morte e vida severina

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morte e vida severina
Análise de obras literárias
morte e vida severina
JOÃO CABRAL DE MELO NETO
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SumÁrio
1.
Contexto social e HISTÓRICO..................................................... 7
2.Estilo literário da época............................................................ 8
3.O AUTOR.................................................................................................. 10
4.
A OBRA..................................................................................................... 14
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5.Exercícios............................................................................................ 35
morte e vida severina
JOÃO CABRAL DE
MELO NETO
Morte e vida severina
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1. Contexto social e HISTÓRICO
O ano de 1945 marca o fim da Segunda Guerra Mundial e mostra o mundo que sobreviveu a Hitler e aos campos de concentração, à bomba atômica de
Hiroshima e a todos os demais horrores da guerra.
No Brasil, esse ano marca o fim do Estado Novo de Getúlio Vargas e o início
de certa experiência democrática que terminará bruscamente em 1º de abril de
1964. Nesse meio tempo, entre 1945 e 1964, o Brasil terá a Constituição de 1946, o
retorno de Getúlio Vargas entre 1950 e 1954, as eleições de 1955, a presidência de
Juscelino Kubitschek entre 1956 a 1960, a criação de Brasília e a sua inauguração
como capital do Brasil em 21 de abril de 1960, e a renúncia de Jânio Quadros em
agosto de 1961, que acabou por levar à presidência João Goulart, deposto pelo
golpe militar de 1964.
De 1945 a 1964, o tema do desenvolvimento e subdesenvolvimento do país
ocupa boa parte do trabalho dos intelectuais brasileiros. O Primeiro Congresso
Brasileiro de Escritores, ocorrido em São Paulo no ano de 1945, avaliou os aspectos
positivos e negativos do movimento modernista. O próprio Mário de Andrade, uma
semana antes de morrer, classificou o movimento como “verdadeira legitimação
da dignidade pela inteligência brasileira”, lamentando, entretanto, que a poesia
tivesse sido acolhida pelo grande público como algo embaraçoso e pedante. A partir
daí, deixou de existir a divisão ideológica entre o artista popular e o hermético
(aquele que faz um trabalho de difícil compreensão), porque entende-se agora
que todos fazem uma crítica sobre o material que examinam, desmitificando tal
material. Assim, tanto fazem um trabalho crítico os poetas concretistas, (Augusto
e Haroldo de Campos), como Guimarães Rosa, Clarice Lispector e os compositores
de canções populares.
Pode-se dizer que, entre 1945 e 1964, o Brasil começa a ser percebido como
componente de uma realidade global, não obstante seus problemas internos, como
analfabetismo em massa e injustiças sociais. Procura-se pensar o país não como
uma nação isolada, mas como parte de um processo geral, analisando-se as relações
entre o local e o global, entre o atraso e o progresso, no intuito de se chegar a uma
interpretação capaz de proporcionar solução realista para os nossos problemas.
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João Cabral de Melo Neto
2.Estilo literário da época
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Morte e vida severina
A terceira fase do Modernismo, também chamada de Neomodernismo,
preocupa-se, na prosa, com a invenção linguística, enquanto na poesia há clara
rejeição à geração de 22. Pertencem a esse período Guimarães Rosa, Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto (poesia).
Dentro dessa nova concepção, Clarice Lispector busca uma literatura intimista, de sondagem introspectiva e, por isso, voltada para a análise do interior
das personagens. Ao mesmo tempo, com Guimarães Rosa, os temas regionalistas, analisados mais profundamente, adquirem uma nova dimensão que busca
o universalismo nas questões que envolvem os sertanejos do Brasil central.
Também destaca-se, nesse momento, a preocupação com o uso da linguagem –
traço comum Guimarães Rosa e Clarice Lispector. Ambos, por esse motivo, são
chamados de instrumentalistas.
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Na poesia, os poetas de 45 têm sua estreia marcada pela publicação da
Revista Orfeu (1947), no Rio de Janeiro. A poesia dessa fase defende um estilo
mais rigoroso e equilibrado que rejeita as revoluções artísticas dos modernistas
da geração de 22, ou seja, a liberdade formal, as ironias, as sátiras, o poemapiada etc. Segue um modelo mais formal e uma linguagem mais precisa e exata.
Os modelos voltam a ser os parnasianos e simbolistas. Dentre os grandes nomes
que representam essa geração (Ledo Ivo, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Geir
de Campos e Darcy Damasceno), destaca-se, no fim dos anos 40, João Cabral de
Melo Neto, considerado um dos grandes nomes da literatura no Brasil.
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João Cabral de Melo Neto
3.O AUTOR
João Cabral de Melo Neto nasceu em Recife, Pernambuco, em 9 de janeiro
de 1920. Nos primeiros anos da infância, viveu João Cabral em engenhos de cana
nos arredores da cidade de Moreno. De volta à capital, estudou no colégio dos
Irmãos Maristas até a conclusão do 2º grau. Ainda em Recife, passou a frequentar
o Café Lafayette, onde conheceu o escritor e crítico Willy Lewin, a quem dedicou Pedra do sono e de quem recebeu forte influência, e o pintor Vicente do Rego
Monteiro (que, em 1922, havia participado da Semana de Arte Moderna), citado
em seu poema Morte e vida severina, conforme trecho a seguir:
– Minha pobreza tal é
que pouco tenho o que dar:
dou da pitu que o pintor Monteiro
fabricava em Gravatá (p.175).
Com 20 anos de idade já se encontrava no Rio de Janeiro, onde travou
amizade com poetas que marcaram a chamada geração de 30, como Murilo
Mendes, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima, este último abrindo
o seu consultório médico para as frequentes reuniões literárias. De funcionário
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Morte e vida severina
público passou a diplomata de carreira, aos 25 anos de idade. Por essa época,
João Cabral já havia lançado os livros de poemas Pedra do sono, Os três mal-amados
e O engenheiro (obra custeada pelo poeta, editor e descobridor de Graciliano
Ramos, Augusto Frederico Schmidt). Nesta mesma obra, podemos notar a forte
influência recebida do poeta e engenheiro pernambucano Joaquim Cardozo.
Estabilizado em seu emprego, casou-se com Stella Maria Barbosa de Oliveira, neta de Rui Barbosa, com quem teve 4 filhos.
