Jornadas Pastorais do Episcopado

Transcrição

Jornadas Pastorais do Episcopado
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
JORNADAS PASTORAIS DO EPISCOPADO 2009
«A Igreja, agente de transformações sociais. Jesus e os incidentes de
fronteira»
P. Jacques Turck – Secretário da Comissão dos Assuntos Sociais da
Conferência Episcopal Francesa
I- INSCREVER O EVANGELHO NA HISTÓRIA DOS HOMENS
A Igreja, desde o seu nascimento, está diante do desafio de uma inscrição histórica da
mensagem do Evangelho na História dos homens.
« A minha vida na condição humana
vivo-a na fé no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim » Gal 2,21
1/ Superar uma dupla reticência
A pertinência da Igreja em matéria social é contestada. Somos herdeiros duma longa
tradição em que se juntam dois factores que rodeiam de suspeitas as intervenções da
Igreja.
No contexto francês, não é raro que se acuse a Igreja de se meter no que não lhe diz
respeito. Até alguns cristãos, que nem sempre têm as mesmas opiniões políticas que os
seus Pastores, nos pedem que nos limitemos às nossas sacristias.
Tanto se ensinou aos cristãos que deviam viver o mais espiritualmente possível a sua
vida humana que eles não entendem que se lhes peça que vivam o mais humanamente
possível a sua vida espiritual!
Estas censuras têm como fundamento a memória do mau proceder da Igreja… ontem
como hoje.
a- O poderio da Igreja no passado
As nossas memórias estão marcadas pelo poder da Igreja em certos períodos da História.
Infelizmente, a conversão do imperador Constantino (em 313?) mudou, quase de um dia
para o outro, o modo de proceder dos cristãos. De perseguida, a Igreja passou a
perseguidora.
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
1
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
A permanente tentação dos homens políticos cristãos será a de apressar a vinda duma
organização política onde reinaria a justiça sob a autoridade do Evangelho. Não quero
entrar numa reflexão sobre as “ reduções dos Jesuítas” na América Latina. Porque esse
foi um belo ensaio para tentar viver segundo o Evangelho e com a perspectiva de um
desenvolvimento e de uma justiça. Houve coisas bem mais graves! Conforme as épocas,
conforme os países, os cristãos, de perseguidos que eram no tempo da expansão do
cristianismo, tornam-se autoritários e perseguidores. Houve guerras fratricidas entre
cristãos…etc. Sob pretexto de defender a honra de Deus, alguns de entre eles julgaramse autorizados a recorrer à força, de modo totalmente injustificado à luz do Evangelho.
Felizmente há numerosos exemplos que mostram como, em todas as épocas, durante as
guerras religiosas, durante as cruzadas, durante o período das grandes descobertas do
novo mundo, sempre houve cristãos (leigos, padres ou bispos) próximos dos pobres,
arriscando a sua vida pelo respeito e pela defesa daqueles a quem então chamavam
«pagãos». Por exemplo, Bartolomeu de las Casas, etc.
Dar testemunho do Evangelho conduz a um certo estilo de vida, de consumo, de modos
de construir o mundo. O que não pode deixar de ter repercussões de ordem prática na
sociedade.
2
b- A autonomia do temporal / lei de separação da Igreja
e do Estado /
laicidade
Este conjunto de orientações e de leis, com origem na tradição francesa da revolução,
sobressai na lei de 1905.
Os cristãos herdam deste período uma mentalidade de vítimas do Estado e o medo de
transgredir uma lei que instaurou um equilíbrio sempre frágil entre a Igreja e a política.
A Igreja vela pela aplicação, com justiça e discernimento, da Lei de 1905, modificada e
adaptada no decorrer dos decénios do século XX. Aqui, é do lado da Igreja que se
encontram (muitas) reticências em se envolver em questões sociais e políticas.
Conheço párocos que não querem que o peditório do CCFD (Comissão Contra a Fome e
para o Desenvolvimento) se faça na sua igreja, só à porta…
Mas a lei de 1905, que proibiu os padres e os Bispos de falarem de questões sociais,
provocou, logo à partida, uma mobilização daqueles a quem vão chamar católicos
sociais. Daí um empenhamento muito positivo dos leigos nas questões sociais, em nome
da fé cristã…
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
No mesmo ano, Leão XIII escreveu uma carta aos católicos de França pedindo-lhes que
se aliassem à República. É o reconhecimento pela Igreja da necessidade de uma
distância relativamente às instâncias políticas. Será a confirmação duma liberdade dos
leigos fiéis cristãos para falar e agir nas questões que tocam o homem.
Hoje em dia, não se pode negar que a religião ocupa o espaço público, nem se pode
relegá-la para o espaço privado.
A memória desta história confusa deve ser tida em conta para compreender as
reticências. Ela constitui também um apelo para fundamentar nas fontes da nossa
tradição a legitimidade das intervenções da Igreja nas questões sociais.
2/ Jesus foi um protagonista de transformação social
a-
Carácter de acontecimento da Revelação
Na leitura do Novo Testamento, nomeadamente dos Actos dos Apóstolos, percebe-se
como o Senhor e os primeiros discípulos apreciam narrativas e histórias de todo o tipo. O
discurso teológico e organizado só surge no final do século II. O primeiro testemunho dos
discípulos é um testemunho existencial. Fala de
«…o que ouvimos… vimos com os nossos olhos…, contemplámos, o que as nossas
mãos tocaram, do Verbo da vida, nós vo-lo anunciamos» 1 Jo 1,1
- Fala do companheirismo dos homens em que se introduz o Cristo ressuscitado (Emaús),
assim como o Espírito Santo (Act 5,3b; 6,3 ; Act 16,6). É na memória do que foi vivido
com Ele no decurso da sua vida histórica que os discípulos bebem a novidade radical da
sua maneira de viver Gal 2,10 (cuidar dos pobres).
