Imprimir artigo - Revista de Ensino de Bioquímica
Transcrição
Imprimir artigo - Revista de Ensino de Bioquímica
ISSN: 1677-2318 No. 02/06 Public. 16/10/2006 Artigo C FONTES DE ESPÉCIES REATIVAS DE OXIGÊNIO NA MUSCULATURA ESQUELÉTICA DURANTE O EXERCÍCIO Paulo Guimarães Gandra1*, Denise Vaz de Macedo1, Armindo Antonio Alves1,2 1 Laboratório de Bioquímica do Exercício (Labex). Departamento de Bioquímica, Instituto de Biologia, Universidade Estadual de Campinas-UNICAMP, São Paulo, Brazil 2 Fundação Hermínio Ometto – UNIARARAS, São Paulo, Brazil *[email protected] RESUMO O músculo esquelético gera constantemente espécies reativas de oxigênio, através da redução monoeletrônica do oxigênio molecular. Durante o exercício físico o consumo de oxigênio pela musculatura esquelética exercitada pode ser aumentado em aproximadamente 100 vezes. Acredita-se que a geração de espécies reativas de oxigênio deve ser proporcional a este aumento. O objetivo deste trabalho é apresentar todos os possíveis locais e mecanismos de produção de espécies reativas de oxigênio na musculatura esquelética durante o exercício físico. A tradicional visão de que o aumento do consumo de oxigênio e o aumento do fluxo de elétrons pela cadeia de transporte de elétrons mitocondrial regulam a produção de espécies reativas de oxigênio durante e após o exercício pode não ser exclusiva, nem a mais importante ao considerarmos os vários tipos de exercício. ABSTRACT Skeletal muscle constantly generates reactive oxygen species through the monoelectronic reduction of molecular oxygen. It is believed that the enhanced oxygen uptake by skeletal muscle during exercise is responsible for an increased reactive oxygen species generation. Our goal was to present the different possible mechanisms and sights of reactive oxygen species generation in skeletal muscle during exercise. The traditional view that reactive oxygen species generation is regulated mainly by increased oxygen consumption and electron flow rate in the mitochondrial respiratory chain may not be the sole predictor of reactive oxygen species generation during and after the different types of exercise. Endereço para contato: Labex, Departamento de Bioquímica, Instituto de Biologia, Universidade Estadual de Campinas CP 6109, 13083-970 Campinas-SP, Brazil Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C2 RADICAIS LIVRES E ESPÉCIES REATIVAS DE OXIGÊNIO (EROS) Radicais livres são moléculas ou íons que contêm um ou mais elétrons desemparelhados (radical), que são capazes de existir de maneira independente (livre). Exibem, por isso, atividade oxidante. São representados por um radical (R) com um ponto, que representa o elétron desemparelhado (•R). Diferem, portanto, da maior parte das biomoléculas, cujos elétrons apresentam spins opostos pareados em um mesmo orbital. O oxigênio molecular (O2) ou oxigênio triplete pode ser considerado um radical livre, pois contém dois elétrons desemparelhados, de spins iguais localizados em dois orbitais diferentes. Isso torna a molécula de O2 bastante estável, apesar do seu alto potencial redox (+0,82 mV), pois restringe sua oxidação ou a moléculas que possuam dois elétrons de spins também iguais ou a uma forma univalente, com a adição de um elétron de cada vez. Essa condição, conhecida como restrição de spin é muito importante para a vida, pois possibilita a ocorrência de moléculas constituídas de cadeias carbônicas altamente reduzidas numa atmosfera com 21% de O2 como a da Terra [1]. Nos organismos aeróbicos o O2 é utilizado principalmente nas mitocôndrias, como aceptor final de elétrons na cadeia respiratória, sendo reduzido a água no complexo IV ou citocromo aa3. Por força da restrição de spin, o O2 é reduzido unieletronicamente no complexo IV conforme mostrado abaixo: O2 + 1e- → •O2- (radical ânion superóxido) • O2- + 1e- + 2H+ → H2O2 (peróxido de hidrogênio) H2O2 + 1e- + H+ → •OH (radical hidroxila) • OH + 1e- + H+ → H2O Todas essas espécies intermediárias mostradas acima, que ainda não foram totalmente reduzidas são coletivamente chamadas na literatura de Espécies Reativas de