Philipe Murillo Santana de Carvalho - Programa de Pós

Transcrição

Philipe Murillo Santana de Carvalho - Programa de Pós
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL
UMA CIDADE EM DISPUTA:
CONFLITOS E TENSÕES URBANAS EM ITABUNA (1930-1948)
FOTO: CEDOC
PHILIPE MURILLO SANTANA DE CARVALHO
JANEIRO / 2009
2
PHILIPE MURILLO SANTANA DE CARVALHO
UMA CIDADE EM DISPUTA: CONFLITOS E TENSÕES URBANAS EM
ITABUNA (1930-1948)
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Mestrado em História Regional
e Local da Universidade do Estado da Bahia
(UNEB) sob a orientação do Professor
Doutor Carlos Zacarias Figuerôa de Sena
Júnior
BANCA EXAMINADORA:
Profª. Dr. (Orientador) Carlos Zacarias Figuerôa de Sena Júnior (UNEB)
Profª. Dr.(Titular) Antônio Luigi Negro (UFBA)
Prof. Dr. .(Titular) Wellington Castelucci (UNEB)
Prof. Dr. (Suplente) Charles D’Almeida Santana (UNEB)
JANEIRO / 2009
3
FICHA CATALOGRÁFICA
CARVALHO, Philipe Murillo Santana.
Uma cidade em disputa: tensões e conflitos urbanos em Itabuna
(1930-1948). Philipe Murillo Santana Carvalho; orientador Carlos
Zacarias F. Sena Jr. Santo Antonio de Jesus: UNEB, 2009.
178 f. :
Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em História
Regional e Local. Área de Concentração: História Regional) –
Departamento de Ciências Humanas – Campus V da Universidade do
Estado da Bahia.
1. Itabuna – História – Cidade
2. Trabalhadores – Itabuna – Condição Social
3. História Regional – Itabuna. I. Título.
4
FOLHA DE APROVAÇÃO
Philipe Murillo Santana de Carvalho
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Departamento de Ciências Humanas –
Campus V – da Universidade do Estado da
Bahia para obtenção do título de mestre.
Área de Concentração: História Regional
Aprovado em ___/___/_____
Banca Examinadora
Prof.º Dr. Carlos Zacarias F. Sena Jr. – Universidade do Estado da Bahia
Prof.º Dr. Antonio Luigi Negro – Universidade Federal da Bahia
Prof.º Dr. Wellington Castellucci – Universidade do Estado da Bahia
5
DEDICATÓRIA
Para meus avós maternos
Manoel Joaquim de Santana e
Raimunda Pereira dos Santos (in memoriam),
parte dos milhares de trabalhadores e sujeitos
históricos anônimos que ajudaram a construir essa cidade.
6
AGRADECIMENTOS
Apesar da solidão que envolve a produção da dissertação, este trabalho é também
resultado da paciência, respeito e companheirismo de várias pessoas. Os agradecimentos
devem servir para que elas não sejam excluídas de nossa formação profissional e humana.
Este é o momento em que cada atitude, por pequena que seja, possa ser lembrada como
reconhecimento e afeto pelos indivíduos que direta e indiretamente nos ajudaram a conquistar
nossos objetivos. Por isso agradeço:
À minha mãe, agradeço a paciência e abnegação demonstradas por ela me
proporcionou o maior dos legados que uma pessoa pode ter: a educação. Não fosse por isso,
dificilmente estaria por aqui.
À Adriana Oliveira, companheira, amiga, paixão e referência, devo o amor que
certamente me sustentou na empreitada de fazer um mestrado. Sua compreensão com a
distância, seus alertas quanto aos caminhos individualistas e egoístas que academia pode
levar, e sua prática enquanto mulher lutadora e militante, foram fundamentais para concretizar
este estudo.
À minha tia Ray Santana, pela sua preocupação em sempre acompanhar os projetos e
as demandas do seu sobrinho, ajudando sempre que possível com sua presteza e atenção
inigualáveis.
Aos professores Felipe Magalhães e Carlos Zacarias F. de Sena Jr. O primeiro pela
disponibilidade em acompanhar meu trabalho desde o projeto de pesquisa até os primeiros
escritos desta dissertação. O segundo cumpriu a tarefa de se responsabilizar pela minha
orientação nos meses finais do curso, sempre de maneira muito atenciosa e preocupada,
tratando com serenidade as minhas inquietações teóricas.
Aos professores Antonio Luigi Negro e Wellington Castellucci pelas contribuições
oferecidas no exame de qualificação. Além deles, agradeço também aos professores Charles
D’Almeida Santana, Walter Fraga Filho e Ely Estrela pelas dicas de leituras e incentivos para
que concluíssemos a pesquisa durante as disciplinas cursadas com eles.
Aos funcionários do Arquivo Público Municipal de Itabuna José Dantas e do Centro
de Documentação e Memória Regional, pela amizade e pelos serviços prestados para o
desenvolvimento desta pesquisa. Em especial agradeço a Sílvio, João Cordeiro, Stela Dalva e
professora Janete Ruiz de Macedo pela atenção dispensada. Agradeço também a Sádia,
7
escrivã da Vara do Júri da Comarca de Itabuna, a Antonio, responsável pelo arquivo do fórum
Ruy Barbosa e ao Juiz Marcos Bandeira pelo acesso as fontes do poder judiciário.
Aos colegas do mestrado Liliane Cordeiro, Raul Barreto, Carlos Nássaro, Edilma
Quadros, Rosana Gomes, Rosineide Costa, Fabiana, Luiz Alberto e Leandro Bulhões, que
durante o primeiro ano de aula, dividiram comigo inquietações teóricas, leram meus textos,
discutiram caminhos e perspectivas, além de se tornarem amigos dos quais sempre terei boas
recordações.
Ao grupo de pesquisa Poder, Conflito e Práticas Culturais na Bahia Republicana,
cujos membros, Erahsto Felício, Gissele Raline, Kátia Vinhático, Danilo Ornelas, Jeanderson
Santos, Soane Cristino, pelo esforço e dedicação na leitura de parte dos manuscritos dessa
dissertação, oferecendo importantes contribuições para seu desenvolvimento. Espero que
possam ver um pouco das discussões realizadas com eles durante a leitura do texto.
À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia pela concessão da bolsa de
mestrado e pelo apoio financeiro para realização desta pesquisa.
Ao Programa de Pós-graduação em História Regional e Local da Universidade do
Estado da Bahia - Campus V pela oportunidade de realização do curso de mestrado.
8
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA..................................................................................................................5
AGRADECIMENTOS ......................................................................................................6
RESUMO............................................................................................................................ 9
ABSTRACT.......................................................................................................................10
LISTA DE ABREVIATURA...........................................................................................11
EPÍGRAFE........................................................................................................................12
CONSIDERAÇÕES INICIAIS.......................................................................................13
CAPITULO 1
A CIDADE E SEUS PODERES......................................................................................32
Higiene Pública...................................................................................................................48
Guarda Municipal...............................................................................................................63
CAPÍTULO 2
A CIDADE E O PLANO..................................................................................................74
Planos e territorialização de poder......................................................................................75
Plano e o mercado imobiliário............................................................................................91
O Plano e as pessoas.........................................................................................................104
CAPÍTULO 3
A CIDADE E SUAS (IM)POSTURAS..........................................................................120
Vaqueiros e condutores: Trabalhadores rurais na cidade..................................................123
Lavadeiras e engraxates: trabalhadores de ganho em Itabuna..........................................138
Moleques e Malandros nos logradouros públicos.............................................................151
CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................166
FONTES E REFERÊNCIAS ........................................................................................170
ANEXO............................................................................................................................178
9
UMA CIDADE EM DISPUTA: CONFLITOS E TENSÕES URBANAS EM
ITABUNA (1930-1948)
Itabuna é uma cidade situada no interior do sul da Bahia, cuja economia se pautou na
exportação do cacau durante parte considerável do século XX. Entre 1900 e 1930, o
município teve a chegada de diversos migrantes, oriundo do sertão da Bahia, de Sergipe e de
Alagoas, atraídos quase sempre pela oportunidade de trabalho ofertada pela lavoura cacaueira.
O fluxo de migrantes fez com que a população do município fosse superior a vinte mil
habitantes em 1940. Ao passo que a cidade crescia em suas formas e demograficamente,
houve também uma maior preocupação dos poderes públicos sobre a importância de se
planejar as transformações pelas quais passavam a zona citadina. Este é um estudo sobre a
política urbana desenvolvida pelos segmentos hegemônicos e sua relação com os
trabalhadores durante as décadas de 1930 e 1940.
Entre as décadas de 1930 e 1940, a prefeitura modificou sua política urbana, cuja
preocupação se voltou para a constituição de uma cidade planejada para legitimar os valores
de “progresso” e de “civilização” estabelecidos pela sociedade política dirigente. Para tanto,
houve o patrocínio de diversas medidas de intervenção sobre o espaço e as práticas urbanas de
Itabuna. Em 1935, o prefeito patrocinou a produção de um projeto de reformas urbanas
criados pelo escritório Saturnino de Brito, com vistas a implantação do sistema de água e
esgoto do município. Além disso, o projeto levava em consideração a realização de reformas
urbanas em diversos logradouros públicos, com a retificação e alinhamento de ruas e
avenidas, embelezamentos de praças e das margens do rio Cachoeira que corta o município.
Os projetos de intervenção urbana foram acompanhados de alterações da estrutura do
poder público. Em 1933, por exemplo, houve a criação da Guarda Municipal de Itabuna cuja
função era fiscalizar as condutas dos munícipes e manter a ordem estabelecida pela prefeitura.
Além disso, a diretoria de Higiene Pública passou a ter uma função mais intensiva, com a
fiscalização sanitária das residências e dos estabelecimentos comerciais, bem como das feiras
locais. Ambas as instituições tinham como referência jurídica o Código de Posturas do
Município de Itabuna, revisado e ampliado também em 1933.
Apesar dos esforços do poder público por intervir na cidade e fiscalizar as práticas
urbanas dos habitantes, nem sempre os trabalhadores de Itabuna se mostraram submissos à
ordem estabelecida pelos segmentos hegemônicos. No intuito de garantir costumes e
interesses comuns dos pobres, alguns grupos de trabalhadores conseguiram criar táticas para
bular o controle da prefeitura e garantir o uso urbano dos “de baixo”, gerando um campo de
tensões e conflitos na cidade. O objetivo central deste trabalho é analisar as relações entre os
trabalhadores e o poder público durante a urbanização de Itabuna entre as décadas de 1930 e
1940.
PALAVRAS-CHAVE: Trabalhadores – Poder Público – Itabuna
10
A CITY IN DISPUTE: URBANS CONFLICTS AND TENSIONS IN ITABUNA (19301948)
Itabuna is a city located in the south of Bahia, whose economy to be based in the
exportation of the cocoa during 20th century. Between 1900 e 1930, the town has arrival of
many migrants, came from of the inland of the Bahia, Sergipe and Alagoas, attracted almost
always by the opportunity of works in the cocoa’s farms. The arrival of the migrants caused
the growth of the population reached more of 20 thousands peoples in 1940. While the city
had grown in your shapes and population, the authorities are worried about the urban planning
of Itabuna. This is a research about the urban policy developed by the hegemonic sectors and
the relation with the workers during 1930 e 1940.
Between the 1930s and 1940s, the city changed its urban policy, whose concern turned
to the formation of a city designed to legitimize the values of "progress" and "civilization"
policy established by the company manager. For both, there was the sponsorship of various
measures of intervention on the area and practice of urban Itabuna. In 1935, the mayor
sponsored the production of a project of reforms created by urban office Saturnino de Brito,
with a view to deploying the system of water and sewage of the city. Moreover, the project
took into account the implementation of reforms in various urban public designations, with
the adjustment and alignment of streets and avenues, embellished squares of the river and
waterfall that bisects the city.
The projects of urban intervention were accompanied by changes in the structure of
public power. In 1933, for example, was the creation of the Municipal Guard Itabuna whose
function was to monitor the behavior of residents and maintain the order established by the
prefecture. In addition, the board of Public Health began to have a more intensive basis, with
the sanitary inspection of homes and shops, as well as the local fairs. Both institutions had as
a legal reference to the Code of the postures of Itabuna, also revised and expanded in 1933.
Despite the efforts of the public by intervening in the city and monitor the practices of
urban dwellers, not always the employees of Itabuna were obedient to the order established by
hegemonic segments. In order to ensure customs and common interests of the poor, some
groups of workers to create tactics for dribble the control of the municipal urban and ensure
the popular use of the streets, avenues and squares, generating a field of tensions and conflicts
in the city. The objective of this study is to analyze the relationship between workers and the
public during the urbanization of Itabuna between the 1930s and 1940s.
KEYWORDS: Workers – Public Authorities – Itabuna.
11
LISTA DE ABREVIATURA
APEBa – Arquivo Público do Estado da Bahia.
APMIJD – Arquivo Público Municipal de Itabuna José Dantas.
CEDOC/UESC – Centro de Documenta e Memória Regional / Universidade Estadual de
Santa Cruz.
IGHB – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia.
BPEBa – Biblioteca Pública do Estado da Bahia.
APPJ – Arquivo Permanente do Poder Judiciário;
PSD – Partido Social Democrata.
UDN – União Democrática Nacional.
12
“A forma de uma cidade pode mudar mais depressa que o coração dos homens. Renovem as
casas, alinhem as ruas, transformem as praças: ‘as pedras e os materiais não lhe oporão
resistência. Mas os grupos resistirão, e neles vocês enfrentarão a resistência, senão das pedras,
ao menos de suas disposições antigas’.”
Bernard Lepetit
13
CONSIDERAÇÕES INICIAIS
Na madrugada do dia 30 de outubro de 1948, enquanto parte da cidade dormia, os
moradores da Caixa D’Água foram subitamente despertados em meio à gritaria e aos sons de
espancamentos. Ao amanhecer, a polícia tomara conhecimento da morte a cacetadas de
Laurindo Santos e do ferimento de Modesto Marques Ribeiro à golpe de facão. Na manhã do
mesmo dia, Humberto Gesteira, delegado de polícia da comarca de Itabuna, averiguou quem
eram os autores e quais as motivações do episódio registrado, tomando o depoimento de
algumas testemunhas. A documentação policial informou que os autores dos crimes
pertenciam a um conhecido grupo da cidade composto por Francisco Mascarenhas de
Oliveira, Astor Alves de Oliveira, José Carvalho da Silva (vulgo Zeca), Waldomiro Carvalho
(vulgo Miro) e José Alves da Silva. Nos autos da investigação do caso, Gesteira considerava
os membros do grupo como “elementos dados a desordens, acabadores de festas,
espancadores de indefesos, desclassificados, cachaceiros, viciados e incorrigíveis.” Para
ressaltar a “periculosidade” daqueles sujeitos, o delegado ainda sublinhava, no relatório
enviado ao Ministério Público, que se tratava de uma “sub-raça desta cidade progressista e
trabalhadora.”1
Logo após proceder à caracterização do grupo acusado dos crimes, Humberto Gesteira
se pronunciou também sobre a situação dos bairros de Itabuna. Segundo ele, os bairros pobres
eram os lugares onde “elementos de baixo instinto e inclinações criminosas, muito
infelizmente ainda estão livres, ameaçando potencialmente a sociedade itabunense.”2 Por
conta disso, o delegado encerrou seu relatório solicitando que o Ministério Público instaurasse
processo contra os acusados, assumindo sua função de “auto-defesa do corpo social” de
Itabuna.
APEBa. Caixa 35, Maço 2. Cópia de relatório de inquérito em que figuram como acusados Francisco
Mascarenhas de Oliveira e outros. Itabuna, 20 de novembro de 1948. s/p.
2
Idem, Ibidem.
1
14
O cuidado e a inquietação em prender o grupo de suspeitos demonstrados por
Humberto Gesteira sinalizam como o controle social sobre o modo de viver dos sujeitos se
tornou uma questão essencial para as forças policiais de Itabuna no período estudado. Para
garantir a manutenção da ordem vigente, a polícia procurava associar os que fugiam aos
padrões instituídos pelo poder público à desordem e à periculosidade. Os bairros, tomados por
oposição ao centro organizado e controlado, eram classificados como lugar de instabilidade
pelas instituições de segurança da cidade. Essa percepção não se restringia apenas aos
membros da polícia. A imprensa atuava concomitantemente com a ação de fiscalização do
espaço urbano. Em suas páginas, os jornais denunciavam as práticas que se desviavam das
normas estabelecidas pelas municipalidades. Muitas eram as queixas sobre pessoas que se
posicionavam em ruas, avenidas, pontes e praças de Itabuna.
Nos locais de mendicância, de jogatina e de trabalho informal era cobrada a presença
da polícia ou da Guarda Municipal. Em maio de 1936, o jornal O Intransigente reclamava
sobre a localização de pessoas na cabeceira da ponte Góes Calmon, que liga o centro da
cidade com o bairro Conceição. Alegando a preservação dos “bons costumes e da moralização
do ambiente, [...] pervertido por indivíduos que são verdadeiros cancros sociais”3, a seção
Queixas e Reclamações solicitava ao prefeito a colocação de dois guardas municipais com o
objetivo de coibir “o abuso de certos malandros e pervertidos sexuais [...] que sem trabalho,
ficam nas alas da ponte a dizer indecências às mocinhas, às senhoras e às crianças, num
descaramento ímpar.”4 Da mesma maneira que se dava com a ponte Góes Calmon, outros
lugares eram frequentemente inspecionados pelos veículos de comunicação que circulavam
em Itabuna na década de 1930 e 1940.
O controle sobre as pessoas não se restringia aos desocupados e “malandros” que
ocupavam o espaço urbano de Itabuna. Abrangia diferentes grupos de trabalhadores que
utilizavam os logradouros públicos para exercer suas atividades. A fiscalização da Prefeitura,
da Higiene Pública e da Guarda Municipal multava e prendia pessoas que não possuíssem
autorização para explorar calçadas, feiras livres e margens do rio Cachoeira. Eram os
inspetores destas repartições que concediam as licenças para as atividades profissionais
urbanas. Quase sempre utilizavam a justificativa de transgressão aos códigos municipais para
efetivar suas intervenções na cidade. Desta maneira, os poderes públicos buscavam organizar
sua fiscalização com o objetivo de afirmar valores culturais sintonizados com os ideais de
3
4
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 16 de maio de 1936, AnoX, n.º 37. p.1.
Idem, Ibidem.
15
“progresso” e de “civilização”, em detrimento do modo de vida dos trabalhadores pobres de
Itabuna.
As décadas de 1930 e 1940 inauguraram em Itabuna um período em que os valores de
“progresso” estavam relacionados ao desenvolvimento material e cultural da cidade. Os
planos de urbanização produzidos entre 1927 e 1935 são evidências de que a preocupação
com as condições de crescimento e desenvolvimento de Itabuna aumentou por parte da classe
política dirigente.5 Esses projetos de intervenção urbana tinham por objetivo a instalação do
sistema de distribuição de água e de tratamento do esgoto sanitário. Mas além dessa demanda,
o planejamento urbano trouxe consigo a proposta de abertura de avenidas e ruas, de
embelezamento de praças e da área marginal do rio Cachoeira que se limitassem com o
perímetro central. À medida que as primeiras reformas urbanas eram efetuadas no centro da
cidade, ações secundárias eram providenciadas pelo poder público, tais como a isenção de
impostos para imóveis novos e embelezados nos padrões da prefeitura, e para a construção de
prédios destinados para teatro, cinema, hotéis e mercado municipal. Foram esses elementos
que terminaram sendo interpretados como aspectos de “progresso” pelas autoridades políticas
e pela imprensa regional.
Em fevereiro de 1936, O Intransigente associava alguns dos melhoramentos urbanos à
condição progressista da cidade. Dizia que “Itabuna se apresenta como uma cidade moderna,
enriquecida de quase todas as obras urbanas necessárias para tão grande número de
habitantes”, destacando que o município já era dotado de “ruas calçadas, praça ajardinada,
abastecimento d’água, iluminação elétrica, estação de estrada de ferro, grandes armazéns, e
sobretudo, aquele asseio que a faz simpática e confortável.”6 Ao ressaltar as mudanças nas
formas urbanas de Itabuna, a imprensa local ajudava a organizar o discurso de progresso
difundido pelo segmentos políticos e a imprimir os valores de modernidade inseridos na
sociedade brasileira a partir da integração ao mercado internacional. Na prática, Itabuna ainda
tinha muitos problemas estruturais, como falta de luz freqüente7, escuridões nos bairros e um
precário abastecimento de água limitado ao perímetro central8.
As modificações urbanas realizadas em Itabuna paralelamente produziam uma noção
de civilidade pautada em comportamentos estabelecidos pelos agentes do poder público. A
CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, GONÇALVES, Archimedes S. Projeto de Remodelamento e Expansão da
cidade de Itabuna. Salvador, 1927, e APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da
Bahia) – Relatório F. Saturnino R. de Brito Filho, Rio de Janeiro, março de 1935
6
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 22 de fevereiro de 1936, Ano X, n.º 25. p.1.
7
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 21 de março de 1942, AnoXX, n.º 1197. p.1.
8
Os planos criados para a implantação do sistema de água e esgoto já previam que não haveria distribuição de
água para as áreas dos bairros.
5
16
urbanização implicou também na tentativa de condicionar as práticas dos diversos setores
sociais que compunham a cidade, modificando os costumes a partir dos interesses das classes
hegemônicas.9 A criação da Guarda Municipal e do Código de Posturas de Itabuna, em 1933,
parece ser sintomática dos anseios de padronizar comportamentos para a população local.
Ambos foram idealizados pensando na regulamentação dos costumes dos habitantes por
fiscais da municipalidade. Um dos aspectos ligado aos valores de civilidade era a higiene. Por
exemplo, O Jornal Oficial do Município de Itabuna alertava que “o asseio de uma cidade, diz
do grau de civilização dos seus habitantes.”10 Em junho de 1935 a Prefeitura solicitava que a
população colaborasse com a limpeza pública no sentido de “aperfeiçoar as condições
sanitárias da cidade, adaptando-a aos nossos foros de povo civilizado”.11
A busca por uma política urbana que estivesse interligada com os valores
hegemônicos de “progresso” e de “civilização” obrigou a municipalidade a criar meios para se
relacionar com os trabalhadores que faziam parte da cidade. Interessa saber de que forma
ocorreu essa relação entre o poder público municipal e os trabalhadores durante o período em
que se processavam as mudanças urbanas em Itabuna. Importa também recuperar os
fundamentos políticos e culturais que justificaram as intervenções sobre a morfologia da
cidade e as práticas dos sujeitos pobres, a pretexto da ordem civilizada e do desenvolvimento
do município nas décadas de 1930 e 1940.
Além dessa inquietação inicial, as fontes consultadas para a pesquisa colocaram a
importância de entender as maneiras como os trabalhadores pobres e urbanos continuaram
garantindo seus costumes e usos da cidade nesse período de urbanização. Os anos de 1900 a
1930 marcaram o momento inicial de adensamento da população que chegava ao município
com os fluxos migratórios de sertanejos da Bahia, Sergipe e Alagoas12, alguns deles migrantes
ex-escravos que saíram da lavoura canavieira para a cacaueira na esperança de melhores
condições de vida.13 A incorporação dessas novas populações foi acompanhada do
Sobre conceito de Civilização, ver ELIAS, Nobert. O processo civilizador. Uma história dos Costumes. 2º
Volume. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1994. p.13. O autor analisa as mudanças de costumes operadas no
ocidente a partir do fortalecimento dos Estados Nacionais na Europa, enquanto um processo que se consolidou
com a gradativa adoção dos comportamentos aristocráticos pela burguesia em ascensão.
10
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 1º de janeiro de 1938, Ano VII, n.º 352, p.4.
11
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 29 de junho de 1935, Ano V, n.º 223, p.1.
12
Ver GARCEZ, Angelina N. R. Mecanismo de formação da propriedade cacaueira no eixo Ilhéus-Itabuna
(1890-1930). Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1977.
Embora não seja um estudo de demografia detalhado, a autora parece ter sido uma das primeiras a se preocupar
em traçar um perfil das populações que compuseram a região de Ilhéus-Itabuna no início do século XX.
13
Ver FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. Histórias de escravos e libertos na Bahia (18701910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. O autor traz novas documentações que apontam para a vinda
de libertos à região sul da Bahia na virada do século XIX para o XX. Sobre a presença de trabalhadores afrobrasileiros na lavoura cacaueira, ver Mary Ann Mahony. “Afro-Brazialians, land reform, and the question f
9
17
aparecimento de bairros e do aumento de pessoas pobres em decorrência da concentração de
terras e de renda pelas elites.
Diante da situação social e econômica desenhada acima, o objetivo deste trabalho é
analisar a maneira pela qual esse contingente de trabalhadores se relacionou com a política
urbana adotada pelas municipalidades de Itabuna entre 1930 e 1948. Para isso, é importante
entender os motivos e a forma pela qual se estruturou a administração municipal em Itabuna,
refletindo sobre: Quais foram os departamentos criados pela Prefeitura na década de 1930 e
1940? Que tipo de medidas urbanísticas e jurídicas foram geradas para exercer o controle
social sobre a cidade? Como sobreviveram e resistiram os grupos de trabalhadores na
apropriação dos territórios urbanos? Estas e outras questões discutidas ao longo do texto são
os alvos deste estudo.
A justificativa para escolha do marco temporal está amparada na constatação de que, a
partir de 1930, autoridades políticas municipais adotaram uma nova postura frente às questões
urbanas em Itabuna. Como apontei, além da criação de planos de urbanização e do surgimento
de departamentos das municipalidades de controle social, esse período registrou também a
abertura das vias urbanas que deram um formato inicial ao perímetro central da cidade.
Outrossim, a intensificação de medidas de repressão aos grupos de trabalhadores, como
lavadeiras, ambulantes, vaqueiros e prostitutas, nos anos de 1940, forneceu subsídios
suficientes para problematizar as relações sociais dos sujeitos durante o processo de
urbanização local. Não podemos esquecer que os anos de 1930 e 1940 foram momentos de
efervescência no cenário político nacional, que de forma específica se refletiram sobre
Itabuna. Exemplo disso é a nomeação de Claudionor Alpoim para prefeito em 1932. Como
representante da política de Vargas, Alpoim criou uma imagem inovadora e adotou uma
postura de “modernizador” no que tange à cidade. É possível notar isso em seu discurso, no
qual dizia que seu “fito único é melhorar, ampliar, oferecer um meio para seu
desenvolvimento, progresso, tornando-a pioneira da civilização, da higiene, do conforte de
todas as demais cidades do Estado.”14 Esse fragmento é um sinal das transformações na
política urbana de Itabuna durante o citado período, conforme discutirei nos capítulos
seguintes.
A seleção da cidade de Itabuna como espaço de observação deste estudo se deveu à
fatores ligados desde à proximidade com o ambiente até o interesse nas especificidades de sua
social mobility in southern Bahia, 1880-1920. In: Afro-brazilian culture and the politics: Bahia, 1790s to 1990s.
Nova York, Sharpe, 1998. p.90.
14
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 24 de agosto de 1935, Ano V, n.º 231. p.2.
18
formação urbana e social. Raminelli aponta que os estudos de história urbana têm sido
atraídos por um modelo muito utilizado por trabalhos reconhecidos pela historiografia
nacional, deixando de lado as diferenças históricas e sociais referentes a cada espaço.15 No
caso deste trabalho, a condição de cidade do interior, ligada à agricultura, distante das capitais
e com diferentes personagens já parece sugerir as peculiaridades desta análise. Estudos de
cidades de pequeno e médio porte têm originado boas contribuições para a historiografia.
Apoiada na monocultura da lavoura cacaueira, Itabuna deixou a condição de distrito
do município de Ilhéus, transformando-se em cidade emancipada em 1910. Seus primeiros
cinqüenta anos foram compostos de disputas conflituosas entre setores sociais antagônicos
nos campos político, econômico e cultural. No entanto, a memória local, quase sempre
influenciada por fazendeiros e comerciantes de cacau, cristalizou uma imagem do passado em
que coronéis e comerciantes exportadores figuram entre os personagens de uma história
linear, harmônica e progressista. Transformados em vultos históricos da sociedade itabunense,
eles ficaram conhecidos entre os memorialistas locais como “desbravadores, pioneiros e
civilizadores.”16 Em parte, essa visão foi apropriada pela historiografia regional.
No intuito de criticar a ação dos coronéis, os historiadores terminaram referendando a
mitificação desses sujeitos, como é o caso da interpretação marxista de Gustavo Falcón em Os
Coronéis do Cacau.17 Ao falar do Coronelismo e da dominação política na Região Cacaueira,
Falcón considera que “o mandonismo permeava as mais diversas instâncias da vida
municipal, mostrando-se presente em quase todas as manifestações sociais. Não seria exagero
afirmar que os coronéis possuíam poder de vida e de morte sobre a sociedade”18. Nesta
perspectiva, o historiador reforçava o discurso de poder ilimitado das classes dominantes e
desconsiderava qualquer possibilidade de reação e de rebeldia dos grupos populares frente a
força dos coronéis. Neste estudo, será discutido como os trabalhadores, diante de suas
demandas, romperam as fronteiras de submissão e pressionaram as autoridades públicas de
Itabuna.
Foram poucos os pesquisadores que se dedicaram sistematicamente a entender o modo
pelo qual as pessoas pobres e trabalhadoras, cruzando os limites da pobreza e da estrutura
política, conseguiram enfrentar e, em muitos casos, preservar seu direito sobre a cidade de
RAMINELLI, R. História Urbana. In: Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia da história.
CARDOSO, C. F., VAINFAS, R. (orgs.). Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.185-202.
16
ADONIAS FILHO. Sul da Bahia: chão de cacau: uma civilização regional. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976. Procurando traçar um perfil do fazendeiro de cacau, Adonias Filho ratifica a figura do coronel
como desbravador, pioneiro e agente da civilização grapiúna.
17
FALCON, Gustavo. Os Coronéis do Cacau. Salvador: Ianamá, 1995.
18
Idem, Ibidem. p. 92.
15
19
Itabuna.19 Os estudos sobre as cidades da região cacaueira são direcionados majoritariamente
para Ilhéus, colocando em foco diversos aspectos relacionados à formação das classes
hegemônicas e da força política imprimida pelos coronéis do cacau na primeira parte do
século XX. Este é o caso dos historiadores André Ribeiro20 e Antonio Fernando Guerreiro de
Freitas21, ambos dedicados a analisar a formação da “burguesia cacaueira” em Ilhéus.
Ocupados em entender o esplendor da riqueza dos fazendeiros de cacau, estes historiadores
não aprofundaram suas análises nas relações sociais tecidas entre as elites e os trabalhadores.
Investigar a cidade de Itabuna permite ampliar o conhecimento sobre as práticas urbanas dos
trabalhadores em um espaço ainda carente de estudos históricos desse tipo.
O estudo sobre Itabuna possibilita também discutir a categoria História Regional e
Local dentro da tradição historiográfica. Em República em migalhas, a historiadora Janaína
Amado propôs um conceito de região que pudesse ressaltar e apreender as diferenças e
contradições, fruto das relações sociais entre os sujeitos históricos em um determinado
espaço. Para ela, a organização espacial seria resultado das relações de trabalho e da maneira
como se relacionavam entre si e com a natureza, em um lugar definido. Assim, a categoria
espacial “região” possibilitaria ao historiador alcançar as diferenças e as singularidades dentro
de uma totalidade. Nessa perspectiva, a região apareceria como resultado específico das ações
que se dão no plano nacional ou total.
22
Pensando de forma semelhante, Marisa Lajolo
considera que as pesquisas em níveis regionais e locais não devem perder de vista a totalidade
histórica, podendo oferecer uma percepção multifacetada do nacional. 23
Para este estudo sobre Itabuna, as concepções de História Regional tecidas pelas
autoras acima não são suficientes para compreender aquela localidade. Atrelar o entendimento
do espaço regional somente à busca da comparação (singularidade ou não) com a totalidade
termina por limitar a capacidade de entender a diversidade dos fatos históricos em lugares
Ressalvas sejam feitas a LOPES, Rosana dos Santos. Morar, trabalhar, brincar e viver!: Experiência de
moradores do bairro Conceição, Itabuna, Bahia, 1950-1997. São Paulo, dissertação de mestrado PUC-SP/UCSal,
1999, e SOUZA, Erahsto F. O conceição em retalhos de cidade, margens e dono: uma Itabuna-Ba nos territórios
subalternos. Monografia de graduação (história) orientada pela professora Msc. Kátia Vinhático Pontes.Ilhéus:
UESC, 2007. RALINE, Gissele. Capoeira e valientes. Monografia de graduação (história) orientada pela
professora Msc. Kátia Vinhático Pontes.Ilhéus: UESC, 2007.
20
RIBEIRO, André Luiz R. Memória e identidade: Reformas urbanas e arquitetura cemiterial na Região
Cacaueira (1880-1950). Ilhéus, Ba: Editus, 2005.
21
FREITAS, Antonio Fernando G. de. Caminhos ao encontro do mundo: A capitania, os frutos de ouro e a
Princesa do Sul. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas e Maria Hilda Baqueiro Paraíso. Ilhéus: Editus, 2001.
22
AMADO, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: República em migalhas:
História Regional e Local. São Paulo: Marco Zero/ANPUH; Brasília: CNPq, 1990. p.7-10.
23
LAJOLO, Marisa. Regionalismo e história da literatura: quem é o vilão da história? In: Historiografia
brasileira em perspectiva. Marcos Cezar de Freitas (org.). São Paulo: Contexto, 1998.
19
20
específicos. Isto quer dizer que a operacionalidade do fato histórico se restringiria a identificar
o que aconteceu de diferente no plano local em relação ao plano total.
O historiador Durval Muniz de Albuqueque Júnior oferece uma definição satisfatória
do que seria Região. Segundo ele, Região poderia ser pensada enquanto “a emergência de
diferenças internas à nação, no tocante ao exercício do poder, como recorte espaciais que
surgem dos enfrentamentos que se dão entre os diferentes grupos sociais, no interior da
nação.”24 Para Albuquerque Jr., pensar a categoria Região é obrigatoriamente refletir sobre o
fruto de uma estratégia de homogeneização decorrente da relação de poder que cria discursos
e construções mentais que possam delimitar fronteira e aspectos de um determinado espaço.
Isso é o que ele afirma ao considerar que o “Nordeste é uma espacialidade fundada
historicamente, originada de uma tradição de pensamentos, uma imagística e textos que lhe
deram realidade e presença.”25 Por conta disso, o historiador refuta o campo de pesquisas
voltados para a História Regional por considerar que isso reforçaria os estereótipos e o poder
que inferiorizam os espaços regionais. Apesar disso, sem dúvida Albuquerque Jr. oferece boas
reflexões para se pensar a história da região cacaueira.
Ao considerar este trabalho dentro do campo da História Regional, caracterizo o
objeto espacial como o meio no qual os grupos sociais tecem suas relações e constroem
diferentes territorialidades a partir de suas práticas culturais locais. Não se trata de reforçar o
estereótipo da região cacaueira como espaço dominado pelos coronéis e onde os trabalhadores
pobres não tinham força para negociar e resistir sua sobrevivência. Itabuna não é
simplesmente uma delimitação espacial administrativa e política fechada e estanque, mas um
espaço de historicidade, preocupado com a “dimensão social, ganhando significação quando
inserido num sistema de relações da sociedade que articula elementos internos e externos, no
jogo dialético de identidades e oposições”, como sugere Erivaldo Fagundes Neves. 26
Ao buscar compreender a relação de forças entre os poderes públicos e os
trabalhadores no processo de urbanização de Itabuna nas décadas de 1930 e 1940, me
aproximo das reflexões realizadas por Michel de Certeau. Em uma cidade reconhecida pelas
forças autoritárias e opressoras dos coronéis, as premissas do ex-jesuíta francês ajudam a
pensar nas táticas elaboradas pelos “de baixo” para driblar as estratégias de controle
construídas pelos órgãos de coerção social do município.
ALBURQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999. p.25-26.
Idem, Ibidem. p.66.
26
NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na crise da
modernidade. Feira de Santana, Ba; Salvador, Arcádia, 2002. p. 9, 105.
24
25
21
Segundo Certeau, na proporção em que os agentes dos poderes instituídos elaboram a
racionalização centralizada do espaço urbano, os trabalhadores pobres utilizam suas astúcias
para consumir a cidade. Essa sagacidade está presente nos detalhes do cotidiano desses
sujeitos, que, atuando na fronteira da clandestinidade da ordem estabelecida, conseguem
tomar conta de espaços em Itabuna para garantir seu trabalho e sua moradia, enfim fazer usos
e consumos da cidade. As pequenas ações de insistência se tornam meios para que os agentes
consigam preservar sua diferença e seus interesses mesmo com a adversidade do espaço
racionalizado.27
No entanto, diferentemente dos que poderiam pensar que os atos de resistência estão
somente nas grandes mobilizações, Certeau considera que as astúcias que levam os
trabalhadores pobres urbanos a criar táticas de despistar as medidas dos poderes instituídos
estão presentes nas práticas cotidianas e habituais. Ele ressalta que “habitar, circular, falar, ler,
ir às compras ou cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder às características das
astúcias e das surpresas táticas: gestos hábeis do ‘fraco’ na ordem estabelecida pelo ‘forte’,
artes de dar golpe no campo do outro”28 Seguindo estas orientações, busquei identificar nas
fontes ações pequenas que me permitissem analisar a lógica operacional dos grupos de
trabalhadores que faziam parte da cidade em transformação. Esses pequenos passos podem ser
percebidos na medida em que encontramos a historicidade dos atos simples e corriqueiros na
vida das pessoas.
Para notar os embates travados entre os “fortes” e os “fracos” no cotidiano das
pessoas, torna-se importante inverter as escalas de observação sobre o espaço urbano. Para
isso, Certeau utilizou a metáfora da visão que se tinha sobre World Trade Center. Segundo o
autor, a visão proporcionada do 110º andar daquele prédio parecia dar a impressão de que a
cidade era homogênea, controlada e ordeira. Os veículos, as pessoas e os prédios davam a
sensação de que tudo estava em seu lugar. Era preciso descer à terra para perceber novamente
como as pessoas conseguiam formular táticas de sobrevivência no mundo citadino.29 Isso quer
dizer, então, que para alcançar as artimanhas utilizadas pelos trabalhadores nas relações de
força com os poderes públicos, é importante observar as práticas minúsculas e cotidianas
desses sujeitos. Em Itabuna, trata-se de perceber a forma como ambulantes, lavadeiras,
feirantes, guardas municipais e prostitutas constituíram seus territórios e preservaram seus
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de Fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.94.
Idem, Ibidem, p.103-104.
29
Idem, Ibidem, p.169-172.
27
28
22
hábitos em uma cidade que enfrentava uma política urbana de intervenção sobre as formas e
os costumes das pessoas. Sobre isso, Certeau diz que
Temos de constatar que se, no discurso, a cidade serve de baliza ou marco
totalizador e quase mítico para as estratégias sócio-econômicas e políticas, a
vida urbana deixa sempre mais remontar àquilo que o projeto urbanístico dela
exclui. A linguagem do poder “se urbaniza”, mas a cidade se vê entregue a
movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder
panóptico. [...] Sob os discursos que a ideologizam, proliferam as astúcias e as
combinações de poderes sem identidade legível, sem tomadas apreensíveis,
sem transparência racional – impossível de gerir.30
Os meios pelos quais os trabalhadores conseguem escapar diante das regras difundidas
pelos segmentos hegemônicos aparecem quase sempre sob a pecha de desordem, vulgarização
ou degradação nos documentos encontrados nos arquivos. Em Itabuna, os sujeitos pobres que
fugiam às normas estabelecidas pelos poderes instituídos surgiam nos documentos oficiais do
governo municipal e na imprensa local sob a forma de violência, transgressão e depreciação
dos “bons costumes”. Para Certeau, o que os documentos produzidos pelas elites chamam de
“barulho” e “baderna”, por exemplo, nada mais é do que a expressão das táticas dos “fracos”
em reação à ordem estabilizada. Nesse sentido, pareceu adequado utilizar o método descrito
como “escovar a história a contrapelo”31 por Walter Benjamin. Ao buscar as ações dos
trabalhadores frente às medidas do poder público na documentação, procurei observar em que
medida se tratava de táticas de uso e consumo do espaço urbano.
Quando Certeau ressalta que os modos de vida dos trabalhadores no cotidiano podem
se traduzir em astúcias contra os efeitos da ordem estabelecida pelos membros dos poderes
públicos, inevitavelmente encontramos apoio nas contribuições de E. P. Thompson com base
na categoria de experiência social. Ressaltar o cotidiano das pessoas a partir da experiência de
antagonismo proveniente do controle social e da política urbana é também perceber de que
forma os “de baixo” se organizaram em grupos e como reforçaram suas práticas urbanas
culturais para afirmar seu direito à cidade. Assim, penso a experiência dos trabalhadores em
Itabuna enquanto conjunto de práticas que vão se formando a partir dos modos de vida de
cada sujeito na cidade em transformação. Isto quer dizer que a maneira pela qual os sujeitos
vivenciaram as mudanças ocorridas em Itabuna ajuda a compreender a cidade enquanto
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de Fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 174.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia, técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura
e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987.
30
31
23
campo de experiência das contradições sociais em que figuram homens e mulheres como
sujeitos de sua própria história.32
Thompson, refletindo sobre experiência social, afirma que toda contradição social é
em si conflito de valores.33 Os novos valores urbanos de civilidade patrocinados pelos poderes
públicos e difundidos pela imprensa local iam de encontro com os valores e os costumes dos
trabalhadores em Itabuna. A diferença de interesses entre estes setores antagônicos aponta
para um clima de tensão e de conflito na experiência urbana dos sujeitos. Perceber as astutas
habilidades de negar essa ordem dentro do campo de disputa social é o elo que parece unir as
contribuições de Thompson e Certeau para as bases teóricas e metodológicas dessa pesquisa.
Outra contribuição teórica que foi tomada como referencial teórico dessa pesquisa
partiu do historiador e geógrafo francês Bernard Lepetit. Sob a influência da definição de
Marcel Roncayolo, Lepetit trata a cidade como “categoria de prática social”34. A partir disso,
o espaço urbano é interpretado pela sua historicidade dinâmica. A cidade se torna o lugar em
que os sujeitos se apropriam mediante o uso social, e onde as políticas de urbanização, o
comportamento dos citadinos e o tecido urbano não são sincrônicos e justapostos. Para o autor
francês, o urbanismo desenvolve uma linguagem sobre a cidade cuja intenção se concentra na
mudança das formas urbanas sob o discurso da racionalidade e da organização. Ao mesmo
tempo, os usos concernentes às modalidade de apropriação do espaço urbano pelos grupos
sociais se transformam em linguagens da cidade.35 No contraste entre essas duas linguagens,
os hábitos sociais e os usos que fazem as pessoas parecem durar mais do que as formas
alteradas, sendo nas práticas o meio pelo qual os sujeitos concentram sua resistência.
Outra observação importante feita por Lepetit foi a de que os objetos, as instituições e
as regras formuladas pelos poderes instituídos sob a justificativa de racionalização citadina
não são transportadas e assimiladas por completo pelos trabalhadores urbanos. Ocorre que a
recepção das normas e das instituições pelos sujeitos se dá de diferentes formas, o que quer
dizer que nem todas as determinações legais resultam no imediato enquadramento dos “de
baixo”. Ao utilizar o espaço instituído pelo urbanismo, os indivíduos organizam sua
territorialidade, modelando seus lugares de sobrevivência conforme suas demandas e a partir
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser.
Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1981. p.182.
33
Idem, Ibidem, p.189-190.
34
RONCAYOLO, Marcel. Cidade. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 8. Região. Lisboa, Portugal: Imprensa
Nacional – Casa da Moeda, 1986. p.422.
35
LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana
A. Salgueiro; trad. Cely Arena. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2001. pp. 148-151.
32
24
de suas práticas urbanas.36 Afirmando seu território de atuação na cidade em transformação,
os trabalhadores conseguem também reforçar seus costumes e comportamentos frente aos
padrões estabelecidos pelo poder público. Em Itabuna, alguns grupos de trabalhadores
conseguiam afirmar sua territorialidade por meio de suas práticas urbanas cotidianas, como é
o caso, por exemplo, moleques e mendigos que disputavam as praças embelezadas e as portas
dos estabelecimentos freqüentados pelas senhoras ricas da sociedade itabunense.
Entender as relações entre os trabalhadores e o poder público durante a urbanização de
Itabuna nas décadas 1930-40 permite o debate sobre a história de baixo para cima. O
historiador Eric Hobsbawm traz uma contribuição importante para se compreender esta
relação entre setores antagônicos. Ele afirma que, conforme os historiadores buscam as ações
dos sujeitos pobres e despossuídos, é preciso envolver o resto da sociedade da qual eles fazem
parte.37 Feirantes não devem ser pensados sem os fiscais da higiene pública, engraxates e
prostitutas sem os agentes da Guarda Municipal. Por conta disso, creio ser importante definir
quem são os sujeitos históricos que aparecem neste trabalho.
Quando me refiro, ao longo do texto, a “Poder Público” ou a “segmentos
hegemônicos”, estou pensando principalmente nas pessoas que integram o conjunto de
instituições que formavam as municipalidades. Refiro-me assim, a partir do que Gramsci
descreveu como “Sociedade Política”, membros dos grupos dominantes que expressam sua
hegemonia política e moral na direção do governo jurídico.38 São desde o prefeito até os
dirigentes da Higiene Pública e da Guarda Municipal que atuavam nos logradouros públicos
da cidade. No meio deste grupo, considero também os diretores e os redatores da imprensa
local, já que estes quase sempre ocupavam cargos públicos na Prefeitura. Eles certamente
cumpriam a função de intelectuais ligados aos dirigentes políticos, sendo responsáveis por
criar discursos de consenso no seio da sociedade civil, cujo fim é a sustentação da ordem
estabelecida. 39 Da mesma forma, não se pode desprezar a influência de uma outra parte da
sociedade civil composta por empresários, comerciantes e latifundiários, que também
Idem, Ibidem, p.189-190.
HOBSBAWM, E. J. Sobre História. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.99.
38
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da Cultura. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 4ª Edição.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. O marxista sardo, ao considerar a organicidade da sociedade, afirma
que a “ “Sociedade Política” ou “Estado” corresponde à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em
toda a sociedade e àquela de domínio direto, ou de comando que se expressa no Estado e no governo jurídico.”
p.10-11
39
Idem, Ibidem. (ver cap. Jornalismo) Para Gramsci, os grupos de intelectuais são fundamentais na sustentação e
no desenvolvimento dos interesses políticos e dos valores morais de setores dominantes que almejam alcançar a
hegemonia. Sobre a imprensa, o filósofo da práxis afirma que os jornalistas crêem ser os “verdadeiros
intelectuais”, atuando como persuasor permanente dos subalternos. p.8.
36
37
25
compunham os segmentos hegemônicos, e que pressionavam nas decisões tomadas pelos
poderes públicos.
No caso daquilo que chamo de “trabalhadores”, estou me referindo ao grupo de
homens e mulheres pobres que disputaram o uso da cidade com os membros do poder
público. Optei por não selecionar apenas um grupo específico, mas diferentes grupos como
feirantes, prostitutas, ambulantes e vaqueiros. Aqui vale as considerações feitas por Antonio
Negro e Flávio Gomes quanto ao caráter classista destes agrupamentos. Para estes autores, a
história social não deve se pautar no conceito fechado de “classe trabalhadora exclusivamente
branca, fabril, de ascendência européia, masculina e urbana”.40 Se assim o fosse, dificilmente
seria possível realizar uma história social, especialmente em Itabuna. Por conta disso, é
importante lançar o olhar sobre outros trabalhadores, “‘os despolitizados’, os ‘comuns’, ou os
demais; aqueles que não lutaram toda uma vida, ou sequer lutaram.”41 Penso nos grupos de
pessoas que se utilizaram das ruas, das avenidas e das praças como lugar de trabalho e lazer, e
que se reconheceram enquanto classe mediante os interesses em comuns na disputa com as
municipalidades.42 Aparecem também menores vadios e pedintes que exerciam sua atividade
em Itabuna. Embora não fossem “trabalhadores tradicionais”, estavam dentro do universo
citadino investigado nesta pesquisa, aparecendo nas fontes como grupos que desafiavam a
ordem urbana.
Os sujeitos que aparecem neste trabalho são provenientes de diversas fontes coletadas
ao longo do período da pesquisa. Entre os documentos oficiais do Governo Municipal, foram
consultados os livros de atas do conselho consultivo de Itabuna e do Conselho Municipal, o
primeiro funcionando entre os anos de 1932-1935 e o segundo funcionando entre os anos de
1936-1937. Eles me possibilitaram analisar o comportamento dos membros do legislativo
local em relação às questões sociais e políticas ligadas à cidade. Com efeito, pôde-se também
observar os valores urbanos projetados para Itabuna ao passo em que se aprovavam medidas
de melhoramentos urbanos. Por exemplo, esta documentação permitiu acompanhar as
discussões dos conselheiros sobre o plano de urbanização criado em 1935.
Das fontes oriundas do poder executivo do município foram consultados o livro de
Décimas Urbanas de Itabuna (1933-1940), o Projeto de Remodelamento e Expansão da
NEGRO, Antonio, GOMES, Flávio. Além das senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. In: Tempo
social, Revista de Sociologia da USP. V.18, n.1. p.217.
41
Idem, ibidem. p.222.
42
THOMPSON, E.P. A formação da classe trabalhadora. Trad. Denise Bottmann. Vol. 1. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1987. Para o autor, “a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns
(herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens
cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus”. p.10
40
26
Cidade de Itabuna (1927), o Projeto de Saneamento de Itabuna (1935), o contrato dos serviços
de água e esgoto da cidade, o Código de Posturas do Município e o Jornal Oficial, mantidos
pelo Arquivo Público de Itabuna José Dantas. As Décimas Urbanas são os registro de
pagamento dos Impostos Prediais e Territoriais cobrados pela Prefeitura. Elas possibilitaram
identificar as diversas pessoas que possuíam propriedades nas diversas vias de Itabuna, além
da classificação do tipo de funcionamento das casas comerciais existentes.
Os projetos de urbanização me permitiram analisar as justificativas para a realização
das reformas urbanas, os objetivos específicos do planejamento e os logradouros que
sofreriam a intervenção dos engenheiros. Outrossim, as fontes dos escritórios de engenharia
possibilitaram analisar as diferentes visões dos urbanistas sobre os diversos lugares da cidade
a partir do discurso racionalista e técnico dos profissionais responsáveis pelas intervenções
citadinas. O contrato dos serviços de água e esgoto deixa evidentes os problemas e os limites
dos melhoramentos urbanos imaginados pelo poder público, visto que lá se encontram as
obras que foram projetadas e as que foram executadas, além de apontar as despesas do
município.
O Jornal Oficial do Município de Itabuna foi significativo para traçar a trajetória, as
ações e os resultados da política urbana local. Criado no ano de 1931 e impresso
semanalmente pela tipografia D’A Época, o periódico oficial era responsável por veicular as
medidas tomadas pelo poder público e por seus departamentos. Freqüentemente traziam
discursos e propagandas da Prefeitura no sentido de convencer os munícipes das decisões
tomadas por ela. Além disso, o Jornal Oficial tinha também as seções de despachos das
secretarias de Obras Públicas, de Higiene Pública e da Guarda Municipal, nas quais constam
os requerimentos da população, respondidos e o relatório de movimentação dos soldados da
força municipal. Publicavam-se também as medidas de fiscalização do município, visando
alertar os moradores das disposições criadas pela Prefeitura. Alguns números ainda
disponibilizavam as atas do Conselho Municipal transcritas, tabela do orçamento da Prefeitura
para os anos subseqüentes e relatórios de despesas e investimentos enviados ao legislativo.
O Jornal Oficial possibilitou, também, analisar a relação dos trabalhadores com as
municipalidades por meio dos despachos emitidos pela Prefeitura aos requerimentos da
população. Exemplo disso é a higiene pública, que publicava diversos editais com nomes de
pessoas que deveriam comparecer à Prefeitura para regularizar sua situação profissional e
punições àqueles que não obedecessem às determinações. Outro exemplo eram os relatórios
de movimentação da Guarda Municipal, que continham a data, as pessoas e as infrações
cometidas contra o Código de Posturas do Município. A publicação das posturas municipais
27
sob a forma de brochura, no ano de 1933, possibilitou a identificação dos artigos que
regulamentavam os padrões de comportamento e as regras de civilidade criadas para Itabuna.
Permitiram relacionar, entre outras questões, os artigos mais desrespeitados; as punições para
as pessoas que transgrediam os códigos de urbanidade; e as maneiras como as posturas
atentaram contra alguns costumes populares existentes em Itabuna.
Entre as fontes que também se encontram neste estudo estão os jornais de caráter
político e comercial da região. Ao todo foram cinco: Jornal de Itabuna, O Fanal, Diário da
Tarde, A Época e O Intransigente, a maior parte conservado pelo Centro de Documentação e
Memória Regional da Universidade Estadual de Santa Cruz. Destes, os três primeiros foram
utilizados em pequena quantidade. O Jornal de Itabuna pertencia ao advogado e delegado
Lafayete Borborema e circulou no município entre as décadas de 1920 e 1930. Durante o
período em que o município não possuía um órgão de imprensa oficial, este jornal publicava
os atos, os editais e as portarias da administração pública, além de publicar a movimentação
forense da comarca de Itabuna. De caráter conservador e, às vezes, sensacionalista, este
periódico publicava diversas notícias contra a jogatina e a prostituição, assim como narrava
crimes acontecidos nos bairros e nos distritos de Itabuna. Circulava em Itabuna e seus
distritos e no município de Ilhéus.
O periódico O Fanal circulou em Itabuna entre os anos 1933 e 1939, tendo como
redatores Otoni José da Silva e José Kfoury sob a direção de Hermenegildo Souza, e sendo
impresso mensalmente. Os responsáveis pelo mensário classificavam o jornal como órgão
literário da mocidade estudantil local. Suas páginas abrigavam poesias, crônicas, trecho de
romances e reportagens sobre os lugares de diversão dos itabunenses. Possuía também um
caráter ufanista sobre o “progresso” da cidade, guardando tiradas patrióticas, a exemplo
dessas: “O Cidadão tem como norma o civismo e como bandeira o caráter impoluto”, ou
“Trabalhar pela prosperidade de Itabuna é trabalhar pela grandeza da Pátria”43 Algumas de
suas notícias se referiam à pobreza existente na cidade, enfatizando o número de mendigos, o
comportamento das prostitutas e as críticas ácidas a curandeiros e praticantes de religiões
afro-brasileiras.
O Diário da Tarde era o jornal de maior circulação na região cacaueira, pelo menos no
período pesquisado, entre 1930 e 1940. Embora não trouxesse a tiragem por número, as
notícias sobre os distritos de Ilhéus e as notícias sobre as cidades vizinhas podem sugerir a
43
CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de dezembro de 1939, Ano VI, nº 8. p.4.
28
amplitude de sua circulação. Ligado ao grupo político dos pessoístas44 e sob a direção de
Carlos Monteiro, o periódico também possuía um caráter conservador e patriótico. Costumava
publicar notícias contra prostitutas e candomblés existentes no bairro da Conquista, em Ilhéus,
e ressaltar os líderes políticos das cidades vizinhas. Além disso, publicava constantes artigos
em que ecoavam os pedidos dos fazendeiros e comerciantes de cacau daquela cidade.
Algumas de suas reportagens tratavam de aspectos políticos e sociais de Itabuna.
