Uma experiência da ActionAid na luta pelo do direito à alimentação

Transcrição

Uma experiência da ActionAid na luta pelo do direito à alimentação
editorial
1
Editorial
O primeiro número da Food Files recebeu o prêmio de Melhor Publicação da
ActionAid. Atingiu mais de 30 países da África, Américas, Europa e Ásia. A revista foi apresentada em eventos internacionais chave, incluindo o Dia Mundial
da Alimentação, em Roma, a Cimeira EU-África, em Lisboa, e a XII Conferência
das Nações Unidas para o Comércio e o Desenvolvimento (UNCTAD), em Accra.
Ela também chegou às mãos de nossos mais importantes parceiros, bem com
de Jacques Diouff (Secretário Geral da FAO), Koffi Annan (ex-Secretário Geral
da ONU), e representantes de importantes órgãos financiadores, tais como a
Comissão Européia e a Global Donors Platform (GDPRD, na sigla em inglês).
Recebemos comentários muito positivos, em geral, e um enorme número de
artigos a serem publicados pela revista. Food Files está se tornando um sucesso
e – para nosso grande prazer – um desafio ainda maior.
O segundo número de Food Files traz algumas das discussões chave em
torno da crise mundial causada pela alta dos preços dos alimentos, aprofundando o debate acerca das causas de tal fenômeno e suas soluções, por meio
de três artigos: Biocombustíveis e segurança alimentar: questões para um debate crítico; A aliança para uma Revolução Verde na África: fazendo da África
um repositório de tecnologias agrícolas falidas; e Direito à alimentação e ajuda
alimentar: um casamento na prática. Temos a intenção de dar continuidade à
nossa discussão acerca da crise mundial envolvendo os preços dos alimentos
em nosso próximo número.
As mudanças climáticas e as formas de mitigar seus efeitos também são
discutidas nos artigos Sistemas agroecológicos: contribuindo para a mitigação
dos efeitos das mudanças climáticas, e Tecnologias sociais: aprendendo com as
comunidades locais.
Os efeitos negativos, efetivos e potenciais, de um ambiente internacional
de crescente liberalização do comércio no cumprimento progressivo do direito
à alimentação também são apresentados e analisados em Altas abruptas na
importação de arroz e aves em Gana, e, no artigo de capa, Acordos de parceria
econômica: destravando o desenvolvimento dos ACP ou encerrando-os na pobreza?
Experiências positivas na luta pelo direito à alimentação são apresentadas
em Política, legislação e fome: avanços legislativos no combate à desnutrição
na América Latina e no Caribe; Movimentos sociais na África e a luta pelo direito
à alimentação; Podemos ter acesso a um pouco desse crescimento? Uma experiência da ActionAid na Tanzânia no combate em favor do direito à alimentação; Desafios à segurança alimentar no Malawi e o engajamento da sociedade
civil; e Construindo uma rede comunitária de proteção e aproveitamento dos
recursos naturais.
Nosso propósito, com estes artigos, é estimular o debate crítico acerca de
questões emergentes, e apresentar e compartilhar experiências de boas práticas
que contribuem para o cumprimento do direito à alimentação. Esperamos que
Food Files os inspire em sua prática e reflexão cotidianas! Ficaremos felizes de
ter sua opinião e esperamos receber mais comentários e sugestões.
Sinta-se à vontade de escrever-nos através do e-mail [email protected].
Francisco Bendrau Sarmento
Diretor Internacional do tema Direito à Alimentação/ActionAid
file
Jose Luis Vivero Pol1
2
Responsável técnico da Iniciativa América Latina y Caribe Sin Hambre
Escritório Regional da FAO para América Latina e Caribe, Santiago, Chile
Política, legislação
e fome
Avanços legislativos
no combate à desnutrição
na América Latina e no Caribe
Desde 2003, a
América Latina
e o Caribe têm
visto um notável
desenvolvimento
nas estruturas legais
e institucionais
destinadas a
assegurar o direito
a estar livre da fome
e à alimentação
adequada de todos
os cidadãos dos
países da região.
Desde 2003, a América Latina e o Caribe têm visto um notável desenvolvimento nas estruturas legais e institucionais destinadas a assegurar o direito
a estar livre da fome e à alimentação adequada de todos os cidadãos dos
países da região. Ainda que não se tenha atendido à urgência demandada
pela sociedade, a questão da combate à fome tem adquirido gradualmente
uma presença mais forte nas agendas públicas nacionais e regionais da
América Latina. Apesar da persistência de significantes desigualdades
na região, a América Latina e o Caribe estão atravessando um período
econômico extremamente positivo. De acordo com os dados da Comissão Econômica para América Latina e Caribe das Nações Unidas (CEPAL),
enquanto o crescimento econômico anual médio na década de 1980 foi de
apenas 9%, subiu para 33%, no período de 1991-2000 e, subseqüentemente, para 41% no período 2000-20052. O momento histórico oferecido
por esta bonança na renda pública e a vontade política de assegurar o direi­
to à alimentação apresentam sólidas bases para a redução da desnutrição
e eliminação do flagelo da fome. Todavia, na América Latina e no Caribe,
524 milhões de pessoas, ou 10% da população, ainda carecem de acesso
adequado à alimentação. Embora a região esteja avançando no sentido de
cumprir a primeira Meta de Desenvolvimento do Milênio para 2015 (reduzir
a fome), o compromisso assumido por todos os países da região durante
a Cimeira Mundial da Alimentação (CMA), em 1996, de reduzir à metade o
número de pessoas com fome ainda está de certa forma distante: se as
tendências atuais de redução da subnutrição e de crescimento da população se mantiverem, até 2015, pode-se esperar que o número de pessoas
desnutridas na América Latina e no Caribe seja de cerca de 41 milhões, ao
passo que a meta determinada na CMA foi de 30 milhões3.
O RETORNO DOS TEMAS DA FOME E DA DESNUTRIÇÃO ÀS AGENDAS
SOCIAIS DA REGIÃO
Vários governos latino-americanos e caribenhos reafirmaram seu apoio ao
combate à fome na região nos últimos meses. A lista inclui Argentina, Barbados, Bolívia, Brasil, Chile, Guatemala, Paraguai e Uruguai, países cujos
líderes confirmaram que o tema é uma prioridade para seus governos.
file
3
Tal como a FAO tem defendido, há muitos anos, o
primeiro compromisso necessário para eliminar a fome
é político. Governos têm se tornado cada vez mais
conscientes deste fato no últimos anos. Ao ser empossado, em Barbados, o Primeiro Ministro Thompson
enfatizou a promoção da segurança alimentar como
sendo uma prioridade. O mesmo compromisso foi feito
pelo Presidente da Guatemala, Álvaro Colom, em sua
cerimônia de posse. Esta confirmação de que o combate à fome é hoje uma prioridade neste país centro-americano sinaliza a transformação de uma política
de governo em uma política de Estado.
Em Dezembro de 2007, o comunicado conjunto
dos presidentes do Estados Membros do MERCOSUL (Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai), emitido
ao final da 34a Reunião do Conselho, à qual também
compareceram os presidentes da Bolívia e do Chile,
reitera o compromisso dos países de eliminar a fome
e ­combater à pobreza, e seu apoio à iniciativa América
Latina e Caribe Sem Fome (ALCSH, na sigla em espa­
Declaração de Paz assinada durante a visita de Presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva a seu colega
boliviano, Evo Morales.
A INICIATIVA AMÉRICA LATINA E CARIBE SEM
FOME SE TORNA PARTE DA AGENDA
O Brasil e a Guatemala desempenharam um importante papel na promoção do combate à fome enquanto
Gideon Mendel/ Corbis/ ActionAid
nhol)4. O combate à fome também foi ressaltada na
prioridade política em nível regional. Estas medidas se
concretizaram por meio da iniciativa ALCSH5, um projeto mais tarde apoiado por outros países e cujo es-
LEIS CONTRA A FOME
NA AMÉRICA LATINA
critório técnico é gerido por um escritório regional da
FAO, com apoio financeiro da Espanha. Este coordena os esforços para garantir que nossa região seja a
primeira, dentre as regiões em desenvolvimento, a estar livre da fome.
Argentina:
Lei criando o Programa nacional
de nutrição e alimentação
17 de Janeiro de 2003.9
Tal como o suporte explícito dos Chefes de Estado de alguns países no sentido de alcançar-se uma
América Latina livre da fome(i.e., Brasil, Bolívia, Guatemala, Panamá, Paraguai), a idéia de que a região pode
livrar-se de uma vez por todas do flagelo que a parece
Guatemala:
Sistema legislativo nacional de Segurança
alimentar e Nutricional
6 de Abril de 2005.10
ter retido, desde a idade média, também foi expressa
em declarações políticas durante reuniões regionais.
Ao final da declaração da 16a Cimeira de países Ibero-Americanos, realizada em Outubro de 2006, no Uru-
Ecuador:
Lei da Segurança alimentar e Nutricional
27 de Abril de 2006.11
guai,6 todos os Chefes de Estado e Governos mostraram seu apoio específico à iniciativa ALCSH (ponto 5 da
Declaração).
Outras provas de suporte político tiveram lugar na
Guatemala, durante o 5o Fórum Regional de Segurança
Brasil:
Lei criando o sistema nacional
de segurança alimentar e nutricional
15 de Septiembre de 2006.12
file
Jose Luis Vivero Pol
4
América Latina e Caribe, na liderança do
altos níveis de fome, e também exporta carne e grãos
combate em favor do direito à alimentação
de consumo geral para o mercado mundial. Atual-
Entre os dias 21 e 24 de Janeiro de 2008, um Workshop
mente, existem quatro países com Leis de Segurança
Regional foi realizado em Manágua acerca da Legislação
Alimentar (Argentina, Brasil, Equador e Guatemala), e
sobre os Direitos à Alimentação, que serviu para enfatizar
nove em que projetos de leis estão em tramitação no
a robusta saúde das campanhas para garantir o direito à
parlamento (Haiti, México, Panamá, Honduras, Costa
alimentação em muitos dos países da região .
Rica, Nicarágua, Paraguai, Peru e Bolívia)13. Esta ini-
A riqueza das discussões forneceu valiosas
ciativa legislativa para assegurar o direito a estar livre
contribuições para aprimoramento do Guia e permitiu
de fome e ter alimentação adequada não encontra
que se fizesse uma comparação e uma discussão acerca
paralelo em outras regiões do mundo.
7
de uma ampla gama de processos legais com respeito
Durante o ano de 2007, a iniciativa “América Latina
a este direito na região. O workshop demonstrou
e Caribe Sem Fome” promoveu uma variedade de ativi­
amplamente que a América Latina é atualmente a
dades relacionadas ao direito à alimentação, dentre as
região mais avançada em termos de leis, instituições
quais podemos mencionar todo o apoio dado aos países
e consciência pública acerca do direito à alimentação.
da região e representantes da FAO no sentido de orga-
O fato de que o público latino-americano esteja tão
nizar atividades em torno do Dia Mundial da Alimenta-
amplamente consciente dos problemas causados pela
ção 2007, cujo tema chave foi o direito à alimentação.
fome, e demande a implementação de soluções e o
Neste contexto, foi autorizada a elaboração de estudos
respeito dos direitos humanos tem conseqüências que
acerca dos “Avanços e desafios na implementação do
vão além de sua área – oferecendo valiosas lições para
direito à alimentação” em cada um dos setes países
outras regiões tal como Ásia e África.
definidos como prioritários; tais relatórios foram produzidos por sete nacional ONG’s nacionais, com o apoio
de quatro ONG’s internacionais que trabalham em favor
alimentar e nutricional, organizado pelo Parlamento
do direito à alimentação (ActionAid, FIUMA International,
Centro-Americano (PARLACEN) e o Secretariado Centro-
Action Against Hunger e Prosalus). Estes relatórios pode
Americano Integração Social (SISCA), em que foi mais
ser encontrados no website da iniciativa ALCSH: http://
uma vez feita menção expressa à iniciativa ALCSH. Por
www.rlc.fao.org/iniciativa/infda.htm
fim, na declaração final do 3o Fórum Parlamentar Ibero-Americano,8 reunido em Valparaíso, Chile, nos dias
ASPECTOS POSITIVOS DAS LEIS DE SEGURANÇA
11 e 12 de Novembro de 2007, foi feita uma referência
ALIMENTAR
explicita, no ponto 3, a “incitar os parlamentos Ibero-
As leis de segurança alimentar e para o direito à ali-
-Americanos a tornarem possível a aprovação de leis
mentação refletem o interesse de Estados em ­alcançar
específicas sobre segurança alimentar, com o objetivo
gradualmente este direito, na medida em que o desen-
de darem assistência aos governos nacionais no com-
volvimento de enquadres legais já aparece no Comen-
bate à fome e à extrema pobreza.”
tário geral no. 12 do Pacto Internacional sobre Direitos
Econômicos, Sociais e Culturais (PIDESC), e nas Dire-
Boas perspectivas para as leis sobre segurança
trizes Voluntárias14. Mais recentemente, o documento
alimentar
final do Protocolo Opcional do PIDESC foi enviado à
O objetivo de uma política nacional de alimentação, no
Assembléia Geral da ONU para aprovação final. Este
âmbito dos direitos humanos é garantir o direito de to-
protocolo permitirá que queixas relacionadas à viola-
dos os cidadãos do país à alimentação de quantidade
ção de quaisquer destes direitos sejam apresentadas
e qualidade suficientes. Uma das formas de exprimir
em cortes internacionais, uma possibilidade de ex-
este direito em alguns países é através da promulga-
trema importância para o direito à alimentação.
ção de Leis referentes à Segurança Alimentar e Nu-
As Leis de SAN aprovadas até o momento repre-
tricional, que estabeleçam o marco regulatório para o
sentam um corpo de importantes avanços capazes de
Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional
tornar o direito à alimentação uma realidade para os
(SAN), e determine um orçamento mínimo para a ope­
cidadãos mais desfavorecidos da região. Dentre os as-
racionalização deste sistema.
pectos ressaltados, podemos dizer que:
A Argentina foi o primeiro país na região a introduzir
a. Todas as leis incorporam a referência ao direito à ali-
uma lei de segurança alimentar, algo de certa forma
mentação na condição de princípio legal orientador da
paradoxal dado que não é um dos países com os mais
natureza da lei. Entretanto, existem divergências nas
file
5
definições adotadas, na medida em que é raramente
a. As leis não envolvem meramente estabelecer pro-
feito uso de definições de segurança alimentar, dire-
cedimentos e mecanismos para queixas de violações
ito à alimentação e soberania alimentar adotadas em
do direito à alimentação. Órgãos judiciais, para-judici-
tratados internacionais e nos documentos assinados
ais e administrativos têm que ser designados, aos quais
pelos próprios países.
queixas e apelos relacionados à violação de direitos
b. Todas as leis criam um sistema nacional de se-
da alimentação possam ser apresentados. Também é
gurança alimentar
15
destinado a coordenar os vários
necessário determinar penalidades no código penal.
ministérios com o propósito de eliminar a fome e a
b. As leis deveriam incorporar uma alocação orça-
desnutrição. É criado pelo sistema um Conselho Na-
mentária de acordo com a magnitude do problema,
cional de Segurança Alimentar como órgão norteador,
fazendo distinção entre o orçamento necessário para
ligado ao mais alto nível hierárquico (Presidência ou
a ­operacionalização do sistema nacional de segurança
Vice-Presidência) e formado por ministros e repre-
alimentar, e o orçamento para a implementação dos pro-
sentantes da sociedade civil. No caso do Brasil, este
gramas concretos de combate à desnutrição. Ademais,
Conselho tem uma natureza consultiva, ao passo que,
a instituição de gastos progressivos – evitando-se gas-
na Guatemala e no Equador, o órgão pode tomar de-
tos não regressivos – não está garantida em nenhuma
cisões finais. É recomendado que a presidência deste
das leis, apesar das diretrizes do PIDESC e da obriga-
órgão seja assumida pelo Presidente ou Vice-Presi-
ção de implementação progressiva, ou constante. A
dente, para assegurar que esteja ligado ao mais alto
lei guatemalteca determina um orçamento mínimo, ao
nível hierárquico, e que seus membros sejam Ministros
passo que, no Equador, a lei estabelece um fundo para
ou representantes dos Ministros.
combate à fome (que nunca foi levado a efeito), embora
c. Todas as leis priorizam grupos vulneráveis, em unís-
nenhuma das duas faça menção a gastos sociais pro-
sono com uma das dimensões do direito (estar livre de
gressivos para garantir o direito à alimentação.
fome), embora apenas Argentina e Brasil mencionem a
c. Litigação estratégica e desenvolvimento de juris-
segurança destes grupos, um dos aspectos universais
prudência, dado que pouquíssimos casos envolvendo
do direito relativo à alimentação adequada.
a violação deste direito foram levados a uma corte16.
d. A elaboração de todas as quatro leis compreender-
Com efeito, existem apenas seis casos documenta-
am um processo participativo, e a participação da so-
dos de uso do direito à alimentação como argumento
ciedade civil organizada em suas estruturas decisórias
jurídico que tenha sido tentado com sucesso. Alguns
é enfatizada, especialmente no Brasil, onde o CONSEA
destes casos apenas usam o direito à alimentação
(o órgão consultivo) é composto principalmente da
de forma oblíqua, mais como um tema central do que
­sociedade civil. Na Guatemala e no Equador, a socie-
como argumento legal. Muito mais litigação estratégica
dade civil e o setor privado têm ambos representa-
é necessária por parte dos advogados, associações e
ção no Conselho Nacional de Segurança Alimentar, o
ONG’s de defesa dos direitos humanos para que seja
órgão norteador e decisório em assuntos relacionados
criada uma jurisprudência. Recentemente, outro caso
ao tema.
interessante teve lugar na Argentina (Setembro de
e. Algumas leis (Guatemala e Equador) mencionam de
2007)17, em que a Corte Suprema determinou como me-
forma expressa os mecanismos de monitoramento e
dida precaucionária que o Estado nacional e o governo
análise da segurança alimentar; entretanto, nenhum
da Província do Chaco deveriam fornecer alimentos e
deles incorpora atividades preventivas ou de repara-
água potável para as comunidades indígenas Toba da
ção imediata em casos de fome.
província, bem como meios adequados de transporte
e comunicação para cada um dos postos de saúde,
DESAFIOS QUE RESTAM A SER INCORPORADOS ÀS
na medida em que são os principais responsáveis por
LEIS PROPOSTAS EM DEBATE
efetivamente assegurar os direitos dos grupos indíge-
Tal como mencionado anteriormente, novos projetos
nas. Esta resolução foi provocada por uma ação legal
de lei sobre segurança alimentar e o direito à alimenta-
impetrada pela instituição pública de Defensoria do
ção estão sendo agora debatidas, revistas e em trâmite
Povo da Nação no sentido de modificar as deploráveis
em vários parlamentos da região para aprovação final.
condições de vida destes grupos indígenas, que regu-
Nestas propostas, recomendamos levar em conta cer-
larmente são mencionados em notícias em virtude da
tos aspectos que parecem expor fragilidades em qua-
morte de suas crianças por desnutrição severa.
tro das leis já aprovadas e que podem ser aprimorados
em projetos de leis futuras.
file
Jose Luis Vivero Pol
6
EM CONCLUSÃO
Está claramente evidente para todos que o modelo
neoliberal de mercado está enfrentando uma a crise
em nível global, modelo esse que defende sacrificar o
papel regulatório do Estado em favor do livre mercado
mundial com um mínimo de regras que beneficiem as
grandes multinacionais e os países do primeiro mundo. Este sistema está mostrando sinais inequívocos
de enfraquecimento em todo o mundo. Entretanto, na
América Latina e no Caribe, a crise terá menos impacto
do que nas outras regiões, na medida em que a região
produz quantidades excedentes de alimentos. Não
obstante, esperamos todos que estas indicações da
crise de alimentos tenha mostrado o perfil político do
direito à alimentação, no sentido de que deixe de ser
um direito econômico e social de menor importância,
pouco desenvolvido e pouco conhecido, e se torne o
pilar das políticas de alimentação atualmente em desenvolvimento na região.
Observamos que a região está progredindo com
avanços que atingem todos os seus cidadãos e asseguram aos que têm fome cumprimento do direito à
alimentação. Este progresso pode ser identificado na
maioria dos países em que é promovido por governos,
sociedade civil e órgãos legislativos.
Para este fim, as leis de segurança alimentar são
um passo importante na consolidação do combate
à fome enquanto política de estado, mas não são o
fim do processo, sendo meramente mais um passo
à ­frente. O trabalho conjunto (cooperação sul-sul) é
um aspecto chave desta meta. E na medida em que
­existem mais de 12 países envolvidos nestes processos, acreditamos que seja extremamente importante
cultivar uma troca de experiências entre eles com relação à promoção do direito à alimentação.
Por fim, gostaríamos de ressaltar o papel desempenhado pela sociedade civil latino-americana neste
processo de consolidação do direito a estar livre de
fome. Os que têm fome não conhecem este direito e,
assim, nunca o reclamarão. Eles precisam de apoio
para descobrir este direito e torná-lo em queixa formal
de denúncia de violação de direitos.
É aqui que as organizações da sociedade civil de
muitos países estão desempenhando um notável papel ao ampliar a disseminação das bases deste direito,
produzindo relatórios nacionais acerca dos avanços
nos países da região, e levando os primeiros casos de
denúncia contra a fome às cortes. O direito a estar livre
da fome requer mais jurisprudência e maior reconhecimento. Neste sentido, a sociedade civil, ONG’s, associações de produtores, universidades são fundamentais
para levar adiante a idéia de que “comer é um direito.”
1 Este documento reflete unicamente as opiniões e idéias do
autor, e não representam de nenhuma maneira uma posição
representativa da FAO em relação aos tópicos contidos no texto.
Por este trabalho, o autor agradece a contribuição de Armando
Aravena e de Andrés Pascoe.
2 FAO/CEPAL/PMA (2007). Hambre y cohesión social: Cómo
revertir la relación entre inequidad y desnutrición en América Latina
y el Caribe. FAO, Santiago de Chile.
www.rlc.fao.org/iniciativa/librocs.htm
3 FAO (2006). El estado de la inseguridad alimentaria en el mundo.
Roma.
4 www.mercosur.coop/recm/IMG/pdf/comunicado_conjunto_
mercosur.pdf
5 A Iniciativa ALCSH foi lançada pelos Presidente Lula, do Brasil,
e Berger, da Guatemala em setembro de 2005, na Guatemala,
e busca sensibilizar os tomadores de decisão, informar
administradores governamentais e divulgar informações para o
público em geral, com relação à fome na região, visando colocar
a questão nas agendas políticas dos países e da região como um
todo. A iniciativa tem recebido apoio político de todos os
presidentes da região, tanto individualmente quanto em
declarações regionais. www.rlc.fao.org/iniciativa
6 www.oei.es/xvicumbredec.htm
7 O evento recebeu o apoio da Unidade de Direito à Alimentação
da FAO Roma (www.fao.org/righttofood) e da iniciativa “América
Latina e Caribe Sem Fome” (www.rlc.fao.org/iniciativa), como
parte de seus esforço para auxiliar na implementação do direito à
alimentação em todos os países da região.
8 www.foro-chile.cl/prontus_foroiberoa/site/artic/20070913/
asocfile/iii_foro__declaracion_de_valparaiso_2007.pdf
9 ARGENTINA, Lei do programa nacional de nutrição e
alimentação, Janeiro de 2003.
www.desarrollosocial.gov.ar/Planes/PA/normativa/ley25724.asp
10 GUATEMALA, Lei do sistema nacional de segurança alimentar e
nutricional, Abril de 2005.
www.congreso.gob.gt/archivos/decretos/2005/gtdcx32-2005.pdf
11 ECUADOR, Lei do segurança alimentar e nutricional,
Abril de 2006. http://apps.congreso.gov.ec/sil/documentos/
autenticos/22-631.pdf
12 BRASIL, Lei n. 11346, criando o Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional, Setembro de 2006. www.
planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2004-2006/2006/Lei/L11346.htm
13 COSTA RICA, Lei marco de segurança e soberania alimentar e
nutricional (proposta).
www.fao.o.cr/docs/propuesta_ley_marco_sam.pdf
NICARAGUA, Lei de segurança e soberania alimentar e nutricional
(proposta). http://legislacion.asamblea.gob.ni/sileg/iniciativas.nsf/0
1c00d5076037b5b062572d00072bee8/caf29f2bb00d13dd06256
886005796dc?opendocument&tablerow=3.1#3.
MÉXICO, Lei pela implementação da soberania e segurança
agroalimentar e nutricional (proposta).http://desarrollo.diputados.
gob.mx/camara/content/view/full/7575
PERÚ, Lei pelo direito à uma alimentação adequada (proposta).
http://www2.congreso.gob.pe/sicr/tradocestproc/tradoc_
condoc_2006.nsf/porley/01390/$file/01390.pdf
14 O desenvolvimento de Leis de NSA faz parte das Diretrizes
Voluntárias, que foram ratificadas por 185 países, em 2004.
Na América Latina e no Caribe, existem seis países que não
ratificaram a ICESCR (Antígua e Barbados, Belize, Bahamas, Haiti,
Saint Kitts e Nevis, e Santa Lúcia), embora todos tenham ratificado
a Declaração Universal de Direitos Humanos e aprovado as
Diretrizes Voluntárias como membros da FAO. Seu compromisso é
mais moral do que contratual.
15 A lei argentina se refere mais à criação do programa nacional
segurança alimentar, e menos à coordenação do sistema nacional
de instituições, responsabilidades, objetivos e fundos.
16 No website da Internacional Network for Economic, Social
and Cultural Rights existem apenas seis casos de jurisprudência
relacionados ao direito à alimentação: dois no Paraguai, dois na
Índia, um na Nigéria e um na Suíça. Como argumento, os casos
paraguaios usam em vez disso o direito à terra e uma vida digna.
www.escr-net.org/caselaw/caselaw_results.htm?attribLang_
id=13441
17 Como de litigação estratégica, podemos mencionar o caso do
trabalho do Centro Argentino de Estudos Legais e Sociais
(www.cels.org.ar), que gentilmente nos cedeu a recente sentença
da Suprema Corte daquele país.
*Consultor de alimentos e política comercial, ActionAid
**Analista independente de política comercial, baseado na Namíbia
Acordos
de Parceria
Econômica
destravando o desenvolvimento ou
encerrando os países na pobreza?
Introdução
Os mais de 30
anos de acesso
preferencial ao
Mercado europeu
fracassaram em dar
os frutos esperados,
e os Países da
África, do Caribe e
do Pacífico (ACP)
ainda estão lutando
para integrarem-se à
economia mundial
Os mais de 30 anos de acesso preferencial ao Mercado europeu falharam
em dar os frutos esperados, e os Países da África, do Caribe e do Pacífico
(ACP) ainda estão lutando para integrarem-se à economia mundial. A participação do comércio entre os países ACP e a União Européia (UE) caiu de
67%, em 1976, para 29%, em 2003. A economia de vários destes países,
particularmente na África, ainda é altamente dependente do comércio de
algumas commodities agrícolas – tais como café, cacau ou tabaco –, e da
cooperação internacional1.