Com uma prensa manual, editou, em pequenas tiragens, vários poetas,
dentre eles, Manuel Bandeira (seu primo) e Vinícius de Moraes.
Como diplomata, passou a viver em diversos países, dentre eles, Inglaterra, Senegal, Paraguai, Equador, Honduras, mas foi na Espanha que João Cabral
de Melo Neto inspirou-se (palavra esta que não fazia parte do seu dicionário)
para a construção de seus melhores poemas, principalmente aqueles referentes
a Sevilha:
Nasceste pra ser Sevilha.
Sevilha em mapa de mulher.
Teu andar faz novas Sevilhas
Das Itaperunas que houver.
Faz sem limites o pequeno,
Faz, na medida curta e certa
De teu corpo e do de Sevilha:
Faz a alma de quem vai à festa.
De ir à festa: é como melhor
Posso definir a alma armada
De ambas, que viveis para a festa
Que virá do horizonte da alma.
Com a morte de sua mulher em 1986, após 40 anos de união, contraiu segundas núpcias com a poeta Marly de Oliveira, autora da obra Retrato.
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Em 1990, já com fama de maior poeta vivo da literatura nacional, aposentouse de suas funções diplomáticas, passando a residir no Rio de Janeiro.
João Cabral de Melo Neto morreu em 1999, aos 79 anos de idade, cercado
de glórias, tendo sido enterrado no mausoléu da Academia Brasileira de Letras,
entidade da qual era membro desde 1969.
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João Cabral de Melo Neto
Cronologia das OBRAS
1942 – Pedra do sono
1943 – Os três mal-amados
1945 – O engenheiro
1947 – Psicologia da composição
1950 – O cão sem plumas
1956 – Duas águas (contendo os livros anteriores e Morte e vida severina; Paisagens
com figuras e Uma faca só lâmina)
1960 – Quaderna
1961 – Dois parlamentos
1961 – Terceira feira
1962 – Serial
1966 – A educação pela pedra
1976 – Museu de tudo
1981 – A escola das facas
1984 – Auto do frade
1985 – Agrestes
1987 – Crime na calle Relator
1989 – Andando Sevilha
1994 – Sevilha andando
Em 1997, a Editora Nova Fronteira reuniu todas as obras de João Cabral
de Melo Neto em dois volumes: Serial e antes e A educação pela pedra e depois
(contendo também um CD com poemas recitados pelo próprio poeta).
João Cabral era o poeta que dispensava a inspiração. Para ele, escrever
era um exercício diário, daí o título de poeta-engenheiro, sempre preocupado
com a construção e com a precisão do poema, de forma que o fazer-poético era
verdadeira obsessão. Por isso tornou-se insuperável nos chamados metapoemas,
como neste “O poema”, retirado de O engenheiro:
O papel nem sempre
é branco como
a primeira manhã.
É muitas vezes
o pardo e pobre
papel de embrulho;
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Morte e vida severina
É de outras vezes
de carta aérea,
leve de nuvem.
Mas é no papel,
no branco asséptico,
que o verso rebenta.
Como um ser vivo
pode brotar
de um chão mineral?
Assumidamente antissentimental, porém de sensibilidade espantosa, João
Cabral é o poeta da razão, da objetividade e do equilíbrio, prerrogativas que
fazem dele um poeta de características clássicas.
Assim como o árcade Cláudio Manuel da Costa, João Cabral também é o
poeta da pedra. Se para Cláudio Manuel a pedra só simbolizava a insensibilidade
das pessoas, para João Cabral, ela representava além da aridez humana, também
a aridez da terra nordestina.
O poeta amava o seu Pernambuco, porém a sua grande paixão foi, sem
dúvida nenhuma, Sevilha, cidade que, segundo Marly de Oliveira, é “lugar feito
à medida do homem, perfeito para viver”.
Portanto, João Cabral de Melo Neto é o poeta de Pernambuco, de Recife,
do rio Capibaribe, do engenho, do banguê, do fogo morto, da usina, da caatinga,
da seca, do agreste, das cabras, dos canaviais, dos mangues, da pedra, da faca,
da lâmina, da Espanha, de Sevilha, dos castelhanos, do flamenco, da Andaluzia,
da morte e da vida severina...
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Além das influências recebidas de Joaquim Cardozo e Willy Lewin, João
Cabral também admirava o surrealista Murilo Mendes, a quem dedicou a obra
Quaderna, o romancista dos engenhos, José Lins do Rego, a quem dedicou Serial e
o poeta maior Carlos Drummond de Andrade, a quem dedicou Pedra do sono.
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João Cabral de Melo Neto
4.A OBRA
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Morte e vida severina
Quanto à concepção
No início da década de 50, João Cabral de Melo Neto foi denunciado por
subversão e acusado de ser comunista, o que lhe valeu perder, temporariamente, a condição de diplomata, passando, então, a residir em Recife. Por essa
época, encontrou a teatróloga Maria Clara Machado, que, juntamente com o
seu pai, o contista Aníbal Machado, havia fundado o famoso Teatro Tablado.
Neste encontro, Maria Clara Machado encomendou a João Cabral um auto
de Natal para que ela dirigisse a sua montagem e supervisão. Assim nascia
Morte e vida severina (ou Auto de natal pernambucano), um texto sob encomenda.
Surpreendentemente, a peça foi devolvida, não interessando à diretora. Como
João Cabral estava em vias de publicar a sua antologia poética, um tanto fina
ainda, resolveu tirar todas as marcações comuns numa peça de teatro, deixando
somente o poema, utilizando-o, dessa maneira, para engrossar o futuro livro.
Numa entrevista concedida a Antônio Carlos Secchin, João Cabral de
Melo Neto confessou:
Esse texto não poderia ser mais denso. Era obra para teatro, encomendada por Maria Clara Machado. Foi a coisa mais relaxada que escrevi. Pesquisei num livro o folclore
pernambucano, publicado no inicio do século, de autoria de Pereira da Costa. Eu era
consciente de que não tinha tendência para teatro, não sabia criar diálogos no sentido de
polêmica. Meus diálogos vão sempre na mesma direção, são paralelos. Observe o episódio
das pessoas defronte do cadáver: todos trazem uma imagem para a mesma coisa. A cena
do nascimento, com outras palavras, está em Pereira da Costa, “Compadre, que na relva
está deitado” é a transposição desse folclorista, pois no Capibaribe há lama, e não grama.
