Textos e Problemas de Filosofia, org. de Aires Almeida e Desidério
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Textos e Problemas de Filosofia, org. de Aires Almeida e Desidério
Textos e Problemas de Filosofia, org. de Aires Almeida e Desidério Murcho Lisboa: Plátano, 2006, 256 pp. Apresentação Esta antologia única reúne 53 excertos de textos clássicos que respondem a 18 problemas filosóficos. Os problemas são claramente formulados e sucintamente explicados. Inclui problemas de filosofia da acção, teoria dos valores, ética, filosofia política, estética, filosofia da religião, teoria do conhecimento e filosofia da ciência. Os textos abrangem a filosofia antiga, medieval, moderna e contemporânea, e tanto incluem filósofos e pensadores muito estudados como outros menos estudados, apesar de inegavelmente centrais. Alguns textos — de Sexto Empírico, Tolstoi, Bentham, Moore, Ayer, Nozick e Dickie, entre outros — foram traduzidos especialmente para este volume. Todos os textos são complementados com tarefas de contextualização, interpretação e discussão. Indicam-se ainda leituras complementares e recursos na Internet, assim como temas para redigir ensaios. Do máximo interesse para estudantes e professores de filosofia, esta obra responde às necessidades do ensino secundário e universitário. Aires Almeida é mestre e professor de filosofia na Escola Secundária Manuel Teixeira Gomes (Portimão). Desidério Murcho é doutorando e tutor no King's College London. São ambos membros do Centro para o Ensino da Filosofia da Sociedade Portuguesa de Filosofia, e autores de manuais escolares e outros materiais didácticos para o ensino da filosofia. Índice 1. Acção Problema 1 A definição de acção Texto 1 JOHN R. SEARLE, A Estrutura da Acção Problema 2 O livre-arbítrio Texto 2 BENTO DE ESPINOSA, Não há Vontade Absoluta ou Livre Texto 3 JEAN-PAUL SARTRE, A Existência Precede a Essência Texto 4 A. J. AYER, Liberdade e Necessidade Texto 5 JOHN R. SEARLE, O Livre-Arbítrio 2. Valores Problema 3 O relativismo cultural Texto 6 RUTH BENEDICT, O Bem é o que a Sociedade Aprova Texto 7 JAMES RACHELS, O Desafio do Relativismo Cultural 3. Ética Problema 4 O egoísmo Texto 8 THOMAS HOBBES, Piedade e Caridade Texto 9 DAVID HUME, Do Amor de si Problema 5 A fundamentação da moral Texto 10 IMMANUEL KANT, Fundamentação da Metafísica dos Costumes Texto 11 JOHN STUART MILL, Uma Crítica a Kant Texto 12 JOHN STUART MILL, O que o Utilitarismo é Texto 13 BERNARD WILLIAMS, Uma Crítica ao Utilitarismo 4. Política Problema 6 A justificação do estado Texto 14 ARISTÓTELES, Política Texto 15 JOHN LOCKE, Origem, Extensão e Fim do Governo Texto 16 JEREMY BENTHAM, Fragmento sobre o Governo Texto 17 G. W. F. HEGEL, Filosofia do Direito Texto 18 ROBERT PAUL WOLFF, Em Defesa do Anarquismo Problema 7 A justiça distributiva Texto 19 JOHN RAWLS, Uma Teoria da Justiça Texto 20 ROBERT NOZICK, Uma Crítica a Rawls 5. Estética Problema 8 A natureza da experiência estética Texto 21 IMMANUEL KANT, Crítica da Faculdade do Juízo Texto 22 GEORGE DICKIE, O Mito da Atitude Estética Problema 9 A justificação do juízo estético Texto 23 DAVID HUME, Do Padrão do Gosto Texto 24 MONROE BEARDSLEY, Razões e Juízos Problema 10 A definição de arte Texto 25 ARISTÓTELES, Poética Texto 26 LEÃO TOLSTOI, O que é a Arte? Texto 27 CLIVE BELL, Arte e Forma Texto 28 MORRIS WEITZ, A Arte não pode ser Definida 6. Religião Problema 11 O sentido da vida Texto 29 LEÃO TOLSTOI, Confissão Texto 30 KURT BAIER, O Sentido da Vida Problema 12 A existência de Deus Texto 31 G. W. LEIBNIZ, Por que há Algo em Vez de Nada Texto 32 DAVID HUME, Uma Crítica ao Argumento Cosmológico Texto 33 SANTO ANSELMO, Proslogion Texto 34 GAUNILO DE MARMOUTIER, Em Defesa do Insensato Texto 35 WILLIAM PALEY, Desígnio Divino Texto 36 DAVID HUME, Uma Crítica ao Argumento do Desígnio Texto 37 IMMANUEL KANT, Deus como Postulado da Razão Texto 38 RICHARD SWINBURNE, O Argumento Moral Problema 13 O mal Texto 39 J. L. MACKIE, Mal e Omnipotência Texto 40 ALVIN PLANTINGA, Deus, a Liberdade e o Mal Problema 14 A racionalidade da fé Texto 41 TOMÁS DE AQUINO, A Razão não é Contrária à Fé Texto 42 SØREN KIERKEGAARD, Sem Risco Não Há Fé Texto 43 W. K. CLIFFORD, A Ética da Crença 7. Conhecimento Problema 15 A definição de conhecimento Texto 44 PLATÃO, Teeteto Texto 45 EDMUND GETTIER, É a Crença Verdadeira Justificada Conhecimento? Problema 