No Burundi, São Tomé e Príncipe, Etiópia, Malawi e Uganda, a participação nas exportações de uma única commodity é superior a 50 % do
total de exportações de mercadorias. Em 2005, a cooperação internacional
representava 468% do PIB no Burundi, 368% no Congo e 541% na Libéria,
para citar apenas alguns países.
Tais fatos, ao lado da questão de compatibilidade com as regras do
Organização Mundial do Comércio (OMC) (ver box sobre a compatibilidade
entre os EPA’s e a OMC), têm sido os dois principais motivos por trás da
negociação dos Acordos de Parceria Econômica (EPA’s, na sigla em inglês).
Enquanto a necessidade de uma profunda mudança nas relações comerciais e econômicas entre a UE e os países ACP é amplamente comparti­
lhada entre todas as partes, a direção de tal mudança tem sido objeto de
intensas disputas.
Resumidamente, a Comissão Européia (CE) mantém seu foco no fato
de que o sistema de preferências não contribuiu para promover uma diversificação econômica – daí, o motivo para suspendê-lo. Os países ACP enfatizam o fato de que o sistema de preferências foi concebido de forma que
relegaram os ACP’s ao papel de exportadores de commodities e matérias
file
7
Mariano Iossa / ActionAid
Mariano Iossa* e Wallie Roux**
file
Mariano Iossa e Wallie Roux
8
ACORDO DE COTONOU
O Acordo de Cotonou é um tratado entre a União
Européia (UE) e o grupo de países da África, do
Caribe e do Pacífico (ACP). Foi assinado em junho
de 2000 e entrou em vigor em 2002, em substituição
às Convenções de Lomé que foram a base de
cooperação ACP-EU para o desenvolvimento, desde
1975. O Acordo de Cotonou teria uma validade de
vinte anos, prevendo uma cláusula de revisão para
Mariano Iossa / ActionAid
cláusula adaptá-lo a cada cinco anos.
O Acordo de Cotonou visava reduzir, e eventualmente
erradicar, a pobreza, ao mesmo tempo em que
contribuiria para o desenvolvimento sustentável e
a gradual integração dos países ACP na economia
mundial. Após a primeira revisão, em 2005, também
passou a incluir o combate contra a impunidade
e a promoção de justiça criminal através da Corte
Criminal Internacional. O acordo baseia-se em cindo
atrair os investimentos necessários − e evitar a fuga de
pilares interdependentes: uma dimensão política
capitais −, estimular políticas regionais de integração
valorizada, maior participação, uma abordagem mais
e, em última instância, favorecer o comércio intra-re-
estratégica da cooperação focando em redução da
gional. Isso resultaria na diversificação de economias
pobreza, novas parcerias econômicas e comerciais,
e promoveria um ciclo econômico virtuoso. A retórica
e maior cooperação financeira.
da CE concernente a este ambicioso projeto pode ser
bastante atraente. Contudo, olhada mais de perto, a
proposta da CE tem poucas chances de mostrar re-
primas tropicais – daí a necessidade de mantê-lo mas
sultados positivos. Tais proposições de livre comércio
com um diferente formato.
colocariam em concorrência direta parceiros em con-
As negociações tiveram início em 2002, tendo por
dições muito desiguais. A abertura das economias dos
base os princípios estabelecidos pelo Acordo de Cot-
ACP’s significaria ameaçar a base produtiva agrícola e
onou (ver box sobre o Acordo de Cotonou), pelo qual
a indústria nascente nos ACP’s, com impacto direto no
as partes se comprometeram a substituir os antigos
direito à alimentação das populações locais, ao mes-
acordos comerciais com base em preferências unilat-
mo tempo em que ofereceria às indústrias européias
erais, por novos acordos compatíveis com as regras
acesso sem precedentes aos recursos naturais dos
da OMC, mas menos favoráveis do que os existentes.
ACP’s, erodindo ainda mais os espaço político dos
O principal objetivo destes novos acordos era
governos dos ACP’s.
­favorecer o desenvolvimento sustentável dos países
Acima de tudo, as reais implicações destes acor-
ACP e sua gradual integração à economia mundial
dos têm sido largamente ignoradas. O comércio não
­através da integração regional. As negociações esta-
se dá em separado do âmbito dos direitos humanos.
vam planejadas para acabar em fins de 2007, quando
O direito à alimentação é um direito humano e uma
expiraria a cláusula isenção da OMC (“waiver”). Fechar
obrigação legal bem estabelecida pela legislação in-
o ciclo de todos estes compromissos mostraria-se um
ternacional, como a Declaração Universal dos Direi-
trabalho desafiador. Após uma fase inicial reunindo to-
tos Humanos e o Pacto Internacional sobre Direitos
dos os ACP’s, foram iniciadas negociações entre a CE
Econômicos, Sociais e Culturais. Tal legislação busca
e seis regiões negociadoras.
assegurar que todas as pessoas possam alimentar-se
A proposta comum feita pela UE foi de um acordo
com dignidade. Ao assinarem as APE’s, os governos
de livre comércio recíproco combinado a um programa
dos ACP’s terão que fazer face ao desafio de fracas-
de ajuste e uma pacote de cooperação comercial. Tais
sarem no cumprimento de suas obrigações relativas
acordos de livre comércio precisam, segundo a CE, in-
ao direito à alimentação.
cluir uma ampla variedade de setores – liberalização
A seguir, alguns dos desafios colocados pelas
de bens e serviços, bem como novas regras sobre
APE’s de livre comércio propostos pela CE.
investimento, concorrência e licitações públicas de
Liberalização de comércio de bens: concorrência
forma a criar o necessário ambiente de negócios para
desigual A abertura dos mercados dos países ACP
file
9
irá colocar agricultores familiares e pequenas indús-
Os ACP’s deveriam manter o direito a proteger gru-
trias nacionais em concorrência direta com produtos
pos de população e setores vulneráveis, e salvaguard-
agropecuários subsidiados bem como bens e serviços
arem espaço político para modular políticas de longo
industriais altamente competitivos provenientes da Eu-
prazo, conforme suas prioridades econômicas e políti-
ropa. Produtos agrícolas europeus se beneficiam de
cas e
­ voluírem.
subsídios direto ou indiretos – somando em torno de
Antes de expor a indústria local à concorrência inter-
90 bilhões de Euros por ano – o que os torna particu-
nacional, por vezes é necessário poder desenvolvê-la
larmente baratos, e favorece sua superprodução e o
em um ambiente protegido e com suporte. Em outros
o
dumping dos mercados do 3 mundo.
casos, se o setor é vulnerável e/ou estratégico, o país
Os casos de dumping de frango, na Gâmbia, to-
tem que ser capaz de manter sua proteção a longo
mates, em Gana, e carne, na África Ocidental (ver o
prazo, tal como faz a Europa com a agropecuária e a
box sobre liberalização do comércio e dumping de ali-
indústria de cinema.
mentos na África Ocidental), nos revela que o dumping
de produtos agrícolas baratos tem como resultado a
Integração regional Um dos objetivos acordados das
perda de posição dos produtores locais e o fechamen-
APE’s é fortalecer e promover os processos existentes
to de empresas locais, forçando, em alguns casos, os
de integração regional dos ACP’s, por meio do estí-
agricultores a abandonarem sua terra e cultivos. As
mulo à formulação de políticas econômicas/comer-
APE’s irão exacerbar a concorrência desigual colocada
ciais regionais, construindo melhores infra-estruturas
pelos produtos europeus e os governos nacionais não
e diminuindo a burocracia.
serão mais capazes de renunciar a medidas tarifárias
para proteger produtores locais.
Contudo, a realidade das negociações no âmbito
das APE’s está em contradição com tais objetivos.
As listas de “produto sensíveis” para sua proteção
Uma intra-integração regional não é necessariamente
em transações comerciais recíprocas não são neces-
compatível com a integração destas regiões com a
sariamente adequadas, na medida em que suas pos-
Europa. A integração com a Europa irá, de fato, levar
sibilidades são limitadas e não permitem que futuros
os países ACP a perderem mercados regionais para
produtos ‘sensíveis” sejam acrescentados, limitando
a Europa. A Comissão Econômica para África avalia
efetivamente uma diversificação futura.
que Gana perderia US$23 milhões de comércio intraregional para Europa.
Para além das exigências de compatibilidade da
Além disso, as seis configurações de negociação
OMC As exigências de liberalização da UE vão bem
dos ACP coincidem apenas em parte com as Comu-
além das exigências de compatibilidade da OMC de
nidades Econômicas Regionais (CER’s) existentes, cri-
incluir serviços, e regras sobre investimentos, concor-
ando, em alguns casos, novos grupos regionais que
rência e licitações públicas. Segundo o Comissário Eu-
não correspondem aos existentes.
ropeu para o comércio, Peter Mandelson, regras claras
Exacerbando os problemas que já estão sendo pro-
e transparentes representam o “pão com manteiga” de
vocados por tais inconsistências, ao final de 2007, a
uma economia saudável capaz de atrair investimento
CE forçou países individuais e grupamentos diferentes
e melhorar os serviços através da concorrência entre
das configurações iniciais de negociação a entrarem
diferentes operadores.
em acordos bilaterais interinos. Tais países, julgando
Seus detratores argumentam que a CE se orienta,
que não estavam em condições de assinar uma APE
de fato, pelos interesses de poderosos lobbies cor-
interina (APEI), foram ameaçados de interrupção das
porativos europeus, em busca de novos mercados
preferências segundo o Acordo de Cotonou, e de re-
em setores competitivos, ao mesmo tempo em que
versão ao ainda menos generoso Sistema de Prefer-
mantêm o acesso preferencial aos ACP’s frente a nov-
ências Generalizado da UE, uma eventualidade com
os atores globais tais como a China. Estas exigências
grandes chances de engendrar a cessação das re-
também acarretam riscos aos direitos humanos bási-
lações comerciais.
cos. A experiência de privatização da água na África
Outra “medida punitiva” usada pela CE tem sido a
do Sul mostra que a lógica do lucro pode implicar na
de impedir os países que tenham assinado um APEI
redução do acesso à água e, potencialmente, outros
de beneficiarem-se de novos acordos comerciais de
serviços básicos em muitas comunidades pobres (ver
produtos processados, quando as matérias para tais
box sobre privatização dos serviços de água na África
produtos tenham origem em países ACP que tenham
do Sul).
deixado de assinar o APEI (regra de origem). Isso teve
file
Mariano Iossa e Wallie Roux
10
LIBERALIZAÇÃO DO COMÉRCIO E DUMPING
DE ALIMENTOS NA ÁFRICA
aumentou de 6.600 toneladas para aproximadamente
Dumping de carne na África Ocidental e na África
46.000 toneladas. Com 70% dos suprimentos sendo
do Sul Na década de 1980, as exportações de
destinados ao setor de carne enlatada, a carne
carne da UE para os países da costa oeste africana
dos exportadores da UE se tornou predominante
aumentaram sete vezes, chegando a 54.000 tons
no mercado, com um impacto negativo nos
em 1991. O apoio dado pela UE à exportação desta
fornecedores da Namíbia, principalmente compostos
produção, em grande parte carne de baixa qualidade,
pelos segmentos mais pobres da população,
foi de 2 Euros por quilo, equivalente a quatro vezes o
tradicionalmente envolvidos com a criação de gado.
valor reportado da carne propriamente dita, ao mesmo
O dumping do tomate em Gana O processamento
tempo em que a UE fornecia 100 milhões de Euros a
de tomates, em Gana, teve início na década de 1960,
empresas européias para exportação da carne para
quando três plantas foram instaladas em pontos
a África Ocidental, cujo valor era de 27 milhões de
estratégicos do país. Mas, após a liberalização
Euros. A carne foi vendida a dois terços do preço da
do comércio, no princípio da década de 1980, as
carne fresca local. Durante décadas, produtores de
importações de molho de tomate subsidiado e barato
produtos pecuários dos países da região do Sahel
da UE subiu seis vezes, entre 1993 e 2003. O Gana
forneceram gado vivo para o consumo de carne na
importava 27.000 toneladas de molho por 25 milhões
costa oeste africana. Este padrão foi mudado com a
de Euros em 2003.
introdução da carne da UE, e o comércio regional de
As reformas comerciais teriam sido implementadas
gado caiu 30% no começo da década.
com um programa de ajuste assessorado por
Ao mesmo tempo, a carne barata da UE também
instituições financeiras internacionais, como o Fundo
fez incursões nos mercados sul-africanos. Em 1993,
Monetário Internacional e o Banco Mundial.
o governo sul-africano substituiu uma restrição
O resultado direto da liberalização foi que duas
quantitativa às importações de carne por uma tarifa.
fábricas processamento de tomate foram obrigadas
Os exportadores de carne da UE beneficiavam-se
a fechar, ao passo que a terceira estaria trabalhando
de reembolsos dos custos com a exportação, para
com apenas 10% de sua capacidade.
tornar a carne da UE mais barata e aumentar o volume
In: Mark Curtis, Trade Invaders, ActionAid 2005; e
exportado para a África do Sul. Entre 1993 e 1996,
Michael Halderman e Michael Nelson, EU CAP,
a oferta de carne congelada de baixa qualidade
the Doha Round and developing countries, 2004.
um impacto muito negativo nas dinâmicas de negociação e políticas entre estas regiões.
Mais ainda, ao escopo deste projeto de liberalização do comércio não corresponde um programa claro
de ajustes e igualmente ambicioso financiamento de
O CUSTO DE AJUSTE ÀS APES E A PERDA DE
ajuste. Os ajustes às APE’s acarretariam uma ampla
­RECEITAS ADUANEIRAS
transformação estrutural das economias dos ACP’s,
A maior parte dos governos dos ACP’s dependem
com um custo total que tem sido estimado pelo Secre-
­intensamente das receitas aduaneiras para financia­
tariado da Commonwealth em aproximadamente 9 bil-
rem políticas nacionais. O desmonte das tarifas
hões de Euros. Esta cifra contrasta com os parcimonio-
­aduaneiras significa basicamente perda de receitas
sos 2 bilhões de Euros de cooperação para o comércio
governamentais.
alocados pela UE (50% dos quais irão para os países
Avalia-se que a Zâmbia poderá perder US$158
ACP, sendo que, deste montante, apenas 700 milhões
­milhões por ano em receitas governamentais, o equi­
envolvem novos compromissos). E, talvez ainda mais
valente a seus gastos anuais na rubrica HIV/AIDS. O
importante seja o fato de que as etapas de liberalização
governo do Burundi está prestes a perder cerca de 76
não cumpridas sob a condição de terem sido alcança-
milhões de Euros em receitas – um dólar a menos por
dos marcos chave de ajuste.
pessoa, que poderia potencialmente ser gasto em educação ou serviços de saúde2.
ESTADO DO NEGOCIAÇÕES
Enquanto a UE pede que os ACP’s desmontem
Até o presente momento, menos da metade dos ACP’s
suas tarifas em um período de tempo relativamente
assinaram um APEI. Essencialmente, apenas os ­países
curto, não há um plano de ajustes claro para criação de
que corriam o risco de cessação do comércio, caso
fontes alternativas de receitas governamentais substi-
não assinassem, o fizeram. Nenhum dos acordos foi
tuindo pouco a pouco o antigo sistema.
notificado à OMC e ainda procede intensamente o de-
file
11
Compatibilidade entre as APE’s e a OMC
Um dos princípios chave da Organização Mundial
do Comércio (OMC) é o tratamento de Nação Mais
Favorecida (NMF), segundo o qual os países não
devem criar discriminações entre seus parceiros
comerciais. Isso significa que um país não pode
conceder condições especiais de acesso de mercado
a um membro da OMC sem concedê-lo a todos os
demais.
A questão do tratamento preferencial foi um
princípio chave por detrás da política da UE nas
sucessivas Convenções de Lomé. As preferências
comerciais, segundo o Acordo de Cotonou, dava aos
países ACP acesso ao mercado da UE com tarifa
zero ou tarifas reduzidas, sem exigir reciprocidade.
Tais preferências contrariavam o princípio da NMF,
dependendo portanto da concessão de uma isenção
a ser concedida pelos membros da OMC.
Duas grandes exceções ao princípio da NMF:
Acordos de Livre Comércio (ALC) e a Cláusula
de Habilitação (Enabling Clause). O Artigo 24 da
OMC regulamenta a possibilidade de dois países
ou agrupamentos de países concederem acesso
especial de mercado desde que seja recíproco,
abranja ‘substancialmente todas as transações” e
tenha lugar durante um razoável período de tempo.
Tais ALC’s são limitadas ao comércio de bens e
definem condições especiais de mercado, que não
precisam ser concedidas a outros membros da OMC.
A cláusula de Habilitação, introduzida em 1979,
permite que preferências tarifárias não-recíprocas
sejam concedidas pelos países desenvolvidos para
favorecer países em desenvolvimento (mas não
permite tal favorecimento entre grupos de países em
desenvolvimento).
Com as APE’s, a UE busca fechar acordos
comerciais que sejam compatíveis com a OMC,
por meio da formação de áreas recíprocas de livre
comércio.
precipitadamente e sob muita pressão é amplamente
compartilhada: Louis Straker, um congressista de São
Vicente e Granadinas, no Caribe, disse recentemente
na Assembléia Parlamentar Conjunta UE-ACP’s, na
Eslovênia: ‘se não tivéssemos assinado os APE’s, estaríamos sujeitos a tarifas muito mais altas. Não tivemos escolha”. A promessa de rever os APEI’s tem
sido rapidamente esvaziada pelo Comissário Europeu
para o Comércio, Peter Mandelson. “Não acredito que
Barroso tenha se comprometido a renegociar,” disse
ele em Janeiro. Na última reunião UE-SADC3, em Botsuana, um representante sênior da CE também disse:
“Não vamos reabrir o que já foi negociado”.
As mais recentes informações recebidas acerca
das reuniões com representantes da UE indicam que
as questões contenciosas nos APEI’s poderiam ser
revistas, mas apenas dentro do âmbito de um APE
completo. Além disso, a CE estaria mais relutante a
que países que não tenham ainda assinado os acordos
fossem incorporados às transações interinas.
Entretanto, diversos países que ainda não assinaram os acordos têm grandes reservas em relação
ao conteúdo destes acordos. Na recente reunião UESADC, em Botsuana, a África do Sul disse que o texto
acordado pelos países vizinhos contém “cláusulas que
não são de nosso interesse,” referindo-se à cláusula
de Nação Mais Favorecida (NMF) que os obriga a conceder à UE qualquer tratamento especial concedido
em futuras transações comerciais com outros blocos.
Conclusões
Nos últimos cinco anos, a comissão Européia tem
encaminhado as negociações a um passo acelerado,
mais aceleradamente do que os países ACP’s poderiam
fazer, e tem ignorado o fato de que estas negociações
divergem de espírito inicial do Acordo de Cotonou,
desprezando os alertas de instituições internacionais
tais como a Comissão Econômica das Nações Unidas
para África e o Banco Mundial, e desconsiderando os
bate sobre a natureza destes acordos com difíceis im-
pedidos de seus “parceiros” ACP’s.
plicações para os países que ainda têm que assiná-los.
Desta forma, a CE tem gradualmente desemanci-
A CE considera os acordos interinos como sendo a
pado vastos grupos: está claro de que as negociações
pedra fundamental das APE’s plenas, ao mesmo tem-
dos APE’s têm sido um “desastre”, em termos de re-
po em que os ACP’s querem manter as portas abertas
lações públicas, e um “enorme fracasso de comuni-
para renegociações. As queixas apresentadas pelos
cação” – nas palavras de um representante sênior da
Chefes de Estado africanos, na Cimeira de Lisboa,
CE – com implicações de longo prazo para a relação
acerca da pressão excessiva por parte da CE, levou
futura UE-ACP’s.
o Presidente da mesma, Manuel Barroso, a assegurar
Mas será verdade que não há alternativas e que
aos governos africanos que as questões não resolvi-
a acordo de livre comércio é a única opção de com-
das nos APEI’s seriam revistas ao longo de 2008. A
patibilidade com a OMC? E será correto que metas
sensação de que os acordos interinos foram assinados
de desenvolvimento, respeito aos direitos humanos e
file
Mariano Iossa e Wallie Roux
12
boa governança venham em um distante segundo lu-
No fim das contas, trata-se apenas de uma questão
gar para aplacar as exigências do paradigma de livre
de vontade política: o que está em jogo vai além das
comércio?
relações comerciais, abrangendo os vínculos políticos
A sociedade civil internacional denuncia a ortodoxia
e históricos mais gerais entre a Europa e a África.
do livre comércio, lembra aos representantes europeus
da primazia dos direitos humanos e mostra possíveis
alternativas que demandam menos dos ACP’s e que
podem permitir-lhes focar em sua integração política e
econômica intra-regional. Mas a CE não parece apreciar a “intrusão” da sociedade civil e o Comissionário
falou de uma campanha difamatória conduzida pela
1 Ver http://info.worldbank.org/etools/docs/library/57495/sgreport.
pdf e http://siteresources.worldbank.org/DATASTATISTICS/Resources/
table6_11.pdf. foodsecurity/Files/NumberUndernourishment_en.xls
2 The real costs and benefits of EPAs, Christian Aid, Traidcraft and
Tearfund, April 2007
3 SADC é a sigla em inglês para Comunidade de Desenvolvimento da
África Austral. N.T.
ONG’s internacionais.
A privatização dos serviços de água na
Como resultado da privatização de serviços locais
África do Sul
de água em Soweto, em 2001, por uma subsidiária da
Os projetos de privatização de água que foram
empresa francesa de água (Suez), hidrômetros pré-
desenvolvidos em três guetos negros da África
pagos – custando até 1.000 Rand (ou 877,00 Euros)
do Sul, em meados dos anos 90, envolvendo as
– foram instalados e foram cobradas tarifas de até
multinacionais Biwater e Suez, comprovaram ser
272 Rand (ou 238,60 Euros) por 50 quilolitros extra de
desastrosas para as comunidades pobres e sem
água por mês. As pessoas tiveram que usar menos
direito a acesso de fornecimento de água.
água porque não podiam pagar tais contas.
Depois que a Biwater instalou novos hidrômetros,
À medida que os preços subiam, muitas pessoas
em 2001, em dois guetos negros de Mpumalanga,
pobres foram forçadas a recorrerem ao auto-
as contas domiciliares de água aumentaram
aprovisionamento em fontes não-tratadas, tais como
dramaticamente posteriormente à cobrança de uma
poços e rios, expondo-se a doenças transmitidas pela
taxa básica prévia de 7 Rand (ou 06,00 Euro), para
água. De maneira geral, cerca de 500.000 pessoas
300 Rand por mês (ou 263,00 Euros) – um aumento
tiveram seus fornecimentos de água cortados por
de 4.185%. Muitos dos residentes pobres se viram
inadimplência, e outras mais sofrem com condições
rapidamente inadimplentes e seu fornecimento foi
indignas e ameaças diárias à sua saúde.
cortado.
In: Alex Wijeratna, Down the plughole, Outubro
Mariano Iossa / ActionAid
2005, ActionAid.
file
Mariano Iossa / ActionAid
13
Configurações iniciais de negociação dos ACP’s e grupos que assinaram EPA’s até o fim de 2007
Configurações de negociação em 2002
Quem assinou (até Março de 2008)
O quê?
Estados da Comunidade Econômica da África
Costa do Marfim (7 Dez) e Gana (13 Dez)
Assinaram um APE
Ocidental (ECOWAS, na sigla inglesa) + Mauritânia:
“trampolim” em separado
Mauritânia, Senegal, Gâmbia, Cabo Verde, Guiné
Bissau, Guiné, Serra Leoa, Libéria, Costa do Marfim,
Gana, Togo, Benin, Nigéria, Burkina Faso, Mali, Niger
África do Leste e Austral (ESA, na sigla inglesa):
Comunidade da África do Leste (EAC, na
Sudão, Eritréia, Etiópia, Djibouti, Quênia, Uganda,
sigla inglesa): Quênia, Uganda, Tanzânia,
Ruanda, Burundi, Zâmbia, Zimbábue, Malawi,
Ruanda e Burundi (27 Nov)
Seichelles, Comoros, Madagáscar, Ilha Maurício
Comunidade Econômica e Monetária
Assinaram um APE Interino
Seichelles, Zâmbia e Zimbábue (28 Nov), Ilha
Assinaram um APE Interino
Maurício (4 Dez); Comoros e Madagáscar (11 Dez)
em separado
Camarões (17 de Dez/).
Assinou um APE Interino em
da África Central (CEMAC, na sigla portuguesa)
separado
+ São Tomé. Chade, Camarões, República CentroAfricana,DRC, República do Congo, Gabão, Guiné
Equatorial, São Tomé e Príncipe
Comunidade de Desenvolvimento da África Austral Botsuana, Lesoto, Suazilândia e
Assinaram um APE Interino
(SADC) Angola, Namíbia, Botsuana, Moçambique,
Moçambique (23 Nov); Namíbia (12 Dez)
único com o grupo de países
Papua Nova Guiné e Fiji (23 Dez)
Assinaram um APE Interino
Tanzânia, Lesoto, Suazilândia. A África do Sul foi
incorporada às negociações em Fev. de 2007
Região do Pacífico: Estado Federado da Micronésia,
conjunto
Ilha Cook, Fiji, Kiribati, Ilhas Marshall, Nauru, Niue,
Palau, Papua N. G., Samoa, Ilhas Solomon, Tonga,
Tuvalu, Vanuatu
CARIFORUM (Forum Caribenho) Antígua e
Barbuda, Bahamas, Barbados, Belize, Dominica, Rep.
Dominicana, Granada, Guiana, Haiti, Jamaica, Santa
Lucia, São Vicente, São Cristóvão e Névis, Suriname,
Trinidad e Tobago
CARIFORUM (Dez 16)
Assinou um APE completo
com o grupo de países
file
Celso Marcatto* e Guilherme Strauch**
14
*Coordenador do Programa de Segurança Alimentar da ActionAid no Brasil
**Engenheiro agrônomo, mestre em agroecologia pela Universidade Internacional de Andaluzia,
na Espanha
Sistemas
Agroecológicos
Contribuindo para a mitigação dos
efeitos das mudanças climáticas
As alterações climáticas são uma ameaça para o mundo em desenvolvimento, e podem comprometer os poucos avanços obtidos nas últimas décadas na luta contra a fome e a desigualdade. Recentemente, os relatórios
do IPCC1 e Stern2 indicam que as mudanças no clima são resultantes da
A América do
Norte e a Europa
são responsáveis
pela produção de
aproximadamente
70% de todas as
emissões de dióxido
de carbono
ação humana, e que suas conseqüências serão sentidas de forma diferenciada nos países em desenvolvimento e desenvolvidos.