- A novidade é bem radical em relação a todas as filosofias e a todos os cultos
mistéricos… para compreender Deus, basta compreender as coisas da terra. Releiamos
João 3, na conversa com Nicodemos : «Como poderíeis compreender as coisas do céu, se
não compreendeis as coisas da terra ?» v. 12.
- A Igreja sempre considerou como parte integrante da missão que Cristo lhe confia
afirmar o sentido da história humana e a sua dimensão comunitária.
Que nos ensina o Evangelho sobre a maneira de ser de Jesus na sociedade em que vive ?
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
3
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
b- Jesus cria incidentes de fronteira
Recordemos :
Jesus fala com uma Samaritana, uma estrangeira de uma outra religião.
Perdoa à mulher adúltera que devia ter sido lapidada.
Cura num dia de Sábado, o que a lei não autoriza.
Paga tanto ao trabalhador da 11ª hora como ao da 1ª.
Faz-se convidado para casa de Zaqueu, conhecido por ser um ladrão corrupto.
Acolhe o filho pródigo que delapidou a sua parte da herança… etc.
Todas estas pessoas são os «desclassificados do judaísmo oficial». Trata-se de pessoas
que a lei marginalizou; tanto pobres como ricos, tanto pecadores como crianças.
Em cada uma das vezes, Jesus reintegra o pecador, o ladrão, o rico, o estrangeiro na
sociedade civil e religiosa da sua época. Tem de se reconhecer que ele causa espanto e,
mais ainda, provoca incidentes de fronteira.
Para os fora-da-lei e para os pagãos, por quem os fariseus tinham aversão, é uma
promessa, uma esperança, uma oportunidade. Para os outros, os defensores da lei
judaica, é insuportável. A atitude de Jesus ameaça os fundamentos da sociedade. Jesus
provoca, pois, incidentes de fronteira com a religião, com a força política do seu tempo,
com a cultura da sociedade em que vive.
A mais grave destas ameaças está nas suas críticas a respeito do Templo. É a honra de
Deus que os defensores pensam defender, ao defenderem o Templo. Mas o Evangelho
mostra que a caridade de Jesus para connosco o obriga a defender permanentemente a
honra do homem, a sua dignidade.
Claro que, se estas pessoas estão no coração das narrativas do Evangelho como aqueles
sobre quem Jesus apoia o seu ensino e critica os escribas e os fariseus, é sempre porque,
pela força primeira de Cristo, eles entraram num caminho de conversão.
A opção preferencial pelos pobres passa pela conversão dos ricos. Os próprios ricos são
chamados
à
salvação.
O
que,
sem
dúvida,
provoca
hoje
em
alguns
certas
incompreensões e um outro tipo de incidentes de fronteira. Na nossa sociedade
ocidental, como anunciar o Evangelho àqueles que têm êxito? Como não pensar
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
4
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
que o Reino de Deus seria só uma consolação prometida àqueles que sofrem? Ou uma
recompensa para aqueles que fazem o bem? Como não reduzir a santidade a um
comportamento individual? Lumen Gentium n. 9: Agradou a Deus que os homens não
recebam a santificação e a salvação separadamente… quis fazer deles um povo…
Jesus propõe pois uma certa maneira de viver juntos. Isto diz respeito à Igreja como
Corpo de Cristo1. Mas também aos povos do mundo.
A Igreja interessa-se pela organização da vida social dos homens. Não é de estranhar
que os cristãos também por ela se interessem. A actualização do Evangelho hoje não nos
evita esses mesmos incidentes de fronteira. Mesmo se a finalidade primeira não é a
provocação… Porque o objectivo de Jesus, como o nosso com o pensamento social, é de
propor-nos uma maneira de viver em conjunto, sob o olhar de Deus. Ela dá-nos a
conhecer uma misericórdia incondicional da parte do Pai. O que tem consequências nas
nossas relações sociais com os pecadores, os malfeitores, os doentes, os excluídos. É o
estatuto do castigo e do pecado face ao perdão, é o estatuto dos territórios de cada povo
face ao destino universal dos bens, é o estatuto do dinheiro face ao bem que ele pode
fazer para aproximar os corações, etc… Como harmonizar esta necessária atenção às
realidades humanas e a visão escatológica da existência humana?
5
3/ Os primeiros cristãos, protagonistas de transformações sociais
Logo desde os primeiros capítulos dos Actos dos Apóstolos, vemos os cristãos a
organizarem-se para responder a questões sociais e económicas.
Na tradição da primeira comunidade descobrimos uma grande atenção da parte dos
primeiros cristãos para com a situação dos pobres… Actos 2,42-46 registam traços
essenciais da vida da comunidade e a ligação estreita que é preciso manter entre o
ensino dos Apóstolos, escutado com assiduidade, a oração no Templo e em casa para o
partir do pão e a capacidade de pôr em comum os bens, conforme as necessidades de
cada um. Isto supõe uma muito grande observação da realidade. Trata-se de medir o
que falta a cada um ;não é o mesmo para todos. Não há uma espécie de ideologia
igualitária. É a equidade que está em jogo. Eis um primeiro princípio que será retomado
pelo pensamento social. E esta observação deverá ser o mais rigorosa possível. Ela irá
1
Pertence ao « munus docendi » dos bispos ensinar que, segundo o desígnio de Deus Criador,as próprias realidades terrestres e as
instituições humanas estão igualmente ordenadas para salvação dos homens e que, por consequência, elas podem contribuir, de
maneira significativa, para a edificação do Corpo de Cristo. Vaticano II Christus Dominus n°12.