16 A possibilidade do conhecimento Texto 46 SEXTO EMPÍRICO, Hipóteses Pirrónicas Texto 47 RENÉ DESCARTES, Penso, Logo Existo Texto 48 DAVID HUME, Da Filosofia Académica ou Céptica Texto 49 G. E. MOORE, Demonstração de um Mundo Exterior 8. Ciência Problema 17 A verificação das teorias científicas Texto 50 KARL POPPER, A Lógica da Investigação Científica Texto 51 WESLEY C. SALMON, Previsão Racional Problema 18 A objectividade científica Texto 52 THOMAS KUHN, Objectividade, Juízo de Valor e Escolha de Teorias Texto 53 LARRY LAUDAN, Ciência e Valores Prefácio para professores Este livro apresenta excertos das doze obras de referência das "Orientações para a Leccionação do Programa de Filosofia", assim como quarenta e um textos opcionais, abrangendo o Programa do 10.º e do 11.º anos. Cada secção do Programa é abordada partindo de um problema explicitamente formulado e brevemente explicado. Os textos escolhidos são respostas a estes problemas. Mais do que a mera contraposição de teorias e argumentos diferentes que respondem ao mesmo problema, procurou-se seleccionar textos que apresentem objecções às ideias defendidas nos outros textos. Assim, no que respeita à ética de Kant e Mill, por exemplo, não se inclui apenas excertos dos textos destes filósofos; inclui-se também textos centrais de crítica específica às suas teorias e argumentos. Deste modo, o estudante é confrontado com a filosofia tal como ela realmente é: um debate vivo entre filósofos, e não uma mera contraposição de diferentes "paradigmas" solipsistas. E para estimular o estudante a participar nessa discussão incluem-se questões de discussão. Cada secção é dedicada a um problema. Depois de alguns esclarecimentos sucintos sobre o problema, apresentam-se as ideias centrais dos textos escolhidos. Sempre que um filósofo surge pela primeira vez, é apresentado numa pequena nota informativa. Os textos são seguidos de: 1. Tarefas de contextualização: ajudam o estudante a encontrar informação complementar relevante; 2. Exercícios de interpretação: ajudam o estudante a compreender cabalmente o texto; 3. Questões de discussão: estimulam o estudante a avaliar criticamente as ideias defendidas nos textos; 4. Leituras complementares: ajudam o estudante a estudar autonomamente; 5. Recursos na Internet: ajudam o estudante a encontrar informação de qualidade em língua portuguesa; 6. Problemas: estimulam o estudante a elaborar pequenos ensaios. É importante sublinhar a diferença entre textos introdutórios e textos substanciais. Um texto introdutório (a que por vezes se chama "bibliografia secundária") consiste na exposição e explicação imparcial dos problemas, teorias e argumentos da filosofia; é o que o próprio professor deve escrever para os seus estudantes e que os manuais e livros introdutórios devem conter. Os textos introdutórios apresentam o contexto filosófico (que não se deve confundir com o mero contexto histórico) que permite compreender melhor os textos substanciais. Os textos substanciais (a que por vezes se chama "bibliografia primária") são aqueles nos quais os filósofos discutem em primeira-mão os problemas, teorias e argumentos da filosofia — discussão que os textos introdutórios têm por missão expor e explicar de forma imparcial. Os textos substanciais ilustram a realidade da discussão filosófica, tal como ela de facto ocorre ao longo do tempo. São substanciais porque não apresentam ideias que entretanto se tornaram razoavelmente consensuais em filosofia, mas antes aquelas ideias que fazem parte do núcleo vivo da discussão filosófica. As excepções são textos que apresentam resultados que entretanto se tornaram razoavelmente consensuais, mas cuja origem clássica se deseja que o estudante conheça; é o caso do excerto do Teeteto, de Platão, aqui incluído. Apesar de este diálogo apresentar uma refutação da tese de que o conhecimento é crença verdadeira justificada, ele é sobretudo conhecido como o locus classicus no qual se apresenta a ideia de que ser uma crença verdadeira justificada é uma condição necessária para o conhecimento, ainda que não seja suficiente. Seria um erro pensar que todos os textos da autoria de filósofos originais são substanciais; pois alguns filósofos originais escreveram livros introdutórios, como é o caso de Bertrand Russell, John Searle, Peter Singer, Thomas Nagel ou Simon Blackburn, entre outros. Na