Considerações sobre The Varieties of Reference (1982) de Gareth

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Considerações sobre The Varieties of Reference (1982) de Gareth
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Considerações sobre The Varieties of Reference (1982) de Gareth
Evans
Guilherme Ivo*
RESUMO:
Este texto se dividirá em dois momentos. O primeiro pretende levantar uma série de
pressupostos que o livro As variedades da referência, de Gareth Evans1, nos deixou
entrever enquanto o líamos, pois não chegaremos a dizer que se tratam de temas
explícitos, ou explicitamente enunciados, no livro, mas de verdadeiros pressupostos na
teoria da comunicação elaborada por Evans; e não esperamos com isso esvaziar as
consequências desta obra, tornando-a caduca por terem sido revelados seus segredos.
Diríamos que eles se insinuam, como fazem quaisquer segredos, ao longo dos capítulos
e por entre os parágrafos; concentrando em certas sentenças o sentido de uma presença
oculta e relevante. Só o que nos importará, por ora, é dispôr certos componentes
trabalhados por Evans em seus conceitos, os quais funcionam atrelados a uma linha bem
específica na história da filosofia, linha esta capaz de ligar os pressupostos de que
falaremos e composta por um sujeito organizado de acordo com uma complicada e
extensa lista de capacidades próprias, que funcionam como garantia epistêmica de um
mundo que aparenta ser objetivamente exposto a este sujeito.
O segundo momento do texto consiste numa tentativa de traçar o tema da
loucura tal como vista por Evans que, a nosso ver, só muito insatisfatoriamente
responde aos esforços de toda uma disciplina chamada psicanálise.
Palavras-chave: Linguagem. Percepção. Psicose. Lógica.
ABSTRACT:
This text divides itself in two moments. The first one intends to raise a series of
presuppositions which Gareth Evan’s book, The Varieties of Reference, has left us catch
a glimpse while we were reading it, for we’ll not go as far as saying that they constitute
explicit theses, or explicitly announced, in the book, but real presuppositions in the
theory of communication elaborated by Evans; and with it we don’t expect to deprive
that work of its consequences, making it something feeble on account of its secrets
being revealed. We’d say that they insinuate themselves, as any secrets do, alongside
chapters and amid paragraphs, concentrating in certain sentences the meaning of a
hidden, relevant presence. What concerns us for now is to arrange certain components
worked by Evans in his concepts, which run as if yoked to a line well specific in the
history of philosophy, such as is capable of linking those presuppositions that we’ll talk
about, and composed by a subject organized in accordance with a complicated and
extensive list of suitable capacities, operating as an epistemic guarantee of a world that
so seems to be objectively exposed to the subject.
The second moment of this text consists in an attempt to draw the theme of
madness as seen by Evans who, by our estimation, answers only too insatisfactorily to
1 The Varieties of Reference. Editado por John McDowell. Oxford: Oxford University Press,
outubro 1982. Doravante mencionado como Varieties, ou Variedades.
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the efforts of a whole discipline called psychoanalysis.
Keywords: Language. Perception. Psychosis. Logic.
Vale advertir, antes de começar, que a ordem de exposição dos pressupostos não
supõe hierarquia alguma entre eles.
Pressuposto I – Uma língua padrão, abstrata e homogênea (ou uma estrutura constante
e invariável de atos lingüísticos).
Na lingüística, principalmente na escola encabeçada por Chomsky, isso funciona
como postulado (ainda que existam lingüistas que trabalham numa contra-tendência que
define a linguagem segundo uma linha heterogênea de variação, não só entre uma língua
majoritária e seus dialetos, mas entre o conjunto de enunciados de uma língua e suas
efetuações, num ponto de vista pragmático2). Isso não quer dizer que os lingüistas
ignoram o fato de uma língua ser uma realidade essencialmente heterogênea, mas eles
exigem que se extraia, deste conjunto, uma linguagem padronizada como condição
abstrata ou ideal para o estudo científico, pois, de acordo com o modelo científico de
que se valem, garante-se com isso a constância e a homogeneidade do objeto.
Muito
embora saibamos que a lingüística e a filosofia analítica são estranhas uma à outra no
que diz respeito ao tratamento da linguagem, o motivo de trazer esse postulado da
lingüística neste texto é por entendermos que Evans faz o mesmo quando rejeita as
línguas vernaculares numa nota-de-rodapé:
nossas línguas vernaculares não foram feitas para conduzir provas. E os
defeitos que brotam disso são, precisamente, minha principal razão para
erguer uma notação conceitual. A tarefa de nossas línguas vernaculares é
essencialmente preenchida se as pessoas comprometidas em comunicação
uma com a outra conectarem o mesmo pensamento, ou aproximadamente o
mesmo pensamento, com a mesma proposição. Pois de modo algum é
necessário que as palavras individuais devam ter um sentido e significado por
si mesmas, contanto que a proposição inteira tenha um sentido.3
2
Cf. William Labov (1972).
