclusão social. Devido
Já na dimensão econômica, um indicador
à dificuldade de obtenção dos dados do Trans-
proxy proposto foi a relação entre o investimento
porte Coletivo (TC) urbano, à exceção de Porto
público municipal em transporte e seu PIB, con-
Alegre, foram considerados apenas os dados
siderando que quanto maior for o investimento
do transporte metropolitano. A Metroplan dis-
maior será seu efeito positivo na economia.
ponibilizou os dados relativos a: passageiros
A partir destas considerações estrutu-
transportados, quilometragem percorrida, tari-
rou-se o sistema ou conjunto de indicadores.
fas, para o período 2004-07, o que determinou
O detalhamento dos Temas e Indicadores sele-
a série histórica analisada. Os dados referentes
cionados para monitorar a mobilidade nas três
a passageiros do trem metropolitano não fo-
dimensões da sustentabilidade, bem como as
ram considerados devido à impossibilidade de
respectivas fontes dos dados, é apresentado
desagregação por município.
no Quadro 7.
Quadro 7 – Dimensões, temas e indicadores propostos
e respectiva fonte de dados
Dimensão
Social (SOC)
Tema
Ambiental (AMB)
Fonte
Datasus
ECO01: Orçamento gasto em
transporte (tarifa)
ECO02: Eficiência transporte
coletivo
ECO03: Investimentos púbicos
no setor de transportes
Valor médio da tarifa*mês/ Salário mínimo
Metroplan/ Ministério do
Trabalho e Emprego,
Metroplan, EPTC
Ministério da Fazenda, FEE
Dados
AMB01: Taxa de motorização
AMB02: Consumo de
combustíveis fósseis
AMB03: Consumo de
combustíveis alternativos
Nº de veículos em circulação per capita
Venda combustível fóssil (gasolina+diesel)
per capita
Venda de álcool hidr. per capita
SOC02: Oferta de TC
SOC03: Intermodalidade
Econômica (ECO)
Indicador
% de mortes em acidentes de trânsito/ nº
de veículos
Passageiros transportados per capita
Número de estações intermodais
SOC01: Acidentes com mortes
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Índice de Passageiros por Km (IPK)
% de gastos em transporte/PIB
Metroplan/EPTC, IBGE
Trensurb
FEE Dados
FEE Dados
FEE Dados
539
Laura Machado et al.
Evidentemente, esses indicadores não
método Analytic Hierarchy Process (AHP) para
medem todos, mas alguns dos aspectos neces-
obter as preferências do gestor num comparati-
sários para o acompanhamento dos impactos
vo par a par. No entanto, devido a dificuldades
negativos da mobilidade sobre a sustentabili-
de compreensão, pelos técnicos das prefeitu-
dade urbana.
ras municipais, optou-se por utilizar o método
ordenador de 1 a 3, sendo 1 mais importante
e 3 menos. O peso final, para cada Indicador,
Formatação do Índice
de Mobilidade Sustentável (IMS)
Tema e Dimensão, obteve-se pela média aritmética de todas as avaliações. Posteriormente,
esses valores foram normalizados para o inter-
Elaborada a hierarquia do sistema, seguiram-se
valo de zero a um, de modo que a soma dos
os passos metodológicos sugeridos por Costa
pesos de cada componente da avaliação resul-
(2008), Campos e Ramos (2005), Magalhães
tasse no valor igual a um.
(2004) e Nahas (2005) para o tratamento dos
Passo 4 – Determinação da direção dos
dados e formulação matemática. Essa propos-
indicadores: dependendo do que está sendo
ta inova ao propor um ranking municipal para
mensurado a avaliação será positiva ou nega-
uma melhor visualização e acompanhamento
tiva. Por exemplo, os indicadores que medem a
do IMS (Passo 7).
frequência de transporte público são positivos,
Passo 1 – Padronização dos dados: procedimento necessário para obtenção de valores
e aqueles que quantificam o número de acidentes, negativos.
normalizados de uma dada distribuição. É ob-
Passo 5 – Cálculo dos subíndices: o índi-
tida pelo cálculo da média e do desvio padrão
ce composto é derivado e possibilita avaliar o
do intervalo de dados brutos.
estado parcial de cada uma das três dimensões
Passo 2 – Correlação dos indicadores:
da sustentabilidade. O valor de cada dimensão
necessário a fim de verificar sua independên-
é computado separadamente a partir dos valo-
cia e evitar a redundância de monitoramento.
res padronizados dos indicadores obtidos (Pas-
A correlação é obtida pela média dos produtos
so 1) que, a seguir, foram multiplicados pelos
dos valores reduzidos (padronizados) das variá-
respectivos pesos (Passo 3) e pela direção dese-
veis (Bussab e Murettin, 1987). A análise das
jada (+ ou -) (Passo4).
correlações, efetuada através dos valores ob-
Passo 6 – Cálculo do índice total: obteve-
tidos (sem os pesos) para cada indicador nos
-se pela soma dos valores obtidos em cada di-
diferentes municípios, demonstrou que os indi-
mensão ou subíndice.
cadores selecionados não apresentam correlações significativas (a 95% de confiança).
Passo 7 – Obtenção do ranking dos municípios: obtida através da classificação pelo
Passo 3 – Aplicação dos pesos aos indica-
Esquema dos Cinco Números ou Estatísticas
dores: objetiva identificar qual o grau de impor-
de Ordem. Essa é dada pelo intervalo inter-
tância de cada Dimensão e Tema para a avalia-
quartil, ou seja, a diferença entre o terceiro e
ção da mobilidade sustentável. Originalmente,
o primeiro quartis (dq). É obtida pelo cálculo
previu-se aplicar um questionário utilizando o
das seguintes medidas: (1) da Mediana (Md):
540
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Proposta de índice de mobilidade sustentável
do valor que deixa metade dos dados abaixo
dos valores abaixo e três quartos acima dele.
e metade acima dele; (2) dos extremos: o va-
O terceiro quartil deixa três quartos dos dados
lor máximo e mínimo do conjunto de dados; e
abaixo e um quarto acima. O segundo quar-
(3) dos quartis ou juntas (J): cada quartil faz o
til é representado pela mediana (Bussab e
mesmo que a mediana para as duas metades
Morettin, 1987).
demarcadas pela mediana. O primeiro quartil ou junta é um valor que deixa um quarto
O resultado parcial desta sequência de
ações é apresentado no Quadro 8.
Quadro 8 – Dimensões, indicadores, direção e peso obtidos*
Dimensão
Peso
Indicador
Peso
Direção
SOC
0,44
SOC01
SOC02
SOC03
0,36
0,34
0,30
diminuir
aumentar
aumentar
ECO
0,29
ECO01
ECO02
ECO03
0,40
0,31
0,29
diminuir
aumentar
aumentar
AMB
0,27
AMB01
AMB02
AMB03
0,45
0,33
0,22
diminuir
diminuir
diminuir
*A descrição de cada indicador pode ser observada no Quadro 7.
A formulação matemática do Índice é:
Mobilidade Urbana Sustentável = ʄ (IMS)
= ʄ (SOC+ECO+AMB)
= ʄ (W*ISOC + W*IECO + W*IAMB
Onde:
ISOC = [(W*-SOC01) + (W*SOC02) + (W*SOC03)]
IECO = [(W*-ECO01) + (W*ECO02) + (W*ECO03)]
IAMB = [(W*-AMB01) + (W*-AMB02) + (W*-AMB03)]
W = Pesos atribuídos pelos especialistas
Com o modelo matemático estabelecido, seguiu-se a recolha dos dados necessários para alimentar os indicadores. Estes dados foram compilados em planilhas Excel para o cálculo da série
histórica 2004-07 para cada um dos dez municípios da RMPA.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
541
Laura Machado et al.
dos valores obtidos para o IMS, por município,
Análise da aplicação do IMS
para cada ano (Quadro 10); (3) o gráfico das
O resultado da aplicação do Índice de Mobi-
médias do IMS na série temporal (Figura 3);
lidade Sustentável (IMS) pode ser observado
(4) exemplificação de gráfico com a evolução
em cinco momentos: (1) apresentação dos
do IMS do município no período (Figura 4); e
resultados obtidos para cada Indicador, Di-
(5) espacialização do ranking dos municípios
mensão e IMS, nos dez municípios, para o
em relação ao IMS para a série histórica (Figu-
ano de 2004 (Quadro 9); (2) apresentação
ras 6, 7, 8 e 9).
Quadro 9 – Valores dos indicadores, dimensões e IMS
para os municípios em 2004
Municípios
DIM
Indicador
SOC
DIR
CAN
ELD
EST
GRAV
GUA
POA
SAP
VIA
(-)
-0,430
0,429
0,264
-0,556
-0,185
-0,229
0,198
0,474
-0,165
0,200
SOC02: Pass transp TC/PC
(+)
0,155
0,455
-0,153
-0,147
-0,123
-0,224
-0,262
0,692
-0,390
-0,003
SOC03: Intermodalidade
(+)
-0,183
-0,183
0,549
-0,183
-0,061
-0,183
-0,183
0,549
0,061
-0,183
-0,201
0,308
0,290
-0,390
-0,162
-0,280
-0,108
0,754
-0,217
0,006
ECO01: % tarifa/SM
(-)
0,112
-0,123
0,251
0,096
0,361
-0,715
-0,717
0,243
0,292
0,200
ECO02: IPK
(+)
0,053
-0,127
-0,012
-0,024
-0,166
-0,147
-0,217
0,848
-0,165
-0,044
ECO03: Gastos transporte/PIB
(+)
-0,037
0,258
-0,309
-0,309
-0,036
0,535
0,331
-0,053
-0,305
-0,075
0,037
0,002
-0,020
-0,069
0,046
-0,095
-0,175
0,301
-0,052
0,023
ECO = (ECO01 + ECO02 + ECO03)*0,29
AMB
CACH
SOC01: %mortes acidentes/veículos tot
SOC = (SOC01 + SOC02 + SOC03)*0,44
ECO
ALV
AMB 01: Veículos/pc
(-)
0,715
-0,298
-0,188
0,465
-0,358
0,139
0,117
-0,648
-0,412
0,468
AMB 02: Consumo comb. fóssil/PC
(-)
0,323
0,150
-0,519
-0,319
-0,523
0,199
0,060
0,071
0,234
0,324
AMB 03: Cons. comb. renováveis/PC
(-)
0,126
-0,490
-0,203
0,163
0,093
0,012
0,011
-0,121
0,151
0,257
0,314
-0,172
-0,246
0,083
-0,213
0,095
0,051
-0,188
-0,007
0,283
0,150
0,139
0,025
-0,376
0,329
-0,280
-0,232
0,867
-0,276
0,313
AMB = (AMB01 + AMB02 + AMB03)*0,27
IMS = SOC+ECO+AMB
Quadro 10 – Valores do IMS para os municípios da área de estudo
nos anos 2004-2007
Municípios
IMS/ANO
542
ALV
CACH
CAN
ELD
EST
GRAV
GUA
POA
SAP
VIA
IMS 2004
0,150
0,139
0,025
-0,376
-0,329
-0,280
-0,232
0,867
-0,276
0,313
IMS 2005
0,533
-0,194
0,051
-0,365
-0,464
-0,117
-0,303
0,850
-0,223
0,184
IMS 2006
0,316
0,182
0,023
-0,447
-0,224
-0,233
-0,326
0,721
-0,240
0,227
IMS 2007
0,274
0,370
-0,112
-0,171
-0,158
-0,295
-0,257
0,732
-0,415
0,031
Médias
0,318
0,124
-0,003
-0,340
-0,294
-0,231
-0,279
0,792
-0,288
0,189
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Proposta de índice de mobilidade sustentável
Na análise da série histórica, Porto Ale-
de motorização e maior consumo de combus-
gre destaca-se por apresentar os maiores va-
tível) e baixa oferta de transporte público.