verdade, as "Orientações" indicam um texto que, sendo da autoria de um filósofo, não é um texto filosófico substancial; é, ao invés, um texto introdutório. Trata-se do texto de Searle, no qual este filósofo apresenta alguns aspectos centrais do problema do livrearbítrio. Seria igualmente um erro pensar que todos os capítulos ou textos incluídos em livros introdutórios da autoria de um filósofo original não são textos substanciais. Em alguns casos, os filósofos incluíram em livros introdutórios as suas ideias originais sobre uma dada área. É o caso do texto de James Rachels incluído nesta antologia: foi retirado de um livro introdutório mas trata-se de um texto filosófico substancial. Este capítulo surge também noutras antologias, precisamente porque apresenta importantes argumentos originais contra uma versão de senso comum do relativismo cultural — que, por ser algo ingénua, não é geralmente discutida pelos filósofos. Esta versão ingénua de relativismo cultural, que não é defendida por filósofos, deriva de trabalhos de antropologia cultural, em particular do trabalho de Ruth Benedict. Por se tratar de uma versão de senso comum de relativismo cultural, tem vantagens didácticas óbvias, pois vai ao encontro das intuições relativistas dos estudantes. O objectivo é fazer o estudante analisar criticamente as suas intuições de senso comum. Uma antologia tem por obrigação dar ao estudante uma visão correcta de alguns dos loci classici dos problemas abordados. Assim, seleccionaram-se aqueles textos que representam posições influentes no debate filosófico e são didacticamente apropriados para estudantes, e não os textos que os autores da antologia preferem por esta ou aquela razão. A selecção de textos é simultaneamente conservadora e inovadora. Conservadora porque na generalidade dos casos se procurou incluir apenas aqueles filósofos já familiares a grande parte dos professores — o que determinou a exclusão de muita da filosofia do séc. XX. Inovadora porque em alguns casos se incluíram textos que, não sendo familiares à generalidade dos professores, têm uma posição absolutamente central na tradição filosófica. Por exemplo, no Capítulo 7 (teoria do conhecimento) inclui-se um excerto do texto clássico de Sexto Empírico. Além disso, algumas áreas da filosofia sofreram desenvolvimentos de tal modo relevantes no séc. XX que nenhuma antologia pode dar uma visão correcta da área sem incluir esses filósofos; é o caso da estética (Capítulo 5). Porque a filosofia da religião é estudada no ensino secundário em opção concorrente com a estética, incluiu-se no Capítulo 6 alguns filósofos contemporâneos centrais mas pouco familiares. Deste modo, os dois capítulos têm uma certa harmonia e — mais importante — mostra-se claramente que é falsa a ideia de que a filosofia da religião é coisa do passado, ou um mero exercício escolar. Porque é importante que o estudante contacte com diferentes filósofos, privilegiou-se a diversidade. Assim, por exemplo, em vez de se incluir um texto de Hobbes como representante clássico do determinismo radical (Capítulo 1), optou-se por Espinosa porque Hobbes surge no Capítulo 3; em vez de se incluir a famosa e importante teodiceia de Leibniz ou de Swinburne, no Capítulo 6, optou-se por incluir Plantinga porque aqueles filósofos surgem já noutra secção do mesmo capítulo. Esta antologia segue de perto o programa do ensino secundário, e herda algumas das suas deficiências. Uma das mais óbvias é começar por uma disciplina excessivamente abstracta e especializada: a filosofia da acção. Seria mais avisado começar pelos valores, avançar para a ética e só então leccionar a filosofia da acção — ou nem sequer a leccionar, pois esta não é uma área da filosofia tipicamente leccionada a nível introdutório, por razões didácticas óbvias. Agradecemos a Faustino Vaz, Pedro Madeira, Célia Teixeira, Pedro Santos, Artur Polónio, Pedro Galvão, Rui Amado, João Dias Fonseca, José Carlos Soares, Maria José Vidal, Luís Gonçalves e Helena Melo as correcções, críticas e sugestões que muito nos ajudaram a melhorar este livro. Os erros que permanecerem são da nossa responsabilidade. Introdução para estudantes Nem sempre é fácil compreender os textos dos filósofos. Por um lado, tais textos não são, em geral, introdutórios. Ou seja, não foram escritos tendo em mente os estudantes que dão os primeiros passos na disciplina; pelo