(EVANS: 1982, p. 11). – Pode-se até extrair uma conclusão paradoxal, pois os muitos exemplos
do seu livro foram quase que totalmente imaginados a partir de eventos e objetos ordinários, e há toda
uma atmosfera doméstica nas situações apresentadas, onde a linguagem vernacular é sem dúvida
determinante. O paradoxo está em pensar que uma nota-de-rodapé (essa de Evans) seria capaz de soltar
uma nuvem de abstração por todo o livro, pondo em xeque seus exemplos.
3
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Dessa maneira, a linguagem que usamos todo dia, sua força variável dentro de
um campo social que não é menos repleto de variações (e a relevância disso para uma
filosofia da linguagem)4, é colocada à mercê de sua própria prática (“não foi feita para
conduzir provas”), sendo portanto defeituosa (“os defeitos que brotam disso...”). Mas
não fica muito claro como se dá a relação de comprometimento entre agentes em
comunicação, e essa rejeição – entendida como conseqüência de uma pretensão
explícita do autor, qual seja, a de fundar na lógica-matemática uma filosofia da
linguagem – ela funciona, todavia, como anulação prematura do frutífero encontro que a
filosofia pode encetar com o que não é filosófico (e com o que não é científico), e uma
filosofia da linguagem afeita a uma abertura dessa amplidão encontraria, por exemplo,
nos textos de escritores loucos ou dos que inscrevem a loucura em sua escrita, material
formidável de análise. Mas sobre isso discorreremos à parte.
Pressuposto II – Um espaço acusticamente controlado para que o audiente seja capaz
de ouvir com nitidez o que fala seu interlocutor.
Este talvez seja o pressuposto mais instigante, precisamente porque ele se mostra
em momentos estranhos. É patente que todos aqueles sujeitos que emitem seus juízos ao
longo do livro de Evans, sujeitos sem face e sem história, não fazem senão falar, com
correta pronúncia, o que lhes é devido falar; e ao falarem há quem os escute sem ser
interrompido por ruído algum. Parece-nos, apenas, que a teoria da comunicação, em
Evans, só é possível num local em que todos possam se ouvir com nitidez e perfeição,
até o fim da sentença ou do raciocínio. Qualquer situação que escape dessa espaçotemporalidade ideal é peremptoriamente eliminada. Ao menos dois exemplos, retirados
do livro de Evans, mostram o que estamos dizendo: o primeiro, de alguém que ouve um
pedacinho de conversa com o nome de uma pessoa desconhecida e não pode, então,
desempenhar a função de “vínculo adequado em cadeia alguma de transmissão de
conhecimento”5. E o segundo, em que alguém, n'algum lugar não dito, escuta dizerem
que uma pessoa desmaiou mas não sabe quem foi e, na mesma hora, sussuram-lhe no
4
Como definia Antoine Meillet cem anos atrás, citado por William Labov (2006, p. 11): “A
linguagem é uma instituição com sua autonomia própria: portanto devemos descobrir as condições gerais
de desenvolvimento a partir de um ponto de vista puramente lingüístico, e é este o objeto da lingüistica
geral, com suas condições anatômicas, fisiológicas e psíquicas... mas a partir do fato de que a linguagem é
uma instituição social, segue-se que a lingüística é uma ciência social, e a única variável a que podemos
nos voltar para dar conta da mudança lingüística é a mudança social, de que as variações lingüísticas são
apenas conseqüências”.
5
(EVANS: 1982, p. 387).
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ouvido (voz de alguém digno de confiança) que o príncipe morreu... mas aí não vale,
“isso obviamente não é um mecanismo pelo qual o falante [que disse que alguém
desmaiou] linguisticamente manifesta sua pretendida confiança”6. Tão bem arraigado se
encontra este pressuposto, que uma recomendação surge, na página 310 e posta entre
parênteses, com base num controle daquilo que é dito ou do que é esperado ser ouvido
por interlocutores de um tipo determinado, isto é, já introduzidos numa prática de regras
de conversação, e onde o tom moralista é reticente: “É considerado impolidez usar o
nome de algo já de cara, se não for esperado da audiência ser capaz de identificar o
referente. Em tal situação, a polidez exige que se diga, não 'Eu jantei com NN', mas 'Eu
jantei com alguém chamado NN'”.