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
até dar a palavra aos pobres para que digam eles próprios o que lhes é necessário. É o
princípio que põe em destaque a dimensão política antes da dimensão económica. (Cf. as
Bem-aventuranças.)
Actos 5,1-10
Encontramo-lo, para lá das questões financeiras, na narrativa que nos apresenta Ananias
e Safira. Aí se verifica que a partilha deve ser feita em total liberdade. Ninguém é
obrigado a fazê-lo, sobretudo se se verificar que a partilha acarretaria uma situação de
precaridade ou de angústia. Mas o importante é não mentir à comunidade, ser
transparente a respeito do dinheiro… porque mentir à comunidade é mentir ao Espírito
Santo que, à partida, tinha inspirado este casal para a generosidade. A cada um segundo
as suas necessidades aplica-se à gestão dos bens de cada um, com a condição de se agir
com toda a clareza… Ora, Ananias et Safira mentiram. Fizeram crer que traziam o
dinheiro todo. E por esta mentira ao Espírito Santo… morreram…
Actos 6,1
Tudo isto supõe que se organiza o encargo do necessário para os mais carenciados. O
que não pode ser deixado à iniciativa da boa vontade ou da emoção que habita o coração
de cada um. Por isso a Igreja primitiva organiza, de maneira rigorosa, a responsabilidade
pela caridade. Sete homens são encarregados do serviço das mesas, tendo por primeira
missão não esquecer as viúvas helenistas, mais pobres que as outras. Dá-se uma missão
particular a pessoas que têm a seu cargo estas realidades económicas.
Gal 2,10
S. Paulo será o primeiro a compreender a liberdade de iniciativa e, ao mesmo tempo, a
atenção necessária e primeira aos mais pobres. Ele vai reclamá-las, a uma e a outra,
catorze anos depois da sua conversão, quando sobe a Jerusalém para se explicar sobre a
sua vontade de abrir o Evangelho aos pagãos. Pede então à comunidade dos Apóstolos
que não obriguem os pagãos a tornarem-se judeus pela circuncisão para abraçarem a fé
cristã. Tiago, Cefas e João concordam, com uma única recomendação que Paulo indica na
carta aos Gálatas: «Simplesmente, teríamos de nos lembrarmos dos pobres, o que eu
tive o cuidado de fazer». A opção preferencial pelos pobres é uma referência essencial
para todas as comunidades dos discípulos de Jesus.
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
6
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
Compreende-se que todas estas práticas novas terão uma incidência, não só na vida da
comunidade cristã, mas uma incidência na sociedade económica à sua volta. Mesmo que
não queiramos exagerar a sua importância nos primeiros tempos, estes relatos servem
de referência e de fonte primeira a toda a reflexão ética da Igreja e é conveniente
confrontar com eles os acontecimentos vividos pelos homens e mulheres do nosso
tempo. Este confronto permanente é a matriz donde surgirão os grandes princípios que
inspiram o pensamento social e a palavra da Igreja.
4/ Outras referências para o agir, tiradas do Evangelho
a- Que temos então de fazer? Lc 3.
A resposta de João Baptista abre para duas direcções:
Primeira direcção: o princípio da redistribuição.
Vês o pobre, ali à tua porta?
Se tens duas túnicas... partilha
Lc 3,11
Se tens de comer... partilha.
- Este princípio dirige-se à todos conforme os seus meios e conforme a observação que
eu faço da situação do outro, considerando a minha.
A riqueza em questão a propósito da túnica e do pão é aqui bastante relativa. As pessoas
muito ricas tinham, com certeza, mais de duas túnicas. Isto mostra que, no cristianismo
primitivo, o convite à partilha se dirigia a todos, e não só aos muito ricos.
- Há pois aqui uma margem de manobra, uma decisão livre, voluntária, pessoal, que só
diz respeito à minha consciência, à minha generosidade.
- Outros textos do Novo Testamento vêm esclarecer a consciência de cada um: Paulo
escreve aos Efésios 4,28: "trabalhai para terdes de que partilhar com aquele que tem
necessidades!" (Finalidade do trabalho posta em evidência. Apelo a não renunciar a que
se dê o que ainda não se tem: por isso, há que trabalhar indo até à privação voluntária).
- Estamos já na ordem da redistribuição que não se limita ao socorro imediato aos
mais carenciados para oferecer bens de primeira necessidade. Ela ‘expõe’ a
minha liberdade, a minha generosidade modulada pelo realismo recordado por S. Paulo.
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
7
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
Segunda direcção: a caridade tem uma dimensão institucional
- No v.12 "Alguns cobradores de impostos vieram também para serem baptizados… "
a mesma pergunta : Que temos então de fazer?
"Se cobras o imposto… não exijas nada mais que a taxa fixada!
Entendo : fixada por um outro…fixada por um direito que vem de fora
"Se és militar..., não aproveites para maltratar ou para te servires das
armas extorquindo dinheiro que aumentaria o teu soldo! Lc 3,13-14
Entendo : um poder recebido de fora
Aqui, os publicanos e os militares estão investidos dum cargo, dum serviço público. Estão
investidos duma autoridade que não lhes pertence. Têm contas a prestar.
- Esta segunda direcção tem por referência maior a pertença a um corpo: o dos
cobradores de impostos, o dos soldados. Ela sublinha o carácter institucional da
missão recebida nesse quadro. Ela obriga-nos a dar contas do que nos foi confiado
pelos outros, de maneira contractual, com vista ao bem comum.
Os cristãos empenharam-se nestas duas direcções, ao longo de toda a história.
Gálatas
2,10. Paulo faz memória da exigência que então lhe foi feita e que ele recorda.
«Simplesmente, teríamos de nos lembrarmos dos pobres, o que eu tive o cuidado de
fazer.» A Igreja não esqueceu nunca esta recomendação.
b- Como compreender esta atenção aos pobres segundo o Evangelho? Mt 5,3
Quando exortamos os cristãos a agir junto dos pobres, que pretendemos nós?