Oxigênio (EROs). É importante deixar claro que normalmente essas quatro etapas de redução ocorrem no interior do complexo mitocondrial IV, com liberação de H2O como único produto final da reação. No entanto, está bem documentado na literatura que parte do O 2 consumido é reduzido a radical ânion superóxido (•O2-), conforme será detalhado abaixo [2, 3]. O •O2- é o iniciador das outras EROs, pois pode ser dismutado espontaneamente ou enzimaticamente (superóxido dismutase), levando à produção de peróxido de hidrogênio (H2O2). O H2O2, por sua vez, na presença de íons de metais de transição pode sofrer quebra na ligação O-O, produzindo o radical hidroxila (•OH). Esta reação denomina-se reação de Fenton: Fe2+ + H2O2 Fe3+ + OH- + • OH Todos esses derivados parcialmente reduzidos de O2 exibem em menor ou maior grau atividade oxidante, e podem influenciar processos intracelulares importantes, sensíveis ao estado redox. A reatividade dos radicais livres é inversamente proporcional a sua meia-vida. Assim, há espécies radicalares de tempo de vida muito curto, como o •O2- e o radical hidroxila •OH, e de tempo de vida longo, como a molécula de O2 ou os íons Fe2+ e Fe3+, que estão normalmente associados a proteínas. Embora o H2O2 seja considerado um agente oxidante fraco, participa da produção do • OH, uma das espécies radicalares mais reativas entre as existentes. Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C3 Em 1982, Davies e colaboradores [4] mostraram pela primeira vez, através da técnica de Ressonância Paramagnética de Spin (SPR) a produção de radicais livres de oxigênio no músculo e no fígado de ratos após um exercício agudo, e sugeriram as mitocôndrias como as principais responsáveis por esse aumento nas EROs. Mais tarde, Reid et al. [5] utilizaram a molécula de diclorofluoresceína (DCFH) para medir a produção de EROs em fibras isoladas de músculo. Esses autores mostraram um aumento da oxidação da DCFH, que foi relacionado com a produção de EROs após contrações repetitivas. PARTICIPAÇÃO DAS MITOCONDRIAS NA FORMAÇÃO DE EROS DURANTE O EXERCÍCIO As mitocôndrias apresentam-se como uma fonte potencial de EROs no músculo esquelético durante o exercício físico, uma vez que os centros Fe-S e da flavina mononucleotídeo (FMN) do complexo I e semiquinonas da cadeia de transporte de elétrons (CTE) realizam transferências monovalentes de elétrons. De fato, estimou-se uma produção mitocondrial de •O2- in vitro igual a 1-5% do total de O2 consumido, devendo esta relação ser menor in vivo [2, 3]. A observação de que a oxidação de proteínas mitocondriais por •OH prevaleceu sobre a oxidação de proteínas citossólicas no músculo cardíaco após exercício físico também reforçou o papel das mitocôndrias na produção de EROs [6]. Tradicionalmente, postula-se que o aumento em ambos, no consumo de O 2 e no fluxo de elétrons na cadeia de transporte de elétrons seriam os responsáveis por um vazamento maior de elétrons de componentes da CTE, com o consequente aumento na produção mitocondrial de •O2- durante o exercício físico. De fato, o tecido muscular é o único que pode aumentar muitas vezes sua demanda energética durante o exercício quando comparada aos níveis basais, com um aumento concomitante em torno de 10 vezes no volume de oxigênio total consumido (VO2) e de cerca de 100 vezes nas fibras musculares ativas [7, 8]. O vazamento de elétrons parece estar associado ao estado redox dos transportadores de elétrons. Experimentos com mitocôndrias isoladas mostraram que a produção de EROs parece ser maior quando a CTE está altamente reduzida, como no estado respiratório 4 (na ausência de ADP). No estado respiratório 3 (após adição do ADP, situação que simula o exercício físico) a produção de EROs diminui significativamente [3, 9]. Foi proposto que essa diminuição era devida à oxidação dos componentes da CTE que estavam altamente reduzidos no estado 4 [3, 9]. Observou-se que o efeito da adição de ADP era semelhante àquele observado após adição de um desacoplador. Ou seja, a produção de EROs parece ser dependente do potencial de membrana da membrana mitocondrial interna. Foi teorizada também a possibilidade da pO2 mitocondrial e não o fluxo aumentado de elétrons regular diretamente a produção de •O2- [10, 11]. A diminuição da pO2 mitocondrial poderia diminuir a Vmax da citocromo oxidase pelo O2, aumentando conseqüentemente o tempo em que os transportadores de elétrons da cadeia respiratória estariam reduzidos, o que aumentaria a geração de •O2- pelos mesmos [11]. Esta hipótese foi sustentada pela observação de uma maior geração de EROs durante o exercício em situação de hipóxia e normóxia em que a pO2 intracelular se mostrou diminuída.