“Todo céu e a terra lhe cantam louvor” também é literal do antigo pastoril pernambucano.
O louvor das belezas do recém-nascido e os presentes que ganha existem no pastoril. As
duas ciganas estão em Pereira da Costa, mas uma era otimista e a outra pessimista. Eu
só alterei as belezas e os presentes, e pus as duas ciganas pessimistas. Com Morte e vida
severina, quis prestar uma homenagem a todas as literaturas ibéricas. Os monólogos do
retirante provêm do romance castelhano. A cena do enterro na rede é do folclore catalão.
O encontro com os cantadores de incelenças é típico do Nordeste. Não me lembro se a
mulher da janela é de origem galega ou se está em Pereira da Costa. A conversa com
Severino antes de o menino nascer obedece ao modelo da tenção galega.
Quanto à influência recebida
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Seguindo, portanto, a tradição medieval (ou ibérica), João Cabral construiu seu auto(1) tendo, principalmente, como modelo o primeiro teatrólogo da
língua portuguesa: Gil Vicente. Foram três os grandes autores que, na literatura
brasileira, destacaram-se nesse estilo: Padre José de Anchieta, que, no distante
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Auto: peça de caráter religioso.
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João Cabral de Melo Neto
século XVI, procurava catequizar os índios encenando peças religiosas, tendo
como tema o duelo entre o bem e o mal, como podemos verificar em seu Auto na
festa de São Lourenço; Ariano Suassuna, autor da magnífica peça Auto da Compadecida, que nos faz recordar os bons momentos de Gil Vicente com sua trilogia das
barcas, principalmente, e o impagável Auto da barca do inferno; e, claro, João Cabral
de Melo Neto, com seu Auto de natal pernambucano ou Morte e vida severina.
Quanto à forma empregada
Adotando, quase sempre, a medida velha (também uma tradição medieval),
dando preferência aos versos redondilhos maiores (heptassílabos) e às rimas
pares (por vezes toantes, por vezes consoantes), já que raros são os versos livres
na obra, o autor facilitou aos atores decorarem as falas.
Se o sucesso não veio com Maria Clara Machado, veio com a encenação de
outras companhias, algumas amadoras, outras profissionais, como, por exemplo,
a da atriz Cacilda Becker. O certo é que Morte e vida severina ganhou não só os
palcos brasileiros, mas também os do exterior.
Quanto à linguagem, João Cabral adotou a coloquial, de fácil compreensão,
condizente com as personagens da peça.
Para ilustração, segue-se a metrificação (ou escansão) dos seis versos finais
da primeira cena:
“Mas – pa – ra – que – me – co – nhe – (çam)”
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“Me – lhor – Vo – ssas – Se – nho – ri – (as)”
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“E – me – lhor – po – ssam – se – guir”
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“A his – tó – ria – de – mi – nha – vi – (da)”
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“Pa – sso a – ser – o – Se – ve – ri – (no)”
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“Que em – vo –ssa – pre – sen – ça e – mi – (gra)”
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Veja o que diz o poeta Geir Campos em seu Pequeno dicionário de arte poética,
com relação às rimas toantes e consoantes:
Toantes – também chamadas assoantes, são as rimas em que é obrigatória
a correspondência sonora da última vogal tônica e das que se lhe seguem.
Consoantes – são as rimas em que há correspondência da última vogal
tônica e de todos os sons e letras que se lhe seguem no final do verso.
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Morte e vida severina
Peguemos, então, dois exemplos, em Morte e vida severina, de rimas toantes
e consoantes, respectivamente:
Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga...
***
Desde que estou retirando
só a morte vejo ativa,
só a morte deparei
e às vezes até festiva
Rimas
consoantes
Rimas
toantes
Quanto aos temas
Mesmo não pretendendo fazer poesia de cunho social, é inegável o engajamento do poeta. Em 6 de janeiro de 1990, João Cabral de Melo Neto concedeu
esta entrevista ao jornal Folha de S. Paulo:
Minha poesia é social na medida em que é nordestina, em que fala da minha experiência
de nordestino, de menino de engenho. Eu nunca pretendi fazer poesia social. Meu desafio sempre foi o de pensar na forma poética: como fazer um poema narrativo sem cair no romanceiro
e não crônica? Agora, como a situação do Nordeste mudou muito pouco, continua a ser de
uma extrema injustiça, então esses textos acabam tendo um sentido político de denúncia, que
infelizmente ainda é atual. Hoje, no Nordeste, existe uma espécie de modernização aparente
em algumas regiões. Mas o povo continua muito sofrido. Hoje eu percebo que a televisão, por
exemplo, tem uma força muito grande, que antes não tinha. No essencial, porém, o Nordeste
continua a ser aquele cenário desolado de onde saem os retirantes.
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Temas presentes em Morte e vida severina:
A seca (e consequentemente a retirada)
O coronelismo
A decadência dos engenhos (e consequentemente o surgimento das usinas)
O duelo entre a vida e a morte
A metáfora do nascimento de Cristo
Pelos três primeiros temas elencados acima, é possível perceber que João Cabral seguiu a linha dos autores nordestinos da geração de 30, que, em chocantes e
dolorosos romances, souberam como ninguém traçar a saga dos retirantes. São eles:
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João Cabral de Melo Neto
o paraibano José Américo de Almeida, a cearense Rachel de Queiroz, o alagoano
Graciliano Ramos, o baiano Jorge Amado e o paraibano José Lins do Rego, este também um menino de engenho como o foi João Cabral de Melo Neto. Vale ressaltar que
esses escritores não exploraram só a seca, mas os vários problemas dela decorrentes,
como, por exemplo, o fanatismo religioso, a prostituição, o cangaço etc.
tempo e espaço
Em Morte e vida severina, pode-se considerar o tempo como atual, já que,
como disse o próprio poeta, nada mudou no Nordeste com relação à seca.
Com relação ao espaço, isto é, o local (ou os locais) onde se passa a história,
têm-se:
Caatinga, região formada por pequenas árvores espinhosas que perdem
as folhas durante a seca.
Agreste, campo não cultivado, rude, rústico, áspero, tosco, severo, hirsuto.
