Os desenhos animados vão à guerra A série Snafu e a propaganda
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Os desenhos animados vão à guerra A série Snafu e a propaganda
1 Os desenhos animados vão à guerra A série Snafu e a propaganda estadunidense 1 Vanessa Camassola Sandre2 RESUMO Neste trabalho é feita uma análise sobre a propaganda da II guerra feita nos Estados Unidos e como ela foi veiculada por meio do cinema de animação tornando-se uma arma poderosa. O principal foco da pesquisa é a série de animação ‘Private SNAFU’criada por Frank Capra e veiculada para os soldados no front. A análise do material é feita a partir de uma abordagem do contexto do conflito, do cinema de animação, dos elementos que constroem a narrativa da série em questão e do fascismo na propaganda de guerra estadunidense. Palavras-chave: Propaganda de Guerra; Propaganda na Animação; SNAFU. Antes da televisão virar acessório doméstico nos anos 50, as animações eram direcionadas ao público adulto. A audiência tinha acesso a essas produções juntamente com documentários e filmes longas-metragens nos Film Bills, espaços de exibição cinematográfica que se tornaram ponto de encontro para as famílias. Durante a II Guerra Mundial, esses espaços foram utilizados para exibir filmes propagandísticos que influenciaram na tentativa de uma “atmosfera de conciliação”, já que além de lidar com as opiniões divergentes, o governo estadunidense necessitava do apoio massivo da população para financiar a guerra. O apoio de Hollywood foi imprescindível neste ponto, seus filmes ajudaram o governo a arrecadar inacreditáveis $185.7 bilhões de dólares durante os anos de guerra apenas com Bonificações 3 pagas pelos cidadãos como empréstimo temporário ao governo estadunidense. Durante a guerra, os aliados utilizaram largamente a propaganda ideológica e política , visando orientar o comportamento social e difundir a sua ideologia política. Neste contexto, o cinema de animação teve papel fundamental com suas produções dirigidas o Homefront e para o Front. No Homefront, entra o apelo aos War Bonds (bonificações de guerra), à economia de material, a contribuição financeira, a ideologização contra o inimigo, a conquista da simpatia 1 Trabalho apresentado na Divisão Temática “01 - Imagens, Representações e Contextos”, durante o Culturas, Linguagens e Interfaces Contemporâneas 2012, realizado no Espaço Benedito Nunes, na Saraiva MegaStore, de 20 a 23 de novembro de 2012. 2 Graduanda em Cinema. Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). E-mail: [email protected] 3 KIMBLE, James J. Mobilizing the Homefront: war bonds and domestic propaganda. Texas A&M University Press, 1966. Prefácio. 2 de outros países para aliados de guerra; e para o Front, comumente chamadas de training films, as animações eram criadas para instruir a utilização de equipamentos e armas, ou feitos para os soldados na frente de batalha com o intuito de preveni-los de perigos, aumentar seu entusiasmo e ideologizá-los contra o inimigo. Private SNAFU é uma série com 28 desenhos animados com o personagem principal de mesmo nome, produzida em sua grande maioria pela Warner Bros. entre os anos de 1942 a 1945 e veiculados entre as forças armadas estadunidenses. Classificado como training cartoon, na tradução livre ‘desenho de formação’, buscava de forma cômica alertar os soldados das ameaças da guerra. Por meio desses desenhos podemos entender os problemas enfrentados pelo exército em tempos de guerra, e como essa arte do cinema unido à animação influenciava o público e o ideologizava numa época decisiva para o futuro da humanidade. Aqui farei uma breve introdução sobre os episódios, como eram recebidos pelo público que se encontrava na frente de batalha e quais eram as ferramentas para atingir esse público. A animação estadunidense e a industrialização Foi nos Estados Unidos que foram criados os primeiros estúdios de animação, uma organização que possibilitava uma maneira rápida e barata de fazer animação mediante uma organização empresarial. Assim, ainda antes da I Guerra Mundial, os Estados Unidos passaram a produzir animações em maior escala e sem concorrência com o mercado europeu, ganhando hegemonia na produção audiovisual de todo o ocidente. 