Philipe Murillo Santana de Carvalho - Programa de Pós
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Philipe Murillo Santana de Carvalho - Programa de Pós
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS – CAMPUS V PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA REGIONAL E LOCAL UMA CIDADE EM DISPUTA: CONFLITOS E TENSÕES URBANAS EM ITABUNA (1930-1948) FOTO: CEDOC PHILIPE MURILLO SANTANA DE CARVALHO JANEIRO / 2009 2 PHILIPE MURILLO SANTANA DE CARVALHO UMA CIDADE EM DISPUTA: CONFLITOS E TENSÕES URBANAS EM ITABUNA (1930-1948) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Mestrado em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) sob a orientação do Professor Doutor Carlos Zacarias Figuerôa de Sena Júnior BANCA EXAMINADORA: Profª. Dr. (Orientador) Carlos Zacarias Figuerôa de Sena Júnior (UNEB) Profª. Dr.(Titular) Antônio Luigi Negro (UFBA) Prof. Dr. .(Titular) Wellington Castelucci (UNEB) Prof. Dr. (Suplente) Charles D’Almeida Santana (UNEB) JANEIRO / 2009 3 FICHA CATALOGRÁFICA CARVALHO, Philipe Murillo Santana. Uma cidade em disputa: tensões e conflitos urbanos em Itabuna (1930-1948). Philipe Murillo Santana Carvalho; orientador Carlos Zacarias F. Sena Jr. Santo Antonio de Jesus: UNEB, 2009. 178 f. : Dissertação (Mestrado – Programa de Pós-Graduação em História Regional e Local. Área de Concentração: História Regional) – Departamento de Ciências Humanas – Campus V da Universidade do Estado da Bahia. 1. Itabuna – História – Cidade 2. Trabalhadores – Itabuna – Condição Social 3. História Regional – Itabuna. I. Título. 4 FOLHA DE APROVAÇÃO Philipe Murillo Santana de Carvalho Dissertação de Mestrado apresentada ao Departamento de Ciências Humanas – Campus V – da Universidade do Estado da Bahia para obtenção do título de mestre. Área de Concentração: História Regional Aprovado em ___/___/_____ Banca Examinadora Prof.º Dr. Carlos Zacarias F. Sena Jr. – Universidade do Estado da Bahia Prof.º Dr. Antonio Luigi Negro – Universidade Federal da Bahia Prof.º Dr. Wellington Castellucci – Universidade do Estado da Bahia 5 DEDICATÓRIA Para meus avós maternos Manoel Joaquim de Santana e Raimunda Pereira dos Santos (in memoriam), parte dos milhares de trabalhadores e sujeitos históricos anônimos que ajudaram a construir essa cidade. 6 AGRADECIMENTOS Apesar da solidão que envolve a produção da dissertação, este trabalho é também resultado da paciência, respeito e companheirismo de várias pessoas. Os agradecimentos devem servir para que elas não sejam excluídas de nossa formação profissional e humana. Este é o momento em que cada atitude, por pequena que seja, possa ser lembrada como reconhecimento e afeto pelos indivíduos que direta e indiretamente nos ajudaram a conquistar nossos objetivos. Por isso agradeço: À minha mãe, agradeço a paciência e abnegação demonstradas por ela me proporcionou o maior dos legados que uma pessoa pode ter: a educação. Não fosse por isso, dificilmente estaria por aqui. À Adriana Oliveira, companheira, amiga, paixão e referência, devo o amor que certamente me sustentou na empreitada de fazer um mestrado. Sua compreensão com a distância, seus alertas quanto aos caminhos individualistas e egoístas que academia pode levar, e sua prática enquanto mulher lutadora e militante, foram fundamentais para concretizar este estudo. À minha tia Ray Santana, pela sua preocupação em sempre acompanhar os projetos e as demandas do seu sobrinho, ajudando sempre que possível com sua presteza e atenção inigualáveis. Aos professores Felipe Magalhães e Carlos Zacarias F. de Sena Jr. O primeiro pela disponibilidade em acompanhar meu trabalho desde o projeto de pesquisa até os primeiros escritos desta dissertação. O segundo cumpriu a tarefa de se responsabilizar pela minha orientação nos meses finais do curso, sempre de maneira muito atenciosa e preocupada, tratando com serenidade as minhas inquietações teóricas. Aos professores Antonio Luigi Negro e Wellington Castellucci pelas contribuições oferecidas no exame de qualificação. Além deles, agradeço também aos professores Charles D’Almeida Santana, Walter Fraga Filho e Ely Estrela pelas dicas de leituras e incentivos para que concluíssemos a pesquisa durante as disciplinas cursadas com eles. Aos funcionários do Arquivo Público Municipal de Itabuna José Dantas e do Centro de Documentação e Memória Regional, pela amizade e pelos serviços prestados para o desenvolvimento desta pesquisa. Em especial agradeço a Sílvio, João Cordeiro, Stela Dalva e professora Janete Ruiz de Macedo pela atenção dispensada. Agradeço também a Sádia, 7 escrivã da Vara do Júri da Comarca de Itabuna, a Antonio, responsável pelo arquivo do fórum Ruy Barbosa e ao Juiz Marcos Bandeira pelo acesso as fontes do poder judiciário. Aos colegas do mestrado Liliane Cordeiro, Raul Barreto, Carlos Nássaro, Edilma Quadros, Rosana Gomes, Rosineide Costa, Fabiana, Luiz Alberto e Leandro Bulhões, que durante o primeiro ano de aula, dividiram comigo inquietações teóricas, leram meus textos, discutiram caminhos e perspectivas, além de se tornarem amigos dos quais sempre terei boas recordações. Ao grupo de pesquisa Poder, Conflito e Práticas Culturais na Bahia Republicana, cujos membros, Erahsto Felício, Gissele Raline, Kátia Vinhático, Danilo Ornelas, Jeanderson Santos, Soane Cristino, pelo esforço e dedicação na leitura de parte dos manuscritos dessa dissertação, oferecendo importantes contribuições para seu desenvolvimento. Espero que possam ver um pouco das discussões realizadas com eles durante a leitura do texto. À Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia pela concessão da bolsa de mestrado e pelo apoio financeiro para realização desta pesquisa. Ao Programa de Pós-graduação em História Regional e Local da Universidade do Estado da Bahia - Campus V pela oportunidade de realização do curso de mestrado. 8 SUMÁRIO DEDICATÓRIA..................................................................................................................5 AGRADECIMENTOS ......................................................................................................6 RESUMO............................................................................................................................ 9 ABSTRACT.......................................................................................................................10 LISTA DE ABREVIATURA...........................................................................................11 EPÍGRAFE........................................................................................................................12 CONSIDERAÇÕES INICIAIS.......................................................................................13 CAPITULO 1 A CIDADE E SEUS PODERES......................................................................................32 Higiene Pública...................................................................................................................48 Guarda Municipal...............................................................................................................63 CAPÍTULO 2 A CIDADE E O PLANO..................................................................................................74 Planos e territorialização de poder......................................................................................75 Plano e o mercado imobiliário............................................................................................91 O Plano e as pessoas.........................................................................................................104 CAPÍTULO 3 A CIDADE E SUAS (IM)POSTURAS..........................................................................120 Vaqueiros e condutores: Trabalhadores rurais na cidade..................................................123 Lavadeiras e engraxates: trabalhadores de ganho em Itabuna..........................................138 Moleques e Malandros nos logradouros públicos.............................................................151 CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................166 FONTES E REFERÊNCIAS ........................................................................................170 ANEXO............................................................................................................................178 9 UMA CIDADE EM DISPUTA: CONFLITOS E TENSÕES URBANAS EM ITABUNA (1930-1948) Itabuna é uma cidade situada no interior do sul da Bahia, cuja economia se pautou na exportação do cacau durante parte considerável do século XX. Entre 1900 e 1930, o município teve a chegada de diversos migrantes, oriundo do sertão da Bahia, de Sergipe e de Alagoas, atraídos quase sempre pela oportunidade de trabalho ofertada pela lavoura cacaueira. O fluxo de migrantes fez com que a população do município fosse superior a vinte mil habitantes em 1940. Ao passo que a cidade crescia em suas formas e demograficamente, houve também uma maior preocupação dos poderes públicos sobre a importância de se planejar as transformações pelas quais passavam a zona citadina. Este é um estudo sobre a política urbana desenvolvida pelos segmentos hegemônicos e sua relação com os trabalhadores durante as décadas de 1930 e 1940. Entre as décadas de 1930 e 1940, a prefeitura modificou sua política urbana, cuja preocupação se voltou para a constituição de uma cidade planejada para legitimar os valores de “progresso” e de “civilização” estabelecidos pela sociedade política dirigente. Para tanto, houve o patrocínio de diversas medidas de intervenção sobre o espaço e as práticas urbanas de Itabuna. Em 1935, o prefeito patrocinou a produção de um projeto de reformas urbanas criados pelo escritório Saturnino de Brito, com vistas a implantação do sistema de água e esgoto do município. Além disso, o projeto levava em consideração a realização de reformas urbanas em diversos logradouros públicos, com a retificação e alinhamento de ruas e avenidas, embelezamentos de praças e das margens do rio Cachoeira que corta o município. Os projetos de intervenção urbana foram acompanhados de alterações da estrutura do poder público. Em 1933, por exemplo, houve a criação da Guarda Municipal de Itabuna cuja função era fiscalizar as condutas dos munícipes e manter a ordem estabelecida pela prefeitura. Além disso, a diretoria de Higiene Pública passou a ter uma função mais intensiva, com a fiscalização sanitária das residências e dos estabelecimentos comerciais, bem como das feiras locais. Ambas as instituições tinham como referência jurídica o Código de Posturas do Município de Itabuna, revisado e ampliado também em 1933. Apesar dos esforços do poder público por intervir na cidade e fiscalizar as práticas urbanas dos habitantes, nem sempre os trabalhadores de Itabuna se mostraram submissos à ordem estabelecida pelos segmentos hegemônicos. No intuito de garantir costumes e interesses comuns dos pobres, alguns grupos de trabalhadores conseguiram criar táticas para bular o controle da prefeitura e garantir o uso urbano dos “de baixo”, gerando um campo de tensões e conflitos na cidade. O objetivo central deste trabalho é analisar as relações entre os trabalhadores e o poder público durante a urbanização de Itabuna entre as décadas de 1930 e 1940. PALAVRAS-CHAVE: Trabalhadores – Poder Público – Itabuna 10 A CITY IN DISPUTE: URBANS CONFLICTS AND TENSIONS IN ITABUNA (19301948) Itabuna is a city located in the south of Bahia, whose economy to be based in the exportation of the cocoa during 20th century. Between 1900 e 1930, the town has arrival of many migrants, came from of the inland of the Bahia, Sergipe and Alagoas, attracted almost always by the opportunity of works in the cocoa’s farms. The arrival of the migrants caused the growth of the population reached more of 20 thousands peoples in 1940. While the city had grown in your shapes and population, the authorities are worried about the urban planning of Itabuna. This is a research about the urban policy developed by the hegemonic sectors and the relation with the workers during 1930 e 1940. Between the 1930s and 1940s, the city changed its urban policy, whose concern turned to the formation of a city designed to legitimize the values of "progress" and "civilization" policy established by the company manager. For both, there was the sponsorship of various measures of intervention on the area and practice of urban Itabuna. In 1935, the mayor sponsored the production of a project of reforms created by urban office Saturnino de Brito, with a view to deploying the system of water and sewage of the city. Moreover, the project took into account the implementation of reforms in various urban public designations, with the adjustment and alignment of streets and avenues, embellished squares of the river and waterfall that bisects the city. The projects of urban intervention were accompanied by changes in the structure of public power. In 1933, for example, was the creation of the Municipal Guard Itabuna whose function was to monitor the behavior of residents and maintain the order established by the prefecture. In addition, the board of Public Health began to have a more intensive basis, with the sanitary inspection of homes and shops, as well as the local fairs. Both institutions had as a legal reference to the Code of the postures of Itabuna, also revised and expanded in 1933. Despite the efforts of the public by intervening in the city and monitor the practices of urban dwellers, not always the employees of Itabuna were obedient to the order established by hegemonic segments. In order to ensure customs and common interests of the poor, some groups of workers to create tactics for dribble the control of the municipal urban and ensure the popular use of the streets, avenues and squares, generating a field of tensions and conflicts in the city. The objective of this study is to analyze the relationship between workers and the public during the urbanization of Itabuna between the 1930s and 1940s. KEYWORDS: Workers – Public Authorities – Itabuna. 11 LISTA DE ABREVIATURA APEBa – Arquivo Público do Estado da Bahia. APMIJD – Arquivo Público Municipal de Itabuna José Dantas. CEDOC/UESC – Centro de Documenta e Memória Regional / Universidade Estadual de Santa Cruz. IGHB – Instituto Geográfico e Histórico da Bahia. BPEBa – Biblioteca Pública do Estado da Bahia. APPJ – Arquivo Permanente do Poder Judiciário; PSD – Partido Social Democrata. UDN – União Democrática Nacional. 12 “A forma de uma cidade pode mudar mais depressa que o coração dos homens. Renovem as casas, alinhem as ruas, transformem as praças: ‘as pedras e os materiais não lhe oporão resistência. Mas os grupos resistirão, e neles vocês enfrentarão a resistência, senão das pedras, ao menos de suas disposições antigas’.” Bernard Lepetit 13 CONSIDERAÇÕES INICIAIS Na madrugada do dia 30 de outubro de 1948, enquanto parte da cidade dormia, os moradores da Caixa D’Água foram subitamente despertados em meio à gritaria e aos sons de espancamentos. Ao amanhecer, a polícia tomara conhecimento da morte a cacetadas de Laurindo Santos e do ferimento de Modesto Marques Ribeiro à golpe de facão. Na manhã do mesmo dia, Humberto Gesteira, delegado de polícia da comarca de Itabuna, averiguou quem eram os autores e quais as motivações do episódio registrado, tomando o depoimento de algumas testemunhas. A documentação policial informou que os autores dos crimes pertenciam a um conhecido grupo da cidade composto por Francisco Mascarenhas de Oliveira, Astor Alves de Oliveira, José Carvalho da Silva (vulgo Zeca), Waldomiro Carvalho (vulgo Miro) e José Alves da Silva. Nos autos da investigação do caso, Gesteira considerava os membros do grupo como “elementos dados a desordens, acabadores de festas, espancadores de indefesos, desclassificados, cachaceiros, viciados e incorrigíveis.” Para ressaltar a “periculosidade” daqueles sujeitos, o delegado ainda sublinhava, no relatório enviado ao Ministério Público, que se tratava de uma “sub-raça desta cidade progressista e trabalhadora.”1 Logo após proceder à caracterização do grupo acusado dos crimes, Humberto Gesteira se pronunciou também sobre a situação dos bairros de Itabuna. Segundo ele, os bairros pobres eram os lugares onde “elementos de baixo instinto e inclinações criminosas, muito infelizmente ainda estão livres, ameaçando potencialmente a sociedade itabunense.”2 Por conta disso, o delegado encerrou seu relatório solicitando que o Ministério Público instaurasse processo contra os acusados, assumindo sua função de “auto-defesa do corpo social” de Itabuna. APEBa. Caixa 35, Maço 2. Cópia de relatório de inquérito em que figuram como acusados Francisco Mascarenhas de Oliveira e outros. Itabuna, 20 de novembro de 1948. s/p. 2 Idem, Ibidem. 1 14 O cuidado e a inquietação em prender o grupo de suspeitos demonstrados por Humberto Gesteira sinalizam como o controle social sobre o modo de viver dos sujeitos se tornou uma questão essencial para as forças policiais de Itabuna no período estudado. Para garantir a manutenção da ordem vigente, a polícia procurava associar os que fugiam aos padrões instituídos pelo poder público à desordem e à periculosidade. Os bairros, tomados por oposição ao centro organizado e controlado, eram classificados como lugar de instabilidade pelas instituições de segurança da cidade. Essa percepção não se restringia apenas aos membros da polícia. A imprensa atuava concomitantemente com a ação de fiscalização do espaço urbano. Em suas páginas, os jornais denunciavam as práticas que se desviavam das normas estabelecidas pelas municipalidades. Muitas eram as queixas sobre pessoas que se posicionavam em ruas, avenidas, pontes e praças de Itabuna. Nos locais de mendicância, de jogatina e de trabalho informal era cobrada a presença da polícia ou da Guarda Municipal. Em maio de 1936, o jornal O Intransigente reclamava sobre a localização de pessoas na cabeceira da ponte Góes Calmon, que liga o centro da cidade com o bairro Conceição. Alegando a preservação dos “bons costumes e da moralização do ambiente, [...] pervertido por indivíduos que são verdadeiros cancros sociais”3, a seção Queixas e Reclamações solicitava ao prefeito a colocação de dois guardas municipais com o objetivo de coibir “o abuso de certos malandros e pervertidos sexuais [...] que sem trabalho, ficam nas alas da ponte a dizer indecências às mocinhas, às senhoras e às crianças, num descaramento ímpar.”4 Da mesma maneira que se dava com a ponte Góes Calmon, outros lugares eram frequentemente inspecionados pelos veículos de comunicação que circulavam em Itabuna na década de 1930 e 1940. O controle sobre as pessoas não se restringia aos desocupados e “malandros” que ocupavam o espaço urbano de Itabuna. Abrangia diferentes grupos de trabalhadores que utilizavam os logradouros públicos para exercer suas atividades. A fiscalização da Prefeitura, da Higiene Pública e da Guarda Municipal multava e prendia pessoas que não possuíssem autorização para explorar calçadas, feiras livres e margens do rio Cachoeira. Eram os inspetores destas repartições que concediam as licenças para as atividades profissionais urbanas. Quase sempre utilizavam a justificativa de transgressão aos códigos municipais para efetivar suas intervenções na cidade. Desta maneira, os poderes públicos buscavam organizar sua fiscalização com o objetivo de afirmar valores culturais sintonizados com os ideais de 3 4 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 16 de maio de 1936, AnoX, n.º 37. p.1. Idem, Ibidem. 15 “progresso” e de “civilização”, em detrimento do modo de vida dos trabalhadores pobres de Itabuna. As décadas de 1930 e 1940 inauguraram em Itabuna um período em que os valores de “progresso” estavam relacionados ao desenvolvimento material e cultural da cidade. Os planos de urbanização produzidos entre 1927 e 1935 são evidências de que a preocupação com as condições de crescimento e desenvolvimento de Itabuna aumentou por parte da classe política dirigente.5 Esses projetos de intervenção urbana tinham por objetivo a instalação do sistema de distribuição de água e de tratamento do esgoto sanitário. Mas além dessa demanda, o planejamento urbano trouxe consigo a proposta de abertura de avenidas e ruas, de embelezamento de praças e da área marginal do rio Cachoeira que se limitassem com o perímetro central. À medida que as primeiras reformas urbanas eram efetuadas no centro da cidade, ações secundárias eram providenciadas pelo poder público, tais como a isenção de impostos para imóveis novos e embelezados nos padrões da prefeitura, e para a construção de prédios destinados para teatro, cinema, hotéis e mercado municipal. Foram esses elementos que terminaram sendo interpretados como aspectos de “progresso” pelas autoridades políticas e pela imprensa regional. Em fevereiro de 1936, O Intransigente associava alguns dos melhoramentos urbanos à condição progressista da cidade. Dizia que “Itabuna se apresenta como uma cidade moderna, enriquecida de quase todas as obras urbanas necessárias para tão grande número de habitantes”, destacando que o município já era dotado de “ruas calçadas, praça ajardinada, abastecimento d’água, iluminação elétrica, estação de estrada de ferro, grandes armazéns, e sobretudo, aquele asseio que a faz simpática e confortável.”6 Ao ressaltar as mudanças nas formas urbanas de Itabuna, a imprensa local ajudava a organizar o discurso de progresso difundido pelo segmentos políticos e a imprimir os valores de modernidade inseridos na sociedade brasileira a partir da integração ao mercado internacional. Na prática, Itabuna ainda tinha muitos problemas estruturais, como falta de luz freqüente7, escuridões nos bairros e um precário abastecimento de água limitado ao perímetro central8. As modificações urbanas realizadas em Itabuna paralelamente produziam uma noção de civilidade pautada em comportamentos estabelecidos pelos agentes do poder público. A CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, GONÇALVES, Archimedes S. Projeto de Remodelamento e Expansão da cidade de Itabuna. Salvador, 1927, e APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia) – Relatório F. Saturnino R. de Brito Filho, Rio de Janeiro, março de 1935 6 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 22 de fevereiro de 1936, Ano X, n.º 25. p.1. 7 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 21 de março de 1942, AnoXX, n.º 1197. p.1. 8 Os planos criados para a implantação do sistema de água e esgoto já previam que não haveria distribuição de água para as áreas dos bairros. 5 16 urbanização implicou também na tentativa de condicionar as práticas dos diversos setores sociais que compunham a cidade, modificando os costumes a partir dos interesses das classes hegemônicas.9 A criação da Guarda Municipal e do Código de Posturas de Itabuna, em 1933, parece ser sintomática dos anseios de padronizar comportamentos para a população local. Ambos foram idealizados pensando na regulamentação dos costumes dos habitantes por fiscais da municipalidade. Um dos aspectos ligado aos valores de civilidade era a higiene. Por exemplo, O Jornal Oficial do Município de Itabuna alertava que “o asseio de uma cidade, diz do grau de civilização dos seus habitantes.”10 Em junho de 1935 a Prefeitura solicitava que a população colaborasse com a limpeza pública no sentido de “aperfeiçoar as condições sanitárias da cidade, adaptando-a aos nossos foros de povo civilizado”.11 A busca por uma política urbana que estivesse interligada com os valores hegemônicos de “progresso” e de “civilização” obrigou a municipalidade a criar meios para se relacionar com os trabalhadores que faziam parte da cidade. Interessa saber de que forma ocorreu essa relação entre o poder público municipal e os trabalhadores durante o período em que se processavam as mudanças urbanas em Itabuna. Importa também recuperar os fundamentos políticos e culturais que justificaram as intervenções sobre a morfologia da cidade e as práticas dos sujeitos pobres, a pretexto da ordem civilizada e do desenvolvimento do município nas décadas de 1930 e 1940. Além dessa inquietação inicial, as fontes consultadas para a pesquisa colocaram a importância de entender as maneiras como os trabalhadores pobres e urbanos continuaram garantindo seus costumes e usos da cidade nesse período de urbanização. Os anos de 1900 a 1930 marcaram o momento inicial de adensamento da população que chegava ao município com os fluxos migratórios de sertanejos da Bahia, Sergipe e Alagoas12, alguns deles migrantes ex-escravos que saíram da lavoura canavieira para a cacaueira na esperança de melhores condições de vida.13 A incorporação dessas novas populações foi acompanhada do Sobre conceito de Civilização, ver ELIAS, Nobert. O processo civilizador. Uma história dos Costumes. 2º Volume. Rio de Janeiro: Ed. Jorge Zahar, 1994. p.13. O autor analisa as mudanças de costumes operadas no ocidente a partir do fortalecimento dos Estados Nacionais na Europa, enquanto um processo que se consolidou com a gradativa adoção dos comportamentos aristocráticos pela burguesia em ascensão. 10 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 1º de janeiro de 1938, Ano VII, n.º 352, p.4. 11 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 29 de junho de 1935, Ano V, n.º 223, p.1. 12 Ver GARCEZ, Angelina N. R. Mecanismo de formação da propriedade cacaueira no eixo Ilhéus-Itabuna (1890-1930). Dissertação de Mestrado em Ciências Sociais. Salvador: Universidade Federal da Bahia, 1977. Embora não seja um estudo de demografia detalhado, a autora parece ter sido uma das primeiras a se preocupar em traçar um perfil das populações que compuseram a região de Ilhéus-Itabuna no início do século XX. 13 Ver FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da Liberdade. Histórias de escravos e libertos na Bahia (18701910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. O autor traz novas documentações que apontam para a vinda de libertos à região sul da Bahia na virada do século XIX para o XX. Sobre a presença de trabalhadores afrobrasileiros na lavoura cacaueira, ver Mary Ann Mahony. “Afro-Brazialians, land reform, and the question f 9 17 aparecimento de bairros e do aumento de pessoas pobres em decorrência da concentração de terras e de renda pelas elites. Diante da situação social e econômica desenhada acima, o objetivo deste trabalho é analisar a maneira pela qual esse contingente de trabalhadores se relacionou com a política urbana adotada pelas municipalidades de Itabuna entre 1930 e 1948. Para isso, é importante entender os motivos e a forma pela qual se estruturou a administração municipal em Itabuna, refletindo sobre: Quais foram os departamentos criados pela Prefeitura na década de 1930 e 1940? Que tipo de medidas urbanísticas e jurídicas foram geradas para exercer o controle social sobre a cidade? Como sobreviveram e resistiram os grupos de trabalhadores na apropriação dos territórios urbanos? Estas e outras questões discutidas ao longo do texto são os alvos deste estudo. A justificativa para escolha do marco temporal está amparada na constatação de que, a partir de 1930, autoridades políticas municipais adotaram uma nova postura frente às questões urbanas em Itabuna. Como apontei, além da criação de planos de urbanização e do surgimento de departamentos das municipalidades de controle social, esse período registrou também a abertura das vias urbanas que deram um formato inicial ao perímetro central da cidade. Outrossim, a intensificação de medidas de repressão aos grupos de trabalhadores, como lavadeiras, ambulantes, vaqueiros e prostitutas, nos anos de 1940, forneceu subsídios suficientes para problematizar as relações sociais dos sujeitos durante o processo de urbanização local. Não podemos esquecer que os anos de 1930 e 1940 foram momentos de efervescência no cenário político nacional, que de forma específica se refletiram sobre Itabuna. Exemplo disso é a nomeação de Claudionor Alpoim para prefeito em 1932. Como representante da política de Vargas, Alpoim criou uma imagem inovadora e adotou uma postura de “modernizador” no que tange à cidade. É possível notar isso em seu discurso, no qual dizia que seu “fito único é melhorar, ampliar, oferecer um meio para seu desenvolvimento, progresso, tornando-a pioneira da civilização, da higiene, do conforte de todas as demais cidades do Estado.”14 Esse fragmento é um sinal das transformações na política urbana de Itabuna durante o citado período, conforme discutirei nos capítulos seguintes. A seleção da cidade de Itabuna como espaço de observação deste estudo se deveu à fatores ligados desde à proximidade com o ambiente até o interesse nas especificidades de sua social mobility in southern Bahia, 1880-1920. In: Afro-brazilian culture and the politics: Bahia, 1790s to 1990s. Nova York, Sharpe, 1998. p.90. 14 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 24 de agosto de 1935, Ano V, n.º 231. p.2. 18 formação urbana e social. Raminelli aponta que os estudos de história urbana têm sido atraídos por um modelo muito utilizado por trabalhos reconhecidos pela historiografia nacional, deixando de lado as diferenças históricas e sociais referentes a cada espaço.15 No caso deste trabalho, a condição de cidade do interior, ligada à agricultura, distante das capitais e com diferentes personagens já parece sugerir as peculiaridades desta análise. Estudos de cidades de pequeno e médio porte têm originado boas contribuições para a historiografia. Apoiada na monocultura da lavoura cacaueira, Itabuna deixou a condição de distrito do município de Ilhéus, transformando-se em cidade emancipada em 1910. Seus primeiros cinqüenta anos foram compostos de disputas conflituosas entre setores sociais antagônicos nos campos político, econômico e cultural. No entanto, a memória local, quase sempre influenciada por fazendeiros e comerciantes de cacau, cristalizou uma imagem do passado em que coronéis e comerciantes exportadores figuram entre os personagens de uma história linear, harmônica e progressista. Transformados em vultos históricos da sociedade itabunense, eles ficaram conhecidos entre os memorialistas locais como “desbravadores, pioneiros e civilizadores.”16 Em parte, essa visão foi apropriada pela historiografia regional. No intuito de criticar a ação dos coronéis, os historiadores terminaram referendando a mitificação desses sujeitos, como é o caso da interpretação marxista de Gustavo Falcón em Os Coronéis do Cacau.17 Ao falar do Coronelismo e da dominação política na Região Cacaueira, Falcón considera que “o mandonismo permeava as mais diversas instâncias da vida municipal, mostrando-se presente em quase todas as manifestações sociais. Não seria exagero afirmar que os coronéis possuíam poder de vida e de morte sobre a sociedade”18. Nesta perspectiva, o historiador reforçava o discurso de poder ilimitado das classes dominantes e desconsiderava qualquer possibilidade de reação e de rebeldia dos grupos populares frente a força dos coronéis. Neste estudo, será discutido como os trabalhadores, diante de suas demandas, romperam as fronteiras de submissão e pressionaram as autoridades públicas de Itabuna. Foram poucos os pesquisadores que se dedicaram sistematicamente a entender o modo pelo qual as pessoas pobres e trabalhadoras, cruzando os limites da pobreza e da estrutura política, conseguiram enfrentar e, em muitos casos, preservar seu direito sobre a cidade de RAMINELLI, R. História Urbana. In: Domínios da História: ensaios de teoria e metodologia da história. CARDOSO, C. F., VAINFAS, R. (orgs.). Rio de Janeiro: Campus, 1997. p.185-202. 16 ADONIAS FILHO. Sul da Bahia: chão de cacau: uma civilização regional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. Procurando traçar um perfil do fazendeiro de cacau, Adonias Filho ratifica a figura do coronel como desbravador, pioneiro e agente da civilização grapiúna. 17 FALCON, Gustavo. Os Coronéis do Cacau. Salvador: Ianamá, 1995. 18 Idem, Ibidem. p. 92. 15 19 Itabuna.19 Os estudos sobre as cidades da região cacaueira são direcionados majoritariamente para Ilhéus, colocando em foco diversos aspectos relacionados à formação das classes hegemônicas e da força política imprimida pelos coronéis do cacau na primeira parte do século XX. Este é o caso dos historiadores André Ribeiro20 e Antonio Fernando Guerreiro de Freitas21, ambos dedicados a analisar a formação da “burguesia cacaueira” em Ilhéus. Ocupados em entender o esplendor da riqueza dos fazendeiros de cacau, estes historiadores não aprofundaram suas análises nas relações sociais tecidas entre as elites e os trabalhadores. Investigar a cidade de Itabuna permite ampliar o conhecimento sobre as práticas urbanas dos trabalhadores em um espaço ainda carente de estudos históricos desse tipo. O estudo sobre Itabuna possibilita também discutir a categoria História Regional e Local dentro da tradição historiográfica. Em República em migalhas, a historiadora Janaína Amado propôs um conceito de região que pudesse ressaltar e apreender as diferenças e contradições, fruto das relações sociais entre os sujeitos históricos em um determinado espaço. Para ela, a organização espacial seria resultado das relações de trabalho e da maneira como se relacionavam entre si e com a natureza, em um lugar definido. Assim, a categoria espacial “região” possibilitaria ao historiador alcançar as diferenças e as singularidades dentro de uma totalidade. Nessa perspectiva, a região apareceria como resultado específico das ações que se dão no plano nacional ou total. 22 Pensando de forma semelhante, Marisa Lajolo considera que as pesquisas em níveis regionais e locais não devem perder de vista a totalidade histórica, podendo oferecer uma percepção multifacetada do nacional. 23 Para este estudo sobre Itabuna, as concepções de História Regional tecidas pelas autoras acima não são suficientes para compreender aquela localidade. Atrelar o entendimento do espaço regional somente à busca da comparação (singularidade ou não) com a totalidade termina por limitar a capacidade de entender a diversidade dos fatos históricos em lugares Ressalvas sejam feitas a LOPES, Rosana dos Santos. Morar, trabalhar, brincar e viver!: Experiência de moradores do bairro Conceição, Itabuna, Bahia, 1950-1997. São Paulo, dissertação de mestrado PUC-SP/UCSal, 1999, e SOUZA, Erahsto F. O conceição em retalhos de cidade, margens e dono: uma Itabuna-Ba nos territórios subalternos. Monografia de graduação (história) orientada pela professora Msc. Kátia Vinhático Pontes.Ilhéus: UESC, 2007. RALINE, Gissele. Capoeira e valientes. Monografia de graduação (história) orientada pela professora Msc. Kátia Vinhático Pontes.Ilhéus: UESC, 2007. 20 RIBEIRO, André Luiz R. Memória e identidade: Reformas urbanas e arquitetura cemiterial na Região Cacaueira (1880-1950). Ilhéus, Ba: Editus, 2005. 21 FREITAS, Antonio Fernando G. de. Caminhos ao encontro do mundo: A capitania, os frutos de ouro e a Princesa do Sul. Antonio Fernando Guerreiro de Freitas e Maria Hilda Baqueiro Paraíso. Ilhéus: Editus, 2001. 22 AMADO, Janaína. História e região: reconhecendo e construindo espaços. In: República em migalhas: História Regional e Local. São Paulo: Marco Zero/ANPUH; Brasília: CNPq, 1990. p.7-10. 23 LAJOLO, Marisa. Regionalismo e história da literatura: quem é o vilão da história? In: Historiografia brasileira em perspectiva. Marcos Cezar de Freitas (org.). São Paulo: Contexto, 1998. 19 20 específicos. Isto quer dizer que a operacionalidade do fato histórico se restringiria a identificar o que aconteceu de diferente no plano local em relação ao plano total. O historiador Durval Muniz de Albuqueque Júnior oferece uma definição satisfatória do que seria Região. Segundo ele, Região poderia ser pensada enquanto “a emergência de diferenças internas à nação, no tocante ao exercício do poder, como recorte espaciais que surgem dos enfrentamentos que se dão entre os diferentes grupos sociais, no interior da nação.”24 Para Albuquerque Jr., pensar a categoria Região é obrigatoriamente refletir sobre o fruto de uma estratégia de homogeneização decorrente da relação de poder que cria discursos e construções mentais que possam delimitar fronteira e aspectos de um determinado espaço. Isso é o que ele afirma ao considerar que o “Nordeste é uma espacialidade fundada historicamente, originada de uma tradição de pensamentos, uma imagística e textos que lhe deram realidade e presença.”25 Por conta disso, o historiador refuta o campo de pesquisas voltados para a História Regional por considerar que isso reforçaria os estereótipos e o poder que inferiorizam os espaços regionais. Apesar disso, sem dúvida Albuquerque Jr. oferece boas reflexões para se pensar a história da região cacaueira. Ao considerar este trabalho dentro do campo da História Regional, caracterizo o objeto espacial como o meio no qual os grupos sociais tecem suas relações e constroem diferentes territorialidades a partir de suas práticas culturais locais. Não se trata de reforçar o estereótipo da região cacaueira como espaço dominado pelos coronéis e onde os trabalhadores pobres não tinham força para negociar e resistir sua sobrevivência. Itabuna não é simplesmente uma delimitação espacial administrativa e política fechada e estanque, mas um espaço de historicidade, preocupado com a “dimensão social, ganhando significação quando inserido num sistema de relações da sociedade que articula elementos internos e externos, no jogo dialético de identidades e oposições”, como sugere Erivaldo Fagundes Neves. 26 Ao buscar compreender a relação de forças entre os poderes públicos e os trabalhadores no processo de urbanização de Itabuna nas décadas de 1930 e 1940, me aproximo das reflexões realizadas por Michel de Certeau. Em uma cidade reconhecida pelas forças autoritárias e opressoras dos coronéis, as premissas do ex-jesuíta francês ajudam a pensar nas táticas elaboradas pelos “de baixo” para driblar as estratégias de controle construídas pelos órgãos de coerção social do município. ALBURQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999. p.25-26. Idem, Ibidem. p.66. 26 NEVES, Erivaldo Fagundes. História regional e local: fragmentação e recomposição da história na crise da modernidade. Feira de Santana, Ba; Salvador, Arcádia, 2002. p. 9, 105. 24 25 21 Segundo Certeau, na proporção em que os agentes dos poderes instituídos elaboram a racionalização centralizada do espaço urbano, os trabalhadores pobres utilizam suas astúcias para consumir a cidade. Essa sagacidade está presente nos detalhes do cotidiano desses sujeitos, que, atuando na fronteira da clandestinidade da ordem estabelecida, conseguem tomar conta de espaços em Itabuna para garantir seu trabalho e sua moradia, enfim fazer usos e consumos da cidade. As pequenas ações de insistência se tornam meios para que os agentes consigam preservar sua diferença e seus interesses mesmo com a adversidade do espaço racionalizado.27 No entanto, diferentemente dos que poderiam pensar que os atos de resistência estão somente nas grandes mobilizações, Certeau considera que as astúcias que levam os trabalhadores pobres urbanos a criar táticas de despistar as medidas dos poderes instituídos estão presentes nas práticas cotidianas e habituais. Ele ressalta que “habitar, circular, falar, ler, ir às compras ou cozinhar, todas essas atividades parecem corresponder às características das astúcias e das surpresas táticas: gestos hábeis do ‘fraco’ na ordem estabelecida pelo ‘forte’, artes de dar golpe no campo do outro”28 Seguindo estas orientações, busquei identificar nas fontes ações pequenas que me permitissem analisar a lógica operacional dos grupos de trabalhadores que faziam parte da cidade em transformação. Esses pequenos passos podem ser percebidos na medida em que encontramos a historicidade dos atos simples e corriqueiros na vida das pessoas. Para notar os embates travados entre os “fortes” e os “fracos” no cotidiano das pessoas, torna-se importante inverter as escalas de observação sobre o espaço urbano. Para isso, Certeau utilizou a metáfora da visão que se tinha sobre World Trade Center. Segundo o autor, a visão proporcionada do 110º andar daquele prédio parecia dar a impressão de que a cidade era homogênea, controlada e ordeira. Os veículos, as pessoas e os prédios davam a sensação de que tudo estava em seu lugar. Era preciso descer à terra para perceber novamente como as pessoas conseguiam formular táticas de sobrevivência no mundo citadino.29 Isso quer dizer, então, que para alcançar as artimanhas utilizadas pelos trabalhadores nas relações de força com os poderes públicos, é importante observar as práticas minúsculas e cotidianas desses sujeitos. Em Itabuna, trata-se de perceber a forma como ambulantes, lavadeiras, feirantes, guardas municipais e prostitutas constituíram seus territórios e preservaram seus CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de Fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.94. Idem, Ibidem, p.103-104. 29 Idem, Ibidem, p.169-172. 27 28 22 hábitos em uma cidade que enfrentava uma política urbana de intervenção sobre as formas e os costumes das pessoas. Sobre isso, Certeau diz que Temos de constatar que se, no discurso, a cidade serve de baliza ou marco totalizador e quase mítico para as estratégias sócio-econômicas e políticas, a vida urbana deixa sempre mais remontar àquilo que o projeto urbanístico dela exclui. A linguagem do poder “se urbaniza”, mas a cidade se vê entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder panóptico. [...] Sob os discursos que a ideologizam, proliferam as astúcias e as combinações de poderes sem identidade legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional – impossível de gerir.30 Os meios pelos quais os trabalhadores conseguem escapar diante das regras difundidas pelos segmentos hegemônicos aparecem quase sempre sob a pecha de desordem, vulgarização ou degradação nos documentos encontrados nos arquivos. Em Itabuna, os sujeitos pobres que fugiam às normas estabelecidas pelos poderes instituídos surgiam nos documentos oficiais do governo municipal e na imprensa local sob a forma de violência, transgressão e depreciação dos “bons costumes”. Para Certeau, o que os documentos produzidos pelas elites chamam de “barulho” e “baderna”, por exemplo, nada mais é do que a expressão das táticas dos “fracos” em reação à ordem estabilizada. Nesse sentido, pareceu adequado utilizar o método descrito como “escovar a história a contrapelo”31 por Walter Benjamin. Ao buscar as ações dos trabalhadores frente às medidas do poder público na documentação, procurei observar em que medida se tratava de táticas de uso e consumo do espaço urbano. Quando Certeau ressalta que os modos de vida dos trabalhadores no cotidiano podem se traduzir em astúcias contra os efeitos da ordem estabelecida pelos membros dos poderes públicos, inevitavelmente encontramos apoio nas contribuições de E. P. Thompson com base na categoria de experiência social. Ressaltar o cotidiano das pessoas a partir da experiência de antagonismo proveniente do controle social e da política urbana é também perceber de que forma os “de baixo” se organizaram em grupos e como reforçaram suas práticas urbanas culturais para afirmar seu direito à cidade. Assim, penso a experiência dos trabalhadores em Itabuna enquanto conjunto de práticas que vão se formando a partir dos modos de vida de cada sujeito na cidade em transformação. Isto quer dizer que a maneira pela qual os sujeitos vivenciaram as mudanças ocorridas em Itabuna ajuda a compreender a cidade enquanto CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de Fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p. 174. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de História. In: Magia, técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história da cultura. São Paulo: Brasiliense, 1987. 30 31 23 campo de experiência das contradições sociais em que figuram homens e mulheres como sujeitos de sua própria história.32 Thompson, refletindo sobre experiência social, afirma que toda contradição social é em si conflito de valores.33 Os novos valores urbanos de civilidade patrocinados pelos poderes públicos e difundidos pela imprensa local iam de encontro com os valores e os costumes dos trabalhadores em Itabuna. A diferença de interesses entre estes setores antagônicos aponta para um clima de tensão e de conflito na experiência urbana dos sujeitos. Perceber as astutas habilidades de negar essa ordem dentro do campo de disputa social é o elo que parece unir as contribuições de Thompson e Certeau para as bases teóricas e metodológicas dessa pesquisa. Outra contribuição teórica que foi tomada como referencial teórico dessa pesquisa partiu do historiador e geógrafo francês Bernard Lepetit. Sob a influência da definição de Marcel Roncayolo, Lepetit trata a cidade como “categoria de prática social”34. A partir disso, o espaço urbano é interpretado pela sua historicidade dinâmica. A cidade se torna o lugar em que os sujeitos se apropriam mediante o uso social, e onde as políticas de urbanização, o comportamento dos citadinos e o tecido urbano não são sincrônicos e justapostos. Para o autor francês, o urbanismo desenvolve uma linguagem sobre a cidade cuja intenção se concentra na mudança das formas urbanas sob o discurso da racionalidade e da organização. Ao mesmo tempo, os usos concernentes às modalidade de apropriação do espaço urbano pelos grupos sociais se transformam em linguagens da cidade.35 No contraste entre essas duas linguagens, os hábitos sociais e os usos que fazem as pessoas parecem durar mais do que as formas alteradas, sendo nas práticas o meio pelo qual os sujeitos concentram sua resistência. Outra observação importante feita por Lepetit foi a de que os objetos, as instituições e as regras formuladas pelos poderes instituídos sob a justificativa de racionalização citadina não são transportadas e assimiladas por completo pelos trabalhadores urbanos. Ocorre que a recepção das normas e das instituições pelos sujeitos se dá de diferentes formas, o que quer dizer que nem todas as determinações legais resultam no imediato enquadramento dos “de baixo”. Ao utilizar o espaço instituído pelo urbanismo, os indivíduos organizam sua territorialidade, modelando seus lugares de sobrevivência conforme suas demandas e a partir THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Trad. Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1981. p.182. 33 Idem, Ibidem, p.189-190. 34 RONCAYOLO, Marcel. Cidade. In: Enciclopédia Einaudi. Vol. 8. Região. Lisboa, Portugal: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1986. p.422. 35 LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana A. Salgueiro; trad. Cely Arena. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 2001. pp. 148-151. 32 24 de suas práticas urbanas.36 Afirmando seu território de atuação na cidade em transformação, os trabalhadores conseguem também reforçar seus costumes e comportamentos frente aos padrões estabelecidos pelo poder público. Em Itabuna, alguns grupos de trabalhadores conseguiam afirmar sua territorialidade por meio de suas práticas urbanas cotidianas, como é o caso, por exemplo, moleques e mendigos que disputavam as praças embelezadas e as portas dos estabelecimentos freqüentados pelas senhoras ricas da sociedade itabunense. Entender as relações entre os trabalhadores e o poder público durante a urbanização de Itabuna nas décadas 1930-40 permite o debate sobre a história de baixo para cima. O historiador Eric Hobsbawm traz uma contribuição importante para se compreender esta relação entre setores antagônicos. Ele afirma que, conforme os historiadores buscam as ações dos sujeitos pobres e despossuídos, é preciso envolver o resto da sociedade da qual eles fazem parte.37 Feirantes não devem ser pensados sem os fiscais da higiene pública, engraxates e prostitutas sem os agentes da Guarda Municipal. Por conta disso, creio ser importante definir quem são os sujeitos históricos que aparecem neste trabalho. Quando me refiro, ao longo do texto, a “Poder Público” ou a “segmentos hegemônicos”, estou pensando principalmente nas pessoas que integram o conjunto de instituições que formavam as municipalidades. Refiro-me assim, a partir do que Gramsci descreveu como “Sociedade Política”, membros dos grupos dominantes que expressam sua hegemonia política e moral na direção do governo jurídico.38 São desde o prefeito até os dirigentes da Higiene Pública e da Guarda Municipal que atuavam nos logradouros públicos da cidade. No meio deste grupo, considero também os diretores e os redatores da imprensa local, já que estes quase sempre ocupavam cargos públicos na Prefeitura. Eles certamente cumpriam a função de intelectuais ligados aos dirigentes políticos, sendo responsáveis por criar discursos de consenso no seio da sociedade civil, cujo fim é a sustentação da ordem estabelecida. 39 Da mesma forma, não se pode desprezar a influência de uma outra parte da sociedade civil composta por empresários, comerciantes e latifundiários, que também Idem, Ibidem, p.189-190. HOBSBAWM, E. J. Sobre História. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. p.99. 38 GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da Cultura. Trad. Carlos Nelson Coutinho. 4ª Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982. O marxista sardo, ao considerar a organicidade da sociedade, afirma que a “ “Sociedade Política” ou “Estado” corresponde à função de hegemonia que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de domínio direto, ou de comando que se expressa no Estado e no governo jurídico.” p.10-11 39 Idem, Ibidem. (ver cap. Jornalismo) Para Gramsci, os grupos de intelectuais são fundamentais na sustentação e no desenvolvimento dos interesses políticos e dos valores morais de setores dominantes que almejam alcançar a hegemonia. Sobre a imprensa, o filósofo da práxis afirma que os jornalistas crêem ser os “verdadeiros intelectuais”, atuando como persuasor permanente dos subalternos. p.8. 36 37 25 compunham os segmentos hegemônicos, e que pressionavam nas decisões tomadas pelos poderes públicos. No caso daquilo que chamo de “trabalhadores”, estou me referindo ao grupo de homens e mulheres pobres que disputaram o uso da cidade com os membros do poder público. Optei por não selecionar apenas um grupo específico, mas diferentes grupos como feirantes, prostitutas, ambulantes e vaqueiros. Aqui vale as considerações feitas por Antonio Negro e Flávio Gomes quanto ao caráter classista destes agrupamentos. Para estes autores, a história social não deve se pautar no conceito fechado de “classe trabalhadora exclusivamente branca, fabril, de ascendência européia, masculina e urbana”.40 Se assim o fosse, dificilmente seria possível realizar uma história social, especialmente em Itabuna. Por conta disso, é importante lançar o olhar sobre outros trabalhadores, “‘os despolitizados’, os ‘comuns’, ou os demais; aqueles que não lutaram toda uma vida, ou sequer lutaram.”41 Penso nos grupos de pessoas que se utilizaram das ruas, das avenidas e das praças como lugar de trabalho e lazer, e que se reconheceram enquanto classe mediante os interesses em comuns na disputa com as municipalidades.42 Aparecem também menores vadios e pedintes que exerciam sua atividade em Itabuna. Embora não fossem “trabalhadores tradicionais”, estavam dentro do universo citadino investigado nesta pesquisa, aparecendo nas fontes como grupos que desafiavam a ordem urbana. Os sujeitos que aparecem neste trabalho são provenientes de diversas fontes coletadas ao longo do período da pesquisa. Entre os documentos oficiais do Governo Municipal, foram consultados os livros de atas do conselho consultivo de Itabuna e do Conselho Municipal, o primeiro funcionando entre os anos de 1932-1935 e o segundo funcionando entre os anos de 1936-1937. Eles me possibilitaram analisar o comportamento dos membros do legislativo local em relação às questões sociais e políticas ligadas à cidade. Com efeito, pôde-se também observar os valores urbanos projetados para Itabuna ao passo em que se aprovavam medidas de melhoramentos urbanos. Por exemplo, esta documentação permitiu acompanhar as discussões dos conselheiros sobre o plano de urbanização criado em 1935. Das fontes oriundas do poder executivo do município foram consultados o livro de Décimas Urbanas de Itabuna (1933-1940), o Projeto de Remodelamento e Expansão da NEGRO, Antonio, GOMES, Flávio. Além das senzalas e fábricas: uma história social do trabalho. In: Tempo social, Revista de Sociologia da USP. V.18, n.1. p.217. 41 Idem, ibidem. p.222. 42 THOMPSON, E.P. A formação da classe trabalhadora. Trad. Denise Bottmann. Vol. 1. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. Para o autor, “a classe acontece quando alguns homens, como resultado de experiências comuns (herdadas ou partilhadas), sentem e articulam a identidade de seus interesses entre si, e contra outros homens cujos interesses diferem (e geralmente se opõem) dos seus”. p.10 40 26 Cidade de Itabuna (1927), o Projeto de Saneamento de Itabuna (1935), o contrato dos serviços de água e esgoto da cidade, o Código de Posturas do Município e o Jornal Oficial, mantidos pelo Arquivo Público de Itabuna José Dantas. As Décimas Urbanas são os registro de pagamento dos Impostos Prediais e Territoriais cobrados pela Prefeitura. Elas possibilitaram identificar as diversas pessoas que possuíam propriedades nas diversas vias de Itabuna, além da classificação do tipo de funcionamento das casas comerciais existentes. Os projetos de urbanização me permitiram analisar as justificativas para a realização das reformas urbanas, os objetivos específicos do planejamento e os logradouros que sofreriam a intervenção dos engenheiros. Outrossim, as fontes dos escritórios de engenharia possibilitaram analisar as diferentes visões dos urbanistas sobre os diversos lugares da cidade a partir do discurso racionalista e técnico dos profissionais responsáveis pelas intervenções citadinas. O contrato dos serviços de água e esgoto deixa evidentes os problemas e os limites dos melhoramentos urbanos imaginados pelo poder público, visto que lá se encontram as obras que foram projetadas e as que foram executadas, além de apontar as despesas do município. O Jornal Oficial do Município de Itabuna foi significativo para traçar a trajetória, as ações e os resultados da política urbana local. Criado no ano de 1931 e impresso semanalmente pela tipografia D’A Época, o periódico oficial era responsável por veicular as medidas tomadas pelo poder público e por seus departamentos. Freqüentemente traziam discursos e propagandas da Prefeitura no sentido de convencer os munícipes das decisões tomadas por ela. Além disso, o Jornal Oficial tinha também as seções de despachos das secretarias de Obras Públicas, de Higiene Pública e da Guarda Municipal, nas quais constam os requerimentos da população, respondidos e o relatório de movimentação dos soldados da força municipal. Publicavam-se também as medidas de fiscalização do município, visando alertar os moradores das disposições criadas pela Prefeitura. Alguns números ainda disponibilizavam as atas do Conselho Municipal transcritas, tabela do orçamento da Prefeitura para os anos subseqüentes e relatórios de despesas e investimentos enviados ao legislativo. O Jornal Oficial possibilitou, também, analisar a relação dos trabalhadores com as municipalidades por meio dos despachos emitidos pela Prefeitura aos requerimentos da população. Exemplo disso é a higiene pública, que publicava diversos editais com nomes de pessoas que deveriam comparecer à Prefeitura para regularizar sua situação profissional e punições àqueles que não obedecessem às determinações. Outro exemplo eram os relatórios de movimentação da Guarda Municipal, que continham a data, as pessoas e as infrações cometidas contra o Código de Posturas do Município. A publicação das posturas municipais 27 sob a forma de brochura, no ano de 1933, possibilitou a identificação dos artigos que regulamentavam os padrões de comportamento e as regras de civilidade criadas para Itabuna. Permitiram relacionar, entre outras questões, os artigos mais desrespeitados; as punições para as pessoas que transgrediam os códigos de urbanidade; e as maneiras como as posturas atentaram contra alguns costumes populares existentes em Itabuna. Entre as fontes que também se encontram neste estudo estão os jornais de caráter político e comercial da região. Ao todo foram cinco: Jornal de Itabuna, O Fanal, Diário da Tarde, A Época e O Intransigente, a maior parte conservado pelo Centro de Documentação e Memória Regional da Universidade Estadual de Santa Cruz. Destes, os três primeiros foram utilizados em pequena quantidade. O Jornal de Itabuna pertencia ao advogado e delegado Lafayete Borborema e circulou no município entre as décadas de 1920 e 1930. Durante o período em que o município não possuía um órgão de imprensa oficial, este jornal publicava os atos, os editais e as portarias da administração pública, além de publicar a movimentação forense da comarca de Itabuna. De caráter conservador e, às vezes, sensacionalista, este periódico publicava diversas notícias contra a jogatina e a prostituição, assim como narrava crimes acontecidos nos bairros e nos distritos de Itabuna. Circulava em Itabuna e seus distritos e no município de Ilhéus. O periódico O Fanal circulou em Itabuna entre os anos 1933 e 1939, tendo como redatores Otoni José da Silva e José Kfoury sob a direção de Hermenegildo Souza, e sendo impresso mensalmente. Os responsáveis pelo mensário classificavam o jornal como órgão literário da mocidade estudantil local. Suas páginas abrigavam poesias, crônicas, trecho de romances e reportagens sobre os lugares de diversão dos itabunenses. Possuía também um caráter ufanista sobre o “progresso” da cidade, guardando tiradas patrióticas, a exemplo dessas: “O Cidadão tem como norma o civismo e como bandeira o caráter impoluto”, ou “Trabalhar pela prosperidade de Itabuna é trabalhar pela grandeza da Pátria”43 Algumas de suas notícias se referiam à pobreza existente na cidade, enfatizando o número de mendigos, o comportamento das prostitutas e as críticas ácidas a curandeiros e praticantes de religiões afro-brasileiras. O Diário da Tarde era o jornal de maior circulação na região cacaueira, pelo menos no período pesquisado, entre 1930 e 1940. Embora não trouxesse a tiragem por número, as notícias sobre os distritos de Ilhéus e as notícias sobre as cidades vizinhas podem sugerir a 43 CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de dezembro de 1939, Ano VI, nº 8. p.4. 