Zona da Mata, região fértil, propícia para o plantio da cana-de-açúcar.
Recife, em especial o mangue, região em que predomina o lamaçal e se
pratica a pesca de camarão, siri e caranguejo.
(...) Não desejo emaranhar
o fio de minha linha
nem que se enrede no pelo
hirsuto desta caatinga.
***
Agora afinal cheguei
nessa terra que diziam.
Como ela é uma terra doce
para os pés e para a vista.
***
Mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é a mais mínima.
***
– E a língua seca de esponja
que tem o vento terral
veio enxugar a umidade
do encharcado lamaçal.
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Morte e vida severina
Foco narrativo
Como ja vimos, a obra está estruturada em 18 cenas, distribuídas em monólogos e diálogos. Desse modo, percebemos que a primeira pessoa predomina no texto.
Em alguns trechos, é Severino quem fala, como se observa na primeira cena:
– O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
Noutros momentos são os interlocutores de Severino que falam (“irmãos
das almas”, mulher à janela, seu José, mestre carpina, entre outros), sempre
predominando a primeira pessoa.
Leia um pequeno trecho do diálogo entre Severino e Seu José:
– Seu josé, mestre de carpina,
que habita este lamaçal,
sabes me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabes me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?
Note o discurso de Severino.
– Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado;
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
Note o discurso de Seu José.
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ENREDO
Morte e vida severina está estruturado em 18 cenas, distribuídas em monólogos e diálogos. Da primeira à décima quarta cena, os monólogos e os diálogos se
alternam. A partir da décima quinta até a décima sétima cena, em que Severino
não participa, só há diálogos. Na décima oitava cena, acontece o monólogo de
seu José mestre carpina, finalizando a obra.
Vamos, então, ao resumo de cada cena, exemplificando-a com trechos do
poema:
Na 1ª cena (primeiro monólogo), Severino se apresenta ao leitor antes de
começar a sua retirada com destino à cidade de Recife, isto é, da seca para o
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João Cabral de Melo Neto
mar. Em sua fala, podemos perceber uma tentativa (frustrada) de se identificar.
Severino sem sobrenome, filho de uma Maria, como tantas outras, seduzida por
um coronel* de fazenda:
– O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
*Notem que, já de início, João Cabral toca no tema do coronelismo.
Como todo Severino, este é magro, subnutrido e tem a cabeça grande, o
ventre crescido e as pernas finas. É interessante ressaltar que a região em que
vive (a serra da Costela) tem a mesma constituição de Severino:
(...) vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
Iguais em tudo na vida:
Na mesma cabeça grande
Que a custo é que se equilibra,
No mesmo ventre crescido
Sobre as mesma pernas finas...
Esta já é uma descrição clássica do sertanejo. Euclides da Cunha, em sua
grandiosa obra Os sertões, já o havia assim descrito:
É desagracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gigante e sinuoso, aparenta
a translação de membros desarticulados. Agrava-os a postura normalmente abatida, num
manifestar de displicência que lhe dá um caráter de humildade deprimente. A pé, quando
parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro umbral ou parede que encontra; a cavalo, se
sofreia o animal para trocar duas palavras com o conhecido, cai logo sobre um dos estribos,
descansando sobre a espenda da sela. Caminhando, mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e firme. Avança celeremente, num bambolear característico, de que parecem
ser o traço geométrico os meandros das trilhas sertanejas (Os sertões).
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Morte e vida severina
Para que o leitor conheça, de antemão, toda a rudeza e o sofrimento presentes na vida (neste trecho a palavra severina está associada diretamente à morte)
dos sertanejos, Severino diz:
(...)E se somos Severinos
Iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes do trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
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Não demora muito para Severino se deparar com a presença da morte ao
encontrar dois homens, carregando, em uma rede, um defunto para ser enterrado no cemitério de Toritama. Este defunto era um lavrador, proprietário de um
pedaço de chão, assassinado, possivelmente, numa emboscada idealizada por
algum latifundiário que pretendia esticar ainda mais as suas terras. Usando a
metáfora “ave-bala” (pássara), João Cabral denuncia os coronéis zacarias, muitos
deles criminosos impunes, que enriquecem explorando, roubando e assassinando
sertanejos, assunto este já tratado por autores como José Lins do Rego e Jorge
Amado. Assim, o erro deste Severino-defunto foi ter uns hectares de terra, mesmo
de terra pouco produtiva. Trata-se da 2ª cena (primeiro monólogo).
– E o que havia ele feito
irmãos das almas
e que havia ele feito
contra tal pássara?
– Ter uns hectares de terra,
irmãos das almas,
de pedra e areia lavada
que cultivava.
(...)
– E agora o que passará,
irmãos das almas,
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João Cabral de Melo Neto
o que é que acontecerá
contra a espingarda?
– Mais campo tem para soltar,
irmãos das almas,
tem mais onde fazer voar
as filhas-bala.
Mesmo levando uma vida miserável, a solidariedade se faz sempre presente, por isso Severino se oferece para ajudar a levar o defunto para o cemitério. Já
sozinho, na 3ª cena (segundo monólogo), Severino faz do rio Capibaribe a sua
“estrela-guia”. Entretanto, tem medo de se perder, pois o rio secou. É bom lembrar que o rio Capibaribe é intermitente corta (quando a seca chega) desde a sua
nascente até a cidade pernambucana de Limoeiro. De lá ao Recife, o Capibaribe
é perene não corta (seca) jamais.
(...) Pensei que seguindo o rio
eu jamais me perderia:
ele é o caminho mais certo,
de todos o melhor guia.
Mas como segui-lo agora
que interrompeu a descida?
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
A uma certa distância, ouve uma cantoria. Em sua inocência, Severino chega
a acreditar que ali pode estar acontecendo uma festa. É a presença da esperança
do sertanejo, mesmo que fugaz.
(...) ouço somente a distância
o que parece cantoria.
Será novena de santo,
será algum mês de Maria;
quem sabe até se uma festa
ou uma dança não seria?