Quando lemos a primeira bem-aventurança, não lemos: «felizes os pobres, porque serão
ricos!» Está escrito: «felizes os pobres, porque deles é o reino de Deus».
Na linguagem bíblica, a pobreza é mais que a pobreza económica. É não ter poder
político.
A pobreza não se define unicamente, nem talvez primeiro que tudo, por uma relação com
a economia. Mas sim por uma relação com o poder : um reino é uma entidade política.
Ser pobre, é ser alienado do direito fundamental de decidir por mim mesmo daquilo
que me pertence (Lc 15,31); dar ao pobre o domínio do seu futuro : o direito de
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
8
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
decidir da sua vida, do seu presente e do seu futuro. È próprio do filho ou da filha do Rei.
(Tudo o que é meu é teu).
Esta primeira bem-aventurança lembra que temos razões para nos inquietarmos com
aqueles que foram reduzidos à incapacidade política sobre a sua existência. A acção a
desenvolver com os pobres : permitir-lhes que se tornem artífices do seu próprio destino.
Se não
compreendemos bem a primeira bem-aventurança, fazemos o jogo da
emancipação económica em relação ao político. O "eu consumo" porque tenho os meios;
o "eu consumo, logo eu sou" ; ou o «eu sou rico, logo eu sou». Faz-se então o jogo das
correntes actuais em que a globalização está submetida à economia, aos mercados. A
primeira bem-aventurança reintegra a dimensão política no projecto de autonomia de
toda a pessoa humana.
II – A IGREJA HOJE, PROTAGONISTA DE TRANSFORMAÇÕES SOCIAIS
«A minha vida na condição humana
vivo-a na fé no Filho de Deus que me amou e se entregou por mim» Gal 2,21
Hoje, a globalização é a nossa condição de existência. É no coração desta condição
humana e no coração dos acontecimentos que a marcam que a Igreja é chamada a
inscrever o Evangelho.
Se a Revelação se inscreve numa série de acontecimentos ao longo da História, importa
hoje descortinar, neste fenómeno da globalização, os lugares em que será possível
manifestar a aliança dos homens com Deus. A globalização constitui o acontecimento
maior que marca a nossa humanidade neste início do III milénio.
Ela transforma tudo… a tal ponto que, sem dúvida, entrámos numa nova civilização.
Este acontecimento maior deve ser, em nome do Evangelho, o nosso mestre interior,
como escrevia Emmanuel Mounier. A Igreja implica-se nestas realidades, «a partir de
dentro», como escrevia Paulo VI na Evangelii nuntiandi.
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
9
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
a- Calcular o alcance do fenómeno da globalização
DIAPORAMA
- Foi a Igreja a primeira que, desde 1967, na pessoa do Papa Paulo VI, compreendeu as
suas implicações e convidou os cristãos a ter em conta esta realidade. Na encíclica
Populorum progressio, há mais de 40 anos, ele escrevia: «a questão social tornou-se
mundial»… .
- Em 1982, João Paulo II escrevia, por sua vez :
«O pensamento social da Igreja (é) uma reflexão atenta sobre as realidades complexas
da existência do homem na sociedade e no contexto internacional, à luz da fé e da
tradição eclesial» João Paulo II (SRS n. 41)
Qualquer que seja o conceito utilizado, mundial, global, internacional, estamos perante
uma grande mistura que João Paulo II não hesita em designar como complexa… Gosto de
dizer que a sua originalidade está numa nova relação com o tempo e com o espaço.
Esta globalização caracteriza-se pela abertura das fronteiras, a livre circulação dos bens
e das pessoas, os progressos dos modernos meios de comunicação, a livre circulação dos
fluxos financeiros que, pela Internet, encurtam o planeta e uniformizam a economia de
mercado e as culturas, a transformação da paisagem do emprego, a extensão geográfica
das empresas nos países menos evoluídos : já há só um mercado mundial que favorece a
entrada em cena de países emergentes do Sul (Brasil, Rússia, Índia, China). Verifica-se o
desaparecimento de um «Terceiro Mundo» (Este-Oeste-Sul), já que há ricos e pobres no
Norte como no Sul, a Este como a Oeste. A mistura dos povos pelas viagens dos
empresários e comerciantes, pelos jovens que estudam em universidades de numerosos
países da Europa, da América ou da Ásia.
A queda do muro de Berlim aparece como um ponto luminoso que estigmatiza esta
globalização.
b- Tornámo-nos cidadãos do mundo
- A globalização suscita uma nova relação com o tempo e com o espaço. Ela acontece
sob o efeito duma abertura dos espaços e por uma aceleração para ligar um ponto a
outro do globo, deixando entrever, um e outro fenómeno, a possibilidade duma mudança
radical de civilização.
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
10
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
Mudanças não apenas geográficas, concêntricas e a maior parte das vezes não
escolhidas: europeu, francês, parisiense, mas também membros de comunidades
electivas : católico romano ou protestante ou pertencente a um clube desportivo, a um
sindicato, etc. … Pode estar ligado pelos filhos que vivem num país que não é o seu, os
Estados Unidos, o Congo …
É próprio do homem ter consciência desta relação com o tempo e com o espaço. Ele gere
essa relação. Ele define e transgride os seus limites (territórios), o dos ritmos (repouso,
trabalho, estação…etc). As fronteiras caíram. Tornámo-nos cidadãos do mundo, cidadão
da noite, cidadão do fundo dos oceanos, cidadão da lua… e, dentro em pouco, de Marte…
- Submetidos às mesmas leis : um torcionário da Bósnia ou um ditador habitante do
Chile podem ser extraditados e julgados em Haia por um tribunal internacional. Um
pedófilo pode ser preso no seu país por actos cometidos fora dele. Um direito
internacional rege os crimes cometidos voluntariamente por homens e mulheres, fora das
fronteiras do seu país. Assim, um país já não pode, por si só, (nem que fosse o maior e o
mais forte dos países) gerir o que se produz à escala mundial. O Estado nação está a
transformar-se. Todos os Estados estão obrigados pelo direito internacional que proíbe o
trabalho infantil, a escravatura, a tortura…. Mas também por empresas multinacionais
que ultrapassam pelo seu poder financeiro, pela rapidez das suas decisões, o que diz
respeito a uma unidade de trabalho numa região do seu país.