28 amplitude de sua circulação. Ligado ao grupo político dos pessoístas44 e sob a direção de Carlos Monteiro, o periódico também possuía um caráter conservador e patriótico. Costumava publicar notícias contra prostitutas e candomblés existentes no bairro da Conquista, em Ilhéus, e ressaltar os líderes políticos das cidades vizinhas. Além disso, publicava constantes artigos em que ecoavam os pedidos dos fazendeiros e comerciantes de cacau daquela cidade. Algumas de suas reportagens tratavam de aspectos políticos e sociais de Itabuna. A maior parte da documentação hemerográfica utilizada neste trabalho faz parte da série dos jornais A Época e O Intransigente. Criado no ano de 1921 pelo político Gileno Amado, um dos coronéis de maior representatividade da região, o jornal A Época era o veículo de comunicação ligado ao Partido Social Democrático que circulava semanalmente em Itabuna e nos distritos que faziam parte do município. Sendo boa parte dos prefeitos integrantes da facção política liderada por Amado, aquele jornal acabava se tornando uma das ferramentas de propaganda das ações do poder público municipal. Além disso, parte das pessoas que ocupavam os cargos administrativos dos departamentos pertencentes à Prefeitura trabalhava em o A Época, como por exemplo, o redator chefe Nathan Coutinho que foi o primeiro secretário do município de Itabuna durante a gestão de Francisco Ferreira entre os anos de 1938 e 1945. Outro membro das municipalidades que se agregava ao citado jornal era Antonio Cordeiro de Miranda, diretor da Higiene Pública da cidade. Coutinho e Miranda integravam o alto escalão do PSD em Itabuna, mesmo partido do prefeito Claudionor Alpoim. Sua diagramação era muito precária, sendo produzido ainda de forma quase artesanal. O perfil de suas notícias e reportagens era conservador e tradicional, sobretudo quando se relacionava à questão social dos trabalhadores. No cabeçalho de cada edição trazia sua identificação com as elites ligadas ao grupo de Gileno Amado ao se posicionar como “órgão dos interesses regionais”. Eram comuns matérias elogiando o prefeito Alpoim e suas medidas de urbanização, o governador da Bahia Juracy Magalhães e seu secretário da Fazenda, Gileno Amado. Numa proporção contrária as apologias aos políticos locais, o A Época destinava críticas pesadas às prostitutas, aos mendigos, jogadores e feirantes, além de frequentemente chamar a atenção da Guarda Municipal e da polícia. Considero que este periódico, ao ser composto por membros do PSD e da situação política local, era o órgão de imprensa que organizava o discurso de defesa dos interesses do poder público no que tange à urbanização e um dos responsáveis pela fiscalização dos usos da cidade. 44 Facção política liderada por Antonio Pessoa, composta de políticos ligados a J. J. Seabra e que dominou a cena política ilheense entre 1912 e 1930, fazendo rivalidade com a facção dos adamistas. As disputas pela hegemonia política em Ilhéus é objeto de estudo de RIBEIRO, André Luiz R. Família, poder e mito: O município de São Jorge dos Ilhéus. Ilhéus: Editus, 2001. pp. 90-105. 29 O Intransigente era outro órgão de imprensa de Itabuna. Este periódico pertencia ao coronel Henrique Alves dos Reis, inimigo político de Gileno Amado e membro do Partido Autonomista durante a década de 1930. Até 1937, ocupou a cena como oposição municipal, fazendo um contraponto ao rival local A Época. Durante algum tempo chegou a se aproximar das idéias integralistas, tendo publicado colunas pagas de militantes do Integralismo. Funcionava semanalmente e circulava na sede e nos distritos de Itabuna. Dirigido por Otoni José da Silva, O Intransigente promoveu críticas ao prefeito Claudionor Alpoim até 1937, censurando a criação de impostos e algumas reformas urbanas realizadas no centro da cidade. A partir do Estado Novo, o jornal assumiu uma posição de maior neutralidade em relação à política local, mas sempre que possível utilizava os problemas sociais para fazer críticas à Prefeitura. Sob a chefia de redação de Reinaldo Sepúlveda, delegado da comarca de Itabuna, o semanário iniciou intensa campanha de combate à mendicância e à jogatina na cidade. As notícias sobre a quantidade de menores abandonados, a jogatina que ocorria nos bairros e nas praças do centro e o discurso conservador percorriam parte dos números que foram publicados nas décadas de 1930 e 1940. Um destaque de O Intransigente era a seção Queixas & Reclamações, espaço destinado pelo jornal para que os moradores reclamassem melhorias do poder público ou denunciassem pessoas. Foi também nesta parte do jornal que foi possível encontrar falas provenientes dos trabalhadores que, por algumas vezes, utilizaram o espaço para reclamar contra a fiscalização empreendida pela Prefeitura. Desta forma, essa seção possibilitou analisar as relações entre os trabalhadores e o poder público de Itabuna nas páginas da imprensa local. 45 Para Heloisa Faria Cruz, a imprensa se tornou o principal produtor discursivo do início do século XX, ligando-se, quase sempre, a uma cultura urbana que se fundamentava em valores conservadores e tradicionalistas. 46 Tanto o jornal de Gileno Amado como o de Henrique Alves possuíam em comum as características de “imprensa de opinião”, conforme classifica Márcia Espig. 47 Este tipo de jornalismo se distingue por exprimirem seus pensamentos sobre os temas tratados, geralmente fundados em noções morais e em valores SILVA, Eduardo. Queixas do povo. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. O autor investiga a coluna Queixas e Reclamações do Jornal do Brasil, onde problematiza as reivindicações de moradores dos bairros do Rio de Janeiro a partir da relação entre o povo e o poder público carioca. 46 CRUZ, Heloísa F. São Paulo em papel e tinta: Periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ: FAPESP: Imprensa Oficial, 2000. pp.19-25. 47 ESPIG, Márcia Janete. O uso da fonte jornalística no trabalho historiográfico: o caso do Contestado. In: Estudos Ibero-americanos, XXIV(2), dezembro de 1998. p.271. A historiadora ainda levanta outra característica muito comum aos jornais de Itabuna quando se aponta que as opiniões emitidas assumem freqüentemente uma conotação política, que, por vezes, criam polêmicas com outras instituições jornalísticas. 45 30 que consideram importantes para a sociedade. Isto quer dizer que, mesmo em posições políticas diferentes, guardavam semelhanças no que se refere à sua posição diante dos costumes e hábitos populares. O A Época procurava denunciar as condutas dos trabalhadores sempre que fugissem aos padrões determinados pela Prefeitura. O Intransigente usava os “maus costumes” para cobrar e criticar as medidas do poder público e assumindo sua oposição política até 1937. Por isso, como sugere Cruz, as páginas dos periódicos são os lugares em que foi possível encontrar uma experiência de cultura urbana permeada de contradições entre os diversos setores sociais e, ao mesmo tempo, um campo de disputa pelo poder na cidade em transformação. Os jornais são fontes que possibilitam dar visibilidade aos confrontos culturais e sociais existentes entre os trabalhadores e os membros do poder público. Não apenas isso. Eles ajudam a perceber a historicidade dos “de baixo”, notar suas táticas de preservar seu modo de vida e de fugir ao controle erguido para limitar seu comportamento. Vale o que Ginzburg escreveu no prefácio de O queijo e os vermes sobre os historiadores que trabalham com fontes não produzidas pelos populares. Para ele, o fato de o documento não ser produzido diretamente pelos trabalhadores, não quer dizer que ele seja inutilizável. 48 É preciso saber reconhecer nas fontes produzidas pelas elites, os trabalhadores urbanos que experimentaram a cidade de Itabuna em suas contradições, nas suas ações e nas territorialidades construídas por eles. Certamente este é o caminho para se pensar Itabuna e a região cacaueira para além das riquezas e dos mandos dos coronéis, mas nas táticas de insubordinação tecida pelas pessoas simples, pobres e comuns. ********** A dissertação está dividida em três capítulos. No primeiro deles, intitulado A cidade e seus poderes, o objetivo é identificar de que maneira o poder público em Itabuna se organizou a partir da década de 1930, depois do golpe político que levou Vargas à presidência da República. Para tanto, procuro identificar quem são as figuras políticas que estavam no poder entre 1930 e 1940 e quais os departamentos criados pelas municipalidades com vistas a exercer o controle citadino. Também discuto como os trabalhadores se relacionam com os órgãos da administração pública, especialmente a Higiene Pública e a Guarda Municipal. É interesse observar a maneira como os trabalhadores travavam uma disputa pela cidade com os novos instrumentos de coerção social da Prefeitura. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. (versão de bolso). p.16. 48 31 Em A Cidade e o Plano, a intenção foi analisar os projetos de urbanização criados para Itabuna como forma de territorialização do poder no perímetro central. Faz parte de suas pretensões observar em que medida os lugares almejados pelos urbanistas para as reformas urbanas não eram locais onde se encontravam parte da população trabalhadora de Itabuna. Em um segundo momento, associo a criação do plano urbano ao mercado imobiliário local, com a criação de incentivos tributários para o aparecimento de novos imóveis e de taxas contra casas e prédios que atentassem contra o padrão de estética instituído pela Prefeitura. Junto a isso, identifico os membros do poder público que se beneficiaram com as medidas e os valores proporcionados pela urbanização local. Por fim, encerro o capítulo com a experiência de repressão do meretrício em Itabuna diante das reformas urbanas. Em A Cidade e suas (im)posturas, terceiro capítulo desta dissertação, analisei como o poder público, além de promover mudanças morfológicas na cidade, tentou induzir a mudança de comportamentos na população local nas décadas de 1930 e 1940. Caracterizei ainda as formas que os trabalhadores criaram para burlar os padrões instituídos pelo poder público, driblando a ação da fiscalização municipal e preservando o direito de fazer uso da cidade conforme seus interesses e costumes. Outro interesse é perceber a maneira como as leis municipais forçaram os trabalhadores a se organizar para enfrentar as medidas impostas pela Prefeitura e garantir o consumo de logradouros públicos a exemplo das margens do rio Cachoeira, calçadas e praças do perímetro central. 32 CAPÍTULO 1 A CIDADE E SEUS PODERES No início da década de 1940, Itabuna possuía cerca de 20.265 habitantes, segundo o recenseamento realizado pelo governo federal daquele período.49 Isso a tornava a cidade mais populosa da região sul da Bahia. Antes disso, no ano de 1927, o município era visto com um potencial de investimento significativo por conta de seu comércio local. Em relatório produzido pelo Banco Rural de Itabuna, João Araújo Góes chamava a atenção para as vantagens do município, no qual sugeria que pela movimentação e concentração de stocks e variedade existente no comércio, tinha-se a “ilusão de ser uma pequena metrópole [...] a avaliar pelas casas de moda, o requinte de gosto que nela se nota poderá informar das suas exigências, da sua distinção e do seu desenvolvimento.”50 Apesar da notada potencialização da cidade, justificada talvez por ser produzida por um banco itabunense, as informações de Góes parecem apontar para a ascensão econômica do município. A posição econômica evidenciada pelo relatório do Banco Rural, auxiliada pela localização geográfica de convergência dos distritos no interior da região, contribuiu para atrair vários interessados em trabalhar na lavoura do cacau ou no comércio que começava a se consolidar no município. A literatura memorialística regional sugere que trabalhadores saídos de regiões e estados que passavam por problemas climáticos e sociais, como sertão da Bahia, Sergipe e Alagoas, chegavam a Itabuna e às demais localidades que faziam parte do município freqüentemente até meados da década de 1940. Milton Santos afirma que mesmo com a crise agrícola do cacau na década de 1930, as populações do norte e do nordeste do estado mantiveram um fluxo significativo para a região sul. 51 Outra pista para compreender a ocupação regional está no recente estudo sobre as trajetórias das populações ex-escravas na BRASIL/IBGE. Recenseamento geral do Brasil. 1/9/1940. Rio de Janeiro: Serviço Gráfico do IBGE, 1950. APEBa. Relatório apresentado ao Banco Rural de Itabuna para a construção da estrada Itabuna-Macuco. 12 de out. de 1927, p.6. 51 SANTOS, Milton. A urbanização brasileira. 3ª ed. Hucitec: São Paulo, 1996. 49 50 33 Bahia realizada pelo historiador Walter Fraga Filho. Ele aponta que o fluxo de ex-cativos para o sul da Bahia se intensificou por conta dos melhores salários pagos na lavoura cacaueira do que na canavieira e da esperança de possuir pequenas roças para sua sobrevivência. 52 Se, por um lado, Itabuna cresceu nos índices demográficos com a chegada dessas populações migrantes, por outro suas fronteiras urbanas passaram a se ampliar e a exigir alterações na estrutura insuficiente para o recebimento destes trabalhadores. Com isso, foram surgindo novas áreas ocupadas ao redor do perímetro central, zonas em que moravam as pessoas que chegavam à cidade. Na década de 1930, Itabuna possuía alguns bairros com significativa concentração demográfica. Exemplos disso eram os arrabaldes do Pontalzinho, da Misericórdia, do “Conceição”, do Cajueiro, da Jaqueira, do Mangabinha, da Burundanga e da Bananeira, dentre os quais podemos encontrar longas listas de pequenos comércios e de residências que circundavam a zona urbana central nos registros das décimas urbanas da prefeitura municipal. Mais distantes um pouco do centro da cidade e com menor número de habitantes, cito a região de Ferradas, “Pau Caído”, Mutucugê e Caixa D’Água. Aqui não levarei em consideração os sete distritos administrativos que integravam o município itabunense. O aparecimento dos bairros era noticiado com um misto de surpresa e de melindre pelos jornais. Primeiro porque estes bairros passavam a receber uma população numericamente superior ao espaço central de Itabuna. Isso era atribuído à expansão das fronteiras urbanas e, por conseguinte, condicionado a fator de desenvolvimento pelos poderes locais, mas também era visto com receio por conta do aparecimento de elementos urbanos considerados nocivos à ordem estabelecida pelos segmentos políticos reinantes na sociedade itabunense. Um sinal disso pode ser observado em uma das notas do Jornal de Itabuna, de propriedade do delegado de polícia Lafayette Borborema, quando pressionava para que a existência de cabarés nas imediações da Burundanga fosse repelida, onde afirmava que “o certo é que a polícia precisa acabar com esses antros de desordens, de vícios e de imoralidades.”53 As áreas dos bairros quase sempre aparecem nas fontes produzidas pelos segmentos hegemônicos de Itabuna, enquanto espaços que contrariavam os costumes cultivados pela ordem estabelecida, isto é, pelos ideais de “civilização” e “progresso” pregados pelos poderes FRAGA FILHO, Walter. Encruzilhadas da liberdade: histórias de escravos e libertos na Bahia (1870-1910). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2006. p. 314, 326. A partir de fontes do Ministério da Agricultura de 1912, o autor identificou que o valor médio da diária do trabalhador agrícola na lavoura cacaueira era de 2$000 réis, enquanto nos distritos açucareiros era de 1$500 réis. 53 CEDOC/UESC. Jornal de Itabuna, quarta-feira, 27 de agosto de 1930. s/nº, s/p. Documento anexado em processo crime. 52 34 públicos. Foi assim com a Burundanga da década de 1930, ou com o Cajueiro do final da década de 1940, ambos narrados pelo memorialista Carlos Pereira Filho, jornalista de um dos periódicos locais e indivíduo de expressão na sociedade itabunense, como lugares de contradição ao “desenvolvimento” da cidade. Sobre isso afirmava que, em Itabuna, ainda havia bairros bastante empobrecidos e proletarizados, sem os benefícios de calçamento, os serviços de águas e esgotos e a tranqüilidade ameaçada durante a noite pelos barulhos provocados nos cabarés de ponta de rua. Cajueiro é um deles, sempre agitado, sempre com arrelias, com embrulhadas de policiais, de mulheres da vida livre e da rapaziada alegre.54 A memória de Pereira Filho parece evidenciar as diferenças nos modos de vida dos habitantes de Itabuna. O olhar do memorialista traz a percepção de quem vê na periferia a contra-ordem ou o choque das condições de vida da população pobre, em que quase sempre o cotidiano popular era encarado na condição de perigo ou de intranqüilidade. Para o autor, a responsabilidade pelos barulhos era sempre das “mulheres de vida livre e a rapaziada alegre”. Na medida em que surgiam os primeiros bairros, a cidade ganhava algumas instituições. Em meados da década de 1930, Itabuna contava com estabelecimentos que proporcionavam uma dinâmica comercial considerável para uma cidade do interior da Bahia. Havia casas bancárias, lojas, alfaiatarias, postos de combustíveis, casas comerciais de exportação de cacau, bares, cinemas, escolas e hospitais. Nesse momento, a elite local formada por fazendeiros (agrária) e exportadores (comerciantes) de cacau construía suas entidades sociais de representação, como a Associação Comercial, fundada em 1908, a Loja Maçônica e a Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna, criada em 1935. Junto a estas instituições, não podemos esquecer as entidades filantrópicas da Igreja Católica, que quase sempre eram dirigidas por membros dos segmentos dominantes, como é o caso do Colégio Divina Providência (1922) e da Santa Casa de Misericórdia (1917).55 Havia ainda a existência de associações de trabalhadores ou sindicatos; dentre os que se sobressaem nos jornais da época, cito o Sindicato dos Comerciários, que exercia bastante pressão contra os comerciantes que ultrapassavam os horários de funcionamento estabelecidos pela Prefeitura. Apesar disso, historiadores apontam que os setores hegemônicos da sociedade cacaueira não criaram condições básicas para a independência econômica da Região em relação à Capital do estado, conforme frisa o historiador Antonio Guerreiro de Freitas. 54 55 PEREIRA FILHO, Carlos. Terras de Itabuna. Rio de Janeiro: Elos, 1960. p.116. FÁLCON, Gustavo. Os coronéis do cacau. Salvador: Ianamá, 1995. 35 As entidades citadas acima eram os espaços entre que os membros das classes hegemônicas ocupavam para expressar seus anseios políticos e valorizar sua ação social em Itabuna. Por isso mesmo, os periódicos não se intimidavam em associar estas instituições ao fator de “crescimento” da cidade, considerando-as expressões do nível da sociedade itabunense. Talvez isto tenha levado, por exemplo, Colbert Guimarães a escrever para o O Intransigente uma nota ressaltando as atividades da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna em 8 de fevereiro de 1932. Dizia que após assistir a uma das sessões da entidade, ficara “verdadeiramente encantado diante da cordialidade, do respeito e sobretudo da sinceridade reinante no seio da mesma. É a única cidade do interior deste estado em que a medicina tem logrado alcançar progresso dessa natureza.”56 Assim, Guimarães se utilizava das atividades dos médicos locais como parâmetro para enfatizar a situação dominante na cidade. As décadas de 1930 e 1940 indicaram um horizonte de mudanças no cenário político local. Emancipada no ano de 1906 e elevada à categoria de cidade no ano de 1910, Itabuna despontou enquanto centro administrativamente autônomo do município de Ilhéus em plena Primeira República. Esse período foi marcado profundamente pela ação impetuosa dos indivíduos que ocuparam o cargo de intendente do novo município. Eram momentos em que a atuação do Estado estava geograficamente distante, e, na prática, quando se fazia presente, quase sempre atendia aos interesses dos segmentos hegemônicos do poder municipal. Até 1932, revezavam-se no executivo local uma série de fazendeiros, mais tarde classificados por Guerreiro e Fálcon como os “Coronéis do Cacau”.57 João da Silva Campo conta alguns dos conflitos existentes entre as facções políticas locais na disputa pela intendência de Itabuna. Ele narra, por exemplo, o assassinato de Virgílio de Sá, em 1908, “perpetrado aliás por questões íntimas e alheias à política, pelo fisco geral do município, pessoa grada ao situacionismo local”58, forçando o governo do estado a tomar “medidas enérgicas no sentido de por fim a assustadora insegurança em que se mergulhara a comuna.”59 As prefeituras eram disputadas na base da violência pelos grupos dominantes que se dividiam nessa época. De um lado das facções políticas estavam os Adamistas, ligados aos setores agrários, cuja figura política mais expressiva era Henrique Alves. De outro, os Pessoístas, conectados com os grupos de comerciantes e de profissionais liberais (advogados, médicos e engenheiros), CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de fevereiro de 1936, Ano X, n.º 23, p.1. FREITAS, Antonio Fernando de G. Caminhos ao encontro do mundo: a capitania, os frutos de ouro e a Princesa do Sul. Ilhéus: Editus, 2001. FALCON, Gustavo. Os coronéis do cacau. Salvador: Ianamá, 1995. 58 CAMPOS, João da Silva. Crônicas da capitania de São Jorge dos Ilhéus. 3ª Ed. Ilhéus: Editus, 2006.p.485. 59 Idem, Ibidem, p.486. 56 57 36 liderados por Gileno Amado. Embora tivessem diferenças políticas, ambas as facções se interessavam pela manutenção do poder local sob o controle das oligarquias regionais. Em meados das décadas de 1930 e 1940, a cidade vivia um movimento que impressionava visitantes e moradores locais. Eram pessoas que chegavam em busca de novas oportunidades de trabalho, caixeiros-viajantes que circulavam pelas ruas e trazendo um novo ritmo para a cidade que despertava para o século XX, mas que guardava em si as peculiaridades dos modos de vida do interior. Fosse na política definida na base da violência ou nas disputas pessoais resolvidas no interior dos bares e dos bilhares das ruas Ruy Barbosa e Domingos Lopes, Itabuna desenhava um outro tipo de vida moderna. Em 1934, O Fanal desenhava em tom ufanista as características da cidade, dizendo que “Aqui tudo é progresso e devagar tudo se move.” Novos logradouros públicos surgem em diferentes pontos da cidade. Já temos diversas ruas e praças iluminadas com fiação subterrânea; uma bela ponte armada lança-se sobre o Cachoeira, dando-lhe um ar pitoresco; o bairro Conceição, na outra margem, com seu alvo casario, visto da margem oposta, assemelha-se a uma enorme flor alva [...] Os arrabaldes de Berilo e Mangabinha estendem-se gigantescamente, como a cauda de um animal de formidáveis proporções, ampliando-se progressivamente. 60 Apesar da descrição harmônica e funcionalista de Hermenegildo Souza no editorial do jornal, as contradições provenientes do crescimento urbano e do aumento populacional fizeram da cidade um cenário de disputas entre os segmentos antagônicos da cidade. Essa metamorfose urbana trouxe a necessidade para os poderes públicos de construir instrumentos que possibilitassem o gerenciamento das ações de seus habitantes e do uso dos espaços urbanos. Entre o início do século XX, quando obteve sua libertação política, e o início da década de 1930, os poderes públicos foram se articulando com vistas a desenhar uma organização administrativa para Itabuna. O revezamento na intendência municipal entre os representantes das oligarquias regionais não impediu a criação de ferramentas para estabelecer um padrão de ordem instituída pelos segmentos políticos. No entanto, certamente foi a partir das convulsões políticas de 1930 que a cidade modificou e ampliou sua estrutura administrativa com vistas a regulamentar e controlar a vida urbana de Itabuna. Em contrapartida, as tensões entre as camadas populares e os membros da administração pública se acentuaram. Para Adonias Filho, as mudanças efetivadas no cenário político nacional no início de 1930 resultaram na alteração da ordem política local. Seguindo uma herança historiográfica, o 60 CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de Agosto de 1934, Ano II, n.º 4. p.1. 37 autor considera que, a partir daquele momento, os coronéis que tinham figurado enquanto protagonistas da direção municipal na Primeira República começavam a perder espaço para sujeitos políticos que eram originários de profissões liberais. Segundo o romancista regional, essas alterações romperiam com o poder dos latifundiários que havia se consolidado desde a proclamação da República nas repartições locais. No caso da região cacaueira, ele considerava um marco na história local, já que daria início ao ciclo de democratização da sociedade regional, liderado por sujeitos que “dinamizariam” a prática política e social. 61 De fato, conforme Adonias Filho enunciou, durante os anos em que Vargas dominou o cenário político nacional pela primeira vez (1930-1945), cinco prefeitos passaram pelo cargo mais importante de Itabuna, sendo que dois deles ocuparam onze anos desse período: Claudionor Alpoim e Francisco Ferreira. O primeiro era médico e o segundo engenheiro. Mas antes de tratar destes dois, creio ser importante aparar as arestas no cenário político regional. Ao contrário do que Adonias Filho sugeriu, a situação política pós-1930 não foi resolvida tão facilmente na Bahia. Uma parte das elites locais se mantivera ao lado de Washington Luís durante a tomada do poder pela Aliança Liberal. Em Itabuna, a situação não foi diferente. Personagens centrais da política local não estavam ao lado do grupo de Getúlio Vargas nos primeiros momentos do golpe de 24 de outubro. Esses indícios podem ser notados na memória local que trata da trajetória de um dos políticos de expressão na cidade: Gileno Amado. Na iminência do golpe político, Gileno Amado, acompanhado de Antonio Cordeiro de Miranda, importante correligionário de seu partido, providenciou medidas para que Itabuna resistisse aos ataques contra o governo federal na cidade. Gonçalves, memorialista da região, afirmava que Amado estava fiel à legalidade do governo federal, tendo inclusive formado um batalhão de voluntários para defender o governo dos ataques do movimento golpista. Com a deposição do presidente Washington Luis e a instalação do governo provisório, este político chegou a ter sua prisão decretada pelo novo regime.62 Com a nomeação de Juracy Magalhães para interventor da Bahia, depois de instituída a nova ordem política, Gileno Amado acabou posteriormente nomeado Secretário da Fazenda. Tempos depois, Magalhães, em suas memórias, dizia que conseguia “ver nestes coronéis uma outra dimensão além da que se Ver ADONIAS FILHO. Sul da Bahia: chão de cacau: uma civilização regional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. Procurando esquematizar politicamente a sociedade grapiúna, o literato defende que, a partir da década de 1930, as prefeituras municipais passaram a ser dirigidas por indivíduos que eram profissionais liberais, rompendo com a estrutura coronelística da região. Contudo, vale ressaltar que, apesar de profissionais liberais, esses políticos ainda estavam ligados por laços familiares e políticos com o coronelismo. p. 95. 62 GONÇALVES, Oscar Ribeiro. O Jequitibá da Taboca. 1ª Edição. Itabuna: Oficinas gráficas do estado da Bahia, 1960. pp.140 e 141. 61 38 propalava na capital. Eram eles, na verdade, chefes locais”, e, sobre o político itabunense, ele afirmava que “Em Itabuna dei apoio a Gileno Amado, que chefiava a facção contrária a João Mangabeira, conseguindo obter ali uma substancial vitória.”63 Eul Soo Pang afirma que a Bahia viu surgir “coronéis burocratas”, que liderados por Juracy Magalhães, solidificaram as redes de poder no interior com representantes oligárquicos.64 A condição de secretário da Fazenda do estado terminou por preservar a influência política de Gileno Amado em Itabuna, mesmo com o fim da Primeira República. Isso possibilitou que os dois prefeitos que mais tempo passaram no executivo municipal fossem afilhados políticos do “ex-coronel” e secretário estadual. Nesse sentido, pode-se questionar a tese de Adonias Filho sobre a suposta mudança no cenário político local com a subida de Vargas ao poder. Mesmo com o pós-1930, as elites agrárias permaneceram no poder, contudo utilizando personagens políticos que davam uma cara nova à Prefeitura, mas que ainda permaneciam sob a tutela dos antigos coronéis da cidade. Claudionor Alpoim e Francisco Ferreira possuíam as bênçãos da elite local. Ambos eram profissionais liberais e surgiam no cenário político de Itabuna com propostas de mudanças para a cidade. As formações em medicina e engenharia, respectivamente, eram vistas pelos segmentos políticos como suporte técnico e prestígio social, necessários para que ocupassem a Prefeitura. Não foi por acaso que os dois tomaram para si a tarefa de promover a expansão e o remodelamento urbano de Itabuna. Alpoim, membro do Partido Social Democrata (PSD), partido criado por Juracy Magalhães, ao qual pertencia Gileno Amado, era um nome consolidado em Itabuna.65 Oriundo de famílias que possuíam terras na região, atuou em setores importantes da sociedade local, como a Santa Casa de Misericórdia e a vigilância sanitária na Secretaria de Obras Públicas do município durante as gestões anteriores, assumindo a Prefeitura em setembro de 1932. Já Ferreira, antes de se tornar prefeito, ocupou o importante cargo de superintendente da Companhia Viação Sulbaiano, ligada ao Instituto do Cacau da Bahia (ICB). Ele chegou ao município no ano de 1928 e sua nomeação para prefeito aconteceu no ano de 1938, realizada por Landulfo Alves.66 GUEIROS, José Alberto. O último tenente. 3ª ed. Rio de Janeiro: Record, 1996. pp.132, 152. PANG, Eul Soo. Coronelismo e oligarquia (1889-1934). A Bahia na Primeira República brasileira. trad. Vera Teixeira Soares. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979. O autor coreano afirma que depois de 1933, a Bahia viu surgirem os coronéis burocratas, antigos políticos de origem oligárquica regionais, integrados às secretarias políticas de Juracy Magalhães. pp. 61-62. 65 SAMPAIO, Consuelo Novais. Poder e representação: o legislativo da Bahia na Segunda República, 19301937. Salvador: Assembléia Legislativa, Assessoria de comunicação social, 1992, p.93. A autora afirma que Juracy Magalhães formou o PSD a partir da reunião de lideranças regionais do estado. 66 COSTA, José Pereira. Terra, suor e sangue: Lembranças do passado. História da Região Cacaueira. Salvador: EGBA, 1995. pp. 173-174. 63 64 39 A ação destes prefeitos leva a crer que ambos estavam sintonizados no sentido de dotar Itabuna com novos meios de controle e de intervenção urbana. Para tanto, contaram com a aceitação dos segmentos políticos e econômicos hegemônicos. Um indicativo disso é a relação do poder legislativo e executivo municipais durante o período em que sua atividade foi permitida entre os anos de 1930 e 1947. Funcionando entre 1933-1935 sob o nome de Conselho Consultivo, e entre 1936-1937 com o título de Conselho Municipal, seus membros pertenciam aos quadros políticos da elite agrária local. Na eleição de 1936, dos doze conselheiros eleitos, nove pertenciam ao PSD, sendo fazendeiros, comerciantes e banqueiros; e três ao Ação Integralista Brasileira (AIB), sendo que dois eram engenheiros. Pelo menos cinco dos conselheiros já haviam ocupado este cargo nas gestões do Conselho Municipal da Primeira República, e dois deles foram intendentes municipais em 1924 e 1929.67 Esses números são indícios de que poucas mudanças ocorreram no quadro político local no pós1930. Por isso, os representantes do executivo não encontraram resistências em aprovar os orçamentos financeiros do município e leis que favorecessem a política hegemônica local. A relação harmoniosa entre o executivo e o legislativo pode ser notada no parecer sobre as contas do ano de 1936 da Prefeitura, em que a “admiração” e a sintonia dos conselheiros em relação ao prefeito são facilmente identificadas, quando afirmavam que Efetivamente são bem significativos os resultados de sua administração [...] no que tange aos problemas citadinos, procurando dar o maior conforto e melhor comodidade à população, melhorando as condições higiênicas da urbe, dando-lhes aspectos modernos e que condigam com os foros de grandeza e civilização. 68 Em um período de tensão política freqüente, típico das décadas de 1930 e 1940, as boas relações entre os poderes políticos do município podem ser consideradas uma tentativa de ofuscar as divergências partidárias, construindo uma imagem de união dos dirigentes em nome da suposta “grandeza e civilização” de Itabuna. Somente em momentos de maior embate político, alguns membros do Conselho Municipal se opunham às ações do prefeito. Era o caso dos três vereadores do Partido Integralista, que, em algumas oportunidades, votaram contra projetos da Prefeitura ou reclamavam da perseguição política aos seus militantes e correligionários.69 Nessa correlação de poderes locais, as decisões a serem APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 20 de fevereiro de 1936, Ano V, n.º , p. . APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. sábado, 20 de março de 1937, Ano VI, n.º311, p.1-2. 69 APMIJD. Livro de Atas do Conselho Municipal de Itabuna (1935-1937). Ata da décima terceira reunião do Conselho Municipal de Itabuna 12 de agosto de 1936. p.20. 67 68 40 tomadas quase sempre partiam do prefeito para serem ratificados pelo Conselho de vereadores no período em que este último funcionou. Essa coerência política por parte dos membros das municipalidades de Itabuna talvez fosse importante para que os segmentos hegemônicos produzissem força para enfrentar os obstáculos encontrados na cidade. Um deles seria contornar as críticas do grupo político rival, que embora ligado ao presidente Vargas, fazia oposição aos setores que ocupavam a Prefeitura desde a Primeira República. Trata-se da polêmica política histórica entre o PSD, de Gileno Amado, e o Partido Autonomista, liderado por Henrique Alves. Essas disputas se davam no seio da própria elite local, que se dividia na luta pela hegemonia do cenário político itabunense. As boas relações de Amado com Juracy Magalhães durante o período provisório e constitucional da década de 1930 levaram os setores da elite itabunense ligados ao ex-coronel a criar uma polarização entre o secretário da Fazenda e Henrique Alves. Nesse sentido, Gileno Amado passava a ser considerado aquele que teria aderido aos novos rumos da política nacional, com a qual havia conseguido um papel importante no governo estadual. Em contrapartida, a soberania do seu rival levou Alves a ser considerado o último dos coronéis que representavam a Primeira República, cuja expressão não seria mais influente na sociedade local. Em abril de 1937, o A Época chamava de “derrotista” o periódico do partido autonomista por denunciar supostas fraudes no contrato do sistema de água e esgoto de Itabuna. Parece evidente que se tratava efetivamente de disputas particulares pela liderança regional entres os setores hegemônicos do que propriamente uma diferença entre as posturas administrativas de ambos os líderes. 70 Apesar das disputas entre os políticos locais terem tomado conta das páginas dos jornais, eram outros os problemas que apareceram no horizonte da cidade e que preocupavam os “protagonistas” da história. Embora as brigas entre os coronéis de Itabuna e Ilhéus ocupem muitos espaços na historiografia local, e algumas obras terminaram por superestimar o poder destes indivíduos, as tensões entre o poder público e os cidadãos comuns parecem sugerir uma guinada nos estudos que são produzidos sobre a região. Entre as décadas de 1930 e 1940, as contradições de ordem econômica e cultural engendraram disputas políticas que colocavam na mesma cena de conflitos os prefeitos, os vereadores e os trabalhadores de Itabuna. Essas tensões surgiram a partir das incoerências dos projetos de cidade construídos pelos setores antagônicos da sociedade. Um indício dessas tensões pode ser notado nas considerações do 70 CEDOC/UESC. Jornal A Época, terça-feira, 20 de abril de 1937, Ano XV, nº 843. p.1. 41 juiz da Comarca de Itabuna, ao descrever a situação do município, sobre o segundo semestre do ano de 1943, onde afirmava que a quantidade de crimes era, sem dúvida, ao grande número de cabarés e casa de jogos que existiam neste município, notadamente nesta cidade. Ora, nas zonas do sul do estado constantes devem ser a vigilância da polícia, por terem sido elas, quando despovoadas, focos de criminalidade e homizios, os quais o progresso vai higienizando – dia a dia.71 Para o juiz José Desouza Dantas, os fatores que explicavam os índices de criminalidade de Itabuna estavam ligados à existência de prostitutas e de bicheiros no interior do município. A esses elementos, ele somava o fator histórico da região cacaueira, espaço que haveria abrigado transgressores da lei, do qual somente com o “progresso” começava a ser um problema superado. As palavras de Dantas achavam facilmente os supostos responsáveis pela intranqüilidade de Itabuna e, do mesmo modo, apresentavam a solução para que estes problemas fossem superados. Embora não esteja expresso na fala do juiz, podemos imaginar que tipo de “progresso” seria este que terminaria com o problema do crime na cidade. Esse estágio de desenvolvimento estaria ligado a efetivação da organização estatal administrativojurídico do município. O maior controle do aparelho de controle do Estado ofereceria as condições para que o crime diminuísse. Sem levar em consideração os valores culturais difundidos entre uma sociedade que se fundou na defesa da honra machista e da ética da violência armada disseminada pelos setores sociais dominantes, o juiz da comarca de Itabuna acreditava que o melhor desenvolvimento do setor político e jurídico resolveria os problemas da cidade. É bom lembrar que José Desouza Dantas ocuparia o cargo de prefeito provisório em 1945, o que justifica sua ligação com a administração municipal pelo menos no período que antecedeu sua experiência na Prefeitura. Por isso, suas palavras sobre Itabuna do ano de 1943 são fragmentos do projeto de cidade que os membros dos poderes públicos possuíam. Para tanto, foi preciso criar instituições que pudessem efetivar o controle e as intervenções sobre aqueles que faziam usos da cidade, isto é, seus habitantes,em sua maioria, trabalhadores rurais e urbanos. Como disse, a prostituição era freqüentemente citada na lista de problemas a serem “sanados” pelas autoridades municipais em matérias dos periódicos quer circulavam em Itabuna. Contudo, ela não era a única. Ao seu lado, apareciam também o jogo do bicho, os curandeiros e os candomblés existentes na cidade. Outras questões sociais apareciam com menor intensidade também nos órgãos de notícias, como a presença de animais soltos pelas 71 APEBa. Relatório de movimentação forense. Itabuna, 14 de janeiro de 1944, s/nº, p.2. 42 ruas, licenças de ambulantes e “desordens” em bares e cabarés. Alguns locais da cidade são identificados pelos jornais por serem espaços de diversão e de atuação profissional das classes populares. Este é o caso da Rua Ruy Barbosa, chamada durante muito tempo de Rua “do Quartel Velho”, que se localizava em pleno centro de Itabuna e reunia uma série de trabalhadores ambulantes, verdureiros, leiteiros, baianas que vendiam suculentos mingaus, açougues, pequenos restaurantes freqüentados pela população pobre, além de barbearias, quitandas e casas comerciais. De acordo com o Lançamento de Imposto do Município de Itabuna em 1940, a rua Ruy Barbosa possuía 45 estabelecimentos comerciais, dentre os quais um número considerável era de bares, pensões e bilhares. Havia no local 3 pensões, 8 bares, 11 bilhares, 3 barbearias e 3 açougues.72 Mas a rua chamava mesmo atenção da imprensa e das autoridades locais por ser “o refúgio da população notívaga da cidade. [...] a vida noturna, ali, é mais intensa, dada a reunião de cafés, restaurantes e pensões agrupados no quarteirão mais ativo [...] Centro convergente daqueles que fazem da noite um dia alegre.”73 As críticas sobre a Rua Ruy Barbosa por vezes soavam mais ácidas junto aos órgãos noticiosos. Em 1º de junho de 1936, O Fanal, que se caracterizava por ser “mensário da mocidade estudantil de Itabuna e órgão literário”, era utilizado como instrumento de crítica por Hermenegildo Souza, professor e gerente deste periódico: Percorrendo as ruas da cidade, verifiquei na rua Ruy Barbosa, na Sexta-feira da Paixão, que alguns bares conservavam suas portas meio cerradas e outras totalmente lacradas. O mulherio não formigava na porta dos cabarés, como nos outros dias. [...] Essas horas de profundo respeito por parte do povo que se diz cristão poderia ser prolongada por toda a vida, se nos dispuséssemos a cada instante de nossas existências, em uma Sexta-feira da Paixão interior, de observância a nós próprio, aos princípios da moral deixada por aquele que verteu no calvário o seu sangue em nosso proveito.74 Choque de valores culturais como este fazia parte da cidade. Apesar da pretensão de liquidar com as atividades das mulheres nos cabarés e com a abertura de bares, Hermenegildo Souza acabava por evidenciar que aquela Sexta-feira da Paixão deixou atípica a Rua Ruy Barbosa. O olhar do articulista indicava que em dias normais aquela rua era um território dos trabalhadores, lugar de diversão e de prazer além das fronteiras da moral estabelecida pela “ordem pública”. As fronteiras das questões sociais perseguidas pelas autoridades públicas certamente se estendiam pela rua acima. Junto com a parte final da Rua Sete de setembro, a Rua APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 17 de fevereiro de 1940, Ano IX, n. 456. p.1-3. CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, Itabuna, 1º de abril de 1935, Ano III, n.º 12, p.2. 74 CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, Itabuna, 1º de junho de 1936, Ano IV, n.º 2, p.1. 72 73 43 Domingos Lopes também era conhecida como zona do “barulho” por parte dos periódicos. Boa parte do meretrício da cidade se localizava naquela região, por volta da década de 1930. Mas este cenário era complementado com o funcionamento de bilhares e jogo do bicho naquela área. Em 1928, o A Época caracterizava a rua Domingos Lopes como zona dominada pelo jogo e pela prostituição em uma matéria de destaque que tomava metade da capa da edição. Sobre isso, dizia o periódico que “Nas ruas Ruy Barbosa e Coronel Domingos Lopes são quase diários espetáculos degradantes, que põem em xeque nossos foros de cidade civilizada e fazem-nos perguntar se temos ou não temos policia de costumes.”75 Mais tarde, por volta da década de 1940, essas mulheres seriam retiradas dessas ruas e migrariam para outros lugares do centro da cidade e para os bairros do Cajueiro, Conceição e Mangabinha.76 Próximos ao perímetro central de Itabuna, os bairros da Conceição e do Pontalzinho formavam duas das áreas mais populosas da cidade, abrigando parte considerável dos trabalhadores urbanos e rurais. No bairro Conceição, o número total de estabelecimentos comerciais abertos era de 46, dentre os quais havia 6 barbearias, 11 quintandas, 19 pequenos negócios e 6 outros tipos de comércios. Nota-se a enorme quantidade de “Quitandas” e de “Pequenos Negócios” que havia no local. 77 Embora o lançamento de impostos não apresente detalhadamente estas duas categorias de comércio, é possível que esses locais fossem botecos e lojas que compunham o cenário deste bairro conforme se evidencia nos jornais. Povoado a partir do final da década de 1920, especialmente com a abertura da rodovia que ligava a sede do município ao distrito de Macuco (Buerarema), o bairro da Conceição ganhou notoriedade pela sua população crescente e pelos “sururus”78 noticiados pelos jornais. Até a década de 1950, este local não recebia muita atenção dos poderes públicos, e, por isso mesmo, seus moradores escreviam reclamações para os jornais solicitando benefícios da administração municipal. Em outubro de 1943, O Intransigente trazia uma nota de primeira página indicando a necessidade de melhoramentos naquele arrabalde, alegando que o “Conceição, o maior e mais aprazível subúrbio desta cidade, tem ficado no rol do esquecimento, apesar de ser o mais próspero bairro que possuímos. [...] O estado ali é triste e arriscado para as pessoas que ali mourejam.”79 A notícia expedida por O Intransigente sobre as necessidades do subúrbio do Conceição muitas vezes contrastava com os estigmas desenhados pelas notícias que eram IGHB. Jornal A Época, 29 de setembro de 1928, Ano XI, nº 433. p.1. Tratarei melhor disso no 2º capítulo. 77 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 17 de fevereiro de 1940, Ano IX, n. 456. p.1-3. 78 Confusão, briga ou desentendimento. 79 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 23 de outubro de 1943, Ano XVII, n.º 8. p.1. 75 76 44 veiculadas em outras edições do periódico. Durante um bom tempo, parte daquele bairro ficou conhecida como “Abyssínia”, em alusão ao nome antigo da Etiópia, inicialmente justificada pela quantidade de candomblés e assassinatos. Os jornais freqüentemente denunciavam as práticas de religiões afro-brasileiras como “feitiçarias”, exigindo a presença da polícia e da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna. 80 Juntamente com os candomblés, o jogo do bicho era uma prática denunciada pela imprensa local.81 O bairro do Pontalzinho também era um dos lugares mais povoados pelos trabalhadores de Itabuna e sua ocupação inicial remete a meados da década de 1910. Embora mais próximo da área central do que o núcleo do Conceição, os moradores daquele bairro enfrentavam bastante dificuldades com o descaso do poder público. Nos jornais das décadas de 1930 e 1940 é possível encontrar diversas queixas dos moradores daquele local contra a falta de infra-estrutura. A existência do ribeirão Lava-pés limitava o deslocamento dos moradores do Pontalzinho em direção ao centro da cidade quando ocorriam enchentes. Em algumas ruas, o esgoto corria à céu aberto e o matagal crescia livremente, o que resultava em reclamações contra o mau cheiro e as doenças que poderiam surgir por conta da insalubridade. Além desses problemas, a situação sanitária daquela zona popular se agravava com a existência de pântanos e de pastos nas áreas próximas ao ribeirão que limitava o arrabalde com o perímetro central. Mas se os poderes públicos não ofereciam atenção para os problemas de infraestrutura do Pontalzinho, o mesmo não se podia dizer quanto às questões sociais. A zona possuía alguns estabelecimentos de jogo do bicho, além de abrigar uma das sedes do partido Integralista. Por isso mesmo, sempre era alvo de denúncias na imprensa local. Uma das vias mais movimentadas era a Rua dos Artistas. Antes caminho de tropeiros que se deslocavam dos distritos do Pau Caído, Mutuns e Pirangí (atual município de Itajuípe), gradualmente esta rua foi sendo ocupada por artesãos por conta dos baixos valores daqueles terrenos, tornandose uma área tipicamente popular.82 Apesar disso, os periódicos desenhavam a rua dos Artistas em suas colunas enquanto espaço de “barulhos” constantes. O A Época, em 5 de setembro de 1942, solicitava a presença das autoridades policiais para por fim às confusões que seriam provocadas pelos “jogadores, que não estando satisfeitos com o jogo, ainda fazem barulho, a ponto de incomodar os moradores.”83 Jornal A Época, 11 de junho de 1938, Ano XVI, n.º 973. p.1. Documento encontrado em Processo-crime. Jornal O Intransigente, 11 de junho de 1938, Ano XI, n.º 41. Documento encontrado em Processo-crime. 82 GONÇALVES, Oscar R. Op. cit., pp.118-119. 83 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 5 de setembro de 1942, Ano XX, s/nº, p.4. 80 81 45 Como se pode notar, os olhares dos poderes públicos e das instituições ligadas a eles refletiam os choques de valores da sociedade em transformação. Com uma visão que identificava os modos de vida dos populares como problemas sociais, a imprensa e as autoridades locais terminavam por apontar as ações destes sujeitos como condutas contrárias aos valores de urbanidade e à moral estabelecida para Itabuna. Mas esse olhar dos segmentos hegemônicos sobre o seu diferente, isto é, sobre os subalternos da cidade, permite também localizar as áreas de sobrevivência dos trabalhadores. Não apenas isso, mas os usos que os trabalhadores faziam do espaço urbano. O agir dos indivíduos que compunham os grupos populares quase sempre resultava em tensões veladas com o poder público. Isso exigia uma prática discursiva de enfrentamento por parte da imprensa, o que fomentava o surgimento de matérias e de crônicas que procurassem negar os valores dos “de baixo” por meio de estigmas e de preconceitos, e referendassem os modos de vida dos setores dominantes. Procurando consolidar os valores e os costumes que se imaginavam para Itabuna, a imprensa local também evidenciava as contradições inerentes à cidade em metamorfose. O estranhamento entre os sujeitos urbanos indicava as diferenças culturais e sociais que se expressam a partir das suas experiências históricas. O Fanal de fevereiro de 1936 trazia uma “expedição” do seu repórter por sobre as áreas do subúrbio e seu inevitável estranhamento. As suas impressões sobre os bairros de Itabuna daquele momento apontavam as fissuras existentes no interior da população. Saí, numa manhã de domingo pelos subúrbios da cidade, jovial, com os olhos transluzentes de felicidade, e voltei com eles em lágrimas! Na primeira esquina, um varioloso, no chão imundo jogado. Adiante, uma viúva pobre, com tantos filhos a choramingar, tão cedo já, tão doentinhos! Prossegui na mesma rua, encontrei um punhado de crianças, tão alvinhas, tão irmãs, todas miudinhas, sós, sem pai e sem mãe que vinham do banho do rio... tão pequenas, tão sós, de cedo já encontrando as peripécias da vida... Entrei em outra rua – numa casa aberta, minado pela terrível tuberculose, um pobre velho está a expiar sem assistência de viva alma... Voltei. Ainda era cedo. Deparei-me com uma velhinha, que ia esmolar... e que demorava tanto a caminhar que ainda a encontrei, de volta, às 11 horas da noite, exangue, fatigada de corpo e alma... O mundo é pequeno para tantas misérias.84 Apesar da compaixão do cronista que assinava a coluna com o pseudônimo de “Repórter”, suas impressões deixavam transparecer o estranhamento do sujeito que habitava as zonas centrais e, possivelmente, pertencesse aos setores dominantes de Itabuna. Para ele, o subúrbio era considerado território da pobreza e da miséria, cujas características eram 84 CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de fevereiro de 1936, Ano III, nº 10, p.2. 46 fundamentadas nos modos de vida dos pobres. A descrição dos bairros parecia demarcar as fronteiras do espaço urbano, onde os problemas sociais se apresentavam somente nos bairros. Tratava-se de criar duas cidades em apenas uma, cujo subúrbio passa a ser a representação da cidade que não progredia como o centro de Itabuna. Somamos a isso, a ênfase dada aos enfermos encontrados na jornada pelos arrabaldes, o que denotava às regiões periféricas a condição de zonas insalubres e dominadas pelas doenças, na percepção hegemônica. Na breve descrição, notamos a citação de pelo menos três casos de endemias, entre elas, a varíola e a tuberculose. O Repórter de O Fanal procurava se posicionar no lugar de quem partia para uma “missão humanitária”. Tratava-se de um indivíduo que abdicava por alguns minutos de seu espaço de convivência (o centro da cidade), e partia em direção ao desconhecido, ou ao estranho – o subúrbio de Itabuna. Ao caminhar pelos bairros, o observador apontava aquilo que lhe era estranho, sobretudo elencando os elementos que considerava “anormal” para a cidade. Dessa forma, a suposta sensibilização com as condições de vida do subúrbio se transformava na criação de estereótipos que desclassificavam o território e os costumes das zonas populares. Visões da cidade como estas indicavam o estranhamento de comportamento entre os habitantes do centro e os da periferia. Os contrastes evidenciados pelo repórter procuravam tomar os bairros e, por conseguinte, seus habitantes como zonas de insalubridade e do perigo, consolidando um imaginário que justificaria as medidas legais e práticas dos poderes públicos aos espaços e costumes da população pobre de Itabuna. Para Bhabha, os indivíduos costumam ressaltar as diferenças dos “outros” como maneira de afirmar seus próprios valores. Assim, ao ressaltar as diferenças dos bairros, o periódico intentava ressaltar a superioridade material e social do centro em relação à periferia.85 Diante da cidade em crescimento territorial e demográfico, do aparecimento de seus primeiros bairros populares e práticas que são construídas pelos “de baixo” de Itabuna até a década de 1930 e 1940, os poderes públicos municipais traçaram uma organização para o controle e a intervenção no espaço urbano. Representados pelos interesses das municipalidades, os segmentos políticos hegemônicos traçaram administrações cujas medidas pudessem funcionar no sentido de coibir comportamentos “desordeiros” e forjar padrões para a vida dos munícipes. O encontro de diferentes interesses na mesma cidade apontou os limites e as contradições da sociedade urbana de Itabuna. Uma das maneiras mais eficazes de se BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: UFMG, 1998. O autor indiano destaca que o discurso hegemônico sempre traz em si uma ambivalência, no sentido de que sempre que cria estereótipo sobre o “outro”, reafirma sua própria identidade como superior. Assim, “a identificação é sempre o retorno de uma imagem de identidade que traz a marca da fissura no lugar do outro de onde ela vem. p.77. 85 47 perceber os atritos inerentes entre os poderes públicos e os trabalhadores de Itabuna é reconstruir as ações dos departamentos do governo municipal. A Secretaria de Higiene Pública e a Guarda Municipal eram dois dos principais meios para regulamentar e controlar os munícipes. Da construção de imóveis até a concessão de licenças profissionais, essas pastas eram responsáveis pela fiscalização dos sujeitos que viviam em Itabuna. Foram essas repartições públicas que se encarregaram de difundir os valores dominantes de higiene e de ordem pensados pelos segmentos hegemônicos mediante a permissão para construir imóveis, vender produtos e controlar a saúde pública. Por conta disso, o contato com as classes populares era quase sempre muito tenso. Aqueles que transgrediam as determinações destas secretarias terminavam por ser coagidos pelo poder local, o que não quer dizer que as pessoas aceitavam as medidas das autoridades municipais. É exatamente na insistência das pessoas comuns, isto é, dos trabalhadores frente às intervenções das autoridades sanitárias e urbanas, que busco reconhecer e explorar a trajetória de contradição e do conflito social em Itabuna. Nesse sentido, a experiência social dos indivíduos que vivenciaram a cidade em transformação se torna um meio de ressaltar as limitações do poder local diante de seu projeto político. São essas vivências que indicam a resposta dos trabalhadores em relação à política urbana pensada para a cidade, às vezes não resistindo as imposições dos setores dominantes, mas também, em algumas oportunidades, operando uma lógica urbana diferente da estabelecida pelos poderes estabelecidos. Desta forma, nem sempre os sujeitos históricos de Itabuna se aprisionaram nas estruturas criadas para sufocá-los, procurando fazer de sua experiência social um modo de vida que indicava medição de força com os segmentos antagônicos da cidade.86 A Secretaria de Higiene Pública e a Guarda Municipal possuíam um papel importante na consolidação de padrões e de costumes pretendidos pela classe dirigente. A Higiene Pública passou a ter um papel mais visível com as medidas sanitárias e a regulamentação do Código Sanitário a partir de 1930. A Guarda Municipal era uma instituição inédita na cidade, criada para atuar como polícia de costumes e assegurar a ordem urbana nos logradouros públicos em 1933. A criação destas instituições evidencia a mudança na política urbana a partir da Gestão de Claudionor Alpoim, cujo impacto o foi o aumento das divergências entre trabalhadores pobres e as municipalidades. Esses conflitos se traduziam na tentativa da THOMPSON, E. P. A miséria da teoria ou um planetário de erros: uma crítica ao pensamento de Althusser. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1981, p.182. Para Thompson, a experiência humana compreende homens e mulheres enquanto sujeitos que vivenciam as relações produtivas a partir de interesses e de necessidades antagônicas, transformando sua consciência e sua cultura conforme sua prática social, e sem determinismos científicos mecânicos. 