4 Juntando o sistema de produção e as novas técnicas, foram criados os desenhos animados, séries de animação que alimentavam o público através de um processo natural de identificação, pois o personagem individualizado se fazia presente em vários episódios, tornando-se familiar ao público por meio de repetições de poses, expressões e movimentos utilizados em todas as aventuras. 5 Os Estúdios de Walt Disney servem como o exemplo de uma grande marca, que segue o estilo ortodoxo 6 e hiper-realista’7 que definiu os parâmetros para a animação clássica. Seguindo esses mesmos parâmetros, mas negando os personagens heróicos, delicados e moderados do mundo Disney, temos os estúdios Warner Bros., que trazem personagens ágeis, 4 LUCENA Jr., Alberto. Arte da Animação: técnica e estética através da história. São Paulo. SENAC. 2001.p.60. LUCENA Jr., Alberto. Arte da Animação: técnica e estética através da história. São Paulo. SENAC. 2001.p.75. 6 Unidade de estilo que ausenta o artista, narrativa linear, dinâmica de diálogos, evolução do contexto. 7 É definido por hiper-realismo a animação que aspira por imagens realísticas, onde os personagens são convencionados as leis físicas do “mundo real” e quando os sons são diegéticos. 5 3 selvagens, insanos e atrevidamente engraçados.8 O estilo Warner fez personagens desengonçados e esguios, atuando como anti-heróis em cenários simples com um humor que remetia a alguns aspectos do surrealismo. Paul Wells afirma que a animação é um meio de propagar questões sociais, dentre elas medos, inseguranças, perspectivas e alegrias que assolam a população de uma determinada época. 9 Com a proximidade iminente da guerra, a necessidade de resultados imediatos levou a uma parceria entre o estúdio de cinema da Warner e as forças armadas, chamado First Motion Picture Unit, com Frank Capra como diretor geral e Ted Geisel (Dr. Seuss) como diretor da unidade de animação do departamento. Frank Capra então criou o personagem ‘Private Snafu’, que deu origem a série com 28 episódios direcionados aos soldados do front. Desenvolvida e dirigida em sua maioria pelo time de animadores da Warner Bros: Chuck Jones, Friz Freleng, Frank Tashlin e Bob Clampett, a série foi produzida de 1942 a 1945, e mostrava aos soldados o que poderia acontecer quando um recruta comum não realiza direito seu trabalho. 10 Snafu é um jovem soldado, um personagem que não se configura como um herói nem como um mau-caráter, é apenas um rapaz preguiçoso que se depara com problemas de guerra que não consegue compreender; e com seus inúmeros erros mostra à audiência o que não se deve fazer. É na tentativa de criar um consenso sobre os objetivos dos EUA e uma identidade nacional em tempos de guerra que Snafu e outros desenhos, filmes e outras formas de propaganda trabalhavam, pois havia a necessidade de convencer não somente a população a colaborar, mas também ao grande número de soldados que a princípio não desejavam lutar. 11 Apesar de todos seus erros, Snafu aprende que é por meio do seu trabalho que os Estados Unidos poderão vencer a guerra, é essa a mensagem que transmite para os milhares de jovens que se viram obrigados a lutar por uma causa que não era necessariamente sua. SNAFU e seus possíveis discursos Snafu é apresentado em um primeiro e curto episódio chamado Coming!!SNAFU (Chuck Jones, 1943), em que as siglas que compõem seu nome são explicadas: Situação Normal Todos Ferrados (tradução livre de “Situation Normal All Fouled Up”), é o primeiro 8 LUCENA Jr., Alberto. Arte da Animação: técnica e estética através da história. São Paulo. SENAC. 