Há consenso em que estas alterações estão relacionadas com o crescimento das emissões de diversos gases responsáveis pelo efeito estufa. A
América do Norte e a Europa são responsáveis pela produção de aproximadamente 70% de todas as emissões de dióxido de carbono (CO2), gás
que mais contribui para o aquecimento global. Os países em desenvolvimento somados respondem por menos de ¼ dessas emissões.
Uma face extremamente perversa deste cenário indica que: os países
provavelmente mais afetados serão exatamente aqueles que menos contribuíram para o aquecimento global e os que têm menos condições de se
prepararem para reduzir os efeitos das mudanças climáticas.
Do ponto de vista geográfico, as regiões em desenvolvimento estão em
desvantagem, pois são naturalmente mais quentes do que as desenvolvidas e são freqüentemente afetadas pela alta variabilidade das condições de
clima. Além disso, os países em desenvolvimento – em particular os mais
pobres – são dependentes da agricultura, um dos setores econômicos mais
vulneráveis às mudanças climáticas. São eles que vão sofrer de forma mais
intensa com a redução drástica das atividades econômicas, a ampliação dos
processos de desertificação, perdas freqüentes de safra, fome e ­migração
provocadas pela escassez de água e de alimentos.
Para mitigar os impactos das mudanças climáticas, especialmente os
que podem atingir a população mais vulnerável e empobrecida, além da
redução imediata da emissão de gases, é essencial que se invista pesa­
damente em políticas públicas voltadas para a construção de modelos
de desenvolvimento e de sistemas alternativos de produção agrícola, que
­sejam mais resistentes e resilientes que os modelos convencionais.
file
André Telles/ActionAid/ Brasil
15
Famílias agricultoras de Vereda Funda, estado de Minas Gerais (Brasil), cultivam café com sistemas agroecológicos
Existe hoje um conjunto significativo de movi-
Um dos efeitos da emissão de gases é o aumento
mentos sociais e organizações da sociedade civil,
da temperatura global e, consequentemente, o
espa­lhadas em várias regiões do planeta, que estão
aumento do nível dos oceanos, a modificação no
­apostando na Agroecologia como o instrumento que
padrão das correntes marítimas e dos ventos,
vai permitir a construção desse novo modelo.
e a maior freqüência na ocorrência de eventos
Alguns exemplos são os sistemas de captação,
hidrológicos críticos, como secas, enchentes,
armazenamento e distribuição de água potável;
furacões, etc.
­ampliação e descentralização dos estoques de ali-
Segundo as tendências atuais, as temperaturas
mentos; implantação de mecanismos de controle
médias globais aumentarão de 1,4º C a 5,8ºC nos
de desmoronamentos em encostas, de controle de
próximos cem anos, caso a emissão de gases
enchentes, etc. É urgente a adoção de medidas que
não seja controlada. Ainda que medidas de
possibilitem às populações pobres adaptarem-se à
controle sejam implementadas, é possível que a
nova situação climática de forma autônoma, soberana
temperatura média do planeta se eleve em até 3ºC.
e sustentável.
file
Celso Marcatto e Guilherme Strauch
16
Agroecologia: construindo sistemas de
maior retenção da renda gerada pelos agricultores em
produção mais resilientes e sustentáveis
suas próprias comunidades, conferindo-lhes maior
A Agroecologia surgiu como um enfoque científico e
­autonomia e estabilidade.
estratégico para apoiar os processos de transição de
A agroecologia estimula atividades complementa-
uma agricultura convencional para uma agricultura
res à principal, na unidade de produção agrícola, como
­realizada em bases ecológicas, a partir da aplicação
a criação de animais domésticos, o artesanato, a pesca
de conceitos e princípios ecológicos no desenho e
e a instalação de hortas domésticas. Desta forma, pro-
manejo de agroecossistemas3 sustentáveis (Gliess-
porciona mais opções às famílias de agricultores, tanto
man, 2001). É uma metodologia multidisciplinar, volta-
em termos de produtos para consumo próprio quanto
da para enfrentar a atual crise ambiental e social, que
de possibilidades de acesso ao mercado, diminuindo
propõe o manejo dos recursos naturais de forma inte-
os riscos de insegurança alimentar e permitindo aos
grada e participativa. Com o objetivo de fortalecer a
agricultores e agricultoras familiares experimentarem
agricultura familiar de forma sustentável, o desenvolvi-
maior estabilidade e confiança em sua atividade.
mento em nível local é viabilizado por meio da valoriza-
Os sistemas agroecológicos tendem a ser mais
ção do conhecimento dos agricultores e agricultoras, e
produtivos do que os monocultivos especializados da
da exploração do potencial existente em cada sistema
agricultura convencional. A eficiência é medida a partir
de produção.
do total produzido na unidade, e não apenas pela
Os sistemas agrícolas sustentáveis, que caracteri-
análise de cada atividade especificamente. Um bom
zam-se pela diversificação de culturas e criações, têm
­exemplo são as produções consorciadas de milho,
demonstrado serem mais resilientes a graves pertur-
feijão, mandioca e abóbora que, quando somadas,
bações ao longo do tempo.
tendem a produzir mais por unidade de área do que o
O enfoque agroecológico promove agroecossis-
plantio de cada uma das culturas isoladamente.
temas sustentáveis, ao favorecer a produção não-
Ao valorizar os saberes tradicionais, e incentivar a
especializada baseada no princípio da diversidade de
organização e a participação das famílias dos agricul-
recursos e práticas produtivas. Em um mesmo sistema
tores e das agricultoras nos processos democráticos
produtivo são utilizadas diversas práticas combinadas,
de tomada de decisão, tanto em nível local quanto re-
visando a integração dos diversos subsistemas e a
gional e nacional, a Agroecologia fortalece os atributos
­reciclagem de materiais, energia, água e resíduos.
de equidade e autogestão das comunidades rurais.
O fluxo de energia é direcionado para depender
menos de recursos não-renováveis e atingir um mel-
As mudanças climáticas e a agroecologia
hor equilíbrio entre o uso da energia interna e externa
Várias experiências agroecológicas vêm sendo desen-
no sistema. A resistência a pragas aumenta, pois a
volvidas em diversas partes do mundo por milhares
diversidade de habitat é favorecida assegurando-se
de agricultores e agricultoras, comunidades, grupos e
a presença de inimigos naturais e antagonistas. A
organizações de trabalhadores e trabalhadoras rurais
manutenção de ciclos “fechados” de nutrientes (re-
que buscam a garantia da soberania, e da segurança
ciclagem de nutrientes dentro do sistema produtivo)
alimentar e nutricional da população. São iniciativas
reduz as perdas no agroecossistema, fazendo retornar
geridas de forma autônoma e participativa, a partir da
à unidade produtiva parte importante dos nutrientes
troca de experiências e da interação entre os conheci-
extraídos.
mentos tradicionais e o científico.
Ao contrário da especialização em um só produto,
No Brasil, existe uma multiplicidade de iniciati-
a manutenção da diversidade protege os agricultores e
vas em Agroecologia que permitem a manutenção
as agricultoras dos riscos inerentes à atividade, como
de ­agroecossistemas diversificados, produtivos, es-
as flutuações de mercado e as condições climáticas
táveis e resilientes. São experiências de implantação
adversas. Neste sentido, a Agroecologia promove e
de ­sistemas agroflorestais, de manejo de pragas e
fortalece os atributos de adaptabilidade (ou flexibili-
doenças, de produção de animais, de uso de plantas
dade) e resiliência de um agroecossistema.
medicinais, de resgate, preservação e disseminação
Por dependerem menos de insumos externos
de sementes de variedades locais, entre muitas outras,
(como agrotóxicos, fertilizantes industriais, sementes
que têm originado diversas referências metodológicas
selecionadas e combustíveis fósseis), os ­sistemas
e técnicas.
­agroecológicos tendem a diminuir os custos de
• Na Paraíba, os bancos de sementes comunitários
produção e os riscos de endividamento. Isso significa
apoiados pela Rede Sementes da Articulação do Semi-
file
Celso Marcatto/ActionAid/ Brasil
17
Árido incentivam o uso das variedades locais adapta-
sistemas de produção agrícolas que sejam realmente
das aos desafios climáticos da região, uma forma de
resis­tentes, sustentáveis e menos vulneráveis às con-
promover o saber tradicional dos agricultores na con-
dições climáticas adversas.
servação da agrobiodiversidade;
• Em Minas Gerais, o Centro de Tecnologias Alternativas da Zona da Mata promove a implantação de
Sistemas Agroflorestais (SAFs) na agricultura familiar. As árvores incorporadas aos sistemas produtivos
­favorecem a produção de biomassa e a reciclagem
de nutrientes, disponibilizam lenha e madeira para as
famílias, diminuindo a pressão sobre as unidades de
conservação e fragmentos de mata atlântica da região,
além de manter a umidade, diminuir a temperatura e
proteger o solo contra a erosão;
• Na região semi-árida do Nordeste, que sofre com
­secas freqüentes, a disseminação de sistemas
descentra­lizados de captação e manejo de água de
chuva, como as cisternas de placa e as barragens
subterrâneas, são exemplos de ações de conservação
e manejo dos recursos hídricos que viabilizam a
convivência com a grande variabilidade do clima da
região.
Essas experiências contêm princípios e conceitos que podem contribuir no processo de busca da
sustentabilidade dos sistemas agrícolas, dentro dessa
nova realidade de mudança do clima em nível global.
Cabe às organizações governamentais e não-go­
vernamentais, que estejam empenhadas e comprometidas com a redução da pobreza e da fome no
mundo, apoiar processos que busquem construir
Referências:
Conor, F. et al., Agricultura Familiar e Processos de MDL. É possível?,
Edições Bagaço, Recife/PE. 2007.
García, A. et al., “Contribución de La Agricultura Ecológica a la
Mitigación del cambio Climático en comparación con la Agricultura
Convencional”. Revista Agroecología, Universidad de Murcia, Spain,
vol.1, pp.75 – 88, 2006.
Gliessman, S.R., Agroecologia: processos ecológicos em agricultura
sustentável. 2nd edition.
Ed. UFRGS/Porto Alegre, 2001.
Londres, F. & Almeida, P. (eds). Uso e conservação da
biodiversidade. Caderno do II Encontro Nacional de Agroecologia. GT
Biodiversidade da ANA. April 2007.
Masera, O. et al. Sustentabilidad y Manejo de Recursos Naturales. El
marco de evaluación MESMIS. GIRA, Ed. Mundi-Prensa México, 2000.
Petersen, P. Agroecologia e segurança alimentar e nutricional em
Angola: alguns subsídios ao projeto. Mimeo, 2007.
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Resumo executivo. Available at http://www.inovacao.unicamp.br/report/
inte-stern_longsummary_portuguese.pdf, accessed on 23/10/2007.
Toledo, V. M. “La racionalidad ecológica de la producción campesina”.
In: Ecología, campesinado y historia. Eduardo Sevilla-Guzmán & Manuel
González de Molina. Ediciones La Piqueta, Madrid, 1993.
1 IPCC: Painel Intergovernamental de Mudanças do Clima, estabelecido
pela Organização Mundial de Meteorologia e pelo PNUMA – Programa
das Nações Unidas para o Meio Ambiente, para avaliar informações
sobre as mudanças climáticas, seus impactos, e opções de adaptação
e mitigação.
2 Relatório Stern: Documento encomendado pelo Governo Britânico
a Nicholas Stern, ex-economista chefe do Banco Mundial, sobre os
impactos que o aquecimento global poderá provocar na economia
mundial. O estudo, tornado público em outubro de 2006, apontou que
o Produto Interno Bruto Mundial pode vir a sofrer uma queda de 3%,
caso a temperatura média da Terra suba três graus Celsius.
3 Agroecossistemas são como ecossistemas artificializados, já que
são manipulados pelo homem para obtenção de alimentos, fibras e
sementes. Dependem de aportes externos de materiais e energia para
sua manutenção (Gliessman, 2001).
file
Mariam Mayet
18
Diretora e fundadora do Centro Africano para Biossegurança, sediado na África do Sul
Aliança para uma
Revolução Verde
na África
Fazendo da África um
repositório de tecnologias agrícolas falidas
INTRODUÇÃO
A pressão por uma “nova” Revolução Verde na África está toda voltada ao
aumento da produção agrícola, entendida como a mais fundamental prioridade de desenvolvimento para o continente1. Falando em um seminário de
A pressão por uma
“nova” Revolução
Verde, na África,
dirige-se diretamente
a aumentar a
produção agrícola
como a prioridade
mais fundamental de
desenvolvimento para
o continente.
alto-nível em Adis Abeba, Etiópia, em 2004, o ex-Secretário Geral da ONU,
Koffi Annan, fez um apelo por um resoluto esforço de combate à pobreza e
criação de Revolução Verde na África. O discurso de Annan é comumente
conhecido como o “Chamado à Ação de Adi”2. Com efeito, as Nações Unidas continuam a bradar por uma “Revolução Verde do Século 21” para África
na condição de pré-requisito necessário para alcançar a primeira Meta de
Objetivos do Milênio: reduzir à metade a proporção de pessoas vivendo em
extrema pobreza e fome até 2015. Entre outros relatórios promovendo a
regeneração setor agrícola da África, estão o Relatório do Conselho InterAcademias (IAC 2004),solicitado por Koffi Annan, então Secretário Geral da
ONU, e o Relatório da Comissão para África do Governo do Reino Unido
(CfA 2005).
Chefes de estado africanos têm também, de várias maneiras, jogado seu
peso no apelo por uma Revolução Verde enquanto pré-requisito necessário
para tratar da pobreza e da fome na África. A Revolução Verde tem o endosso da Nova Parceria para o Desenvolvimento da África (NEPAD, na sigla
em inglês), através de seu Programa Amplo para o Desenvolvimento da Agricultura na África (CAADP 2002) e do Modelo de Colaboração para a Produtividade Agrícola na África (FAAP)3. Na Cimeira Africana de Fertilizantes,
reunida em junho de 2006 em Abuja, Nigéria, chefes de estado africanos
se comprometeram a elevar a distribuição de fertilizantes inorgânicos de 8
kg/ha para 50 kg/ha, até 2015. Na Cimeira sobre Segurança Alimentar, em
dezembro de 2006, eles se comprometeram também a apoiar a implementação de uma Revolução Verde na África4.
file
19
Liba Taylor/ ActionAid
Chefes de estado
africanos têm também,
de várias maneiras,
jogado seu peso no apelo
por uma Revolução Verde
enquanto pré-requisito
necessário para tratar
da pobreza e da fome,
na África
file
Mariam Mayet
20
Entretanto, o ator mais visível na investida da Re­
são seus esforços de implementar um sistema especial
volução Verde é a Aliança para uma Revolução Verde
de entrega baseado nas fontes de produção, segundo
na África (AGRA, na sigla em inglês), uma parceria ­entre
o qual um agricultor poderá “ir caminhando até uma
a Fundação Rockefeller e Fundação Bill e Melinda
loja ou quiosque em sua localidade rural e ter pronta-
Gates (Fundação Gates) . A AGRA destina-se a ajudar
mente acesso a sementes certificadas de alta quali-
­milhões de pequenos agricultores a saírem por si pró­
dade”9. Dito de outra forma, a AGRA está decidida a
prios da situação de pobreza e fome ao aumentarem,
instalar uma cadeia de valor inteira, começando pelas
de forma significativa, a produtividade de suas lavou­
“provisões para os mercados”, que irá abrir o caminho
5
ras com tecnologias do modelo da Revolução Verde .
para a emergência de um novo setor rural privado,
Para este fim, a Fundação Gates comprometeu-se a
com agro-comerciantes começando a fornecer aos
dar US$100 milhões e a Fundação Rockefeller, US$50
agricultores suas provisões, comerciantes ­comprando
milhões, nos próximos cinco anos7.
produtos agropecuários, e agro-processadores e
6
Neste ponto, apresentaremos um panorama geral
da Revolução Verde na África liderada pela AGRA, e
analisaremos algumas das prováveis implicações para
a África.
­exportadores fazendo contratos com pequenos agricultores para produzirem colheitas para eles.
A ONG GRAIN explica a “lógica” do sistema agrocomerciante da seguinte maneira: a idéia é financiar
agentes públicos de melhoramento genético para que
ALIANÇA PARA UMA REVOLUÇÃO VERDE NA ÁFRICA
desenvolvam novas variedades (na medida em que o
(AGRA)
setor privado não quer fazer isso), em seguida finan-
O principal foco da AGRA é o melhoramento genético
ciar empresas privadas para vender as sementes para
de plantas, para o que foi definida uma ambiciosa meta
os agricultores e fornecer crédito para que as com-
de desenvolver, em 5 anos, 100 novas variedades de
prem (pois, de outra maneira, eles não poderiam pagar
plantas essenciais como milho, mandioca, sorgo e mil-
por elas). A AGRA se resume à criação de uma efe-
heto. Em junho de 2007, três anos após seu famoso
tiva demanda para seu próprio produto, prescrevendo
“Chamado à Ação de Addis”, Koffi Annan foi indicado
um modelo de desenvolvimento que não é capaz de
como presidente da AGRA. Espera-se que um dos
­sobreviver por si mesmo10.
papéis básicos de Annan será recorrer às suas consi­
Como primeiro passo no sentido do estabelecimen-
deráveis conexões políticas, ampla base de trabalho e
to de um projeto de agro-comerciantes para venda de
influência em general para estimular o desenvolvimen-
sementes “melhoradas”, pesticidas e fertilizantes para
to de políticas nacionais, regionais e globais, e para
agricultores pobres na África, a AGRA contratou uma
obter apoio para a AGRA e seus programas. Os mem-
ONG norte-americana chamada Rede de Cidadãos
bros do conselho da AGRA recorrem intensamente às
para Assuntos Internacionais para criar as condições
Fundações Rockefeller, e Bill e Melinda Gates, a pes-
de base. Agricultores no Quênia, Tanzânia e Malawi fo-
soas próximas ao Grupo Consultivo de Pesquisa Agro-
ram definidos especificamente como público-alvo. Em
pecuária Internacional (CGIAR, na sigla em inglês) e ao
dezembro de 2007, a AGRA lança seu Programa de
setor corporativo na África do Sul.
Desenvolvimento Agro-comerciante (ADP, na sigla em
A AGRA tem apresentado um pacote altamente am-
inglês), destinado a fornecer provisões agrícolas es-
bicioso e aparentemente grandioso voltado para a dita
senciais a 16 milhões de domicílios rurais envolvidos
revolução que explora:
na produção de produtos agropecuários.
uma variedade de formas de fortalecimento de mer-
Para facilitar este objetivo, foram concedidos US$13
cados, inclusive através de sistemas informação de
milhões em subvenções para estabelecer redes na-
mercado pró-pobres; melhor armazenamento; proc-
cionais de agro-comerciantes no Malawi, Tanzânia e
essamento e utilização de cultivos locais de plantas
Quênia oferecendo a pequenos varejistas emergentes
alimentícias; trocas de commodities que melhorem
em comunidades rurais − muitos dos quais eram por
o comércio regional de grãos; e formas de estabili-
sua vez agricultores − treinamento, capital e crédito de
zação dos preços de mercado e melhorar o acesso
que precisavam para tornarem-se agro-comerciantes
ao crédito dos agricultores. A AGRA irá explorar for-
certificados11.
mas de melhorar a competitividade dos produtos
A noção de que pequenos lojistas rurais irão de
agropecuários da África em mercados globais .
certa forma fornecer aos agricultores a assistên-
Outro aspecto chave da estratégia da AGRA de au-
cia técnica agronômica necessária para conservar o
mentar radicalmente a produtividade agrícola na África
meio ambiente tem sido descrito como “ridícula”. Na
8
file
21
melhor das hipóteses, estes lojistas irão ajudar algu-
pelo governo junto a agro-comerciantes certificados,
mas poucas empresas estrangeiras a aumentar suas
em troca de provisões agropecuárias parcialmente
vendas de fertilizantes, pesticidas e herbicidas caros,
subsidiadas. Segundo Richard Chapweteka, Diretor do
desnecessários, danosos e perigosos, e a vender
Trust de Desenvolvimento Rural (RUMARK, na sigla em
grãos baratos para populações locais, vendendo a
inglês), no Malawi, “Os resultados de todos estes es-
preços mais baixos que os agricultores locais e seus
forços − aliados a chuvas e a políticas do governo do
mercados domésticos .
Malawi − foram estupendos. Em 2006/07, o país gerou
12
Os Programas de Desenvolvimento dos Agro-com-
um excedente adicional de milho de 14 milhões do
erciantes em todos os três países irão implementar
toneladas métricas. Vendeu US$160 milhões de milho
uma variedade de ferramentas de financiamento “ino-
e doou 10.000 toneladas métricas de alimentos para
vadoras” para aumentar o fluxo de crédito em áreas
cooperação com os vizinhos Lesoto e Suazilândia”15.
rurais, e oferecer capital inicial a agricultores e agro-
As facilidades de garantia também são relatadas como
comerciantes. Dentre estas ferramentas se incluem
mostrando forte êxito inicial. Ao longo dos últimos cin-
“facilidades de garantia” para compartilhamento de
co anos, tendo sido o programa primeiro iniciado com
riscos igualmente (50-50) com empresas agrícolas que
financiamento da Fundação Rockefeller, cada dólar
fornecem provisões agropecuárias para os agro-com-
de crédito garantido gerou 16 dólares em provisões
erciantes em áreas rurais.
agropecuárias em áreas rurais, com uma taxa de ina­
Estima-se que os membros do conselho da AGRA
irão fazer lobby junto a governos, organismos de
dimplência de pagamento dos empréstimos pelos
­agro-comerciantes certificados de menos de 15%16.
­financiamento e bancos comerciais para aumentar os
empréstimos a estes agro-comerciantes em escala
IMPLICAÇÕES DA PRESSÃO PELA REVOLUÇÃO VERDE
­nacional.
NA ÁFRICA
Três conjuntos de questões chave precisam ser
MALAWI: A “GAROTA PROPAGANDA” DA AGRA
­respondidas pelos proponentes da nova Revolução
O Malawi está sendo mostrado como caso de suces-
Verde na África:
so da Revolução Verde na África, em seguida a uma
1) qual impacto teve a Revolução Verde na Ásia e na
aparentemente miraculosa transformação em sua
América Latina, e existe qualquer lição crucial no que
produção de alimentos.
se refere à uma revolução agrícola na África, apropria-
Tendo por base um Relatório do Banco Mundial
da às realidades da agricultura no continente?
de Desenvolvimento de 200713, que mostra o início
2) apesar da opinião contrária amplamente difundida,
do crescimento agrícola na África subsaariana, Pedro
a Revolução Verde não evitou a África; ainda existe
Sanchez, Diretor de Agricultura Tropical do Instituto
pouco entendimento de por que deixou de ocorrer, no
da Terra na Universidade de Columbia e co-líder do
continente, ou por que um paradigma de desenvolvi-
projeto Vilas do Milênio, disse recentemente que “a
mento que de forma razoavelmente nítida tem sido
Revolução Verde pedida por Koffi Annan em 2004 está
­incapaz de capturar a imaginação dos agricultores afri-
realmente começando a acontecer, na medida em que
canos e, que claramente comprovou ser inapropriada,
países como o Malawi se tornaram de importadores
é ainda perseguida; e
líquidos de alimentos a exportadores líquidos de ali-
3) um exame minucioso e rigoroso precisa ser feito
mentos” . Segundo Sanchez, até o Banco Mundial,
acerca da adequação das inovações tecnológicas
que tem agressivamente buscado a liberalização da
­incluídas no pacote da Nova Revolução Verde e, mais
agricultura na África, apóia os subsídios de sementes
especificamente, da filosofia político-ideológica subja-
e fertilizantes, no que Sanchez descreve como “uma
cente que busca integrar os sistemas agrícolas africa-
­mudança de 180 graus para melhor”. A mensagem cen-
nos na economia mundial.
14
tral, portanto, é de que simplesmente com o subsídio
As conseqüências da Revolução Verde têm sido for-
de fertilizantes e sementes para cultivo de ­variedades
temente contestadas, com muitas visões divergentes e
melhoradas de milho, países como o Malawi têm sido
conflituosas, resultando em posições altamente polari-
capazes de melhorar sua produtividade agrícola.
zadas. A área de debate menos contestada é provavel-
Em 2006/07, o governo do Malawi forneceu a
mente a questão do aumento da produtividade. Neste
­agricultores cerca de US$60 milhões através dos cha-
ponto, a maioria dos comentaristas parecem concordar
mados subsídios “espertos” ou “específicos”. Por este
que, em ambientes altamente manipulados em zonas
sistema, os agricultores podiam trocar bônus emitidos
ecologicamente produtivas, com acesso à irrigação e
file
Mariam Mayet
22
à correta aplicação de provisões de variedades de alto
tificar os impactos na produtividade de produções e
rendimento (HYV, na sigla em inglês) decorrentes da
resultados das pesquisas é muito mais avançada do
Revolução Verde, se produziriam rendimentos mais al-
que a de quantificação de outros tipos de impactos de
tos do que se tratasse de variedades tradicionais, em
pesquisa.”18
condições similar. Contudo, o desenvolvimento agrário
Além disso, como declara Freebairn: “Resultados
não é simplesmente a auto-suficiência de alimentos.
díspares acerca da influência da rápida introdução de
O debate acerca dos impactos negativos dos fertili-
variedades de alto rendimento, 25 anos depois de sua
zantes artificiais e produtos químicos sob a forma de
introdução, não fornecem bases de consenso para a
pesticidas e herbicidas são bem conhecidos. Existem
comunidade acadêmica com relação aos efeitos de
preocupações adicionais de que as tecnologias da
distribuição de renda desta estratégia tecnológica”19.