86 48 imprensa em estigmatizar os comportamentos dos populares por meio de extensas matérias que chamavam atenção das autoridades sanitárias, na fiscalização das atividades profissionais ligadas aos despossuídos e na repressão à condutas proibidas pelos poderes públicos. A partir daí, quero entender as táticas que os trabalhadores encontraram para negociar e resistir à ordem estabelecida pelos segmentos políticos, no confronto do “uso popular” do espaço urbano com os ideais urbanos hegemônicos.87 Higiene Pública Em junho de 1935, a diretoria de Higiene Municipal publicava uma chamada sobre a Limpeza Pública da cidade no Jornal Oficial, apontando a imperiosidade de preservar o asseio das vias urbanas e contribuir com as boas condições sanitárias de Itabuna. Sob a direção do médico Antonio Cordeiro de Miranda, tradicional figura política do PSD e integrante de famílias latifundiárias que viviam na região, esse departamento das municipalidades tinha como função regulamentar os padrões higiênicos e sanitários dos estabelecimentos comerciais e residenciais da cidade. Na nota de utilidade pública, Miranda procurava convencer os munícipes de que o governo local demonstrava sua intenção em fazer de Itabuna um centro de asseio que a engrandecesse diante de seus observadores por meio da reorganização dos serviços de limpeza urbana.88 No mesmo texto que procurava demonstrar os feitos da Diretoria de Higiene Pública, Miranda chamava atenção para a necessidade de os habitantes colaborarem com as medidas de higienização do espaço urbano promovido pelo poder público. Para isso, fazia uma relação metafórica entre a casa e a cidade, colocando a primeira como espaço do indivíduo e a segunda enquanto coletivo, sendo que a união dos dois âmbitos formaria a sociedade, o que, por conseguinte, deveria levar os indivíduos à conservação da limpeza da “casa comum” (cidade) tanto quanto se cuida da casa individual. As medidas tomadas pelo departamento de higiene de Itabuna possuíam destinatários bem claros e objetivos. Observa-se isso quando na mesma nota são evidenciados os personagens que poderiam colaborar com a limpeza pública. Pede-se pois, às ex.ª donas de casa que não consintam suas crianças e criados atirarem lixo e cascas de frutas nas ruas; aos srs. comerciantes a fineza de só abrirem os caixões de suas mercadorias no interior de seu estabelecimento; a CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1 Artes de fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. Petrópolis: Vozes, 1994. Certeau sugere que os grupos populares, ao serem pressionados pelos padrões dos setores hegemônicos, criam novas estratégias para burlar os parâmetros da ordem estabelecida, realizando um uso popular do espaço social que mina as normas dominantes, tornando-se “cantos de resistência”, de onde se vêem as lutas e desigualdades sociais ocultadas pelas elites. p.79. 88 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 15 de Junho de 1935, Ano V, n.º 221. 87 49 certos proprietários de animais para não lhes darem ração nas ruas; aos domésticos evitarem encher demasiado os depósitos de lixo dos domicílios, os quais derramam o conteúdo quando postos nas portas para coletas do caminhão de asseio; aos “chaffeurs”, carroceiros e aguadeiros não atirarem nas ruas cascas de frutas, lixo e bagaço de cana; enfim, a todos os habitantes de não jogarem papéis servidos nas vias públicas.89 Na tarefa de promover o asseio da cidade, a diretoria de Higiene Pública parecia ter identificado os sujeitos que deveriam ser observados pela fiscalização. Entre aguadeiros, carroceiros, feirantes e donas de casas, são os trabalhadores de Itabuna que são convidados a se alinhar aos interesses da municipalidade. Na nota, apontavam-se especialmente os elementos que contrariavam os padrões de higiene estipulados pelo principal órgão de vigilância sanitária, sendo todos associados às práticas dos setores populares, tais como não jogar restos de frutas ao chão ou alimentar animais em vias urbanas. As providências tomadas pelos departamentos do poder público parecem nos trazer os antagonismos entre as forças sociais que habitavam na cidade. A diretoria de Higiene Pública atuava também nos estabelecimentos comerciais e residenciais de freqüência popular e nas áreas de feiras livres. Em relação ao primeiro, os diretores desta repartição se baseavam no Código Sanitário do estado da Bahia para promover a fiscalização de imóveis recém construídos. Em novembro de 1941, quando a principal autoridade sanitária da cidade era o médico José Pinto da Silva, o poder público determinava algumas diretrizes a serem seguidas nas construções de prédios. Entre as proibições que se encontravam publicadas no Jornal Oficial, José da Silva informava que não seriam tolerados dormitórios cujos forros ou divisões fossem de pano, papel, zinco ou madeira, ou que possibilitassem a procriação ou a passagem de insetos proliferadores de doenças. Embora não fizesse referências à localização destes imóveis e às pessoas que lá moravam, parece evidente que se tratava de normas que atingiriam habitações urbanas de origem popular.90 Há indícios que nos levam a considerar que parte dos prédios que se construíam em Itabuna e que eram fiscalizados pelo Departamento de Higiene foi erguida para abrigar a população de baixa renda por intermédio de locação destes imóveis. A convergência de trabalhadores para a cidade por conta da economia cacaueira nos leva a acreditar que estes indivíduos terminavam por alugar os imóveis residenciais. Os proprietários destes prédios nem sempre ofereciam condições sanitárias adequadas para seus inquilinos. Outra possibilidade é que algumas destas casas fossem construídas por pessoas de baixa renda, as quais não se preocupavam com as normas estipuladas pelos poderes hegemônicos. Esses 89 90 Idem, Idem. p.2. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 18 de novembro de 1941, Ano VIII, n.º 545, p. 2. 50 fatores terminavam por levar a Higiene Pública a emitir avisos à comunidade sobre as determinações da Prefeitura. Em 1938, o médico Cirne Dantas, que ocupava provisoriamente a chefia da diretoria de vigilância sanitária, publicou aviso sobre a existência de pessoas que “têm-se alojado, ou consentido que inquilinos o façam, em prédios que se acham em condições acima referidas [prédio vagos ou recém construídos ou construídos], desrespeitando a lei.” Dantas ainda enfatizaria que caso os proprietários ou inquilinos insistissem em permanecer naqueles imóveis e “se as condições do prédio forem anti-higiênicas ou aquele que for evidentemente inadaptável aos fins que a ocupação tiver em vistas, será, além da multa, declarado interdito e considerado desabitado para todos os efeitos.”91 O termo “alojado”, utilizado por Dantas ao se referir aos prédios irregulares que abrigavam trabalhadores, segundo as diretrizes daquele órgão do município, parece dar o tom da insatisfação do departamento de Higiene Pública com as moradias populares. Embora as ameaças fossem ostensivas em seu aviso à população local, as pessoas que habitavam esses imóveis não se mostravam dispostas a sair imediatamente dos seus domicílios. Talvez isso fosse uma resposta às possíveis punições sugeridas na nota de utilidade pública. Em uma outra oportunidade, sob a justificativa de que era necessário construir o Mercado Público, a prefeitura resolveu desapropriar um conjunto de “casebres” que se localizavam entre a Praça João Pessoa (atual José Bastos) e a Avenida Marginal (atual Avenida Amélia Amado), local próximo do perímetro central. Naquela oportunidade, os casebres de José Quintino de Santana, Homero Marinho, Paulina Maria de Jesus, Anacleto Vieira de Souza, por conta de sua baixa valorização e da utilidade daquele espaço, seriam desapropriados, de acordo com a administração pública.92 As desapropriações de terrenos e de imóveis por parte da Prefeitura de Itabuna se pautavam em preceitos higiênicos. Foi desta forma, por exemplo, que o Conselho Municipal aprovou lei de utilidade pública, em 1936. De acordo com esta medida, o poder executivo ficava autorizado a desapropriar “os prédios, terrenos, ou benfeitorias que perturbassem os preceitos de higiene, o alargamento e a continuação das vias públicas”. 93 Possivelmente seguindo essa lei autorizada pelo Conselho Municipal, dez “casebres” situados na região da Rua da Linha foram desapropriados pela administração pública. No entanto, ao contrário do que imaginavam os membros das municipalidades, um dos moradores reagiu às medidas do APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, terça-feira, 31 de janeiro de 1938, Ano VII, n.º 555, p. 2. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 18 de outubro de 1941, Ano VIII, n.º 541, p.4 93 APMIJD. Livro de Leis e Projetos do Conselho Municipal. Projeto de Lei n.º 28, Autoriza o poder Executivo a fazer desapropriações por utilidade e necessidade pública. Itabuna, 7 de novembro de 1936, p.53B. 91 92 51 governo. Tratava-se de Antonio Nazareno Sena, cuja disputa com a Prefeitura foi parar nas páginas do jornal de oposição O Intransigente. Sob o título de “Sempre as Benemerências”, o periódico local trazia aos seus leitores uma matéria sobre a desapropriação do imóvel do senhor Sena. De acordo com a redação da notícia, o proprietário do imóvel foi surpreendido com a tomada de seus bens e, posteriormente, com o baixo valor da indenização a ser paga pela Prefeitura. Além disso, Antonio Sena argumentava que ao lado de sua residência, possuía uma quitanda, de onde tirava seu sustento, sendo, por isso, um prejuízo significativo para ele a desapropriação do local, considerando ainda a proposta de restituição financeira muito aquém dos danos provocados pela medida da Prefeitura. 94 Em resposta às denúncias feitas por Sena, o engenheiro da Prefeitura, Antonio Nunes de Aquino, informava que a área desapropriada possuía uma série de irregularidades, o que justificava o valor oferecido para indenizar o proprietário. Em face das falhas da área, o representante do poder municipal declarou que o reclamante possuía em seu quintal uma plantação de diversas frutas na faixa que era reservada à Estação de Ferro Ilhéus-Conquista, o que tornava irregular o imóvel. Mas o que fazia com que a proposta da Prefeitura não fosse de dois contos de réis (2:000$000) era a existência de esgoto a céu aberto, despejado numa área alagadiça próximo a uma cisterna de captação de água, diante da qual a edificação seria um foco de proliferação de doenças. Ao final de suas explicações, Aquino informou que foi Sena quem teria procurado encaminhar a solução dos problemas pelas vias judiciais, levando o prefeito a utilizar dispositivo legal da desapropriação por utilidade pública. 95 Apesar da nova resposta de Sena contra as explicações do poder municipal, não foi possível saber se a solução do caso teve final favorável ao reclamante ou não. Independente disso, as disputas entre a Prefeitura e o proprietário do imóvel são evidências de que a política urbana dirigida pela Diretoria de Higiene Pública provocou tensas relações entre os segmentos políticos e os trabalhadores. O próprio Sena, ao responder no número posterior à nota de Aquino, argumentava que não se tratava de um caso isolado, aproveitando para informar nomes de outras pessoas que haviam se posicionado contra as ações das municipalidades.96 A ordem estabelecida pela Higiene Pública buscava adequar a cidade aos padrões sanitários estipulados pelos segmentos hegemônicos, sobrepondo, em muitos casos, os interesses dos trabalhadores. Mas, como ficou evidente na situação narrada e em outros CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 23 de novembro de 1935, Ano X, n.º 12, p.1. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 7 de dezembro de 1935, Ano X, n.º 14, p.1. 96 Idem, Ibidem, p.2. 94 95 52 casos que veremos à frente, os populares da cidade nem sempre se mostraram dispostos a aceitar as normas da Higiene Pública. A preocupação com relação à Higiene Pública de Itabuna era enfatizada, sobretudo, pelas políticas urbanas adotadas pelas gestões políticas das décadas de 1930 e 1940. A criação do plano de urbanização, pelos engenheiros Arquimedes Siqueira Gonçalves e Manoel Da Rin, em 1927, e de Saturnino de Brito Filho, em 1935, traziam em seu bojo a necessidade do saneamento da cidade. Em seus projetos, os urbanistas se propunham a modelar a zona urbana eliminando problemas sanitários que pudessem “impedir” o seu crescimento ordenado. Essas idéias foram bastante propagadas pelo poder municipal, que passou então a considerar a higiene um ponto central para Itabuna. Talvez por isso, já em 1932, dias após a posse do prefeito Claudionor Alpoim, o Jornal Oficial trouxesse como um dos objetivos do novo chefe do executivo a correção de trechos urbanos e a adoção de medidas de higienização. Naquela oportunidade, a matéria do órgão do governo dizia que Alpoim havia voltado “suas vistas para o saneamento da cidade” e que, por conseguinte, iria ratificando os excessivos defeitos [urbanos], proporcionando melhor gosto estético, ampliando a zona própria a edificação de caráter residencial, para a qual já se cogita de estabelecer as normas dotadas no moderno urbanismo, desaparecendo, pois o costume prejudicial de se constituir meia parede.97 O trecho final das propostas da Prefeitura para os anos seguintes nos oferece uma indicação do modo pelo qual seriam tratadas a construção e a existência de habitações populares. Após informar que realizaria a urbanização de ruas e o aterramento de áreas alagadiças que se localizavam próximo ao perímetro central, o poder público dizia que a pretensão era seguir as referências do urbanismo e melhorar a estética da cidade. Uma das maneiras de se realizar essas reformas urbanas, segundo a matéria, era impedir o costume de se fazer casas com meia parede.98 Construir imóveis desta maneira possivelmente era uma prática comum entre os trabalhadores pobres urbanos de Itabuna, mas isto o poder público parecia disposto a eliminar do cenário urbano em prol de imóveis novos e belos, segundo seus padrões. Embora a Prefeitura evidenciasse sua preocupação com o cenário urbano de Itabuna, outras fontes sugerem que eram os trabalhadores que mereciam a atenção fiscalizadora da higiene pública. Muitas vezes, as práticas convencionais dos populares eram combatidas pelos segmentos hegemônicos, através da vigilância dos jornais e dos membros da comissão 97 98 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 8 de outubro de 1932, Ano II, n.º 76, p.1-2. Idem, Ibidem. 53 sanitária. Para atingir este objetivo, o Conselho Municipal não se cansava de publicar leis que instrumentassem as ações fiscalizadoras do departamento de higiene. Foi assim que em janeiro de 1936, os conselheiros do legislativo aprovaram um projeto de lei para a regulamentação da distribuição de água pelos aguadeiros. O dispositivo legal apontava que estes últimos deveriam fazer um cadastro profissional junto à direção de Higiene Pública, onde tomariam ciência das determinações sanitárias a serem seguidas. A nova norma ainda determinava que “as cacimbas que distribuam ou vendam água ficarão sujeitas a fiscalização [...] de acordo com as exigências e os preceitos indispensáveis à Saúde Pública, sendo as infrações puníveis com multas de 10$000 [dez mil réis] a 20$000 [vinte mil réis]”.99 Apesar da publicação desta lei, os aguadeiros parecem que não se submeteram facilmente a ela. Isso pode ser observado nas inúmeras punições sofridas por alguns aguadeiros publicadas também no Jornal Oficial. Somente no mês de setembro de 1936, cerca de cinco aguadeiros sofreram punições por não obedecerem às determinações do departamento de Higiene Municipal. Chamamos atenção para José Ribeiro dos Santos e José Oliveira Souza, que além de pagar multa de vinte mil réis, tiveram seus instrumentos de trabalho tomados pela guarda.100 Além disso, mesmo com a implantação do sistema de distribuição de água, os aguadeiros permaneceram atuando na cidade até meados das décadas de 1960, mesmo com as críticas que os periódicos e os poderes públicos registravam contra eles. Outro grupo de trabalhadores freqüentemente fiscalizado pelo departamento de Higiene Municipal eram os feirantes e os ambulantes de Itabuna. Com o apoio da imprensa local, que organizava os discursos higienistas dos segmentos hegemônicos, o setor de vigilância sanitária dos poderes públicos procurava coibir as práticas consideradas insalubres no espaço urbano. Com esse intuito, a fiscalização terminava por entrar em choque com os interesses da população pobre. Os agentes da saúde pública costumavam se respaldar em dispositivos jurídicos que eram criados pelos executivo e legislativo itabunenses. Na medida em que a cidade crescia e que as práticas agrárias se tornavam dissonantes dos padrões de comportamento estabelecidos por uma elite urbana, as municipalidades buscavam regulamentar seus modelos de conduta por meio da criação de lei de urbanidade, que se propunha neutra, mas que comumente não era imparcial. Assim, reservava-se um lugar de APMIJD. Livro de Leis e Projetos do Conselho Municipal. Projeto de Lei n.º 8, Regula o abastecimento, distribuição e preço da água a cidade de Itabuna . Itabuna, 18 de agosto de 1936, p.3B. 100 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 31 de outubro de 1936, Ano V, n.º 292. p.2. 99 54 “ilegalidade” a todos aqueles que se prestassem a manter suas práticas fora do campo jurídico produzido pela ordem estabelecida.101 Em janeiro de 1936, a prefeitura publicava no Jornal Oficial uma série de leis que versavam sobre o cadastramento de profissionais ambulantes, o uso que faziam dos espaços urbanos e a regulamentação do funcionamento da feira livre de Itabuna. Ademais, ainda dispunha sobre a atuação da fiscalização que seria responsável pela normatização dos pesos e das medidas e pela verificação das condições de higiene dos barraqueiros. Contudo, o que parece melhor definir o caráter deste novo aparato jurídico é o artigo 24, pelo qual ficava a prefeitura “autorizada a fazer a mudança das feiras quando achar inconvenientes os dias ou lugares habituais, enquanto não tenha na sede do município, ou dos distritos, o Mercado Público.”102 A partir dessa medida, a municipalidade se reafirmava a legitimidade de seu poder para discernir acerca do funcionamento da feira local sempre quando esta se tornasse incômoda no seu entendimento. Outrossim, a mesma lei ainda definia que o preço dos produtos de subsistência a serem vendidos em Itabuna seria regulamentado e fiscalizado pelos agentes municipais. Perceber quais eram os incômodos das feiras para a Prefeitura não é tarefa muito difícil. Os jornais sempre traziam informações de condutas que deveriam ser fiscalizadas pela diretoria de Higiene Pública. As críticas partiam de colunas jornalísticas produzidas por intelectuais do poder municipal, como é o caso de Antonio Cordeiro de Miranda, que além de chefe do departamento, era diretor do A Época. As informações sobre os sujeitos que faziam parte das feiras eram geradas por indivíduos dos setores dominantes, os quais estranhavam as práticas populares no comércio “informal”. Um sinal desse estranhamento é a denúncia realizada na primeira página daquele jornal, que reclamava de pessoas que colocavam “nos passeios, caixotes vazios, tambores de gasolina e óleo, e até latas de ferro trazendo dificuldade de trânsito nas ruas mais movimentadas da cidade. É um abuso que deve realmente ser verificado...”.103 A ocupação pelos ambulantes das calçadas das principais vias urbanas causava irritação aos segmentos hegemônicos, sob a justificativa de obstrução da passagem dos pedestres. THOMPSON, E.P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. No capítulo “Costumes, Lei e Direito Comum”, o historiador britânico parte da relação entre os costumes populares e o corpo jurídico da Inglaterra do século XVIII para entender que “empregava-se a lei como instrumento de capitalismo agrário, favorecendo as “razões” agrícolas. Quando se pretexta que a lei era imparcial, derivando de sua própria lógica auto-extrapoladora, temos de replicar que tal pretexto era uma fraude de classe.” p.142. 102 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 22 de fevereiro de 1936, Ano V, n.º 256. p.3. 103 CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 24 de abril de 1937, Ano XV, n.º 844. p.1. 101 55 Em uma cidade que começava a reformular suas primeiras ruas, nivelando-as e retificando-as de acordo com o plano urbanizador, os indivíduos que contrariavam as normas de urbanidade criadas pela Prefeitura sempre eram notados por terem uma conduta desviante, aos olhos da fiscalização pública. As reclamações giravam em torno da sujeira produzida por esses trabalhadores que comercializavam produtos de subsistência ou doces. Era comum, também, acontecer reclamações contra os vendedores de peixe que utilizavam as vias centrais de Itabuna. Atuando em pequenas bancas ou até mesmo em pequenos comércios, os jornais indicam que as autoridades sanitárias viviam no encalço destes trabalhadores. Em fevereiro de 1937, o periódico A Época se queixava da existência de uma peixaria por conta do mau cheiro que exalava do estabelecimento. A notícia informava que tinha recebido uma série de “reclamações, de pessoas que vão ali comprar peixe, e que saem repugnadas, não suportando o mau cheiro que dali se desprende. Até a vizinhança sofre com o “perfume” desagradável do peixe ali vendido”. 104 No final do texto, a nota ainda cobrava a atenção da Higiene Pública para o livre funcionamento destes comércios no centro da cidade. Como disse, Cordeiro de Miranda era diretor da Higiene Pública em Itabuna e gerente do A Época. É possível que Cordeiro de Miranda publicasse estas reclamações para serem utilizadas como justificativa para a ação da vigilância sanitária junto aos trabalhadores. Apesar das queixas da imprensa local, os vendedores de peixe possivelmente não se renderam às ameaças de intervenção das autoridades sanitárias. Isso porque após duas edições depois da primeira reclamação publicada, encontra-se uma nova queixa contra o mercado de peixe em Itabuna, motivada pelos mesmos estabelecimentos citados na denúncia anterior. Dessa vez as acusações eram mais pesadas, pois iam além do mau cheiro. O fato é que peixe deteriorado está sendo vendido, num atentado à bolsa e à saúde da população. É preciso que os encarregados do mercado tenham mais cuidado no produto exposto à venda, para não prejudicar a iniciativa [...] caso não sejam aceitas espontaneamente nossas sugestões. Talvez fosse de bom alvitre a Higiene Municipal tomar a si a fiscalização do mercado.105 O objetivo das denúncias publicadas na imprensa local era chamar atenção dos peixeiros e justificar a ação das autoridades sanitárias de Itabuna. Para tanto, ressaltavam os aspectos populares que contrariavam os padrões de comportamento urbano provenientes dos segmentos hegemônicos. Apesar das queixas contra as atividades dos peixeiros, o registro preconceituoso dos modos de vida dos populares sugere que era muito difícil para os setores 104 105 CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 6 de fevereiro de 1937, Ano XV, n.º 814. p.1. CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 6 de fevereiro de 1937, Ano XV, n.º 814. p.1. 56 hegemônicos manterem a ordem estabelecida por eles mesmos. A criação dos dispositivos jurídicos parece não ter sido suficiente para submeter as atividades dos trabalhadores às regras dos segmentos políticos. Talvez por isso tenha surgido a proposta do periódico dirigido pelo chefe do departamento de Higiene de que o poder público interviesse no comércio público de Itabuna. Outro exemplo das dificuldades da Higiene Pública em operar nas feiras livres foi a confusão envolvendo Câmara de Vereadores, Prefeitura e os vendedores de farinha. O evento foi noticiado pelos jornais A Época e O Intransigente como o “Caso da Farinha”. De autoria do vereador Antonio Tourinho, o Conselho Municipal sedimentou a fiscalização das autoridades sanitárias sobre a limpeza e a normatização dos pesos e das medidas nas feiras de Itabuna. Segundo as justificativas do projeto de lei, a intenção dos vereadores era proteger o “povo” dos maus comerciantes que se aproveitavam da “ingenuidade” dos consumidores e alteravam as medições de suas balanças para aumentar o lucro.106 De acordo com a nova regra, a aferição dos instrumentos seria realizada nos meses de janeiro e de julho, sempre com a vigilância das autoridades sanitárias. Acontece que o que havia sido aprovado com a justificativa de atender às demandas do “povo”, acabou por contrariar os interesses dos trabalhadores que vendiam na feira da cidade. Na edição de 2 de fevereiro de 1937, o A Época cobrava do Conselho de Vereadores uma reavaliação da lei municipal. Na matéria, o veículo de imprensa itabunense informava que a aplicação da lei havia sido adiada por quatro vezes pelo poder público, sendo avisado aos vendedores, com uma semana de antecedência, que esta entraria em vigor. Apesar disso, as novas regras da Prefeitura para os vendedores da feira parece que não agradaram aos trabalhadores. Justificando a necessidade de se estudar novamente o dispositivo jurídico, o periódico afirmava que Até certo ponto achamos a lei de difícil execução numa feira livre, exposta às intempéries e em rampa, atrapalhando portanto a pesagem... No entanto, a Câmara Municipal, votando a aludida lei, só teve em mira salvaguardar os interesses do povo, porque não é de crer que nem ela nem o autor do projeto quisessem prejudicar a quem quer que fosse. [...] Finalmente deu-se aquela “revolução”, que terminou em vivas ao prefeito municipal, tendo sua senhoria, de acordo com a vontade do povo, prorrogado por mais um mês a execução da lei, até que a Câmara Municipal se pronuncie a respeito. APMIJD. Livro de leis e projetos do Conselho Municipal. Projeto de Lei n.º 8, Regula a aferição e revisão de pesos, balanças e medidas no município. Itabuna, 5 de setembro de 1936, p.6. Esta lei saiu publicada também no Jornal oficial do Município de Itabuna, 26 de setembro de 1936, Ano V, n.º 237, p.2. 106 57 Os vereadores portanto, devem estudar o assunto, pesando as vantagens e desvantagens da referida lei, a fim de que procurando servir ao povo, não seja alvo da odiosidade do mesmo povo ou de explorações de interessados... Talvez seja mais prático exigir a balança quando tivermos construído o nosso mercado que é uma das grandes necessidades locais e assunto que administração pública há tempos vem cogitando. 107 As medidas imaginadas pelas municipalidades não agradaram aos vendedores e feirantes. A lei que teve sua aplicação adiada por quatro vezes, terminou por não sair do papel por conta da ação popular movida contra ela. Os trabalhadores souberam identificar que as novas regras não estavam a serviço do “povo”, como afirmavam os segmentos políticos, mas na pretensão das autoridades públicas de manter sob controle e vigilância seu trabalho. A “revolução” a qual se referiu o jornal certamente foi a reação dos vendedores contra os representantes do executivo e do legislativo. Diante da pressão popular, os segmentos hegemônicos não tiveram outra saída senão recuar em seus propósitos de regulamentar as atividades da feira livre. O poder se viu em perigo quando abusou dos direitos dos pobres e provocou a fúria do populacho. No discurso dominante, os novos referenciais de urbanidade que se queriam construir para Itabuna serviam de baliza para as ações das autoridades públicas, construindo uma força jurídica que procurava limitar a intervenção das pessoas simples e pobres da cidade. Certeau indica que ao passo que a linguagem do poder se “urbaniza”, a cidade também “se vê entregue a movimentos contraditórios que se compensam e se combinam fora do poder panóptico”.108 Para enfrentar os discursos da higiene, os grupos populares se fazem astutos o suficiente para constituir outra força social, sem tomadas apreensíveis ou sem transparência racional, mas que tornam impossível de gerir pelos poderes estabelecidos. E isso foi o que eventualmente aconteceu com o espaço da feira na década de 1930 e de 1940, um lugar da não-urbanização, que precisaria de uma racionalidade administrativa para ser vigiado e controlado pelos agentes dos poderes instituídos. Na tentativa de preservar suas novas regras, as autoridades municipais enfrentaram também conflitos localizados e cotidianos, que não chegaram a chamar à atenção da imprensa, mas que acabaram por ser registrados no livro de ocorrências da fiscalização pública e reproduzidos pelo Jornal Oficial. São vários os casos em que feirantes se voltavam contra os agentes da vigilância sanitária, inclusive antes da publicação da aludida lei. Em 14 de maio de CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 2 de fevereiro de 1937, Ano XV, n.º 812, p.1. CERTEAU, Michel. Op. cit. p.174. No capítulo III, intitulado Fazer com: usos e táticas, o autor considera que sob os “discursos que se ideologizam, proliferam as astúcias e as combinações de poderes sem identidade, legível, sem tomadas apreensíveis, sem transparência racional – impossível de gerir.” 107 108 58 1936, por exemplo, o senhor Augusto José de Matos, vendedor, foi multado em 110$000 (cento e dez mil réis) pelo guarda José Sales Filho, por estar usando uma “balança ordinária que não funcionava” e, em seguida, ter desacatado o agente da inspeção pública. 109 Matos não foi o único a ter essa reação. Antonio Venes e João Evangelista, ambos vendedores de cereais, foram multados em 20$000 (vinte mil réis) cada um por terem desrespeitado os trabalhos dos funcionários públicos responsáveis pela fiscalização da feira. Em maio de 1938, o inspetor geral João Moraes doava à Cadeia pública cerca de quinze quilos de carne que haviam sido apreendidos de feirantes açougueiros por conta das péssimas condições sanitárias e da fraude na pesagem dos produtos. 110 Esses são apenas alguns casos de conflito entre os trabalhadores e os fiscalizadores da Prefeitura. Não é por acaso que uma das intenções dos segmentos políticos de Itabuna foi a construção do Mercado Municipal. Tanto a feira como os feirantes eram vistos pelos poderes estabelecidos enquanto espaços e pessoas que fugiam da ordem estabelecida. Na imprensa, a área da feira era considerada uma zona onde a lei não conseguia ser aplicada e imperava a desonestidade e falta de higiene, como observamos na matéria do A Época que versava sobre o “caso da Farinha”. Em 1942, o mesmo jornal chamava a atenção do Posto de Higiene para o fato dos açougueiros substituírem o uso do machadinho pelo facão, que segundo a nota, provocava o aparecimento de doenças na população. Naquela oportunidade, o semanário pedia ao chefe da Saúde Pública para coibisse “tamanho abuso, embora S.S. já tenha publicado um edital no ano passado de referência ao assunto.”111 No ano de 1935, a Prefeitura de Itabuna cogitava construir um mercado público, chegando inclusive a desapropriar um espaço próximo à estação de trem e à Praça João Pessoa, como afirmei anteriormente. Além disso, no projeto de saneamento e expansão urbana apresentado ao Governo do estado da Bahia que pretendia efetivar empréstimo junto à Caixa Econômica Federal, uma parte da verba seria destinada à construção do mercado, obra considerada de “imediata necessidade para a vida, higiene e foros de civilizada nesta cidade”. Mas, na oportunidade, a planta do mercado não chegou sequer a ser anexada pelo gabinete do prefeito, visto que a quantia tomada por empréstimo seria destinada principalmente à implantação do sistema de água e esgoto.112 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 16 de maio de 1936, Ano V, n.º 268, p.12. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 5 de dezembro de 1936, Ano V, n.º 268, p.15. e APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 7 de maio de 1938, Ano VII, n.º 367, p.18. 111 CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 13 de junho de 1942, Ano XX, s/n.º, p.4 112 APEBa. Ofício enviado ao Exmº Sr. Capitão Juracy Magalhães pela Prefeitura do Município de Itabuna. 18 de junho de 1935. 109 110 59 A prefeitura só voltou a cogitar da construção de um mercado público na década de 1940. Em 1943, O Intransigente cobrava a necessidade de criação daquele espaço, lembrando que o município “rico e progressista como o nosso, não tenha em sua sede um Mercado Público, dando ensejo a que, semanalmente se realizem feiras no centro da cidade, oferecendo a mais triste das impressões.”113. Mesmo diante das pressões da imprensa e das constantes denúncias feitas contra a feira e seus usuários, a administração pública não conseguiu transformar em realidade a proposta de se construir o mercado municipal. No entanto, promoveu o deslocamento da feira do seu antigo local, a Praça Arlino Leone (atual Manoel Leal) e Domingos Adami desde os anos de 1920, para as imediações da Praça João Pessoa (atual José Bastos) e da estação de trem. Houve também uma tentativa por parte da elite, de criar uma alternativa para a feira de Itabuna, através da criação da Feira Chic. Em 5 de junho de 1943, a Prefeitura de Itabuna chamava a população local para comparecer à Feira Chic, localizada na Praça João Pessoa, que contaria com a presença de parques infantis e outros produtos. Os preparativos estavam sendo coordenados por pessoas que integravam os segmentos políticos hegemônicos da cidade, entre elas, Celso Fontes, Aziz Maron e Nicodemos Barreto, que pretendiam com a festa, angariar fundos para a construção da nova igreja matriz de Itabuna. Sua inauguração ainda contaria com a presença do prefeito Francisco Ferreira e o periódico prometia que “tudo decorrerá na maior ordem e alegria possíveis.”114 Era uma das primeiras oportunidades de a praça ser utilizada como espaço comercial público. Oficialmente, a Feira Chic terminou em julho de 1943, mas depois que a elite desocupou o lugar, outros ocuparam o logradouro esvaziado. Seis meses após a saída da Feira Chic, a Praça João Pessoa era descrita de outra forma pelo O Intransigente. No lugar havia sido montado o Parque Teatro Vitória que concentrava dezenas de ambulantes nas suas margens, vendedores de doces, salgados, frutas, entre outros produtos de consumo rápido. Mas a principal desconfiança da imprensa e das autoridades sanitárias era com o consumo de roletes de cana115. De acordo com a matéria do citado periódico, inúmeras eram as reclamações de pais e mães que freqüentavam o local, alegando que Em desrespeito flagrante aos preceitos higienísticos, estes vendilhões, mantêm descobertos e expostos ao sol, à chuva e à poeira que é levantada não só pelos veículos que passam por aquele trecho movimentado, os taboleiros de roletes, que logo ficam ressecados e como recurso eles os encharcam com CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 17 de abril de 1943, Ano XVI, n.º 35, p.4. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 5 de junho de 1943, Ano XVI, n.º 40, p.1. 115 Pedaço de cana comercializado em feiras livres e logradouros públicos, muito popular em cidades do Brasil. 113 114 60 água menos limpa para assim emprestar, aos roletes anti-higiênicos, melhor aparência.116 A imprensa local não poupava esforços para demarcar a insalubridade daqueles que utilizavam a praça. Em outro número, o mesmo jornal ainda informava que a situação não havia sido resolvida e que “os indigitados transgressores dos princípios da higiene, de poucos dias para cá, voltaram a fazer “bagaceira”, dando ao visitante que chega, quer pela via férrea, quer pelo transporte rodoviário, um péssimo aspecto de imundície e de desrespeito ao asseio público.”117 Os roletes de que tratam os veículos de comunicação são pedaços de cana-deaçúcar vendidos em pequenas varetas de madeira, muito comuns em eventos e feiras livres nesse período. Após consumirem a cana, as pessoas costumavam descartar o bagaço, que, segundo o jornal, era jogado ao chão. Apesar da implicância com os vendedores de rolete, há sinais de que as críticas relacionadas aos desrespeitos à higiene pública se respaldavam na prática de diversão das camadas populares na praça da Estação, condenadas pelos poderes públicos. Não era apenas o “rolete borrifado” vendido na praça, denunciado por O Intransigente, que seria foco de doenças, que incomodava as autoridades municipais e a imprensa. Aos poucos os jornais iam detalhando os problemas que provavelmente preocupavam de fato a vigilância pública. Agora chamado de “Curral da Praça João Pessoa”, a imprensa pedia a retirada daquele ponto, da sala de visitas de Itabuna, informando que estava Funcionando escandalosamente, às barbas da polícia, a mais desenfreada jogatina, a batota mais vergonhosa, de par com barracas sórdidas onde o álcool era distribuído sem qualquer limite [...] o indecoroso “curral” da praça João Pessoa dá a impressão aos que aqui chegam, logo as portas da cidade, de um chiqueiro ou curral grotesco. 118 A venda de bebidas alcoólicas e a existência de jogo podem ser consideradas os problemas que possivelmente motivavam as críticas por parte dos segmentos hegemônicos de Itabuna. A existência de bebida e de jogos ilegais na praça era utilizada como justificativas para legitimar a ação do poder público e da imprensa no objetivo de acabar com o “curral da Praça João Pessoa”. No entanto, o que parece mais evidente é que os segmentos hegemônicos se incomodavam com as ações e a estabilidade dos trabalhadores em um dos locais mais centrais da cidade. A Praça, tomada como espaço público sob a administração dos poderes municipais, não deveria ser um espaço de agência popular na ótica da imprensa local. Por CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 24 de dezembro de 1943, Ano XVII, n.º 17, p.4. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 30 de dezembro de 1943, Ano XVII, n.º 18, p.4. 118 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 18 de março de 1944, Ano XVII, n.º 29, p.1. 116 117 61 isso, ressaltavam os hábitos da população pobre enquanto aspectos negativos, isto é, hábitos anti-higiênicos. Isso se tornava uma medida para sedimentar ideologicamente à intervenção política daquele espaço contra os populares. Mas, ao contrário do que imaginam os letrados dos periódicos, os trabalhadores pareciam não estar dispostos a se retirar daquela localidade. Em abril de 1944, novamente encontramos uma queixa de O Intransigente. O periódico voltava a cobrar dos poderes públicos uma ação enérgica para acabar com a ocupação daquele espaço. A matéria informava que já havia recebido a solidariedade de “pessoas ilustres” de Itabuna, pessoas que haviam se sensibilizado com a campanha contra a manutenção do “curral” em uma das portas de entrada do município. Para a gazeta local, a Praça João Pessoa deveria estar a espera de “soberbo monumento” em detrimento da permanência daquele “esquisito parque. Sempre é mais digno a praça vazia do que “empalhada.”119 Essa posição do veículo de imprensa sugere que o problema, antes de ser de higiene, era uma questão social, o que oferecia motivo para que os setores dominantes preferissem a construção de um monumento à presença dos populares naquele logradouro. A preocupação dos jornalistas aumentava com a possível ação dos líderes do jogo do bicho para se preservar na “sala de visitas” da cidade, conforme especulava a continuação da nota, dizendo que “Surgem boatos de que interessados em jogatina dão os primeiros passos para a permanência do curral onde está, mas confiamos nos poderes públicos que anularão esta absurda pretensão de tais “beneméritos” de Itabuna.”120 Essa disputa de interesses entre os trabalhadores da Praça João Pessoa e os setores hegemônicos da cidade nos oferecem uma certa medida das tensões socais que se delinearam em Itabuna durante os anos de 1940. É um indicativo de que as forças sociais existentes na cidade buscavam preservar seus interesses, encenando um teatro de combate cujo choque se dava no nível da cultura. Tratava-se de uma divergência de comportamentos e de padrões que se pensava para Itabuna advinda de classes antagônicas da sociedade, em que a noção de Higiene formulada pelo poder público era o instrumento de aferição. Assim, as municipalidades criavam fundamentação para intervir no espaço urbano, criar seus mecanismos de repressão e identificar os grupos e os personagens que fossem tomados como responsáveis pelos focos de insalubridade, relacionados às “classes perigosas”.121 A higiene, enquanto uma ideologia, foi um conjunto de idéias construídas pelos segmentos hegemônicos para atuar com mais intensidade sobre os grupos populares, especialmente nos primeiros anos CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de abril de 1944, Ano XVII, n.º 32, p.1. Idem, Idem. 121 Ver CHALHOUB, Sidney. Cidade febril: Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. pp. 29-55. 119 120 62 da República, cujas características recaíam sobre a higienização das habitações e dos setores subalternos que integravam o espaço urbano. Em outras palavras, entendo a padronização da higiene como um aparato para se pensar a questão social e suas disputas em Itabuna. Se de um lado do cenário os poderes públicos criavam medidas legais para justificar sua ação, do outro as pessoas comuns não se submetiam inteiramente diante às ações administrativas e hegemônicas. O interessante, nestes casos, é perceber até que ponto os trabalhadores desafiaram essa nova lógica urbana que se pensava para Itabuna, criando outros sentidos de urbanidade para eles próprios. De um lugar que inicialmente foi ocupado por uma “Feira Chic”, com o apoio das classes hegemônicas, os populares redimensionaram o uso da Praça João Pessoa, com o objetivo de tornar o lócus de sua atuação e de seu agir histórico. Marcus Carvalho sugere que na defesa de seus interesses, os trabalhadores pobres urbanos escapam da dominação e das imposições do status quo.122 Na tentativa de regulamentar os padrões de higiene locais, os setores administrativos sabiam que precisavam lidar com as expectativas da população, com os costumes em comum que a população trazia consigo a partir das tradições que precederam a implementação dessas novas regras de urbanidade. Refletir de que forma os trabalhadores de Itabuna mexeram com as estruturas do poder político local é muito pertinente para uma região que possui sua historiografia fundada na ação, quase que mitológica, dos coronéis do cacau. Para os integrantes dessa historiografia, toda ação histórica estava entregue à força que os latifundiários da cacauicultura imprimiam sobre a sociedade, o que ofuscava outra potência social, a agência dos trabalhadores pobres que desafiavam o segmento hegemônico da região sul da Bahia. Se a força da classe dominante fosse realmente avassaladora como propunham os historiadores da zona do cacau das décadas de 1980 e 1990, talvez os trabalhadores da Praça João Pessoa não tivessem resistido às investidas da imprensa e do departamento de higiene até o final de 1944. Lá estavam eles novamente ocupando um espaço de escrita da elite local, que ao criticar os hábitos dos populares, terminava por registrar sua agência. Não faríamos campanha pelo desaparecimento do parque instalado à Praça João Pessoa, se o mesmo estivesse funcionando, proporcionando ao público divertimentos. Mas, já que se dá o contrário, somos forçados a conceder à Prefeitura, a fim de que se manifeste a respeito do <<cercado>> em apreço, que sem utilidade alguma, vem ocupando aquela praça, no coração da cidade, que bem poderia ser aproveitada, remodelada e entregue ao público, como mais um recanto de sossego.123 122 Carvalho, Marcus de, “Os Nomes da revolução. Lideranças populares na Insurreição Praieira, Recife, 18481849”. In: Revista brasileira de história, no 45, 2003, p. 209. 123 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 16 de dezembro de 1944, Ano XVIII, n.º15, p.1 63 O cercado, como era denominado o espaço ocupado pelos ambulantes ao redor da Praça, ainda estava lá, afrontando os olhares hegemônicos da imprensa e do poder municipal. Por ser visto como lugar de perigo, do periódico surgia às demandas para que aquele logradouro se tornasse “um recanto de sossego”, isto é, um lugar ocupado pelos interesses da elite local. A permanência daqueles indivíduos foi ainda mais longe. Em 1948, a Câmara de Itabuna, depois de um longo tempo inoperante por conta do Estado Novo, se deparava com a presença dos barraqueiros no mesmo local. Desta vez, já com a vigilância sanitária sob o encargo do estado da Bahia, o vereador A. Rayol dos Santos cobrava daquele setor “providências necessárias, no sentido de serem removidas, imediatamente, as barracas existentes na praça do Futuro Mercado Municipal, por constituírem elas, sob todos os pontos de vista, uma regressão nas conquistas de adiantamento que tem feito jus a cidade de Itabuna.”124 Como se pode ver, a ação do setores públicos de higiene se via limitada pelos outros usos que os trabalhadores urbanos pobres faziam de Itabuna, em um teatro de forças sociais antagônicas de luta constante. Guarda Municipal Em 16 de junho de 1933, durante o período de lançamento das Décimas Urbanas, a Guarda Municipal de Itabuna resolveu anunciar no Jornal Oficial de Itabuna uma medida de organização do trânsito no centro da cidade. Como Inspetor da Guarda Municipal, João Ribeiro de Moraes alertava aos munícipes que De ordem do Sr. Dr. Prefeito deste município, fica expressamente proibido depositar carroças e outros veículos, a noite, nas ruas desta cidade, marcando-se o prazo de 3 dias a contar desta, para retirada de todos sob pena de apreensão e multa ao proprietário, de acordo com o Código de Posturas em vigor. 125 Tratava-se de mais uma advertência emitida pelos poderes públicos, por meio de um dos seus instrumentos de controle – a Guarda Municipal. No entanto, este breve aviso publicado discretamente na imprensa oficial é um sinal dos propósitos e dos meios utilizados para tentar criar um padrão de comportamento e de organização na cidade no ano de 1933. A Guarda Municipal foi inaugurada para se tornar um dos principais elementos dentro do sistema de fiscalização implantado em Itabuna. A principal referência desta polícia de APMIJD. Livro de atas da Câmara Municipal de Itabuna 1948. Ata da vigésima sexta reunião ordinária da Câmara Municipal de Itabuna, 9 de julho de 1948, s/p. Documento também publicado no Jornal Oficial do Município de Itabuna, 10 de julho de 1948, Ano XVI, n.º87, p.3. 125 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 16 de junho de 1933, Ano II,nº 112, p.6. 124 64 costumes seria o Código de Posturas publicado e apresentado aos habitantes no mesmo ano de 1933. São esses dois elementos, que constituíram parte da política urbana adotada para os itabunenses, que poderão nos oferecer a medida com que os trabalhadores se relacionavam com as ações da ordem dominante estabelecida. Em 2 de abril de 1933, em inauguração solene que reunia as tradicionais figuras políticas, além da presença de estudantes e de associações do município, foi apresentada a Guarda Municipal de Itabuna. Acerca dos motivos que levaram à criação desta instituição, Alpoim justificava a intenção de dotar a cidade com medidas de segurança que ratificariam o estado de paz da sociedade itabunense. O Sr. Dr. Claudionor Alpoim, Prefeito Municipal, disse dos motivos que o levaram à criação daquela Guarda, em que todos terão de ver mais um fator de segurança, ordem e engrandecimento do município. Esclareceu que esse melhoramento foi organizado, sem maiores ônus para os cofres públicos e que da ação da profícua Guarda é de se esperar grandes resultados, não só no que concerne a ordem pública e respeito à moral, como na observância das posturas municipais e, finalmente, também na arrecadação das rendas.126 A Guarda Municipal parecia ser uma instituição há muito desejada pelo poder político. Encaixando-se como um dos melhoramentos urbanos realizados pela administração pública, as atribuições dos soldados seriam, de uma maneira geral, em manter a segurança e a ordem com vistas ao desenvolvimento da cidade. Do ponto de vista filosófico, reforçava-se a crença positivista de que somente com o estabelecimento da “ordem” seria possível alcançar o desenvolvimento e o “progresso”. Outra função da nova segurança municipal seria a de preservar a moralidade no seio da sociedade itabunense, atuando de forma a policiar os costumes de origem popular. Estão claro que essas condições de ordem e os aspectos morais impostos para a sociedade eram criados pelos segmentos hegemônicos e dispostos aos trabalhadores, ainda que de forma pouco democrática. O instrumento que sintetizaria todos os itens citados acima deveria ser o Código de Posturas de Itabuna, o que daria o peso da medida para julgar o comportamento e as ações dos habitantes. A estrutura da Guarda Municipal de Itabuna foi montada a partir de um inspetor geral, responsável maior pela atuação dos guardas na cidade; quatro guardas de primeira classe; e vinte guardas de segunda classe, que foram nomeados através de concurso pela prefeitura. Sua sede, situada à Rua 23 de Novembro, era considerada pequena, mas suficiente para atender à demanda local, como informava o órgão noticioso do governo. Segundo informações do 126 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 8 de abril de 1933, Ano II, n.º 102, p.16. 65 governo, o policiamento e a fiscalização eram distribuídos por seis postos, cobertos por duas turmas de guardas, que se revesam, trabalhando seis horas por dia. 127 Em nota reproduzida do jornal ilheense Diário da Tarde, o Jornal Oficial comparava a nova instituição às das capitais do país, que tinha por objetivo “zelar pelo respeito às leis municipais e auxiliar a ação da polícia na manutenção da ordem, impedindo a prática de atos que possam ferir o progresso e a segurança.”128 Isso sugere que, em última instância, para aqueles que ferissem “o progresso e a segurança”, isto é, não concordassem com a política urbana adotada pelas municipalidades e apresentassem maior resistência, haveria sempre o recurso da contenção mais efetiva da Guarda Municipal. As condições para se tornar um guarda municipal eram bastante rígidas. Consultando o Regimento Interno desta instituição, observa-se que no item relacionado aos Deveres e Direitos dos membros da corporação é chamada atenção para o fato de os pretendentes às vagas precisarem “primar pela sua disciplina irrepreensível, extrema dedicação ao serviço, a urbanidade, zelo e solicitude.”129 Para ser mais específico, uma das premissas defendidas no regimento dizia respeito à proibição da entrada dos soldados em “cabarets” e casa de jogos (a menos que estivessem a serviço), da prática de agiotagem ou venda de rifas entre os membros da corporação, ou ser remunerado pelos serviços prestados pela Guarda Municipal. Se as recomendações a serem seguidas pelos soldados já eram rígidas, não seria diferente com relação às competências a serem desenvolvidas pelos membros da corporação nas ruas da cidade. O regimento deixava claro o que e quem deveria ser detido e encaminhando à autoridade municipal: a) Todo aquele que for encontrado praticando algum crime, ou em fuga, perseguido pelo clamor público, podendo para este fim sair do seu posto; c)Todo aquele que, mesmo da corporação, for encontrado promovendo desordem ou em estado de embriaguez; d) Todo aquele que ocasionar desastre em via pública; e) Os transgressores do Código de Posturas que se insubordinarem contra a sua autoridade; h) As pessoas que, vestidas de modo ofensivo à moral e aos bons costumes, transitarem pelas ruas e praças; i) Os vadios, turbulentos, ébrios; j) Os que forem encontrados a danificar árvores, jardins, edifícios e obras públicas ou particulares;130 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 21 de agosto de 1937, Ano VII, n.º 333, p.2. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 29 de abril de 1933, Ano II, n.º 106, p.10. 129 APMIJD. Regimento da Guarda Municipal de Itabuna. Ato 178 de 30 de Dezembro de 1932. Typografia. Itabuna: D’A Época, 1933. 130 Idem, Ibidem. 127 128 66 Diante do exposto acima, percebe-se que a Guarda Municipal pretendia aparecer no cenário local para ajudar a polícia militar a manter a ordem e a segurança de Itabuna, coibindo as práticas que eram consideradas ofensivas aos padrões estipulados pela prefeitura para a cidade. Entre as décadas de 1930 e 1940, foi um dos principais instrumentos de coerção dos costumes e dos comportamentos da municipalidade na busca por uma cidade “harmônica” desejada pela administração local. Essas características eram comuns a outras instituições de policiamento urbano existente no país desde o século XIX. Segundo o historiador Thomas Holloway, no exercício e na manutenção do poder, as guardas urbanas do Brasil foram pensadas tendo por referência o modelo inglês de fiscalização ostensiva realizada por agentes “moralizados” e que reprimisse as condutas do consideradas ofensivas à ordem pública.131 A atuação dos guardas pode indicar também o caráter relacionamento dos trabalhadores pobres urbanos com a experiência de padronização dos valores e da moral pública instituída pelos poder público. Partindo da lei como elemento de toque para se classificar o que é moral ou imoral, é importante refletir sobre o que George Duby quando adverte o historiador que lida com esse tipo de relação. Segundo Duby, o instrumento jurídico ou moral criado pelos homens constitui um elemento de uma construção ideológica edificada para justificar certas ações repressoras e para, numa certa medida, mascará-la, sugerindo que a existência de toda regra é precedida pela sua transgressão, sendo exatamente nesse intervalo que o historiador pode buscar a tensão que envolve os diversos setores da sociedade.132 Seguindo as advertências anotadas por Duby, pode-se inferir que tanto o Regimento Interno da Guarda Municipal como o Código de Posturas Municipais criados para o município de Itabuna buscavam controlar comportamentos e costumes que já eram presentes dentro da comunidade local, mas que passaram a ser questionados pelos poderes municipais em favor da padronização de condutas criadas sob a justificativa de assegurar a “ordem” e alcançar o “progresso” moral diante do discurso de urbanização. Em janeiro de 1942, numa HOLLOWAY, Thomas H. A polícia do Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do século XIX. TRad. Francisco de Castro Azevedo. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997. O autor aponta que a justificativa para a criação da Guarda Urbana do Rio de Janeiro invocava “o policeman inglês como modelo, ele esperava, ‘os notórios resultados que algumas das cidades mais populosas da Europa têm colhido da instituição de agentes moralizados, encarregados de percorrer continuamente espaço determinado e circunscrito. p.216-217. 132 DUBY, Georges. Idade Média, Idade dos Homens: do amor e outros ensaios. Trad. Jônata Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. O autor trata dessa questão ao estudar os códigos eclesiásticos que permearam as relações entre homens e mulheres durante a Idade Média, especialmente acerca do amor cortês que fundamentava o matrimônio na sociedade medieval. pp.12-13 131 67 fala para os membros da corporação, o comandante geral João Moraes acentuava as dificuldades enfrentadas pelo que chamava de “espíritos malignos”. Dizia que Não deixa de surgir das trevas, meia dúzia de espíritos maléficos, tentando implantar entre nós a desunião; mas, felizmente, sempre têm sido cortadas as suas covardes investidas, pois eles não resistem a luz que clareia o cérebro dos bem intencionados, assim como a ave agorenta não resiste a luz do dia!133 As queixas de Moraes não eram involuntárias. Pesquisando nos relatórios da Guarda Municipal, freqüentemente publicados no Jornal Oficial, encontramos várias multas e punições aplicadas à membros da corporação por transgredir o regimento da instituição. Este foi o caso de Inocêncio Ferreira Almeida que teve seus vencimentos cortados em três dias pelo Inspetor João Moraes por ter infringido o parágrafo 25 do artigo 45, que versa sobre o levantamento de falsas acusações. Em relatório do mês de maio, podemos encontrar duas multas ao guarda Nelvy Amado, sendo ambas relacionadas ao provocamento de discussões em via pública, o que fez com que tivesse seus vencimentos cortados em quatro dias.134 Em 20 de julho de 1933, o guarda de segunda classe, Adail Argentino de Alburqueque, foi multado em dois dias de trabalho por ter se ausentado do posto de serviço, tendo sido encontrado na Pensão “Racho Fundo”. No mesmo relatório, foi suspenso por dez dias da corporação, Antonio Pinheiro Dantas, por ter se portado de modo inconveniente na Inspetoria por ocasião do pagamento dos vencimentos.135 Em outra oportunidade, os guardas Adelino Oliveira de Melo e Dado Sinval Lago levaram uma pesada punição de cinco e oito dias, respectivamente, por terem sido flagrados em cabarets, contrariando um dos requisitos da corporação. No mesmo relatório, encontramos a expulsão do soldado n.º 14, Joaquim José de Souza, do posto de guarda efetivo em face do seu vício em bebidas alcoólicas.136 Essas ultimas punições estão relacionadas à presença em bordéis e à embriaguez, o que as torna diferentes das outras anteriores. Quando da publicação, as primeiras apresentavam o motivo da punição descrito por extenso e o artigo infringido, talvez por se tratar de causas menos constrangedoras à corporação. Já as últimas, por se tratarem de comportamentos que eram combatidos com maior força pela Guarda Municipal, não tiveram as circunstâncias que levaram à punição descrita explicitamente, sendo apresentado apenas o parágrafo do Regimento Interno da Guarda Municipal que indicava o motivo do castigo. Medidas como APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 6 de janeiro de 1942, Ano VIII, n. 553. p.2. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 1 de maio de 1933, Ano II, n.º 108. p.6. 135 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 5 de agosto de 1935, Ano V, n.º229. p.6. 136 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 24 de agosto de 1935, Ano V, n.º 231. p.8. 