2001.p.132. WELLS, Paul. Animation and America. Rutgers University Press. New Jersey. 2002.p.11 10 SMOODIN, Eric. Animating Culture: Hollywood cartoons from the sound era. New Brunswick. Rutgers University Press, 1993.p. 73. 11 SMOODIN, Eric. Animating Culture: Hollywood cartoons from the sound era. New Brunswick. Rutgers University Press, 1993.p.79. 9 4 indício da comicidade do desenho e uma sátira a um dos códigos internos do exército utilizados na II Guerra Mundial. 12 Código este que indica um problema ou frustração, exatamente o caso do personagem, seu nome já precede sua fama. Um letreiro aparece com a frase “Ele é o soldado mais idiota no exército dos EUA” fato indiscutível quando se assiste aos episódios. Esse curto prólogo anuncia que o personagem principal estará em várias das unidades das forças armadas, como a artilharia ou forças aéreas. Já se percebe na primeira cena que Snafu é de certa forma esforçado, tenta manter correta sua marcha e postura, mas logo é distraído por um cartaz com uma mulher seminua, e acaba caindo em um buraco. O desejo sexual é muito utilizado no decorrer da série para gerar identificação do personagem com seu público: soldados em sua maioria cristãos, brancos e na faixa dos 18 aos 25 anos. Os filmes de propaganda estadunidenses de guerra representaram as necessidades e aspirações da sociedade em guerra. Diferentes animações foram feitas para cada público; como Out of The Frying Pan into the firing line (Disney, 1942), voltado diretamente ao homefront tinha o intuito de ensinar as donas de casa a pouparem óleo de frituras que se tornaria aparatos de guerra para os soldados no campo de batalha, mostrando que a guerra é um momento de sacrifício onde todos devem cooperar. Nesse mesmo caminhos vemos The New Spirit (Disney,1942), animação premiada com o Oscar que incentiva os cidadãos estadunidenses a investirem seu dinheiro em bônus de guerra e ‘fazerem a sua parte’. O intuito de Snafu, como já foi visto, era gerar identificação com o público por meio de um personagem, transmitindo possíveis discursos. Juntamente a isto, temos a proposta do cinema como um aparato ideológico no qual se criam certas estruturas de direcionamento, as quais demandam o reconhecimento e participação do público em certos códigos de convenção e narração. 13 Gripes e o Conto de Fadas Em muitas ocasiões, SNAFU representa o Id freudiano, buscando sempre satisfazer seus desejos. Outras vezes é o Ego, tentando sobreviver às adversidades do mundo exterior e controlando os impulsos interiores, comprovando e aceitando a realidade. Para isso às vezes é necessário um dispositivo que represente o Superego, que tem como idéia central o controle 12 Outros anacronismos também eram usados como códigos na época de guerra e são citados dentro dessa série, como TARFU e FUBAR, com significados semelhantes a SNAFU 13 WELLS, Paul. Understanding Animation. Routledge. London, 1998.p. 222. 5 absoluto, operando como um tipo de consciência, punindo transgressões e recompensando cumplicidade e conformidade. 14 Em seu primeiro episódio, Gripes (Friz Freleng, 1943), Snafu reclama do alistamento no exército, as filas que deve enfrentar, os exames médicos, e por fim, o trabalho nada honorável de descascar batatas e lavar panelas. Deseja modificar as coisas, e seu pedido é atendido com o aparecimento de uma espécie de fada-madrinha, o ‘Fada-Tática’ (TechnicalFairy, tradução livre), um ser com asas, que fuma, fala grosso e tem pinta de general machão. Ele transforma Snafu em um chefe militar, deixando-o manejar as coisas do jeito que bem entender. Como era de se esperar, Snafu bagunça todo o exército, e quando o inimigo ataca de surpresa, estão todos despreparados. O quartel é bombardeado... Snafu acorda, era apenas um sonho. Sai da cama correndo e volta ao seu trabalho simplório com muita empolgação e com a certeza de estar fazendo o que é certo. O personagem Fada-Tática representa o superego de Snafu, que faz