lores para o IMS, o que já era esperado, uma
Pode-se dizer que os baixos índices obtidos
vez que a capital oferece maior mobilidade e
pelos municípios do eixo N também podem
infraestrutura tanto física quanto de recursos
estar relacionados a certa inexpressividade
humanos, o que proporciona maior segurança
dos números de oferta de transporte coleti-
e eficiência nos deslocamentos da população.
vo por ônibus, se comparado aos municípios
As médias mais baixas são apresen-
de Viamão e Alvorada. O que pode significar,
tadas pelos municípios do eixo SO (Guaíba e
por outro lado, que estes municípios teriam
Eldorado), e pelas cidades situadas no eixo N
maiores conexões com a região da RMPA1
(Esteio e Sapucaia) (Figura 3). No entanto, as
(São Leo poldo e Novo Hamburgo). Talvez
razões para estes baixos índices são distintas.
essas interrogações fossem respondidas ao
Isso pode ser comprovado ao visualizar a es-
se analisar um comparativo entre essas duas
trutura interna do sistema. As cidades do eixo
principais sub-regiões da RMPA (1 e 2). Outra
SO apresentaram os piores valores para os in-
hipótese seria que a não inclusão do número
dicadores da dimensão social: maiores índice
de passageiros atendidos pelo trem metro-
de mortes no trânsito, maior despesa no orça-
politano possa estar afetando os resultados
mento doméstico com transporte e por esses
(esses dados não foram computados por não
municípios não oferecerem outras opções de
estarem desagregados por município).
transporte coletivo além do modal ônibus.
Já o o baixo IMS obtido para os municí-
As médias baixas dos municípios do
pios de Guaíba e Eldorado, apesar de apresen-
eixo N surpreenderam por estes possuírem
tarem índices altos de movimentos pendulares
o modal trem metropolitano. Estas médias
em direção ao polo, pode indicar uma deficiên-
são consequência dos valores negativos ob-
cia no sistema de transporte público, tanto na
tidos na dimensão ambiental (maior índice
oferta quanto no custo da tarifa.
Figura 3 – Gráfico das médias do IMS por município para a série 2004-2007
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
543
Laura Machado et al.
Excetuando o polo, as maiores médias
De um modo geral, os indicadores que
obtidas no período pertencem aos municípios
afetaram diretamente os resultados do Índice
de Alvorada, Viamão e Cachoeirinha, cidades
foram as altas taxas de motorização, o número
consideradas dormitório, de menor poder aqui-
de mortes em acidentes e os altos valores das
sitivo, e, portanto, possuem menores taxas de
tarifas. Ao se observar os valores do IMS obti-
motorização e, consequentemente, menor con-
dos para o conjunto da região na série (2004-
sumo de combustíveis. Estes municípios tam-
2007) à luz das estatísticas de ordem a percep-
bém apresentaram valores altos para o indica-
ção é de um maior equilíbrio (Figura 5).
dor oferta de transporte público metropolitano.
No Quadro 11, são apresentados os va-
O sistema também permite visualizar o
lores obtidos pelas estatísticas de ordem cal-
comportamento do índice individualmente, por
culadas para cada ano da série histórica do
município. O Gráfico da Figura 4, que representa
IMS; essa metodologia permitiu a formação do
o IMS do município de Alvorada no período 2004-
ranking dos municípios ao serem agregados os
2007, ilustra e exemplifica esta possibilidade.
resultados por quartis (Quadro 12).
Figura 4 – Gráfico da evolução do IMS do município de Alvorada (2004-2007)
Figura 5 – Gráfico boxplot da série histórica
544
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Proposta de índice de mobilidade sustentável
Quadro 11 – Estatísticas de ordem calculadas para a série histórica do IMS
Cinco números
Q1
Mínimo
Mediana
Máximo
Q3
Ano 2004
Ano 2005
Ano 2006
Ano 2007
-0,279
-0,376
-0,104
0,867
0,147
-0,283
-0,464
-0,155
0,850
0,151
-0,238
-0,447
-0,100
0,721
0,216
-0,235
-0,415
-0,135
0,732
0,213
Quadro 12 – Ranking dos municípios em relação ao IMS
Classificação dos intervalos interquartis
Ano
MÁX- Q³
Bom
Q³- MEDIANA
Médio
MEDIANA- Q¹
Baixo
Q¹-MÍN
Muito Baixo
2004
Municípios
0,867 a 0,147
Alvorada
Porto Alegre
Viamão
0,147 a -0,104
Cachoeirinha
Canoas
-0,104 a -0,279
Guaíba
Sapucaia do Sul
-0,279 a 0,376
Eldorado do Sul
Esteio
Gravataí
2005
Municípios
0,850 a 0,151
Alvorada
Porto Alegre
Viamão
0,151 a -0,155
Canoas
-0,155 a -0,283
Cachoeirinha
Gravataí
Sapucaia do Sul
-0,283 a -0,464
Eldorado do Sul
Esteio
Guaíba
2006
Municípios
0,721 a 0,216
Alvorada
Porto Alegre
Viamão
0,216 a -0,100
Cachoeirinha
Canoas
-0,100 a -0,238
Esteio
Gravataí
-0,238 a -0,447
Eldorado do Sul
Guaíba
Sapucaia do Sul
2007
Municípios
0,732 a 0,213
Alvorada
Cachoeirinha
Porto Alegre
0,213 a -0,135
Canoas
Viamão
-0,135 a -0,235
Eldorado do Sul
Esteio
-0,235 a -0,415
Gravataí
Guaíba
Sapucaia do Sul
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
545
Laura Machado et al.
Do ranking apreende-se que não há nenhum município em estado crítico em relação à
a apresentar dados que tangenciaram este limite
(-0,447, -0,464 e -0,415, respectivamente).
mobilidade, uma vez que nenhum deles apresen-
Obtida a classificação de cada município,
tou um IMS menor que -0,50. No entanto, Eldo-
o ranking do IMS foi espacializado para cada
rado do Sul, Esteio e Sapucaia do Sul chegaram
ano da série histórica (Figuras 6, 7, 8 e 9):
Figura 6 – Espacialização do ranking do IMS para o ano de 2004
Figura 7 – Espacialização do ranking do IMS para o ano de 2005
546
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Proposta de índice de mobilidade sustentável
Figura 8 – Espacialização do ranking do IMS para o ano de 2006
Figura 9 – Espacialização do ranking do IMS para o ano de 2007
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
547
Laura Machado et al.
Síntese dos resultados obtidos
apresentaram os menores valores para o IMS.
Entre as causas estão: valores negativos na di-
O município polo apresentou os maiores valo-
mensão ambiental; menor oferta de transporte
res em toda a série histórica (2004-2007) de-
público metropolitano por ônibus; e maiores
vido a: baixos índices de acidentes; alta oferta
índices de motorização e consumo de combus-
de transporte coletivo por ônibus; tarifas mais
tível. Também pode significar que estas cidades
econômica; e maior eficiência do transporte co-
possuem maior integração com a RMPA1 ou,
letivo (IPK).
ainda, que a não inclusão do número de passa-
As médias mais altas encontraram-se
nos municípios de Alvorada, localizado a NO e
geiros atendidos pelo trem metropolitano possa estar afetando os resultados.
Viamão no eixo L. Esses valores devem-se, prin-
Em uma análise geral, pode-se dizer que
cipalmente, às baixas taxas de motorização, e
o sistema de transporte coletivo metropolitano
aos baixos níveis de consumo de combustíveis.
não está adequadamente dimensionado para
O IMS médio foi diagnosticado nos mu-
atender à população. As redes de serviços por
nicípios do eixo NE (Cachoeirinha e Canoas)
ônibus se sobrepõem e concorrem entre si.
resultado de baixos índices de mortes por aci-
Muitas vezes são escassas, como ocorre nos
dentes e bons níveis de oferta de transporte
municípios localizados no eixo SO, que tem co-
metropolitano. Porém, um bom indicador de
mo gargalo um único acesso ao Polo: a ponte
oferta de transporte público não significa que
do Rio Guaíba, que dá continuidade à BR-116.
este seja de boa qualidade. Essa informação
Pode-se dizer que a falta de conexão funcional
poderia ser obtida ao acrescentar indicadores
das redes é uma decorrência da ausência de
qualitativos ao Índice a fim de aprofundar as
coordenação dos sistemas urbanos e metropo-
informações quanto às taxas de ocupação, aci-
litanos nas três esferas governamentais.
dentalidade, crimes, condições e localização
das paradas, etc..