Revolução Verde tendem a favorecer o desenvolvimen-
O debate prossegue e, em análise mais recente so-
to da produção de monocultivos, levando ao abandono
bre o impacto da Revolução Verde no Paquistão, Niazi
de inter-cultivos e de sistemas de cultivo tradicionais
argumenta que20: “Ao passo que, em termos agrega-
mais eficientes do ponto de vista ecológico. Outro fator
dos, é verdade que a Revolução Verde no Paquistão
chave, especialmente no contexto atual de mudança
conseguiu atender as exigências nacionais de alimen-
climática e crescentes custos de combustíveis, é a
tação e alimentar o crescimento econômico, em termos
alta dependência de fontes de energia do modelo de
desagregados ela não cumpriu, entretanto, as expec-
desenvolvimento da Revolução Verde. Este fator está
tativas mantidas ­inicialmente e subseqüentemente de-
relacionado diretamente à ênfase na mecanização e
fendidas. Por este motivo, a experiência no Paquistão
sistemas de irrigação, e, mais indiretamente, à energia
tende a validar os contra-argumentos de seus críticos
incluída na produção do vários produtos químicos e,
que, desde então, assinalam que a Revolução Verde
especificamente, na produção de fertilizantes. Tal fator
iria meramente agravar a incidência da pobreza rural, e
é exacerbado por um outro fator relacionado, o trans-
a distribuição desigual de rendas e bens rurais.
porte. Não apenas transporte de provisões, mas tam-
Os dados “díspares” acerca dos vários impactos da
bém, em um mundo adicto de comércio, transporte de
Revolução Verde observados acima deveriam engen-
produtos. A questão dos biocombustíveis também tem
drar prudência e, no mínimo, a aplicação do “principio
que ser incluída nesta análise particular.
precaucionário” da parte de qualquer tomador de de-
Se a Revolução Verde for considerada parte integral
cisões neutro. O continente africano não deveria ser
do “desenvolvimento”, então uma séria ­consideração
visto como repositório de práticas de desenvolvimento
deve ser feita acerca de seus aspectos sociais,
questionáveis que não encontraram êxito absoluto em
econômicos e de desenvolvimento.
outras partes do globo.
Existem importantes preocupação de que a Revolução
Verde acelere a diferenciação entre os agricultores, leve
a um aumento da perda propriedade de terras, a um
conflito intensificado de classes e nem sempre prio­
rize o valor nutricional das variedades de alta ­resposta.
Mesmo o Instituto Internacional de Pesquisas Sobre
o Arroz (IRRI, na sigla em inglês) observou que “ao
mesmo tempo em que a Revolução Verde ajudou a assegurar suprimentos de arroz, ela falhou em resolver
o problema da ‘fome escondida’ em razão da ausência de micronutrientes essenciais, ou desnutrição, que
afetam mais de 2 bilhões de pobres do mundo”17. Um
relatório do Secretariado do Conselho Científico do
CGIAR reconhece que:
“São encontrados pouquíssimos estudos que medem
ou documentam os impactos sociais, na eqüidade, no
meio ambiente ou na saúde, da pesquisa agrícola. Isso
não é peculiar à região subsaariana, mas representa
o perfil da literatura de avaliações de impacto globalmente e reflete o fato de que a metodologia para quan-
1 Metas de Desenvolvimento do Milênio, em inglês: http://www.un.org/
millenniumgoals/
2 O seminário de Addis foi uma extraordinária reunião de chefes de
estado e governantes africanos, líderes mundiais, especialistas sobre a
fome e sobre desenvolvimento. Foi organizado pelo governo da Etiópia
e pelo Projeto do Milênio das ONU. Com o título “A Revolução Verde da
África: Um chamado à ação”, o seminário teve como foco abordagens
inovadoras para cumprir a Meta do Milênio para Fome na África.
3 Jones, M. (2006). “A New Green Revolution: An answer to the
challenge for Africa”, pp 140-141. Can Africa Feed Itself. Editado por
Aksel Naerstad.
4 Cimeira sobre segurança alimentar na África: disponibilidade,
acessibilidade e possibilidade de compra. http://www.africa-union.org/root/
au/Conferences/Past/2006/December/REA/summit/Food_Security.htm
5 A Fundação Bill e Melinda Gates (BMGF) é uma empresa sediada em
Seattle, fundada 2000 através da fusão da Fundação Gates de Ensino
e da Fundação William H. Gates. A BMGF é a maior fundação de
caridade, no mundo. Dados sobre a fundação:
http://www.gatesfoundation.org/MediaCentre/FactSheet/default.htm
6 Aliança para uma Revolução Verde na África: http://www.agraalliance.org
7 OCDE. Forum de Parceria com a África: www.oecd.org/
dataoecd/37/1/39024069.pdf
8 Aliança para uma Revolução Verde na África: AGRA at Work: http://
www.agra-alliance.org
9 Odhimabo, A. (2007).”AGRA Takes Certified Seeds to Farmers in
War on Hunger”. Business Day Nairobi (2 de outubro de 2007).
10 GRAIN (2007). A new Green Revolution for Africa? P 3. GRAIN
Briefing: http://www.grain.org
file
11 Aliança para uma Revolução Verde na África: Rede Nacional de Agrocomerciantes lançada para atingir 16 milhões de domicílios rurais envolvidos
na produção de produtos agropecuários na África fornecendo-lhes provisões
agrícolas essenciais: Novas oportunidades para agricultores pobres no
Quênia, Malawi e Tanzânia (release de 13 dezembro de 2007). http://www.
agra-alliance.org/section/fr/pr121307
12 Holt-Giminenz, E. et al. (2006). ‘Ten Reasons why the Rockefeller and
Bill and Melinda Gates Foundation’s Alliance for Another Green Revolution will
not solve the problems of poverty and hunger in sub-Saharan Africa’. Food
First Policy Brief No. de 12 de Outubro de 2006.
13 Relatório de Desenvolvimento Mundial 2008: Agriculture for Development:
http://web.worldbank.org/WBSITE/EXTERNAL/TOPICS/EXTARD/0,,menuPK:
336688~pagePK:149018~piPK:149093~theSitePK:336682,00.html
14 Biello, D. ‘Is a Green Revolution Finally Blooming in Africa?’ Scientific
American. 1 de Novembro de 2007.
http://scientificamerican.com/article.cfm?articleID=FD6F3117-E7F2-99DF
344D7916906A65CF&chanID=sa003
15 Op. cit., http://www.agra-alliance.org, 13 de diciembre de 2007.
16 Op. cit., http://www.agra-alliance.org, 13 de diciembre de 2007.
17 ‘Scientists tinker with nature to create “golden rice”.’ Deutsche Presse
Agentur, 2 de dezembro de 2003, en AgBioView: 9 de dezembro de 2003.
18 Maredia, M.K. and Raitzer, D.A. (2006). ‘CGIAR and NARS Partner
Research In Sub-Saharan Africa: Evidence of Impact to Date’. Science
Council Secretariat (Secretaría del Consejo de las Ciencias), pp vii.
19 Freebairn, D.K. (1995) ‘Did the Green Revolution Concentrate Incomes?
A Quantitative Study of Research Reports’. World Development 23 (2).
20 Niazi, T. (2004). ‘Rural Poverty and the Green Revolution: The Lessons
from Pakistan’. The Journal of Peasant Studies 31 (2).
Liba Taylor / ActionAid
23
file
Amade Sucá
24
Coordenador regional de direito à alimentação na África/ActionAid
A luta
pelo direito
à alimentação
na África
dos movimentos sociais
A África e a fome
África é o continente mais afectado pela fome crónica e aguda no mundo.
O direito à
alimentação em
África é premente,
urgente e obrigatório.
Todos são chamados
a contribuir de forma
a que esta seja
uma realidade, com
especial ênfase para
os governos. E, um
dos actores-chave
neste processo
são os movimentos
sociais.
De acordo com a FAO, 852 milhões de pessoas sofrem de fome e malnutrição no mundo. Destes, 206 milhões estão na África. A causa primária é
a falta de acesso a meios de produção tais como terra, água, sementes
e instrumentos adequados de produção. Aliás, de acordo com Vandana
Shiva1 as causas da fome são “a combinação de perda da terra e do controle dos recursos locais tais como água, semente e biodiversidade, básicas
para a agricultura das comunidades, mas agora nas mãos de corporações
globais”. Partindo desta realidade, o direito à alimentação em África é premente, urgente e obrigatório. Todos são chamados a contribuir de forma
a que esta seja uma realidade, com especial ênfase para os governos. E,
um dos actores-chave neste processo são os movimentos sociais. Porque
em África reconhece-se o papel desempenhado pelos movimentos sociais
na construção e condução da luta pelo direito à alimentação, faz-se aqui o
relato do seu contributo.
O direito à alimentação e os movimentos sociais
O marco histórico do Direito Humano à Alimentação Adequada pode ser situado na aprovação da Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948.
Este facto fez com que o mesmo pudesse estar plasmado em tantos outros
instrumentos legais como o Pacto Internacional dos Direitos Económicos,
Sociais e Culturais (PIDESC) em 1966, em diversas Constituições nacionais
(ex.: África do Sul, Malawi, Namíbia e Uganda) e em inúmeras declarações
regionais e internacionais. Menção especial ao comentário-interpretação
número 12 do comité dos direitos económicos, sociais e culturais em relação ao direito à alimentação plasmado no PIDESC, artigo 11 número 2.
“O direito à alimentação constitui o direito de toda a pessoa humana (mulher, homem, criança) quer na sua singularidade quer na colectividade a ter
acesso físico e económico a todo o momento a uma alimentação adequada
(quantidade e qualidade) ou a ter meios que lhe possibilitem a aquisição do
mesmo através de mecanismos e formas humanamente dignas”2.
file
25
Este processo implica necessariamente uma visão
sentamento das populações, distribuição de víveres e
política de longo prazo, uma larga base de apoio para
mantimentos em casos de emergências e calamidades
a construção deste projecto, um grande sentimento de
e mesmo em situações de conflitos armados quer
propriedade deste desafio e uma capacidade cumu-
­internos quer de e com orientação externa. Contudo,
lativa de produzir conhecimento e alternativas. Para
há uma forte corrente de africanos que defende que
além do Estado, alguns dos actores que cumulativa-
até este momento (anos 50-70) não se pode falar de
mente albergam estas pré-condições são os movimen-
movimentos sociais no seu strictus sensus. Ora até
tos sociais. Neste artigo, entendemos por movimentos
aqui a luta pelas independências era um projecto de
sociais uma forma colectiva de organização de grupos
todos, onde os movimentos de libertação eram, na
específicos com objectivos comuns, basea­dos na soli-
sua plenitude, o povo organizado. Inclusive logo de-
dariedade, interacções e justiça social . Os ­movimentos
pois das independências, continuava a construção do
sociais fundamentalmente resistem e combatem uma
projecto da unidade africana.
3
dada ordem social injusta e exclusivista. Para tal, desa-
Foi na década de 1980 que os povos africanos
fiam as elites, autoridades e estruturas que propiciam o
sentiram que seus líderes não mais comungavam dos
empobrecimento dos povos e afectam negativamente
mesmos ideais para a construção do projecto de ­África
o meio ambiente. Os movimentos sociais devem
unida, solidária, próspera e em paz. Os líderes africa-
­“interferir decisivamente no debate e nos rumos das
nos fizeram opções estratégicas à margem dos seus
políticas públicas”4. Por este meio, as áreas de gov-
povos. Alguns países mergulharam em conflitos inter-
ernação, de comércio, do meio ambiente e de capital
nos sangrentos (ex.: Moçambique, Somália, Ruanda,
social e humano são tidas como centrais para as mu-
Burundi, República Democrática do Congo), outros
danças sociais necessárias para o alcance do direito à
iniciaram reformas democráticas cuja implementação
alimentação adequada.
foi negada, gerando tensões e conflitos violentos (ex.:
O direito à alimentação, apesar de estar plasmado
Madagascar, Nigéria e Zimbabwe). Outros ainda mer-
em instrumentos legais de carácter vinculativo e não
gulharam em golpes de Estado (ex. Burkina Faso, Togo
só, aparece em muitos casos como letra morta. Daí
e Guiné Bissau). Ao mesmo tempo, as economias
que constitui acção prioritária a permanente luta para
­africanas não conseguiram um crescimento económi-
que os governos e as instituições competentes a todos
co que pudesse responder às demandas ­internas,
os níveis coloquem na sua agenda o alcance e ma-
acabando por se endividar até ao extremo.
nutenção do direito a alimentação para todos os povos
e a todo o momento.
Em consequência, tiveram que manter uma forte
relação de dependência com as ex-potências colonizadoras e adoptaram políticas e reformas impostas pelas
O contexto político e económico em África e os
instituições de Bretton Woods (Banco Mundial e FMI),
movimentos sociais
apelidadas de programas de ajustamento estrutural,
Os movimentos sociais, pela sua natureza, associam-
visando a adopção de um sistema sócio-económico
-se a lutas de resistência. Em África, a resistência e
de mercado livre.
a luta pelos direitos mais elementares, como o de ali-
É neste contexto político e económico africano que
mentação, foi sempre parte da história dos ­movimentos
surgem os movimentos sociais como alternativa para a
sociais. A história reconhece e documenta a resistência
restituição do sonho de Kwame Krumanh (África livre,
dos africanos à ocupação estrangeira, desde a Etiópia
próspera, unida e solidária). O primeiro presidente do
(1450) até a Namíbia (1990). Durante a colonização,
Gana indicava que seu sonho não era apenas a inde-
foram os movimentos “sociais” o embrião para o surgi-
pendência do Gana senão de todo o continente. Dai a
mento e consolidação dos movimentos de luta pelas
ideia da criação dos Estados Unidos de Africa ou seja
independências. Estes movimentos iniciaram as suas
a União Africana
acções com a tomada de consciência da necessidade
de luta contra a exploração e as injustiças sociais a
A luta dos movimentos sociais em África
que estavam sendo sujeitos pelos regimes coloniais.
Os movimentos sociais em África têm desempenhado
Foi, portanto esta luta que em grande parte, culminou
um papel decisivo para a construção do projecto da
com a independência dos países africanos.
“renascença africana”, que contempla o direito à ali-
Após as independências, o desafio da reconstrução
mentação através do combate à fome. Os movimentos
nacional contou fortemente com as intervenções dos
sociais em África actuam em áreas-chave que visam a
movimentos. Estes muito fizeram para a ajuda ao reas-
garantia de acesso a alimentos e a habitação condigna,
file
Amade Sucá
26
à promoção da igualdade de género, ao acesso à edu-
reforça a necessidade e viabilidade de modelos alter-
cação e à saúde, com especial atenção à mulher. Só
nativos de agricultura e um modelo de desenvolvimen-
a título de exemplo, temos movimentos como ROPPA
to endógeno e sustentável para África. Exemplo disso
(Rede de Orgamizações Camponesas e de Produtores
são as acções desenvolvidas por organizações como
Agrícolas do Oeste da Africa) que trabalham em áreas
a Actionaid e o Movimento da Federação Internacional
de justiça económica; Via campesina, que intervém
para a Agricultura Orgânica (IFOAM).
na promoção da voz política dos pequenos e médios
Por um lado, os movimentos sociais africanos,
camponeses; a ESAFF (Federação dos Agricultores
através da mobilização e da sua organização interna e
da África Austral e do Este), que desenvolve acções
externa de formação, permitem a produção e partilha
em áreas como a criação de capacidades produti-
do conhecimento sobre boas práticas de produção,
vas dos agricultores e sua ligação com o mercado; o
conservação e alimentação nutritiva. Por outro lado
LPM, que actua no acesso à terra pelos sem terra; a
permitem, através da mobilização, a realização de
FDC (Fundação para o Desenvolvimento da Comuni-
acções de âmbito político visando maior poder político
dade), que actua no desenvolvimento de acções que
para os pequenos e médios produtores, assim como
garantam proteção da criança e promovam o desen-
a contemplação do direito à alimentação no quadro
volvimento comunitário nas suas múltiplas facetas e;
das normas africanas. Com estas acções, alguns
o Fórum Mulher, que é a congregação das diversas
países adoptaram legislação mais condizente com as
organizações que trabalham na área de promoção dos
­normas e práticas costumeiras positivas, valorizando
direitos da mulher.
o conhecimento local e melhorando a participação da
Para o acesso a alimentos, várias são as estraté-
sociedade civil nos processos de formulação de políti-
gias adoptadas pelos movimentos sociais. De um
cas agrárias. Foi igualmente possível a construção
modo geral, os movimentos de pequenos agricultores,
de uma base comum para a luta contra políticas que
de pescadores e de ambientalistas resistem às várias
prejudiquem a materialização do direito à alimentação.
tentativas de manipulação e de adopção de políticas
Por isso a rejeição em bloco do uso das sementes
inapropriadas (fundamentalmente de carácter neoli­
transgénicas, da adopção dos Acordos de Parceria
beral). Em África, estes movimentos reivindicam a
­Económica (APEs) e da Revolução Verde.
implementação de uma política de soberania alimentar
As acções dos movimentos sociais em África, tais
para o desenvolvimento agrário. Defendem um inter-
como da ROPPA (Rede de Organizações de Campone-
vencionismo necessário do Estado uma vez que está
ses e de Produtores Agrícolas), da Via Campesina Áfri-
claro que o sistema neoliberal de mercado livre não
ca, da CNOP (Coordenação Nacional de Organizações
funciona. O mercado não se regula por si só. Aliás a
de Camponeses), da NASFAM (National Smallholder
actual crise alimentar provocada pelo aumento dos
Farmers´ Association of Malawi), da UNAC (União Na-
preços dos produtos alimentares é o exemplo ilustra-
cional de Camponeses), do Indaba e de tantos outros
tivo dessa incapacidade de resposta justa do merca-
está a permitir um melhor conhecimento da complexa
do. Esta intervenção deve-se materializar através do
realidade africana no que tange à reforma agrária e ao
investimento em capital tecnológico, capital humano,
direito à alimentação. O direito à alimentação é uma
capital físico, no fortalecimento das instituições públi-
preocupação dos movimentos sociais africanos daí
cas e na criação de condições objectivas para um
que, hoje, estão sendo estabelecidos mecanismos
equilíbrio entre a procura e a oferta, livre de especu-
para uma melhor coordenação, intercâmbio e partici-
lações, assim como pela adopção de uma atitude de
pação pública dos diferentes grupos nas comissões
transparência e boa governação pelos Estados e pelas
de trabalho, nos fóruns de planificação, avaliação e
corporações transnacionais. Aqui chamamos a aten-
monitoria das políticas agrárias e comerciais. Os mo-
ção para a ­necessidade de regulamentação específica
vimentos sociais africanos apresentam actualmente
dos mercados, uma vez que as empresas transnacio-
propostas alternativas de como aumentar a produção
nais detém o controlo sobre o mercado.
e produtividade para que todos tenham acesso condi-
Os movimentos sociais, com a sua larga base de
gno a uma alimentação adequada.
produtores, demonstraram através do uso de técnicas
As críticas tecidas pelos movimentos sociais, em
e tecnologias adequadas, como a agroecologia, escola
eventos como os fóruns sociais e as conferências
do camponês na machamba (campo) e controle natural
­internacionais, sobre aspectos ligados à reforma
de pragas, que é possível aumentar a produtividade, a
agrária denotam análise das acções e estratégias
qualidade e competitividade dos seus produtos. Isso
adoptadas pelos Estados e organismos internacionais
file
27
de desenvolvimento. Defendem que
estas devem ser baseadas na realidade
concreta do território – daí a ­necessidade
de diagnósticos territoriais feitos de
forma participativa e negociada, onde
os produtores são a força motriz. É na
combinação dos recursos existentes e
nas oportunidades que se podem gerar
que o Estado deve facilitar o acesso a
recursos para a produção de alimentos,
por parte dos produtores nacionais e
não só. O trabalho conjunto das redes,
não apenas africanas mas também com
suas congéneres da Asia, America e da
Europa, conclui sobre a necessidade de
localizar o desenvolvimento. Quer dizer,
a acção de construção do desenvolvimento implica o diagnóstico do meio local (o território) e implica a efectiva participação dos locais.
Contudo, falta ainda melhorar alguns
aspectos, por parte dos movimentos
Liba Taylor/ ActionAid
sociais africanos, tais como a necessidade de incluir nas formas tradicionais
de ­mobilização e de luta dos marginalizados o uso de técnicas mais agressivas
nos média, o reforço da coope­ração, coordenação e de alianças inter-temáticas.
para a promoção do desenvolvimento. Os objectivos
O direito à alimentação: o que querem os
enunciados destes planos são, na essência, positivos.
movimentos de camponeses africanos
No entanto as estratégias, os planos e a implemen-
1. Disponibilidade de alimentos
tação revelam a não colocação do ser humano como
Os movimentos sociais quando advogam pela sobera-
o epicentro do processo e limitam a plena e efectiva
nia alimentar fazem-no na perspectiva clara de que
participaçãos dos povos na condução das iniciativas
o seu alcance passa necessariamente pelo aumento
que visam o alcance do direito à alimentação ade-
da produção. Aqui reside a questão central sobre
quada. Os movimentos sociais defendem estratégias
como provocar este aumento. Na óptica dos movi-
­inclusivas que assentem em princípios de participa-
mentos ­sociais, este aumento da produção deve, em
ção e de liberdade de escolha das opções a seguir
primeiro lugar, ter em vista a resposta aos pro­blemas
para a ­construção do desenvolvimento. Portanto, os
de alimentação humana – comer. O objectivo não é a
­movimentos sociais africanos estão a produzir uma
produção para a obtenção do lucro, mas para a rea­
consciência analítica crítica sobre os contornos ligados
lização de um direito nato – a alimentação da qual
à liberdade de ­alimentação. Isto cria, nos diversos seg-
­depende a existência da pessoa. Assim, esta produção
mentos da sociedade, a apropriação da luta por mais e
deve ser feita em harmonia com a mãe ­natureza e
melhores condições que visem o alcance, manutenção
­observando as regras elementares da cultura e do
e melhoria do direito a alimentação adequada.
respeito pelos limites estabelecidos pela natureza.
Os movimentos sociais trouxeram à mesa de nego-
O aumento da produção de uma forma escalonada
ciações, para além do conceito de soberania alimen-
­responde às necessidades da família, da aldeia, da co-
tar, a premente necessidade de localizar as iniciativas
munidade, do território, do país, da região e do mundo.
file
Amade Sucá
28
Nunca o inverso. A pre­missa básica da independência
transforma a comunidade num actor protagonista do
é a capacidade de auto-alimentar-se, pelo menos em
seu próprio desenvolvimento. A sustentabilidade do
bens primários.
direito à alimentação reside na capacidade da comu-
2. Acesso a alimentos
nidade controlar os 4 níveis acima descritos. Só assim
A produção de alimentos é sim para servir a espécie
o alimento cumprirá o seu papel de manter a espécie
humana em primeiro lugar. Assim, o consumo de ali-
humana enquanto o produtor cumpre o seu papel de
mentos é o epicentro de toda a cadeia de produção.
produzir os alimentos.
Os alimentos são produzidos para que as pessoas possam alimentar-se. Do mesmo modo que a
Em jeito de conclusão
produção precisa responder aos limites da natureza, o
O direito à alimentação contribui decisivamente para
consumo precisa responder aos limites da justiça so-
o aumento das capacidades e das habilidades dos
cial. Os ­alimentos devem estar a um preço acessível,
produtores (detentores de direitos), de forma a melho­
de forma a que os consumidores possam ter acesso
rar o rendimento familiar, a suficiência alimentar e a
aos mesmos. O acesso a alimentos nutritivos e sãos
­independência económica. Contudo, para que tal acon-
não pode ser apanágio de alguns. Os movimentos so-
teça, as comunidades devem ter acesso e controlo de
ciais ­defendem a valorização das formas tradicionais
recursos naturais tais como terra, água, ­sementes, flo-
de concepção de ementas. As pessoas devem ter a
restas e fauna. Esta continua a ser uma área de batalha
liberdade de escolher o tipo de alimentos que preten-
em muitos países africanos. Os ­movimentos sociais
dem para a sua nutrição
procuram igualmente que o Estado retome o controlo
3. Uso de alimentos
sobre os mercados, ou pelo menos sobre como estes
Os alimentos, na dimensão atribuida pelos movimen-
são regulados.
tos sociais são igualmente essenciais em outras apli-
Os movimento sociais africanos estão, de forma
cações, como a cura e a transformação em outras
gradual, a construir a sua capacidade de influenciar
matérias necessárias para a produção de energia. No
o modo como a actividade económica é desenvolvida
entanto, em nenhum momento as outras funções dos
nos países e no continente como um todo.
alimentos podem perigar o seu objectivo primário - ali-
Os produtores africanos a cada dia fortalecem
mentar o ser humano.
­também a sua consciência política da necessidade
4. Sustentabilidade
de uma luta global para a resoluçãos dos problemas
A produção, conservação, transformação e comercia­
­nacionais. Os resultados são visíveis nos fóruns so-
lização de alimentos deve ser feita de forma a permitir
ciais e nas transformações estruturais em curso em
que todos os sujeitos involvidos tenham benefícios
muitos países de África
­equitativos deste processo. A criação de riqueza deve
ser acompanhada de distribuição desses rendimentos
ao conjunto de actores involvidos. Para o alcance e
manutenção do direito à alimentação, os movimentos
sociais advogam, entre outros aspectos, a necessidade
de intervenção do Estado na regulação dos processos
de produção, conservação, transformação e comercia­
lização de alimentos. O Estado, no seu papel interventivo e de distribuição estratégica de recursos, deve ­olhar
os produtores (que constituem 80% da população
em África) como sendo as unidades básicas de cons­
trução do desenvolvimento. Para isso, os movimentos
sociais defendem que o Estado deve criar condições
propícias, através da adopção de medidas apropriadas
que promovam a aquisição de conhecimento e de tecnologias pelos pequenos e médios produtores. Deste
modo, o conhecimento transformativo e inovativo de
homens e mulheres camponeses, jovens, produtores
de gado, pescadores, sem terra, sem tecto e demais
grupos vulneráveis, é aplicado para gerar capital que
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DO S S IER
Kimtheng Sen* e Khy Lim**
29
* Assessora de Segurança alimentar / ActionAid Cambodja
** Assessor de Comunicação / ActionAid Cambodja
Marta Antunes / IFSN / ActionAid
Construindo uma rede comunitária
de proteção e reinvindicação dos
recursos naturais no Cambodja
Pescadores no Cambodja
Em fins de 2006, um grupo de 15
organizações parceiras da ActionAid
que desenvolvem trabalho em
comunidades implantou a Rede
Comunitária para Soberania Alimentar
no Cambodja (CNFSC, na sigla em
inglês). A rede é constituída por 32
membros vindos de 15 diferentes
províncias e cidades, e por um núcleo
central de 11 representantes das
organizações e comunidades parceiras
com experiência em organização e
mobilização de pessoas em torno de
questões relacionadas ao direito à
alimentação.
Todos os membros da CNFSC se
reúnem duas vezes por ano, para
compartilhar idéias e informações
referentes a seu trabalho de campanha,
bem como desenvolver capacidades
entre seus grupos. O núcleo central se
reúne trimestralmente para coordenar
o acompanhamento das atividades
e atualizar planos de apoio, assim
como estabelecer novos planos em
apoio a qualquer membro que esteja
enfrentando problemas graves.
A CNFSC claramente definiu estratégias
para desenvolver seu trabalho e
contribuições para um Cambodja em
que “todos os cambodjanos tenham
o direito à uma alimentação segura,
regular e de qualidade”.
• Análise crítica, por parte das
comunidades, das causas da fome.
A fome é causada por exclusão,
injustiça e discriminação. Tratar da
questão da fome significa lidar com as
causas na raiz da fome.
O trabalho deve, portanto, orientar-se
no sentido de combater estas causas,
ainda que algumas necessidades
imediatas também tenham que ser
necessariamente atendidas.
