Jornadas Pastorais do Episcopado
Transcrição
Jornadas Pastorais do Episcopado
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social JORNADAS PASTORAIS DO EPISCOPADO 2009 «A Igreja, agente de transformações sociais. Jesus e os incidentes de fronteira» P. Jacques Turck – Secretário da Comissão dos Assuntos Sociais da Conferência Episcopal Francesa I- INSCREVER O EVANGELHO NA HISTÓRIA DOS HOMENS A Igreja, desde o seu nascimento, está diante do desafio de uma inscrição histórica da mensagem do Evangelho na História dos homens. « A minha vida na condição humana vivo-a na fé no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim » Gal 2,21 1/ Superar uma dupla reticência A pertinência da Igreja em matéria social é contestada. Somos herdeiros duma longa tradição em que se juntam dois factores que rodeiam de suspeitas as intervenções da Igreja. No contexto francês, não é raro que se acuse a Igreja de se meter no que não lhe diz respeito. Até alguns cristãos, que nem sempre têm as mesmas opiniões políticas que os seus Pastores, nos pedem que nos limitemos às nossas sacristias. Tanto se ensinou aos cristãos que deviam viver o mais espiritualmente possível a sua vida humana que eles não entendem que se lhes peça que vivam o mais humanamente possível a sua vida espiritual! Estas censuras têm como fundamento a memória do mau proceder da Igreja… ontem como hoje. a- O poderio da Igreja no passado As nossas memórias estão marcadas pelo poder da Igreja em certos períodos da História. Infelizmente, a conversão do imperador Constantino (em 313?) mudou, quase de um dia para o outro, o modo de proceder dos cristãos. De perseguida, a Igreja passou a perseguidora. Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 1 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social A permanente tentação dos homens políticos cristãos será a de apressar a vinda duma organização política onde reinaria a justiça sob a autoridade do Evangelho. Não quero entrar numa reflexão sobre as “ reduções dos Jesuítas” na América Latina. Porque esse foi um belo ensaio para tentar viver segundo o Evangelho e com a perspectiva de um desenvolvimento e de uma justiça. Houve coisas bem mais graves! Conforme as épocas, conforme os países, os cristãos, de perseguidos que eram no tempo da expansão do cristianismo, tornam-se autoritários e perseguidores. Houve guerras fratricidas entre cristãos…etc. Sob pretexto de defender a honra de Deus, alguns de entre eles julgaramse autorizados a recorrer à força, de modo totalmente injustificado à luz do Evangelho. Felizmente há numerosos exemplos que mostram como, em todas as épocas, durante as guerras religiosas, durante as cruzadas, durante o período das grandes descobertas do novo mundo, sempre houve cristãos (leigos, padres ou bispos) próximos dos pobres, arriscando a sua vida pelo respeito e pela defesa daqueles a quem então chamavam «pagãos». Por exemplo, Bartolomeu de las Casas, etc. Dar testemunho do Evangelho conduz a um certo estilo de vida, de consumo, de modos de construir o mundo. O que não pode deixar de ter repercussões de ordem prática na sociedade. 2 b- A autonomia do temporal / lei de separação da Igreja e do Estado / laicidade Este conjunto de orientações e de leis, com origem na tradição francesa da revolução, sobressai na lei de 1905. Os cristãos herdam deste período uma mentalidade de vítimas do Estado e o medo de transgredir uma lei que instaurou um equilíbrio sempre frágil entre a Igreja e a política. A Igreja vela pela aplicação, com justiça e discernimento, da Lei de 1905, modificada e adaptada no decorrer dos decénios do século XX. Aqui, é do lado da Igreja que se encontram (muitas) reticências em se envolver em questões sociais e políticas. Conheço párocos que não querem que o peditório do CCFD (Comissão Contra a Fome e para o Desenvolvimento) se faça na sua igreja, só à porta… Mas a lei de 1905, que proibiu os padres e os Bispos de falarem de questões sociais, provocou, logo à partida, uma mobilização daqueles a quem vão chamar católicos sociais. Daí um empenhamento muito positivo dos leigos nas questões sociais, em nome da fé cristã… Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social No mesmo ano, Leão XIII escreveu uma carta aos católicos de França pedindo-lhes que se aliassem à República. É o reconhecimento pela Igreja da necessidade de uma distância relativamente às instâncias políticas. Será a confirmação duma liberdade dos leigos fiéis cristãos para falar e agir nas questões que tocam o homem. Hoje em dia, não se pode negar que a religião ocupa o espaço público, nem se pode relegá-la para o espaço privado. A memória desta história confusa deve ser tida em conta para compreender as reticências. Ela constitui também um apelo para fundamentar nas fontes da nossa tradição a legitimidade das intervenções da Igreja nas questões sociais. 2/ Jesus foi um protagonista de transformação social a- Carácter de acontecimento da Revelação Na leitura do Novo Testamento, nomeadamente dos Actos dos Apóstolos, percebe-se como o Senhor e os primeiros discípulos apreciam narrativas e histórias de todo o tipo. O discurso teológico e organizado só surge no final do século II. O primeiro testemunho dos discípulos é um testemunho existencial. Fala de «…o que ouvimos… vimos com os nossos olhos…, contemplámos, o que as nossas mãos tocaram, do Verbo da vida, nós vo-lo anunciamos» 1 Jo 1,1 - Fala do companheirismo dos homens em que se introduz o Cristo ressuscitado (Emaús), assim como o Espírito Santo (Act 5,3b; 6,3 ; Act 16,6). É na memória do que foi vivido com Ele no decurso da sua vida histórica que os discípulos bebem a novidade radical da sua maneira de viver Gal 2,10 (cuidar dos pobres). - A novidade é bem radical em relação a todas as filosofias e a todos os cultos mistéricos… para compreender Deus, basta compreender as coisas da terra. Releiamos João 3, na conversa com Nicodemos : «Como poderíeis compreender as coisas do céu, se não compreendeis as coisas da terra ?» v. 12. - A Igreja sempre considerou como parte integrante da missão que Cristo lhe confia afirmar o sentido da história humana e a sua dimensão comunitária. Que nos ensina o Evangelho sobre a maneira de ser de Jesus na sociedade em que vive ? Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 3 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social b- Jesus cria incidentes de fronteira Recordemos : Jesus fala com uma Samaritana, uma estrangeira de uma outra religião. Perdoa à mulher adúltera que devia ter sido lapidada. Cura num dia de Sábado, o que a lei não autoriza. Paga tanto ao trabalhador da 11ª hora como ao da 1ª. Faz-se convidado para casa de Zaqueu, conhecido por ser um ladrão corrupto. Acolhe o filho pródigo que delapidou a sua parte da herança… etc. Todas estas pessoas são os «desclassificados do judaísmo oficial». Trata-se de pessoas que a lei marginalizou; tanto pobres como ricos, tanto pecadores como crianças. Em cada uma das vezes, Jesus reintegra o pecador, o ladrão, o rico, o estrangeiro na sociedade civil e religiosa da sua época. Tem de se reconhecer que ele causa espanto e, mais ainda, provoca incidentes de fronteira. Para os fora-da-lei e para os pagãos, por quem os fariseus tinham aversão, é uma promessa, uma esperança, uma oportunidade. Para os outros, os defensores da lei judaica, é insuportável. A atitude de Jesus ameaça os fundamentos da sociedade. Jesus provoca, pois, incidentes de fronteira com a religião, com a força política do seu tempo, com a cultura da sociedade em que vive. A mais grave destas ameaças está nas suas críticas a respeito do Templo. É a honra de Deus que os defensores pensam defender, ao defenderem o Templo. Mas o Evangelho mostra que a caridade de Jesus para connosco o obriga a defender permanentemente a honra do homem, a sua dignidade. Claro que, se estas pessoas estão no coração das narrativas do Evangelho como aqueles sobre quem Jesus apoia o seu ensino e critica os escribas e os fariseus, é sempre porque, pela força primeira de Cristo, eles entraram num caminho de conversão. A opção preferencial pelos pobres passa pela conversão dos ricos. Os próprios ricos são chamados à salvação. O que, sem dúvida, provoca hoje em alguns certas incompreensões e um outro tipo de incidentes de fronteira. Na nossa sociedade ocidental, como anunciar o Evangelho àqueles que têm êxito? Como não pensar Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 4 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social que o Reino de Deus seria só uma consolação prometida àqueles que sofrem? Ou uma recompensa para aqueles que fazem o bem? Como não reduzir a santidade a um comportamento individual? Lumen Gentium n. 9: Agradou a Deus que os homens não recebam a santificação e a salvação separadamente… quis fazer deles um povo… Jesus propõe pois uma certa maneira de viver juntos. Isto diz respeito à Igreja como Corpo de Cristo1. Mas também aos povos do mundo. A Igreja interessa-se pela organização da vida social dos homens. Não é de estranhar que os cristãos também por ela se interessem. A actualização do Evangelho hoje não nos evita esses mesmos incidentes de fronteira. Mesmo se a finalidade primeira não é a provocação… Porque o objectivo de Jesus, como o nosso com o pensamento social, é de propor-nos uma maneira de viver em conjunto, sob o olhar de Deus. Ela dá-nos a conhecer uma misericórdia incondicional da parte do Pai. O que tem consequências nas nossas relações sociais com os pecadores, os malfeitores, os doentes, os excluídos. É o estatuto do castigo e do pecado face ao perdão, é o estatuto dos territórios de cada povo face ao destino universal dos bens, é o estatuto do dinheiro face ao bem que ele pode fazer para aproximar os corações, etc… Como harmonizar esta necessária atenção às realidades humanas e a visão escatológica da existência humana? 5 3/ Os primeiros cristãos, protagonistas de transformações sociais Logo desde os primeiros capítulos dos Actos dos Apóstolos, vemos os cristãos a organizarem-se para responder a questões sociais e económicas. Na tradição da primeira comunidade descobrimos uma grande atenção da parte dos primeiros cristãos para com a situação dos pobres… Actos 2,42-46 registam traços essenciais da vida da comunidade e a ligação estreita que é preciso manter entre o ensino dos Apóstolos, escutado com assiduidade, a oração no Templo e em casa para o partir do pão e a capacidade de pôr em comum os bens, conforme as necessidades de cada um. Isto supõe uma muito grande observação da realidade. Trata-se de medir o que falta a cada um ;não é o mesmo para todos. Não há uma espécie de ideologia igualitária. É a equidade que está em jogo. Eis um primeiro princípio que será retomado pelo pensamento social. E esta observação deverá ser o mais rigorosa possível. Ela irá 1 Pertence ao « munus docendi » dos bispos ensinar que, segundo o desígnio de Deus Criador,as próprias realidades terrestres e as instituições humanas estão igualmente ordenadas para salvação dos homens e que, por consequência, elas podem contribuir, de maneira significativa, para a edificação do Corpo de Cristo. Vaticano II Christus Dominus n°12. Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social até dar a palavra aos pobres para que digam eles próprios o que lhes é necessário. É o princípio que põe em destaque a dimensão política antes da dimensão económica. (Cf. as Bem-aventuranças.) Actos 5,1-10 Encontramo-lo, para lá das questões financeiras, na narrativa que nos apresenta Ananias e Safira. Aí se verifica que a partilha deve ser feita em total liberdade. Ninguém é obrigado a fazê-lo, sobretudo se se verificar que a partilha acarretaria uma situação de precaridade ou de angústia. Mas o importante é não mentir à comunidade, ser transparente a respeito do dinheiro… porque mentir à comunidade é mentir ao Espírito Santo que, à partida, tinha inspirado este casal para a generosidade. A cada um segundo as suas necessidades aplica-se à gestão dos bens de cada um, com a condição de se agir com toda a clareza… Ora, Ananias et Safira mentiram. Fizeram crer que traziam o dinheiro todo. E por esta mentira ao Espírito Santo… morreram… Actos 6,1 Tudo isto supõe que se organiza o encargo do necessário para os mais carenciados. O que não pode ser deixado à iniciativa da boa vontade ou da emoção que habita o coração de cada um. Por isso a Igreja primitiva organiza, de maneira rigorosa, a responsabilidade pela caridade. Sete homens são encarregados do serviço das mesas, tendo por primeira missão não esquecer as viúvas helenistas, mais pobres que as outras. Dá-se uma missão particular a pessoas que têm a seu cargo estas realidades económicas. Gal 2,10 S. Paulo será o primeiro a compreender a liberdade de iniciativa e, ao mesmo tempo, a atenção necessária e primeira aos mais pobres. Ele vai reclamá-las, a uma e a outra, catorze anos depois da sua conversão, quando sobe a Jerusalém para se explicar sobre a sua vontade de abrir o Evangelho aos pagãos. Pede então à comunidade dos Apóstolos que não obriguem os pagãos a tornarem-se judeus pela circuncisão para abraçarem a fé cristã. Tiago, Cefas e João concordam, com uma única recomendação que Paulo indica na carta aos Gálatas: «Simplesmente, teríamos de nos lembrarmos dos pobres, o que eu tive o cuidado de fazer». A opção preferencial pelos pobres é uma referência essencial para todas as comunidades dos discípulos de Jesus. Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 6 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social Compreende-se que todas estas práticas novas terão uma incidência, não só na vida da comunidade cristã, mas uma incidência na sociedade económica à sua volta. Mesmo que não queiramos exagerar a sua importância nos primeiros tempos, estes relatos servem de referência e de fonte primeira a toda a reflexão ética da Igreja e é conveniente confrontar com eles os acontecimentos vividos pelos homens e mulheres do nosso tempo. Este confronto permanente é a matriz donde surgirão os grandes princípios que inspiram o pensamento social e a palavra da Igreja. 4/ Outras referências para o agir, tiradas do Evangelho a- Que temos então de fazer? Lc 3. A resposta de João Baptista abre para duas direcções: Primeira direcção: o princípio da redistribuição. Vês o pobre, ali à tua porta? Se tens duas túnicas... partilha Lc 3,11 Se tens de comer... partilha. - Este princípio dirige-se à todos conforme os seus meios e conforme a observação que eu faço da situação do outro, considerando a minha. A riqueza em questão a propósito da túnica e do pão é aqui bastante relativa. As pessoas muito ricas tinham, com certeza, mais de duas túnicas. Isto mostra que, no cristianismo primitivo, o convite à partilha se dirigia a todos, e não só aos muito ricos. - Há pois aqui uma margem de manobra, uma decisão livre, voluntária, pessoal, que só diz respeito à minha consciência, à minha generosidade. - Outros textos do Novo Testamento vêm esclarecer a consciência de cada um: Paulo escreve aos Efésios 4,28: "trabalhai para terdes de que partilhar com aquele que tem necessidades!" (Finalidade do trabalho posta em evidência. Apelo a não renunciar a que se dê o que ainda não se tem: por isso, há que trabalhar indo até à privação voluntária). - Estamos já na ordem da redistribuição que não se limita ao socorro imediato aos mais carenciados para oferecer bens de primeira necessidade. Ela ‘expõe’ a minha liberdade, a minha generosidade modulada pelo realismo recordado por S. Paulo. Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 7 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social Segunda direcção: a caridade tem uma dimensão institucional - No v.12 "Alguns cobradores de impostos vieram também para serem baptizados… " a mesma pergunta : Que temos então de fazer? "Se cobras o imposto… não exijas nada mais que a taxa fixada! Entendo : fixada por um outro…fixada por um direito que vem de fora "Se és militar..., não aproveites para maltratar ou para te servires das armas extorquindo dinheiro que aumentaria o teu soldo! Lc 3,13-14 Entendo : um poder recebido de fora Aqui, os publicanos e os militares estão investidos dum cargo, dum serviço público. Estão investidos duma autoridade que não lhes pertence. Têm contas a prestar. - Esta segunda direcção tem por referência maior a pertença a um corpo: o dos cobradores de impostos, o dos soldados. Ela sublinha o carácter institucional da missão recebida nesse quadro. Ela obriga-nos a dar contas do que nos foi confiado pelos outros, de maneira contractual, com vista ao bem comum. Os cristãos empenharam-se nestas duas direcções, ao longo de toda a história. Gálatas 2,10. Paulo faz memória da exigência que então lhe foi feita e que ele recorda. «Simplesmente, teríamos de nos lembrarmos dos pobres, o que eu tive o cuidado de fazer.» A Igreja não esqueceu nunca esta recomendação. b- Como compreender esta atenção aos pobres segundo o Evangelho? Mt 5,3 Quando exortamos