Paralaje Nº6 (2011) Ensayo Sônia Campaner

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Paralaje Nº6 (2011) Ensayo Sônia Campaner
Paralaje Nº6 (2011) Ensayo
Sônia Campaner
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WALTER BENJAMIN: UMA CRÍTICA À TEORIA TRADICIONAL DO CONHECIMENTO
Sônia Campaner Miguel Ferrari*
Recibido el 15 de Abril de 2011
Aceptado el 27 de Julio de 2011
RESUMO
O objetivo deste artigo é o de apresentar algumas das concepções
benjaminianas de sua crítica à teoria tradicional do conhecimento no
seu livro Origem do Drama Barroco Alemão. Indicaremos como
sua crítica não formula, em oposição a esta, um método universal
por meio do qual se chega à verdade. Seu método tem como
referência os tratados cujo método é o desvio que se opõe à “cadeia
de deduções cartesiana” exposta por Adorno. Este não vê no método
de exposição benjaminiano uma renúncia à apreensão racional do
real, apesar da desistência do ideal de sistema. Trata-se para
Benjamin de reelaborar a concepção de crítica filosófica com vistas
a redefinir o próprio discurso filosófico.
Palavras-chave: Conhecimento – verdade – idéia – crítica - estética.
*
Professora Doutora do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia e Comunicação da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
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Origem do Drama barroco Alemão1 não é a obra mais famosa, conhecida e
cultuada de Walter Benjamin, mas, enigmático e difícil, esse livro se constitui numa
espécie de confluência dos temas que mobilizaram o pensamento benjaminiano, desde
1916 até 1925, como a filosofia da linguagem, a reformulação da Metafísica e da
Lógica além de, em especial, a reflexão sobre a situação da crítica filosófica e sobre a
arte e a ciência no período que marca a passagem do fim do século XIX e início do
século XX.
O período imediatamente após a I Guerra Mundial é bastante conturbado em
toda a Europa, e principalmente na Alemanha, país recém-saído do Império, que mal
inicia sua entrada na nova fase capitalista e se vê sacudido por uma participação de
conseqüências desastrosas nessa guerra. Um livro sobre os dramas barrocos alemães,
escritos no século XVII –um livro com o qual Benjamin pretendia obter o título de
livre-docente– não responde, certamente, às questões imediatas e urgentes vividas por
alemães e europeus naquele momento, mas com ele Benjamin acaba por mergulhar na
origem de um modo de pensar cujas conseqüências se fazem sentir ainda, apesar das
tentativas dos românticos e de Nietzsche, entre outros, de romper com esse modo de
pensar. Ao proceder a uma leitura cuidadosa, detalhada dos dramas barrocos,
Benjamin identifica as origens desse pensamento, o sentimento melancólico de perda
que se encontra em suas origens, e a relação que esse período histórico e suas
manifestações culturais têm com a Alemanha do início do século.
Asja Lascis2 nos conta em seu livro autobiográfico Revolutionär im Beruf 3
que ao escrever o livro sobre o Barroco Benjamin estava lendo, além dessa literatura
“conhecida apenas de especialistas”, História e Consciência de Classes, de G.
Lukács, e afirma que, no confronto entre a nova teoria e o livro sobre o barroco, não
há predomínio deste último. Asja conta que, nessa conversa, teria ainda perguntado a
Benjamin qual o sentido de se “ocupar de literatura morta”? Esse estudo traz à luz,
segundo ele, uma nova terminologia, isto é, novos conceitos a partir dos quais surge
um novo entendimento dos dramas barrocos alemães e com isso a diferença entre
Drama Barroco e Tragédia. Ainda, essa pesquisa não é somente um estudo
acadêmico, mas relaciona-se intimamente com os “problemas atuais da literatura
contemporânea”4; procura com ela mostrar a analogia entre a forma lingüística do
expressionismo e a do barroco, e valorizar a alegoria, desprestigiada até então pela
1
BENJAMIN, W., Ursprung des deutschen Trauerspiel, publicado em Gesammelte Schriften,Frankfurt,
Suhrkamp, 1980, vol. I (citado no decorrer do texto como GSI, seguido da página. Outros volumes das
obras completas de Walter Benjamin serão referidos da mesma forma, isto é, as letras GS, seguidas do
volume em algarismo romanos, e das páginas).Traduzida para o português sob o título Origem do
Drama Barroco Alemão por Sergio Paulo Rouanet,1984, ed. Brasiliense, São Paulo. Esta será indicada
com a sigla SPR, seguida do número da página.
2
Benjamin conheceu Asja Lascis, “uma revolucionária russa natural de Riga” em Capri, em julho de
1924, e por ela se apaixonou. Seu relacionamento com Asja intensificou seu interesse pelo
materialismo histórico, já despertado pelo livro de Lukács.
3
BENJAMIN, GSI, p. 879.
4
Ibíd.