[10, 11, 12]. Experimentos com mitocôndrias isoladas de diferentes tecidos (fígado, músculo cardíaco, músculo esquelético e cérebro) revelaram variações na produção de •O2- e H2O2, dependendo dos substratos e dos inibidores de componentes da CTE utilizados, Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C4 contribuindo para a identificação dos sítios de produção de EROs. Estudos com mitocôndrias intactas dificultam a determinação de •O2- devido sua meia vida muito curta, e ao fato de não atravessar a membrana mitocondrial. Como a mitocôndria contém a enzima antioxidante superóxido dismutase (SOD) o •O2- é dismutado a H2O2, que é mais estável e capaz de extravasar a membrana, sendo sua determinação mais fácil. Estudos quantificando a produção de •O2- geralmente são feitos em complexos da cadeia de transporte de elétrons isolados. Inicialmente foram identificados dois sítios principais de produção de EROs na membrana interna das mitocôndrias: a NADH desidrogenase (Complexo I) e a ubiquinona ou coenzima Q (Complexo III). No complexo I o •O2- é liberado na matriz mitocondrial, sendo provavelmente produzido no grupamento FMN. No complexo III o • O2- é produzido pela semiquinona e liberado no espaço citossólico [13]. A taxa de produção de •O2-, pela cadeia de transporte de elétrons in vitro é maior durante o fluxo reverso de elétrons na cadeia de transporte, sendo dependente do gradiente eletroquímico de H+ (ΔµH+) [14]. O ΔμH+ é constituído por dois componentes, Δψ (potencial de membrana, componente elétrico) e ΔpH (gradiente de pH, componente químico). Trabalhos mais recentes com mitocôndrias isoladas de músculo esquelético mostraram que a adição de ADP (estado 3) na presença de substratos do complexo I (piruvato/malato) não anulava a produção de H2O2 [15]. Esses autores mostraram também que a adição de rotenona (inibidor do complexo I) aumentava a produção de H2O2. Esses dados reforçaram o envolvimento dos centros Fe-S e da flavina mononucleotídeo (FMN) do complexo I na produção de radicais através da autooxidação. Já na presença de succinato (substrato do complexo II), a adição da rotenona bloqueou quase totalmente a produção de H2O2 sugerindo que grande parte dos radicais eram formados pelo fluxo reverso de elétrons do complexo II (succinato) para o complexo I, sendo somente uma pequena parte produzida pelo ciclo quinona/complexo III. Lambert e Brand [14] mostraram que o ΔpH também altera a produção de •O2-, principalmente no complexo I. Esses autores observaram que após a adição de nigericina, que diminui o ΔpH com um concomitante aumento do Δψ, mantendo o ΔµH+ constante houve uma diminuição na produção de •O2-, sugerindo que a produção de •O2- é mais sensível ã diminuição do ΔpH do que ao aumento do Δψ. Os autores sugeriram ainda que a geração de EROs no complexo I pode depender mecanicamente do transporte de prótons no próprio complexo[14]. Outros mecanismos podem contribuir para o aumento da produção mitocondrial de • O2- durante a realização de exercício físico, tais como o aumento da temperatura e concentração de Ca2+ intracelular [16]. Além disso, foi demonstrado que a enzima mitocondrial glicerol-3-fosfato desidrogenase ligada a membrana (mGPDH) produz EROs em mitocôndrias isoladas de fígado e tecido adiposo marrom [17], e que sua atividade se encontra aumentada no músculo esquelético após exercício exaustivo [18]. A enzima mGPDH atua em conjunto com a enzima citosólica cGPDH no transporte de NADH citossólico produzido pela glicólise