• Desenvolvimento da capacitação dos
membros das comunidades da rede:
é crucial fortalecer a capacidade dos
membros das comunidades de tratarem
de outras questões chave, inclusive
políticas e legislação.
• Vinculação e integração com
o processo de Organização da
Comunidade: a CNFSC não é um
projeto de rede, mas um processo
contínuo destinado a mobilizar
habitantes locais para analisarem as
causas e raízes da fome, bem como
encontrar soluções adequadas para
tratarem destes problemas.
• Solidariedade entre os membros das
comunidades (tanto dentro quanto
fora delas): sabemos, por experiência
prática, que o desenvolvimento de
campanhas pode ter êxito apenas se
houver um alto nível de compromisso,
organização entre as comunidades,
Visão da CNFSC
Todas os cambodjanos têm o direito à
uma alimentação segura, regular e de
qualidade.
Missão da CNFSC
Trabalhar em cooperação com outras
redes que tenham relevância em nível
local, nacional e internacional para que
todos cambodjanos tenham acesso ao
direito à soberania alimentar, através
dos mecanismos adequados.
Objetivos da CNFSC
1. Mobilizar da comunidade, reunir
informações e analisar de questões
relacionadas à fome, bem como
encontrar soluções adequadas a suas
próprias comunidades.
2. Desenvolver relações de
solidariedade dentro e fora das
comunidades para combater a fome
conjuntamente.
3. Desenvolver a capacitação da
comunidade quanto ao direito à
atividade de subsistência, através de
negociação, coordenação, e diálogo em
níveis nacional e internacional, assim
como ampliar a rede para instituir uma
voz mais forte.
4. Criar espaços e oportunidades de
diálogo com stakeholders relevantes em
relação a políticas de alimentação no
Cambodja, bem como compartilhar e
aprender outras experiências.
5. Apoiar mecanismos de participação
em nível local, nacional e internacional.
DO S S IER
Kimtheng Sen e Khy Lim
30
e solidariedade entre os participantes
das campanhas.
• Vinculação à rede em diferentes
níveis: a rede deve estar orientada
para a comunidade, e suas atividades
estratégicas devem ser implementadas
em diferentes níveis: local, provincial,
nacional e internacional, dependendo
das exigências.
• Suporte: ONG’s parceiras, outras
redes que tenham relevância, e outras
ONG’s internacionais e ONG’s locais
irão dar suporte à rede.
O que fazem os membros da
CNFSC em suas comunidades para
promover mudanças? Ao capilarizar
as atividades de segurança alimentar
da rede, ActionAid e seus parceiros
têm ajudado o núcleo central e os
membros da CNFSC a fortalecer sua
rede, desenvolver a capacitação da
equipe focal e dos habitantes locais em
relação a questões relacionadas à fome,
a organização entre as comunidades, e
para reunião de informações e análise
das questões.
Um exemplo são os trabalhos
desenvolvidos por ActionAid e SAMAKY
(solidariedade), na província de
Kampong Cham. A pesca é a principal
atividade de subsistência, seguida
por atividades agro-pecuárias, nos 20
vilarejos em que SAMAKY e ActionAid
desenvolvem seu trabalho pelo direito
à alimentação. Em Kampong Cham,
três pessoas focais foram escolhidas, e
suas capacidades foram aprimoradas
através de várias reuniões sobre
segurança alimentar da comunidade
com o núcleo central. Estas três
pessoas – umas das quais é de uma
organização parceira, enquanto as
duas outras são da Comunidade de
Mien – têm um papel de facilitação na
organização de grupos de pessoas
da comunidade, aprofundando sua
consciência acerca de questões
relacionadas à fome, especialmente
em termos de seu acesso aos recursos
naturais e controle dos mesmos. Elas
também criaram oportunidades para
que as pessoas comuniquem questões
e enviem mensagens a autoridades
governamentais de diferentes níveis e
aos responsáveis pela exploração dos
recursos da comunidade.
Este trabalho é muito importante na
medida em que tem contribuído para
que as pessoas identifiquem as causas
e as raízs da fome e compreendam
que têm direitos, e possam trabalhar
em conjunto para assegurar que estes
direitos sejam cumpridos.
MOBILIZAÇÃO DAS COMUNIDADES
E DESENVOLVIMENTO DE SUA
ANÁLISE CRÍTICA. Reinvindicação
de acesso ao Lago Thom. Medindo
3 km de largura e 7 km de comprimento,
Thom é o segundo maior lago do
Cambodja, depois do Lago Tonle Sap.
12.000 famílias vivendo em três distritos
diferentes se beneficiam do Lago Thom.
SAMAKY tem trabalhado com
1.500 famílias de nove vilarejos, na
Comunidade de Mien para reivindicar
acesso ao lago. Isso significa consertar
a Barragem de Rolum Por (50 m de
largura, 50 m de comprimento e 7 m
de altura) e ampliar os espaços de
pesca da comunidade. A represa foi
construída durante o regime de Pol Pot
para aumentar o volume de água retido
no lago, liberando-a através de duas
caniçadas. Durante anos isso permitiu
que a comunidade controlasse o nível
de água e peixes de forma sustentável.
Entretanto, a represa foi rompida por
pessoas em conluio com autoridades
locais e distritais para explorarem os
recursos pesqueiros.
“Se o lago secar, não teremos peixe ou
água suficiente para irrigar os campos
de arroz. Para acabar com a fome
local, a represa tem que ser consertada
urgentemente. Mas a autoridade
pesqueira sempre nos impede de
fazer isso.” So Ann, 44 anos, uma das
pessoas que trabalha como ponto focal
em segurança alimentar
Se a represa for novamente
impermeabilizada, haverá mais água e,
assim, mais espaço de pesca para a
comunidade e mais floresta aquática –
o que significa mais peixe no lago.
Caso contrário, como resultado das
fissuras na represa, haverá pouca água
remanescente, não haverá peixe e o
crescente acúmulo de depósitos de
terra aluvial do lago nas proximidades
da comunidade, o Lago Keh, que
também seca durante a estação seca.
Em 1998, 64% dos lotes de pesca foram
distribuídos para acesso privado.
O principal proprietário de lotes de
pesca, que comprou todo o lago de
uma autoridade distrital, é conhecido
simplesmente como Huch, pelos
habitantes locais, inclusive pela equipe
da SAMAKY. Ele é proprietário de todos
os lotes de pesca do lago. O único
homem que eles conhecem pelo nome é
Tith Try, de 43 anos, que supostamente
comprou uma parte do lago situado na
Comunidade de Mien, o que significa
que ele agora controla as áreas de lotes
de pesca na comuna. Lotes de pesca
também foram vendidos para outros dez
proprietários de lotes de pesca.
Como resultado, os vilarejos, que
dependem fundamentalmente da pesca
para sobreviver, apenas têm acesso à
parte central do lago, longe da margem,
já que o resto foi distribuído na forma de
lotes de pesca de propriedade privada.
Desde então, as pessoas pescaram
apenas um ou dois quilos de peixe
por dia, enquanto alguns pescadores
retornam de mãos vazias. Alguns usam
o chhib (um instrumento de pesca
manual previamente permitido até nos
lotes de pesca privados). Usando este
instrumento, as pessoas podem passar
horas pescando, mas conseguem
pescar apenas uma quantidade
muito pequena de peixe ou camarão.
Esta situação se agravou quando os
proprietários começaram a explorar
suas redes de pesca e baniram até
mesmo a pesca com o chhib.
Apoiei, colocando minha digital
no documento, a solicitação da
comunidade para que a represa seja
consertada e garanta mais água. Mais
água para mais peixe. Água para irrigar
as hortaliças e para que os animais
possam beber. Caso haja mais água
represada, haverá mais peixes na
floresta aquática. Se o nível da água for
mais baixo, eles pegarão com facilidade
todos os peixes. Chhoeurn Rein, uma
viúva de 50 anos de idade
Existem duas opções para as pessoas
“comprarem” o acesso aos lotes
privados. Pela primeira, a autoridade
pesqueira do distrito permite às
pessoas pescarem em lotes de pesca
privados se elas pagarem uma taxa
anual por família pelo uso das redes de
pesca e um bote, ou para uma samrah
(barricada).
A segunda opção é pagarem pela
pesca com seu próprio trabalho:
os pescadores recebem 2 porções
DO S S IER
31
enquanto as outras 8 porções vão para
o proprietário dos lotes de pesca.
Entretanto, as pessoas podem pagar e
entrar nos lotes de pesca apenas durante
um período de menos de 4 meses, entre
26 de fevereiro e 1º de junho. De junho
em diante, o Departamento da Pesca
proíbe toda pesca.
Reinvindicação de acesso ao braço
da represa Takot A represa de Takot
foi construída durante o regime de Pol
Pot, em 1978. Ela foi usada para irrigar
arrozais em dois distritos e deveria
irrigar cerca de 2.000 hectares de
campos de arroz na Comunidade de
Mien. Atualmente, o braço da represa
beneficia três comunas: Comunas
de Mien, Prek Krabao e Chhrey (que
pertence a dois distritos: Prey Chhor e
Kang Meas).
O braço da represa Takot esta situada
no vilarejo de Keh, onde residem 118
famílias (515 pessoas). As pessoas
sobrevivem da pesca, e do cultivo de
arroz e hortaliças.
Em 2004, um indivíduo chamado Chuon
Vuthy, em conluio com autoridade local,
ludibriou as pessoas da Comunidade
de Mien fazendo-as assinarem ou
aporem sua impressão digital em um
arrendamento de 5 anos (vigorando
de 9 de outubro 2004 a 25 de abril de
2009), para explorar os recursos do
braço da represa. Em troca, foi feita
a promessa de construir um canal
para que a comunidade irrigasse seus
campos de arroz – o que nunca foi feito.
Um homem do local chamado Srun
foi contratado para administrar o uso
do braço da represa. O arrendatário
explorou os recursos do braço da
represa todos os anos e proibiu as
pessoas comunidade de lá pescarem,
contrariamente ao acordo.
O arrendatário solicitou uma prorrogação
do acordo para a autoridade local, mas
as pessoas rejeitaram a proposta. Em
vez disso, pediram que o proprietário
construa o canal como prometido no
acordo de arrendamento. O canal está
previsto para ter 15.000 metros de
comprimento, 2 metros de largura e 1
metro de profundidade.
Havendo água, as pessoas podem
plantar seus cultivos duas vezes por
ano. Nós também encorajamos as
pessoas a semearem cultivos como
o de milho, que oferece rendimentos
mais altos. Elas podem fazer cultivos de
subsistência uma estação, ao mesmo
tempo em que semeiam cultivos para
venda, na estação seguinte. Elas terão
água, peixes e colheitas posteriores.
Depois de cultivarem arroz, elas
poderão pescar peixe em quantidade
suficiente para uma refeição, caso o
braço da represa seja recuperado e
conservado.
Sun Chantha, 51, membro da comunidade
de pesca SAMAKY e da Comissão de
Conservação de Água de Takot
ao Departamento da Província.
Eles ainda estão acompanhando os
procedimentos de sua solicitação.
Os líderes dos vilarejos têm dado muito
apoio ao processo.
Reinvindicação de terra pelos sem-terra Além de solicitarem o reparo da
barragem de Rolum Por e a construção
de um canal adjacente ao Lago Takot, a
equipe de segurança alimentar também
ajudou as pessoas a pedir terra para
ser distribuída aos sem-terra. Cento e
sessenta das 207 famílias locais não
possuem terra. Na primeira etapa, foi
formulado um plano para solicitar terra
para 100 famílias.
Até agora, os representantes da
comunidade recolheram assinaturas
sob a forma de impressão digital de 50
famílias. O documento será carimbado
pelo chefe do vilarejo e enviado
para o chefe da comunidade, para o
governador do distrito e, por fim, para o
governador da província.
A base para esta ação é uma declaração
feita pelo primeiro-ministro, Hun Sen
− mencionada no jornal publicado em
inglês The Cambodja Daily, no ano
passado −, ordenando ao governador
da província que distribuísse lotes de
terra às pessoas sem terra.
Como chefe do vilarejo, posso apenas
aconselhar as pessoas a darem seu
apoio. Nós não plantamos. Mas
nós pescamos. Se pudermos fazer
os reparos na represa, poderemos
conservar os recursos pesqueiros. Se
você quiser que as pessoas coloquem
suas impressões digitais no documento,
você só precisa dizer e as informarei
publicamente. Estamos ajudando as
pessoas em sua tentativa de conservar
o lago e beneficiar as jovens gerações.
Chea Sok, 56 anos, líder do vilarejo de
Chea Sok.
DESENVOLVENDO RELAÇÕES DE
SOLIDARIEDADE
Para assegurar os direitos de ter
acesso aos recursos e controle sobre
os mesmos, SAMAKY deu suporte
para a mobilização de comunidades,
bem como para que trabalhem em
conjunto com a autoridade local. Até
agora, os habitantes locais receberam
considerável apoio dos líderes de seus
vilarejos. 1.864 moradores de vilarejos,
de dez vilarejos diferentes, tomaram
parte no processo de solicitação destas
ações. Eles enviaram suas petições à
comuna em novembro, e ao distrito em
dezembro. Contudo, as mesmas foram
devolvidas. Os representantes então
apresentaram sua petição diretamente
Quero que todos os moradores do
vilarejo façam a solicitação em conjunto.
Caso contrário, os representantes do
departamento podem não acreditar
que nós somos os verdadeiros
representantes. Quem sabe, milhares
de pessoas pedindo juntas poderão ter
êxito.” Chhoeurn Rein
Fortalecer a capacidade de
demanda da comunidade
O desenvolvimento das capacidades
das pessoas da comunidade – aqueles
que realmente sofrem com a exploração
de seus recursos pelos proprietários – é
uma parte extremamente importante
da amplificação de suas vozes e para
permitir que se apropriem do processo.
Dado o necessário apoio técnico e
legal das organizações parceiras, as
pessoas que são ponto focal podem
auxiliar a recolher informações e a
identificar as autoridades pertinentes a
quem se deve endereçar as exigências.
O conhecimento da Lei de Pesca e
seus direitos aos recursos naturais têm
sido enfatizados, e tem sido oferecido
treinamento sobre pesca comunitária.
Ajudar os habitantes locais a entender
seus direitos, bem como as causas
que estão na raiz da pobreza, e suas
implicações, é uma parte importante
e integral do trabalho. Quando as
pessoas do braço da represa Takot
colocaram sua impressão digital no
acordo de transferência do rio para que
fosse controlado por pessoas privadas,
em 2004, elas não tinham idéia dos
impactos de sua decisão.
DO S S IER
Agora elas entendem as causas e
conseqüências. Elas entendem que,
se permitirem a continuação da
propriedade privada, os benefícios
serão ainda maiores para o indivíduo
proprietário, em vez da comunidade.
Elas aprenderam que têm o direito
a pedir o acesso e o direito à sua
atividade de subsistência. E elas
aprenderam a ter confiança na luta por
esses direitos.
Criar oportunidades para o diálogo:
promover a mudança
Depois que as pessoas têm consciência
de seus direitos e da necessidade
de reivindicá-los, foi-lhes dada ajuda
para implementar o mecanismo de
solicitação destes direitos.
Em outubro de 2007, 27 pessoas da
comunidade foram selecionadas para
um curso de treinamento de dois
dias de duração sobre o projeto de
estatuto da comunidade pesqueira.
Em 27 de novembro de 2007, a
Comissão da comunidade pesqueira
foi eleita com a assistência e o
reconhecimento do Departamento da
pesca da província. Seu objetivo é
coibir as práticas de pesca ilegais e
conservar as áreas de pesca locais.
Um grupo de onze representantes (três
dos quais mulheres) dos 9 vilarejos
da Comunidade de Mien foi eleito.
Contudo, mobilizou-se apoio em dez
vilarejos. Em março, foi formulado um
plano para organizar uma assembléia da
comunidade representando as pessoas
de nove vilarejos. A assembléia da
comunidade – junto com a autoridade
local e o Departamento da Pesca – irá
formalmente aprovar o estatuto da
comunidade pesqueira. O estatuto está
sendo finalizado com informações que
estão sendo atualmente compiladas
para serem incluídas nos 24 artigos do
estatuto. Serão definidas contribuições
para o uso e conservação dos recursos
da comunidade, tais como, por
exemplo, o pagamento de 2 quilos
de arroz por hectare cultivado para
pagar os membros da comissão de
conservação da água. O estatuto
da comunidade pesqueira permite
o uso de instrumentos familiares
(redes de pesca com 100 metros de
comprimento, arrastões com 20 metros
de comprimento ou redes de laço de 5
metros de comprimento). Os habitantes
locais concordaram com estes planos.
Membro do núcleo central IFSN durante visita de campo.
Nós plantamos aqui, mas compramos peixe no mercado. Isso não tem lógica.
Precisamos considerar as causas e a raiz da pobreza das pessoas. Por que o arrozal
deixa de ser fértil? Por que as pessoas não podem ter acesso ao braço da represa?
Eles não ouvem nossas pessoas. Se a Comunidade Pesqueira de Mien (SAMAKY) –
todos os 19 vilarejos – e a mídia não trabalharem juntas, não teremos êxito.
O mandato de cinco anos ainda não expirou, mas precisamos começar. Queremos
que as pessoas erradiquem a pobreza. Não queremos que empresários nos explorem.
Queremos que as pessoas saibam seus direitos e protestem. Nós informamos as
pessoas, reunimos informações, reunimos as pessoas para que analisem as causas na
raiz de seus problemas e seus impactos. Precisamos ajudar as pessoas a entenderem
bem a questão. Cada um se tornou consciente do problema e todos têm dado sua
aprovação através de sua impressão digital. Se fosse apenas alguns de nós, eles nos
acusariam de rebelião. Mas se somos muitos, eles não terão espaço suficiente na
cadeia para prender todos.
Trabalho como facilitador da comunidade nas áreas de trabalho da SAMAKY, e a
organização me deu treinamento. Não tenho muita escolaridade. Eu não saberia de
nada se não tivesse me juntado a eles. Depois de ter ingressado na organização,
estou mais consciente. Antes, eu nem mesmo sabia a quem me dirigir para obter
cooperação legal.” Much Nim, 55, uma das três pessoas da comunidade que é ponto focal
em segurança alimentar
Kampong Samnagn, chefe do vilarejo,
afirma que caso a autoridade da
comunidade não intervenha, eles
se dirigirão ao distrito e a outros
níveis de autoridade. As pessoas
levarão alimentos para o protesto. A
comunidade organizará um fórum e
convidará o Governador da província
a tomar parte na discussão acerca da
reparação da barragem de Rolum Por,
que margeia o Lago Thom e o Lago
Keh.
O fórum será o espaço para levantar
os problemas. O governador será
solicitado a visitar a represa para ver o
que realmente está acontecendo lá.
Em seguida à instituição da
comunidade pesqueira, as pessoas
do vilarejo em que está situado o
braço da represa Takot também
escolherão cinco pessoas para
trabalharem na conservação de Lago
Takot. Além de administrar a água
no braço da represa, a comissão
tem acompanhado recentemente o
cumprimento da promessa. No início
de fevereiro, foi lançada uma petição
para responsabilizar as autoridades
locais, especialmente a autoridade
da comunidade e o arrendatário. Foi
pedido ao arrendatário que construa o
canal tal como prometido e devolva o
braço da represa às pessoas até abril
de 2009.
Se eles não concordarem em cumprir
sua promessa, iremos bloquear as
águas usando varas de bambu. Nós
trabalhamos com as pessoas. Temos o
direito de prendê-los. Sozinhos somos
fracos. Se as pessoas se unirem,
podemos fazê-lo. Iremos nos reunir
com Srun cara-a-cara. Se eles não
concordarem com nossa exigência,
partiremos para a ação. Anos se
passaram e eles ainda não cumpriram
sua promessa. Iremos usar meios
pacíficos desde o princípio. Evitamos a
violência, ela é contra nossos princípios.
Nós trabalhamos para fortalecer nossa
comunidade. Se todos forem ricos,
seremos ricos por um longo tempo.
Estou comprometido a realizar isso.
Sun Chantha
Marta Antunes / IFSN / ActionAid
Kimtheng Sen e Khy Lim
32
DO S S IER
Eduardo Vallecillo Barberena*, Marta Antunes**
e Ronnie Palacios***
33
* Coordenador da REDCASSAN
** Coordenadora Global do IFSN / ActionAid
*** Coordenador da REDSSAG
Direito à Alimentação e Ajuda Alimentar:
um casamento a desenvolver
O direito à alimentação é um direito
humano e uma obrigação bem
estabelecida pelas leis internacionais
tais como a Declaração Universal de
Direitos Humanos, o Pacto Internacional
sobre Direitos Econômicos, Sociais
e Culturais, e a Convenção para
Eliminação de todas as formas de
Discriminação contra as Mulheres.
O direito à alimentação busca
assegurar que todas as pessoas possa
alimentar-se com dignidade, e obriga
os Estados a respeitarem, protegerem e
cumprirem o direito à alimentação.
Uma vez que a fome tem diferentes
faces, o direito à alimentação transita
na intersecção das identidades das
pessoas que passam fome – mulheres,
povos indígenas, afrodescendentes,
populações rurais/urbanas, camponeses,
populações que vivem da pesca
artesanal, extrativistas, jovens, pessoas
vivendo com HIV e AIDS (PLWHA, na
sigla em inglês), e outros.
A combinação da liberalização
do comércio agrícola e sua
desregulamentação, a concentração e
o controle corporativos de mercados
agrícolas, o aumento das pressões
decorrentes dos efeitos das mudanças
climáticas que resultam em colheitas
menores, o aumento da demanda
global por alimentos, o aumento da
especulação em torno das colheitas
A Rede Internacional de Segurança
Alimentar (IFSN, na sigla em inglês)
reúne 23 redes nacionais envolvidas
com segurança/soberania alimentar
na Ásia, África e América Latina, e
três redes sub regionais na região
centro-americana (RedCASSAN),
região andina e países africanos
lusófonos, tendo a ActionAid
Internacional como parceiro
coordenador. Uma das principais
metas da rede é promover diálogos
políticos entre redes da sociedade
civil que desenvolvem campanhas
em torno da questão da segurança
alimentar, governos nacionais e
instituições internacionais.
de alimentos, aumentos nos preços
do petróleo e outros insumos, junto
com a febre dos biocombustíveis,
fizeram da agricultura uma vez mais o
foco das discussões sobre a política
internacional de desenvolvimento no
seio de um contexto de alta dos preços
dos alimentos.
Segundo a FAO, trinta e sete
países enfrentam uma assumida
crise de alimentos que exige urgente
cooperação externa. Como resultado
desta crise, os preços mundiais dos
alimentos sofreram uma alta de 40%
nos últimos 9 meses1. Os preços reais
de arroz atingiram o preço mais alto
dos últimos 19 anos, em março − um
aumento de 50 % em apenas duas
semanas semanas − enquanto os
preços reais do trigo atingiram os
valores mais altos em 28 anos2.
A ajuda alimentar está sendo
proposta como uma das soluções
de emergência para esta situação, e
concordamos que fornecer alimentos
em um contexto de urgência e fome
extrema deve ser visto como um
passo positivo para o cumprimento do
direito à alimentação. Não obstante, a
ajuda alimentar tem tido um impacto
negativo na vida das pessoas mais
vulneráveis nos países que recebem
ajuda, trazendo danos à segurança e
soberania alimentar locais.
Ademais, a transparência relativa
ao tipo de alimento fornecido não é
respeitada, particularmente no caso de
alimentos geneticamente modificados,
obrigando as pessoas pobres a
consumirem alimentos sem segurança
e não adaptados à suas culturas, sem
nenhuma opção.
Os países centro-americanos estão
particularmente vulneráveis às altas
de preços. “No atual estágio, ainda
é prematuro fornecer dados, mas
tememos um aprofundamento da crise
nutricional entre os segmentos mais
pobres da população, aqueles que já
sofrem com a insegurança alimentar
e nutricional,” comenta o Diretor do
Programa Mundial de Alimentação
em El Salvador, Carlo Scaramella, que
coordena um estudo regional sobre
o impacto dos recentes aumentos de
preços na América Central. “Ao mesmo
tempo, vemos a emergência de um
novo grupo de pessoas atingidas pela
insegurança alimentar e nutricional
entre as camadas mais pobres da
população. Estas pessoas tem tido
seu acesso à alimentação diminuído
em resultado do aumento de preços
de gêneros básicos como milho, trigo,
arroz e feijões. É um novo fenômeno
que pode potencialmente afetar muitas
pessoas em toda a América Central”3,
acrescenta ele.
“A Organização das Nações Unidas
para Agricultura e Alimentação (FAO,
na sigla em inglês), em seu relatório
O estado de Insegurança alimentar no
mundo 2003 mostra que o progresso
na redução da fome ‘está virtualmente
parado’. Segundo declaração de
seu Diretor General, Jacques Diouf,
‘o problema não é tanto a falta de
alimentos, mas a falta de vontade
política’. Cinco anos depois, a vontade
política dos mais ricos é imposta por
eles, na medida em que decidem
produzir agrocombustíveis apesar das
graves conseqüências para o sistema
global de alimentação. Hoje, eles
estão preocupados com os preços
dos alimentos, mas a especulação
em torno dos preços de commodities
básicas prossegue. Hoje eles
exploram a necessidade de alimentar
os pobres como uma desculpa para
defender a necessidade de aumentar
a produção de alimentos através do
uso de organismos geneticamente
modificados”. Eduardo Vallecillo,
Coordenador da REDCASSAN.
OGM’s e Ajuda Alimentar
Não sabemos o suficiente acerca
dos Organismos Geneticamente
Modificados (OGM’s) para declarar
categoricamente se serão perigosos,
DO S S IER
Eduardo Vallecillo Barberena, Marta Antunes e Ronnie Palacios
34
revelaram que o Programa Mundial de
Alimentação (WFP, na sigla em inglês)
tem distribuído sistematicamente
alimentos OGM para grupos altamente
vulneráveis através, entre outros, de
programas para grávidas, crianças e
alimentos para trabalhadores, expondo-os a riscos de saúde. Dentre os cereais
introduzidos através de programas de
ajuda alimentar se incluem variedades
de milho transgênico − produzidas
pela multinacional Monsanto e não
aprovadas para cultivo ou consumo
humano −, e importações da UE.
“Lutamos contra a fome e a
desnutrição, e pelo Direito Humano
à Alimentação Adequada, que é um
direito humano fundamental. Todos
os seres humanos têm o direito a
inócuos ou benéficos em termos de
saúde humana e meio ambiente a longo
prazo. Isso se aplica aos OGM’s em
alimentos, comida animal e sementes.