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história literária, como uma “forma especial da percepção estética”5. Em sua reposta a
Asja, Benjamin procura enfatizar a importância do conhecimento do passado, de um
passado que é sincrônico ao seu presente, para o saber desse mesmo presente.
Desde seus primeiros escritos, a problemática do tempo e da história é central
para Benjamin. E ela está presente nesse livro de forma às vezes latente, às vezes
manifesta. Está implícito desde o início de sua investigação que o tratamento de um
tema de que o separam três séculos não pode ser feito sem uma reflexão sobre o papel
dessa distância temporal e sobre o modo como as obras se inserem no contexto
histórico a que pertencem.
O livro sobre os dramas barrocos foi escrito segundo um esquema que se
repete em outros textos de Benjamin, como o ensaio “As Afinidades Eletivas de
Goethe”, e Benjamin pretendeu repetir esse esquema em seu grande livro sobre Paris,
O Trabalho das Passagens6, que permaneceu sob a forma de um grande projeto, do
qual resultaram alguns ensaios. Esse esquema consiste na forma de composição do
livro, em que a primeira parte contem indicações de como o autor se aproxima das
obras que são seu objeto de investigação, e de que modo essa forma de aproximação
se opõe à forma tradicional. No caso do livro sobre os dramas barrocos, o “Prefácio
de Crítica do Conhecimento”7 explicita o modo de apresentação do livro, indicando já
nessa introdução de crítica do conhecimento, os problemas do método indutivo (o
nominalismo de Burdach), do método dedutivo (o sistema cartesiano e o kantiano) e
da teoria dos gêneros de Benedetto Croce. Para tanto, Benjamin toma de empréstimo
formulações dos românticos, retoma a noção de filologia contra Nietzsche, reformula
a teoria das idéias platônica, retoma conceitos de Goethe e Leibniz. A segunda e a
terceira partes do livro consistem na apresentação dos elementos constituintes dos
dramas que permitem identificar o sentimento que preside à elaboração dos dramas –a
melancolia– e na discussão da alegoria, a forma lingüística usada pelo poeta alegórico
na escrita dos dramas, e com ela a conclusão a respeito da relação entre os dramas e a
forma alegórica, com uma nova abordagem da relação forma/conteúdo.
O “Prefácio de Crítica do Conhecimento” da obra em questão constitui-se
numa reflexão filosófica essencial sobre o modo como Benjamin analisa, lê e
interpreta os dramas. Não se trata, para o autor, do estabelecimento de um método
universal por meio do qual se chega à verdade, mas exatamente o oposto disso: os
seus parágrafos são peças que compõem uma espécie de mosaico, e neles Benjamin
aborda os principais aspectos da nova concepção com a qual se opõe às concepções
5
Ibíd.
Muitas obras de Benjamin são precedidas por textos introdutórios que indicam o “modo de
apresentação” da obra. Alguns exemplos desse tipo de introdução encontramos em “Duas poesias de
Hölderlin”, “As afinidades eletivas de Goethe”, Origem do Drama Barroco Alemão, “O Narrador”, “A
obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica e também o Trabalho das Passagens. O livro sobre
os dramas barrocos está dividido em três partes: a introdução, que corresponde ao “Prefácio”, a
primeira parte, intitulada “Drama Barroco e Tragédia”, e a segunda parte, “Alegoria e Drama Barroco”.
7
SPR, p. 49. Na tradução o título aparece como Questões introdutórias de crítica do Conhecimento (no
original alemão Erkenntiniskritische Vorrede).
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da teoria tradicional do conhecimento, como método, sujeito, objeto, identidade entre
conhecimento e verdade. Para tanto referimo-nos a um texto de Adorno, Ensaio como
forma, em que o amigo e discípulo de Benjamin remete ao “Prefácio” em questão, e
indica os aspectos da postura anti-cartesiana de Benjamin, da qual também é
solidário.
A epígrafe do “Prefácio” do livro sobre o Barroco cita a obra de Goethe
Materiais para a história da doutrina das cores; traz um pressuposto que norteia a
investigação de Benjamin sobre o Barroco, o da renúncia à totalidade:
“Posto que nem no saber nem na reflexão podemos chegar ao todo, porque
ao primeiro falta a dimensão interna, e à segunda, a dimensão externa,
devemos por isso, pensar, necessariamente, a ciência como uma arte, se
esperamos dela alguma forma de totalidade. E não é no geral, no
excessivo, que temos que procurar essa totalidade, mas do mesmo modo
que a arte sempre se apresenta totalmente em cada obra particular, assim
também deveria a ciência, a cada vez, mostrar-se totalmente em cada
objeto particular estudado”.8
Trata-se de uma renúncia ao ideal filosófico de sistema, isto é, à pretensão de
totalidade e de totalização do pensamento. Essa renúncia se manifesta “pela inclusão,
no cerne do pensamento filosófico, de uma reflexão do caráter lingüístico desse
mesmo pensamento”. As primeiras páginas do “Prefácio” retomam as últimas linhas
do ensaio “Sobre a filosofia a vir”, “nas quais Benjamin afirmava a necessidade de
'transformação [Umbildung] e correção do conceito [kantiano] de conhecimento, que
segue de maneira unilateral a orientação matemático-mecânica', transformação que só
poderia advir de uma 'relação do conhecimento à linguagem” 9.