uma paródia com a Fada-Madrinha dos contos clássicos, ao mesmo tempo que exerce a mesma função que ela: é um elemento mágico que indica saídas para situações difíceis mediante uma força sobrenatural. O papel do Superego é reprimir o Id, ou seja, os impulsos humanos não tolerados pelas normas sociais, como o impulso sexual, tão latente no protagonista que o impede de exercer bem sua função de soldado, pois é facilmente distraído por qualquer assunto referente a mulheres. Aqui o Superego se depara com a mesma função da guerra: a repressão. Na maioria dos episódios em que o Fada-Tática aparece, os desejos de Snafu se realizam dentro do seu próprio imaginário, por delírio ou por sonho, fazendo-o acordar com novos conceitos depois da experiência. Como em The Infantry Blues (1943), Censored (1944), Three Brothers (1944) e o próprio Gripes (1943). Em outros episódios, o personagem exerce sua função transformadora de outras maneiras. Como em The Home Front (1943), onde Snafu vê por meio de uma televisão a sua família trabalhando duro durante a guerra para contribuir com seu país, assim, passa a perceber que não está sozinho na luta contra o inimigo. Em Snafuperman (1944), Snafu é transformado em superherói, mas como é muito distraído e não estuda as táticas de guerra, acaba sendo bombardeado. Neste, ao invés de acordar do sonho, fica com machucados da façanha. Em Payday (1944) o Fada-Tática mostra a Snafu uma ilustração do seu futuro pós-guerra: com 14 WELLS, Paul. Understanding Animation. Routledge. London, 1998.p. 155. 6 uma bela casa, uma mulher, um bebê e um carro. Apesar de ser avisado da importância de guardar o seu salário do exército para ter um bom futuro, Snafu volta a se confrontar com seu Id e com todas as tentações exteriores. No final, acaba por gastar todo seu dinheiro e ficar sem futuro: a ilustração mostrada no início do episódio pelo Fada-Tática agora está vazia. Em A Lecture on a Camouflage (1944)o Fada-Tática dá ordens diretas para Snafu sobre como ser discreto e se camuflar, lembra um general dando ordens ao seu subalterno, ou uma mãe ensinando a um filho. Aqui, o Superego é como a forma materna, "uma precipitação da dependência prolongada da criança de seus pais e sua demanda por cuidados para dirigir restrições e socialização"15. O didatismo, dado por meio deste e de todos ao outros episódios da série tem um fundamento, Capra acreditava que a melhor maneira de o desenho interagir com os recrutas era mediante uma linguagem mais infantil, apta para atingir seu intelecto;16 lembrando que até a década de 1950 os desenhos não eram direcionados ao público infantil. O sucesso das animações entre adultos está baseado no fato da regressão ao estágio adolescente ou na oportunidade de reviver as liberdades da mente infantil. 17 A fada-madrinha que simboliza o apoio e a proteção em momentos difíceis, nos remete aos contos de fadas que expressam as angústia e aspirações de forma simbólica, onde o bem se torna desejável pela sua recompensa em forma de objeto. A recompensa nesse caso é a vitória, é contribuir com seu trabalho para a conquista final, é ser possuidor da guerra, é incorporar a vitória a seu patrimônio, alterar seu modo de existência para nós18. The Goldbrick e a representação do inimigo Em The Goldbrick (Frank Tashlin, 1943), Snafu está cansado do treinamento e como sempre, quer ficar à toa. Nas outras vezes que tem algum desejo, o Fada-Tática aparece para lhe proporcionar seu pedido, mas dessa vez, Snafu acaba por evocar uma fada-madrinha mais estranha que o habitual. O novo personagem é Goldy, the goldbrick (‘o preguiçoso’, tradução livre), sua enorme barriga não nega o nome e com suas canções de ninar sempre convence Snafu a não treinar e ficar descansando. A música, nesse caso, atua como um catalisador, 15 WELLS, Paul. Understanding Animation. Routledge. London, 1998.p. 154 SMOODIN, Eric. Animating Culture: Hollywood cartoons from the sound era. New Brunswick: Rutgers University Press, 1993.p.72 17 WELLS, Paul. Animation and America. Rutgers University Press. New Jersey. 