A maior parte da documentação hemerográfica utilizada neste trabalho faz parte da
série dos jornais A Época e O Intransigente. Criado no ano de 1921 pelo político Gileno
Amado, um dos coronéis de maior representatividade da região, o jornal A Época era o
veículo de comunicação ligado ao Partido Social Democrático que circulava semanalmente
em Itabuna e nos distritos que faziam parte do município. Sendo boa parte dos prefeitos
integrantes da facção política liderada por Amado, aquele jornal acabava se tornando uma das
ferramentas de propaganda das ações do poder público municipal. Além disso, parte das
pessoas que ocupavam os cargos administrativos dos departamentos pertencentes à Prefeitura
trabalhava em o A Época, como por exemplo, o redator chefe Nathan Coutinho que foi o
primeiro secretário do município de Itabuna durante a gestão de Francisco Ferreira entre os
anos de 1938 e 1945. Outro membro das municipalidades que se agregava ao citado jornal era
Antonio Cordeiro de Miranda, diretor da Higiene Pública da cidade. Coutinho e Miranda
integravam o alto escalão do PSD em Itabuna, mesmo partido do prefeito Claudionor Alpoim.
Sua diagramação era muito precária, sendo produzido ainda de forma quase artesanal. O perfil
de suas notícias e reportagens era conservador e tradicional, sobretudo quando se relacionava
à questão social dos trabalhadores. No cabeçalho de cada edição trazia sua identificação com
as elites ligadas ao grupo de Gileno Amado ao se posicionar como “órgão dos interesses
regionais”. Eram comuns matérias elogiando o prefeito Alpoim e suas medidas de
urbanização, o governador da Bahia Juracy Magalhães e seu secretário da Fazenda, Gileno
Amado. Numa proporção contrária as apologias aos políticos locais, o A Época destinava
críticas pesadas às prostitutas, aos mendigos, jogadores e feirantes, além de frequentemente
chamar a atenção da Guarda Municipal e da polícia. Considero que este periódico, ao ser
composto por membros do PSD e da situação política local, era o órgão de imprensa que
organizava o discurso de defesa dos interesses do poder público no que tange à urbanização e
um dos responsáveis pela fiscalização dos usos da cidade.
44
Facção política liderada por Antonio Pessoa, composta de políticos ligados a J. J. Seabra e que dominou a cena
política ilheense entre 1912 e 1930, fazendo rivalidade com a facção dos adamistas. As disputas pela hegemonia
política em Ilhéus é objeto de estudo de RIBEIRO, André Luiz R. Família, poder e mito: O município de São
Jorge dos Ilhéus. Ilhéus: Editus, 2001. pp. 90-105.
29
O Intransigente era outro órgão de imprensa de Itabuna. Este periódico pertencia ao
coronel Henrique Alves dos Reis, inimigo político de Gileno Amado e membro do Partido
Autonomista durante a década de 1930. Até 1937, ocupou a cena como oposição municipal,
fazendo um contraponto ao rival local A Época. Durante algum tempo chegou a se aproximar
das idéias integralistas, tendo publicado colunas pagas de militantes do Integralismo.
Funcionava semanalmente e circulava na sede e nos distritos de Itabuna. Dirigido por Otoni
José da Silva, O Intransigente promoveu críticas ao prefeito Claudionor Alpoim até 1937,
censurando a criação de impostos e algumas reformas urbanas realizadas no centro da cidade.
A partir do Estado Novo, o jornal assumiu uma posição de maior neutralidade em relação à
política local, mas sempre que possível utilizava os problemas sociais para fazer críticas à
Prefeitura.
Sob a chefia de redação de Reinaldo Sepúlveda, delegado da comarca de Itabuna, o
semanário iniciou intensa campanha de combate à mendicância e à jogatina na cidade. As
notícias sobre a quantidade de menores abandonados, a jogatina que ocorria nos bairros e nas
praças do centro e o discurso conservador percorriam parte dos números que foram
publicados nas décadas de 1930 e 1940. Um destaque de O Intransigente era a seção Queixas
& Reclamações, espaço destinado pelo jornal para que os moradores reclamassem melhorias
do poder público ou denunciassem pessoas. Foi também nesta parte do jornal que foi possível
encontrar falas provenientes dos trabalhadores que, por algumas vezes, utilizaram o espaço
para reclamar contra a fiscalização empreendida pela Prefeitura. Desta forma, essa seção
possibilitou analisar as relações entre os trabalhadores e o poder público de Itabuna nas
páginas da imprensa local. 45
Para Heloisa Faria Cruz, a imprensa se tornou o principal produtor discursivo do início
do século XX, ligando-se, quase sempre, a uma cultura urbana que se fundamentava em
valores conservadores e tradicionalistas. 46 Tanto o jornal de Gileno Amado como o de
Henrique Alves possuíam em comum as características de “imprensa de opinião”, conforme
classifica Márcia Espig. 47 Este tipo de jornalismo se distingue por exprimirem seus
pensamentos sobre os temas tratados, geralmente fundados em noções morais e em valores
SILVA, Eduardo. Queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. O autor investiga a coluna Queixas e
Reclamações do Jornal do Brasil, onde problematiza as reivindicações de moradores dos bairros do Rio de
Janeiro a partir da relação entre o povo e o poder público carioca.
46
CRUZ, Heloísa F. São Paulo em papel e tinta: Periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ:
FAPESP: Imprensa Oficial, 2000. pp.19-25.
47
ESPIG, Márcia Janete. O uso da fonte jornalística no trabalho historiográfico: o caso do Contestado. In:
Estudos Ibero-americanos, XXIV(2), dezembro de 1998. p.271. A historiadora ainda levanta outra característica
muito comum aos jornais de Itabuna quando se aponta que as opiniões emitidas assumem freqüentemente uma
conotação política, que, por vezes, criam polêmicas com outras instituições jornalísticas.
45
30
que consideram importantes para a sociedade. Isto quer dizer que, mesmo em posições
políticas diferentes, guardavam semelhanças no que se refere à sua posição diante dos
costumes e hábitos populares. O A Época procurava denunciar as condutas dos trabalhadores
sempre que fugissem aos padrões determinados pela Prefeitura. O Intransigente usava os
“maus costumes” para cobrar e criticar as medidas do poder público e assumindo sua
oposição política até 1937. Por isso, como sugere Cruz, as páginas dos periódicos são os
lugares em que foi possível encontrar uma experiência de cultura urbana permeada de
contradições entre os diversos setores sociais e, ao mesmo tempo, um campo de disputa pelo
poder na cidade em transformação.
Os jornais são fontes que possibilitam dar visibilidade aos confrontos culturais e
sociais existentes entre os trabalhadores e os membros do poder público. Não apenas isso.
Eles ajudam a perceber a historicidade dos “de baixo”, notar suas táticas de preservar seu
modo de vida e de fugir ao controle erguido para limitar seu comportamento. Vale o que
Ginzburg escreveu no prefácio de O queijo e os vermes sobre os historiadores que trabalham
com fontes não produzidas pelos populares. Para ele, o fato de o documento não ser produzido
diretamente pelos trabalhadores, não quer dizer que ele seja inutilizável. 48 É preciso saber
reconhecer nas fontes produzidas pelas elites, os trabalhadores urbanos que experimentaram a
cidade de Itabuna em suas contradições, nas suas ações e nas territorialidades construídas por
eles. Certamente este é o caminho para se pensar Itabuna e a região cacaueira para além das
riquezas e dos mandos dos coronéis, mas nas táticas de insubordinação tecida pelas pessoas
simples, pobres e comuns.
**********
A dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro deles, intitulado A cidade e
seus poderes, o objetivo é identificar de que maneira o poder público em Itabuna se organizou
a partir da década de 1930, depois do golpe político que levou Vargas à presidência da
República. Para tanto, procuro identificar quem são as figuras políticas que estavam no poder
entre 1930 e 1940 e quais os departamentos criados pelas municipalidades com vistas a
exercer o controle citadino. Também discuto como os trabalhadores se relacionam com os
órgãos da administração pública, especialmente a Higiene Pública e a Guarda Municipal. É
interesse observar a maneira como os trabalhadores travavam uma disputa pela cidade com os
novos instrumentos de coerção social da Prefeitura.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição.
São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (versão de bolso). p.16.
48
31
Em A Cidade e o Plano, a intenção foi analisar os projetos de urbanização criados para
Itabuna como forma de territorialização do poder no perímetro central. Faz parte de suas
pretensões observar em que medida os lugares almejados pelos urbanistas para as reformas
urbanas não eram locais onde se encontravam parte da população trabalhadora de Itabuna. Em
um segundo momento, associo a criação do plano urbano ao mercado imobiliário local, com a
criação de incentivos tributários para o aparecimento de novos imóveis e de taxas contra casas
e prédios que atentassem contra o padrão de estética instituído pela Prefeitura. Junto a isso,
identifico os membros do poder público que se beneficiaram com as medidas e os valores
proporcionados pela urbanização local. Por fim, encerro o capítulo com a experiência de
repressão do meretrício em Itabuna diante das reformas urbanas.
Em A Cidade e suas (im)posturas, terceiro capítulo desta dissertação, analisei como o
poder público, além de promover mudanças morfológicas na cidade, tentou induzir a mudança
de comportamentos na população local nas décadas de 1930 e 1940. Caracterizei ainda as
formas que os trabalhadores criaram para burlar os padrões instituídos pelo poder público,
driblando a ação da fiscalização municipal e preservando o direito de fazer uso da cidade
conforme seus interesses e costumes. Outro interesse é perceber a maneira como as leis
municipais forçaram os trabalhadores a se organizar para enfrentar as medidas impostas pela
Prefeitura e garantir o consumo de logradouros públicos a exemplo das margens do rio
Cachoeira, calçadas e praças do perímetro central.
32
CAPÍTULO 1
A CIDADE E SEUS PODERES
No início da década de 1940, Itabuna possuía cerca de 20.265 habitantes, segundo o
recenseamento realizado pelo governo federal daquele período.49 Isso a tornava a cidade mais
populosa da região sul da Bahia. Antes disso, no ano de 1927, o município era visto com um
potencial de investimento significativo por conta de seu comércio local. Em relatório
produzido pelo Banco Rural de Itabuna, João Araújo Góes chamava a atenção para as
vantagens do município, no qual sugeria que pela movimentação e concentração de stocks e
variedade existente no comércio, tinha-se a “ilusão de ser uma pequena metrópole [...] a
avaliar pelas casas de moda, o requinte de gosto que nela se nota poderá informar das suas
exigências, da sua distinção e do seu desenvolvimento.”50 Apesar da notada potencialização
da cidade, justificada talvez por ser produzida por um banco itabunense, as informações de
Góes parecem apontar para a ascensão econômica do município.
A posição econômica evidenciada pelo relatório do Banco Rural, auxiliada pela
localização geográfica de convergência dos distritos no interior da região, contribuiu para
atrair vários interessados em trabalhar na lavoura do cacau ou no comércio que começava a se
consolidar no município. A literatura memorialística regional sugere que trabalhadores saídos
de regiões e estados que passavam por problemas climáticos e sociais, como sertão da Bahia,
Sergipe e Alagoas, chegavam a Itabuna e às demais localidades que faziam parte do
município freqüentemente até meados da década de 1940. Milton Santos afirma que mesmo
com a crise agrícola do cacau na década de 1930, as populações do norte e do nordeste do
estado mantiveram um fluxo significativo para a região sul. 51 Outra pista para compreender a
ocupação regional está no recente estudo sobre as trajetórias das populações ex-escravas na
BRASIL/IBGE. Recenseamento geral do Brasil. 1/9/1940. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do IBGE, 1950.
APEBa. Relatório apresentado ao Banco Rural de Itabuna para a construção da estrada Itabuna-Macuco. 12
de out. de 1927, p.6.
51
SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 3ª ed. Hucitec: São Paulo, 1996.
49
50
33
Bahia realizada pelo historiador Walter Fraga Filho. Ele aponta que o fluxo de ex-cativos para
o sul da Bahia se intensificou por conta dos melhores salários pagos na lavoura cacaueira do
que na canavieira e da esperança de possuir pequenas roças para sua sobrevivência. 52
Se, por um lado, Itabuna cresceu nos índices demográficos com a chegada dessas
populações migrantes, por outro suas fronteiras urbanas passaram a se ampliar e a exigir
alterações na estrutura insuficiente para o recebimento destes trabalhadores. Com isso, foram
surgindo novas áreas ocupadas ao redor do perímetro central, zonas em que moravam as
pessoas que chegavam à cidade. Na década de 1930, Itabuna possuía alguns bairros com
significativa concentração demográfica. Exemplos disso eram os arrabaldes do Pontalzinho,
da Misericórdia, do “Conceição”, do Cajueiro, da Jaqueira, do Mangabinha, da Burundanga e
da Bananeira, dentre os quais podemos encontrar longas listas de pequenos comércios e de
residências que circundavam a zona urbana central nos registros das décimas urbanas da
prefeitura municipal. Mais distantes um pouco do centro da cidade e com menor número de
habitantes, cito a região de Ferradas, “Pau Caído”, Mutucugê e Caixa D’Água. Aqui não
levarei em consideração os sete distritos administrativos que integravam o município
itabunense.
O aparecimento dos bairros era noticiado com um misto de surpresa e de melindre
pelos jornais. Primeiro porque estes bairros passavam a receber uma população
numericamente superior ao espaço central de Itabuna. Isso era atribuído à expansão das
fronteiras urbanas e, por conseguinte, condicionado a fator de desenvolvimento pelos poderes
locais, mas também era visto com receio por conta do aparecimento de elementos urbanos
considerados nocivos à ordem estabelecida pelos segmentos políticos reinantes na sociedade
itabunense. Um sinal disso pode ser observado em uma das notas do Jornal de Itabuna, de
propriedade do delegado de polícia Lafayette Borborema, quando pressionava para que a
existência de cabarés nas imediações da Burundanga fosse repelida, onde afirmava que “o
certo é que a polícia precisa acabar com esses antros de desordens, de vícios e de
imoralidades.”53
As áreas dos bairros quase sempre aparecem nas fontes produzidas pelos segmentos
hegemônicos de Itabuna, enquanto espaços que contrariavam os costumes cultivados pela
ordem estabelecida, isto é, pelos ideais de “civilização” e “progresso” pregados pelos poderes
FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910).
Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. p. 314, 326. A partir de fontes do Ministério da Agricultura de
1912, o autor identificou que o valor médio da diária do trabalhador agrícola na lavoura cacaueira era de 2$000
réis, enquanto nos distritos açucareiros era de 1$500 réis.
53
CEDOC/UESC. Jornal de Itabuna, quarta-feira, 27 de agosto de 1930. s/nº, s/p. Documento anexado em
processo crime.
52
34
públicos. Foi assim com a Burundanga da década de 1930, ou com o Cajueiro do final da
década de 1940, ambos narrados pelo memorialista Carlos Pereira Filho, jornalista de um dos
periódicos locais e indivíduo de expressão na sociedade itabunense, como lugares de
contradição ao “desenvolvimento” da cidade. Sobre isso afirmava que, em Itabuna,
ainda havia bairros bastante empobrecidos e proletarizados, sem os benefícios
de calçamento, os serviços de águas e esgotos e a tranqüilidade ameaçada
durante a noite pelos barulhos provocados nos cabarés de ponta de rua.
Cajueiro é um deles, sempre agitado, sempre com arrelias, com embrulhadas
de policiais, de mulheres da vida livre e da rapaziada alegre.54
A memória de Pereira Filho parece evidenciar as diferenças nos modos de vida dos
habitantes de Itabuna. O olhar do memorialista traz a percepção de quem vê na periferia a
contra-ordem ou o choque das condições de vida da população pobre, em que quase sempre o
cotidiano popular era encarado na condição de perigo ou de intranqüilidade. Para o autor, a
responsabilidade pelos barulhos era sempre das “mulheres de vida livre e a rapaziada alegre”.
Na medida em que surgiam os primeiros bairros, a cidade ganhava algumas
instituições. Em meados da década de 1930, Itabuna contava com estabelecimentos que
proporcionavam uma dinâmica comercial considerável para uma cidade do interior da Bahia.
Havia casas bancárias, lojas, alfaiatarias, postos de combustíveis, casas comerciais de
exportação de cacau, bares, cinemas, escolas e hospitais. Nesse momento, a elite local
formada por fazendeiros (agrária) e exportadores (comerciantes) de cacau construía suas
entidades sociais de representação, como a Associação Comercial, fundada em 1908, a Loja
Maçônica e a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna, criada em 1935. Junto a estas
instituições, não podemos esquecer as entidades filantrópicas da Igreja Católica, que quase
sempre eram dirigidas por membros dos segmentos dominantes, como é o caso do Colégio
Divina Providência (1922) e da Santa Casa de Misericórdia (1917).55 Havia ainda a existência
de associações de trabalhadores ou sindicatos; dentre os que se sobressaem nos jornais da
época, cito o Sindicato dos Comerciários, que exercia bastante pressão contra os comerciantes
que ultrapassavam os horários de funcionamento estabelecidos pela Prefeitura. Apesar disso,
historiadores apontam que os setores hegemônicos da sociedade cacaueira não criaram
condições básicas para a independência econômica da Região em relação à Capital do estado,
conforme frisa o historiador Antonio Guerreiro de Freitas.
54
55
PEREIRA FILHO, Carlos. Terras de Itabuna. Rio de Janeiro: Elos, 1960. p.116.
FÁLCON, Gustavo. Os coronéis do cacau. Salvador: Ianamá, 1995.
35
As entidades citadas acima eram os espaços entre que os membros das classes
hegemônicas ocupavam para expressar seus anseios políticos e valorizar sua ação social em
Itabuna. Por isso mesmo, os periódicos não se intimidavam em associar estas instituições ao
fator de “crescimento” da cidade, considerando-as expressões do nível da sociedade
itabunense. Talvez isto tenha levado, por exemplo, Colbert Guimarães a escrever para o O
Intransigente uma nota ressaltando as atividades da Sociedade de Medicina e Cirurgia de
Itabuna em 8 de fevereiro de 1932. Dizia que após assistir a uma das sessões da entidade,
ficara “verdadeiramente encantado diante da cordialidade, do respeito e sobretudo da
sinceridade reinante no seio da mesma. É a única cidade do interior deste estado em que a
medicina tem logrado alcançar progresso dessa natureza.”56 Assim, Guimarães se utilizava
das atividades dos médicos locais como parâmetro para enfatizar a situação dominante na
cidade.
As décadas de 1930 e 1940 indicaram um horizonte de mudanças no cenário político
local. Emancipada no ano de 1906 e elevada à categoria de cidade no ano de 1910, Itabuna
despontou enquanto centro administrativamente autônomo do município de Ilhéus em plena
Primeira República. Esse período foi marcado profundamente pela ação impetuosa dos
indivíduos que ocuparam o cargo de intendente do novo município. Eram momentos em que a
atuação do Estado estava geograficamente distante, e, na prática, quando se fazia presente,
quase sempre atendia aos interesses dos segmentos hegemônicos do poder municipal. Até
1932, revezavam-se no executivo local uma série de fazendeiros, mais tarde classificados por
Guerreiro e Fálcon como os “Coronéis do Cacau”.57 João da Silva Campo conta alguns dos
conflitos existentes entre as facções políticas locais na disputa pela intendência de Itabuna.
Ele narra, por exemplo, o assassinato de Virgílio de Sá, em 1908, “perpetrado aliás por
questões íntimas e alheias à política, pelo fisco geral do município, pessoa grada ao
situacionismo local”58, forçando o governo do estado a tomar “medidas enérgicas no sentido
de por fim a assustadora insegurança em que se mergulhara a comuna.”59 As prefeituras eram
disputadas na base da violência pelos grupos dominantes que se dividiam nessa época. De um
lado das facções políticas estavam os Adamistas, ligados aos setores agrários, cuja figura
política mais expressiva era Henrique Alves. De outro, os Pessoístas, conectados com os
grupos de comerciantes e de profissionais liberais (advogados, médicos e engenheiros),
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de fevereiro de 1936, Ano X, n.º 23, p.1.
FREITAS, Antonio Fernando de G. Caminhos ao encontro do mundo: a capitania, os frutos de ouro e a
Princesa do Sul. Ilhéus: Editus, 2001. FALCON, Gustavo. Os coronéis do cacau. Salvador: Ianamá, 1995.
58
CAMPOS, João da Silva. Crônicas da capitania de São Jorge dos Ilhéus. 3ª Ed. Ilhéus: Editus, 2006.p.485.
59
Idem, Ibidem, p.486.
56
57
36
liderados por Gileno Amado. Embora tivessem diferenças políticas, ambas as facções se
interessavam pela manutenção do poder local sob o controle das oligarquias regionais.
Em meados das décadas de 1930 e 1940, a cidade vivia um movimento que
impressionava visitantes e moradores locais. Eram pessoas que chegavam em busca de novas
oportunidades de trabalho, caixeiros-viajantes que circulavam pelas ruas e trazendo um novo
ritmo para a cidade que despertava para o século XX, mas que guardava em si as
peculiaridades dos modos de vida do interior. Fosse na política definida na base da violência
ou nas disputas pessoais resolvidas no interior dos bares e dos bilhares das ruas Ruy Barbosa
e Domingos Lopes, Itabuna desenhava um outro tipo de vida moderna. Em 1934, O Fanal
desenhava em tom ufanista as características da cidade, dizendo que
“Aqui tudo é progresso e devagar tudo se move.” Novos logradouros públicos
surgem em diferentes pontos da cidade. Já temos diversas ruas e praças
iluminadas com fiação subterrânea; uma bela ponte armada lança-se sobre o
Cachoeira, dando-lhe um ar pitoresco; o bairro Conceição, na outra margem,
com seu alvo casario, visto da margem oposta, assemelha-se a uma enorme
flor alva [...] Os arrabaldes de Berilo e Mangabinha estendem-se
gigantescamente, como a cauda de um animal de formidáveis proporções,
ampliando-se progressivamente. 60
Apesar da descrição harmônica e funcionalista de Hermenegildo Souza no editorial do jornal,
as contradições provenientes do crescimento urbano e do aumento populacional fizeram da
cidade um cenário de disputas entre os segmentos antagônicos da cidade. Essa metamorfose
urbana trouxe a necessidade para os poderes públicos de construir instrumentos que
possibilitassem o gerenciamento das ações de seus habitantes e do uso dos espaços urbanos.
Entre o início do século XX, quando obteve sua libertação política, e o início da
década de 1930, os poderes públicos foram se articulando com vistas a desenhar uma
organização administrativa para Itabuna. O revezamento na intendência municipal entre os
representantes das oligarquias regionais não impediu a criação de ferramentas para estabelecer
um padrão de ordem instituída pelos segmentos políticos. No entanto, certamente foi a partir
das convulsões políticas de 1930 que a cidade modificou e ampliou sua estrutura
administrativa com vistas a regulamentar e controlar a vida urbana de Itabuna. Em
contrapartida, as tensões entre as camadas populares e os membros da administração pública
se acentuaram.
Para Adonias Filho, as mudanças efetivadas no cenário político nacional no início de
1930 resultaram na alteração da ordem política local. Seguindo uma herança historiográfica, o
60
CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de Agosto de 1934, Ano II, n.º 4. p.1.
37
autor considera que, a partir daquele momento, os coronéis que tinham figurado enquanto
protagonistas da direção municipal na Primeira República começavam a perder espaço para
sujeitos políticos que eram originários de profissões liberais. Segundo o romancista regional,
essas alterações romperiam com o poder dos latifundiários que havia se consolidado desde a
proclamação da República nas repartições locais. No caso da região cacaueira, ele
considerava um marco na história local, já que daria início ao ciclo de democratização da
sociedade regional, liderado por sujeitos que “dinamizariam” a prática política e social. 61
De fato, conforme Adonias Filho enunciou, durante os anos em que Vargas dominou o
cenário político nacional pela primeira vez (1930-1945), cinco prefeitos passaram pelo cargo
mais importante de Itabuna, sendo que dois deles ocuparam onze anos desse período:
Claudionor Alpoim e Francisco Ferreira. O primeiro era médico e o segundo engenheiro. Mas
antes de tratar destes dois, creio ser importante aparar as arestas no cenário político regional.
Ao contrário do que Adonias Filho sugeriu, a situação política pós-1930 não foi resolvida tão
facilmente na Bahia. Uma parte das elites locais se mantivera ao lado de Washington Luís
durante a tomada do poder pela Aliança Liberal. Em Itabuna, a situação não foi diferente.
Personagens centrais da política local não estavam ao lado do grupo de Getúlio Vargas nos
primeiros momentos do golpe de 24 de outubro. Esses indícios podem ser notados na
memória local que trata da trajetória de um dos políticos de expressão na cidade: Gileno
Amado.
Na iminência do golpe político, Gileno Amado, acompanhado de Antonio Cordeiro de
Miranda, importante correligionário de seu partido, providenciou medidas para que Itabuna
resistisse aos ataques contra o governo federal na cidade. Gonçalves, memorialista da região,
afirmava que Amado estava fiel à legalidade do governo federal, tendo inclusive formado um
batalhão de voluntários para defender o governo dos ataques do movimento golpista. Com a
deposição do presidente Washington Luis e a instalação do governo provisório, este político
chegou a ter sua prisão decretada pelo novo regime.62 Com a nomeação de Juracy Magalhães
para interventor da Bahia, depois de instituída a nova ordem política, Gileno Amado acabou
posteriormente nomeado Secretário da Fazenda. Tempos depois, Magalhães, em suas
memórias, dizia que conseguia “ver nestes coronéis uma outra dimensão além da que se
Ver ADONIAS FILHO. Sul da Bahia: chão de cacau: uma civilização regional. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1976. Procurando esquematizar politicamente a sociedade grapiúna, o literato defende que, a partir da
década de 1930, as prefeituras municipais passaram a ser dirigidas por indivíduos que eram profissionais liberais,
rompendo com a estrutura coronelística da região. Contudo, vale ressaltar que, apesar de profissionais liberais,
esses políticos ainda estavam ligados por laços familiares e políticos com o coronelismo. p. 95.
62
GONÇALVES, Oscar Ribeiro. O Jequitibá da Taboca. 1ª Edição. Itabuna: Oficinas gráficas do estado da
Bahia, 1960. pp.140 e 141.
61
38
propalava na capital. Eram eles, na verdade, chefes locais”, e, sobre o político itabunense, ele
afirmava que “Em Itabuna dei apoio a Gileno Amado, que chefiava a facção contrária a João
Mangabeira, conseguindo obter ali uma substancial vitória.”63
Eul Soo Pang afirma que a Bahia viu surgir “coronéis burocratas”, que liderados por
Juracy Magalhães, solidificaram as redes de poder no interior com representantes
oligárquicos.64 A condição de secretário da Fazenda do estado terminou por preservar a
influência política de Gileno Amado em Itabuna, mesmo com o fim da Primeira República.
Isso possibilitou que os dois prefeitos que mais tempo passaram no executivo municipal
fossem afilhados políticos do “ex-coronel” e secretário estadual. Nesse sentido, pode-se
questionar a tese de Adonias Filho sobre a suposta mudança no cenário político local com a
subida de Vargas ao poder. Mesmo com o pós-1930, as elites agrárias permaneceram no
poder, contudo utilizando personagens políticos que davam uma cara nova à Prefeitura, mas
que ainda permaneciam sob a tutela dos antigos coronéis da cidade.
Claudionor Alpoim e Francisco Ferreira possuíam as bênçãos da elite local. Ambos
eram profissionais liberais e surgiam no cenário político de Itabuna com propostas de
mudanças para a cidade. As formações em medicina e engenharia, respectivamente, eram
vistas pelos segmentos políticos como suporte técnico e prestígio social, necessários para que
ocupassem a Prefeitura. Não foi por acaso que os dois tomaram para si a tarefa de promover a
expansão e o remodelamento urbano de Itabuna. Alpoim, membro do Partido Social
Democrata (PSD), partido criado por Juracy Magalhães, ao qual pertencia Gileno Amado, era
um nome consolidado em Itabuna.65 Oriundo de famílias que possuíam terras na região, atuou
em setores importantes da sociedade local, como a Santa Casa de Misericórdia e a vigilância
sanitária na Secretaria de Obras Públicas do município durante as gestões anteriores,
assumindo a Prefeitura em setembro de 1932. Já Ferreira, antes de se tornar prefeito, ocupou o
importante cargo de superintendente da Companhia Viação Sulbaiano, ligada ao Instituto do
Cacau da Bahia (ICB). Ele chegou ao município no ano de 1928 e sua nomeação para prefeito
aconteceu no ano de 1938, realizada por Landulfo Alves.66
GUEIROS, José Alberto. O último tenente. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. pp.132, 152.
PANG, Eul Soo. Coronelismo e oligarquia (1889-1934). A Bahia na Primeira República brasileira. trad. Vera
Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. O autor coreano afirma que depois de 1933, a
Bahia viu surgirem os coronéis burocratas, antigos políticos de origem oligárquica regionais, integrados às
secretarias políticas de Juracy Magalhães. pp. 61-62.
65
SAMPAIO, Consuelo Novais. Poder e representação: o legislativo da Bahia na Segunda República, 19301937. Salvador: Assembléia Legislativa, Assessoria de comunicação social, 1992, p.93. A autora afirma que
Juracy Magalhães formou o PSD a partir da reunião de lideranças regionais do estado.
66
COSTA, José Pereira. Terra, suor e sangue: Lembranças do passado. História da Região Cacaueira. Salvador:
EGBA, 1995. pp. 173-174.
63
64
39
A ação destes prefeitos leva a crer que ambos estavam sintonizados no sentido de
dotar Itabuna com novos meios de controle e de intervenção urbana. Para tanto, contaram com
a aceitação dos segmentos políticos e econômicos hegemônicos. Um indicativo disso é a
relação do poder legislativo e executivo municipais durante o período em que sua atividade
foi permitida entre os anos de 1930 e 1947. Funcionando entre 1933-1935 sob o nome de
Conselho Consultivo, e entre 1936-1937 com o título de Conselho Municipal, seus membros
pertenciam aos quadros políticos da elite agrária local. Na eleição de 1936, dos doze
conselheiros eleitos, nove pertenciam ao PSD, sendo fazendeiros, comerciantes e banqueiros;
e três ao Ação Integralista Brasileira (AIB), sendo que dois eram engenheiros. Pelo menos
cinco dos conselheiros já haviam ocupado este cargo nas gestões do Conselho Municipal da
Primeira República, e dois deles foram intendentes municipais em 1924 e 1929.67 Esses
números são indícios de que poucas mudanças ocorreram no quadro político local no pós1930. Por isso, os representantes do executivo não encontraram resistências em aprovar os
orçamentos financeiros do município e leis que favorecessem a política hegemônica local.
A relação harmoniosa entre o executivo e o legislativo pode ser notada no parecer
sobre as contas do ano de 1936 da Prefeitura, em que a “admiração” e a sintonia dos
conselheiros em relação ao prefeito são facilmente identificadas, quando afirmavam que
Efetivamente são bem significativos os resultados de sua administração [...]
no que tange aos problemas citadinos, procurando dar o maior conforto e
melhor comodidade à população, melhorando as condições higiênicas da
urbe, dando-lhes aspectos modernos e que condigam com os foros de
grandeza e civilização. 68
Em um período de tensão política freqüente, típico das décadas de 1930 e 1940, as
boas relações entre os poderes políticos do município podem ser consideradas uma tentativa
de ofuscar as divergências partidárias, construindo uma imagem de união dos dirigentes em
nome da suposta “grandeza e civilização” de Itabuna. Somente em momentos de maior
embate político, alguns membros do Conselho Municipal se opunham às ações do prefeito.
Era o caso dos três vereadores do Partido Integralista, que, em algumas oportunidades,
votaram contra projetos da Prefeitura ou reclamavam da perseguição política aos seus
militantes e correligionários.69 Nessa correlação de poderes locais, as decisões a serem
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 20 de fevereiro de 1936, Ano V, n.º , p. .
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. sábado, 20 de março de 1937, Ano VI, n.º311, p.1-2.
69
APMIJD. Livro de Atas do Conselho Municipal de Itabuna (1935-1937). Ata da décima terceira reunião do
Conselho Municipal de Itabuna 12 de agosto de 1936. p.20.
67
68
40
tomadas quase sempre partiam do prefeito para serem ratificados pelo Conselho de vereadores
no período em que este último funcionou.
Essa coerência política por parte dos membros das municipalidades de Itabuna talvez
fosse importante para que os segmentos hegemônicos produzissem força para enfrentar os
obstáculos encontrados na cidade. Um deles seria contornar as críticas do grupo político rival,
que embora ligado ao presidente Vargas, fazia oposição aos setores que ocupavam a
Prefeitura desde a Primeira República. Trata-se da polêmica política histórica entre o PSD, de
Gileno Amado, e o Partido Autonomista, liderado por Henrique Alves. Essas disputas se
davam no seio da própria elite local, que se dividia na luta pela hegemonia do cenário político
itabunense.
As boas relações de Amado com Juracy Magalhães durante o período provisório e
constitucional da década de 1930 levaram os setores da elite itabunense ligados ao ex-coronel
a criar uma polarização entre o secretário da Fazenda e Henrique Alves. Nesse sentido, Gileno
Amado passava a ser considerado aquele que teria aderido aos novos rumos da política
nacional, com a qual havia conseguido um papel importante no governo estadual. Em
contrapartida, a soberania do seu rival levou Alves a ser considerado o último dos coronéis
que representavam a Primeira República, cuja expressão não seria mais influente na sociedade
local. Em abril de 1937, o A Época chamava de “derrotista” o periódico do partido
autonomista por denunciar supostas fraudes no contrato do sistema de água e esgoto de
Itabuna. Parece evidente que se tratava efetivamente de disputas particulares pela liderança
regional entres os setores hegemônicos do que propriamente uma diferença entre as posturas
administrativas de ambos os líderes. 70
Apesar das disputas entre os políticos locais terem tomado conta das páginas dos
jornais, eram outros os problemas que apareceram no horizonte da cidade e que preocupavam
os “protagonistas” da história. Embora as brigas entre os coronéis de Itabuna e Ilhéus ocupem
muitos espaços na historiografia local, e algumas obras terminaram por superestimar o poder
destes indivíduos, as tensões entre o poder público e os cidadãos comuns parecem sugerir uma
guinada nos estudos que são produzidos sobre a região. Entre as décadas de 1930 e 1940, as
contradições de ordem econômica e cultural engendraram disputas políticas que colocavam na
mesma cena de conflitos os prefeitos, os vereadores e os trabalhadores de Itabuna. Essas
tensões surgiram a partir das incoerências dos projetos de cidade construídos pelos setores
antagônicos da sociedade. Um indício dessas tensões pode ser notado nas considerações do
70
CEDOC/UESC. Jornal A Época, terça-feira, 20 de abril de 1937, Ano XV, nº 843. p.1.
41
juiz da Comarca de Itabuna, ao descrever a situação do município, sobre o segundo semestre
do ano de 1943, onde afirmava que a quantidade de crimes
era, sem dúvida, ao grande número de cabarés e casa de jogos que existiam
neste município, notadamente nesta cidade. Ora, nas zonas do sul do estado
constantes devem ser a vigilância da polícia, por terem sido elas, quando
despovoadas, focos de criminalidade e homizios, os quais o progresso vai
higienizando – dia a dia.71
Para o juiz José Desouza Dantas, os fatores que explicavam os índices de
criminalidade de Itabuna estavam ligados à existência de prostitutas e de bicheiros no interior
do município. A esses elementos, ele somava o fator histórico da região cacaueira, espaço que
haveria abrigado transgressores da lei, do qual somente com o “progresso” começava a ser um
problema superado. As palavras de Dantas achavam facilmente os supostos responsáveis pela
intranqüilidade de Itabuna e, do mesmo modo, apresentavam a solução para que estes
problemas fossem superados. Embora não esteja expresso na fala do juiz, podemos imaginar
que tipo de “progresso” seria este que terminaria com o problema do crime na cidade. Esse
estágio de desenvolvimento estaria ligado a efetivação da organização estatal administrativojurídico do município. O maior controle do aparelho de controle do Estado ofereceria as
condições para que o crime diminuísse.
Sem levar em consideração os valores culturais difundidos entre uma sociedade que se
fundou na defesa da honra machista e da ética da violência armada disseminada pelos setores
sociais dominantes, o juiz da comarca de Itabuna acreditava que o melhor desenvolvimento
do setor político e jurídico resolveria os problemas da cidade. É bom lembrar que José
Desouza Dantas ocuparia o cargo de prefeito provisório em 1945, o que justifica sua ligação
com a administração municipal pelo menos no período que antecedeu sua experiência na
Prefeitura. Por isso, suas palavras sobre Itabuna do ano de 1943 são fragmentos do projeto de
cidade que os membros dos poderes públicos possuíam. Para tanto, foi preciso criar
instituições que pudessem efetivar o controle e as intervenções sobre aqueles que faziam usos
da cidade, isto é, seus habitantes,em sua maioria, trabalhadores rurais e urbanos.
Como disse, a prostituição era freqüentemente citada na lista de problemas a serem
“sanados” pelas autoridades municipais em matérias dos periódicos quer circulavam em
Itabuna. Contudo, ela não era a única. Ao seu lado, apareciam também o jogo do bicho, os
curandeiros e os candomblés existentes na cidade. Outras questões sociais apareciam com
menor intensidade também nos órgãos de notícias, como a presença de animais soltos pelas
71
APEBa. Relatório de movimentação forense. Itabuna, 14 de janeiro de 1944, s/nº, p.2.
42
ruas, licenças de ambulantes e “desordens” em bares e cabarés. Alguns locais da cidade são
identificados pelos jornais por serem espaços de diversão e de atuação profissional das classes
populares. Este é o caso da Rua Ruy Barbosa, chamada durante muito tempo de Rua “do
Quartel Velho”, que se localizava em pleno centro de Itabuna e reunia uma série de
trabalhadores ambulantes, verdureiros, leiteiros, baianas que vendiam suculentos mingaus,
açougues, pequenos restaurantes freqüentados pela população pobre, além de barbearias,
quitandas e casas comerciais. De acordo com o Lançamento de Imposto do Município de
Itabuna em 1940, a rua Ruy Barbosa possuía 45 estabelecimentos comerciais, dentre os quais
um número considerável era de bares, pensões e bilhares. Havia no local 3 pensões, 8 bares,
11 bilhares, 3 barbearias e 3 açougues.72 Mas a rua chamava mesmo atenção da imprensa e
das autoridades locais por ser “o refúgio da população notívaga da cidade. [...] a vida noturna,
ali, é mais intensa, dada a reunião de cafés, restaurantes e pensões agrupados no quarteirão
mais ativo [...] Centro convergente daqueles que fazem da noite um dia alegre.”73
As críticas sobre a Rua Ruy Barbosa por vezes soavam mais ácidas junto aos órgãos
noticiosos. Em 1º de junho de 1936, O Fanal, que se caracterizava por ser “mensário da
mocidade estudantil de Itabuna e órgão literário”, era utilizado como instrumento de crítica
por Hermenegildo Souza, professor e gerente deste periódico:
Percorrendo as ruas da cidade, verifiquei na rua Ruy Barbosa, na Sexta-feira
da Paixão, que alguns bares conservavam suas portas meio cerradas e outras
totalmente lacradas. O mulherio não formigava na porta dos cabarés, como
nos outros dias. [...] Essas horas de profundo respeito por parte do povo que
se diz cristão poderia ser prolongada por toda a vida, se nos dispuséssemos a
cada instante de nossas existências, em uma Sexta-feira da Paixão interior, de
observância a nós próprio, aos princípios da moral deixada por aquele que
verteu no calvário o seu sangue em nosso proveito.74
Choque de valores culturais como este fazia parte da cidade. Apesar da pretensão de
liquidar com as atividades das mulheres nos cabarés e com a abertura de bares, Hermenegildo
Souza acabava por evidenciar que aquela Sexta-feira da Paixão deixou atípica a Rua Ruy
Barbosa. O olhar do articulista indicava que em dias normais aquela rua era um território dos
trabalhadores, lugar de diversão e de prazer além das fronteiras da moral estabelecida pela
“ordem pública”.
As fronteiras das questões sociais perseguidas pelas autoridades públicas certamente
se estendiam pela rua acima. Junto com a parte final da Rua Sete de setembro, a Rua
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 17 de fevereiro de 1940, Ano IX, n. 456. p.1-3.
CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, Itabuna, 1º de abril de 1935, Ano III, n.º 12, p.2.
74
CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, Itabuna, 1º de junho de 1936, Ano IV, n.º 2, p.1.
72
73
43
Domingos Lopes também era conhecida como zona do “barulho” por parte dos periódicos.
Boa parte do meretrício da cidade se localizava naquela região, por volta da década de 1930.
Mas este cenário era complementado com o funcionamento de bilhares e jogo do bicho
naquela área. Em 1928, o A Época caracterizava a rua Domingos Lopes como zona dominada
pelo jogo e pela prostituição em uma matéria de destaque que tomava metade da capa da
edição. Sobre isso, dizia o periódico que “Nas ruas Ruy Barbosa e Coronel Domingos Lopes
são quase diários espetáculos degradantes, que põem em xeque nossos foros de cidade
civilizada e fazem-nos perguntar se temos ou não temos policia de costumes.”75 Mais tarde,
por volta da década de 1940, essas mulheres seriam retiradas dessas ruas e migrariam para
outros lugares do centro da cidade e para os bairros do Cajueiro, Conceição e Mangabinha.76
Próximos ao perímetro central de Itabuna, os bairros da Conceição e do Pontalzinho
formavam duas das áreas mais populosas da cidade, abrigando parte considerável dos
trabalhadores urbanos e rurais. No bairro Conceição, o número total de estabelecimentos
comerciais abertos era de 46, dentre os quais havia 6 barbearias, 11 quintandas, 19 pequenos
negócios e 6 outros tipos de comércios. Nota-se a enorme quantidade de “Quitandas” e de
“Pequenos Negócios” que havia no local. 77 Embora o lançamento de impostos não apresente
detalhadamente estas duas categorias de comércio, é possível que esses locais fossem botecos
e lojas que compunham o cenário deste bairro conforme se evidencia nos jornais. Povoado a
partir do final da década de 1920, especialmente com a abertura da rodovia que ligava a sede
do município ao distrito de Macuco (Buerarema), o bairro da Conceição ganhou notoriedade
pela sua população crescente e pelos “sururus”78 noticiados pelos jornais. Até a década de
1950, este local não recebia muita atenção dos poderes públicos, e, por isso mesmo, seus
moradores escreviam reclamações para os jornais solicitando benefícios da administração
municipal. Em outubro de 1943, O Intransigente trazia uma nota de primeira página
indicando a necessidade de melhoramentos naquele arrabalde, alegando que o “Conceição, o
maior e mais aprazível subúrbio desta cidade, tem ficado no rol do esquecimento, apesar de
ser o mais próspero bairro que possuímos. [...] O estado ali é triste e arriscado para as pessoas
que ali mourejam.”79
A notícia expedida por O Intransigente sobre as necessidades do subúrbio do
Conceição muitas vezes contrastava com os estigmas desenhados pelas notícias que eram
IGHB. Jornal A Época, 29 de setembro de 1928, Ano XI, nº 433. p.1.
Tratarei melhor disso no 2º capítulo.
77
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 17 de fevereiro de 1940, Ano IX, n. 456. p.1-3.
78
Confusão, briga ou desentendimento.
79
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 23 de outubro de 1943, Ano XVII, n.º 8. p.1.
75
76
44
veiculadas em outras edições do periódico. Durante um bom tempo, parte daquele bairro ficou
conhecida como “Abyssínia”, em alusão ao nome antigo da Etiópia, inicialmente justificada
pela quantidade de candomblés e assassinatos. Os jornais freqüentemente denunciavam as
práticas de religiões afro-brasileiras como “feitiçarias”, exigindo a presença da polícia e da
Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna. 80 Juntamente com os candomblés, o jogo do
bicho era uma prática denunciada pela imprensa local.81
O bairro do Pontalzinho também era um dos lugares mais povoados pelos
trabalhadores de Itabuna e sua ocupação inicial remete a meados da década de 1910. Embora
mais próximo da área central do que o núcleo do Conceição, os moradores daquele bairro
enfrentavam bastante dificuldades com o descaso do poder público. Nos jornais das décadas
de 1930 e 1940 é possível encontrar diversas queixas dos moradores daquele local contra a
falta de infra-estrutura. A existência do ribeirão Lava-pés limitava o deslocamento dos
moradores do Pontalzinho em direção ao centro da cidade quando ocorriam enchentes. Em
algumas ruas, o esgoto corria à céu aberto e o matagal crescia livremente, o que resultava em
reclamações contra o mau cheiro e as doenças que poderiam surgir por conta da insalubridade.
Além desses problemas, a situação sanitária daquela zona popular se agravava com a
existência de pântanos e de pastos nas áreas próximas ao ribeirão que limitava o arrabalde
com o perímetro central.
Mas se os poderes públicos não ofereciam atenção para os problemas de infraestrutura do Pontalzinho, o mesmo não se podia dizer quanto às questões sociais. A zona
possuía alguns estabelecimentos de jogo do bicho, além de abrigar uma das sedes do partido
Integralista. Por isso mesmo, sempre era alvo de denúncias na imprensa local. Uma das vias
mais movimentadas era a Rua dos Artistas. Antes caminho de tropeiros que se deslocavam
dos distritos do Pau Caído, Mutuns e Pirangí (atual município de Itajuípe), gradualmente esta
rua foi sendo ocupada por artesãos por conta dos baixos valores daqueles terrenos, tornandose uma área tipicamente popular.82 Apesar disso, os periódicos desenhavam a rua dos Artistas
em suas colunas enquanto espaço de “barulhos” constantes. O A Época, em 5 de setembro de
1942, solicitava a presença das autoridades policiais para por fim às confusões que seriam
provocadas pelos “jogadores, que não estando satisfeitos com o jogo, ainda fazem barulho, a
ponto de incomodar os moradores.”83
Jornal A Época, 11 de junho de 1938, Ano XVI, n.º 973. p.1. Documento encontrado em Processo-crime.
Jornal O Intransigente, 11 de junho de 1938, Ano XI, n.º 41. Documento encontrado em Processo-crime.
82
GONÇALVES, Oscar R. Op. cit., pp.118-119.
83
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 5 de setembro de 1942, Ano XX, s/nº, p.4.
80
81
45
Como se pode notar, os olhares dos poderes públicos e das instituições ligadas a eles
refletiam os choques de valores da sociedade em transformação. Com uma visão que
identificava os modos de vida dos populares como problemas sociais, a imprensa e as
autoridades locais terminavam por apontar as ações destes sujeitos como condutas contrárias
aos valores de urbanidade e à moral estabelecida para Itabuna. Mas esse olhar dos segmentos
hegemônicos sobre o seu diferente, isto é, sobre os subalternos da cidade, permite também
localizar as áreas de sobrevivência dos trabalhadores. Não apenas isso, mas os usos que os
trabalhadores faziam do espaço urbano. O agir dos indivíduos que compunham os grupos
populares quase sempre resultava em tensões veladas com o poder público. Isso exigia uma
prática discursiva de enfrentamento por parte da imprensa, o que fomentava o surgimento de
matérias e de crônicas que procurassem negar os valores dos “de baixo” por meio de estigmas
e de preconceitos, e referendassem os modos de vida dos setores dominantes.
Procurando consolidar os valores e os costumes que se imaginavam para Itabuna, a
imprensa local também evidenciava as contradições inerentes à cidade em metamorfose. O
estranhamento entre os sujeitos urbanos indicava as diferenças culturais e sociais que se
expressam a partir das suas experiências históricas. O Fanal de fevereiro de 1936 trazia uma
“expedição” do seu repórter por sobre as áreas do subúrbio e seu inevitável estranhamento. As
suas impressões sobre os bairros de Itabuna daquele momento apontavam as fissuras
existentes no interior da população.
Saí, numa manhã de domingo pelos subúrbios da cidade, jovial, com os olhos
transluzentes de felicidade, e voltei com eles em lágrimas!
Na primeira esquina, um varioloso, no chão imundo jogado.
Adiante, uma viúva pobre, com tantos filhos a choramingar, tão cedo já, tão
doentinhos!
Prossegui na mesma rua, encontrei um punhado de crianças, tão alvinhas, tão
irmãs, todas miudinhas, sós, sem pai e sem mãe que vinham do banho do rio...
tão pequenas, tão sós, de cedo já encontrando as peripécias da vida...
Entrei em outra rua – numa casa aberta, minado pela terrível tuberculose, um
pobre velho está a expiar sem assistência de viva alma...
Voltei. Ainda era cedo. Deparei-me com uma velhinha, que ia esmolar... e que
demorava tanto a caminhar que ainda a encontrei, de volta, às 11 horas da
noite, exangue, fatigada de corpo e alma...
O mundo é pequeno para tantas misérias.84
Apesar da compaixão do cronista que assinava a coluna com o pseudônimo de
“Repórter”, suas impressões deixavam transparecer o estranhamento do sujeito que habitava
as zonas centrais e, possivelmente, pertencesse aos setores dominantes de Itabuna. Para ele, o
subúrbio era considerado território da pobreza e da miséria, cujas características eram
84
CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de fevereiro de 1936, Ano III, nº 10, p.2.
46
fundamentadas nos modos de vida dos pobres. A descrição dos bairros parecia demarcar as
fronteiras do espaço urbano, onde os problemas sociais se apresentavam somente nos bairros.
Tratava-se de criar duas cidades em apenas uma, cujo subúrbio passa a ser a representação da
cidade que não progredia como o centro de Itabuna. Somamos a isso, a ênfase dada aos
enfermos encontrados na jornada pelos arrabaldes, o que denotava às regiões periféricas a
condição de zonas insalubres e dominadas pelas doenças, na percepção hegemônica. Na breve
descrição, notamos a citação de pelo menos três casos de endemias, entre elas, a varíola e a
tuberculose.
O Repórter de O Fanal procurava se posicionar no lugar de quem partia para uma
“missão humanitária”. Tratava-se de um indivíduo que abdicava por alguns minutos de seu
espaço de convivência (o centro da cidade), e partia em direção ao desconhecido, ou ao
estranho – o subúrbio de Itabuna. Ao caminhar pelos bairros, o observador apontava aquilo
que lhe era estranho, sobretudo elencando os elementos que considerava “anormal” para a
cidade. Dessa forma, a suposta sensibilização com as condições de vida do subúrbio se
transformava na criação de estereótipos que desclassificavam o território e os costumes das
zonas populares. Visões da cidade como estas indicavam o estranhamento de comportamento
entre os habitantes do centro e os da periferia. Os contrastes evidenciados pelo repórter
procuravam tomar os bairros e, por conseguinte, seus habitantes como zonas de insalubridade
e do perigo, consolidando um imaginário que justificaria as medidas legais e práticas dos
poderes públicos aos espaços e costumes da população pobre de Itabuna. Para Bhabha, os
indivíduos costumam ressaltar as diferenças dos “outros” como maneira de afirmar seus
próprios valores. Assim, ao ressaltar as diferenças dos bairros, o periódico intentava ressaltar
a superioridade material e social do centro em relação à periferia.85
Diante da cidade em crescimento territorial e demográfico, do aparecimento de seus
primeiros bairros populares e práticas que são construídas pelos “de baixo” de Itabuna até a
década de 1930 e 1940, os poderes públicos municipais traçaram uma organização para o
controle e a intervenção no espaço urbano. Representados pelos interesses das
municipalidades, os segmentos políticos hegemônicos traçaram administrações cujas medidas
pudessem funcionar no sentido de coibir comportamentos “desordeiros” e forjar padrões para
a vida dos munícipes. O encontro de diferentes interesses na mesma cidade apontou os limites
e as contradições da sociedade urbana de Itabuna. Uma das maneiras mais eficazes de se
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. O autor indiano destaca que o discurso
hegemônico sempre traz em si uma ambivalência, no sentido de que sempre que cria estereótipo sobre o “outro”,
reafirma sua própria identidade como superior. Assim, “a identificação é sempre o retorno de uma imagem de
identidade que traz a marca da fissura no lugar do outro de onde ela vem. p.77.
85
47
perceber os atritos inerentes entre os poderes públicos e os trabalhadores de Itabuna é
reconstruir as ações dos departamentos do governo municipal.
A Secretaria de Higiene Pública e a Guarda Municipal eram dois dos principais meios
para regulamentar e controlar os munícipes. Da construção de imóveis até a concessão de
licenças profissionais, essas pastas eram responsáveis pela fiscalização dos sujeitos que
viviam em Itabuna. Foram essas repartições públicas que se encarregaram de difundir os
valores dominantes de higiene e de ordem pensados pelos segmentos hegemônicos mediante a
permissão para construir imóveis, vender produtos e controlar a saúde pública. Por conta
disso, o contato com as classes populares era quase sempre muito tenso. Aqueles que
transgrediam as determinações destas secretarias terminavam por ser coagidos pelo poder
local, o que não quer dizer que as pessoas aceitavam as medidas das autoridades municipais.
É exatamente na insistência das pessoas comuns, isto é, dos trabalhadores frente às
intervenções das autoridades sanitárias e urbanas, que busco reconhecer e explorar a trajetória
de contradição e do conflito social em Itabuna. Nesse sentido, a experiência social dos
indivíduos que vivenciaram a cidade em transformação se torna um meio de ressaltar as
limitações do poder local diante de seu projeto político. São essas vivências que indicam a
resposta dos trabalhadores em relação à política urbana pensada para a cidade, às vezes não
resistindo as imposições dos setores dominantes, mas também, em algumas oportunidades,
operando uma lógica urbana diferente da estabelecida pelos poderes estabelecidos. Desta
forma, nem sempre os sujeitos históricos de Itabuna se aprisionaram nas estruturas criadas
para sufocá-los, procurando fazer de sua experiência social um modo de vida que indicava
medição de força com os segmentos antagônicos da cidade.86
A Secretaria de Higiene Pública e a Guarda Municipal possuíam um papel importante
na consolidação de padrões e de costumes pretendidos pela classe dirigente. A Higiene
Pública passou a ter um papel mais visível com as medidas sanitárias e a regulamentação do
Código Sanitário a partir de 1930. A Guarda Municipal era uma instituição inédita na cidade,
criada para atuar como polícia de costumes e assegurar a ordem urbana nos logradouros
públicos em 1933. A criação destas instituições evidencia a mudança na política urbana a
partir da Gestão de Claudionor Alpoim, cujo impacto o foi o aumento das divergências entre
trabalhadores pobres e as municipalidades. Esses conflitos se traduziam na tentativa da
THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser.
Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p.182. Para Thompson, a experiência humana compreende homens e
mulheres enquanto sujeitos que vivenciam as relações produtivas a partir de interesses e de necessidades
antagônicas, transformando sua consciência e sua cultura conforme sua prática social, e sem determinismos
científicos mecânicos.
86
48
imprensa em estigmatizar os comportamentos dos populares por meio de extensas matérias
que chamavam atenção das autoridades sanitárias, na fiscalização das atividades profissionais
ligadas aos despossuídos e na repressão à condutas proibidas pelos poderes públicos. A partir
daí, quero entender as táticas que os trabalhadores encontraram para negociar e resistir à
ordem estabelecida pelos segmentos políticos, no confronto do “uso popular” do espaço
urbano com os ideais urbanos hegemônicos.87
Higiene Pública
Em junho de 1935, a diretoria de Higiene Municipal publicava uma chamada sobre a
Limpeza Pública da cidade no Jornal Oficial, apontando a imperiosidade de preservar o
asseio das vias urbanas e contribuir com as boas condições sanitárias de Itabuna. Sob a
direção do médico Antonio Cordeiro de Miranda, tradicional figura política do PSD e
integrante de famílias latifundiárias que viviam na região, esse departamento das
municipalidades tinha como função regulamentar os padrões higiênicos e sanitários dos
estabelecimentos comerciais e residenciais da cidade. Na nota de utilidade pública, Miranda
procurava convencer os munícipes de que o governo local demonstrava sua intenção em fazer
de Itabuna um centro de asseio que a engrandecesse diante de seus observadores por meio da
reorganização dos serviços de limpeza urbana.88
No mesmo texto que procurava demonstrar os feitos da Diretoria de Higiene Pública,
Miranda chamava atenção para a necessidade de os habitantes colaborarem com as medidas
de higienização do espaço urbano promovido pelo poder público. Para isso, fazia uma relação
metafórica entre a casa e a cidade, colocando a primeira como espaço do indivíduo e a
segunda enquanto coletivo, sendo que a união dos dois âmbitos formaria a sociedade, o que,
por conseguinte, deveria levar os indivíduos à conservação da limpeza da “casa comum”
(cidade) tanto quanto se cuida da casa individual. As medidas tomadas pelo departamento de
higiene de Itabuna possuíam destinatários bem claros e objetivos. Observa-se isso quando na
mesma nota são evidenciados os personagens que poderiam colaborar com a limpeza pública.