Dois outros pressupostos norteiam a investigação benjaminiana: a teoria da
linguagem e a noção de tempo intensivo. Os dramas barrocos são considerados obras
que expressam uma experiência humana histórica, e que exige, para tanto, que a
distância temporal entre o leitor e a obra seja percorrida, e não abolida - como faz o
historicismo; esta distância, porém, só pode ser considerada e reconhecida dentro do
próprio texto. Para percorrer essa distância temporal é necessário proceder a uma
leitura que permita reconhecer os termos cujo sentido é desconhecido ao leitor, e cujo
significado ele só pode encontrar no contexto em que eles se encontram e na relação
de sua própria experiência enquanto leitor com esse texto produzido numa época
distante.
8
SPR, p. 49, BENJAMIN, W., GSI, p. 207: “Da im Wissen sowohl als in der Reflexion kein Ganzes
zusammengebracht werden kann, weil jenem das lnnre, dieser das Ãussere fehlt, so müssen wir uns die
Wissenschaft notwendig als Kunst denken, wenn wir von ihr irgend eine Art von Ganzheit erwarten.
Und zwar haben wir diese nicht im Allgemeinen, im Überschwãnglichen zu suchen, sondern, wie die
Kunst sich immer ganz in jedem einzelnen Kunstwerk darstellt, so sollte die Wissenschaft sich auch
jedesmal ganz in jedem einzelnen Behandelten erweisen” .
9
BENJAMIN, W. GS, II, p. 168. Sobre esse tema Gagnebin, J.M., “Da escrita filosófica em Walter
Benjamin”, in Selligmann-Silva, M.(org.) Leituras de Walter Benjamin,São Paulo, Annablumme:
1999.
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Benjamin ressalta dessa forma a relação entre linguagem e história: a
linguagem é transmitida no tempo, e é na passagem do tempo que ela adquire
sentido10. A história é “transmissão infinita dos nomes” 11, mas, de acordo com a
teoria da linguagem de Benjamin, sobre a qual se funda o “Prefácio” do livro sobre o
Barroco, o fundo dos nomes não pode ser encontrado pela razão. A “tarefa” do
“filósofo”, do “crítico”, nesse contexto, é a da “apresentação da idéia” que precede à
experiência histórica expressa nas obras de arte, neste caso dos dramas barrocos.
Neste “Prefácio”, encontra-se o fundamento do procedimento adotado por Benjamin:
o de ler uma forma de expressão que pertence a uma época histórica distante e que, ao
mesmo tempo em que é um modo de dizer determinado porque relacionado a, e
limitado por, uma experiência histórica específica, é expressão de um querer-dizer
que constata –e a melancolia é a expressão disso– a impossibilidade de alcançar o
plano de uma língua pura12, de um dizer imediato. Essa esfera da língua pura é
inacessível às línguas históricas, o que não significa que ela seja um “ideal”, “uma
tarefa infinita que atravessa todo o devir histórico” 13. Benjamin se opõe à idéia de
um ideal que é sempre somente referência, ou a uma tarefa de interpretação infinita
que coloca o “objetivo numa distância infinita” 14, como um “cume que parece
mover-se cada vez para mais longe quanto mais nos aproximamos dele, enquanto que
somente os vales escondidos, separados de outros cumes, se abrem no caminho” 15.
A tarefa da interpretação não é a de conservar o “não-dito” e a “infinitude” do
sentido, mas de consumá-los16. A tarefa do crítico, do intérprete, é então a de indicar a
concepção de mundo, a idéia que determinada forma de manifestação cultural,
enquanto material, procurou expressar, a forma material que determinada idéia
assumiu numa determinada época histórica. No ensaio de 1921, “As Afínidades
Eletivas de Goethe”, Benjamin define a relação entre teor factual (Sachgehalt) e teor
10
AGAMBEN, G. « Langue et Histoire », in, Walter Benjamin et Paris, Paris, ed. Du Cerf, 1986, p. 795,
que ressalta, nessa relação entre linguagem e história, a impossibilidade que tem o sujeito falante, de
conhecer a origem dos nomes. Agamben discute nesse texto a relação entre linguagem e história, que
parece desconcertante à primeira vista, mas que está presente desde a época medieval. A letra é um
elemento essencialmente histórico para Santo Agostinho. Afirmar essa relação entre história e língua
significa dizer que a transmissão dos nomes ocorre no tempo, e é só nessa transmissão que se pode ter
acesso a eles. Portanto, não é possível ao homem conhecer a origem dos nomes, mas apenas sua “queda
infinita” que é a história. Esse plano da origem dos nomes é o fundamento das línguas, cujo acesso
está interdito.