Outro aspecto a ressaltar são os valores
das tarifas que pesam sobremaneira no orça-
As médias mais baixas foram encontra-
mento doméstico das famílias que dependem
das no eixo SO (Guaíba e Eldorado) e L (Gra-
do transporte coletivo. À exceção do trem me-
vataí), devido a: maior índice de mortes no
tropolitano, que possui tarifas subsidiadas, o
trânsito; maior peso das tarifas no orçamento
modal ônibus vem apresentando uma variação
doméstico; e por apresentarem apenas o mo-
negativa de passageiros se for levado em con-
dal ônibus. Como esses municípios possuem os
ta o crescimento populacional e a estabilidade
maiores níveis de movimentos pendulares em
da oferta. Também se observou que nas cida-
direção ao polo, é um indicativo de que o trans-
des do eixo N o automóvel privado é o modo
porte metropolitano por ônibus deve ser redi-
de transporte preferencial da população, o que
mensionado em sua oferta e nas tarifas.
pressupõe uma tendência de agravamento dos
S u r p r e e n d e n t e m e n t e, o s m u n i c í pios do eixo N (Esteio e Sapucaia) também
548
congestionamentos e da acidentalidade no eixo da BR-116.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Proposta de índice de mobilidade sustentável
Conclusões e sugestões
para trabalhos futuros
descaso com o acompanhamento dos serviços prestados pelas operadoras do transporte
público coletivo. Afora o município de Porto
Alegre, as demais prefeituras não dispõem de
Ao analisar as informações do transporte pú-
quaisquer dados sobre demanda, passageiros
blico da RMPA verificou-se que os sistemas de
transportados, evolução do preço da tarifa, etc.
transporte responderam ao espraiamento da
Para sanar essa deficiência, sugere-se o
mancha urbana de forma isolada. Cada esfera
repasse de informações por parte das opera-
de governo federal, estadual e municipal ge-
doras e consórcios de transporte com os mu-
rencia os subsistemas de sua responsabilidade
nicípios. Um passo para avançar na melhoria
com pouca ou nenhuma relação com os demais
dessa situação estaria em iniciar uma sistemá-
transportes da região. Atualmente alguns pro-
tica de coleta de dados por parte das institui-
jetos de infraestrutura de transporte estão em
ções (Metroplan, Famurs, Coredes) e/ou dos
andamento sem uma coordenação entre eles,
gestores da RMPA, tanto nas esferas munici-
isto é, não é resultado de um planejamen-
pais quanto regional. Também é importante
to integrado. Entre eles está a construção da
que se criem fontes de dados sobre o transpor-
nova rodovia, a RS-010, que ligará Porto Ale-
te não motorizado, com o cadastramento das
gre à Novo Hamburgo, uma rota alternativa à
bicicletas, por exemplo.
BR116 (eixo N). A implantação da Linha 2 do
Ao estruturar o IMS optou-se por traba-
Trensurb, denominada Linha da Copa, que pre-
lhar com um número reduzido de indicadores,
vê a construção de um anel metroviário com
pois um índice com muitas variáveis torna-se
34,4 quilômetros de extensão com 24 estações
de difícil execução e acompanhamento. A maior
convencionais e sete estações de integração
dificuldade na seleção dos indicadores foi a de
multimodal ligando a região central de Porto
encontrar aqueles com dados existentes, desa-
Alegre até as proximidades de Viamão, no eixo
gregados e que possuíssem séries históricas.
SE. E a construção de um terminal hidroviário
O sistema de indicadores proposto não
ligando o município de Guaíba à Capital, como
é conclusivo e, sim, um ponto de partida para
alternativa à Ponte do Guaíba.
que se possa encontrar uma forma de estrutu-
Ao selecionar os indicadores para a com-
rar e manter um banco de dados confiável em
posição do Índice, constatou-se que no âmbito
relação à mobilidade urbana. Ressalta-se que
municipal há uma carência de metodologia de
alguns indicadores propostos podem ser refina-
coleta e acompanhamento de dados e infor-
dos, como é o caso do indicador renda/tarifa,
mações, de recursos humanos e operacionais,
mensurando-o pela renda média do município,
principalmente para o monitoramento das
e não pelo salário mínimo Brasil e do indicador
questões ambientais, do transporte público e
de intermodalidade, por exemplo.
do transporte não-motorizado.
Tendo em vista as limitações encontra-
Nas visitas às prefeituras municipais pa-
das, acredita-se que a proposta do IMS foi sa-
ra aplicar os questionários junto aos técnicos,
tisfatória, pois possibilitou detectar a evolução/
chamaram a atenção a falta de controle e o
involução da sustentabilidade da mobilidade
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
549
Laura Machado et al.
nos municípios. Obviamente, um entendimen-
consenso entre os especialistas brasileiros em
to mais amplo do estado da mobilidade ficará
relação à importância de cada indicador, tema
mais claro se houver continuidade no monito-
e dimensão da sustentabilidade. Por fim, para
ramento. Cabe destacar que os indicadores se-
tornar o Índice mais robusto, sugere-se a reali-
lecionados permitem que o IMS seja aplicado
zação de análises de sensibilidade para detec-
nas demais Regiões Metropolitanas desde que
tar qual é o indicador que mais influencia no
haja uma padronização dos pesos, ou seja, um
resultado final.
Laura Machado
Arquiteta e Urbanista, Mestre em Planejamento Urbano e Regional, lotada na Coordenadoria de
Obras, Manutenção e Projetos vinculada à Proplan – Pró-reitoria de Planejamento, Desenvolvimento e Avaliação da Universidade Federal do Pampa. Alegrete/RS, Brasil.
[email protected]
Emilio Merino Dominguez
Arquiteto e Urbanista. Doutor em Transportes. Professor Visitante da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, Consultor Senior de diversas empresas de consultoria. Porto Alegre/RS, Brasil.
[email protected]
Miroslova Mikusova
Engenheira. Professora da Facultad en Operacion y Economia de Transporte y Comunicaciones, Departamento de Transporte urbano da University of Zilina. Zilina/Região de Zilina, Eslovaquia.
[email protected]
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Texto recebido em 14/out/2011
Texto aprovado em 11/dez/2011
552
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 529-552, jul/dez 2012
Percursos do direito à cidade:
provisão estatal e empresarial
de moradia popular na RM de Belém
Routes of the right to the city: state’s and companies’ provision
of popular housing in the Metropolitan Region of Belém
Simaia do Socorro Sales das Mercês
Resumo
Este artigo trata da moradia popular produzida no
âmbito de programas governamentais, buscando
inseri-la no quadro mais amplo da provisão da
habitação urbana. Analisa as ações empreendidas
na Região Metropolit ana de Belém pelos
Programas Minha Casa, Minha Vida (PMCMV) e
de Aceleração do Crescimento – Habitação (PAC),
no que concerne aos interesses e estratégias
dos agentes sociais tomadores de decisões e às
características da moradia, com o fim de verificar
implicações para a efetivação do direito à cidade.
A principal conclusão é que os determinantes das
ações do PMCMV não resultam em benefícios
e problemas associados às categorias Estado
e mercado, em contraposição ao padrão de
melhores localizações decorrente do desenho do
PAC e dos interesses do Estado.
Abstract
This paper aims to discuss the popular housing
that was produced under government programs,
attempting to include it into the broader frame of
urban housing provision. It analyses the actions
undertaken in the Metropolitan Region of Belém
(Northern Brazil) through Programa Minha
Casa, Minha Vida (PMCMV – My House, My Life
Program) and through Programa de Aceleração
do Crescimento – Habitação (PAC – Accelerated
Growth Program – Housing), in relation to the
interests and strategies of social agents who make
decisions and to the dwelling’s characteristics, in
order to verify implications for the fulfillment of
the right to the city. The main conclusion is that the
determinants of the PMCMV actions do not result
in benefits and problems associated with State and
market categories, as opposed to the standard of
best locations due to the design of the PAC and the
interests of the State.
Palavras-chave: moradia popular; direito à cidade; Programa de Aceleração do Crescimento; Programa Minha Casa, Minha Vida; Região Metropolitana de Belém.
Keywords: popular housing; right to the city;
Programa de Aceleração do Crescimento; Programa
Minha Casa, Minha Vida; Metropolitan Region of
Belém.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
Simaia do Socorro Sales das Mercês
Introdução
do Crescimento – PAC, setor Habitação,2 no
que concerne aos agentes sociais tomadores
de decisões sobre intervenções e empreendi-
Este artigo aborda o tema do direito à cidade
a partir da moradia popular, buscando se aproximar do enfoque requerido por Maricato para
os estudos sobre a produção da habitação, no
sentido de “uma leitura mais ampla [...] da estrutura de provisão de habitação, dos interesses e agentes envolvidos” (2009, p. 34), entendida provisão de habitação como
o quadro geral da produção e distribuição
da habitação [...] formado pelas diversas
tipologias resultantes de diferentes arranjos entre: o financiamento, a construção, a
promoção, a comercialização, a participação da força de trabalho e o lugar ocupado pela propriedade da terra no contexto
da regulação instituída [...] pela legislação de uso e ocupação do solo. (Maricato,
2009, pp. 35-36)1
mentos, bem como ao seu porte, localização e
tipologia, com o fim de verificar os resultados
das ações empreendidas para a efetivação do
direito à cidade.
A cidade é um “valor de uso complexo,
cuja formação nasce da combinação de outros
valores de uso simples” (Ribeiro, 1997, p. 45;
cf. Preteceille, 1974, grifos do autor),3 materializado num espaço cujos elementos são diferenciados e articulados entre si, resultantes de
“um conjunto de forças atuantes ao longo do
tempo, postas em ação pelos diversos agentes
modeladores, e que permitem localizações e
relocalizações das atividades e da população”
(Correa, 1999, p. 36). Dentre os agentes sociais
produtores do espaço urbano tem destaque o
Estado. Alinhado a outros autores, entende-se
que esse agente reflete as lutas de classe e de-
Importa ainda notar que a autora alerta
sobre as limitações das abordagens isoladas,
senvolve interesses próprios ligados aos grupos
no poder e à burocracia.
pois que as “diversas formas de provisão da
Dos elementos do espaço urbano, desta-
moradia [...] pelo mercado privado, pela pro-
cam-se neste trabalho a área central, que con-
moção pública e pela promoção informal] cons-
centra as principais atividades de comércio e
tituem um conjunto contínuo e interdependen-
de serviços, bem como os fluxos de transporte4
te” (idem, ibidem, p. 37).
e os centros de comércio e serviços hierarqui-
O trabalho analisa a provisão de mora-
camente inferiores, cristalizações dos processos
dia na Região Metropolitana de Belém – RMB
de centralização e descentralização, bem como
para o segmento populacional com renda fami-
as áreas de habitação resultantes do processo
liar mensal entre 0 e 3 salários mínimos – SMs
de segregação socioespacial.
na primeira etapa do Programa Minha Casa,
No Brasil, associado ao processo de se-
Minha Vida – PMCMV. Situa-a no processo
gregação socioespacial, estudos sobre o espaço
mais geral de produção do espaço urbano na
urbano realizados na década de 1970 identi-
metrópole e compara-a com as ações do Pro-
ficaram o padrão centro-periferia, entendido
grama para o segmento acima de 3 a 10 SMs
esse como “espaço de reprodução da força de
e com a provisão pelo Governo do Estado do
trabalho no interior da ordem capitalista pe-
Pará no âmbito do Programa de Aceleração
riférica e subordinada” (cf. Marques e Torres,
554
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
Percursos do direito à cidade
2005), onde as condições materiais de existên-
municipais, obrigatórios para cidades com mais
cia constituíam o que foi chamado de “espolia-
de 20.000 habitantes e outras especificamente
ção urbana” (Kowarick, 1979). As transforma-
definidas. Contudo, a implementação dos ins-
ções observadas posteriormente nas periferias
trumentos disponíveis para reverter o quadro
urbanas reforçaram a ideia de um espaço mar-
de precariedades e iniquidades urbanas não
cado pela heterogeneidade (Marques e Torres,
tem se mostrado de forma efetiva.