Pede-se pois, às ex.ª donas de casa que não consintam suas crianças e criados
atirarem lixo e cascas de frutas nas ruas; aos srs. comerciantes a fineza de só
abrirem os caixões de suas mercadorias no interior de seu estabelecimento; a
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1 Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves.
Petrópolis: Vozes, 1994. Certeau sugere que os grupos populares, ao serem pressionados pelos padrões dos
setores hegemônicos, criam novas estratégias para burlar os parâmetros da ordem estabelecida, realizando um
uso popular do espaço social que mina as normas dominantes, tornando-se “cantos de resistência”, de onde se
vêem as lutas e desigualdades sociais ocultadas pelas elites. p.79.
88
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 15 de Junho de 1935, Ano V, n.º 221.
87
49
certos proprietários de animais para não lhes darem ração nas ruas; aos
domésticos evitarem encher demasiado os depósitos de lixo dos domicílios, os
quais derramam o conteúdo quando postos nas portas para coletas do
caminhão de asseio; aos “chaffeurs”, carroceiros e aguadeiros não atirarem
nas ruas cascas de frutas, lixo e bagaço de cana; enfim, a todos os habitantes
de não jogarem papéis servidos nas vias públicas.89
Na tarefa de promover o asseio da cidade, a diretoria de Higiene Pública parecia ter
identificado os sujeitos que deveriam ser observados pela fiscalização. Entre aguadeiros,
carroceiros, feirantes e donas de casas, são os trabalhadores de Itabuna que são convidados a
se alinhar aos interesses da municipalidade. Na nota, apontavam-se especialmente os
elementos que contrariavam os padrões de higiene estipulados pelo principal órgão de
vigilância sanitária, sendo todos associados às práticas dos setores populares, tais como não
jogar restos de frutas ao chão ou alimentar animais em vias urbanas. As providências tomadas
pelos departamentos do poder público parecem nos trazer os antagonismos entre as forças
sociais que habitavam na cidade.
A diretoria de Higiene Pública atuava também nos estabelecimentos comerciais e
residenciais de freqüência popular e nas áreas de feiras livres. Em relação ao primeiro, os
diretores desta repartição se baseavam no Código Sanitário do estado da Bahia para promover
a fiscalização de imóveis recém construídos. Em novembro de 1941, quando a principal
autoridade sanitária da cidade era o médico José Pinto da Silva, o poder público determinava
algumas diretrizes a serem seguidas nas construções de prédios. Entre as proibições que se
encontravam publicadas no Jornal Oficial, José da Silva informava que não seriam tolerados
dormitórios cujos forros ou divisões fossem de pano, papel, zinco ou madeira, ou que
possibilitassem a procriação ou a passagem de insetos proliferadores de doenças. Embora não
fizesse referências à localização destes imóveis e às pessoas que lá moravam, parece evidente
que se tratava de normas que atingiriam habitações urbanas de origem popular.90
Há indícios que nos levam a considerar que parte dos prédios que se construíam em
Itabuna e que eram fiscalizados pelo Departamento de Higiene foi erguida para abrigar a
população de baixa renda por intermédio de locação destes imóveis. A convergência de
trabalhadores para a cidade por conta da economia cacaueira nos leva a acreditar que estes
indivíduos terminavam por alugar os imóveis residenciais. Os proprietários destes prédios
nem sempre ofereciam condições sanitárias adequadas para seus inquilinos. Outra
possibilidade é que algumas destas casas fossem construídas por pessoas de baixa renda, as
quais não se preocupavam com as normas estipuladas pelos poderes hegemônicos. Esses
89
90
Idem, Idem. p.2.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 18 de novembro de 1941, Ano VIII, n.º 545, p. 2.
50
fatores terminavam por levar a Higiene Pública a emitir avisos à comunidade sobre as
determinações da Prefeitura. Em 1938, o médico Cirne Dantas, que ocupava provisoriamente
a chefia da diretoria de vigilância sanitária, publicou aviso sobre a existência de pessoas que
“têm-se alojado, ou consentido que inquilinos o façam, em prédios que se acham em
condições acima referidas [prédio vagos ou recém construídos ou construídos], desrespeitando
a lei.” Dantas ainda enfatizaria que caso os proprietários ou inquilinos insistissem em
permanecer naqueles imóveis e “se as condições do prédio forem anti-higiênicas ou aquele
que for evidentemente inadaptável aos fins que a ocupação tiver em vistas, será, além da
multa, declarado interdito e considerado desabitado para todos os efeitos.”91
O termo “alojado”, utilizado por Dantas ao se referir aos prédios irregulares que
abrigavam trabalhadores, segundo as diretrizes daquele órgão do município, parece dar o tom
da insatisfação do departamento de Higiene Pública com as moradias populares. Embora as
ameaças fossem ostensivas em seu aviso à população local, as pessoas que habitavam esses
imóveis não se mostravam dispostas a sair imediatamente dos seus domicílios. Talvez isso
fosse uma resposta às possíveis punições sugeridas na nota de utilidade pública. Em uma
outra oportunidade, sob a justificativa de que era necessário construir o Mercado Público, a
prefeitura resolveu desapropriar um conjunto de “casebres” que se localizavam entre a Praça
João Pessoa (atual José Bastos) e a Avenida Marginal (atual Avenida Amélia Amado), local
próximo do perímetro central. Naquela oportunidade, os casebres de José Quintino de
Santana, Homero Marinho, Paulina Maria de Jesus, Anacleto Vieira de Souza, por conta de
sua baixa valorização e da utilidade daquele espaço, seriam desapropriados, de acordo com a
administração pública.92
As desapropriações de terrenos e de imóveis por parte da Prefeitura de Itabuna se
pautavam em preceitos higiênicos. Foi desta forma, por exemplo, que o Conselho Municipal
aprovou lei de utilidade pública, em 1936. De acordo com esta medida, o poder executivo
ficava autorizado a desapropriar “os prédios, terrenos, ou benfeitorias que perturbassem os
preceitos de higiene, o alargamento e a continuação das vias públicas”. 93 Possivelmente
seguindo essa lei autorizada pelo Conselho Municipal, dez “casebres” situados na região da
Rua da Linha foram desapropriados pela administração pública. No entanto, ao contrário do
que imaginavam os membros das municipalidades, um dos moradores reagiu às medidas do
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, terça-feira, 31 de janeiro de 1938, Ano VII, n.º 555, p. 2.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 18 de outubro de 1941, Ano VIII, n.º 541, p.4
93
APMIJD. Livro de Leis e Projetos do Conselho Municipal. Projeto de Lei n.º 28, Autoriza o poder Executivo a
fazer desapropriações por utilidade e necessidade pública. Itabuna, 7 de novembro de 1936, p.53B.
91
92
51
governo. Tratava-se de Antonio Nazareno Sena, cuja disputa com a Prefeitura foi parar nas
páginas do jornal de oposição O Intransigente.
Sob o título de “Sempre as Benemerências”, o periódico local trazia aos seus leitores
uma matéria sobre a desapropriação do imóvel do senhor Sena. De acordo com a redação da
notícia, o proprietário do imóvel foi surpreendido com a tomada de seus bens e,
posteriormente, com o baixo valor da indenização a ser paga pela Prefeitura. Além disso,
Antonio Sena argumentava que ao lado de sua residência, possuía uma quitanda, de onde
tirava seu sustento, sendo, por isso, um prejuízo significativo para ele a desapropriação do
local, considerando ainda a proposta de restituição financeira muito aquém dos danos
provocados pela medida da Prefeitura. 94
Em resposta às denúncias feitas por Sena, o engenheiro da Prefeitura, Antonio Nunes
de Aquino, informava que a área desapropriada possuía uma série de irregularidades, o que
justificava o valor oferecido para indenizar o proprietário. Em face das falhas da área, o
representante do poder municipal declarou que o reclamante possuía em seu quintal uma
plantação de diversas frutas na faixa que era reservada à Estação de Ferro Ilhéus-Conquista, o
que tornava irregular o imóvel. Mas o que fazia com que a proposta da Prefeitura não fosse de
dois contos de réis (2:000$000) era a existência de esgoto a céu aberto, despejado numa área
alagadiça próximo a uma cisterna de captação de água, diante da qual a edificação seria um
foco de proliferação de doenças. Ao final de suas explicações, Aquino informou que foi Sena
quem teria procurado encaminhar a solução dos problemas pelas vias judiciais, levando o
prefeito a utilizar dispositivo legal da desapropriação por utilidade pública. 95
Apesar da nova resposta de Sena contra as explicações do poder municipal, não foi
possível saber se a solução do caso teve final favorável ao reclamante ou não. Independente
disso, as disputas entre a Prefeitura e o proprietário do imóvel são evidências de que a política
urbana dirigida pela Diretoria de Higiene Pública provocou tensas relações entre os
segmentos políticos e os trabalhadores. O próprio Sena, ao responder no número posterior à
nota de Aquino, argumentava que não se tratava de um caso isolado, aproveitando para
informar nomes de outras pessoas que haviam se posicionado contra as ações das
municipalidades.96 A ordem estabelecida pela Higiene Pública buscava adequar a cidade aos
padrões sanitários estipulados pelos segmentos hegemônicos, sobrepondo, em muitos casos,
os interesses dos trabalhadores. Mas, como ficou evidente na situação narrada e em outros
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 23 de novembro de 1935, Ano X, n.º 12, p.1.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 7 de dezembro de 1935, Ano X, n.º 14, p.1.
96
Idem, Ibidem, p.2.
94
95
52
casos que veremos à frente, os populares da cidade nem sempre se mostraram dispostos a
aceitar as normas da Higiene Pública.
A preocupação com relação à Higiene Pública de Itabuna era enfatizada, sobretudo,
pelas políticas urbanas adotadas pelas gestões políticas das décadas de 1930 e 1940. A criação
do plano de urbanização, pelos engenheiros Arquimedes Siqueira Gonçalves e Manoel Da
Rin, em 1927, e de Saturnino de Brito Filho, em 1935, traziam em seu bojo a necessidade do
saneamento da cidade. Em seus projetos, os urbanistas se propunham a modelar a zona urbana
eliminando problemas sanitários que pudessem “impedir” o seu crescimento ordenado. Essas
idéias foram bastante propagadas pelo poder municipal, que passou então a considerar a
higiene um ponto central para Itabuna. Talvez por isso, já em 1932, dias após a posse do
prefeito Claudionor Alpoim, o Jornal Oficial trouxesse como um dos objetivos do novo chefe
do executivo a correção de trechos urbanos e a adoção de medidas de higienização. Naquela
oportunidade, a matéria do órgão do governo dizia que Alpoim havia voltado “suas vistas para
o saneamento da cidade” e que, por conseguinte, iria
ratificando os excessivos defeitos [urbanos], proporcionando melhor gosto
estético, ampliando a zona própria a edificação de caráter residencial, para a
qual já se cogita de estabelecer as normas dotadas no moderno urbanismo,
desaparecendo, pois o costume prejudicial de se constituir meia parede.97
O trecho final das propostas da Prefeitura para os anos seguintes nos oferece uma
indicação do modo pelo qual seriam tratadas a construção e a existência de habitações
populares. Após informar que realizaria a urbanização de ruas e o aterramento de áreas
alagadiças que se localizavam próximo ao perímetro central, o poder público dizia que a
pretensão era seguir as referências do urbanismo e melhorar a estética da cidade. Uma das
maneiras de se realizar essas reformas urbanas, segundo a matéria, era impedir o costume de
se fazer casas com meia parede.98 Construir imóveis desta maneira possivelmente era uma
prática comum entre os trabalhadores pobres urbanos de Itabuna, mas isto o poder público
parecia disposto a eliminar do cenário urbano em prol de imóveis novos e belos, segundo seus
padrões.
Embora a Prefeitura evidenciasse sua preocupação com o cenário urbano de Itabuna,
outras fontes sugerem que eram os trabalhadores que mereciam a atenção fiscalizadora da
higiene pública. Muitas vezes, as práticas convencionais dos populares eram combatidas pelos
segmentos hegemônicos, através da vigilância dos jornais e dos membros da comissão
97
98
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 8 de outubro de 1932, Ano II, n.º 76, p.1-2.
Idem, Ibidem.
53
sanitária. Para atingir este objetivo, o Conselho Municipal não se cansava de publicar leis que
instrumentassem as ações fiscalizadoras do departamento de higiene. Foi assim que em
janeiro de 1936, os conselheiros do legislativo aprovaram um projeto de lei para a
regulamentação da distribuição de água pelos aguadeiros. O dispositivo legal apontava que
estes últimos deveriam fazer um cadastro profissional junto à direção de Higiene Pública,
onde tomariam ciência das determinações sanitárias a serem seguidas. A nova norma ainda
determinava que “as cacimbas que distribuam ou vendam água ficarão sujeitas a fiscalização
[...] de acordo com as exigências e os preceitos indispensáveis à Saúde Pública, sendo as
infrações puníveis com multas de 10$000 [dez mil réis] a 20$000 [vinte mil réis]”.99
Apesar da publicação desta lei, os aguadeiros parecem que não se submeteram
facilmente a ela. Isso pode ser observado nas inúmeras punições sofridas por alguns
aguadeiros publicadas também no Jornal Oficial. Somente no mês de setembro de 1936, cerca
de cinco aguadeiros sofreram punições por não obedecerem às determinações do
departamento de Higiene Municipal. Chamamos atenção para José Ribeiro dos Santos e José
Oliveira Souza, que além de pagar multa de vinte mil réis, tiveram seus instrumentos de
trabalho tomados pela guarda.100 Além disso, mesmo com a implantação do sistema de
distribuição de água, os aguadeiros permaneceram atuando na cidade até meados das décadas
de 1960, mesmo com as críticas que os periódicos e os poderes públicos registravam contra
eles.
Outro grupo de trabalhadores freqüentemente fiscalizado pelo departamento de
Higiene Municipal eram os feirantes e os ambulantes de Itabuna. Com o apoio da imprensa
local, que organizava os discursos higienistas dos segmentos hegemônicos, o setor de
vigilância sanitária dos poderes públicos procurava coibir as práticas consideradas insalubres
no espaço urbano. Com esse intuito, a fiscalização terminava por entrar em choque com os
interesses da população pobre. Os agentes da saúde pública costumavam se respaldar em
dispositivos jurídicos que eram criados pelos executivo e legislativo itabunenses. Na medida
em que a cidade crescia e que as práticas agrárias se tornavam dissonantes dos padrões de
comportamento estabelecidos por uma elite urbana, as municipalidades buscavam
regulamentar seus modelos de conduta por meio da criação de lei de urbanidade, que se
propunha neutra, mas que comumente não era imparcial. Assim, reservava-se um lugar de
APMIJD. Livro de Leis e Projetos do Conselho Municipal. Projeto de Lei n.º 8, Regula o abastecimento,
distribuição e preço da água a cidade de Itabuna . Itabuna, 18 de agosto de 1936, p.3B.
100
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 31 de outubro de 1936, Ano V, n.º 292. p.2.
99
54
“ilegalidade” a todos aqueles que se prestassem a manter suas práticas fora do campo jurídico
produzido pela ordem estabelecida.101
Em janeiro de 1936, a prefeitura publicava no Jornal Oficial uma série de leis que
versavam sobre o cadastramento de profissionais ambulantes, o uso que faziam dos espaços
urbanos e a regulamentação do funcionamento da feira livre de Itabuna. Ademais, ainda
dispunha sobre a atuação da fiscalização que seria responsável pela normatização dos pesos e
das medidas e pela verificação das condições de higiene dos barraqueiros. Contudo, o que
parece melhor definir o caráter deste novo aparato jurídico é o artigo 24, pelo qual ficava a
prefeitura “autorizada a fazer a mudança das feiras quando achar inconvenientes os dias ou
lugares habituais, enquanto não tenha na sede do município, ou dos distritos, o Mercado
Público.”102 A partir dessa medida, a municipalidade se reafirmava a legitimidade de seu
poder para discernir acerca do funcionamento da feira local sempre quando esta se tornasse
incômoda no seu entendimento. Outrossim, a mesma lei ainda definia que o preço dos
produtos de subsistência a serem vendidos em Itabuna seria regulamentado e fiscalizado pelos
agentes municipais.
Perceber quais eram os incômodos das feiras para a Prefeitura não é tarefa muito
difícil. Os jornais sempre traziam informações de condutas que deveriam ser fiscalizadas pela
diretoria de Higiene Pública. As críticas partiam de colunas jornalísticas produzidas por
intelectuais do poder municipal, como é o caso de Antonio Cordeiro de Miranda, que além de
chefe do departamento, era diretor do A Época. As informações sobre os sujeitos que faziam
parte das feiras eram geradas por indivíduos dos setores dominantes, os quais estranhavam as
práticas populares no comércio “informal”. Um sinal desse estranhamento é a denúncia
realizada na primeira página daquele jornal, que reclamava de pessoas que colocavam “nos
passeios, caixotes vazios, tambores de gasolina e óleo, e até latas de ferro trazendo dificuldade
de trânsito nas ruas mais movimentadas da cidade. É um abuso que deve realmente ser
verificado...”.103 A ocupação pelos ambulantes das calçadas das principais vias urbanas
causava irritação aos segmentos hegemônicos, sob a justificativa de obstrução da passagem
dos pedestres.
THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. No capítulo “Costumes,
Lei e Direito Comum”, o historiador britânico parte da relação entre os costumes populares e o corpo jurídico da
Inglaterra do século XVIII para entender que “empregava-se a lei como instrumento de capitalismo agrário,
favorecendo as “razões” agrícolas. Quando se pretexta que a lei era imparcial, derivando de sua própria lógica
auto-extrapoladora, temos de replicar que tal pretexto era uma fraude de classe.” p.142.
102
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 22 de fevereiro de 1936, Ano V, n.º 256. p.3.
103
CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 24 de abril de 1937, Ano XV, n.º 844. p.1.
101
55
Em uma cidade que começava a reformular suas primeiras ruas, nivelando-as e
retificando-as de acordo com o plano urbanizador, os indivíduos que contrariavam as normas
de urbanidade criadas pela Prefeitura sempre eram notados por terem uma conduta desviante,
aos olhos da fiscalização pública. As reclamações giravam em torno da sujeira produzida por
esses trabalhadores que comercializavam produtos de subsistência ou doces. Era comum,
também, acontecer reclamações contra os vendedores de peixe que utilizavam as vias centrais
de Itabuna. Atuando em pequenas bancas ou até mesmo em pequenos comércios, os jornais
indicam que as autoridades sanitárias viviam no encalço destes trabalhadores. Em fevereiro de
1937, o periódico A Época se queixava da existência de uma peixaria por conta do mau cheiro
que exalava do estabelecimento. A notícia informava que tinha recebido uma série de
“reclamações, de pessoas que vão ali comprar peixe, e que saem repugnadas, não suportando
o mau cheiro que dali se desprende. Até a vizinhança sofre com o “perfume” desagradável do
peixe ali vendido”.
104
No final do texto, a nota ainda cobrava a atenção da Higiene Pública
para o livre funcionamento destes comércios no centro da cidade.
Como disse, Cordeiro de Miranda era diretor da Higiene Pública em Itabuna e gerente
do A Época. É possível que Cordeiro de Miranda publicasse estas reclamações para serem
utilizadas como justificativa para a ação da vigilância sanitária junto aos trabalhadores.
Apesar das queixas da imprensa local, os vendedores de peixe possivelmente não se renderam
às ameaças de intervenção das autoridades sanitárias. Isso porque após duas edições depois da
primeira reclamação publicada, encontra-se uma nova queixa contra o mercado de peixe em
Itabuna, motivada pelos mesmos estabelecimentos citados na denúncia anterior. Dessa vez as
acusações eram mais pesadas, pois iam além do mau cheiro.
O fato é que peixe deteriorado está sendo vendido, num atentado à bolsa e à
saúde da população.
É preciso que os encarregados do mercado tenham mais cuidado no produto
exposto à venda, para não prejudicar a iniciativa [...] caso não sejam aceitas
espontaneamente nossas sugestões. Talvez fosse de bom alvitre a Higiene
Municipal tomar a si a fiscalização do mercado.105
O objetivo das denúncias publicadas na imprensa local era chamar atenção dos
peixeiros e justificar a ação das autoridades sanitárias de Itabuna. Para tanto, ressaltavam os
aspectos populares que contrariavam os padrões de comportamento urbano provenientes dos
segmentos hegemônicos. Apesar das queixas contra as atividades dos peixeiros, o registro
preconceituoso dos modos de vida dos populares sugere que era muito difícil para os setores
104
105
CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 6 de fevereiro de 1937, Ano XV, n.º 814. p.1.
CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 6 de fevereiro de 1937, Ano XV, n.º 814. p.1.
56
hegemônicos manterem a ordem estabelecida por eles mesmos. A criação dos dispositivos
jurídicos parece não ter sido suficiente para submeter as atividades dos trabalhadores às regras
dos segmentos políticos. Talvez por isso tenha surgido a proposta do periódico dirigido pelo
chefe do departamento de Higiene de que o poder público interviesse no comércio público de
Itabuna.
Outro exemplo das dificuldades da Higiene Pública em operar nas feiras livres foi a
confusão envolvendo Câmara de Vereadores, Prefeitura e os vendedores de farinha. O evento
foi noticiado pelos jornais A Época e O Intransigente como o “Caso da Farinha”. De autoria
do vereador Antonio Tourinho, o Conselho Municipal sedimentou a fiscalização das
autoridades sanitárias sobre a limpeza e a normatização dos pesos e das medidas nas feiras de
Itabuna. Segundo as justificativas do projeto de lei, a intenção dos vereadores era proteger o
“povo” dos maus comerciantes que se aproveitavam da “ingenuidade” dos consumidores e
alteravam as medições de suas balanças para aumentar o lucro.106 De acordo com a nova
regra, a aferição dos instrumentos seria realizada nos meses de janeiro e de julho, sempre com
a vigilância das autoridades sanitárias. Acontece que o que havia sido aprovado com a
justificativa de atender às demandas do “povo”, acabou por contrariar os interesses dos
trabalhadores que vendiam na feira da cidade.
Na edição de 2 de fevereiro de 1937, o A Época cobrava do Conselho de Vereadores
uma reavaliação da lei municipal. Na matéria, o veículo de imprensa itabunense informava
que a aplicação da lei havia sido adiada por quatro vezes pelo poder público, sendo avisado
aos vendedores, com uma semana de antecedência, que esta entraria em vigor. Apesar disso,
as novas regras da Prefeitura para os vendedores da feira parece que não agradaram aos
trabalhadores. Justificando a necessidade de se estudar novamente o dispositivo jurídico, o
periódico afirmava que
Até certo ponto achamos a lei de difícil execução numa feira livre, exposta
às intempéries e em rampa, atrapalhando portanto a pesagem...
No entanto, a Câmara Municipal, votando a aludida lei, só teve em mira
salvaguardar os interesses do povo, porque não é de crer que nem ela nem o
autor do projeto quisessem prejudicar a quem quer que fosse.
[...] Finalmente deu-se aquela “revolução”, que terminou em vivas ao
prefeito municipal, tendo sua senhoria, de acordo com a vontade do povo,
prorrogado por mais um mês a execução da lei, até que a Câmara Municipal
se pronuncie a respeito.
APMIJD. Livro de leis e projetos do Conselho Municipal. Projeto de Lei n.º 8, Regula a aferição e revisão de
pesos, balanças e medidas no município. Itabuna, 5 de setembro de 1936, p.6. Esta lei saiu publicada também no
Jornal oficial do Município de Itabuna, 26 de setembro de 1936, Ano V, n.º 237, p.2.
106
57
Os vereadores portanto, devem estudar o assunto, pesando as vantagens e
desvantagens da referida lei, a fim de que procurando servir ao povo, não
seja alvo da odiosidade do mesmo povo ou de explorações de interessados...
Talvez seja mais prático exigir a balança quando tivermos construído o
nosso mercado que é uma das grandes necessidades locais e assunto que
administração pública há tempos vem cogitando. 107
As medidas imaginadas pelas municipalidades não agradaram aos vendedores e
feirantes. A lei que teve sua aplicação adiada por quatro vezes, terminou por não sair do papel
por conta da ação popular movida contra ela. Os trabalhadores souberam identificar que as
novas regras não estavam a serviço do “povo”, como afirmavam os segmentos políticos, mas
na pretensão das autoridades públicas de manter sob controle e vigilância seu trabalho. A
“revolução” a qual se referiu o jornal certamente foi a reação dos vendedores contra os
representantes do executivo e do legislativo. Diante da pressão popular, os segmentos
hegemônicos não tiveram outra saída senão recuar em seus propósitos de regulamentar as
atividades da feira livre. O poder se viu em perigo quando abusou dos direitos dos pobres e
provocou a fúria do populacho.
No discurso dominante, os novos referenciais de urbanidade que se queriam construir
para Itabuna serviam de baliza para as ações das autoridades públicas, construindo uma força
jurídica que procurava limitar a intervenção das pessoas simples e pobres da cidade. Certeau
indica que ao passo que a linguagem do poder se “urbaniza”, a cidade também “se vê entregue
a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder panóptico”.108
Para enfrentar os discursos da higiene, os grupos populares se fazem astutos o suficiente para
constituir outra força social, sem tomadas apreensíveis ou sem transparência racional, mas
que tornam impossível de gerir pelos poderes estabelecidos. E isso foi o que eventualmente
aconteceu com o espaço da feira na década de 1930 e de 1940, um lugar da não-urbanização,
que precisaria de uma racionalidade administrativa para ser vigiado e controlado pelos
agentes dos poderes instituídos.
Na tentativa de preservar suas novas regras, as autoridades municipais enfrentaram
também conflitos localizados e cotidianos, que não chegaram a chamar à atenção da imprensa,
mas que acabaram por ser registrados no livro de ocorrências da fiscalização pública e
reproduzidos pelo Jornal Oficial. São vários os casos em que feirantes se voltavam contra os
agentes da vigilância sanitária, inclusive antes da publicação da aludida lei. Em 14 de maio de
CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 2 de fevereiro de 1937, Ano XV, n.º 812, p.1.
CERTEAU, Michel. Op. cit. p.174. No capítulo III, intitulado Fazer com: usos e táticas, o autor considera que
sob os “discursos que se ideologizam, proliferam as astúcias e as combinações de poderes sem identidade,
legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional – impossível de gerir.”
107
108
58
1936, por exemplo, o senhor Augusto José de Matos, vendedor, foi multado em 110$000
(cento e dez mil réis) pelo guarda José Sales Filho, por estar usando uma “balança ordinária
que não funcionava” e, em seguida, ter desacatado o agente da inspeção pública. 109 Matos não
foi o único a ter essa reação. Antonio Venes e João Evangelista, ambos vendedores de cereais,
foram multados em 20$000 (vinte mil réis) cada um por terem desrespeitado os trabalhos dos
funcionários públicos responsáveis pela fiscalização da feira. Em maio de 1938, o inspetor
geral João Moraes doava à Cadeia pública cerca de quinze quilos de carne que haviam sido
apreendidos de feirantes açougueiros por conta das péssimas condições sanitárias e da fraude
na pesagem dos produtos. 110 Esses são apenas alguns casos de conflito entre os trabalhadores
e os fiscalizadores da Prefeitura.
Não é por acaso que uma das intenções dos segmentos políticos de Itabuna foi a
construção do Mercado Municipal. Tanto a feira como os feirantes eram vistos pelos poderes
estabelecidos enquanto espaços e pessoas que fugiam da ordem estabelecida. Na imprensa, a
área da feira era considerada uma zona onde a lei não conseguia ser aplicada e imperava a
desonestidade e falta de higiene, como observamos na matéria do A Época que versava sobre
o “caso da Farinha”. Em 1942, o mesmo jornal chamava a atenção do Posto de Higiene para o
fato dos açougueiros substituírem o uso do machadinho pelo facão, que segundo a nota,
provocava o aparecimento de doenças na população. Naquela oportunidade, o semanário
pedia ao chefe da Saúde Pública para coibisse “tamanho abuso, embora S.S. já tenha
publicado um edital no ano passado de referência ao assunto.”111
No ano de 1935, a Prefeitura de Itabuna cogitava construir um mercado público,
chegando inclusive a desapropriar um espaço próximo à estação de trem e à Praça João
Pessoa, como afirmei anteriormente. Além disso, no projeto de saneamento e expansão urbana
apresentado ao Governo do estado da Bahia que pretendia efetivar empréstimo junto à Caixa
Econômica Federal, uma parte da verba seria destinada à construção do mercado, obra
considerada de “imediata necessidade para a vida, higiene e foros de civilizada nesta cidade”.
Mas, na oportunidade, a planta do mercado não chegou sequer a ser anexada pelo gabinete do
prefeito, visto que a quantia tomada por empréstimo seria destinada principalmente à
implantação do sistema de água e esgoto.112
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 16 de maio de 1936, Ano V, n.º 268, p.12.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 5 de dezembro de 1936, Ano V, n.º 268, p.15. e APMIJD.
Jornal Oficial do Município de Itabuna, 7 de maio de 1938, Ano VII, n.º 367, p.18.
111
CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 13 de junho de 1942, Ano XX, s/n.º, p.4
112
APEBa. Ofício enviado ao Exmº Sr. Capitão Juracy Magalhães pela Prefeitura do Município de Itabuna. 18
de junho de 1935.
109
110
59
A prefeitura só voltou a cogitar da construção de um mercado público na década de
1940. Em 1943, O Intransigente cobrava a necessidade de criação daquele espaço, lembrando
que o município “rico e progressista como o nosso, não tenha em sua sede um Mercado
Público, dando ensejo a que, semanalmente se realizem feiras no centro da cidade, oferecendo
a mais triste das impressões.”113. Mesmo diante das pressões da imprensa e das constantes
denúncias feitas contra a feira e seus usuários, a administração pública não conseguiu
transformar em realidade a proposta de se construir o mercado municipal. No entanto,
promoveu o deslocamento da feira do seu antigo local, a Praça Arlino Leone (atual Manoel
Leal) e Domingos Adami desde os anos de 1920, para as imediações da Praça João Pessoa
(atual José Bastos) e da estação de trem. Houve também uma tentativa por parte da elite, de
criar uma alternativa para a feira de Itabuna, através da criação da Feira Chic.
Em 5 de junho de 1943, a Prefeitura de Itabuna chamava a população local para
comparecer à Feira Chic, localizada na Praça João Pessoa, que contaria com a presença de
parques infantis e outros produtos. Os preparativos estavam sendo coordenados por pessoas
que integravam os segmentos políticos hegemônicos da cidade, entre elas, Celso Fontes, Aziz
Maron e Nicodemos Barreto, que pretendiam com a festa, angariar fundos para a construção
da nova igreja matriz de Itabuna. Sua inauguração ainda contaria com a presença do prefeito
Francisco Ferreira e o periódico prometia que “tudo decorrerá na maior ordem e alegria
possíveis.”114 Era uma das primeiras oportunidades de a praça ser utilizada como espaço
comercial público. Oficialmente, a Feira Chic terminou em julho de 1943, mas depois que a
elite desocupou o lugar, outros ocuparam o logradouro esvaziado.
Seis meses após a saída da Feira Chic, a Praça João Pessoa era descrita de outra forma
pelo O Intransigente. No lugar havia sido montado o Parque Teatro Vitória que concentrava
dezenas de ambulantes nas suas margens, vendedores de doces, salgados, frutas, entre outros
produtos de consumo rápido. Mas a principal desconfiança da imprensa e das autoridades
sanitárias era com o consumo de roletes de cana115. De acordo com a matéria do citado
periódico, inúmeras eram as reclamações de pais e mães que freqüentavam o local, alegando
que
Em desrespeito flagrante aos preceitos higienísticos, estes vendilhões,
mantêm descobertos e expostos ao sol, à chuva e à poeira que é levantada não
só pelos veículos que passam por aquele trecho movimentado, os taboleiros
de roletes, que logo ficam ressecados e como recurso eles os encharcam com
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 17 de abril de 1943, Ano XVI, n.º 35, p.4.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 5 de junho de 1943, Ano XVI, n.º 40, p.1.
115
Pedaço de cana comercializado em feiras livres e logradouros públicos, muito popular em cidades do Brasil.
113
114
60
água menos limpa para assim emprestar, aos roletes anti-higiênicos, melhor
aparência.116
A imprensa local não poupava esforços para demarcar a insalubridade daqueles que
utilizavam a praça. Em outro número, o mesmo jornal ainda informava que a situação não
havia sido resolvida e que “os indigitados transgressores dos princípios da higiene, de poucos
dias para cá, voltaram a fazer “bagaceira”, dando ao visitante que chega, quer pela via férrea,
quer pelo transporte rodoviário, um péssimo aspecto de imundície e de desrespeito ao asseio
público.”117 Os roletes de que tratam os veículos de comunicação são pedaços de cana-deaçúcar vendidos em pequenas varetas de madeira, muito comuns em eventos e feiras livres
nesse período. Após consumirem a cana, as pessoas costumavam descartar o bagaço, que,
segundo o jornal, era jogado ao chão.
Apesar da implicância com os vendedores de rolete, há sinais de que as críticas
relacionadas aos desrespeitos à higiene pública se respaldavam na prática de diversão das
camadas populares na praça da Estação, condenadas pelos poderes públicos. Não era apenas o
“rolete borrifado” vendido na praça, denunciado por O Intransigente, que seria foco de
doenças, que incomodava as autoridades municipais e a imprensa. Aos poucos os jornais iam
detalhando os problemas que provavelmente preocupavam de fato a vigilância pública. Agora
chamado de “Curral da Praça João Pessoa”, a imprensa pedia a retirada daquele ponto, da sala
de visitas de Itabuna, informando que estava
Funcionando escandalosamente, às barbas da polícia, a mais desenfreada
jogatina, a batota mais vergonhosa, de par com barracas sórdidas onde o
álcool era distribuído sem qualquer limite [...] o indecoroso “curral” da praça
João Pessoa dá a impressão aos que aqui chegam, logo as portas da cidade, de
um chiqueiro ou curral grotesco. 118
A venda de bebidas alcoólicas e a existência de jogo podem ser consideradas os
problemas que possivelmente motivavam as críticas por parte dos segmentos hegemônicos de
Itabuna. A existência de bebida e de jogos ilegais na praça era utilizada como justificativas
para legitimar a ação do poder público e da imprensa no objetivo de acabar com o “curral da
Praça João Pessoa”. No entanto, o que parece mais evidente é que os segmentos hegemônicos
se incomodavam com as ações e a estabilidade dos trabalhadores em um dos locais mais
centrais da cidade. A Praça, tomada como espaço público sob a administração dos poderes
municipais, não deveria ser um espaço de agência popular na ótica da imprensa local. Por
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 24 de dezembro de 1943, Ano XVII, n.º 17, p.4.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 30 de dezembro de 1943, Ano XVII, n.º 18, p.4.
118
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 18 de março de 1944, Ano XVII, n.º 29, p.1.
116
117
61
isso, ressaltavam os hábitos da população pobre enquanto aspectos negativos, isto é, hábitos
anti-higiênicos. Isso se tornava uma medida para sedimentar ideologicamente à intervenção
política daquele espaço contra os populares. Mas, ao contrário do que imaginam os letrados
dos periódicos, os trabalhadores pareciam não estar dispostos a se retirar daquela localidade.
Em abril de 1944, novamente encontramos uma queixa de O Intransigente. O
periódico voltava a cobrar dos poderes públicos uma ação enérgica para acabar com a
ocupação daquele espaço. A matéria informava que já havia recebido a solidariedade de
“pessoas ilustres” de Itabuna, pessoas que haviam se sensibilizado com a campanha contra a
manutenção do “curral” em uma das portas de entrada do município. Para a gazeta local, a
Praça João Pessoa deveria estar a espera de “soberbo monumento” em detrimento da
permanência daquele “esquisito parque. Sempre é mais digno a praça vazia do que
“empalhada.”119 Essa posição do veículo de imprensa sugere que o problema, antes de ser de
higiene, era uma questão social, o que oferecia motivo para que os setores dominantes
preferissem a construção de um monumento à presença dos populares naquele logradouro. A
preocupação dos jornalistas aumentava com a possível ação dos líderes do jogo do bicho para
se preservar na “sala de visitas” da cidade, conforme especulava a continuação da nota,
dizendo que “Surgem boatos de que interessados em jogatina dão os primeiros passos para a
permanência do curral onde está, mas confiamos nos poderes públicos que anularão esta
absurda pretensão de tais “beneméritos” de Itabuna.”120
Essa disputa de interesses entre os trabalhadores da Praça João Pessoa e os setores
hegemônicos da cidade nos oferecem uma certa medida das tensões socais que se delinearam
em Itabuna durante os anos de 1940. É um indicativo de que as forças sociais existentes na
cidade buscavam preservar seus interesses, encenando um teatro de combate cujo choque se
dava no nível da cultura. Tratava-se de uma divergência de comportamentos e de padrões que
se pensava para Itabuna advinda de classes antagônicas da sociedade, em que a noção de
Higiene formulada pelo poder público era o instrumento de aferição. Assim, as
municipalidades criavam fundamentação para intervir no espaço urbano, criar seus
mecanismos de repressão e identificar os grupos e os personagens que fossem tomados como
responsáveis pelos focos de insalubridade, relacionados às “classes perigosas”.121 A higiene,
enquanto uma ideologia, foi um conjunto de idéias construídas pelos segmentos hegemônicos
para atuar com mais intensidade sobre os grupos populares, especialmente nos primeiros anos
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de abril de 1944, Ano XVII, n.º 32, p.1.
Idem, Idem.
121
Ver CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das
Letras, 1996. pp. 29-55.
119
120
62
da República, cujas características recaíam sobre a higienização das habitações e dos setores
subalternos que integravam o espaço urbano. Em outras palavras, entendo a padronização da
higiene como um aparato para se pensar a questão social e suas disputas em Itabuna.
Se de um lado do cenário os poderes públicos criavam medidas legais para justificar
sua ação, do outro as pessoas comuns não se submetiam inteiramente diante às ações
administrativas e hegemônicas. O interessante, nestes casos, é perceber até que ponto os
trabalhadores desafiaram essa nova lógica urbana que se pensava para Itabuna, criando outros
sentidos de urbanidade para eles próprios. De um lugar que inicialmente foi ocupado por uma
“Feira Chic”, com o apoio das classes hegemônicas, os populares redimensionaram o uso da
Praça João Pessoa, com o objetivo de tornar o lócus de sua atuação e de seu agir histórico.
Marcus Carvalho sugere que na defesa de seus interesses, os trabalhadores pobres urbanos
escapam da dominação e das imposições do status quo.122 Na tentativa de regulamentar os
padrões de higiene locais, os setores administrativos sabiam que precisavam lidar com as
expectativas da população, com os costumes em comum que a população trazia consigo a
partir das tradições que precederam a implementação dessas novas regras de urbanidade.
Refletir de que forma os trabalhadores de Itabuna mexeram com as estruturas do poder
político local é muito pertinente para uma região que possui sua historiografia fundada na
ação, quase que mitológica, dos coronéis do cacau. Para os integrantes dessa historiografia,
toda ação histórica estava entregue à força que os latifundiários da cacauicultura imprimiam
sobre a sociedade, o que ofuscava outra potência social, a agência dos trabalhadores pobres
que desafiavam o segmento hegemônico da região sul da Bahia. Se a força da classe
dominante fosse realmente avassaladora como propunham os historiadores da zona do cacau
das décadas de 1980 e 1990, talvez os trabalhadores da Praça João Pessoa não tivessem
resistido às investidas da imprensa e do departamento de higiene até o final de 1944. Lá
estavam eles novamente ocupando um espaço de escrita da elite local, que ao criticar os
hábitos dos populares, terminava por registrar sua agência.
Não faríamos campanha pelo desaparecimento do parque instalado à Praça
João Pessoa, se o mesmo estivesse funcionando, proporcionando ao público
divertimentos. Mas, já que se dá o contrário, somos forçados a conceder à
Prefeitura, a fim de que se manifeste a respeito do <<cercado>> em apreço,
que sem utilidade alguma, vem ocupando aquela praça, no coração da
cidade, que bem poderia ser aproveitada, remodelada e entregue ao público,
como mais um recanto de sossego.123
122
Carvalho, Marcus de, “Os Nomes da revolução. Lideranças populares na Insurreição Praieira, Recife, 18481849”. In: Revista brasileira de história, no 45, 2003, p. 209.
123
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 16 de dezembro de 1944, Ano XVIII, n.º15, p.1
63
O cercado, como era denominado o espaço ocupado pelos ambulantes ao redor da
Praça, ainda estava lá, afrontando os olhares hegemônicos da imprensa e do poder municipal.
Por ser visto como lugar de perigo, do periódico surgia às demandas para que aquele
logradouro se tornasse “um recanto de sossego”, isto é, um lugar ocupado pelos interesses da
elite local. A permanência daqueles indivíduos foi ainda mais longe. Em 1948, a Câmara de
Itabuna, depois de um longo tempo inoperante por conta do Estado Novo, se deparava com a
presença dos barraqueiros no mesmo local. Desta vez, já com a vigilância sanitária sob o
encargo do estado da Bahia, o vereador A. Rayol dos Santos cobrava daquele setor
“providências necessárias, no sentido de serem removidas, imediatamente, as barracas
existentes na praça do Futuro Mercado Municipal, por constituírem elas, sob todos os pontos
de vista, uma regressão nas conquistas de adiantamento que tem feito jus a cidade de
Itabuna.”124 Como se pode ver, a ação do setores públicos de higiene se via limitada pelos
outros usos que os trabalhadores urbanos pobres faziam de Itabuna, em um teatro de forças
sociais antagônicas de luta constante.
Guarda Municipal
Em 16 de junho de 1933, durante o período de lançamento das Décimas Urbanas, a
Guarda Municipal de Itabuna resolveu anunciar no Jornal Oficial de Itabuna uma medida de
organização do trânsito no centro da cidade. Como Inspetor da Guarda Municipal, João
Ribeiro de Moraes alertava aos munícipes que
De ordem do Sr. Dr. Prefeito deste município, fica expressamente proibido
depositar carroças e outros veículos, a noite, nas ruas desta cidade,
marcando-se o prazo de 3 dias a contar desta, para retirada de todos sob
pena de apreensão e multa ao proprietário, de acordo com o Código de
Posturas em vigor. 125
Tratava-se de mais uma advertência emitida pelos poderes públicos, por meio de um
dos seus instrumentos de controle – a Guarda Municipal. No entanto, este breve aviso
publicado discretamente na imprensa oficial é um sinal dos propósitos e dos meios utilizados
para tentar criar um padrão de comportamento e de organização na cidade no ano de 1933. A
Guarda Municipal foi inaugurada para se tornar um dos principais elementos dentro do
sistema de fiscalização implantado em Itabuna. A principal referência desta polícia de
APMIJD. Livro de atas da Câmara Municipal de Itabuna 1948. Ata da vigésima sexta reunião ordinária da
Câmara Municipal de Itabuna, 9 de julho de 1948, s/p. Documento também publicado no Jornal Oficial do
Município de Itabuna, 10 de julho de 1948, Ano XVI, n.º87, p.3.
125
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 16 de junho de 1933, Ano II,nº 112, p.6.
124
64
costumes seria o Código de Posturas publicado e apresentado aos habitantes no mesmo ano de
1933. São esses dois elementos, que constituíram parte da política urbana adotada para os
itabunenses, que poderão nos oferecer a medida com que os trabalhadores se relacionavam
com as ações da ordem dominante estabelecida.
Em 2 de abril de 1933, em inauguração solene que reunia as tradicionais figuras
políticas, além da presença de estudantes e de associações do município, foi apresentada a
Guarda Municipal de Itabuna. Acerca dos motivos que levaram à criação desta instituição,
Alpoim justificava a intenção de dotar a cidade com medidas de segurança que ratificariam o
estado de paz da sociedade itabunense.
O Sr. Dr. Claudionor Alpoim, Prefeito Municipal, disse dos motivos que o
levaram à criação daquela Guarda, em que todos terão de ver mais um fator
de segurança, ordem e engrandecimento do município.
Esclareceu que esse melhoramento foi organizado, sem maiores ônus para
os cofres públicos e que da ação da profícua Guarda é de se esperar grandes
resultados, não só no que concerne a ordem pública e respeito à moral,
como na observância das posturas municipais e, finalmente, também na
arrecadação das rendas.126
A Guarda Municipal parecia ser uma instituição há muito desejada pelo poder político.
Encaixando-se como um dos melhoramentos urbanos realizados pela administração pública,
as atribuições dos soldados seriam, de uma maneira geral, em manter a segurança e a ordem
com vistas ao desenvolvimento da cidade. Do ponto de vista filosófico, reforçava-se a crença
positivista de que somente com o estabelecimento da “ordem” seria possível alcançar o
desenvolvimento e o “progresso”. Outra função da nova segurança municipal seria a de
preservar a moralidade no seio da sociedade itabunense, atuando de forma a policiar os
costumes de origem popular. Estão claro que essas condições de ordem e os aspectos morais
impostos para a sociedade eram criados pelos segmentos hegemônicos e dispostos aos
trabalhadores, ainda que de forma pouco democrática. O instrumento que sintetizaria todos os
itens citados acima deveria ser o Código de Posturas de Itabuna, o que daria o peso da medida
para julgar o comportamento e as ações dos habitantes.
A estrutura da Guarda Municipal de Itabuna foi montada a partir de um inspetor geral,
responsável maior pela atuação dos guardas na cidade; quatro guardas de primeira classe; e
vinte guardas de segunda classe, que foram nomeados através de concurso pela prefeitura. Sua
sede, situada à Rua 23 de Novembro, era considerada pequena, mas suficiente para atender à
demanda local, como informava o órgão noticioso do governo. Segundo informações do
126
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 8 de abril de 1933, Ano II, n.º 102, p.16.
65
governo, o policiamento e a fiscalização eram distribuídos por seis postos, cobertos por duas
turmas de guardas, que se revesam, trabalhando seis horas por dia. 127 Em nota reproduzida do
jornal ilheense Diário da Tarde, o Jornal Oficial comparava a nova instituição às das capitais
do país, que tinha por objetivo “zelar pelo respeito às leis municipais e auxiliar a ação da
polícia na manutenção da ordem, impedindo a prática de atos que possam ferir o progresso e a
segurança.”128 Isso sugere que, em última instância, para aqueles que ferissem “o progresso e
a segurança”, isto é, não concordassem com a política urbana adotada pelas municipalidades e
apresentassem maior resistência, haveria sempre o recurso da contenção mais efetiva da
Guarda Municipal.
As condições para se tornar um guarda municipal eram bastante rígidas. Consultando
o Regimento Interno desta instituição, observa-se que no item relacionado aos Deveres e
Direitos dos membros da corporação é chamada atenção para o fato de os pretendentes às
vagas precisarem “primar pela sua disciplina irrepreensível, extrema dedicação ao serviço, a
urbanidade, zelo e solicitude.”129 Para ser mais específico, uma das premissas defendidas no
regimento dizia respeito à proibição da entrada dos soldados em “cabarets” e casa de jogos (a
menos que estivessem a serviço), da prática de agiotagem ou venda de rifas entre os membros
da corporação, ou ser remunerado pelos serviços prestados pela Guarda Municipal.
Se as recomendações a serem seguidas pelos soldados já eram rígidas, não seria
diferente com relação às competências a serem desenvolvidas pelos membros da corporação
nas ruas da cidade. O regimento deixava claro o que e quem deveria ser detido e
encaminhando à autoridade municipal:
a) Todo aquele que for encontrado praticando algum crime, ou em fuga,
perseguido pelo clamor público, podendo para este fim sair do seu posto;
c)Todo aquele que, mesmo da corporação, for encontrado promovendo
desordem ou em estado de embriaguez;
d) Todo aquele que ocasionar desastre em via pública;
e) Os transgressores do Código de Posturas que se insubordinarem contra a
sua autoridade;
h) As pessoas que, vestidas de modo ofensivo à moral e aos bons costumes,
transitarem pelas ruas e praças;
i) Os vadios, turbulentos, ébrios;
j) Os que forem encontrados a danificar árvores, jardins, edifícios e obras
públicas ou particulares;130
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 21 de agosto de 1937, Ano VII, n.º 333, p.2.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 29 de abril de 1933, Ano II, n.º 106, p.10.
129
APMIJD. Regimento da Guarda Municipal de Itabuna. Ato 178 de 30 de Dezembro de 1932. Typografia.
Itabuna: D’A Época, 1933.
130
Idem, Ibidem.
127
128
66
Diante do exposto acima, percebe-se que a Guarda Municipal pretendia aparecer no
cenário local para ajudar a polícia militar a manter a ordem e a segurança de Itabuna, coibindo
as práticas que eram consideradas ofensivas aos padrões estipulados pela prefeitura para a
cidade. Entre as décadas de 1930 e 1940, foi um dos principais instrumentos de coerção dos
costumes e dos comportamentos da municipalidade na busca por uma cidade “harmônica”
desejada pela administração local. Essas características eram comuns a outras instituições de
policiamento urbano existente no país desde o século XIX. Segundo o historiador Thomas
Holloway, no exercício e na manutenção do poder, as guardas urbanas do Brasil foram
pensadas tendo por referência o modelo inglês de fiscalização ostensiva realizada por agentes
“moralizados” e que reprimisse as condutas do consideradas ofensivas à ordem pública.131 A
atuação dos guardas pode indicar também o caráter relacionamento dos trabalhadores pobres
urbanos com a experiência de padronização dos valores e da moral pública instituída pelos
poder público.
Partindo da lei como elemento de toque para se classificar o que é moral ou imoral, é
importante refletir sobre o que George Duby quando adverte o historiador que lida com esse
tipo de relação. Segundo Duby, o instrumento jurídico ou moral criado pelos homens constitui
um elemento de uma construção ideológica edificada para justificar certas ações repressoras e
para, numa certa medida, mascará-la, sugerindo que a existência de toda regra é precedida
pela sua transgressão, sendo exatamente nesse intervalo que o historiador pode buscar a
tensão que envolve os diversos setores da sociedade.132
Seguindo as advertências anotadas por Duby, pode-se inferir que tanto o Regimento
Interno da Guarda Municipal como o Código de Posturas Municipais criados para o
município de Itabuna buscavam controlar comportamentos e costumes que já eram presentes
dentro da comunidade local, mas que passaram a ser questionados pelos poderes municipais
em favor da padronização de condutas criadas sob a justificativa de assegurar a “ordem” e
alcançar o “progresso” moral diante do discurso de urbanização. Em janeiro de 1942, numa
HOLLOWAY, Thomas H. A polícia do Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX.
TRad. Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997. O autor aponta
que a justificativa para a criação da Guarda Urbana do Rio de Janeiro invocava “o policeman inglês como
modelo, ele esperava, ‘os notórios resultados que algumas das cidades mais populosas da Europa têm colhido da
instituição de agentes moralizados, encarregados de percorrer continuamente espaço determinado e circunscrito.
p.216-217.
132
DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios. Trad. Jônata Batista Neto. São
Paulo: Companhia das Letras, 1989. O autor trata dessa questão ao estudar os códigos eclesiásticos que
permearam as relações entre homens e mulheres durante a Idade Média, especialmente acerca do amor cortês
que fundamentava o matrimônio na sociedade medieval. pp.12-13
131
67
fala para os membros da corporação, o comandante geral João Moraes acentuava as
dificuldades enfrentadas pelo que chamava de “espíritos malignos”. Dizia que
Não deixa de surgir das trevas, meia dúzia de espíritos maléficos, tentando
implantar entre nós a desunião; mas, felizmente, sempre têm sido cortadas as
suas covardes investidas, pois eles não resistem a luz que clareia o cérebro
dos bem intencionados, assim como a ave agorenta não resiste a luz do dia!133
As queixas de Moraes não eram involuntárias. Pesquisando nos relatórios da Guarda
Municipal, freqüentemente publicados no Jornal Oficial, encontramos várias multas e
punições aplicadas à membros da corporação por transgredir o regimento da instituição. Este
foi o caso de Inocêncio Ferreira Almeida que teve seus vencimentos cortados em três dias
pelo Inspetor João Moraes por ter infringido o parágrafo 25 do artigo 45, que versa sobre o
levantamento de falsas acusações. Em relatório do mês de maio, podemos encontrar duas
multas ao guarda Nelvy Amado, sendo ambas relacionadas ao provocamento de discussões
em via pública, o que fez com que tivesse seus vencimentos cortados em quatro dias.134 Em
20 de julho de 1933, o guarda de segunda classe, Adail Argentino de Alburqueque, foi
multado em dois dias de trabalho por ter se ausentado do posto de serviço, tendo sido
encontrado na Pensão “Racho Fundo”. No mesmo relatório, foi suspenso por dez dias da
corporação, Antonio Pinheiro Dantas, por ter se portado de modo inconveniente na Inspetoria
por ocasião do pagamento dos vencimentos.135 Em outra oportunidade, os guardas Adelino
Oliveira de Melo e Dado Sinval Lago levaram uma pesada punição de cinco e oito dias,
respectivamente, por terem sido flagrados em cabarets, contrariando um dos requisitos da
corporação. No mesmo relatório, encontramos a expulsão do soldado n.º 14, Joaquim José de
Souza, do posto de guarda efetivo em face do seu vício em bebidas alcoólicas.136 Essas
ultimas punições estão relacionadas à presença em bordéis e à embriaguez, o que as torna
diferentes das outras anteriores. Quando da publicação, as primeiras apresentavam o motivo
da punição descrito por extenso e o artigo infringido, talvez por se tratar de causas menos
constrangedoras à corporação. Já as últimas, por se tratarem de comportamentos que eram
combatidos com maior força pela Guarda Municipal, não tiveram as circunstâncias que
levaram à punição descrita explicitamente, sendo apresentado apenas o parágrafo do
Regimento Interno da Guarda Municipal que indicava o motivo do castigo. Medidas como
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 6 de janeiro de 1942, Ano VIII, n. 553. p.2.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 1 de maio de 1933, Ano II, n.º 108. p.6.
135
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 5 de agosto de 1935, Ano V, n.º229. p.6.
136
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 24 de agosto de 1935, Ano V, n.º 231. p.8.
133
134
68
estas poderiam ser tomadas para evitar que as faltas mais graves dos soldados (envolvimento
com prostituição, embriaguez e jogo) chegassem ao conhecimento da população.
Os exemplos citados acima mostram a dinâmica das relações sociais que envolviam os
interesses do poder público e o comportamento dos trabalhadores. Mostram que antes de se
tornarem a polícia de costumes e hábitos de Itabuna, seus membros se relacionavam com os
subalternos. Ao mesmo tempo em que tentavam evitar a ocorrência de hábitos considerados
estranhos e inoportunos pela administração pública, os guardas municipais necessitaram
também afrontar seus próprios costumes com a disciplina instituída pela corporação. Isso, de
alguma forma, já apresenta os antagonismos de interesses que estavam em jogo na cidade
entre as décadas de 1930 e 1940, traduzidos, neste caso, pela tensão existente entre os
preceitos da Guarda Municipal e os hábitos populares de seus membros. A historiadora
Claúdia Mauch destaca que os agentes da segurança deveriam ter em mente a
responsabilidade de sua “missão civilizadora”, sendo cobrada deles uma postura exemplar de
moralidade e escrupulosa nos seus deveres cívicos e privados.137 No entanto, em algumas
oportunidades, essa expectativa de que fala a historiadora era contrariada no que se refere à
experiência dos soldados da força de Itabuna, apontando que nem sempre a força repressiva se
impõe diante das tradições das pessoas pobres.