11
AGAMBEN, G. , op.cit., p. 795.
12
No ensaio de 1916, Sobre a linguagem em e a linguagem dos homens Benjamin define dois planos,
o da língua pura, língua dos nomes ou língua adâmica, e o da língua humana ou língua decaída. A
língua dos nomes é a “essência mais íntima da própria linguagem” e aquele “pelo qual nada se
comunica e no qual a língua se comunica a si mesma absolutamente” (BENJAMIN, W., GSII, 144).
Noutro texto Benjamin define a língua pura como “uma palavra sem expressão” (GSIV, 19). Essa
“palavra que não quer mais dizer”, visada por todas as línguas, é onde se realiza a “eliminação do
indizível da linguagem” (BENJAMIN, W., Briefe, Frankfurt, Suhrkamp, 1978, p.127): AGAMBEN, G., op.
Cit. pp.796-9. A ausência de intenção na língua pura, a língua como pura expressão na origem é um
tema presente já nos românticos, como A. W. Schlegel e Humboldt.
13
AGAMBEN, G., op.cit., p. 800.
14
BENJAMIN, W., GS VI, p. 53.
15
Ibíd.
16
AGAMBEN, G., op. cit., p. 802.
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de verdade (Wahrheitsgehalt) na obra de arte; essa relação permite definir a atividade
crítica em relação ao comentário:
“A crítica busca o teor de verdade (Wahrheitsgehalt) de uma obra de arte,
o comentário o seu teor factual (Sachgehalt). A relação entre ambos
determina aquela lei fundamental da escrita literária segundo a qual,
quanto mais significativo for o teor de verdade de uma obra, de maneira
tanto mais inaparente e íntima estará ele ligado ao seu teor factual. Se, em
conseqüência disso, as obras que se revelam duradouras são justamente
aquelas cuja verdade está profundamente incrustada em seu teor factual,
então os dados do real na obra apresentam-se, no transcurso desta duração,
tanto mais nítidos aos olhos do observador quanto mais se vão extinguindo
no mundo. Mas com isso, e em consonância com sua manifestação, o teor
factual e o teor de verdade, que inicialmente se encontravam unidos na
obra, separam-se na medida em que ela vai perdurando, uma vez que este
último sempre se mantém oculto, enquanto aquele se coloca em primeiro
plano. Conseqüentemente, torna-se cada vez mais uma condição prévia
para todo crítico vindouro a interpretação do teor factual, isto é, daquilo
que chama a atenção e causa estranheza. Pode-se comparar esse crítico ao
paleógrafo perante o pergaminho cujo texto desbotado recobre-se com os
traços de uma escrita, que se refere ao próprio texto. Do mesmo modo
como o paleógrafo deveria começar pela leitura desta última, também o
crítico deveria fazê-lo pelo comentário (...). Se por força de um símile
quiser-se contemplar a obra em expansão com uma fogueira em chamas
vívidas, pode-se dizer então que o comentador se encontra diante dela
como o químico, e o crítico semelhantemente ao alquimista. Onde para
aquele apenas madeira e cinzas restam como objetos de análise, para este
tão somente a própria chama preserva um enigma: o enigma daquilo que
está vivo. Assim, o crítico levanta indagações quanto à verdade cuja
chama viva continua a arder sobre as pesadas achas do que foi e sobre a
cinza leve do vivenciado”17.
A atividade crítica não pode se exercer sem o comentário. Não há
interpretação possível sem que se recorra ao contexto em que se insere a obra. O
conhecimento do contexto, no entanto, não se faz por mero interesse acadêmico ou
especulativo; ele é necessário para marcar a diferença entre a época estudada e a
aquela em que se encontra o crítico, tornando desse modo possível o reconhecimento
do que caracteriza a época que olha para o passado. Conhecer o passado é também
conhecer o presente.
A relação entre o teor de verdade e o teor factual pode ser mais, ou menos,
íntima, e é essa relação que determina a maior ou menor “durabilidade” da obra. É
essa relação também que dificulta o trabalho do crítico, principalmente quando se
trata daquelas obras cuja relação entre o teor factual o teor de verdade é problemática
desde o seu aparecer, como é o caso dos dramas barrocos. A aproximação inicial deve
ser, como afirma Benjamin, a partir “daquilo que chama a atenção e causa
estranheza”, quer dizer, do teor factual. Somente o comentário exaustivo desses
17
BENJAMIN, W. GSI, pp.125-6. Tradução de Mônica K. Bornebusch, Irene Aron e Sidney Camargo in
Benjamin, in Ensaios Reunidos: Escritos sobre Goethe, São Paulo: Duas Cidades; Ed.34, 2009, pp. 1214.