Em múltiplos domínios observamos, sofremos e agimos em fenómenos que passam as
fronteiras. Isto diz respeito a todo o planeta Terra. Sem nenhum santuário reservado e
protegido.
c- Interdependência e solidariedade
Esta globalização manifesta une interdependência geral entre os povos, os países, as
condições de existência humana, animal e os elementos geofísicos. Descobrimos que o
universal não diz respeito só ao que é verdadeiro, ao que é bom, mas também às
realidades temporais, ao bom uso das coisas (dos bens).
A Igreja tem por missão inscrever o Evangelho nesta realidade social globalizada.
Trata-se de pôr em relação a nossa condição de existência ‘internacional’ com a fé e a
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
11
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
tradição cristã que nos legaram uma mensagem «católica» (universal). Seria uma
oportunidade ou um perigo?
Por mais de uma razão, há uma oportunidade para a fé cristã que se caracteriza pela
universalidade da sua mensagem. En 1991, João Paulo II descrevia o carácter positivo da
globalização : «Hoje está em vigor a chamada «globalização da economia», fenómeno
que não deve ser criticado porque pode criar ocasiões extraordinárias de se ser melhor.
Mas sente-se sempre a necessidade de que, a esta internacionalização crescente da
economia corresponda a existência de bons organismos internacionais de controlo e de
orientação, para guiar a própria economia para o bem comum, o que nenhum Estado,
mesmo que fosse o mais poderoso da terra, é capaz de fazer.» – por si só! Centesimus
annus n.58
Esta interdependência generalizada obriga-nos a modificar profundamente a nossa
concepção de solidariedade. A solidariedade não se limita já a uma opção reservada a
algumas almas generosas. Ela é um facto contra o qual não se pode lutar. A globalização
põe-nos diante do facto consumado de uma escolha que não está por fazer. Estamos
embarcados numa solidariedade de facto… estamos solidarizados, ligados uns aos
outros de maneira inevitável !
Já o sabíamos, o homem só existe em relação com o outro. É permanentemente levado a
sair de si mesmo para participar na vida dos outros. Trata-se, de certo modo, duma
unidade substancial que é constitutiva da família humana. Esta identidade colectiva é a
primeira fonte duma fraternidade mundial. Ela abre a cidadania a esta dimensão.
A sociedade à nossa volta descobre o que a Igreja sabe há muito tempo acerca da nossa
condição de existência. Mas o Evangelho acrescenta uma radicalidade bebida na
revelação que se define por uma exigência de reconhecimento da dignidade de todo o ser
humano, pobre ou rico, com saúde ou doente, branco ou de cor. Isto tem que ver com a
justiça, mas também com a caridade. E esta maneira de ser faz dos cristãos
protagonistas de transformações sociais. Eles fazem que a caridade habite no coração da
justiça.
-
Tomemos o exemplo dos migrantes que se amontoam às portas da Europa e, para
nós, em Calais. Houve cristãos que se arriscaram a ajudá-los apesar das leis. Alguns
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
12
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
foram presos. O governo tentou pôr termo a esta solidariedade espontânea. Até decretou
que era delito ajudar un indocumentado. Criaram-se círculos de silêncio. Os bispos da
comissão publicaram um comunicado.
Isto tem um impacto real na sociedade. Os cristãos são protagonistas… e criam
incidentes de fronteira!
Tudo nos põe frente a um desafio, o desafio da complexidade. Porque, por ser
protagonista de transformações sociais, a Igreja não está menos obrigada a ficar sob
reserva face a ambições políticas que poderiam ser a sua como instituição.
Bento XVI recorda-no-lo :
« A Igreja não pode, nem deve, tomar em mão a batalha política para edificar uma
sociedade o mais justa possível; ela não pode, nem deve, tomar o lugar do Estado. Mas
também não pode, nem deve, ficar de parte na luta pela justiça. Deve inserir-se nela
pela via da argumentação racional e deve despertar as forças espirituais, sem as quais a
justiça, que exige também renúncia, não pode afirmar-se, nem desenvolver-se. A
sociedade justa não pode ser obra da Igreja, deve ser realizada pela política. No entanto,
o empenho pela justiça, trabalhando pela abertura da inteligência e da vontade às
exigências do bem, interessa profundamente à Igreja. »
Bento XVI – Encíclica Deus é amor - § 28
2) Agir, para lá das ideologias do melhor dos mundos
a-
Porquê agir, se só conta a vida espiritual ?
Viver o mais humanamente possível a nossa vida espiritual. Isto supõe que se releia o
que Jesus dizia a Nicodemos : João 3, Se não acreditais quando vos digo as coisas da
terra, como acreditaríeis se vos dissesse as coisas do céu ?
No entanto, a acção desenvolvida pela Igreja não tem como fonte, diz Bento XVI, a ideia
de um melhoramento do mundo (Deus Caritas Est § 33).
Pensamos talvez que é a isso que o agir cristão deve conduzir. Pensamos que isso vai
realizar-se pela instauração da justiça.