2005, entre outros autores), abrigando diver-
Nos PDs instituídos nos municípios da
sas classes sociais em que se mantêm, contu-
RMB, o princípio da função social da cidade e
do, processos de segregação socioespacial. A
da propriedade é definido, entre outros e con-
ocupação por camadas populacionais de alta e
forme estabelece o Estatuto da Cidade, tendo
média rendas passou a se configurar em “en-
como referência o direito à terra e à moradia.
claves fortificados” (Caldeira, 2000), com impli-
Esse princípio, no entanto, não se expressou em
cações negativas na cidadania. De outro lado,
disposições capazes de concretizá-lo, sendo re-
e mais recentemente, estão se constituindo, no
duzidas as ações nesse sentido observadas em
seio dos movimentos sociais ligados ao proble-
alguns governos locais.
ma da moradia, a utopia e a reivindicação de
uma “nova periferia urbana”.
A partir de 2003, iniciou-se a construção de uma política nacional de habitação,
Essa utopia se insere na “utopia da cida-
fundada em princípios de participação demo-
de como direito [que] quer o usufruto coletivo
crática, na articulação entre os entes federa-
da e na cidade. O ‘valor’, para os seus defen-
dos e na alocação de recursos financeiros. Em
sores, é o valor de uso e pressupõe o acesso
paralelo, o Governo Federal criou programas
universal na apropriação e usufruto da cidade”
desvincula dos desse processo. Em 2007, foi
(Rodrigues, 2007).
lançado o PAC, integrado, entre outros, pelo
O avanço das lutas pelo direito à cidade
eixo Infraestrutura Social e Urbana, que pre-
e à moradia em determinado momento foi cris-
via urbanização de assentamentos precários
talizado em um marco jurídico-institucional. A
por meio de ações integradas em habitação,
percepção dos fundamentos da desigualdade
saneamento e inclusão social. Nos casos de
socioespacial urbana levou à mobilização de
áreas com exposição a riscos ou onde não fos-
segmentos da sociedade brasileira, articulados
se possível a regularização e, ainda, naquelas
no Movimento pela Reforma Urbana, culmi-
sujeitas a fins de preservação ambiental ou
nando com a aprovação dos artigos 182 e 183
implantação de infraestrutura, é admitido o
da Constituição Federal de 1988 (Brasil, 1988),
remanejamento para áreas próximas ao as-
do Estatuto da Cidade (Brasil, 2001) e outros
sentamento original. O Programa é criticado
instrumentos que incorporaram algumas das
pelo deslocamento da centralidade do FNHIS
principais propostas debatidas no seio da so-
na política habitacional, pela ausência de con-
ciedade civil desde os anos 1960. Entre essas
trole social e de critérios institucionais de re-
propostas, encontra-se o princípio da função
distribuição (Cardoso, Aragão e Araújo, 2011).
social da cidade e da propriedade, que de-
O PMCMV foi criado em março de 2009 5 com
veria ser estabelecido nos planos diretores
o objetivo de dinamizar a economia por meio
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555
Simaia do Socorro Sales das Mercês
de incentivos à produção e à aquisição de uni-
lação aos do PAC indicam que programas cujo
dades habitacionais em áreas urbanas e ru-
desenho destina ao Estado um papel mais de-
rais, a partir da alocação de recursos públicos
cisivo na provisão da moradia podem resultar
e da concessão de incentivos fiscais e outros,
em melhores localizações, em vista do caráter e
de acordo com regras específicas segundo a
interesses desse agente social.
população-alvo: famílias com renda até 3, en-
Por fim, o estudo comparativo do
tre 3 e 6, e entre 6 e 10 SMs. De análises dis-
PMCMV nas faixas de renda familiar mensal
poníveis acerca das implicações do Programa,
0-3 e 3-10 SMs reafirma que, como as ações
destacam-se, para os fins deste trabalho, os
ocorrem no contexto geral da produção do
seguintes pontos: protagonismo do mercado
espaço urbano e são fortemente influenciadas
na definição de importantes características
pelas determinações de mercado, tem impor-
da moradia, localização inadequada dos em-
tância fundamental para a efetivação do direito
preendimentos e habitações precárias, como
à moradia na cidade a instituição de fato de
forte probabilidade (Arantes e Fix, 2009; Bon-
uma política que contrarreste as implicações da
duki, 2009; Rolnik e Nakano, 2009) ou como
propriedade da terra.
fato (Cardoso, Aragão e Araújo, 2011).
A implementação do PMCMV/0-3SMs na
RMB em sua primeira etapa foi fortemente viabilizada pela Companhia de Habitação do Estado do Pará – Cohab que vendeu terrenos de
sua propriedade para a Caixa Econômica Federal e participou da contratação dos respectivos
Agentes sociais envolvidos
e situação dos programas
na Região Metropolitana
de Belém
empreendimentos, o que relativiza a constatação acerca do domínio do mercado. Tomando
como referência elementos do espaço urbano
e embora o Programa tenha ficado restrito aos
a) Programa de Aceleração do Crescimento –
Habitação
municípios da periferia metropolitana, não há
No estado do Pará, as intervenções do
um padrão de localização inadequada dos em-
PAC em habitação que contam com a partici-
preendimentos que possa ser associado às ca-
pação do Governo do Estado, como contrapar-
tegorias Estado ou mercado. De outro lado, ain-
tida, buscam beneficiar população com renda
da que tenha havido a participação da Cohab
familiar entre 0 e 3 SMs e são implementadas
na definição dos projetos arquitetônico-urba-
pela Companhia de Habitação do Estado do
nísticos, as características da habitação estão
Pará – Cohab, enquadradas na ação “Apoio
mais relacionadas às regras do Programa e aos
à Urbanização de Assentamentos Precários”,
interesses do setor empresarial, observando-se
modalidade “Urbanização de Assentamentos
qualidade pouco melhor nos empreendimentos
Precários”, bem como “Produção de Habita-
verticais do que nos horizontais.
ção de Interesse Social”. As ações envolvem
Adicionalmente, a comparação dos re-
urbanização; implantação de infraestrutura
sultados obtidos na RMB pelo PMCMV em re-
básica; construção e melhoria de unidades
556
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
Percursos do direito à cidade
habitacionais; regularização fundiária com a
intervenções no âmbito do PAC na RMB, estas
utilização, principalmente, da Concessão de Di-
foram escolhidas considerando: 1) a capacida-
reito Real de Uso por um período de 10 anos; e
de de investimento do Governo do Estado; 2)
trabalho social voltado à implantação de edu-
as demandas feitas à Companhia pela popu-
cação de convivência comunitária, à geração
lação e pelos municípios; e 3) as normas do
de emprego e renda e educação referente ao
Programa Prioritário de Investimentos – PPI
meio ambiente. Os recursos federais alocados
do Governo Federal, por contemplarem áreas
são oriundos do OGU, FNHIS e Promoradia, es-
densamente ocupadas onde o proponente já
te oneroso, com prazo de retorno de 15 anos
tinha uma atuação. Somente a Pratinha não
6
(Cohab e Informação Verbal). Até março de
se enquadrava nas condições do PPI e foi in-
2011, a maior parte das ações na RMB esta-
cluída por determinação do alto escalão do
va localizada em Belém (Tabela 1). As obras se
Governo do Estado, em vista da incidência de
encontravam em atraso, tendo sido entregue
vulnerabilidade social e violência. Os residen-
17% das unidades habitacionais – UHs previs-
ciais Liberdade são destinados ao assenta-
tas para a região, sendo 14% das programadas
mento de parte da população remanejada do
para Belém e 51% para Ananindeua.
Riacho Doce e também de área próxima atin-
De acordo com o responsável pela Di-
gida pela segunda etapa do Projeto Tucundu-
retoria de Planejamento e Desenvolvimento
ba, intervenção estadual no setor saneamen-
da Cohab no momento de definição de suas
to (Informação Verbal).7
Tabela 1 – RMB: PAC, ações da Cohab por município – março 2011
Intervenção
Jardim Jader Barbalho
Pratinha
Fé em Deus
Taboquinha (Cubatão)
Pantanal
Riacho Doce I
Riacho Doce II
Riacho Doce III
Liberdade I
Liberdade II
Município
Lote
urbanizado
Lote e
habitação
Total
Executado
%
Ananindeua
Belém
Belém
Belém
Belém
Belém
Belém
Belém
Belém
Belém
1.274
990
1.357
784
1.092
726
722
845
-
595
655
332
1.078
600
160
278
112
276
1.724
1.869
1.645
1.689
1.862
1.692
886
1.000
957
276
1.724
67,90
84,30
60,37
36,90
21,77
50,26
36,88
45,67
78,38
30,26
7.790
5.810
13.600
–
RMB
UHs
entregues
305
201
98
352
25
32
1.013
Fonte: COHAB.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
557
Simaia do Socorro Sales das Mercês
Conforme liderança de movimento social
por objetivo a produção para o mercado ha-
por moradia, contudo, a seleção das áreas obe-
bitacional. Sabe-se que várias delas são tra-
deceu a critério político para atender a base do
dicionalmente prestadoras de serviços para o
Governo do Estado. Não houve discussão com
poder público.
os movimentos sociais, mas “como tinha movi-
O PAC visa a melhoria das condições de
mento dentro da Cohab, isso foi determinante,
habitabilidade em ocupações existentes, com
a maioria dessas áreas era base de um movi-
o fim de beneficiar a população já assentada
8
mento específico” (Informação Verbal). Dessa
na área do projeto e entorno. No caso do Jar-
forma, segundo o entrevistado, a influência do
dim Jader Barbalho – JJB, contudo, a maioria
movimento específico, cuja liderança também
dos beneficiados com as habitações entregues
ocupava cargo na Cohab, explicaria todas as
até o momento é oriunda de ocupação loca-
intervenções localizadas no município de Be-
lizada no município de Belém e pequena par-
lém. A única intervenção em Ananindeua seria
cela da própria ocupação Jáder Barbalho. Tal
explicada pela influência no governo do Parti-
remanejamento teria sido decidido pela Secre-
do do Movimento Democrático Brasileiro, que
taria Estratégica de Projetos Especiais, à reve-
ocupava, inclusive, a Presidência da Cohab na-
lia da Cohab, para viabilizar a implantação da
quele momento.
Avenida Independência, integrante de projeto
A contratação de empresas privadas
para execução das intervenções é sujeita à
concorrência. Assim, foi realizada licitação
negociado com o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social.9
b) Programa Minha Casa, Minha Vida
para escolha das empresas que executariam
Em abril de 2011, os empreendimentos
as obras. Todas as vencedoras das licitações
contratados para construção na RMB no âm-
são associadas ao Sindicato da Indústria da
bito do PMCMV totalizavam 7.243 UHs, sendo
Construção do Estado do Pará – Sinduscon/
38% dos empreendimentos e 49% das UHs
PA e nenhuma associada à Associação de Di-
destinados à faixa de renda familiar mensal
rigentes de Empresas do Mercado Imobiliário
de 0 a 3 SMs. O município de Ananindeua se
do Pará – Ademi/PA (Sinduscon /PA, 2011;
destaca por sediar grande parte da produção
Ademi/PA, 2011), o que mostra que não têm
contratada (Tabela 2).