Em outras ocasiões, os soldados da força municipal também davam demonstrações da
negação dos requisitos de civilidade defendidos pelo regimento da instituição. Em julho de
1933, o guarda n.º 17, Edmundo Jorge dos Santos, foi multado em dois dias de vencimento
por ter infringido o artigo 45 ao usar de violência contra um menor em presença desta
inspetoria. Da mesma forma, o guarda de segunda classe, Antonio Ramos de Souza, por ter
usado de força excessiva na punição ao menor Antônio dos Santos Lima que se encontrava
dirigindo uma tropa de animais pelas vias urbanas do perímetro central. Atitudes como essas
terminaram por delimitar as ações empreendidas pela guarda mediante o uso da violência na
aplicação da “civilidade” em Itabuna.
138
Os abusos empreendidos pelos membros da
corporação chegavam a incomodar alguns setores do comércio local. Em 17 de maio de 1933,
Benigno Valverde Martins, administrador do Elite Cinema, enviou ofício para que o prefeito
tomasse medidas no sentido de repreender o comandante João Moraes em face dos excessos
cometidos por soldados da Guarda. Naquela oportunidade, o gerente do cinema pediu que,
MAUCH, Claúdia. Ordem Pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na
década de 1890. (Dissertação de mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 1992. Partindo de uma visão foucaultiana da
ação policial em Porto Alegre do século XIX, a autora busca compreender o olhar vigilante dos policiais através
das condutas e dos comportamentos impostos a estes trabalhadores.
138
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 24 de junho de 1933, Ano II, n.º 114. p.8; Jornal
Oficial do Município de Itabuna, sábado, 8 de julho de 1933, Ano II, n.º 116. p.4.
137
69
“para melhor regularidade do serviço e coibir abusos por parte dos guardas, para o
policiamento interno deste estabelecimento [...] foi terminantemente proibida a entrada
gratuita de guardas no Elite Cinema.”139
Os jornais também davam conta de membros da Guarda Municipal que utilizava de
violência excessiva em abordagens à estabelecimentos comerciais. Em 20 de fevereiro de
1943, O Intransigente noticiava que o soldado “Carlos Góes Coelho, fechou o bar de Ricardo
de tal, à rua do Quartel Velho, dando muitos tiros que atingiram uma geladeira, enquanto
<<espirrava>> gente por onde podia.” A notícia ainda informava que algumas pessoas se
lançaram contra o referido guarda, tendo evitado que o mesmo ferisse ou matasse alguém. 140
Se, internamente, a Guarda Municipal já enfrentava a tensão existente entre seus
membros de corporação, é possível imaginar os conflitos que deveriam aparecer entre os
guardas, enquanto representante dos interesses das municipalidades, no seu relacionamento
com os grupos populares. Pode-se sentir um pouco desse clima de disputa na advertência feita
pelo secretário interino de obras públicas, José Muniz Nascimento, publicada no dia 23 de
janeiro de 1938, que tinha o seguinte teor:
Ainda, no intuito de evitar aborrecimentos entre a Fiscalização e o Povo,
chamamos a atenção para as exigências da lei e sobretudo do Código de
Posturas, tendo em vista os avisos de 23 e 28 de dezembro de 1937,
assinado pelo inspetor da Guarda Municipal João Moraes. Esta prefeitura
não quer indispor-se com os seus munícipes, porém não pode tolerar o
relaxamento das leis. 141
Com o objetivo de alertar os munícipes para a existência de regras e de normas que
regiam a cidade de Itabuna, o secretário José Muniz de Nascimento deixava escapar as
difíceis relações entre os poderes instituídos e os trabalhadores. Não eram incomuns os alertas
aos problemas que preocupavam as autoridades municipais a partir do Jornal Oficial e,
quando fosse necessário, do A Época. Os avisos da fiscalização, que estava sob
responsabilidade da citada guarda, transitavam entre a proibição de andar de bicicletas em
praças, nas ruas, até apreensão de animais, principalmente cachorros, que estivessem à solta
na cidade. No entanto, nessa situação de contradição que envolvia a Guarda Municipal e os
habitantes de Itabuna, o peso das medidas para a resolução dos casos conflituosos era o
Código de Posturas. Como se pode observar na citação acima, a Prefeitura não parecia
inclinada a “relaxar as leis” nos casos de contenda com a população.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 27 de maio de 1933, Ano II, n.º 114. p.8
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 20 de fevereiro de 1943, Ano XVI, n.º 25. p.1.
141
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 23 de janeiro de 1938, Ano VII, n.º 231.
139
140
70
Se numa parte do cenário de Itabuna a Guarda Municipal não parecia relaxar diante
das infrações dos munícipes, na outra os trabalhadores também não demonstravam estar
conformados e satisfeitos com as regras do jogo urbano local. Não há dúvidas quanto ao fato
de que a Guarda e as posturas municipais tentavam de criar uma nova organização jurídica de
saneamento das disputas sociais existentes na cidade, planejado pelos setores dominantes.
Mas sua aparência de neutralidade e de imparcialidade era desmentida pelos conflitos
registrados nos relatórios sobre a atuação dos soldados nas ruas e praças de Itabuna. Em 1936,
por exemplo, Olegário Alves dos Santos e Francisco Ribeiro da Silva, ambos carregadores,
eram acusados por Manoel Fernandes de Araújo de ter desobedecido às ordens de recolher
seus instrumentos de trabalho da calçada e, posteriormente, desacatado à autoridade pública
em via urbana. Em junho de 1938, a Guarda catalogou um número acima da média de
desordens e desacatos dos munícipes aos seus membros. Ao todo foram cinco casos, dentre os
quais, o mais representativo das tensões urbanas foi o de Paulo Fagundes de Oliveira que,
além de usar medidas de alumínios adulteradas na Feira Pública, ainda promoveu desordens e
desacato contra o guarda José Messias Vianna. No mesmo relatório, o guarda Manoel
Fernandes de Araújo voltava a registrar um caso de desacato contra um carregador.142
Os conflitos entre a Guarda Municipal e os trabalhadores (incluindo também os
membros da corporação) sugerem as diferenças de interesses existentes na cidade em
transformação. Chalhoub sugere que esses choques aconteciam por conta da consciência dos
trabalhadores em relação à prática das instituições de segurança. Para ele, havia uma
desconfiança dos grupos populares em relação à polícia e à lei na aplicação da ordem social.
Assim, o autor carioca defende que “esses exemplos microscópicos de insubmissão em
relação à autoridade constituída parecem se inserir numa tradição já relativamente longa de
protesto popular entre os homens livres pobres da cidade”.143 Em posição semelhante,
Thompson sugere que as leis são criadas como medidas do interesse do governo, respondendo
aos anseios dos próprios defensores políticos. As normas jurídicas surgiam como uma nova
maneira de controle e de disciplina de classe sintonizado com as transformações sociais e
econômicas do mundo moderno.144
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 17 de outubro de 1936, Ano VI, n.º 290;
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 2 de julho de 1938, Ano VII, n.º 375. p.6.
143
CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle
Époque. 2ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001. p.296.
144
THOMPSON, E.P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 1987. O autor defende que a criação da Lei Negra atendeu às necessidades de adequar o código jurídico
britânico ao controle e disciplina estipulados pela classe dominante e que a Lei Negra reverteu a essência da
punição do delito contra o homem para o delito contra a propriedade. p.281 e 282.
142
71
A contribuição destes autores que pensaram realidades tão distintas de Itabuna serve
para que se possa refletir sobre o sentido dessas demonstrações de rebeldia. Os
enfrentamentos entre a Guarda Municipal e os trabalhadores são reflexos do fato de os
habitantes não se submeteram tão facilmente às imposições do poder público. Talvez aqueles
que desacatavam as autoridades públicas locais não enxergassem na prática dos poderes
instituídos uma forma de mediar seus problemas sociais, mas sim, obstáculos aos seus
interesses e aos modos de vida da classe trabalhadora. Assim, partindo desse entendimento, as
táticas elaboradas pelas pessoas pobres e livres de Itabuna caminhavam no sentido de burlar
as determinações da ordem estabelecida, procurando meios para que pudessem preservar as
tradições e os costumes que tinham em comum. No entanto, quase sempre, essas medidas
eram entendidas pelas autoridades como condutas desviantes que deveriam ser punidas e
eliminadas numa cidade que buscava um padrão de urbanidade.
Quanto mais esses comportamentos fossem freqüentes, mais fortes e intensas seriam
as medidas do poder público. Não é por acaso que diante do elevado número de desordens e
de desacato registrados pelos membros da corporação, João Moraes, comandante da força
pública, publicasse no Jornal Oficial uma série de leis que deveriam ser obedecidas em 1938.
Entre vários pontos relativos a hábitos, higiene e segurança, destaca-se aquela que se referia à
importância da moral e da obediência aos princípios de urbanidade de Itabuna, em que dizia:
“Tudo que não é verdadeira moral é imoralidade [...] É expressamente proibido a quem quer
que seja proferir palavras ou atos obscenos ofensivos à moral ou bons costumes, em qualquer
parte. [...] Governar sem a contribuição espontânea do povo não é fácil.”145
Em 1942, o mesmo João Moraes aparecia ainda mais ufanista quanto ao papel da
Guarda Municipal. Talvez influenciado pela entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o
comandante oferecia ares patrióticos à função cumprida por seus subordinados. Dizia que os
soldados da Guarda deveriam ajudar no policiamento da cidade, auxiliando ao delegado local,
devendo agir com serenidade e prudência. Mas não se esquecia de dizer que sua instituição
não toleraria qualquer movimento subversivo em defesa do “povo, e se parte desse povo,
confundir patriotismo com anarquia devemos voluntariamente [...] repelir o inimigo exterior e
manter a ordem interior.” 146
Ao lado da polícia, a Guarda Municipal atuava fortemente na repressão ao jogo do
bicho. Entre abril e maio de 1938, ocorreram diversas apreensões de materiais relacionados a
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 30 de julho de 1938, Ano VII, n.º 379.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 19 de agosto de 1942, Ano XI, s;nº, s/p.
(documento deteriorado)
145
146
72
jogatina. Isso porque o Interventor do Estado, Landulfo Alves, e o secretário da Prefeitura,
Nathan Coutinho, trocaram telegramas acerca da importância de se combater os jogos ilícitos.
Negando a existência de tal transgressão em Itabuna, a Prefeitura prometia se manter vigilante
quanto aos jogadores, afirmando que “Município Itabuna onde jamais entrou malfadado vício
confia esclarecido governo V. Exc.ª manter sua tradição hipotecando inteiro apoio todas as
medidas visem o saneamento de nosso Estado.”147 Firmando esse propósito, possivelmente o
executivo tenha pressionado a Guarda a reforçar sua atuação contra a jogatina. Somente no
mês de maio, foram cinco apreensões. Destaca-se a diligência efetuada por Argemiro de
Oliveira, que encontrou sob posse de Adelino Soares da Silva vários talões de jogo do bicho e
a quantia de 48$000 (quarenta e oito mil réis) decorrente de seus clientes. Além de oferecer
ajuda para a Polícia Militar, a Guarda Municipal também participava efetivamente da
fiscalização no município.148
Eram os soldados da Guarda Municipal os responsáveis pela fiscalização das obras
nas vias urbanas e pela distribuição e manutenção das licenças de trabalhos concedidas aos
ambulantes de Itabuna. Também atuava junto com a Higiene Pública no controle dos preços,
dos pesos e das medidas nas feiras livres. Em 27 de julho de 1936, Antonio Cordeiro de
Miranda havia determinado ao comandante Moraes que fosse realizada a prisão de cinco
vendedores de leite sob acusação de falsificação do referido líquido. No dia seguinte, os
soldados apresentavam junto ao delegado de polícia a captura dos ambulantes. Em 27 de
janeiro de 1940, João Ramos Morinho apreendeu, sob a ordem da diretoria de higiene, nove
quilos de peixe, por estarem adulterados de Uziel Neves.149
Como se pode observar, não era fácil constituir uma vigilância para Itabuna. A ação da
Guarda Municipal não era garantia de que os trabalhadores se submeteriam facilmente às
regras do poder público. A própria criação de uma força local já indicava que as instituições
de repressão estaduais não conseguiam suprir a necessidade de ordem ensejada pelos
segmentos hegemônicos da cidade. O código de posturas de Itabuna era a principal base
jurídica que os soldados utilizavam para mediar as relações com os munícipes. Nos próximos
capítulos serão observados com mais profundidade que as posturas eram um conjunto de leis
urbanas destinadas a padronizar o comportamento e os costumes existentes na cidade. Apesar
de duas versões, a do ano de 1908 e a de 1924, foi o Código de Posturas de 1933 que melhor
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 23 de abril de 1938, Ano VII, n.º 365. p.6.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 7 de maio de 1938, Ano VII, n.º 367. p.6.
149
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 15 de agosto de 1936, Ano VI, n.º 281; Jornal
Oficial do Município de Itabuna, sábado, 10 de fevereiro de 1940, Ano IX, n.º 455. p.10.
147
148
73
delineou os interesses da classe dominante no sentido de criar um novo paradigma de hábitos,
baseado nos ideais de ordem, higiene e progresso.
Apesar de todo esse poder pretendido pela administração pública para a cidade de
Itabuna, mesmo com a ação dos departamentos de Higiene e da Guarda Municipal, os sujeitos
urbanos e pobres pareciam não se sentir seguros das intenções dos setores hegemônicos. Na
tentativa de engendrar uma sociedade “ordenada” e “civilizada”, as municipalidades não
conseguiram esconder os objetivos de coibir práticas populares e de controlar a ação dos
habitantes trabalhadores. Os alvos das diligências dos instrumentos políticos eram a
eliminação de qualquer atividade que desequilibrasse a ordem estabelecida. Com isso, surgiu
o jogo de tensão que colocava no mesmo cenário, mas em pólos opostos, o poder público e o
poder popular dos trabalhadores. Poderes e contra-poderes em uma cidade. Dessas
descontinuidades históricas, evidentes no agir, nos discursos das autoridades municipais e nas
vontades rebeldes, como afirma Certeau150, foi se erguendo a sociedade itabunense.
Apareceram assim os sujeitos históricos “de baixo” para reafirmar suas posições e negar a
força “preponderante” dos coronéis, e descobrir as diferenças e as desigualdades sociais.
Apud CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. TRad. Patrícia Chittoni
Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. p. 161. Para Chartier, Certeau produz uma noção de
história onde a coerência pode ser encontrada nos “desvios”, que na verdade não são desvios, mas sim, formas
elucidar a relação mantida entre o discurso hegemônico e o corpo social que o sustenta e o questiona ao mesmo
tempo.
150
74
CAPÍTULO 2
A CIDADE E O PLANO
Em 22 de junho de 1937, o A Época noticiava a visita do engenheiro Saturnino de
Brito Filho à Itabuna com o propósito de fiscalizar as obras de urbanização em andamento.
Classificado como um gentleman pela reportagem que tomava boa parte da primeira página
daquela edição, o urbanista falou sobre a importância das reformas urbanas projetadas para a
cidade. Para ele, a remodelação do espaço urbano era uma medida acertada para promover a
organização de Itabuna, visto que “o saneamento é uma etapa decisiva nesse evolver ordenado
das cidades. E é esse melhoramento notável que os itabunenses ora vão ter”.151 No entanto,
para que isso pudesse de fato acontecer, Brito Filho não perdia de vista a necessidade de
convencer a população da colaboração com o plano criado para reordenar o espaço citadino.
Suas preocupações soaram mais evidentes quando ressaltou que “Todos hão de compreender
que da subordinação do interesse pessoal ao interesse coletivo que o plano representa, resulta
um acréscimo do próprio interesse individual, pela melhoria geral que daí resulta.”152
Apesar da suposta inquietação de Brito Filho diante do comportamento popular em
relação às novas medidas urbanas pensadas para Itabuna, o plano de urbanização não foi
suficiente para evitar as diferenças de interesses entre o poder público e os trabalhadores.
Mesmo com a justificativa de que as melhorias decorrentes das reformas urbanas
responderiam aos anseios da coletividade e com os argumentos técnico-científicos de que o
futuro da cidade dependeria do seu ordenamento urbano, foi preciso medidas mais enérgicas
por parte das municipalidades em relação aos trabalhadores para defender seu projeto de
urbanização.
Por isso, este capítulo discutirá a maneira como esse plano de urbanização procurou
delinear o território de poder com a condenação de áreas populares próximas ao perímetro
central. Outrossim, buscar-se-á entender a maneira com esse projeto de reformas urbanas se
relacionou com o mercado imobiliário, analisando as medidas tributárias que incentivaram a
construção de imóveis dentro dos padrões estéticos e higiênicos, e reprimiram a existência de
151
152
CEDOC/UESC. Jornal A Época 22 de junho de 1937, Ano XVI, n.º 868, p.1.
Idem, Ibidem.
75
terrenos baldios e ruínas. A intenção é discutir de que forma os projetos urbanos hegemônicos
se confrontaram com os interesses de alguns setores da classe trabalhadora. Influenciado pelo
que Déa Fenelón153 compreendia em seus estudos quando apontava que a cidade passa a ser
caracterizada a partir de seu espaço social, onde se confrontam forças e projetos sociais
diversos, em que é possível reconhecer as expressões de conflitos das desigualdades a partir
do planejamento e das intervenções executadas em Itabuna.
Planos e territorialização de poder
Durante a primeira metade do século XX, dois planos urbanísticos foram criados para
servir de referência para o controle do crescimento de Itabuna. O primeiro deles foi criado por
Archimedes Siqueira Gonçalves e Manoel Da Rin a pedido da intendência municipal, sob
administração de Henrique Alves, em 1927.154 O segundo foi produzido por Francisco
Saturnino de Brito Filho por solicitação da Prefeitura, na gestão de Claudionor Alpoim, no
ano de 1935. Contudo, foi o primeiro projeto elaborado que ofereceu os paradigmas centrais
para a configuração do espaço urbano de Itabuna. As justificativas para a criação de ambos os
projetos tinham como ponto de partida a ascendente demanda demográfica do município.
Com isso, Brito Filho já argumentava em seu plano que “A olhos experimentados, Itabuna
apresenta-se como uma dessas cidades em que o ‘élan’ urbano está em plena eclosão e onde,
por isso, tudo será dependência de boa intervenção técnica, dando-lhe singular
responsabilidade [...] foi sob o senso dessa realidade que elaboramos o presente trabalho.”155
Em ambos os planos, os engenheiros se encarregavam de utilizar a força da ciência do
urbano para garantir o futuro de Itabuna. Para a administração pública, o olhar
“experimentado” destes profissionais se encaixava na tentativa de fundamentar com critérios
científico e “neutro” as políticas urbanas locais. Para Kropf, a visão do urbanista entre 1920 e
1940 era entendida, assim, pelas “qualidades modernas de seu pensamento, eles
reivindicavam, como membros desta nova elite intelectual, a direção legítima do processo
político e social de modernização”.156 Harvey afirma que os engenheiros faziam parte da
FENELON, Déa. Prefácio In: SILVA, Lúcia Helena P. Luzes e sombras na cidade: no rastro do Castelo e da
Praça Onze: 1920/1945. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, Departamento Geral de
Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 2006.
154
CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, GONÇALVES, Archimedes S. Projeto de remodelamento e expansão da
cidade de Itabuna. Salvador, 1927, p.2.
155
APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia) . – Relatório F. Saturnino
R. de Brito Filho, Rio de Janeiro, março de 1935, p.6.
156
KROPF, Simone Petraglia. O saber para prever, a fim de prover – A engenharia de um Brasil Moderno. In: A
invenção do Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Micael M. Herschermann e
Carlos Albertos M. Pereira. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.210.
153
76
intelectualidade derivada da modernidade, que defendiam o controle e o planejamento das
cidades como formas de alcançar o “progresso social”. 157
A escolha dos engenheiros para produzir um projeto urbanizador se pautava na
expressão profissional destes indivíduos. Archimedes Siqueira Gonçalves e Manoel Da Rin
foram integrantes da Inspetoria de Engenharia Sanitária durante a década de 1930.158 Além
disso, ambos foram também responsáveis pela elaboração do projeto de expansão e
saneamento de outras cidades do interior da Bahia, como é o caso do município de Ilhéus.159
Saturnino de Brito Filho também possuía uma significativa expressão profissional. Muito
conhecido por ser filho de Saturnino de Brito, urbanista responsável por reformas urbanas em
Campos, Santos, Campina Grande, aquele engenheiro fazia parte da Comissão de Engenharia
Sanitária do Estado da Bahia.160 Além disso, estava sintonizado com os modelos de
urbanização norte-americanos, visto que sempre fazia referência ao desenho das cidades dos
Estados Unidos como modelo exemplar. É o que dizia para respaldar que “com tais obras
ficará Itabuna dotada de um ótimo serviço de saneamento à altura de suas necessidades [...] e
tal como acabo de verificar nas cidades norte-americanas.”161
Embora Saturnino de Brito Filho tenha sido o responsável por oferecer um perfil
urbano definitivo para o projeto de expansão e saneamento, ele seguiu basicamente as
mesmas propostas defendidas por Da Rin e Gonçalves na década de 1920. Segundo o
urbanista, “poder-se-iam modificar alguns detalhes, mas pensamos preferível mantê-la nas
suas linhas gerais, pois não é recomendável estar mudando o plano da cidade a prazo curto, ao
sabor das idéias de cada um.”162 As poucas mudanças realizadas por Brito Filho no projeto de
1927 foram quanto ao local de captação de águas do Rio Cachoeira e à necessidade do recuo
de prédios em vias do centro da cidade. É possível perceber a forma como esses engenheiros
desenharam a zona urbana de Itabuna, quais as mudanças planejadas pelo projeto e a maneira
como estes enxergavam os diversos espaços de Itabuna.
Como já dissemos anteriormente, entre as preocupações dos projetos estava a de
garantir o futuro de Itabuna através do ordenamento de seu espaço urbano. Da Rin e
Gonçalves atentavam para a garantia de que a cidade “viesse a possuir um sistema cômodo de
HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Editora Loyola, 1992. p.26.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 22 de junho de 1935, Ano V, n.º 222, p.1.
159
DA RIN, Manoel, GONÇALVES, Archimedes Siqueira. Plano de expansão e saneamento de Ilhéus.
Salvador, 1933.
160
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. sábado, 22 de junho de 1935, Ano V, nº222, p.1.
161
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 22 de junho de 1937, Ano XVI, n.º 868, p.1.
162
APMIJD. Livro de atas do Conselho Consultivo de Itabuna (1933-1935). Ata da 17ª Sessão Ordinária do
Conselho Consultivo do Município de Itabuna, 30 de maio de 1934, p.37.
157
158
77
viação que facilitasse o trânsito de qualquer ponto para as artérias principais”. 163 Pensando
nisso, os engenheiros se voltaram, sobretudo, para as vias urbanas que integravam o perímetro
central. Planejaram a área central cortado, por avenidas e ruas retilíneas, atravessadas por
outras vias, dividindo esse espaço em vários quarteirões. Basicamente, os planos de
urbanização se preocuparam com um território que era limitado pelo lado sul com o Rio
Cachoeira, pelo leste-norte com o ribeirão do Lava-Pés e a oeste limitado pelos bairros da
Mangabinha e Jaqueira. Esta região, além de ser a zona ocupada pelas famílias mais
tradicionais, concentraria os prédios dos poderes públicos (Prefeitura, Câmara e Delegacia),
as associações corporativas e empresas comerciais (Associação Comercial, Instituto do Cacau
da Bahia e Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista). Por isso, certamente, foi o local que mais se
beneficiou dos melhoramentos projetados para Itabuna, como é o caso do fornecimento de
água tratada e da rede de esgoto.
Desde o plano de expansão urbana do ano de 1927, os engenheiros projetavam a
abertura de quatro grandes vias que desenhariam o perímetro central e demarcariam o
território de poder em Itabuna. Seriam elas as avenidas Central, do Canal e Marginal, e a Rua
Benjamin Constant. A primeira das avenidas imaginadas por Manoel Da Rin e Archimedes
Gonçalves foi a Central. Sobre ela, diziam os urbanistas:
A mais importante das artérias principais é a grande Avenida Central,
traçada sobre as ruas Seabra e 7 de setembro e que se estende em linha reta
por dois quilômetros, em sentido longitudinal, isto é, mais ou menos
paralelamente ao rio, desde o parque da Bela Vista, projetado no morro do
mesmo nome, até o riacho ao sul da rua da Jaqueira. Esta via principal será
o eixo da cidade futura e para obter o seu traçado perfeitamente retilíneo
foi necessário projetar, como se vê na planta de remodelação, o recuo de
cerca de 50 prédios nas ditas ruas Seabra e 7 de Setembro; este
inconveniente, porém, nada representa ao lado da vantagem de obter para
eixo da cidade a grande avenida de dois quilômetros; [...] Devido á extensão
da avenida, a largura projetada de 20 metros é modesta; deixamos de fixá-la
em 25 metros em vista da limitada área dos quarteirões da zona comercial
e para não aumentar o número de prédios sujeitos à recuo.164
A transformação das ruas J. J. Seabra e 7 de setembro na Avenida Central é um indício
de que o plano criado para Itabuna se preocupava com a acomodação do seu centro comercial.
A construção daquela avenida seria a comprovação de que os segmentos comerciais e, talvez,
também os setores políticos, tivessem a garantia de seu lócus de atuação. O planejamento da
Avenida Central itabunense não pode deixar de ser associado com outra de mesmo nome que
marcou as reformas urbanas do Rio de Janeiro no início do século XX, embora respeitando as
163
164
CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op. Cit. p.2.
Idem, Ibidem, p.2 (grifos nossos).
78
devidas proporções entre ambas. De maneira semelhante à sua congênere carioca, a versão
local daquela alameda seria um símbolo do crescimento material e urbano de Itabuna,
carregando o peso de abrigar o eixo principal da zona comercial e, por conseguinte, se tornar
uma artéria importante do poder político da cidade. A valorização das vias que integrariam a
Avenida Central implicaria, mais tarde, em questões sociais contra grupos populares que
viviam na Rua sete de setembro e nas ruas adjacentes.
A unificação das ruas Seabra e sete de setembro em torno da projeção da Avenida
Central certamente não influencou apenas aquelas vias. Outras ruas paralelas e transversais
que giravam em torno daquela avenida principal seriam encaixadas no plano de retificação e
de alinhamento do plano urbano de Itabuna. Este seria o caso do morro da Bela Vista (atual
Praça Laura Conceição ou “da Catedral”) e das ruas Ruy Barbosa, Domingos Lopes (atual
Avenida Duque de Caxias) e da Jaqueira. Para esses lugares, eram previstos recuos e
desapropriações em “trechos do Largo Santo Antonio ao parque da Bela Vista e do extremo
atual da Rua sete de setembro.”165 Outras fontes sugerem que esses locais geralmente foram
habitados por indivíduos da classe trabalhadora durante as décadas de 1930 e 1940.
Embora o projeto de se construir a Avenida Central só tenha saído do papel no ano de
1960, com a inauguração da Avenida do Cinqüentenário, algumas reformas urbanas realizadas
pontualmente nos trechos observados acima atingiram diretamente os trabalhadores. Na
região da Bela Vista, por exemplo, Manoel Da Rin e Archimedes Gonçalves consideravam
que o local era estratégico para se criar um lugar de lazer e de apreciação da cidade. Eles
achavam que
Nenhum local dentro da cidade se presta melhor, pela posição topográfica,
para a construção de um belo parque, do que o morro da Bela Vista; damos a
esse parque, na planta de remodelação, um traçado de conjuntos; do alto do
parque, bela vista, justificando o nome, ter-se-á do rio e do conjunto da
cidade, especialmente das duas avenidas, a Central e a da Rua Benjamin
Constant, que dali irradiam; pouco habitado, como é agora, o morro, seria
conveniente que o município o adquirisse quanto antes, o terreno presta-se
admiravelmente para dotar o parque de repuxos, cascatas, grotas,
observatórios e jardins botânicos e zoológico 166.
A topografia elevada do morro da Bela Vista ofereceria boas condições de visibilidade
do cenário urbano, além do terreno adequado para a construção de um parque. Quase sempre
esses acessórios de suavização das condições de vida nas cidades, como é o caso de praças e
jardins, são construídos para oferecer um sentido de organização e de salubridade para a urbe.
165
166
CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op.cit. p.3.
Idem, Ibidem, p.5 (grifos nossos).
79
Por conseguinte, com estes melhoramentos, haveria a possibilidade de valorização da área
circunvizinha, habilitando-a para a ocupação, em boa medida, pelos setores abastados da
cidade. Talvez daí venha a sugestão dos engenheiros para que a Prefeitura adquirisse aquela
zona, expulsando os trabalhadores pobres dali.
Em 1942, a Prefeitura anunciava a construção da Praça Tiradentes exatamente no
lugar anteriormente chamado de Bela Vista. Ali seria construída a nova Igreja Católica
Matriz, ao lado da Cadeia Municipal que já existia naquelas imediações na década de 1930.167
Embora a nova Catedral só tenha sido concluída na década de 1950, esses elementos já
sugerem a ocupação daquele território por dois poderes preponderante da sociedade – a Igreja
Católica e a Cadeia Pública. Era isso o que noticiava o A Época, afirmando que “Futuramente,
então, quando forem construídos a Igreja Matriz e o edifício do fórum, a nova sala de visitas
de nossa terra que impressionará melhor aos nossos ilustres visitantes.”168 Em contrapartida,
denúncias contra pessoas pobres que ali moravam foram freqüentes, contribuindo para se criar
estigmas que fundamentavam o discurso de afastamento das camadas populares daquela zona
pelos poderes instituídos. Criticava-se desde o hábito de se criar porcos, apontado como
desrespeito aos preceitos de higiene do município até as práticas de rituais religiosos de
origem afro-brasileira no local. 169
Em 2 de maio de 1936, O Intransigente solicitava providências da polícia contra um
local chamado de “O Encantado” “para não deixar continuar em suas práticas absurdas esse
foco de barbárie e de baixezas, enojando o nosso povo.”170 O registro da presença de
trabalhadores com condutas contestadas pelos segmentos hegemônicos é um indício de que o
interesse em construir melhoramentos urbanos não era meramente uma questão estética, mas
também reflexo do estranhamento em relação aos sujeitos pobres no centro de Itabuna. As
recomendações de Da Rin e Gonçalves para impedir que as pessoas pobres ocupassem o
morro da Bela Vista foram seguidas pelo poder público através do Decreto-Lei n.7, que
desapropriava dezenove casas e tornava de utilidade pública a Travessa da Bela Vista e
prolongamento da Benjamin Constant (atual Avenida das Nações Unidas).171
Outra área que sofreria modificações, segundo o plano traçado para a Avenida Central
pelos engenheiros de 1927 era o final da Rua sete de setembro. Popularmente conhecida por
Rua do “Buril”, aquela área era conhecida por abrigar uma parte do meretrício da cidade,
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 7 de abril de 1942, Ano XX, s/n, p.1.
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 10 de janeiro de 1942, Ano XX, 1187, p.1.
169
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 2 de janeiro de 1943, Ano XVI, n. 13. p.4.
170
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 2 de maio de 1936, Ano XI, n. 35. p.1.
171
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 5 de abril de 1941, Ano VIII, n.º514, p.1-2.
167
168
80
provavelmente entre as décadas de 1920 e 1930. Os memorialistas locais sugerem que a
apropriação do espaço pelos comerciantes e as reformas urbanas naquela via forçaram a
“mudança das mulheres livres para a Rua do Lopes, hoje Duque de Caxias”.172 A edificação
de prédios comerciais tornou a convivência tensa entre as prostitutas e setores da elite
comercial. Em vista disso, várias reclamações começaram a surgir contra o comportamento
“desviante” das mulheres. O A Época reclamava em dezembro de 1937
a atenção da polícia para a insuportável algazarra que as meretrizes,
ocupantes de um conhecidíssimo sobrado ali situado [rua 7 de setembro],
vêem fazendo todas as noites, das 9 horas até alta madrugada, as quais, no
passeios da rua, sem o mínimo respeito, com palavreados, gargalhadas,
correrias e outros meios perturbadores do silêncio, estão prejudicando
grandemente a tranqüilidade das famílias residentes ao referido trecho de
rua.173
Em 1937, as primeiras intervenções urbanas na Rua sete de setembro e na Seabra já
haviam sido iniciadas, tornando um pouco mais complicadas as atividades das mulheres
naquela região. As preocupações com a retificação, o alinhamento e calçamento daquelas vias
pode ter aumentado o cuidado dos policiais com a zona central, forçando as meretrizes a se
abrigar em outras ruas do entorno. Como apontado anteriormente, os memorialistas locais
sugerem que a maior parte delas tenha ido habitar as ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa.
Tanto o registro da presença de terreiros de candomblé e de casas populares no morro
da Bela Vista como a existência de casas de meretrícios na Rua Sete de setembro, duas das
importantes áreas no projeto de cidade dos urbanistas, são indicativos de que o plano de
expansão urbana buscava sedimentar um território de poder com o afastamento de setores
subalternos do centro de Itabuna. Aquilo que superficialmente surge sob a forma de
melhoramentos urbanos de caráter estético e higienizador no Plano Diretor, acaba por ser
percebido enquanto ação de exclusão social quando cruzadas com outras fontes. Isso porque
na linguagem técnica do urbanismo a cidade é apenas morfologia com a supressão dos
sujeitos que compõem este espaço e sua redução a um plano geométrico racional e abstrato.174
Mas as fontes hemerográficas acabam apontando os sujeitos a partir de suas práticas,
possibilitando enxergar as pessoas que são ocultadas na linguagem formal dos engenheiros. É
GONÇALVES, Oscar R. O jequitibá da Taboca.Itabuna: Oficinas gráficas da imprensa oficial da Bahia,
1960. p.116.
173
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 15 de dezembro de 1937, Ano XVI, n.º 930. p.1.
174
LEME, Maria Cristina S. Urbanismo: a formação de um conhecimento e de uma atuação profissional. In:
Palavras da cidade. Organizado por Maria Stella Brescianni. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001.
Nesse artigo, a autora procura perseguir a trajetória do urbanismo a partir da perspectiva de um saber que está
ligado com a expressão do poder. p.81-87.
172
81
isso que permite entender que as propostas dos projetos urbanísticos não estão relacionadas
apenas com formas estéticas e sanitárias dos logradouros, mas ligados à disputa social de
territórios no espaço urbano.
Prosseguindo com seu plano de expansão urbana, Manoel Da Rin e Archimedes
Gonçalves projetavam mais duas importantes artérias para o centro de Itabuna. Eram elas a
Rua Benjamin Constant e a Avenida do Cais (atuais ruas Rulfo Galvão e avenidas das Nações
Unidas, Fernando Cordier e Firmino Alves, respectivamente). Sobre elas, os urbanistas
diziam que
Como vias principais longitudinais notam-se ainda a Avenida resultante do
prolongamento da rua Benjamin Constant e a Avenida do Cais. A primeira,
parte do parque da Bela Vista, onde conflui com a Avenida Central, e se
estende, passando pela Praça da Estação, Praça Tiradentes e terrenos do
antigo cemitério, até o morro em que foi projetada a instalação de
purificação da água, manteve-se para esta Avenida a largura máxima atual
da Rua Benjamin Constant, o que exige o recuo progressivo de 48 prédios
quase todos do lado oeste [...] A Avenida do Cais contorna o rio, desde o
extremo Norte da Cidade até o extremo Sul da Avenida Central, esta
avenida, que importa na consolidação da margem esquerda em defesa nos
casos de enchentes, é obra de vulto necessariamente dispendiosa.175
O planejamento das duas vias seguia o mesmo sentido de divisão e de organização do
centro urbano pensado para a Avenida Central. Ambas seriam artérias que passariam por todo
o centro de Itabuna, sendo entrecortadas por algumas transversais. No entanto, a atenção
maior dos urbanistas foi para a criação da Avenida do Cais, que limitaria a zona urbana com o
Rio Cachoeira. A preocupação com as enchentes foi a justificativa principal para a proposta
de reforma daquele local, acompanhado da melhoria estética daquela área. Sobre a região
marginal do Rio Cachoeira, Brito Filho tecia uma série de considerações acerca da
importância daquele local para a cidade. O engenheiro sanitarista não titubeou em aconselhar
que o poder municipal desapropriasse toda a margem, condenando, inclusive, as habitações
que se localizassem entre o Rio e a estrada. “Esses prédios são numerosos mas têm pequeno
valor locativo; mais vale intervir desde já, a bem da higiene e da estética urbana, do que
esperar que os males se agravem.”176
Observando as sugestões de Brito Filho, logo se percebe que as áreas próximas ao Rio
Cachoeira eram habitadas pela população mais pobre. Os prolongamentos da Rua da Jaqueira
e da Burundanga eram zonas ocupadas, em sua maioria, pelos trabalhadores pobres que
CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op. Cit. p.3 (Grifos nossos).
APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia) – Relatório F. Saturnino
R. de Brito Filho, Rio de Janeiro, março de 1935, p.2.
175
176
82
montavam suas casas com o fundo virado para o rio e a frente para a estrada. Em uma cidade
que não possuía sistema de esgoto sanitário até a década de 1930, essa tática de construção se
tornava conveniente para as pessoas que viviam nas margens dos rios. No entanto, para o
sanitarista, esse tipo de prática era típico da “primeira fase de desenvolvimento não ordenado
das cidades [...] o resultado é que, quando se quer sanear o rio e construir os esgotos, precisa
justamente inverter-se esse trajeto dos despejos.”177
Um aspecto que também contribuía para a conclusão de Brito Filho anotada acima era
o fato de que a captação das águas para distribuição se daria no Rio Cachoeira. Segundo o
plano elaborado por Manoel Da Rin e Siqueira Gonçalves, em 1927, a região para obtenção
de água potável era nas imediações da Rua da Jaqueira e da Burundanga. No entanto, como
foi frisado antes, aquela região já estava praticamente toda ocupada por moradores pobres, por
volta de 1934. Apesar de tornar a obra mais barata, pois diminuiria os custos com tubulação e
energia, a manutenção daquele local para captação de água implicaria na retirada da
população ribeirinha. Isso obrigou a transferência do local de recolhimento das águas para
outra área, chamada de Ribeirão dos Cachorros, próxima à fazenda de Tertuliano Guedes de
Pinho.178 Apesar disso, o urbanista não dispensou o conselho à Prefeitura:
A necessidade de municipalizar e tornar livres as margens dos rios, é de tal
ordem, que não hesitamos em propor que a prefeitura proíba desde já a
edificação marginal do Rio Cachoeira e dos córregos urbanos. Para
montante da cidade, deverá ela determinar a condenação dos prédios
situados entre a estrada e o rio. Esses prédios são numerosos, mas têm
pequeno valor locativo; mais vale intervir desde já, a bem da higiene e da
estética urbana, do que esperar que os mesmos se agravem. Para jusante,
igualmente, torna-se urgente proceder da mesma forma.179
A sugestão de desapropriar e tornar de utilidade pública as áreas ribeirinhas sinaliza
uma tentativa de definir espaços que deveriam ser preservados para o interesse da ordem
estabelecida pelos poderes municipais. Tais medidas deveriam perpassar pela restrição da
construção de imóveis e pela expropriação das casas dos trabalhadores que viviam naquele
local. Contudo, as recomendações de Brito Filho com relação à utilização do Rio Cachoeira
pelos habitantes de Itabuna não terminavam nas suas margens. O próprio leito do Rio passava
a ser um território disputado pelo sanitarista com vistas a garantir os interesses do poder
público.
APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia) – Relatório F. Saturnino
R. de Brito Filho, Rio de Janeiro, março de 1935.p.1-2.
178
Idem, Ibidem. p.7.
179
Idem, Ibidem. p.2.
177
83
A formação rochosa no leito do Cachoeira dava origem a “numerosas poças que são
utilizadas pelas lavadeiras”. Por esse motivo, dizia Brito Filho, a Prefeitura desejava que fosse
“construída uma barragem afogando essas poças, dando à cidade um ‘mater-front’ de belo e
sugestivo aspecto, aformoseando e saneando o rio”. A proposta parece ter sido bem acolhida
pelo Conselho Municipal de Itabuna. Em parecer de José Mattos Nunes (que também era
engenheiro), o conselheiro destacava que a questão não deveria ser primeiramente estética,
mas uma medida sanitária. Ele definia a prioridade do projeto afirmando que “barrar para se
ter um lago de recreio [...] não soará tão bem como barrar para sanear, aí é que a população
beneficiada poderá introduzir o recreio que a obra venha a despertar. [...] Barrar para sanear –
a municipalidade assiste a obrigação de levar a termo.”180
Embora a barragem no leito do Cachoeira só tenha saído do papel na década de 1970,
as medidas de consolidação dos territórios urbanos próximos ao rio se concretizaram através
de atos administrativos e das constantes censuras dos periódicos locais aos sujeitos que
freqüentavam a região ribeirinha. Publicada em 18 de abril de 1936, mediante o ato 241 do
executivo municipal, a Prefeitura criava um dispositivo jurídico para impedir a ocupação das
margens do rio nos trechos em que se limitava ao perímetro central.181 Apesar disso, o setor
dirigente não conseguiu evitar o uso desse espaço pelos trabalhadores no cotidiano da cidade,
provocando freqüentes denúncias contra pessoas que se utilizavam das límpidas águas do
Cachoeira para tomar banho ou lavar as roupas. Em dezembro de 1937, por exemplo, o A
Época publicava no canto de sua página uma denúncia contra pessoas que se banhavam nas
margens do rio. Segundo a nota, desde as cinco e meia da manhã, pessoas já tomavam “banho
completamente despidas, num desrespeito flagrante às famílias ali residentes”.182 Em
dezembro de 1942, a mesma prática ainda persistia, sendo denunciada pelo mesmo jornal o
“flagrante desrespeito às famílias ali residentes, à rua Joaquim Nabuco, nesta cidade, alguns
banhistas resolvem transformar em pleno dia, trechos daquela rua [...] num verdadeiro
paraíso...”183
Uma das razões para as persistentes reclamações nos periódicos de Itabuna era o
estranhamento de comportamentos tipicamente populares em um espaço que se urbanizava.
Lefebvre sinaliza que as políticas e as reformas urbanas tendem a negligenciar os fatores
APMIJD. Livro de atas do Conselho Consultivo do Município de Itabuna. Ata da 17ª Reunião ordinária do
Conselho Consultivo de Itabuna, 30 de maio de 1934. p.40-40B.
181
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 18 de abril de 1936, Ano V, n.264. p.1.
182
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 17 de dezembro de 1937, Ano XVI, n.º 930. p.1.
183
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 26 de dezembro de 1942, Ano XX, n.º. p.1.
180
84
humanos, de onde provêm as tensões entre setores sociais antagônicos.184 Assim, o uso de
áreas urbanas próximas ao centro com vistas a atividades como banho, lavagem e estendedura
de roupas, por exemplo, passava a não ser mais autorizado pelos setores dirigentes do
município. Essas proibições atingiram principalmente os costumes e as tradições das pessoas
que tinham práticas culturais que contrariavam os poderes públicos e os segmentos
hegemônicos. Mais a frente, destacarei grupos sociais que sofreram diretamente com as
mudanças imaginadas pelo plano diretor urbano de Itabuna.
De acordo com os planos urbanos de Manoel Da Rin e Archimedes S. Gonçalves,
aprovados e seguidos por Brito Filho, a última das avenidas a delinear o perímetro central de
Itabuna seria a Avenida do Canal. Sobre ela, os engenheiros da década de 1920 afirmavam
que
Completamos a rede principal de comunicação com a Avenida do Canal,
traçada na baixada do ribeirão da rua Barão do Rio Branco e que, partindo
do rio, liga transversalmente as três avenidas citadas, atravessa a estrada de
ferro e depois desenvolve-se em direção mais ou menos paralela às mesmas
avenidas. [...] no eixo desta avenida e na maior parte de sua extensão foi
projetado um canal que substituirá o leito atual do ribeirão a ser aterrado; a
construção desta avenida e o aterro da várzea são indispensáveis para sanear
o local e facilitar a construção do coletor de esgoto do bairro da Santa Casa
e da baixada.185
A projeção da Avenida do Canal sinalizava outra preocupação dos urbanistas: a
presença de áreas pantanosas no centro da cidade. A existência de charcos causava
inquietação aos urbanistas e aos poderes públicos. A justificativa quase sempre era a de que
estes locais eram focos de agentes transmissores de doenças que assolavam Itabuna. A
Prefeitura considerava a urbanização do ribeirão Lava-pés “o empreendimento mais útil, do
ponto de vista do saneamento dos terrenos que atravessa e, por certo, contribuirá para
melhorar, de muito, o estado sanitário da cidade”.186 Apesar da abertura do canal ter sido
iniciada na década de 1930, no ano de 1942, a municipalidade ainda prometia realizar
melhoramentos urbanos naquele local. Naquela oportunidade, o A Época ressaltava a
importância da obra a ser realizada, dizendo que “somente os que conheceram aquele charco
imundo, - vasta área desaproveitada, dentro do coração da urbs, poderão aquilatar o valor da
futura Avenida, que mais do que uma obra de urbanismo, é notável trabalho de
LEFEBVRE, Henri. O direito à Cidade. São Paulo: Editora Moraes, 1991. p.23-24.
CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op. Cit. p.3.
186
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 31 de julho de 1937, Ano VII, n.º 330. p.12.
184
185
85
saneamento.”187 A obra era vista como a oportunidade de acabar com uma área ociosa nas
proximidades do centro urbano, transformando-a em zona comercial e território do poder.
Embora a justificativa inicial para a urbanização do ribeirão Lava-pés tenha sido o
melhoramento das condições sanitárias, outras fontes sugerem que não se tratava apenas de
questões de salubridade de ordem natural. Ainda que o motivo aparentemente demonstrado
pelos jornais fosse a existência de pântanos nesses espaços, outros problemas pareceram
também chamar a atenção dos engenheiros Da Rin e Gonçalves. A forma pela qual eles
descreveram as áreas vizinhas ao canal que deveriam ser urbanizadas é um sinal da
emergência das diferenças sociais.
Do traçado existente, tão irregular, do bairro norte da cidade, aproveitou-se a
parte tolerável, sacrificando não poucos pequenos prédios, mesmo em
consideração do pouco valor deles; foram ali traçadas novas ruas e uma
estrada, desenvolvida na íngreme encosta do morro e dando acesso fácil à
Santa Casa e ao Cemitério.188
A região norte a que se referiam os engenheiros correspondia ao bairro Pontalzinho e à
zona que era chamada de bairro da “Santa Casa”. Esses dois logradouros se limitavam com o
riacho do Lava-pés. Como vimos no capítulo anterior, o Pontalzinho era um dos setores mais
populosos de Itabuna. O segundo espaço era mais ocupado por trabalhadores, que
encontravam terrenos baratos para construir suas casas, segundo memorialistas locais189,
assim como pela evidência de imóveis de “pouco valor” notados pelos urbanistas. Isso mostra
que o argumento dos periódicos locais e da Prefeitura de que a zona do ribeirão era composta
apenas por espaços ociosos e encharcados não era tão válido assim. Talvez a preocupação de
urbanistas e das autoridades municipais não fosse somente com o saneamento das áreas
pantanosas, mas também com as pessoas que ali viviam. O cruzamento com outras fontes
ajuda a identificar a presença de trabalhadores pobres naquele local. Por exemplo, no O
Fanal, de janeiro de 1938, nota-se que havia muito mais do que simples pastos nas margens
do pequeno córrego que atravessava a zona norte de Itabuna. Em matéria intitulada de “No
Canal do Mangue”, o periódico estudantil descrevia:
Vamos nos aproximando, devagar, vendo de longe, um pequeno riacho que
corre por entre a cidade. De repente, eis que nos sentimos horrorizados,
diante de tanta miséria e imundície. Um espetáculo doloroso se nos
apresenta, às vistas. É o mangue. É o mercado de carne, em que predomina
a lei da oferta sobre a da procura. Mulheres se oferecendo pelo preço mais
CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 23 de maio de 1942, Ano XXIV, n.º 1206. p.1.
CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op. Cit. p.3.
189
ANDRADE, Jose Dantas. Documentário histórico-ilustrado de Itabuna. Itabuna: EGBa, 1968.
187
188
86
barato e homens sorrindo da miséria alheia. O passeio é rápido, porque
triste.190
A descrição promovida pelo repórter “Léo” sugere que as margens do ribeirão Lavapés não era feita apenas de pastos, pântanos e terrenos baldios. Talvez a existência dessa área
ociosa tenha sido em parte aproveitada pelos trabalhadores pobres urbanos que habitavam
Itabuna. Para contribuir com essa expectativa, os registros tributários dos imóveis apontam
para a ocupação daquele logradouro. Consultando os lançamentos das Décimas Urbanas
(imposto predial cobrado pelo município), nota-se a presença de cerca de dez
estabelecimentos comerciais, sendo que sete deles eram classificados como pequenos
negócios. Registravam-se também aproximadamente vinte residências, sendo que delas,
quatorze eram cobradas taxas mínimas de 20$ (vinte mil réis). 191 Ambas as fontes sinalizam
que o local era ocupado por pequenos proprietários e grupos de trabalhadores pobres.
A maneira como a zona foi apresentada pelos engenheiros e pelo periódico é outro
indício de que o que preocupava os setores dirigentes não eram apenas os charcos e os pastos
do local. Os primeiros indicavam o “traçado irregular” do bairro da Santa Casa, elemento que
justificava a proposta de “sacrificar” as casas ali existentes, segundo o plano projetado. Os
periódicos apontavam para a presença de homens e mulheres atuando no local, “diante de
tanta miséria e imundície”. As fontes possuíam em comum também o estranhamento com os
sujeitos que ocupavam as áreas próximas ao futuro canal. Numa certa medida, foi talvez esse
estranhamento que tendia para a estigmatização das pessoas que ali habitavam, que serviu de
referência para justificar o “sacrifício” de seus imóveis de “pouco valor” por parte do poder
público. Com o objetivo de transformar a região do Lava-pés em um lugar “salubre”, os
sujeitos que viviam próximos ao ribeirão eram notados como elementos que contrariavam a
expectativa de urbanistas e dos poderes públicos. Na medida em que o poder público,
auxiliado pelo exame técnico da engenharia sanitária, procura urbanizar aquele espaço, ele
passa a exigir que este território seja ocupado pelos segmentos hegemônicos. As partes
urbanas, alvo dos planos citadinos, são colocadas sob a tutela da prefeitura, confiscadas dos
habitantes e transformadas em territórios do poder local. 192
CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de janeiro de 1938, Ano V, n.º9. p. 4.
CEDOC/UESC. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 30 de janeiro de 1937, Ano VI, n.º 304.
p.7.
192
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 2. Morar e Cozinhar. 3º Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. Para
o autor, os planejamentos e as reformas urbanas são fatores da medicalização do poder. Os poderes instituídos
assumem para si o direito de curar e de proteger o corpo urbano. Disso resulta que as partes urbanas são
colocadas sob sua tutela e desapropriadas dos habitantes e confiadas a especialistas da urbanização. p.197.
190
191
87
Em abril de 1942, quando as obras de canalização do ribeirão prosseguiam, o setor
médico da cidade comemorava o andamento das obras. A voz ressonante de divulgação dos
melhoramentos era a de José Pinto, membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna
e diretor do Departamento de Higiene. Na medida em que procurava ressaltar as ações do
poder público, Pinto apontava a transformação do local em um ambiente conveniente aos
interesses da Prefeitura e dos setores hegemônicos. Ele dizia que o melhoramento urbano
havia transformado a parte “dessa área perniciosa, em uma aprazível e pitoresca avenida,
caracteres estéticos surpreendentes e com a dupla finalidade de aliar o saneamento do
“talweg” do lava-pés, ao extraordinário plano de urbanização.”193 No entendimento do
médico, a urbanização promovia uma dupla função em Itabuna: acabava com os focos de
epidemias que eram os charcos e forçava a retirada de pessoas que ocupassem o local,
construindo uma avenida considerada agradável e bela para os padrões urbanos.
Engenheiros, imprensa e médicos pareciam sintonizados no que tange ao plano de
urbanização de Itabuna. Os três segmentos entendiam a necessidade de organizar o perímetro
central a partir dos melhoramentos projetados para a cidade. Jurandir Freire Costa propõe que
as esferas do saber técnico se apropriaram do espaço urbano para efetivar as marcas do poder,
da conservação do status quo, utilizando como fundamento a eliminação de matas, rios,
pântanos, prostíbulos e esgotos, procurando efetuar uma estratégia de abordagem, dominação
e transformação dos lugares e de quem vive neles.194 Certeau considera que, em nome da
suposta racionalidade urbana, a ordem estabelecida buscava ocultar “a experiência dos
indivíduos que moram na cidade.”195
A preocupação dos engenheiros em estruturar o perímetro central em quatro vias
retilíneas, entrecortadas por algumas ruas transversais oferece uma medida da seletividade dos
espaços que seriam beneficiados com os melhoramentos do plano de urbanização. Apesar de
ter apontado problemas pontuais em alguns bairros, os engenheiros não escondiam que o
objetivo era organizar e privilegiar a área central com os benefícios da água encanada e do
esgoto a serem implantados durante as reformas urbanas. Brito Filho, por exemplo,
considerava que “Itabuna está crescendo e muito acertada é a providência de ampliar a
circulação no seu acanhado centro urbano atual. Importante é este problema do centro urbano,
BPEBa. Anais da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna (1942-1943). Sessão de 12 de abril de 1942.
Itabuna: Tipografia D’A Época, 1944. p.25.
194
COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p.30.
195
CERTEAU, Michel, MAYOL, Piere, GIARD, Luce. A invenção do cotidiano. 2. Morar, Cozinhar. 3ª
Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1994. p.193.
193
88
ao qual Le Corbusier se refere em termos eloqüentes.”196 Para o engenheiro, o aspecto
fundamental das reformas urbanas planejadas seria possibilitar que o perímetro central
possuísse condições infra-estruturais (vias largas e compridas, distribuição de água e
saneamento de esgoto) que permitissem abrigar os estabelecimentos comerciais e prédios
públicos. Outrossim, a influência teórica de Le Corbusier é mais um indicativo do interesse
urbanístico voltado para o “progresso” e beneficiamento da parte central da cidade.
Françoise Choay aponta que Corbusier fazia parte de um grupo de engenheiros entre o
final do século XIX e início do século XX que se encaixava na perspectiva do Urbanismo
Progressista. Como uma de suas características, esta perspectiva propunha que o racionalismo
urbano deveria ser o meio utilizado para controlar o crescimento demográfico e garantir a
ordem social defendida pelos setores dirigentes. Obtendo estas condições, as cidades
alcançariam o desenvolvimento material e social, classificado de “progresso” pelos
urbanistas. Para o urbanista francês, era preciso privilegiar o centro citadino para assegurar a
“marcha progressiva”.197 Em contrapartida, Corbusier considerava os subúrbios e seus
moradores lugares onde habitavam “descendentes degenerados dos arrabaldes”, por ser um
espaço oposto à organização de cidade empreendida no centro.198
Provavelmente em face dessa influência teórica, os engenheiros tenham se preocupado
essencialmente com o centro de Itabuna e se referido aos subúrbios locais com certa
indiferença e de forma estereotipada. Um indício dessa posição está contido no plano de
urbanização de Brito Filho. Com base em cálculos de custos, ele apontava que somente o
bairro da Santa Casa seria alcançado com a instalação do sistema de rede de água e de
esgotamento sanitário, visto que o principal hospital do município não poderia ficar sem
aquele melhoramento.199 Desta forma, as outras áreas do subúrbio não seriam contempladas
com os benefícios planejados, entre eles os bairros Mangabinha, Pontalzinho, Cajueiro e
Conceição.