2002.p.12 18 BENJAMIM, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Brasiliense. São Paulo. 1994.p.65 16 7 aumentando o impacto da intenção e dando acesso as emoções, pois quando a música é congruente a cena, ela atuara como um recurso de memorização e ambos serão recordados19. Essa é a premissa dos musicais, tão amados pela cultura estadunidense e muito produzidos pelos estúdios Warner. Quando chega a hora da batalha, Snafu não consegue manter o ritmo de seus companheiros e utiliza-se dos mesmos truques do seu ‘treinamento’ especial para fugir da luta, e por isso acaba morto. Depois de alcançar seu objetivo, a morte de Snafu, Goldy se revela: era um inimigo japonês disfarçado. Antes de tecermos algumas considerações sobre as representações dos japoneses nesses desenhos, é importante ressaltar algumas diferenças entre a representação dos principais inimigos de guerra dos aliados: os alemães e os japoneses. Nos episódios Gripes (1943), Spies (1943), Fighting Tools (1943) e Bobby Traps (1944), como em outras animações de guerra, o inimigo alemão é representado por dois símbolos principais: a suástica e Hitler. Este último é a personificação de toda a maldade existente no inimigo, acabando por redimir o povo alemão, que na visão dos aliados, eram apenas vítimas da loucura de um ditador. Ao inimigo japonês é dado outro tratamento, normalmente são representados com as mesmas características físicas: magros, baixos, pernas arqueadas, pés descalços, pele amarela, cabeças desproporcionais e sem cabelos, óculos fundos, olhos fechados, orelhas salientes, bocas e dentes demasiadamente grandes. Em The Goldbrick (1943), o inimigo japonês possui caninos salientes, o que torna o personagem mais agressivo e animalesco, desumanizando-o. A divergência cultural entre o ocidente e oriente traz pré-conceitos dos estadunidenses para com o povo japonês, uma distância que permite uma agressão maior ao opositor, que passa a ficar mais próximo do selvagem que do humano, ao contrário do inimigo Alemão que compartilha traços culturais muito próximos aos dos estadunidenses . Como afirma Wells: “Em tempos de guerra, é totalmente plausível que a propaganda representará deliberadamente o inimigo de uma forma depreciativa e ameaçadora.” 20 Não era apenas a Warner que os representava assim, estúdios como Disney e Fleisher’s Brothers seguiam o mesmo caminho, mostrando o consenso geral, ou talvez o consenso que o Estado queria gerar sobre o inimigo japonês. Estereótipos racistas nos desenhos existem desde a era silenciosa, e muito foi produzido com esse tema, principalmente em tempos de guerra, com personagens queridos ao público, como Perna-Longa em Bugs Bunny 19 HICKMANN, Felipe. Música de Cinema e Psicologia Cognitiva. Revista Cognição e artes Musicais, v.3 n.1, Editora do Departamento de Artes da UFPR, 2008. 20 WELLS, Paul. Understanding Animation. Routledge. London, 1998.p. 194. 8 Nips the Nips (1944), e Pato Donald em Commando Duck (1944), que contém as mesmas características de representação racista dos japoneses. A partir de 1944 se intensifica a produção de propaganda focada no inimigo japonês, e nesse período são produzido os episódios: Outpost (1944), In the Aleutians – Isles of Enchantment (1945), Operation Snafu (1945) e No Buddy Atoll (1945). Em Outpost (1944) as referências feitas aos japoneses são mais discretas, os elementos que indicam a presença do inimigo são as bandeiras da nação e uma lata em conserva com Pickled fish eyes with Rice (Olhos de peixe em conserva com arroz), rememorando a idéia de estranheza dos costumes orientais. Em In the Aleutians (1945) as Ilhas Aleutas são representadas. O conjunto de ilhas fica a oeste da Península do Alasca, ligação geográfica mais próxima dos EUA com o Japão, e que de acordo com o narrador: os