558
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Percursos do direito à cidade
Tabela 2 – RMB: PMCMV, quantidades de empreendimentos
e de UHs contratadas por município e renda familiar mensal – abril 2011
0 a 3 SMs
Município
Empreendimentos
Quantidade
Ananindeua
Belém
Benevides
Marituba
Santa Bárbara do Pará
Santa Izabel do Pará
RMB
3 a 10 SMs
UHs
Empreendimentos
UHs
%
Quantidade
%
Quantidade
%
Quantidade
%
4
0
2
4
1
1
33
17
33
8
8
1.331
0
712
1.058
221
224
38
20
30
6
6
12
5
3
-
60
25
15
-
2.017
834
846
-
55
23
23
-
12
100
3.546
100
20
100
3.697
100
Fonte: CEF/PA
Obs.: Considerado o salário mínimo vigente em março de 2009, no valor de R$ 465,00.
Na maioria dos empreendimentos, a exe-
cronogramas físico-financeiros; selecionando
cução das obras foi bastante defasada em rela-
e indicando as empresas que executariam as
ção ao cronograma previsto. Até o momento de
obras, convocadas através de edital; e indican-
conclusão deste artigo, apenas os residenciais
do parte da demanda para pesquisa cadastral
Paulo Fonteles II, em Ananindeua, e Jardim das
pela CEF (Cohab, 2009).
Andorinhas, em Santa Bárbara do Pará, haviam
Os motivos encontrados para a Cohab
sido entregues aos beneficiários, embora a
vender seus terrenos são o receio de ocupa-
construção de outros empreendimentos esteja
ções ilegais, a necessidade de atender pelo
concluída, segundo as empresas responsáveis
menos parte da demanda ali cadastrada e a
10
(Informações Verbais).
criação de condições para produção de no-
A primeira etapa do PMCMV para renda
vos empreendimentos, garantindo assim sua
familiar mensal até 3 SMs, ainda que se consi-
permanência como instituição. Em junho de
dere sua característica de investimento quase
2009, a Cohab concluía serviços de infraes-
sem risco, não atraiu o empresariado na RMB.
trutura em terrenos próprios, os quais deve-
Dos 12 empreendimentos contratados, apenas
riam ser “objeto de imediata construção das
três, com total de 1.107 UHs, correspondente
unidades habitacionais a fim de evitar o ônus
a 31% do montante metropolitano, são de ini-
da manutenção, vigilância para prevenir rou-
ciativa de empresas. O restante é resultado da
bos, depredações e invasões, etc., diminuindo
ação da Cohab, que, de acordo com normati-
o déficit habitacional naqueles municípios, e
va da Caixa Econômica Federal – CEF, propôs
ressarcimento do investimento do Governo do
a venda de terrenos de sua propriedade ao
Estado no terreno e respectiva infraestrutura
Fundo de Arrendamento Residencial – FAR,
dos empreendimentos” (Cohab, 2009). De for-
para utilização no programa. A Companhia
ma aparentemente contraditória, a decisão de
participaria adaptando os projetos técnicos
vender os terrenos se insere em objetivos de
fornecidos pela CEF, bem como orçamentos e
ampliação de possibilidades de ação:
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
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Simaia do Socorro Sales das Mercês
[...] na verdade, a Cohab precisava se capitalizar, [...], mas existe a necessidade
de nós termos um banco de terras objetivando oferecer as condições de trabalhar
no nosso produto, hoje a Cohab não tem
nenhum produto pra trabalhar, que seja
dela, propriamente dito, [...].
[...] até mesmo porque a gente corria o
risco destas áreas que já estavam dotadas de infraestrutura, elas foram invadidas várias vezes, várias vezes a Cohab
teve que se utilizar de diálogo, às vezes
até de oficial de justiça pra retirar, então
diante de deixar a ocupação, existe uma
fila muito grande pra se atender aqui na
Companhia de Habitação [...] então nós
tínhamos que sair dessa realidade, não
permitir que essas áreas fossem ocupadas
e a alternativa que se oferecia naquele
momento era o MCMV. Então com isso se
poderia captar esse recurso da CEF, adquirir novas áreas para que se pudesse fazer
novo planejamento para que se tivesse
condições de usufruir de uma outra oportunidade de trabalhar no nosso negócio
que é ate 3 salários mínimos, as novas
áreas seriam destinadas à produção de
novas unidades. (Informação Verbal)11
Foram adquiridas áreas [...] num total de
aproximadamente 5 mil lotes.
A escolha dos municípios se deu pelo
critério do déficit acumulado na Grande
Belém e as localizações intraurbanas são
condicionadas pela existência de áreas
maiores (visto a adoção de ocupações
horizontais em lotes individuais) a preços compatíveis com os financiamentos
e documentadas. Influenciaram também
a acessibilidade e o aproveitamento da
infraestrutura existente, principalmente
energia elétrica e abastecimento d’água,
cujo alcance pudesse reduzir custos.
Adquiridas estas áreas, foram elaborados
projetos e licitadas as obras de implantação da infraestrutura: vias pavimentadas,
sistema de drenagem pluvial, esgotamento sanitário (individual), abastecimento d’água e rede de distribuição de
energia e iluminação pública. Estes serviços foram executados em parte (aproximadamente 50%) até o final de 2006,
quando houve mudança de governo. (Informação Verbal)12
A Cohab visava com a aquisição dos terrenos “destapar a panela de pressão”, segun-
De acordo com o Presidente da Cohab
do o Gerente de Relações Comerciais da Com-
por ocasião da compra dos terrenos vendidos
panhia, referindo-se à enorme demanda não
posteriormente para o FAR, esses haviam sido
atendida. O grupo que assumiu o Governo do
adquiridos pelo Governo do Estado com a ex-
Estado em 2007 deu continuidade à implan-
pectativa, não concretizada, da construção de
tação de infraestrutura beneficiando os terre-
parte das 30 mil casas populares negociada
nos adquiridos.
com a Vale do Rio Doce, como compensação
O lançamento do PMCMV, em março de
pela perda de investimentos e geração de em-
2009, suscitou a intenção de construção das
pregos no Pará em virtude da decisão tomada
unidades habitacionais pela própria Compa-
por essa empresa de instalar em São Luis uma
nhia.13 Contudo, as normas do programa não
siderúrgica para beneficiamento do ferro gusa
permitiam isso. A Cohab, então, negociou com
produzido na serra de Carajás, no sudeste do
a CEF a venda dos terrenos pelo valor da avalia-
estado. As áreas foram escolhidas segundo o
ção feita por esta, menor do que os gastos rela-
atendimento de alguns critérios e parcialmente
tivos à aquisição dos terrenos, à implantação da
dotadas de melhorias:
infraestrutura e aos projetos técnicos, ficando a
560
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
Percursos do direito à cidade
Quadro 1 – RMB: PMCMV: valores investidos pela Cohab(1)
e de avaliação pela CEF, junho 2009
Natureza do gasto
Infraestrutura
Valor (R$1,00)
19.145.685,02
Terreno
1.176.805,87
Projeto
278.059,24
Total investido pela Cohab
21.849.939,73
Avaliação da CEF
19.433.840,00
Fonte: Cohab, 2009.
(1) Nesse montante está incluído o valor de R$3.912.692,47 correspondente a captação, reservação e adução de água
potável necessária a três dos empreendimentos negociados.
diferença como contrapartida do estado na pro-
PA, 2011). Essa se dedica à incorporação des-
dução dos empreendimentos (Quadro 1).
de 1979, em especial, no município de Belém,15
Em 28 de agosto de 2009, o Governo
voltada ao atendimento dos segmentos de mé-
do Estado, a Cohab e cinco empresas assina-
dia e média-alta rendas16 . No PMCMV, atua
ram contrato com a CEF para a construção de
em parceria com empresa de origem mineira,
nove empreendimentos (Agência Pará, 2009).
com empreendimentos habitacionais na RMB
Uma empresa assumiu a construção de quatro
há sete anos, dirigidos à população de baixa
empreendimentos, totalizando 830 unidades
renda, notadamente no âmbito do PAC e do
habitacionais, e outra, a construção de dois
Programa de Arrendamento Residencial (Infor-
empreendimentos, que somam 780 unidades;
mação Verbal).17
as demais ficaram com os empreendimentos
Em relação à indicação dos beneficiários,
de 221, 256 e 352 unidades (CEF). As empre-
o corpo técnico da Cohab também criou expec-
sas contratadas não despenderam recursos
tativas que não se realizaram:
financeiros na negociação, inclusive para pagamento dos projetos desenvolvidos pela Cohab
(Informações Verbais).14
Todas as empresas indicadas pela Cohab
são filiadas ao Sinduscon/PA e apenas uma
delas também à Ademi/PA, evidenciando seu
objetivo principal não ligado à incorporação
imobiliária. Das empresas que contrataram empreendimentos no PMCMV na faixa de renda
de 0 a 3 SMs, sem a intermediação da Cohab,
nenhuma é filiada ao Sinduscon/PA e somente
uma à Ademi/PA (Sinduscon/PA, 2011; Ademi/
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
nós julgávamos que nós é que tínhamos
a força, nós é que indicávamos 100%,
podendo eventualmente negociar com
os municípios que têm lá as suas demandas. [...] hoje nós temos mais de 107 mil
inscritos aqui na Cohab, [...] 90% é de
0-3SM (R$1.395,00).
[...], então nós tivemos que negociar com
cada um dos municípios um percentual, que ficou diferente para cada um dos
municípios dependendo da capacidade do
município de atender ou não a demanda
lá. (Informação Verbal)18
561
Simaia do Socorro Sales das Mercês
À demanda cadastrada na Cohab é atribuída uma pontuação, considerando os casos
de atendimento prioritário estabelecidos pelo
Governo Federal (remanejamento de moradores de áreas de risco e mulheres chefes de
família); pelo Governo Estadual (residentes na
mesorregião metropolitana e “casos especialíssimos, pessoas que têm doenças degenerativas”); além das legalmente definidas (idosos,
pessoa da construtora falou que as primeiras pessoas que foram sorteadas não
conseguiram mais apartamento em baixo
[andar térreo, mais valorizado]. [...] uma
pessoa daqui de dentro que é prima do
meu pai me falou que ele não participou
de todas essas etapas porque a mulher
dele é uma líder comunitária e foi direto
lá com o Helder [Prefeito de Ananindeua]
conseguir o apartamento dele lá na frente
e em baixo. (Informação Verbal)21
mulheres e portadores de deficiência). A pontuação resulta num ranking utilizado para indicação de beneficiários à CEF, que procede à
averiguação do enquadramento nas condições
19
exigidas pelo PMCMV.