Estruturando o centro de Itabuna em três longas e retilíneas avenidas (Central, Cais e
Canal) e uma Rua, a Benjamin Constant, entrecortadas por ruas transversais e composta de
parques e praças, os engenheiros pensaram o perímetro central como espaço que pudesse
abrigar as instituições públicas e privadas mais representativas da cidade. Não foi por acaso
que a Prefeitura, ao tomar um empréstimo na Caixa Econômica Federal para providenciar as
APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Op.cit. p.4.
CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades. São Paulo: Perspectivas, 1992. p.188-189.
198
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe
Moisés, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.197-9.
199
APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Op.cit. p.11.
196
197
89
primeiras obras urbanas, tenha pensado na construção de prédios do poder público no centro.
Planejava-se construir os prédios da Prefeitura e da Câmara Municipal, o Mercado Público e
ampliar a Cadeia Pública.200 É bom lembrar que outras edificações vinculadas ao Estado já
estavam presentes nesse cenário urbano, como é o caso do Instituto do Cacau e da Estação de
trem da Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista. A presença desses prédios contribuiria para que os
segmentos políticos dirigentes marcassem posição no espaço central de Itabuna.
Conforme já foi dito, limitada pelo rio Cachoeira ao sul e pelo ribeirão Lava-Pés a
leste-norte, os engenheiros construíram um plano urbano que desenhava geometricamente e
delimitava claramente as fronteiras da zona do centro. Essa referência servia inclusive para
apontar os limites entre o perímetro central e o perímetro adjacente, conforme consta no
Código de Posturas do município.
201
O primeiro compreenderia todas as ruas, travessas e
praças da cidade, calçadas ou não. O segundo era formado pelos bairros da Jaqueira,
Pontalzinho, Misericórdia (Santa Casa) e Conceição.
202
Isso também parece estar claro para
Erahsto Souza, quando aponta que “o centro de Itabuna criou fronteiras simbólicas” que
definiam o território de atuação dos setores políticos hegemônicos.203 Pelas observações de
Da Rin, Gonçalves e Brito Filho, com exceção do Conceição, esses bairros foram apontados
como lugares que a Prefeitura deveria tomar iniciativa de municipalizar. Para isso, eles
defendiam a desapropriação da área e a remoção dos trabalhadores pobres que ali viviam para
outros lugares. Para os urbanistas, o afastamento dos segmentos mais pauperizados daqueles
logradouros resultaria na melhor definição das fronteiras urbanas e na ocupação das áreas
centrais pelos elementos do poder público.
As impressões de que o centro de Itabuna se tornava um território diferente dos
espaços adjacentes do município eram sentidas na medida em que se procurava ressaltar os
feitos da Prefeitura. Em 25 de março de 1937, o A Época trazia uma nota que potencializava
as novas feições urbanas, surgidas depois das primeiras obras do plano de urbanização.
Aquele que chega a sede de Itabuna, depois de percorrer bairros adjacentes,
tem a impressão de encontrar um oásis no deserto. É como se abrir uma janela
para o mar. Jardins. Praças bonitas. Arborização intensiva. Lojas cheias de
cousas e de vida. [...] O solo é revirado, amontoa-se nas beiras das ruas, terra
e cimento, em todos os lados o trabalho fecundo e silencioso produz obras.
APEBa. Companhia Construtora Nacional. Contrato do sistema de água e esgoto de Itabuna. Bahia, 4 de
março de 1936. p.127.
201
APMIJD. Código de Posturas do Município de Itabuna. Ato n.º184 de 9 de junho de 1933, Itabuna:
Tipografia D’A Época, 1933.
202
Idem, Idem. p.6.
203
SOUSA, Erahsto Felício. O Conceição em retalhos de cidade, margens e dono: uma Itabuna-Ba nos
territórios subalternos (1950-1955). Ilhéus: UESC, 2007. p.17.
200
90
Saneamento, urbanização da cidade, uma vontade de ferro que anima os
homens e as cousas.204
Os padrões urbanos do centro de Itabuna servem de parâmetro para definir a sensação de
comodidade e de organização enunciada pelo autor da nota, assinada com as iniciais de T.T.
São os melhoramentos urbanos construídos no centro, além do andamento das obras de
saneamento, que parecem definir os limites dos espaços de intervenção do poder público. O
registro das lojas cheias não deixava passar despercebido que aquele deveria ser o lugar
também do poder econômico, impulsionado pelas atividades do comércio local. O “oásis” era
o lócus da organização dos poderes que administram as cidades, e a linguagem urbana deveria
ser determinada pelos segmentos hegemônicos, mediante suas leis e seus padrões. O “deserto”
certamente seria o diferente, o “não-urbano” ou o “sub-urbano”, as áreas que a racionalidade
das camadas dirigentes políticas não conseguia alcançar e das quais as pessoas pobres comuns
faziam outros usos. No perímetro central, a linguagem formal e técnica de explicação da
cidade seria mais intensa. Renovar as casas, alinhar as ruas, transformar as praças seriam
elementos materiais de um discurso que visava a condicionar o modo de vida das pessoas em
Itabuna, levando em conta apenas as formas da cidade sem se dedicar aos usos comuns e
populares da cidade.205
Os planos de urbanização parecem ter delineado os territórios do poder em Itabuna em
um campo considerado ideal. Defendendo a intervenção das municipalidades em espaços
ocupados pelos trabalhadores e preocupados em privilegiar a zona central com os
melhoramentos urbanos, foi possível entender que os engenheiros se preocuparam não só em
higienizar e embelezar a cidade, mas em desarticular espaços de usos da população pobre. Em
contrapartida, as novas vias urbanas acompanhadas de seus acessórios deveriam ser símbolos
da lógica urbana a ser estabelecida pela ordem vigente. Criava-se um novo padrão de cidade,
o qual resvalou na valorização dos espaços citadinos que deveriam ser ocupados pelos prédios
públicos e comerciais, ou por residências das famílias mais tradicionais. Por conta das
planejadas reformas urbanas, o mercado imobiliário e os impostos criados pelo poder público
passaram a ser um elemento importante para se entender a maneira como os espaços centrais
da cidade passaram a ser ocupados pelos setores sociais hegemônicos.
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 25 de março de 1937, AnoXV, n.º 833. p.1.
LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana
Angotti Salgueiro; tradução Cely Arena. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. O autor
destaca que os urbanistas tendem a dissociar a morfologia e dos usos sociais, preocupando-se em demasia com
suas formas e reduzindo a atenção para as práticas urbanas comuns. p.77.
204
205
91
O Plano e o mercado imobiliário
O comportamento do mercado imobiliário se alterou com a iminência da execução das
primeiras obras de saneamento de Itabuna. As notícias de que novas avenidas seriam abertas,
faziam com que antigas fazendas se tornassem terrenos à venda. Foi desta maneira que o
Jornal Oficial informou ao público que lotes de terras estavam sendo comercializados em
áreas que seriam beneficiadas com o plano de urbanização. Em maio de 1935, os jornais
ligados à Prefeitura chamavam a atenção para que os interessados em construir imóveis nas
futuras Avenida do Canal, Avenida Joaquim Inácio Tosta, Avenida Pirangy (atual Av.
Itajuípe) e ruas transversais aos terrenos do senhor Martinho Conceição, se dirigissem até o
“Parc Itabunense”, na rua J. J. Seabra, para apreciar as plantas. Complementando, noticiou
que
Consoante estamos informados, há grande interesse e procura na compra dos
referidos lotes de terrenos, cuja venda está sendo feita à vista e a prestações,
sendo, portanto, de grande conveniência os interessados procurarem com
urgência o proprietário, afim de não perderem uma tão boa oportunidade para
bem localizarem os seus futuros prédios, pois é desejo do Sr. Dr. Prefeito
desta cidade mandar calçar, arborizar e iluminar a avenida Joaquim Inácio
Tosta, desde que se iniciem as primeiras construções. 206
Esse tipo de nota não foi incomum na imprensa oficial e nos jornais comerciais de
Itabuna. A proximidade com as primeiras reformas urbanas decorrentes do plano diretor criou
uma expectativa de comercialização das áreas baldias no centro e, por conseguinte, a
ocupação destes pelas camadas mais abastadas da sociedade itabunense. O que chama atenção
para este anúncio é a relação que se estabelece entre o mercado imobiliário e os poderes
públicos. Primeiro, porque ele tinha como título “Avenidas que se rasgam”, o que parecia
sugerir mais um empreendimento da Prefeitura. Segundo, a clareza do periódico em apontar
que o prefeito esperava apenas a construção dos primeiros prédios para proceder a
urbanização daquele local. Isso parece indicar uma relação de proximidade entre os interesses
das autoridades municipais e os das elites que movimentavam o mercado imobiliário.
A partir de 1936, quando as reformas urbanas foram iniciadas para a instalação do
sistema de água e esgoto, o grupo político dirigente esperava que as obras públicas fossem
acompanhadas de iniciativas particulares. O A Época, em 30 de janeiro de 1937, após apontar
o início das obras de saneamento, da abertura de avenidas e da retificação do canal de Lavapés, cobrava uma resposta dos setores privados aos feitos da administração pública. Naquela
oportunidade, o semanário esperava que “a iniciativa particular corresponda ao esforço do
206
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 11 de Maio de 1935, Ano V, n.º 216. p.1.
92
operoso prefeito e a seu tempo, erga prédios condignos nas novas avenidas que estão sendo
abertas e que transformarão Itabuna numa cidade à altura de seu desenvolvimento.”
207
A
medida que as obras prosseguiam, outras demandas começavam a ser cobradas, tanto pelos
poderes públicos como pela imprensa.
Parte da imprensa procurava organizar um discurso que motivasse a iniciativa privada
a acompanhar as obras de urbanização no centro de Itabuna. Para isso, os jornais cobravam a
construção de vários estabelecimentos, tais como cinemas, teatros e hotéis. Em março de
1937, A Época tornava a reclamar a construção de um cinema condigno para substituir
“aquele corredor adaptado”, referindo-se ao Elite Cinema: “o que Itabuna necessita é um
cinema à altura de seu progresso. A lamentável falta de iniciativa particular entre nós é a
causa de tais deficiências.”208 Outro exemplo de cobrança era a construção de hotéis que
pudessem se incorporar aos novos padrões da cidade. O mesmo jornal dizia que “o viajante
que aqui chega, volta à tarde para Ilhéus, afim de pernoitar ali, pois os nossos pardieiros não
merecem o nome pomposo de hotéis.”209 Embora a matéria não faça referências nominais ao
que considerava “pardieiro”, há registros de várias pensões existentes na região central, como
é o caso da Rua Ruy Barbosa, mas que eram freqüentadas pelos setores mais pobres, segundo
o lançamento das décimas urbanas.
Na tentativa de incentivar a construção de prédios de utilidade pública por parte da
iniciativa privada, os poderes municipais resolveram criar dispositivos legais para beneficiar
grupos e pessoas empreendedores. Tendo em vista essa medida, os vereadores aprovaram o
projeto de lei nº 35, autorizando a concessão de isenção tributária a quem erguesse prédios ou
residências em áreas de terreno baldio ou com construções em ruínas. Ademais, esta isenção
seria válida também para aqueles que construíssem nas futuras avenidas do perímetro central.
Para obterem a dispensa do imposto municipal, os proprietários deveriam obedecer às
regulamentações estabelecidas pela diretoria de higiene pública e observar as leis sanitárias.
As novas construções deveriam ficar prontas no prazo de um ano após a liberação da licença
para a obra. A isenção variava entre cinco e dez anos de isenção do imposto predial. 210
Após a publicação desta medida no Jornal Oficial, foi beneficiada grande parte das
pessoas que faziam parte do grupo político ou social hegemônico de Itabuna. Alguns deles
foram os mesmos vereadores que haviam apreciado o projeto de lei no legislativo local. Veja,
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 30 de janeiro de 1937, Ano XV, n.º 812. p.1.
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 23 de março de 1937, Ano XV, N.º 823. P.1.
209
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 16 de fevereiro de 1937, Ano XV, n.º 817, p.1.
210
APMIJD. Livros de projetos e leis do município de Itabuna. Projeto de lei n.º36. Isenta de taxas e impostos os
prédios novos construídos na cidade e nos distritos administrativos. 7 de novembro de 1936. p.59.
207
208
93
por exemplo, o caso de Nicodemos Barreto, membro do Conselho Municipal, que recebeu, em
julho de 1937, a isenção de décimas urbanas por ter construído prédio comercial, atendendo
aos padrões higiênicos e estéticos. O parecer da diretoria de Obras Públicas e da Higiene
Municipal apontava que o imóvel se tornava uma das edificações “mais aprazíveis e belas da
cidade”.211 Outro que também foi beneficiado foi Antonio Tourinho, igualmente membro do
legislativo, que solicitou da Prefeitura liberação do tributo por ter construído residência “de
acordo com as exigências de higiene e beleza dos foros de Itabuna”.
212
A nova legislação
tributária urbana também favoreceu a sujeitos oriundos das elites locais que não eram
membros das municipalidades. Em junho de 1937, José Ramos, comerciante, recebeu parecer
favorável a um pleito e teve dispensa do imposto predial por cinco anos por ter construído em
terreno baldio. Além dele, Amphilóphio Rebouças, fazendeiro e comerciante, também recebia
a vantagem pelo mesmo motivo de Ramos.213
A aferição de vantagens da Prefeitura por parte dos membros do Conselho Municipal e
de pessoas ligadas às elites locais sinalizava os interesses convergentes entre o poder público
e os segmentos hegemônicos na urbanização de Itabuna. É importante lembrar que a
concessão de décimas urbanas se pautava no interesse de que as reformas urbanas realizadas
pela administração pública fossem acompanhadas pela iniciativa particular, como reclamava a
imprensa. Além disso, uma consulta ao registro de lançamento das Décimas Urbanas permite
indicar que a maior parte dos prédios beneficiados com a isenção do imposto se localizava no
perímetro central. Os prédios de Nicodemos Barreto e Antonio Tourinho, por exemplo, se
localizavam nas duas ruas mais movimentadas da cidade – Ruas J.J. Seabra e Sete de
setembro, respectivamente.214 Isso pode sugerir também a forma como centro da cidade foi
sendo ocupado pelos grupos enriquecidos de Itabuna.
Um caso que pode deixar mais claro tanto o beneficiamento dos segmentos
hegemônicos, como a ocupação do centro da cidade por este setor da sociedade, é a
construção do Hotel Avenida. Como se pode ver, uma das exigências da imprensa era que se
erguesse um prédio público que pudesse abrigar “satisfatoriamente” os visitantes. Este já era
um anseio que remetia ao ano de 1934, quando o Conselho Municipal defendia a criação de
vantagens tributárias para quem construísse um “hotel de primeira classe do nível do
progresso social e econômico” de Itabuna, já que “os hotéis existentes não satisfazem nem
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna,.sábado, 24 de julho de 1937, Ano VII, n.º 329. p.1.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna,.sábado, 17 de abril de 1937, Ano VII, n.º 315. p.2.
213
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna,.sábado, 4 de julho de 1937, Ano VII, n.º 326. p.2.
214
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna,.sábado, 23 de janeiro de 1937, Ano VII, n.º 303. p.2.
211
212
94
recomendam nosso adiantamento”.215 Com o início das primeiras obras de saneamento, essas
reivindicações assumiram um peso maior. Foi com este intuito que Carlos Maron resolveu
assumir o projeto de construir uma hospedaria. Maron era uma figura influente no cenário
político e social da cidade. Além de ter feito parte do legislativo, ele era sócio do Banco Rural
de Itabuna e membro efetivo da Associação Comercial, o que lhe conferia status suficiente
para empreender a construção de um hotel, obtendo apoio do governo municipal. 216
Em julho de 1937, o A Época noticiava a inauguração do Hotel Avenida. Com 26
quartos e localizado na Rua Firmino Alves (região denominada, pelos engenheiros, Avenida
do Cais), o periódico destacava que a abertura do novo estabelecimento contemplava uma
lacuna existente em Itabuna. Destacava que se tratava “de um estabelecimento instalado com
todos os requisitos da higiene, indispensáveis ao seu funcionamento.”217 A propaganda do
recinto apontava também que todos os aposentos possuíam água corrente, além de ressaltar o
ambiente de “ordem, respeito e asseio”, características que eram apontadas talvez para
diferenciá-lo dos demais que existiam na cidade. Por fim, expressava em letras sublinhadas e
destacadas que era “rigorosamente familiar”. 218 Com toda a propaganda produzida em torno
do seu estabelecimento, Carlos Maron argumentava que o valor da construção,
aproximadamente oitenta contos de réis, era uma demonstração de seu interesse pela terra,
esperando obter da Prefeitura a isenção das décimas urbanas. 219
A construção do hotel nos permite identificar alguns elementos na relação entre
urbanização e mercado imobiliário. O primeiro deles é notar a forma como o empreendimento
estava ligado aos novos padrões de prédios com as primeiras obras de melhoramentos
urbanos. O nome da hospedaria recém-construída indicava sua proximidade com os aspectos
das reformas urbanas, pois era pretensão abrir a Avenida do Cais (atual Avenida Beira Rio)
naquele local. Também na propaganda do hotel isso era bastante expresso, quando salientava
que se situava em “ponto aprazível de onde se descortina soberbo panorama.”220 Esses
elementos, por conseguinte, apontam a ocupação das áreas centrais por parte da iniciativa
privada. É importante lembrar também que a região em que foi erguido o prédio havia sido
desapropriada pela Prefeitura para que não fossem construídos mais imóveis, conforme
APMIJD. Livro de Atas do Conselho Consultivo do Município de Itabuna. Ata da 20ª sessão ordinária do
Conselho Consultivo do Município, realizada em 23 de outubro de 1934. p.49.
216
GONÇALVES, Oscar. Jequitibá da Taboca: ensaios históricos de Itabuna. Itabuna: Oficinas ráficas da
imprensa oficial da Bahia, 1960. p.137.
217
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 30 de julho de 1937, Ano XV, n.908. p.1.
218
CEDOC/UESC. Jornal Diário da Tarde, 10 de julho de 1939, Ano XII. P.4.
219
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 28 de outubro de 1937, Ano XV, n.º 915. p.1.
220
CEDOC/UESC. Jornal Diário da Tarde. Op. cit., p.1.
215
95
sugestão dos urbanistas. No entanto, o poder municipal parece ter aberto uma exceção para o
Hotel Avenida.
A construção do Hotel Avenida parece ser uma evidência da ocupação do perímetro
central da cidade pelos setores hegemônicos de Itabuna, mediante o anseio do erguimento de
prédios públicos. Na mesma nota em que se anunciava a inauguração da hospedaria, o A
Época reiterava a falta de outros tipos de estabelecimento, tais como cinemas, teatros e
estádios, que “tragam o conforto e o bem-estar de nossa gente.”221 Outra evidência da relação
entre o plano de urbanização e o mercado imobiliário é o aparecimento de empresas de
engenharia civil a partir de 1935. Compostas por engenheiros, elas se apresentavam como
voluntárias para servir à cidade com a construção de estabelecimentos culturais e sociais. Foi
dessa forma que o mesmo periódico noticiava o aparecimento da Sociedade Anônima de
Melhoramentos Urbanos.
A par do benefício que tais obras passam trazer à população deste município,
ainda representa a “Sociedade Anônima Melhoramentos de Itabuna”, um
campo vasto e importantíssimo para a inversão de capitais, grandes ou
pequenos, com uma compensação imediata, vultosa e garantida. As
construções projetadas, tais como o Mercado Público, um grande Hotel e um
Cine-Theatro, apresentarão rendimentos contínuos e certos, dando portanto,
uma razoável renda aos acionistas. Sob o ponto de vista econômico, ainda, a
construção de um Ginásio Equiparado, é uma obra de valor inestimável para
Itabuna, uma realização moral engrandecedora. A instrução secundária, tão
mal amparada entre nós, está atualmente reservada apenas aos filhos dos
homens com maiores recursos financeiros, os quais despendem
desarrazoadamente na Capital do Estado importâncias excessivas para tal fim
– quando com um estabelecimento equiparado, entre nós, teríamos vantagens
incalculáveis, poupando despesas aos ricos e facilitando os estudos aos
pobres. 222
A sociedade prometia a construção de estabelecimentos de utilidade pública, tais como
escolas, teatros e mercado público. Em troca, garantia a rentabilidade dos investimentos para
os sócios empreendedores. Em outra reportagem, o periódico era informado que a chegada
desta sociedade chegava para resolver satisfatoriamente os inconvenientes que impediam o
desenvolvimento de novas construções na cidade.223 Em julho de 1935, a Sociedade Anônima
de Melhoramentos Urbanos se unificava com a Empresa de Construções Civis Ltda. Embora
não tenhamos dos membros que faziam parte da primeira agremiação, há indícios de que entre
eles houvesse muitos que integravam os poderes municipais, a partir dos fragmentos que
identificamos no Jornal Oficial. A imprensa oficial informava que a Empresa de Construções
Idem, Ibidem
IGHB. Jornal A Época, 1º de agosto de 1935, Ano XIV, Nº 592
223
IGHB. Jornal A Época, 13 de agosto de 1935, Ano XIV, nº 597
221
222
96
Civis estava sob a liderança de José Nunes Mattos Filho, Antonio Nunes de Aquino, Diógenes
Rebouças, Nelson Oliveira e Randulpho Cunha.224 Destes, dois podem ser identificados. O
primeiro havia pertencido ao Conselho Consultivo entre os anos de 1932-1935, responsável
pelo parecer favorável do Conselho Municipal ao projeto de urbanização de Brito Filho.225 O
segundo era diretor da Secretaria de Obras Públicas, além de membro da tradicional família
Nunes de Aquino, proprietária de latifúndios no município. Por fim, todos pareciam fazer
parte do mesmo grupo político do PSD de Claudionor Alpoim.
A Empresa de Construções Civis tinha as mesmas intenções da ex-Sociedade
Anônima. Diante do plano de urbanização aprovado para Itabuna, a empresa se colocava a
disposição do poder público e da iniciativa privada para empreender a construção de
estabelecimentos desejados pelos segmentos dominantes da cidade. Em resposta, o Jornal
Oficial apontava que novas obras estavam na iminência de serem iniciadas e, por isso, a nova
firma de engenharia poderia concorrer para realizá-las.
Já são do conhecimento público os transcendentais problemas que estão a
preocupar o prefeito Dr. Alpoim. Dentre estes, notam-se a construção de um
“mercado modelo”, um hotel e um teatro, cujas obras serão postas em
execução, mediante concorrência pública. Assim sendo, não faltariam
empresas ou sociedades estranhas ao nosso meio, para se candidatar à
concessão de tais obras, se a iniciativa particular não se fizesse a tempo,
evitando a invasão do elemento estranho que, a frente de tão vultosas obras,
não deixariam, em parte, de prejudicar a economia do município, com a
exploração de serviços que poderão ser feitos, com reais vantagens, pelas
empresas, que são compostas, sem favor, de componentes técnicos de
reconhecida idoneidade profissional. 226
Em boa medida, as pessoas que faziam parte da Empresa de Construções Civis eram
pessoas reconhecidas pelo poder municipal, sobretudo por fazerem parte do mesmo grupo
político do prefeito. Um sinal disso é o telegrama enviado por Claudionor Alpoim em
agradecimento à comunicação da criação da citada empresa. Dizia o chefe do executivo que
agradecia a “iniciativa [de] cooperar [com o] governo municipal [para a] grandeza de Itabuna
cujo futuro minha fé ardente antevê brilhante.”227 Este poderia ser um indício de que a
Empresa de Construções Civis estaria bem próxima dos interesses do Governo local. Todavia,
ao contrário do que esperavam os engenheiros, a instalação dos serviços de saneamento foi
encaminhada para a Companhia Nacional S.A., e as outras obras planejadas pela Prefeitura
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 6 de julho de 1935, Ano VI, n.224. p.6.
APMIJD. Livro de Atas do Conselho Consultivo de Itabuna (1932-1935). Ata da 17ª Sessão Ordinária do
Conselho Consultivo de Itabuna, realizada em 30 de maio de 1934. p.41 B.
226
Idem,Ibidem.
227
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 13 de julho de 1935, Ano VI, n.º 225. p.5.
224
225
97
terminaram não se tornando realidade. Desse modo, coube à firma local se dedicar a fazer
imóveis residenciais. Em suas propagandas, ressaltava a edificação de imóveis dentro dos
padrões instituídos pela Secretaria de Obras Públicas, quais sejam, residências que possuíam
jardins na parte frontal, separando a rua da casa, niveladas e alinhadas de acordo com a
topografia da via, linhas arquitetônicas bem delineadas. Destacava-se, também, que suas
construções eram realizadas com concreto armado.228 Como garantia dos “bons serviços”, a
publicidade dos empreendimentos sempre trazia uma fotografia dos últimos trabalhos feitos
para as famílias tradicionais de Itabuna. Entre elas, identificamos a residência da senhora
Petrina Torres Falcão, na Rua J. J. Seabra, que havia demolido sua casa para erguer outra em
seu lugar. Outro que também adquiriu os serviços foi João da Cruz Ribeiro, morador da Rua
Domingo Lopes.
No intuito de conseguir novas construções de residências e de prédios comerciais, a
Empresa de Construções Civis Ltda. encomendou uma pequena coluna em outro órgão da
imprensa. Nela, tratava-se da edificação de casas baratas e das tragédias que aconteciam na
cidade. Iniciando a matéria, a nota dizia que as pessoas procuravam construir suas moradias
da forma mais econômica possível. Nas palavras do periódico, os sujeitos, procurando fugir
das instabilidades dos aluguéis e buscando construir seu espaço de sobrevivência, resolviam
erguer sua própria casa, sem para isso contar com o apoio especializado dos técnicos. Para
tanto, segundo a coluna, pagava-se a indivíduos sem preparo para desenhar a planta do
imóvel, sem obedecer aos critérios de higiene e estética instituídos pelo Código Sanitário. A
conclusão do texto se encaminhava para sugerir que esse tipo de empreendimento resultava
em um imóvel com “desconforto, desassossego e inconveniência originada da péssima
execução do projeto.”229
Embora a propaganda queira apontar os problemas oriundos de construções sem o
apoio técnico de um engenheiro, ela termina apontando os problemas que os trabalhadores
enfrentavam para garantir seu lar. Em meio a aluguéis, eles erguiam as casas a partir de sua
demanda imediata. Sem o auxílio de engenheiros, os setores populares iniciavam suas obras a
partir de suas necessidades, com a ajuda das pessoas que lhe eram mais próximas. Para os
padrões arquitetônicos e urbanísticos da Empresa de Construções Civis Ltda. esse tipo de
empreendimento contrariava seus interesses, já que a empresa se baseava em Códigos
Sanitários que não se adequavam, em boa medida, às expectativas dos mais pobres. É uma
tensão entre um grupo de profissionais que se fundamentava na racionalização dos imóveis
228
229
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 17 de julho de 1937, Ano XV, s/n.º p.1.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 4 de janeiro de 1936, Ano X, n.º18. p.1.
98
residenciais e comerciais, mediante projetos ligados aos interesses dos segmentos
hegemônicos; e a gente pobre que construía suas casas tendo em vista as carências de seu
modo de vida. Disso resultava, nas conclusões do periódico, dizer que “esta é feia, tem solidez
duvidosa, acabamento de aspecto desagradável, há falta de conforto geral. E perdurarão por
longos anos estes desagradáveis inconvenientes.”230
Ressaltar as formas de construção das camadas populares com aspectos negativos era
uma maneira encontrada, pelos representantes da empresa de engenharia civil, de ressaltar
positivamente seus próprios padrões de moradia. Tratava-se de convencer, por meio da
inversão de papéis, apontando as fissuras do Outro para destacar seu modelo urbano.231 Isso
ocorre a partir da sintonia de interesses privados com o poder público. Na esteira dos novos
valores de urbanidade que resvalam do projeto de urbanização, qual seja, higiene e estética, as
construtoras encontravam um intervalo para vender seus serviços. Isso indica que as primeiras
reformas urbanas foram também utilizadas como espaço de atuação de profissionais liberais
que possuíam vínculos políticos muito próximos com as autoridades municipais.
Como foi apontada, a concessão de isenção das Décimas Urbanas para a construção de
novos imóveis privilegiou indivíduos de posses e que estavam ligados diretamente aos
políticos da situação ou às tradicionais famílias de Itabuna. Na mesma medida em que
beneficiavam essa parte da população, as municipalidades resolveram criar os impostos para
estorvar a presença de prédios e de habitações populares. O primeiro desses impostos foi a
Taxa de Saneamento, criada no final do ano de 1935. Na criação desse tributo, a Prefeitura
levou em consideração que as obras de abastecimento de água e saneamento, necessárias à
Itabuna, eram caras demais, sendo inevitável para os cofres públicos a continuação dos
serviços sem contar com a ajuda dos munícipes. Dessa maneira, foi criada a referida taxa,
cujo cálculo era feito com o acréscimo de dez por cento ao valor do imposto predial de cada
contribuinte.232
Mais de um ano depois, a taxa de saneamento provocou um efeito não desejado pelas
municipalidades. Outrossim, o poder público resolveu criar outros dois tributos, a taxa de
incêndio e a de vigilância, a primeira com vistas a implantar o corpo de bombeiros e a
segunda para ampliar o funcionamento da Guarda Municipal. Em abril de 1937, o A Época
noticiava que proprietários de imóveis residenciais e prédios comerciais estavam repassando
Idem, ibidem.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate
Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p.77. Bhabha aponta que a identificação do projeto dominante se
dá sempre na fissura no lugar do Outro, isto é, negando o diferente ou o antagônico na ordem estabelecida.
232
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 18 de janeiro de 1936. Ano V, n.º 251, Ato 234, 16
de dezembro de 1935. p.1.
230
231
99
os custos da cobrança dos novos tributos para o valor dos aluguéis. Nas palavras do jornal,
“baseados na crença dessas taxas, os proprietários estão majorando, de maneira absurda, os
aluguéis de seus prédios dando como pretexto o aumento da tributação.”233 Os aumentos
verificados sobre a locação dos imóveis parecem ter tornado a relação entre as
municipalidades e a população pobre um pouco tensa, visto que a matéria indicava que os
procedimentos dos proprietários criava uma “situação de antipatia contra os poderes públicos,
cujo único intuito é melhorar a cidade, dotando-a de novos e imprescindíveis serviços. E para
isto, todos sabem, é necessário a criação de impostos e taxas, não exorbitantes, como querem
fazer crer aos inquilinos”234
A situação da habitação não era das melhores em Itabuna durante a década de 1930.
Em notícia sobre a paralisação do financiamento para a construção de casa, o A Época
solicitava ao banco federal que retomasse sua linha de crédito com vistas a “resolver em parte,
a angustiosa situação da falta de habitações entre nós.”235 Certamente este era um problema
para “os de baixo”, visto que lhes restava apenas construir suas casas sem muitas regalias ou
pagar aluguel. O aumento dos aluguéis por conta dos novos impostos provavelmente traria
desconforto entre os setores dirigentes política e os subalternos. Talvez por isso, a necessidade
de reafirmar a importância das novas taxas para a população através da imprensa local. No
entanto, mesmo diante dos argumentos do governo municipal, a insatisfação com as taxas
cobradas tomou corpo em junho de 1938. Após um incêndio na Padaria 2 de Julho, localizada
na Rua J.J. Seabra, que tomou proporções catastróficas, O Intransigente se perguntava sobre o
prometido Corpo de Bombeiro que seria criado com a aludida taxa.
Itabuna paga uma taxa a mais, além das múltiplas já cobradas sobre as
propriedades urbanas – a taxa de Segurança e Incêndio, que por castigo, não é
módica.
Das promessas que nos ficaram, a mais gritante é a da criação do Corpo de
Bombeiros, porque estamos pagando a idéia de sua criação. Pagando a
essência, o espírito...
A revolta do povo contra esse menoscabo à sua dignidade, porém, é patente.
E, nas labaredas que crepitaram na noite de domingo último, crepitavam
também o protesto popular. Todos perguntavam pelo “Corpo de Bombeiros”,
enquanto o prédio sinistro ia aos poucos, ruindo. 236
Cumprindo a função de jornal oposicionista em Itabuna, este semanário representava
em parte a insatisfação em relação à cobrança de tributos pela administração pública. Ao que
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 8 de abril de 1937, Ano XV, nº ilegível. p.1.
Idem,Ibidem.
235
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 6 de fevereiro de 1937, Ano XV, nº 814. p.1.
236
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 11 de junho de 1938, Ano XII, n.º 41. p.1.
233
234
100
parece, nem a implantação do Corpo de Bombeiros e nem a ampliação da Guarda Municipal
foram verificadas até o ano de 1940. Embora a cobrança dessas taxas atingisse as camadas
populares que pagavam aluguel, uma parcela dos comerciantes locais também se sentia
prejudicada com a política tributária do município. Talvez este seja o caso da Padaria 2 de
julho, que não recebeu nenhuma indenização da Prefeitura. No entanto, não foram apenas
estas taxas que mexeram com os interesses da população pobre.
Retornando a 1936, verificou-se a criação de uma nova tributação pela Prefeitura.
Além do imposto predial, cobrava-se também o imposto territorial em 5 de setembro daquele
ano. Essa nova taxa recaía sobre os indivíduos que habitassem ou fossem responsáveis por
terrenos de prédios inacabados, desabados, inabitáveis, ruínas e incendiados, além de terrenos
baldios que estivessem na zona urbana de Itabuna. Os valores destes encargos municipais
variavam entre dez mil e cem mil réis, a depender da localização do imóvel. Além disso, ao
valor total, seriam adicionados mais dez por cento para auxílio das obras de saneamento da
cidade.237 Essa medida estava em sintonia com os interesses estabelecidos pela classe política
dirigente que queria evitar a existência de “prédios em ruínas e terrenos baldios que afeiam os
aspectos urbanos [de Itabuna]”238
A criação destes impostos não parece apenas atender aos anseios de melhoramentos
das condições estéticas e higiênicas dos prédios urbanos, mas também tem o fim de evitar a
ocupação destes espaços pela parcela pobre da população. Desempenhando novamente sua
função de imprensa de oposição, O Intransigente indicava sua insatisfação com a nova taxa
municipal no que toca aos moradores pobres do perímetro adjacente da zona urbana. Em uma
matéria sobre o tema, dizia que protestava e apelava ao “senhor prefeito, no sentido de ser
extinta ou diminuída as taxas sobre os baldios, fora do perímetro urbano, como, por exemplo,
Santa Casa, Pontalzinho, Caixa D’água, onde mora a pobreza [...] que não tem o direito de
viver nas ruas, hoje calcadas e iluminadas”.239 Este imposto atingiria outro tipo de habitação
comum em Itabuna, chamada de meia-água, casebres que possuíam no máximo, dois
cômodos, muitas vezes erguidas em ruínas na qual moravam várias famílias. Para o mesmo
semanário, nem mesmo aquele que “mal se cobre em telheiros, ruínas e meia-águas não
poderá permanecer nesses subúrbios, onde já o fisco quer alcançá-lo com suas mão de
ferro.”240
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 26 de setembro de 1936, Ano VI, n.º 287. p.2.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 8 de dezembro de 1934, Ano III, n.º 194. p.1.
239
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de agosto de 1936, Ano X, n.º 49. p.1.
240
Idem,Ibidem.
237
238
101
A criação de novos impostos contribuiu para o aumento dos preços dos aluguéis e para
a tentativa de diminuir a existência de imóveis inabitados, ruínas e terrenos baldios. De
alguma forma, esses novos tributos também compensavam as isenções concedidas aos
indivíduos que construíssem imóveis dentro dos padrões estipulados pelos poderes públicos.
Essas taxas geraram, para o Governo Municipal, uma arrecadação de dois mil contos de réis
para o ano de 1937.241 Isso seria o suficiente para que a Prefeitura quitasse parte considerável
do empréstimo tomado à Caixa Econômica para a implantação do sistema de distribuição de
água e esgoto, no valor 3.200:000$000 (três mil e duzentos contos de réis). No entanto, o
pagamento não foi realizado totalmente.
Até aqui, já é possível notar que o mercado imobiliário estava relacionado ao
andamento do plano de urbanização de Itabuna. Na medida em que se implantava o sistema
de água e esgoto e calçavam-se ruas e avenidas, criava-se também tributos e apareciam
empresas de construção civil. Diante de sua expansão urbana, outra empresa surgia no
horizonte da cidade. Tratava-se da Empresa de Terrenos Urbanos Ltda., liderada pelas
mesmas pessoas que dirigiam a Empresa de Construções Civis. Dessa vez, Antônio Nunes de
Aquino falava sobre a abertura de um novo bairro, chamado de Cidade Jardim. Nas palavras
do engenheiro, aquele seria “o bairro número 1 e orgulho de nossa cidade”.
242
O
empreendimento se situava próximo de importantes pontos, entre eles: ao lado do
Reservatório de Abastecimento de Águas, perto da colina da estação de tratamento, da praça
de esportes e do Estádio Itabuna (atualmente, região próxima ao Centro Cultural, no bairro
Zildolândia). A região também ficava muito próxima do perímetro central. Configurava-se
quase como extensão das ruas que passavam pelo centro, como é o caso das ruas Ruy Barbosa
e sete de setembro. Sobre o empreendimento Aquino informava ao A Época que contava com
o apoio do Governo Municipal, o qual havia prometido “iniciar imediatamente o arruamento e
arborização do bairro, assim como para ali serão levados, em breve tempo, os melhoramentos
indispensáveis à cidade moderna, luz, água, esgoto, escolas e jardins”243
No entanto, para entender melhor este empreendimento, é importante retornar a 1936.
Em 30 de maio daquele ano, o Jornal Oficial informava que o Cel. Berilo Guimarães fazia
uma doação de uma faixa de terreno da sua propriedade à Prefeitura. A finalidade do
oferecimento seria para proporcionar um espaço para a implantação dos serviços de Água e
Esgoto. Para a imprensa do Governo, tratava-se de um homem que sabia “sacrificar os seus
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 1º de janeiro de 1938, Ano VIII, n.º 352. p.2.
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 12 de agosto de 1937, Ano XV, n.º 891. p.1.
243
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 12 de agosto de 1937, Ano XV, n.º 891. p.1.
241
242
102
mais legítimos interesses pelo bem comum dos governados”. 244 Depois de um ano de obras,
tendo sido instalada a estação de tratamento de água nas antigas terras do fazendeiro, aparecia
o projeto de criação da Cidade Jardim. O detalhe significativo é que o novo bairro surgiria
exatamente no restante de suas terras, que, após as obras, passou a ser valorizado pela
proximidade com o novo sistema de distribuição de água. Por isso, parece que a doação feita
ao poder público, sob a justificativa do “sacrifício” de seus interesses, resultou na
rentabilidade financeira de suas terras.
O que sobrou das terras de Berilo Guimarães, por conseguinte, foi loteado, dando
origem ao projeto da Cidade Jardim. O projeto parecia agradar a boa parte dos segmentos
hegemônicos da política local. Garantindo o retorno do investimento, a Empresa apontava que
diversas pessoas importantes haviam adquirido seu lote, entre elas, o próprio prefeito da
cidade, Claudionor Alpoim, o ex-prefeito Glicério Lima, os engenheiros José Nunes de
Aquino e Mário Silva, os médicos Orlando e Alberto Galvão.245 Estes são alguns dos que
receberam “com a mais animadora acolhida [...] a iniciativa da ‘Empresa de Terrenos
Urbanos’, que visa dotar a nossa cidade de mais um bairro residencial, este em traçado
modelar e irrepreensível.”246 Pela forma como descrevia a construção do novo bairro, a
Cidade Jardim deveria ser a expressão moderna de um logradouro planejado de acordo com
os padrões de urbanização dos engenheiros daquela firma, habitado por sujeitos que
possuíssem condições financeiras suficientes para adquirir os lotes. Este deveria se contrapor
aos outros bairros, por ser “modelar e irrepreensível” na visão da empresa de terrenos.
Ademais, quando da inauguração de sua pedra fundamental, em 8 de setembro de 1937, o A
Época anunciava que as pessoas que tivessem adquirido e que adquirissem os primeiros lotes
gozariam da isenção das Décimas Urbanas, concedida pela Prefeitura.247
**********
Ao anunciar a concessão de benefícios ao empreendimento da Cidade Jardim, o poder
municipal evidenciava a relação entre o mercado imobiliário e o plano de urbanização de
Itabuna. Foi possível identificar uma política tributária que concedia isenções de impostos
locais para capitalistas que erguessem imóveis de acordo com os interesses do poder público,
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 30 de maio de 1936, Ano VI, n.º 270. p.1.
Algo em comum entre estes sujeitos era o fato de pertencerem ao mesmo grupo político do PSD, liderado por
Gileno Amado, entre os anos de 1933 e 1937.
246
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 19 de agosto de 1937, Ano XV, n.º 892. p.1.
247
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 10 de setembro de 1937, Ano XV, n.º 892. p.1.
244
245
103
mas que também promoveu a criação de novas taxas tributárias. O apoio da Prefeitura à
construção de prédios públicos pela iniciativa privada permitia também que os segmentos
hegemônicos fossem delimitando suas posições espaciais no perímetro. Em contrapartida, a
criação de impostos tornava a situação da habitação complexa, em vista do significativo
aumento no valor dos aluguéis na zona urbana.
O plano de urbanização também contribuiu para o aparecimento de empresa
imobiliária que aproveitou a carona das primeiras reformas urbanas para entrar no mercado
local. Diante do que foi visto, essas firmas eram comandadas por pessoas que estavam ligadas
ao poder público ou às famílias tradicionais de Itabuna. Assumindo uma posição de grupo
propulsor do “progresso” urbano, essas empresas buscavam atuar no vácuo dos ideais de
planejamento e de racionalização do viver citadino, mediante a construção de imóveis e a
abertura de novos bairros. Para isso, tentava ressaltar os novos valores urbanos negando o
costume da construção de casas sem planejamento por pessoas que não possuíam
conhecimento técnico. O empreendimento da Cidade Jardim serviu para se observar a maneira
que proprietários de terras próximas ao perímetro central encontraram para valorizar suas
terras. Adotando uma postura “altruísta” em relação à urbanização local, mediante a doação
de parte de seus terrenos para a Prefeitura, esses indivíduos terminavam elevando o valor de
sua propriedade em vista do recebimento dos melhoramentos urbanos.
Dessas considerações, o mercado imobiliário surgiu como uma estratégia dos
segmentos hegemônicos para tentar tornar a cidade um espaço seu, utilizando-se da
linguagem formal e racional da urbanização, e da política tributária de isenção de Décimas
Urbanas assim como do surgimento de novos impostos. Essa estratégia tem por objetivo
estabelecer um uso da cidade determinado pelas condições políticas, culturais e sociais
daqueles que fazem parte da ordem estabelecida.248 Era o uso autorizado do território urbano
administrado pelos poderes instituídos que delimitava o valor dos espaços a partir do interesse
especulativo do mercado, tentando combinar gestão e controle das zonas citadinas. Essa
Itabuna em processo de urbanização passava a utilizar o mercado e seus mecanismos
tributários como forma de construir uma lógica urbana (formal e racionalizada) que atenda
aos projetos hegemônicos de cidade. Mas, apesar de tentar fazer de Itabuna uma cidade
amorfa, anônima e universal, são as pessoas simples e pobres que utilizavam cotidianamente
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes de fazer.1. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.173. Para
Certeau, uma das operações que faz parte do discurso utópico e urbanístico para as cidades é a produção de “um
espaço próprio, [...] lugar organizado por operações ‘especulativas e classificatórias, [onde] combinam-se gestão
e eliminação.’”
248
104
suas ruas, avenidas e praças que oferecem outros sentidos e práticas para esse ambiente
urbano.
Planos em disputa: prostitutas e poder público em Itabuna
Apesar da tentativa de trazer novas formas de organização para as práticas urbanas, o
urbanismo não conseguiu evitar que as pessoas comuns se deslocassem das condições
estabelecidas por ele. Muito além da somatória de concreto, prédios, pedras, são as pessoas
em suas atividades cotidianas que acabam fazendo da cidade um espaço dinâmico e ativo
socialmente. Por isso, a cidade é um conjunto de práticas humanas, que criam sentidos
diversos de uso para seus habitantes.249 E nem sempre eles estão dispostos a aceitar
passivamente os arranjos “racionais” criados para eles. Às vezes fazem usos não autorizados
deste espaço, apropriando-o conforme seus interesses, costumes e tradições. A urbanização de
Itabuna indicava a tentativa de se estabelecer uma ordem citadina, procurando oferecer uma
formalidade para a expansão urbana e o crescimento demográfico em respeito aos interesses
dos poderes instituídos. No entanto, essa linguagem formal terminou por ganhar sentidos
diferentes entre as pessoas pobres nas vias e nos logradouros itabunenses. Essas diferenças de
significados resultaram em tensões entre os grupos sociais que compunham essa cidade.
O uso “ordinário” de Itabuna feito pelos trabalhadores levou a estranhamentos com o
poder público e a imprensa. Utilizando-se de costumes e tradições sedimentados por uma
prática historicamente construída, os populares terminaram afrontando, com seus
comportamentos cotidianos, o projeto de cidade patrocinado pelos urbanistas. Em dezembro
de 1942, o A Época chamava a atenção da Guarda Municipal com vistas a tomar providências
contra pessoas que se banhavam no Rio Cachoeira, próximo à Rua Alfeu Carvalho, no
perímetro central. Segundo as queixas, “os referidos banhistas, além de escolherem um local
não apropriado para tal sentido, ficam ainda em trajes de Adão, desrespeitando assim as
famílias ali residentes e as que passam por aquele local.”250 Como apontei antes, as margens e
o leito do rio foram zonas nas quais os urbanistas defendiam a intervenção do poder público
para evitar sua utilização por parte da população. Diante disso, hábito de tomar banho no Rio
Cachoeira, especialmente nas áreas próximas do centro da cidade, passava a ser
freqüentemente apontado como condutas desviantes pela imprensa.
LEPETIT, Bernad. Por uma nova história urbana. Heliana Angotti Salgueiro, organização. São Paulo:
Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 145.
250
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 26 de dezembro de 1942, Ano XXIV, n.º 1238. p.4.
249
105
Diante do plano de urbanização, o centro de Itabuna deveria ser um território para
abrigar o comércio e os prédios públicos por conta da própria organização que se oferecia
para esta área. Surgia a intolerância com práticas que contrariassem às expectativas de
comportamento dos segmentos hegemônicos, entre eles o banho público. Mostrar-se em trajes
considerados inadequados diante das pessoas passava a ser um ultraje para uma cultura urbana
que pregava a privacidade de hábitos íntimos e os valores de higiene, especialmente com os
novos padrões de urbanidade aplicados a Itabuna.251 Por outro lado, a prática de tomar banho
no rio parecia ser comum entre os moradores de uma cidade que não possuía distribuição
eficiente de água encanada e suficiente para abastecer os bairros, apesar da inauguração do
sistema de água e esgoto em 1937. Por isso, desde esse ano, os jornais já noticiavam com
insatisfação “pessoas tomando banho completamente despidas num flagrante desrespeito às
famílias ali residentes.”252 Os meses de verão contribuíam para que a população pobre fizesse
o uso “não autorizado” do rio, por conta da falta de água e do calor intenso comum da região
entre dezembro e janeiro.
O caso dos banhistas é uma evidência de que mesmo com as restrições impostas às
margens do Rio Cachoeira por parte dos engenheiros e, por conseguinte, da imprensa, as
pessoas não deixaram de fazer uso daquele espaço. Nessas pequenas práticas cotidianas, que
Certeau chama de ordinárias porque são micro e estranhas à ordem estabelecida,253 os
trabalhadores conseguiam dobrar seus críticos e manter sua posição na cidade em
transformação. Mas gostaria de apresentar um grupo específico de pessoas que não só
procurava preservar suas ações como também forçava os poderes instituídos a criar meios de
mudar sua política urbana. Tratam-se das prostitutas que integravam o meretrício no centro de
Itabuna, entre as ruas Cel. Domingos Lopes (Atual Av. Duque de Caxias) e Ruy Barbosa.
Interessa detectar as práticas dessas mulheres enquanto condutas estranhas ao espaço
geométrico ou geográfico da cidade, que formulam operações, isto é, maneiras de agir e de
fazer, específicas de uma outra territorialidade e que se opõem aos padrões hegemônicos.
RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: Utopia da cidade disciplinada. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1985. A autora sinaliza que a urbanização trazia intrinsecamente a privatização dos hábitos de higiene,
que tem lugar em espaços determinados das moradias. Assim, sedimentava-se uma cultura urbana do privado em
que banhos e lavagem de roupas, por exemplo, deveriam ser realizados dentro do domicílio, e contrária a essas
práticas em espaços públicos. p.189.
252
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 15 de dezembro de 1937, Ano XVI, n.º 930. p.1.
253
CERTEAU, Michel. Op. cit., p.171. Para o ex-jesuíta francês, a partir dos limiares onde cessa a visibilidade,
vivem os praticantes ordinários, sujeitos estranhos dentro de sua própria casa, e neste caso, de sua própria cidade,
e que fazem um uso popular deste espaço.
251
106
Em 21 de agosto de 1943, o A Época lançava uma edição comemorativa do 33º
aniversário de elevação de Itabuna à condição de município.
254
Entre as várias homenagens,
aparecia em destaque uma que se direcionava à “Campanha moralisadora iniciada pelo sr.
Leopoldo Freire”. O motivo para o reconhecimento e a honraria concedidos à Freire estava
ligado a sua participação na retirada do “baixo meretrício” da Rua Domingos Lopes, via que
passava por remodelação urbana com calçamento, alinhamento, nivelamento e arborização. A
edição daquele dia ressaltava as “dificuldades” encontradas por Freire para combater a
prostituição
Itabuna teve até pouco tempo o seu problema, mais grave que em outros
centros; é que aqui a prostituição se exercia livremente, abertamente, às
escancaradas, e as casas de tolerâncias se localizavam nas duas ruas das
mais centrais e importantes da cidade, onde residem famílias e constituíam
passagem obrigatória de transeuntes que demandavam a outros pontos.
Cenas deponentes eram presenciadas a horas da noite e do dia, tendo por
protagonistas as rameiras e indivíduos despudorados. Olhos de crianças e
mocinhas, a saída do cinema, quando demandavam a residência, eram
maculados pela bruteza de espetáculos atentarórios à moral. A carência de
habitações no centro urbano porém obrigava as famílias, muitas vezes sem
outra alternativa, a residirem em tais ruas que as decaídas queriam para seus
exclusivos domínios.255
A presença de prostitutas e estabelecimentos de prostituição no centro das cidades não
era algo incomum na região. Em Itabuna, além do estranhamento em relação às condutas
daquelas mulheres pelos setores tradicionais da sociedade, a disputa pelo território urbano foi
um dos motivos para as tensões sociais entre o final da década de 1930 e a de 1940. O jornal
evidenciava diferentes sentidos para um mesmo espaço urbano. Para os urbanistas e a
imprensa, enquanto organizadores do discurso do poder público, o centro deveria ser o
território da ordem estabelecida, racionalizado para condicionar o desenvolvimento local, e
lugar de moradia do padrão de família cristã e burguesa. Por outro lado, as prostitutas
parecem se apropriar daquele espaço com práticas urbanas diferentes das estabelecidas
predominantemente pelos grupos políticos dirigentes. Se estes últimos exigiam exclusividade
no uso do perímetro central, as mulheres também desejavam parte daquela área “para seus
exclusivos domínios”, como se referia o periódico.
O evento de 1943 apontava para o clímax de uma tensão que teve, naquele ano, um
dos conflitos decisivos para a vivência daquelas mulheres em Itabuna. Mas creio ser
importante tentar traçar uma breve trajetória da ocupação das ruas Domingos Lopes e Ruy
254
Até a década de 1940, a comemoração do dia da cidade era feita no dia 21 de agosto, data em que foi
homologada oficialmente a elevação de nível político-administrativo de Itabuna.
255
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 21 de agosto de 1943, Ano XXV, s/n.º. p.5.
107
Barbosa pelas prostitutas. Provavelmente até a década de 1920, as duas ruas eram curtas e
estreitas, ocupando uma importância secundária em relação ao perímetro central. Segundo
Gonçalves, as ruas eram de três metros de largura e a numeração das casas não costumava
chegar à segunda centena. As vias terminavam nos pastos do fazendeiro Paulino Vieira.256
Nesse período também não havia muita infra-estrutura, não dispondo de pavimentação e de
saneamento básico para os moradores.
Além das características citadas acima, Andrade-Breust aponta também para a
existência de várias casas de prostituição nas ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa a partir da
década de 1910, embora a memorialista não se preocupe em apontar fontes seguras de sua
informação. Segundo ela, naquele período dois famosos estabelecimentos já centralizavam a
demanda da população masculina: O Caramujo, aberto em 1915 e coordenado por uma
mineira conhecida pelo pseudônimo de Rosa Piasca; e O Lambareto, dirigido por Maria
Bizum e inaugurado em 1918, considerado simples e barato, sendo por isso, freqüentado por
capangas, filhos de trabalhadores e de comerciantes.257
Apesar desses primeiros estabelecimentos nas ruas Domingos Lopes e Ruy Babrbosa
terem surgido nas décadas de 1910, Andrade-Breust sinaliza que a maior parte dos cabarés
tenha se fixado naquele lugar durante a década de 1920. A memorialista ressalta o surgimento
de “O Corujão da Madrugada”, inaugurado em 1920 por Bárbara Pastor de Jesus. O
estabelecimento era conhecido por ter moças muito bonitas, quase todas vindas do Rio de
Janeiro, São Paulo e Salvador. Segundo a referida autora, “era o mais requintado e procurava
manter o padrão das capitais brasileiras, trazendo novas mulheres, investindo na decoração do
ambiente e no vestuário das meretrizes.” 258
Mesmo com as denúncias contra as prostitutas na imprensa, as duas ruas não deixaram
de receber os melhoramentos urbanos iniciados no decorrer de 1930. Durante as primeiras
reformas executadas pelo Governo Municipal, a Rua Domingos Lopes foi calçada a paralelos,
alargada e prolongada, com a plantação de diversas árvores no logradouro.259 Após essas
mudanças, houve a alteração de sua nomenclatura para Avenida Duque de Caxias, embora
exista referência ao seu antigo nome até o final da década de 1940.
260
A Rua Ruy Barbosa
também foi calçada neste mesmo período, quando houve seu alargamento e prolongamento.
Estes dois logradouros concentravam um bom número de bares, bilhares, açougues e
GONÇALVES, Oscar R. Op. Cit. p.116-117.
ANDRADE-BREUST, Adriana. História e estórias de Itabuna. Ilhéus: Editus, 2003. p.80.
258
ANDRADE-BREUST, Adriana. Op. Cit. p.89
259
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 24 de julho de 1937, Ano VII, n.º 329. p.10.
260
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 10 de novembro de 1936, Ano VI, n.º 294. p.10.
256
257
108
barbearias. Estes estabelecimentos atraíam principalmente a população masculina de Itabuna.