Pressuposto III – Um sistema subjetivo de acontecimentos fenomênicos (seemings),
estes codificados como conteúdos de informação.
Gostaríamos de apontar o quanto Evans pode ser considerado devedor da teoria
kantiana das faculdades transcendentais. Para tanto, tomemos os seguintes trechos das
Variedades:
Os únicos acontecimentos que concebivelmente podem ser considerados
como dados para um sujeito consciente e racional são aparências [seemings]
– acontecimentos, isto é, já imbuídos com (aparente) significação objetiva, e
com uma necessária, embora resistível, propensão para influenciar nossas
ações7;
Os estados informacionais que um sujeito adquire pela percepção são nãoconceituais, ou não-conceitualizados. Juízos baseados em tais estados
necessariamente involvem conceitualização: movendo-se de uma experiência
perceptiva para um juízo sobre o mundo (usualmente exprimível em alguma
forma verbal), o que se estará fazendo é exercer habilidades conceituais
básicas8;
O sujeito concebe a si mesmo como estando no centro de um espaço (em seu
ponto de origem), com suas coordenadas dadas pelos conceitos ‘cima’ e
‘baixo’, ‘esquerda’ e ‘direita’, e ‘na frente’ e ‘atrás’. Podemos chamar isso de
‘espaço egocêntrico’, e pensar sobre posições espaciais nessa estrutura
[framework] centralizante no corpo do sujeito pode ser chamado de ‘pensar
egocentricamente sobre o espaço’. Os pensamentos-do-‘aqui’ [‘here’thoughts] de um sujeito pertencem a este sistema: ‘aqui’ denotará uma área
mais ou menos extensiva que se centraliza no sujeito9;
O sujeito deve conceber a si próprio como estando em algum lugar – num
ponto no centro de um espaço egocêntrico capaz de ser alargado de modo a
encompassar todos os objetos10;
A essência do ‘eu’ é a auto-referência [self-reference]. Isso significa que
6
(EVANS: 1982, pp. 313-314).
(EVANS: 1982, p. 123).
8
(EVANS: 1982, p. 227).
9
(EVANS: 1982, p. 154).
10
(EVANS: 1982, p. 168).
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pensamentos-do-‘eu’ [‘I ’-thoughts] são pensamentos em que um sujeito de
pensamento e ação está pensando sobre si mesmo – i.e. sobre um sujeito de
pensamento e ação. É verdade que eu manifesto um pensamento conscientede-si [self-conscious], assim como um pensamento-do-‘aqui’, em ação; mas
eu o manifesto, não ao saber em que objeto agir, mas agindo. (Eu não movo a
mim mesmo; eu mesmo me movo). Igualmente, eu não meramente tenho
conhecimento de mim, como poderia ter conhecimento de um lugar: eu tenho
conhecimento de mim como alguém que tem conhecimento e que faz juízos,
inclusive os juízos que faço sobre mim11.
O que temos aqui? Não seria um sujeito cujo acesso ao mundo se dá através de
“acontecimentos já imbuídos com (aparente) significação objetiva”, pois já implicados,
enquanto material judicativo, no sistema de habilidades específicas do sujeito,
habilidades de conceitualização? E um sujeito centralizado num eu auto-referente a
respeito de seu corpo, ao passo que os objetos do entorno são “encompassados” por
expansão a partir deste eu (e seus analógicos aqui e agora)? É como se o início da
Dialética Transcendental12 estivesse sendo parafraseado, com a diferença que as
representações fenomênicas, todo o sistema representacional que engendra, em Kant, as
faculdades do espírito, desaparecem quase13 que por completo da teoria de Evans, dando
lugar a um sistema relacional de informações, que estabelece as condições epistêmicas
para a experiência de mundo do sujeito, e ao mesmo tempo capacitando-o à proferência
de juízos adequados tanto ao contexto referencial como ao conjunto de informações
harmonicamente acordadas por uma comunidade de sujeitos comprometidos14 a uma
identidade proposicional da realidade. Um outro trecho das Variedades postula tal
sistema junto às capacidades subjetivas envolvidas, ao definir a noção geral de pessoa:
“As pessoas são, em suma e dentre outras coisas, coletoras, transmissoras e
armazenadoras de informação. Esses chavões localizam percepção, comunicação e
memória num sistema – o sistema informacional – que constitui o substrato de nossas
vidas cognitivas.”15 Vemos, aliás, que a definição de pessoa, da maneira como se
exprime aqui, é análoga, proporcionalmente, ao sujeito.