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Morte e vida severina
Ao se aproximar do local, Severino percebe que a cantoria, na verdade,
são excelências (ladainhas, cantigas de velório) cantadas por mulheres enquanto
velam o corpo de mais um Severino. O interessante nesta 4ª cena (segundo diálogo) é que, enquanto as mulheres cantam suas excelências, um homem, usando
perspicácia e ironia, parodia a cantilena, ressaltando a condição severina (fome,
sede, privação) que o Severino levou em vida:
– Finado Severino,
quando passares em Jordão
e os demônios te atalharem
perguntando o que é que levas...
– Dize que levas cera,
capuz e cordão
mais a Virgem da Conceição.
Finado Severino,
etc...
– Dize que levas somente
coisas de não:
fome, sede, privação.
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Cansado de só encontrar a morte pela frente, Severino resolve, assim como
o rio Capibaribe, interromper a sua viagem e procurar algum trabalho. Neste
trecho da 5ª cena (terceiro monólogo), Severino conclui que a vida é ainda mais
severina para aquele que se retira, mas sua esperança se renova ao ver na janela
uma mulher que talvez poderia ajudá-lo na busca por um trabalho.
(...) e o pouco que não foi morte
foi de vida severina
(aquela vida que é menos
vivida que defendida,
e é ainda mais severina
para o homem que retira).
(...)
Vejo uma mulher na janela,
ali, que se não é rica,
parece remediada
ou dona de sua vida:
vou saber se de trabalho
poderá me dar notícia.
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João Cabral de Melo Neto
Severino e a mulher na janela travam interessante diálogo. Ela é uma
rezadora da região (melhor que essa profissão na região não há), portanto só
trabalha com a morte. Como Severino não é rezador (sabia apenas acompanhar
algumas cantigas) nem coveiro, tampouco enfermeiro e médico (profissionais
que lidam diretamente com a morte e, como bem disse a mulher: retirantes às
avessas, que sobem do mar para cá), não há trabalho algum para ele naquele
lugar. Desta 6ª cena (terceiro diálogo), retiramos o seguinte trecho:
(...)
E se pela última vez
me permite perguntar:
não existe outro trabalho
para mim neste lugar?
Como aqui a morte é tanta,
só é possível trabalhar
nessas profissões que fazem
da morte ofício ou bazar.
imagine que outra gente
de profissão similar,
farmacêuticos, coveiros,
doutor de anel no anular,
remando contra a corrente
da gente que baixa ao mar,
retirantes às avessas,
sobem do mar para cá.
só os roçados da morte
compensam aqui cultivar,
e cultivá-los é fácil:
simples questão de plantar;
não se precisa de limpa,
de adubar nem de regar;
as estiagens e as pragas
fazem-nos mais prosperar;
e dão lucro imediato;
nem é preciso esperar
pela colheita: recebe-se
na hora mesma de semear.
24
Morte e vida severina
Severino novamente se decepciona, pois, não encontrou trabalho. Ao
chegar à Zona da Mata, região canavieira, a sua esperança renasce mais
uma vez. E mais uma vez pensa em interromper a sua viagem, já que numa
região tão verde e tão fértil (daí chamá-la de feminina), trabalho não há de
faltar para um lavrador. A sua esperança é tal que, por não encontrar ninguém, pensa ser feriado e os lavradores estão, merecidamente, descansando.
É a 7ª cena (quarto monólogo):
(...)
Decerto a gente daqui
jamais envelhece aos trinta
nem sabe da morte em vida,
vida em morte, severina;
e aquele cemitério ali,
branco na verde colina,
decerto pouco funciona
e poucas covas aninha.
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Como sabemos, toda esperança de Severino é efêmera, surgindo logo uma
cruel realidade para dissipá-la. As pessoas não estão na labuta diária porque prestam uma última homenagem a um trabalhador de eito que está sendo enterrado.
Nesta 8ª cena (quarto diálogo) temos uma triste e dura constatação: a terra tanto
sonhada pelo lavrador em vida finalmente é conquistada por ele, na hora da sua
morte: a cova é a terra que foi dividida, cabendo a ele o seu quinhão. Este trecho
foi, magnificamente, musicado por Chico Buarque em Funeral do lavrador.
– Essa cova em que estás,
com palmos medida,
é a conta menor
que tiraste em vida.
– É de bom tamanho,
nem largo nem fundo,
é a parte que te cabe
deste latifúndio.
– Não é cova grande,
é cova medida,
é a terra que querias
ver dividida.
(...)
25
João Cabral de Melo Neto
– Viverás, e para sempre
na terra que aqui aforas:
e terá enfim tua roça.
– Aí ficarás para sempre,
livre do sol e da chuva,
criando tuas saúvas.
– Agora trabalharás
só para ti, não a meias,
como antes em terra alheia.
– Trabalharás uma terra
da qual, além de senhor,
serás homem de eito e trator.
– Trabalhando nessa terra,
tu sozinho tudo empreitas:
será semente, adubo, colheita.
Parece ser esse o pior momento de Severino: numa terra onde tudo é verde
e os rios correm com sua água vitalícia, a morte se apresenta tão viva quanto na
caatinga. Resolve, então, apressar a sua viagem e chegar o mais rapidamente a seu
destino, a cidade do Recife. E assim, nesta 9ª cena (quinto monólogo ), Severino
justifica o porquê de sua retirada aos leitores:
– Nunca esperei muita coisa,
digo a Vossas Senhorias.
O que me fez retirar
não foi a grande cobiça;
o que apenas busquei
foi defender minha vida
da tal velhice que chega
antes de se inteirar trinta;
se na serra vivi vinte,
se alcancei lá tal medida,
o que pensei, retirando,
foi estendê-la um pouco ainda.
mas não senti diferença
entre o Agreste e a Caatinga,
e entre a Caatinga e aqui a Mata
a diferença é mais mínima.
26
Morte e vida severina
está apenas em que a terra
é por aqui mais macia;
está apenas no pavio,
ou melhor, na lamparina:
pois é igual o querosene
que em toda parte ilumina,
e quer nesta terra gorda
quer na serra, de caliça,
a vida arde sempre com
a mesma chama mortiça.