A circulação de pessoas era intensa, sobretudo por se localizarem em pleno centro da
cidade.261
Desde 1928, é possível identificar reportagens na imprensa denunciando a presença
das mulheres nas ruas Coronel Domingos Lopes e Ruy Barbosa. Em setembro daquele ano, o
A Época, em extensa reportagem, chamava a atenção das autoridades públicas para que
exercessem um controle mais efetivo naquela área, que além de ser espaço de jogatina,
também era ocupado por prostitutas. O periódico oferecia duas explicações para o aumento do
número de mulheres na cidade. A primeira delas afirmava que quando a polícia de Ilhéus
promovia ações mais enérgicas no município, uma parte dessas mulheres vinha para Itabuna
buscando refúgio contra as perseguições. Outra explicação é a presença de mulheres atraídas
pela fama da Região advindas do sertão e do Recôncavo da Bahia. 262
Inicialmente, as duas explicações sugerem a tentativa da imprensa de relacionar a
causa da prostituição com fatores externos. Isso justificava a idéia de que Itabuna
originalmente não possuiria estas atividades, sendo o agente estrangeiro o responsável pelo
avanço do meretrício. Todavia, a explicação do jornal também pode indicar uma rede de
comunicação entre as mulheres da região, de maneira a articularem táticas para sobreviver
diante da repressão. No entanto, a preocupação maior aqui não é buscar as origens dessas
mulheres, mas tentar perceber a relação delas com as ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa. A
impressão é que estas vias foram ocupadas intensamente pelo mulherio desde a década de
1910. A forma corriqueira com que a imprensa publicava queixas contra elas nos oferece uma
medida para avaliar sua atuação persistente naquelas ruas. Em junho de 1928, o A Época
novamente preenchia sua primeira página solicitando a presença da polícia e pedindo punição
exemplar para as mulheres. Dizia que “Moradores da rua Cel. Domingos Lopes pedem-nos
chamemos a atenção da polícia para algumas horizontais residentes naquela via pública entre
as casas n.º 8 e 14, cujo procedimento de semanas para cá, vem-se tornando escandaloso e
insuportável”. 263
Entre as matérias publicadas no ano de 1928 pelo A Época, talvez uma das mais
interessantes fosse a que foi intitulada “As aventuras de uma barregã iam provocando um
conflito”. Publicada em fevereiro daquele ano, narrava uma contenda entre Caboclinha e João
Simplício da Cruz. Para o jornal, o homem era um rapaz de bom procedimento e trabalhador;
CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de abril de 1935, Ano III, n.º 12. p.2.
IGHB. Jornal A Época, 29 de setembro de 1928, Ano XI, nº 433.
263
IGHB. Jornal A Época, 2 de junho de 1928, Ano XI, nº 416.
261
262
109
e Caboclinha era “mulher de má vida [...] quando embriagada, fica em estado insuportável.
Diz palavrões, profere obscenidades e quer atentar contra a integridade física de seus
semelhantes.”264 Certo dia, Caboclinha havia se embriagado novamente e resolvera sair da
casa onde vivia, e no meio da rua começou a detratar o seu companheiro. Durante o fato, a
polícia chegara à Rua Domingos Lopes provocando a fuga da mulher e a prisão de João
Simplício. No entanto, a ação da força pública causara também a ira da população, que partiu
para cima dos soldados, tendo sido também preso por agressão Miguel de Tal, vizinho da
mulher. Para resolver a situação, Leopoldo Freire, patrão de Miguel, interveio em favor da
liberação de seu empregado. Quanto a Caboclinha, ela foi alcançada pelos soldados e solta na
manhã seguinte. 265
Esse episódio de Caboclinha é fundamental porque envolve, no mesmo cenário, uma
prostituta e Leopoldo Freire. Este é um sinal de que Freire não tinha uma convivência tão
pacífica com suas vizinhas, visto que garantiu apenas a liberdade de seu empregado no caso.
Possuidor de uma padaria na Rua Domingos Lopes e funcionário da Coletoria Estadual, ele
era apenas uma parte da sociedade que enxergava nas mulheres de vida livre uma “ameaça” à
moral familiar e cristã. Isso se refletia também pelo fato de que conhecermos Caboclinha por
sua alcunha, que talvez se desse em razão de sua cor, sem direito a nome e sem boas
referências dos jornais locais. Por outro lado, a reação da população frente à intervenção no
caso sugere a insatisfação popular com a polícia e a instauração de um território em que o
Poder Público encontrava dificuldade para atuar. A vizinhança não permitiu passivamente que
a força pública prendesse os envolvidos na querela. Isso passa a ser significativo na medida
em que acontecia em pleno centro da cidade, lugar de intervenção da ordem política, sendo
dominado pela prática urbana dos trabalhadores(as) pobres urbanos.
Os diversos bares e a jogatina instalados nas ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa
faziam com que a população masculina procurasse aquela região para se divertir. Isso talvez
pudesse contribuir para que parte considerável das prostitutas se localizasse por ali. No
entanto, outros elementos também parecem ter contribuído para a instalação do meretrício
naquelas duas ruas. Uma evidência disso está em um Edital de Protesto publicado na década
de 1940. Em 18 de abril de 1944, falecia o Coronel Berilo Guimarães. Conforme notei
anteriormente, ele realizou as doações dos terrenos onde foi construído o sistema de
tratamento e distribuição de água de Itabuna na década de 1930. Posteriormente, projetou o
bairro Cidade Jardim no restante de suas terras em parceria com a Empresa de Terrenos
264
265
Idem, ibidem.
Idem, Ibidem
110
Urbanos, aproveitando-se daquele melhoramento para valorizar suas propriedades. Além
disso, em seu testamento, deixou parte de seus bens para ser revertido para a construção do
novo pavilhão do Hospital e da Casa dos Mendigos. No dia do seu sepultamento, houve
homenagens e a presença de várias instituições locais, tais como a Sociedade Monte Pio dos
Artistas, a Sociedade São Vicente de Paulo e a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia.266
Apesar de ressaltar as boas ações de Berilo Guimarães com a doação de terrenos para
a Prefeitura e para instituições filantrópicas da cidade, seria uma outra doação que chamaria
atenção da justiça local. Em 12 de maio de 1944, quase um mês depois da morte do coronel,
D. Isolina da Silva Guimarães produziu um Edital de Protesto contra Maria Gerosina da Silva.
A primeira era esposa do falecido Berilo Guimarães, e a segunda, conhecida concubina deste.
Dizia a petição de protesto que o coronel “fez em vida, várias doações, diretas e indiretas,
claras e disfarçadas, à sua concubina, residente a rua Ruy Barbosa, próximo à Cidade Jardim.”
Além disso, garantia que os bens que a amante possuía em seu nome eram todos resultados da
munificência do seu falecido esposo, visto que aquela não possuía renda suficiente para
contrair posses. Ao final do documento, Isolina Guimarães informava que Maria Gerosina
entrava na justiça para tentar alienar alguns dos bens que o finado marido havia deixado para
ela e seus filhos, herdeiros legítimos dos bens.267
A querela entre Isolina Guimarães e Maria Gerosina é uma evidência de que a
ocupação das prostitutas na região das ruas Ruy Barbosa e Domingos Lopes aconteceu
também com o auxílio dos homens de prestígio da cidade. A literatura regional aponta para
vários casos de mulheres que eram sustentadas pelos seus amantes, coronéis que exigiam
exclusividade com meretrizes de luxo e, por isso, construíam casas para abrigá-las próximas
do centro.268 Em 30 de maio de 1944, Zildo Pedro da Silva Guimarães, filho do falecido
coronel, fazia petição para verificar se o imóvel onde vivia Maria Gerosina possuía registro de
Décimas Urbanas em seu nome na Rua Ruy Barbosa. Naquela oportunidade, recebeu uma
reposta positiva da Prefeitura.269
A ocupação do centro de Itabuna pelo meretrício parece ter sido tolerada também
pelos soldados que policiavam aquela área da cidade. Reunidos em bares, a polícia e o
mulherio encontravam um espaço em comum para sua atuação. Este é o caso do Bar A
Miscelânea onde, segundo O Intransigente, “a pornografia [...] é a canção predileta dos
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 22 de abril de 1944, Ano XVII, n.º 34. p.4.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 16 de maio de 1944, Ano XII, n.º 676. p.2.
268
AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Record, 2005.
269
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 30 de maio de 1944, Ano XII, n.º 678. p.1.
266
267
111
freqüentadores das orgias noturnas na rua Ruy Barbosa.”270 Em outra edição, o mesmo jornal
exigia uma posição mais firme da polícia, visto que
“As Brancas de Neve”, mercê do descaso policial, vivem como lhes parece,
na maior e mais deslavada sem cerimônia afrontando a sociedade e
menosprezando as regras da moral e dos bons costumes.
Bebericam pelos cabarets, de dia ou de noite, disputam as prezas, a qualquer
momento discutem em meio das ruas, enfim, tudo praticam sem o menor
receio dessa polícia que parece ter vendas nos olhos, para melhor enxergar.271
É possível que o descaso policial não fosse em vão. A nota ainda pedia que a polícia
procurasse localizar as prostitutas para acabar com as “vergonhosas cenas que tanto deprimem
o progresso de Itabuna”272 Não era só a polícia militar que freqüentava os ambientes de
prostituição. No capítulo anterior, notou-se a presença de membros da Guarda Municipal em
pensões de “mulheres de vida livre”. Mas, ao que parece, a polícia sabia onde e quando o
mulherio atuava. No entanto não encontrava motivação para impedir sua atuação. A cobrança
da imprensa em relação às autoridades da segurança pública é um indício de que havia uma
flexibilidade dos policiais com o meretrício da cidade. Com a conivência dos soldados e a
conveniência para os coronéis locais, parte das prostitutas conseguiu se manter nas ruas
Domingos Lopes e Ruy Barbosa, apesar dos preconceitos e dos estigmas da imprensa, até a
década de 1930.
A relação das prostitutas com outros setores da sociedade oferece um sinal do trânsito
social que elas percorriam na sobrevivência cotidiana e na afirmação de seu território de
atuação. Voltando às fontes literárias, que são resultado de uma demanda social, e carregam
em si as influências do tempo histórico em que surgiram273, Telmo Padilha, poeta da cidade,
apontava em sua obra o envolvimento das mulheres com comerciantes, fazendeiros e
policiais, de onde tiravam o suporte financeiro necessário para sua subsistência. Mais do que
isso, Padilha descreve os desfiles entre as ruas principais da cidade feitos pelo mulherio:
Depois ruas escuras e boleros, vermelhas luzes nas arcadas, odor de fumo e de
esperma, vidrinhos de perfumes sobre a cômoda, blenorrágicos gritos
alugados, um quilo de cacau por uma hora, no salão inquietos comerciários,
velhos coronéis de arma à cinta, ébrios policiais de sono e álcool. Um disparo
sem propósito. Mais tarde, na movimentada avenida principal elas
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 13 de setembro de 1935, Ano X, n.º
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 5 de dezembro de 1936, Ano XI, n.º 14. p.4.
272
Idem, Ibidem.
273
SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ª
Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 29. Para o autor, não podemos imaginar uma obra literária
como uma árvore sem raiz, resultado da mera imaginação do autor, mas sim como produção carregada de
significados oriundos do tempo em que foi produzida.
270
271
112
desfilariam, disponíveis e discretas, o primário feito, alforriadas e belas, flores
dos motéis, sentam-se nos bares noturnos e recitam poemas [...] mal pagas,
comem sua juventude e seus sonhos, e deitam-se sem remorsos sobre seus
corpos. 274
Na cidade, as mulheres faziam das vias urbanas territórios apropriados para executar
suas atividades. Transformavam o cheiro e a cores da cidade ao ocupar os espaços mais
centrais. As vermelhas luzes indicavam a abertura dos bordéis. Criavam para si outra Itabuna,
diferente da planejada pelos urbanistas. Faziam usos não autorizados pelo poder público ao se
expor nas avenidas principais, provocavam tensões com outros segmentos sociais mais
conservadores. Contudo, a relação com comerciantes e coronéis sugere que nem todos os
membros das elites se desentendiam com as mulheres. Formavam seus conchavos e redes de
solidariedade com parte dos setores hegemônicos, importantes no momento de defender suas
posições na cidade. Nesse sentido, Rago sugere que as mulheres, ao se relacionarem com
membros da elite terminavam por adquirir apoio de homens influentes e de policiais,
possibilitando preservar suas atividades.275
As tensões entre as mulheres do meretrício e o poder público passaram a ficar mais
quentes no início da década de 1940. Até aquele momento, aquela atividade havia tomado
uma zona considerável das ruas Ruy Barbosa e Domingos Lopes (Avenida Duque de Caxias).
Em 1942, por exemplo, havia dezenas de denúncias contra um Cabaré que funcionava nas
imediações da Sociedade Monte Pio dos Artistas. Segundo o A Época, o estabelecimento se
localizava em “pleno coração da cidade”, incomodando “o sossego dos moradores [...]
pessoas que labutam durante o dia no trabalho honesto, e só tem a noite para o descanso”.276
O destaque para o fato de que o tal cabaré funcionava no “coração da cidade” são indícios de
que, com o avanço do plano de urbanização e da delimitação das fronteiras do perímetro
central, as prostitutas enfrentariam dias mais complicados do que os de costume para
preservar seu espaço de atuação.
Antes disso, tanto o A Época como O Intransigente publicaram matérias extensas
sobre a presença do meretrício nos limites das ruas Ruy Barbosa e Domingos Lopes no ano de
1941. A diferença dessas matérias para as da década de 1930, é que elas já não cogitavam
apenas a repressão policial, mas solicitavam a retirada da prostituição daquelas vias e seu
deslocamento para a região dos bairros. Como justificativa, a imprensa argumentava que o
PADILHA, Telmo. Cantos de amor e ódio a Itabuna. Ilhéus: Editus, 2004.
RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos de sexualidade feminina em São Paulo,
1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.A autora se refere principalmente ao papel da Madame, aquela que
dirige estabelecimentos de prostituição, que quase sempre “contava com o apoio de homens influentes e mesmo
de policiais, a quem, em geral pagava ‘gratificações’ em troca de paz no estabelecimento”. p.174.
276
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 24 de janeiro de 1942, AnoXX, n.º 1189. p.1.
274
275
113
comportamento daquelas mulheres não se adequava mais à cidade em urbanização, às ruas
que eram arborizadas e calçadas para as famílias, enquanto as mulheres desafiavam as
autoridades municipais. Nas palavras do A Época, “as infelizes ficam das janelas de suas
casas a sorrir, a fazer piegas e sinais, que nos comprometem com as nossas esposas.”277 A
conduta das prostitutas soava como afrontamento aos padrões de cultura urbana hegemônica
em Itabuna, ligados às regras cristãs e às família burguesas.
As notícias que chegavam da cidade de Ilhéus também contribuíram para que o
acirramento das tensões entre o Poder Público e as prostitutas se intensificasse. Em novembro
de 1942, o A Época noticiava que algumas mulheres estavam desafiando as determinações
policiais de não aparecerem nas portas e nas janelas antes da noite. Segundo o periódico,
“várias até ultrapassaram os limites, andando cedo [...] na vias públicas em trajes
inconvenientes. [...] duas mulheres não se conformando, lançaram os seus protestos e o
resultado é que foram remetidas para o xadrez... (grifos originais)”.278 A circulação das
notícias ilheenses em Itabuna possivelmente contribuiu para aumentar a intolerância das
autoridades políticas e policiais com as prostitutas.
Em março de 1942, outro evento marcou mais uma instabilidade envolvendo as
prostitutas e a polícia depois de denúncia feita por Leopoldo Freire. No dia 19 daquele mês,
Freire publicava, na imprensa, um agradecimento ao sub-delegado Edgar de Barros pela
prisão de homens e de prostitutas na Rua Domingos Lopes, causadores de conflitos na
madrugada do dia anterior. Naquela oportunidade, as mulheres de nome Izaurinha, Julieta
(Juju) Ernestina, Maria, Corina e Minda, conhecida por “Fala Fina”, foram intimadas pelos
policiais no bar do senhor Carneiro. Por fim, o autor do agradecimento se dizia satisfeito com
a proibição da abertura de bares após a meia-noite e com o policiamento daquela via “durante
a noite, recolhendo a cadeia, os anarquistas e raparigas desordeiras ali existentes.”279
O clima de instabilidade entre o poder público e as prostitutas chega ao nível mais
quente no ano de 1943. Levado a cabo pelo Delegado Almerindo Vergne e pelo fiscal de
rendas do estado Leopoldo Freire, houve a campanha de retirada das mulheres de vida livre da
Rua Domingos Lopes. Entre junho e julho daquele ano, os jornais locais consideraram o
embate como uma pequena Guerra. Em meio às matérias sobre as batalhas da Segunda Guerra
Mundial, o conflito que chamava a atenção havia ocorrido em Itabuna, o qual foi chamado
pelo O Intransigente de “Guerra Relâmpago”. O periódico destaca que
Jornal O Intransigente, 29 de novembro de 1941, Ano XV. p.1. Documento não localizado. Encontrei
referências destas matérias no Jornal A Época, 21 de agosto de 1943.
278
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 14 de novembro de 1942, Ano XX, n.º 1232.
279
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 21 de março de 1942, Ano XX, n.º 1195. p.4.
277
114
A polícia resolveu sanear a rua do Lopes, do meretrício ali existente, há cerca
de mais de 30 anos, conforme afirmam os velhos moradores de Itabuna.
Para tal fim, o Capitão Almerindo Vergne, delegado de polícia, intimou as
proprietárias de casas de mulheres, sita à referida rua e apresentou-lhes um
ultimatum: Mudança em 48 horas, sob pena da lei, sem recursos e nem
agravos. De fato a ordem está sendo obedecida. A revoada das Andorinhas do
amor não se faz tardar. Carroças e carrocinhas se movimentaram. Metade ou
mais das casas já foram desocupadas. As andorinhas têm procurado as ruas
mais afastadas para se localizarem foram do centro da cidade. Pontalzinho,
Abissínia, Jaqueira, Caixa D’Água foram as preferidas.
A velha rua do Lopes, onde dizem,velhos e conhecidos clinico passava, em
boa companhia as suas horas de lazer, nos tempos das velha Tabocas, se
transformara agora em rua completamente familiar. Compete agora aos
proprietários locais melhorarem seus prédios, já que a prefeitura e a polícia
estão transformando-a em uma das mais lindas ruas da cidade. 280
Para O Intransigente, a ação da polícia soava como uma medida de saneamento social
do perímetro central, afastando as meretrizes da Rua Domingos Lopes. Segundo o periódico,
o afastamento da zona de meretrício deveria impulsionar a construção de novos prédios
naquele logradouro. Mas há um elemento importante a destacar. A saída das mulheres para
outras regiões da cidade. Muitas delas terminaram por se abrigar no subúrbio, o que parece ter
sido uma saída para continuar sobrevivendo sem o incômodo das autoridades do centro. Por
outro lado, sua localização nas áreas periféricas também era tolerada por parte da imprensa de
Itabuna. O jornal A Época, por exemplo, noticiava a ação da polícia com certa satisfação e
aprovava a iniciativa de abrigar as mulheres nos bairros. Para este órgão de notícias, a medida
do capitão Almerindo Vergne despertava a simpatia da opinião pública, retirando “o mulherio
da Avenida Duque de Caxias, uma das mais belas e centrais artérias da cidade, onde residem
numerosas famílias e localizando-as em pontos mais afastados da urbs.”281
Em agosto de 1943, um mês depois da medida da polícia de Itabuna, o A Época
homenageava o capitão Almerindo Vergne e Leopoldo Freire pela campanha que haviam feito
para o deslocamento das mulheres da Rua Domingos Lopes. Em telegrama enviado ao
secretário de segurança da Bahia, major Holche Pulchério, Freire agradecia o apoio do
governo estadual informando que se encontrava “inteiramente saneado meretrício do centro
cidade causando tal fato grande satisfação visto estar resolvido grande desejo família
itabunense.” Em outra passagem, dizia também que “capitão Almerindo Vergne aplaudido
280
281
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 10 de julho de 1943, Ano XVI, n.º 45. p.1.
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 10 de julho de 1943, Ano XXV, n.º 1267. p.4.
115
pelos Drs. Juiz de Direito, Promotores, Prefeito, imprensa e população sensata, virtude sua
ação serena, eficiente e eficaz.”282
Apesar de a vitória ter sido comemorada em agosto de 1943, há motivos para acreditar
que as atividades das prostitutas não foram extintas do perímetro central, mesmo com a
“campanha moralisadora” comandada por Leopoldo Freire e o delegado da cidade. Como
disse anteriormente, muitas mulheres se deslocaram para os bairros, onde já existia a presença
dos cabarés e suas práticas profissionais eram toleradas. Contudo, algumas delas
permaneceram na Rua Domingos Lopes e na Ruy Barbosa. A imprensa apresenta indícios de
que as prostitutas apenas saíram da parte inicial em direção ao final daquelas vias. Não apenas
isso, os jornais passaram a noticiar um espaço chamado “Buraco da Gia” que, nas notícias
encontradas, era caracterizado como o novo território da diversão e da alegria da população
masculina notívaga. Menos de três meses depois, o logradouro era alvo de reportagem que
denunciava o ponto estratégico do barulho:
Várias queixas temos recebido sobre o barulho e a anarquia reinantes na
avenida Matos, entre as ruas Ruy Barbosa, Amâncio Oliveira e Duque de
Caxias. [...] está encravada entre as citadas ruas, tendo vista para várias casas
residenciais. Como se tratassem de casinhas baratas, as mundanas ali se
instalaram [...] Extinto o foco de atração noturna no centro da cidade, que era
a zona do Bar Carneiro, adeptos da vida noturna, até granfinos, instalaram-se
no centro da avenida [...] Aí foi se formando o foco, o barulho, sob os “psius”
e o “silêncio” da dona de casa.
Cognominaram, então esse lugar, de “Buraco da Gia”...
Que vamos fazer contra o “Buraco da Gia”? Nada. Eles e elas precisam viver.
Foram jogados para ali e incomodarão outros vizinhos se dali forem tirados.
Resta-nos apenas apelar: Pessoal do “Buraco da Gia”, por favor, faça menos
barulhos!...283
A Avenida Matos citada pela reportagem era um beco com várias casinhas ocupadas
por pessoas pobres. Estava situada entre as ruas citadas pela notícia. Ali foi se instalando parte
da população que havia saído da parte inicial da Rua Domingos Lopes (região mais próxima
do centro), passando a reconstituir suas práticas profissionais e urbanas, e, por conseguinte,
refazer seu espaço citadino de atuação. Mas talvez o mais interessante seja a reação ao
aparecimento daquele logradouro por O Intransigente. Não havia o que fazer contra as
pessoas daquele espaço, segundo a notícia. Foi a própria vivência daqueles sujeitos que
delimitou o uso do espaço urbano. Mesmo utilizando a cidade sem autorização formal, as
táticas adotadas pelas mulheres terminaram por dobrar as estratégias do poder público e da
imprensa para acabar com a existência dos prostíbulos no centro de Itabuna. Parece que
282
283
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 21 de agosto de 1943, Ano XXV, s/nº. p.5.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 13 de novembro de 1943, Ano XVII, n.º 11. p. 4.
116
mesmo com a vitória anunciada em agosto de 1943 pela imprensa, quem continuou dando
risadas dos setores mais conservadores foi o mulherio.
Há sinais de que o “Buraco da Gia” se tornou o ponto das farras feitas por integrantes
da elite junto com as mulheres de “vida livre”. Os jornais passaram a noticiar as bebedeiras e
as folias realizadas por pessoas que “se diz de família, de gravata e de sapatos camouflé.
Estudantes, empregados públicos, comerciários e artistas, etc, etc...”284 As reclamações não
eram mais contra as prostitutas, mas direcionadas aos indivíduos que patrocinavam as
algazarras naquele local. Na mesma nota, havia a promessa de divulgar os nomes dos rapazes
que provocassem o incômodo do sossego público, conforme recomendações do capitão
Almerindo Vergne, que, àquela altura, já sabia que não tinha conseguido solucionar suas
contendas com o meretrício. 285
A preocupação da imprensa com o “Buraco da Gia” evidenciava que as prostitutas,
talvez auxiliadas por esses rapazes de “gravata”, consolidavam seu território urbano de
sobrevivência em uma Itabuna que passava por transformações. Lepetit286 aponta que “as
formas da cidade podem mudar mais depressa que o coração dos homens”, de forma que as
[re]formas urbanas podem não acompanhar os interesses dos trabalhadores livres e pobres.
Daí surge a resistência destes últimos, de maneira que os hábitos sociais e os usos se tornam
meios de preservar a sobrevivência e a atuação dos grupos populares na construção de outros
territórios. O “Buraco da Gia” se encaixava na tentativa das prostitutas de construir um espaço
social que se adaptasse a suas condutas, um lócus que tivesse sentido inteligível para elas. Por
isso, reordenou sua área de atuação em face da perseguição promovida pelo poder público e
dobrou as críticas da imprensa, que encontrava dificuldades em seus argumentos para
justificar nova repressão.
**********
Giulio Argan diz que toda cidade não é feita de pedras e de concretos, mas também de
homens e mulheres que, por sua vez, atribuem-lhe um valor a partir de seu envolvimento e
das práticas culturais que desenvolvem nesse espaço urbano.287 Essa premissa ajuda a
entender os planos de cidade criados para Itabuna e sua relação com as pessoas que compõem
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 27 de maio de 1944, Ano XVII, n.º 39. p. 1.
Idem,Ibidem
286
LEPETIT, Bernard. Op. Cit. .p.148.
287
ARGAN, Giulio C. História da arte como história de cidade.São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.228. Para o
autor, a cidade é fruto dos valores que os homens atribuem aos lugares onde moram e exercitam suas práticas
culturais. Deve-se levar em consideração portanto, “a atribuição de valor, não importa quem o faça e a que título
seja feita. De fato, o valor de uma cidade é o que lhe é atribuído por toda a comunidade [...]”.
284
285
117
esse tecido urbano. Ao projetar os melhoramentos urbanos, definindo padrões de higiene e de
estética com objetivos universais, os urbanistas procuravam escrever uma linguagem pautada
em medidas formais e impessoais, permeada de regras que tentavam condicionar a vida das
pessoas que utilizavam esse espaço.288 Essa linguagem nem sempre fazia sentido para os
trabalhadores, de forma que as medidas de urbanização atendiam mais aos interesses dos
membros que sustentavam a ordem estabelecida de Itabuna do que aos dos grupos populares.
Considero a cidade de maneira semelhante àquela que Paul Ricoeur trata em sua
produção textual. Ricoeur sugere que um texto não é um fim em si mesmo. Inicialmente, a
escrita é uma tentativa de explicar o mundo ou a realidade.289 No entanto, as interpretações
que as outras pessoas fazem desse texto são variadas. Assim, a produção textual é
compreendida por meio de uma apropriação. Pensando nisso, tento ver a linguagem dos
urbanistas como meio de tentar explicar a cidade e resolver seus problemas. Utilizando-se de
princípios científicos, os urbanistas objetivaram criar uma linguagem sobre a cidade que
fundamentasse o discurso de ordem e de progresso intencionado pelas classes dirigentes de
Itabuna. Essa linguagem era sinalizada a partir do alinhamento e do nivelamento das vias
urbanas, das medidas de incentivo à construção de imóveis residenciais e comerciais nos
parâmetros idealizados pelo poder público.
O urbanismo, enquanto explicação da realidade, circunscreve um nível de tensão com
os “erros” existentes na cidade, da perspectiva dos engenheiros. Não foi por acaso que os
engenheiros projetaram praças, parques, canais e avenidas em locais onde existiam casas de
meretrício, candomblés e lavadeiras. As práticas populares eram vistas como elementos
nocivos à escrita científica da cidade, que se pretendia impessoal e progressista. A
racionalidade urbana se tornava a expressão da necessidade de criar um território de poder,
onde os poderes instituídos pudessem efetuar seu controle com mais organização, isolando
toda prática que se “desviasse” dos interesses hegemônicos. A organização racional procura
recalcar os defeitos que ameaçam o alcance destes objetivos. A linguagem do poder se
urbanizou na década de 1930 e 1940, pautando-se em metas totalizantes que homogeneizavam
e universalizavam os habitantes em seres anônimos e passivos. Mas a vida urbana permite a
redenção dos sujeitos que ficaram de fora. São eles que entregam à cidade a movimentos
CERTEAU, Michel. Op. cit. Para o autor, o urbanismo era uma espécie de linguagem formal, produzida de
cima para baixo, que carrega em seu bojo uma posição terapêutica de controle sobre o espaço urbano, que
consolida a estratégia de manutenção da ordem estabelecida. Por outro lado, os sujeitos pobres urbanos
imprimiam uma linguagem ordinária, formada a partir de suas resistências cotidianas enquanto táticas capazes de
burlar os projetos hegemônicos da cidade.
289
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Constança Marcondes Cezar. Campinas: Papirus, 1994.
Volume 1.
288
118
contraditórios que se compensam e se estabelecem fora do poder. Em outras palavras, se o
urbanismo se torna uma linguagem formal sobre a cidade, que tenta explicá-la, tentei observar
como ela é apropriada pelos seus outros escritores, tomando por referência a ação das
prostitutas.
Mesmo diante dos empreendimentos imobiliários e das pretensões de reorganizar o
perímetro central de Itabuna, foram as práticas culturais dos trabalhadores pobres e comuns
em meio ao tecido urbano que condicionaram os usos da cidade. Pierre Mayol, ao falar da
categoria “bairro”, considera que a cidade se constrói como o lugar “onde se manifesta um
“engajamento” social ou, noutros termos: uma arte de conviver com parceiros (vizinhos,
comerciantes) que estão ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da
repetição.”290 Dessa forma, o espaço urbano não pode ser encarado como um tabuleiro, cujas
peças são mudadas de lugar conforme os interesses hegemônicos. Ele é o lugar de vivência
que as pessoas erguem a partir de suas conveniências, de seus costumes e de suas tradições,
apropriadas no cotidiano por suas práticas urbanas. Essa premissa é fundamental para
compreender o papel das prostitutas no cenário de Itabuna. Em suas micro-ações, elas
reinterpretam a cidade, criando adaptações ativas para sobreviver e preservar suas atividades.
Para Bernard Lepetit, tanto as formas de instituição de poder como os agrupamentos
sociais que se formam na cidade têm o sentido que são oferecidos pelas práticas culturais dos
sujeitos. Dessa maneira, o espaço urbano é permeado sempre por territórios que se fabricam a
partir do agir e dos valores dos indivíduos, e que se sedimentam enquanto territórios
apropriados por eles.291 Durante as décadas de 1920 e 1930, as ruas Domingos Lopes e Ruy
Barbosa foram os espaços de atuação de prostitutas e de outros personagens do cenário
urbano itabunense. Faziam daquele território uma zona própria seu próprio uso, com
fronteiras definidas e reconhecidas pelos outros setores da sociedade, mesmo que de maneira
preconceituosa. As brigas, os gritos, os olhares das janelas e os desfiles nas ruas faziam parte
de uma prática urbana que ajudava a identificar aquele logradouro como o baixo meretrício.
Talvez fosse o espaço onde os representantes da “ordem” só pudessem estar presentes quando
fossem coniventes com os interesses das prostituas, isto é, na medida em que policiais,
“engravatados” e fazendeiros fossem clientes.
O “Buraco da Gia” foi o lugar onde as
prostitutas adaptaram novamente suas práticas, apropriando-se do espaço urbano construindo
um território social a sua imagem. Este lugar seria a interpretação da linguagem urbana, posto
que enquanto os urbanistas propunham uma escrita formal e técnica para explicar e mudar a
290
291
MAYOL, Pierre. O Bairro. In: CERTEAU, Michel. Op.cit. 2. Morar, cozinhar. p.39.
LEPETIT, Bernard. Op. cit. p.57.
119
cidade, aquelas mulheres ofereceram uma nova interpretação citadina, sem os rigores
científicos do urbanismo, e com suas micro-práticas se adaptaram e redesenharam seu lócus
de atuação em Itabuna.
120
CAPÍTULO 3
A CIDADE E SUAS (IM)POSTURAS
No início de agosto de 1936, uma notícia com o curioso título de “Munamo-nos de
Algodão” era publicada pelo O Intransigente. Dizia o semanário que, em fins de julho
daquele ano, por volta das catorze horas, quando os ônibus com destino às localidades de
Ilhéus, Macuco (Buerarema), Pirangy (Itajuípe) e Itaúna (Itapé) se concentravam próximo à
Agência da Viação Sulbaiana, uma mulher havia causado confusão nas imediações da Rua J.J.
Seabra e da Osvaldo Cruz. Segundo a notícia, após ter sido provocada por um homem, a
senhora “começou a derramar o pus duma linguagem de baixo calão, vomitando as palavras
mais obscenas que se pode imaginar.”292 Constava ainda que no momento em que proferia as
palavras, o local se encontrava cheio de pessoas para despedidas e entregas de encomendas, as
quais tiveram de ouvir tudo o que a mulher dizia.
Depois de narrar o incidente, o periódico cobrava uma ação mais enérgica da Guarda
Municipal no intuito de evitar que episódios como aqueles viessem a acontecer em Itabuna. A
reclamação se fundamentava no fato de que nas proximidades de onde a mulher xingava e
falava em voz alta, dois soldados da força municipal fiscalizavam a região e nada fizeram
para perpetrar a postura da mulher. Para reafirmar sua crítica, dizia o jornal que “Itabuna, que
tanto se vangloria do seu progresso urbano e desenvolvimento, precisa de moralizar-se e
acabar com essas cenas revoltantes que, de quando em quando chocam os nossos espíritos.
[...] O policiamento [...] deve ser mais constante e mais severo.”293
Meses antes do acontecido na Rua J.J. Seabra, outras queixas semelhantes constavam
no mesmo O Intransigente. Naquela oportunidade, o veículo de comunicação protestava em
nome dos moradores da Praça Silva Jardim contra o “mau procedimento dos trabalhadores da
Padaria Amazonas, que altas horas da noite [...] fazem um barulho infernal com cantigas
ridículas e palavras indecentes, que além de incomodar o silêncio da noite [...] atenta contra os
292
293
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de agosto de 1936, Ano X, nº 49. p.1.
Idem,Ibidem.
121
sãos princípios da moral.”294 Como forma de coibir aquela prática, solicitava-se a presença da
Guarda Municipal ou da polícia, instituições com autoridades delegadas pela sociedade
política para evitar o incômodo do sossego público. Estes dois casos são pertinentes para se
refletir sobre a influência do processo de urbanização no comportamento dos trabalhadores
que viviam na cidade. Em Itabuna, observo que as reformas da cidade não se limitaram
apenas às mudanças morfológicas do espaço urbano, mas interferiram nos hábitos e nos
costumes dos trabalhadores pobres.
À medida que Itabuna se urbanizava, isto é, abria suas avenidas, calçava suas ruas e
embelezava suas praças, os setores hegemônicos não perderam de vista o comportamento dos
munícipes. Em busca de um padrão de costumes, o poder público utilizou do dispositivo
jurídico local para coibir as práticas culturais estranhas aos novos valores de urbanidade
instituídos durante as décadas de 1930 e 1940. Por sinal, é com esse intuito que o Código de
Posturas de Itabuna foi revisado e ampliado no ano de 1933. Para a fiscalização, as Posturas
Municipais seriam o conjunto de leis municipais que funcionariam como referência para
atribuir legalidade ou ilegalidade aos modos de vida dos habitantes da cidade. Era a partir
delas que a fiscalização sanitária e a Guarda Municipal exerciam a vigilância sobre o
procedimento de feirantes, ambulantes, lavadeiras e crianças. Na esteira desse objetivo, as
diferenças de interesses entre os trabalhadores pobres e o poder público não demoraram a
aparecer quando alguns dos artigos do referido código era colocado em prática pelos membros
das municipalidades.
A primeira edição do Código de Posturas do Município de Itabuna foi criada meses
depois da oficialização da emancipação de Itabuna, no ano de 1908.295 Registrado pelo
intendente Olinto Leone no livro de leis da cidade, a versão inicial deste código era bastante
limitada em comparação com os exemplares posteriores. Ele continha algumas advertências
acerca da venda de carnes, da proibição de animais no paço municipal, da regulamentação do
horário de funcionamento do comércio e da nomeação de diversos logradouros municipais
com nomenclaturas de datas e heróis mitificados pela Primeira República.296 Nas fontes
encontradas não foi possível observar sua aplicação entre os munícipes da cidade.
Foi somente na década de 1920 que o Código de Posturas de Itabuna sofreu sua
primeira revisão por parte das municipalidades. Na gestão do coronel Laudelino Loréns
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 21 de março de 1936, Ano X, n.º29. p.1.
APMIJD. Livro de leis do município de Itabuna 1908. p.1-3.
296
Ver CARVALHO, Philipe Murillo S. A construção da cidade: idéias de civilidade e de urbanidade em
Itabuna (1910-1930). In: Cadernos do CEDOC. N.º 9. Ilhéus: Editus, 2007. Neste estudo, trabalhei com alguns
dos artigos do Código de Posturas de 1908, em que considerei alguns pontos relacionados a estética e a
padronização dos comportamentos na fase inicial da vida política e administrativa de Itabuna.
294
295
122
(1924-1926) as posturas foram ampliadas e passaram a ser cobradas por parte da imprensa
local.297 Os documentos listados por essa pesquisa não nos possibilitaram perceber a relação
da aplicação da lei com os trabalhadores no cotidiano da cidade. No entanto, os periódicos
locais apontam alguns indícios que nos levam a crer que seu emprego no cotidiano urbano
tenha sido escasso durante a década de 1920. Isso era o que dizia o A Época, em 1926, quando
afirmava que “poucas pessoas cuidam de melhorar as suas propriedades, dentro das normas
estabelecidas dos Códigos de Posturas, porque o poder municipal faz dela letra morta.”298
No ano de 1933, o Código de Posturas foi revisado profundamente, sendo ampliado e
publicado em forma de brochura pela Prefeitura de Itabuna. Pensando em construir uma
política urbana mais sistematizada, principalmente com a criação da Guarda Municipal, o
poder público resolveu aprovar um novo código para a cidade por meio do ato nº 184, de 9 de
junho de 1933. Nunca é demais lembrar que a década de 1930 foi aquela em que Itabuna
passou pelas primeiras reformas urbanas no seu perímetro central, o que certamente acentuou
a necessidade da reformulação das Posturas municipais para adaptá-las às mudanças no
cenário citadino. A nova lei de posturas estava dividida em oito capítulos que se referiam à
organização da Polícia Administrativa, à licença das obras em geral, às indústrias e profissões,
à segurança pública e polícia de costumes, aos mercados municipais, à higiene municipal, às
zonas suburbana e rural e às Disposições Gerais. 299
O Código de Postura de Itabuna, ampliado em 1933, pode ser entendido como mais
um equipamento de controle e de organização do espaço urbano de acordo com os interesses
dos setores hegemônicos. A lei se tornava mais uma instituição do governo municipal, cujo
objetivo era definir normas que pudessem manter unidos os diferentes grupos sociais
existentes na cidade de forma organizada e pacífica. No entanto, para Lepetit, mesmo sendo
uma instituição jurídica, leis como as das Posturas “não podem ser compreendidas
independentemente dos equilíbrios sociais específicos da cidade.”300 A partir do momento em
que as regras são aplicadas aos setores pobres e trabalhadores, estes sabem mobilizar recursos
para burlar utensílios de controle e se apropriar da cidade conforme suas vontades e seus
costumes. Dessa maneira, elaborar ou reelaborar o campo jurídico também condicionador das
APMIJD. Livro de atas do Conselho Municipal de Itabuna (1924). Lei n.º 133, de 10 de junho de 1924.
IGHB. Jornal A Época, 13 de maio de 1926, Ano IX, n.º 62. p.2.
299
APMIJD. Código de Posturas do Município de Itabuna. Ato n.º 184 de 9 de junho de 1933. Itabuna:
Tipografia D’A Época, 1933.
300
LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana
Angotti Salgueiro; tradução Cely Arena. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. p.77.
297
298
123
relações entre trabalhadores e poder público existente na cidade é um aspecto essencial para
se entender os conflitos e as tensões em Itabuna. 301
Para Joseli Medonça e Sílvia Lara, as leis e a justiça não podem ser vistas
simplesmente como instrumento de dominação, mas recursos que podem ser apropriados
pelos diferentes sujeitos históricos, inclusive como forma de resistência da própria classe
trabalhadora.302 Considerando isso, as relações dos trabalhadores com as instituições do poder
público mediante o Código de Posturas de Itabuna podem apontar para um campo de tensões
e de conflitos cujo alvo era o direito pelo uso da cidade. A partir disso, devo procurar entender
de que maneira os sujeitos deram significados diferentes para a lei de costumes local, ou de
que forma a aplicação das posturas suscitou a organização dos pobres urbanos para lutar na
justiça pública pelo direito à cidade. Aquilo que a imprensa local chamava de vulgar e de
desordem por transgredirem as normas de urbanidade, pode indicar táticas de driblar os
valores instituídos pela ordem estabelecida, como aponta Certeau.303
O objetivo deste capítulo é discutir a relação dos trabalhadores com os poderes
públicos a partir do Código de Posturas de Itabuna. A intenção é entender de que maneira a
aplicação desta lei municipal promoveu a articulação dos trabalhadores no intuito de lutar
pelo direito à cidade, utilizando de sua astúcia para enganar a vigilância em torno da suas
práticas urbanas e se reapropriando do espaço urbano. Para isso, procuro traçar os caminhos
percorridos pelos trabalhadores rurais, pelas lavadeiras e engraxates, e pelos menores em uma
Itabuna que passava pelas reformas urbanas e pela tentativa de padronização de hábitos e
costumes entre as décadas de 1930 e 1940.
Trabalhadores rurais na cidade
Em 26 de julho de 1944, a menor Solange Loupe Soares, com 12 anos de idade,
solteira, morena, católica, estudante, se dirigia para sua escola com vistas a cumprir mais um
dia letivo do calendário escolar. Como de costume, saiu de casa, no bairro Cajueiro,
caminhando com destino à escola por volta das 8 horas da manhã, quando, ao chegar à Rua
Barão do Rio Branco, numa região conhecida por Taboquinhas, encontrou com uma boiada,
tendo a menina se abrigado em uma casa próxima. Após a passagem da boiada, a menor
MEDONÇA, Joseli Maria N. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no
Brasil. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1999. p.23. A autora pesquisou a lei do sexagenário de 1885
procurando recompor o campo jurídico brasileiro que definia as relações entre senhores, escravos e libertos
como espaço de lutas por direito e pela liberdade dos negros durante o Império.
302
LARA, Sílvia Hunold, MENDONÇA, Joseli Maria N. Apresentação. In: Direitos e justiças no Brasil: ensaios
de História Social. Campinas, SP.: Ed. da UNICAMP, 2006. p.12-13.
303
CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.95.
301
124
procurou atravessar a rua, quando foi atropelada por João Ferreira Matos, que distribuía leite
montado em um cavalo. Caída ao chão, Solange Soares foi socorrida por populares que a
conduziram à farmácia Carvalho, onde fez os primeiros curativos. Enquanto isso, o leiteiro
João Matos seguiu viagem, sem prestar ajuda à vítima do acidente.304
A testemunha Pedro Antonio da Rocha Filho afirmou que quando vinha do centro da
cidade para o bairro Conceição, nas proximidades da Rua Barão do Rio Branco, notou que o
leiteiro João Matos vinha montado em seu animal em disparada, tendo atropelado a menor
que caiu ao chão. Versão parecida foi descrita por outras duas testemunhas. 305 Em sua defesa,
quase duas semanas depois do ocorrido, João Matos compareceu a Delegacia de Polícia de
Itabuna para “esclarecer” os acontecimentos. Segundo o acusado, no dia 26 de julho, ele havia
saído da fazenda Guarací, pertencente ao seu patrão, Natanael Batista Figueiredo, em direção
à cidade para vender leite, quando, nas redondezas do local do acidente, percebeu a passagem
da boiada e a presença de um grupo de crianças que se protegia dos animais. Após a passagem
da boiada, ele, acusado, se enroscou no cabresto do animal, provocando o acidente com a
menor Solange. Tendo em vista que estava prestes a perder o horário do trem, partiu em
disparada, sem saber ao certo quem era a criança atingida. Somente no dia seguinte, quando
foi abordado pelo guarda João Costa é que ficou sabendo que deveria comparecer à Delegacia
para prestar esclarecimentos, onde soube o nome da vítima. 306
Na delegacia, João Matos afirmou que não tinha culpa pelo acidente, e que não vinha
em disparada, tendo se apressado após o ocorrido para não perder o trem. Além disso,
defendeu que já havia trabalhado para Nicodemos Barreto, um dos banqueiros e políticos da
região, e que trabalhava para o Sr. Natanael Figueireido, podendo ambos apontar sua
excelente conduta. Apesar das explicações oferecidas pelo acusado, o delegado de polícia de
Itabuna, capitão Almerindo Vergne, indicou em seu relatório de inquérito que, baseado nas
declarações das três testemunhas do caso, João Matos deveria ser investigado pelo Ministério
Público por correr em disparada pela Rua Barão do Rio Branco, uma das vias mais
movimentadas da cidade. 307
A escolha desse episódio, comum no cenário de uma cidade pequena do interior da
Bahia em meados da década de 1940, se justifica pela possibilidade que encontrei nesse
304
APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Termo de
Declarações de Solange Loupe Soares. 27 de julho de 1944. s/p.
305
APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Termo de depoimento
das testemunhas Pedro Antonio da Rocha Filho, Franco Lopes e Camilo Silveira. 18 de agosto de 1944. s/p.
306
APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Termo de
Interrogatório de João Ferreira Matos. 11 de agosto de 1944. s/p.
307
APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Relatório de Polícia.
18 de agosto de 1944. s/p.
125
inquérito policial de identificar o universo de tensões que permeava Itabuna durante seu
processo de urbanização. Em uma caminhada com destino à escola, a menor Solange pôde se
deparar com elementos frequentemente questionados pelos poderes públicos municipais na
sua política urbana. O primeiro desses elementos eram as boiadas. Mesmo não tendo um
papel central no caso, a cena sinaliza um pouco da sensação que as pessoas tinham com as
boiadas que invadiam as ruas e as avenidas locais. Aliás, sendo o matadouro na zona urbana,
na Rua Barão do Rio Branco, era uma das vias pelas quais os bois passavam quando seguiam
para o matadouro, causando dificuldades para o deslocamento de carros e pessoas naquela
região. O segundo elemento aparece na figura de um dos personagens principais do acidente,
o leiteiro João Matos, montado em seu animal.
Sobre a presença de animais na cidade, o Código de Posturas Municipais de 1933
possuía um capítulo inteiro dedicado à regulamentação desses elementos nas zonas urbanas e
suburbanas de Itabuna. No capítulo dos animais, a fiscalização exigia que os condutores
carregassem, em local visível, o número de licença ou de matrícula que deveria ser concedido
pela Prefeitura. Os animais também não poderiam ser postos a trabalhar feridos, doentes, ser
fustigados ou estar excessivamente magros, ficando restrito o uso de tacas ou chicotes para
fustigar os bichos. Outros parágrafos chamavam a atenção para: a proibição de gado vacum,
eqüinos e caprinos soltos no perímetro urbano; impedimento de amarrar bichos em postes
públicos, árvores, ou grades na zona citadina; ou ainda apreensão de animais cavalgados ou
não, que permanecessem ou andassem sobre o passeio das ruas.308 Apesar da existência desses
artigos no Código de Posturas da cidade, isso não é indicativo de que todas as normas
estabelecidas tenham sido cumpridas de forma efetiva, mas apresentam propostas de
padronização dos hábitos urbanos proposta pelo poder público.
Ao supor pelo incidente envolvendo a menor Solange Soares e João Matos, tendo
como parâmetro o Código de Posturas, o acusado poderia ter sido enquadrado em dois artigos
da lei municipal. Primeiro, por trafegar com animais usando de instrumentos como cabresto e,
segundo, por trafegar em alta velocidade pela via urbana. E foi levando em consideração esses
elementos que outros sujeitos foram enquadrados pela Guarda Municipal. Em 26 de janeiro de
1935, o tropeiro José Julião foi multado em 5$000 (cinco mil réis) pelo guarda Argemiro
Damião Borges por usar chicote e fustigar seu animal de montaria. 309 Já o carroceiro João
Ribeiro foi multado pelo guarda Amadeu Lopes em 50$000 (cinqüenta mil réis), em 1º de
APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Itabuna:
Typographia D’A Época, 1933. pp. 41-43. Especificamente os artigos 243, 245, 24, 251 e 254.
309
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 26 de janeiro de 1935, Ano IV, n.º 202, p.2.
Relatório da Inspetoria da Guarda Municipal de Itabuna 10 de julho de 1936.
308
126
julho de 1936, por infringir o artigo 252 das posturas municipais, que proíbe a montaria em
animais bravos nas ruas e praças da cidade. 310 Com o mesmo artigo foi punido o carroceiro
Paulo Rodrigues pelo guarda José Sales Filho, tendo seu animal recolhido pela Guarda
Municipal.
Para obter um melhor controle dos condutores de animais, especialmente carroceiros,
a fiscalização exigia dos munícipes o registro, na Prefeitura, para o recebimento da licença
para trafegar na zona urbana. Para isso, no início de cada ano, o poder municipal emitia aviso
em seu jornal oficial convocando os carroceiros, tropeiros e condutores de eqüinos. Em 4 de
fevereiro de 1938, o secretario interino do executivo itabunense avisava, de forma taxativa,
sobre a necessidade de matrícula dos carregadores de bagagem com animais, desmerecendo a
justificativa de quem reclamava contra o imposto cobrado. No aviso baixado em 4 de
fevereiro de 1938, José Nascimento dizia que “Ao princípio de que todos precisam de ganhar,
sobrepõe-se o de que: aqueles que pagam impostos e o que reclamam é que, para
regularidade, todos os mais paguem a matrícula necessária [...] Sem o que não poderão
licitamente, exercer a sua profissão.”311 A partir do aviso publicado pelo poder público a
respeito da necessidade de pagamento da taxa de matrícula, nota-se que havia resistência, por
parte dos trabalhadores, em se dobrar as imposições tributárias. É o que se pode observar com
a entrega de uma relação de nomes de proprietários de carroças que estavam em atraso com a
fiscalização, realizada pelo subchefe da Guarda Municipal José Campos ao inspetor João
Moraes. Além da fiscalização promovida pela municipalidade, talvez os trabalhadores que
conduzissem animais nas vias de Itabuna não se sentissem atraídos a pagar tributos em uma
cidade que aumentava sua desconfiança em relação a eles, punindo-os frequentemente com
multas emitidas pela Guarda.
João Ferreira de Matos, estando envolvido num acidente cuja investigação recaía
sobre ele, ainda precisava se preocupar com o estigma criado pelos periódicos locais contra os
montadores de animais, baseado em supostas corridas de cavalo realizadas nas ruas da cidade,
e consideradas um motivo de desordem pelos setores políticos de Itabuna. Por isso, não por
acaso, o acidente envolvendo o leiteiro foi parar na primeira página de O Intransigente. A
nota intitulada “A cidade não é hipódromo – os riscos das cavalgadas pelas ruas” e publicada
com destaque no dia 29 de julho de 1944 dizia do costume existente de se praticar corridas em
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 11 de julho de 1936, Ano V, n.º 276, p.4.
Relatório da Inspetoria da Guarda Municipal de Itabuna 10 de julho de 1936.
311
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, segunda-feira, 7 de fevereiro de 1938, Ano VII, n.º 356,
p.8
310
127
pleno centro da cidade, trazendo perigo às pessoas que transitavam até pelas calçadas. Sobre o
incidente envolvendo a estudante Solange Loupe, o periódico dizia que
Costume que remonta há longos anos, e que a civilização atual ainda não
conseguiu quebrar, é o das cavalgadas pelas ruas da cidade. Aos domingos, às
vezes, as ruas ficam intransitáveis, à passagem dos galopadores.
Agora aconteceu o pior, o que sempre prevíramos. Na 3ª Feira, uma criança
que se dirigia para a escola, com um tinteiro, livros e uma bola na mão, nas
imediações da ponte de Taboquinhas, quando foi atropelada por um animal,
tendo recebido vários ferimentos.
Montava nesse animal o cidadão João Ferreira, leiteiro do sr. Natanael
Figuereido.
Dizem os circundantes que é costume do referido cavaleiro andar à rédeas
soltas, pelas ruas, como se estivesse pelo campo. Esse procedimento é
criminoso, porque não se pode galopar nas ruas, sem que se possa colocar em
perigo a segurança e a vida dos transeuntes, principalmente de velhos, de
senhoras e de crianças.312
O hábito de andar a cavalo nas vias urbanas era considerado um costume com o qual a
“civilização” não havia conseguido romper, como se refere o jornal. Nesta perspectiva, o uso
de animais para se transportar e trabalhar na cidade parecia não se encaixar no espaço urbano,
sendo visto como algo fora de lugar. Na lógica de um contexto de urbanização, cavalgar nas
ruas e avenidas do centro de Itabuna se tornava um costume a ser superado, tendo em vista
que a presença de cavalos ou outros eqüinos pareciam esbarrar nos novos moldes de conduta
exigidos pela municipalidade e pela imprensa. Os trabalhadores montadores eram colocados
na condição de elementos “perigosos” para a organização funcional da cidade. Animais nas
ruas passavam a ser sinônimo de perigo, especialmente para os redatores dos periódicos
itabunenses. Antes mesmo de ser processado pela justiça pública, João Matos parecia estar
condenado por O Intransigente.
Mas a parte grifada sugere ainda que João Matos fosse um ser estranho na cidade em
que trabalhava. Partindo da constatação apressada de que o leiteiro era dado ao costume de
andar em disparada pelas ruas de Itabuna, o jornal indicava que esse seria um hábito de quem
vive no campo. O perímetro central deveria ser visto como espaço de ordem e de controle
efetuados pela Prefeitura, e que as pessoas deveriam se moldar adequadamente aos padrões
instituídos, condenando costumes comuns para uma população muito influenciada por hábitos
campestre. Andar de cavalo ou utilizar carroças na zona urbana passaram a ser usos da cidade
312
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 29 de julho de 1944. Ano XVII, N.º 48. p1. (Grifos nosso)
128
não autorizados pela prefeitura e reprovados pelos periódicos sob a justificativa de que
subverteria a ordem urbana.313
Analfabeto, simples jornaleiro, migrante de Tucano, no interior da Bahia, João Matos
parecia ser uma presa fácil para os jornais locais (obviamente apoiados pela municipalidade)
que buscavam, a qualquer custo, incutir hábitos que contrariavam os comportamentos e os
interesses do restante da população. Contudo, ao contrário do que esperavam os
intransigentes, o leiteiro foi absolvido pelo juiz da vara crime de Itabuna, José de Souza
Dantas.314 Parece que, em parte, devemos concordar com a notícia veiculada pelo semanário
local, ao dizer que a “civilização” não conseguiu quebrar, de fato, os costumes populares,
mesmo diante da imposições culturais colocadas, não só porque o acusado foi absolvido, mas
porque o direito de transitar pelas ruas da cidade continuou sendo exercido pelos
trabalhadores ambulantes, ainda que não autorizado pelos setores políticos dirigentes do
município.
Outros companheiros de profissão de João Matos também passaram pela
intransigência dos poderes públicos municipais. Entre eles estavam os aguadeiros. O Código
de Posturas da cidade indicava que a atuação destes profissionais deveria estar regulamentada
com a concessão de licenças pela Prefeitura, assim como os lugares para a coleta de água
deveriam ser determinados pela Secretaria de Higiene Pública, sendo impedido o
estacionamento dos animais nesses locais.315 Até meados da década de 1960, os aguadeiros
supriam a deficiência da distribuição de água encanada para a cidade com a venda, em barris
ou tonéis, do precioso líquido. Por conta disso, os aguadeiros eram vistos pelas autoridades
políticas com certa tolerância, mas com o controle freqüente da Guarda Municipal.
Não faltam exemplos sobre como os aguadeiros tiveram sua atuação importunada pela
fiscalização pública. Em 17 de junho de 1932, o aguadeiro Elisiario Bispo dos Santos foi
multado no valor de 10$000 (dez mil réis) pelo guarda n.14 por ter lavado seu animal em
fonte de coleta de água dos moradores, infringindo o artigo 318 da lei de conduta de
Itabuna.316 Outro aguadeiro que também não escapou da vigilância foi o senhor João Pinheiro,
sendo autuado com multa de 20$000 (vinte mil réis) pelo inspetor Josino Quadros por ter
desrespeitado o artigo 548 das normas ao depositar seu produto em recipientes inadequados,
WILLIAMS, Raymond. Campo e cidade na história e na literatura. São Paulo: Cia. das Letras, 1989.
APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Sentença de
julgamento contra João Ferreira Matos, 27 de junho de 1945, p.42.
315
APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Op. Cit. pp.52-53.