Qualquer organização que promova
distribuição de alimentos e sementes,
ou apóie tal trabalho, tem uma alta
responsabilidade para com as pessoas
que recebem esta ajuda, no sentido
de assegurar a segurança alimentar
e a biodiversidade. As agências que
distribuem os produtos derivados da
ajuda alimentar têm a obrigação de
certificarem-se de que tais alimentos
não provoquem danos àqueles que os
consomem, e de colocar rótulo nos
produtos que contenham OGMs, de
ActionAid
Romper o ciclo de dependência da
ajuda alimentar significa investir no
sistema agrícola do país.
Assim, ao mesmo tempo em que a
ajuda alimentar é necessária, e bem
vinda em casos de emergência (quando
seguir critérios específicos), é crucial
ajudar os países que são altamente
dependentes da ajuda alimentar a
promoverem mudanças estruturais
em seus sistemas de produção,
processamento, armazenamento e
distribuição de alimentos
exigir que seus governos provejam
programas especiais contra a fome em
períodos de emergência, estratégias
sustentáveis para a produção de
alimentos, e os meios de obtenção
de alimentos adequados, seguros e
culturalmente aceitáveis, livres de todos
os tipos de poluentes. Nós também
temos o direito à negar a introdução de
organismos geneticamente modificados
em programas de ajuda alimentar, e o
direito a produzirmos nosso spróprios
alimentos e protegermos nossos
recursos naturais, salvaguardando
assim, no processo de produção, nosso
meio ambiente e a biodiversidade”
Eduardo Vallecillo, REDCASSAN.
maneira que os consumidores sejam
informados e possam decidir se querem
consumi-los ou não.
REDCASSAN (Rede Centro-Americana
para a Soberania e a Segurança Alimentar
e Nutricional) − rede subregional do IFSN
na América Central −, que reúne mais
de 200 organizações de pequenos
produtores, organizações de mulheres,
grupos indígenas e ONG’s, relatou
diversos casos de OGM’s sendo
introduzidos na América Central através
da ajuda alimentar.
As atividades de monitoramento,
efetuadas pelo Centro Humboldt na
Nicarágua desde 2001 como parte
da “Campanha de Biodiversidade”
A REDSSAG (Rede para a Segurança e
a Soberania Alimentar da Guatemala),
membro da RedCASSAN, também tem
repetidamente denunciado a presença
de variedades inadequadas para
consumo humano, tais como o milho
amarelo Stalink, distribuído em 2005,
em Camotán e Jocotán. Em 2007, a
presença de 3 variedades de milho
transgênico foram detectadas em um
“atol” (mistura de farinha de milho com
água ou leite) tipicamente fornecido
por programas de ajuda alimentar
e comercialmente conhecido como
Vitacereal, com uma concentração de
62% de produtos transgênicos.
A REDSSAG recebeu vários
depoimentos de pessoas que estão
usando este “atol” para a recuperação
nutricional de crianças com menos de 5
anos, relatando que as crianças sofrem
de desinteria. Embora não tenha sido
DO S S IER
35
clinicamente comprovado que estas
reações são causadas pelo consumo da
mistura, esta é uma fonte adicional de
preocupação.
Por estes motivos, a REDCASSAN e
a REDSSAG consideram que o direito
das pessoas à alimentação adequada
está sendo violado pela exposição a
transgênicos através de programas de
ajuda alimentar, e estão preparando
uma queixa em conjunto com as
comunidades afetadas.
Nesta situação, deve ser aplicado
um princípio precaucionário. Portanto,
a União Européia, os EUA e outros
doadores devem assegurar que OGM’s
não sejam usados em alimentos de
ajuda alimentar (p. ex., em programas
de ajuda alimentar do Programa Mundial
de Alimentos – WFP por sua sigla
em inglês), nem introduzidos através
de nenhum de seus programas de
cooperação, e devem pró-ativamente
pressionar agências tais como o WFP
no que se refere a esta questão.
Direito à alimentação e ajuda
alimentar
“A ajuda alimentar chegou na
Guatemala quando já estávamos em
uma situação de perigo total e extrema
vulnerabilidade. Não houve ações
preventivas. A solução foi dar uma
cesta de alimentação, mas o problema
era que não sabíamos como usar estes
alimentos. Como cozinhá-los? As
mulheres não sabiam como preparar os
alimentos que recebiam e ficavam muito
tristes com isso. Além disso, o gosto
e a consistência eram inapetentes. Me
lembro que o óleo que recebemos tinha
uma coloração rosada. As mulheres
olharam para aquilo e perguntaram: ‘...
de onde vem este óleo? Como você
o usa?’ Perguntávamos às nossas
vizinhas”, conta Magdalena Sarat, uma
mulher indígena e coordenadora da
CONAVIGUA (Coordenação Nacional de
Viúvas da Guatemala).
Ao contar a história de sua
experiência com programas de ajuda
alimentar na Guatemala, Magdalena
Sarat lembra da necessidade
de incorporação de critérios de:
respeito pela cultura local, respostas
permanentes a situações emergenciais,
promoção de modelos agro-ecológicos
de produção, e participação local
em políticas e programas de ajuda
alimentar. Ela concluiu seu relato com
a declaração de que “a ajuda alimentar
requer uma abordagem sensível à
cultura e à identidade”.
QUE TIPO DE AJUDA ALIMENTAR
QUEREMOS?
A ajuda alimentar deve ser enviada
aos países sob a forma de dinheiro em
vez de alimentos, e sem imposição
de nenhuma condição. A ajuda deve
vir através de linhas de cooperação
internacional que contribuam
para cumprir e proteger o direito à
alimentação das pessoas em situação
de vulnerabilidade sem discriminação.
Os países precisam ter autonomia
para decidir:
• Onde comprar: apenas eles podem
decidir obter a alimentação em um
país (de uma região não afetada
pela situação de emergência ou pelo
fracasso da colheita) ou na subregião
(favorecendo comércio interfronteiriço).
• Quais alimentos comprar: a
transparência no tipo de alimento
distribuído é essencial para assegurar
os direitos à saúde e o respeito à
cultura e à identidade.
• De quem comprar: o uso de
licitações públicas como política de
desenvolvimento rural é possível
apenas se os países receberem a
cooperação na forma de dinheiro, em
vez de alimentos. Isso permite que os
governos introduzam programas de
licitações públicas junto a agricultores
familiares (incluindo pequenos
agricultores e camponeses, pescadores
artesanais, afrodescendentes, grupos
indígenas e extrativistas), como já
fazem o Brasil e o Equador. Estes
programas podem ser expandidos se a
cooperação vem na forma de dinheiro e
tiver base nas lições aprendidas junto a
estes dois países.
• Promoção da agricultura sustentável:
ao escolher onde comprar, de quem
comprar e que tipo de produto comprar,
os estados nacionais podem usar a
ajuda alimentar para promover uma
produção agro-ecológica, pagando uma
sobretaxa por produtos social, cultural e
ambientalmente sustentáveis.
Romper o ciclo de dependência
da ajuda alimentar significa investir
no sistema agrícola do país. Assim,
ao mesmo tempo em que a ajuda
alimentar é necessária, e bem vinda em
casos de emergência (quando seguir
critérios específicos), é crucial ajudar os
países que são altamente dependentes
da ajuda alimentar a promoverem
mudanças estruturais em seus
sistemas de produção, processamento,
armazenamento e distribuição de
alimentos, no sentido de:
• Prevenir a vulnerabilidade a situações
de emergência: reduzir os impactos
das mudanças climáticas e aumentar a
resiliência do sistema produtivo;
• Aumentar os estoques de alimentos
do país (permitindo que o governo
regulamente preços e responda a
situações de emergência) através
licitações públicas dirigidas
para pequenos agricultores e
camponeses, pescadores artesanais,
afrodescendentes, grupos indígenas e
extrativistas;
• Redirecionar os investimentos
estatais e multilaterais para promoção
da agricultura camponesa e um
desenvolvimento rural baseado
em tecnologias social, cultural e
ambientalmente adaptadas;
• Promover e respeitar os direitos das
mulheres, assegurando seu acesso
à terra, e aos recursos naturais e
produtivos − bem como seu controle
− para assegurar sua atividade de
subsistência e autonomia de maneira
eqüitativa;
• Regulamentar as corporações
transnacionais e priorizar a promoção
de mercados locais e nacionais.
1 Humanitarian challenges related to current
food trends, documento de discussão da
OCHA (Escritório de Coordenação de Assuntos
Humanitários, na sigla em inglês). Abril de 2008.
2 Food Price Crisis: A Wake Up Call for New
Policies to Eradicate Hunger, Anuradha Mittal.
3 http://www.wfp.org/
english/?ModuleID=137&Key=2777
4 Painel temático “Ajuda alimentar na
região”, realizado em 12 de abril de 2008 na
Conferência do IPC (Comitê internacional de
planejamento, na sigla em inglês) que precedeu
a 30a Reunião Regional da FAO em LAC,
organizado por Javier Pasquier da organização
More and Better Aid e do IPC. CONAVIGUA
e ActionAid foram convidadas a fazerem
apresentações neste painel.
post it
Renata Neder Farina
36
Geógrafa, produtora executiva da revista Food Files
Com a colaboração de Carol Kayira / ActionAid - Malawi
Malawi
Desafios à segurança alimentar
e a participação da sociedade civil
Renata Neder / IFSN / ActionAid
Agricultores da Cooperativa Bwayaya no Malawi
Introdução: fome e produção
de alimentos no Malawi
Recentemente, o Malawi se tornou
conhecido internacionalmente por seu
“milagre” no aumento da produção
de alimentos através da introdução
de subsídios governamentais para
fertilizantes e sementes. Contudo,
apesar do “milagre”, o país ainda
enfrenta grandes desafios para alcançar
a segurança alimentar e promover uma
agricultura sustentável.
A economia do Malawi é fortemente
baseada na agricultura. As atividades
agro-pecuárias respondem por 36.4%
do PIB, mais de 85% da população vive
em áreas rurais, e mais de 90% das
residências nestas áreas pertencem a
agricultores de subsistência. Entretanto,
o país enfrenta graves problemas de
fome, e permanece o desafio de atingir
a segurança alimentar domiciliar.
Ao longo das últimas décadas, o Malawi
teve déficits de alimentos, dependendo
de importações de alimentos e ajuda
alimentar para combater a fome.
“O Malawi está em um perpétuo estado
de emergência alimentar. A maior parte
dos agricultores não produz alimentos
por mais de quatro meses. Estamos
IFSN e FOSANET
A Rede de Avocacia pela Segurança
Alimentar (FOSANET, na sigla em
inglês) foi instituída em julho de 2004, e
lançada em 15 de março de 2005 como
parte da iniciativa do IFSN de criar e
fortalecer redes de luta pelo direito à
alimentação. Hoje, 67 organizações e
associações de produtores de gêneros
básicos estão representadas na rede.
As principais atividades desenvolvidas
pela rede são: pesquisa; advocacia e
lobby; desenvolvimento de capacidades
da sociedade civil; e política de
influência.
vivendo no limite, todo tempo. Resolver
a crise transitória de alimentos não
resolve o problema subjacente, que é
a baixa produtividade da agricultura”.
(Devereux, 2002)
Governo e sociedade civil estão
tentando fazer frente aos desafios
de aumentar a produção agrícola
e promover a segurança alimentar.
Diferentes políticas têm sido
implementadas para resolver problemas
de abastecimento e reduzir a fome.
As duas últimas estações de colheita
(05/06 e 07/08) têm sido as melhores da
última década no Malawi, produzindo
23.5 e 32 milhões de toneladas (Mt),
respectivamente, frente a uma demanda
nacional de 22 Mt. Este aumento
maciço da produção agrícola se tornou
conhecido como o Milagre do Malawi.
Em 2005/06, o governo decidiu investir
em subsídios agrícolas para fertilizantes
usados nos cultivos de alimentos.
Estes subsídios foram agora estendidos
também para sementes, constituindo
um “pacote da Revolução Verde” para
agricultura.
As conseqüências negativas da adoção
do modelo agrícola da Rev. Verde na
Ásia e na América Latina são bem
conhecidas, e sua implementação como
resposta à fome e à crise de alimentos
deve levar em consideração estes
problemas.
O trabalho de promoção do
desenvolvimento enfrenta muitos
desafios, mas é particularmente
difícil confrontar os aspectos
estruturais e emergenciais da
post it
37
ActionAid na luta pela
segurança alimentar no
Malawi
A ActionAid começou a trabalhar no
Malawi em 1991, e uma de suas áreas
temáticas iniciais foi a da Segurança
Alimentar e Nutricional. Nesta época, o
trabalho estava focado no oferecimento
de serviços básicos e infra-estruturas,
produção agrícola, água e saneamentoe
os primeiros contatos com agricultores
seguiram o mesmo caminho.
Msakambewa, em Dowa, foi a primeira
Área de Desenvolvimento (DA) em que
a ActionAid começou a trabalhar no
país. Os agricultores da DA salientaram
que os principais problemas que
enfrentavam na produção agrícola
eram a baixa produtividade, a falta de
fertilizantes, falta de sementes, secas,
enchentes e falta de terra.
ActionAid encorajou as comunidades a
plantarem cultivos nas estações secas
usando irrigação e deu assistência às
famílias quanto ao uso de sistemas
de irrigação, tais como head loads,
watering cans, bombas manuais e
motorizadas, gotejamento, e assim por
diante.
Apesar da diversidade de cultivos – tais
como milho, feijões, batata, mandioca,
A Cooperativa Bwayaya
Durante uma reunião com a ActionAid,
25 agricultores da Cooperativa
Bwayaya falaram acerca dos desafios
para a produção agrícola e para
a segurança alimentar. Eles ainda
passam por períodos de fome e as
principais limitações que identificaram
são a baixa produtividade, os baixos
preços do mercado e baixa renda.
Eles identificaram alguns elementos
chave que ajudariam a acabar com sua
vulnerabilidade e sua fome: acesso a
sementes e fertilizantes, e acesso a
mercados e a preços justos.
Renata Neder / IFSN / ActionAid
pobreza simultaneamente. Não é fácil
responder a uma emergência ou a uma
necessidade imediata e, ao mesmo
tempo, concentrar esforços para mudar
as causas que estão na raiz da pobreza
e da fome.
Neste artigo, gostaríamos de fornecer
alguns exemplos do combate à fome
nestes dois fronts.
soja e tabaco –, quando se trata dos
hábitos alimentares, as pessoas dão
prioridade ao nsima, um produto feito à
base de farinha de milho, que constitui
a base da dieta diária nas áreas rurais.
Como introduzir educação nutricional
e diversificar as receitas das pessoas,
ao mesmo tempo em que se respeita a
cultura tradicional, ainda é um desafio.
O acesso ao mercado é outro
componente essencial para o êxito
das atividades agrícolas geradoras
de renda e, conseqüentemente, para
melhorar os meios de vida das famílias
rurais. Permanece sendo um desafio
empoderar economicamente os
agricultores para que possam planejar
a venda de seus cultivos, em particular
o milho, de forma a obterem melhores
preços em vez de venderem tudo
imediatamente após a colheita a preços
baixos. ActionAid também desenvolveu
na DA atividades para melhorar o
acesso a crédito e o comércio dos
produtos agrícolas.
Por volta de 2003, a ActionAid mudou
sua maneira de trabalhar e adotou
uma abordagem baseada nos direitos
Promoción de la producción agrícola
de alto valor
Total Earth Care, organização parceira
fundada em 1998/1999, implementa
projetos de irrigação, reflorestamento
e acesso a mercado. Seus esforços
se concentram na promoção de uma
produção agrícola de alto valor e de
maior renda familiar.
A estação das chuvas na região dura
cinco meses e se as atividades de
cultivo dependerem apenas da água da
chuva, a produção ficará restrita a este
período. Com a irrigação, tomate, milho,
batata doce, alface, feijões e tabaco
podem ser colhidos mais de uma vez
por ano.
O acesso aos mercados é outra área
chave do projeto. Os agricultores
são encorajados a plantar cultivos
de alto valor e a vender diretamente
ao mercados em Lilongwe, evitando
intermediários. Os agricultores da
comunidade também planejam
previamente o cultivo que cada um irá
colher, de maneira que há suprimento
contínuo do mercado.
post it
Renata Neder Farina
38
humanos. Era tempo de focar nas
causas estruturais da pobreza e da
fome.
Em nível local, isso significa que alguns
serviços chave ainda seriam oferecidos,
mas, ao mesmo tempo, o foco seria
empoderar as comunidades de forma a
promover mudanças sustentáveis e de
longo prazo em relação às causas na
raiz da pobreza e da fome.
As pessoas devem estar capacitadas
para reivindicar seus direitos e construir
soluções para assegurar sua segurança
alimentar e nutricional, melhorar a
produção agrícola e aumento da
geração de renda.
Em Msakambewa, os agricultores se
organizaram em oito cooperativas.
A ActionAid promoveu cursos de
treinamento e atividades de capacitação
junto a eles, focando no aumento da
produção agrícola e no acesso ao
mercado. Estas cooperativas estão
hoje vinculadas à NASFAM (Associação
Nacional de Pequenos Agricultores do
Malawi, na sigla em inglês) e prevê-se
que isso melhorará seu acesso aos
mercados e oferecerá oportunidades
de melhores preços, aumentando sua
renda e valorizando sua atividade de
subsistência.
FOSANET e o direito
à alimentação
Outro front na luta pela segurança
alimentar e nutricional é a
implementação, a nível nacional, da
estrutura legal do direito à alimentação,
assegurando o direito à alimentação
e definindo as responsabilidades
dos detentores de direitos e dos
entes obrigados. A sociedade civil
e os movimentos sociais têm sido
importantes atores nesta luta.
No Malawi, o engajamento da
sociedade civil oferece um exemplo do
sucesso deste trabalho de advocacia.
Desde o advento de uma democracia
multipartidária, em 1993, o Malawi
tem visto um crescimento substancial
das organizações da sociedade civil.
O governo do Malawi abriu espaço e
convidou a sociedade civil a participar
e a juntar forças para combater a fome
no país.
“O problema da fome e falta de
alimentos no país era grave e constituía
uma questão tão complexa que não
poderia ser plenamente tratada por
uma única instituição ou organização.
Era um problema que afetava a todos
e era essencial confrontá-lo. Assim, o
governo começou a abrir espaço para o
engajamento da sociedade civil e para o
trabalho de advocacia, e precisávamos
ocupar este espaço.” (Edson Musopole
/ ActionAid Malawi)
As organizações da sociedade civil se
engajaram em diferentes processos
que englobavam aspectos distintos
do desenvolvimento rural (incluindo
a segurança alimentar) e advocacia
política. Um aspecto importante
de engajamento da sociedade civil
no Malawi é sua participação nas
discussões e na redação do projeto da
Lei da Terra, da Lei de Biossegurança
e da Lei de Direito à Alimentação.
A FOSANET e outras redes e
organizações nacionais têm parte
ativa neste processo e já obtiveram
importantes resultados.
O esboço da Lei de Segurança
Alimentar e Nutricional (FNS, na
sigla em inglês, ou Lei do Direito à
Alimentação) começou em 2006.
Um primeiro esboço já estava pronto
em dezembro de 2006, e reuniões de
revisão foram feitas ao longo de 2007.
A proposta final foi finalizada em 31 de
outubro de 2007.
FOSANET e outras organizações
tiveram um papel chave em todo
o processo. Esta lei, tal como está
atualmente redigida, será um passo
importante no sentido de assegurar o
direito à alimentação no país. Ela foi
redigida dentro do âmbito do direito à
alimentação, e estabelece e define:
• a obrigação do governo de
salvaguardar o direito à alimentação,
• as responsabilidades dos atores nãoestatais,
• políticas para acelerar a efetivação do
direito à alimentação, e
• a instituição do Conselho de
Segurança Alimentar e Nutricional.
Os próximos passos incluirão a
apresentação da Lei FNS ao Gabinete
de aprovação do Ministério da Justiça,
apresentação à Assembléia Nacional na
condição de lei governamental e, por
fim, sua promulgação.
Estima-se que o processo como um
todo esteja finalizado em 2009.
Tão importante quanto o engajamento
da FOSANET,no processo de
implementação do direito à alimentação
no Malawi, é o envolvimento das
organizações parceiras e de base.
Um importante aspecto ressaltado
pela rede é a necessidade de melhorar
as iniciativas de desenvolvimento de
capacidades no país. Embora o governo
tenha oferecido um considerável
espaço para o envolvimento público,
muito freqüentemente a sociedade civil
estava insuficientemente preparada
para ocupar este espaço.
Tendo identificado esta carência,
a FOSANET deu início a diversas
atividades de capacitação para o
aumento da consciência e acesso
a informação acerca do direito à
alimentação, de forma a melhorar
a qualidade de seu engajamento
no processo, bem como a de seus
parceiros.
Conclusão
Ainda há muito a fazer para alcançar
a segurança alimentar das famílias no
Malawi, incluindo o empoderamento
das bases, o aumento da consciência
das pessoas acerca de seu direito à
alimentação, discussão de seus hábitos
alimentares e da diversificação de
seu consumo/produção, construção
de alianças, de redes, campanhas e
engajamento crítico com o governo.
A ActionAid no Malawi está
contribuindo para enfrentar este enorme
desafio e fazer com que o milagre
do Malawi esteja mais centrado nas
pessoas.
R. Phiri, M. Alexander, “Progress and
Challenges in Reducing the Number of Hungry
People in Malawi in Accordance with the
1996 World Food Summit Plan of Action”,
apresentação feita no Workshop sobre o direito
à alimentação, 24 de janeiro de 2008, Lilongwe.
ActionAid Malawi, “Msakambewa Evaluation
Report” Mwenifumbo, Anganile W.A., (Centre
for Environmental Policy and Advocacy)
“The food and nutrition security bill:
background, progress and the way forward”,
Workshop sobre o direito à alimentação, idem.
FOSANET, Technical Report for 2003.
post it
39
Anna Antwi
Assessora de Direito à Alimentação / ActionAid - Gana
Ghana
Aumentos repentinos
Gideon Mendel/ Corbis/ ActionAid
de importação de arroz e aves
As reformas políticas em Gana desde
o princípio da década de 1980 –
incluindo Programas de Ajustes
Estruturais (SAP’s, na sigla em
inglês), mudanças tarifárias, políticas
agrícolas e comerciais, bem como
as Estratégias para Crescimento e
Redução da Pobreza no Gana (GPRS,
na sigla em inglês) I e II – tiveram como
resultado políticas de liberalização
que levaram a significativos aumentos
na importação de produtos agrícolas
baratos e subsidiados. Para contribuir
para o debate sobre os aumentos
repentinos de importações, a ActionAid
e a Organização para a Agricultura
e Alimentação (FAO, na sigla em
inglês) colaboraram para a realização
de um estudo sobre a extensão e o
impacto dos surtos de importação
de produtos agrários em países em
desenvolvimento. A ActionAid no Gana
tem trabalhado em questões em torno
da liberalização do comércio e suas
consequências para os produtores
locais devido às evidentes privações
provocadas aos pequenos agricultores
rurais. O objetivo geral do trabalho de
ActionAid era demonstrar a ocorrência
de surtos de importação de produtos
agrários no Gana e, caso tenham
havido algum, avaliar seu impacto
nas perspectivas de desenvolvimento
e seus efeitos na atividade de
subsistência dos domicílios e
comunidades, em termos de segurança
alimentar e redução da pobreza.
A liberalização do comércio
levou a consideráveis aumentos
do comércio global com benefícios
acumulados principalmente pelas
nações desenvolvidas, com poucos ou
nenhum benefício para os países em
desenvolvimento, tais como o Gana.
A principal razão para isso rside no
fato de que a liberalização do comércio
resultou em importações mais altas
de produtos baratos subsidiados,
competindo com produtos locais
e, na maioria dos casos, ocupando
o lugar dos produtos vendidos por
produtores menores, principalmente
agricultores de pequena escala, em
seu próprio mercado doméstico. Mais
recentemente, os surtos de importações
atrairam considerável atenção em
círculos de desenvolvimento devido aos
grandes aumentos, tanto em volume
quanto em valor, de exportações de
alimentos do mundo desenvolvido
para países em desenvolvimento.
Ademais, os surtos de importações se
tornaram um tema em evidência devido
a seus efeitos deletérios com relação
a agro-indústrias, rendas e atividades
de subsistência domiciliares em países
pobres, dentre os quais se incluem
o Gana. Os subsídios agrícolas, no
mundo desenvolvido, são em parte
responsáveis pela superprodução,
resultando em excedentes que são
descarregados no mercado mundial.
Conseqüentemente, pequenos
agricultores não-subsidiados de países
em desenvolvimento estão sendo
empurrados para fora do mercado, até
mesmo em seus próprios países.
O estudo da ActionAid no Gana foi
dividido em duas etapas.
A primeira consistiu em uma
consulta a stakeholders aos níveis
comunitário, regional e nacional, para
determinar se havia algum problema
relacionado a surtos de importações
post it
Anna Antwi
40
e, caso houvesse, que commodities
ou gêneros estariam envolvidos. Estas
consultas levaram à seleção de alguns
gêneros que foram objeto de surtos
de importação recentemente no Gana,
dentre os quais se incluem o arroz, aves
(ou carne de frango), molho de tomate,
óleo vegetal, e carne importada.
ActionAid selecionou os dois gêneros
mais citados, nomeadamente o arroz
e carne de frango. A segunda etapa
do estudo envolveu uma análise dos
surtos de importação de arroz e carne
de frango no Gana e seus impactos
nos níveis familiar e comunitário.
Comunidades selecionadas em todas
as regiões do país foram visitadas para
entrevistas e recolhimento de dados.
Também foram realizadas entrevistas
em níveis regional e nacional.
Surtos de importação de arroz
As importações de arroz, no início da
década de 1990, chegavam a mais
de 250.000 milhões de toneladas (Mt)
por ano, mas caíram para menos de
100.000 Mt por ano, em 1996 e 1997, e
posteriormente começaram novamente
a aumentar. Desde 2001, quando as
importações chegaram a mais de
300.000 Mt, as importações de arroz
têm permanecido continuamente altas.
Contrastando com isso, os números
da produção doméstica de arroz se
mantiveram em torno de 150.000 Mt
por ano, sugerindo que os níveis da
produção doméstica permaneceram
estagnados, na última década, ao
mesmo tempo em que os volumes de
importação continuam a subir. A relação
entre os preços do arroz importado
e os volumes anuais importados
também nos ajudam a dizer se há
algum problema relacionado a surtos
de importação de arroz no Gana. Os
preços por tonelada do arroz importado
no Gana se mantiveram os mesmos e,
até mesmo, caíram na década de 1990
e princípios de 2000, o que pode ter
sido um dos fatores que encorajou os
aumentos das importações durante o
período. Além disso, os preços médios
do arroz local têm sido continuamente
mais altos do que a média dos preços
de arroz importado, que trouxe para o
primeiro plano a perda da vantagem
competitiva da indústria de arroz
do Gana, tornando o cultivo pouco
atraente para os produtores locais.