Finalmente Severino chega ao Recife. Para descansar, encosta-se no muro
de um cemitério e escuta o que falam dois coveiros. Após comentarem a própria profissão, os coveiros passam a falar dos retirantes que chegam em grande
quantidade, sonhando encontrar trabalho e só encontram miséria e cemitérios
esperando por eles (consequentemente aumentando, e muito, o trabalho de coveiros dos cemitérios pobres, enquanto os coveiros dos cemitérios ricos pouco
trabalham e muitas são as gorjetas). No final, a conclusão melancólica de um
dos coveiros: os retirantes vinham seguindo o próprio enterro. Desta 11ª cena
(quinto diálogo), retiramos o seguinte trecho:
– Eu também, antigamente,
fui do subúrbio dos indigentes,
e uma coisa notei
que jamais entenderei:
essa gente do Sertão
que desce para o litoral, sem razão,
fica vivendo no meio da lama,
comendo os siris que apanha;
pois bem: quando sua morte chega,
temos de enterrá-los em terra seca.
– Na verdade, seria mais rápido
e também muito mais barato
que os sacudissem de qualquer ponte
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dentro do rio e da morte.
– O rio daria a mortalha
e até um macio caixão de água:
27
João Cabral de Melo Neto
e também o acompanhamento
que levaria com passo lento
o defunto ao enterro final
a ser feito no mar de sal.
– E não precisava dinheiro,
e não precisava coveiro,
e não precisava oração
e não precisava inscrição.
– Mas o que se vê não é isso:
é sempre nosso serviço
crescendo mais cada dia;
morre gente que nem vivia.
– Esse povo lá de riba
de Pernambuco, da Paraíba,
que vem buscar no Recife
poder morrer de velhice,
encontra só aqui chegando
cemitérios esperando.
– Não é viagem o que fazem,
vindo por essas caatingas, vargens;
aí está o erro:
vêm seguindo seu próprio enterro.
Severino, desolado, chega a um dos cais do Recife. Novamente justifica aos
leitores, nesta 11ª cena (sexto monólogo), a sua retirada. A dura conclusão do coveiro
faz com que pense em se matar, deixando-se afogar nas águas do Capibaribe.
(...) E chegando, aprendo que,
nessa viagem que eu fazia,
sem saber desde o Sertão,
meu próprio enterro eu seguia.
Só que devo ter chegado
adiantado de uns dias;
o enterro espera na porta:
o morto ainda está com vida.
28
Morte e vida severina
a solução é apressar
a morte a que se decida
e pedir a este rio,
que vem também lá de cima,
que me faça aquele enterro
que o coveiro descrevia:
caixão macio de lama,
mortalha macia e líquida,
coroas de baronesa
junto com flores de aninga,
e aquele acompanhamento
de água que sempre desfila
(que o rio, aqui no Recife,
não seca, vai toda a vida).
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Uma das mais comoventes cenas da obra Morte e vida severina é a
12ª cena. Neste sexto diálogo, travado entre Severino e um dos moradores do
mangue, temos um prenúncio de que a vida se sobreporá à morte. Interessado em
saber a profundidade do rio Capibaribe, Severino deixa transparecer o seu trágico
intento: o suicídio. Entretanto, seu José, mestre carpina, nascido em Nazaré... da
Mata (aí uma nítida alusão a José carpinteiro, pai de Jesus), vai respondendo de
forma sábia suas perguntas, tentando demovê-lo da triste ideia. Deste diálogo,
três momentos foram selecionados:
– Seu José, mestre carpina,
que habita este lamaçal,
sabe me dizer se o rio
a esta altura dá vau?
sabe me dizer se é funda
esta água grossa e carnal?
– Severino, retirante,
jamais o cruzei a nado;
quando a maré está cheia
vejo passar muitos barcos,
barcaças, alvarengas,
muitas de grande calado.
– Seu José, mestre carpina,
para cobrir corpo de homem
29
João Cabral de Melo Neto
não é preciso muito água:
basta que chegue ao abdome,
basta que tenha a fundura
igual à de sua fome.
– Severino, retirante,
pois não sei o que lhe conte;
sempre que cruzo este rio
costumo tomar a ponte;
quanto ao vazio do estômago,
se cruza quando se come.
(...)
– Seu José, mestre carpina,
e que diferença faz
que esse oceano vazio
cresça ou não seus cabedais,
se nenhuma ponte mesmo
é de vencê-lo capaz?
há muito no lamaçal
apodrece a sua vida?
e a vida que tem vivido
foi sempre comprada a vista?
– Severino, retirante,
sou de Nazaré da Mata,
mas tanto lá como aqui
jamais me fiaram nada:
a vida de cada dia
cada dia hei de comprá-la.
(...)
– Seu José, mestre carpina,
que diferença faria
se em vez de continuar
tomasse a melhor saída:
a de saltar, numa noite,
fora da ponte e da vida?
30
Morte e vida severina
Podemos considerar a pergunta mostrada como um “divisor de águas”
nesta obra, pois, com a chegada de uma mulher, anunciando o nascimento do
filho de seu José, mestre carpina, temos o início da montagem de um presépio.
Com exceção desta 13ª cena (sétimo monólogo), as demais são diálogos baseados
em uma obra folclórica de Pereira da Costa, Folclore pernambucano: subsídios para
a história da poesia popular em Pernambuco.
É importante relacionar a pergunta de Severino (se a melhor saída não
seria pular, numa noite, fora da ponte e da vida) com a fala da mulher, ao dizer
que o filho de seu José havia pulado para dentro da vida. Aí está a antítese
nascer/morrer.
– Compadre José, compadre
que na relva estais deitado:
conversais e não sabeis
que vosso filho é chegado?
estais aí conversando
em vossa prosa entretida:
não sabeis que vosso filho
saltou para dentro da vida?
saltou para dentro da vida
ao dar seu primeiro grito;
e estais aí conversando;
pois sabei que ele é nascido.
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Nesta 14ª cena (sétimo diálogo), temos, na voz dos moradores dos mocambos,
a transformação mágica do cenário com o nascimento da criança: tudo o que enfeia
ou lembra a pobreza do mangue dá lugar a um ambiente digno de se viver.
(...)
– Todo o céu e a terra
lhe cantam louvor
e cada casa se torna
num mocambo sedutor.
– Cada casebre se torna
no mocambo modelar
que tanto celebram os
sociólogos do lugar.
– E a banda de maruins
que toda noite se ouvia
31
João Cabral de Melo Neto
por causa dele, esta noite,
creio que não irradia.
– E este rio de água cega,
ou baça, de comer terra,
que jamais espelha o céu,
hoje enfeitou-se de estrelas.