Capítulo IV, especificamente os artigos 314 e 318, embora os artigos válidos para os montadores fossem válidos
também para os aguadeiros, já que distribuíam a água montados no lombo de eqüinos.
316
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 22 de julho de 1932, Ano II, n. 118, p.8.
313
314
129
em 17 de julho de 1936. Onze dias depois, foi a vez de João Santos ser flagrado pela
fiscalização sanitária apanhando água em fontes não permitidas pela Prefeitura, sendo
obrigado a pagar pena em dinheiro de 20$000 (vinte mil réis).317 Esses breves exemplos
servem para mostrar que, se por um lado o poder público procurava por todos os meios vigiar
a atuação dos aguadeiros, estes também criavam alternativas para continuar vendendo seus
produtos sem a inconveniência das municipalidades, procurando se livrar das imposições dos
órgãos do poder. Talvez por isso João Santos tenha procurado outro manancial para abastecer
seus depósitos de água.
A luta dos aguadeiros para continuar com suas práticas e modos de vida em uma
cidade que passava por transformações não tinha como adversário apenas a perspicácia da
Guarda Municipal, mas também os periódicos que apoiavam os projetos dos segmentos
políticos. Com a finalização parcial das primeiras obras referentes à implantação do sistema
de água e esgoto, vieram também as suspeitas em relação à higiene dos aguadeiros e a
discriminação contra seu trabalho enquanto elemento do passado. Em 8 de julho de 1937, o A
Época ao publicar em sua manchete de capa o pagamento do empréstimo tomado à Caixa
Econômica Federal e as proximidades da inauguração do serviço de água, expunha ao lado da
notícia a imagem de um aguadeiro, e logo abaixo uma frase afirmando: “Um aspecto que em
breve desaparecerá.” 318
Diferentemente do que previra o A Época, mesmo com a inauguração dos serviços de
água, os aguadeiros permaneceram atuando na cidade, já que, como foi dito anteriormente,
além da insuficiência da distribuição para os bairros, muitos trabalhadores se sustentavam
financeiramente dessa atividade. Ao mesmo tempo, a imprensa local não dava descanso a
estes sujeitos. Em 14 de outubro de 1944, O Intransigente se queixava dos aguadeiros por
manterem seus animais soltos em vias urbanas, “abalroando os transeuntes, especialmente
velhos e crianças”, destacando que “os animais na cidade, não podem andar soltos e sim, em
cabrestos.”319 Cabe dizer também que, sem a atuação desses sujeitos, provavelmente uma boa
parte da população ficaria sem acesso à água, sendo também por isso tolerado pelas
autoridades municipais, ainda que exercesse sua vigilância e respaldasse os preconceitos
contra esse grupo na imprensa.
Retornando ao acidente que envolveu João Matos e Solange Loupe, o advogado de
defesa trabalhou também com a hipótese de que o incidente teria acontecido também por
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 1º de agosto de 1936, Ano V, n. 279, p.9. e Jornal
Oficial do Município de Itabuna, sábado, 15 de agosto de 1936, Ano V, n. 281, p.9.
318
CEDOC\UESC. Jornal A Época, 08 de julho de 1937, Ano XV, n. 874, p.1
319
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 14 de outubro de 1944, Ano XVIII, n.º6. p.4.
317
130
influência do gado que havia se esparramado na Rua Barão do Rio Branco quando se dirigia
ao Matadouro. Tomando essa premissa para a defesa do acusado, Ubaldino Brandão buscava
deslocar as causas do acontecimento para outro elemento de tensão na urbanização de
Itabuna, qual seja: as freqüentes boiadas que invadiam o centro da cidade durante as décadas
de 1930 e 1940. Para serem abatidos, os bois que vinham da zona rural do município
(principalmente dos distritos de Itapuy, Palestina e Macuco) geralmente precisavam atravessar
parte do centro da cidade, invadindo ruas e avenidas movimentadas do comércio local. Em
algumas oportunidades, o gado saía do controle dos boiadeiros, espalhando-se pelos
logradouros por onde passavam. Quando isso acontecia, a imprensa utilizava alguns acidentes
para produzir discursos contra a atuação dos vaqueiros na cidade. O exemplo disso foi o
acidente a menor Solange Loupe.
Os jornais não poupavam críticas aos vaqueiros que conduziam os animais pelo centro
de Itabuna. Foram esses ataques da imprensa que ajudaram a formar preconceitos ligados aos
trabalhadores condutores de gado. Aliás, no mesmo número de O Intransigente em que foi
encontrada a notícia do acidente entre João Matos e Solange Loupe, havia também uma
pequena nota na quarta página que se referia às boiadas em Itabuna. Sob o título provocante
de “Gado enfurecido na cidade”, a nota colocava que uma das vacas conduzidas pela Rua 7 de
setembro havia entrado em um armazém de cacau da firma Dórea e Irmãos Ltda., ficando
presa no interior do estabelecimento com outras pessoas. Na oportunidade, o periódico se
perguntava até quando aquela cena se repetiria na cidade. 320
Provavelmente, as cobranças de O Intransigente se pautavam no Código de Posturas
de Itabuna que regulamentava a atuação dos condutores de animais. A lei de costumes
municipal destinava um capítulo único para definir as normas referentes a estes profissionais
no centro da cidade. Segundo ela, os condutores de animais deveriam guiar seus animais
sempre à direita, segurando a rédea ou cabresto, que não poderia exceder de um metro e vinte
centímetros de comprimento. A fiscalização também proibia a condução de bois realizada por
crianças ou menores. Sobre os locais nos quais os condutores de animais poderiam trafegar, as
posturas proibiam o trânsito nas ruas calçadas da cidade, com exceção da Rua Barão do Rio
Branco (que dava acesso ao matadouro). Essa última regra poderia ser desconsiderada, caso
os condutores tivessem impedimentos nas vias não calçadas, necessitando utilizar-se das ruas
pavimentadas.
321
Mas, assim como no caso dos trabalhadores que necessitavam cavalgar, as
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 29 de julho de 1944, Ano XVII, n.º 48. p.4.
APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Op. Cit. pp.52-53.
Capítulo IV, especificamente os artigos 315, 317, 320, 321 e 325.
320
321
131
posturas não foram suficientes para impedir a atuação dos condutores. Foi justamente esse
conflito de costumes que levava os jornais e a fiscalização a combater as boiadas e,
principalmente, os boiadeiros.
Como forma de evitar a presença das boiadas na área central de Itabuna, a Guarda
Municipal apreendia constantemente animais que se encontravam soltos pela cidade. Em 29
de janeiro de 1940, por exemplo, o guarda Moisés Campos comunicava ao comandante João
Moraes a apreensão de cinco animais encontrados em via pública, que haviam se desgarrado
de uma boiada.322 Em 28 de julho de 1938, os indivíduos Jose Fernandes, Edson Teixeira,
Domingos Galvão e Agripino Bispo tiveram os animais abatidos pela fiscalização sanitária
por terem sido encontrados em jardim público.323 Casos desse tipo se repetiam nos relatórios
da inspetoria da Guarda Municipal, um indicativo de que mesmo existindo a fiscalização,
esses comportamentos não sumiram.
Juntamente com a ação da fiscalização, a imprensa procurava fechar o cerco à atuação
dos boiadeiros no centro da cidade. Quase sempre os jornais tentavam classificar a passagem
das manadas como um costume que não se adequava aos valores urbanos apresentados para
Itabuna. Dentro dessa nova cultura urbana que se construía pelos poderes públicos, a prática
desses trabalhadores passou a ser vista enquanto uma conduta que se desviava daquilo que os
grupos hegemônicos imaginavam como ideal. É dentro dessa perspectiva que em 14 de
dezembro de 1943, novamente O Intransigente aparecia na posição de portador das críticas
contra os condutores das boiadas. Em coluna da última página, intitulada “Os nossos maus
costumes”, dizia que
Outro costume mau, perverso e prejudicial, por todos os meios que se
encare é o de “touradas de Madrid”, que se verificam continuamente, pelas
ruas da cidade, quando um touro se desgarra de boiadas e se enfurece, não
querendo ir para o matadouro. Os vaqueiros aproveitam e fazem uma boa
farra.
Na 2ª feira desta semana o espetáculo foi degradante, um touro enfureceu-se
no bairro da Conceição e os vaqueiros praticaram todos os desatinos para
fazer escândalos e aumentar o cartaz. Maltrataram o animal da maneira mais
cruel. Bateram-lhe tanto que o “esquartejaram”. Quando o touro tomou a
direção do matadouro jorrava sangue em quantidade, de suas ventas, sangue
que escorreu pelos passeios da rua de Taboquinhas, sujando tudo. Multidão
enorme de desocupados procurava “tourear”. O Trânsito ficou interrompido
ás pessoas prudentes e às crianças que deviam passar pela ponte para o
outro lado do rio.
[...] Deve-se acabar esse mau costume. Se o animal se desgarra, leve-se a
boiada, ou outros animais para fazê-lo acompanhar. Caso contrário,
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Relatório da Inspetoria da Guarda Municipal de Itabuna
em 9 de fevereiro de 1940. sábado, 10 de fevereiro de 1940, Ano VIII, n.º 455, p.9.
323
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 30 de julho de 1938, Ano VII, n.º 379. p.4.
322
132
procure-se um recanto e, sem escândalo, sem chamar à atenção das
crianças, e matem-no. 324
Ao se referir às questões concernentes à cidade, os jornais terminam deixando mais
visível o jeito como os setores letrados e dominantes produzirem seus significados do viver
urbano em Itabuna, evidenciando os conflitos e as tensões na constituição de uma cultura
urbana voltada para os interesses do poder público. Esse embate entre os valores projetados
por uma minoria detentora do poder e os valores dos trabalhadores torna a cidade um campo
de divergências. É isso o que acontece nesse caso. As práticas dos boiadeiros são
consideradas condutas destoantes para aqueles que governavam e de quem produzia os
discursos que fundamentavam os novos valores urbanos. Por conta disso é que estes
trabalhadores têm os seus comportamentos considerados impróprios para a vida urbana pela
coluna jornalística, a começar por seu título. A nota deixava transparecer a noção de
desordem, perigo e violência frente à presença dos boiadeiros. Diante da política urbana de
Itabuna, o trabalho dos boiadeiros era colocado na condição de desordem citadina na
imprensa.
Em outra oportunidade, o cronista João Searom escreveu uma coluna para O
Intransigente contando mais uma cena na qual um boi desgarrado da manada invadiu o jardim
público. Dizia o colunista que em uma das tarde de abril de 1942, estava reunido com outros
dois sujeitos chamados Custódio e André no Jardim Olinto Leone. Após repreender algumas
crianças que se encontravam danificando os bancos daquele jardim, foi surpreendido por um
touro desgarrado da boiada invadindo a praça. As pessoas que se encontravam no logradouro
correram para se proteger do animal, quando apareceu o vaqueiro que conduzia a boiada para
o matadouro. Continuando sua narrativa, Searom afirmava que “Quando o vaqueiro apareceu
foi pior a emenda, pois o toureiro transformou o nosso jardim numa Catalunha!”. Um pouco
depois, o autor relatava que um dos jardineiros que se encontrava em serviço havia se referido
ao vaqueiro com receio, ao dizer que “eu tive mais receio do vaqueiro do que mesmo do
touro!”.325 A estória contada por João Searom sugere que os dirigentes e os letrados da cidade
estavam mais preocupados em reprimir os vaqueiros do que os animais em si.
A intensa fiscalização da prefeitura e as freqüentes denúncias da imprensa frente a
existência das boiadas que invadiam o centro da cidade fizeram com que os boiadeiros se
posicionassem diante do problema em meados da década de 1930. Aliás, antes de partir para
mais um exemplo da disputa entre os vaqueiros e os Poderes Públicos e grupos hegemônicos,
324
325
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 14 de agosto de 1943, Ano XVI, n.º 50, p.4.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 30 de janeiro de 1943, Ano XVI, n.º 21, p.3.
133
cabe destacar novamente o papel dos periódicos. Eles são indícios proveitosos para se
compreender o campo de tensão na vivência dos sujeitos durante uma Itabuna em
transformação. Como coloca a historiadora Heloísa de Faria Cruz, nesse momento os jornais
se tornam os principais produtores discursivos, ligando-se a uma cultura urbana conservadora
que fundamenta novos valores para aqueles que vivem nas cidades. Entretanto, nesta função,
a imprensa acaba possibilitando a visibilidade das práticas dos trabalhadores frente aos
projetos formulados pelos segmentos hegemônicos itabunenses.326
Em 9 de novembro de 1935, os vaqueiros foram novamente alvo das críticas da
imprensa local. Em nota intitulada “O perigo das boiadas”, O Intransigente destacava que, no
dia 6 de novembro, uma sexta-feira, os boiadeiros foram protagonistas de um grave acidente
nas redondezas da Praça Olinto Leone. Segundo a matéria, uma mulher chamada Maria de
Lourdes, esposa do senhor João Ernesto, ao passar pelo referido jardim, acabou sendo
chifrada por um dos animais que passavam pelo local e outras duas crianças que brincavam
foram derrubadas. Dizia ainda que a mulher estava grávida, e que o susto quase a levara a
perder o filho. Aproveitando toda a descrição de perigo do acidente, o semanário local
aproveitava para exigir dos poderes públicos municipais a proibição definitiva “do tráfego de
boiadas pelas ruas movimentadas da nossa cidade.”327
Diante de tantas críticas ao longo do ano de 1936, os vaqueiros elaboraram uma
resposta a O Intransigente que havia lançado uma coluna questionando o comportamento dos
condutores de animais na passagem pelas ruas da cidade. O periódico dizia que era necessária
uma providência efetiva “para impedir o modo inconveniente, porque os boiadeiros ou seus
capitães fazem a condução de boiadas, dentro das ruas da cidade.”328
Como forma de
responder às críticas, Eujácio Borges escreveu uma carta em 30 de abril de 1936,
esclarecendo que seu ofício era realizado com o maior cuidado possível e explicando os
incidentes noticiados naquele ano. Assim dizia o vaqueiro em texto intitulado “A culpa não é
dos boiadeiros”:
Tendo lido nos jornais desta terra algumas notas sobre o perigo das boiadas
em trânsito pelas ruas desta cidade, como boiadeiro, para defender a minha
testada e dos meus companheiros de negócios, sou forçado a vir a público
esclarecer que, em absoluto, não cabe a culpa aos boiadeiros, de alguns
incidentes ocorridos nesta cidade.
CRUZ, Heloísa F. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ:
FAPESP: Imprensa Oficial, 2000. pp.19-25.
327
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 9 de novembro de 1935, Ano IX, n.º 10, p.1.
328
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 25 de abril de 1936, Ano X, N.º 34, p.1.
326
134
As rezes que têm pegado pessoas desta cidade não foram de boiadas e sim
conduzidas isoladamente. Todos os boiadeiros têm o maior cuidado na
condução das suas rezes, quase sempre viajadas e que nunca desgarram das
boiadas para ofender alguém. Acresce ainda que as boiadas necessariamente
tem que atravessar a cidade, não existindo uma estrada isolada para tal fim.
Pela beira do rio pode-se vir até certo ponto, tendo que se atravessar trechos
de ruas, pois o matadouro fica no extremo da cidade.
Muitas vezes, desocupados e vadios, ao passarem as boiadas, espantam com
gritos e pedras os bois quase sempre da raça zebu, animais bravos, de forma
que, alguma vez se desgarram, causando alvoroço. A culpa, como vê o
público, não é dos boiadeiros.329
Como se vê, Eujácio Borges se encarregou de defender seus interesses e os de seus
companheiros de trabalho, tratando de colocar as práticas dos boiadeiros dentro da
“normalidade” urbana instaurada pelos valores de urbanidade imaginados por aqueles que
tinham influência política em Itabuna. Na sua carta possibilita analisar um elemento
importante para se pensar a relação deste grupo de trabalhadores frente à urbanização. Na
política urbana local, os usos urbanos dos trabalhadores deveriam ser regulamentados pela
Prefeitura. Isso fazia com que os procedimentos ou usos não autorizados do espaço urbano
fossem desclassificados e estigmatizados pelas autoridades públicas e pela imprensa. A idéia
de desordem está diretamente ligada às pessoas que utilizavam as vias urbanas para
sobreviver e trabalhar fora das normas regulamentadas pelo poder público. Sobretudo, as
tensões entre vaqueiros e prefeitura estavam no campo das divergências culturais que existiam
em Itabuna. Enquanto os segmentos hegemônicos buscavam consolidar os valores de
urbanidade criados por eles através da administração municipal, os vaqueiros defendiam seu
trabalho e seu direito à cidade utilizando valores que ainda estavam ligados aos modos de vida
da zona rural.
As posições do vaqueiro Eujácio Borges podem ser consideradas uma tentativa de
negociar sua prática profissional frente às críticas recebidas pelos setores letrados que
fundamentavam a produção discursiva do poder público. Ao criticar os hábitos e os costumes
dos boiadeiros, chamando-os de abusados, perigosos e violentos, os segmentos hegemônicos
viam neles ameaças aos valores culturais urbanos fundamentados na ordem estabelecida pela
prefeitura. Quando
passavam pelas ruas e atrapalhavam o trânsito
da cidade,
conseqüentemente as boiadas desestabilizavam a dinâmica comercial dos estabelecimentos e
corroíam as formas de usar as vias urbanas segundo as normas tradicionais de comportamento
e de postura em Itabuna. Desta forma, começamos a entender que as tensões e os conflitos
envolvendo os poderes públicos e a população de Itabuna, estão inseridos numa experiência
329
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 02 de maio de 1936, Ano X, N.º 35, p.1.
135
de contradição de valores dominantes e populares em que os trabalhadores buscavam
alternativas de sobreviver diante das transformações. Sobre isso, a historiadora Déa Fenelon
definia essas contradições como experiência dos populares num campo de forças em que o
conflito é experimentado na luta de valores culturais.330
A passagem das boiadas guiadas pelos vaqueiros não provocava tanto furor na cidade
como nos valores urbanos defendidos pelo poder dominante. Sua existência apontava para um
uso popular da cidade pelos trabalhadores rurais, que os segmentos conservadores da agência
política local gostariam de ver reprimido por considerarem um ultraje às condições de
“progresso” e de “civilização” de Itabuna. Refletindo sobre o que Michel de Certeau escreveu,
os modos de vida dos trabalhadores, neste caso, os boiadeiros, tornaram-se ações de
resistência contra uma cidade que não estava sendo construída para eles, provocando uma
erosão na ordem estabelecida das coisas.331
Mesmo com a implantação de uma política urbana efetiva, os modos de viver dos
vaqueiros e as medidas executadas pelo poder público são sinais de que a cidade ainda
conviveu por muito tempo com elementos vinculados tradicionalmente ao mundo rural e
“popular”. Esse clima de tensão, a qual insistia em alicerçar seu ambiente urbano em novos
valores modernos, colaborava para que os desentendimentos e a disputas de projetos e de
interesses se tornassem intensas em Itabuna. É o que se percebe quando se trata da existência
de animais no centro da urbe. A existência de animais de médio e de grande porte pelas ruas
da cidade, dividindo espaço com pedestres e veículos, e a criação de pequenos animais em
quintais residenciais e jardins públicos apresentavam esse quadro contrastante no período de
metamorfose do espaço citadino.
Mal o ano de 1943 havia começado, e O Intransigente não abandonava o posto de
denúncia acerca dos hábitos da população local. Em 2 de janeiro daquele ano, o periódico se
queixava da existência de criatórios de porcos que provocavam mau cheiro no Alto da Bela
Vista, Rua da Lasca (atual Avenida das Nações Unidas). A nota publicada informava que os
animais eram criados em “pequenos chiqueiros, em fundos de quintais, dentro da cidade,
desrespeitando os mais comezinhos preceitos de higiene [...] podendo-se originar ali doença
FENELON, Déa R. O historiador e a cultura popular: história de classe ou história do povo? In: História e
perspectivas, n.º 6. Uberlândia: UFU, 1992. Nesse artigo, a autora evidencia a possibilidade de investigar a
vivência de homens, mulheres e crianças a partir de seus modos de vidas para perceber que os conflitos de classe
não acontecem tão somente no âmbito econômico, mas também é uma luta de valores entre os sujeitos históricos.
A cultura se mostra um campo rico e fecundo para estudar as contradições de classe. pp.5-23.
331
CERTEAU, Michel de. Op. cit. p.89. O autor defende que “a ordem efetiva das coisas é justamente aquilo
que as táticas “populares” desviam para fins próprios, sem a ilusão que mude proximamente.”
330
136
infecciosas.”332 De maneira semelhante ao que fazia com vaqueiros e cavaleiros, o objetivo
central da denúncia era informar a periculosidade do costume de se criar porcos em chiqueiros
residenciais, enfatizando a possibilidade de moléstia em decorrência dos bichos.
Para combater a conservação de porcos na zona urbana, a Guarda Municipal utilizava
como referência o Código de Posturas, no seu artigo 248, que versava sobre a proibição da
criação de porcos soltos ou enchiqueirados, sendo tolerados numa distância de um quarto de
légua (aproximadamente 1,5 quilômetros) do perímetro central. Além disso, era proibida
também a venda pelas ruas e praças da cidade não só de porcos, mas também de carneiros,
cabras ou perus. As sanções para quem não respeitassem tais determinações eram o
pagamento de multas que variavam entre 10$000 (dez mil réis) e 20$000 (vinte mil réis),
podendo incorrer na apreensão dos animais. 333 Mas a atuação da Guarda sugere que, em
muitos casos, as penas eram brandas em relação às orientações das leis municipais. Em 8 de
maio de 1932, a senhora Alzire Kforo, residente à Rua Floriano Peixoto, fora intimada pelo
guarda Fernando Galvão para que fosse retirado um porco do fundo do quintal num prazo de
24 horas. Do mesmo modo, a Srª. Deonilla e o Sr. Odilon foram intimados a abater os porcos
que se encontravam nos fundos de sua residência em 17 de agosto e 5 de setembro de 1936,
respectivamente. Nos três casos apontados, em nenhum deles os agentes da fiscalização
aplicaram multas ou fizeram apreensão dos animais, o que sugere certa tolerância à respeito
da criação de porcos.
Se, por um lado, a Guarda Municipal abria concessões na questão dos porcos, por
outro os jornais locais continuaram com forte campanha contra este problema. A imprensa
itabunense deixava suas diferenças de lado e denunciava constantemente a presença dos
suínos na cidade. Em 7 de agosto de 1943, o A Época informava que continuava de “forma
assombrosa, o movimento de porcos soltos em plena Rua do Cajueiro, especialmente à noite,
quando os mesmos penetram nos quintais das casas, estragando e destruindo tudo, sem que
haja [...] uma providência por menor que seja.”334 A preocupação mais efetiva da imprensa
local era com a existência de porcos criados no centro da cidade em condições duvidosas,
segundo as notícias do periódico. Por diversas vezes, os jornais alegavam que parte desses
porcos não era cuidada segundo os padrões sanitários determinados pelo poder público, e que
os animais eram vendidos na feira para a população, o que colocava em perigo a saúde
pública de Itabuna, segundo os jornalistas. Esse tipo de argumentação passou a ser o suporte
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 2 de janeiro de 1943, Ano XVI, n.º 43, p.4.
APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Op. Cit. pp.42-43.
Capítulo II, especificamente os artigos 245 e 248. .
334
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 07 de agosto de 1943, Ano XXV, S/n.º, p.4.
332
333
137
necessário para fundamentar o tom das críticas e das perseguições ao hábito de criar porcos no
perímetro central pelos veículos de comunicação, caracterizando-o enquanto uma conduta
desviante a ser reprimida pelo governo municipal.
Seguindo essa linha de pensamento, O Intransigente voltava a publicar outra nota
sobre a presença de porcos em mau estado no centro de Itabuna. Publicada em 13 de fevereiro
de 1943, a coluna intitulada “Os porcos estavam em mau estado” dizia que:
Na madrugada de 2ª feira, chegou um caminhão do sertão, trazendo muitos
porcos, havendo 5 desses animais mortos, os quais foram logo tratados,
preparando-se carne salgada e toucinho. Notaram os denunciantes que tanto
a carne como o toucinho estavam com mau cheiro, e que, podendo fazer
mal a quem os comesse, seria um crime para eles, eles sabiam disso, não
revelaram a saúde pública.
Imediatamente levamos os dois jovens [denunciantes do caso ao jornal] ao
Dr. José Pinto, que tomou as medidas urgentes que o caso reclamava,
apreendendo a carne e o toucinho. Não eram de 5 porcos, mas apenas de
dois o toucinho e a carne que estavam putrefatos. Mais de 200 quilos de
carne e duas mantas de toucinho foram incinerados, evitando-se, assim, que
a nossa população se alimentasse com mercadorias de tão péssima
qualidade.
São esses os motivos, talvez, de certas doenças inesperadas que tem
aparecido, como sejam infecções de todas as maneiras, e que podem ser
evitadas, trabalhando o povo com as autoridades sanitárias, porque estas
não podem estar em todas as partes. Cada um deve estar vigilante pela
saúde de todos.335
O tom da narrativa soa como se o acontecido fosse uma daquelas estórias onde o
detetive resolve mais um caso que colocava a sociedade em perigo. Mas nessa construção
textual, atentamos para as formas pelas quais os criadores e vendedores de porcos procuravam
se desviar da fiscalização. Ao chegar na calada da noite, os criadores de porcos tentavam agir
sem a intromissão do poder público, evitando que a saúde pública os importunasse na
preparação das carnes a serem vendida em Itabuna. Por outro lado, a notícia responsabilizava
esse grupo de trabalhadores pelas doenças “inesperadas” que surgiam na cidade. O objetivo
era sugerir a condição de periculosidade trazida por aqueles que se desviavam dos padrões e
das normas criadas pelo poder público. Não passa despercebido o modo como o povo, tomado
enquanto massa ordeira e pacífica, é conclamado a trabalhar junto com os segmentos políticos
para evitar a criação de porcos. Nesse sentido, tentava-se convencer a população a combater
seus próprios costumes em favor de valores urbanos fundamentados na noção de saúde
pública. Mas, como observei, muitas foram as ações para ludibriar a ordem estabelecida.
335
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 13 de fevereiro de 1943, Ano XVI, n.24, p.4
138
Em face das experiências urbanas de que tratei aqui envolvendo trabalhadores e
animais na cidade em transformação, entendo que mesmo com o aparato fiscalizador de
cerceamento das práticas e dos modos de vida dos “de baixo”, era impossível acobertar os
aspectos culturais indesejados pelo poder público. Isso fazia de Itabuna um espaço urbano que
ainda guardava muitos hábitos e costumes rurais numa época de valorização das culturas
urbanas. Mesmo atacando e criticando as práticas dos montadores, dos vaqueiros e dos
criadores de animais, os poderes públicos foram vencidos pela necessidade de se manter a
atividade destes profissionais. Giulio Argam afirma que “as cidades modernas não podem se
agregar e funcionar a não ser à custa, pelo menos em parte, da cidade antiga.”336 Isto é, a
sobrevivência em Itabuna ainda dependia, em muito, desses costumes.
Lavadeiras e engraxates: trabalhadores de ganho em Itabuna
Em 9 de maio de 1943, o A Época lançava nota, em sua quarta página, denunciando
um hábito freqüente entre parte da população que utilizava a água do rio que cortava a
cidade.337 Tratava-se da lavagem de roupa nas margens do Rio Cachoeira. A pequena tira
jornalística recebia o título de “Lavadeiras Inconvenientes” e visava chamar a atenção da
Guarda Municipal ao afirmar que:
Várias têm sido as queixas que temos recebido de algumas “biribanas” que,
num total desrespeito às famílias residentes nas proximidades do Avenida
Hotel e rua Alfeu Carvalho, lavam roupas, pronunciam palavras de baixo
calão e, às vezes, banham-se às primeiras horas da manhã.
Urge uma séria providência da zelosa Guarda Municipal, no sentido de
punidos as culpadas. 338
Por detrás dos preconceitos em relação às mulheres, pode-se observar os modos de
vida das lavadeiras. Ao se referir à freqüência das queixas sobre a atuação destas
trabalhadoras, a imprensa evidenciava que a ocupação do Rio Cachoeira pelas mulheres que
lavavam de ganho era constante. Percebemos que aquela zona já havia se tornado um ponto
tradicional de lavagem de roupa entre as mulheres. O período em que se destinavam ao
trabalho também estava à mostra. As mulheres costumavam lavar suas trouxas o mais cedo
possível, talvez para que pudessem aproveitar o dia de sol que viria pela frente. No entanto, a
imprensa assumia o posto de vigilante dos costumes da população. Evidenciando o
ARGAM, Giulio C. História da arte como história de cidade. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1995,
p.76-77.
337
CRUZ, Heloísa F. Op.cit. A obra de Heloísa Cruz é uma leitura importante para quem trabalha com as fontes
periódicas, visto que a partir da produção discursiva dos jornais paulistas, a historiadora toma a escrita da
imprensa como experiência cultural urbana e campo de disputa de poder na cidade moderna.
338
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 09 de maio de 1943, Ano XX, N.º 1204, p.4.
336
139
comportamento que contrariava o código de posturas de Itabuna, as lavadeiras eram
consideradas um elemento “nocivo” aos valores de urbanidade que pretendiam ser afirmados
pelos setores políticos de Itabuna.
Não é por acaso que o periódico enfatizava elementos como a pronúncia de
xingamentos e a prática de banhos nas áreas próximas ao perímetro central da cidade para
estigmatizar as trabalhadoras. Para o antropólogo Jorge Carvalho, os segmentos hegemônicos
procuravam forçosamente apontar os hábitos populares como negativos para afirmar seus
próprios valores. 339 Note-se que é isso que o A Época destacava quanto às lavadeiras quando
se posicionavam diante de um dos ícones de modernidade de Itabuna, qual seja: o “Avenida
Hotel”. No capítulo anterior, havia observado que aquele prédio tinha sido construído há
pouco mais de 5 anos e era um dos principais estabelecimentos de acomodação de visitantes
do município, contando com o apoio do poder municipal para sua construção, já que recebera
isenção de Décimas Urbanas pela sua inovação arquitetônica. 340 Para a imprensa, a presença
das trabalhadoras próxima ao prédio, o hotel, talvez representasse um “ultraje” à promoção do
comportamento de urbanidade difundido pelas autoridades públicas.
Mesmo com os estereótipos criados em torno das lavadeiras, suas atividades
certamente estariam entre as funções essenciais exercidas na cidade. Cortada pelo rio
Cachoeira e por outros riachos, enquanto cidade que possuía um sistema de distribuição de
água precário por muitas décadas, Itabuna oferecia condições para que as mulheres se
dedicassem a essa atividade de ganho, sendo uma das poucas possibilidades de recurso
financeiro para aquelas que viviam em situação de pobreza. Maria Izilda S. de Matos destaca
que, parte das famílias de posses usava grande quantidade de roupa branca no seu cotidiano, o
que em geral exigia cuidados especiais para lavar, passar e engomar, cuja habilidade quase
sempre era dominada por aquelas trabalhadoras.341 Por conta disso, a presença das lavadeiras
foi constante no logradouros urbanos, o que fez com que os poderes públicos se ocupassem
em regulamentar suas atividades.
Embora seja difícil encontrar nos relatórios da Guarda Municipal referência à
aplicação de multa ou apreensão do material de trabalho das lavadeiras, sua atuação
profissional era regida pelo Código de Posturas Municipais. Nesta lei, podem-se identificar
CARVALHO, José Jorge de. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos. Porto
Alegre, ano 7, n. 15, julho de 2001, p. 129. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ha/v7n15/v7n15a05.pdf.
340
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 24 de julho de 1937, Ano VII, n.º 329, p.1. ver
segundo capítulo, no tópico O plano e o mercado imobiliário.
341
MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: EDUSC, 2002.
p.139. Ver especialmente o capítulo 6, onde a autora trata do cotidiano de trabalho das lavadeiras nas cidades de
São Paulo e Santos.
339
140
seis artigos que se referiam diretamente à atuação das lavadeiras. Por exemplo, proibia-se a
lavagem e a estendedura de roupas na parte do rio que fazia fronteira com o perímetro central
da cidade. Essa atividade só seria permitida nas imediações e depois da Ponte Góes Calmon.
Do mesmo modo, não era permitido o uso das margens do rio para secar outros utensílios
domésticos, tais como pratos, panelas, ou até mesmo lavagem de animais ou de suas vísceras.
Aqueles que desrespeitassem as disposições do Código de Posturas seriam punidos com a
aplicação de multas de 10$000 (dez mil réis) ou a apreensão das roupas ou dos utensílios para
a garantia do pagamento da pena.342
Além do controle por parte da Prefeitura, as lavadeiras também sofriam com a
desconfiança dos engenheiros que planejaram a urbanização de Itabuna. Na proposta de
higienização e embelezamento das margens do Rio Cachoeira, o engenheiro Saturnino de
Brito Filho não se furtou de se pronunciar contra a permanência das trabalhadoras nas áreas
fronteiriças da cidade. No segundo capítulo, observei a preocupação do engenheiro e da
prefeitura em extinguir as pedras no leito do rio, lugar onde as lavadeiras ficavam para lavar
as roupas, por meio da construção de uma barragem.343
Para Brito Filho, assim como para os poderes municipais, a idéia de saneamento
perpassava tanto no sentido de higienização espacial, pondo fim às poças existentes no leito
do rio; quanto na questão social, com a retirada das lavadeiras por conta da construção da
barragem. Embora a projeto da barragem tenha saído do papel somente algumas décadas mais
tarde, a proposta pretendia acabar com a atividade das lavadeiras nas áreas próximas ao
centro. Cabe observar, também, a associação que os poderes públicos fazem entre lavadeiras e
insalubridade. 344 Nesse trecho, as trabalhadoras estão relacionadas com a falta de higiene da
cidade. Em 1946, o poder público afirmava que “o serviço de lavanderia dentro do rio, torna a
água imprestável mais abaixo, captada para beber, ou mesmo para asseio dos utensílios de uso
na alimentação.”345 Assim, começo a perceber que existia uma disputa de territórios entre o
poder público e as lavadeiras, cujo cenário é o Rio Cachoeira.
O espaço urbano passou a ter sentidos e valores diferentes para as lavadeiras e as
municipalidades. Por um lado, o poder público buscava consolidar valores urbanos calcados
APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Itabuna: Tipografia
D’A Época, 1933. Ver artigos 588, 642, 643, 644, 645 e 646.
343
APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia). – Relatório F. Saturnino
R. de Brito Filho. Rio de Janeiro, março de 1935, p.6.
344
Segundo MATOS, Maria Izilda Santos de. Op.cit, p.148, as lavadeiras eram acusadas pela propagação de
pestes e epidemias mediante alegação de que as roupas lavadas sem cuidados poderiam trazer germes de
epidemias e de febres. Além disso, a água suja das lavagens que escorria pela cidade também era considerada um
foco de propagação.
345
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 7 de dezembro de 1946, Ano XIV, nº 810, p.9.
342
141
em um tipo de urbanidade que valorizava comportamentos das pessoas que estavam
condicionadas pelas expectativas da administração pública, cujo objetivo recaía na construção
de uma cidade com padrões de beleza e de higiene determinados pelos anseios dos segmentos
políticos hegemônicos. De outro lado, as trabalhadoras por meio de suas práticas realizavam
outros usos da cidade, um uso popular, centrado no pragmatismo da vivência destes sujeitos,
enfrentando as dificuldades cotidianas de acordo com seus valores culturais. Itabuna passava a
ser palco de uma tensão que envolvia as diferentes culturas existentes no espaço citadino e
que se refletiu nas contradições dos modos de vida dos grupos populares e do setor político
que administrava o município.346
No ano de 1946, as diferenças entre a Prefeitura de Itabuna e as lavadeiras se tornaram
mais evidentes, e as disputas passaram a ser mais diretas. Em maio daquele ano, as lavadeiras
Adail Amaral de Oliveira, Marina Souza, Norbelia Prates Soares, Constância Maria Paranhos
e Maria Adalgisa Alves impetravam por meio de seu advogado, Carlos Pereira, um mandado
de segurança contra o ato do Prefeito de proibir lavagem de roupas no Rio Cachoeira. Na
juntada do processo, encontravam-se uma petição inicial instruída por uma procuração e seis
atestados de pobreza das postulantes, a fim de obter o benefício da justiça gratuita. No
documento, alegavam-se que
Por cúmulo de tantas amarguras se não bastassem as resultantes da ingrata
profissão exercida, vem sendo as impetrantes como as suas demais e infelizes
companheiras tolhidas pela prefeitura, de praticarem a lavagem de roupa
contratadas à freguezia, nas águas do Rio Cachoeira que banha esta cidade, se
não em trechos muito além desta cidade no subúrbio de Mutucugê, distante
por excesso e que não se presta ao referido mister, já pelo grande número das
lavadeiras, já porque ali não existe coradouro e já porque ali não há pedras
para a “esfregação da roupa”; que nunca dantes em qualquer outra
administração municipal já se viu tamanho constrangimento profissional e
incidente precisamente numa classe mais simples e mais sofredora do povo:
as lavadeiras.347
O texto acima certamente foi produzido pelo advogado das lavadeiras, que procurou
se pautar nas dificuldades e nos sofrimentos passados pelas mulheres para executar suas
tarefas profissionais, como forma de convencer a justiça pública a considerar o mandado de
segurança. Não obstante os valores do próprio advogado ao elaborar o documento, ao que
tudo indica, parte dos argumentos utilizados na petição judicial se fundamentava na dinâmica
de trabalho das lavadeiras. O mandado de segurança questionava a proibição da Prefeitura que
346
347
FENELON, Déa R. Op.cit pp.5-23.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 29 de maio de 1946, Ano XIV, nº 782, p.10
142
proibia a lavagem de roupa nas áreas do rio Cachoeira que se limitava com as ruas do
perímetro urbano. Segundo o advogado, as medidas da prefeitura não levavam em
consideração os laços de afetividade das trabalhadoras com relação aos seus espaços de
trabalho.
Não era qualquer lugar que serviria para sua prática profissional. Cada ponto do rio
parecia ter sua peculiaridade e sua funcionalidade para as lavadeiras. Eram necessários
lugares, no leito do rio, em que houvesse pedras, onde pudessem esfregar suas trouxas de
roupas, facilitando a limpeza dos tecidos. O espaço para o coradouro, isto é, para deixar as
roupas ensaboadas a fim de que ficassem limpas, deveria ser guardado para cada uma delas.
Além disso, através do trecho citado, podemos sugerir que cada parte do rio parecia ter seus
usuários, quando afirmava que o local oferecido pela prefeitura já era freqüentado por outras
lavadeiras. Contudo, obcecada em seguir as determinações do Código de Posturas de Itabuna,
a Prefeitura parecia não enxergar o sentido do rio para a vida das lavadeiras, considerando o
Cachoeira como mais um elemento na cidade a ser urbanizado.348 Cabe ainda não esquecer
que as lavadeiras reivindicavam a tradição de suas práticas sem o incômodo do prefeitura por
anos. Desde o ano de 1933, quando fora publicada a lei, elas nunca haviam sido importunadas
pela fiscalização, como informava a defesa do advogado.
A Prefeitura não demorou a responder ao mandado de segurança impetrado pelas
lavadeiras. Em resposta ao juiz da Vara Cível da Comarca de Itabuna, o prefeito Armando
Augusto da Silva Freire justificou sua medida da seguinte forma:
As razões que levaram a administração a tomar a deliberação em foco, foi o
abuso que se vinha verificando no particular por parte das lavadeiras, que
ultimamente não vinham só lavando, como estendendo roupas em todo o
trecho fronteiriço à cidade, inclusive até em passeios de casa à margem do
mesmo rio. 349
Para fundamentar sua argumentação, o executivo municipal se referia aos artigos 642
a 646 do Código de Posturas de Itabuna. Eram os mesmos dispositivos jurídicos aos qual me
referi anteriormente. Destarte, a Prefeitura buscava se amparar na classificação pejorativa do
comportamento das lavadeiras. A prática de lavar roupas no leito e nas margens do Rio
Cachoeira em que se limitava com o perímetro central foi considerada um abuso pelos agentes
políticos do município. Nessa disputa pelo território com as lavadeiras, o poder público não
LEMOS, Carlos A. C. A República ensina a morar (melhor). São Paulo: Hucitec, 1999. O autor coloca que a
maior parte dos Códigos de Posturas do país não considera as peculiaridades existentes na cidade, considerando
os habitantes como massa homogênea.
349
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 15 de maio de 1946, Ano XIV, nº 781, p.6.
348
143
abria mão de relacionar a atividade profissional das trabalhadoras aos “maus costumes”. Ao
definir que espaços as mulheres poderiam freqüentar, o poder público buscava tomar
territórios utilizados há muito tempo na lavagem de roupa. Em outro momento, a prefeitura
ainda justificou sua ação afirmando que a prática das lavadeiras estava proibida nos 400
metros em que o rio margeava o centro da cidade, onde se achavam “um Jardim Público, o
prédio onde funciona a Prefeitura e um seguimento de rua calçada a paralelepípedos,
arborizado e cheio de boas edificações, tais como os melhores hotéis da cidade”. 350
Durante a disputa judicial, Pamphilo Andrade da Silva Freire, advogado do município
e irmão do refeito, procurou ratificar a constitucionalidade da aplicação do código de posturas
em Itabuna. Para ele, a lei se configurava na forma que a Prefeitura encontrava para gerenciar
o patrimônio de Itabuna, garantindo que a ordem fosse conservada sem esbarrar na vontade
individual de cada cidadão. Dizia ainda que a ação do governo resultava na iniciativa legal de
que o uso do espaço urbano, enquanto algo público, fosse regulado “para de que seu uso não
resulte um caos”351 Assim, mesmo sendo o Rio Cachoeira um bem público, as leis de posturas
regulamentavam seu uso conforme os interesses da administração local. Em outra parte do
documento, o advogado de defesa do município alegava que
Não nos quer parecer que o Rio Cachoeira deixou por isso de ser um bem
público, até porque, o mesmo, por isto que é um bem público, precisa pelas
leis de Posturas Municipais não apresentar, a bem do progresso e da grande
civilização da comuna, o aspecto tão conhecido, tão condenado e tão típico
das favelas.
Mas não é só pelo aspecto da cidade que se vêem aparecer no Código de
Posturas, dispositivos que magoam poetas de olhos profundos e sonhadores, é
ainda, e principalmente, pela própria necessidade de higiene coletiva e em
defesa da própria saúde, também das apelantes [lavadeiras] que, como é
óbvio, fazem parte da coletividade. 352
A função do Código de Posturas de Itabuna, ao criar padrões de comportamento
urbano entre os munícipes, respaldava o direito do Estado de intervir nas práticas culturais dos
sujeitos. Nele, o poder público se baseava para tentar estabelecer os usos sociais da cidade
entre seus habitantes, gozando da posição de mantenedora do bem-estar coletivo, que, neste
caso, estava relacionado às questões higiênicas e sanitárias. Para a Prefeitura, mesmo sendo
de utilidade comum, o patrimônio local estava guardado sob suas determinações, e as posturas
eram a lei de contenção reivindicada para coibir as práticas que se desviam das determinações
do governo. Nas palavras de Pamphilo Freire Silva, a atividade no centro de Itabuna realizada
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 12 de junho de 1946, Ano XIV, nº 784, p.3-5.
Idem,Ibidem. p.4.
352
Idem,Ibidem.
350
351
144
por “lavadeiras afanosas, alegres, contentes e brejeiras, está bem para trechos de árias e
operetas [...] no nosso mundo as coisas já vão mudando e o Estado [...] vai criando leis de
contenção social necessárias, compatíveis e próprias ao momento que vivemos.”353
No extenso documento escrito pelo advogado da prefeitura, Pamphilo Freire Silva
alegava também que a falta de aplicação da lei de posturas em gestões anteriores não anulava
a validade daquele dispositivo jurídico. Em seu texto, ele afirmava que o atual prefeito não
tem o direito de incorrer nos erros das antigas administrações, reafirmando que “O código de
posturas tem existência e fundamentos legais, e deve ter sua vigência assegurada, para bem da
própria coletividade.” Em defesa disso, a administração local procurava assegurar a função do
Estado de gerenciar as práticas dos sujeitos, recusando usos da cidade que rompessem com
suas determinações. Não era por acaso que o defensor argumentava que alegar a invalidade da
referida lei “só seria possível nas sociedades incipientes em estado ainda “tribal””.354
As leis de posturas de Itabuna estavam dispostas para regulamentar as práticas lícitas e
reprimir as ilícitas existentes na cidade, assegurando a posição das municipalidades na
condição de gerenciador das condutas dos trabalhadores. Para Raquel Rolnik, “a legislação
urbana age como marco delimitador de fronteiras do poder”.355 Utilizando-se do código
jurídico, o poder público procura estabelecer os comportamentos aceitáveis e repudiáveis para
a sociedade. Cria um campo de tensão em torno do agir e do fazer cotidiano inerente às
pessoas que vivem nas cidades. Disso resultavam as disputas existentes entre os
trabalhadores, que tentavam assegurar seu espaço social por meio de seus hábitos, e o
governo, que procurava assegurar territórios instituindo formas de procedimentos que se
adequam a seus interesses. O conflito em torno do direito à cidade se torna inerente quando
regulado por um conjunto de leis que procura estabelecer padrões culturais universais para um
conjunto de pessoas com valores e padrões específicos e singulares. Isso posto, o que parece
mais relevante é perceber a maneira como as pessoas questionaram as leis, burlaram a
estratégia da classe dirigente política e forjaram táticas de se apropriar da cidade.
Em seus argumentos, o advogado do poder municipal buscava descaracterizar a
atuação das lavadeiras procurando sempre associá-la à “desordem” urbana. No entanto, o
poder público também desconfiava da posição das trabalhadoras diante da entrada na justiça
pública contra a proibição da Prefeitura. Para o prefeito Silva Freire, a mobilização jurídica
das lavadeiras só fora possível em decorrência da influência de setores da oposição local, que
Idem,Ibidem.
Idem, ibidem.
355
ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: Legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo: São
Paulo: FAPESP: NOBEL, 1997. p.13-14.
353
354
145
teriam se aproveitado do conflito para desgastar a imagem pública do executivo itabunense. O
advogado das mulheres, Carlos Pereira, pertencia à União Democrática Nacional (UDN),
partido de oposição à situação municipal (PSD), o que deu origem a tal especulação.356
Mesmo considerando os argumentos de que as trabalhadoras tenham sido influenciadas pelos
interesses políticos da oposição, é difícil acreditar que elas sejam ingênuas a ponto de se
deixar conduzir somente pelas disputas políticas. Lara e Mendonça apontam que, em casos
como esse, a lei e a justiça deixam de ser apenas instrumento de dominação para se configurar
como recursos que também podem ser “apropriados por diferentes sujeitos históricos que lhes
atribuam significados sociais distintos”357, isto é, podem se utilizar de brechas das regras
estabelecidas para lutar pelo direito à cidade.
Há razões para crer que as lavadeiras encontraram, na disputa política local, o espaço
para negociar a manutenção da sua atuação profissional. Nesse sentido, a conivência em
aceitar o mandado de segurança da oposição tenha sido encarada como a oportunidade para
driblar as imposições de costumes e de hábitos exigidos pela Prefeitura. Isto é, foi uma
maneira de utilizar o sistema político e jurídico no processo de resistência às determinações
do poder público e suas leis municipais, cuja tática se destinava a assegurar a sobrevivência
do trabalho com a lavagem de roupas frente a uma rede de forças que questionava a existência
das lavadeiras e de representações estabelecidas contra elas na cidade.358
Ao difamar as lavadeiras, chamando-as de abusadas e de mal educadas, os segmentos
hegemônicos viam nelas ameaças aos valores culturais urbanos fundamentados na ordem
estabelecida. Quando utilizavam o leito do Rio Cachoeira para manter sua prática
profissional, conseqüentemente desestabilizavam a dinâmica social imposta a partir dos
padrões de urbanidade e corroíam as formas de usar Itabuna segundo as normas tradicionais
de comportamento e de postura. Voltamos a considerar que os modos de vida das lavadeiras
evidenciavam um outro uso da cidade distanciado das condutas e das regras formuladas pela
Prefeitura, e fundamentados no uso “popular” do espaço urbano. Para Arantes Neto, o cenário
urbano se forma com “suportes físicos de significações, que passam a fazer parte da
experiência ao se transformarem em balizas reconhecidas de identidades, fronteiras de
diferenças culturais e marcos de pertencimento”.359 Dessa forma, entendo que a maneira de
atuar sobre o tecido urbano transforma os lugares citadinos em cantos de resistências, onde as
Idem, Ibidem. p.4.
LARA, Sílvia H; MENDONÇA, Joseli M. N. Op.Cit., p.12.
358
CERTEAU, Michel. Op. Cit. p.79.
359
ARANTES NETO, Antonio A. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas, SP.:
Editora da UNICAMP; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. p.106.
356
357
146
trabalhadoras não tenham que se desfazer dos seus costumes para dar lugar a outros
desconectados de suas tradições e de sua vivência. Os espaços antes planejados para
representar a ordenação do ambiente citadino, ganham outros sentidos e outros significados
para as camadas pobres da sociedade. Na medida em que esses espaços são retirados dos
populares, vêem-se as lutas sociais que se ocultam sob a ordem estabelecida.
São esses elementos que me levam a compreender a necessidade do poder público de
criar estereótipos para identificar os grupos antagônicos ao projeto de cidade da Prefeitura e
formular a base ideológica no sentido de legitimar as medidas coercitivas empreendidas.
Tornam-se salientes as disputas pelos territórios urbanos, neste caso, o Rio Cachoeira, entre as
lavadeiras e os setores políticos dirigentes. Em dezembro de 1946, o caso as trabalhadoras
ainda recebia atenção no Jornal Oficial de Itabuna, quando o prefeito persistia em ressaltar as
justificativas para a proibição da lavagem de roupas no rio.
O Administrador tem que atender ao progresso e ao crescimento da cidade e
localizar certos serviços que a podem desfeiar [sic], nas zonas suburbanas ou
rurais, do modo que proporcione um aspecto o mais agradável possível. Num
centro civilizado, não é admissível um logradouro destinado às lavadeiras em
pontos centrais da cidade, em lugares apropriados ao comércio, às
universidades, ou misteres outros mais elegantes. A liberdade ampla seria o
desconhecimento do conceito de urbanismo, seria desprezar o elemento
estético, seria menosprezar aquele preceito que vem de Aristóteles, segundo o
qual “a cidade deve ser edificada de modo que proporcione aos homens,
segurança e os faça felizes.”360
Assumindo a condição do poder público na posição de gerenciador dos modos de vida
urbano, a Prefeitura não tolerava a presença de hábitos que estivessem ligados aos valores
populares nos locais que considerava essenciais para a afirmação do padrão de beleza e
higienização hegemônicos. Contudo, ao desenvolver suas práticas, as lavadeiras manipulavam
a sua maneira, os espaços impostos, consolidando suas vivências diferentes dos modelos
projetados pela administração política. Postulavam, pois, o espaço que não teriam recebido
com a urbanização, fazendo das margens e do leito do rio lugar próprio de suas atividades,
mesmo enfrentando as adversidades da política urbana.
Caso semelhante ao das lavadeiras foi o dos engraxates de Itabuna. Em junho de 1947,
quase um ano depois do episódio com as mulheres, um novo mandado de segurança foi
impetrado contra a Prefeitura. Neste documento, doze engraxates liderados por Pedro Batista,
Francisco Mascarenhas de Oliveira, Antonio Guimarães Santos e Arlindo Silva, alegavam que
foram impedidos de exercer sua mencionada profissão na cidade. Segundo os rapazes, o
360
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 14 de dezembro de 1946, Ano XIV, nº 811, p. 7-8.
147
prefeito os proibiu de desempenhar a atividade de engraxate nas principais ruas do perímetro
urbano e nos passeios público, restringindo suas atividades para outros pontos, distantes e
menos freqüentados pela sua freguesia.361
Assim como no caso com as lavadeiras, os engraxates recorreram à justiça contra a
Prefeitura depois que o prefeito Armando Freire resolveu por em prática os artigos do Código
de Postura sobre o trabalho ambulante. Existiam dois artigos da referida lei que versavam
sobre as atividades dos engraxates. No artigo 350, as posturas determinavam que ficava
“terminantemente proibida a ocupação dos passeios das ruas e das praças por engraxates,
vendedores de frutas, legumes, doces ou quaisquer outros gêneros expostos ao comercio por
vendedores ambulantes.” O segundo item era o artigo 351, segundo o qual era “expressamente
proibido transitar pelos passeios conduzindo animais, aves e peixes, malas e taboleiros de
doces, de hortaliça e de carne, baús de massas e de fazendas, balaios, sacos, trouxas de roupa,
enfim qualquer coisa que possa incomodar o público”. Este último ponto se relacionava mais
especificamente com os instrumentos de trabalho utilizados pelos engraxates. Ambos os
artigos previam o pagamento de multas no valor de 10$000 (dez mil réis) cada um. 362
O código de postura era apenas um dos obstáculos que os engraxates precisavam
enfrentar para levar viver em Itabuna. A falta de alinhamento dos imóveis nas ruas do centro
era utilizada como justificativa, pela fiscalização, para repreender a atuação destes
trabalhadores nas calçadas. Em abril de 1944, a vigilância se encarregara de retirar os
engraxates que se localizassem nos passeios das principais vias urbanas com a instalação do
novo diretor do fisco local363. Aproveitando o espaço de queixas e reclamações de O
Intransigente, o sr. Aprígio Paixão reivindicava seu direito de usar a calçada da Casa Electro
para trabalhar. Ele reclamava da “medida fiscal que proíbe que os engraxates trabalhem no
passeio por empatar o trânsito”; além disso, alegava “o queixoso que a casa onde trabalha está
recuada de alinhamento, nada impedindo a sua permanência fora da porta do citado prédio.”
364
Na mesma queixa, Aprígio Paixão ainda informava que pagava seus impostos e que não
podia trabalhar aos domingos e feriados, visto que o comércio não abria, sendo de segundafeira a sábado, os dias nos quais tem mais serviço. Finalizava sua queixa esperando ter
“permissão para continuar trabalhando como de costume.”365
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 14 de dezembro de 1946, Ano XIV, nº 811, p. 7-8.
APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Itabuna: Tipografia
D’A Época, 1933. p.57. Ver artigos 350 e 351
363
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de abril de 1944, Ano XVII, n.º 32. p.1.
364
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 22 de abril de 1944, Ano XVII, n.º 34. p.1.
365
Idem, ibidem.
361
362
148
Na reclamação de Aprígio Paixão é possível notar o quanto a aplicação das posturas
municipais prejudicava o cotidiano de trabalho dos engraxates em Itabuna. De maneira
semelhante às lavadeiras, estes ambulantes faziam das ruas o seu espaço de atuação
profissional. Exigir a frente da Casa Electro como lugar de trabalho não é uma escolha
aleatória. Certamente era ali que Paixão construía suas relações com os clientes e os amigos.
O sentido social da rua não era circular e transitar, como previa o poder público, mas era o
espaço com o qual o próprio sujeito se sentia identificado e onde construía seu ambiente de
trabalho. O tempo de trabalho também era escolhido pelos engraxates. Era durante os dias
úteis, enquanto as pessoas transitavam pelo comércio, que eles ganhavam seu dinheiro,
necessário para o sustento rotineiro. Mudar seu serviço de horário e de dia o prejudicaria.
Finalmente, o que Paixão desejava, e possivelmente os seus companheiros de ofício, era
manter o trabalho “como de costume”.
Não era apenas a fiscalização que se ocupava de controlar as práticas urbanas dos
trabalhadores ambulantes como os engraxates. A polícia também promovia a prisão destes
sujeitos nas praças de Itabuna. João de Deus Batista, com 19 anos de idade e egresso da escola
de menores aprendizes de Salvador, vendedor de quebra-queixo e engraxate, foi preso, no mês
de dezembro de 1941, na Praça João Pessoa. Segundo as autoridades locais que registraram o
fato ocorrido, aproveitando-se do movimento instaurado naquele lugar, João de Deus
promovia furtos de objetos de pouco valor, tais como relógios, doces e salgados.