A distinção kantiana entre a intuição e o conceito, entre a estética transcendental
e o entendimento, é retomada por Evans numa visão, porém, mais adaptada aos
paradigmas lingüísticos que imperam hoje em dia, onde as noções de informação e
11
(EVANS: 1982, p. 207).
Kant, Crítica da razão pura, B350-351.
13
O termo “concebível”, no primeiro dos trechos que consideramos, faz do mundo um mundo
para o sujeito, uma representação do sujeito, uma categoria lógica de uso judicativo.
14
Vide o primeiro pressuposto, a idéia de comprometimento na rejeição às línguas vernaculares.
15
(EVANS: 1982, p. 122).
12
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comunicação são capturadas de muitas partes: no controle do Estado, nas práticas e
teorias midialógicas etc. Kant, por outro lado, enquanto intercessor filosófico de Evans,
é sentido mais na ausência que num efetivo confronto entre ambas as filosofias.
Restringindo-se à Crítica da razão pura, Evans no entanto deixa escapar uma das
principais distinções apresentadas por Kant nesta obra, segundo a qual se apreende dois
tipos de síntese, uma que partiria de determinações espaço-temporais para pô-las em
correspondência a determinações conceituais (recognição), e outra que partiria do
conceito para buscá-lo na intuição (esquema). Ambas as sínteses são, evidentemente,
uma operação do conhecimento, mas são também atos da imaginação, e não meramente
de uma imaginação que gera imagens (denominada imaginação reprodutora): Kant dá
um sentido completamente novo à imaginação enquanto produtora de espaços-tempo,
atuando na origem das matemáticas e da geometria, bem como na criação estética de um
artista (e que desemboca nos fascinantes desdobramentos da Crítica da faculdade do
juízo, com a experiência do sublime e a liberação da imaginação de modo que ela
alcance uma função legisladora, ou a criação de um acordo livre e indeterminado entre
as faculdades, sem cair no dogmatismo que afirma uma harmonia entre o sujeito e o
objeto). O motivo por que Evans deixa escapar esse grande momento da filosofia
kantiana está na maneira como ele concebe a imaginação, que parece não passar de uma
variação arbitrária da memória16.
Pressuposto IV – Um sujeito universal cujas habilidades específicas no trato de
informações garantem a objetividade do mundo.
Numa filosofia racionalista de tipo clássico (com a qual enxergamos não poucas
afinidades na teoria de Evans), há um sujeito cujo acesso à verdade do mundo é dado
através de uma inclinação à verdade, uma inclinação inata ao sujeito e que lhe põe em
contato com a verdade do mundo. Evans, com toda certeza, não mais precisa dessa
noção antiga17 para constituir uma identidade do sujeito com o mundo, mas a postulação
do sujeito evansiano requer a mesma função, que é desempenhada pelas habilidades que
este possui, as quais lhe é devido usar, na forma de juízos, de modo a constituir um
16
(EVANS: 1982, p. 246-247).
Que pode ser remontada a Aristóteles: “Todos os homens, por natureza, anseiam saber” (Met.
I, 980a), ou “desejam”, conforme a tradução de Tomás de Aquino para ρέγω: “Proponit igitur primo,
quod omnibus hominibus naturaliter desiderium inest ad sciendum” (Sententia libri Metaphysicæ, liber 1,
lectio 1).
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sistema harmônico de comunicação entre uma comunidade ideal de pessoas. Mesmo
que exista a possibilidade de uma alternância na identidade do sujeito18, as funções que
ele cumpre como fundador da unidade do objeto não são discutidas para além da
pretensão de que o mundo é tal que os juízos de um sujeito são bem sucedidos ao emitir
informações sobre o mundo, contanto que o conteúdo desses juízos, as próprias
informações tenham sido devidamente referidas por qualquer pessoa competente, para
então serem conscientemente representados e capturados como elementos identificáveis
no sujeito19.
Hilary Putnam, numa feroz resenha20 ao livro que nos concerne (onde ele não
apenas censura o uso excessivo de operações da lógica-matemática ao longo da obra,
mas a tecnicalidade do próprio teor do texto de Evans21), diz o seguinte: “o que dá
substância à noção de filosofia como uma disciplina técnica, para Evans, é sua
impressionante confiança de que está descobrindo verdades conceituais indisputáveis e
não apenas falando de um jeito que ele acha instigante”22. Neste trecho, Putnam parece
encontrar também a subjetividade do próprio autor imiscuída no sentido que este dá à
filosofia, e mais importante ainda, o autor enquanto subjetividade produtora de
enunciados, num movimento de adequação do que ele enuncia segundo a lógicamatemática e o que ele mesmo pretende fundar enquanto objeto de estudo filosófico.