Além de dividir a indicação da demanda
com os municípios, da cota da Cohab, uma parte não é oriunda do sistema antes descrito:
Os movimentos sociais indicam, à nossa
revelia, 20% da nossa demanda, isso foi
um acordo que foi feito com a Presidência
da Cohab e o MCidades. Sobre essa demanda dos movimentos sociais, a gente
tem pouquíssima influência, eles indicam
quem eles querem, quem está cadastrado
com eles, a única coisa que a gente exige
é que eles estejam também cadastrados
na Cohab, mas eles não constam no nosso ranking, entendeu? eles podem indicar
simplesmente pessoa que é do movimento. (Informação Verbal).20
Os interesses e o papel
dos agentes sociais
na provisão da moradia
através do PMCMV e PAC
Os agentes sociais envolvidos na implementação dos programas em análise têm interesses
relacionados à provisão da moradia e desempenham diversas funções no processo. No PAC, o
Estado é o agente que toma as principais decisões relativas tanto à produção, quanto à distribuição do produto: define as características da
moradia, inclusive a localização, na medida em
que escolhe os assentamentos que serão objeto
de intervenção (ainda que o programa exija
participação social); providencia a liberação da
terra para a produção, resolvendo o “problema
Influências pessoais parecem acontecer
fundiário”;22 assume o financiamento da cons-
na escolha das melhores unidades habitacio-
trução; seleciona os agentes construtores; e dis-
nais dos empreendimentos, conforme depoi-
tribui o produto, sem comercialização. Essas ati-
mento de beneficiária do programa:
vidades, na provisão capitalista de moradia, seriam desempenhadas pelo incorporador, agente
eles [técnicos da CEF ou da Cohab] pediram que nós viéssemos aqui, pra escolher
que apartamento nós escolheríamos, só
que não era bem assim, né? tinha que
fazer um sorteio do apto [... mas] uma
562
que se diferencia do Estado por ser detentor de
um capital de circulação e ter interesse nos lucros e rendas gerados na produção e circulação
de mercadoria moradia.23 Embora as exigências
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
Percursos do direito à cidade
básicas estejam definidas no escopo do Progra-
integralmente pela CEF.24 Além disso, há a pos-
ma, como os critérios para seleção dos benefi-
sibilidade de isenções fiscais. Tais facilidades
ciários e o remanejamento, caso necessário, pa-
podem ser entendidas como bastante atrativas
ra locais próximos dos assentamentos originais,
para a iniciativa privada, visto que, resolvendo
as decisões tomadas pelo Estado são sujeitas à
o “problema da solvabilidade da demanda”,25
correlação conjuntural de forças políticas, em
reduzem substancialmente o risco dos investi-
conformidade com a natureza desse agente
mentos, compensando a pequena margem de
social. Assim sendo, resta às empresas privadas
lucro obtido no negócio, que é restringida pelo
construtoras adotar estratégias de ampliação
preço final estabelecido;26 reduzem o tempo
dos lucros relacionadas ao processo produtivo,
necessário para todo o processo de produção
em especial à forma como se insere a força de
e comercialização, por conseguinte, retorno
trabalho, no contexto das disputas capital-tra-
ampliado do capital colocado no circuito pro-
balho vigentes no setor.
dutivo; e, ainda, eliminam custos da circulação.
Nas áreas urbanas, o PMCMV/0-3 SMs
No desenho do PMCMV, outras impor-
admite a proposição de empreendimentos nas
tantes decisões cabem a diversos agentes
modalidades empresarial e entidades. Em de-
sociais, como a escolha da localização dos
corrência das normativas do Programa, algu-
empreendimentos e a negociação do terreno,
mas das funções na provisão de habitação são
além das relativas ao processo construtivo.
desempenhadas pelo Governo Federal, através
Essas funções podem ser desempenhadas por
da CEF, tais como: o financiamento da produ-
empresas privadas, por entidades ou pelo Es-
ção e do consumo, a definição do padrão míni-
tado, neste caso, especificamente em relação
mo do empreendimento, o estabelecimento dos
à localização, dada a possibilidade de cessão
prazos de entrega, o preço e a comercialização
de terrenos públicos. Esses agentes buscam
das unidades produzidas. Os beneficiários são
reduzir o custo da produção, inclusive o pre-
indicados pelos Estados e Municípios, atenden-
ço pago pelo insumo terra. Às entidades e ao
do a determinados critérios.
Estado interessa reduzir o custo da moradia
Como os recursos financeiros são ga-
maximizando sua qualidade e, no caso do Es-
rantidos e repassados ao agente contratado
tado, também os ganhos políticos. Às empre-
de acordo com o cronograma de execução da
sas interessa a apropriação de rendas fundiá-
obra, na modalidade empresarial, as contrata-
rias e de lucros gerados no processo produtivo.
das não precisam dispor de grande volume de
A escolha da localização dos empreendi-
capital próprio ou recorrer a outros agentes pa-
mentos na primeira etapa do PMCMV deveria
ra viabilizar a construção, podendo imobilizar
obedecer a critérios definidos pelo Governo
pequeno valor em capital de giro e por pouco
Federal relativos à disponibilidade ou plane-
tempo, o necessário, em condições normais,
jamento de implantação de infraestrutura.
para o ressarcimento pela CEF. Também não ne-
A construção de empreendimentos em áreas
cessitam investir em marketing nem despender
com esses requisitos e bem localizadas, com
valores para pagamento de corretagem imobi-
boa acessibilidade a locais de trabalho e a
liária, pois a compra da produção é assegurada
equipamentos e serviços urbanos, depende da
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563
Simaia do Socorro Sales das Mercês
existência de terrenos em dimensões adequa-
empreendimentos, embora nem sempre o pro-
das, da capacidade de negociação do constru-
cesso de periferização ocorra de forma absolu-
tor com o proprietário fundiário com vistas a
ta, conforme será visto no item seguinte deste
apropriação de parte da renda fundiária e da
artigo. No que concerne às estratégias relacio-
concorrência com outros demandantes de terra.
nadas ao processo produtivo, voltam-se à uti-
Tais condicionantes são mais restritivos para a
lização de métodos construtivos mais baratos,
iniciativa privada do que para o poder público,
como alvenaria estrutural, lajes pré-moldadas e
que possui as prerrogativas de desapropriação
fundação corrida direta, bem como ao aumento
por interesse social e de aplicação da dação em
da capacidade gerencial da empresa, em ter-
pagamento, além dos instrumentos de política
mos de logística, por exemplo, e ao emprego de
fundiária previstos no Estatuto da Cidade. Mas
mão de obra não qualificada, mal remunerada
“o pacote estimula um tipo de urbanização e
e, em alguns casos, em situação irregular em
de captura dos fundos públicos que, por si só,
relação à legislação trabalhista.27 Não encon-
torna mais difícil a aplicação desses instrumen-
tramos referências a investimentos em ou uti-
tos” (Arantes e Fix, 2009, p. 9).
lização de novas tecnologias. Adicionalmente,
Assim, “o pacote entrega nas mãos da
pode-se inferir que a implantação dos residen-
iniciativa privada o protagonismo da provisão
ciais do PMCMV promove ampliação dos lucros
habitacional. São as construtoras que decidem
das empresas decorrente da valorização de ter-
onde construir, o que e como” (Arantes e Fix,
renos contíguos de sua propriedade, onde pre-
2009, p. 8).
tendem realizar posteriormente investimentos
A partir da constatação da alocação da
maioria dos recursos do PMCMV na modalida-
direcionados para o mercado acessado por população de maior poder aquisitivo.28
de empresarial, do consequente entendimento
Além das empresas privadas, o outro
de que na promoção da moradia através do
agente social determinante na provisão da mo-
Programa o setor público é substituído pelo
radia na RMB pelo PMCMV é o Estado, através
setor privado e com base em Topalov (1979),
da Cohab. A resolução do problema fundiário
Jaramillo (1980) e Ribeiro (1997), Cardoso
por esse agente, contudo, não se deu com a
(2011) identifica as estratégias que podem ser
cessão de terrenos, mas com sua venda ao pre-
adotadas pelas empresas para ampliar seus lu-
ço de mercado, o que o equipara a um proprie-
cros, relacionadas ao “lucro imobiliário” e ao
tário fundiário privado, que busca apropriação
“lucro da construção”, e enfatiza a ampliação
de rendas. Tem papel importante também a
da escala dos empreendimentos, o que implica
função política das ações do Estado, eviden-
a utilização de terrenos maiores, reforçando o
ciada pela quantidade de notas nos meios de
processo de periferização urbana.
comunicação, em que, a cada assinatura de
Em termos gerais, essas inferências são
contrato e entrega de empreendimento, os ges-
confirmadas pelo estudo das ações na RMB.
tores divulgam amplamente à população, na
As empresas que atuam no Programa desen-
busca de legitimação dos grupos políticos no
volvem estratégias de ampliação do porte dos
poder, em todos os níveis de governo.
564
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Percursos do direito à cidade
A moradia popular produzida
na Região Metropolitana
de Belém pelo Estado
e pelo mercado
corporadoras, principalmente para segmentos
de renda mais elevada, a maioria fora do programa em análise, e outros são mantidos não
utilizados ou subutilizados (Belém, 2008). É
evidenciado também pela destinação à camada
de renda até 3 SMs de apenas 25% do total de
empreendimentos e de 40% das UHs em Ana-
a) Porte e padrões de localização
nindeua, o segundo município da RMB onde se
A localização dos empreendimentos do
PMCMV segue, de forma geral, as determinações de mercado, pois o preço da terra parece
ser componente importante. Isso é evidenciado
pela não implantação de nenhum empreendimento para a faixa de renda mais baixa e de
apenas 23% do total metropolitano de UHs
destinados à faixa de 3 a 10 SMs no município de Belém, onde, na parcela do território que
não tem restrições relativas a características do
sítio, os terrenos melhor localizados são objeto
de lançamentos imobiliários pelas grandes in-
verifica maior dinâmica urbana e, atualmente,
grande transformação no uso do solo.
A dinâmica do mercado de terras está
relacionada à dinâmica demográfica e ao processo de expansão da urbanização. Em 2010, a
população metropolitana alcançou 2.101.883
habitantes, concentrados na ordem de 66%
em Belém. Embora permaneça grande sua
participação na distribuição demográfica na
metrópole, os demais municípios vêm apresentando alterações na dinâmica populacional
e de integração ao polo da RMB29 (Tabela 3).