Possivelmente entre os lugares mais freqüentados por esses indivíduos estivesse a citada
Praça e os estabelecimentos comerciais como cinemas, bares e pontos de ônibus.366 Nesses
lugares, a movimentação de pessoas se tornava um atrativo para conquistar clientes ou obter
outras vantagens. Isso pode também ser notado diante da queixa feita na imprensa contra a
falta de policiamento na Travessa Osvaldo Cruz, na porta da Auto Viação, “onde se reúnem
todos os vendedores de guloseimas, numa gritaria infernal, em correrias e lutas, o que dá
quase sempre uma má impressão ao visitante que aqui aporta trazido pelo ônibus.”367
Diante dos atritos entre os setores hegemônicos e os trabalhadores ambulantes de
Itabuna durante a década de 1940, a contenda entre os engraxates e a Prefeitura, em 1947,
parecia ser o clímax de uma disputa histórica. De maneira semelhante ao que havia feito no
caso das lavadeiras, o advogado da Prefeitura, Pamphilo Freire, sublinhou o papel do poder
público em regulamentar as atividades profissionais do município. Em suas palavras, dizia
que “é a profissão de engraxate, honesta e tão digna, quanto as bem nobres, pois é um fator
366
367
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 22 de setembro de 1942, Ano VIII, n.º 590. p.7.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, setembro de 1935, Ano X, n.3. p.4.
149
de trabalho digno”, contudo, ressaltava que mesmo essa condição não isentava estes
trabalhadores de serem regulados pelas leis municipais, ressaltando que “por ser humilde, não
deixa de merecer amparo igual as demais elevadas [...] ‘todos são iguais perante a lei’.”368
O governo municipal justificava a aplicação do Código de Posturas aos engraxates
invocando a igualdade de condições diante da lei, ratificando a constitucionalidade de sua
intervenção naquele caso. Para tanto, reivindicava o mesmo artigo 350 das posturas que
versava sobre a ocupação das calçadas das vias públicas por trabalhadores ambulantes,
sublinhando que tal decisão “obriga os munícipes aos cumprimentos de certos deveres de
ordem pública.” Partindo desse princípio, a Prefeitura argumentava de forma categórica que o
mandado de segurança produzido pelos engraxates não tinha validade, visto que por causa da
constitucionalidade da medida do governo local com o objetivo de manter a ordem pública, os
requerentes não teriam direito violado ou ameaçado.369
Outra semelhança com o caso das lavadeiras é que a Prefeitura voltou a alegar que o
mandado de segurança dos engraxates era mais uma medida da oposição local contra a
Prefeitura. Em nota, o prefeito dizia que
este pedido de mandado de segurança antes de ter uma finalidade meramente
política, posto que assina por procuração é auto candidato a prefeito pelo
PTB, é em tudo semelhante ao caso das lavadeiras com uma diferença apenas,
é que hoje seu signatário já não é mais presidente da UDN, como dantes e sim
do PTB.370
Creditando a ação judicial promovida pelos engraxates à política oposicionista local,
liderada por Carlos Pereira (naquela oportunidade já filiado ao PTB), a Prefeitura não
acreditava no potencial de reivindicação dos munícipes. Tirava a possibilidade de articulação
daqueles trabalhadores com os políticos locais em troca dos interesses mais imediatos dos
engraxates. Assim como no caso das lavadeiras, não me parece frutífero crer em ingenuidade
por parte pobres urbanos frente a disputa eleitoral. Na intersecção das disputas internas dos
setores dominantes, os engraxates podem ter encontrado uma brecha no sistema político e
jurídico para reivindicar seus direitos à cidade. 371 Ademais, se o mandado de segurança foi
impetrado, isso só aconteceu porque houve a aceitação dos engraxates que assinaram o
documento. Por outro lado, se Carlos Pereira elaborou o documento, foi porque encontrou
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 21 de junho de 1947, Ano XV, n.º 837. p.8.
Idem, Ibidem. p.8.
370
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 14 de junho de 1947, Ano XV, n.º 836. p.14.
371
LARA, Sílvia H.; MENDONÇA, Joseli M. N. Op. cit. p.13.
368
369
150
uma demanda dos engraxates com a aplicação efetiva do Código de Posturas de Itabuna por
parte da Prefeitura.
Os casos envolvendo as lavadeiras e os engraxates na disputa pelo direito à cidade são
importantes para compreendermos as contradições sociais em Itabuna. Em ambos os fatos,
são evidências de que as regras de urbanidade criadas pelo poder público não se aplicavam
imperiosamente aos modos de vida dos trabalhadores. Para Lepetit, as instituições e as regras
“só existem na medida em que postos em uso [...] não compõem um simples enquadramento
para a ação, e sim configuram recursos, alterados pela prática, de que os atores dispõem.”372
Isto é, a lei é elaborada, mas os sujeitos não se submetem facilmente aos interesses do Estado.
Em suas práticas, os pobres urbanos burlaram as estratégias do poder hegemônico a partir do
uso não autorizado da cidade. Nessas maneiras de agir e de fazer cotidianas, as lavadeiras e os
engraxates fizeram das margens do Rio Cachoeira e das ruas de Itabuna cenários de afirmação
de suas próprias experiências sociais em Itabuna.373
As ações das lavadeiras e dos engraxates parecem ter tido impacto, a julgar pela
reação dos membros da Prefeitura. Na tentativa de afirmar seu próprio poder sobre a cidade, o
advogado do prefeito procurou ressaltar a função da municipalidade em regulamentar os usos
e os costumes dos itabunenses. Isso força o poder público a relembrar aos munícipes, por
meio da justiça pública, o direito de fiscalização sobre as condutas da população para a
organização da cidade. Outrossim, no intuito de sedimentar seus próprios valores culturais
urbanos, o setor político dirigente nega as práticas das lavadeiras e dos engraxates. Carvalho
indica que quando o poder busca se definir como tal, imediatamente utiliza um discurso de
negação dos valores dos grupos populares.
374
Por isso, quando os trabalhadores passam a
ocupar os lugares, na cidade, a imprensa assumiu o papel de denunciadora das condutas
estranhas aos padrões de urbanidade.
Isso não foi o suficiente para evitar que os
trabalhadores de ganho em Itabuna se acomodassem com o Código de Posturas Municipais.
Se a Prefeitura utilizou do dispositivo jurídico, engraxates e lavadeiras também encontraram a
oportunidade de usar a justiça para reivindicar seus usos, costumes e tradições sobre a cidade.
LEPETIT, Bernard. Op. cit.. p.188.
ARANTES NETO, Antonio A. Op. cit., p. 106. Para o autor, os lugares da cidade são os espaços construídos
nos conflitos e nas sociabilidades chamadas marginais. Ruas, praças e monumentos transformam-se em
fronteiras de identidades, diferenças culturais e marcos de pertencimento dos grupos populares.
374
CARVALHO, Jorge. Op. cit. p.125.
372
373
151
Moleques e malandros nos logradouros públicos
Em 6 de junho de 1942, Fernando Alves escrevia uma pequena nota ao A Época,
intitulada “Grande Problema”. A partir da década de 1940, aquele periódico reservava uma
parte de sua última página para crônicas ou informações concernentes à Itabuna. Naquela
oportunidade, Alves resolveu escrever sobre os menores abandonados que existiam na cidade.
Ele dizia que o número de menores abandonados crescia “de maneira assustadora,
ameaçando, para os dias de amanhã, a sociedade.” Nas palavras dele, a situação local não era
das melhores: “Todos os dias o Juiz de Menor tem um caso. É um menino fugido; outro que
apanhou umas galinhas, ainda outro que foi ao cinema e encontrou a casa fechada, e,
finalmente, rapazolas que pongaram no fundo de um caminhão e palmilham pelas ruas da
cidade.”375 O articulista concluía seu texto ressaltando a necessidade do poder público e da
Sociedade São Vicente de Paulo de construir a Casa do Mendigo e a Casa do Menor
Abandonado, que “deveriam tomar o encargo de amparar os futuros cidadãos”.376
A nota produzida por Alves era apenas uma das muitas matérias que apareceram na
imprensa sobre o comportamento da juventude pobre de Itabuna. Durante as décadas de 1930
e 1940, os periódicos noticiavam vários casos de menores e mendigos que haviam
ultrapassado as fronteiras da legalidade urbana estabelecida pelos poderes públicos. Em boa
parte das notícias, as críticas se direcionavam as práticas cotidianas desses sujeitos, que
pareciam incomodar profundamente os interesses dos segmentos hegemônicos de Itabuna.
Desde roubar pequenos objetos, passando por fugas de casa, até “pongar” em caminhões que
transitavam no perímetro central, as condutas dos menores eram freqüentemente fiscalizadas
pela imprensa e pela Guarda. Outrossim, o periódico se queixava também de “inúmeros
adolescentes em renhidas partidas de bilhar, jogo proibido a menores”377
As condutas dos menores não fugiam da observação dos fiscais de Itabuna. A Guarda
registrava diversas queixas contra garotos e rapazes que utilizavam as ruas da cidade para
atividades não coerentes com os padrões elaborados pelo Código de Posturas. No dia 16 de
fevereiro, o guarda Antonio Pereira comunicou ter tomado providências contra dois garotos,
filhos de um comerciante da praça, por “estarem pronunciando palavras indecorosas no jardim
Olinto Leone”.378 Em 25 daquele mesmo mês, o guarda n.20, comunicou ter apreendido e
inutilizado uma bola de futebol, tomada de uns garotos que estavam jogando em via pública.
Dias depois o soldado Eribaldo Cardoso voltava a apreender e inutilizar uma bola de garotos
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 6 de junho de 1942, Ano XXIV, n.º 1214. p.4.
Idem, ibidem
377
Idem, Ibidem.
378
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 24 de fevereiro de 1940, Ano VII, n.º 457. p.12.
375
376
152
pelo mesmo motivo que o anterior.379 A fiscalização sobre os menores não recaía apenas
sobre as brincadeiras que aconteciam nos logradouros urbanos.
Há registro de crianças trabalhadoras que também foram alcançadas pela fiscalização.
Em 25 de abril de 1933, os menores Marcolino dos Santos e Antonio Soares, ambos com 14
anos de idade, foram intimados a deixar de trabalhar como condutores de tropas por um dos
guardas espalhados pela cidade.380 Pelo mesmo motivo, José Raimundo Guedes e José
Queiroz, ambos com 14 anos de idade, Agenor de Oliveira, com 13 anos, e Ovídio Queiroz,
foram repreendidos pela inspetoria da Guarda Municipal.
381
É possível encontrar com
facilidade outros casos semelhantes a estes citados entre os anos de 1933 e 1934, período no
qual a Guarda iniciou sua atuação em Itabuna, como observei no primeiro capítulo. Para
controlar as ações dos menores na cidade, os soldados possivelmente se amparavam no
Código de Posturas do município, que possuía alguns artigos que atingiam condutas infantojuvenis.
O Código de Posturas possuía dispositivos que se relacionavam diretamente com os
tipos de diversão existentes em Itabuna e praticados por menores. Eram as posturas
municipais que impediam o emprego de menores na condução de animais, conforme citado
anteriormente, mediante o artigo 317. No que tange às diversões, a lei urbana regulamentava
que os jogos de futebol, de atletismo, bem como outras diversões, “só poderão se realizar nos
lugares apropriados e designados pela prefeitura mediante licença, sob pena de 20$000 (vinte
mil réis) de multa para cada infrator ou prisão de 24 horas.”382 Caso a infração estivesse
relacionada com as crianças, a punição seria revertida ao seu responsável direto. Pelos casos
que citei acima, parece que a Guarda preferia adotar uma medida mais pragmática ao
apreender as bolas e inutilizá-las. Além da prática de jogos esportivos em vias públicas, havia
também restrições ao costume de se empinar papagaios ou pipas. Nos rigores da lei local, os
que fossem flagrados empinando pipas em praças ou ruas da cidade, poderiam ser multados
nos mesmos 20$000 (vinte mil) réis, embora não houvesse a punição de prisão para esta
transgressão. Contudo, no único parágrafo deste artigo, havia a ressalva de que, em caso do
“divertimento de papagaios resultarem danos aos edifícios públicos ou particulares, fios
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 2 de março de 1940, Ano VII, n.458.º p.12.
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 29 de abril de 1933, Ano II, n.º 106. p.10.
381
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 13 de maio de 1933, Ano II, n.º 108. p.6.
382
APMIJD. Códigos de Posturas do Município de Itabuna. Ato n.º 184, de 9 de junho de 1933. Itabuna:
Tipografia D’A Época, 1933. Artigo 362.
379
380
153
telefônicos, do telegrafo ou os condutores de energia elétrica, o infrator e o seu representante,
além da multa, responderá pecuniariamente pelo prejuízo.” 383
No caso da prática de empinar papagaios ou pipas em Itabuna, não foi possível
encontrar nenhuma denúncia ou queixa, tanto nos registros da Guarda Municipal como nos
periódicos de circulação local. Entretanto, o uso de fogos de artifício durante as festas juninas,
por parte dos menores, foi uma das práticas que chamavam a atenção de parte da imprensa e
do poder público. Em maio de 1936, o O Intransigente anunciava novas medidas da polícia
local sobre o uso de fogos de artifício. Segundo a informação, a polícia estava proibindo
terminantemente o “perigoso” uso de bombas nos festejos de São João. Nas palavras do
periódico, havia pessoas que não se “satisfazem em lançar bombas comuns, fazendo uso de
verdadeiras granadas de dinamite que assustam as famílias, [...] não se falando das tais
bombas de parede, que mocinhos bonitos, aos bandos, gostam de atirar nas noites de S. João,
sem o menor respeito pelos que pacatamente se divertem.”384 Outrossim, o Código de
Posturas determinava a proibição de soltar fogos, buscapés, bombas de clorato e espadas no
perímetro central, durante as três festas juninas mais importantes.385
A partir do que foi levantado até aqui, parece que a preocupação dos poderes públicos
com a população de menores em Itabuna estava relacionada com a necessidade de controlar
suas práticas na cidade que se transformava. Ao tentar exercer a ordem estabelecida pelas
autoridades públicas, o comportamento dos menores era restringido pelos dispositivos do
Código de Posturas. Por conta disso, atividades esportivas, diversões infantis e ofícios
exercidos por crianças eram fiscalizados pela Guarda Municipal. Para Andréia da Rocha
Rodrigues, as condutas dos menores passaram a ser alvo de críticas por serem considerados
símbolos de anti-modernidade e anti-civilização, acrescentando a isso o fato de serem
atividades associadas ao ócio e à vadiagem. Para ela, esses feitos também “provocariam,
portanto, desordens físicas e morais no perímetro urbano. [...] por serem praticados na rua e
impedirem a livre circulação das pessoas ocupadas com o trabalho”386 Esses usos populares
colocavam em risco o funcionamento da cidade instituído pela Prefeitura. A urbanidade
estabelecida pelos setores dirigentes de Itabuna impunha seus limites aos costumes infantis, o
que não quer dizer que os menores se conformaram com estas restrições.
Idem, Ibidem, p.59. Artigo 363, § único.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 30 de maio de 1936, Ano X, n.º 39. p.1.
385
Idem, Ibidem. Artigo 361.
386
RODRIGUES, Andréia Rocha. A infância esquecida. Salvador 1900-1940. Salvador: EDUFBA, 2003. P.76.
(Centro de Estudos Baianos).
383
384
154
Apesar do Código de Posturas apontar alguns artigos que regulamentavam o
comportamento dos menores, as reclamações em torno do agir infanto-juvenil se referiam
também a outros tipos de comportamento existentes na cidade. A preocupação da imprensa e,
provavelmente, dos poderes públicos se intensificava quando estes menores atentavam contra
a ordem política, econômica e cultural do município. Em setembro de 1935, o O Intransigente
noticiava a existência de “Um menor perigoso” existente em Itabuna. Antes de falar sobre o
referido menor, o periódico dedicou extensas linhas para explicar o aumento de menores e de
vadios na cidade. Para o jornal, “o número de vadios que infestam nossas vias públicas,
sempre tão movimentadas comercialmente, se acha aumentado com um espécime raro e
perigoso”. A notícia destacava também que aquele menor, “depois de ter esgotado paciência
dos mantenedores da ordem na capital, foi naturalmente remetido para as plagas do sul, que,
de um tempo para cá, pela fama de sua riqueza e espírito morigerado dos seus habitantes [...]
está se convertendo na colônia correcional do estado.”387
Após apontar a possível origem do menor, o qual não teve seu nome ou apelido
divulgado pelo jornal, a notícia informava que, nos últimos vinte dias, Itabuna estava sendo
ameaçada pelas “diabruras, aliás, graves, entre estas, a de perseguir os colegiais, ameaçando
matar aos que lhe caem em desafeição.”388 Por conta do comportamento do menor, José
Habib, Celso Fontes Lima, Augusto Andrade, Edgar Alves Sá e Arthur Nilo Santana,
proprietários de lojas comerciais e de residência no perímetro central, juntamente com o
comandante da Guarda, João Moraes, resolveram enviar uma petição ao Juiz de Menores
solicitando providências quanto às atitudes do menor na cidade. No requerimento judicial, os
peticionários ressaltaram que, no curto período de convivência na cidade, o adolescente já
havia apresentado seu “verdadeiro espírito de perversidade e requintado instinto sanguinário”.
Eles ainda lembraram que o menor tinha sido detido duas vezes em menos de um mês em
vista das tentativas de furto e de roubo, além de ter o costume de pronunciar “palavras
insultantes e atentatórias à moralidade pública”. Ao encerrar o documento, os signatários
sinalizaram as conseqüências da impunidade e da negligência para com o caso daquele jovem:
Como se vê V.ª Exc.ª, esse menor, que, a se julgar do seu procedimento nesta
cidade, está se evidenciando um facínora em embrião, constitui, como de fato
está se constituindo uma séria e perigosa ameaça à vida das crianças desta
terra pacata, que já estão inibidas, em conseqüência, de darem a expansão aos
folguedos, e para que se possam evitar, quanto antes possível resultados
387
388
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 25 de setembro de 1935, Ano X, n.6. p.4.
Idem, Ibidem.
155
desagradáveis e até mesmo funestos para os pais de família, e signatários da
presente solicitação. 389
Os fatos evidenciados acima deixam claro que os menores abandonados eram vistos
como problema social para Itabuna. Tratava-se de controlar um adolescente com os rigores
estipulados pelo poder público, cuja meta era evitar que aquele indivíduo pudesse impedir o
pleno funcionamento da cidade. Neste caso mais específico, O Intransigente e os signatários
da petição judicial associavam a periculosidade do menor ao desacato do sossego público e à
ameaça à propriedade privada. Com argumentos semelhantes a estes, muitos menores
abandonados que percorreram as ruas de Itabuna foram perseguidos pela imprensa e pela
fiscalização, especialmente aqueles que mendigavam nas praças e nos estabelecimentos
públicos. Os furtos e os roubos praticados por menores colocavam sob tensão os setores
hegemônicos que freqüentavam o perímetro central, contrariando a idéia preponderante de
que o centro da cidade fosse um local de ordem e de segurança para os munícipes. Em outra
edição de “O Intransigente”, o perfil do menor aparecia com mais detalhes. Considerado um
“Vadio perigoso à ordem pública”, como intitulava a notícia, o jornal dizia se tratar de um
menor abandonado, “com cerca de 12 anos de idade, cor preta, que vive a perambular noite e
dia pela ruas, praticando impunemente, toda sorte de tropelias [...] esse delinqüente precoce
perigosíssimo tem atacado diversas crianças para roubar e penetrado em diversas casas onde
furta o que encontra a mão.”390
A existência de menores abandonados e mendigos espalhados pelos diversos pontos
da cidade era algo que contrariava o discurso de progresso e de civilização produzido pela
imprensa e pelo poder público. A visibilidade e a ação destes sujeitos no cenário urbano
faziam com que a prática política e discursiva da Prefeitura fosse contrariada cotidianamente.
Em 20 de junho de 1936, novamente “O Intransigente” noticiava a quantidade de menores,
mendigos e vadios no perímetro central. Segundo o periódico, o intuito daquela notícia era
contribuir para que a Prefeitura tomasse providências contra “o descaso e desprezo lançados
sobre fatos que envergonham e diminuem os foros que Itabuna desfruta, de civilizada e
culta.”391 Os motivos para que a matéria se posicionasse daquela maneira em relação à cidade
estavam mais a frente, quando o semanário destacava que
Os mendigos e os loucos perambulam nas ruas da cidade e os meninos
maltrapilhos e vadios, para dar curso a sua má educação e conseqüente falta
de caráter, apupam e apedrejam, num alarido ensurdecedor, estes infelizes a
Idem, Ibidem.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, setembro de 1935, Ano X, n.º 5. p.1.
391
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 20 de junho de 1936, Ano X, n.º 43. p.1.
389
390
156
quem a sorte nem sequer o sendo lhes deu. [...] E finalmente, para coroar o
espetáculo tétrico, vêem-se pelas esquinas e bancos de jardins, mendigos cujo
corpo dilacerado pelas ulceras, gemem ao desamparo sob o peso de sua
miséria, fitando em noites estreladas o manto azul, único teto que a sorte lhes
concedeu, ou tiritando pelos portais, quando em noites chuvosas [...]392
Para O Intransigente, no mesmo grupo de pessoas estavam mendigos, loucos, meninos
e vadios. Em comum, eles tinham a condição de pobreza e o preconceito emanado do
periódico. Roberto DaMatta nos lembra que a rua, sendo considerada muitas vezes como
espaço negativo, perigoso, imprime nos sujeitos que nela vivem os seus estigmas.393 Talvez
por isso a matéria destacasse a “má educação” e o barulho enquanto aspectos que tornavam
aqueles sujeitos elementos negativos para a cidade. Sobretudo, pode-se destacar o fato de que
o jornal entendia que a “sorte” era o fator preponderante para a situação social daqueles
indivíduos. Esse entendimento da matéria denotava que a existência cotidiana desses sujeitos
era resultado de um destino previamente traçado para eles. Entretanto, o relato do semanário
parece ratificar uma assertiva construída pelo antropólogo Antonio Arantes. Segundo ele, o
ser humano busca se aproximar de outrem e buscar, no contato físico, o reconhecimento de si
como pessoa, mas, na medida em que realiza essa comparação, cria uma repulsa de quem não
quer ser “contaminado” por corpos repulsivos e diferentes. Dessa maneira, ao notar a presença
de mendigos, moleques e loucos em um espaço central, o redator do jornal estranhou a
presença desses personagens naquele lugar. Para Arantes, a criminalização dos habitantes de
rua ocorre quando eles são classificados socialmente como “coisa fora de lugar, portanto
simbolicamente suja e perigosa”394.
A presença dos menores mendigos expunha publicamente as contradições do discurso
hegemônico. Por isso, refletem em si tensões e conflitos sociais decorrentes da visibilidade
pública de diferentes segmentos da sociedade. Por outro lado, para Arantes, os espaços
urbanos podem indicar um lugar de politização no que tange a sua ocupação por parte dos
setores pauperizados da cidade. Isto quer dizer que os menores maltrapilhos, mendigos e, até
mesmo, os loucos, escolhem os lugares que eles achavam mais rentáveis para sua
sobrevivência. Identificar a geografia urbana erguida por esses sujeitos a partir do agir talvez
seja uma forma de compreender as zonas demarcadas por eles. O A Época de 15 de dezembro
de 1937, nos oferece um indício desses espaços, ao endereçar queixas e reclamações contra a
Guarda Municipal e o delegado de polícia do município acerca da fiscalização na área
Idem, Ibidem.
DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo: Brasiliense,
1985. p.50-51.
394
ARANTES, Antonio. Op. cit. p.107-108.
392
393
157
próxima ao único cinema local naquele momento. Como solução para este problema, a
imprensa reivindicava a proibição da permanência de “indivíduos em trajes sórdidos,
maltrapilhos, numa lamentável cena de promiscuidade com senhoritas e pessoas de nossa
melhor sociedade.” 395
Outra indicação de que as portas dos cinemas eram freqüentadas por menores,
mendigos e vadios é outra reclamação da imprensa regional em Itabuna. O Intransigente
reconhecia, em abril de 1944 que “os malandros têm seus pontos prediletos, onde exercem
suas atividades que vão de encontro aos foros de cidade progressista de nossa terra”.396
Naquela oportunidade, o jornal narrava um fato acontecido com dona Laura Conceição,
respeitada senhora da sociedade itabunense, e os menores que se mantinham na porta do
cinema. Dizia a notícia que ao se preparar para entrar no recinto, a referida senhora foi
atingida no rosto por um “rolete” atirado por um menino. Por conta disso, cobrava-se a
atuação da polícia ou da Guarda naquelas áreas. O periódico dizia que, no Cine-Itabuna,
“todos os dias, as matinês e as soirees, a malandragem entra em ação: gritos, lutas corporais,
batalha de bagaços de roletes, etc., etc..”397
Possivelmente, as áreas em torno do cinema eram freqüentadas por estes sujeitos em
razão do número de pessoas que se juntavam, tanto na entrada como na saída de cada sessão.
Isso aumentava a possibilidade de conseguir algum dinheiro para sua sobrevivência. Mas a
frente dos cinemas poderia trazer um outro elemento que se diferenciasse das condições
econômicas. Situar-se a frente destes lugares era uma forma de disputar um espaço que era
utilizado pelos setores hegemônicos. As práticas de menores, mendigos e vadios são formas
de delimitar sua presença em um lugar imaginado para o lazer das elites locais. A maneira
pela qual a imprensa de Itabuna noticiava freqüentemente a permanência de menores e de
mendigos na frente dos cinemas é uma evidência do grau de tensão contido na relação desses
diferentes setores sociais. Dizia o A Época, em julho de 1943, que a porta do Cinema Odeon,
“local freqüentado pelas senhoras da nossa melhor sociedade e por colegiais, vem servindo
para o ajuntamento dos chamados ‘biribanos’, onde os mesmos são finíssimos malandros de
parceria com menores desocupados.”398 Observar a disputa social desse espaço não é só notar
a permanência desses indivíduos em frente ao estabelecimento, mas também identificar como
suas práticas cotidianas entram em choque com os padrões hegemônicos. Sobre isso, afirmava
o semanário que eles, “além de demonstrarem ali suas habilidades para os jogos de batedeiras
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 15 de dezembro de 1937, Ano XVI, n.º 930. p.1.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 1º de abril de 1944, Ano XVII, n.º 30. p.1.
397
Idem, Ibidem.
398
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 31 de julho de 1943, Ano XXV, n.º 1269, p.4.
395
396
158
e bola de gude, proferem palavras indecentes, num flagrante desrespeito às inúmeras famílias
que por ali transitam.”399
A entrada do cinema se torna um cenário da “guerra de lugares” entre os grupos
antagônicos de Itabuna, visto que ao permanecerem, nos mesmos lugares onde as elites se
divertiam, estes sujeitos destruíam as fronteiras urbanas e sociais criadas pelo poder
público.400 O contato direto entre esses diferentes setores da sociedade gera as tensões e os
conflitos. Espaço semelhante aos cinemas, muito ocupado por menores e mendigos, eram as
igrejas locais. Em 17 de janeiro de 1942, os moradores da Rua da Frente se queixaram em
nota do A Época “do ajuntamento pernicioso de malandros no fundo da Igreja Batista, que
além de palavras indecentes que soltam em voz alta, atiram pedras e incomodam com frases
grosseiras as pessoas que passam por ali.”401
As praças de Itabuna também eram bastante freqüentadas pelos menores entre as
décadas de 1930 e 1940. Com a urbanização da cidade, era nas praças que uma parte das
atividades comerciais e culturais acontecia. Um exemplo disso eram as feiras livres realizadas
na Praça Adami, nos anos 1930, e na Praça João Pessoa (atual José Bastos). Em dezembro de
1943, O Intransigente demonstrava a sua preocupação com o funcionamento da “Feira Chic”
e a existência de menores desocupados naquela área da cidade. Em nota intitulada “Com as
autoridades competentes – É melhor prevenir do que remediar”, o periódico afirmava que
A cidade está cheia de menores desocupados, viciados, desrespeitadores,
amolecados [...] Pois bem, devemos prevenir. Vai ser inaugurado hoje o
parque, à Praça João Pessoa. Como sempre, estarão a porta do mesmo,
centenas de garotos, a fazer molequeiras de toda espécie. Pior do que isso é o
costume de menores jogarem. [...] Já não são poucos os menores degenerados
que temos. 402
Como foi apontado no primeiro capítulo, a “Feira Chic” era um empreendimento
filantrópico realizado por indivíduos da camada média e das elites urbanas locais, que tinha
por objetivo arrecadar fundos para a construção da nova Igreja Matriz. A preocupação com o
comportamento dos menores desocupados que freqüentavam a Praça João Pessoa por parte da
imprensa era evidente. Naquela oportunidade, O Intransigente se reportava ao Juiz de
Menores para prevenir a presença dos “amolecados” durante a realização do evento. Mais
uma vez os menores pareciam disputar o espaço urbano com os setores hegemônicos da
cidade. O registro preconceituoso do jornal sobre a presença desses sujeitos é um sinal de que
Idem, ibidem.
ARANTES, Antonio. Op.cit.
401
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 12 de janeiro de 1942, Ano XX, n.º1189, p.4.
402
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 24 de dezembro de 1943, Ano XVII, n.º 17. p.1.
399
400
159
eles rompiam as fronteiras urbanas e sociais imaginadas pelos poderes públicos e pela
imprensa. Esta não é a única evidência do aparecimento de menores nas praças de Itabuna.
Em 1943 foi possível encontrar outro sinal da presença de menores abandonados e
mendigos nas praças de Itabuna. Trata-se de outra reportagem do A Época, que naquela
oportunidade, estava a reclamar da quantidade de “desocupados” nos logradouros públicos da
cidade, em especial dos jardins. Para o semanário, as praças públicas deveriam ser destinadas
às “famílias, crianças, rapazes e moças, estes dando alegria de viver aos corações sempre
cheio de ilusões.”403 No entanto, a nota afirmava que em Itabuna acontecia exatamente o
contrário, ressaltando que a cidade dispunha de quatro jardins, mas “estes logradouros
públicos, vivem cheios de meninos maltrapilhos e vagabundos desocupados, dizendo
liberdades para quem passa, numa promiscuidade que provoca revolta os espíritos bem
formados.”404 Como parecia ser costume da imprensa, após apontar a freqüência daqueles
sujeitos, reclamava uma postura mais firme por parte da Guarda Municipal, que deveria tomar
a “incumbência de afastar dali estes maus e perturbadores elementos dando um aspecto
melhor a nossa terra.”405
As notícias sobre a presença de menores abandonados, mendigos e vadios nas praças
que haviam sido reformadas pela Prefeitura, eram evidências de que os setores hegemônicos
não aceitavam a existência de sujeitos pobres nos principais logradouros do centro urbano.
Por outro lado, as queixas da imprensa parecem demonstrar que os “moleques” não aceitavam
facilmente as fronteiras sociais criadas pelas reformas urbanas executadas em Itabuna. Na
medida em que o poder público urbanizava seus espaços públicos para consolidar os valores
estéticos e “progressistas” das elites locais, os pobres não se acanhavam em disputar ou
dividir as áreas melhoradas com pessoas de posição social melhor do que a deles. As praças se
tornam um lugar em que menores, mendigos e vadios estão em permanente tensão com parte
dos “espíritos bem formados” de Itabuna. Neste contato social direto no lugar público, os
valores culturais divergentes se chocam, de modo que a imprensa, como organizadora do
discurso de civilização e progresso, considerava pedintes e desempregados indivíduos
promíscuos e desordeiros.
As dificuldades de relacionamento entre a imprensa e os menores mendigos ganharam
várias páginas dos jornais. No dia 12 de dezembro de 1942, outra nota foi publicada sobre a
CEDOC/UESC. Jornal A Época, janeiro de 1943, Ano XXV. (documento deteriorado)
Idem, Ibidem.
405
Idem, Ibidem.
403
404
160
quantidade de pedintes e de maltrapilhos nos logradouros públicos de Itabuna pelo A Época.
Dizia o periódico que
As sextas-feiras a mendicância toma conta da cidade. Investe, aos magotes,
pelos bares, pelas lojas, estaciona aos grupos, nas casas residenciais. É uma
lamentável exposição de doenças e de miséria, de chagas e andrajos, que
constrange e humilha. Juntamente aos inválidos, às viúvas desamparadas,
arrastando o cordão das crianças maltrapilhas, enfezadas e raquíticas,
situam-se os falsos mendigos, os viciados ao álcool, mais importunos do
que os outros, mais insistentes, irritando pela audácia. 406
O fragmento da nota jornalística permite observar outro elemento das práticas urbanas
dos menores abandonados e dos mendigos em Itabuna. Os dias de maior atuação desse grupo
pela cidade – sexta-feira. Esse talvez fosse o dia da semana em que houvesse maior circulação
de pessoas no comércio local, possibilitando captar maior quantia de doações por parte
daqueles que andavam nas ruas do perímetro central. O fato é que os jornais conseguiam
identificar facilmente os grupos de mendigos e menores que atuavam na cidade e os dias em
que eles exerciam suas atividades. Com o poder público não era diferente. As diversas
notícias publicadas sobre a atuação de menores desocupados parecem ter surtido algum efeito
em julho de 1943, quando a Delegacia de Polícia, juntamente com o juizado de menores,
anunciava novas providências para “evitar que perambulem por nossas ruas, menores aos
quais os responsáveis não dão a devida assistência.”407 Em anúncio, as autoridades públicas
destacavam que “a lei comina penas aos que, tendo menores em sua guarda, os deixam sem
assistência material e moral.”408
Depois de localizar alguns dos lugares ocupados por menores no perímetro central de
Itabuna, creio ser pertinente identificar algumas de suas práticas que contrariavam os padrões
instituídos pelos segmentos hegemônicos. Entre as que mais se sobressaem na imprensa, a
prática de jogar bilhar nos bares que existiam na cidade. Apesar das medidas de contenção da
abertura de estabelecimento de jogos por parte da polícia, o costume de jogar sinuca em bares
parecia se preservar. Isso é o que indicavam as matérias veiculadas no município, as quais
davam conta de que havia sido proibida a “entrada de menores nas ditas casas”, mas que “os
menores continuavam “jogando abertamente e os donos de “snooker” lhes vendem a entrada.”
409
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 12 de dezembro de 1942, Ano XXIV, n.ª 1236.
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 17 de julho de 1943, Ano XXIV, n.ª 1267. p.4.
408
Idem, Ibidem.
409
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 7 de fevereiro de 1942, Ano XX, n.º 1141. p.4.
406
407
161
Um dos lugares mais conhecidos pela prática do bilhar em Itabuna era a Rua Joaquim
Nabuco. A concentração de alguns bares existentes naquela área fazia com que os menores
para lá se dirigissem durante o dia e a noite. Mesmo com a fiscalização atuando no controle
daqueles estabelecimentos, há indícios de que os adolescentes conseguiam driblar a ação das
autoridades públicas. Isso era o que denunciavam as notícias como a que foi publicada em 6
de março de 1943, segundo a qual, mesmo com as “medidas proibitivas, os menores
continuam abusando de jogos que não lhes são permitidos por lei [...] Sabe-se que no bilhar
da Rua Joaquim Nabuco, os menores abusam com sua freqüência, jogando dia e noite.”
410
Outras reclamações encontradas sobre a jogatina de menores naquela Rua possuíam eram
deste mesmo teor. Uma das queixas localizadas na imprensa se referia a uma “turma de
malandros, fazendo anarquia e dirigindo gracejo aos transeuntes. Em dias da semana passada,
por pouco não houve até morte, dois desocupados começaram brincando e no fim teve até
faca.”411
Na tentativa de exercer o controle sobre a prática dos menores, a imprensa e as
autoridades públicas procuravam associar as atividades de jogo com vadiagem ou
malandragem. Ao dedicar boa parte do tempo para jogos de sinuca, por exemplo, crianças e
adolescentes se desviavam do comportamento exigido pelos poderes públicos para indivíduos
que se tornariam trabalhadores. Não era por acaso que o jogo era criminalizado pelo código
penal brasileiro. Outrossim, em uma cidade que crescia e se urbanizava sob a pretensão dos
valores hegemônicos de “progresso” e de “civilização”, as crianças que se deslocassem do
campo estabelecido pela ordem vigente eram consideradas um problema para juizes de
menores e policiais. O Intransigente notificava, por exemplo, que a cidade estava cheia de
malandros em suas ruas e nos recantos e que “não raro encontramos eles jogando, a dinheiro,
em plena rua. O jogo chamado “Pio” é o seu favorito. Crianças juntam-se a adultos
desocupados, e perdem dinheiro.”412
Em resposta, o capitão Almerindo Vergne afirmava que o policiamento tem sido feito
com muito rigor e evitando que o jogo de dados conhecido como “Pio” se realizasse nas ruas
de Itabuna, o delegado informava que não podia tomar maiores providências, visto que o
juizado de menores havia transferido o controle das crianças para a Guarda Municipal.
413
É
possível que esse impasse entre quem deveria se responsabilizar pelo controle dos menores
facilitasse a prática de jogos na cidade. Em setembro de 1944, mais uma das travessuras dos
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 6 de março de 1943, Ano XVI, n.º 27. p.1.
CEDOC/UESC. Jornal A Época, 22 de agosto de 1942, Ano XXIV. p.4.
412
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 6 de novembro de 1943, Ano XVI, n.º 10. p.1.
413
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 13 de novembro de 1943, Ano XVII, n.º 11. p.1.
410
411
162
menores acontecia no perímetro central. Depois de brincar nas linhas dos trens próximos à
estação de ferro, uma criança quase era atropelada pela locomotiva que se aproximava do
local. Esse era um fato classificado como corriqueiro pela imprensa. Aproveitando-se do
incidente, O Intransigente considerava que “os vadios causam sustos aos trabalhadores [...]
Existe, na cidade, uma capadoçagem infantil que, de tão baixa, chega à repugnância.”414
Depois de considerar a periculosidade destes sujeitos, a continuação da matéria
apresentava algumas sugestões para evitar as ações de menores no perímetro central. O jornal
avaliava que a quantidade de meninos era grande, de onde provinha “uma capadoçagem em
alto grau, enveredando pela escola dos vícios e dos crimes”. Por conta disso, o semanário
afirmava que os apelos às autoridades policiais e jurídicas eram inúteis, visto que estas não se
encontravam aparelhadas o suficiente “para cortar o mal pela raiz, evitando o desenfrelamento
existente.” Como solução para o problema dos menores em Itabuna, O Intransigente fechava
sua matéria sugerindo que os pais cumprissem com a tarefa de cuidar de suas crianças,
exercendo controle sobre “seus filhos, de guiá-los para outra escola, de encaminhá-los para o
trabalho, de vigiá-los, de proibir-lhes a molecagem”, sublinhando ainda que “Urge uma
disciplina maior, mais rigorosa educação, para se evitar os fatos que se repetem, para se
empregar os desocupados que perambulam pelas ruas.”415
Nas décadas de 1940, as práticas urbanas dos menores traziam sérios transtornos para
o padrão de conduta idealizado pelos segmentos hegemônicos de Itabuna. As denúncias de
“capadoçagem” são evidências de que crianças e adolescentes conseguiam se organizar em
grupos para usufruir da cidade. O que a imprensa chamava de “capadoçagem”, pode ser
considerado a forma de sobreviver no espaço urbano diante dos limites existentes nos planos
sociais e culturais. Gritar, mendigar e jogar são maneiras que estes indivíduos tinham para
chamar a atenção, para conseguir rendimentos financeiros com esmolas e se divertir,
necessidades básicas de qualquer ser humano. No entanto, para os poderes públicos e a
imprensa, o comportamento dos menores abandonados era estranho dentro dos padrões de
civilidade pensados para a sociedade itabunense. Não por acaso, o controle sobre as condutas
daqueles indivíduos era requisitada pela rigidez e subordinação à sociedade por meio da
escola. Em Itabuna, a quantidade de menores nas ruas fez com que a Prefeitura incentivasse a
414
415
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 23 de setembro de 1944, Ano XVII, n.º 3, p.4.
Idem, Ibidem.
163
matrícula na Escola de Aprendizes Marinheiros durante a década de 1940, publicando no
Jornal Oficial os editais de matrícula daquela instituição.416
Walter Fraga aponta que a Escola de Aprendizes Marinheiros possuía uma proposta
educacional vinculada a práticas disciplinares, regeneradoras e de aspecto militar, cujo
objetivo era reprimir a vadiagem infanto-juvenil, especialmente na capital do estado.417
Assim, a escola era vista como uma instituição que deveria preparar os menores para se
tornarem sujeitos submissos à ordem estabelecida e circunscrita aos padrões de
comportamento idealizados para os cidadãos do futuro. Em contrapartida, as instituições de
educação condenavam as formas de rebeldia e de insubordinação oriundas dos jovens da
cidade. Para a historiadora Andréia Rodrigues, a educação era uma saída encontrada para
prevenir que os menores se desviassem do padrão de comportamento estabelecido pelos
segmentos hegemônicos e difundir os valores da ideologia do trabalho contra a prática de
vadiagem nas cidades. 418 Em Itabuna, o envio de criança para a Escola de Aprendizes
Marinheiros já era verificado desde de 1928, quando quatro menores foram encaminhados
para aquela instituição, como aponta Raul Coelho Neto.419 Além disso, os jornais locais
cobravam a construção de novos reformatórios no interior do estado, como fica evidente em
matéria que esperava que “o estado resolva criar um reformatório para menores, única
salvação da sociedade, porque, como vamos, teremos no futuro maior número de criminosos a
dar mais trabalho e maiores despesas, sem falar nos danos e nos riscos a sociedade.”420
Em 30 de setembro de 1944, os menores voltavam a ocupar a primeira página de O
Intransigente. Naquela oportunidade, o semanário noticiava uma queixa do Capitão
Almerindo Vergne contra a “vadiagem de menores na cidade”. O delegado narrava que havia
dado uma batida em alguns lugares do subúrbio e tinha apreendido uma bola de futebol de
couro, que, segundo ele, “praticam diariamente, em qualquer lugar, sem respeitar os
transeuntes, quebrando vidraças e dando outros prejuízos à propriedade alheia”.421 Informava
ainda que havia apreendido canivetes, bolas de gudes e punhais junto com os menores. A
prática de jogar futebol parecia ter entrado para a lista de atividades acossadas pelas
autoridades policiais e pela imprensa. Alguns moradores da Rua Barão do Rio Branco se
APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, terça-feira, 12 de maio de 1942, Ano VIII, n.º 571. p.8. Ao
longo desse mês, várias cópias deste edital foram publicados na imprensa do município.
417
FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do Século XIX. São Paulo: Hucitec, 1996.
pp.119-120.
418
RODRIGUES, Andréia R. Op.cit. p. 94-95.
419
COELHO NETO, Raul Barreto. Adotados pelo mar. Manuscrito, 2007.
420
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 12 de agosto de 1944, Ano XVII, n.º 50. p.1.
421
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 30 de setembro de 1944, Ano XVIII, n.º 4. p.1.
416
164
queixavam à imprensa da “algazarra reinante no bate-bola quotidiano.” 422 Ao apropriar-se da
rua para jogar bola, os menores terminavam criando outra lógica para as vias que cortavam a
cidade. As práticas esportivas no meio das ruas impediam a circulação do trânsito,
subvertendo sua função enquanto artéria de deslocamento de carros e de pessoas. Dessa
maneira, os choques com as normas e as regras instituídas pelo poder público eram quase
instantâneos, visto que o jogo era associado à desordem e à vadiagem na zona urbana.
**********
Em meio à campanha contra os menores abandonados, levada a cabo por parte da
imprensa de Itabuna, o capitão Almerindo Vergne publicava um edital da delegacia de polícia
contendo novas determinações acerca das condutas de jovens na cidade. O documento
informava que a polícia estava incumbida de tomar providências contra os menores em geral,
“não permitindo que os mesmos fiquem perambulando pelas ruas [...] a jogarem pedras ou
coisas semelhantes, proibindo a entrada dos referidos menores em lugares impróprios, isto de
acordo com o entendimento havido com Exm.º Juiz da Vara Crime.”423 Tratava-se de mais
restrição às práticas urbanas dos menores elaborada pelos poderes públicos, tal como foi
observado ao longo deste capítulo.
Durante o período em que a cidade se modificava, realizando reformas urbanas em
ruas, avenidas e praças de Itabuna nas décadas de 1930 e 1940, as municipalidades e a
imprensa promoveram discursos e criaram medidas efetivas em busca de regulamentar as
práticas urbanas dos jovens. As determinações jurídicas instituíam os lugares, que os menores
deveriam viver, suas ações e seus horários, reforçando um padrão de civilidade que pudesse
adequá-los aos moldes de vida ligados aos valores de trabalho e de subordinação à ordem
estabelecida. Quase sempre, essas determinações não levam em consideração as
singularidades próprias desses menores de origem pobre. As leis as tratam como algo
homogêneo e asséptico, considerando os que fogem a essa regra enquanto moleques,
malandros ou vadios. No caso de Itabuna, que passava por sua urbanização, os menores que
desarticulavam a funcionalidade da ordem urbana eram classificados como perigosos pelos
jornais locais e perseguidos pelas autoridades policiais.
No entanto, apesar das diversas tentativas de limitar as práticas urbanas dos menores
por parte dos setores hegemônicos, os menores parecem não ter se submetido passivamente às
condições impostas pelo Código de Posturas e pelos editais. A freqüência com que as notícias
422
423
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 7 de outubro de 1944, Ano XVIII, n.º 5. p.1.
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 14 de agosto de 1943, Ano XVI, n.º50. p.4.
165
sobre a ação das crianças e dos adolescentes apareciam nos jornais evidencia a rebeldia e a
insubordinação infanto-juvenis nos logradouros públicos da cidade.
Em junho de 1943,
meses antes de o delegado criar novas determinações sobre a conduta de menores, o O
Intransigente noticiava a reclamação de Nathan Coutinho contra a presença de menores na
região do Matadouro. Segundo o queixoso, os meninos “de várias idades vem freqüentando
aquele lugar, provocando distúrbios e algazarras, contrariando assim as determinações do
juiz.”424 Práticas como estas eram noticiadas salientando a forma como os menores
desestruturavam a ordem urbana, tornando-se um problema de polícia. Assim, ao tomarem
conta das praças, da frente de cinemas e de igrejas, os menores criavam territórios de
sobrevivência sem levar em consideração as fronteiras sociais impostas pela urbanização
local. Dividiam e disputavam os mesmo espaços com membros dos setores hegemônicos da
cidade.
424
CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 26 de junho de 1943, Ano XVI, n.º 43. p.1.
166
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O movimento em torno da urbanização de Itabuna que se desenvolveu a partir das
décadas de 1930 e 1940, significou para o poder público local o desejo de reformar os
logradouros públicos e as práticas urbanas dos trabalhadores pobres, no uso e no consumo
deste espaço em seu cotidiano. Este era um projeto que apontava para intervenções efetivas
não só na morfologia da cidade (ruas, avenidas, prédios, praças, etc.), mas nos modos de vida
da
população
trabalhadora.
Ao
idealizarem
os
melhoramentos
importantes,
as
municipalidades pretendiam verem realizadas em Itabuna uma política urbana de controle e
de organização racional do espaço citadino. Não apenas isso, as autoridades políticas previam
a padronização de posturas e de costumes de acordo com os valores de urbanidade instituídos
para a cidade que se transformava.
As novas instituições criadas e a atuação mais visível dos departamentos que já
existiam são indícios de que a partir da década de 1930, a preocupação das municipalidades
aumentou com a fiscalização da cidade. Entre as instituições, citei a inauguração da Guarda
Municipal de Itabuna no ano de 1933. Elaborada aos moldes de outras cidades do país, os
soldados da Guarda deveriam ser os responsáveis por cuidar dos costumes e da manutenção
da segurança dos munícipes. O suporte para a ação dos guardas era o Código de Posturas do
Município, revisado e ampliado naquele mesmo ano. Por esse instrumento deveriam ser
auferidos as condutas dos trabalhadores, os usos e os consumos das vias urbanas. Para a
prefeitura, as leis municipais eram um meio de regulamentar a utilização e as formas urbanas.
Em contrapartida, para parte da população trabalhadora e pobre, normas que iam de encontro
aos seus interesses.
Outro segmento dos poderes públicos foi o departamento de Higiene Pública.
Utilizando também o código de posturas, os membros desta secretaria fiscalizavam a
construção de imóveis comerciais e residenciais, os pesos e as medidas utilizadas nas feiras, a
situação de conservação das carnes comercializadas e a incidência de epidemias na cidade. As
ações da Higiene Pública ficaram mais evidentes ao passo que a prefeitura recuperava e
embelezava praças, e quando os feirantes se utilizavam de táticas para burlar as estratégias de
167
controle empreendidas pelos fiscais. Além disso, a posição da imprensa local como
interlocutora dos interesses da prefeitura fazia com que a cobrança por providências contra
ambulantes e feirantes resultassem em ações mais enérgicas das autoridades responsáveis por
esse departamento público.
O aparecimento da Guarda Municipal, do Código de Posturas e da Higiene Pública em
meados da década de 1930 parece se sintonizar com um período em que a política urbana se
tornou um desafio para as autoridades locais. No projeto de cidade da prefeitura, caberia ao
poder público o papel de urbanizar, restituir à ordem e tornar aproveitáveis os espaços
citadinos. Influenciados pelas propostas de planejamento urbano decorrentes dos planos
criados em 1927 e 1935, a municipalidade procurou consolidar a noção de que as cidades
deveriam ser o território da civilidade, em que pese o controle e a punição contra os que se
esbarravam nesses valores. Parte desses aspectos foi possível observar no momento em que os
engenheiros desenharam suas propostas de intervenção urbana em Itabuna. Muitos dos
lugares que deveriam ser reformados eram lugares diretamente ocupados por trabalhadores.
Nos lugares onde havia candomblés, planejaram-se praças; as calçadas onde prostitutas
atuavam, deveriam ser alinhadas e niveladas com a retirada do mulherio; e nas margens dos
rios ocupadas por lavadeiras, foi aconselhada a municipalização da área e a construção de
uma barragem.
Parece evidente que mobilizar a população em torno das reformas urbanas efetuadas
em Itabuna era uma questão política e social. Não se tratava apenas de mudar as formas de
casas, ruas, avenidas e praças, mas de consolidar novos valores pautados em ideais de
“progresso” e de “civilização”. Os responsáveis por difundir essa política eram os veículos de
imprensa da cidade. As páginas dos jornais eram recheados de discursos progressistas e
conservadores, que criticavam os sujeitos pobres e urbanos que contrariavam a lógica urbana
criada pelo poder público e elogiavam as ações da prefeitura em suas medidas de intervenção
na cidade. Foi assim que comportamentos cotidianos caíram no campo da ilegalidade e da
imoralidade à medida que a urbanização se processava. Entre eles, os hábitos de tomar banho
no rio, de jogar bola na praça, de lavar roupas ou utilizar as calçadas e as praças para trabalhar
passaram a ser controlados e reprimidos pelos membros da fiscalização municipal.
Mas pensar que o projeto de cidade criado pelo poder público não encontrou
resistência entre os trabalhadores pobres é negar as contradições inerentes à formação social
de Itabuna. O êxito conseguido com as reformas urbanas efetivadas em partes do perímetro
urbano não foi acompanhado da mudança de hábitos e costumes entre “os de baixo”. A julgar
pelas queixas seqüenciais publicadas na imprensa local contra os vaqueiros, as lavadeiras, os
168
ambulantes, feirantes e jovens adolescentes nos diversos logradouros de Itabuna, percebe-se
que os resultados da política urbana de controle não foram tão satisfatórios. Exemplo disso
está também na criação da Guarda Municipal. Inaugurada para se tornar uma polícia de
costumes, o comandante da corporação tinha que lidar com a indisciplina dentro e fora da
corporação. As punições de soldados por insubordinação ou por condutas inadequadas ao
regimento da corporação são evidências das dificuldades encontradas por aquela instituição.
Por outro lado, registros de desacatos à soldados por feirantes e outros trabalhadores dão
conta da insatisfação dos trabalhadores com os soldados da “civilidade”.
Em outros casos, nota-se que a repressão da prefeitura resultou na organização de
táticas de apropriação da cidade por parte dos trabalhadores. Um sinal disso foi a reação das
prostitutas durante a década de 1940. No momento em que a polícia, a prefeitura e membros
conservadores de Itabuna se uniram em torno da retirada das mulheres das ruas Duque de
Caxias e Ruy Barbosa, parecia que a existência do baixo meretrício no perímetro central
estava com os dias contados. Mas, ao contrário dos louvores de vitória publicados na
imprensa local, foi possível apontar a permanência das prostitutas em outra parte do perímetro
central. A construção de uma nova territorialidade a partir das práticas daquelas mulheres,
conhecido localmente por “Buraco da Gia”, mostrou os esforços de garantir o uso e o
consumo da cidade pelos trabalhadores. Mais do que isso, ali se tornou o lugar diante do qual,
na impossibilidade das autoridades policiais controlarem repressivamente o que a imprensa
chamava de “barulho”, recorria-se a compreensão das mulheres para que fizessem silêncio,
como foi notado no segundo capítulo. Este episódio é um indício de que se o poder tinha a
força de reformar seu espaço de atuação no centro da cidade, as mulheres não ficaram atrás na
tática de apropriação de espaços alternativos na área central da cidade.
As relações conflituosas entre os poderes públicos e os trabalhadores durante a
urbanização de Itabuna entre as décadas de 1930 e 1940 parecem apontar para um novo
caminho de interpretar a sociedade cacaueira. As disputas de territórios, as lutas por garantia
do uso e do consumo da cidade e as frustrações dos segmentos políticos são indícios de que a
força social era ambivalente, isto é, era o resultado de enfrentamentos diretos entre as pessoas
simples, trabalhadoras e pobres com membros das municipalidades. Não se tratava apenas de
obedecer e de aceitar a subordinação imposta pelas autoridades políticas locais, mas também
de reagir diante das posturas políticas e administrativas adotadas por aqueles que ocupavam
os cargos do poder local. Foi nas ações cotidianas e corriqueiras, que os “de baixo”
conseguiram criar táticas de desobediência às estratégias criadas pela prefeitura.
169
Esse estudo indica a possibilidade de ver Itabuna, não mais como o lugar em que as
autoridades locais mandavam e os “outros” obedeciam, mas o lugar em que os trabalhadores
foram até a justiça pública para reclamar o direito à cidade. Mover um mandado de segurança
contra a prefeitura no intuito de assegurar seu espaço de trabalho nos logradouros urbanos é
uma demonstração de que lavadeiras e engraxates não aceitavam plenamente as decisões
tomadas por prefeitos e vereadores. Igualmente fizeram os feirantes, os quais se rebelaram
contra a lei aprovada pelo conselho municipal de padronização de pesos e medidas da feira
pública em 1937. Por conta disso, creio ser possível pensar uma Itabuna (e até mesmo a
região cacaueira) de outra forma, não somente com a cristalização do poder exercido pelos
segmentos hegemônicos, mas também pela maneira de se rebelar e lutar para preservar o uso
e o direito sobre o espaço urbano dos trabalhadores.
Com atitudes como estas, não foram os planejamentos urbanos elaborados pelos
engenheiros de 1927 e 1935 que deram formas a cidade, mas as práticas urbanas dos
trabalhadores que configuraram espaços e costumes específicos de Itabuna. Evidente que as
disputas pelo território e pelas práticas urbanas em Itabuna não se restringiram às décadas
pesquisadas. Por sinal, reprimir e controlar as atividades populares continuariam sendo um
dos objetivos das autoridades municipais nos anos vindouros. São essas contradições sociais
no plano político e cultural que fizeram de Itabuna uma cidade com historicidade.
170
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