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elementos pode libertar a chama do vivente que habita a obra, seu teor de verdade. O
papel da crítica é, ainda, o de estabelecer a natureza da relação entre teor factual e teor
de verdade, que “se encontravam” inicialmente “unidos na obra, [e] separam-se na
medida em que ela vai perdurando”. Essa relação não é a de determinação de um
elemento sobre o outro; a obra é a expressão prática de uma união que só pode ser
compreendida se compreendida a relação entre a verdade e a história, entre a chama
que continua a arder e o presente.
Walter Benjamin reelabora, no “Prefácio de Crítica do Conhecimento”, a
concepção de crítica filosófica, e visa com ela opor-se às noções mais caras da teoria
tradicional do conhecimento. Nele, o conceito de origem indica a passagem do tempo
e da historicidade intensiva dos objetos históricos. O que essa leitura do objeto
histórico possibilita vislumbrar mais claramente é a presença da morte como “centro
secreto de todo texto”18, a história como um amontoado de acontecimentos
fragmentados, “em significação interna”19, o que propicia a possibilidade de uma
nova leitura. Não há, portanto sentido eterno, perene, mas aquilo que se fala, e de que
se fala, está sujeito à morte, à destruição e, por isso mesmo, à re-significação. Os
aspectos referidos acima aparecem expressos deste modo no texto benjaminiano: o
texto como um mosaico, na forma de um tratado, em que não há encadeamento lógico
de uma passagem a outra; a noção de verdade como configuração de idéias e a
linguagem como expressão deficiente dessa configuração.
No início do “Prefácio” Benjamin anuncia como deve ser tratado esse que é
um dos problemas centrais da filosofia do início do século: se ciência não é o saber da
verdade, mas é conhecimento, e se o núcleo da verdade é temporal, como definir o
discurso filosófico? Diz Benjamin: “É próprio da escrita filosófica confrontar-se de
novo, em cada uma de suas versões, com a questão da apresentação”20. Na verdade,
em sua forma acabada, ela se torna doutrina, mas conferir-lhe tal acabamento não
reside no poder do simples pensamento. A doutrina filosófica baseia-se na codificação
histórica. Ela não pode ser invocada ‘more geométrico’21. A verdade, portanto, não é
o que pode ser encontrado ao final de um procedimento dedutivo, como o faz
18
WITTE, B. O que é mais importante, a escrita ou o escrito?, Revista USP, Dossiê Walter Benjamin, p.
88. Com relação ao ensaio de B. Witte consideramos necessário acrescentar que este autor enfatiza o
aspecto destrutivo do procedimento benjaminiano, aproximando, com isso, Benjamin de teóricos do
desconstrucionismo, como Derrida. Consideramos, no entanto, que para melhor compreender a obra
benjaminiana, é necessário considerar o aspecto destrutivo como complementar, e em tensão em
relação ao construtivo.
19
Ibíd.
20
No original alemão, como se vê na nota seguinte, a palavra usada por Benjamin é Darstellung, que
nos remete ao problema da forma de expressão de um dado conteúdo, portanto ao problema da
apresentação, e não ao da “representação”, como aparece na tradução de Rouanet.
21
BENJAMIN, W., GSI, p.207: “Es ist dem philosophischern Schriftum eigen, mit jeder Wendung vom
neuem vor der Frage der Darstellung zu stehen. Zwar wird es in seiner abgeschlossenen gestalt Lehre
sein, solche Abgeschlossenheit ihm zu leihen aber liegt nicht in der Gewalt des blossen Denkens.
Philosophische Lehre beruht auf historischer Kodiflkation. So ist sie denn auch more geometrico
nicht zu beschwõren”.
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Descartes com a aplicação de seu método, que tem como modelo a matemática, pois a
verdade “é a morte da intenção”22.
Em “Ensaio como forma”23, escrito entre 1954-8, Theodor Adorno comenta, o
“Prefácio” do livro sobre o Barroco de Benjamin; nele, Adorno é solidário à postura
anti-cartesiana de Benjamin no “Prefácio”. Adorno relê as quatro regras do método
cartesiano24 do ponto de vista de um pensamento que pretende opor-se ao “direito
incondicional do método”, exercido não só no racionalismo, mas também no
empirismo25. Descartes representa, na História da Filosofia, um dos momentos em
que se coloca mais claramente o problema da liberdade e da autonomia do
pensamento. Essa autonomia se faz por meio de um rompimento com a tradição. Para
bem julgar, o sujeito deve estar de posse plena da razão, livre das influências da
tradição histórica, mas consciente de seus limites. O método é, para Descartes, a
garantia de que a razão percorrerá o caminho certo e direto na direção da verdade.