Diríamos, então, com outras palavras, que em Evans (mas talvez se pudesse abarcar
muitos autores da filosofia analítica neste comentário) ocorre um hábito de se propôr
enunciados codificáveis pelo sistema formal de uma lógica-matemática que é,
18
Como exemplo, no seguinte argumento (EVANS: 1982, p. 209): “a Idéia que alguém tem de si
mesmo deve também compreender, de uma ponta a outra e acima do vínculo-de-informação [informationlink] e do vínculo-de-ação [action-link], um conhecimento daquilo que, para uma identidade da forma ‘I =
δt’, deveria ser verdade, onde δt é uma identificação fundamental de uma pessoa: uma identificação de
uma pessoa que – diferentemente da identificação-do-‘eu’ [‘I’-identification] – é de um tipo que poderia
estar disponível para um outro alguém” (nosso grifo).
19
“Deveria eu argüir que o caso de nosso conhecimento de nossas próprias ações [...]
similarmente nos compele a uma identidade entre o si mesmo [self] e a coisa física: o agente – o sujeito
de desejos, pensamentos e intenções – é identificado com o objeto que move e muda no mundo”
(EVANS: 1982, p. 224).
20
“A Technical Philosopher”, in London Review of Books, vol. 5, nº 9, 19 maio 1983.
Encontrado em: http://www.lrb.co.uk/v05/n09/hilary-putnam/a-technical-philosopher.
21
“Uma coisa que não dá pra ficar sabendo por uma resenha é a implacável tecnicalidade do
livro. Ele não pode ser usado num curso de graduação em filosofia da linguagem sem umas tantas
disciplinas preliminares sobre Davidson, sobre Kripke etc. (pra não falar num curso preliminar de lógicamatemática). É um livro endereçado aos fiéis especialistas de Evans, e apenas a eles. Filosofia, como
Evans a visualiza, é tão esotérica quanto mecânica quântica.” No sítio virtual, em seguida à resenha,
encontra-se uma resposta do editor de Varieties of Reference (John McDowell) à resenha de Putnam, e
neste ponto McDowell parece prejulgar que uma “audiência geral” seja capaz de entender as
tecnicalidades de Evans, estando estas, é claro, resenhadas por alguém cuja vida é dedicada ao estudo da
filosofia analítica (Hilary Putnam), o que prova a conveniência do termo “esotérico”, usado por Putnam.
22
Putnam (1983).
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metodologicamente, anterior à filosofia. Curioso pensar, por outro lado, que os
exemplos são freqüentemente a contra-prova desse hábito de cientista, remontando a
referenciais ordinários (quem foi o inventor do zíper, pp. 31-32; quem é o homenzinho
verde, p. 352; o jogo de faz-de-contas, pp. 353-368), sorvendo de um imaginário
plantado na gentry, a pequena nobreza britânica (Príncipe Charles desmaiou, p. 313; o
gato preferido da Rainha, p. 121).
Há também uma outra característica marcante no livro de Evans: a proliferação
de termos e noções oriundas do vocabulário jurídico (que tem uma técnica específica,
com desenvolvimentos próprios) e financeiro, e que em momento algum são
tematizados por Evans. Nisso vemos uma inclinação normativa que esse tipo de
vocabulário alimenta: “dividendo”, “crédito”, “garantia”, “dever”, e neste sentido
também a figura do interlocutor digno de confiança, “trustworthy”, cujo lugar
privilegiado na teoria de Evans (pp. 308 e 313) não é posto em questão, tendo todavia
grande importância na comunicação entre os envolvidos.