O empobrecimento de produtores
de arroz
O alto preço de arroz local se deve
aos altos custos dos insumos que
os agricultores não podem pagar,
resultando em baixas produções e
conseqüentes baixas receitas. Em
segundo lugar, os preços pagos
aos agricultores pelo arroz têm sido
continuamente baixos, uma vez
que o mercado está saturado pelas
importações, de tal forma que os níveis
de renda obtidos pelos agricultores que
têm retornos positivos são bastante
baixos. Os baixos preços do arroz
importado e os preços reçativamente
altos do arroz local, levaram a aumentos
de importações de arroz, uma vez que
os consumidores passaram a consumir
o arroz importado barato (embora não
tão nutritivo). Por exemplo, a produção
local entre 1994 e 2004 foi de 150.000
toneladas em média, ao passo que o
volume médio de arroz importado foi de
aproximadamente 260.000 toneladas.
O efeito direto das altas nas
importações de arroz foram, portanto,
rendas decrescentes para os produtores
de arroz, com suas implicações
correlatas em termos de pobreza. Tal
como em 2004, as quedas nos preços
de arroz importado resultaram em um
aumento no número de produtores
locais com retornos negativos (66%).
As altas importações de arroz no
Gana afetaram negativamente os
níveis e a estabilidade da renda obtida
com a produção doméstica de arroz.
Conseqüentemente, mais agricultores
envolvidos com o cultivo de arroz
ficaram empobrecidos.
A insegurança alimentar
Tradicionalmente, a principal fonte
de arroz consumido pelos produtores
de arroz era produzida localmente e,
assim, a redução na produção implicava
em problemas de insegurança alimentar
para estes domicílios. Para 84% dos
domicílios, sua própria produção de
arroz era consumida durante os três
primeiros meses de colheita.
A renda consideravelmente baixa
dos agricultores locais envolvidos com
o cultivo de arroz, implicava também na
falta de poder de compra para garantir
um acesso regular à alimentação ao
longo de todo o ano. Em particular, este
estudo confirmou que o arroz é tanto
um cultivo que produz renda quanto
alimento para os produtores locais
do Gana. Se os agricultores auferirem
baixas rendas com a produção local
de arroz, devido ao efeito provocado
pela alta nas importações de arroz,
então eles também perdem seu poder
de compra sempre que sua própria
produção fracassa.
Condições vulneráveis
de subsistência
O estudo avaliou as atividades de
subsistência dos habitantes locais, em
termos de capital humano e social,
e como este é afetado por altas na
importação de arroz. O baixo índice de
alfabetização entre os produtores locais
de arroz limita sua habilidade no uso
das informações e do conhecimento
científico para desenvolverem
sua capacidade de atender suas
necessidades básicas. Isso pode
ser atribuído aos baixos níveis de
renda e poupança que resultam dos
consideravelmente baixos retornos
oriundos da produção de arroz, na
medida em que arroz é o principal
cultivo gerador de renda para a maioria
destes agricultores. Assim, o principal
impacto de altas nas importações de
arroz é a desvalorização da atividade
de subsistência dos produtores. Além
disso, as várias análises de sistemas
de produção agro-pecuária, realizadas
durante o estudo, indicam que o arroz
é um importante cultivo tanto para
homens quanto para mulheres, e em
torno da qual giram suas atividades de
subsistência.
A renda financeira obtida com
o arroz é usada como suporte para
muitas atividades de subsistência,
tornando o arroz um cultivo muito
importante para estes domicílios.
Ademais, grande parte dos domicílios
distribuem arroz como “presente “ que,
por este motivo, ajuda as comunidades
a construírem e manterem sua coesão
social. Uma ameaça à indústria local de
arroz é, portanto, uma ameaça a esta
importante função social.
A indústria de arroz, no Gana,
tem sido assediada por importações
e requer intervenção pública para
criar o ambiente que permita tornar
competitivo o arroz local.
A ActionAid apóia os pequenos
agricultores e está particularmente
post it
41
interessada em apoiar a indústria
de arroz porque seu cultivo ocorre
em todas as regiões do Gana. As
maiores quantidades de arroz (cerca
de 60%) vêm de duas ou três dentre
as mais pobres regiões do país, as
regiões nordeste e norte. O arroz é um
importante produto essencial na dieta
de praticamente todos os domicílios
ganenses, tornando muito alta a
demanda pelo cultivo. A demanda e
o consumo de arroz estão crescendo
em ritmo acelerado, tornando Gana um
importador de arroz.
A ActionAid no Gana, portanto, está
disposta a promover a produção e o
consumo domésticos de arroz no país,
de forma a:
1. criar empregos e aumento de renda
em áreas rurais como medida para
redução da pobreza,
2. assegurar o acesso à alimentação
como direito básico,
3. reduzir a migração rural-urbana,
especialmente dos jovens, para evitar o
aumento das populações de rua, e
4. reduzir a superdependência de arroz
importado do país para poupar divisas
estrangeiras
“Me chamo Iddrisu Neidow, tenho
52 anos e sou um agricultor de arroz
em Tamale, na região norte do Gana.
Tenho estado envolvido com atividades
agro-pecuárias há 32 anos. Meus pais
cultivavam arroz para pagar nosso
ensino e as outras necessidades
sociais da família quando éramos
jovens. Comecei a desenvolver uma
atividade agrícola a partir de 1975,
tal como meus pais, para ser capaz
de pagar minha própria educação e
a de meus filhos. Esse trabalho foi
bem até que os mercados ficaram
saturados por arroz importado.
Hoje, o arroz importado invadiu os
mercados ganenses, tornando difícil a
comercialização do arroz local. Agora,
a vida está insustentável, porque
nossa renda proveniente do arroz não
pode sustentar a educação as outras
necessidades sociais da família.”
Surtos de importação de carne de
frango
Uma avaliação das importações
de produtos aviários focando, em
particular, tipos de carne de frango
mostra um aumento continuado
dos volumes importados no país ao
longo da última década. O setor local
de produção de carne de frango foi
implantado ao final da década de 1950,
atingindo seu ponto ápice em fins da
década de 1980, começando a declinar
rapidamente na década de 1990 (OfeiNkansa, 2004, p. 76). Asas e coxas
de frango são os cortes inicialmente
importados no Gana até 1997, mas a
tendência se altera em favor de níveis
mais altos de sobre-coxas de frango.
No conjunto, as importações de frango
subiram continuamente desde 1995,
em que a sobre-coxa predomina,
subindo 1.200%, entre 2000 e 2004. A
importação de frango inteiro, entretanto,
é mínima. Estimativas baseadas nos
dados disponíveis indicam que mais
de 26.000 toneladas de frango foram
importadas no Gana em 2002. Em
2004, os números foram de 40.000
toneladas, representando um aumento
de 538% nos volumes importados
(FAO, 2005). Atualmente, dois terços
das importações de frango vêm dos
países da União Européia (UE), sendo
Gana o importador de mais de 30%
do total das exportações da UE para a
África Ocidental (TWN, 2006, p. 40).
Dados mostram aumentos abruptos
na importação de carne de frango
no Gana, de meras 7.000 toneladas
métricas, em 2001, para 45.000
toneladas métricas, em 2006, ao
mesmo tempo em que a produção
local era estimada em cerca de 22.000
toneladas métricas. O cenário que
fez do Gana o maior importador de
frango da UE, na sub-região da África
Ocidental, colocou os produtores locais
de carne de frango em uma situação de
desvantagem.
As importações de carne de
frango mais do que dobram em 2000,
quando foi removida a taxa especial
para importações. A produção local,
em 1992, tinha uma capacidade de
incubação de 20 a 25 milhões de aves
por ano, dos quais 15 a 20 milhões
eram frangos. As importações eram
mínimas. Em 2004, a produção local
havia encolhido para cerca de 11% das
importações (FAO, 2005).
O significado sócio-econômico da
indústria da carne de frango no Gana
Devido ao aumento das importações,
a demanda pela carne de frango
local entrou em colapso e ameaçou
a subsistência de mais de 400.000
avicultores comerciais registrados
no país, além de muitos pequenos
produtores.
De acordo com o estudo da
ActionAid, em 1992 os avicultores
ganenses forneciam 95% da carne de
frango para o mercado nacional, mas
em 2001 sua participação de mercado
havia caído para 11%.
Dentre os principais atores nessa
indústria se incluem produtores,
produtores de ração, distribuidores,
fornecedores de serviço de ampliação e
veterinária. Os avicultores se encontram
pelo país afora, estando os produtores
comerciais mais concentrados em áreas
específicas, como as regiões de Accra,
Brong Ahafo e Ashanti. Contudo, os
pequenos produtores, que constituem
aproximadamente 70% dos avicultores,
são predominantemente mulheres,
vivendo em comunidades rurais e periurbanas do país, que criam galinhas
como parte da rede de segurança
sócio-econômica.
A indústria da carne de frango,
em Gana, tem um efeito multiplicador
e dá sustentação a vários outros
empreendimentos. Entretanto, com o
colapso da indústria carne de frango,
caiu o número de outros pequenos
produtores. Os produtores de carne
de frango absorvem cerca de 25% do
milho produzido no país, oferecendo
assim emprego e pronto mercado para
milhares de produtores de milho. No
ano de 2002, a capacidade produtiva
como um todo das principais granjas
em todo o país era de apenas 27%.
Um dos efeitos da concorrência
desleal das importações de carne
de frango altamente subsidiada é
o desperdício resultante da subutilização das instalações usadas para
produção de carne de frango no país:
a utilização de incubadeiras está em
25%, granjas, em 42%; e unidades de
processamento, em 25%. A produção
de pintos também está em declínio. O
segmento de armazenamento de carne
de frango importada e de produtos
de carne de vaca, em 10 frigoríficos é
de aproximadamente 85%; os outros
15% são usados para peixes e outros
post it
Anna Antwi
42
produtos de carne locais. A pesquisa
encontrou muito pouca carne de frango
local congelada em todos os frigoríficos
visitados.
Nos frigoríficos foram encontrados
várias centenas de caixas de cortes
congelados de frango vindos da
Europa e do Brasil, vísceras de boi da
Argentina e cortes de carneiro da Nova
Zelândia. Os operadores dos frigoríficos
são empresários-chave que têm altas
margens de lucro como resultado
das importações de cortes de frango
baratos com pequeno valor de mercado
na UE.
Dentre os importadores de frango
congelado se incluem homens
politicamente influentes, alguns dos
quais reconhecem ter um conflito de
interesse nas tentativas de votação de
uma legislação de segurança alimentar
que restringira a importação de carne
de frango de certo nível de qualidade.
A produção de carne de frango tem
sido uma fonte chave de renda familiar
e uma fonte regular de proteínas para
os domicílios de renda baixa e média,
tanto nas partes rurais quanto urbanas
do país.
Durante as últimas duas décadas,
a liberalização de comércio e
investimentos representou as partes
centrais da reforma política no
Gana. O âmbito político das regras e
práticas comerciais que prevaleceram
é, em grande medida, resultado de
uma combinação da Convenção de
Lomé e preferências de Cotonou,
das condicionalidades do FMI/
Banco Mundial segundo os SAP’s,
das regras multilaterais emanadas
das negociações na OMC, e das
negociações comerciais e políticas
comerciais e agrícolas nacionais do
ECOWAS (Comunidade Econômica dos
Estados Africanos Ocidentais, na sigla
em inglês). Não há virtualmente nenhum
apoio do governo, e os preços estão
caindo, tornando os agricultores mais
pobres.
O interesse da ActionAid nas
atividades de produção de carne de
frango reconhece o potencial de seu
efeito multiplicador e o envolvimento
de pequenos agricultores, basicamente
mulheres, que produzem grande
parte da carne de frango e também
estão envolvidas na produção dos
ingredientes (peixe, milho etc.) usados
como ração.
Na região nordeste do Gana,
as mulheres criam galinhas como
estratégia para assegurar a segurança
alimentar durante a estação
improdutiva.
As perenes faltas de alimentos
freqüentemente compelem as mulheres
rurais a usarem carne de frango
doméstica para amortecerem os
efeitos da insegurança alimentar do
domicílio. Isso é feito através da troca
de galinhas, galinhas d’Angola, patos
e perus por grãos e legumes, ou por
dinheiro, através da venda direta, sendo
o dinheiro então usado para as compras
domiciliares. Conseqüentemente,
qualquer mudança nas relações de
comércio, ou redução na demanda de
carne de frango rural devido ao influxo
de importações de frango representa
uma importante ameaça à subsistência
de muitos grupos vulneráveis.
O caminho à frente: colocar os itens
da Segurança Alimentar e Nutricional
na agenda comercial
Com base no impacto negativo dos
surtos de importação de produtos agropecuários nos pequenos agricultores
que formam a grande maioria de
produtores no Gana, ActionAid faz as
seguintes recomendações:
1. O governo do Gana deve reconhecer
a importância da segurança alimentar
e nutricional para o desenvolvimento
rural, a redução da pobreza e os
direitos humanos fundamentais, e unir
forças com o G-33 na busca de regras
que assegurem o direito à proteção
dos países em desenvolvimento,
com base na segurança alimentar e
nutricional, e no desenvolvimento rural,
em conformidade com as Rodadas de
Doha.
2. O Gana deve exercer seu direito à
soberania para desenvolver políticas
nacionais que assegurem o direito das
pessoas, em vez de permitir que suas
decisões políticas sejam ditadas por
instituições financeiras internacionais
ou pelos chamados parceiros de
desenvolvimento.
3. Em nível doméstico, o governo do
Gana deve estabelecer um ambiente
regulatório que ofereça uma vantagem
competitiva aos produtores locais de
arroz e de carne de frango, através do
legítimo recurso a determinação de
tarifas.
4. O governo tem que necessariamente
aumentar tarifas ou impor barreiras
para itens alimentares importados, e os
fundos assim adquiridos serão usados
para dar apoio aos agricultores locais.
Recomendações para a ECOWAS:
1. Trabalhar para reagir contra
tendências emergentes divisionistas
no âmbito da ECOWAS como
resultado das táticas de negociação da
Comunidade Européia em torno das
APE’s.
2. Prover cláusulas específicas de
mecanismos de salvaguarda nos
acordos comerciais regional entre
países da ECOWAS que permitam
efetivas respostas a surtos de
importação.
3. Assegurar que a negociação da Tarifa
Externa Comum se baseie em uma
avaliação transparente dos produtos
que são críticos à segurança alimentar
e nutricional, e ao desenvolvimento rural
de cada país, e uma região como um
todo.
4. Trabalhar no sentido da
implementação de ECOWAAP de
forma a promover o desenvolvimento
industrial integrado da sub-região,
com base em uma estratégia industrial
comum.
5. Negociações em nível multilateral
de apoio à segurança alimentar e
nutricional de pequenos agricultores,
e do desenvolvimento rural e da
erradicação da pobreza no país, em vez
dos interesses corporativos.
post it
Abdul Kajumulo
43
Coordenador de Comunicação, ActionAid - Tanzânia
Podemos ter acesso a
um pouco desse crescimento?
TANZANIA
A produção agrícola da Tanzânia
cresceu significativamente nas últimas
décadas. De 2.9%, na década de
1970, e 2.1%, na década de 1980, o
crescimento agrícola ao longo das duas
décadas passadas obteve uma média
de 3.6% (na década de 1990) e de
4.1%, em 2006. O setor de atividades
agro-pecuárias da Tanzânia responde
por cerca de 50% do PIB que, por
sua vez, caiu de 6.7%, em 2005, para
6.2%, em 20061. Este ligeiro declínio se
deve às severas secas que atingiram
o país durante a estação de chuvas de
2005/2006.
Ao mesmo tempo, a pobreza rural e
a insegurança alimentar aumentaram
neste país em que as vendas de
produtos agrícolas respondem hoje
por mais de 70% da renda dos
domicílios rurais e onde mais de 80%
da população depende das atividades
agro-pecuárias para sua subsistência,
A Tanzânia tem um Índice Global de
Fome de 26.13, o que significa que o
país enfrenta uma situação alarmante
de fome.
e cerca de 0.7% produzem castanhas
de caju como seu principal produto
de venda. Assim sendo, por que as
pessoas produzem estes cultivos
sem obter uma fatia justa deste
crescimento?
ActionAid tem trabalhado na Tanzânia
desde 1998 promovendo a segurança
alimentar entre os agricultores de
9 distritos. Este agricultores estão
organizados em 9 organizações
comunitárias (denominadas APEX), que
compreendem 723.66 membros (dos
quais, 35% são mulheres) organizados
em uma estrutura de níveis com
tripartite de vilarejo, província e distrito.
O suporte dado pela ActionAid seguiu
duas linhas principais: I) Aprimoramento
dos sistemas de produção agropecuária e II) Mobilização e
fortalecimento dos agricultores e de
suas organizações para negociar, com
os atores no governo e no mercado, as
questões relativas a seus
direitos como produtores
e supridores de alimentos.
O desenvolvimento de
capacidades das APEX’s
tem sido, portanto, uma das
principais preocupações do
Programa para o País na
Tanzânia. Com este objetivo
em mente, foi dada ênfase
à facilitação da eleição dos
líderes comunitários − nos
níveis de vilarejo, província e
distrito da estrutura APEX −,
ao treinamento dos líderes
em relação a gestão organizacional e
liderança, redação de propostas de leis,
oferecimento de apoio para assuntos
burocráticos e acompanhamento de
seu registro junto ao governo local.
As organizações APEX combinam os
níveis dos vilarejos e das províncias
para formar organizações a nível
distrital. Isso permitiu aos agricultores
organizarem-se e dar voz a suas
preocupações sobre seus direitos,
incluindo o direito à alimentação.
Os agricultores, através de sua
organizações distritais locais – dentre
as quais se incluem TAFA, NEFA, LIFA,
MCAFADA, BACAFADA, KANYOVU,
KIPAFADA, PESEFA e ZACPO – e com
o apoio da ActionAid, conseguiram
obter acesso a informações acerca
de vários assuntos relacionados à
indústria agro-pecuária na Tanzânia,
e têm sido capazes de adotar
tecnologias adequadas e mecanismos
efetivos de disseminação, introduzir
o compartilhamento de informações,
bem como alcançar uma compreensão
ampla das implicações das modernas
técnicas agro-pecuárias, de forma a
evitar baixos rendimentos, condições
inadequadas de armazenamento e
mercados super limitados.
Tanzânia é o sexto maior produtor
mundial de castanhas de caju, e
mais de 280.000 habitantes do país
dependem desta commodity como
base de sua subsistência. As mulheres
são as principais responsáveis pela
Paul Bigland/ ActionAid
Uma experiência da ActionAid na luta pelo do direito à alimentação
produção e processamento das
colheitas no país.
As castanhas são um dos mais
importantes cultivos para a renda dos
agricultores na Tanzânia, ocupando o
11o lugar no ranking de geração de
renda no país em 2005, segundo a FAO.
ActionAid vem trabalhando com
produtores de castanhas de caju
desde 2002, época em que estes
produtores recebiam apenas US$2 por
quilo, o suficiente para comprar 2 kg
de arroz, que constitui a base de sua
dieta cotidiana. As organizações de
agricultores não tinham acesso aos
fóruns de tomada de decisão acerca das
políticas relativas às castanhas de caju,
e eram meros aceitadores de preços.
Através do trabalho desenvolvido com
as organizações dos agricultores na
construção de alianças, mobilização e
desenvolvimento de capacidades, bem
como da prática de lobby e advocacia,
os produtores de castanhas de caju
recebem hoje US$ 5 (o suficiente para
comprar 5 kg de arroz), e se tornaram
formadores de preço.
Mas como se deu esta mudança?
Antes que ActionAid e suas
organizações parceiras na Tanzania
interviessem nos distritos, os agricultores
eram explorados por compradores: por
vezes, os compradores intencionalmente
atrasavam a compra das colheitas
do agricultores, de forma a torná-los
mais vulneráveis e, assim, forçá-los a
post it
Abdul Kajumulo
44
Posição
Produto
Produção
(US $1000)
Produção
(Mt)
1
Gado de corte
510,272
246,713
2
Mandioca
504,420
7,000,000
3
Milho
375,326
3,230,000
4
Leite de vaca, integral, fresca
223,390
840,000
5
Hortaliças frescas
179,206
955,000
6
Arroz com casca
144,847
680,000
7
Bananas da terra
133,086
600,000
8
Feijões secos
126,341
290,000
9
Sorgo
97,592
800,000
10
Batatas doces
97,475
970,000
11
Castanhas de cajú
65,703
100,000
Posição
País
1
Produção
(US $1000)
Produção
(Mt)
Vietnam
543,364
827,000
2
Índia
302,234
460,000
3
Brasil
165,091
251,268
4
Nigéria
139,947
213,000
5
Indonésia
80,158
122,000
6
Rep. Unida Tanzânia
65,703
100,000
Fonte: http://www.fao.org/es/ess/top/commodity.l?lang=en&item=21
7&year=2005
http://www.fao.org/es/ess/top/country.html;jsessionid=F6076C33F1EC2E148A03B40D56
500B90?lang=en&country=215&year=2005
aceitarem preços mais baixos devido à
grande quantidade e baixa qualidade – e
porque eles não tinham outros mercados
alternativos para vender sua produção.
Levando em consideração esta
realidade, a ActionAid mobilizou os
agricultores e suas organizações para
conformarem uma voz comum com
relação ao valor de seus produtos
e pressionarem para que o governo
introduzisse políticas de apoio aos
agricultores em suas negociações com
compradores e comerciantes.
O trabalho da ActionAid na Tanzânia
envolveu negociações com
representantes dos governos locais
e distritais para convencê-los da
necessidade de reconhecer as vozes
dos agricultores como um elemento
essencial no desenvolvimento local
e distrital. Um aspecto crucial deste
trabalho de lobby e advocacia
envolveu a persuasão dos governos
acerca da importância de incluir
estes stakeholders chave nos fóruns
governamentais de tomada de decisão.
Isso permitiu que representantes de
agricultores de 9 organizações APEX
participassem destes fóruns, nos quais
o estado e o setor privado também
estavam presentes.
Através do trabalho de lobby
e advocacia a nível nacional, o
governo introduziu uma nova
legislação comercial, e forçou os
comerciantes a aderirem a estas novas
regulamentações. No ano de 2006,
o governo da Tanzânia – nos níveis
nacional, regional e distrital – tomou
ações efetivas para assegurar que
houvesse relações comerciais livres e
justas entre compradores e agricultores.
Enquanto isso, uma comissão regional
e outros representantes governamentais
implementaram estratégias para
efetivamente controlar e supervisionar
o comércio da colheita de castanhas de
caju de 2006/2007, visando assegurar que
os agricultores recebem preços justos.
Durante o ano fiscal de 2007/2008, o
governo deu apoio à construção de
um armazém para os agricultores de
castanhas de caju na região sul do país,
para ajudar a mitigar o problema dos
baixos preços. Este armazém permitiu
aos agricultores armazenarem suas
castanhas de caju. Ao mesmo tempo,
o governo apoiou a organização dos
agricultores em cooperativa.
As organizações de agricultores, através
de seus representantes, monitoram
freqüentemente os compradores, para
garantir que estão comprando na taxa
acordada. Os agricultores também
estão tentando discutir com o governo
a necessidade de melhorar o “fundo
de insumos para castanhas de caju” –
instituído pelo governo para promover
as atividades de produção de castanha
de caju, voltado especificamente para
pequenos agricultores – na medida
em que os fundos provaram ser
inadequados e pouco confiáveis.
Através da prática de lobby e advocacia
em favor de uma política de preços
justos, a ser adotada pelo governo, os
agricultores conseguiram atingir seu
objetivo. Os agricultores envolvidos
com a produção de castanhas de caju
asseguraram um assento nos fóruns
de tomada de decisão dos governos
distrital e regional, conseguiram alterar
as correlações de força existentes,
pressionaram por mudanças nas
práticas políticas governamentais,
influenciaram o emprego do fundo
de insumos para castanhas de caju e
adquiram um forte poder de negociação
em favor de melhores preços – sendo
todos estes aspectos uma realidade
cotidiana hoje. Isso tem sido obtido
através do fortalecimento do agricultor,
um processo facilitado e promovido
pela ActionAid na Tanzânia. Os
agricultores têm sido mobilizados para
conhecerem seus direitos e demandá-los através dos organismos
adequados, engajando-se em
atividades de lobby e advocacia que
forçaram os líderes governamentais
locais a reconhecerem o papel dos
agricultores e sua contribuição para o
processo de desenvolvimento.
A reunião de estabelecimento de
preços em 2006, apagou a imagem
dos agricultores enquanto grupo
enfraquecido por sua pobreza e
sua necessidade de lutar por sua
própria sobrevivência. Em vez
disso, eles participaram do fórum na
condição de força coletiva forte e, na
condição de proprietários de cultivos
de castanhas de caju, eles têm o
mandato para decidir os preços em
que sua commodity deve ser vendida.
Os produtores de castanha de caju
recebem agora 5 kg de arroz em troca
de 1 kg de castanha de caju, um grande
avanço quando comparados aos 2
kg de arroz recebidos anteriormente
por quilo de castanhas. Estes são os
resultados do trabalho da ActionAid
em favor do direito à alimentação na
Tanzânia, e do fortalecimento das
organizações de agricultores.
1 . Relatório sobre Pobreza e Desenvolvimento
Humano, 2007.
clips
João N. Pinto
Pesquisador Associado do Instituto de Estudos sobre a Fome1
45
Tecnologias
sociais
Aprendendo com as comunidades locais
O termo tecnologias sociais surgiu da necessidade de
abordar a inclusão social a partir de um ponto de vista
tecnológico, capaz de contrabalançar o modelo dominante de inovação da produção que está baseado em
uma concepção econômica. Isso significa encontrar
outras soluções que valorizassem o conhecimento
não-científico2. As tecnologias mais convencionais
têm sido concebidas e desenvolvidas no hemisfério
Norte, com pouca (ou nenhuma) influência das comunidades e/ou dos campos acadêmico e científico do
hemisfério Sul. Como resultado, podemos estar desperdiçando uma grande variedade de experiências
sociais e tecno­lógicas3. As tecnologias sociais, e seu
potencial de transformação, emergiram no contexto
destas experiências alternativas, criando ciclos virtuosos de desenvolvimento que podem levar à emancipação social, e mostrando que inovação e tecnologia
podem ser usadas em favor do interesse geral das sociedades. O termo “Tecnologias sociais” tem sido usado no Brasil4 desde 2001, mas outros termos também
são usados para descrever abordagens alternativas da
inovação tecnológica. Por exemplo, na Índia o termo
“inovações comunitárias”5 tem sido usado há alguns
anos; e a FAO também promoveu várias abordagens
alternativas sob a denominação “tecnologias comprovadas” e “boas práticas agrícolas”.6
ção, educação, cons­trução civil, trabalho e geração de
renda. Desta forma, o ponto principal está no fato de
serem construções sociais com características particulares, criadas pelo ambiente em que são desenvolvidas, estimulando a emancipação social com impactos
econômicos, sociais e ambientais positivos.A relevância e utilidade das tecnologias sociais podem apenas
alcançar aqueles que delas realmente precisam, caso
lhes seja dada visibilidade adequada, e sejam difundidas e reaplicadas da forma apropriada. Mais ainda, a
etapa de reaplicação provavelmente é a mais importante, na medida em que, para tanto, são necessárias
informações adicionais. É importante ressaltar que a
reaplicação de tecnologias não significa transferi-las
de um lugar para outro, mesmo se o proble­ma que
levou ao desenvolvimento de uma tecnologia social
particular seja o mesmo em ambos lugares, na medida
em que, na prática, a solução desenvolvida na comunidade original pode não funcionar em outra. Contudo,
as informações adicionais acerca destes problemas
ainda é largamente difundida de forma isolada entre
as organizações e comunidades que desenvolvem as
tecnologias sociais, o que significa que, até então, elas
representam apenas soluções parciais. Um processo
adequado de sistematização e disseminação precisa
ser implementado, que permita a reaplicação destes
PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DAS TECNOLOGIAS SOCIAIS:
O que são Tecnologias Sociais?