O ensaio é a forma do discurso filosófico que coloca em dúvida esse “direito
incondicional” do método; ele “não obedece a regra do jogo da ciência e da teoria
organizadas, qual seja, segundo a frase de Spinoza, a ordem das coisas é a mesma que
a ordem das idéias” 26. O conceito tradicional de método estaria, portanto, ligado a um
projeto malogrado de libertação do pensamento que acabou por acorrentá-lo, ao
limitá-lo a um conjunto de regras que se tornam mais importantes que o próprio
pensar. “O pensamento”, diz Adorno, “tem a sua profundidade conforme o quão
profundamente ele penetra a coisa, não conforme o quão profundamente ele a reduza
a uma outra coisa”27. A coisa não pode ser reduzida ao conceito, mas pode penetrar na
esfera das idéias por meio dele. Porque o “ensaio sabe” que não é possível conhecer
com certeza absoluta que os conceitos não têm alcance para representar as coisas em
todos os seus elementos, surge o problema da apresentação como crucial para o
discurso filosófico. O método afasta o pensamento da coisa, exigindo que ele se
concentre em seu próprio proceder. “O como da exposição deve salvar, em precisão,
o que a renúncia à circunscrição sacrifica, sem entregar a coisa visada à arbitrariedade
de significações conceituais decretadas de uma vez por todas. Nisto Benjamin foi um
mestre inalcançado” 28.
Adorno reconhece em Benjamin a maestria desse “modo de exposição” que
não significa, em nenhum momento, a renúncia da “apreensão racional do real, (... ) o
triunfo da incoerência, da arbitrariedade e do relativismo”, nem a desistência do
“pensamento sistemático”, apesar da desistência do ideal de sistema. Significa, sim,
22
BENJAMIN, W., GSVI, p. 48.
ADORNO, T. “Der Essay als Form”, in Noten zur Literatur, Frankfurt: Suhrkamp Verlag, 1978, pp. 949.
24
Ibíd., p.33 e SS.
25
Ibíd., p.22.
26
Ibíd., p. 23.
27
Ibíd., p. 25.
28
ADORNO, T., op.cit., p. 28.
23
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uma crítica às concepções da filosofia tradicional, expressas por Descartes29 em suas
regras do método. A primeira regra30, a da evidência, afirma a concepção de que a
verdade se impõe à consciência livre das interferências externas. Significa ao mesmo
tempo que a consciência é capaz de captar a verdade, livre de qualquer dúvida e de
enunciar essa verdade. No entanto, não são o método da dúvida e a “clareza e
distinção” de uma verdade que conferem validade a um conceito. No ensaio, todos os
conceitos devem apresentar-se de tal modo que “suportem uns aos outros, que cada
qual se articule com os outros segundo as configurações”31. No entanto, seriam tais
conceitos simples instrumentos que permitem fazer a referência a uma verdade
metafísica que pode ser concebida por um sujeito pensante ou o resultado de uma
atividade anterior àquela, puramente racional? Pode o pensar ser reduzido a conexões
racionais às quais podemos relacionar este ou aquele conceito ou ele é o pensar
relacionado a um determinado “objeto”, portanto resultado de uma relação do sujeito
com um objeto que lhe escapa?
A segunda regra32 a da divisão, postula que o pensamento deve recortar,
separar o objeto para poder conhecê-lo, e pressupõe com isso que a ordem que segue
o pensamento é a mesma do ser33. Considera, ainda, que o pensamento é capaz de
alcançar a profundidade do ser através desse caminho linear, supondo que o ser
também é linear. Não se deve hipostasiar a totalidade nem os produtos da análise, os
elementos34. É impossível desenvolver os elementos a partir do todo, assim o é
desenvolver o todo a partir dos elementos. O método é uma exigência que o
pensamento faz a si mesmo, porque é limitado, finito, e essas exigências não podem
ser impostas às coisas.
A terceira regra35, a da composição, propõe que o pensamento avance de
forma linear, a partir do mais simples na direção do composto, seguindo uma ordem
dada. Ao contrário, para Adorno, “o ensaio obriga a pensar a coisa, desde o primeiro
passo, tão estratificada quanto ela é”, corrigindo, dessa forma, o pensamento rígido da
“razão coerente”36. A redução a modelos simplificadores se opõe à própria
experiência, que não nos apresenta um mundo simples e lógico.
29
DESCARTES, R., “Discurso do método”, in Obra Escolhida, São Paulo, ed. Difel, 1977. ADORNO, T.,
op.cit., pp. 30 e ss.
30
DESCARTES, R., op.cit., p. 53. O enunciado de Descartes é: “O primeiro era o de jamais acolher
alguma coisa como verdadeira que eu não conhecesse evidentemente como tal”.
31
Ibíd., p. 30.
32
DESCARTES, R., op. cit., p. 54: “O segundo, o de dividir cada uma das dificuldades que eu
examinasse em tantas parcelas quantas possíveis e quantas fossem necessárias para melhor resolvêlas”.
33
ADORNO, T. op. cit., p. 31.
34
Ibíd.
35
DESCARTES, R., op. cit., p. 54: “O terceiro, o de conduzir por ordem meus pensamentos, começando
pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer, para subir, pouco a pouco, como por degraus, até
o conhecimento dos mais compostos, e supondo mesmo uma ordem entre os que não se precedem
naturalmente uns aos outros.”
36
ADORNO, T., op. cit., p. 32.