os cristãos a agir junto dos pobres, que pretendemos nós? Quando lemos a primeira bem-aventurança, não lemos: «felizes os pobres, porque serão ricos!» Está escrito: «felizes os pobres, porque deles é o reino de Deus». Na linguagem bíblica, a pobreza é mais que a pobreza económica. É não ter poder político. A pobreza não se define unicamente, nem talvez primeiro que tudo, por uma relação com a economia. Mas sim por uma relação com o poder : um reino é uma entidade política. Ser pobre, é ser alienado do direito fundamental de decidir por mim mesmo daquilo que me pertence (Lc 15,31); dar ao pobre o domínio do seu futuro : o direito de Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 8 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social decidir da sua vida, do seu presente e do seu futuro. È próprio do filho ou da filha do Rei. (Tudo o que é meu é teu). Esta primeira bem-aventurança lembra que temos razões para nos inquietarmos com aqueles que foram reduzidos à incapacidade política sobre a sua existência. A acção a desenvolver com os pobres : permitir-lhes que se tornem artífices do seu próprio destino. Se não compreendemos bem a primeira bem-aventurança, fazemos o jogo da emancipação económica em relação ao político. O "eu consumo" porque tenho os meios; o "eu consumo, logo eu sou" ; ou o «eu sou rico, logo eu sou». Faz-se então o jogo das correntes actuais em que a globalização está submetida à economia, aos mercados. A primeira bem-aventurança reintegra a dimensão política no projecto de autonomia de toda a pessoa humana. II – A IGREJA HOJE, PROTAGONISTA DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS «A minha vida na condição humana vivo-a na fé no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim» Gal 2,21 Hoje, a globalização é a nossa condição de existência. É no coração desta condição humana e no coração dos acontecimentos que a marcam que a Igreja é chamada a inscrever o Evangelho. Se a Revelação se inscreve numa série de acontecimentos ao longo da História, importa hoje descortinar, neste fenómeno da globalização, os lugares em que será possível manifestar a aliança dos homens com Deus. A globalização constitui o acontecimento maior que marca a nossa humanidade neste início do III milénio. Ela transforma tudo… a tal ponto que, sem dúvida, entrámos numa nova civilização. Este acontecimento maior deve ser, em nome do Evangelho, o nosso mestre interior, como escrevia Emmanuel Mounier. A Igreja implica-se nestas realidades, «a partir de dentro», como escrevia Paulo VI na Evangelii nuntiandi. Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 9 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social a- Calcular o alcance do fenómeno da globalização DIAPORAMA - Foi a Igreja a primeira que, desde 1967, na pessoa do Papa Paulo VI, compreendeu as suas implicações e convidou os cristãos a ter em conta esta realidade. Na encíclica Populorum progressio, há mais de 40 anos, ele escrevia: «a questão social tornou-se mundial»… . - Em 1982, João Paulo II escrevia, por sua vez : «O pensamento social da Igreja (é) uma reflexão atenta sobre as realidades complexas da existência do homem na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da tradição eclesial» João Paulo II (SRS n. 41) Qualquer que seja o conceito utilizado, mundial, global, internacional, estamos perante uma grande mistura que João Paulo II não hesita em designar como complexa… Gosto de dizer que a sua originalidade está numa nova relação com o tempo e com o espaço. Esta globalização caracteriza-se pela abertura das fronteiras, a livre circulação dos bens e das pessoas, os progressos dos modernos meios de comunicação, a livre circulação dos fluxos financeiros que, pela Internet, encurtam o planeta e uniformizam a economia de mercado e as culturas, a transformação da paisagem do emprego, a extensão geográfica das empresas nos países menos evoluídos : já há só um mercado mundial que favorece a entrada em cena de países emergentes do Sul (Brasil, Rússia, Índia, China). Verifica-se o desaparecimento de um «Terceiro Mundo» (Este-Oeste-Sul), já que há ricos e pobres no Norte como no Sul, a Este como a Oeste. A mistura dos povos pelas viagens dos empresários e comerciantes, pelos jovens que estudam em universidades de numerosos países da Europa, da América ou da Ásia. A queda do muro de Berlim aparece como um ponto luminoso que estigmatiza esta globalização. b- Tornámo-nos cidadãos do mundo - A globalização suscita uma nova relação com o tempo e com o espaço. Ela acontece sob o efeito duma abertura dos espaços e por uma aceleração para ligar um ponto a outro do globo, deixando entrever, um e outro fenómeno, a possibilidade duma mudança radical de civilização. Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 10 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social Mudanças não apenas geográficas, concêntricas e a maior parte das vezes não escolhidas: europeu, francês, parisiense, mas também membros de comunidades electivas : católico romano ou protestante ou pertencente a um clube desportivo, a um sindicato, etc. … Pode estar ligado pelos filhos que vivem num país que não é o seu, os Estados Unidos, o Congo … É próprio do homem ter consciência desta relação com o tempo e com o espaço. Ele gere essa relação. Ele define e transgride os seus limites (territórios), o dos ritmos (repouso, trabalho, estação…etc). As fronteiras caíram. Tornámo-nos cidadãos do mundo, cidadão da noite, cidadão do fundo dos oceanos, cidadão da lua… e, dentro em pouco, de Marte… - Submetidos às mesmas leis : um torcionário da Bósnia ou um ditador habitante do Chile podem ser extraditados