contrário, foram escritos tendo em mente os seus colegas, os outros filósofos. Por outro lado, quando uma ideia surge pela primeira vez, aparece com complexidades e dificuldades de expressão desnecessárias. Depois de uma ideia ter sido amplamente discutida e estudada é muito mais fácil simplificá-la e clarificá-la, distinguindo o importante do acessório; o papel do professor é precisamente fazer este trabalho de simplificação e clarificação. Assim, para compreender correctamente um texto filosófico é necessário ter a ajuda de livros introdutórios, dicionários de filosofia, manuais escolares e professores. Com essa ajuda, podem dar-se os primeiros passos na compreensão dos textos filosóficos. Este livro oferece vários tipos de ajudas para compreender os textos dos filósofos: 1. Os problemas a que os textos respondem são clara e previamente formulados; 2. As ideias centrais de cada texto são destacadas e explicadas brevemente; 3. As tarefas de Contextualização permitem encontrar informação relevante complementar para a compreensão cabal do texto; 4. As tarefas de Interpretação permitem testar a cabal compreensão do texto; 5. As Leituras complementares e os Recursos na Internet indicam leituras introdutórias esclarecedoras. Uma boa maneira de usar este livro é ler cada texto olhando a par e passo para as tarefas de interpretação. Desse modo, os aspectos mais importantes do texto tornam-se mais salientes, o que facilita a leitura. Para compreender correctamente um texto de um filósofo é necessário ter a experiência de pensar directamente nos problemas que tal texto procura resolver. Ao fazê-lo, compreendemos a que tipo de intuições o filósofo está a tentar dar voz. Quando os problemas da filosofia se tornam vivos para nós, compreendemos subitamente como um texto filosófico com mais de mil anos pode ser vivo e actual. Para ajudar a pensar directamente sobre os problemas da filosofia, este livro inclui questões de desenvolvimento: Discussão e Problemas. No primeiro caso, trata-se de discutir as ideias de cada um dos textos estudados; no segundo, trata-se de discutir o próprio problema a que os diferentes textos de cada secção respondem. Sobretudo no segundo caso, as respostas devem consistir em pequenos ensaios de cerca de setecentas palavras (cerca de página e meia), com base no estudo dos textos, leituras complementares e recursos na Internet indicados. As questões de desenvolvimento são de resposta aberta, diferindo das tarefas de Interpretação nos seguintes aspectos: 1. As respostas às tarefas de Interpretação estão quase na sua totalidade nos próprios textos. Para lhes responder pouco mais é necessário do que compreender cabalmente o que se leu. Isto não acontece no caso da Discussão nem dos Problemas. Nestes últimos casos, é necessário pensar por si e tomar posição; não basta estudar com atenção os textos. 2. As respostas correctas às tarefas de Interpretação não permitem grandes variações; há apenas um conjunto muito restrito de variações aceitáveis nas respostas. O mesmo não acontece no caso da Discussão nem dos Problemas; nestes casos, é possível responder correctamente de inúmeras maneiras — o importante é o modo como se argumenta a favor da resposta. 3. As respostas correctas às tarefas de Interpretação quase não exigem qualquer tipo de capacidade discursiva: basta dizer mais ou menos pelas mesmas palavras o que se acabou de ler. O mesmo não acontece no caso da Discussão nem dos Problemas, que exigem alguma capacidade discursiva. Isto é, exigem a capacidade para articular um pequeníssimo ensaio que responda ao problema. O que é a filosofia e como se estuda? A filosofia trata de problemas conceptuais e não formais. Como a matemática, a filosofia não é uma disciplina empírica; isto é, não trata de problemas que se possam resolver pela observação ou pela experimentação. Assim, a filosofia não é uma disciplina como a física ou a história, que são disciplinas empíricas. Contudo, ao contrário da matemática, a filosofia não se ocupa de problemas que possam resolver-se por meio de provas formais. Os problemas da filosofia só podem ser resolvidos por via da discussão racional cuidadosa e sistemática. É enganador pensar que os problemas da filosofia, por serem de natureza conceptual, não são verdadeiros problemas, ou não são problemas reais. O problema de saber se o aborto é eticamente permissível