Agora trataremos de traçar uma linha da loucura a partir do livro de Evans, ou
melhor, traçando essa linha queremos levantar a relevância do estudo da loucura para
uma filosofia tal como Evans a entende. Loucura, entretanto, não é bem o que se
encontra em Variedades da referência, e já vimos, é verdade, que o atrelamento de tal
filosofia à noção de sujeito impede a constituição de outra subjetividade que não a de
uma pessoa racional, de juízo sensato e confiável no que diz respeito à sua índole e à
nitidez de sua pronúncia, ciente e praticante de uma língua dominante; lá não entra
pessoa cujo sistema informacional esteja operando sob mau funcionamento da
percepção, e uma situação de anormalidade encontra lugar apenas como elemento de
prova contra si própria; o que obviamente tapa qualquer possível entrada da
subjetividade outra de um louco: o discurso da loucura seria silenciado a esmo, sua
significação oculta ignorada em favor de uns poucos argumentos técnicos. (Nem é a
loucura do próprio autor que nos importará aqui, muito embora seja este um interessante
tema de pesquisa, conforme fôsse expansivamente conduzido para encontrar as linhas
de loucura num movimento como a filosofia analítica, não só como ela é tratada pelos
autores mas também como poderia ela tratar a filosofia que eles fazem23).
23
Hilary Putnam nos dá elementos para uma idéia neste sentido, no mesmo texto que acima
citamos, A Technical Philosopher: “Foi dito que existem duas espécies de filósofos analíticos hoje em dia:
aqueles que se preocupam em saber se o feixe de gravetos continuará o mesmo se um graveto fôr
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Em certo momento do livro de Evans, onde se busca por quais meios
interlocutores se exprimem com um referente em vista e visando a comunicação,
deparamo-nos com uma noção curiosa e de nome saliência. Saliência do objeto,
saliência objetal. É um parágrafo tranqüilo de Evans:
A saliência pode ser trazida a termo pelo próprio falante, como quando ele
faz um gesto de apontar para acompanhar a proferência de uma expressão
demonstrativa, ou tornando o objeto saliente de uma outra maneira, por
exemplo, mexendo ele, oscilando-o, ou fazendo com que um feixe da luz de
um holofote caia sobre ele. Alternativamente, um falante pode explorar umas
saliências extremas e elevadas que o objeto já tem de qualquer maneira (sem
que seja preciso trazê-la a termo); por exemplo, um falante pode dizer “Ele
teve o bastante” [“He's had enough”], quando numa linha de soldados um
deles se torna saliente ao desfalecer. Seja qual for o caso, se um objeto é
saliente, assim o será apenas àqueles que têm um certo tipo de informação do
objeto, ... logo, apenas àqueles que estão em posição de pensar o objeto numa
certa maneira invocatória de informação24.
A partir da idéia de saliência, perguntamos então: o que se salienta, nas
Variedades, do objeto de estudo que é a loucura? Essa pergunta, para sabermos em que
posição se encontra esta filosofia relativamente ao campo expressivo e ao material de
análise e tratamento das psicoses, e que informações ela própria confere à saliência que
escolheu enfrentar em suas preocupações com a loucura. Falamos assim porque a
loucura se salienta em Evans por meio das ocorrências (não poucas, o que mostra a
insistência do tema) da alucinação. Não nos será vantajoso aqui elucubrar a respeito de
que tipo de alucinação Evans se refere, mesmo porque em nenhum momento ele
especifica o fenômeno alucinatório que lhe instiga, sendo usado ao longo do livro tão
somente o termo hallucination, que para todos os efeitos é vago demais. Ao invés disso,
por precaução, proferimos nosso interesse aqui por alucinações que entram no complexo
sistema de significações de uma psicose (embora também noutros casos, como quando
se alucina por efeito da experimentação de drogas, a alucinação nunca seja superficial).
Tomemos uma das ocorrências da alucinação em Evans: “Se considerarmos um
sujeito que, alucinando, aponta pro espaço vazio e diz, “Ele está vindo me pegar”, eu
espero que todo mundo concorde que ele falhou em dizer alguma coisa (pois ele
claramente falhou em tornar manifesto o tipo de intenção que ele deveria ter tornado
manifesto de modo a dizer alguma coisa)”25. Parece tratar-se de uma alucinação de tipo
removido, e os terapeutas, que tentam curar a primeira espécie desse tipo de preocupação.”
24
(EVANS: 1982, p. 312-313).
25
(EVANS: 1982, p. 338).
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visual, mas não sabemos ao certo, já que existem formas muito distintas de alucinações
(as de forma verbal sendo as mais complicadas e mais profundamente tratadas pela
psicanálise, como alucinações auditivas sofridas por pacientes surdos26). Tratando-se de
uma alucinação visual, supõe-se que o alucinado aponte na direção que ele estaria
internamente experimentado de uma imagem produzida pelo delírio mental, pois ao
apontar ele diz que lhe estão no encalço. Tem-se um gesto, uma frase e a suposição de
que esse gesto corresponda à imagem interna, numa ordem subjetiva e exclusiva ao
alucinado; gesto porém igualmente visto, por quem estiver presente na ocasião,
simultâneo àquelas palavras, “como se” alguém lá estivesse.