133 134 68 estas poderiam ser tomadas para evitar que as faltas mais graves dos soldados (envolvimento com prostituição, embriaguez e jogo) chegassem ao conhecimento da população. Os exemplos citados acima mostram a dinâmica das relações sociais que envolviam os interesses do poder público e o comportamento dos trabalhadores. Mostram que antes de se tornarem a polícia de costumes e hábitos de Itabuna, seus membros se relacionavam com os subalternos. Ao mesmo tempo em que tentavam evitar a ocorrência de hábitos considerados estranhos e inoportunos pela administração pública, os guardas municipais necessitaram também afrontar seus próprios costumes com a disciplina instituída pela corporação. Isso, de alguma forma, já apresenta os antagonismos de interesses que estavam em jogo na cidade entre as décadas de 1930 e 1940, traduzidos, neste caso, pela tensão existente entre os preceitos da Guarda Municipal e os hábitos populares de seus membros. A historiadora Claúdia Mauch destaca que os agentes da segurança deveriam ter em mente a responsabilidade de sua “missão civilizadora”, sendo cobrada deles uma postura exemplar de moralidade e escrupulosa nos seus deveres cívicos e privados.137 No entanto, em algumas oportunidades, essa expectativa de que fala a historiadora era contrariada no que se refere à experiência dos soldados da força de Itabuna, apontando que nem sempre a força repressiva se impõe diante das tradições das pessoas pobres. Em outras ocasiões, os soldados da força municipal também davam demonstrações da negação dos requisitos de civilidade defendidos pelo regimento da instituição. Em julho de 1933, o guarda n.º 17, Edmundo Jorge dos Santos, foi multado em dois dias de vencimento por ter infringido o artigo 45 ao usar de violência contra um menor em presença desta inspetoria. Da mesma forma, o guarda de segunda classe, Antonio Ramos de Souza, por ter usado de força excessiva na punição ao menor Antônio dos Santos Lima que se encontrava dirigindo uma tropa de animais pelas vias urbanas do perímetro central. Atitudes como essas terminaram por delimitar as ações empreendidas pela guarda mediante o uso da violência na aplicação da “civilidade” em Itabuna. 138 Os abusos empreendidos pelos membros da corporação chegavam a incomodar alguns setores do comércio local. Em 17 de maio de 1933, Benigno Valverde Martins, administrador do Elite Cinema, enviou ofício para que o prefeito tomasse medidas no sentido de repreender o comandante João Moraes em face dos excessos cometidos por soldados da Guarda. Naquela oportunidade, o gerente do cinema pediu que, MAUCH, Claúdia. Ordem Pública e Moralidade: imprensa e policiamento urbano em Porto Alegre na década de 1890. (Dissertação de mestrado). Porto Alegre: UFRGS, 1992. Partindo de uma visão foucaultiana da ação policial em Porto Alegre do século XIX, a autora busca compreender o olhar vigilante dos policiais através das condutas e dos comportamentos impostos a estes trabalhadores. 138 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 24 de junho de 1933, Ano II, n.º 114. p.8; Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 8 de julho de 1933, Ano II, n.º 116. p.4. 137 69 “para melhor regularidade do serviço e coibir abusos por parte dos guardas, para o policiamento interno deste estabelecimento [...] foi terminantemente proibida a entrada gratuita de guardas no Elite Cinema.”139 Os jornais também davam conta de membros da Guarda Municipal que utilizava de violência excessiva em abordagens à estabelecimentos comerciais. Em 20 de fevereiro de 1943, O Intransigente noticiava que o soldado “Carlos Góes Coelho, fechou o bar de Ricardo de tal, à rua do Quartel Velho, dando muitos tiros que atingiram uma geladeira, enquanto <<espirrava>> gente por onde podia.” A notícia ainda informava que algumas pessoas se lançaram contra o referido guarda, tendo evitado que o mesmo ferisse ou matasse alguém. 140 Se, internamente, a Guarda Municipal já enfrentava a tensão existente entre seus membros de corporação, é possível imaginar os conflitos que deveriam aparecer entre os guardas, enquanto representante dos interesses das municipalidades, no seu relacionamento com os grupos populares. Pode-se sentir um pouco desse clima de disputa na advertência feita pelo secretário interino de obras públicas, José Muniz Nascimento, publicada no dia 23 de janeiro de 1938, que tinha o seguinte teor: Ainda, no intuito de evitar aborrecimentos entre a Fiscalização e o Povo, chamamos a atenção para as exigências da lei e sobretudo do Código de Posturas, tendo em vista os avisos de 23 e 28 de dezembro de 1937, assinado pelo inspetor da Guarda Municipal João Moraes. Esta prefeitura não quer indispor-se com os seus munícipes, porém não pode tolerar o relaxamento das leis. 141 Com o objetivo de alertar os munícipes para a existência de regras e de normas que regiam a cidade de Itabuna, o secretário José Muniz de Nascimento deixava escapar as difíceis relações entre os poderes instituídos e os trabalhadores. Não eram incomuns os alertas aos problemas que preocupavam as autoridades municipais a partir do Jornal Oficial e, quando fosse necessário, do A Época. Os avisos da fiscalização, que estava sob responsabilidade da citada guarda, transitavam entre a proibição de andar de bicicletas em praças, nas ruas, até apreensão de animais, principalmente cachorros, que estivessem à solta na cidade. No entanto, nessa situação de contradição que envolvia a Guarda Municipal e os habitantes de Itabuna, o peso das medidas para a resolução dos casos conflituosos era o Código de Posturas. Como se pode observar na citação acima, a Prefeitura não parecia inclinada a “relaxar as leis” nos casos de contenda com a população. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 27 de maio de 1933, Ano II, n.º 114. p.8 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 20 de fevereiro de 1943, Ano XVI, n.º 25. p.1. 141 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 23 de janeiro de 1938, Ano VII, n.º 231. 139 140 70 Se numa parte do cenário de Itabuna a Guarda Municipal não parecia relaxar diante das infrações dos munícipes, na outra os trabalhadores também não demonstravam estar conformados e satisfeitos com as regras do jogo urbano local. Não há dúvidas quanto ao fato de que a Guarda e as posturas municipais tentavam de criar uma nova organização jurídica de saneamento das disputas sociais existentes na cidade, planejado pelos setores dominantes. Mas sua aparência de neutralidade e de imparcialidade era desmentida pelos conflitos registrados nos relatórios sobre a atuação dos soldados nas ruas e praças de Itabuna. Em 1936, por exemplo, Olegário Alves dos Santos e Francisco Ribeiro da Silva, ambos carregadores, eram acusados por Manoel Fernandes de Araújo de ter desobedecido às ordens de recolher seus instrumentos de trabalho da calçada e, posteriormente, desacatado à autoridade pública em via urbana. Em junho de 1938, a Guarda catalogou um número acima da média de desordens e desacatos dos munícipes aos seus membros. Ao todo foram cinco casos, dentre os quais, o mais representativo das tensões urbanas foi o de Paulo Fagundes de Oliveira que, além de usar medidas de alumínios adulteradas na Feira Pública, ainda promoveu desordens e desacato contra o guarda José Messias Vianna. No mesmo relatório, o guarda Manoel Fernandes de Araújo voltava a registrar um caso de desacato contra um carregador.142 Os conflitos entre a Guarda Municipal e os trabalhadores (incluindo também os membros da corporação) sugerem as diferenças de interesses existentes na cidade em transformação. Chalhoub sugere que esses choques aconteciam por conta da consciência dos trabalhadores em relação à prática das instituições de segurança. Para ele, havia uma desconfiança dos grupos populares em relação à polícia e à lei na aplicação da ordem social. Assim, o autor carioca defende que “esses exemplos microscópicos de insubmissão em relação à autoridade constituída parecem se inserir numa tradição já relativamente longa de protesto popular entre os homens livres pobres da cidade”.143 Em posição semelhante, Thompson sugere que as leis são criadas como medidas do interesse do governo, respondendo aos anseios dos próprios defensores políticos. As normas jurídicas surgiam como uma nova maneira de controle e de disciplina de classe sintonizado com as transformações sociais e econômicas do mundo moderno.144 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 17 de outubro de 1936, Ano VI, n.º 290; APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 2 de julho de 1938, Ano VII, n.º 375. p.6. 143 CHALHOUB, Sidney. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da Belle Époque. 2ª Ed. Campinas, SP: Editora da UNICAMP, 2001. p.296. 144 THOMPSON, E.P. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra. Trad. Denise Bottman. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. O autor defende que a criação da Lei Negra atendeu às necessidades de adequar o código jurídico britânico ao controle e disciplina estipulados pela classe dominante e que a Lei Negra reverteu a essência da punição do delito contra o homem para o delito contra a propriedade. p.281 e 282. 142 71 A contribuição destes autores que pensaram realidades tão distintas de Itabuna serve para que se possa refletir sobre o sentido dessas demonstrações de rebeldia. Os enfrentamentos entre a Guarda Municipal e os trabalhadores são reflexos do fato de os habitantes não se submeteram tão facilmente às imposições do poder público. Talvez aqueles que desacatavam as autoridades públicas locais não enxergassem na prática dos poderes instituídos uma forma de mediar seus problemas sociais, mas sim, obstáculos aos seus interesses e aos modos de vida da classe trabalhadora. Assim, partindo desse entendimento, as táticas elaboradas pelas pessoas pobres e livres de Itabuna caminhavam no sentido de burlar as determinações da ordem estabelecida, procurando meios para que pudessem preservar as tradições e os costumes que tinham em comum. No entanto, quase sempre, essas medidas eram entendidas pelas autoridades como condutas desviantes que deveriam ser punidas e eliminadas numa cidade que buscava um padrão de urbanidade. Quanto mais esses comportamentos fossem freqüentes, mais fortes e intensas seriam as medidas do poder público. Não é por acaso que diante do elevado número de desordens e de desacato registrados pelos membros da corporação, João Moraes, comandante da força pública, publicasse no Jornal Oficial uma série de leis que deveriam ser obedecidas em 1938. Entre vários pontos relativos a hábitos, higiene e segurança, destaca-se aquela que se referia à importância da moral e da obediência aos princípios de urbanidade de Itabuna, em que dizia: “Tudo que não é verdadeira moral é imoralidade [...] É expressamente proibido a quem quer que seja proferir palavras ou atos obscenos ofensivos à moral ou bons costumes, em qualquer parte. [...] Governar sem a contribuição espontânea do povo não é fácil.”145 Em 1942, o mesmo João Moraes aparecia ainda mais ufanista quanto ao papel da Guarda Municipal. Talvez influenciado pela entrada do Brasil na Segunda Guerra Mundial, o comandante oferecia ares patrióticos à função cumprida por seus subordinados. Dizia que os soldados da Guarda deveriam ajudar no policiamento da cidade, auxiliando ao delegado local, devendo agir com serenidade e prudência. Mas não se esquecia de dizer que sua instituição não toleraria qualquer movimento subversivo em defesa do “povo, e se parte desse povo, confundir patriotismo com anarquia devemos voluntariamente [...] repelir o inimigo exterior e manter a ordem interior.” 146 Ao lado da polícia, a Guarda Municipal atuava fortemente na repressão ao jogo do bicho. Entre abril e maio de 1938, ocorreram diversas apreensões de materiais relacionados a APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 30 de julho de 1938, Ano VII, n.º 379. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 19 de agosto de 1942, Ano XI, s;nº, s/p. (documento deteriorado) 145 146 72 jogatina. Isso porque o Interventor do Estado, Landulfo Alves, e o secretário da Prefeitura, Nathan Coutinho, trocaram telegramas acerca da importância de se combater os jogos ilícitos. Negando a existência de tal transgressão em Itabuna, a Prefeitura prometia se manter vigilante quanto aos jogadores, afirmando que “Município Itabuna onde jamais entrou malfadado vício confia esclarecido governo V. Exc.ª manter sua tradição hipotecando inteiro apoio todas as medidas visem o saneamento de nosso Estado.”147 Firmando esse propósito, possivelmente o executivo tenha pressionado a Guarda a reforçar sua atuação contra a jogatina. Somente no mês de maio, foram cinco apreensões. Destaca-se a diligência efetuada por Argemiro de Oliveira, que encontrou sob posse de Adelino Soares da Silva vários talões de jogo do bicho e a quantia de 48$000 (quarenta e oito mil réis) decorrente de seus clientes. Além de oferecer ajuda para a Polícia Militar, a Guarda Municipal também participava efetivamente da fiscalização no município.148 Eram os soldados da Guarda Municipal os responsáveis pela fiscalização das obras nas vias urbanas e pela distribuição e manutenção das licenças de trabalhos concedidas aos ambulantes de Itabuna. Também atuava junto com a Higiene Pública no controle dos preços, dos pesos e das medidas nas feiras livres. Em 27 de julho de 1936, Antonio Cordeiro de Miranda havia determinado ao comandante Moraes que fosse realizada a prisão de cinco vendedores de leite sob acusação de falsificação do referido líquido. No dia seguinte, os soldados apresentavam junto ao delegado de polícia a captura dos ambulantes. Em 27 de janeiro de 1940, João Ramos Morinho apreendeu, sob a ordem da diretoria de higiene, nove quilos de peixe, por estarem adulterados de Uziel Neves.149 Como se pode observar, não era fácil constituir uma vigilância para Itabuna. A ação da Guarda Municipal não era garantia de que os trabalhadores se submeteriam facilmente às regras do poder público. A própria criação de uma força local já indicava que as instituições de repressão estaduais não conseguiam suprir a necessidade de ordem ensejada pelos segmentos hegemônicos da cidade. O código de posturas de Itabuna era a principal base jurídica que os soldados utilizavam para mediar as relações com os munícipes. Nos próximos capítulos serão observados com mais profundidade que as posturas eram um conjunto de leis urbanas destinadas a padronizar o comportamento e os costumes existentes na cidade. Apesar de duas versões, a do ano de 1908 e a de 1924, foi o Código de Posturas de 1933 que melhor APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 23 de abril de 1938, Ano VII, n.º 365. p.6. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 7 de maio de 1938, Ano VII, n.º 367. p.6. 149 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 15 de agosto de 1936, Ano VI, n.º 281; Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 10 de fevereiro de 1940, Ano IX, n.º 455. p.10. 147 148 73 delineou os interesses da classe dominante no sentido de criar um novo paradigma de hábitos, baseado nos ideais de ordem, higiene e progresso. Apesar de todo esse poder pretendido pela administração pública para a cidade de Itabuna, mesmo com a ação dos departamentos de Higiene e da Guarda Municipal, os sujeitos urbanos e pobres pareciam não se sentir seguros das intenções dos setores hegemônicos. Na tentativa de engendrar uma sociedade “ordenada” e “civilizada”, as municipalidades não conseguiram esconder os objetivos de coibir práticas populares e de controlar a ação dos habitantes trabalhadores. Os alvos das diligências dos instrumentos políticos eram a eliminação de qualquer atividade que desequilibrasse a ordem estabelecida. Com isso, surgiu o jogo de tensão que colocava no mesmo cenário, mas em pólos opostos, o poder público e o poder popular dos trabalhadores. Poderes e contra-poderes em uma cidade. Dessas descontinuidades históricas, evidentes no agir, nos discursos das autoridades municipais e nas vontades rebeldes, como afirma Certeau150, foi se erguendo a sociedade itabunense. Apareceram assim os sujeitos históricos “de baixo” para reafirmar suas posições e negar a força “preponderante” dos coronéis, e descobrir as diferenças e as desigualdades sociais. Apud CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre certezas e inquietudes. TRad. Patrícia Chittoni Ramos. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2002. p. 161. Para Chartier, Certeau produz uma noção de história onde a coerência pode ser encontrada nos “desvios”, que na verdade não são desvios, mas sim, formas elucidar a relação mantida entre o discurso hegemônico e o corpo social que o sustenta e o questiona ao mesmo tempo. 150 74 CAPÍTULO 2 A CIDADE E O PLANO Em 22 de junho de 1937, o A Época noticiava a visita do engenheiro Saturnino de Brito Filho à Itabuna com o propósito de fiscalizar as obras de urbanização em andamento. Classificado como um gentleman pela reportagem que tomava boa parte da primeira página daquela edição, o urbanista falou sobre a importância das reformas urbanas projetadas para a cidade. Para ele, a remodelação do espaço urbano era uma medida acertada para promover a organização de Itabuna, visto que “o saneamento é uma etapa decisiva nesse evolver ordenado das cidades. E é esse melhoramento notável que os itabunenses ora vão ter”.151 No entanto, para que isso pudesse de fato acontecer, Brito Filho não perdia de vista a necessidade de convencer a população da colaboração com o plano criado para reordenar o espaço citadino. Suas preocupações soaram mais evidentes quando ressaltou que “Todos hão de compreender que da subordinação do interesse pessoal ao interesse coletivo que o plano representa, resulta um acréscimo do próprio interesse individual, pela melhoria geral que daí resulta.”152 Apesar da suposta inquietação de Brito Filho diante do comportamento popular em relação às novas medidas urbanas pensadas para Itabuna, o plano de urbanização não foi suficiente para evitar as diferenças de interesses entre o poder público e os trabalhadores. Mesmo com a justificativa de que as melhorias decorrentes das reformas urbanas responderiam aos anseios da coletividade e com os argumentos técnico-científicos de que o futuro da cidade dependeria do seu ordenamento urbano, foi preciso medidas mais enérgicas por parte das municipalidades em relação aos trabalhadores para defender seu projeto de urbanização. Por isso, este capítulo discutirá a maneira como esse plano de urbanização procurou delinear o território de poder com a condenação de áreas populares próximas ao perímetro central. Outrossim, buscar-se-á entender a maneira com esse projeto de reformas urbanas se relacionou com o mercado imobiliário, analisando as medidas tributárias que incentivaram a construção de imóveis dentro dos padrões estéticos e higiênicos, e reprimiram a existência de 151 152 CEDOC/UESC. Jornal A Época 22 de junho de 1937, Ano XVI, n.º 868, p.1. Idem, Ibidem. 75 terrenos baldios e ruínas. A intenção é discutir de que forma os projetos urbanos hegemônicos se confrontaram com os interesses de alguns setores da classe trabalhadora. Influenciado pelo que Déa Fenelón153 compreendia em seus estudos quando apontava que a cidade passa a ser caracterizada a partir de seu espaço social, onde se confrontam forças e projetos sociais diversos, em que é possível reconhecer as expressões de conflitos das desigualdades a partir do planejamento e das intervenções executadas em Itabuna. Planos e territorialização de poder Durante a primeira metade do século XX, dois planos urbanísticos foram criados para servir de referência para o controle do crescimento de Itabuna. O primeiro deles foi criado por Archimedes Siqueira Gonçalves e Manoel Da Rin a pedido da intendência municipal, sob administração de Henrique Alves, em 1927.154 O segundo foi produzido por Francisco Saturnino de Brito Filho por solicitação da Prefeitura, na gestão de Claudionor Alpoim, no ano de 1935. Contudo, foi o primeiro projeto elaborado que ofereceu os paradigmas centrais para a configuração do espaço urbano de Itabuna. As justificativas para a criação de ambos os projetos tinham como ponto de partida a ascendente demanda demográfica do município. Com isso, Brito Filho já argumentava em seu plano que “A olhos experimentados, Itabuna apresenta-se como uma dessas cidades em que o ‘élan’ urbano está em plena eclosão e onde, por isso, tudo será dependência de boa intervenção técnica, dando-lhe singular responsabilidade [...] foi sob o senso dessa realidade que elaboramos o presente trabalho.”155 Em ambos os planos, os engenheiros se encarregavam de utilizar a força da ciência do urbano para garantir o futuro de Itabuna. Para a administração pública, o olhar “experimentado” destes profissionais se encaixava na tentativa de fundamentar com critérios científico e “neutro” as políticas urbanas locais. Para Kropf, a visão do urbanista entre 1920 e 1940 era entendida, assim, pelas “qualidades modernas de seu pensamento, eles reivindicavam, como membros desta nova elite intelectual, a direção legítima do processo político e social de modernização”.156 Harvey afirma que os engenheiros faziam parte da FENELON, Déa. Prefácio In: SILVA, Lúcia Helena P. Luzes e sombras na cidade: no rastro do Castelo e da Praça Onze: 1920/1945. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal das Culturas, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 2006. 154 CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, GONÇALVES, Archimedes S. Projeto de remodelamento e expansão da cidade de Itabuna. Salvador, 1927, p.2. 155 APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia) . – Relatório F. Saturnino R. de Brito Filho, Rio de Janeiro, março de 1935, p.6. 156 KROPF, Simone Petraglia. O saber para prever, a fim de prover – A engenharia de um Brasil Moderno. In: A invenção do Brasil moderno: medicina, educação e engenharia nos anos 20-30. Micael M. Herschermann e Carlos Albertos M. Pereira. Rio de Janeiro: Rocco, 1994. p.210. 153 76 intelectualidade derivada da modernidade, que defendiam o controle e o planejamento das cidades como formas de alcançar o “progresso social”. 157 A escolha dos engenheiros para produzir um projeto urbanizador se pautava na expressão profissional destes indivíduos. Archimedes Siqueira Gonçalves e Manoel Da Rin foram integrantes da Inspetoria de Engenharia Sanitária durante a década de 1930.158 Além disso, ambos foram também responsáveis pela elaboração do projeto de expansão e saneamento de outras cidades do interior da Bahia, como é o caso do município de Ilhéus.159 Saturnino de Brito Filho também possuía uma significativa expressão profissional. Muito conhecido por ser filho de Saturnino de Brito, urbanista responsável por reformas urbanas em Campos, Santos, Campina Grande, aquele engenheiro fazia parte da Comissão de Engenharia Sanitária do Estado da Bahia.160 Além disso, estava sintonizado com os modelos de urbanização norte-americanos, visto que sempre fazia referência ao desenho das cidades dos Estados Unidos como modelo exemplar. É o que dizia para respaldar que “com tais obras ficará Itabuna dotada de um ótimo serviço de saneamento à altura de suas necessidades [...] e tal como acabo de verificar nas cidades norte-americanas.”161 Embora Saturnino de Brito Filho tenha sido o responsável por oferecer um perfil urbano definitivo para o projeto de expansão e saneamento, ele seguiu basicamente as mesmas propostas defendidas por Da Rin e Gonçalves na década de 1920. Segundo o urbanista, “poder-se-iam modificar alguns detalhes, mas pensamos preferível mantê-la nas suas linhas gerais, pois não é recomendável estar mudando o plano da cidade a prazo curto, ao sabor das idéias de cada um.”162 As poucas mudanças realizadas por Brito Filho no projeto de 1927 foram quanto ao local de captação de águas do Rio Cachoeira e à necessidade do recuo de prédios em vias do centro da cidade. É possível perceber a forma como esses engenheiros desenharam a zona urbana de Itabuna, quais as mudanças planejadas pelo projeto e a maneira como estes enxergavam os diversos espaços de Itabuna. Como já dissemos anteriormente, entre as preocupações dos projetos estava a de garantir o futuro de Itabuna através do ordenamento de seu espaço urbano. Da Rin e Gonçalves atentavam para a garantia de que a cidade “viesse a possuir um sistema cômodo de HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Editora Loyola, 1992. p.26. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 22 de junho de 1935, Ano V, n.º 222, p.1. 159 DA RIN, Manoel, GONÇALVES, Archimedes Siqueira. Plano de expansão e saneamento de Ilhéus. Salvador, 1933. 160 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. sábado, 22 de junho de 1935, Ano V, nº222, p.1. 161 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 22 de junho de 1937, Ano XVI, n.º 868, p.1. 162 APMIJD. Livro de atas do Conselho Consultivo de Itabuna (1933-1935). Ata da 17ª Sessão Ordinária do Conselho Consultivo do Município de Itabuna, 30 de maio de 1934, p.37. 157 158 77 viação que facilitasse o trânsito de qualquer ponto para as artérias principais”. 163 Pensando nisso, os engenheiros se voltaram, sobretudo, para as vias urbanas que integravam o perímetro central. Planejaram a área central cortado, por avenidas e ruas retilíneas, atravessadas por outras vias, dividindo esse espaço em vários quarteirões. Basicamente, os planos de urbanização se preocuparam com um território que era limitado pelo lado sul com o Rio Cachoeira, pelo leste-norte com o ribeirão do Lava-Pés e a oeste limitado pelos bairros da Mangabinha e Jaqueira. Esta região, além de ser a zona ocupada pelas famílias mais tradicionais, concentraria os prédios dos poderes públicos (Prefeitura, Câmara e Delegacia), as associações corporativas e empresas comerciais (Associação Comercial, Instituto do Cacau da Bahia e Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista). Por isso, certamente, foi o local que mais se beneficiou dos melhoramentos projetados para Itabuna, como é o caso do fornecimento de água tratada e da rede de esgoto. Desde o plano de expansão urbana do ano de 1927, os engenheiros projetavam a abertura de quatro grandes vias que desenhariam o perímetro central e demarcariam o território de poder em Itabuna. Seriam elas as avenidas Central, do Canal e Marginal, e a Rua Benjamin Constant. A primeira das avenidas imaginadas por Manoel Da Rin e Archimedes Gonçalves foi a Central. Sobre ela, diziam os urbanistas: A mais importante das artérias principais é a grande Avenida Central, traçada sobre as ruas Seabra e 7 de setembro e que se estende em linha reta por dois quilômetros, em sentido longitudinal, isto é, mais ou menos paralelamente ao rio, desde o parque da Bela Vista, projetado no morro do mesmo nome, até o riacho ao sul da rua da Jaqueira. Esta via principal será o eixo da cidade futura e para obter o seu traçado perfeitamente retilíneo foi necessário projetar, como se vê na planta de remodelação, o recuo de cerca de 50 prédios nas ditas ruas Seabra e 7 de Setembro; este inconveniente, porém, nada representa ao lado da vantagem de obter para eixo da cidade a grande avenida de dois quilômetros; [...] Devido á extensão da avenida, a largura projetada de 20 metros é modesta; deixamos de fixá-la em 25 metros em vista da limitada área dos quarteirões da zona comercial e para não aumentar o número de prédios sujeitos à recuo.164 A transformação das ruas J. J. Seabra e 7 de setembro na Avenida Central é um indício de que o plano criado para Itabuna se preocupava com a acomodação do seu centro comercial. A construção daquela avenida seria a comprovação de que os segmentos comerciais e, talvez, também os setores políticos, tivessem a garantia de seu lócus de atuação. O planejamento da Avenida Central itabunense não pode deixar de ser associado com outra de mesmo nome que marcou as reformas urbanas do Rio de Janeiro no início do século XX, embora respeitando as 163 164 CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op. Cit. p.2. Idem, Ibidem, p.2 (grifos nossos). 78 devidas proporções entre ambas. De maneira semelhante à sua congênere carioca, a versão local daquela alameda seria um símbolo do crescimento material e urbano de Itabuna, carregando o peso de abrigar o eixo principal da zona comercial e, por conseguinte, se tornar uma artéria importante do poder político da cidade. A valorização das vias que integrariam a Avenida Central implicaria, mais tarde, em questões sociais contra grupos populares que viviam na Rua sete de setembro e nas ruas adjacentes. A unificação das ruas Seabra e sete de setembro em torno da projeção da Avenida Central certamente não influencou apenas aquelas vias. Outras ruas paralelas e transversais que giravam em torno daquela avenida principal seriam encaixadas no plano de retificação e de alinhamento do plano urbano de Itabuna. Este seria o caso do morro da Bela Vista (atual Praça Laura Conceição ou “da Catedral”) e das ruas Ruy Barbosa, Domingos Lopes (atual Avenida Duque de Caxias) e da Jaqueira. Para esses lugares, eram previstos recuos e desapropriações em “trechos do Largo Santo Antonio ao parque da Bela Vista e do extremo atual da Rua sete de setembro.”165 Outras fontes sugerem que esses locais geralmente foram habitados por indivíduos da classe trabalhadora durante as décadas de 1930 e 1940. Embora o projeto de se construir a Avenida Central só tenha saído do papel no ano de 1960, com a inauguração da Avenida do Cinqüentenário, algumas reformas urbanas realizadas pontualmente nos trechos observados acima atingiram diretamente os trabalhadores. Na região da Bela Vista, por exemplo, Manoel Da Rin e Archimedes Gonçalves consideravam que o local era estratégico para se criar um lugar de lazer e de apreciação da cidade. Eles achavam que Nenhum local dentro da cidade se presta melhor, pela posição topográfica, para a construção de um belo parque, do que o morro da Bela Vista; damos a esse parque, na planta de remodelação, um traçado de conjuntos; do alto do parque, bela vista, justificando o nome, ter-se-á do rio e do conjunto da cidade, especialmente das duas avenidas, a Central e a da Rua Benjamin Constant, que dali irradiam; pouco habitado, como é agora, o morro, seria conveniente que o município o adquirisse quanto antes, o terreno presta-se admiravelmente para dotar o parque de repuxos, cascatas, grotas, observatórios e jardins botânicos e zoológico 166. A topografia elevada do morro da Bela Vista ofereceria boas condições de visibilidade do cenário urbano, além do terreno adequado para a construção de um parque. Quase sempre esses acessórios de suavização das condições de vida nas cidades, como é o caso de praças e jardins, são construídos para oferecer um sentido de organização e de salubridade para a urbe. 165 166 CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op.cit. p.3. Idem, Ibidem, p.5 (grifos nossos). 79 Por conseguinte, com estes melhoramentos, haveria a possibilidade de valorização da área circunvizinha, habilitando-a para a ocupação, em boa medida, pelos setores abastados da cidade. Talvez daí venha a sugestão dos engenheiros para que a Prefeitura adquirisse aquela zona, expulsando os trabalhadores pobres dali. Em 1942, a Prefeitura anunciava a construção da Praça Tiradentes exatamente no lugar anteriormente chamado de Bela Vista. Ali seria construída a nova Igreja Católica Matriz, ao lado da Cadeia Municipal que já existia naquelas imediações na década de 1930.167 Embora a nova Catedral só tenha sido concluída na década de 1950, esses elementos já sugerem a ocupação daquele território por dois poderes preponderante da sociedade – a Igreja Católica e a Cadeia Pública. Era isso o que noticiava o A Época, afirmando que “Futuramente, então, quando forem construídos a Igreja Matriz e o edifício do fórum, a nova sala de visitas de nossa terra que impressionará melhor aos nossos ilustres visitantes.”168 Em contrapartida, denúncias contra pessoas pobres que ali moravam foram freqüentes, contribuindo para se criar estigmas que fundamentavam o discurso de afastamento das camadas populares daquela zona pelos poderes instituídos. Criticava-se desde o hábito de se criar porcos, apontado como desrespeito aos preceitos de higiene do município até as práticas de rituais religiosos de origem afro-brasileira no local. 169 Em 2 de maio de 1936, O Intransigente solicitava providências da polícia contra um local chamado de “O Encantado” “para não deixar continuar em suas práticas absurdas esse foco de barbárie e de baixezas, enojando o nosso povo.”170 O registro da presença de trabalhadores com condutas contestadas pelos segmentos hegemônicos é um indício de que o interesse em construir melhoramentos urbanos não era meramente uma questão estética, mas também reflexo do estranhamento em relação aos sujeitos pobres no centro de Itabuna. As recomendações de Da Rin e Gonçalves para impedir que as pessoas pobres ocupassem o morro da Bela Vista foram seguidas pelo poder público através do Decreto-Lei n.7, que desapropriava dezenove casas e tornava de utilidade pública a Travessa da Bela Vista e prolongamento da Benjamin Constant (atual Avenida das Nações Unidas).171 Outra área que sofreria modificações, segundo o plano traçado para a Avenida Central pelos engenheiros de 1927 era o final da Rua sete de setembro. Popularmente conhecida por Rua do “Buril”, aquela área era conhecida por abrigar uma parte do meretrício da cidade, CEDOC/UESC. Jornal A Época, 7 de abril de 1942, Ano XX, s/n, p.1. CEDOC/UESC. Jornal A Época, 10 de janeiro de 1942, Ano XX, 1187, p.1. 169 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 2 de janeiro de 1943, Ano XVI, n. 13. p.4. 170 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 2 de maio de 1936, Ano XI, n. 35. p.1. 171 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 5 de abril de 1941, Ano VIII, n.º514, p.1-2. 167 168 80 provavelmente entre as décadas de 1920 e 1930. Os memorialistas locais sugerem que a apropriação do espaço pelos comerciantes e as reformas urbanas naquela via forçaram a “mudança das mulheres livres para a Rua do Lopes, hoje Duque de Caxias”.172 A edificação de prédios comerciais tornou a convivência tensa entre as prostitutas e setores da elite comercial. Em vista disso, várias reclamações começaram a surgir contra o comportamento “desviante” das mulheres. O A Época reclamava em dezembro de 1937 a atenção da polícia para a insuportável algazarra que as meretrizes, ocupantes de um conhecidíssimo sobrado ali situado [rua 7 de setembro], vêem fazendo todas as noites, das 9 horas até alta madrugada, as quais, no passeios da rua, sem o mínimo respeito, com palavreados, gargalhadas, correrias e outros meios perturbadores do silêncio, estão prejudicando grandemente a tranqüilidade das famílias residentes ao referido trecho de rua.173 Em 1937, as primeiras intervenções urbanas na Rua sete de setembro e na Seabra já haviam sido iniciadas, tornando um pouco mais complicadas as atividades das mulheres naquela região. As preocupações com a retificação, o alinhamento e calçamento daquelas vias pode ter aumentado o cuidado dos policiais com a zona central, forçando as meretrizes a se abrigar em outras ruas do entorno. Como apontado anteriormente, os memorialistas locais sugerem que a maior parte delas tenha ido habitar as ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa. Tanto o registro da presença de terreiros de candomblé e de casas populares no morro da Bela Vista como a existência de casas de meretrícios na Rua Sete de setembro, duas das importantes áreas no projeto de cidade dos urbanistas, são indicativos de que o plano de expansão urbana buscava sedimentar um território de poder com o afastamento de setores subalternos do centro de Itabuna. Aquilo que superficialmente surge sob a forma de melhoramentos urbanos de caráter estético e higienizador no Plano Diretor, acaba por ser percebido enquanto ação de exclusão social quando cruzadas com outras fontes. Isso porque na linguagem técnica do urbanismo a cidade é apenas morfologia com a supressão dos sujeitos que compõem este espaço e sua redução a um plano geométrico racional e abstrato.174 Mas as fontes hemerográficas acabam apontando os sujeitos a partir de suas práticas, possibilitando enxergar as pessoas que são ocultadas na linguagem formal dos engenheiros. É GONÇALVES, Oscar R. O jequitibá da Taboca.Itabuna: Oficinas gráficas da imprensa oficial da Bahia, 1960. p.116. 173 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 15 de dezembro de 1937, Ano XVI, n.º 930. p.1. 174 LEME, Maria Cristina S. Urbanismo: a formação de um conhecimento e de uma atuação profissional. In: Palavras da cidade. Organizado por Maria Stella Brescianni. Porto Alegre: Ed. Universidade/UFRGS, 2001. Nesse artigo, a autora procura perseguir a trajetória do urbanismo a partir da perspectiva de um saber que está ligado com a expressão do poder. p.81-87. 172 81 isso que permite entender que as propostas dos projetos urbanísticos não estão relacionadas apenas com formas estéticas e sanitárias dos logradouros, mas ligados à disputa social de territórios no espaço urbano. Prosseguindo com seu plano de expansão urbana, Manoel Da Rin e Archimedes Gonçalves projetavam mais duas importantes artérias para o centro de Itabuna. Eram elas a Rua Benjamin Constant e a Avenida do Cais (atuais ruas Rulfo Galvão e avenidas das Nações Unidas, Fernando Cordier e Firmino Alves, respectivamente). Sobre elas, os urbanistas diziam que Como vias principais longitudinais notam-se ainda a Avenida resultante do prolongamento da rua Benjamin Constant e a Avenida do Cais. A primeira, parte do parque da Bela Vista, onde conflui com a Avenida Central, e se estende, passando pela Praça da Estação, Praça Tiradentes e terrenos do antigo cemitério, até o morro em que foi projetada a instalação de purificação da água, manteve-se para esta Avenida a largura máxima atual da Rua Benjamin Constant, o que exige o recuo progressivo de 48 prédios quase todos do lado oeste [...] A Avenida do Cais contorna o rio, desde o extremo Norte da Cidade até o extremo Sul da Avenida Central, esta avenida, que importa na consolidação da margem esquerda em defesa nos casos de enchentes, é obra de vulto necessariamente dispendiosa.175 O planejamento das duas vias seguia o mesmo sentido de divisão e de organização do centro urbano pensado para a Avenida Central. Ambas seriam artérias que passariam por todo o centro de Itabuna, sendo entrecortadas por algumas transversais. No entanto, a atenção maior dos urbanistas foi para a criação da Avenida do Cais, que limitaria a zona urbana com o Rio Cachoeira. A preocupação com as enchentes foi a justificativa principal para a proposta de reforma daquele local, acompanhado da melhoria estética daquela área. Sobre a região marginal do Rio Cachoeira, Brito Filho tecia uma série de considerações acerca da importância daquele local para a cidade. O engenheiro sanitarista não titubeou em aconselhar que o poder municipal desapropriasse toda a margem, condenando, inclusive, as habitações que se localizassem entre o Rio e a estrada. “Esses prédios são numerosos mas têm pequeno valor locativo; mais vale intervir desde já, a bem da higiene e da estética urbana, do que esperar que os males se agravem.”176 Observando as sugestões de Brito Filho, logo se percebe que as áreas próximas ao Rio Cachoeira eram habitadas pela população mais pobre. Os prolongamentos da Rua da Jaqueira e da Burundanga eram zonas ocupadas, em sua maioria, pelos trabalhadores pobres que CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op. Cit. p.3 (Grifos nossos). APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia) – Relatório F. Saturnino R. de Brito Filho, Rio de Janeiro, março de 1935, p.2. 175 176 82 montavam suas casas com o fundo virado para o rio e a frente para a estrada. Em uma cidade que não possuía sistema de esgoto sanitário até a década de 1930, essa tática de construção se tornava conveniente para as pessoas que viviam nas margens dos rios. No entanto, para o sanitarista, esse tipo de prática era típico da “primeira fase de desenvolvimento não ordenado das cidades [...] o resultado é que, quando se quer sanear o rio e construir os esgotos, precisa justamente inverter-se esse trajeto dos despejos.”177 Um aspecto que também contribuía para a conclusão de Brito Filho anotada acima era o fato de que a captação das águas para distribuição se daria no Rio Cachoeira. Segundo o plano elaborado por Manoel Da Rin e Siqueira Gonçalves, em 1927, a região para obtenção de água potável era nas imediações da Rua da Jaqueira e da Burundanga. No entanto, como foi frisado antes, aquela região já estava praticamente toda ocupada por moradores pobres, por volta de 1934. Apesar de tornar a obra mais barata, pois diminuiria os custos com tubulação e energia, a manutenção daquele local para captação de água implicaria na retirada da população ribeirinha. Isso obrigou a transferência do local de recolhimento das águas para outra área, chamada de Ribeirão dos Cachorros, próxima à fazenda de Tertuliano Guedes de Pinho.178 Apesar disso, o urbanista não dispensou o conselho à Prefeitura: A necessidade de municipalizar e tornar livres as margens dos rios, é de tal ordem, que não hesitamos em propor que a prefeitura proíba desde já a edificação marginal do Rio Cachoeira e dos córregos urbanos. Para montante da cidade, deverá ela determinar a condenação dos prédios situados entre a estrada e o rio. Esses prédios são numerosos, mas têm pequeno valor locativo; mais vale intervir desde já, a bem da higiene e da estética urbana, do que esperar que os mesmos se agravem. Para jusante, igualmente, torna-se urgente proceder da mesma forma.179 A sugestão de desapropriar e tornar de utilidade pública as áreas ribeirinhas sinaliza uma tentativa de definir espaços que deveriam ser preservados para o interesse da ordem estabelecida pelos poderes municipais. Tais medidas deveriam perpassar pela restrição da construção de imóveis e pela expropriação das casas dos trabalhadores que viviam naquele local. Contudo, as recomendações de Brito Filho com relação à utilização do Rio Cachoeira pelos habitantes de Itabuna não terminavam nas suas margens. O próprio leito do Rio passava a ser um território disputado pelo sanitarista com vistas a garantir os interesses do poder público. APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia) – Relatório F. Saturnino R. de Brito Filho, Rio de Janeiro, março de 1935.p.1-2. 178 Idem, Ibidem. p.7. 179 Idem, Ibidem. p.2. 177 83 A formação rochosa no leito do Cachoeira dava origem a “numerosas poças que são utilizadas pelas lavadeiras”. Por esse motivo, dizia Brito Filho, a Prefeitura desejava que fosse “construída uma barragem afogando essas poças, dando à cidade um ‘mater-front’ de belo e sugestivo aspecto, aformoseando e saneando o rio”. A proposta parece ter sido bem acolhida pelo Conselho Municipal de Itabuna. Em parecer de José Mattos Nunes (que também era engenheiro), o conselheiro destacava que a questão não deveria ser primeiramente estética, mas uma medida sanitária. Ele definia a prioridade do projeto afirmando que “barrar para se ter um lago de recreio [...] não soará tão bem como barrar para sanear, aí é que a população beneficiada poderá introduzir o recreio que a obra venha a despertar. [...] Barrar para sanear – a municipalidade assiste a obrigação de levar a termo.”180 Embora a barragem no leito do Cachoeira só tenha saído do papel na década de 1970, as medidas de consolidação dos territórios urbanos próximos ao rio se concretizaram através de atos administrativos e das constantes censuras dos periódicos locais aos sujeitos que freqüentavam a região ribeirinha. Publicada em 18 de abril de 1936, mediante o ato 241 do executivo municipal, a Prefeitura criava um dispositivo jurídico para impedir a ocupação das margens do rio nos trechos em que se limitava ao perímetro central.181 Apesar disso, o setor dirigente não conseguiu evitar o uso desse espaço pelos trabalhadores no cotidiano da cidade, provocando freqüentes denúncias contra pessoas que se utilizavam das límpidas águas do Cachoeira para tomar banho ou lavar as roupas. Em dezembro de 1937, por exemplo, o A Época publicava no canto de sua página uma denúncia contra pessoas que se banhavam nas margens do rio. Segundo a nota, desde as cinco e meia da manhã, pessoas já tomavam “banho completamente despidas, num desrespeito flagrante às famílias ali residentes”.182 Em dezembro de 1942, a mesma prática ainda persistia, sendo denunciada pelo mesmo jornal o “flagrante desrespeito às famílias ali residentes, à rua Joaquim Nabuco, nesta cidade, alguns banhistas resolvem transformar em pleno dia, trechos daquela rua [...] num verdadeiro paraíso...”183 Uma das razões para as persistentes reclamações nos periódicos de Itabuna era o estranhamento de comportamentos tipicamente populares em um espaço que se urbanizava. Lefebvre sinaliza que as políticas e as reformas urbanas tendem a negligenciar os fatores APMIJD. Livro de atas do Conselho Consultivo do Município de Itabuna. Ata da 17ª Reunião ordinária do Conselho Consultivo de Itabuna, 30 de maio de 1934. p.40-40B. 181 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 18 de abril de 1936, Ano V, n.264. p.1. 182 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 17 de dezembro de 1937, Ano XVI, n.º 930. p.1. 183 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 26 de dezembro de 1942, Ano XX, n.º. p.1. 180 84 humanos, de onde provêm as tensões entre setores sociais antagônicos.184 Assim, o uso de áreas urbanas próximas ao centro com vistas a atividades como banho, lavagem e estendedura de roupas, por exemplo, passava a não ser mais autorizado pelos setores dirigentes do município. Essas proibições atingiram principalmente os costumes e as tradições das pessoas que tinham práticas culturais que contrariavam os poderes públicos e os segmentos hegemônicos. Mais a frente, destacarei grupos sociais que sofreram diretamente com as mudanças imaginadas pelo plano diretor urbano de Itabuna. De acordo com os planos urbanos de Manoel Da Rin e Archimedes S. Gonçalves, aprovados e seguidos por Brito Filho, a última das avenidas a delinear o perímetro central de Itabuna seria a Avenida do Canal. Sobre ela, os engenheiros da década de 1920 afirmavam que Completamos a rede principal de comunicação com a Avenida do Canal, traçada na baixada do ribeirão da rua Barão do Rio Branco e que, partindo do rio, liga transversalmente as três avenidas citadas, atravessa a estrada de ferro e depois desenvolve-se em direção mais ou menos paralela às mesmas avenidas. [...] no eixo desta avenida e na maior parte de sua extensão foi projetado um canal que substituirá o leito atual do ribeirão a ser aterrado; a construção desta avenida e o aterro da várzea são indispensáveis para sanear o local e facilitar a construção do coletor de esgoto do bairro da Santa Casa e da baixada.185 A projeção da Avenida do Canal sinalizava outra preocupação dos urbanistas: a presença de áreas pantanosas no centro da cidade. A existência de charcos causava inquietação aos urbanistas e aos poderes públicos. A justificativa quase sempre era a de que estes locais eram focos de agentes transmissores de doenças que assolavam Itabuna. A Prefeitura considerava a urbanização do ribeirão Lava-pés “o empreendimento mais útil, do ponto de vista do saneamento dos terrenos que atravessa e, por certo, contribuirá para melhorar, de muito, o estado sanitário da cidade”.186 Apesar da abertura do canal ter sido iniciada na década de 1930, no ano de 1942, a municipalidade ainda prometia realizar melhoramentos urbanos naquele local. Naquela oportunidade, o A Época ressaltava a importância da obra a ser realizada, dizendo que “somente os que conheceram aquele charco imundo, - vasta área desaproveitada, dentro do coração da urbs, poderão aquilatar o valor da futura Avenida, que mais do que uma obra de urbanismo, é notável trabalho de LEFEBVRE, Henri. O direito à Cidade. São Paulo: Editora Moraes, 1991. p.23-24. CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op. Cit. p.3. 186 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 31 de julho de 1937, Ano VII, n.º 330. p.12. 184 185 85 saneamento.”187 A obra era vista como a oportunidade de acabar com uma área ociosa nas proximidades do centro urbano, transformando-a em zona comercial e território do poder. Embora a justificativa inicial para a urbanização do ribeirão Lava-pés tenha sido o melhoramento das condições sanitárias, outras fontes sugerem que não se tratava apenas de questões de salubridade de ordem natural. Ainda que o motivo aparentemente demonstrado pelos jornais fosse a existência de pântanos nesses espaços, outros problemas pareceram também chamar a atenção dos engenheiros Da Rin e Gonçalves. A forma pela qual eles descreveram as áreas vizinhas ao canal que deveriam ser urbanizadas é um sinal da emergência das diferenças sociais. Do traçado existente, tão irregular, do bairro norte da cidade, aproveitou-se a parte tolerável, sacrificando não poucos pequenos prédios, mesmo em consideração do pouco valor deles; foram ali traçadas novas ruas e uma estrada, desenvolvida na íngreme encosta do morro e dando acesso fácil à Santa Casa e ao Cemitério.188 A região norte a que se referiam os engenheiros correspondia ao bairro Pontalzinho e à zona que era chamada de bairro da “Santa Casa”. Esses dois logradouros se limitavam com o riacho do Lava-pés. Como vimos no capítulo anterior, o Pontalzinho era um dos setores mais populosos de Itabuna. O segundo espaço era mais ocupado por trabalhadores, que encontravam terrenos baratos para construir suas casas, segundo memorialistas locais189, assim como pela evidência de imóveis de “pouco valor” notados pelos urbanistas. Isso mostra que o argumento dos periódicos locais e da Prefeitura de que a zona do ribeirão era composta apenas por espaços ociosos e encharcados não era tão válido assim. Talvez a preocupação de urbanistas e das autoridades municipais não fosse somente com o saneamento das áreas pantanosas, mas também com as pessoas que ali viviam. O cruzamento com outras fontes ajuda a identificar a presença de trabalhadores pobres naquele local. Por exemplo, no O Fanal, de janeiro de 1938, nota-se que havia muito mais do que simples pastos nas margens do pequeno córrego que atravessava a zona norte de Itabuna. Em matéria intitulada de “No Canal do Mangue”, o periódico estudantil descrevia: Vamos nos aproximando, devagar, vendo de longe, um pequeno riacho que corre por entre a cidade. De repente, eis que nos sentimos horrorizados, diante de tanta miséria e imundície. Um espetáculo doloroso se nos apresenta, às vistas. É o mangue. É o mercado de carne, em que predomina a lei da oferta sobre a da procura. Mulheres se oferecendo pelo preço mais CEDOC/UESC. Jornal A Época, sábado, 23 de maio de 1942, Ano XXIV, n.º 1206. p.1. CEDOC/UESC. DA RIN, Manoel, e GONÇALVES, Archimedes S. Op. Cit. p.3. 189 ANDRADE, Jose Dantas. Documentário histórico-ilustrado de Itabuna. Itabuna: EGBa, 1968. 187 188 86 barato e homens sorrindo da miséria alheia. O passeio é rápido, porque triste.190 A descrição promovida pelo repórter “Léo” sugere que as margens do ribeirão Lavapés não era feita apenas de pastos, pântanos e terrenos baldios. Talvez a existência dessa área ociosa tenha sido em parte aproveitada pelos trabalhadores pobres urbanos que habitavam Itabuna. Para contribuir com essa expectativa, os registros tributários dos imóveis apontam para a ocupação daquele logradouro. Consultando os lançamentos das Décimas Urbanas (imposto predial cobrado pelo município), nota-se a presença de cerca de dez estabelecimentos comerciais, sendo que sete deles eram classificados como pequenos negócios. Registravam-se também aproximadamente vinte residências, sendo que delas, quatorze eram cobradas taxas mínimas de 20$ (vinte mil réis). 191 Ambas as fontes sinalizam que o local era ocupado por pequenos proprietários e grupos de trabalhadores pobres. A maneira como a zona foi apresentada pelos engenheiros e pelo periódico é outro indício de que o que preocupava os setores dirigentes não eram apenas os charcos e os pastos do local. Os primeiros indicavam o “traçado irregular” do bairro da Santa Casa, elemento que justificava a proposta de “sacrificar” as casas ali existentes, segundo o plano projetado. Os periódicos apontavam para a presença de homens e mulheres atuando no local, “diante de tanta miséria e imundície”. As fontes possuíam em comum também o estranhamento com os sujeitos que ocupavam as áreas próximas ao futuro canal. Numa certa medida, foi talvez esse estranhamento que tendia para a estigmatização das pessoas que ali habitavam, que serviu de referência para justificar o “sacrifício” de seus imóveis de “pouco valor” por parte do poder público. Com o objetivo de transformar a região do Lava-pés em um lugar “salubre”, os sujeitos que viviam próximos ao ribeirão eram notados como elementos que contrariavam a expectativa de urbanistas e dos poderes públicos. Na medida em que o poder público, auxiliado pelo exame técnico da engenharia sanitária, procura urbanizar aquele espaço, ele passa a exigir que este território seja ocupado pelos segmentos hegemônicos. As partes urbanas, alvo dos planos citadinos, são colocadas sob a tutela da prefeitura, confiscadas dos habitantes e transformadas em territórios do poder local. 192 CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de janeiro de 1938, Ano V, n.º9. p. 4. CEDOC/UESC. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Sábado, 30 de janeiro de 1937, Ano VI, n.º 304. p.7. 192 CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. 2. Morar e Cozinhar. 3º Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. Para o autor, os planejamentos e as reformas urbanas são fatores da medicalização do poder. Os poderes instituídos assumem para si o direito de curar e de proteger o corpo urbano. Disso resulta que as partes urbanas são colocadas sob sua tutela e desapropriadas dos habitantes e confiadas a especialistas da urbanização. p.197. 190 191 87 Em abril de 1942, quando as obras de canalização do ribeirão prosseguiam, o setor médico da cidade comemorava o andamento das obras. A voz ressonante de divulgação dos melhoramentos era a de José Pinto, membro da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna e diretor do Departamento de Higiene. Na medida em que procurava ressaltar as ações do poder público, Pinto apontava a transformação do local em um ambiente conveniente aos interesses da Prefeitura e dos setores hegemônicos. Ele dizia que o melhoramento urbano havia transformado a parte “dessa área perniciosa, em uma aprazível e pitoresca avenida, caracteres estéticos surpreendentes e com a dupla finalidade de aliar o saneamento do “talweg” do lava-pés, ao extraordinário plano de urbanização.”193 No entendimento do médico, a urbanização promovia uma dupla função em Itabuna: acabava com os focos de epidemias que eram os charcos e forçava a retirada de pessoas que ocupassem o local, construindo uma avenida considerada agradável e bela para os padrões urbanos. Engenheiros, imprensa e médicos pareciam sintonizados no que tange ao plano de urbanização de Itabuna. Os três segmentos entendiam a necessidade de organizar o perímetro central a partir dos melhoramentos projetados para a cidade. Jurandir Freire Costa propõe que as esferas do saber técnico se apropriaram do espaço urbano para efetivar as marcas do poder, da conservação do status quo, utilizando como fundamento a eliminação de matas, rios, pântanos, prostíbulos e esgotos, procurando efetuar uma estratégia de abordagem, dominação e transformação dos lugares e de quem vive neles.194 Certeau considera que, em nome da suposta racionalidade urbana, a ordem estabelecida buscava ocultar “a experiência dos indivíduos que moram na cidade.”195 A preocupação dos engenheiros em estruturar o perímetro central em quatro vias retilíneas, entrecortadas por algumas ruas transversais oferece uma medida da seletividade dos espaços que seriam beneficiados com os melhoramentos do plano de urbanização. Apesar de ter apontado problemas pontuais em alguns bairros, os engenheiros não escondiam que o objetivo era organizar e privilegiar a área central com os benefícios da água encanada e do esgoto a serem implantados durante as reformas urbanas. Brito Filho, por exemplo, considerava que “Itabuna está crescendo e muito acertada é a providência de ampliar a circulação no seu acanhado centro urbano atual. Importante é este problema do centro urbano, BPEBa. Anais da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna (1942-1943). Sessão de 12 de abril de 1942. Itabuna: Tipografia D’A Época, 1944. p.25. 194 COSTA, Jurandir Freire. Ordem médica e norma familiar. Rio de Janeiro: Graal, 1999. p.30. 195 CERTEAU, Michel, MAYOL, Piere, GIARD, Luce. A invenção do cotidiano. 2. Morar, Cozinhar. 3ª Petrópolis, RJ: Ed. Vozes, 1994. p.193. 