japoneses “(...) consideraram um dia a porta dos fundos para os Estados Unidos”, mas que agora é a porta de entrada dos estadunidenses para o Japão. Sendo um ponto estratégico de batalha onde campanhas foram organizadas, vários soldados habitaram o lugar. O desenho mostra as difíceis condições de sobrevivência nesse conjunto de ilhas de clima variante e dificuldades de transporte. Nesse episódio Snafu é mais genérico, não é por alguma de suas falhas que se dá a ação, aqui o personagem principal são as ilhas, e o tema é a dificuldade enfrentada pelos soldados nessas condições. Em Operation Snafu (1945) a representação é mais leve e cômica sobre o inimigo por meio do viés místico de suas tradições. Dessa vez é Snafu que penetra disfarçado no covil do inimigo para coletar informações. Através da estética já percebemos um cuidado na representação, a perspectiva é mais profunda, a sombras dos objetos é trabalhada em alguns momentos, o tom acinzentado do cenário ao fundo transmite a ideia de inconsistência e amplitude. O cenário com flores e pontes, as espadas que substituem as armas e a repetição da reverência (de curvar o tronco) são fatores que remetem à tradição e reforçam a visão mística do oriental distante em comparação ao ocidental. Em um tom descontraído, Snafu vence o inimigo. Já em The Goldbrick (1943), Snafu não é só derrotado como também é morto por um inimigo que utilizou de um golpe sujo para vencer. Não é só um alerta aos soldados, é um exemplo de como se configurava o inimigo no imaginário coletivo, imagem reforçada pela propaganda cinematográfica e gráfica (cartazes) 21 21 , onde criaturas selvagens e Pôster da campanha de Morgenthau do sexto drive, em 1944, com a frase “Help stamp this snake-in-thegrass”seguido da imagem de uma cobra com o rosto de Hirohito e uma bota prestes a pisoteá-la com “6th War Loan” impresso em sua sola. 9 malignas, que diferentemente dos alemães, não respeitam as ‘regras do jogo’, pois pertenciam ao caos22. A Few Quick Facts e a vanguarda da animação Neste desenho o soldado da guerra da década de 1940 é substituído por um cavaleiro medieval, e serve de exemplo para explicar como o corpo humano reage ao medo e como isso pode ser usado a seu favor na batalha. Um fundo sem céu, absolutamente negro, com uma casa sem um traço que delimite o chão. Planos diferentes do normal, experimentações, o hiperrealismo questionado, tudo isso está presente em dois episódios da série Private SNAFU denominados A Few Quick Facts about Inflation (1944) e A Few Quick Facts about Fear (1945). Ambos foram produzidos pela United Productions of América (UPA), uma união de animadores que atuava como uma espécie de vanguarda da animação mediante uma vertente expressiva que combatia o classicismo da Disney e que procurava um desenvolvimento estético que gerasse comparações com a pintura.23 Essa inovação é perceptível pela modificação da forma e disposição dos elementos na cena, essa vertente se aproxima do estilo experimental por meio de uma maior presença do artista, mas não se distancia muito do estilo ortodoxo (o mesmo que Disney), pois esses episódios ainda ilustram uma narrativa linear. Das classificações feitas por Paul Wells sobre as estratégias de narrativa da animação, destacamos uma em especial muito utilizada nesses episódios: a metamorfose. Essa estratégia consiste na transformação de uma imagem em outra qualquer, conectando formas não relacionadas e estabelecendo relações antes inexistentes entre linhas e objetos 24. Exemplo: no início de A Few Quick Facts about Fear (1945), cavaleiros aparecem se movimentando, se unem e formando um traço negro, depois se separam novamente voltando à forma de cavaleiros. O Fascismo Imagético Nossa imagem da felicidade é totalmente marcada pela época que nos foi atribuída pelo curso de nossa existência, 25 afirma Benjamim. Na guerra, a imagem de felicidade é a nãoguerra, libertar-se da situação limite para poder viver sem medo. A tentativa de se libertar da 22 KIMBLE, James J. Mobilizing the Homefront: war bonds and domestic propaganda. Texas A&M University Press, 1966.p.85. 