para dentro das mitocôndrias, de maneira parecida com o sistema da lançadeira malato/aspartato. No entanto, o real papel da mGPDH na produção de EROs no músculo esquelético ainda não foi minuciosamente estudado. A enzima α-cetoglutarato desidrogenase, do ciclo de Krebs também é capaz de gerar H2O2, representando outra possível fonte de EROs na mitocôndria [19]. Aparentemente, na presença de todos os substratos e cofatores da α-cetoglutarato Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C5 desidrogenase acontece uma maior produção de H2O2 quanto maior for a razão NADH/NAD+[19]. A Figura 1 apresenta uma representação esquemática das principais vias de produção mitocondrial de EROs durante o exercício. Figura 1. Representação esquemática da produção de EROs na mitocôndria. As setas azuis indicam transferências de elétrons entre os complexos da cadeia de transporte. As setas tracejadas indicam redução da coenzima Q. O ciclo Q no complexo III está ilustrado de maneira simplificada. Os elétrons da coenzima Q reduzida (QH2, ubiquinol) são transferidos um de cada vez para o centro ferro enxofre e para os dois citocromos b (b566 e b562). O ciclo ocorre em duas etapas. Na primeira etapa QH 2 perde um elétron para o centro Fe-S formando semiquinona (•Q-), com liberação de H+ no espaço intermembranas. Em seguida a •Q- transfere seu elétron aos citocromos b. Os citocromos b reduzem novamente Q formando •Q- (1). Na segunda etapa uma segunda molécula de QH2 é oxidada pelo centro Fe-S e citocromos b. No entanto, os citocromos b irão reduzir •Q- formada na primeira etapa (2), que com H+ da matriz mitocondrial regenera QH2. A formação de EROs no complexo III ocorre por autoxidação do radical •Q-, ou vazamento de elétrons no processo de transferência do • Q para o citocromo b. O complexo I deve gerar •O2- na matriz mitocondrial provavelmente pelo complexo FMN e o complexo III deve liberar •O2- no espaço intermembranas devido a localização do centro “o do complexo III onde a formação de •O2- ocorre ser voltado para o espaço intermembranas. VIAS DE FORMAÇÃO DE EROS EXTRAMITOCONDRIAL DURANTE O EXERCÍCIO Xantina Oxidase A ativação das vias anaeróbicas de produção de ATP pelo exercício de alta intensidade estimula a produção de AMP, através da ativação da enzima mioquinase. O metabolismo do AMP leva à produção de ácido úrico, conforme mostrado na Figura 2, sendo que as últimas reações (hipoxantina → xantina → ácido úrico) são controladas pela mesma enzima, a xantina desidrogenase, que reduz NADP+ e produz ácido úrico Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C6 e NADPH como produtos finais. No músculo esquelético a xantina desidrogenase se localiza em células endoteliais vasculares [22]. ADP + ADP m io q u in a s e ATP AM P 5 'n u c le o t id a s e Pi A M P d e s a m in a s e NH4 A D E N O S IN A IM P 5 'n u c le o t id a s e IN O S IN A p u r in a n u c le o tíd e o fo s fo r ila s e H IP O X A N T IN A x a n t in a d e s id r o g e n a s e NADP+ NADPH O2 NADP+ NADPH + x a n t in a o x id a s e .O 2 X A N T IN A x a n t in a d e s id r o g e n a s e C a 2+ O2 .O 2 C a 2+ + x a n t in a o x id a s e C o n d iç õ e s N o r m a is " I s q u e m ia /R e p e r fu s ã o " Á C ID O Ú R IC O Figura 2. Representação esquemática do ciclo das purinas na musculatura esquelética em condições normais e em condições de isquemia/reperfusão. As setas mais largas indicam a via predominante na musculatura esquelética em exercícios de alta intensidade. Condições de isquemia causada por hipóxia relativa do tecido, como as que acontecem durante exercícios de alta intensidade favorecem a conversão da forma desidrogenase da enzima para a forma oxidase [21, 22]. O provável mecanismo dessa regulação é um distúrbio da homeostase do Ca2+, que acaba por ativar proteases que degradam uma parte da enzima xantina desidrogenase, modificando-a de forma irreversível [21, 22]. A xantina oxidase reduz O2 ao invés do NADP+, produzindo •O2-. A conversão da forma desidrogenase para a forma oxidase também pode ocorrer de forma reversível, pela oxidação de grupos sulfidrila da enzima. Nesse caso, a reversão da enzima novamente para a forma desidrogenase ocorre quando as pontes dissulfeto forem novamente reduzidas. Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C7 Acredita-se que o maior dano celular devido a atividade da xantina oxidase seja causado no processo pós-isquêmico, ou seja, na reperfusão. Note que esse fato é simulado durante a pausa entre exercícios de alta intensidade, quando prevalece o metabolismo aeróbico [23, 24]. Detectou-se aumento na atividade da enzima xantina oxidase no músculo e no plasma imediatamente após o exercício [25, 26]. Recentemente, Vina et al [27] e GomezCabrera et al [28] observaram em estudos em ratos e humanos que a inibição da enzima xantina oxidase com a suplementação ou aplicação intraperitoneal de alopurinol (inibidor da xantina oxidase) preveniu a oxidação de glutationa, e impediu o aumento em marcadores de lesão muscular após a realização de exercício exaustivo, reforçando o papel da enzima xantina oxidase como a principal fonte de produção de EROs no exercício de alta intensidade. NAD(P)H oxidases NAD(P)H oxidases não mitocondriais estão presentes no músculo esquelético de ratos e humanos, localizando-se próximas ao sarcolema [29]. NAD(P)H oxidases reduzem o O2 às custas de NADPH ou NADH como doadores de elétrons, contribuindo para a produção de •O2- no músculo esquelético [29, 30]. Xia et al [31] observaram uma taxa de produção de •O2- por uma oxidase dependente de NADH no retículo sarcoplasmático maior do que a taxa correspondente a porções submitocondriais de músculo e coração de ratos [31]. Esses autores sugeriram que esta poderia ser uma importante fonte geradora de •O2- no músculo esquelético, além de exercer um importante papel na regulação da liberação de Ca2+ do retículo sarcoplasmático. A aplicação do princípio da sobrecarga preconizada pelo treinamento induz microtraumas na musculatura. A resposta inflamatória envolve entre outros eventos o aumento da infiltração de neutrófilos no músculo [32, 33, 34]. NADPH oxidases presentes na superfície celular dos neutrófilos constituem uma importante fonte geradora de •O2- em um processo conhecido como burst respiratório. O •O2- pode ser posteriormente reduzido a H2O2, e pela ação de mieloperoxidases presentes nos neutrófilos, ser convertido a ácido hipocloroso [16]. OUTRAS FONTES DE EROS DURANTE O EXERCÍCIO O •O2- também pode ser produzido no músculo esquelético por cicloxigenases, peroxissomos e grupos heme de proteínas transportadoras de O2. A autoxidação dos grupos prostéticos heme da oxihemoglobina (oxi-Hb) ou oximioglobina (oxi-Mb) também aumenta a produção de •O2- (Fe2+ + O2 → Fe3+ + •O2-) e a oxidação da metahemoglobina (metHb) ou metamioglobina (metMb) (R-Fe3+) por H2O2 leva a formação de um radical protéico, a ferrilmioglobina (•R―Fe4+=O2-), segundo a seguinte reação [35, 36]: R-Fe3+ + H2O2 → R•―Fe4+=O2- + H2O A metMb e a ferrilmioglobina são muito reativas. No entanto, o papel destes radicais protéicos durante exercício ainda não foi estudado em detalhe [35, 36]. Os metais de transição também podem reagir com peróxidos derivados de lipídeos (LOOH), gerando radicias peroxila (LOO•) ou alcoxila (LO•). Esses radicais também são bastante reativos e podem danificar biomoléculas importantes no organismo. Por isso, normalmente esses metais estão ligados a proteínas como ferritina e transferrina. Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C8 Durante jejum prolongado a oxidação de ácidos graxos está aumentada nos peroxissomos. As enzimas da β-oxidação dos peroxissomos não são iguais às enzimas mitocondriais responsáveis pela β-oxidação, e sua atividade implica na formação de H2O2 [37, 38]. Foi demonstrado que ocorre um aumento na atividade da catalase, antioxidante enzimático nos peroxissomos de músculo de ratos submetidos a jejum prolongado [38, 39]. Assim como no jejum, durante a realização de exercícios prolongados a oxidação de ácidos graxos está aumentada no músculo esquelético, sugerindo que a produção de H2O2 nos peroxissomos também deve estar aumentada nesta situação [38]. As