não é menos real só porque é um problema conceptual. Dizer que um problema é conceptual é só dizer que não é um problema susceptível de ser resolvido recorrendo à experiência ou ao simples cálculo — mas pode ser um problema real e importante. Acontece apenas que é um problema cuja solução depende fundamentalmente do pensamento, incluindo a avaliação crítica de pontos de vista diferentes. Há uma certa tentação popular para argumentar que não há problemas reais desse género; que todos os problemas reais são ou matemáticos ou empíricos. Mas esta posição não é susceptível de ser provada recorrendo à experiência ou à matemática. O que significa que mesmo quando tentamos argumentar contra a filosofia estamos a argumentar filosoficamente. Ora, é auto-refutante argumentar filosoficamente contra a filosofia, tal como seria auto-refutante refutar a astrologia com um argumento astrológico. Dizer que a filosofia trata de problemas conceptuais, e não empíricos, não é o mesmo que dizer que os filósofos desprezam a experiência quando procuram resolvê-los. Um filósofo cujas ideias contradigam frontalmente as nossas intuições mais fortes acerca da realidade tem de apresentar argumentos ainda mais fortes para explicar essa contradição. Do mesmo modo, um filósofo não pode defender ideias que contradigam ou ignorem a informação empírica e os conhecimentos mais solidamente estabelecidos pelas ciências empíricas. E em muitos casos, não é possível reflectir filosoficamente sem ter em conta ampla informação empírica; por exemplo, não é possível discutir o problema filosófico do estatuto moral dos animais não humanos sem ter informação sobre a biologia dos animais não humanos. A filosofia evoluiu bastante, sobretudo nos últimos cinquenta anos. Contudo, muitos dos problemas centrais da filosofia continuam em aberto — e são esses problemas que interessam aos filósofos. Assim, o estudo da filosofia é diferente do estudo que em geral se faz nas outras disciplinas. Quando se estuda história ou biologia, o que se exige do estudante, geralmente, é que compreenda os resultados hoje consensuais dessas disciplinas. Ao estudante não é, em geral, exigida uma atitude de investigação; tudo o que se lhe pede é que compreenda e formule as teorias e factos estudados. Em filosofia, pelo contrário, o que se pede ao estudante é fundamentalmente uma atitude de investigação: que pense por si mesmo e tome uma posição, ainda que só gradualmente o estudante aprenda a fazê-lo. Assim, o modo como se estuda filosofia é muito diferente do modo como se estuda história ou biologia. Estudar filosofia não é uma questão apenas de compreender e saber explicar os problemas, teorias e argumentos desenvolvidos pelos filósofos; estudar filosofia exige que se tenha uma atitude crítica e activa. Isto significa que não basta compreender os textos dos filósofos; é preciso saber discutir as ideias presentes nesses textos. Como se faz isso? Dado que a filosofia se ocupa de problemas, teorias e argumentos, para saber discutir as ideias dos filósofos é necessário saber trabalhar correctamente sobre estes três aspectos da filosofia. Vejamos cada um deles em separado. Problemas Para discutir correctamente as ideias dos filósofos é necessário compreender correctamente o problema que está em causa. Se não compreendemos que problema está o filósofo a tentar resolver num dado texto, não compreendemos muito bem o próprio texto. Neste livro, os textos são precedidos por breves explicações dos problemas em causa. Uma boa maneira de testar a compreensão dos problemas é procurar formulá-los de forma muito directa e clara numa única pergunta. É por isso que cada secção deste livro começa precisamente com uma pergunta; por exemplo: 1. O que é uma acção? 2. É o livre-arbítrio compatível com o determinismo? 