Até mesmo a água turva, escura, do Capibaribe nesta noite sublime tornarse-ia cristalina a ponto de espelhar um céu estrelado. Há também que se ressaltar
a referência que João Cabral faz ao sociólogo e romancista pernambucano Gilberto
Freyre, autor de Mocambos e sobrados e Casa grande & senzala. Em 1926, Gilberto
Freyre (1900-1987) havia promovido no Recife o primeiro encontro de regionalistas nordestinos, com o intuito de discutir a seca e os problemas decorrentes
dela, que afetavam, principalmente, os severinos.
Na 15ª cena (oitavo diálogo), moradores do mangue, tal como os três reis
magos, ofertam presentes aos pais e ao recém-nascido.
Num gesto de solidariedade, vêm trazendo, cada qual com sua pobreza,
as mais diferentes oferendas: caranguejos, leite materno, papel de jornal, água
de bica, canário-da-terra, bolacha-d’água, cachaça etc. Notem a bem-humorada
troca que há nos quatro últimos versos do fragmento:
– Minha pobreza tal é
que não tenho presente melhor:
Trago papel de jornal
para lhe servir de cobertor;
cobrindo-se assim de letras
vai um dia ser doutor.
(...)
– Trago abacaxi de Goiana
e de todo o Estado rolete de cana.
– Eis ostras chegadas agora,
apanhadas no cais da Aurora.
– Eis tamarindos da Jaqueira
e jaca da Tamarineira.
Mangabas do Cajueiro
e cajus da Mangabeira.
32
Morte e vida severina
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No 16ª cena (nono diálogo), duas ciganas preveem o futuro do recém-nascido.
Há sempre uma discussão em torno da fala da segunda cigana, que, não sendo
propriamente otimista (vimos no depoimento do poeta que ele colocou as duas
pessimistas), acaba, de certa forma, contradizendo o que a primeira cigana havia
preconizado: uma vida miserável como a de todos os que vivem no mangue. Quando
a primeira, por exemplo, diz que o menino, já crescido, viverá sempre enlameado de
pescar camarão, a segunda diz que ele está sujo, mas é de graxa de uma máquina,
portanto não será um pescador, mas um operário. Entretanto, não há nenhuma diferença entre viver num mocambo nos mangues do Capibaribe, como frisa a primeira
cigana, e viver num mocambo nos mangues do Beberibe, como afirma a segunda.
– Atenção peço, senhores,
para esta breve leitura:
somos ciganas do Egito,
lemos a sorte futura.
vou dizer todas as coisas
que desde já posso ver
na vida desse menino
acabado de nascer:
aprenderá a engatinhar
por aí, com aratus,
aprenderá a engatinhar
na lama, com goiamuns,
e a correr o ensinarão
os anfíbios caranguejos,
pelo que será anfíbio
como a gente daqui mesmo.
Cedo aprenderá a caçar:
primeiro, com as galinhas,
que é catando pelo chão
tudo o que cheira a comida;
depois, aprenderá com
outras espécies de bichos:
com os porcos nos monturos,
com os cachorros no lixo.
(...)
– Atenção peço, senhores,
também para a minha leitura:
também venho dos Egitos,
vou completar a figura:
(...)
não o vejo dentro dos mangues,
vejo-o dentro de uma fábrica:
33
João Cabral de Melo Neto
se está negro não é lama,
é graxa de sua máquina,
coisa mais limpa que a lama
do pescador de maré
que vemos aqui, vestido
de lama da cara ao pé.
Após a leitura das ciganas, vizinhos, amigos e parentes celebram o
recém-nascido. Mesmo sendo uma criança enclenque (frágil) e setemesinha
(nascida de sete meses), é bela porque simboliza a renovação da vida. Nesta
17ª cena (décimo diálogo), João Cabral de Melo Neto constrói, na última estrofe, um inusitado jogo de palavras, dando valores positivos a termos negativos
(corromper, infeccionar, contagiar):
– E belo porque com o novo
todo velho contagia.
– Belo porque corrompe
com sangue novo a anemia.
– Infecciona a miséria
com vida nova e sadia.
Com oásis, o deserto,
com ventos, a calmaria.
Finda a montagem do presépio, seu José, mestre carpina, volta-se para Severino, que se manteve à margem de toda a celebração, para tentar responder-lhe
a pergunta que ficou suspensa durante todo esse tempo: a melhor saída não seria
o suicídio? Nesta 18ª cena (oitavo monólogo) temos a justificativa do título dado
à obra, Morte e vida severina, isto é, vida, mesmo sendo mais uma vida severina,
é de qualquer forma vida e vale a pena ser vivida:
– Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia,
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil defender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é,
34
Morte e vida severina
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
E não há melhor resposta
que o espetáculo da vida:
vê-la desfiar seu fio,
que também se chama vida,
ver a fábrica que ela mesma,
teimosamente, se fabrica,
vê-la brotar como há pouco
em nova vida explodida;
mesmo quando é uma explosão
como a de há pouco, franzina;
mesmo quando é a explosão
de uma vida severina.
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5.Exercícios
1. Fuvest-SP
É correto afirmar que no poema dramático Morte
e vida severina, de João Cabral de Melo Neto:
a) a sucessão de frustrações vividas por Severino
faz dele um exemplo típico de herói moderno,
cuja tragicidade se expressa na rejeição à cultura a que pertence.
b) a cena inicial e a final dialogam de modo a
indicar que, no retorno à terra de origem, o retirante estará munido das convicções religiosas que adquiriu com o mestre carpina.
c) o destino que as ciganas preveem para o recém-nascido é o mesmo que Severino já cumprira ao longo de sua vida, marcada pela seca, pela falta de trabalho
e pela retirada.
d) o poeta buscou exprimir um aspecto da vida nordestina no estilo dos autos medievais, valendo-se da retórica e da moralidade religiosa que os caracterizam.
e) o “auto de natal” acaba por definir-se não exatamente no sentido religioso, mas
como reconhecimento da força afirmativa e renovadora que está na própria
natureza.
35
João Cabral de Melo Neto
2. UFPE
Severino retirante,
deixe agora que lhe diga:
eu não sei bem a resposta
da pergunta que fazia
se não vale mais saltar
fora da ponte e da vida;
nem conheço essa resposta,
se quer mesmo que lhe diga;
é difícil entender,
só com palavras, a vida,
ainda mais quando ela é
esta que vê, severina;
mas se responder não pude
à pergunta que fazia,
ela, a vida, a respondeu
com sua presença viva.