193 88 ao qual Le Corbusier se refere em termos eloqüentes.”196 Para o engenheiro, o aspecto fundamental das reformas urbanas planejadas seria possibilitar que o perímetro central possuísse condições infra-estruturais (vias largas e compridas, distribuição de água e saneamento de esgoto) que permitissem abrigar os estabelecimentos comerciais e prédios públicos. Outrossim, a influência teórica de Le Corbusier é mais um indicativo do interesse urbanístico voltado para o “progresso” e beneficiamento da parte central da cidade. Françoise Choay aponta que Corbusier fazia parte de um grupo de engenheiros entre o final do século XIX e início do século XX que se encaixava na perspectiva do Urbanismo Progressista. Como uma de suas características, esta perspectiva propunha que o racionalismo urbano deveria ser o meio utilizado para controlar o crescimento demográfico e garantir a ordem social defendida pelos setores dirigentes. Obtendo estas condições, as cidades alcançariam o desenvolvimento material e social, classificado de “progresso” pelos urbanistas. Para o urbanista francês, era preciso privilegiar o centro citadino para assegurar a “marcha progressiva”.197 Em contrapartida, Corbusier considerava os subúrbios e seus moradores lugares onde habitavam “descendentes degenerados dos arrabaldes”, por ser um espaço oposto à organização de cidade empreendida no centro.198 Provavelmente em face dessa influência teórica, os engenheiros tenham se preocupado essencialmente com o centro de Itabuna e se referido aos subúrbios locais com certa indiferença e de forma estereotipada. Um indício dessa posição está contido no plano de urbanização de Brito Filho. Com base em cálculos de custos, ele apontava que somente o bairro da Santa Casa seria alcançado com a instalação do sistema de rede de água e de esgotamento sanitário, visto que o principal hospital do município não poderia ficar sem aquele melhoramento.199 Desta forma, as outras áreas do subúrbio não seriam contempladas com os benefícios planejados, entre eles os bairros Mangabinha, Pontalzinho, Cajueiro e Conceição. Estruturando o centro de Itabuna em três longas e retilíneas avenidas (Central, Cais e Canal) e uma Rua, a Benjamin Constant, entrecortadas por ruas transversais e composta de parques e praças, os engenheiros pensaram o perímetro central como espaço que pudesse abrigar as instituições públicas e privadas mais representativas da cidade. Não foi por acaso que a Prefeitura, ao tomar um empréstimo na Caixa Econômica Federal para providenciar as APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Op.cit. p.4. CHOAY, Françoise. O urbanismo: utopias e realidades. São Paulo: Perspectivas, 1992. p.188-189. 198 BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar. A aventura da modernidade. Trad. Carlos Felipe Moisés, Ana Maria L. Ioriatti. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. p.197-9. 199 APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Op.cit. p.11. 196 197 89 primeiras obras urbanas, tenha pensado na construção de prédios do poder público no centro. Planejava-se construir os prédios da Prefeitura e da Câmara Municipal, o Mercado Público e ampliar a Cadeia Pública.200 É bom lembrar que outras edificações vinculadas ao Estado já estavam presentes nesse cenário urbano, como é o caso do Instituto do Cacau e da Estação de trem da Estrada de Ferro Ilhéus-Conquista. A presença desses prédios contribuiria para que os segmentos políticos dirigentes marcassem posição no espaço central de Itabuna. Conforme já foi dito, limitada pelo rio Cachoeira ao sul e pelo ribeirão Lava-Pés a leste-norte, os engenheiros construíram um plano urbano que desenhava geometricamente e delimitava claramente as fronteiras da zona do centro. Essa referência servia inclusive para apontar os limites entre o perímetro central e o perímetro adjacente, conforme consta no Código de Posturas do município. 201 O primeiro compreenderia todas as ruas, travessas e praças da cidade, calçadas ou não. O segundo era formado pelos bairros da Jaqueira, Pontalzinho, Misericórdia (Santa Casa) e Conceição. 202 Isso também parece estar claro para Erahsto Souza, quando aponta que “o centro de Itabuna criou fronteiras simbólicas” que definiam o território de atuação dos setores políticos hegemônicos.203 Pelas observações de Da Rin, Gonçalves e Brito Filho, com exceção do Conceição, esses bairros foram apontados como lugares que a Prefeitura deveria tomar iniciativa de municipalizar. Para isso, eles defendiam a desapropriação da área e a remoção dos trabalhadores pobres que ali viviam para outros lugares. Para os urbanistas, o afastamento dos segmentos mais pauperizados daqueles logradouros resultaria na melhor definição das fronteiras urbanas e na ocupação das áreas centrais pelos elementos do poder público. As impressões de que o centro de Itabuna se tornava um território diferente dos espaços adjacentes do município eram sentidas na medida em que se procurava ressaltar os feitos da Prefeitura. Em 25 de março de 1937, o A Época trazia uma nota que potencializava as novas feições urbanas, surgidas depois das primeiras obras do plano de urbanização. Aquele que chega a sede de Itabuna, depois de percorrer bairros adjacentes, tem a impressão de encontrar um oásis no deserto. É como se abrir uma janela para o mar. Jardins. Praças bonitas. Arborização intensiva. Lojas cheias de cousas e de vida. [...] O solo é revirado, amontoa-se nas beiras das ruas, terra e cimento, em todos os lados o trabalho fecundo e silencioso produz obras. APEBa. Companhia Construtora Nacional. Contrato do sistema de água e esgoto de Itabuna. Bahia, 4 de março de 1936. p.127. 201 APMIJD. Código de Posturas do Município de Itabuna. Ato n.º184 de 9 de junho de 1933, Itabuna: Tipografia D’A Época, 1933. 202 Idem, Idem. p.6. 203 SOUSA, Erahsto Felício. O Conceição em retalhos de cidade, margens e dono: uma Itabuna-Ba nos territórios subalternos (1950-1955). Ilhéus: UESC, 2007. p.17. 200 90 Saneamento, urbanização da cidade, uma vontade de ferro que anima os homens e as cousas.204 Os padrões urbanos do centro de Itabuna servem de parâmetro para definir a sensação de comodidade e de organização enunciada pelo autor da nota, assinada com as iniciais de T.T. São os melhoramentos urbanos construídos no centro, além do andamento das obras de saneamento, que parecem definir os limites dos espaços de intervenção do poder público. O registro das lojas cheias não deixava passar despercebido que aquele deveria ser o lugar também do poder econômico, impulsionado pelas atividades do comércio local. O “oásis” era o lócus da organização dos poderes que administram as cidades, e a linguagem urbana deveria ser determinada pelos segmentos hegemônicos, mediante suas leis e seus padrões. O “deserto” certamente seria o diferente, o “não-urbano” ou o “sub-urbano”, as áreas que a racionalidade das camadas dirigentes políticas não conseguia alcançar e das quais as pessoas pobres comuns faziam outros usos. No perímetro central, a linguagem formal e técnica de explicação da cidade seria mais intensa. Renovar as casas, alinhar as ruas, transformar as praças seriam elementos materiais de um discurso que visava a condicionar o modo de vida das pessoas em Itabuna, levando em conta apenas as formas da cidade sem se dedicar aos usos comuns e populares da cidade.205 Os planos de urbanização parecem ter delineado os territórios do poder em Itabuna em um campo considerado ideal. Defendendo a intervenção das municipalidades em espaços ocupados pelos trabalhadores e preocupados em privilegiar a zona central com os melhoramentos urbanos, foi possível entender que os engenheiros se preocuparam não só em higienizar e embelezar a cidade, mas em desarticular espaços de usos da população pobre. Em contrapartida, as novas vias urbanas acompanhadas de seus acessórios deveriam ser símbolos da lógica urbana a ser estabelecida pela ordem vigente. Criava-se um novo padrão de cidade, o qual resvalou na valorização dos espaços citadinos que deveriam ser ocupados pelos prédios públicos e comerciais, ou por residências das famílias mais tradicionais. Por conta das planejadas reformas urbanas, o mercado imobiliário e os impostos criados pelo poder público passaram a ser um elemento importante para se entender a maneira como os espaços centrais da cidade passaram a ser ocupados pelos setores sociais hegemônicos. CEDOC/UESC. Jornal A Época, 25 de março de 1937, AnoXV, n.º 833. p.1. LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana Angotti Salgueiro; tradução Cely Arena. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. O autor destaca que os urbanistas tendem a dissociar a morfologia e dos usos sociais, preocupando-se em demasia com suas formas e reduzindo a atenção para as práticas urbanas comuns. p.77. 204 205 91 O Plano e o mercado imobiliário O comportamento do mercado imobiliário se alterou com a iminência da execução das primeiras obras de saneamento de Itabuna. As notícias de que novas avenidas seriam abertas, faziam com que antigas fazendas se tornassem terrenos à venda. Foi desta maneira que o Jornal Oficial informou ao público que lotes de terras estavam sendo comercializados em áreas que seriam beneficiadas com o plano de urbanização. Em maio de 1935, os jornais ligados à Prefeitura chamavam a atenção para que os interessados em construir imóveis nas futuras Avenida do Canal, Avenida Joaquim Inácio Tosta, Avenida Pirangy (atual Av. Itajuípe) e ruas transversais aos terrenos do senhor Martinho Conceição, se dirigissem até o “Parc Itabunense”, na rua J. J. Seabra, para apreciar as plantas. Complementando, noticiou que Consoante estamos informados, há grande interesse e procura na compra dos referidos lotes de terrenos, cuja venda está sendo feita à vista e a prestações, sendo, portanto, de grande conveniência os interessados procurarem com urgência o proprietário, afim de não perderem uma tão boa oportunidade para bem localizarem os seus futuros prédios, pois é desejo do Sr. Dr. Prefeito desta cidade mandar calçar, arborizar e iluminar a avenida Joaquim Inácio Tosta, desde que se iniciem as primeiras construções. 206 Esse tipo de nota não foi incomum na imprensa oficial e nos jornais comerciais de Itabuna. A proximidade com as primeiras reformas urbanas decorrentes do plano diretor criou uma expectativa de comercialização das áreas baldias no centro e, por conseguinte, a ocupação destes pelas camadas mais abastadas da sociedade itabunense. O que chama atenção para este anúncio é a relação que se estabelece entre o mercado imobiliário e os poderes públicos. Primeiro, porque ele tinha como título “Avenidas que se rasgam”, o que parecia sugerir mais um empreendimento da Prefeitura. Segundo, a clareza do periódico em apontar que o prefeito esperava apenas a construção dos primeiros prédios para proceder a urbanização daquele local. Isso parece indicar uma relação de proximidade entre os interesses das autoridades municipais e os das elites que movimentavam o mercado imobiliário. A partir de 1936, quando as reformas urbanas foram iniciadas para a instalação do sistema de água e esgoto, o grupo político dirigente esperava que as obras públicas fossem acompanhadas de iniciativas particulares. O A Época, em 30 de janeiro de 1937, após apontar o início das obras de saneamento, da abertura de avenidas e da retificação do canal de Lavapés, cobrava uma resposta dos setores privados aos feitos da administração pública. Naquela oportunidade, o semanário esperava que “a iniciativa particular corresponda ao esforço do 206 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 11 de Maio de 1935, Ano V, n.º 216. p.1. 92 operoso prefeito e a seu tempo, erga prédios condignos nas novas avenidas que estão sendo abertas e que transformarão Itabuna numa cidade à altura de seu desenvolvimento.” 207 A medida que as obras prosseguiam, outras demandas começavam a ser cobradas, tanto pelos poderes públicos como pela imprensa. Parte da imprensa procurava organizar um discurso que motivasse a iniciativa privada a acompanhar as obras de urbanização no centro de Itabuna. Para isso, os jornais cobravam a construção de vários estabelecimentos, tais como cinemas, teatros e hotéis. Em março de 1937, A Época tornava a reclamar a construção de um cinema condigno para substituir “aquele corredor adaptado”, referindo-se ao Elite Cinema: “o que Itabuna necessita é um cinema à altura de seu progresso. A lamentável falta de iniciativa particular entre nós é a causa de tais deficiências.”208 Outro exemplo de cobrança era a construção de hotéis que pudessem se incorporar aos novos padrões da cidade. O mesmo jornal dizia que “o viajante que aqui chega, volta à tarde para Ilhéus, afim de pernoitar ali, pois os nossos pardieiros não merecem o nome pomposo de hotéis.”209 Embora a matéria não faça referências nominais ao que considerava “pardieiro”, há registros de várias pensões existentes na região central, como é o caso da Rua Ruy Barbosa, mas que eram freqüentadas pelos setores mais pobres, segundo o lançamento das décimas urbanas. Na tentativa de incentivar a construção de prédios de utilidade pública por parte da iniciativa privada, os poderes municipais resolveram criar dispositivos legais para beneficiar grupos e pessoas empreendedores. Tendo em vista essa medida, os vereadores aprovaram o projeto de lei nº 35, autorizando a concessão de isenção tributária a quem erguesse prédios ou residências em áreas de terreno baldio ou com construções em ruínas. Ademais, esta isenção seria válida também para aqueles que construíssem nas futuras avenidas do perímetro central. Para obterem a dispensa do imposto municipal, os proprietários deveriam obedecer às regulamentações estabelecidas pela diretoria de higiene pública e observar as leis sanitárias. As novas construções deveriam ficar prontas no prazo de um ano após a liberação da licença para a obra. A isenção variava entre cinco e dez anos de isenção do imposto predial. 210 Após a publicação desta medida no Jornal Oficial, foi beneficiada grande parte das pessoas que faziam parte do grupo político ou social hegemônico de Itabuna. Alguns deles foram os mesmos vereadores que haviam apreciado o projeto de lei no legislativo local. Veja, CEDOC/UESC. Jornal A Época, 30 de janeiro de 1937, Ano XV, n.º 812. p.1. CEDOC/UESC. Jornal A Época, 23 de março de 1937, Ano XV, N.º 823. P.1. 209 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 16 de fevereiro de 1937, Ano XV, n.º 817, p.1. 210 APMIJD. Livros de projetos e leis do município de Itabuna. Projeto de lei n.º36. Isenta de taxas e impostos os prédios novos construídos na cidade e nos distritos administrativos. 7 de novembro de 1936. p.59. 207 208 93 por exemplo, o caso de Nicodemos Barreto, membro do Conselho Municipal, que recebeu, em julho de 1937, a isenção de décimas urbanas por ter construído prédio comercial, atendendo aos padrões higiênicos e estéticos. O parecer da diretoria de Obras Públicas e da Higiene Municipal apontava que o imóvel se tornava uma das edificações “mais aprazíveis e belas da cidade”.211 Outro que também foi beneficiado foi Antonio Tourinho, igualmente membro do legislativo, que solicitou da Prefeitura liberação do tributo por ter construído residência “de acordo com as exigências de higiene e beleza dos foros de Itabuna”. 212 A nova legislação tributária urbana também favoreceu a sujeitos oriundos das elites locais que não eram membros das municipalidades. Em junho de 1937, José Ramos, comerciante, recebeu parecer favorável a um pleito e teve dispensa do imposto predial por cinco anos por ter construído em terreno baldio. Além dele, Amphilóphio Rebouças, fazendeiro e comerciante, também recebia a vantagem pelo mesmo motivo de Ramos.213 A aferição de vantagens da Prefeitura por parte dos membros do Conselho Municipal e de pessoas ligadas às elites locais sinalizava os interesses convergentes entre o poder público e os segmentos hegemônicos na urbanização de Itabuna. É importante lembrar que a concessão de décimas urbanas se pautava no interesse de que as reformas urbanas realizadas pela administração pública fossem acompanhadas pela iniciativa particular, como reclamava a imprensa. Além disso, uma consulta ao registro de lançamento das Décimas Urbanas permite indicar que a maior parte dos prédios beneficiados com a isenção do imposto se localizava no perímetro central. Os prédios de Nicodemos Barreto e Antonio Tourinho, por exemplo, se localizavam nas duas ruas mais movimentadas da cidade – Ruas J.J. Seabra e Sete de setembro, respectivamente.214 Isso pode sugerir também a forma como centro da cidade foi sendo ocupado pelos grupos enriquecidos de Itabuna. Um caso que pode deixar mais claro tanto o beneficiamento dos segmentos hegemônicos, como a ocupação do centro da cidade por este setor da sociedade, é a construção do Hotel Avenida. Como se pode ver, uma das exigências da imprensa era que se erguesse um prédio público que pudesse abrigar “satisfatoriamente” os visitantes. Este já era um anseio que remetia ao ano de 1934, quando o Conselho Municipal defendia a criação de vantagens tributárias para quem construísse um “hotel de primeira classe do nível do progresso social e econômico” de Itabuna, já que “os hotéis existentes não satisfazem nem APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna,.sábado, 24 de julho de 1937, Ano VII, n.º 329. p.1. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna,.sábado, 17 de abril de 1937, Ano VII, n.º 315. p.2. 213 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna,.sábado, 4 de julho de 1937, Ano VII, n.º 326. p.2. 214 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna,.sábado, 23 de janeiro de 1937, Ano VII, n.º 303. p.2. 211 212 94 recomendam nosso adiantamento”.215 Com o início das primeiras obras de saneamento, essas reivindicações assumiram um peso maior. Foi com este intuito que Carlos Maron resolveu assumir o projeto de construir uma hospedaria. Maron era uma figura influente no cenário político e social da cidade. Além de ter feito parte do legislativo, ele era sócio do Banco Rural de Itabuna e membro efetivo da Associação Comercial, o que lhe conferia status suficiente para empreender a construção de um hotel, obtendo apoio do governo municipal. 216 Em julho de 1937, o A Época noticiava a inauguração do Hotel Avenida. Com 26 quartos e localizado na Rua Firmino Alves (região denominada, pelos engenheiros, Avenida do Cais), o periódico destacava que a abertura do novo estabelecimento contemplava uma lacuna existente em Itabuna. Destacava que se tratava “de um estabelecimento instalado com todos os requisitos da higiene, indispensáveis ao seu funcionamento.”217 A propaganda do recinto apontava também que todos os aposentos possuíam água corrente, além de ressaltar o ambiente de “ordem, respeito e asseio”, características que eram apontadas talvez para diferenciá-lo dos demais que existiam na cidade. Por fim, expressava em letras sublinhadas e destacadas que era “rigorosamente familiar”. 218 Com toda a propaganda produzida em torno do seu estabelecimento, Carlos Maron argumentava que o valor da construção, aproximadamente oitenta contos de réis, era uma demonstração de seu interesse pela terra, esperando obter da Prefeitura a isenção das décimas urbanas. 219 A construção do hotel nos permite identificar alguns elementos na relação entre urbanização e mercado imobiliário. O primeiro deles é notar a forma como o empreendimento estava ligado aos novos padrões de prédios com as primeiras obras de melhoramentos urbanos. O nome da hospedaria recém-construída indicava sua proximidade com os aspectos das reformas urbanas, pois era pretensão abrir a Avenida do Cais (atual Avenida Beira Rio) naquele local. Também na propaganda do hotel isso era bastante expresso, quando salientava que se situava em “ponto aprazível de onde se descortina soberbo panorama.”220 Esses elementos, por conseguinte, apontam a ocupação das áreas centrais por parte da iniciativa privada. É importante lembrar também que a região em que foi erguido o prédio havia sido desapropriada pela Prefeitura para que não fossem construídos mais imóveis, conforme APMIJD. Livro de Atas do Conselho Consultivo do Município de Itabuna. Ata da 20ª sessão ordinária do Conselho Consultivo do Município, realizada em 23 de outubro de 1934. p.49. 216 GONÇALVES, Oscar. Jequitibá da Taboca: ensaios históricos de Itabuna. Itabuna: Oficinas ráficas da imprensa oficial da Bahia, 1960. p.137. 217 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 30 de julho de 1937, Ano XV, n.908. p.1. 218 CEDOC/UESC. Jornal Diário da Tarde, 10 de julho de 1939, Ano XII. P.4. 219 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 28 de outubro de 1937, Ano XV, n.º 915. p.1. 220 CEDOC/UESC. Jornal Diário da Tarde. Op. cit., p.1. 215 95 sugestão dos urbanistas. No entanto, o poder municipal parece ter aberto uma exceção para o Hotel Avenida. A construção do Hotel Avenida parece ser uma evidência da ocupação do perímetro central da cidade pelos setores hegemônicos de Itabuna, mediante o anseio do erguimento de prédios públicos. Na mesma nota em que se anunciava a inauguração da hospedaria, o A Época reiterava a falta de outros tipos de estabelecimento, tais como cinemas, teatros e estádios, que “tragam o conforto e o bem-estar de nossa gente.”221 Outra evidência da relação entre o plano de urbanização e o mercado imobiliário é o aparecimento de empresas de engenharia civil a partir de 1935. Compostas por engenheiros, elas se apresentavam como voluntárias para servir à cidade com a construção de estabelecimentos culturais e sociais. Foi dessa forma que o mesmo periódico noticiava o aparecimento da Sociedade Anônima de Melhoramentos Urbanos. A par do benefício que tais obras passam trazer à população deste município, ainda representa a “Sociedade Anônima Melhoramentos de Itabuna”, um campo vasto e importantíssimo para a inversão de capitais, grandes ou pequenos, com uma compensação imediata, vultosa e garantida. As construções projetadas, tais como o Mercado Público, um grande Hotel e um Cine-Theatro, apresentarão rendimentos contínuos e certos, dando portanto, uma razoável renda aos acionistas. Sob o ponto de vista econômico, ainda, a construção de um Ginásio Equiparado, é uma obra de valor inestimável para Itabuna, uma realização moral engrandecedora. A instrução secundária, tão mal amparada entre nós, está atualmente reservada apenas aos filhos dos homens com maiores recursos financeiros, os quais despendem desarrazoadamente na Capital do Estado importâncias excessivas para tal fim – quando com um estabelecimento equiparado, entre nós, teríamos vantagens incalculáveis, poupando despesas aos ricos e facilitando os estudos aos pobres. 222 A sociedade prometia a construção de estabelecimentos de utilidade pública, tais como escolas, teatros e mercado público. Em troca, garantia a rentabilidade dos investimentos para os sócios empreendedores. Em outra reportagem, o periódico era informado que a chegada desta sociedade chegava para resolver satisfatoriamente os inconvenientes que impediam o desenvolvimento de novas construções na cidade.223 Em julho de 1935, a Sociedade Anônima de Melhoramentos Urbanos se unificava com a Empresa de Construções Civis Ltda. Embora não tenhamos dos membros que faziam parte da primeira agremiação, há indícios de que entre eles houvesse muitos que integravam os poderes municipais, a partir dos fragmentos que identificamos no Jornal Oficial. A imprensa oficial informava que a Empresa de Construções Idem, Ibidem IGHB. Jornal A Época, 1º de agosto de 1935, Ano XIV, Nº 592 223 IGHB. Jornal A Época, 13 de agosto de 1935, Ano XIV, nº 597 221 222 96 Civis estava sob a liderança de José Nunes Mattos Filho, Antonio Nunes de Aquino, Diógenes Rebouças, Nelson Oliveira e Randulpho Cunha.224 Destes, dois podem ser identificados. O primeiro havia pertencido ao Conselho Consultivo entre os anos de 1932-1935, responsável pelo parecer favorável do Conselho Municipal ao projeto de urbanização de Brito Filho.225 O segundo era diretor da Secretaria de Obras Públicas, além de membro da tradicional família Nunes de Aquino, proprietária de latifúndios no município. Por fim, todos pareciam fazer parte do mesmo grupo político do PSD de Claudionor Alpoim. A Empresa de Construções Civis tinha as mesmas intenções da ex-Sociedade Anônima. Diante do plano de urbanização aprovado para Itabuna, a empresa se colocava a disposição do poder público e da iniciativa privada para empreender a construção de estabelecimentos desejados pelos segmentos dominantes da cidade. Em resposta, o Jornal Oficial apontava que novas obras estavam na iminência de serem iniciadas e, por isso, a nova firma de engenharia poderia concorrer para realizá-las. Já são do conhecimento público os transcendentais problemas que estão a preocupar o prefeito Dr. Alpoim. Dentre estes, notam-se a construção de um “mercado modelo”, um hotel e um teatro, cujas obras serão postas em execução, mediante concorrência pública. Assim sendo, não faltariam empresas ou sociedades estranhas ao nosso meio, para se candidatar à concessão de tais obras, se a iniciativa particular não se fizesse a tempo, evitando a invasão do elemento estranho que, a frente de tão vultosas obras, não deixariam, em parte, de prejudicar a economia do município, com a exploração de serviços que poderão ser feitos, com reais vantagens, pelas empresas, que são compostas, sem favor, de componentes técnicos de reconhecida idoneidade profissional. 226 Em boa medida, as pessoas que faziam parte da Empresa de Construções Civis eram pessoas reconhecidas pelo poder municipal, sobretudo por fazerem parte do mesmo grupo político do prefeito. Um sinal disso é o telegrama enviado por Claudionor Alpoim em agradecimento à comunicação da criação da citada empresa. Dizia o chefe do executivo que agradecia a “iniciativa [de] cooperar [com o] governo municipal [para a] grandeza de Itabuna cujo futuro minha fé ardente antevê brilhante.”227 Este poderia ser um indício de que a Empresa de Construções Civis estaria bem próxima dos interesses do Governo local. Todavia, ao contrário do que esperavam os engenheiros, a instalação dos serviços de saneamento foi encaminhada para a Companhia Nacional S.A., e as outras obras planejadas pela Prefeitura APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 6 de julho de 1935, Ano VI, n.224. p.6. APMIJD. Livro de Atas do Conselho Consultivo de Itabuna (1932-1935). Ata da 17ª Sessão Ordinária do Conselho Consultivo de Itabuna, realizada em 30 de maio de 1934. p.41 B. 226 Idem,Ibidem. 227 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 13 de julho de 1935, Ano VI, n.º 225. p.5. 224 225 97 terminaram não se tornando realidade. Desse modo, coube à firma local se dedicar a fazer imóveis residenciais. Em suas propagandas, ressaltava a edificação de imóveis dentro dos padrões instituídos pela Secretaria de Obras Públicas, quais sejam, residências que possuíam jardins na parte frontal, separando a rua da casa, niveladas e alinhadas de acordo com a topografia da via, linhas arquitetônicas bem delineadas. Destacava-se, também, que suas construções eram realizadas com concreto armado.228 Como garantia dos “bons serviços”, a publicidade dos empreendimentos sempre trazia uma fotografia dos últimos trabalhos feitos para as famílias tradicionais de Itabuna. Entre elas, identificamos a residência da senhora Petrina Torres Falcão, na Rua J. J. Seabra, que havia demolido sua casa para erguer outra em seu lugar. Outro que também adquiriu os serviços foi João da Cruz Ribeiro, morador da Rua Domingo Lopes. No intuito de conseguir novas construções de residências e de prédios comerciais, a Empresa de Construções Civis Ltda. encomendou uma pequena coluna em outro órgão da imprensa. Nela, tratava-se da edificação de casas baratas e das tragédias que aconteciam na cidade. Iniciando a matéria, a nota dizia que as pessoas procuravam construir suas moradias da forma mais econômica possível. Nas palavras do periódico, os sujeitos, procurando fugir das instabilidades dos aluguéis e buscando construir seu espaço de sobrevivência, resolviam erguer sua própria casa, sem para isso contar com o apoio especializado dos técnicos. Para tanto, segundo a coluna, pagava-se a indivíduos sem preparo para desenhar a planta do imóvel, sem obedecer aos critérios de higiene e estética instituídos pelo Código Sanitário. A conclusão do texto se encaminhava para sugerir que esse tipo de empreendimento resultava em um imóvel com “desconforto, desassossego e inconveniência originada da péssima execução do projeto.”229 Embora a propaganda queira apontar os problemas oriundos de construções sem o apoio técnico de um engenheiro, ela termina apontando os problemas que os trabalhadores enfrentavam para garantir seu lar. Em meio a aluguéis, eles erguiam as casas a partir de sua demanda imediata. Sem o auxílio de engenheiros, os setores populares iniciavam suas obras a partir de suas necessidades, com a ajuda das pessoas que lhe eram mais próximas. Para os padrões arquitetônicos e urbanísticos da Empresa de Construções Civis Ltda. esse tipo de empreendimento contrariava seus interesses, já que a empresa se baseava em Códigos Sanitários que não se adequavam, em boa medida, às expectativas dos mais pobres. É uma tensão entre um grupo de profissionais que se fundamentava na racionalização dos imóveis 228 229 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 17 de julho de 1937, Ano XV, s/n.º p.1. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 4 de janeiro de 1936, Ano X, n.º18. p.1. 98 residenciais e comerciais, mediante projetos ligados aos interesses dos segmentos hegemônicos; e a gente pobre que construía suas casas tendo em vista as carências de seu modo de vida. Disso resultava, nas conclusões do periódico, dizer que “esta é feia, tem solidez duvidosa, acabamento de aspecto desagradável, há falta de conforto geral. E perdurarão por longos anos estes desagradáveis inconvenientes.”230 Ressaltar as formas de construção das camadas populares com aspectos negativos era uma maneira encontrada, pelos representantes da empresa de engenharia civil, de ressaltar positivamente seus próprios padrões de moradia. Tratava-se de convencer, por meio da inversão de papéis, apontando as fissuras do Outro para destacar seu modelo urbano.231 Isso ocorre a partir da sintonia de interesses privados com o poder público. Na esteira dos novos valores de urbanidade que resvalam do projeto de urbanização, qual seja, higiene e estética, as construtoras encontravam um intervalo para vender seus serviços. Isso indica que as primeiras reformas urbanas foram também utilizadas como espaço de atuação de profissionais liberais que possuíam vínculos políticos muito próximos com as autoridades municipais. Como foi apontada, a concessão de isenção das Décimas Urbanas para a construção de novos imóveis privilegiou indivíduos de posses e que estavam ligados diretamente aos políticos da situação ou às tradicionais famílias de Itabuna. Na mesma medida em que beneficiavam essa parte da população, as municipalidades resolveram criar os impostos para estorvar a presença de prédios e de habitações populares. O primeiro desses impostos foi a Taxa de Saneamento, criada no final do ano de 1935. Na criação desse tributo, a Prefeitura levou em consideração que as obras de abastecimento de água e saneamento, necessárias à Itabuna, eram caras demais, sendo inevitável para os cofres públicos a continuação dos serviços sem contar com a ajuda dos munícipes. Dessa maneira, foi criada a referida taxa, cujo cálculo era feito com o acréscimo de dez por cento ao valor do imposto predial de cada contribuinte.232 Mais de um ano depois, a taxa de saneamento provocou um efeito não desejado pelas municipalidades. Outrossim, o poder público resolveu criar outros dois tributos, a taxa de incêndio e a de vigilância, a primeira com vistas a implantar o corpo de bombeiros e a segunda para ampliar o funcionamento da Guarda Municipal. Em abril de 1937, o A Época noticiava que proprietários de imóveis residenciais e prédios comerciais estavam repassando Idem, ibidem. BHABHA, Homi K. O local da cultura. trad. Myriam Ávila, Eliana Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998. p.77. Bhabha aponta que a identificação do projeto dominante se dá sempre na fissura no lugar do Outro, isto é, negando o diferente ou o antagônico na ordem estabelecida. 232 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 18 de janeiro de 1936. Ano V, n.º 251, Ato 234, 16 de dezembro de 1935. p.1. 230 231 99 os custos da cobrança dos novos tributos para o valor dos aluguéis. Nas palavras do jornal, “baseados na crença dessas taxas, os proprietários estão majorando, de maneira absurda, os aluguéis de seus prédios dando como pretexto o aumento da tributação.”233 Os aumentos verificados sobre a locação dos imóveis parecem ter tornado a relação entre as municipalidades e a população pobre um pouco tensa, visto que a matéria indicava que os procedimentos dos proprietários criava uma “situação de antipatia contra os poderes públicos, cujo único intuito é melhorar a cidade, dotando-a de novos e imprescindíveis serviços. E para isto, todos sabem, é necessário a criação de impostos e taxas, não exorbitantes, como querem fazer crer aos inquilinos”234 A situação da habitação não era das melhores em Itabuna durante a década de 1930. Em notícia sobre a paralisação do financiamento para a construção de casa, o A Época solicitava ao banco federal que retomasse sua linha de crédito com vistas a “resolver em parte, a angustiosa situação da falta de habitações entre nós.”235 Certamente este era um problema para “os de baixo”, visto que lhes restava apenas construir suas casas sem muitas regalias ou pagar aluguel. O aumento dos aluguéis por conta dos novos impostos provavelmente traria desconforto entre os setores dirigentes política e os subalternos. Talvez por isso, a necessidade de reafirmar a importância das novas taxas para a população através da imprensa local. No entanto, mesmo diante dos argumentos do governo municipal, a insatisfação com as taxas cobradas tomou corpo em junho de 1938. Após um incêndio na Padaria 2 de Julho, localizada na Rua J.J. Seabra, que tomou proporções catastróficas, O Intransigente se perguntava sobre o prometido Corpo de Bombeiro que seria criado com a aludida taxa. Itabuna paga uma taxa a mais, além das múltiplas já cobradas sobre as propriedades urbanas – a taxa de Segurança e Incêndio, que por castigo, não é módica. Das promessas que nos ficaram, a mais gritante é a da criação do Corpo de Bombeiros, porque estamos pagando a idéia de sua criação. Pagando a essência, o espírito... A revolta do povo contra esse menoscabo à sua dignidade, porém, é patente. E, nas labaredas que crepitaram na noite de domingo último, crepitavam também o protesto popular. Todos perguntavam pelo “Corpo de Bombeiros”, enquanto o prédio sinistro ia aos poucos, ruindo. 236 Cumprindo a função de jornal oposicionista em Itabuna, este semanário representava em parte a insatisfação em relação à cobrança de tributos pela administração pública. Ao que CEDOC/UESC. Jornal A Época, 8 de abril de 1937, Ano XV, nº ilegível. p.1. Idem,Ibidem. 235 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 6 de fevereiro de 1937, Ano XV, nº 814. p.1. 236 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 11 de junho de 1938, Ano XII, n.º 41. p.1. 233 234 100 parece, nem a implantação do Corpo de Bombeiros e nem a ampliação da Guarda Municipal foram verificadas até o ano de 1940. Embora a cobrança dessas taxas atingisse as camadas populares que pagavam aluguel, uma parcela dos comerciantes locais também se sentia prejudicada com a política tributária do município. Talvez este seja o caso da Padaria 2 de julho, que não recebeu nenhuma indenização da Prefeitura. No entanto, não foram apenas estas taxas que mexeram com os interesses da população pobre. Retornando a 1936, verificou-se a criação de uma nova tributação pela Prefeitura. Além do imposto predial, cobrava-se também o imposto territorial em 5 de setembro daquele ano. Essa nova taxa recaía sobre os indivíduos que habitassem ou fossem responsáveis por terrenos de prédios inacabados, desabados, inabitáveis, ruínas e incendiados, além de terrenos baldios que estivessem na zona urbana de Itabuna. Os valores destes encargos municipais variavam entre dez mil e cem mil réis, a depender da localização do imóvel. Além disso, ao valor total, seriam adicionados mais dez por cento para auxílio das obras de saneamento da cidade.237 Essa medida estava em sintonia com os interesses estabelecidos pela classe política dirigente que queria evitar a existência de “prédios em ruínas e terrenos baldios que afeiam os aspectos urbanos [de Itabuna]”238 A criação destes impostos não parece apenas atender aos anseios de melhoramentos das condições estéticas e higiênicas dos prédios urbanos, mas também tem o fim de evitar a ocupação destes espaços pela parcela pobre da população. Desempenhando novamente sua função de imprensa de oposição, O Intransigente indicava sua insatisfação com a nova taxa municipal no que toca aos moradores pobres do perímetro adjacente da zona urbana. Em uma matéria sobre o tema, dizia que protestava e apelava ao “senhor prefeito, no sentido de ser extinta ou diminuída as taxas sobre os baldios, fora do perímetro urbano, como, por exemplo, Santa Casa, Pontalzinho, Caixa D’água, onde mora a pobreza [...] que não tem o direito de viver nas ruas, hoje calcadas e iluminadas”.239 Este imposto atingiria outro tipo de habitação comum em Itabuna, chamada de meia-água, casebres que possuíam no máximo, dois cômodos, muitas vezes erguidas em ruínas na qual moravam várias famílias. Para o mesmo semanário, nem mesmo aquele que “mal se cobre em telheiros, ruínas e meia-águas não poderá permanecer nesses subúrbios, onde já o fisco quer alcançá-lo com suas mão de ferro.”240 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 26 de setembro de 1936, Ano VI, n.º 287. p.2. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 8 de dezembro de 1934, Ano III, n.º 194. p.1. 239 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de agosto de 1936, Ano X, n.º 49. p.1. 240 Idem,Ibidem. 237 238 101 A criação de novos impostos contribuiu para o aumento dos preços dos aluguéis e para a tentativa de diminuir a existência de imóveis inabitados, ruínas e terrenos baldios. De alguma forma, esses novos tributos também compensavam as isenções concedidas aos indivíduos que construíssem imóveis dentro dos padrões estipulados pelos poderes públicos. Essas taxas geraram, para o Governo Municipal, uma arrecadação de dois mil contos de réis para o ano de 1937.241 Isso seria o suficiente para que a Prefeitura quitasse parte considerável do empréstimo tomado à Caixa Econômica para a implantação do sistema de distribuição de água e esgoto, no valor 3.200:000$000 (três mil e duzentos contos de réis). No entanto, o pagamento não foi realizado totalmente. Até aqui, já é possível notar que o mercado imobiliário estava relacionado ao andamento do plano de urbanização de Itabuna. Na medida em que se implantava o sistema de água e esgoto e calçavam-se ruas e avenidas, criava-se também tributos e apareciam empresas de construção civil. Diante de sua expansão urbana, outra empresa surgia no horizonte da cidade. Tratava-se da Empresa de Terrenos Urbanos Ltda., liderada pelas mesmas pessoas que dirigiam a Empresa de Construções Civis. Dessa vez, Antônio Nunes de Aquino falava sobre a abertura de um novo bairro, chamado de Cidade Jardim. Nas palavras do engenheiro, aquele seria “o bairro número 1 e orgulho de nossa cidade”. 242 O empreendimento se situava próximo de importantes pontos, entre eles: ao lado do Reservatório de Abastecimento de Águas, perto da colina da estação de tratamento, da praça de esportes e do Estádio Itabuna (atualmente, região próxima ao Centro Cultural, no bairro Zildolândia). A região também ficava muito próxima do perímetro central. Configurava-se quase como extensão das ruas que passavam pelo centro, como é o caso das ruas Ruy Barbosa e sete de setembro. Sobre o empreendimento Aquino informava ao A Época que contava com o apoio do Governo Municipal, o qual havia prometido “iniciar imediatamente o arruamento e arborização do bairro, assim como para ali serão levados, em breve tempo, os melhoramentos indispensáveis à cidade moderna, luz, água, esgoto, escolas e jardins”243 No entanto, para entender melhor este empreendimento, é importante retornar a 1936. Em 30 de maio daquele ano, o Jornal Oficial informava que o Cel. Berilo Guimarães fazia uma doação de uma faixa de terreno da sua propriedade à Prefeitura. A finalidade do oferecimento seria para proporcionar um espaço para a implantação dos serviços de Água e Esgoto. Para a imprensa do Governo, tratava-se de um homem que sabia “sacrificar os seus APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 1º de janeiro de 1938, Ano VIII, n.º 352. p.2. CEDOC/UESC. Jornal A Época, 12 de agosto de 1937, Ano XV, n.º 891. p.1. 243 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 12 de agosto de 1937, Ano XV, n.º 891. p.1. 241 242 102 mais legítimos interesses pelo bem comum dos governados”. 244 Depois de um ano de obras, tendo sido instalada a estação de tratamento de água nas antigas terras do fazendeiro, aparecia o projeto de criação da Cidade Jardim. O detalhe significativo é que o novo bairro surgiria exatamente no restante de suas terras, que, após as obras, passou a ser valorizado pela proximidade com o novo sistema de distribuição de água. Por isso, parece que a doação feita ao poder público, sob a justificativa do “sacrifício” de seus interesses, resultou na rentabilidade financeira de suas terras. O que sobrou das terras de Berilo Guimarães, por conseguinte, foi loteado, dando origem ao projeto da Cidade Jardim. O projeto parecia agradar a boa parte dos segmentos hegemônicos da política local. Garantindo o retorno do investimento, a Empresa apontava que diversas pessoas importantes haviam adquirido seu lote, entre elas, o próprio prefeito da cidade, Claudionor Alpoim, o ex-prefeito Glicério Lima, os engenheiros José Nunes de Aquino e Mário Silva, os médicos Orlando e Alberto Galvão.245 Estes são alguns dos que receberam “com a mais animadora acolhida [...] a iniciativa da ‘Empresa de Terrenos Urbanos’, que visa dotar a nossa cidade de mais um bairro residencial, este em traçado modelar e irrepreensível.”246 Pela forma como descrevia a construção do novo bairro, a Cidade Jardim deveria ser a expressão moderna de um logradouro planejado de acordo com os padrões de urbanização dos engenheiros daquela firma, habitado por sujeitos que possuíssem condições financeiras suficientes para adquirir os lotes. Este deveria se contrapor aos outros bairros, por ser “modelar e irrepreensível” na visão da empresa de terrenos. Ademais, quando da inauguração de sua pedra fundamental, em 8 de setembro de 1937, o A Época anunciava que as pessoas que tivessem adquirido e que adquirissem os primeiros lotes gozariam da isenção das Décimas Urbanas, concedida pela Prefeitura.247 ********** Ao anunciar a concessão de benefícios ao empreendimento da Cidade Jardim, o poder municipal evidenciava a relação entre o mercado imobiliário e o plano de urbanização de Itabuna. Foi possível identificar uma política tributária que concedia isenções de impostos locais para capitalistas que erguessem imóveis de acordo com os interesses do poder público, APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 30 de maio de 1936, Ano VI, n.º 270. p.1. Algo em comum entre estes sujeitos era o fato de pertencerem ao mesmo grupo político do PSD, liderado por Gileno Amado, entre os anos de 1933 e 1937. 246 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 19 de agosto de 1937, Ano XV, n.º 892. p.1. 247 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 10 de setembro de 1937, Ano XV, n.º 892. p.1. 244 245 103 mas que também promoveu a criação de novas taxas tributárias. O apoio da Prefeitura à construção de prédios públicos pela iniciativa privada permitia também que os segmentos hegemônicos fossem delimitando suas posições espaciais no perímetro. Em contrapartida, a criação de impostos tornava a situação da habitação complexa, em vista do significativo aumento no valor dos aluguéis na zona urbana. O plano de urbanização também contribuiu para o aparecimento de empresa imobiliária que aproveitou a carona das primeiras reformas urbanas para entrar no mercado local. Diante do que foi visto, essas firmas eram comandadas por pessoas que estavam ligadas ao poder público ou às famílias tradicionais de Itabuna. Assumindo uma posição de grupo propulsor do “progresso” urbano, essas empresas buscavam atuar no vácuo dos ideais de planejamento e de racionalização do viver citadino, mediante a construção de imóveis e a abertura de novos bairros. Para isso, tentava ressaltar os novos valores urbanos negando o costume da construção de casas sem planejamento por pessoas que não possuíam conhecimento técnico. O empreendimento da Cidade Jardim serviu para se observar a maneira que proprietários de terras próximas ao perímetro central encontraram para valorizar suas terras. Adotando uma postura “altruísta” em relação à urbanização local, mediante a doação de parte de seus terrenos para a Prefeitura, esses indivíduos terminavam elevando o valor de sua propriedade em vista do recebimento dos melhoramentos urbanos. Dessas considerações, o mercado imobiliário surgiu como uma estratégia dos segmentos hegemônicos para tentar tornar a cidade um espaço seu, utilizando-se da linguagem formal e racional da urbanização, e da política tributária de isenção de Décimas Urbanas assim como do surgimento de novos impostos. Essa estratégia tem por objetivo estabelecer um uso da cidade determinado pelas condições políticas, culturais e sociais daqueles que fazem parte da ordem estabelecida.248 Era o uso autorizado do território urbano administrado pelos poderes instituídos que delimitava o valor dos espaços a partir do interesse especulativo do mercado, tentando combinar gestão e controle das zonas citadinas. Essa Itabuna em processo de urbanização passava a utilizar o mercado e seus mecanismos tributários como forma de construir uma lógica urbana (formal e racionalizada) que atenda aos projetos hegemônicos de cidade. Mas, apesar de tentar fazer de Itabuna uma cidade amorfa, anônima e universal, são as pessoas simples e pobres que utilizavam cotidianamente CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano. Artes de fazer.1. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.173. Para Certeau, uma das operações que faz parte do discurso utópico e urbanístico para as cidades é a produção de “um espaço próprio, [...] lugar organizado por operações ‘especulativas e classificatórias, [onde] combinam-se gestão e eliminação.’” 248 104 suas ruas, avenidas e praças que oferecem outros sentidos e práticas para esse ambiente urbano. Planos em disputa: prostitutas e poder público em Itabuna Apesar da tentativa de trazer novas formas de organização para as práticas urbanas, o urbanismo não conseguiu evitar que as pessoas comuns se deslocassem das condições estabelecidas por ele. Muito além da somatória de concreto, prédios, pedras, são as pessoas em suas atividades cotidianas que acabam fazendo da cidade um espaço dinâmico e ativo socialmente. Por isso, a cidade é um conjunto de práticas humanas, que criam sentidos diversos de uso para seus habitantes.249 E nem sempre eles estão dispostos a aceitar passivamente os arranjos “racionais” criados para eles. Às vezes fazem usos não autorizados deste espaço, apropriando-o conforme seus interesses, costumes e tradições. A urbanização de Itabuna indicava a tentativa de se estabelecer uma ordem citadina, procurando oferecer uma formalidade para a expansão urbana e o crescimento demográfico em respeito aos interesses dos poderes instituídos. No entanto, essa linguagem formal terminou por ganhar sentidos diferentes entre as pessoas pobres nas vias e nos logradouros itabunenses. Essas diferenças de significados resultaram em tensões entre os grupos sociais que compunham essa cidade. O uso “ordinário” de Itabuna feito pelos trabalhadores levou a estranhamentos com o poder público e a imprensa. Utilizando-se de costumes e tradições sedimentados por uma prática historicamente construída, os populares terminaram afrontando, com seus comportamentos cotidianos, o projeto de cidade patrocinado pelos urbanistas. Em dezembro de 1942, o A Época chamava a atenção da Guarda Municipal com vistas a tomar providências contra pessoas que se banhavam no Rio Cachoeira, próximo à Rua Alfeu Carvalho, no perímetro central. Segundo as queixas, “os referidos banhistas, além de escolherem um local não apropriado para tal sentido, ficam ainda em trajes de Adão, desrespeitando assim as famílias ali residentes e as que passam por aquele local.”250 Como apontei antes, as margens e o leito do rio foram zonas nas quais os urbanistas defendiam a intervenção do poder público para evitar sua utilização por parte da população. Diante disso, hábito de tomar banho no Rio Cachoeira, especialmente nas áreas próximas do centro da cidade, passava a ser freqüentemente apontado como condutas desviantes pela imprensa. LEPETIT, Bernad. Por uma nova história urbana. Heliana Angotti Salgueiro, organização. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001, p. 145. 250 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 26 de dezembro de 1942, Ano XXIV, n.º 1238. p.4. 249 105 Diante do plano de urbanização, o centro de Itabuna deveria ser um território para abrigar o comércio e os prédios públicos por conta da própria organização que se oferecia para esta área. Surgia a intolerância com práticas que contrariassem às expectativas de comportamento dos segmentos hegemônicos, entre eles o banho público. Mostrar-se em trajes considerados inadequados diante das pessoas passava a ser um ultraje para uma cultura urbana que pregava a privacidade de hábitos íntimos e os valores de higiene, especialmente com os novos padrões de urbanidade aplicados a Itabuna.251 Por outro lado, a prática de tomar banho no rio parecia ser comum entre os moradores de uma cidade que não possuía distribuição eficiente de água encanada e suficiente para abastecer os bairros, apesar da inauguração do sistema de água e esgoto em 1937. Por isso, desde esse ano, os jornais já noticiavam com insatisfação “pessoas tomando banho completamente despidas num flagrante desrespeito às famílias ali residentes.”252 Os meses de verão contribuíam para que a população pobre fizesse o uso “não autorizado” do rio, por conta da falta de água e do calor intenso comum da região entre dezembro e janeiro. O caso dos banhistas é uma evidência de que mesmo com as restrições impostas às margens do Rio Cachoeira por parte dos engenheiros e, por conseguinte, da imprensa, as pessoas não deixaram de fazer uso daquele espaço. Nessas pequenas práticas cotidianas, que Certeau chama de ordinárias porque são micro e estranhas à ordem estabelecida,253 os trabalhadores conseguiam dobrar seus críticos e manter sua posição na cidade em transformação. Mas gostaria de apresentar um grupo específico de pessoas que não só procurava preservar suas ações como também forçava os poderes instituídos a criar meios de mudar sua política urbana. Tratam-se das prostitutas que integravam o meretrício no centro de Itabuna, entre as ruas Cel. Domingos Lopes (Atual Av. Duque de Caxias) e Ruy Barbosa. Interessa detectar as práticas dessas mulheres enquanto condutas estranhas ao espaço geométrico ou geográfico da cidade, que formulam operações, isto é, maneiras de agir e de fazer, específicas de uma outra territorialidade e que se opõem aos padrões hegemônicos. RAGO, Margareth. Do cabaré ao lar: Utopia da cidade disciplinada. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985. A autora sinaliza que a urbanização trazia intrinsecamente a privatização dos hábitos de higiene, que tem lugar em espaços determinados das moradias. Assim, sedimentava-se uma cultura urbana do privado em que banhos e lavagem de roupas, por exemplo, deveriam ser realizados dentro do domicílio, e contrária a essas práticas em espaços públicos. p.189. 252 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 15 de dezembro de 1937, Ano XVI, n.º 930. p.1. 253 CERTEAU, Michel. Op. cit., p.171. Para o ex-jesuíta francês, a partir dos limiares onde cessa a visibilidade, vivem os praticantes ordinários, sujeitos estranhos dentro de sua própria casa, e neste caso, de sua própria cidade, e que fazem um uso popular deste espaço. 251 106 Em 21 de agosto de 1943, o A Época lançava uma edição comemorativa do 33º aniversário de elevação de Itabuna à condição de município. 254 Entre as várias homenagens, aparecia em destaque uma que se direcionava à “Campanha moralisadora iniciada pelo sr. Leopoldo Freire”. O motivo para o reconhecimento e a honraria concedidos à Freire estava ligado a sua participação na retirada do “baixo meretrício” da Rua Domingos Lopes, via que passava por remodelação urbana com calçamento, alinhamento, nivelamento e arborização. A edição daquele dia ressaltava as “dificuldades” encontradas por Freire para combater a prostituição Itabuna teve até pouco tempo o seu problema, mais grave que em outros centros; é que aqui a prostituição se exercia livremente, abertamente, às escancaradas, e as casas de tolerâncias se localizavam nas duas ruas das mais centrais e importantes da cidade, onde residem famílias e constituíam passagem obrigatória de transeuntes que demandavam a outros pontos. Cenas deponentes eram presenciadas a horas da noite e do dia, tendo por protagonistas as rameiras e indivíduos despudorados. Olhos de crianças e mocinhas, a saída do cinema, quando demandavam a residência, eram maculados pela bruteza de espetáculos atentarórios à moral. A carência de habitações no centro urbano porém obrigava as famílias, muitas vezes sem outra alternativa, a residirem em tais ruas que as decaídas queriam para seus exclusivos domínios.255 A presença de prostitutas e estabelecimentos de prostituição no centro das cidades não era algo incomum na região. Em Itabuna, além do estranhamento em relação às condutas daquelas mulheres pelos setores tradicionais da sociedade, a disputa pelo território urbano foi um dos motivos para as tensões sociais entre o final da década de 1930 e a de 1940. O jornal evidenciava diferentes sentidos para um mesmo espaço urbano. Para os urbanistas e a imprensa, enquanto organizadores do discurso do poder público, o centro deveria ser o território da ordem estabelecida, racionalizado para condicionar o desenvolvimento local, e lugar de moradia do padrão de família cristã e burguesa. Por outro lado, as prostitutas parecem se apropriar daquele espaço com práticas urbanas diferentes das estabelecidas predominantemente pelos grupos políticos dirigentes. Se estes últimos exigiam exclusividade no uso do perímetro central, as mulheres também desejavam parte daquela área “para seus exclusivos domínios”, como se referia o periódico. O evento de 1943 apontava para o clímax de uma tensão que teve, naquele ano, um dos conflitos decisivos para a vivência daquelas mulheres em Itabuna. Mas creio ser importante tentar traçar uma breve trajetória da ocupação das ruas Domingos Lopes e Ruy 254 Até a década de 1940, a comemoração do dia da cidade era feita no dia 21 de agosto, data em que foi homologada oficialmente a elevação de nível político-administrativo de Itabuna. 255 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 21 de agosto de 1943, Ano XXV, s/n.º. p.5. 107 Barbosa pelas prostitutas. Provavelmente até a década de 1920, as duas ruas eram curtas e estreitas, ocupando uma importância secundária em relação ao perímetro central. Segundo Gonçalves, as ruas eram de três metros de largura e a numeração das casas não costumava chegar à segunda centena. As vias terminavam nos pastos do fazendeiro Paulino Vieira.256 Nesse período também não havia muita infra-estrutura, não dispondo de pavimentação e de saneamento básico para os moradores. Além das características citadas acima, Andrade-Breust aponta também para a existência de várias casas de prostituição nas ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa a partir da década de 1910, embora a memorialista não se preocupe em apontar fontes seguras de sua informação. Segundo ela, naquele período dois famosos estabelecimentos já centralizavam a demanda da população masculina: O Caramujo, aberto em 1915 e coordenado por uma mineira conhecida pelo pseudônimo de Rosa Piasca; e O Lambareto, dirigido por Maria Bizum e inaugurado em 1918, considerado simples e barato, sendo por isso, freqüentado por capangas, filhos de trabalhadores e de comerciantes.257 Apesar desses primeiros estabelecimentos nas ruas Domingos Lopes e Ruy Babrbosa terem surgido nas décadas de 1910, Andrade-Breust sinaliza que a maior parte dos cabarés tenha se fixado naquele lugar durante a década de 1920. A memorialista ressalta o surgimento de “O Corujão da Madrugada”, inaugurado em 1920 por Bárbara Pastor de Jesus. O estabelecimento era conhecido por ter moças muito bonitas, quase todas vindas do Rio de Janeiro, São Paulo e Salvador. Segundo a referida autora, “era o mais requintado e procurava manter o padrão das capitais brasileiras, trazendo novas mulheres, investindo na decoração do ambiente e no vestuário das meretrizes.” 258 Mesmo com as denúncias contra as prostitutas na imprensa, as duas ruas não deixaram de receber os melhoramentos urbanos iniciados no decorrer de 1930. Durante as primeiras reformas executadas pelo Governo Municipal, a Rua Domingos Lopes foi calçada a paralelos, alargada e prolongada, com a plantação de diversas árvores no logradouro.259 Após essas mudanças, houve a alteração de sua nomenclatura para Avenida Duque de Caxias, embora exista referência ao seu antigo nome até o final da década de 1940. 260 A Rua Ruy Barbosa também foi calçada neste mesmo período, quando houve seu alargamento e prolongamento. Estes dois logradouros concentravam um bom número de bares, bilhares, açougues e GONÇALVES, Oscar R. Op. Cit. p.116-117. ANDRADE-BREUST, Adriana. História e estórias de Itabuna. Ilhéus: Editus, 2003. p.80. 258 ANDRADE-BREUST, Adriana. Op. Cit. p.89 259 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 24 de julho de 1937, Ano VII, n.º 329. p.10. 260 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 10 de novembro de 1936, Ano VI, n.º 294. p.10. 