Tabela 3 – RMB: Dinâmica populacional e integração metropolitana, 2000-2010
Município
Ananindeua
Belém
Benevides
Marituba
Santa Bárbara do Pará
Santa Izabel do Pará
2000
2010
Taxa anual de
crescimento geométrico
da população
393.569
1.280.614
35.546
74.429
11.378
43.227
471.980
1.393.399
51.651
108.246
17.141
59.466
1,8
0,8
3,8
3,8
4,2
3,2
População
Nível de integração
metropolitana
2000
2010
Alta
Pólo
Baixa
Baixa
Muito baixa
–
Muito Alta
Pólo
Alta
Alta
Baixa
–
Fonte: Observatório das Metrópoles com base em IBGE, Censos Demográficos 2000 e 2010.
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Simaia do Socorro Sales das Mercês
Analisando comparativamente os dados de
residencial, que se encontra nas bordas da
Ananindeua, Marituba, Benevides e Santa Bár-
área central. Todos eles se localizam distantes
bara do Pará (Tabela 2), observa-se que estão
também de subcentros, porém com relativa
diretamente relacionados à hierarquia de inte-
fácil acessibilidade, dada pela proximidade ao
gração ao polo, mas não à taxa de crescimen-
sistema viário principal.31 Ainda considerando
to da população municipal (Tabela 3).30
a faixa de renda entre 3 e 10 SMs, padrão si-
As determinações de mercado também
milar de localização é reconhecido nos demais
são fatores explicativos das localizações intra-
municípios. Em relação aos empreendimentos
municipais. Os empreendimentos contratados
para renda mensal até 3 SMs, observam-se
através do programa para Belém estão locali-
tanto proximidades quanto distanciamento de
zados na periferia, com exceção de um único
centralidades e de vias principais (Figura 1).
Figura 1 – RMB (Parcial): PMCMV,
empreendimentos por renda familiar mensal – abril 2011
Fonte: CEF e pesquisa de campo.
566
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Percursos do direito à cidade
No que concerne à quantidade de UHs
Caldeira (2000), e certamente reproduzindo,
contratadas por empreendimento, observa-
com especificidades, seus efeitos negativos
-se concentração na faixa entre 100 e 300
na cidadania.
unidades (Tabela 4) sendo vários localiza-
Considerando-se o porte dos empreendi-
dos próximos ou mesmo contíguos uns aos
mentos, não se identifica um padrão de locali-
outros, o que potencializa seus impactos no
zação (Figura 2). Isso se verifica mesmo ao se-
espaço urbano. Importa notar que alguns
rem observados os empreendimentos segundo
empreendimentos são fechados, mimetizan-
o porte e as faixas de renda familiar mensal a
do os enclaves fortificados estudados por
que se destinam (Figuras 1 e 2).
Tabela 4 – RMB: PMCMV, porte dos empreendimentos
por renda salarial mensal – abril 2011
Faixa de renda
0-3 SM
3-10 SM
Total
Quantidade de empreendimentos
até 50 UH’s
50 a 100 UH’s
100 a 300 UH’s
300 A 500 UH’s
–
4
4
–
3
3
7
9
16
5
4
9
Fonte: CEF/PA
Obs.: Salário mínimo vigente em março/2009, no valor de R$465,00.
Figura 2 – RMB (Parcial): PMCMV,
empreendimentos por quantidade de UHs – abril 2011
Fonte: CEF e pesquisa de campo.
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Simaia do Socorro Sales das Mercês
Figura 3 – RMB (Parcial): PMCMV/0-3 SMs, empreendimentos
por agente promotor e PAC, intervenções da Cohab – abril 2011
Fonte: CEF, Cohab/PA e pesquisa de campo.
Figura 4 – RMB (Parcial): PMCMV/0-3 SMs e PAC,
intervenções da Cohab, por quantidade de UHs – abril 2011
Fonte: CEF, Cohab/PA e pesquisa de campo.
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Percursos do direito à cidade
Tendo em conta o agente social defini-
equipamentos públicos de saúde e educação,32
dor das localizações de empreendimentos do
sedes de instituições públicas, e outros, quanto
PMCMV para a faixa de renda até 3 SMs, ob-
em zonas de fronteira urbana, em que clubes
serva-se que há preferência do mercado por
campestres, sítios, chácaras, pequenas fazen-
Ananindeua, onde estão localizados todos os
das e mata fechada são observados, sem ofer-
empreendimentos de iniciativa de empresas,
ta próxima de serviço de transporte público e
correspondendo a 83% do total de UHs si-
onde a única infraestrutura existente é a rede
tuadas nesse município. Quase a totalidade
de energia elétrica. Nos últimos, como era de
dos empreendimentos em terrenos vendidos
se esperar, tornam-se indutores de mudança de
pela Cohab ao FAR se localiza nos municípios
uso do solo no entorno.
com níveis mais baixos de integração metro-
Em contraposição ao exposto em rela-
politana, em comparação com Ananindeua
ção ao PMCMV, 86% das intervenções do PAC
(Figura 3).
na RMB, de responsabilidade do Governo do
A preferência do mercado por Ananin-
Estado, se localiza em Belém. Nesse progra-
deua para a produção de moradia popular no
ma, as intervenções são voltadas à regulari-
âmbito do PMCMV pode ser em parte explica-
zação de áreas já ocupadas. Tais ocupações
da pelas isenções de Imposto sobre Serviços
ocorrem, em parte considerável dos casos, em
de Qualquer Natureza e de Imposto sobre a
áreas relativamente bem localizadas no terri-
Propriedade Territorial e Urbana, além de Taxa
tório intramunicipal e dotadas de razoável sis-
de Licença para Execução da Obra (para emis-
tema de transporte público de passageiros,33
são de Alvará) e de Taxas de Vistorias parciais
embora com riscos ambientais, sendo, algu-
e finais de obra (para emissão de Alvará e Ha-
mas, inclusive, lindeiras a regiões valorizadas,
bite-se) concedidas pela Prefeitura Municipal
para onde a grande incorporação imobiliária
(Ananindeua, 2011a, 2011b e 2010).
se dirige (Figura 3). O PAC tem grande reper-
No que se refere à localização intramu-
cussão na melhoria de condições de vida da
nicipal, ao se analisarem os empreendimentos
camada popular na RMB, dada a manuten-
do PMCMV para a faixa até 3 SMs segundo o
ção da população na própria ocupação ou em
agente definidor das localizações, observa-se
áreas próximas e o porte de suas intervenções
inexistência de padrão locacional (Figura 3).
(Figuras 3 e 4), cabendo notar que abrangem
Conclusões similares podem ser inferidas ao se
a urbanização de lotes, além da construção de
analisar conjuntamente o agente definidor e o
unidades habitacionais.
porte dos empreendimentos (Figuras 3 e 4).
Em termos de vizinhança, os empreen-
b) As tipologias habitacionais para renda familiar mensal até 3 SMs
dimentos do PMCMV/0-3 SMs, independen-
Várias características das unidades ha-
temente do agente definidor da localização,
bitacionais são especificadas nas normativas
são implantados tanto em áreas urbanas con-
do PMCMV/0-3 SMs, tais como o tamanho
solidadas ou em consolidação, com uso misto
das UHs, maior para a tipologia apartamento
do solo, registrando-se habitação, comércio e
do que casa. Na RMB, dois empreendimen-
serviços, com predomínio de caráter cotidiano,
tos de empresas privadas são edifícios de
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569
Simaia do Socorro Sales das Mercês
apartamentos e um é conjunto de casas. Os
do PAC são abertas. Por outro lado, a tipologia
empreen dimentos viabilizados pela Cohab,
casa possibilita ampliação da habitação, embora
conforme antes mencionado, resultam da
se possa apontar esse aspecto como um “pres-
adaptação de projetos já utilizados pela Com-
suposto perverso da política” na medida em que
panhia, sendo apenas um do tipo edifício mul-
a melhoria da habitação implica autoconstrução
tifamiliar. Somente uma das intervenções do
e requer poupança própria dos beneficiários
PAC não adota a tipologia casa e, sim, sobrado.
(Arantes e Fix, 2009, pp. 7-8). A ampliação da UH
Assim, parece haver relação entre tipologia ha-
como forma de adaptação a necessidades fami-
bitacional e agente social promotor da mora-
liares específicas se mostra necessária quando
dia, sendo a vertical associada ao mercado e a
se observa o tamanho diminuto das unidades,
horizontal, ao Estado.
resultado das mínimas exigências do Programa
Com a intensificação do uso do solo, que
aliadas aos interesses das construtoras, bem
maximiza o aproveitamento de terrenos com
como que a construção em alvenaria estrutu-
menores dimensões, poderíamos esperar en-
ral é restrição incontornável a modificações
contrar os edifícios em melhor localização do
da planta original. Sob outro ponto de vista, a
que os conjuntos horizontais. Isso é verdadeiro
casa se apresenta mais adequada à cultura da
para o empreendimento do PMCMV promovi-
população beneficiária na RMB, não habituada
do pela Cohab e para um dos promovidos pelo
a residir em apartamentos e que confere gran-
setor empresarial, mas não para o outro. De
de importância a quintais (Foto 1). Em um dos
toda forma, a quantidade de empreendimen-
empreendimentos do PMCMV, do tipo sobrado,
tos desse tipo é muito pequena para inferên-
essa necessidade foi resolvida com delimitação
cias a respeito.
de áreas para todas as unidades, mesmo às do
A construção de conjuntos horizontais
pavimento superior (Foto 2).
exige terrenos maiores, mais facilmente encon-
No aspecto formal, ambos os programas
trados em áreas distantes das centralidades,
analisados adotam soluções repetitivas, tanto
provocando por isso maior impacto no espaço
no tipo apartamento, quanto casa, independen-
urbano. Esse impacto é maior no PMCMV es-
temente do agente social tomador de decisões.
pecialmente porque os empreendimentos são
A utilização de projetos similares resulta em
fechados, enquanto a maioria das intervenções
paisagem desinteressante (Fotos 3 a 8).
570
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
Percursos do direito à cidade
Foto 1 – PAC, Jardim Jader
Barbalho – maio 2011
Autoria: Simaia Mercês.
Foto 3 – PMCMV (Empresa), Jardim
Campo Grande – abril 2011
Autoria: Simaia Mercês.
Foto 5 – PAC, Residencial
Taboquinha – maio 2011
Autoria: Simaia Mercês.
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
Foto 2 – PMCMV, Residencial Paulo
Fonteles II – julho 2011
Autoria: Simaia Mercês.
Foto 4 – PMCMV (Cohab), Residencial
Paulo Fonteles II – julho 2011
Autoria: Simaia Mercês.
Foto 6 – PMCMV (Cohab), Jardim
das Jurutis – junho 2011
Autoria: Simaia Mercês.
571
Simaia do Socorro Sales das Mercês
Foto 7 – PMCMV (Empresa),
Residencial Ananin – julho 2011
Autoria: Simaia Mercês.
Foto 8 – PAC, Jardim Jader
Barbalho – junho 2011
Autoria: Simaia Mercês.