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A quarta regra37 cartesiana se constitui no próprio princípio sistemático que
pretende responder à exigência da apreensão total do objeto. Essa “visão de conjunto”
só seria possível “se o objeto tratado fosse absorvido pelos conceitos de seu
tratamento; se nada sobrasse que não tivesse sido antecipado por esses conceitos”38. A
quarta regra expressa o ideal da filosofia da identidade, incapaz de penetrar no que é
antagônico, contraditório, incapaz de compreender o diverso, os produtos da
experiência humana. O ensaio, por sua vez, não esgota seu tema, penetra na
diversidade, se propõe a cada vez, compreender cada um dos matizes do real. “O
ensaio pensa por descontinuidade, assim como a realidade é descontínua, e encontra
sua unidade através das rupturas, e não enquanto ele as aplaina”39.
Descartes, tomado como expressão primeira daquilo em que resultou a ciência
e o pensamento modernos, dá a Adorno a direção da crítica a esse pensamento
fragmentador e sistemático. O ensaio de Adorno nos permite localizar no “Prefácio”
alguns temas visados por Benjamin em sua crítica do conhecimento. Em primeiro
lugar, a relação que o crítico estabelece com o objeto, que não é a de reduzi-lo ao
conceito, mas, ao contrário, de penetrar nele como que por estratos, e ir tão
profundamente quanto o próprio objeto o permita. Clareza e evidência não são, para
Benjamin, resultados seguramente obtidos pelo método cartesiano de purificação da
razão (purificação dos dados dos sentidos). Não há, na verdade, clareza dos conceitos,
e nem evidência. A esta, Benjamin opõe a configuração de elementos lingüísticos
extremos, que acabam por formar uma “imagem de pensamento”.
Em segundo lugar, a crítica ao pensamento lógico-dedutivo, de que são
exemplos o método more geometrico cartesiano e o espinosista. Este pensamento
constitui, por meio do método, uma série das coisas de que há necessidade de
conhecer, e nela estabelece uma relação de dependência entre os seus elementos, de
modo que seja possível deduzir de um elemento aquele que o segue. Estabelece
também, portanto, uma ordem segundo a qual as coisas devem ser conhecidas. Para
opor-se a esse procedimento, Benjamin compara o ritmo da respiração com o ritmo a
ser seguido pelo pensamento. A respiração ilustra um movimento contínuo de
realimentação do pensamento com os objetos a serem conhecidos, ao invés de
distanciar-se cada vez mais deles e dirigir-se a uma atmosfera cada vez mais rarefeita.
Em O iluminismo visionário, Benjamin leitor de Descartes e Kant, Olgária
Matos parte da dependência do método cartesiano da intuição das evidências, e nos
mostra como a retórica foi desqualificada pelo critério da evidência: “As formas
lógicas podem servir para expor uma verdade já encontrada, mas não para encontrála”. Trata-se, para Descartes, de “construir uma filosofia a partir de uma verdade”,
uma verdade que não pode ser o produto de um discurso mas que o antecede. Mas
40
37
DESCARTES, R., op. cit., p. 54: “E o último, o de fazer em toda parte enumerações tão completas e
revisões tão gerais, que eu tivesse a certeza de nada omitir.”
38
ADORNO, T., op. cit., p. 34.
39
Ibíd., p.35.
40
O iluminismo visionário, Benjamin leitor de Descartes e Kant, São Paulo, Brasiliense, 1993, pp. 1820.
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“estar diante de uma evidência é uma coisa, torná-la evidente a todos é uma outra”. A
autora ressalta ainda que Benjamin vê nessa dicotomia, saudada por Hegel como o
“advento da consciência de si reflexiva”, a “intransponível cisão corpo e alma”, em
que o corpo orgânico (este corpo tanto pode ser o mundo sensível quanto a própria
linguagem) aproxima-se do inorgânico (e este tanto pode ser a alma, quanto a idéia, o
conceito) apenas na morte. Isto é, o corpo, o orgânico, só se identifica com o conceito
deixando de ser o que é, ou seja, deixando de ser orgânico. Esse abismo da
significação, a distância intransponível entre corpo e alma, pensamento e coisa,
característica do racionalismo cartesiano é visto por Benjamin como um “elemento
barroco”.