256 257 108 barbearias. Estes estabelecimentos atraíam principalmente a população masculina de Itabuna. A circulação de pessoas era intensa, sobretudo por se localizarem em pleno centro da cidade.261 Desde 1928, é possível identificar reportagens na imprensa denunciando a presença das mulheres nas ruas Coronel Domingos Lopes e Ruy Barbosa. Em setembro daquele ano, o A Época, em extensa reportagem, chamava a atenção das autoridades públicas para que exercessem um controle mais efetivo naquela área, que além de ser espaço de jogatina, também era ocupado por prostitutas. O periódico oferecia duas explicações para o aumento do número de mulheres na cidade. A primeira delas afirmava que quando a polícia de Ilhéus promovia ações mais enérgicas no município, uma parte dessas mulheres vinha para Itabuna buscando refúgio contra as perseguições. Outra explicação é a presença de mulheres atraídas pela fama da Região advindas do sertão e do Recôncavo da Bahia. 262 Inicialmente, as duas explicações sugerem a tentativa da imprensa de relacionar a causa da prostituição com fatores externos. Isso justificava a idéia de que Itabuna originalmente não possuiria estas atividades, sendo o agente estrangeiro o responsável pelo avanço do meretrício. Todavia, a explicação do jornal também pode indicar uma rede de comunicação entre as mulheres da região, de maneira a articularem táticas para sobreviver diante da repressão. No entanto, a preocupação maior aqui não é buscar as origens dessas mulheres, mas tentar perceber a relação delas com as ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa. A impressão é que estas vias foram ocupadas intensamente pelo mulherio desde a década de 1910. A forma corriqueira com que a imprensa publicava queixas contra elas nos oferece uma medida para avaliar sua atuação persistente naquelas ruas. Em junho de 1928, o A Época novamente preenchia sua primeira página solicitando a presença da polícia e pedindo punição exemplar para as mulheres. Dizia que “Moradores da rua Cel. Domingos Lopes pedem-nos chamemos a atenção da polícia para algumas horizontais residentes naquela via pública entre as casas n.º 8 e 14, cujo procedimento de semanas para cá, vem-se tornando escandaloso e insuportável”. 263 Entre as matérias publicadas no ano de 1928 pelo A Época, talvez uma das mais interessantes fosse a que foi intitulada “As aventuras de uma barregã iam provocando um conflito”. Publicada em fevereiro daquele ano, narrava uma contenda entre Caboclinha e João Simplício da Cruz. Para o jornal, o homem era um rapaz de bom procedimento e trabalhador; CEDOC/UESC. Jornal O Fanal, 1º de abril de 1935, Ano III, n.º 12. p.2. IGHB. Jornal A Época, 29 de setembro de 1928, Ano XI, nº 433. 263 IGHB. Jornal A Época, 2 de junho de 1928, Ano XI, nº 416. 261 262 109 e Caboclinha era “mulher de má vida [...] quando embriagada, fica em estado insuportável. Diz palavrões, profere obscenidades e quer atentar contra a integridade física de seus semelhantes.”264 Certo dia, Caboclinha havia se embriagado novamente e resolvera sair da casa onde vivia, e no meio da rua começou a detratar o seu companheiro. Durante o fato, a polícia chegara à Rua Domingos Lopes provocando a fuga da mulher e a prisão de João Simplício. No entanto, a ação da força pública causara também a ira da população, que partiu para cima dos soldados, tendo sido também preso por agressão Miguel de Tal, vizinho da mulher. Para resolver a situação, Leopoldo Freire, patrão de Miguel, interveio em favor da liberação de seu empregado. Quanto a Caboclinha, ela foi alcançada pelos soldados e solta na manhã seguinte. 265 Esse episódio de Caboclinha é fundamental porque envolve, no mesmo cenário, uma prostituta e Leopoldo Freire. Este é um sinal de que Freire não tinha uma convivência tão pacífica com suas vizinhas, visto que garantiu apenas a liberdade de seu empregado no caso. Possuidor de uma padaria na Rua Domingos Lopes e funcionário da Coletoria Estadual, ele era apenas uma parte da sociedade que enxergava nas mulheres de vida livre uma “ameaça” à moral familiar e cristã. Isso se refletia também pelo fato de que conhecermos Caboclinha por sua alcunha, que talvez se desse em razão de sua cor, sem direito a nome e sem boas referências dos jornais locais. Por outro lado, a reação da população frente à intervenção no caso sugere a insatisfação popular com a polícia e a instauração de um território em que o Poder Público encontrava dificuldade para atuar. A vizinhança não permitiu passivamente que a força pública prendesse os envolvidos na querela. Isso passa a ser significativo na medida em que acontecia em pleno centro da cidade, lugar de intervenção da ordem política, sendo dominado pela prática urbana dos trabalhadores(as) pobres urbanos. Os diversos bares e a jogatina instalados nas ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa faziam com que a população masculina procurasse aquela região para se divertir. Isso talvez pudesse contribuir para que parte considerável das prostitutas se localizasse por ali. No entanto, outros elementos também parecem ter contribuído para a instalação do meretrício naquelas duas ruas. Uma evidência disso está em um Edital de Protesto publicado na década de 1940. Em 18 de abril de 1944, falecia o Coronel Berilo Guimarães. Conforme notei anteriormente, ele realizou as doações dos terrenos onde foi construído o sistema de tratamento e distribuição de água de Itabuna na década de 1930. Posteriormente, projetou o bairro Cidade Jardim no restante de suas terras em parceria com a Empresa de Terrenos 264 265 Idem, ibidem. Idem, Ibidem 110 Urbanos, aproveitando-se daquele melhoramento para valorizar suas propriedades. Além disso, em seu testamento, deixou parte de seus bens para ser revertido para a construção do novo pavilhão do Hospital e da Casa dos Mendigos. No dia do seu sepultamento, houve homenagens e a presença de várias instituições locais, tais como a Sociedade Monte Pio dos Artistas, a Sociedade São Vicente de Paulo e a Irmandade da Santa Casa de Misericórdia.266 Apesar de ressaltar as boas ações de Berilo Guimarães com a doação de terrenos para a Prefeitura e para instituições filantrópicas da cidade, seria uma outra doação que chamaria atenção da justiça local. Em 12 de maio de 1944, quase um mês depois da morte do coronel, D. Isolina da Silva Guimarães produziu um Edital de Protesto contra Maria Gerosina da Silva. A primeira era esposa do falecido Berilo Guimarães, e a segunda, conhecida concubina deste. Dizia a petição de protesto que o coronel “fez em vida, várias doações, diretas e indiretas, claras e disfarçadas, à sua concubina, residente a rua Ruy Barbosa, próximo à Cidade Jardim.” Além disso, garantia que os bens que a amante possuía em seu nome eram todos resultados da munificência do seu falecido esposo, visto que aquela não possuía renda suficiente para contrair posses. Ao final do documento, Isolina Guimarães informava que Maria Gerosina entrava na justiça para tentar alienar alguns dos bens que o finado marido havia deixado para ela e seus filhos, herdeiros legítimos dos bens.267 A querela entre Isolina Guimarães e Maria Gerosina é uma evidência de que a ocupação das prostitutas na região das ruas Ruy Barbosa e Domingos Lopes aconteceu também com o auxílio dos homens de prestígio da cidade. A literatura regional aponta para vários casos de mulheres que eram sustentadas pelos seus amantes, coronéis que exigiam exclusividade com meretrizes de luxo e, por isso, construíam casas para abrigá-las próximas do centro.268 Em 30 de maio de 1944, Zildo Pedro da Silva Guimarães, filho do falecido coronel, fazia petição para verificar se o imóvel onde vivia Maria Gerosina possuía registro de Décimas Urbanas em seu nome na Rua Ruy Barbosa. Naquela oportunidade, recebeu uma reposta positiva da Prefeitura.269 A ocupação do centro de Itabuna pelo meretrício parece ter sido tolerada também pelos soldados que policiavam aquela área da cidade. Reunidos em bares, a polícia e o mulherio encontravam um espaço em comum para sua atuação. Este é o caso do Bar A Miscelânea onde, segundo O Intransigente, “a pornografia [...] é a canção predileta dos CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 22 de abril de 1944, Ano XVII, n.º 34. p.4. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 16 de maio de 1944, Ano XII, n.º 676. p.2. 268 AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. Rio de Janeiro: Record, 2005. 269 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 30 de maio de 1944, Ano XII, n.º 678. p.1. 266 267 111 freqüentadores das orgias noturnas na rua Ruy Barbosa.”270 Em outra edição, o mesmo jornal exigia uma posição mais firme da polícia, visto que “As Brancas de Neve”, mercê do descaso policial, vivem como lhes parece, na maior e mais deslavada sem cerimônia afrontando a sociedade e menosprezando as regras da moral e dos bons costumes. Bebericam pelos cabarets, de dia ou de noite, disputam as prezas, a qualquer momento discutem em meio das ruas, enfim, tudo praticam sem o menor receio dessa polícia que parece ter vendas nos olhos, para melhor enxergar.271 É possível que o descaso policial não fosse em vão. A nota ainda pedia que a polícia procurasse localizar as prostitutas para acabar com as “vergonhosas cenas que tanto deprimem o progresso de Itabuna”272 Não era só a polícia militar que freqüentava os ambientes de prostituição. No capítulo anterior, notou-se a presença de membros da Guarda Municipal em pensões de “mulheres de vida livre”. Mas, ao que parece, a polícia sabia onde e quando o mulherio atuava. No entanto não encontrava motivação para impedir sua atuação. A cobrança da imprensa em relação às autoridades da segurança pública é um indício de que havia uma flexibilidade dos policiais com o meretrício da cidade. Com a conivência dos soldados e a conveniência para os coronéis locais, parte das prostitutas conseguiu se manter nas ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa, apesar dos preconceitos e dos estigmas da imprensa, até a década de 1930. A relação das prostitutas com outros setores da sociedade oferece um sinal do trânsito social que elas percorriam na sobrevivência cotidiana e na afirmação de seu território de atuação. Voltando às fontes literárias, que são resultado de uma demanda social, e carregam em si as influências do tempo histórico em que surgiram273, Telmo Padilha, poeta da cidade, apontava em sua obra o envolvimento das mulheres com comerciantes, fazendeiros e policiais, de onde tiravam o suporte financeiro necessário para sua subsistência. Mais do que isso, Padilha descreve os desfiles entre as ruas principais da cidade feitos pelo mulherio: Depois ruas escuras e boleros, vermelhas luzes nas arcadas, odor de fumo e de esperma, vidrinhos de perfumes sobre a cômoda, blenorrágicos gritos alugados, um quilo de cacau por uma hora, no salão inquietos comerciários, velhos coronéis de arma à cinta, ébrios policiais de sono e álcool. Um disparo sem propósito. Mais tarde, na movimentada avenida principal elas CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 13 de setembro de 1935, Ano X, n.º CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 5 de dezembro de 1936, Ano XI, n.º 14. p.4. 272 Idem, Ibidem. 273 SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República. 2ª Ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 29. Para o autor, não podemos imaginar uma obra literária como uma árvore sem raiz, resultado da mera imaginação do autor, mas sim como produção carregada de significados oriundos do tempo em que foi produzida. 270 271 112 desfilariam, disponíveis e discretas, o primário feito, alforriadas e belas, flores dos motéis, sentam-se nos bares noturnos e recitam poemas [...] mal pagas, comem sua juventude e seus sonhos, e deitam-se sem remorsos sobre seus corpos. 274 Na cidade, as mulheres faziam das vias urbanas territórios apropriados para executar suas atividades. Transformavam o cheiro e a cores da cidade ao ocupar os espaços mais centrais. As vermelhas luzes indicavam a abertura dos bordéis. Criavam para si outra Itabuna, diferente da planejada pelos urbanistas. Faziam usos não autorizados pelo poder público ao se expor nas avenidas principais, provocavam tensões com outros segmentos sociais mais conservadores. Contudo, a relação com comerciantes e coronéis sugere que nem todos os membros das elites se desentendiam com as mulheres. Formavam seus conchavos e redes de solidariedade com parte dos setores hegemônicos, importantes no momento de defender suas posições na cidade. Nesse sentido, Rago sugere que as mulheres, ao se relacionarem com membros da elite terminavam por adquirir apoio de homens influentes e de policiais, possibilitando preservar suas atividades.275 As tensões entre as mulheres do meretrício e o poder público passaram a ficar mais quentes no início da década de 1940. Até aquele momento, aquela atividade havia tomado uma zona considerável das ruas Ruy Barbosa e Domingos Lopes (Avenida Duque de Caxias). Em 1942, por exemplo, havia dezenas de denúncias contra um Cabaré que funcionava nas imediações da Sociedade Monte Pio dos Artistas. Segundo o A Época, o estabelecimento se localizava em “pleno coração da cidade”, incomodando “o sossego dos moradores [...] pessoas que labutam durante o dia no trabalho honesto, e só tem a noite para o descanso”.276 O destaque para o fato de que o tal cabaré funcionava no “coração da cidade” são indícios de que, com o avanço do plano de urbanização e da delimitação das fronteiras do perímetro central, as prostitutas enfrentariam dias mais complicados do que os de costume para preservar seu espaço de atuação. Antes disso, tanto o A Época como O Intransigente publicaram matérias extensas sobre a presença do meretrício nos limites das ruas Ruy Barbosa e Domingos Lopes no ano de 1941. A diferença dessas matérias para as da década de 1930, é que elas já não cogitavam apenas a repressão policial, mas solicitavam a retirada da prostituição daquelas vias e seu deslocamento para a região dos bairros. Como justificativa, a imprensa argumentava que o PADILHA, Telmo. Cantos de amor e ódio a Itabuna. Ilhéus: Editus, 2004. RAGO, Margareth. Os prazeres da noite: prostituição e códigos de sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.A autora se refere principalmente ao papel da Madame, aquela que dirige estabelecimentos de prostituição, que quase sempre “contava com o apoio de homens influentes e mesmo de policiais, a quem, em geral pagava ‘gratificações’ em troca de paz no estabelecimento”. p.174. 276 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 24 de janeiro de 1942, AnoXX, n.º 1189. p.1. 274 275 113 comportamento daquelas mulheres não se adequava mais à cidade em urbanização, às ruas que eram arborizadas e calçadas para as famílias, enquanto as mulheres desafiavam as autoridades municipais. Nas palavras do A Época, “as infelizes ficam das janelas de suas casas a sorrir, a fazer piegas e sinais, que nos comprometem com as nossas esposas.”277 A conduta das prostitutas soava como afrontamento aos padrões de cultura urbana hegemônica em Itabuna, ligados às regras cristãs e às família burguesas. As notícias que chegavam da cidade de Ilhéus também contribuíram para que o acirramento das tensões entre o Poder Público e as prostitutas se intensificasse. Em novembro de 1942, o A Época noticiava que algumas mulheres estavam desafiando as determinações policiais de não aparecerem nas portas e nas janelas antes da noite. Segundo o periódico, “várias até ultrapassaram os limites, andando cedo [...] na vias públicas em trajes inconvenientes. [...] duas mulheres não se conformando, lançaram os seus protestos e o resultado é que foram remetidas para o xadrez... (grifos originais)”.278 A circulação das notícias ilheenses em Itabuna possivelmente contribuiu para aumentar a intolerância das autoridades políticas e policiais com as prostitutas. Em março de 1942, outro evento marcou mais uma instabilidade envolvendo as prostitutas e a polícia depois de denúncia feita por Leopoldo Freire. No dia 19 daquele mês, Freire publicava, na imprensa, um agradecimento ao sub-delegado Edgar de Barros pela prisão de homens e de prostitutas na Rua Domingos Lopes, causadores de conflitos na madrugada do dia anterior. Naquela oportunidade, as mulheres de nome Izaurinha, Julieta (Juju) Ernestina, Maria, Corina e Minda, conhecida por “Fala Fina”, foram intimadas pelos policiais no bar do senhor Carneiro. Por fim, o autor do agradecimento se dizia satisfeito com a proibição da abertura de bares após a meia-noite e com o policiamento daquela via “durante a noite, recolhendo a cadeia, os anarquistas e raparigas desordeiras ali existentes.”279 O clima de instabilidade entre o poder público e as prostitutas chega ao nível mais quente no ano de 1943. Levado a cabo pelo Delegado Almerindo Vergne e pelo fiscal de rendas do estado Leopoldo Freire, houve a campanha de retirada das mulheres de vida livre da Rua Domingos Lopes. Entre junho e julho daquele ano, os jornais locais consideraram o embate como uma pequena Guerra. Em meio às matérias sobre as batalhas da Segunda Guerra Mundial, o conflito que chamava a atenção havia ocorrido em Itabuna, o qual foi chamado pelo O Intransigente de “Guerra Relâmpago”. O periódico destaca que Jornal O Intransigente, 29 de novembro de 1941, Ano XV. p.1. Documento não localizado. Encontrei referências destas matérias no Jornal A Época, 21 de agosto de 1943. 278 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 14 de novembro de 1942, Ano XX, n.º 1232. 279 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 21 de março de 1942, Ano XX, n.º 1195. p.4. 277 114 A polícia resolveu sanear a rua do Lopes, do meretrício ali existente, há cerca de mais de 30 anos, conforme afirmam os velhos moradores de Itabuna. Para tal fim, o Capitão Almerindo Vergne, delegado de polícia, intimou as proprietárias de casas de mulheres, sita à referida rua e apresentou-lhes um ultimatum: Mudança em 48 horas, sob pena da lei, sem recursos e nem agravos. De fato a ordem está sendo obedecida. A revoada das Andorinhas do amor não se faz tardar. Carroças e carrocinhas se movimentaram. Metade ou mais das casas já foram desocupadas. As andorinhas têm procurado as ruas mais afastadas para se localizarem foram do centro da cidade. Pontalzinho, Abissínia, Jaqueira, Caixa D’Água foram as preferidas. A velha rua do Lopes, onde dizem,velhos e conhecidos clinico passava, em boa companhia as suas horas de lazer, nos tempos das velha Tabocas, se transformara agora em rua completamente familiar. Compete agora aos proprietários locais melhorarem seus prédios, já que a prefeitura e a polícia estão transformando-a em uma das mais lindas ruas da cidade. 280 Para O Intransigente, a ação da polícia soava como uma medida de saneamento social do perímetro central, afastando as meretrizes da Rua Domingos Lopes. Segundo o periódico, o afastamento da zona de meretrício deveria impulsionar a construção de novos prédios naquele logradouro. Mas há um elemento importante a destacar. A saída das mulheres para outras regiões da cidade. Muitas delas terminaram por se abrigar no subúrbio, o que parece ter sido uma saída para continuar sobrevivendo sem o incômodo das autoridades do centro. Por outro lado, sua localização nas áreas periféricas também era tolerada por parte da imprensa de Itabuna. O jornal A Época, por exemplo, noticiava a ação da polícia com certa satisfação e aprovava a iniciativa de abrigar as mulheres nos bairros. Para este órgão de notícias, a medida do capitão Almerindo Vergne despertava a simpatia da opinião pública, retirando “o mulherio da Avenida Duque de Caxias, uma das mais belas e centrais artérias da cidade, onde residem numerosas famílias e localizando-as em pontos mais afastados da urbs.”281 Em agosto de 1943, um mês depois da medida da polícia de Itabuna, o A Época homenageava o capitão Almerindo Vergne e Leopoldo Freire pela campanha que haviam feito para o deslocamento das mulheres da Rua Domingos Lopes. Em telegrama enviado ao secretário de segurança da Bahia, major Holche Pulchério, Freire agradecia o apoio do governo estadual informando que se encontrava “inteiramente saneado meretrício do centro cidade causando tal fato grande satisfação visto estar resolvido grande desejo família itabunense.” Em outra passagem, dizia também que “capitão Almerindo Vergne aplaudido 280 281 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 10 de julho de 1943, Ano XVI, n.º 45. p.1. CEDOC/UESC. Jornal A Época, 10 de julho de 1943, Ano XXV, n.º 1267. p.4. 115 pelos Drs. Juiz de Direito, Promotores, Prefeito, imprensa e população sensata, virtude sua ação serena, eficiente e eficaz.”282 Apesar de a vitória ter sido comemorada em agosto de 1943, há motivos para acreditar que as atividades das prostitutas não foram extintas do perímetro central, mesmo com a “campanha moralisadora” comandada por Leopoldo Freire e o delegado da cidade. Como disse anteriormente, muitas mulheres se deslocaram para os bairros, onde já existia a presença dos cabarés e suas práticas profissionais eram toleradas. Contudo, algumas delas permaneceram na Rua Domingos Lopes e na Ruy Barbosa. A imprensa apresenta indícios de que as prostitutas apenas saíram da parte inicial em direção ao final daquelas vias. Não apenas isso, os jornais passaram a noticiar um espaço chamado “Buraco da Gia” que, nas notícias encontradas, era caracterizado como o novo território da diversão e da alegria da população masculina notívaga. Menos de três meses depois, o logradouro era alvo de reportagem que denunciava o ponto estratégico do barulho: Várias queixas temos recebido sobre o barulho e a anarquia reinantes na avenida Matos, entre as ruas Ruy Barbosa, Amâncio Oliveira e Duque de Caxias. [...] está encravada entre as citadas ruas, tendo vista para várias casas residenciais. Como se tratassem de casinhas baratas, as mundanas ali se instalaram [...] Extinto o foco de atração noturna no centro da cidade, que era a zona do Bar Carneiro, adeptos da vida noturna, até granfinos, instalaram-se no centro da avenida [...] Aí foi se formando o foco, o barulho, sob os “psius” e o “silêncio” da dona de casa. Cognominaram, então esse lugar, de “Buraco da Gia”... Que vamos fazer contra o “Buraco da Gia”? Nada. Eles e elas precisam viver. Foram jogados para ali e incomodarão outros vizinhos se dali forem tirados. Resta-nos apenas apelar: Pessoal do “Buraco da Gia”, por favor, faça menos barulhos!...283 A Avenida Matos citada pela reportagem era um beco com várias casinhas ocupadas por pessoas pobres. Estava situada entre as ruas citadas pela notícia. Ali foi se instalando parte da população que havia saído da parte inicial da Rua Domingos Lopes (região mais próxima do centro), passando a reconstituir suas práticas profissionais e urbanas, e, por conseguinte, refazer seu espaço citadino de atuação. Mas talvez o mais interessante seja a reação ao aparecimento daquele logradouro por O Intransigente. Não havia o que fazer contra as pessoas daquele espaço, segundo a notícia. Foi a própria vivência daqueles sujeitos que delimitou o uso do espaço urbano. Mesmo utilizando a cidade sem autorização formal, as táticas adotadas pelas mulheres terminaram por dobrar as estratégias do poder público e da imprensa para acabar com a existência dos prostíbulos no centro de Itabuna. Parece que 282 283 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 21 de agosto de 1943, Ano XXV, s/nº. p.5. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 13 de novembro de 1943, Ano XVII, n.º 11. p. 4. 116 mesmo com a vitória anunciada em agosto de 1943 pela imprensa, quem continuou dando risadas dos setores mais conservadores foi o mulherio. Há sinais de que o “Buraco da Gia” se tornou o ponto das farras feitas por integrantes da elite junto com as mulheres de “vida livre”. Os jornais passaram a noticiar as bebedeiras e as folias realizadas por pessoas que “se diz de família, de gravata e de sapatos camouflé. Estudantes, empregados públicos, comerciários e artistas, etc, etc...”284 As reclamações não eram mais contra as prostitutas, mas direcionadas aos indivíduos que patrocinavam as algazarras naquele local. Na mesma nota, havia a promessa de divulgar os nomes dos rapazes que provocassem o incômodo do sossego público, conforme recomendações do capitão Almerindo Vergne, que, àquela altura, já sabia que não tinha conseguido solucionar suas contendas com o meretrício. 285 A preocupação da imprensa com o “Buraco da Gia” evidenciava que as prostitutas, talvez auxiliadas por esses rapazes de “gravata”, consolidavam seu território urbano de sobrevivência em uma Itabuna que passava por transformações. Lepetit286 aponta que “as formas da cidade podem mudar mais depressa que o coração dos homens”, de forma que as [re]formas urbanas podem não acompanhar os interesses dos trabalhadores livres e pobres. Daí surge a resistência destes últimos, de maneira que os hábitos sociais e os usos se tornam meios de preservar a sobrevivência e a atuação dos grupos populares na construção de outros territórios. O “Buraco da Gia” se encaixava na tentativa das prostitutas de construir um espaço social que se adaptasse a suas condutas, um lócus que tivesse sentido inteligível para elas. Por isso, reordenou sua área de atuação em face da perseguição promovida pelo poder público e dobrou as críticas da imprensa, que encontrava dificuldades em seus argumentos para justificar nova repressão. ********** Giulio Argan diz que toda cidade não é feita de pedras e de concretos, mas também de homens e mulheres que, por sua vez, atribuem-lhe um valor a partir de seu envolvimento e das práticas culturais que desenvolvem nesse espaço urbano.287 Essa premissa ajuda a entender os planos de cidade criados para Itabuna e sua relação com as pessoas que compõem CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 27 de maio de 1944, Ano XVII, n.º 39. p. 1. Idem,Ibidem 286 LEPETIT, Bernard. Op. Cit. .p.148. 287 ARGAN, Giulio C. História da arte como história de cidade.São Paulo: Martins Fontes, 1998. p.228. Para o autor, a cidade é fruto dos valores que os homens atribuem aos lugares onde moram e exercitam suas práticas culturais. Deve-se levar em consideração portanto, “a atribuição de valor, não importa quem o faça e a que título seja feita. De fato, o valor de uma cidade é o que lhe é atribuído por toda a comunidade [...]”. 284 285 117 esse tecido urbano. Ao projetar os melhoramentos urbanos, definindo padrões de higiene e de estética com objetivos universais, os urbanistas procuravam escrever uma linguagem pautada em medidas formais e impessoais, permeada de regras que tentavam condicionar a vida das pessoas que utilizavam esse espaço.288 Essa linguagem nem sempre fazia sentido para os trabalhadores, de forma que as medidas de urbanização atendiam mais aos interesses dos membros que sustentavam a ordem estabelecida de Itabuna do que aos dos grupos populares. Considero a cidade de maneira semelhante àquela que Paul Ricoeur trata em sua produção textual. Ricoeur sugere que um texto não é um fim em si mesmo. Inicialmente, a escrita é uma tentativa de explicar o mundo ou a realidade.289 No entanto, as interpretações que as outras pessoas fazem desse texto são variadas. Assim, a produção textual é compreendida por meio de uma apropriação. Pensando nisso, tento ver a linguagem dos urbanistas como meio de tentar explicar a cidade e resolver seus problemas. Utilizando-se de princípios científicos, os urbanistas objetivaram criar uma linguagem sobre a cidade que fundamentasse o discurso de ordem e de progresso intencionado pelas classes dirigentes de Itabuna. Essa linguagem era sinalizada a partir do alinhamento e do nivelamento das vias urbanas, das medidas de incentivo à construção de imóveis residenciais e comerciais nos parâmetros idealizados pelo poder público. O urbanismo, enquanto explicação da realidade, circunscreve um nível de tensão com os “erros” existentes na cidade, da perspectiva dos engenheiros. Não foi por acaso que os engenheiros projetaram praças, parques, canais e avenidas em locais onde existiam casas de meretrício, candomblés e lavadeiras. As práticas populares eram vistas como elementos nocivos à escrita científica da cidade, que se pretendia impessoal e progressista. A racionalidade urbana se tornava a expressão da necessidade de criar um território de poder, onde os poderes instituídos pudessem efetuar seu controle com mais organização, isolando toda prática que se “desviasse” dos interesses hegemônicos. A organização racional procura recalcar os defeitos que ameaçam o alcance destes objetivos. A linguagem do poder se urbanizou na década de 1930 e 1940, pautando-se em metas totalizantes que homogeneizavam e universalizavam os habitantes em seres anônimos e passivos. Mas a vida urbana permite a redenção dos sujeitos que ficaram de fora. São eles que entregam à cidade a movimentos CERTEAU, Michel. Op. cit. Para o autor, o urbanismo era uma espécie de linguagem formal, produzida de cima para baixo, que carrega em seu bojo uma posição terapêutica de controle sobre o espaço urbano, que consolida a estratégia de manutenção da ordem estabelecida. Por outro lado, os sujeitos pobres urbanos imprimiam uma linguagem ordinária, formada a partir de suas resistências cotidianas enquanto táticas capazes de burlar os projetos hegemônicos da cidade. 289 RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Tradução de Constança Marcondes Cezar. Campinas: Papirus, 1994. Volume 1. 288 118 contraditórios que se compensam e se estabelecem fora do poder. Em outras palavras, se o urbanismo se torna uma linguagem formal sobre a cidade, que tenta explicá-la, tentei observar como ela é apropriada pelos seus outros escritores, tomando por referência a ação das prostitutas. Mesmo diante dos empreendimentos imobiliários e das pretensões de reorganizar o perímetro central de Itabuna, foram as práticas culturais dos trabalhadores pobres e comuns em meio ao tecido urbano que condicionaram os usos da cidade. Pierre Mayol, ao falar da categoria “bairro”, considera que a cidade se constrói como o lugar “onde se manifesta um “engajamento” social ou, noutros termos: uma arte de conviver com parceiros (vizinhos, comerciantes) que estão ligados a você pelo fato concreto, mas essencial, da proximidade e da repetição.”290 Dessa forma, o espaço urbano não pode ser encarado como um tabuleiro, cujas peças são mudadas de lugar conforme os interesses hegemônicos. Ele é o lugar de vivência que as pessoas erguem a partir de suas conveniências, de seus costumes e de suas tradições, apropriadas no cotidiano por suas práticas urbanas. Essa premissa é fundamental para compreender o papel das prostitutas no cenário de Itabuna. Em suas micro-ações, elas reinterpretam a cidade, criando adaptações ativas para sobreviver e preservar suas atividades. Para Bernard Lepetit, tanto as formas de instituição de poder como os agrupamentos sociais que se formam na cidade têm o sentido que são oferecidos pelas práticas culturais dos sujeitos. Dessa maneira, o espaço urbano é permeado sempre por territórios que se fabricam a partir do agir e dos valores dos indivíduos, e que se sedimentam enquanto territórios apropriados por eles.291 Durante as décadas de 1920 e 1930, as ruas Domingos Lopes e Ruy Barbosa foram os espaços de atuação de prostitutas e de outros personagens do cenário urbano itabunense. Faziam daquele território uma zona própria seu próprio uso, com fronteiras definidas e reconhecidas pelos outros setores da sociedade, mesmo que de maneira preconceituosa. As brigas, os gritos, os olhares das janelas e os desfiles nas ruas faziam parte de uma prática urbana que ajudava a identificar aquele logradouro como o baixo meretrício. Talvez fosse o espaço onde os representantes da “ordem” só pudessem estar presentes quando fossem coniventes com os interesses das prostituas, isto é, na medida em que policiais, “engravatados” e fazendeiros fossem clientes. O “Buraco da Gia” foi o lugar onde as prostitutas adaptaram novamente suas práticas, apropriando-se do espaço urbano construindo um território social a sua imagem. Este lugar seria a interpretação da linguagem urbana, posto que enquanto os urbanistas propunham uma escrita formal e técnica para explicar e mudar a 290 291 MAYOL, Pierre. O Bairro. In: CERTEAU, Michel. Op.cit. 2. Morar, cozinhar. p.39. LEPETIT, Bernard. Op. cit. p.57. 119 cidade, aquelas mulheres ofereceram uma nova interpretação citadina, sem os rigores científicos do urbanismo, e com suas micro-práticas se adaptaram e redesenharam seu lócus de atuação em Itabuna. 120 CAPÍTULO 3 A CIDADE E SUAS (IM)POSTURAS No início de agosto de 1936, uma notícia com o curioso título de “Munamo-nos de Algodão” era publicada pelo O Intransigente. Dizia o semanário que, em fins de julho daquele ano, por volta das catorze horas, quando os ônibus com destino às localidades de Ilhéus, Macuco (Buerarema), Pirangy (Itajuípe) e Itaúna (Itapé) se concentravam próximo à Agência da Viação Sulbaiana, uma mulher havia causado confusão nas imediações da Rua J.J. Seabra e da Osvaldo Cruz. Segundo a notícia, após ter sido provocada por um homem, a senhora “começou a derramar o pus duma linguagem de baixo calão, vomitando as palavras mais obscenas que se pode imaginar.”292 Constava ainda que no momento em que proferia as palavras, o local se encontrava cheio de pessoas para despedidas e entregas de encomendas, as quais tiveram de ouvir tudo o que a mulher dizia. Depois de narrar o incidente, o periódico cobrava uma ação mais enérgica da Guarda Municipal no intuito de evitar que episódios como aqueles viessem a acontecer em Itabuna. A reclamação se fundamentava no fato de que nas proximidades de onde a mulher xingava e falava em voz alta, dois soldados da força municipal fiscalizavam a região e nada fizeram para perpetrar a postura da mulher. Para reafirmar sua crítica, dizia o jornal que “Itabuna, que tanto se vangloria do seu progresso urbano e desenvolvimento, precisa de moralizar-se e acabar com essas cenas revoltantes que, de quando em quando chocam os nossos espíritos. [...] O policiamento [...] deve ser mais constante e mais severo.”293 Meses antes do acontecido na Rua J.J. Seabra, outras queixas semelhantes constavam no mesmo O Intransigente. Naquela oportunidade, o veículo de comunicação protestava em nome dos moradores da Praça Silva Jardim contra o “mau procedimento dos trabalhadores da Padaria Amazonas, que altas horas da noite [...] fazem um barulho infernal com cantigas ridículas e palavras indecentes, que além de incomodar o silêncio da noite [...] atenta contra os 292 293 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de agosto de 1936, Ano X, nº 49. p.1. Idem,Ibidem. 121 sãos princípios da moral.”294 Como forma de coibir aquela prática, solicitava-se a presença da Guarda Municipal ou da polícia, instituições com autoridades delegadas pela sociedade política para evitar o incômodo do sossego público. Estes dois casos são pertinentes para se refletir sobre a influência do processo de urbanização no comportamento dos trabalhadores que viviam na cidade. Em Itabuna, observo que as reformas da cidade não se limitaram apenas às mudanças morfológicas do espaço urbano, mas interferiram nos hábitos e nos costumes dos trabalhadores pobres. À medida que Itabuna se urbanizava, isto é, abria suas avenidas, calçava suas ruas e embelezava suas praças, os setores hegemônicos não perderam de vista o comportamento dos munícipes. Em busca de um padrão de costumes, o poder público utilizou do dispositivo jurídico local para coibir as práticas culturais estranhas aos novos valores de urbanidade instituídos durante as décadas de 1930 e 1940. Por sinal, é com esse intuito que o Código de Posturas de Itabuna foi revisado e ampliado no ano de 1933. Para a fiscalização, as Posturas Municipais seriam o conjunto de leis municipais que funcionariam como referência para atribuir legalidade ou ilegalidade aos modos de vida dos habitantes da cidade. Era a partir delas que a fiscalização sanitária e a Guarda Municipal exerciam a vigilância sobre o procedimento de feirantes, ambulantes, lavadeiras e crianças. Na esteira desse objetivo, as diferenças de interesses entre os trabalhadores pobres e o poder público não demoraram a aparecer quando alguns dos artigos do referido código era colocado em prática pelos membros das municipalidades. A primeira edição do Código de Posturas do Município de Itabuna foi criada meses depois da oficialização da emancipação de Itabuna, no ano de 1908.295 Registrado pelo intendente Olinto Leone no livro de leis da cidade, a versão inicial deste código era bastante limitada em comparação com os exemplares posteriores. Ele continha algumas advertências acerca da venda de carnes, da proibição de animais no paço municipal, da regulamentação do horário de funcionamento do comércio e da nomeação de diversos logradouros municipais com nomenclaturas de datas e heróis mitificados pela Primeira República.296 Nas fontes encontradas não foi possível observar sua aplicação entre os munícipes da cidade. Foi somente na década de 1920 que o Código de Posturas de Itabuna sofreu sua primeira revisão por parte das municipalidades. Na gestão do coronel Laudelino Loréns CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 21 de março de 1936, Ano X, n.º29. p.1. APMIJD. Livro de leis do município de Itabuna 1908. p.1-3. 296 Ver CARVALHO, Philipe Murillo S. A construção da cidade: idéias de civilidade e de urbanidade em Itabuna (1910-1930). In: Cadernos do CEDOC. N.º 9. Ilhéus: Editus, 2007. Neste estudo, trabalhei com alguns dos artigos do Código de Posturas de 1908, em que considerei alguns pontos relacionados a estética e a padronização dos comportamentos na fase inicial da vida política e administrativa de Itabuna. 294 295 122 (1924-1926) as posturas foram ampliadas e passaram a ser cobradas por parte da imprensa local.297 Os documentos listados por essa pesquisa não nos possibilitaram perceber a relação da aplicação da lei com os trabalhadores no cotidiano da cidade. No entanto, os periódicos locais apontam alguns indícios que nos levam a crer que seu emprego no cotidiano urbano tenha sido escasso durante a década de 1920. Isso era o que dizia o A Época, em 1926, quando afirmava que “poucas pessoas cuidam de melhorar as suas propriedades, dentro das normas estabelecidas dos Códigos de Posturas, porque o poder municipal faz dela letra morta.”298 No ano de 1933, o Código de Posturas foi revisado profundamente, sendo ampliado e publicado em forma de brochura pela Prefeitura de Itabuna. Pensando em construir uma política urbana mais sistematizada, principalmente com a criação da Guarda Municipal, o poder público resolveu aprovar um novo código para a cidade por meio do ato nº 184, de 9 de junho de 1933. Nunca é demais lembrar que a década de 1930 foi aquela em que Itabuna passou pelas primeiras reformas urbanas no seu perímetro central, o que certamente acentuou a necessidade da reformulação das Posturas municipais para adaptá-las às mudanças no cenário citadino. A nova lei de posturas estava dividida em oito capítulos que se referiam à organização da Polícia Administrativa, à licença das obras em geral, às indústrias e profissões, à segurança pública e polícia de costumes, aos mercados municipais, à higiene municipal, às zonas suburbana e rural e às Disposições Gerais. 299 O Código de Postura de Itabuna, ampliado em 1933, pode ser entendido como mais um equipamento de controle e de organização do espaço urbano de acordo com os interesses dos setores hegemônicos. A lei se tornava mais uma instituição do governo municipal, cujo objetivo era definir normas que pudessem manter unidos os diferentes grupos sociais existentes na cidade de forma organizada e pacífica. No entanto, para Lepetit, mesmo sendo uma instituição jurídica, leis como as das Posturas “não podem ser compreendidas independentemente dos equilíbrios sociais específicos da cidade.”300 A partir do momento em que as regras são aplicadas aos setores pobres e trabalhadores, estes sabem mobilizar recursos para burlar utensílios de controle e se apropriar da cidade conforme suas vontades e seus costumes. Dessa maneira, elaborar ou reelaborar o campo jurídico também condicionador das APMIJD. Livro de atas do Conselho Municipal de Itabuna (1924). Lei n.º 133, de 10 de junho de 1924. IGHB. Jornal A Época, 13 de maio de 1926, Ano IX, n.º 62. p.2. 299 APMIJD. Código de Posturas do Município de Itabuna. Ato n.º 184 de 9 de junho de 1933. Itabuna: Tipografia D’A Época, 1933. 300 LEPETIT, Bernard. Por uma nova história urbana. Seleção de textos, revisão crítica e apresentação Heliana Angotti Salgueiro; tradução Cely Arena. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2001. p.77. 297 298 123 relações entre trabalhadores e poder público existente na cidade é um aspecto essencial para se entender os conflitos e as tensões em Itabuna. 301 Para Joseli Medonça e Sílvia Lara, as leis e a justiça não podem ser vistas simplesmente como instrumento de dominação, mas recursos que podem ser apropriados pelos diferentes sujeitos históricos, inclusive como forma de resistência da própria classe trabalhadora.302 Considerando isso, as relações dos trabalhadores com as instituições do poder público mediante o Código de Posturas de Itabuna podem apontar para um campo de tensões e de conflitos cujo alvo era o direito pelo uso da cidade. A partir disso, devo procurar entender de que maneira os sujeitos deram significados diferentes para a lei de costumes local, ou de que forma a aplicação das posturas suscitou a organização dos pobres urbanos para lutar na justiça pública pelo direito à cidade. Aquilo que a imprensa local chamava de vulgar e de desordem por transgredirem as normas de urbanidade, pode indicar táticas de driblar os valores instituídos pela ordem estabelecida, como aponta Certeau.303 O objetivo deste capítulo é discutir a relação dos trabalhadores com os poderes públicos a partir do Código de Posturas de Itabuna. A intenção é entender de que maneira a aplicação desta lei municipal promoveu a articulação dos trabalhadores no intuito de lutar pelo direito à cidade, utilizando de sua astúcia para enganar a vigilância em torno da suas práticas urbanas e se reapropriando do espaço urbano. Para isso, procuro traçar os caminhos percorridos pelos trabalhadores rurais, pelas lavadeiras e engraxates, e pelos menores em uma Itabuna que passava pelas reformas urbanas e pela tentativa de padronização de hábitos e costumes entre as décadas de 1930 e 1940. Trabalhadores rurais na cidade Em 26 de julho de 1944, a menor Solange Loupe Soares, com 12 anos de idade, solteira, morena, católica, estudante, se dirigia para sua escola com vistas a cumprir mais um dia letivo do calendário escolar. Como de costume, saiu de casa, no bairro Cajueiro, caminhando com destino à escola por volta das 8 horas da manhã, quando, ao chegar à Rua Barão do Rio Branco, numa região conhecida por Taboquinhas, encontrou com uma boiada, tendo a menina se abrigado em uma casa próxima. Após a passagem da boiada, a menor MEDONÇA, Joseli Maria N. Entre a mão e os anéis: a lei dos sexagenários e os caminhos da abolição no Brasil. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 1999. p.23. A autora pesquisou a lei do sexagenário de 1885 procurando recompor o campo jurídico brasileiro que definia as relações entre senhores, escravos e libertos como espaço de lutas por direito e pela liberdade dos negros durante o Império. 302 LARA, Sílvia Hunold, MENDONÇA, Joseli Maria N. Apresentação. In: Direitos e justiças no Brasil: ensaios de História Social. Campinas, SP.: Ed. da UNICAMP, 2006. p.12-13. 303 CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano. 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ: Vozes, 1994. p.95. 301 124 procurou atravessar a rua, quando foi atropelada por João Ferreira Matos, que distribuía leite montado em um cavalo. Caída ao chão, Solange Soares foi socorrida por populares que a conduziram à farmácia Carvalho, onde fez os primeiros curativos. Enquanto isso, o leiteiro João Matos seguiu viagem, sem prestar ajuda à vítima do acidente.304 A testemunha Pedro Antonio da Rocha Filho afirmou que quando vinha do centro da cidade para o bairro Conceição, nas proximidades da Rua Barão do Rio Branco, notou que o leiteiro João Matos vinha montado em seu animal em disparada, tendo atropelado a menor que caiu ao chão. Versão parecida foi descrita por outras duas testemunhas. 305 Em sua defesa, quase duas semanas depois do ocorrido, João Matos compareceu a Delegacia de Polícia de Itabuna para “esclarecer” os acontecimentos. Segundo o acusado, no dia 26 de julho, ele havia saído da fazenda Guarací, pertencente ao seu patrão, Natanael Batista Figueiredo, em direção à cidade para vender leite, quando, nas redondezas do local do acidente, percebeu a passagem da boiada e a presença de um grupo de crianças que se protegia dos animais. Após a passagem da boiada, ele, acusado, se enroscou no cabresto do animal, provocando o acidente com a menor Solange. Tendo em vista que estava prestes a perder o horário do trem, partiu em disparada, sem saber ao certo quem era a criança atingida. Somente no dia seguinte, quando foi abordado pelo guarda João Costa é que ficou sabendo que deveria comparecer à Delegacia para prestar esclarecimentos, onde soube o nome da vítima. 306 Na delegacia, João Matos afirmou que não tinha culpa pelo acidente, e que não vinha em disparada, tendo se apressado após o ocorrido para não perder o trem. Além disso, defendeu que já havia trabalhado para Nicodemos Barreto, um dos banqueiros e políticos da região, e que trabalhava para o Sr. Natanael Figueireido, podendo ambos apontar sua excelente conduta. Apesar das explicações oferecidas pelo acusado, o delegado de polícia de Itabuna, capitão Almerindo Vergne, indicou em seu relatório de inquérito que, baseado nas declarações das três testemunhas do caso, João Matos deveria ser investigado pelo Ministério Público por correr em disparada pela Rua Barão do Rio Branco, uma das vias mais movimentadas da cidade. 307 A escolha desse episódio, comum no cenário de uma cidade pequena do interior da Bahia em meados da década de 1940, se justifica pela possibilidade que encontrei nesse 304 APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Termo de Declarações de Solange Loupe Soares. 27 de julho de 1944. s/p. 305 APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Termo de depoimento das testemunhas Pedro Antonio da Rocha Filho, Franco Lopes e Camilo Silveira. 18 de agosto de 1944. s/p. 306 APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Termo de Interrogatório de João Ferreira Matos. 11 de agosto de 1944. s/p. 307 APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Relatório de Polícia. 18 de agosto de 1944. s/p. 125 inquérito policial de identificar o universo de tensões que permeava Itabuna durante seu processo de urbanização. Em uma caminhada com destino à escola, a menor Solange pôde se deparar com elementos frequentemente questionados pelos poderes públicos municipais na sua política urbana. O primeiro desses elementos eram as boiadas. Mesmo não tendo um papel central no caso, a cena sinaliza um pouco da sensação que as pessoas tinham com as boiadas que invadiam as ruas e as avenidas locais. Aliás, sendo o matadouro na zona urbana, na Rua Barão do Rio Branco, era uma das vias pelas quais os bois passavam quando seguiam para o matadouro, causando dificuldades para o deslocamento de carros e pessoas naquela região. O segundo elemento aparece na figura de um dos personagens principais do acidente, o leiteiro João Matos, montado em seu animal. Sobre a presença de animais na cidade, o Código de Posturas Municipais de 1933 possuía um capítulo inteiro dedicado à regulamentação desses elementos nas zonas urbanas e suburbanas de Itabuna. No capítulo dos animais, a fiscalização exigia que os condutores carregassem, em local visível, o número de licença ou de matrícula que deveria ser concedido pela Prefeitura. Os animais também não poderiam ser postos a trabalhar feridos, doentes, ser fustigados ou estar excessivamente magros, ficando restrito o uso de tacas ou chicotes para fustigar os bichos. Outros parágrafos chamavam a atenção para: a proibição de gado vacum, eqüinos e caprinos soltos no perímetro urbano; impedimento de amarrar bichos em postes públicos, árvores, ou grades na zona citadina; ou ainda apreensão de animais cavalgados ou não, que permanecessem ou andassem sobre o passeio das ruas.308 Apesar da existência desses artigos no Código de Posturas da cidade, isso não é indicativo de que todas as normas estabelecidas tenham sido cumpridas de forma efetiva, mas apresentam propostas de padronização dos hábitos urbanos proposta pelo poder público. Ao supor pelo incidente envolvendo a menor Solange Soares e João Matos, tendo como parâmetro o Código de Posturas, o acusado poderia ter sido enquadrado em dois artigos da lei municipal. Primeiro, por trafegar com animais usando de instrumentos como cabresto e, segundo, por trafegar em alta velocidade pela via urbana. E foi levando em consideração esses elementos que outros sujeitos foram enquadrados pela Guarda Municipal. Em 26 de janeiro de 1935, o tropeiro José Julião foi multado em 5$000 (cinco mil réis) pelo guarda Argemiro Damião Borges por usar chicote e fustigar seu animal de montaria. 309 Já o carroceiro João Ribeiro foi multado pelo guarda Amadeu Lopes em 50$000 (cinqüenta mil réis), em 1º de APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Itabuna: Typographia D’A Época, 1933. pp. 41-43. Especificamente os artigos 243, 245, 24, 251 e 254. 309 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 26 de janeiro de 1935, Ano IV, n.º 202, p.2. Relatório da Inspetoria da Guarda Municipal de Itabuna 10 de julho de 1936. 308 126 julho de 1936, por infringir o artigo 252 das posturas municipais, que proíbe a montaria em animais bravos nas ruas e praças da cidade. 310 Com o mesmo artigo foi punido o carroceiro Paulo Rodrigues pelo guarda José Sales Filho, tendo seu animal recolhido pela Guarda Municipal. Para obter um melhor controle dos condutores de animais, especialmente carroceiros, a fiscalização exigia dos munícipes o registro, na Prefeitura, para o recebimento da licença para trafegar na zona urbana. Para isso, no início de cada ano, o poder municipal emitia aviso em seu jornal oficial convocando os carroceiros, tropeiros e condutores de eqüinos. Em 4 de fevereiro de 1938, o secretario interino do executivo itabunense avisava, de forma taxativa, sobre a necessidade de matrícula dos carregadores de bagagem com animais, desmerecendo a justificativa de quem reclamava contra o imposto cobrado. No aviso baixado em 4 de fevereiro de 1938, José Nascimento dizia que “Ao princípio de que todos precisam de ganhar, sobrepõe-se o de que: aqueles que pagam impostos e o que reclamam é que, para regularidade, todos os mais paguem a matrícula necessária [...] Sem o que não poderão licitamente, exercer a sua profissão.”311 A partir do aviso publicado pelo poder público a respeito da necessidade de pagamento da taxa de matrícula, nota-se que havia resistência, por parte dos trabalhadores, em se dobrar as imposições tributárias. É o que se pode observar com a entrega de uma relação de nomes de proprietários de carroças que estavam em atraso com a fiscalização, realizada pelo subchefe da Guarda Municipal José Campos ao inspetor João Moraes. Além da fiscalização promovida pela municipalidade, talvez os trabalhadores que conduzissem animais nas vias de Itabuna não se sentissem atraídos a pagar tributos em uma cidade que aumentava sua desconfiança em relação a eles, punindo-os frequentemente com multas emitidas pela Guarda. João Ferreira de Matos, estando envolvido num acidente cuja investigação recaía sobre ele, ainda precisava se preocupar com o estigma criado pelos periódicos locais contra os montadores de animais, baseado em supostas corridas de cavalo realizadas nas ruas da cidade, e consideradas um motivo de desordem pelos setores políticos de Itabuna. Por isso, não por acaso, o acidente envolvendo o leiteiro foi parar na primeira página de O Intransigente. A nota intitulada “A cidade não é hipódromo – os riscos das cavalgadas pelas ruas” e publicada com destaque no dia 29 de julho de 1944 dizia do costume existente de se praticar corridas em APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 11 de julho de 1936, Ano V, n.º 276, p.4. Relatório da Inspetoria da Guarda Municipal de Itabuna 10 de julho de 1936. 311 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, segunda-feira, 7 de fevereiro de 1938, Ano VII, n.º 356, p.8 310 127 pleno centro da cidade, trazendo perigo às pessoas que transitavam até pelas calçadas. Sobre o incidente envolvendo a estudante Solange Loupe, o periódico dizia que Costume que remonta há longos anos, e que a civilização atual ainda não conseguiu quebrar, é o das cavalgadas pelas ruas da cidade. Aos domingos, às vezes, as ruas ficam intransitáveis, à passagem dos galopadores. Agora aconteceu o pior, o que sempre prevíramos. Na 3ª Feira, uma criança que se dirigia para a escola, com um tinteiro, livros e uma bola na mão, nas imediações da ponte de Taboquinhas, quando foi atropelada por um animal, tendo recebido vários ferimentos. Montava nesse animal o cidadão João Ferreira, leiteiro do sr. Natanael Figuereido. Dizem os circundantes que é costume do referido cavaleiro andar à rédeas soltas, pelas ruas, como se estivesse pelo campo. Esse procedimento é criminoso, porque não se pode galopar nas ruas, sem que se possa colocar em perigo a segurança e a vida dos transeuntes, principalmente de velhos, de senhoras e de crianças.312 O hábito de andar a cavalo nas vias urbanas era considerado um costume com o qual a “civilização” não havia conseguido romper, como se refere o jornal. Nesta perspectiva, o uso de animais para se transportar e trabalhar na cidade parecia não se encaixar no espaço urbano, sendo visto como algo fora de lugar. Na lógica de um contexto de urbanização, cavalgar nas ruas e avenidas do centro de Itabuna se tornava um costume a ser superado, tendo em vista que a presença de cavalos ou outros eqüinos pareciam esbarrar nos novos moldes de conduta exigidos pela municipalidade e pela imprensa. Os trabalhadores montadores eram colocados na condição de elementos “perigosos” para a organização funcional da cidade. Animais nas ruas passavam a ser sinônimo de perigo, especialmente para os redatores dos periódicos itabunenses. Antes mesmo de ser processado pela justiça pública, João Matos parecia estar condenado por O Intransigente. Mas a parte grifada sugere ainda que João Matos fosse um ser estranho na cidade em que trabalhava. Partindo da constatação apressada de que o leiteiro era dado ao costume de andar em disparada pelas ruas de Itabuna, o jornal indicava que esse seria um hábito de quem vive no campo. O perímetro central deveria ser visto como espaço de ordem e de controle efetuados pela Prefeitura, e que as pessoas deveriam se moldar adequadamente aos padrões instituídos, condenando costumes comuns para uma população muito influenciada por hábitos campestre. Andar de cavalo ou utilizar carroças na zona urbana passaram a ser usos da cidade 312 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 29 de julho de 1944. Ano XVII, N.º 48. p1. (Grifos nosso) 128 não autorizados pela prefeitura e reprovados pelos periódicos sob a justificativa de que subverteria a ordem urbana.313 Analfabeto, simples jornaleiro, migrante de Tucano, no interior da Bahia, João Matos parecia ser uma presa fácil para os jornais locais (obviamente apoiados pela municipalidade) que buscavam, a qualquer custo, incutir hábitos que contrariavam os comportamentos e os interesses do restante da população. Contudo, ao contrário do que esperavam os intransigentes, o leiteiro foi absolvido pelo juiz da vara crime de Itabuna, José de Souza Dantas.314 Parece que, em parte, devemos concordar com a notícia veiculada pelo semanário local, ao dizer que a “civilização” não conseguiu quebrar, de fato, os costumes populares, mesmo diante da imposições culturais colocadas, não só porque o acusado foi absolvido, mas porque o direito de transitar pelas ruas da cidade continuou sendo exercido pelos trabalhadores ambulantes, ainda que não autorizado pelos setores políticos dirigentes do município. Outros companheiros de profissão de João Matos também passaram pela intransigência dos poderes públicos municipais. Entre eles estavam os aguadeiros. O Código de Posturas da cidade indicava que a atuação destes profissionais deveria estar regulamentada com a concessão de licenças pela Prefeitura, assim como os lugares para a coleta de água deveriam ser determinados pela Secretaria de Higiene Pública, sendo impedido o estacionamento dos animais nesses locais.315 Até meados da década de 1960, os aguadeiros supriam a deficiência da distribuição de água encanada para a cidade com a venda, em barris ou tonéis, do precioso líquido. Por conta disso, os aguadeiros eram vistos pelas autoridades políticas com certa tolerância, mas com o controle freqüente da Guarda Municipal. Não faltam exemplos sobre como os aguadeiros tiveram sua atuação importunada pela fiscalização pública. Em 17 de junho de 1932, o aguadeiro Elisiario Bispo dos Santos foi multado no valor de 10$000 (dez mil réis) pelo guarda n.14 por ter lavado seu animal em fonte de coleta de água dos moradores, infringindo o artigo 318 da lei de conduta de Itabuna.316 Outro aguadeiro que também não escapou da vigilância foi o senhor João Pinheiro, sendo autuado com multa de 20$000 (vinte mil réis) pelo inspetor Josino Quadros por ter desrespeitado o artigo 548 das normas ao depositar seu produto em recipientes inadequados, WILLIAMS, Raymond. Campo e cidade na história e na literatura. São Paulo: Cia. das Letras, 1989. APPJ. Processo crime da vara crime da comarca de Itabuna contra João Ferreira Matos. Sentença de julgamento contra João Ferreira Matos, 27 de junho de 1945, p.42. 315 APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Op. Cit. pp.52-53. Capítulo IV, especificamente os artigos 314 e 318, embora os artigos válidos para os montadores fossem válidos também para os aguadeiros, já que distribuíam a água montados no lombo de eqüinos. 