Concebemos demasiadas vezes a justiça como uma justiça igualitária. Tratar-se-ia de
desejar e de possuir o que o outro possui. Toda a economia de mercado está baseada
neste mimetismo.
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
13
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
Mimetismo? O princípio do consumismo que acompanha a produção dos bens leva cada
um a comparar-se, a «dar vontade de», a «rivalizar». São estes os princípios de base
que guiam a produção dos bens e o comércio. Estes bens propostos têm em si mesmos
os critérios de necessidade a valorizar. Chega-se a definir as diversas normas de fabrico
e de consumo dos produtos em função dos hábitos de viver e de pensar das pessoas que
têm possibilidade de adquirir tudo o que lhes apetece. É a padronização de um modo de
vida que determina a importância de cada um e que suscita a fuga para a frente de todos
aqueles que podem ou se esforçam por adoptá-lo.
O que motiva as decisões e as escolhas dos empresários nunca é, provavelmente, assim
tão claro. Mas já é tempo de o verificar.
É aqui que a Igreja pode intervir junto dos empresários e dirigentes da indústria. Que
serviços essenciais à aventura humana presta hoje a minha empresa ou o meu trabalho ?
Na nossa sociedade importa fazer escolhas entre a urgência e o inútil. O que serve o bem
comum ? O que responde a uma necessidade para a vida ?
- Assim o trabalho e o mercado devem ser dominados não por uma perspectiva primeiro
financeira, mas por uma perspectiva que visa o bem da pessoa no seu conjunto (pessoal,
comunitário, ambiental). O trabalho já não pode, pois, organizar-se unicamente á volta
da produção e do mercado. O trabalhador é, antes de mais, alguém que cria uma relação
social ; não há nenhum trabalho que não dependa do trabalho de outro, toda a
produção tem um projecto de benefício social.
Assim, os esforços do desenvolvimento humano estão primeiro e visam a pessoa numa
sociedade (de conjunto). É fundado sobre a qualidade das relações sociais que o meu
trabalho há-de favorecer.
A crise de hoje é uma crise do sentido dla produção de bens, muitas vezes inúteis, por
vezes úteis e ambivalentes devido ao risco ecológico sobre o ambiente e, portanto, sobre
o futuro do planeta e da humanidade, por vezes destruidores (cigarros…).
Também aqui a Igreja pode falar, oferecer pontos de referência para a acção :
Por isso os Bispos de França intervieram de diferentes maneiras:
-
a propósito dos salários elevados e dos “golden parachutes”
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
14
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
-
a propósito da economia financiarizada e da disjunção entre finanças e economia
-
estabelecendo uma ligação: Notre-Dame de Pentecôte – La Défense
b- Fidelidade do Magistério ao Evangelho
O magistério fundamenta o seu ensino no Evangelho.
- A Carta a Diogneto: os cristãos estão no mundo como a alma no corpo.
- Gaudium et spes : a Igreja reúne a alegria e a esperança dos homens.
- Evangelli Nuntiandi : os cristãos são convidados a caminhar do interior das realidades
para os outros.
- Redemptor hominis : a estrada que a Igreja deve percorrer é a estrada dos homens.
- Christi fideles laici…
1- Vaticano II : Ad gentes § 12 os discípulos de Cristo… não procuram o progresso e a
prosperidade puramente materiais dos homens… eles abrem um caminho mais perfeito
para Deus2.
2- João Paulo II escreve: «O desenvolvimento do homem não deve ser compreendido
duma maneira exclusivamente económica, mas num sentido integralmente humano. Não
se trata só de elevar todos os povos ao nível de que gozam hoje os países mais ricos,
mas de construir, por um trabalho solidário, uma vida mais digna, de fazer crescer
realmente a dignidade e a criatividade de cada pessoa, a sua capacidade de responder à
sua vocação e, portanto, ao chamamento de Deus.» CA n° 29
3- DCE: Bento XVI escreve: os programas fundados sobre a ideia de justiça… sofrem na
prática deformações… muitas forças negativas como o rancor, o ódio, e até… o desejo de
diminuir o adversário, de limitar a sua liberdade, de lhe impor uma dependência, passa a
ser o motivo fundamental da acção... E tudo em nome duma pretendida justiça… a
justiça não se basta a si mesma!
DCE § 12
4- Na atitude de Jesus - Hino aos Filipenses. Deus em Jesus revela quanto ele domina o
seu domínio: expressão de Paulo VI à FAO. O Filho de Deus, Jesus Cristo, aquando da
sua passagem na história, não resolveu todos os sofrimentos da sua época, nem curou
todos os doentes, nem mesmo alimentou todas as multidões que, ao tempo, tinham
fome. Jesus impôs limites à sua acção para com os pobres. Exactamente da mesma
maneira a respeito da Criação que ele confia ao homem e não termina.
2
b ainda que eu distribuísse todos os meus bens aos famintos…,se me faltasse o amor, de nada me valia. 1 Cor 13,3 .
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
15
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
Se os cristãos são protagonistas de transformações sociais, eles devem compreender o
mistério do desapego a todo o poder da eficácia que habita Jesus e o Evangelho.
Neste desapego a todo o poder da eficácia... que conduzirá Jesus até à morte na cruz,
(Lc 5,18 cf o paralítico). Sabemo-lo bem, é a porta aberta a todas as críticas que
ouvimos tantas vezes : «se houvesse um Deus bom, ele não permitiria isto».
c- Purificação da razão
Quando lemos que a prosperidade puramente material é considerada estéril, sentimo-nos
talvez contrariados.
Para nos ajudar a compreender esta maneira de agir, Bento XVI faz apelo a uma imensa
«purificação da razão». Uma imensa « purificação da razão » DCE §28a & 29a)...