23 24 25 BENJAMIM, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Brasiliense. São Paulo. 1994.p. 222. 10 repressão pode tornar-se um dos dispositivos de aceitação e incorporação de certas condutas criadas pela “força capaz de ação criadora”, 26 mais conhecida como ideologia. É importante ressaltar o papel do cinema de propaganda como um ‘aparelho ideológico do Estado’, que diferentemente dos ‘aparelhos repressivos’ como a polícia ou o exército, usa sua aparente neutralidade para fortalecer o poder do Estado de uma forma sutil, tornando-o ‘aceitável’. 27 Vivemos em um momento de ‘apaziguamento ideológico’, crendo no ‘Estado de todos os Cidadãos’, o pai soberano responsável por manter o acordo entre todas as partes, evitando assim, o choque entre as classes. Esse poder do ‘Estado de todos’, baseia-se no princípio de soberania, e é tido como responsável por enunciar e principalmente, realizar messianicamente o selo da Verdade, do Útil, do Honrável e da Excelência Moral. Quando o Estado impõe uma imagem como sendo uma Verdade única, ele está praticando uma forma de fascismo. O Estado produz uma imagem distorcida, mostrando um ponto de vista como se fosse único, o ponto de vista do Estado Soberano, pois se não soberano, seria impossível colocar a guerra a seu serviço. 28 O cinema feito nesse contexto é o cinema fascista. A história nesse aspecto é constituída por imagens, é um produto parcialmente calcado do imaginário. São as forças simbólicas que unem uma totalidade social, são as correntes que amarram os pensamentos que criam a instituição da sociedade. (Até mesmo o racional, que muitas vezes é citado como contraposto do imaginário, é criado a partir deste último, de uma sensibilidade). É com essa essência que a arte se faz arte, e por isso, por situar-se nesse imaginário, é que ela possui a ‘força de ruptura’. O cinema de propaganda fascista quebra com essa ‘força de ruptura’, pois devolve à sociedade a imagem que ela tem dela mesma, afirmando sua condição e reforçando os laços com os preceitos da ideologia dominante. Não se utiliza de sua força de ruptura, a transforma em decalque do que já existe no imaginário coletivo e reforça a ordem vigente. É como se a arte se enquadrasse como produto estético dentro das normas de produção industrial. O filme é tanto uma criação da coletividade quanto a própria instituição da sociedade. É isso que o fascismo faz com o cinema: permite às massas a expressão de sua natureza, mas não a de seus direitos. 29 Mostra-lhes seu próprio rosto fazendo com que criem uma imagem de 26 CHÊTELET, François; KOUCHNER, Évelyne. As Concepções políticas do Século XX: história do pensamento político. Zahar. Rio de Janeiro. 1983.p 213 27 CHÊTELET, François; KOUCHNER, Évelyne. As Concepções políticas do Século XX: história do pensamento político. Zahar. Rio de Janeiro. 1983.p 217 28 BENJAMIM, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Brasiliense. São Paulo. 1994.p. 71. 29 BENJAMIM, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. Brasiliense. São Paulo. 1994.p. 194. 11 si mesmas, mas não lhe permite nada além da sua autoafirmação no imaginário coletivo, não propõe a ruptura, a expressão. Não foram apenas o nazismo e o stalinismo que utilizaram o cinema de propaganda fascista. Países como Estados Unidos, Inglaterra, Canadá e mesmo o Brasil utilizaram o cinema como propaganda: nesses países, sua pretensão ao estilo gigantesco, suas paradas populares “militarmente” organizadas por meio de multidões reunidas para celebrar a obediência ao chefe, eram indiscutivelmente fascistas. Mas as imagens fascistas transgrediram a barreira de guerra, são atuais e estão onde há a idéia de pertencimento, de coletividade, a massa se reconhecendo e se autoafirmando nesse