316 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 22 de julho de 1932, Ano II, n. 118, p.8. 313 314 129 em 17 de julho de 1936. Onze dias depois, foi a vez de João Santos ser flagrado pela fiscalização sanitária apanhando água em fontes não permitidas pela Prefeitura, sendo obrigado a pagar pena em dinheiro de 20$000 (vinte mil réis).317 Esses breves exemplos servem para mostrar que, se por um lado o poder público procurava por todos os meios vigiar a atuação dos aguadeiros, estes também criavam alternativas para continuar vendendo seus produtos sem a inconveniência das municipalidades, procurando se livrar das imposições dos órgãos do poder. Talvez por isso João Santos tenha procurado outro manancial para abastecer seus depósitos de água. A luta dos aguadeiros para continuar com suas práticas e modos de vida em uma cidade que passava por transformações não tinha como adversário apenas a perspicácia da Guarda Municipal, mas também os periódicos que apoiavam os projetos dos segmentos políticos. Com a finalização parcial das primeiras obras referentes à implantação do sistema de água e esgoto, vieram também as suspeitas em relação à higiene dos aguadeiros e a discriminação contra seu trabalho enquanto elemento do passado. Em 8 de julho de 1937, o A Época ao publicar em sua manchete de capa o pagamento do empréstimo tomado à Caixa Econômica Federal e as proximidades da inauguração do serviço de água, expunha ao lado da notícia a imagem de um aguadeiro, e logo abaixo uma frase afirmando: “Um aspecto que em breve desaparecerá.” 318 Diferentemente do que previra o A Época, mesmo com a inauguração dos serviços de água, os aguadeiros permaneceram atuando na cidade, já que, como foi dito anteriormente, além da insuficiência da distribuição para os bairros, muitos trabalhadores se sustentavam financeiramente dessa atividade. Ao mesmo tempo, a imprensa local não dava descanso a estes sujeitos. Em 14 de outubro de 1944, O Intransigente se queixava dos aguadeiros por manterem seus animais soltos em vias urbanas, “abalroando os transeuntes, especialmente velhos e crianças”, destacando que “os animais na cidade, não podem andar soltos e sim, em cabrestos.”319 Cabe dizer também que, sem a atuação desses sujeitos, provavelmente uma boa parte da população ficaria sem acesso à água, sendo também por isso tolerado pelas autoridades municipais, ainda que exercesse sua vigilância e respaldasse os preconceitos contra esse grupo na imprensa. Retornando ao acidente que envolveu João Matos e Solange Loupe, o advogado de defesa trabalhou também com a hipótese de que o incidente teria acontecido também por APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 1º de agosto de 1936, Ano V, n. 279, p.9. e Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 15 de agosto de 1936, Ano V, n. 281, p.9. 318 CEDOC\UESC. Jornal A Época, 08 de julho de 1937, Ano XV, n. 874, p.1 319 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 14 de outubro de 1944, Ano XVIII, n.º6. p.4. 317 130 influência do gado que havia se esparramado na Rua Barão do Rio Branco quando se dirigia ao Matadouro. Tomando essa premissa para a defesa do acusado, Ubaldino Brandão buscava deslocar as causas do acontecimento para outro elemento de tensão na urbanização de Itabuna, qual seja: as freqüentes boiadas que invadiam o centro da cidade durante as décadas de 1930 e 1940. Para serem abatidos, os bois que vinham da zona rural do município (principalmente dos distritos de Itapuy, Palestina e Macuco) geralmente precisavam atravessar parte do centro da cidade, invadindo ruas e avenidas movimentadas do comércio local. Em algumas oportunidades, o gado saía do controle dos boiadeiros, espalhando-se pelos logradouros por onde passavam. Quando isso acontecia, a imprensa utilizava alguns acidentes para produzir discursos contra a atuação dos vaqueiros na cidade. O exemplo disso foi o acidente a menor Solange Loupe. Os jornais não poupavam críticas aos vaqueiros que conduziam os animais pelo centro de Itabuna. Foram esses ataques da imprensa que ajudaram a formar preconceitos ligados aos trabalhadores condutores de gado. Aliás, no mesmo número de O Intransigente em que foi encontrada a notícia do acidente entre João Matos e Solange Loupe, havia também uma pequena nota na quarta página que se referia às boiadas em Itabuna. Sob o título provocante de “Gado enfurecido na cidade”, a nota colocava que uma das vacas conduzidas pela Rua 7 de setembro havia entrado em um armazém de cacau da firma Dórea e Irmãos Ltda., ficando presa no interior do estabelecimento com outras pessoas. Na oportunidade, o periódico se perguntava até quando aquela cena se repetiria na cidade. 320 Provavelmente, as cobranças de O Intransigente se pautavam no Código de Posturas de Itabuna que regulamentava a atuação dos condutores de animais. A lei de costumes municipal destinava um capítulo único para definir as normas referentes a estes profissionais no centro da cidade. Segundo ela, os condutores de animais deveriam guiar seus animais sempre à direita, segurando a rédea ou cabresto, que não poderia exceder de um metro e vinte centímetros de comprimento. A fiscalização também proibia a condução de bois realizada por crianças ou menores. Sobre os locais nos quais os condutores de animais poderiam trafegar, as posturas proibiam o trânsito nas ruas calçadas da cidade, com exceção da Rua Barão do Rio Branco (que dava acesso ao matadouro). Essa última regra poderia ser desconsiderada, caso os condutores tivessem impedimentos nas vias não calçadas, necessitando utilizar-se das ruas pavimentadas. 321 Mas, assim como no caso dos trabalhadores que necessitavam cavalgar, as CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 29 de julho de 1944, Ano XVII, n.º 48. p.4. APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Op. Cit. pp.52-53. Capítulo IV, especificamente os artigos 315, 317, 320, 321 e 325. 320 321 131 posturas não foram suficientes para impedir a atuação dos condutores. Foi justamente esse conflito de costumes que levava os jornais e a fiscalização a combater as boiadas e, principalmente, os boiadeiros. Como forma de evitar a presença das boiadas na área central de Itabuna, a Guarda Municipal apreendia constantemente animais que se encontravam soltos pela cidade. Em 29 de janeiro de 1940, por exemplo, o guarda Moisés Campos comunicava ao comandante João Moraes a apreensão de cinco animais encontrados em via pública, que haviam se desgarrado de uma boiada.322 Em 28 de julho de 1938, os indivíduos Jose Fernandes, Edson Teixeira, Domingos Galvão e Agripino Bispo tiveram os animais abatidos pela fiscalização sanitária por terem sido encontrados em jardim público.323 Casos desse tipo se repetiam nos relatórios da inspetoria da Guarda Municipal, um indicativo de que mesmo existindo a fiscalização, esses comportamentos não sumiram. Juntamente com a ação da fiscalização, a imprensa procurava fechar o cerco à atuação dos boiadeiros no centro da cidade. Quase sempre os jornais tentavam classificar a passagem das manadas como um costume que não se adequava aos valores urbanos apresentados para Itabuna. Dentro dessa nova cultura urbana que se construía pelos poderes públicos, a prática desses trabalhadores passou a ser vista enquanto uma conduta que se desviava daquilo que os grupos hegemônicos imaginavam como ideal. É dentro dessa perspectiva que em 14 de dezembro de 1943, novamente O Intransigente aparecia na posição de portador das críticas contra os condutores das boiadas. Em coluna da última página, intitulada “Os nossos maus costumes”, dizia que Outro costume mau, perverso e prejudicial, por todos os meios que se encare é o de “touradas de Madrid”, que se verificam continuamente, pelas ruas da cidade, quando um touro se desgarra de boiadas e se enfurece, não querendo ir para o matadouro. Os vaqueiros aproveitam e fazem uma boa farra. Na 2ª feira desta semana o espetáculo foi degradante, um touro enfureceu-se no bairro da Conceição e os vaqueiros praticaram todos os desatinos para fazer escândalos e aumentar o cartaz. Maltrataram o animal da maneira mais cruel. Bateram-lhe tanto que o “esquartejaram”. Quando o touro tomou a direção do matadouro jorrava sangue em quantidade, de suas ventas, sangue que escorreu pelos passeios da rua de Taboquinhas, sujando tudo. Multidão enorme de desocupados procurava “tourear”. O Trânsito ficou interrompido ás pessoas prudentes e às crianças que deviam passar pela ponte para o outro lado do rio. [...] Deve-se acabar esse mau costume. Se o animal se desgarra, leve-se a boiada, ou outros animais para fazê-lo acompanhar. Caso contrário, APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, Relatório da Inspetoria da Guarda Municipal de Itabuna em 9 de fevereiro de 1940. sábado, 10 de fevereiro de 1940, Ano VIII, n.º 455, p.9. 323 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 30 de julho de 1938, Ano VII, n.º 379. p.4. 322 132 procure-se um recanto e, sem escândalo, sem chamar à atenção das crianças, e matem-no. 324 Ao se referir às questões concernentes à cidade, os jornais terminam deixando mais visível o jeito como os setores letrados e dominantes produzirem seus significados do viver urbano em Itabuna, evidenciando os conflitos e as tensões na constituição de uma cultura urbana voltada para os interesses do poder público. Esse embate entre os valores projetados por uma minoria detentora do poder e os valores dos trabalhadores torna a cidade um campo de divergências. É isso o que acontece nesse caso. As práticas dos boiadeiros são consideradas condutas destoantes para aqueles que governavam e de quem produzia os discursos que fundamentavam os novos valores urbanos. Por conta disso é que estes trabalhadores têm os seus comportamentos considerados impróprios para a vida urbana pela coluna jornalística, a começar por seu título. A nota deixava transparecer a noção de desordem, perigo e violência frente à presença dos boiadeiros. Diante da política urbana de Itabuna, o trabalho dos boiadeiros era colocado na condição de desordem citadina na imprensa. Em outra oportunidade, o cronista João Searom escreveu uma coluna para O Intransigente contando mais uma cena na qual um boi desgarrado da manada invadiu o jardim público. Dizia o colunista que em uma das tarde de abril de 1942, estava reunido com outros dois sujeitos chamados Custódio e André no Jardim Olinto Leone. Após repreender algumas crianças que se encontravam danificando os bancos daquele jardim, foi surpreendido por um touro desgarrado da boiada invadindo a praça. As pessoas que se encontravam no logradouro correram para se proteger do animal, quando apareceu o vaqueiro que conduzia a boiada para o matadouro. Continuando sua narrativa, Searom afirmava que “Quando o vaqueiro apareceu foi pior a emenda, pois o toureiro transformou o nosso jardim numa Catalunha!”. Um pouco depois, o autor relatava que um dos jardineiros que se encontrava em serviço havia se referido ao vaqueiro com receio, ao dizer que “eu tive mais receio do vaqueiro do que mesmo do touro!”.325 A estória contada por João Searom sugere que os dirigentes e os letrados da cidade estavam mais preocupados em reprimir os vaqueiros do que os animais em si. A intensa fiscalização da prefeitura e as freqüentes denúncias da imprensa frente a existência das boiadas que invadiam o centro da cidade fizeram com que os boiadeiros se posicionassem diante do problema em meados da década de 1930. Aliás, antes de partir para mais um exemplo da disputa entre os vaqueiros e os Poderes Públicos e grupos hegemônicos, 324 325 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 14 de agosto de 1943, Ano XVI, n.º 50, p.4. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 30 de janeiro de 1943, Ano XVI, n.º 21, p.3. 133 cabe destacar novamente o papel dos periódicos. Eles são indícios proveitosos para se compreender o campo de tensão na vivência dos sujeitos durante uma Itabuna em transformação. Como coloca a historiadora Heloísa de Faria Cruz, nesse momento os jornais se tornam os principais produtores discursivos, ligando-se a uma cultura urbana conservadora que fundamenta novos valores para aqueles que vivem nas cidades. Entretanto, nesta função, a imprensa acaba possibilitando a visibilidade das práticas dos trabalhadores frente aos projetos formulados pelos segmentos hegemônicos itabunenses.326 Em 9 de novembro de 1935, os vaqueiros foram novamente alvo das críticas da imprensa local. Em nota intitulada “O perigo das boiadas”, O Intransigente destacava que, no dia 6 de novembro, uma sexta-feira, os boiadeiros foram protagonistas de um grave acidente nas redondezas da Praça Olinto Leone. Segundo a matéria, uma mulher chamada Maria de Lourdes, esposa do senhor João Ernesto, ao passar pelo referido jardim, acabou sendo chifrada por um dos animais que passavam pelo local e outras duas crianças que brincavam foram derrubadas. Dizia ainda que a mulher estava grávida, e que o susto quase a levara a perder o filho. Aproveitando toda a descrição de perigo do acidente, o semanário local aproveitava para exigir dos poderes públicos municipais a proibição definitiva “do tráfego de boiadas pelas ruas movimentadas da nossa cidade.”327 Diante de tantas críticas ao longo do ano de 1936, os vaqueiros elaboraram uma resposta a O Intransigente que havia lançado uma coluna questionando o comportamento dos condutores de animais na passagem pelas ruas da cidade. O periódico dizia que era necessária uma providência efetiva “para impedir o modo inconveniente, porque os boiadeiros ou seus capitães fazem a condução de boiadas, dentro das ruas da cidade.”328 Como forma de responder às críticas, Eujácio Borges escreveu uma carta em 30 de abril de 1936, esclarecendo que seu ofício era realizado com o maior cuidado possível e explicando os incidentes noticiados naquele ano. Assim dizia o vaqueiro em texto intitulado “A culpa não é dos boiadeiros”: Tendo lido nos jornais desta terra algumas notas sobre o perigo das boiadas em trânsito pelas ruas desta cidade, como boiadeiro, para defender a minha testada e dos meus companheiros de negócios, sou forçado a vir a público esclarecer que, em absoluto, não cabe a culpa aos boiadeiros, de alguns incidentes ocorridos nesta cidade. CRUZ, Heloísa F. São Paulo em papel e tinta: periodismo e vida urbana – 1890-1915. São Paulo: Educ: FAPESP: Imprensa Oficial, 2000. pp.19-25. 327 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 9 de novembro de 1935, Ano IX, n.º 10, p.1. 328 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 25 de abril de 1936, Ano X, N.º 34, p.1. 326 134 As rezes que têm pegado pessoas desta cidade não foram de boiadas e sim conduzidas isoladamente. Todos os boiadeiros têm o maior cuidado na condução das suas rezes, quase sempre viajadas e que nunca desgarram das boiadas para ofender alguém. Acresce ainda que as boiadas necessariamente tem que atravessar a cidade, não existindo uma estrada isolada para tal fim. Pela beira do rio pode-se vir até certo ponto, tendo que se atravessar trechos de ruas, pois o matadouro fica no extremo da cidade. Muitas vezes, desocupados e vadios, ao passarem as boiadas, espantam com gritos e pedras os bois quase sempre da raça zebu, animais bravos, de forma que, alguma vez se desgarram, causando alvoroço. A culpa, como vê o público, não é dos boiadeiros.329 Como se vê, Eujácio Borges se encarregou de defender seus interesses e os de seus companheiros de trabalho, tratando de colocar as práticas dos boiadeiros dentro da “normalidade” urbana instaurada pelos valores de urbanidade imaginados por aqueles que tinham influência política em Itabuna. Na sua carta possibilita analisar um elemento importante para se pensar a relação deste grupo de trabalhadores frente à urbanização. Na política urbana local, os usos urbanos dos trabalhadores deveriam ser regulamentados pela Prefeitura. Isso fazia com que os procedimentos ou usos não autorizados do espaço urbano fossem desclassificados e estigmatizados pelas autoridades públicas e pela imprensa. A idéia de desordem está diretamente ligada às pessoas que utilizavam as vias urbanas para sobreviver e trabalhar fora das normas regulamentadas pelo poder público. Sobretudo, as tensões entre vaqueiros e prefeitura estavam no campo das divergências culturais que existiam em Itabuna. Enquanto os segmentos hegemônicos buscavam consolidar os valores de urbanidade criados por eles através da administração municipal, os vaqueiros defendiam seu trabalho e seu direito à cidade utilizando valores que ainda estavam ligados aos modos de vida da zona rural. As posições do vaqueiro Eujácio Borges podem ser consideradas uma tentativa de negociar sua prática profissional frente às críticas recebidas pelos setores letrados que fundamentavam a produção discursiva do poder público. Ao criticar os hábitos e os costumes dos boiadeiros, chamando-os de abusados, perigosos e violentos, os segmentos hegemônicos viam neles ameaças aos valores culturais urbanos fundamentados na ordem estabelecida pela prefeitura. Quando passavam pelas ruas e atrapalhavam o trânsito da cidade, conseqüentemente as boiadas desestabilizavam a dinâmica comercial dos estabelecimentos e corroíam as formas de usar as vias urbanas segundo as normas tradicionais de comportamento e de postura em Itabuna. Desta forma, começamos a entender que as tensões e os conflitos envolvendo os poderes públicos e a população de Itabuna, estão inseridos numa experiência 329 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 02 de maio de 1936, Ano X, N.º 35, p.1. 135 de contradição de valores dominantes e populares em que os trabalhadores buscavam alternativas de sobreviver diante das transformações. Sobre isso, a historiadora Déa Fenelon definia essas contradições como experiência dos populares num campo de forças em que o conflito é experimentado na luta de valores culturais.330 A passagem das boiadas guiadas pelos vaqueiros não provocava tanto furor na cidade como nos valores urbanos defendidos pelo poder dominante. Sua existência apontava para um uso popular da cidade pelos trabalhadores rurais, que os segmentos conservadores da agência política local gostariam de ver reprimido por considerarem um ultraje às condições de “progresso” e de “civilização” de Itabuna. Refletindo sobre o que Michel de Certeau escreveu, os modos de vida dos trabalhadores, neste caso, os boiadeiros, tornaram-se ações de resistência contra uma cidade que não estava sendo construída para eles, provocando uma erosão na ordem estabelecida das coisas.331 Mesmo com a implantação de uma política urbana efetiva, os modos de viver dos vaqueiros e as medidas executadas pelo poder público são sinais de que a cidade ainda conviveu por muito tempo com elementos vinculados tradicionalmente ao mundo rural e “popular”. Esse clima de tensão, a qual insistia em alicerçar seu ambiente urbano em novos valores modernos, colaborava para que os desentendimentos e a disputas de projetos e de interesses se tornassem intensas em Itabuna. É o que se percebe quando se trata da existência de animais no centro da urbe. A existência de animais de médio e de grande porte pelas ruas da cidade, dividindo espaço com pedestres e veículos, e a criação de pequenos animais em quintais residenciais e jardins públicos apresentavam esse quadro contrastante no período de metamorfose do espaço citadino. Mal o ano de 1943 havia começado, e O Intransigente não abandonava o posto de denúncia acerca dos hábitos da população local. Em 2 de janeiro daquele ano, o periódico se queixava da existência de criatórios de porcos que provocavam mau cheiro no Alto da Bela Vista, Rua da Lasca (atual Avenida das Nações Unidas). A nota publicada informava que os animais eram criados em “pequenos chiqueiros, em fundos de quintais, dentro da cidade, desrespeitando os mais comezinhos preceitos de higiene [...] podendo-se originar ali doença FENELON, Déa R. O historiador e a cultura popular: história de classe ou história do povo? In: História e perspectivas, n.º 6. Uberlândia: UFU, 1992. Nesse artigo, a autora evidencia a possibilidade de investigar a vivência de homens, mulheres e crianças a partir de seus modos de vidas para perceber que os conflitos de classe não acontecem tão somente no âmbito econômico, mas também é uma luta de valores entre os sujeitos históricos. A cultura se mostra um campo rico e fecundo para estudar as contradições de classe. pp.5-23. 331 CERTEAU, Michel de. Op. cit. p.89. O autor defende que “a ordem efetiva das coisas é justamente aquilo que as táticas “populares” desviam para fins próprios, sem a ilusão que mude proximamente.” 330 136 infecciosas.”332 De maneira semelhante ao que fazia com vaqueiros e cavaleiros, o objetivo central da denúncia era informar a periculosidade do costume de se criar porcos em chiqueiros residenciais, enfatizando a possibilidade de moléstia em decorrência dos bichos. Para combater a conservação de porcos na zona urbana, a Guarda Municipal utilizava como referência o Código de Posturas, no seu artigo 248, que versava sobre a proibição da criação de porcos soltos ou enchiqueirados, sendo tolerados numa distância de um quarto de légua (aproximadamente 1,5 quilômetros) do perímetro central. Além disso, era proibida também a venda pelas ruas e praças da cidade não só de porcos, mas também de carneiros, cabras ou perus. As sanções para quem não respeitassem tais determinações eram o pagamento de multas que variavam entre 10$000 (dez mil réis) e 20$000 (vinte mil réis), podendo incorrer na apreensão dos animais. 333 Mas a atuação da Guarda sugere que, em muitos casos, as penas eram brandas em relação às orientações das leis municipais. Em 8 de maio de 1932, a senhora Alzire Kforo, residente à Rua Floriano Peixoto, fora intimada pelo guarda Fernando Galvão para que fosse retirado um porco do fundo do quintal num prazo de 24 horas. Do mesmo modo, a Srª. Deonilla e o Sr. Odilon foram intimados a abater os porcos que se encontravam nos fundos de sua residência em 17 de agosto e 5 de setembro de 1936, respectivamente. Nos três casos apontados, em nenhum deles os agentes da fiscalização aplicaram multas ou fizeram apreensão dos animais, o que sugere certa tolerância à respeito da criação de porcos. Se, por um lado, a Guarda Municipal abria concessões na questão dos porcos, por outro os jornais locais continuaram com forte campanha contra este problema. A imprensa itabunense deixava suas diferenças de lado e denunciava constantemente a presença dos suínos na cidade. Em 7 de agosto de 1943, o A Época informava que continuava de “forma assombrosa, o movimento de porcos soltos em plena Rua do Cajueiro, especialmente à noite, quando os mesmos penetram nos quintais das casas, estragando e destruindo tudo, sem que haja [...] uma providência por menor que seja.”334 A preocupação mais efetiva da imprensa local era com a existência de porcos criados no centro da cidade em condições duvidosas, segundo as notícias do periódico. Por diversas vezes, os jornais alegavam que parte desses porcos não era cuidada segundo os padrões sanitários determinados pelo poder público, e que os animais eram vendidos na feira para a população, o que colocava em perigo a saúde pública de Itabuna, segundo os jornalistas. Esse tipo de argumentação passou a ser o suporte CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 2 de janeiro de 1943, Ano XVI, n.º 43, p.4. APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Op. Cit. pp.42-43. Capítulo II, especificamente os artigos 245 e 248. . 334 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 07 de agosto de 1943, Ano XXV, S/n.º, p.4. 332 333 137 necessário para fundamentar o tom das críticas e das perseguições ao hábito de criar porcos no perímetro central pelos veículos de comunicação, caracterizando-o enquanto uma conduta desviante a ser reprimida pelo governo municipal. Seguindo essa linha de pensamento, O Intransigente voltava a publicar outra nota sobre a presença de porcos em mau estado no centro de Itabuna. Publicada em 13 de fevereiro de 1943, a coluna intitulada “Os porcos estavam em mau estado” dizia que: Na madrugada de 2ª feira, chegou um caminhão do sertão, trazendo muitos porcos, havendo 5 desses animais mortos, os quais foram logo tratados, preparando-se carne salgada e toucinho. Notaram os denunciantes que tanto a carne como o toucinho estavam com mau cheiro, e que, podendo fazer mal a quem os comesse, seria um crime para eles, eles sabiam disso, não revelaram a saúde pública. Imediatamente levamos os dois jovens [denunciantes do caso ao jornal] ao Dr. José Pinto, que tomou as medidas urgentes que o caso reclamava, apreendendo a carne e o toucinho. Não eram de 5 porcos, mas apenas de dois o toucinho e a carne que estavam putrefatos. Mais de 200 quilos de carne e duas mantas de toucinho foram incinerados, evitando-se, assim, que a nossa população se alimentasse com mercadorias de tão péssima qualidade. São esses os motivos, talvez, de certas doenças inesperadas que tem aparecido, como sejam infecções de todas as maneiras, e que podem ser evitadas, trabalhando o povo com as autoridades sanitárias, porque estas não podem estar em todas as partes. Cada um deve estar vigilante pela saúde de todos.335 O tom da narrativa soa como se o acontecido fosse uma daquelas estórias onde o detetive resolve mais um caso que colocava a sociedade em perigo. Mas nessa construção textual, atentamos para as formas pelas quais os criadores e vendedores de porcos procuravam se desviar da fiscalização. Ao chegar na calada da noite, os criadores de porcos tentavam agir sem a intromissão do poder público, evitando que a saúde pública os importunasse na preparação das carnes a serem vendida em Itabuna. Por outro lado, a notícia responsabilizava esse grupo de trabalhadores pelas doenças “inesperadas” que surgiam na cidade. O objetivo era sugerir a condição de periculosidade trazida por aqueles que se desviavam dos padrões e das normas criadas pelo poder público. Não passa despercebido o modo como o povo, tomado enquanto massa ordeira e pacífica, é conclamado a trabalhar junto com os segmentos políticos para evitar a criação de porcos. Nesse sentido, tentava-se convencer a população a combater seus próprios costumes em favor de valores urbanos fundamentados na noção de saúde pública. Mas, como observei, muitas foram as ações para ludibriar a ordem estabelecida. 335 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 13 de fevereiro de 1943, Ano XVI, n.24, p.4 138 Em face das experiências urbanas de que tratei aqui envolvendo trabalhadores e animais na cidade em transformação, entendo que mesmo com o aparato fiscalizador de cerceamento das práticas e dos modos de vida dos “de baixo”, era impossível acobertar os aspectos culturais indesejados pelo poder público. Isso fazia de Itabuna um espaço urbano que ainda guardava muitos hábitos e costumes rurais numa época de valorização das culturas urbanas. Mesmo atacando e criticando as práticas dos montadores, dos vaqueiros e dos criadores de animais, os poderes públicos foram vencidos pela necessidade de se manter a atividade destes profissionais. Giulio Argam afirma que “as cidades modernas não podem se agregar e funcionar a não ser à custa, pelo menos em parte, da cidade antiga.”336 Isto é, a sobrevivência em Itabuna ainda dependia, em muito, desses costumes. Lavadeiras e engraxates: trabalhadores de ganho em Itabuna Em 9 de maio de 1943, o A Época lançava nota, em sua quarta página, denunciando um hábito freqüente entre parte da população que utilizava a água do rio que cortava a cidade.337 Tratava-se da lavagem de roupa nas margens do Rio Cachoeira. A pequena tira jornalística recebia o título de “Lavadeiras Inconvenientes” e visava chamar a atenção da Guarda Municipal ao afirmar que: Várias têm sido as queixas que temos recebido de algumas “biribanas” que, num total desrespeito às famílias residentes nas proximidades do Avenida Hotel e rua Alfeu Carvalho, lavam roupas, pronunciam palavras de baixo calão e, às vezes, banham-se às primeiras horas da manhã. Urge uma séria providência da zelosa Guarda Municipal, no sentido de punidos as culpadas. 338 Por detrás dos preconceitos em relação às mulheres, pode-se observar os modos de vida das lavadeiras. Ao se referir à freqüência das queixas sobre a atuação destas trabalhadoras, a imprensa evidenciava que a ocupação do Rio Cachoeira pelas mulheres que lavavam de ganho era constante. Percebemos que aquela zona já havia se tornado um ponto tradicional de lavagem de roupa entre as mulheres. O período em que se destinavam ao trabalho também estava à mostra. As mulheres costumavam lavar suas trouxas o mais cedo possível, talvez para que pudessem aproveitar o dia de sol que viria pela frente. No entanto, a imprensa assumia o posto de vigilante dos costumes da população. Evidenciando o ARGAM, Giulio C. História da arte como história de cidade. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 1995, p.76-77. 337 CRUZ, Heloísa F. Op.cit. A obra de Heloísa Cruz é uma leitura importante para quem trabalha com as fontes periódicas, visto que a partir da produção discursiva dos jornais paulistas, a historiadora toma a escrita da imprensa como experiência cultural urbana e campo de disputa de poder na cidade moderna. 338 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 09 de maio de 1943, Ano XX, N.º 1204, p.4. 336 139 comportamento que contrariava o código de posturas de Itabuna, as lavadeiras eram consideradas um elemento “nocivo” aos valores de urbanidade que pretendiam ser afirmados pelos setores políticos de Itabuna. Não é por acaso que o periódico enfatizava elementos como a pronúncia de xingamentos e a prática de banhos nas áreas próximas ao perímetro central da cidade para estigmatizar as trabalhadoras. Para o antropólogo Jorge Carvalho, os segmentos hegemônicos procuravam forçosamente apontar os hábitos populares como negativos para afirmar seus próprios valores. 339 Note-se que é isso que o A Época destacava quanto às lavadeiras quando se posicionavam diante de um dos ícones de modernidade de Itabuna, qual seja: o “Avenida Hotel”. No capítulo anterior, havia observado que aquele prédio tinha sido construído há pouco mais de 5 anos e era um dos principais estabelecimentos de acomodação de visitantes do município, contando com o apoio do poder municipal para sua construção, já que recebera isenção de Décimas Urbanas pela sua inovação arquitetônica. 340 Para a imprensa, a presença das trabalhadoras próxima ao prédio, o hotel, talvez representasse um “ultraje” à promoção do comportamento de urbanidade difundido pelas autoridades públicas. Mesmo com os estereótipos criados em torno das lavadeiras, suas atividades certamente estariam entre as funções essenciais exercidas na cidade. Cortada pelo rio Cachoeira e por outros riachos, enquanto cidade que possuía um sistema de distribuição de água precário por muitas décadas, Itabuna oferecia condições para que as mulheres se dedicassem a essa atividade de ganho, sendo uma das poucas possibilidades de recurso financeiro para aquelas que viviam em situação de pobreza. Maria Izilda S. de Matos destaca que, parte das famílias de posses usava grande quantidade de roupa branca no seu cotidiano, o que em geral exigia cuidados especiais para lavar, passar e engomar, cuja habilidade quase sempre era dominada por aquelas trabalhadoras.341 Por conta disso, a presença das lavadeiras foi constante no logradouros urbanos, o que fez com que os poderes públicos se ocupassem em regulamentar suas atividades. Embora seja difícil encontrar nos relatórios da Guarda Municipal referência à aplicação de multa ou apreensão do material de trabalho das lavadeiras, sua atuação profissional era regida pelo Código de Posturas Municipais. Nesta lei, podem-se identificar CARVALHO, José Jorge de. O olhar etnográfico e a voz subalterna. Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 7, n. 15, julho de 2001, p. 129. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/ha/v7n15/v7n15a05.pdf. 340 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 24 de julho de 1937, Ano VII, n.º 329, p.1. ver segundo capítulo, no tópico O plano e o mercado imobiliário. 341 MATOS, Maria Izilda Santos de. Cotidiano e cultura: história, cidade e trabalho. Bauru: EDUSC, 2002. p.139. Ver especialmente o capítulo 6, onde a autora trata do cotidiano de trabalho das lavadeiras nas cidades de São Paulo e Santos. 339 140 seis artigos que se referiam diretamente à atuação das lavadeiras. Por exemplo, proibia-se a lavagem e a estendedura de roupas na parte do rio que fazia fronteira com o perímetro central da cidade. Essa atividade só seria permitida nas imediações e depois da Ponte Góes Calmon. Do mesmo modo, não era permitido o uso das margens do rio para secar outros utensílios domésticos, tais como pratos, panelas, ou até mesmo lavagem de animais ou de suas vísceras. Aqueles que desrespeitassem as disposições do Código de Posturas seriam punidos com a aplicação de multas de 10$000 (dez mil réis) ou a apreensão das roupas ou dos utensílios para a garantia do pagamento da pena.342 Além do controle por parte da Prefeitura, as lavadeiras também sofriam com a desconfiança dos engenheiros que planejaram a urbanização de Itabuna. Na proposta de higienização e embelezamento das margens do Rio Cachoeira, o engenheiro Saturnino de Brito Filho não se furtou de se pronunciar contra a permanência das trabalhadoras nas áreas fronteiriças da cidade. No segundo capítulo, observei a preocupação do engenheiro e da prefeitura em extinguir as pedras no leito do rio, lugar onde as lavadeiras ficavam para lavar as roupas, por meio da construção de uma barragem.343 Para Brito Filho, assim como para os poderes municipais, a idéia de saneamento perpassava tanto no sentido de higienização espacial, pondo fim às poças existentes no leito do rio; quanto na questão social, com a retirada das lavadeiras por conta da construção da barragem. Embora a projeto da barragem tenha saído do papel somente algumas décadas mais tarde, a proposta pretendia acabar com a atividade das lavadeiras nas áreas próximas ao centro. Cabe observar, também, a associação que os poderes públicos fazem entre lavadeiras e insalubridade. 344 Nesse trecho, as trabalhadoras estão relacionadas com a falta de higiene da cidade. Em 1946, o poder público afirmava que “o serviço de lavanderia dentro do rio, torna a água imprestável mais abaixo, captada para beber, ou mesmo para asseio dos utensílios de uso na alimentação.”345 Assim, começo a perceber que existia uma disputa de territórios entre o poder público e as lavadeiras, cujo cenário é o Rio Cachoeira. O espaço urbano passou a ter sentidos e valores diferentes para as lavadeiras e as municipalidades. Por um lado, o poder público buscava consolidar valores urbanos calcados APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Itabuna: Tipografia D’A Época, 1933. Ver artigos 588, 642, 643, 644, 645 e 646. 343 APMIJD. Escritório Saturnino de Brito. Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia). – Relatório F. Saturnino R. de Brito Filho. Rio de Janeiro, março de 1935, p.6. 344 Segundo MATOS, Maria Izilda Santos de. Op.cit, p.148, as lavadeiras eram acusadas pela propagação de pestes e epidemias mediante alegação de que as roupas lavadas sem cuidados poderiam trazer germes de epidemias e de febres. Além disso, a água suja das lavagens que escorria pela cidade também era considerada um foco de propagação. 345 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 7 de dezembro de 1946, Ano XIV, nº 810, p.9. 342 141 em um tipo de urbanidade que valorizava comportamentos das pessoas que estavam condicionadas pelas expectativas da administração pública, cujo objetivo recaía na construção de uma cidade com padrões de beleza e de higiene determinados pelos anseios dos segmentos políticos hegemônicos. De outro lado, as trabalhadoras por meio de suas práticas realizavam outros usos da cidade, um uso popular, centrado no pragmatismo da vivência destes sujeitos, enfrentando as dificuldades cotidianas de acordo com seus valores culturais. Itabuna passava a ser palco de uma tensão que envolvia as diferentes culturas existentes no espaço citadino e que se refletiu nas contradições dos modos de vida dos grupos populares e do setor político que administrava o município.346 No ano de 1946, as diferenças entre a Prefeitura de Itabuna e as lavadeiras se tornaram mais evidentes, e as disputas passaram a ser mais diretas. Em maio daquele ano, as lavadeiras Adail Amaral de Oliveira, Marina Souza, Norbelia Prates Soares, Constância Maria Paranhos e Maria Adalgisa Alves impetravam por meio de seu advogado, Carlos Pereira, um mandado de segurança contra o ato do Prefeito de proibir lavagem de roupas no Rio Cachoeira. Na juntada do processo, encontravam-se uma petição inicial instruída por uma procuração e seis atestados de pobreza das postulantes, a fim de obter o benefício da justiça gratuita. No documento, alegavam-se que Por cúmulo de tantas amarguras se não bastassem as resultantes da ingrata profissão exercida, vem sendo as impetrantes como as suas demais e infelizes companheiras tolhidas pela prefeitura, de praticarem a lavagem de roupa contratadas à freguezia, nas águas do Rio Cachoeira que banha esta cidade, se não em trechos muito além desta cidade no subúrbio de Mutucugê, distante por excesso e que não se presta ao referido mister, já pelo grande número das lavadeiras, já porque ali não existe coradouro e já porque ali não há pedras para a “esfregação da roupa”; que nunca dantes em qualquer outra administração municipal já se viu tamanho constrangimento profissional e incidente precisamente numa classe mais simples e mais sofredora do povo: as lavadeiras.347 O texto acima certamente foi produzido pelo advogado das lavadeiras, que procurou se pautar nas dificuldades e nos sofrimentos passados pelas mulheres para executar suas tarefas profissionais, como forma de convencer a justiça pública a considerar o mandado de segurança. Não obstante os valores do próprio advogado ao elaborar o documento, ao que tudo indica, parte dos argumentos utilizados na petição judicial se fundamentava na dinâmica de trabalho das lavadeiras. O mandado de segurança questionava a proibição da Prefeitura que 346 347 FENELON, Déa R. Op.cit pp.5-23. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 29 de maio de 1946, Ano XIV, nº 782, p.10 142 proibia a lavagem de roupa nas áreas do rio Cachoeira que se limitava com as ruas do perímetro urbano. Segundo o advogado, as medidas da prefeitura não levavam em consideração os laços de afetividade das trabalhadoras com relação aos seus espaços de trabalho. Não era qualquer lugar que serviria para sua prática profissional. Cada ponto do rio parecia ter sua peculiaridade e sua funcionalidade para as lavadeiras. Eram necessários lugares, no leito do rio, em que houvesse pedras, onde pudessem esfregar suas trouxas de roupas, facilitando a limpeza dos tecidos. O espaço para o coradouro, isto é, para deixar as roupas ensaboadas a fim de que ficassem limpas, deveria ser guardado para cada uma delas. Além disso, através do trecho citado, podemos sugerir que cada parte do rio parecia ter seus usuários, quando afirmava que o local oferecido pela prefeitura já era freqüentado por outras lavadeiras. Contudo, obcecada em seguir as determinações do Código de Posturas de Itabuna, a Prefeitura parecia não enxergar o sentido do rio para a vida das lavadeiras, considerando o Cachoeira como mais um elemento na cidade a ser urbanizado.348 Cabe ainda não esquecer que as lavadeiras reivindicavam a tradição de suas práticas sem o incômodo do prefeitura por anos. Desde o ano de 1933, quando fora publicada a lei, elas nunca haviam sido importunadas pela fiscalização, como informava a defesa do advogado. A Prefeitura não demorou a responder ao mandado de segurança impetrado pelas lavadeiras. Em resposta ao juiz da Vara Cível da Comarca de Itabuna, o prefeito Armando Augusto da Silva Freire justificou sua medida da seguinte forma: As razões que levaram a administração a tomar a deliberação em foco, foi o abuso que se vinha verificando no particular por parte das lavadeiras, que ultimamente não vinham só lavando, como estendendo roupas em todo o trecho fronteiriço à cidade, inclusive até em passeios de casa à margem do mesmo rio. 349 Para fundamentar sua argumentação, o executivo municipal se referia aos artigos 642 a 646 do Código de Posturas de Itabuna. Eram os mesmos dispositivos jurídicos aos qual me referi anteriormente. Destarte, a Prefeitura buscava se amparar na classificação pejorativa do comportamento das lavadeiras. A prática de lavar roupas no leito e nas margens do Rio Cachoeira em que se limitava com o perímetro central foi considerada um abuso pelos agentes políticos do município. Nessa disputa pelo território com as lavadeiras, o poder público não LEMOS, Carlos A. C. A República ensina a morar (melhor). São Paulo: Hucitec, 1999. O autor coloca que a maior parte dos Códigos de Posturas do país não considera as peculiaridades existentes na cidade, considerando os habitantes como massa homogênea. 349 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 15 de maio de 1946, Ano XIV, nº 781, p.6. 348 143 abria mão de relacionar a atividade profissional das trabalhadoras aos “maus costumes”. Ao definir que espaços as mulheres poderiam freqüentar, o poder público buscava tomar territórios utilizados há muito tempo na lavagem de roupa. Em outro momento, a prefeitura ainda justificou sua ação afirmando que a prática das lavadeiras estava proibida nos 400 metros em que o rio margeava o centro da cidade, onde se achavam “um Jardim Público, o prédio onde funciona a Prefeitura e um seguimento de rua calçada a paralelepípedos, arborizado e cheio de boas edificações, tais como os melhores hotéis da cidade”. 350 Durante a disputa judicial, Pamphilo Andrade da Silva Freire, advogado do município e irmão do refeito, procurou ratificar a constitucionalidade da aplicação do código de posturas em Itabuna. Para ele, a lei se configurava na forma que a Prefeitura encontrava para gerenciar o patrimônio de Itabuna, garantindo que a ordem fosse conservada sem esbarrar na vontade individual de cada cidadão. Dizia ainda que a ação do governo resultava na iniciativa legal de que o uso do espaço urbano, enquanto algo público, fosse regulado “para de que seu uso não resulte um caos”351 Assim, mesmo sendo o Rio Cachoeira um bem público, as leis de posturas regulamentavam seu uso conforme os interesses da administração local. Em outra parte do documento, o advogado de defesa do município alegava que Não nos quer parecer que o Rio Cachoeira deixou por isso de ser um bem público, até porque, o mesmo, por isto que é um bem público, precisa pelas leis de Posturas Municipais não apresentar, a bem do progresso e da grande civilização da comuna, o aspecto tão conhecido, tão condenado e tão típico das favelas. Mas não é só pelo aspecto da cidade que se vêem aparecer no Código de Posturas, dispositivos que magoam poetas de olhos profundos e sonhadores, é ainda, e principalmente, pela própria necessidade de higiene coletiva e em defesa da própria saúde, também das apelantes [lavadeiras] que, como é óbvio, fazem parte da coletividade. 352 A função do Código de Posturas de Itabuna, ao criar padrões de comportamento urbano entre os munícipes, respaldava o direito do Estado de intervir nas práticas culturais dos sujeitos. Nele, o poder público se baseava para tentar estabelecer os usos sociais da cidade entre seus habitantes, gozando da posição de mantenedora do bem-estar coletivo, que, neste caso, estava relacionado às questões higiênicas e sanitárias. Para a Prefeitura, mesmo sendo de utilidade comum, o patrimônio local estava guardado sob suas determinações, e as posturas eram a lei de contenção reivindicada para coibir as práticas que se desviam das determinações do governo. Nas palavras de Pamphilo Freire Silva, a atividade no centro de Itabuna realizada APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 12 de junho de 1946, Ano XIV, nº 784, p.3-5. Idem,Ibidem. p.4. 352 Idem,Ibidem. 350 351 144 por “lavadeiras afanosas, alegres, contentes e brejeiras, está bem para trechos de árias e operetas [...] no nosso mundo as coisas já vão mudando e o Estado [...] vai criando leis de contenção social necessárias, compatíveis e próprias ao momento que vivemos.”353 No extenso documento escrito pelo advogado da prefeitura, Pamphilo Freire Silva alegava também que a falta de aplicação da lei de posturas em gestões anteriores não anulava a validade daquele dispositivo jurídico. Em seu texto, ele afirmava que o atual prefeito não tem o direito de incorrer nos erros das antigas administrações, reafirmando que “O código de posturas tem existência e fundamentos legais, e deve ter sua vigência assegurada, para bem da própria coletividade.” Em defesa disso, a administração local procurava assegurar a função do Estado de gerenciar as práticas dos sujeitos, recusando usos da cidade que rompessem com suas determinações. Não era por acaso que o defensor argumentava que alegar a invalidade da referida lei “só seria possível nas sociedades incipientes em estado ainda “tribal””.354 As leis de posturas de Itabuna estavam dispostas para regulamentar as práticas lícitas e reprimir as ilícitas existentes na cidade, assegurando a posição das municipalidades na condição de gerenciador das condutas dos trabalhadores. Para Raquel Rolnik, “a legislação urbana age como marco delimitador de fronteiras do poder”.355 Utilizando-se do código jurídico, o poder público procura estabelecer os comportamentos aceitáveis e repudiáveis para a sociedade. Cria um campo de tensão em torno do agir e do fazer cotidiano inerente às pessoas que vivem nas cidades. Disso resultavam as disputas existentes entre os trabalhadores, que tentavam assegurar seu espaço social por meio de seus hábitos, e o governo, que procurava assegurar territórios instituindo formas de procedimentos que se adequam a seus interesses. O conflito em torno do direito à cidade se torna inerente quando regulado por um conjunto de leis que procura estabelecer padrões culturais universais para um conjunto de pessoas com valores e padrões específicos e singulares. Isso posto, o que parece mais relevante é perceber a maneira como as pessoas questionaram as leis, burlaram a estratégia da classe dirigente política e forjaram táticas de se apropriar da cidade. Em seus argumentos, o advogado do poder municipal buscava descaracterizar a atuação das lavadeiras procurando sempre associá-la à “desordem” urbana. No entanto, o poder público também desconfiava da posição das trabalhadoras diante da entrada na justiça pública contra a proibição da Prefeitura. Para o prefeito Silva Freire, a mobilização jurídica das lavadeiras só fora possível em decorrência da influência de setores da oposição local, que Idem,Ibidem. Idem, ibidem. 355 ROLNIK, Raquel. A cidade e a lei: Legislação, política urbana e territórios na cidade de São Paulo: São Paulo: FAPESP: NOBEL, 1997. p.13-14. 353 354 145 teriam se aproveitado do conflito para desgastar a imagem pública do executivo itabunense. O advogado das mulheres, Carlos Pereira, pertencia à União Democrática Nacional (UDN), partido de oposição à situação municipal (PSD), o que deu origem a tal especulação.356 Mesmo considerando os argumentos de que as trabalhadoras tenham sido influenciadas pelos interesses políticos da oposição, é difícil acreditar que elas sejam ingênuas a ponto de se deixar conduzir somente pelas disputas políticas. Lara e Mendonça apontam que, em casos como esse, a lei e a justiça deixam de ser apenas instrumento de dominação para se configurar como recursos que também podem ser “apropriados por diferentes sujeitos históricos que lhes atribuam significados sociais distintos”357, isto é, podem se utilizar de brechas das regras estabelecidas para lutar pelo direito à cidade. Há razões para crer que as lavadeiras encontraram, na disputa política local, o espaço para negociar a manutenção da sua atuação profissional. Nesse sentido, a conivência em aceitar o mandado de segurança da oposição tenha sido encarada como a oportunidade para driblar as imposições de costumes e de hábitos exigidos pela Prefeitura. Isto é, foi uma maneira de utilizar o sistema político e jurídico no processo de resistência às determinações do poder público e suas leis municipais, cuja tática se destinava a assegurar a sobrevivência do trabalho com a lavagem de roupas frente a uma rede de forças que questionava a existência das lavadeiras e de representações estabelecidas contra elas na cidade.358 Ao difamar as lavadeiras, chamando-as de abusadas e de mal educadas, os segmentos hegemônicos viam nelas ameaças aos valores culturais urbanos fundamentados na ordem estabelecida. Quando utilizavam o leito do Rio Cachoeira para manter sua prática profissional, conseqüentemente desestabilizavam a dinâmica social imposta a partir dos padrões de urbanidade e corroíam as formas de usar Itabuna segundo as normas tradicionais de comportamento e de postura. Voltamos a considerar que os modos de vida das lavadeiras evidenciavam um outro uso da cidade distanciado das condutas e das regras formuladas pela Prefeitura, e fundamentados no uso “popular” do espaço urbano. Para Arantes Neto, o cenário urbano se forma com “suportes físicos de significações, que passam a fazer parte da experiência ao se transformarem em balizas reconhecidas de identidades, fronteiras de diferenças culturais e marcos de pertencimento”.359 Dessa forma, entendo que a maneira de atuar sobre o tecido urbano transforma os lugares citadinos em cantos de resistências, onde as Idem, Ibidem. p.4. LARA, Sílvia H; MENDONÇA, Joseli M. N. Op.Cit., p.12. 358 CERTEAU, Michel. Op. Cit. p.79. 359 ARANTES NETO, Antonio A. Paisagens paulistanas: transformações do espaço público. Campinas, SP.: Editora da UNICAMP; São Paulo: Imprensa Oficial, 2000. p.106. 356 357 146 trabalhadoras não tenham que se desfazer dos seus costumes para dar lugar a outros desconectados de suas tradições e de sua vivência. Os espaços antes planejados para representar a ordenação do ambiente citadino, ganham outros sentidos e outros significados para as camadas pobres da sociedade. Na medida em que esses espaços são retirados dos populares, vêem-se as lutas sociais que se ocultam sob a ordem estabelecida. São esses elementos que me levam a compreender a necessidade do poder público de criar estereótipos para identificar os grupos antagônicos ao projeto de cidade da Prefeitura e formular a base ideológica no sentido de legitimar as medidas coercitivas empreendidas. Tornam-se salientes as disputas pelos territórios urbanos, neste caso, o Rio Cachoeira, entre as lavadeiras e os setores políticos dirigentes. Em dezembro de 1946, o caso as trabalhadoras ainda recebia atenção no Jornal Oficial de Itabuna, quando o prefeito persistia em ressaltar as justificativas para a proibição da lavagem de roupas no rio. O Administrador tem que atender ao progresso e ao crescimento da cidade e localizar certos serviços que a podem desfeiar [sic], nas zonas suburbanas ou rurais, do modo que proporcione um aspecto o mais agradável possível. Num centro civilizado, não é admissível um logradouro destinado às lavadeiras em pontos centrais da cidade, em lugares apropriados ao comércio, às universidades, ou misteres outros mais elegantes. A liberdade ampla seria o desconhecimento do conceito de urbanismo, seria desprezar o elemento estético, seria menosprezar aquele preceito que vem de Aristóteles, segundo o qual “a cidade deve ser edificada de modo que proporcione aos homens, segurança e os faça felizes.”360 Assumindo a condição do poder público na posição de gerenciador dos modos de vida urbano, a Prefeitura não tolerava a presença de hábitos que estivessem ligados aos valores populares nos locais que considerava essenciais para a afirmação do padrão de beleza e higienização hegemônicos. Contudo, ao desenvolver suas práticas, as lavadeiras manipulavam a sua maneira, os espaços impostos, consolidando suas vivências diferentes dos modelos projetados pela administração política. Postulavam, pois, o espaço que não teriam recebido com a urbanização, fazendo das margens e do leito do rio lugar próprio de suas atividades, mesmo enfrentando as adversidades da política urbana. Caso semelhante ao das lavadeiras foi o dos engraxates de Itabuna. Em junho de 1947, quase um ano depois do episódio com as mulheres, um novo mandado de segurança foi impetrado contra a Prefeitura. Neste documento, doze engraxates liderados por Pedro Batista, Francisco Mascarenhas de Oliveira, Antonio Guimarães Santos e Arlindo Silva, alegavam que foram impedidos de exercer sua mencionada profissão na cidade. Segundo os rapazes, o 360 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 14 de dezembro de 1946, Ano XIV, nº 811, p. 7-8. 147 prefeito os proibiu de desempenhar a atividade de engraxate nas principais ruas do perímetro urbano e nos passeios público, restringindo suas atividades para outros pontos, distantes e menos freqüentados pela sua freguesia.361 Assim como no caso com as lavadeiras, os engraxates recorreram à justiça contra a Prefeitura depois que o prefeito Armando Freire resolveu por em prática os artigos do Código de Postura sobre o trabalho ambulante. Existiam dois artigos da referida lei que versavam sobre as atividades dos engraxates. No artigo 350, as posturas determinavam que ficava “terminantemente proibida a ocupação dos passeios das ruas e das praças por engraxates, vendedores de frutas, legumes, doces ou quaisquer outros gêneros expostos ao comercio por vendedores ambulantes.” O segundo item era o artigo 351, segundo o qual era “expressamente proibido transitar pelos passeios conduzindo animais, aves e peixes, malas e taboleiros de doces, de hortaliça e de carne, baús de massas e de fazendas, balaios, sacos, trouxas de roupa, enfim qualquer coisa que possa incomodar o público”. Este último ponto se relacionava mais especificamente com os instrumentos de trabalho utilizados pelos engraxates. Ambos os artigos previam o pagamento de multas no valor de 10$000 (dez mil réis) cada um. 362 O código de postura era apenas um dos obstáculos que os engraxates precisavam enfrentar para levar viver em Itabuna. A falta de alinhamento dos imóveis nas ruas do centro era utilizada como justificativa, pela fiscalização, para repreender a atuação destes trabalhadores nas calçadas. Em abril de 1944, a vigilância se encarregara de retirar os engraxates que se localizassem nos passeios das principais vias urbanas com a instalação do novo diretor do fisco local363. Aproveitando o espaço de queixas e reclamações de O Intransigente, o sr. Aprígio Paixão reivindicava seu direito de usar a calçada da Casa Electro para trabalhar. Ele reclamava da “medida fiscal que proíbe que os engraxates trabalhem no passeio por empatar o trânsito”; além disso, alegava “o queixoso que a casa onde trabalha está recuada de alinhamento, nada impedindo a sua permanência fora da porta do citado prédio.” 364 Na mesma queixa, Aprígio Paixão ainda informava que pagava seus impostos e que não podia trabalhar aos domingos e feriados, visto que o comércio não abria, sendo de segundafeira a sábado, os dias nos quais tem mais serviço. Finalizava sua queixa esperando ter “permissão para continuar trabalhando como de costume.”365 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 14 de dezembro de 1946, Ano XIV, nº 811, p. 7-8. APMIJD. Código de Posturas Municipais de Itabuna. Ato n.184, de 9 de junho de 1933. Itabuna: Tipografia D’A Época, 1933. p.57. Ver artigos 350 e 351 363 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 8 de abril de 1944, Ano XVII, n.º 32. p.1. 364 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 22 de abril de 1944, Ano XVII, n.º 34. p.1. 365 Idem, ibidem. 361 362 148 Na reclamação de Aprígio Paixão é possível notar o quanto a aplicação das posturas municipais prejudicava o cotidiano de trabalho dos engraxates em Itabuna. De maneira semelhante às lavadeiras, estes ambulantes faziam das ruas o seu espaço de atuação profissional. Exigir a frente da Casa Electro como lugar de trabalho não é uma escolha aleatória. Certamente era ali que Paixão construía suas relações com os clientes e os amigos. O sentido social da rua não era circular e transitar, como previa o poder público, mas era o espaço com o qual o próprio sujeito se sentia identificado e onde construía seu ambiente de trabalho. O tempo de trabalho também era escolhido pelos engraxates. Era durante os dias úteis, enquanto as pessoas transitavam pelo comércio, que eles ganhavam seu dinheiro, necessário para o sustento rotineiro. Mudar seu serviço de horário e de dia o prejudicaria. Finalmente, o que Paixão desejava, e possivelmente os seus companheiros de ofício, era manter o trabalho “como de costume”. Não era apenas a fiscalização que se ocupava de controlar as práticas urbanas dos trabalhadores ambulantes como os engraxates. A polícia também promovia a prisão destes sujeitos nas praças de Itabuna. João de Deus Batista, com 19 anos de idade e egresso da escola de menores aprendizes de Salvador, vendedor de quebra-queixo e engraxate, foi preso, no mês de dezembro de 1941, na Praça João Pessoa. Segundo as autoridades locais que registraram o fato ocorrido, aproveitando-se do movimento instaurado naquele lugar, João de Deus promovia furtos de objetos de pouco valor, tais como relógios, doces e salgados. Possivelmente entre os lugares mais freqüentados por esses indivíduos estivesse a citada Praça e os estabelecimentos comerciais como cinemas, bares e pontos de ônibus.366 Nesses lugares, a movimentação de pessoas se tornava um atrativo para conquistar clientes ou obter outras vantagens. Isso pode também ser notado diante da queixa feita na imprensa contra a falta de policiamento na Travessa Osvaldo Cruz, na porta da Auto Viação, “onde se reúnem todos os vendedores de guloseimas, numa gritaria infernal, em correrias e lutas, o que dá quase sempre uma má impressão ao visitante que aqui aporta trazido pelo ônibus.”367 Diante dos atritos entre os setores hegemônicos e os trabalhadores ambulantes de Itabuna durante a década de 1940, a contenda entre os engraxates e a Prefeitura, em 1947, parecia ser o clímax de uma disputa histórica. De maneira semelhante ao que havia feito no caso das lavadeiras, o advogado da Prefeitura, Pamphilo Freire, sublinhou o papel do poder público em regulamentar as atividades profissionais do município. Em suas palavras, dizia que “é a profissão de engraxate, honesta e tão digna, quanto as bem nobres, pois é um fator 366 367 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, 22 de setembro de 1942, Ano VIII, n.