Para poder agir de maneira certa, a razão deve ser constantemente purificada, porque a
sua cegueira ética, decorrente da tentação do interesse e do poder que ofusca, é um
perigo que nunca se pode eliminar totalmente. DCE § 28 a
A expressão «purificação da razão» é utilizada por várias vezes na encíclica3. Ela aparece
como uma chave de leitura para melhor assumir as tensões, até mesmo as oposições,
que surgirão quando quisermos fazer valer que a fecundidade do amor deve tomar a
dianteira à eficácia da acção.
- Para realizar esta « purificação da razão », importa deixar uma visão exponencial e
mecanicista do progresso. Um progresso considerado como um crescimento, um estar
melhor definido por uma acumulação material.
- Trata-se também de compreender que, sendo a caridade da Igreja que temos o
encargo de pôr em prática sempre mais que uma simples actividade, a nossa acção não
se reduz a ser uma assistência social (DCE § 31/b) ou uma justiça entendida de maneira
igualitária.
Em Roma, uma jovem religiosa expunha esta ideia, aquando do congresso de Cor Unum,
no decorrer do qual Bento XVI apresentou a sua encíclica4 : Quando o secundário falta, o
essencial assume maior importância. Deixei-me penetrar por esta observação que
3
DCE § 28 a et § 29
4
Em Janeiro 2006
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
16
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
aparece como uma água-forte difícil de digerir. Mas que, sem dúvida, mostra que o amor
é um fogo vital. O essencial, na nossa sociedade, está de tal modo estigmatizado nos
bens de primeira necessidade : a água, o pão, o tecto, o trabalho…
« Mesmo que não me dê nada, fale comigo e já é alguma coisa, dizia um pobre no
metro ». Quem era ele, eu não sei, mas havia naquelas palavras uma busca de
humanidade a que qualquer um podia responder (rico ou não). Esta caridade é o rosto
humano da fé. Ela há-de ir sempre de encontro a incompreensões que invocam uma
purificação da razão, isto é, um melhor entendimento da relação entre a justiça e a
caridade.
d- Relação entre justiça e caridade DCE N° 26
ou a purificação da razão DCE n° 28 / a & n° 29 /a
A caridade de Deus que a Igreja nos confia, não se resume a ser uma organização
comum de assistência (DCE§ 31). Tal como tinha feito antes dele o Papa Pio XI, ele( ?)
sublinha que para nós, cristãos, a instauração da justiça, por perfeita que seja, não é
suficiente. Pio XI, na encíclica Quadragesimmo anno explicitou isso5. Seremos então
sinal da presença de Deus, isto é, do Amor, pois esse é, no coração do nosso combate, o
nome para a justiça. Trata-se duma justiça «informada» pela caridade de Deus, habitada
pela sua misteriosa presença. É essa que está a nosso cargo.
Os bens que é legítimo obter são sempre em função das necessidades de cada um. O
princípio do bem comum submete a propriedade privada ao bem comum. Só uma
consciência que vive a dimensão comunitária da existência nos permite compreendê-lo e
aceitá-lo.
- Estamos muito longe de ter despertado a totalidade dos cristãos para esta dimensão
comunitária. A educação dos jovens, em França é baseada no mérito e não no serviço.
No acordar para a profissão que um jovem poderá exercer, a reflexão dos pais é: deves
frequentar a melhor escola, deves ser o primeiro, ganhar aquele concurso… e não: quais
são as tuas qualidades, quais são aquelas que gostarias de pôr ao serviço dos outros ?
5
Encíclica QA § 148 "é preciso contar, antes de mais, com a lei da caridade que é o laço da perfeição. Muito se enganam os
reformadores imprudentes que, satisfeitos por fazerem observar a justiça comutativa, repelem com arrogância o concurso da
caridade.É certo que o exercício da caridade não pode ser considerado como ocupando o lugar dos deveres de justiça que
podiam não ser cumpridos. Mas, mesmo que cada um aqui em baixo tivesse obtido tudo aquilo a que tem direito, ficaria ainda
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
17
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
III- EXEMPLOS DE PALAVRAS E DE ACÇÕES DA IGREJA EM FRANÇA
O Pensamento Social da Igreja (PSE) desenvolve-se e elabora-se ajustando-se ao correr
do tempo, conforme os lugares onde ela actualizará os princípios fundamentais que deu a
conhecer e que servem de referência à conduta dos homens.
Esta dinâmica obriga-nos a tomar consciência de que nós não somos repetidores de
princípios antigos. Nós elaboramo-los e assim determinamos as modalidades de acção da
Igreja e dos cristãos.
A propósito
- do ambiente e do aquecimento climático,
uma antena: «Ambiente e modos de
vida» com cientistas e várias campanhas desenvolvidas «Viver o Natal de outra
maneira»… «Viver o verão de outra maneira » : folheto A criação face ao ambiente.
Encontro com Jean Louis Borloo (ministro do Estado e da ecologia).
- questões médicas e biomédicas : tema para um diálogo : A Igreja contribui para o
debate com vista à nova lei sobre a bioética.
- as questões genéticas : Grupo « Recherche ». O domínio do ser vivo
– Debate
público sobre a criação da nanotecnologia capaz de modificar o comportamento
fisiológico.
-
as migrações : Dossier Quando o estrangeiro bate às nossas portas (2004) Visitas do
ministro, declaração sobre o « delito da solidariedade » empenho pelo CCFD no codesenvolvimento.
- a ciência e as técnicas : Departamento « Recherche ». Encontro dos bispos com
investigadores sobre as « neuro-ciências », sobre a astrofísica; com filósofos e teólogos
sobre o Créationnisme.
aberto à caridade um campo bem mais vasto. A
justiça por si só, mesmo escrupulosamente praticada, pode
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
fazer
18
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
- as finanças e a economia :
Orientação numa economia mundializada 2005,
Face múltipla da crise financeira
O G 20
- Uma Casa da Igreja Notre Dame de Pentecôte / La Défense
Conclusões
Referências para uma palavra
Referências para elaborar um pensamento social
- No plano mundial
A Igreja, pela carta de Bento XVI ao Primeiro Ministro Gordon Brown, entrou no debate
no momento do G 20 e esperamos a encíclica.