A crítica benjaminiana ao racionalismo cartesiano é ao mesmo tempo a crítica
à teoria tradicional do conhecimento; é a crítica de quem tem diante de si um mundo
que não pode mais ser reduzido a uma unidade arbitrária, “cuja coerência mediata” é
“produzida pelos conhecimentos parciais”. Se trata de definir o discurso filosófico,
isto é, verdadeiro, deve-se ter em mente que a unidade buscada é a unidade da
verdade, que mesmo sendo histórica e temporal, preexiste, “resiste a qualquer
interrogação”, é “objeto de contemplação”, e não de conhecimento. Podemos afirmar
que está em questão aqui a origem de algo que Benjamin irá definir no livro sobre
Paris como fetiche. A verdade, mesmo resultando da atividade humana criadora, não é
consciente. Os homens criam as condições sociais, econômicas e culturais em que
vivem, mas esquecem-se, e tais condições passam a atuar sobre suas vidas sem que
eles se dêem conta. A teoria tradicional não é mais capaz de dar conta dos
acontecimentos sociais e econômicos gerados pela revolução industrial do século
XIX. O alvo que Benjamin tem diante de si é a sua própria época, que ameaça
encenar em seus palcos a defesa dos interesses hegemônicos do capitalismo industrial,
do mesmo modo que no período barroco eram encenadas as peças de propaganda
política do Absolutismo. A diferença, no entanto, é de que no século XVII essas peças
eram encenadas nos palcos dos teatros. No século XX, esse palco transferiu-se para a
própria vida política e cultural. O sistema racionalista do século XVII visava fornecer
ao homem uma visão de conjunto de um mundo fragmentado pelas inúmeras crises
que antecederam esse período; ele é ineficaz para compreender o processo de
unificação instaurado pelo próprio processo de produção capitalista. O reducionismo
do pensamento lógico-dedutivo resulta na “visão de conjunto”, na idéia de contexto e
de sistema que pretende abranger todas as coisas. A essa visão de conjunto,
sistemática, que pretende representar o mundo “na ordem das idéias”, Benjamin opõe
o tratado cujo método é a apresentação de modo indireto. Ele não segue uma “a
cadeia de deduções”. O movimento do texto é um contínuo ir e vir que visa com isso
penetrar em camadas cada vez mais profundas.
O “Prefácio” do livro sobre o Barroco é um texto introdutório no qual
Benjamin procura explicitar no que consiste o discurso filosófico que visa a
apresentação da verdade. Nele, Benjamin critica o sistema como forma ideal do
discurso filosófico e propõe, em oposição, o tratado, que não tem “a concisão de um
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ensinamento” e prescinde dos “meios coercitivos da demonstração matemática” 41. A
“característica metodológica do tratado” é a da “apresentação como desvio” 42. O
tratado é como um mosaico: ambos combinam elementos “isolados e disparatados”, e
é a combinação desses elementos que permite manifestar “o impacto transcendente
(...) da verdade” 43. Isto quer dizer que não há um único caminho que conduz à
verdade; a verdade é uma configuração de idéias, uma dada combinação que surge no
movimento, no fluxo do devir a que todas as coisas estão sujeitas, submetendo o
material e o cultural.
Benjamin produz em seu texto uma nova configuração com a qual pretendia
produzir no leitor aquele “impacto transcendente”. Esse impacto resulta não só do fato
de que nesse livro se propõe uma outra forma de ver os dramas barrocos, mas também
de que com ele Benjamin expõe o que sua época tornou possível saber sobre o
conhecimento e a verdade. A verdade, no entanto, é revelada nessa configuração, mas
essa configuração não é ela própria.
Seu livro, assim como os dramas barrocos e o expressionismo do início do
século são um querer-dizer inscritos na temporalidade e na história. A tarefa do
filósofo é a de restabelecer o que ele chama de “caráter simbólico da palavra” 44, e
que significa reconhecer a insuficiência da língua, mas ao mesmo tempo também
reconhecer a esfera para a qual ela remete, qual seja, à transparência do sentido, ao
desaparecimento da intenção –portanto abolição do sujeito– em favor da fidelidade às
coisas. Sua obra posterior, o Trabalho das Passagens, a exemplo do livro sobre o
drama barroco, se constitui numa tentativa de compreender o século XIX a partir da
leitura do material, que neste caso não é mais uma forma literária, como o drama
barroco, mas a escrita das ruas da cidade -outdoors, propagandas, placas, avisos– as
construções modernas como as estações de trem, os magazines e os cafés, as figuras
que povoam as cidades e os movimentos sociais, leitura essa que se torna, do mesmo
modo, problemática. A cidade, os cartazes, a arquitetura moderna deverão ser lidos
como expressão do que o homem moderno sonha para si. Seu objetivo é o de revelar
os mecanismos que nos fazem esquecer o que somos e que nos integram numa ordem
que nos aliena.
O mundo em que vivemos se tornou opaco ao nosso olhar. Não há mais
evidência, não há mais caminhos certos, que nos conduzam diretamente ao lugar
certo. A complexidade do mundo da produção capitalista e do consumo, que
aparentemente tudo desvela, tudo revela –a ciência, a tecnologia, todos os meios de
que dispomos para intervir, para invadir o macro e o micro cosmos– torna as relações
do homem com as coisas, e do homem consigo mesmo cada vez mais mediadas (e
midiáticas).
41
BENJAMIN, W., GS I, 208; SPR, p. 50.
Ibíd, p. 208; SPR, p. 50.
43
Ibíd., p. 208;SPR, p. 51.
44
Ibíd., p. 217; SPR, p. 59.
42
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