cicloxigenases (COX) catalisam as etapas iniciais do metabolismo de ácido araquidônico a uma prostaglandina intermediária, que por diferentes reações é convertida a prostaglandinas e tromboxanas, responsáveis por desencadear diversas respostas inflamatórias. Neste processo as COX também produzem EROs. Foi demonstrado que a expressão das COX estaria aumentada em eventos como lesões e isquemia/reperfusão no músculo esquelético [40]. OUTROS RADICAIS LIVRES FORMADOS DURANTE O EXERCÍCIO O músculo esquelético também produz radical óxido nítrico (•NO), a partir do aminoácido arginina, numa reação catalisada pela enzima óxido nítrico sintase. O •NO possui funções de vasodilatador e neurotransmissor, e é sintetizado pelas células do endotélio vascular. A produção de •NO é aumentada durante o exercício de maneira dependente de Ca2+ [41]. Postula-se que o •NO regule a atividade de proteínas através da reação com grupamentos sulfidrila [41, 42]. É possível também que o •NO regule a produção de EROs por inibir as enzimas xantina oxidase e NADPH oxidase [42, 43]. No entanto, o •NO também pode interagir com •O2-, gerando peroxinitrito (ONOO-), um composto de alta reatividade, que pode causar danos nitrosativos e promover a oxidação de biomoléculas [41, 42]. CONSEQUÊNCIAS DO AUMENTO DA GERAÇÃO DAS DIVERSAS ESPÉCIES RADICALARES Um problema decorrente da reatividade dos radicais livres é que eles atacam alvos inespecíficos. Ou seja, podem oxidar lipídios, proteínas, ácidos nucléicos ou qualquer outra biomolécula presente nos locais onde são produzidos. Um outro ponto importante a ser considerado, é que as reações iniciadas pelas EROs ocorrem em cascata; o radical iniciador reage com um doador de elétrons (RH), gerando novas moléculas radicais livres (.R). Isso pode levar a um grande dano oxidativo, com perda de funções e até mesmo morte celular [1] Por outro lado, o fato dos radicais livres serem produzidos normalmente em condições fisiológicas levou à proposição de que as EROs também poderiam exercer funções na regulação de diferentes funções celulares. Uma das propostas é que as EROS modulariam o estado redox de proteínas transdutoras de sinal, influenciando a expressão gênica [20, 44]. As EROs podem ainda regular o transporte de glicose para dentro da célula, o fluxo sanguíneo, e até mesmo a função contrátil no músculo esquelético[20, 45]. CONCLUSÕES As mitocôndrias e a enzima xantina oxidase parecem ser as principais fontes produtoras de EROs no músculo esquelético durante e após o exercício físico, de uma forma proporcional ao aumento da atividade contrátil. A produção de EROs nas mitocôndrias do músculo esquelético pode não ser regulada somente pelo consumo de oxigênio ou fluxo aumentado de elétrons na cadeia de transporte de elétrons, mas sim pela pressão parcial de O2 nas mitocôndrias e pelo ΔpH entre a matriz mitocondrial e Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C9 espaço intermembranas. Exercícios intermitentes de alta intensidade ou realizados até a exaustão podem ter uma contribuição maior da xantina oxidase na produção de EROs, uma vez que resultam em maior degradação de nucleotídeos de adenina, e propiciam condições que favorecem uma maior conversão da enzima xantina desidrogenase à sua forma oxidase. Apesar de já terem sido identificados outros possíveis mecanismos de produção de EROs na musculatura esquelética, a contribuição de cada um deles ainda não está totalmente caracterizada. Futuros estudos devem elucidar a contribuição dessas fontes na produção de EROs em diferentes tipos de exercícios, e seu impacto nos processos adaptativos ou degenerativos induzidos na musculatura esquelética. REFERÊNCIAS [1] O. I. Aruoma, B. Halliwell (1998) Molecular biology of free radicals in human diseases, 1st ed, OICA International, London. [2] J. F. Turrens (2003) Mitochondrial formation of reactive oxygen species, J. Physiol. 