A conclusão passeia leve pelos lábios: ninguém lá está onde ele aponta, logo ele
está delirando; e, do ponto de vista de uma teoria da percepção de perspectiva clássica
(que postula como condição epistemológica a existência física de um objeto que está em
contato com um sujeito percipiente), a alucinação é tida como um erro dos sentidos, um
defeito perceptivo, um fracasso epistêmico. Evans define sua hallucination da seguinte
maneira, gostaríamos aqui de decupá-la conforme acontece no texto:
Alucinar é precisamente estar numa condição na qual parece que se está
confrontando alguma coisa. Então, é claro que parecerá correto ao alucinador
dizer que ele realmente está confrontando alguma coisa; é bem plausível que
a situação seja uma em que ele está mesmo confrontando alguma coisa.
Neste ponto, com tal plausibilidade, vislumbra-se possível um início de análise
do sentido oculto nesse confronto: é bem plausível que uma subjetividade delirante
esteja implicada num gesto e numa frase. Poderia uma questão vir à tona: qual é o
sentido daquilo que não se vê e que, no entanto, não apenas se esconde (o alucinado é
quem unicamente vive sua alucinação), como também insiste, ou subsiste, no estado de
coisas, por um gesto, uma frase, porventura toda uma narrativa exposta com
movimentos de corpo27? Isso deslancharia para uma idéia segundo a qual aquele que
delira, seu corpo delirante, entra numa enorme máquina produtora de sentidos que,
todavia, não páram de prescindir de um contexto referencial supostamente acordado e
reconhecido por todos. Simplesmente a subjetividade delirante passa ao largo de
qualquer teoria epistemológica que se funda num sujeito unificante e na identidade de
26
Cf. o texto de Jacques Lacan, “D'une question préliminaire à tout traitement possible de la
psychose” (Lacan, 1966, pp. 531-583).
27
Cf. o trabalho de Fernand Deligny com crianças autistas (o autismo não é incompatível com
alucinações de tipo verbal) e a noção de linha de errância, nos Cahiers de l'immuable. “Voix et voir”,
“Dérives”, “Au défaut du langage”, revista Recherches, nos 18, 20 e 24. Paris, 1975-6.
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tal sujeito consigo mesmo.
Contudo, no prosseguimento do raciocínio de Evans, a alucinação é
imediatamente assimilada a um exemplo tipicamente ilustrador daquela teoria clássica
da percepção:
Pela mesma razão, parecerá correto, a uma pessoa que vê um graveto meio
imerso n’água, dizer que realmente está confrontando algo torto.28
Poder-se-ia dizer de Evans o mesmo que Lacan disse pretendendo combater, em 1936, a
teoria clínica nomeada de “psicologia associacionista”: “assimilando o fenômeno da
alucinação à ordem sensorial, a psicologia associacionista tão só reproduz o alcance
absolutamente mítico que a tradição filosófica conferia a esse fenômeno, na questão
escolar sobre o erro dos sentidos”29.
É curioso descobrir que tal concepção é idêntica à definição do fenômeno
alucinatório para a medicina psiquiátrica do século
XIX.
Jean Étienne Dominique
Esquirol, em 1838, definiu a alucinação como uma “sensação atualmente percebida,
enquanto que nenhum objeto próprio a excitar esta sensação está ao alcance dos
sentidos”, e em 1864, Jean-Pierre Falret cunha a frase que deveio clássica: a alucinação
é uma “percepção sem objeto”30. O problema dessas definições é criarem a ficção de um
sujeito alucinado separável de sua própria alucinação, como se esta fosse um instante
breve de insanidade, falha da razão, ou desrazão, o que é profundamente insatisfatório
do ponto de vista do tratamento de uma psicose. Evans, naturalmente, no único
momento em que esboça uma preocupação terapêutica com o sujeito alucinado, só
consegue sugerir como tratamento uma correção da sentença proferida pelo alucinado,
em favor de sua adequação com a situação referencial:
quando a intenção é direcionar a atenção dos pensamentos do audiente para
alguma coisa de que o falante acha que também ele tem informação, nada
além do objeto de que deriva a informação pode ser o referente desse uso do
termo. Assim, se o falante está alucinando e profere uma sentença contendo
um demonstrativo, “Este homem está prestes a nos atacar”, na crença de que
sua audiência possa perceber a mesma pessoa, o demonstrativo está sem
referente: a coisa certa a ser dita é: “Acalme-se: aquele homem não existe” –
mesmo que, por acaso, aconteça de haver algum homem na direção geral
indicada pelo falante. 31
28
(EVANS: 1982, p. 200).