e julgados em Haia por um tribunal internacional. Um pedófilo pode ser preso no seu país por actos cometidos fora dele. Um direito internacional rege os crimes cometidos voluntariamente por homens e mulheres, fora das fronteiras do seu país. Assim, um país já não pode, por si só, (nem que fosse o maior e o mais forte dos países) gerir o que se produz à escala mundial. O Estado nação está a transformar-se. Todos os Estados estão obrigados pelo direito internacional que proíbe o trabalho infantil, a escravatura, a tortura…. Mas também por empresas multinacionais que ultrapassam pelo seu poder financeiro, pela rapidez das suas decisões, o que diz respeito a uma unidade de trabalho numa região do seu país. Em múltiplos domínios observamos, sofremos e agimos em fenómenos que passam as fronteiras. Isto diz respeito a todo o planeta Terra. Sem nenhum santuário reservado e protegido. c- Interdependência e solidariedade Esta globalização manifesta une interdependência geral entre os povos, os países, as condições de existência humana, animal e os elementos geofísicos. Descobrimos que o universal não diz respeito só ao que é verdadeiro, ao que é bom, mas também às realidades temporais, ao bom uso das coisas (dos bens). A Igreja tem por missão inscrever o Evangelho nesta realidade social globalizada. Trata-se de pôr em relação a nossa condição de existência ‘internacional’ com a fé e a Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 11 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social tradição cristã que nos legaram uma mensagem «católica» (universal). Seria uma oportunidade ou um perigo? Por mais de uma razão, há uma oportunidade para a fé cristã que se caracteriza pela universalidade da sua mensagem. En 1991, João Paulo II descrevia o carácter positivo da globalização : «Hoje está em vigor a chamada «globalização da economia», fenómeno que não deve ser criticado porque pode criar ocasiões extraordinárias de se ser melhor. Mas sente-se sempre a necessidade de que, a esta internacionalização crescente da economia corresponda a existência de bons organismos internacionais de controlo e de orientação, para guiar a própria economia para o bem comum, o que nenhum Estado, mesmo que fosse o mais poderoso da terra, é capaz de fazer.» – por si só! Centesimus annus n.58 Esta interdependência generalizada obriga-nos a modificar profundamente a nossa concepção de solidariedade. A solidariedade não se limita já a uma opção reservada a algumas almas generosas. Ela é um facto contra o qual não se pode lutar. A globalização põe-nos diante do facto consumado de uma escolha que não está por fazer. Estamos embarcados numa solidariedade de facto… estamos solidarizados, ligados uns aos outros de maneira inevitável ! Já o sabíamos, o homem só existe em relação com o outro. É permanentemente levado a sair de si mesmo para participar na vida dos outros. Trata-se, de certo modo, duma unidade substancial que é constitutiva da família humana. Esta identidade colectiva é a primeira fonte duma fraternidade mundial. Ela abre a cidadania a esta dimensão. A sociedade à nossa volta descobre o que a Igreja sabe há muito tempo acerca da nossa condição de existência. Mas o Evangelho acrescenta uma radicalidade bebida na revelação que se define por uma exigência de reconhecimento da dignidade de todo o ser humano, pobre ou rico, com saúde ou doente, branco ou de cor. Isto tem que ver com a justiça, mas também com a caridade. E esta maneira de ser faz dos cristãos protagonistas de transformações sociais. Eles fazem que a caridade habite no coração da justiça. - Tomemos o exemplo dos migrantes que se amontoam às portas da Europa e, para nós, em Calais. Houve cristãos que se arriscaram a ajudá-los apesar das leis. Alguns Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 12 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social foram presos. O governo tentou pôr termo a esta solidariedade espontânea. Até decretou que era delito ajudar un indocumentado. Criaram-se círculos de silêncio. Os bispos da comissão publicaram um comunicado. Isto tem um impacto real na sociedade. Os cristãos são protagonistas… e criam incidentes de fronteira! Tudo nos põe frente a um desafio, o desafio da complexidade. Porque, por ser protagonista de transformações sociais, a Igreja não está menos obrigada a ficar sob reserva face a ambições políticas que poderiam ser a sua como instituição. Bento XVI recorda-no-lo : « A Igreja não pode, nem deve, tomar em mão a batalha política para edificar uma sociedade o mais justa possível; ela não pode, nem deve, tomar o lugar do Estado. Mas também não pode, nem deve, ficar de parte na luta pela justiça. Deve inserir-se nela pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a justiça, que exige também renúncia, não pode afirmar-se, nem desenvolver-se. A sociedade justa não pode ser obra da Igreja, deve ser realizada pela política. No entanto, o empenho pela justiça, trabalhando pela abertura da inteligência e da vontade às exigências do bem, interessa profundamente à Igreja. » Bento XVI – Encíclica Deus é amor - § 28 2) Agir, para lá das ideologias do melhor dos mundos a- Porquê agir, se só conta a vida espiritual ? Viver o mais humanamente possível a nossa vida espiritual. Isto supõe que se releia o que Jesus dizia a Nicodemos : João 3, Se não acreditais quando vos digo as coisas da terra, como acreditaríeis se vos dissesse as coisas do céu ? No entanto, a acção desenvolvida pela Igreja não tem como fonte, diz Bento XVI, a ideia de um melhoramento do mundo (Deus Caritas Est § 33). Pensamos talvez que é a isso que o agir cristão deve conduzir. Pensamos que isso vai realizar-se pela instauração da justiça. Concebemos demasiadas vezes a justiça como uma justiça igualitária. Tratar-se-ia de desejar e de possuir o que o outro possui. Toda a economia de mercado está baseada neste mimetismo. Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 13 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social Mimetismo? O princípio do consumismo que acompanha a produção dos bens leva cada um a comparar-se, a «dar vontade de», a «rivalizar». São estes os princípios de base que guiam a produção dos bens e o comércio. Estes bens propostos têm em si mesmos os critérios de necessidade a valorizar. Chega-se a definir as diversas normas de fabrico e de consumo dos produtos em função dos hábitos de viver e de pensar das pessoas que têm possibilidade de adquirir tudo o que lhes apetece. É a padronização de um modo de vida que determina a importância de cada um e que suscita a fuga para a frente de todos aqueles que podem ou se esforçam por adoptá-lo. O que motiva as decisões e as escolhas dos empresários nunca é, provavelmente, assim tão claro. Mas já é tempo de o verificar. É aqui que a Igreja pode intervir junto dos empresários e dirigentes da indústria. Que serviços essenciais à aventura humana presta hoje a minha empresa ou o meu trabalho ? Na nossa sociedade importa fazer escolhas entre a urgência e o inútil. O que serve o bem comum ? O que responde a uma necessidade para a vida ? - Assim o trabalho e o mercado devem ser dominados não por uma perspectiva primeiro financeira, mas por uma perspectiva que visa o bem da pessoa no seu conjunto (pessoal, comunitário, ambiental). O trabalho já não pode, pois, organizar-se unicamente á volta da produção e do mercado. O trabalhador é, antes de mais, alguém que cria uma relação social ; não há nenhum trabalho que não dependa do trabalho de outro, toda a produção tem um projecto de benefício social. Assim, os esforços do desenvolvimento humano estão primeiro e visam a pessoa numa sociedade (de conjunto). É fundado sobre a qualidade das relações sociais que o meu trabalho há-de favorecer. A crise de hoje é uma crise do sentido dla produção de bens, muitas vezes inúteis, por vezes úteis e ambivalentes devido ao risco ecológico sobre o ambiente e, portanto, sobre o futuro do planeta e da humanidade, por vezes destruidores (cigarros…). Também aqui a Igreja pode falar, oferecer pontos de referência para a acção : Por isso os Bispos de França intervieram de diferentes maneiras: - a propósito dos salários elevados e dos “golden parachutes” Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 14 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social - a propósito da economia financiarizada e da disjunção entre finanças e economia - estabelecendo uma ligação: Notre-Dame de Pentecôte – La Défense b- Fidelidade do Magistério ao Evangelho O magistério fundamenta o seu ensino no Evangelho. - A Carta a Diogneto: os cristãos estão no mundo como a alma no corpo. - Gaudium et spes : a Igreja reúne a alegria e a esperança dos homens. - Evangelli Nuntiandi : os cristãos são convidados a caminhar do interior das realidades para os outros. - Redemptor hominis : a estrada que a Igreja deve percorrer é a estrada dos homens. - Christi fideles laici… 1- Vaticano II : Ad gentes § 12 os discípulos de Cristo… não procuram o progresso e a prosperidade puramente materiais dos homens… eles abrem um caminho mais perfeito para Deus2. 2- João Paulo II escreve: «O desenvolvimento do homem não deve ser compreendido duma maneira exclusivamente económica, mas num sentido integralmente humano. Não se trata só de elevar todos os povos ao nível de que gozam hoje os países mais ricos, mas de construir, por um trabalho solidário, uma vida mais digna, de fazer crescer realmente a dignidade e a criatividade de cada pessoa, a sua capacidade de responder à sua vocação e, portanto, ao chamamento de Deus.» CA n° 29 3- DCE: Bento XVI escreve: os programas fundados sobre a ideia de justiça… sofrem na prática deformações… muitas forças negativas como o rancor, o ódio, e até… o desejo de diminuir o adversário, de limitar a sua liberdade, de lhe impor uma dependência, passa a ser o motivo fundamental da acção... E tudo em nome duma pretendida justiça… a justiça não se basta a si mesma! DCE § 12 4- Na atitude de Jesus - Hino aos Filipenses. Deus em Jesus revela quanto ele domina o seu domínio: expressão de Paulo VI à FAO. O Filho de Deus, Jesus Cristo, aquando da sua passagem na história, não resolveu todos os sofrimentos da sua época, nem curou todos os doentes, nem mesmo alimentou todas as multidões que, ao tempo, tinham fome. Jesus impôs limites à sua acção para com os pobres. Exactamente da mesma maneira a respeito da Criação que ele confia ao homem e não termina. 2 b ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos…,se me faltasse o amor, de nada me valia. 1 Cor 13,3 . Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 15 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social Se os cristãos são protagonistas de transformações sociais, eles devem compreender o mistério do desapego a todo o poder da eficácia que habita Jesus e o Evangelho. Neste desapego a todo o poder da eficácia... que conduzirá Jesus até à morte na cruz, (Lc 5,18 cf o paralítico). Sabemo-lo bem, é a porta aberta a todas as críticas que ouvimos tantas vezes : «se houvesse um Deus bom, ele não permitiria isto». c- Purificação da razão Quando lemos que a prosperidade puramente material é considerada estéril, sentimo-nos talvez contrariados. Para nos ajudar a compreender esta maneira de agir, Bento XVI faz apelo a uma imensa «purificação da razão». Uma imensa « purificação da razão » DCE §28a & 29a)... Para poder agir de maneira certa, a razão deve ser constantemente purificada, porque a sua cegueira ética, decorrente da tentação do interesse e do poder que ofusca, é um perigo que nunca se pode eliminar totalmente. DCE § 28 a A expressão «purificação da razão» é utilizada por várias vezes na encíclica3. Ela aparece como uma chave de leitura para melhor assumir as tensões, até mesmo as oposições, que surgirão quando quisermos fazer valer que a fecundidade do amor deve tomar a dianteira à eficácia da acção. - Para realizar esta « purificação da razão », importa deixar uma visão exponencial e mecanicista do progresso. Um progresso considerado como um crescimento, um estar melhor definido por uma acumulação material. - Trata-se também de compreender que, sendo a caridade da Igreja que temos o encargo de pôr em prática sempre mais que uma simples actividade, a nossa acção não se reduz a ser uma assistência social (DCE § 31/b) ou uma justiça entendida de maneira igualitária. Em Roma, uma jovem religiosa expunha esta ideia, aquando do congresso de Cor Unum, no decorrer do qual Bento XVI apresentou a sua encíclica4 : Quando o secundário falta, o essencial assume maior importância. Deixei-me penetrar por esta observação que 3 DCE § 28 a et § 29 4 Em Janeiro 2006 Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 16 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social aparece como uma água-forte difícil de digerir. Mas que, sem dúvida, mostra que o amor é um fogo vital. O essencial, na nossa sociedade, está de tal modo estigmatizado nos bens de primeira necessidade : a água, o pão, o tecto, o trabalho… « Mesmo que não me dê nada, fale comigo e já é alguma coisa, dizia um pobre no metro ». Quem era ele, eu não sei, mas havia naquelas palavras uma busca de humanidade a que qualquer um podia responder (rico ou não). Esta caridade é o rosto humano da fé. Ela há-de ir sempre de encontro a incompreensões que invocam uma purificação da razão, isto é, um melhor entendimento da relação entre a justiça e a caridade. d- Relação entre justiça e caridade DCE N° 26 ou a purificação da razão DCE n° 28 / a & n° 29 /a A caridade de Deus que a Igreja nos confia, não se resume a ser uma organização comum de assistência (DCE§ 31). Tal como tinha feito antes dele o Papa Pio XI, ele( ?) sublinha que para nós, cristãos, a instauração da justiça, por perfeita que seja, não é suficiente. Pio XI, na encíclica Quadragesimmo anno explicitou isso5. Seremos então sinal da presença de Deus, isto é, do Amor, pois esse é, no coração do nosso combate, o nome para a justiça. Trata-se duma justiça «informada» pela caridade de Deus, habitada pela sua misteriosa presença. É essa que está a nosso cargo. Os bens que é legítimo obter são sempre em função das necessidades de cada um. O princípio do bem comum submete a propriedade privada ao bem comum. Só uma consciência que vive a dimensão comunitária da existência nos permite compreendê-lo e aceitá-lo. - Estamos muito longe de ter despertado a totalidade dos cristãos para esta dimensão comunitária. A educação dos jovens, em França é baseada no mérito e não no serviço. No acordar para a profissão que um jovem poderá exercer, a reflexão dos pais é: deves frequentar a melhor escola, deves ser o primeiro, ganhar aquele concurso… e não: quais são as tuas qualidades, quais são aquelas que gostarias de pôr ao serviço dos outros ? 5 Encíclica QA § 148 "é preciso contar, antes de mais, com a lei da caridade que é o laço da perfeição. Muito se enganam os reformadores imprudentes que, satisfeitos por fazerem observar a justiça comutativa, repelem com arrogância o concurso da caridade.É certo que o exercício da caridade não pode ser considerado como ocupando o lugar dos deveres de justiça que podiam não ser cumpridos. Mas, mesmo que cada um aqui em baixo tivesse obtido tudo aquilo a que tem direito, ficaria ainda Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 17 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social III- EXEMPLOS DE PALAVRAS E DE ACÇÕES DA IGREJA EM FRANÇA O Pensamento Social da Igreja (PSE) desenvolve-se e elabora-se ajustando-se ao correr do tempo, conforme os lugares onde ela actualizará os princípios fundamentais que deu a conhecer e que servem de referência à conduta dos homens. Esta dinâmica obriga-nos a tomar consciência de que nós não somos repetidores de princípios antigos. Nós elaboramo-los e assim determinamos as modalidades de acção da Igreja e dos cristãos. A propósito - do ambiente e do aquecimento climático, uma antena: «Ambiente e modos de vida» com cientistas e várias campanhas desenvolvidas «Viver o Natal de outra maneira»… «Viver o verão de outra maneira » : folheto A criação face ao ambiente. Encontro com Jean Louis Borloo (ministro do Estado e da ecologia). - questões médicas e biomédicas : tema para um diálogo : A Igreja contribui para o debate com vista à nova lei sobre a bioética. - as questões genéticas : Grupo « Recherche ». O domínio do ser vivo – Debate público sobre a criação da nanotecnologia capaz de modificar o comportamento fisiológico. - as migrações : Dossier Quando o estrangeiro bate às nossas portas (2004) Visitas do ministro, declaração sobre o « delito da solidariedade » empenho pelo CCFD no codesenvolvimento. - a ciência e as técnicas : Departamento « Recherche ». Encontro dos bispos com investigadores sobre as « neuro-ciências », sobre a astrofísica; com filósofos e teólogos sobre o Créationnisme. aberto à caridade um campo bem mais vasto. A justiça por si só, mesmo escrupulosamente