- Numa diocese ?
Palavras dos bispos duma diocese face a uma situação de conflito
Mgr James : Continental - Mgr Giraud 1 de Maio - Mgr Aillet, Bayonne
1- A legislação relativa aos licenciamentos é estricta
-
Pode-se velar pela aplicação do direito do trabalho e do direito social. Pedir que a
lei seja aplicada. Não é o caso senão de 10 à 20 % dos assalariados (Alternativas
económicas)
Há cristãos que pertencem a conselhos económico-sociais. Se numa diocese houver laços
habituais com essas pessoas, não me parece que isso possa infringir a laicidade.
2- Fazer apelo à confiança não é suficiente. Primeiro porque, se é certo que ela é uma
virtude maior entre pessoas honestas e que ela está na base de toda a troca comercial, a
confiança pode ser perigosa. A crise começou e piorou devido a um abuso de confiança.
Em matéria económica é preciso que o controlo seja sempre assegurado. (cf peditório)
desaparecer as causas dos conflitos sociais ; mas não consegue, pela sua virtude, aproximar os corações…
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
19
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
Contribuir para devolver a calma é inventar novos modos de recurso ao crédito racional e
moderado (micro-crédito).
3-Mobilizar cristãos para a urgência
- Segundo Lc 3 / apelo a cada um, segundo a sua margem de manobra.
Bento XVI, na sua carta a Gordon Brown, faz apelo à ética dos protagonistas. E aqui
somos, todos nós, protagonistas potenciais ou já activos de transformações sociais.
- Não abandonámos demasiado depressa os lugares de Revisão de vida que a
acção católica propunha ?
Os corpos intermediários na Igreja (o apostolado dos leigos?), onde cada cristão podia
reflectir sem concessões com os seus pares, desapareceram muitas vezes em proveito de
conferências e de grandes debates.
Na nossa Igreja, o risco é o de ficarmos a ouvir, da parte desses chefes de empresa ou
protagonistas económicos e políticos, uma análise comparativa e histórica dos diversos
sistemas, sem que nada de pessoal seja posto em causa.
20
Nos movimentos apostólicos ou corpos intermediários cria-se uma opinião pública
cristã e comunicam-se ideias de inovações para o bem comum, Nestes lugares de
síntese pode questionar-se a oportunidade da produção de tal ou tal bem de consumo.
Que serviços essenciais à aventura humana de hoje é que a minha empresa ou o meu
trabalho prestam?
Pode-se olhar e questionar do interior de cada lar a nossa prática relativamente à
poupança e ao crédito… à acumulação das riquezas ou à distribuição. cf. carta dos
bispos americanos, como tipo de texto.
Isto supõe que reconsideremos o nosso desejo de convidar a novos modos de vida.
Não se trata de novos modos de vida, mas sim de novas maneiras de a Igreja falar.
(Inscrever e não prescrever, dizia a Carta aos católicos de França). Isto supõe que se
incitem os cristãos a inscreverem-se na dinâmica da história, cada um com a sua
margem de manobra.
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
CONFERÊNCIA EPISCOPAL PORTUGUESA
Comissão Episcopal da Pastoral Social
Secretariado Nacional da Pastoral Social
Donde a proposta do partenariado com o jornal La Croix sobre o que já se faz :
Partenariado posto em prática com o jornal La Croix : ‘ Contra a crise’
Aqui vamos além da geopolítica (ver ficha verde sobre o G 20)
Trata-se de passar da análise dos crimes (prejuízos) da não-regulação dos
mercados a uma reflexão sobre as iniciativas possíveis
1- em relação aos outros e em particular aos mais necessitados.
2- em relação às nossas próprias responsabilidades institucionais.
Para concluir sobre este ponto, direi que o apelo à ética dos protagonistas sublinha o
facto de que não pode haver responsabilidade colectiva sem responsabilidade
individual. Este princípio, que não está inscrito como tal no conjunto dos princípios do
pensamento social, é, no entanto, un princípio de Evangelho no contexto actual.
4-Favorecer uma expressão colegial
A PSE é colegial porque é eclesial e, só depois, moral.
Cf Vatican II Christus Dominus n°12. A PSE edifica o Corpo de Cristo. Esta précision
indica que a PSE tem esse objectivo eclesial que requer uma expressão colegial. É esta
perspectiva dinâmica que lhe permitirá não ser moralizante, no mau sentido do termo. E,
sobretudo, que mobilizará os cristãos, preservando-os da ideologia do melhor dos
mundos. Estas características situam a PSE da Igreja mais do lado da eclesiologia que
do da teologia moral. Há, antes de mais, a questão da Igreja ‘corpo de Cristo’ e da sua
missão de evangelização no meio das realidades terrestres… e conforme os momentos
desta história, conforme os acontecimentos desta história.
5-Falar a montante das crises
Para aí chegar, importa criar, numa província apostólica ou numa diocese, um
observatório das questões sociais, políticas et económicas.
Que empenhe uma Igreja particular na investigação das correntes da sociedade, das
inovações técnicas,… O que supõe dar lugar à prospectiva e abrir o campo do
pensamento social cf quadro do organigrama.
5 departamentos
+ migrações
Quinta do Cabeço, Porta D - 1885-076 Moscavide - Tel./Fax: 218 855 498
www.ecclesia.pt/snpsocial • E-mail: [email protected]
21

Documentos relacionados