552, 335-344. [3] A. Boveris, N. Oshino, B. Chance (1972) The cellular production of hydrogen peroxide, Biochem. J. 128, 617-630. [4] K. J. A. Davies, A. T. Quintanilha, G. A. Brooks, L. Packer (1982) Free radicals and tissue damage produced by exercise, Biochem. Biophys. Research. Comm. 107, 1198-1205. [5] M. B. Reid, K. E. Haack, K. M. Franchek, P. A. Valberg, L. Kobzik, M. S. West (1992) Reactive oxygen in skeletal muscle. I. Intracellular oxidant kinetics and fatigue in vitro, J. Appl. Physiol. 73, 1797-1804. [6] C. Leeuwenburgh, P. A. Hansen, J. O. Holloszy, J. W. Heinecke (1999) Hydroxyl radical generation during exercise increases mitochondrial protein oxidation and levels of urinary dityrosine, Free Radical. Biol. Med. 27, 186-192. [7] P. O. Astrand, K. Rodahl (1986) Textbook of work physiology: physiological bases of exercise, 3rd ed, Mcgraw Hill, New York. [8]C. K., Sen (1995) Oxidants and antioxidants in exercise, J. Appl. physiol 79, 675686. [9] V. Skulachev (1998) Uncoupling: new approaches to an old problem of bioenergetics, Biochim. Biophys. Acta 1363, 100–124, [10] D. M. Bailey, I. S. Young, J. McEneny, L. Lawrenson, J. Kim, J. Barden, R. S. Richardson (2004) Regulation of free radical outflow from an isolated muscle bed in exercising humans, Am. J. Physiol. Heart Circ. Physiol. 287, H1689–H1699. [11] D. M. Bailey (2000) What regulates exercise-induced reactive oxidant generation: mitochondrial O(2) flux or PO(2)? Med. Sci. Sports Exerc. 32, 1576-1581. [12] R. S. Richardson, E. A. Noyszewski, K. F. Kendrick, J. S. Leigh, P. D. Wagner (1995) Myoglobin O2 desaturation during exercise. Evidence of limited O2 transport, J. Clin. Invest. 96, 1916-1926. [13] A. P. Kudin, G. Debska-Vielhaber, W. S. Kunz (2005) Characterization of superoxide production sites in isolated rat brain and skeletal muscle mitochondria, Biomed. Pharmacoter. 59, 163-168. [14] A. J. Lambert, M. D. Brand (2004) Superoxide production by NADH: ubiquinone oxireductase (complex I) depends on the pH gradient across the mitochondrial inner membrane, Biochem. J. 382, 511-517. [15] S. Servais, K. Couturier, H. Koubi, J. L. Rouanet, D. Desplanches, M. H. SornayMayet, B. Sempore, J. M. Lavoie, R. Favier (2003) Effect of voluntary exercise on H2O2 release by subsarcolemmal and intermyofibrillar mitochondria, Free Radic. Biol. Med. 35, 24-32. [16] G. Supinski, (1998) Free radical induced respiratory muscle dysfunction, Mol. Cell Biochem. 179, 99-110. Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C10 [17] P. Jesina, D. Kholova, R. Bolehovska, Z. Cervinkova, Z. Drahota, J. Houstek (2004) Glycerophosphate-dependent hydrogen peroxide production by rat mitochondria, Physiol. Res. 53, 305-310. [18] U. F. Rasmussen, P. Krustrup, J. Bangsbo, H. N. Rasmussen (2001) The effect of high-intensity exhaustive exercise studied in isolated mitochondria from human skeletal muscle, Pflugers Arch. 443, 180-187. [19] L. Tretter, V. Adam-Vizi (2004) Generation of reactive oxygen species in the reaction catalyzed by alpha-ketoglutarate dehydrogenase, J. Neurosci. 2004 24, 7771-7718. [20] M. B. Reid (2001) Invited Review: redox modulation of skeletal muscle contraction: what we know and what we don't, J. Appl. Physiol. 90,724-731. [21] Y. Hellsten (1994) Xanthine dehydrogenase and purine metabolism in man with special reference to exercise, Acta Physiol. Scand. 151, S621, 1-73. [22] N. B. J. Vollaard, J. P. Shearman, C. E. Cooper (2005) Exercise-induced oxidative stress myths, realities and physiological relevance, Sports Med. 35, 1045-1062. [23] J.P., Idstrom, V.H. Subramanian, B. Chance, T. Schersten, A.C. Bylund-Fellenius (1985) Oxygen dependence of energy metabolism in contracting and recovering rat skeletal muscle, Am. J. Physiol. 248, H40-H48. [24] K.K. McCully, Natelson B. H. (1999) Impaired oxygen delivery to muscle in chronic fatigue syndrome, Clin. Sci. 97, 603-608. [25] Y. Hellsten, H. A. Hansson, L. Johnson, U. Frandsen, B. Sjodin (1996) Increased expression of xanthine oxidase and insulin-like growth factor I (IGF-I) immunoreactivity in skeletal muscle after strenuous exercise in humans, Acta Physiol. Scand. 157, 191-197. [26] Y. Hellsten, U. Frandsen, N. Orthenblad, B. Sjodin, E. A. Richter (1997) Xanthine oxidase in human skeletal muscle following eccentric exercise: a role in inflammation, J. Physiol. 