º 590. p.7. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, setembro de 1935, Ano X, n.3. p.4. 149 de trabalho digno”, contudo, ressaltava que mesmo essa condição não isentava estes trabalhadores de serem regulados pelas leis municipais, ressaltando que “por ser humilde, não deixa de merecer amparo igual as demais elevadas [...] ‘todos são iguais perante a lei’.”368 O governo municipal justificava a aplicação do Código de Posturas aos engraxates invocando a igualdade de condições diante da lei, ratificando a constitucionalidade de sua intervenção naquele caso. Para tanto, reivindicava o mesmo artigo 350 das posturas que versava sobre a ocupação das calçadas das vias públicas por trabalhadores ambulantes, sublinhando que tal decisão “obriga os munícipes aos cumprimentos de certos deveres de ordem pública.” Partindo desse princípio, a Prefeitura argumentava de forma categórica que o mandado de segurança produzido pelos engraxates não tinha validade, visto que por causa da constitucionalidade da medida do governo local com o objetivo de manter a ordem pública, os requerentes não teriam direito violado ou ameaçado.369 Outra semelhança com o caso das lavadeiras é que a Prefeitura voltou a alegar que o mandado de segurança dos engraxates era mais uma medida da oposição local contra a Prefeitura. Em nota, o prefeito dizia que este pedido de mandado de segurança antes de ter uma finalidade meramente política, posto que assina por procuração é auto candidato a prefeito pelo PTB, é em tudo semelhante ao caso das lavadeiras com uma diferença apenas, é que hoje seu signatário já não é mais presidente da UDN, como dantes e sim do PTB.370 Creditando a ação judicial promovida pelos engraxates à política oposicionista local, liderada por Carlos Pereira (naquela oportunidade já filiado ao PTB), a Prefeitura não acreditava no potencial de reivindicação dos munícipes. Tirava a possibilidade de articulação daqueles trabalhadores com os políticos locais em troca dos interesses mais imediatos dos engraxates. Assim como no caso das lavadeiras, não me parece frutífero crer em ingenuidade por parte pobres urbanos frente a disputa eleitoral. Na intersecção das disputas internas dos setores dominantes, os engraxates podem ter encontrado uma brecha no sistema político e jurídico para reivindicar seus direitos à cidade. 371 Ademais, se o mandado de segurança foi impetrado, isso só aconteceu porque houve a aceitação dos engraxates que assinaram o documento. Por outro lado, se Carlos Pereira elaborou o documento, foi porque encontrou APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 21 de junho de 1947, Ano XV, n.º 837. p.8. Idem, Ibidem. p.8. 370 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, sábado, 14 de junho de 1947, Ano XV, n.º 836. p.14. 371 LARA, Sílvia H.; MENDONÇA, Joseli M. N. Op. cit. p.13. 368 369 150 uma demanda dos engraxates com a aplicação efetiva do Código de Posturas de Itabuna por parte da Prefeitura. Os casos envolvendo as lavadeiras e os engraxates na disputa pelo direito à cidade são importantes para compreendermos as contradições sociais em Itabuna. Em ambos os fatos, são evidências de que as regras de urbanidade criadas pelo poder público não se aplicavam imperiosamente aos modos de vida dos trabalhadores. Para Lepetit, as instituições e as regras “só existem na medida em que postos em uso [...] não compõem um simples enquadramento para a ação, e sim configuram recursos, alterados pela prática, de que os atores dispõem.”372 Isto é, a lei é elaborada, mas os sujeitos não se submetem facilmente aos interesses do Estado. Em suas práticas, os pobres urbanos burlaram as estratégias do poder hegemônico a partir do uso não autorizado da cidade. Nessas maneiras de agir e de fazer cotidianas, as lavadeiras e os engraxates fizeram das margens do Rio Cachoeira e das ruas de Itabuna cenários de afirmação de suas próprias experiências sociais em Itabuna.373 As ações das lavadeiras e dos engraxates parecem ter tido impacto, a julgar pela reação dos membros da Prefeitura. Na tentativa de afirmar seu próprio poder sobre a cidade, o advogado do prefeito procurou ressaltar a função da municipalidade em regulamentar os usos e os costumes dos itabunenses. Isso força o poder público a relembrar aos munícipes, por meio da justiça pública, o direito de fiscalização sobre as condutas da população para a organização da cidade. Outrossim, no intuito de sedimentar seus próprios valores culturais urbanos, o setor político dirigente nega as práticas das lavadeiras e dos engraxates. Carvalho indica que quando o poder busca se definir como tal, imediatamente utiliza um discurso de negação dos valores dos grupos populares. 374 Por isso, quando os trabalhadores passam a ocupar os lugares, na cidade, a imprensa assumiu o papel de denunciadora das condutas estranhas aos padrões de urbanidade. Isso não foi o suficiente para evitar que os trabalhadores de ganho em Itabuna se acomodassem com o Código de Posturas Municipais. Se a Prefeitura utilizou do dispositivo jurídico, engraxates e lavadeiras também encontraram a oportunidade de usar a justiça para reivindicar seus usos, costumes e tradições sobre a cidade. LEPETIT, Bernard. Op. cit.. p.188. ARANTES NETO, Antonio A. Op. cit., p. 106. Para o autor, os lugares da cidade são os espaços construídos nos conflitos e nas sociabilidades chamadas marginais. Ruas, praças e monumentos transformam-se em fronteiras de identidades, diferenças culturais e marcos de pertencimento dos grupos populares. 374 CARVALHO, Jorge. Op. cit. p.125. 372 373 151 Moleques e malandros nos logradouros públicos Em 6 de junho de 1942, Fernando Alves escrevia uma pequena nota ao A Época, intitulada “Grande Problema”. A partir da década de 1940, aquele periódico reservava uma parte de sua última página para crônicas ou informações concernentes à Itabuna. Naquela oportunidade, Alves resolveu escrever sobre os menores abandonados que existiam na cidade. Ele dizia que o número de menores abandonados crescia “de maneira assustadora, ameaçando, para os dias de amanhã, a sociedade.” Nas palavras dele, a situação local não era das melhores: “Todos os dias o Juiz de Menor tem um caso. É um menino fugido; outro que apanhou umas galinhas, ainda outro que foi ao cinema e encontrou a casa fechada, e, finalmente, rapazolas que pongaram no fundo de um caminhão e palmilham pelas ruas da cidade.”375 O articulista concluía seu texto ressaltando a necessidade do poder público e da Sociedade São Vicente de Paulo de construir a Casa do Mendigo e a Casa do Menor Abandonado, que “deveriam tomar o encargo de amparar os futuros cidadãos”.376 A nota produzida por Alves era apenas uma das muitas matérias que apareceram na imprensa sobre o comportamento da juventude pobre de Itabuna. Durante as décadas de 1930 e 1940, os periódicos noticiavam vários casos de menores e mendigos que haviam ultrapassado as fronteiras da legalidade urbana estabelecida pelos poderes públicos. Em boa parte das notícias, as críticas se direcionavam as práticas cotidianas desses sujeitos, que pareciam incomodar profundamente os interesses dos segmentos hegemônicos de Itabuna. Desde roubar pequenos objetos, passando por fugas de casa, até “pongar” em caminhões que transitavam no perímetro central, as condutas dos menores eram freqüentemente fiscalizadas pela imprensa e pela Guarda. Outrossim, o periódico se queixava também de “inúmeros adolescentes em renhidas partidas de bilhar, jogo proibido a menores”377 As condutas dos menores não fugiam da observação dos fiscais de Itabuna. A Guarda registrava diversas queixas contra garotos e rapazes que utilizavam as ruas da cidade para atividades não coerentes com os padrões elaborados pelo Código de Posturas. No dia 16 de fevereiro, o guarda Antonio Pereira comunicou ter tomado providências contra dois garotos, filhos de um comerciante da praça, por “estarem pronunciando palavras indecorosas no jardim Olinto Leone”.378 Em 25 daquele mesmo mês, o guarda n.20, comunicou ter apreendido e inutilizado uma bola de futebol, tomada de uns garotos que estavam jogando em via pública. Dias depois o soldado Eribaldo Cardoso voltava a apreender e inutilizar uma bola de garotos CEDOC/UESC. Jornal A Época, 6 de junho de 1942, Ano XXIV, n.º 1214. p.4. Idem, ibidem 377 Idem, Ibidem. 378 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 24 de fevereiro de 1940, Ano VII, n.º 457. p.12. 375 376 152 pelo mesmo motivo que o anterior.379 A fiscalização sobre os menores não recaía apenas sobre as brincadeiras que aconteciam nos logradouros urbanos. Há registro de crianças trabalhadoras que também foram alcançadas pela fiscalização. Em 25 de abril de 1933, os menores Marcolino dos Santos e Antonio Soares, ambos com 14 anos de idade, foram intimados a deixar de trabalhar como condutores de tropas por um dos guardas espalhados pela cidade.380 Pelo mesmo motivo, José Raimundo Guedes e José Queiroz, ambos com 14 anos de idade, Agenor de Oliveira, com 13 anos, e Ovídio Queiroz, foram repreendidos pela inspetoria da Guarda Municipal. 381 É possível encontrar com facilidade outros casos semelhantes a estes citados entre os anos de 1933 e 1934, período no qual a Guarda iniciou sua atuação em Itabuna, como observei no primeiro capítulo. Para controlar as ações dos menores na cidade, os soldados possivelmente se amparavam no Código de Posturas do município, que possuía alguns artigos que atingiam condutas infantojuvenis. O Código de Posturas possuía dispositivos que se relacionavam diretamente com os tipos de diversão existentes em Itabuna e praticados por menores. Eram as posturas municipais que impediam o emprego de menores na condução de animais, conforme citado anteriormente, mediante o artigo 317. No que tange às diversões, a lei urbana regulamentava que os jogos de futebol, de atletismo, bem como outras diversões, “só poderão se realizar nos lugares apropriados e designados pela prefeitura mediante licença, sob pena de 20$000 (vinte mil réis) de multa para cada infrator ou prisão de 24 horas.”382 Caso a infração estivesse relacionada com as crianças, a punição seria revertida ao seu responsável direto. Pelos casos que citei acima, parece que a Guarda preferia adotar uma medida mais pragmática ao apreender as bolas e inutilizá-las. Além da prática de jogos esportivos em vias públicas, havia também restrições ao costume de se empinar papagaios ou pipas. Nos rigores da lei local, os que fossem flagrados empinando pipas em praças ou ruas da cidade, poderiam ser multados nos mesmos 20$000 (vinte mil) réis, embora não houvesse a punição de prisão para esta transgressão. Contudo, no único parágrafo deste artigo, havia a ressalva de que, em caso do “divertimento de papagaios resultarem danos aos edifícios públicos ou particulares, fios APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 2 de março de 1940, Ano VII, n.458.º p.12. APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 29 de abril de 1933, Ano II, n.º 106. p.10. 381 APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna. 13 de maio de 1933, Ano II, n.º 108. p.6. 382 APMIJD. Códigos de Posturas do Município de Itabuna. Ato n.º 184, de 9 de junho de 1933. Itabuna: Tipografia D’A Época, 1933. Artigo 362. 379 380 153 telefônicos, do telegrafo ou os condutores de energia elétrica, o infrator e o seu representante, além da multa, responderá pecuniariamente pelo prejuízo.” 383 No caso da prática de empinar papagaios ou pipas em Itabuna, não foi possível encontrar nenhuma denúncia ou queixa, tanto nos registros da Guarda Municipal como nos periódicos de circulação local. Entretanto, o uso de fogos de artifício durante as festas juninas, por parte dos menores, foi uma das práticas que chamavam a atenção de parte da imprensa e do poder público. Em maio de 1936, o O Intransigente anunciava novas medidas da polícia local sobre o uso de fogos de artifício. Segundo a informação, a polícia estava proibindo terminantemente o “perigoso” uso de bombas nos festejos de São João. Nas palavras do periódico, havia pessoas que não se “satisfazem em lançar bombas comuns, fazendo uso de verdadeiras granadas de dinamite que assustam as famílias, [...] não se falando das tais bombas de parede, que mocinhos bonitos, aos bandos, gostam de atirar nas noites de S. João, sem o menor respeito pelos que pacatamente se divertem.”384 Outrossim, o Código de Posturas determinava a proibição de soltar fogos, buscapés, bombas de clorato e espadas no perímetro central, durante as três festas juninas mais importantes.385 A partir do que foi levantado até aqui, parece que a preocupação dos poderes públicos com a população de menores em Itabuna estava relacionada com a necessidade de controlar suas práticas na cidade que se transformava. Ao tentar exercer a ordem estabelecida pelas autoridades públicas, o comportamento dos menores era restringido pelos dispositivos do Código de Posturas. Por conta disso, atividades esportivas, diversões infantis e ofícios exercidos por crianças eram fiscalizados pela Guarda Municipal. Para Andréia da Rocha Rodrigues, as condutas dos menores passaram a ser alvo de críticas por serem considerados símbolos de anti-modernidade e anti-civilização, acrescentando a isso o fato de serem atividades associadas ao ócio e à vadiagem. Para ela, esses feitos também “provocariam, portanto, desordens físicas e morais no perímetro urbano. [...] por serem praticados na rua e impedirem a livre circulação das pessoas ocupadas com o trabalho”386 Esses usos populares colocavam em risco o funcionamento da cidade instituído pela Prefeitura. A urbanidade estabelecida pelos setores dirigentes de Itabuna impunha seus limites aos costumes infantis, o que não quer dizer que os menores se conformaram com estas restrições. Idem, Ibidem, p.59. Artigo 363, § único. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 30 de maio de 1936, Ano X, n.º 39. p.1. 385 Idem, Ibidem. Artigo 361. 386 RODRIGUES, Andréia Rocha. A infância esquecida. Salvador 1900-1940. Salvador: EDUFBA, 2003. P.76. (Centro de Estudos Baianos). 383 384 154 Apesar do Código de Posturas apontar alguns artigos que regulamentavam o comportamento dos menores, as reclamações em torno do agir infanto-juvenil se referiam também a outros tipos de comportamento existentes na cidade. A preocupação da imprensa e, provavelmente, dos poderes públicos se intensificava quando estes menores atentavam contra a ordem política, econômica e cultural do município. Em setembro de 1935, o O Intransigente noticiava a existência de “Um menor perigoso” existente em Itabuna. Antes de falar sobre o referido menor, o periódico dedicou extensas linhas para explicar o aumento de menores e de vadios na cidade. Para o jornal, “o número de vadios que infestam nossas vias públicas, sempre tão movimentadas comercialmente, se acha aumentado com um espécime raro e perigoso”. A notícia destacava também que aquele menor, “depois de ter esgotado paciência dos mantenedores da ordem na capital, foi naturalmente remetido para as plagas do sul, que, de um tempo para cá, pela fama de sua riqueza e espírito morigerado dos seus habitantes [...] está se convertendo na colônia correcional do estado.”387 Após apontar a possível origem do menor, o qual não teve seu nome ou apelido divulgado pelo jornal, a notícia informava que, nos últimos vinte dias, Itabuna estava sendo ameaçada pelas “diabruras, aliás, graves, entre estas, a de perseguir os colegiais, ameaçando matar aos que lhe caem em desafeição.”388 Por conta do comportamento do menor, José Habib, Celso Fontes Lima, Augusto Andrade, Edgar Alves Sá e Arthur Nilo Santana, proprietários de lojas comerciais e de residência no perímetro central, juntamente com o comandante da Guarda, João Moraes, resolveram enviar uma petição ao Juiz de Menores solicitando providências quanto às atitudes do menor na cidade. No requerimento judicial, os peticionários ressaltaram que, no curto período de convivência na cidade, o adolescente já havia apresentado seu “verdadeiro espírito de perversidade e requintado instinto sanguinário”. Eles ainda lembraram que o menor tinha sido detido duas vezes em menos de um mês em vista das tentativas de furto e de roubo, além de ter o costume de pronunciar “palavras insultantes e atentatórias à moralidade pública”. Ao encerrar o documento, os signatários sinalizaram as conseqüências da impunidade e da negligência para com o caso daquele jovem: Como se vê V.ª Exc.ª, esse menor, que, a se julgar do seu procedimento nesta cidade, está se evidenciando um facínora em embrião, constitui, como de fato está se constituindo uma séria e perigosa ameaça à vida das crianças desta terra pacata, que já estão inibidas, em conseqüência, de darem a expansão aos folguedos, e para que se possam evitar, quanto antes possível resultados 387 388 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 25 de setembro de 1935, Ano X, n.6. p.4. Idem, Ibidem. 155 desagradáveis e até mesmo funestos para os pais de família, e signatários da presente solicitação. 389 Os fatos evidenciados acima deixam claro que os menores abandonados eram vistos como problema social para Itabuna. Tratava-se de controlar um adolescente com os rigores estipulados pelo poder público, cuja meta era evitar que aquele indivíduo pudesse impedir o pleno funcionamento da cidade. Neste caso mais específico, O Intransigente e os signatários da petição judicial associavam a periculosidade do menor ao desacato do sossego público e à ameaça à propriedade privada. Com argumentos semelhantes a estes, muitos menores abandonados que percorreram as ruas de Itabuna foram perseguidos pela imprensa e pela fiscalização, especialmente aqueles que mendigavam nas praças e nos estabelecimentos públicos. Os furtos e os roubos praticados por menores colocavam sob tensão os setores hegemônicos que freqüentavam o perímetro central, contrariando a idéia preponderante de que o centro da cidade fosse um local de ordem e de segurança para os munícipes. Em outra edição de “O Intransigente”, o perfil do menor aparecia com mais detalhes. Considerado um “Vadio perigoso à ordem pública”, como intitulava a notícia, o jornal dizia se tratar de um menor abandonado, “com cerca de 12 anos de idade, cor preta, que vive a perambular noite e dia pela ruas, praticando impunemente, toda sorte de tropelias [...] esse delinqüente precoce perigosíssimo tem atacado diversas crianças para roubar e penetrado em diversas casas onde furta o que encontra a mão.”390 A existência de menores abandonados e mendigos espalhados pelos diversos pontos da cidade era algo que contrariava o discurso de progresso e de civilização produzido pela imprensa e pelo poder público. A visibilidade e a ação destes sujeitos no cenário urbano faziam com que a prática política e discursiva da Prefeitura fosse contrariada cotidianamente. Em 20 de junho de 1936, novamente “O Intransigente” noticiava a quantidade de menores, mendigos e vadios no perímetro central. Segundo o periódico, o intuito daquela notícia era contribuir para que a Prefeitura tomasse providências contra “o descaso e desprezo lançados sobre fatos que envergonham e diminuem os foros que Itabuna desfruta, de civilizada e culta.”391 Os motivos para que a matéria se posicionasse daquela maneira em relação à cidade estavam mais a frente, quando o semanário destacava que Os mendigos e os loucos perambulam nas ruas da cidade e os meninos maltrapilhos e vadios, para dar curso a sua má educação e conseqüente falta de caráter, apupam e apedrejam, num alarido ensurdecedor, estes infelizes a Idem, Ibidem. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, setembro de 1935, Ano X, n.º 5. p.1. 391 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 20 de junho de 1936, Ano X, n.º 43. p.1. 389 390 156 quem a sorte nem sequer o sendo lhes deu. [...] E finalmente, para coroar o espetáculo tétrico, vêem-se pelas esquinas e bancos de jardins, mendigos cujo corpo dilacerado pelas ulceras, gemem ao desamparo sob o peso de sua miséria, fitando em noites estreladas o manto azul, único teto que a sorte lhes concedeu, ou tiritando pelos portais, quando em noites chuvosas [...]392 Para O Intransigente, no mesmo grupo de pessoas estavam mendigos, loucos, meninos e vadios. Em comum, eles tinham a condição de pobreza e o preconceito emanado do periódico. Roberto DaMatta nos lembra que a rua, sendo considerada muitas vezes como espaço negativo, perigoso, imprime nos sujeitos que nela vivem os seus estigmas.393 Talvez por isso a matéria destacasse a “má educação” e o barulho enquanto aspectos que tornavam aqueles sujeitos elementos negativos para a cidade. Sobretudo, pode-se destacar o fato de que o jornal entendia que a “sorte” era o fator preponderante para a situação social daqueles indivíduos. Esse entendimento da matéria denotava que a existência cotidiana desses sujeitos era resultado de um destino previamente traçado para eles. Entretanto, o relato do semanário parece ratificar uma assertiva construída pelo antropólogo Antonio Arantes. Segundo ele, o ser humano busca se aproximar de outrem e buscar, no contato físico, o reconhecimento de si como pessoa, mas, na medida em que realiza essa comparação, cria uma repulsa de quem não quer ser “contaminado” por corpos repulsivos e diferentes. Dessa maneira, ao notar a presença de mendigos, moleques e loucos em um espaço central, o redator do jornal estranhou a presença desses personagens naquele lugar. Para Arantes, a criminalização dos habitantes de rua ocorre quando eles são classificados socialmente como “coisa fora de lugar, portanto simbolicamente suja e perigosa”394. A presença dos menores mendigos expunha publicamente as contradições do discurso hegemônico. Por isso, refletem em si tensões e conflitos sociais decorrentes da visibilidade pública de diferentes segmentos da sociedade. Por outro lado, para Arantes, os espaços urbanos podem indicar um lugar de politização no que tange a sua ocupação por parte dos setores pauperizados da cidade. Isto quer dizer que os menores maltrapilhos, mendigos e, até mesmo, os loucos, escolhem os lugares que eles achavam mais rentáveis para sua sobrevivência. Identificar a geografia urbana erguida por esses sujeitos a partir do agir talvez seja uma forma de compreender as zonas demarcadas por eles. O A Época de 15 de dezembro de 1937, nos oferece um indício desses espaços, ao endereçar queixas e reclamações contra a Guarda Municipal e o delegado de polícia do município acerca da fiscalização na área Idem, Ibidem. DAMATTA, Roberto. A casa & a rua. Espaço, cidadania, mulher e morte no Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1985. p.50-51. 394 ARANTES, Antonio. Op. cit. p.107-108. 392 393 157 próxima ao único cinema local naquele momento. Como solução para este problema, a imprensa reivindicava a proibição da permanência de “indivíduos em trajes sórdidos, maltrapilhos, numa lamentável cena de promiscuidade com senhoritas e pessoas de nossa melhor sociedade.” 395 Outra indicação de que as portas dos cinemas eram freqüentadas por menores, mendigos e vadios é outra reclamação da imprensa regional em Itabuna. O Intransigente reconhecia, em abril de 1944 que “os malandros têm seus pontos prediletos, onde exercem suas atividades que vão de encontro aos foros de cidade progressista de nossa terra”.396 Naquela oportunidade, o jornal narrava um fato acontecido com dona Laura Conceição, respeitada senhora da sociedade itabunense, e os menores que se mantinham na porta do cinema. Dizia a notícia que ao se preparar para entrar no recinto, a referida senhora foi atingida no rosto por um “rolete” atirado por um menino. Por conta disso, cobrava-se a atuação da polícia ou da Guarda naquelas áreas. O periódico dizia que, no Cine-Itabuna, “todos os dias, as matinês e as soirees, a malandragem entra em ação: gritos, lutas corporais, batalha de bagaços de roletes, etc., etc..”397 Possivelmente, as áreas em torno do cinema eram freqüentadas por estes sujeitos em razão do número de pessoas que se juntavam, tanto na entrada como na saída de cada sessão. Isso aumentava a possibilidade de conseguir algum dinheiro para sua sobrevivência. Mas a frente dos cinemas poderia trazer um outro elemento que se diferenciasse das condições econômicas. Situar-se a frente destes lugares era uma forma de disputar um espaço que era utilizado pelos setores hegemônicos. As práticas de menores, mendigos e vadios são formas de delimitar sua presença em um lugar imaginado para o lazer das elites locais. A maneira pela qual a imprensa de Itabuna noticiava freqüentemente a permanência de menores e de mendigos na frente dos cinemas é uma evidência do grau de tensão contido na relação desses diferentes setores sociais. Dizia o A Época, em julho de 1943, que a porta do Cinema Odeon, “local freqüentado pelas senhoras da nossa melhor sociedade e por colegiais, vem servindo para o ajuntamento dos chamados ‘biribanos’, onde os mesmos são finíssimos malandros de parceria com menores desocupados.”398 Observar a disputa social desse espaço não é só notar a permanência desses indivíduos em frente ao estabelecimento, mas também identificar como suas práticas cotidianas entram em choque com os padrões hegemônicos. Sobre isso, afirmava o semanário que eles, “além de demonstrarem ali suas habilidades para os jogos de batedeiras CEDOC/UESC. Jornal A Época, 15 de dezembro de 1937, Ano XVI, n.º 930. p.1. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 1º de abril de 1944, Ano XVII, n.º 30. p.1. 397 Idem, Ibidem. 398 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 31 de julho de 1943, Ano XXV, n.º 1269, p.4. 395 396 158 e bola de gude, proferem palavras indecentes, num flagrante desrespeito às inúmeras famílias que por ali transitam.”399 A entrada do cinema se torna um cenário da “guerra de lugares” entre os grupos antagônicos de Itabuna, visto que ao permanecerem, nos mesmos lugares onde as elites se divertiam, estes sujeitos destruíam as fronteiras urbanas e sociais criadas pelo poder público.400 O contato direto entre esses diferentes setores da sociedade gera as tensões e os conflitos. Espaço semelhante aos cinemas, muito ocupado por menores e mendigos, eram as igrejas locais. Em 17 de janeiro de 1942, os moradores da Rua da Frente se queixaram em nota do A Época “do ajuntamento pernicioso de malandros no fundo da Igreja Batista, que além de palavras indecentes que soltam em voz alta, atiram pedras e incomodam com frases grosseiras as pessoas que passam por ali.”401 As praças de Itabuna também eram bastante freqüentadas pelos menores entre as décadas de 1930 e 1940. Com a urbanização da cidade, era nas praças que uma parte das atividades comerciais e culturais acontecia. Um exemplo disso eram as feiras livres realizadas na Praça Adami, nos anos 1930, e na Praça João Pessoa (atual José Bastos). Em dezembro de 1943, O Intransigente demonstrava a sua preocupação com o funcionamento da “Feira Chic” e a existência de menores desocupados naquela área da cidade. Em nota intitulada “Com as autoridades competentes – É melhor prevenir do que remediar”, o periódico afirmava que A cidade está cheia de menores desocupados, viciados, desrespeitadores, amolecados [...] Pois bem, devemos prevenir. Vai ser inaugurado hoje o parque, à Praça João Pessoa. Como sempre, estarão a porta do mesmo, centenas de garotos, a fazer molequeiras de toda espécie. Pior do que isso é o costume de menores jogarem. [...] Já não são poucos os menores degenerados que temos. 402 Como foi apontado no primeiro capítulo, a “Feira Chic” era um empreendimento filantrópico realizado por indivíduos da camada média e das elites urbanas locais, que tinha por objetivo arrecadar fundos para a construção da nova Igreja Matriz. A preocupação com o comportamento dos menores desocupados que freqüentavam a Praça João Pessoa por parte da imprensa era evidente. Naquela oportunidade, O Intransigente se reportava ao Juiz de Menores para prevenir a presença dos “amolecados” durante a realização do evento. Mais uma vez os menores pareciam disputar o espaço urbano com os setores hegemônicos da cidade. O registro preconceituoso do jornal sobre a presença desses sujeitos é um sinal de que Idem, ibidem. ARANTES, Antonio. Op.cit. 401 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 12 de janeiro de 1942, Ano XX, n.º1189, p.4. 402 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 24 de dezembro de 1943, Ano XVII, n.º 17. p.1. 399 400 159 eles rompiam as fronteiras urbanas e sociais imaginadas pelos poderes públicos e pela imprensa. Esta não é a única evidência do aparecimento de menores nas praças de Itabuna. Em 1943 foi possível encontrar outro sinal da presença de menores abandonados e mendigos nas praças de Itabuna. Trata-se de outra reportagem do A Época, que naquela oportunidade, estava a reclamar da quantidade de “desocupados” nos logradouros públicos da cidade, em especial dos jardins. Para o semanário, as praças públicas deveriam ser destinadas às “famílias, crianças, rapazes e moças, estes dando alegria de viver aos corações sempre cheio de ilusões.”403 No entanto, a nota afirmava que em Itabuna acontecia exatamente o contrário, ressaltando que a cidade dispunha de quatro jardins, mas “estes logradouros públicos, vivem cheios de meninos maltrapilhos e vagabundos desocupados, dizendo liberdades para quem passa, numa promiscuidade que provoca revolta os espíritos bem formados.”404 Como parecia ser costume da imprensa, após apontar a freqüência daqueles sujeitos, reclamava uma postura mais firme por parte da Guarda Municipal, que deveria tomar a “incumbência de afastar dali estes maus e perturbadores elementos dando um aspecto melhor a nossa terra.”405 As notícias sobre a presença de menores abandonados, mendigos e vadios nas praças que haviam sido reformadas pela Prefeitura, eram evidências de que os setores hegemônicos não aceitavam a existência de sujeitos pobres nos principais logradouros do centro urbano. Por outro lado, as queixas da imprensa parecem demonstrar que os “moleques” não aceitavam facilmente as fronteiras sociais criadas pelas reformas urbanas executadas em Itabuna. Na medida em que o poder público urbanizava seus espaços públicos para consolidar os valores estéticos e “progressistas” das elites locais, os pobres não se acanhavam em disputar ou dividir as áreas melhoradas com pessoas de posição social melhor do que a deles. As praças se tornam um lugar em que menores, mendigos e vadios estão em permanente tensão com parte dos “espíritos bem formados” de Itabuna. Neste contato social direto no lugar público, os valores culturais divergentes se chocam, de modo que a imprensa, como organizadora do discurso de civilização e progresso, considerava pedintes e desempregados indivíduos promíscuos e desordeiros. As dificuldades de relacionamento entre a imprensa e os menores mendigos ganharam várias páginas dos jornais. No dia 12 de dezembro de 1942, outra nota foi publicada sobre a CEDOC/UESC. Jornal A Época, janeiro de 1943, Ano XXV. (documento deteriorado) Idem, Ibidem. 405 Idem, Ibidem. 403 404 160 quantidade de pedintes e de maltrapilhos nos logradouros públicos de Itabuna pelo A Época. Dizia o periódico que As sextas-feiras a mendicância toma conta da cidade. Investe, aos magotes, pelos bares, pelas lojas, estaciona aos grupos, nas casas residenciais. É uma lamentável exposição de doenças e de miséria, de chagas e andrajos, que constrange e humilha. Juntamente aos inválidos, às viúvas desamparadas, arrastando o cordão das crianças maltrapilhas, enfezadas e raquíticas, situam-se os falsos mendigos, os viciados ao álcool, mais importunos do que os outros, mais insistentes, irritando pela audácia. 406 O fragmento da nota jornalística permite observar outro elemento das práticas urbanas dos menores abandonados e dos mendigos em Itabuna. Os dias de maior atuação desse grupo pela cidade – sexta-feira. Esse talvez fosse o dia da semana em que houvesse maior circulação de pessoas no comércio local, possibilitando captar maior quantia de doações por parte daqueles que andavam nas ruas do perímetro central. O fato é que os jornais conseguiam identificar facilmente os grupos de mendigos e menores que atuavam na cidade e os dias em que eles exerciam suas atividades. Com o poder público não era diferente. As diversas notícias publicadas sobre a atuação de menores desocupados parecem ter surtido algum efeito em julho de 1943, quando a Delegacia de Polícia, juntamente com o juizado de menores, anunciava novas providências para “evitar que perambulem por nossas ruas, menores aos quais os responsáveis não dão a devida assistência.”407 Em anúncio, as autoridades públicas destacavam que “a lei comina penas aos que, tendo menores em sua guarda, os deixam sem assistência material e moral.”408 Depois de localizar alguns dos lugares ocupados por menores no perímetro central de Itabuna, creio ser pertinente identificar algumas de suas práticas que contrariavam os padrões instituídos pelos segmentos hegemônicos. Entre as que mais se sobressaem na imprensa, a prática de jogar bilhar nos bares que existiam na cidade. Apesar das medidas de contenção da abertura de estabelecimento de jogos por parte da polícia, o costume de jogar sinuca em bares parecia se preservar. Isso é o que indicavam as matérias veiculadas no município, as quais davam conta de que havia sido proibida a “entrada de menores nas ditas casas”, mas que “os menores continuavam “jogando abertamente e os donos de “snooker” lhes vendem a entrada.” 409 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 12 de dezembro de 1942, Ano XXIV, n.ª 1236. CEDOC/UESC. Jornal A Época, 17 de julho de 1943, Ano XXIV, n.ª 1267. p.4. 408 Idem, Ibidem. 409 CEDOC/UESC. Jornal A Época, 7 de fevereiro de 1942, Ano XX, n.º 1141. p.4. 406 407 161 Um dos lugares mais conhecidos pela prática do bilhar em Itabuna era a Rua Joaquim Nabuco. A concentração de alguns bares existentes naquela área fazia com que os menores para lá se dirigissem durante o dia e a noite. Mesmo com a fiscalização atuando no controle daqueles estabelecimentos, há indícios de que os adolescentes conseguiam driblar a ação das autoridades públicas. Isso era o que denunciavam as notícias como a que foi publicada em 6 de março de 1943, segundo a qual, mesmo com as “medidas proibitivas, os menores continuam abusando de jogos que não lhes são permitidos por lei [...] Sabe-se que no bilhar da Rua Joaquim Nabuco, os menores abusam com sua freqüência, jogando dia e noite.” 410 Outras reclamações encontradas sobre a jogatina de menores naquela Rua possuíam eram deste mesmo teor. Uma das queixas localizadas na imprensa se referia a uma “turma de malandros, fazendo anarquia e dirigindo gracejo aos transeuntes. Em dias da semana passada, por pouco não houve até morte, dois desocupados começaram brincando e no fim teve até faca.”411 Na tentativa de exercer o controle sobre a prática dos menores, a imprensa e as autoridades públicas procuravam associar as atividades de jogo com vadiagem ou malandragem. Ao dedicar boa parte do tempo para jogos de sinuca, por exemplo, crianças e adolescentes se desviavam do comportamento exigido pelos poderes públicos para indivíduos que se tornariam trabalhadores. Não era por acaso que o jogo era criminalizado pelo código penal brasileiro. Outrossim, em uma cidade que crescia e se urbanizava sob a pretensão dos valores hegemônicos de “progresso” e de “civilização”, as crianças que se deslocassem do campo estabelecido pela ordem vigente eram consideradas um problema para juizes de menores e policiais. O Intransigente notificava, por exemplo, que a cidade estava cheia de malandros em suas ruas e nos recantos e que “não raro encontramos eles jogando, a dinheiro, em plena rua. O jogo chamado “Pio” é o seu favorito. Crianças juntam-se a adultos desocupados, e perdem dinheiro.”412 Em resposta, o capitão Almerindo Vergne afirmava que o policiamento tem sido feito com muito rigor e evitando que o jogo de dados conhecido como “Pio” se realizasse nas ruas de Itabuna, o delegado informava que não podia tomar maiores providências, visto que o juizado de menores havia transferido o controle das crianças para a Guarda Municipal. 413 É possível que esse impasse entre quem deveria se responsabilizar pelo controle dos menores facilitasse a prática de jogos na cidade. Em setembro de 1944, mais uma das travessuras dos CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 6 de março de 1943, Ano XVI, n.º 27. p.1. CEDOC/UESC. Jornal A Época, 22 de agosto de 1942, Ano XXIV. p.4. 412 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 6 de novembro de 1943, Ano XVI, n.º 10. p.1. 413 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 13 de novembro de 1943, Ano XVII, n.º 11. p.1. 410 411 162 menores acontecia no perímetro central. Depois de brincar nas linhas dos trens próximos à estação de ferro, uma criança quase era atropelada pela locomotiva que se aproximava do local. Esse era um fato classificado como corriqueiro pela imprensa. Aproveitando-se do incidente, O Intransigente considerava que “os vadios causam sustos aos trabalhadores [...] Existe, na cidade, uma capadoçagem infantil que, de tão baixa, chega à repugnância.”414 Depois de considerar a periculosidade destes sujeitos, a continuação da matéria apresentava algumas sugestões para evitar as ações de menores no perímetro central. O jornal avaliava que a quantidade de meninos era grande, de onde provinha “uma capadoçagem em alto grau, enveredando pela escola dos vícios e dos crimes”. Por conta disso, o semanário afirmava que os apelos às autoridades policiais e jurídicas eram inúteis, visto que estas não se encontravam aparelhadas o suficiente “para cortar o mal pela raiz, evitando o desenfrelamento existente.” Como solução para o problema dos menores em Itabuna, O Intransigente fechava sua matéria sugerindo que os pais cumprissem com a tarefa de cuidar de suas crianças, exercendo controle sobre “seus filhos, de guiá-los para outra escola, de encaminhá-los para o trabalho, de vigiá-los, de proibir-lhes a molecagem”, sublinhando ainda que “Urge uma disciplina maior, mais rigorosa educação, para se evitar os fatos que se repetem, para se empregar os desocupados que perambulam pelas ruas.”415 Nas décadas de 1940, as práticas urbanas dos menores traziam sérios transtornos para o padrão de conduta idealizado pelos segmentos hegemônicos de Itabuna. As denúncias de “capadoçagem” são evidências de que crianças e adolescentes conseguiam se organizar em grupos para usufruir da cidade. O que a imprensa chamava de “capadoçagem”, pode ser considerado a forma de sobreviver no espaço urbano diante dos limites existentes nos planos sociais e culturais. Gritar, mendigar e jogar são maneiras que estes indivíduos tinham para chamar a atenção, para conseguir rendimentos financeiros com esmolas e se divertir, necessidades básicas de qualquer ser humano. No entanto, para os poderes públicos e a imprensa, o comportamento dos menores abandonados era estranho dentro dos padrões de civilidade pensados para a sociedade itabunense. Não por acaso, o controle sobre as condutas daqueles indivíduos era requisitada pela rigidez e subordinação à sociedade por meio da escola. Em Itabuna, a quantidade de menores nas ruas fez com que a Prefeitura incentivasse a 414 415 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 23 de setembro de 1944, Ano XVII, n.º 3, p.4. Idem, Ibidem. 163 matrícula na Escola de Aprendizes Marinheiros durante a década de 1940, publicando no Jornal Oficial os editais de matrícula daquela instituição.416 Walter Fraga aponta que a Escola de Aprendizes Marinheiros possuía uma proposta educacional vinculada a práticas disciplinares, regeneradoras e de aspecto militar, cujo objetivo era reprimir a vadiagem infanto-juvenil, especialmente na capital do estado.417 Assim, a escola era vista como uma instituição que deveria preparar os menores para se tornarem sujeitos submissos à ordem estabelecida e circunscrita aos padrões de comportamento idealizados para os cidadãos do futuro. Em contrapartida, as instituições de educação condenavam as formas de rebeldia e de insubordinação oriundas dos jovens da cidade. Para a historiadora Andréia Rodrigues, a educação era uma saída encontrada para prevenir que os menores se desviassem do padrão de comportamento estabelecido pelos segmentos hegemônicos e difundir os valores da ideologia do trabalho contra a prática de vadiagem nas cidades. 418 Em Itabuna, o envio de criança para a Escola de Aprendizes Marinheiros já era verificado desde de 1928, quando quatro menores foram encaminhados para aquela instituição, como aponta Raul Coelho Neto.419 Além disso, os jornais locais cobravam a construção de novos reformatórios no interior do estado, como fica evidente em matéria que esperava que “o estado resolva criar um reformatório para menores, única salvação da sociedade, porque, como vamos, teremos no futuro maior número de criminosos a dar mais trabalho e maiores despesas, sem falar nos danos e nos riscos a sociedade.”420 Em 30 de setembro de 1944, os menores voltavam a ocupar a primeira página de O Intransigente. Naquela oportunidade, o semanário noticiava uma queixa do Capitão Almerindo Vergne contra a “vadiagem de menores na cidade”. O delegado narrava que havia dado uma batida em alguns lugares do subúrbio e tinha apreendido uma bola de futebol de couro, que, segundo ele, “praticam diariamente, em qualquer lugar, sem respeitar os transeuntes, quebrando vidraças e dando outros prejuízos à propriedade alheia”.421 Informava ainda que havia apreendido canivetes, bolas de gudes e punhais junto com os menores. A prática de jogar futebol parecia ter entrado para a lista de atividades acossadas pelas autoridades policiais e pela imprensa. Alguns moradores da Rua Barão do Rio Branco se APMIJD. Jornal Oficial do Município de Itabuna, terça-feira, 12 de maio de 1942, Ano VIII, n.º 571. p.8. Ao longo desse mês, várias cópias deste edital foram publicados na imprensa do município. 417 FRAGA FILHO, Walter. Mendigos, moleques e vadios na Bahia do Século XIX. São Paulo: Hucitec, 1996. pp.119-120. 418 RODRIGUES, Andréia R. Op.cit. p. 94-95. 419 COELHO NETO, Raul Barreto. Adotados pelo mar. Manuscrito, 2007. 420 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 12 de agosto de 1944, Ano XVII, n.º 50. p.1. 421 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 30 de setembro de 1944, Ano XVIII, n.º 4. p.1. 416 164 queixavam à imprensa da “algazarra reinante no bate-bola quotidiano.” 422 Ao apropriar-se da rua para jogar bola, os menores terminavam criando outra lógica para as vias que cortavam a cidade. As práticas esportivas no meio das ruas impediam a circulação do trânsito, subvertendo sua função enquanto artéria de deslocamento de carros e de pessoas. Dessa maneira, os choques com as normas e as regras instituídas pelo poder público eram quase instantâneos, visto que o jogo era associado à desordem e à vadiagem na zona urbana. ********** Em meio à campanha contra os menores abandonados, levada a cabo por parte da imprensa de Itabuna, o capitão Almerindo Vergne publicava um edital da delegacia de polícia contendo novas determinações acerca das condutas de jovens na cidade. O documento informava que a polícia estava incumbida de tomar providências contra os menores em geral, “não permitindo que os mesmos fiquem perambulando pelas ruas [...] a jogarem pedras ou coisas semelhantes, proibindo a entrada dos referidos menores em lugares impróprios, isto de acordo com o entendimento havido com Exm.º Juiz da Vara Crime.”423 Tratava-se de mais restrição às práticas urbanas dos menores elaborada pelos poderes públicos, tal como foi observado ao longo deste capítulo. Durante o período em que a cidade se modificava, realizando reformas urbanas em ruas, avenidas e praças de Itabuna nas décadas de 1930 e 1940, as municipalidades e a imprensa promoveram discursos e criaram medidas efetivas em busca de regulamentar as práticas urbanas dos jovens. As determinações jurídicas instituíam os lugares, que os menores deveriam viver, suas ações e seus horários, reforçando um padrão de civilidade que pudesse adequá-los aos moldes de vida ligados aos valores de trabalho e de subordinação à ordem estabelecida. Quase sempre, essas determinações não levam em consideração as singularidades próprias desses menores de origem pobre. As leis as tratam como algo homogêneo e asséptico, considerando os que fogem a essa regra enquanto moleques, malandros ou vadios. No caso de Itabuna, que passava por sua urbanização, os menores que desarticulavam a funcionalidade da ordem urbana eram classificados como perigosos pelos jornais locais e perseguidos pelas autoridades policiais. No entanto, apesar das diversas tentativas de limitar as práticas urbanas dos menores por parte dos setores hegemônicos, os menores parecem não ter se submetido passivamente às condições impostas pelo Código de Posturas e pelos editais. A freqüência com que as notícias 422 423 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 7 de outubro de 1944, Ano XVIII, n.º 5. p.1. CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 14 de agosto de 1943, Ano XVI, n.º50. p.4. 165 sobre a ação das crianças e dos adolescentes apareciam nos jornais evidencia a rebeldia e a insubordinação infanto-juvenis nos logradouros públicos da cidade. Em junho de 1943, meses antes de o delegado criar novas determinações sobre a conduta de menores, o O Intransigente noticiava a reclamação de Nathan Coutinho contra a presença de menores na região do Matadouro. Segundo o queixoso, os meninos “de várias idades vem freqüentando aquele lugar, provocando distúrbios e algazarras, contrariando assim as determinações do juiz.”424 Práticas como estas eram noticiadas salientando a forma como os menores desestruturavam a ordem urbana, tornando-se um problema de polícia. Assim, ao tomarem conta das praças, da frente de cinemas e de igrejas, os menores criavam territórios de sobrevivência sem levar em consideração as fronteiras sociais impostas pela urbanização local. Dividiam e disputavam os mesmo espaços com membros dos setores hegemônicos da cidade. 424 CEDOC/UESC. Jornal O Intransigente, 26 de junho de 1943, Ano XVI, n.º 43. p.1. 166 CONSIDERAÇÕES FINAIS O movimento em torno da urbanização de Itabuna que se desenvolveu a partir das décadas de 1930 e 1940, significou para o poder público local o desejo de reformar os logradouros públicos e as práticas urbanas dos trabalhadores pobres, no uso e no consumo deste espaço em seu cotidiano. Este era um projeto que apontava para intervenções efetivas não só na morfologia da cidade (ruas, avenidas, prédios, praças, etc.), mas nos modos de vida da população trabalhadora. Ao idealizarem os melhoramentos importantes, as municipalidades pretendiam verem realizadas em Itabuna uma política urbana de controle e de organização racional do espaço citadino. Não apenas isso, as autoridades políticas previam a padronização de posturas e de costumes de acordo com os valores de urbanidade instituídos para a cidade que se transformava. As novas instituições criadas e a atuação mais visível dos departamentos que já existiam são indícios de que a partir da década de 1930, a preocupação das municipalidades aumentou com a fiscalização da cidade. Entre as instituições, citei a inauguração da Guarda Municipal de Itabuna no ano de 1933. Elaborada aos moldes de outras cidades do país, os soldados da Guarda deveriam ser os responsáveis por cuidar dos costumes e da manutenção da segurança dos munícipes. O suporte para a ação dos guardas era o Código de Posturas do Município, revisado e ampliado naquele mesmo ano. Por esse instrumento deveriam ser auferidos as condutas dos trabalhadores, os usos e os consumos das vias urbanas. Para a prefeitura, as leis municipais eram um meio de regulamentar a utilização e as formas urbanas. Em contrapartida, para parte da população trabalhadora e pobre, normas que iam de encontro aos seus interesses. Outro segmento dos poderes públicos foi o departamento de Higiene Pública. Utilizando também o código de posturas, os membros desta secretaria fiscalizavam a construção de imóveis comerciais e residenciais, os pesos e as medidas utilizadas nas feiras, a situação de conservação das carnes comercializadas e a incidência de epidemias na cidade. As ações da Higiene Pública ficaram mais evidentes ao passo que a prefeitura recuperava e embelezava praças, e quando os feirantes se utilizavam de táticas para burlar as estratégias de 167 controle empreendidas pelos fiscais. Além disso, a posição da imprensa local como interlocutora dos interesses da prefeitura fazia com que a cobrança por providências contra ambulantes e feirantes resultassem em ações mais enérgicas das autoridades responsáveis por esse departamento público. O aparecimento da Guarda Municipal, do Código de Posturas e da Higiene Pública em meados da década de 1930 parece se sintonizar com um período em que a política urbana se tornou um desafio para as autoridades locais. No projeto de cidade da prefeitura, caberia ao poder público o papel de urbanizar, restituir à ordem e tornar aproveitáveis os espaços citadinos. Influenciados pelas propostas de planejamento urbano decorrentes dos planos criados em 1927 e 1935, a municipalidade procurou consolidar a noção de que as cidades deveriam ser o território da civilidade, em que pese o controle e a punição contra os que se esbarravam nesses valores. Parte desses aspectos foi possível observar no momento em que os engenheiros desenharam suas propostas de intervenção urbana em Itabuna. Muitos dos lugares que deveriam ser reformados eram lugares diretamente ocupados por trabalhadores. Nos lugares onde havia candomblés, planejaram-se praças; as calçadas onde prostitutas atuavam, deveriam ser alinhadas e niveladas com a retirada do mulherio; e nas margens dos rios ocupadas por lavadeiras, foi aconselhada a municipalização da área e a construção de uma barragem. Parece evidente que mobilizar a população em torno das reformas urbanas efetuadas em Itabuna era uma questão política e social. Não se tratava apenas de mudar as formas de casas, ruas, avenidas e praças, mas de consolidar novos valores pautados em ideais de “progresso” e de “civilização”. Os responsáveis por difundir essa política eram os veículos de imprensa da cidade. As páginas dos jornais eram recheados de discursos progressistas e conservadores, que criticavam os sujeitos pobres e urbanos que contrariavam a lógica urbana criada pelo poder público e elogiavam as ações da prefeitura em suas medidas de intervenção na cidade. Foi assim que comportamentos cotidianos caíram no campo da ilegalidade e da imoralidade à medida que a urbanização se processava. Entre eles, os hábitos de tomar banho no rio, de jogar bola na praça, de lavar roupas ou utilizar as calçadas e as praças para trabalhar passaram a ser controlados e reprimidos pelos membros da fiscalização municipal. Mas pensar que o projeto de cidade criado pelo poder público não encontrou resistência entre os trabalhadores pobres é negar as contradições inerentes à formação social de Itabuna. O êxito conseguido com as reformas urbanas efetivadas em partes do perímetro urbano não foi acompanhado da mudança de hábitos e costumes entre “os de baixo”. A julgar pelas queixas seqüenciais publicadas na imprensa local contra os vaqueiros, as lavadeiras, os 168 ambulantes, feirantes e jovens adolescentes nos diversos logradouros de Itabuna, percebe-se que os resultados da política urbana de controle não foram tão satisfatórios. Exemplo disso está também na criação da Guarda Municipal. Inaugurada para se tornar uma polícia de costumes, o comandante da corporação tinha que lidar com a indisciplina dentro e fora da corporação. As punições de soldados por insubordinação ou por condutas inadequadas ao regimento da corporação são evidências das dificuldades encontradas por aquela instituição. Por outro lado, registros de desacatos à soldados por feirantes e outros trabalhadores dão conta da insatisfação dos trabalhadores com os soldados da “civilidade”. Em outros casos, nota-se que a repressão da prefeitura resultou na organização de táticas de apropriação da cidade por parte dos trabalhadores. Um sinal disso foi a reação das prostitutas durante a década de 1940. No momento em que a polícia, a prefeitura e membros conservadores de Itabuna se uniram em torno da retirada das mulheres das ruas Duque de Caxias e Ruy Barbosa, parecia que a existência do baixo meretrício no perímetro central estava com os dias contados. Mas, ao contrário dos louvores de vitória publicados na imprensa local, foi possível apontar a permanência das prostitutas em outra parte do perímetro central. A construção de uma nova territorialidade a partir das práticas daquelas mulheres, conhecido localmente por “Buraco da Gia”, mostrou os esforços de garantir o uso e o consumo da cidade pelos trabalhadores. Mais do que isso, ali se tornou o lugar diante do qual, na impossibilidade das autoridades policiais controlarem repressivamente o que a imprensa chamava de “barulho”, recorria-se a compreensão das mulheres para que fizessem silêncio, como foi notado no segundo capítulo. Este episódio é um indício de que se o poder tinha a força de reformar seu espaço de atuação no centro da cidade, as mulheres não ficaram atrás na tática de apropriação de espaços alternativos na área central da cidade. As relações conflituosas entre os poderes públicos e os trabalhadores durante a urbanização de Itabuna entre as décadas de 1930 e 1940 parecem apontar para um novo caminho de interpretar a sociedade cacaueira. As disputas de territórios, as lutas por garantia do uso e do consumo da cidade e as frustrações dos segmentos políticos são indícios de que a força social era ambivalente, isto é, era o resultado de enfrentamentos diretos entre as pessoas simples, trabalhadoras e pobres com membros das municipalidades. Não se tratava apenas de obedecer e de aceitar a subordinação imposta pelas autoridades políticas locais, mas também de reagir diante das posturas políticas e administrativas adotadas por aqueles que ocupavam os cargos do poder local. Foi nas ações cotidianas e corriqueiras, que os “de baixo” conseguiram criar táticas de desobediência às estratégias criadas pela prefeitura. 169 Esse estudo indica a possibilidade de ver Itabuna, não mais como o lugar em que as autoridades locais mandavam e os “outros” obedeciam, mas o lugar em que os trabalhadores foram até a justiça pública para reclamar o direito à cidade. Mover um mandado de segurança contra a prefeitura no intuito de assegurar seu espaço de trabalho nos logradouros urbanos é uma demonstração de que lavadeiras e engraxates não aceitavam plenamente as decisões tomadas por prefeitos e vereadores. Igualmente fizeram os feirantes, os quais se rebelaram contra a lei aprovada pelo conselho municipal de padronização de pesos e medidas da feira pública em 1937. Por conta disso, creio ser possível pensar uma Itabuna (e até mesmo a região cacaueira) de outra forma, não somente com a cristalização do poder exercido pelos segmentos hegemônicos, mas também pela maneira de se rebelar e lutar para preservar o uso e o direito sobre o espaço urbano dos trabalhadores. Com atitudes como estas, não foram os planejamentos urbanos elaborados pelos engenheiros de 1927 e 1935 que deram formas a cidade, mas as práticas urbanas dos trabalhadores que configuraram espaços e costumes específicos de Itabuna. Evidente que as disputas pelo território e pelas práticas urbanas em Itabuna não se restringiram às décadas pesquisadas. Por sinal, reprimir e controlar as atividades populares continuariam sendo um dos objetivos das autoridades municipais nos anos vindouros. São essas contradições sociais no plano político e cultural que fizeram de Itabuna uma cidade com historicidade. 170 FONTES E REFERÊNCIAS ARQUIVOS E BIBLIOTECAS BPEBa – Biblioteca Pública do Estado da Bahia APMIJD – Arquivo Público Municipal de Itabuna José Dantas CEDOC/UESC – Centro de Documentação e Memória Regional da Universidade Estadual de Santa Cruz APPJ – Arquivo Permanente do Poder Judiciário – Comarca da Vara Crime de Itabuna. APEBa – Arquivo Público do Estado da Bahia Fundação Pedro Calmon FONTES IMPRESSAS Jornal À Época Jornal O Intransigente Jornal Diário da Tarde Jornal de Itabuna Jornal O Fanal Jornal Oficial do Município de Itabuna Código de Posturas do Município de Itabuna Projeto de remodelamento e expansão da cidade de Itabuna Projeto de Saneamento de Itabuna (Estado da Bahia) – Relatório. F. Saturnino R. de Brito Filho. Contrato dos serviços de água e esgoto da cidade de Itabuna Livro do Conselho Consultivo do Município de Itabuna (1933-1935). Livro de décimas urbanas do município de Itabuna (1933-1937). Livro do Conselho Municipal de Itabuna (1935-1937) Anais da Sociedade de Medicina e Cirurgia de Itabuna (1942-1943) LIVROS, ARTIGOS E TESES ADONIAS FILHO. Sul da Bahia: chão de cacau: uma civilização regional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976. ALBURQUE JR., Durval Muniz de. A invenção do Nordeste e outras artes. São Paulo: Cortez, 1999. AMADO, Janaína. 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