praticada, pode Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] fazer 18 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social - as finanças e a economia : Orientação numa economia mundializada 2005, Face múltipla da crise financeira O G 20 - Uma Casa da Igreja Notre Dame de Pentecôte / La Défense Conclusões Referências para uma palavra Referências para elaborar um pensamento social - No plano mundial A Igreja, pela carta de Bento XVI ao Primeiro Ministro Gordon Brown, entrou no debate no momento do G 20 e esperamos a encíclica. - Numa diocese ? Palavras dos bispos duma diocese face a uma situação de conflito Mgr James : Continental - Mgr Giraud 1 de Maio - Mgr Aillet, Bayonne 1- A legislação relativa aos licenciamentos é estricta - Pode-se velar pela aplicação do direito do trabalho e do direito social. Pedir que a lei seja aplicada. Não é o caso senão de 10 à 20 % dos assalariados (Alternativas económicas) Há cristãos que pertencem a conselhos económico-sociais. Se numa diocese houver laços habituais com essas pessoas, não me parece que isso possa infringir a laicidade. 2- Fazer apelo à confiança não é suficiente. Primeiro porque, se é certo que ela é uma virtude maior entre pessoas honestas e que ela está na base de toda a troca comercial, a confiança pode ser perigosa. A crise começou e piorou devido a um abuso de confiança. Em matéria económica é preciso que o controlo seja sempre assegurado. (cf peditório) desaparecer as causas dos conflitos sociais ; mas não consegue, pela sua virtude, aproximar os corações… Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 19 CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social Contribuir para devolver a calma é inventar novos modos de recurso ao crédito racional e moderado (micro-crédito). 3-Mobilizar cristãos para a urgência - Segundo Lc 3 / apelo a cada um, segundo a sua margem de manobra. Bento XVI, na sua carta a Gordon Brown, faz apelo à ética dos protagonistas. E aqui somos, todos nós, protagonistas potenciais ou já activos de transformações sociais. - Não abandonámos demasiado depressa os lugares de Revisão de vida que a acção católica propunha ? Os corpos intermediários na Igreja (o apostolado dos leigos?), onde cada cristão podia reflectir sem concessões com os seus pares, desapareceram muitas vezes em proveito de conferências e de grandes debates. Na nossa Igreja, o risco é o de ficarmos a ouvir, da parte desses chefes de empresa ou protagonistas económicos e políticos, uma análise comparativa e histórica dos diversos sistemas, sem que nada de pessoal seja posto em causa. 20 Nos movimentos apostólicos ou corpos intermediários cria-se uma opinião pública cristã e comunicam-se ideias de inovações para o bem comum, Nestes lugares de síntese pode questionar-se a oportunidade da produção de tal ou tal bem de consumo. Que serviços essenciais à aventura humana de hoje é que a minha empresa ou o meu trabalho prestam? Pode-se olhar e questionar do interior de cada lar a nossa prática relativamente à poupança e ao crédito… à acumulação das riquezas ou à distribuição. cf. carta dos bispos americanos, como tipo de texto. Isto supõe que reconsideremos o nosso desejo de convidar a novos modos de vida. Não se trata de novos modos de vida, mas sim de novas maneiras de a Igreja falar. (Inscrever e não prescrever, dizia a Carta aos católicos de França). Isto supõe que se incitem os cristãos a inscreverem-se na dinâmica da história, cada um com a sua margem de manobra. Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA Comissão Episcopal da Pastoral Social Secretariado Nacional da Pastoral Social Donde a proposta do partenariado com o jornal La Croix sobre o que já se faz : Partenariado posto em prática com o jornal La Croix : ‘ Contra a crise’ Aqui vamos além da geopolítica (ver ficha verde sobre o G 20) Trata-se de passar da análise dos crimes (prejuízos) da não-regulação dos mercados a uma reflexão sobre as iniciativas possíveis 1- em relação aos outros e em particular aos mais necessitados. 2- em relação às nossas próprias responsabilidades institucionais. Para concluir sobre este ponto, direi que o apelo à ética dos protagonistas sublinha o facto de que não pode haver responsabilidade colectiva sem responsabilidade individual. Este princípio, que não está inscrito como tal no conjunto dos princípios do pensamento social, é, no entanto, un princípio de Evangelho no contexto actual. 4-Favorecer uma expressão colegial A PSE é colegial porque é eclesial e, só depois, moral. Cf Vatican II Christus Dominus n°12. A PSE edifica o Corpo de Cristo. Esta précision indica que a PSE tem esse objectivo eclesial que requer uma expressão colegial. É esta perspectiva dinâmica que lhe permitirá não ser moralizante, no mau sentido do termo. E, sobretudo, que mobilizará os cristãos, preservando-os da ideologia do melhor dos mundos. Estas características situam a PSE da Igreja mais do lado da eclesiologia que do da teologia moral. Há, antes de mais, a questão da Igreja ‘corpo de Cristo’ e da sua missão de evangelização no meio das realidades terrestres… e conforme os momentos desta história, conforme os acontecimentos desta história. 5-Falar a montante das crises Para aí chegar, importa criar, numa província apostólica ou numa diocese, um observatório das questões sociais, políticas et económicas. Que empenhe uma Igreja particular na investigação das correntes da sociedade, das inovações técnicas,… O que supõe dar lugar à prospectiva e abrir o campo do pensamento social cf quadro do organigrama. 5 departamentos + migrações Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498 www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected] 21