498, 239-248. [27] J. Vina, M. C. Gómez-Cabrera, A. Lloret, R. Marquez, J. B. Minana, F. V. Pallardo , J. Sastre (2000) Free radicals in exhaustive physical exercise: mechanism of production, and protection by antioxidants, IUBMB Life 50, 271-277. [28] M. C. Gomez-Cabrera, C. Borras, F. V. Pallardo, J. Sastre, L. L. Ji, L. Vina (2005) Decreasing xanthine oxidase-mediated oxidative stress prevents useful cellular adaptations to exercise in rats, J. Physiol. 15, 113-20. [29] D. Javesghani, S. A. Magder, E. Barreiro, M. T. Quinn, S. N. Hussain (2002) Molecular characterization of a superoxide-generating NAD(P)H oxidase in the ventilatory muscles, Am. J. Respir. Crit. Care Med. 165, 412-418. [30] J. Bejma, L. L. Ji (1999) Aging and acute exercise enhance free radical generation in rat skeletal muscle, J. Appl. Physiol. 87, 465-470. [31] R. Xia, J. A. Webb, L. L. M. Gnall, K. Cutler, J. J. Abramson (2003) Skeletal muscle sarcoplasmatic reticulum contains a NADH-dependent oxidase that generates superoxide, Am. J. Physiol. Cell Physiol. 285, C215-C221. [32] J. K. Smith, M. B. Grisham, D. N. Granger, R. J. Korthuis (1989) Free radical defense mechanisms and neutrophil infiltartion in postischemic skeletal muscle, Am. J. Physiol. 256, H789-H793. [33] A. N. Belcastro, G. D. Arthur, T. A. Albisser, D. A. Raj (1996) Heart liver, and skeletal muscle myeloperoxidase activity during exercise, J. Appl. Physiol. 80, 1331-1335. [34] R. A. Fielding, T. J. Manfredi, W. Ding, M. A. Fiatarone, W. J. Evans, J. G. Cannon (1993) Acute phase response in exercise. III. Neutrophil an IL-1 beta accumulation in skeletal muscle, Am. J. Physiol. 265, R166-R172. [35] C. Giulivi, E. Cadena (1998). Heme protein radicals: formation, fate, and biological consequences. Free Rad. Biol. Med. 24: 269-279 Gandra,P.G. et al. No.02/2006 C11 [36] A. D. Svistunenko, R. P. Patel, S. V. Voloshehenko, M. T. Wilson (1997). The globin-based free radical of ferryl hemoglobin is detected in normal human blood. J. Biol. Chem. 272: 7114-7121. [37] C. Van den Branden, I. Kerckaert, F. Roels (1984) Peroxisomal beta-oxidation from endogenous substrates. Demonstration through H2O2 production in the unanaesthetized mouse, Biochem. J. 218, 697-702. [38] S. Yokota, K. Asayama (1990) Peroxisomes of the rat cardiac and soleus muscles increase after starvation. A biochemical and immunocytochemical study, Histochemistry 93, 287-293. [39] C. J. Lammi-Keefe, P. B. Swan, P. V. Hegarty (1984) Effect of level of dietary protein and total or partial starvation on catalase and superoxide dismuatase activity in cardiac and skeletal muscles in young rats, J. Nutr. 114, 2235-2240. [40] V. M. Dupouy, P, J. Ferre, E. Uro-Coste, H. P. Lefebvre (2006) Time course of COX-1 and COX-2 expression during ischemia-reperfusion in rat skeletal muscle, J. Appl. Physiol. 100, 233-239. [41] M. B. Reid (1998) Role of nitric oxide in skeletal muscle: synthesis, distribution and functional importance, Acta Physiol. Scand. 162, 401-409. [42] K. Ichimori, M. Fukahori, H. Nakazawa, K. Okamoto, T. Nishino (1999) Inhibition of xanthine oxidase and xanthine dehydrogenase by nitric oxide. Nitric oxide converts reduced xanthine-oxidizing enzymes into the desulfo-type inactive form, J. Biol. Chem. 274, 7763-7768. [43] H. Fujii, Y. Ichimori, K. Hoshiai, H. Nakazawa (1997) Nitric oxide inactivates NADPH oxidase in pig neutrophils by inhibiting its assembling process, J. Biol. Chem. 26, 32773-32778. [44] M.J., Jackson (1999) Free radicals in skin and muscle: damaging agents or signals for adaptation? Proc. Nutr. Soc. 58, 673-676. [45] T.W., Balon, K.K.V., Yerneni (2001) Redox regulation of skeletal muscle glucose transport, Med. Sci. Sports Exerc. 33,382-385. Edição semestral, publicada pela Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq), disponibilizada a todos os interessados no site http://www.sbbq.org.br/revista, com artigos e materiais didáticos, softwares e outros assuntos. Editores: Bayardo B. Torres, Eduardo Galembeck - Fone: (19) 3521-6138 Fax: (19) 3521-6129