Tecnologias sociais podem ser
• Adaptadas principalmente a pequenos produtores e consumidores de baixa renda;
definidas como “um conjunto de téc• Descartam controle, segmentação, hierarquia e dominação nas relações de trabalho;
nicas, metodologias de transforma• Orientadas para o mercado interno;
ção, desenvolvidas e/ou aplicadas
• Promovem o potencial e a criatividade de produtores e usuários;
em interação com as populações, e
• Geram benefícios econômicos para pequenos empreendimentos, tais como
adotadas por elas, que representam
cooperativas populares, incubadoras e pequenas empresas;
soluções de inclusão social e de
• Na maior parte das vezes, são multifuncionais e adequadas à solução de mais de um
melhoria da subsistência”7. Cara­
problema, com baixo custo.
cterizam-se principalmente por sua
tecnologias em uma escala maior. Isso poderia ser
simplicidade, custos baixos e implementação simples,
feito adotando-se políticas públicas correspondentes.
baseando-se em recursos locais e na mão-de-obra disponível. Conseqüentemente, estas tecnologias conComo as Tecnologias Sociais podem promover setribuem para a geração de renda e emprego, bem como
gurança alimentar sustentável?
promovem uma melhoria na qualidade de vida das
A necessidade de garantir acesso a uma alimentação
comunidades através de processos locais de desenadequada e disponibilidade de alimentos, baseada em
volvimento. Em geral, as tecnologias sociais são resulhábitos alimentares saudáveis que respeitem a diversitado do conhe­cimento e da sabedoria popular, embora
dade cultural e a preservação do meio ambiente, revela
também possa surgir de interações entre os conhecia natureza multidimensional e intersetorial do tema da
mentos popular e científico. As tecnologias sociais ensegurança alimentar. Vários fatores significativos convolvem diferentes esferas, tais como saúde, alimenta-
46
João N. Pinto
Produção de castanhas em Moçambique
Carmen Lahoz/IEH 2008
clips
tribuem para o agravamento da fome e da pobreza,
tais como a falta de acesso aos recursos e/ou falta da
habilidade de transformar estes recursos em bens de
capital8. Tal como mencionado acima, na medida em
que tecnologias sociais envolvem uma variedade de
esferas diferentes, elas podem ajudar a promover a
segurança alimentar, dado que esta também depende
de um conjunto de fatores variados e interconectados
em diversas áreas. Essencialmente, através de suas
“inter-vinculações” (vinculação para trás e para frente),
as tecnologias sociais permitem a interconexão de
diversas estruturas produtivas dentro de economias
locais específicas. Estas vinculações conectam várias
cadeias produtivas e de valor, em um processo sustentável de emancipação.
Os padrões tecnológicos hegemônicos promoveram
a exclusão social e agravaram a fome. Em contrapartida, as tecnologias sociais podem ajudar a mudar
este cenário, ao envolver as pessoas e transferir seu
conhecimento, experiências e inovações para outras
populações. Para que isso ocorra, a construção social das tecnologias sociais deve necessariamente
incluir vários atores chave – comunidades, movimentos e organizações sociais, formuladores de políticas,
comunidade científica, dentre outros – no processo
de desenvolvimento e disseminação. Ainda que a
necessidade de introduzir políticas públicas urgentes
seja amplamente reconhecida, o ponto focal destas
políticas tem que ser necessariamente a sustentabilidade de processos capazes de gerar emprego e renda
pelas próprias comunidades, criando ciclos virtuosos
de desenvolvimento e assegurando o cumprimento do
direito à alimentação.
Uso potencial de Tecnologias Sociais para mitigar
mudanças climáticas
As discussões sobre os problemas colocados pelas
mudanças climáticas se tornaram parte da agenda
política contemporânea devido à crescente evidência
da abrangência de seus impactos negativos. Existe
uma necessidade urgente de encontrar e implementar
alternativas que possam diminuir as conseqüências
das mudanças climáticas, combater suas causas e
ajudar as pessoas a se adaptarem aos novos padrões
climáticos.
As mudanças climáticas representam, particularmente,
um sério perigo à segurança alimentar de agricultores
pobres – a parcela da população que mais sofre de
fome e insegurança alimentar. Os agricultores pobres
são o grupo mais afetado por três motivos principais:
i) a maior parte destes agricultores vivem em áreas da
África, da Ásia e da América Latina em que os impactos das mudanças climáticas serão sentidos mais
intensamente; ii) eles estão menos preparados para
fazer frente aos efeitos destas mudanças na medida
em que têm limitado acesso a recursos, rendas mais
baixas e limitada proteção social, fazendo com que
tenham menos condições de fazer face a este cenário;
iii) estes agricultores são geralmente dependentes da
agricultura irrigada pela chuva, que é o sistema de
produção de alimentos mais afetados pelas mudanças
climáticas.
É possível identificar pelo menos uma forma principal
em que as TS’s podem contribuir para mitigar os efeitos
das mudanças climáticas: nomeadamente, ao oferecerem alternativas que podem ajudar os agricultores
pobres a se adaptarem e superarem estas mudanças.
Acreditamos que os exemplos mais significativos são
aqueles das tecnologias sociais que proporcionam a
coleta e gestão da água, que podem contribuir decisivamente para diminuir os efeitos das mudanças
climáticas para agricultores pobres9. Além da coleta
e armazenamento de água, outras tecnologias sociais
clips
47
envolvem métodos de irrigação simples e de baixos
custos, adaptados a pequenos agricultores que não
têm condições de enfrentar secas prolongadas. As secas prolongadas também têm graves conseqüências
em termos de água para consumo humano e animal.
Algumas tecnologias tais como os dessalinizadores
solares de baixo custo, contribuem para coletar água
com tais propósitos. O uso de fontes alternativas de
energia também contribui para diminuir os impactos
das mudanças climáticas.
Alguns exemplos de Tecnologias Sociais
Algumas tecnologias sociais introduzem pequenas inovações
que melhoram de forma significativa os processos produtivos de
comunidades (tais como a bomba de irrigação a pedal). Outras
tecnologias sociais introduzem metodologias ou processos que
garantem uma melhor organização entre as comunidades que
lidam com produtos que têm um valor agregado significativo (tais
como Certificação de sócio-participante). Outro grupo consiste em
pequenos equipamentos ou aparelhos que permitem a conservação
de alimentos ou acesso a água limpa (tais como secadores solares
ou dessalinizadores solares), ou acesso direto, pelas populações, a
Iniciativa IEH/ActionAid para Tecnologias Sociais
A Iniciativa de Desenvolvimento Territorial da ActionAid emprega uma metodologia de agricultor-paraagricultor e envolve uma pesquisa sobre tecnologias
sociais. O IEH, que tem sido parceiro da ActionAid em
várias iniciativas relacionadas ao direito à alimentação,
tem tentado reunir e disseminar informações acerca
de tecnologias sociais que promovam a segurança alimentar. Levando em conta ambas iniciativas, a ActionAid propôs um parceria entre estas duas organizações,
com os seguintes objetivos: primeiramente, conscientizar e promover a discussão acerca das tecnologias
sociais; e, em segundo lugar, encorajar o compartilhamento de informações e experiências, entre as organizações e as comunidades, de forma a facilitar uma
busca comum de alternativas para problemas particulares. Esta parceria se beneficiará da participação
da Rede Internacional de Segurança Alimentar (IFSN,
na sigla em inglês), que abrange mais de 500 organizações, em 23 redes nacionais e sub-regionais, na
África, na Ásia e na América Latina (ver: www. ifsnactionaid.net).
As principais atividades compreendem a identificação
e seleção de informações pertinentes acerca de tecnologias sociais, e identificação de organizações e comunidades que já tenham alguma experiência com tais
tecnologias, e que tenham a intenção de compartilhar
seu conhecimento com outros, contribuindo para uma
busca conjunta de alternativas. Com este objetivo em
mente, estamos lançando dois instrumentos on-line,
disponíveis tanto na internet (no site do IEH: www.ieham.org) e no site da IFSN (www.ifsn-actionaid.net):
uma biblioteca temática, em que informações úteis
para divulgação de tecnologias sociais estão organizadas e disponíveis, e um Fórum de Discussão, para
contato promocional e compartilhamento de opiniões
entre organizações e pessoas interessadas com no
tema. O sucesso desta iniciativa depende da participação de todos aqueles envolvidos, de maneira que
possamos identificar e disseminar, conjuntamente, experiências de êxito que poderão ser úteis para várias
regiões e comunidades.
alimentos frescos isentos de produtos químicos (tais como hortas
comunitárias). Ademais, estas tecnologias também podem ser
combinadas com vários programas sociais vinculados a suprimento,
distribuição e comercialização de alimentos, e à educação alimentar
e nutricional. Existem também exemplos de tecnologias sociais que
levam ao desenvolvimento de políticas públicas, em alguns países
do hemisfério Sul, graças ao envolvimento de organizações sociais.
Dentre os exemplos brasileiros se incluem a adoção da multi-mistura
(suplemento alimentar para combate da desnutrição), enquanto
política de segurança alimentar, ou a construção de cisternas para
armazenamento de água da chuva, que suprem a região semi-árida
brasileira durante as secas, e que têm sido usadas tradicionalmente
no Nordeste há muito tempo.
1 O Instituto de Estudos sobre a Fome (IEH, na sigla em espanhol)
é uma organização independente sem fins lucrativos, que busca
combater a fome e que congrega pesquisadores, professores e técnicos
dos países do hemisfério Sul e da Europa (www.ieham.org). Este artigo
baseia-se em um artigo conceitual preparado pelo IEH para ActionAid.
2 SANTOS, Boaventura de Sousa. Semear outras soluções: os
caminhos da biodiversidade e dos conhecimentos rivais. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2004.
3 SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o
desperdício da experiência. São Paulo: Cortez, 2000.
4 Para mais informações acerca da experiência brasileira com
Tecnologias Sociais, favor visitar o site da Rede de tecnologias sociais
(www.rts.org.br) ou do Instituto de Tecnologia Sociais (www.itsbrasil.
org.br).
5 Informações acerca das “Tecnologias Comunitárias”, da Índia,
podem ser obtidas, for exemplo, nos sites da organização Grassroots
Innovations Augmentation Network (www.nifindia.org), ou da Society for
Research and Initiatives for Sustainable Technologies and Institutions
– SRISTI, na sigla em inglês (www.sristi.org), ou ainda da Honey Bee
Network (http://knownetgrin.honeybee.org/honeybee.htm).
6 Para mais informações sobre “Tecnologias comprovadas” e “Boas
práticas agrícolas,” favor consultar respectivamente as páginas das
iniciativas TECA (www.fao.org/sd/teca/index_en.asp) e GAP (www.fao.
org/prods/GAP/index_en.htm), da FAO.
7 INSTITUTO DE TECNOLOGIA SOCIAL. “Reflexões sobre a construção
do conceito de tecnologia social”. En: Tecnologia Social: uma estratégia
de desenvolvimento. Rio de Janeiro: Fundação Banco do Brasil, 2004.
8 Entendemos os vários tipos de bens de capital como sendo: Capital
produzido: recursos materiais, tais como bens de produção e recursos
financeiros; Capital natural: recursos naturais tais como terra, água,
biodiversidade etc.; Capital humano: educação, saúde, situação
nutricional etc.; Capital cultural: bens de práticas, costumes, crenças,
valores, hábitos; Capital social: normas e redes de trabalho que
facilitam a ação coletiva e a obtenção de benefícios mútuos. (Extraído
de BEBBINGTON, A. Capitals and Capabilities: a framework to analyzing
peasant viability, rural livelihoods and poverty in the Andes. Londres.
IIED.DFID. Janeiro de 1999).
9 Segundo o Relatório de Desenvolvimento Humano (2006), a
agricultura e, conseqüentemente, a produção de alimentos, será o setor
mais afetado por estes problemas. Em algumas regiões, a variação
dos padrões pluviométricos e a redução da disponibilidade de água
diminuirão o rendimento dos cultivos de alimentos em torno de 25%,
ou mais, até 2050. A desnutrição global aumentará de 15% para
26%, o que significa que entre 75 a 125 milhões pessoas irão sofrer
potencialmente deste problema, por volta de 2080.
agenda
Camila Moreno
48
Biocombustíveis
e Segurança
Alimentar:
questões para
um debate crítico
A agenda dos biocombustíveis vem
se impondo – simultaneamente nos
países do norte (consumidores) e do sul
(produtores). Por um lado, a questão
se coloca em termos da adoção de
energias ‘renováveis’, permitindo aos
países desenvolvidos demonstrar,
através da adoção obrigatória de
Producción de caña de azúcar en Kenya
metas de mistura progressiva destes
combustíveis, seu comprometimento
promoção do direito à alimentação se
o fim principal ao qual se propõem −
em mitigar as mudanças climáticas,
mostra, de agora em diante, inseparável
está já bem consolidada e é bastante
reduzindo emissões de combustíveis
da agenda energética.
contundente. Destacam-se os
fósseis causadoras do efeito estufa e
Para compreender no que consiste
estudos divulgados no início de 2008,
do aquecimento global, e cumprindo
a ‘febre dos biocombustíveis’ é
demonstrando que os biocombustíveis
assim com as metas do Protocolo de
fundamental priorizar – sem concessões
podem de fato agravar o aquecimento
Quioto. Enquanto isso, para países
– a segurança alimentar, pois, embora
global, incluindo-se os cálculos de
agro-exportadores tropicais, os
a promoção dos biocombustíveis
emissões de efeito estufa (GHG, na
biocombustíveis vem sendo promovidos
seja apresentada sob várias rubricas
sigla em inglês) e o chamado “balanço
como estratégia de ‘desenvolvimento
(oportunidade de desenvolvimento
energético” (ou seja, a quantidade de
rural’, apoiados institucionalmente por
rural, alternativa de energia ‘limpa’ no
energia “limpa” que estes combustíveis
organismos internacionais como FAO
contexto das mudanças climáticas,
podem gerar e quanto de energia fóssil
(Organização das Nações Unidas para
promoção do comércio a serviço da
é gasta para produzi-los) na avaliação
Agricultura e Alimentação), UNCTAD
questão ambiental etc.), o ponto central
do ciclo de vida do combustível, bem
(Conferência das Nações Unidas
está em que a era da “agroenergia”
como os impactos ambientais na
sobre Comércio e Desenvolvimento) e
(energia obtida através da biomassa
conversão de vastas áreas aráveis para
Banco Mundial, além de contar com
cultivada para este fim) implica,
este fim, o que vem mostrando-se um
estratégias regionais específicas; na
indiscutivelmente, na competição
vetor explosivo para o desmatamento2.
América Latina e Caribe, especialmente
e na demanda progressiva pelos
Da mesma forma, também já contamos
através do IICA (Instituto Interamericano
mesmos recursos estruturais que
com evidências fortes de por que
de Cooperação para a Agricultura)
garantem o acesso à alimentação
balisar claramente, e desde o início, a
e do Banco Interamericano de
adequada da população mundial: terras
discussão crítica sobre biocombustíveis
Desenvolvimento. Em termos da forma
agriculturáveis e água. Além disso,
no contexto da segurança alimentar.
como o debate está se colocando em
a alimentação adequada, sobretudo
termos globais, a tônica geral é de
nos países do sul, está condicionada
A produção de biocombustíveis
que um novo e promissor mercado
ao acesso à terra para a produção
já se reflete na alta do preço dos
internacional de agroenergia irá redefinir
de alimentos, uma agenda ainda
alimentos. Além de especulações
a produção e o comércio agrícola
inconclusa, mas que deve ser colocada
aventadas inicialmente, é um fator
mundial daqui para frente.
à frente das atuais especulações e da
incontestável e que já se revela bem
Porém, à medida que a produção
pressão que deve sofrer o mercado de
concretamente. Segundo a FAO3,
dos biocombustíveis vem de fato
terras para a produção de energia.
o preço das commodities agrícolas
redefinindo rapidamente a realidade
disparou no ano de 2007: o índice de
do campo e da agricultura em vários
Elementos para um debate
preços global da FAO (composto por
países, é fundamental ter claro
crítico
mais de 60 produtos comercializados
neste debate as implicações, antes
A crítica ambiental à efetividade
internacionalmente) subiu 23% em
de qualquer coisa, para o direito à
dos biocombustíveis em mitigar as
2007, em relação a 2006, ano em que
alimentação e como a agenda de
mudanças climáticas – que é afinal
o aumento de preços foi de 9%, em
Thierry Geneen/ Panos Pictures/ ActionAid
Pesquisadora do grupo de trabalho em Ecologia Política, CLACSO (Conselho Latino
Americano de Ciências Sociais); [email protected]
agenda
49
relação a 2005; o documento também
“Movimentos sociais globais, especialmente dos países do Sul, fizeram-se
aponta que 40 países enfrentam
ouvir no Fórum Global de Soberania Alimentar, Nyeleni, 2007. Realizado em
déficit de alimentos por razões que
Mali, África, mais de 600 participantes de várias partes do mundo reuniram-se
incluem “mudanças climáticas, maior
no Fórum para celebrar uma década de luta pelo direito dos povos de produzir
consumo de carne, perda de colheitas,
seus próprios alimentos e a decidirem suas políticas alimentares. Movimentos
guerras e uso de cultivos alimentares
sociais e sociedade civil, incluindo camponeses, organizações ambientalistas,
para produção de biocombustíveis”.
redes de consumidores, etc., concordaram que ‘biocombustíveis’ produzidos
O informe também registra que, em
a partir de monoculturas industriais controladas pelas corporações deveria
2007, ocorreram convulsões sociais
ser denominados ‘agrocombustíveis’, tornando mais clara a conexão com o
relacionadas à questão alimentar no
agronegócio e o controle das empresas multinacionais.
Marrocos, Uzbequistão, Senegal e
México.
preços do milho acabam permeando
A agricultura industrial é petro-
O comércio internacional de
toda a cadeia alimentar industrializada:
dependente. Como pano de fundo
biocombustíveis já ameaça a
desde os cereais matinais à glicose
para o interesse global em relação
segurança alimentar. Dado que a
de milho, utilizada como adoçante e
aos biocombustíveis, há o chamado
agricultura de commodities funciona
também como componente de rações
esgotamento das reservas de petróleo
com preços internacionais, uma
animais, forma pela qual o fator milho
e dos demais recursos energéticos
situação particular em um país acaba
incide no preço de toda a cadeia de
de origem fóssil (gás natural e carvão
resultando em efeitos que afetam
carnes, ovos e laticínios etc4. Por outro
mineral): além destas reservas já terem
todo o sistema, e os altos preços dos
lado, na Ásia, a alta dos preços do
alcançado seu pico de extração ou
produtos agrícolas, em função do uso
óleo de cozinha, principalmente em
estarem muito próximas disso, está
para biocombustíveis, vem impactando
função das exportações de óleo de
cada vez mais caro e difícil acessar
negativamente os países do sul.
palma para a fabricação de biodiesel
as reservas existentes, e acaba-se
Na chamada “crise da tortilla”, em
na União Européia, vem impactando
gastando mais energia para extrair e
janeiro de 2007, o México – atrelado
dramaticamente o total de calorias
transportar um barril de petróleo do que
à importações agrícolas dos EUA em
consumidas pela maior parte do
a energia que ele viabiliza.
função do NAFTA −, viu o preço de
contingente populacional do hemisfério
O atual sistema agroalimentar mundial
seu principal produto alimentar subir
sul que vive neste continente. Nesta
sustenta-se em um modelo industrial
40%, devido ao uso do milho para a
disputa desigual, a população pobre e
petro-intensivo, da dependência de
fabricação do etanol nos EUA, uso que
faminta não tem como competir com
insumos químicos e mecanização,
teve prioridade por ser mais lucrativo.
os carros e o preço que os países
passando pelo processamento,
Um efeito da prioridade dos EUA em
ricos podem pagar para transformar
armazenamento e distribuição, que
auto-abastecer-se, garantindo suas
alimentos em combustíveis.
envolve uma grande quantidade de
seguranças alimentar e energética,
Por antever a dimensão destes efeitos,
energia a um custo cada vez mais alto.
causou desabastecimento e inflação
o Relator Especial da ONU sobre o
Ou seja, a medida prioritária deveria ser,
nos países dependentes de suas
Direito à Alimentação, Jean Ziegler,
converter de forma sistemática e efetiva
exportações; outros países acabaram
pediu, ainda em 2007, uma moratória
a produção de alimentos, rompendo
aproveitando a situação favorável e
global de cinco anos à produção
a dependência de insumos fósseis
vendendo milho para os EUA, o que
de biocombustíveis com espécies
através do fortalecimento de sistemas
acarretou escassez e alta de preços
alimentícias, até que se tivesse
produtivos locais, de base orgânica e
em contextos doméstico. Além disso,
tecnologia disponível para a produção
autosuficientes em alimentos, fibras e
a alta de produtos como milho (usado
de combustíveis a partir de biomassa
energia.
para produção de etanol) e soja
celulósica, incluindo gramíneas e
(usado para produção de biodiesel)
resíduos agrícolas e florestais.
tem reflexos sistêmicos e indiretos.
O atual sistema agroalimentar
mundial é um colapso anunciado.
Nos Estados Unidos, por exemplo, a
Um debate permeado de
Um elemento central das distorções
previsão para 2008 (com a maior área
contradições
do sistema alimentar globalizado – e
agrícola plantada no país desde a
Além das evidências apontadas − hoje
que constitui uma ameaça cada vez
Segunda Guerra Mundial) é de que 30%
já indiscutíveis − sobre os potenciais
mais palpável à segurança alimentar
da produção de milho será utilizada na
impactos negativos, destacamos a
– é o custo das chamadas ‘food
produção de etanol.
seguir as contradições mais importantes
miles’, milhas dos alimentos, ou
Além do fato de que uso para produção
da produção dos biocombustíveis que
seja, a quantidade de unidades de
de energia ocupa uma proporção
tendem se exacerbar em relação à
energia consumidas no transporte dos
crescente da produção total, as alta dos
segurança alimentar:
alimentos ao redor do globo, a partir
agenda
Camila Moreno
50
de onde são produzidos até o local
onde são consumidos. Aqui se inclui
o cálculo do custo dos fretes no preço
final e na acessibilidade de alimentos
que, muito provavelmente, não terão
preço comercialmente viável, e do
impacto do consumo de combustíveis
(e do total das emissões poluidoras) do
transporte rodoviário, mas também dos
navios graneleiros (e sojeiros) ao redor
do globo, e até do transporte aéreo.
Com a tendência irreversível de alta e
escassez do petróleo a relocalização da
produção de alimentos é uma medida
Jenny Matthews/ ActionAid
urgente para construir, com base na
segurança alimentar, uma transição
segura para a economia e a agricultura
pós-petróleo.
A agricultura tem um papel fundamental
a jogar no contexto dos desafios
colocados pelas mudanças climáticas:
muito além das mudanças cosméticas
sugeridas na adição de biocombustíveis
ao transporte individual de países
ricos, o esforço coordenado deveria
adotar como eixo a conversão da
agricultura industrial em arranjos
locais e autosuficientes de produção
e distribuição de alimentos e energia,
que cortem na raiz as contradições
deste sistema petro-dependente – a
ser aprofundado cada vez mais pela
produção industrial de biocombustíveis,
ameaçando a segurança alimentar da
Produção de cana de açúcar no Quénia
1 Entre outros: Timothy Searchinger,
Ralph Heimlich, R. A. Houghton, Fengxia
Dong, Amani Elobeid, Jacinto Fabiosa,
Simla Tokgoz, Dermot Hayes, Tun-Hsiang
Yu, “Use of U.S. Croplands for Biofuels
Increases Greenhouse Gases Through
Emissions from Land-Use Change”, Science
29 de fevereiro de 2008: Vol. 319. no. 5867,
pp. 1238 – 1240.
2 Ver Agrofuels – Towards a reality check in
nine key areas, de Biofuelwatch, Transnational
Institute, et al. julio de 2007. At: http://www.
carbontradewatch.org/pubs/Agrofuels.pdf;
Schlesinger, S. & Ortiz, L. Agronegócio
e Biocombustíveis: Uma Mistura Explosiva –
Impactos da expansão das monoculturas na
produção de bioenergia no Brasil. FBOMS,
humanidade.
2006. Em: http://www.natbrasil.org.br/Docs/
biocombustiveis/biocomb_ing.pdf.
3 FAO Perspectivas Alimentarias 2007, em
setembro de 2007 representou um pico de
alta de 37% (comparado ao mesmo período
no ano anterior).
Em: http://www.fao.org/docrep/010/ah876e/
ah876e13.htm
4 No ano de 2007 os preços em alta dos
grãos e da energia contribuíram para a alta de
preços nos alimentos nos EUA que subiu 4%
em um ano, mais do que a inflação média dos
preços ao consumidor, e a previsão para este
ano seja um aumento de 3.5% a 4.5%, em
função do custo da energia. US Departmente
of Agriculture, updated 26 March, 2008.
Em: http://www.ers.usda.gov/Briefing/
CPIFoodAndExpenditures/
IMOP 4 e COP 9
4º Encontro de Partes do Protocolo de Cartagena sobre Biossegurança e a 9º Reunião
de Partes da Convenção sobre Biodiversidade), Bonn, Alemanha; 12-16 e 19-30 maio.
Info at: http://www.cbd.int/meetings/
FAO
Conferência Internacional sobre Segurança Alimentar Global e os Desafios das
Mudanças Climáticas e da Bionergia, Roma, Itália, 3-5 maio.
Info at: http://www.fao.org/foodclimate/
Conferência Internacional sobre Biocombustíveis
São Paulo, Brasil, 17-21 de novembro, Info at www.mre.gov.br
Todos estes eventos terão mobilizações e fóruns paralelos da sociedade civil.
Mulheres
por um futuro sem fome

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