João Cabral de Melo Neto. Morte e vida severina.
Sobre o poema de João Cabral, assinale a alternativa incorreta:
a) Escrito em versos, é um auto de natal nordestino e tem como personagem
principal Severino, um favelado recifense, que quer saltar “fora da ponte e
da vida”.
b) Os versos transcritos representam a voz de outra personagem (seu José, o
mestre carpina), que dá a Severino alguma esperança.
c) “A vida a respondeu com sua presença viva” é alusão ao filho recém-nascido
de seu José.
d)A expressão “severina” (formada por derivação imprópria) significa, aqui,
anônimo, igual aos demais, e realça a linguagem despojada do texto.
e) A poesia de Cabral é engajada com o seu meio, embora contida, chegando a
demonstrar desprezo pela confissão sentimental.
3. PUCCampi-SP
– A leitura integral de Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, permite
a correta compreensão do título desse “auto de natal pernambucano”:
a) Tal como nos Evangelhos, o nascimento do filho de seu José anuncia um novo
tempo, no qual a experiência do sacrifício representa a graça da vida eterna
para tantos “severinos”.
36
Morte e vida severina
b) Invertendo a ordem dos dois fatos capitais da vida humana, mostra-nos o poeta
que, na condição “severina”, a morte é a única e verdadeira libertação.
c) O poeta dramatiza a trajetória de Severino, usando o seu nome como adjetivo
para qualificar a sublimação religiosa que consola os migrantes nordestinos.
d)Severino, em sua migração, penitencia-se de suas faltas e encontra o sentido
da vida na confissão final que faz a seu José, mestre carpina.
e) O poema narra as muitas experiências da morte, testemunhadas pelo migrante, mas culmina com a cena de nascimento, signo resistente da vida nas mais
ingratas condições.
4. Fuvest-SP
Decerto a gente daqui
Jamais envelhece aos trinta
Nem sabe da morte em vida,
Vida em morte, severina.
João Cabral de Melo Neto, Morte e vida severina
Neste excerto, a personagem do “retirante” exprime uma concepção da “morte e
vida severina”, ideia central da obra, que aparece em seu próprio título. Tal como
foi expressa no excerto, essa concepção só não encontra correspondência em:
a) “morre gente que nem vivia”.
b) “meu próprio enterro eu seguia”.
c) “o enterro espera na porta: o morto ainda está com vida”.
d)“vêm é seguindo seu próprio enterro”.
e) “essa foi morte morrida ou foi matada?”
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5. Fuvest-SP
– Finado Severino,
quando passares em Jordão
e os demônios te atacarem
perguntando o que é que levas...
– Dize que levas somente
coisas de não:
fome, sede, privação.
As “coisas de sim” estão , correspondentemente, em:
a) Vacuidade – repleção – carência.
b) Fartura – carência – vacuidade.
c) Repleção – carência – saciedade.
d)Satisfação – saciedade – fartura.
e) Vacuidade – fartura – repleção.
37
João Cabral de Melo Neto
6. UFMG-MG
Sobre o adjetivo severina, da expressão Morte e vida Severina que intitula a peça
de João Cabral de Melo Neto, todas as alternativas estão certas, exceto:
a) Refere-se aos migrantes nordestinos que, revoltados, lutam contra o sistema
latifundiário que oprime o camponês.
b) Pode ser sinônimo de vida árida, estéril, carente de bens materiais e de afetividade.
c) Designa a vida e a morte dos retirantes que a seca escorraça do sertão e o
latifúndio escorraça da terra.
d)Qualifica a existência negada, a vida daqueles seres marginalizados determinada pela morte.
e) Dá nome à vida de homens anônimos, que se repetem física e espiritualmente,
sem condições concretas de mudança.
7.
Com relação à obra Morte e vida severina, assinale a alternativa incorreta:
a) Quanto ao número de sílabas poéticas, o poeta deu preferência aos versos
redondilhos maiores.
b) Quanto à estrutura, a obra é formada por monólogos e diálogos, à maneira
dos romanceiros medievais.
c) João Cabral optou por uma linguagem coloquial, já que os personagens são
gente humilde e sem escolaridade.
d)João Cabral sofreu influência dos autos pastoris de Juan Del Encina, teatrólogo
espanhol que sucedeu Gil Vicente.
e) O personagem Severino, ao se despersonalizar, passa a representar o coletivo,
isto é, os sertanejos desvalidos.
8.
João Cabral de Melo Neto se aproxima dos autores da geração de 30 do Modernismo, mas foi _______________________________ o autor com quem ele mais
se identificou. O nome que preenche a lacuna é:
a) Graciliano Ramos.
b) José Lins do Rego.
c) Rachel de Queirós.
d)José Américo de Almeida.
e) Jorge Amado.
38
Morte e vida severina
9. PUC-RS
O lápis, o esquadro, o papel;
o desenho, o projeto, o número:
o engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
A estrofe acima ilustra a assertiva de que a poesia de João Cabral de Melo Neto
revela rigor _______________ e preocupação com o ____________________.
a) técnico – problema social.
b) semântico – fazer poético.
c) estilístico – ambiente regional.
d)formal – momento político.
e) métrico – conflito estético.
AOL-11
10.
Com relação à obra Morte e vida severina, responda às questões:
a) Explique o título acima.
b) Severina pode ser um substantivo e um adjetivo. Por quê?
c) Por que o subtítulo Auto de natal pernambucano?
39
João Cabral de Melo Neto
GABARITO
1.E
2. A
3.E
4.E
5.D
6. A
7.D
8. A
9. A
10.
a) Em sua retirada, Severino se depara a todo
instante com a morte, fazendo com que, já
no Recife, a ideia do suicídio povoe a sua
mente, entretanto, com o nascimento de
mais uma vida severina, a vida acaba se
sobrepondo à morte.
b) Severina pode ser nome próprio como também severidade, rudeza, miséria.
c) Porque se trata da metáfora do nascimento
de Jesus Cristo, o que caracteriza a fundamentação religiosa do texto, justificando a
identificação como Auto de Natal.
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