reconhecimento. De acordo com Benjamim, a estetização da política é manipulada pelo fascismo, ela é o próprio fascismo. Não apenas o fascismo que nos remete à suástica do Hitler, mas sim o fascismo manipulador das massas, que oferece ao espectador um papel duplo, de ser observador e de fazer parte da massa que se observa. Isso é possível na modernidade onde o cinema aproxima o que é distante e multiplica o que é único. Como exemplo, o filme documentário O Triunfo da Vontade (Triumph des Willens, 1935), apresenta um Hitler imponente em meio a imensa multidão, a mesma multidão que agora pode se ver e perceber a sua grandiosidade. A animação não goza da mesma credibilidade de documento que uma fotografia ou um filme documentário. Então, como ela pode contribuir para a ideia de Verdade? A linguagem da animação permite que o público faça associações simbólicas que se configuravam no imaginário de uma forma menos chocante. Os padrões de composição dessa produção de guerra criam uma atmosfera agradável ao todo, permitindo ao exibidor esquecer o propósito da exibição, que é a militarização da sociedade para a teleologia de guerra30. A distração é dada por meio da consciência da identidade e de reconhecimento que a imagem nos transmite. Entendo por isso, uma proposta das imagens de guerra: educar, militarizar, informar, mas antes do espectador descobrir o obtuso, é distraído por meio da diversão, que omite a ideologização. A ‘Verdade da representação’ é o que torna o fascismo possível dentro do mecanismo de estetização. A estética é percepção da realidade, é uma forma de cognição alcançada por meio dos sentidos. De acordo com a leitura feita por Susan Buck-Morss dentro da obra de Walter Benjamim, o homem moderno se protege dos estímulos exteriores do mundo tecnológico, para preservar-se de traumas físicos e psíquicos, ele se “anestesia”, para de sentir, 30 BUCK-MORSS, Susan. Estética e Anestética– O Ensaio sobre a obra de arte de Walter Benjamin reconsiderado. In Travessia – Revista de Literatura, n. 33, tr. Rafael L.. Azize. Florianópolis: Editora da UFSC, 1998, p.39. 12 torna-se anestético. Ou seja, é o abandono dos sentidos através de uma nova organização sinestética: a anestética. A anestética contribui para o descaso com a imagem, ao vê-la sem questionamentos; aceitamos como Verdade. O público já está anestesiado ao ver as imagens da guerra, caso contrário, não aceitaria com comicidade cenas extremamente grosseiras. O indivíduo já anestesiado assiste com um prazer desinteressado o desenho, sem saber que ele o leva para um caminho de destruição: A estética faculta uma anestetização da recepção, um visionamento da cena com um prazer desinteressado, mesmo quando a cena é uma preparação, por meio do ritual, de toda uma sociedade para o sacrifício inquestionável e, no limite, para a destruição, o assassínio e a morte (BUCK-MORSS, 1998, p. 39). A ideia de Verdade se compromete com o passado monumental, com o historicismo que se constrói pelos vencedores e não pelos fatos em si. Por isso, o ganhar a guerra significa a mudança de um status, o vencedor conserva a guerra e o perdedor deixa de possuí-la. A anestetização, o fascismo com sua “aura”, o historicismo com seus vencedores, fazem glorificar-nos por um passado construído com a morte. Com o apoio da propaganda e do cinema, os EUA distorceram e glamourizaram a imagem da guerra, venceram-na, incorporaram-na ao seu patrimônio, e nos deixaram essas imagens como documentos de uma época, de uma cultura e de tempos de excesso e intolerância. A guerra imperialista é co-determinada no que ela tem de mais duro e mais fatídico, pela distância abissal entre os meios gigantescos de que dispõe a técnica, por um lado, e sua débil capacidade de esclarecer questões morais, por outro (BENJAMIN, 1994, p. 61). Referências Bibliográficas BENJAMIM, Walter. Magia e Técnica, Arte e Política. 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