“Au-délà du ‘principe de réalité’” (Lacan, 1966, p. 77).
30
Extraídas do ótimo texto de Frédéric Pellion (2005, pp. 283-299), “Six notes à propos de
l'hallucination verbale selon Jacques Lacan: un cas du dialogue psychanalyse/psychiatrie”.
31
(EVANS: 1982, p. 323).
29
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E que tipo de homem é esse? por que nos atacaria? por que atacaria a nós? por que não
apenas o alucinado? por que não apenas aquele que o acompanha?, seriam perguntas
relevantes a caminho de um tratamento aprofundado do sujeito que alucina (contanto
que não seja exigido do alucinado conformar-se às condições epistêmicas ditadas por
um sujeito racional, sensato e abstrato).
Receamos, com essas alusões rápidas, fazer do traçado de nossa linha da loucura
algo que tão somente aceitaria as teorias psicanalíticas como esperta alternativa ao
problema da significação de um delírio, do sentido de uma alucinação, o que seria bem
simplório. Não há tempo agora tampouco espaço para iniciar uma exposição que
trouxesse as contribuições psicanalíticas no campo do sentido e da significação das
psicoses, e mais importante, de que maneira uma filosofia da linguagem lidaria com este
campo assim montado. Entretanto, gostaríamos de concluir de maneira a reunir o que
dissemos neste texto. Dizíamos de um hábito, que em Evans se nos mostrou patente, de
se propôr enunciados codificáveis por uma lógica-matemática. Ora, esse aparato técnico
oriundo da lógica-matemática e elaborado pela filosofia analítica, para sobreviver à
força de linguagem e de pensamento que os loucos produzem, teria de passar por
profundas e violentas transformações. É um problema de linguagem que Evans parece
ignorar, e mesmo até com certo desdém, inda que sua polidez lhe possa valer como
desculpa. Não mais a figura de um sujeito racional e supostamente confiável como
garantia de validez dos argumentos, sendo ele alguém competente para pronunciar
distintamente uma língua e entendê-la segundo a norma gramatical, ou segundo uma
máquina abstrata e universal, majoritária e dominante; mas a própria linguagem como
heterogeneidade não identificável por sujeito algum, composta por linhas de fala e de
escrita. Tais linhas, no tracejado que elas fazem, certamente poderiam ser apreendidas
de acordo com uma lógica própria, que elas mesmas fabricam, contaminando toda a
gramática e a sintaxe, e onde as relações que determinam padrões de verdade
desempenham um papel secundário.
* Guilherme Ivo é atualmente mestrando em filosofia sob orientação de Luiz Benedicto Lacerda Orlandi,
trabalhando a respeito com as conexões entre a filosofia deleuzeana e a literatura anglo-americana.
Nossos interesses versam, sob diversas circunstâncias, para autores da filosofia da linguagem e seus
conceitos. (About the author: Presently pursuing a master’s degree in philosophy under direction of Luiz
Benedicto Lacerda Orlandi, on the connexions between deleuzean philosophy and anglo-american
literature. Our interests, under various circumstances, turn to authors of the philosophy of language and
their concepts.) E-mail: [email protected].
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REFERÊNCIAS
DELIGNY, Fernand. Cahiers de l'immuable. “Voix et voir”, “Dérives”, “Au défaut du
langage”, in Recherches, nos 18, 20 e 24. Paris, 1975-6.
EVANS, Gareth. The Varieties of Reference. Ed. John McDowell. Oxford: Oxford
University Press, outubro 1982.
LABOV, William. Sociolinguistic Patterns. Filadélfia: University of Pennsylvania
Press, 1972.
_______. The Social Stratification of English in New York City. 2ª ed. Cambridge:
Cambridge University Press, 2006.
LACAN, Jacques. Écrits. Paris: Seuil, 1966.
PELLION, Frédéric. “Six notes à propos de l'hallucination verbale selon Jacques Lacan:
un cas du dialogue psychanalyse/psychiatrie”, in Cliniques méditerranéennes, nº 71,
2005/1, pp. 283-299.
PUTNAM, Hilary. “A Technical Philosopher”, in London Review of Books, vol. 5, nº 9,
19 maio 1983. Encontrado em: http://www.lrb.co.uk/v05/n09/hilary-putnam/a-technicalphilosopher.
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