Em termos de material utilizado e aca-
maior custo, por instalações para condiciona-
bamentos, a tipologia vertical apresenta qua-
dores de ar, mais baratas por serem feitas com
lidade pouco melhor do que a horizontal. As
ligação a 110V. Pode-se argumentar em favor
condições climáticas contraindicam a utiliza-
dessa substituição com base nas condições
ção de esquadrias de ferro, como adotadas em
climáticas da região. Porém, se for possível
alguns residenciais de ambos os programas,
a beneficiários com renda até 3 SMs adquirir
que superaquecem os ambientes, agravando a
condicionadores de ar, dificilmente poderão
situação de desconforto provocado pelo tama-
assumir as despesas do consumo de energia
nho diminuto dos cômodos. Além disso, a al-
pelos aparelhos, principalmente considerando
ta umidade na região acelera os processos de
que nas ligações de 110V são mais elevadas do
oxidação, implicando a necessidade de manu-
que nas de 120V.
tenção mais freqüente. Por esse e outros moti-
Outro problema que pode ocorrer na pós-
vos, já se verifica em certos casos do PMCMV
-ocupação de residenciais construídos no âmbi-
a necessidade de reparos antes mesmo da en-
to do PMCMV se refere às condições de abaste-
trega das UHs, evidenciando baixa qualidade
cimento de água, dada a adoção de reservatório
da construção. A baixa qualidade construtiva
único para atender a todo o empreendimento.
é dada também pela falta de revestimento de
Em determinadas intervenções do PAC, sequer
pisos e paredes.
há abastecimento de água, tendo os moradores
Os interesses das empresas construtoras
que providenciar poços artesianos.
nortearam mudanças em algumas definições
Equipamentos comunitários como esco-
estabelecidas pela CEF para os empreendi-
la e creche não são previstos em nenhum dos
mentos do PMCMV. Por exemplo, a substitui-
programas. Estão presentes somente itens de
ção de chuveiro com aquecedor de água, que
lazer, tais como playground, churrasqueira e
demandaria instalações para 120V, implicando
salão comunitário. O Jardim Jader Barbalho,
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Percursos do direito à cidade
construído através do PAC, por ter sido im-
interpenetradas, o que coloca em discussão
plantado em área onde antes funcionava um
sua adequação como categorias de análise.
clube recreativo, se diferencia pela excepcio-
Enquanto no PMCMV, não há padrão de
nalidade e quantidade de itens, dispondo além
localização quando se consideram essas ca-
dos antes mencionados, de piscinas e quadras
tegorias, ao se analisarem as intervenções do
de esportes.
PAC através da Cohab; no entanto, um padrão
Dificuldades adicionais advêm da proibi-
claro aparece, com localizações melhores. O
ção de instalação de qualquer tipo de estabe-
objetivo do Programa, voltado a melhorias em
lecimento comercial nas unidades do PMCMV,
ocupações já existentes, em geral bem localiza-
danosa sob dois aspectos: é restritiva na busca
das, e, eventualmente, produção de novas UHs,
de emprego e renda e dificulta as condições de
certamente tem um grande peso nesse resulta-
vida, uma vez que obriga muitas vezes a longos
do. O processo concreto de tomada de decisões
deslocamentos para satisfação de necessidades
na RMB também credita o fato aos interesses
cotidianas. A instalação de comércio e serviços
políticos dos grupos no poder e da burocracia,
é demanda evidenciada pelos usos observados
muito mais evidenciados no PAC do que no
nas intervenções do PAC.34
PMCMV, justamente em decorrência das diferenças no desenho dos programas, desta feita
no que concerne à divisão de funções com o
Considerações finais
setor privado. Isso torna o determinante busca
de legitimidade um fator relevante a ser considerado nas proposições de políticas de habita-
São de amplo conhecimento os números do
ção popular.
déficit habitacional e as precárias condições de
As conclusões inferidas para o PMCMV
moradia das camadas populares no país e na
reforçam também a necessidade de procurar
RMB, o que demanda a instituição de política
entender os padrões de localização tendo em
pública de habitação dirigida a esse segmen-
conta o processo de produção do espaço ur-
to da população. Estudiosos apontam que o
bano como um todo, inclusive, talvez princi-
PMCMV/0-3 SMs não configura política esta-
palmente, a produção de mercado para outros
tal de habitação, pois as principais decisões
segmentos da população, que se coloca como
são tomadas pelo setor empresarial. De fato,
concorrente na apropriação de terrenos bem
pelas normas do Programa, as empresas divi-
localizados, elevando o preço da terra.
dem com o setor público importantes funções
Pode-se também reafirmar a importância
na provisão da moradia. A possibilidade de
de dirigir a política habitacional não apenas
doação de terrenos públicos, prevista nas nor-
a objetivos voltados à produção de unidades
mativas, imprimiria um caráter mais estatal ao
habitacionais, mas ao manejo do solo urbano,
programa. Entretanto, a análise dos determi-
conforme outros autores já indicaram. Nesse
nantes e resultados da ação da Cohab na RMB,
sentido, reitera-se a importância de efetivação
no âmbito do Programa, mostra que, no caso
dos instrumentos com essa finalidade contidos
estudado, as categorias Estado e mercado são
no Estatuto da Cidade.
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Simaia do Socorro Sales das Mercês
Simaia do Socorro Sales das Mercês
Arquiteta e Urbanista. Doutora em Arquitetura e Urbanismo. Professora do Núcleo de Altos Estudos
Amazônicos da Universidade Federal do Pará. Belém/PA, Brasil.
[email protected]
Notas
(1) Remetendo a Ball (1986), Maricato observa que “estrutura de provisão de moradias se refere à
construção, manutenção e distribuição de um estoque, que se forma a par r de diversas formas
de provisão de habitação”, e “o estoque de moradias é resultante dos diferentes arranjos
existentes no interior do conjunto formado pelo mercado privado, pela promoção pública e pela
promoção informal (o que inclui ainda arranjos mistos) em diferentes situações históricas de
uma dada sociedade” (2009, p. 36).
(2) Além das intervenções do Governo do Estado, Prefeituras Municipais na RMB desenvolvem
projetos no âmbito do Programa.
(3) Entre vários conceitos que privilegiam dimensões como polí co-administra va, demográfica,
cultural, etc.
(4) Esse conceito tem como referência empírica a RMB. Outros aspectos podem ser considerados em
realidades dis ntas.
(5) Através da Medida Provisória nº 459/2009.
(6) Arthur Farias. Entrevista à autora. Belém, julho 2011.
(7) Idem.
(8) Alcir Matos. Entrevista à autora. Belém, julho 2011.
(9) A COHAB estaria respondendo ao Ministério Público, provocado pela comunidade prejudicada,
acerca do atendimento feito a população oriunda de ocupação fora da área do projeto e
entorno, contrariando a norma do PAC e o contrato assinado entre COHAB e CEF (Arthur Farias.
Entrevista à autora. Belém, julho 2011).
(10) Armando C. Uchoa Jr. e Manuel Pereira. Entrevistas à autora. Belém, julho 2011.
(11) Arthur Farias. Entrevista à autora. Belém, julho 2011.
(12) Cicerino Cabral. Entrevista à autora. Belém, julho 2011.
(13) José Otávio Figueiredo. Entrevista à autora. Belém, julho 2011.
(14) Idem.
(15) Conforme levantamento de dados de empresas voltadas à incorporação na RMB na Junta
Comercial do Estado do Pará.
(16) A análise foi desenvolvida com base em levantamento de dados junto à Secretaria Municipal de
Urbanismo, órgão responsável pelo licenciamento de obras em Belém.
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(17) Gilberto Souza e Cris ano Teixeira Rodrigues. Entrevistas à autora. Belém, junho 2011.
(18) José Otávio Figueiredo. Entrevista à autora. Belém, julho 2011.
(19) Idem.
(20) Idem.
(21) Walquíria Silva. Entrevista à autora.julho 2011.
(22) O “problema fundiário” decorre: 1) da instituição da propriedade privada dos terrenos, que
deve ser superado a cada novo processo de produção de habitação, implicando redução da
rentabilidade do capital inves do; 2) da disponibilidade de terrenos adequados à construção,
do ponto de vista das caracterís cas naturais e da localização em relação ao espaço socialmente
construído; e 3) de conteúdos sociais atribuídos à propriedade privada pelo desenvolvimento de
a vidades não incorporadas ao modo capitalista de produção (Ribeiro, 1997).
(23) Conforme conceito de incorporador em Ribeiro, 1997.
(24) Na visão de empresário com obra através do programa, isso caracterizaria as empresas como
empreiteiras: “a empresa nasceu em cima de licitar obras públicas. No nosso modo de ver esse
po de empreendimento do Minha Casa, Minha Vida é como se fosse uma obra pública porque
a gente apresenta um projeto para a CEF e, depois de aprovado, ela compra o projeto e a gente
vira uma empreiteira normal, executando o projeto da Caixa. Então, essa atividade postula
dentro do que a gente nasceu e vinha fazendo (Armando C. Uchoa Júnior. Entrevista à autora.
julho 2011).
(25) “[...] o ‘problema de solvabilidade’ é definido pelo alto valor rela vo da mercadoria moradia,
compara vamente ao poder de compra do conjunto da população” (Ribeiro, 1997, p. 89).
(26) Todos os empresários entrevistados se referem a esse aspecto.
(27) Gilberto Souza, Manuel Pereira, Armando C. Uchoa Júnior e Joanis. Entrevistas à autora, julho
2011.
(28) Conforme referência a projetos e estoque de terras de empresa atuante no programa. Cris ano
Teixeira Rodrigues. Entrevista à autora, julho 2011.
(29) Os indicadores para iden ficação do nível de integração à dinâmica metropolitana tomam por
base os dados censitários do IBGE rela vos a população, densidade populacional, pessoas que
trabalham ou estudam em municípios dis ntos do residencial e ocupados não agrícolas (Moura,
2009).
(30) Não se pode afirmar até o momento se os empreendimentos do PMCMV estão relacionados ao
crescimento populacional dos municípios da periferia ou ao processo de mobilidade residencial
da população de Belém no sen do do território dos demais municípios. Isso será objeto das
próximas etapas da pesquisa.
(31) Para afirmações mais conclusivas a esse respeito, o sistema de transporte será analisado em
etapa posterior da pesquisa.
(32) A disponibilidade não implica necessariamente acessibilidade aos serviços.
(33) Considerando-se que o sistema na RMB em geral é precário.
(34) Para a segunda etapa do PMCMV, estabelecida em junho de 2011 essa proibição foi suspensa.
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Texto recebido em 30/out/2011
Texto aprovado em 10/mar/2012
Cad. Metrop., São Paulo, v. 14, n. 28, pp. 553-577, jul/dez 2012
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(org.). Título do livro. Cidade de edição, Editora.
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AUTOR DO ARTIGO (ano de publicação). Título do artigo. Título do periódico. Cidade, volume do periódico,
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Teses, dissertações e monografias
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