3. Será que a diversidade cultural implica o relativismo cultural? Para compreender cabalmente a pergunta em causa é necessário esclarecer as noções ou conceitos relevantes para a sua discussão. Por exemplo, o que se entende exactamente por livre-arbítrio? E o que é ser compatível? E o que é o determinismo? A maior parte destas noções ou conceitos podem ser definidos ou caracterizados de forma clara, precisa e consensual. Por isso, não é sobre a definição ou caracterização genérica destas noções ou conceitos que se exerce a discussão filosófica. Tais conceitos são o que se chama noções de base: noções com as quais os filósofos, na sua maioria, concordam — precisamente para que possam estar a discutir a mesma coisa. Por exemplo, se os filósofos que defendem a existência de Deus e os que defendem a sua inexistência não estivessem a falar da mesma noção, não estariam de facto a discutir coisa alguma, pois nem sequer estariam a falar da mesma coisa. Todavia, muitas vezes a discussão filosófica exerce-se precisamente sobre noções muito centrais, mas muitíssimo difíceis de esclarecer correctamente: é o que acontece com as noções de acção ou arte, por exemplo. Deste modo, a definição filosófica de acção ou de arte é um problema em aberto e por isso se diz que essas são noções substanciais, para as distinguir das noções de base. As noções substanciais são noções cuja caracterização ou definição filosófica é amplamente disputada. Mesmo quando se discute noções substanciais, há certos aspectos dessas noções que são consensuais. Por exemplo, não há uma definição ou caracterização substancial de acção que seja consensual. Apesar disso, há vários aspectos consensuais na noção de acção: uma acção é um acontecimento, nem todos os acontecimentos são acções, a acção envolve intencionalidade, etc. Porque em filosofia quase todas as noções são disputáveis, é necessário ser organizado no modo como se discutem ideias. A discussão de ideias é em grande parte condicional ou hipotética. Isto significa que, para se poder discutir certos problemas, é necessário aceitar pontos de partida que noutras discussões podem ser colocados em causa. Mas não podemos colocar em causa tudo ao mesmo tempo porque isso impossibilita qualquer discussão. Para discutir um dado problema é preciso delimitar cuidadosamente o que está em discussão e o que é admitido sem discussão. Por exemplo, para discutir a questão de saber se a existência de Deus dá sentido à vida não é necessário aceitar que Deus existe realmente. Basta aceitar hipoteticamente a sua existência, e pensar a partir daí. Aceitar hipoteticamente algo que pensamos ser falso pode parecer um mero exercício escolar, sem qualquer interesse. Mas isto é uma ilusão. O que se pede em filosofia que aceitemos hipoteticamente são ideias que não são consensualmente falsas. O objectivo é explorar sistematicamente as consequências dessas ideias, pois uma boa maneira de testar ideias é ver até que ponto as suas consequências são plausíveis ou não — e se forem implausíveis, significa que temos de abandonar a hipótese de partida. É ingénuo pensar que o que pensamos ser obviamente falso é realmente sempre falso; por exemplo, pode parecer obviamente falso que a Terra se move, dado que não sentimos tal movimento — mas a Terra move-se. Entre outras coisas, a abertura de espírito é precisamente a capacidade para conseguir admitir a título de hipótese aquilo que pensamos ser falso e pensar cuidadosamente a partir dessa base. Do mesmo modo, é ingénuo pensar que o que pensamos ser obviamente verdadeiro é sempre verdadeiro; pensar filosoficamente implica muitas vezes derivar consequências indesejáveis ou comprovadamente falsas de hipóteses que pensávamos ser inquestionavelmente verdadeiras. Teorias Para discutir correctamente as ideias dos filósofos é necessário compreender cabalmente a teoria que o filósofo está a defender no texto em causa. Usam-se indiferentemente os termos "teoria", "tese" ou até "ideia" para referir o que os filósofos defendem. Em termos mais rigorosos, uma teoria é um complexo organizado de afirmações (uma teoria pode conter várias teses), ao passo que as teses ou ideias são apenas as posições dos filósofos, podendo não ter o grau necessário de complexidade organizada para serem verdadeiras teorias. Mas esta distinção não é relevante nesta fase do estudo. O importante é saber que, para compreender cabalmente uma teoria ou ideia de um filósofo, é necessário saber o seguinte: 1. Como se articulam os diferentes aspectos da teoria? 2. Como responde tal teoria ao problema filosófico que se propõe resolver? 3. A teoria é plausível? 4. A teoria é mais plausível do que as teorias alternativas? Assim, para testar a compreensão de uma teoria filosófica, o melhor é tentar explicar cuidadosamente estes aspectos. Ao fazê-lo, vê-se imediatamente que há muitas ideias semelhantes à teoria em causa, mas que podem ser diferentes em aspectos cruciais. É preciso saber distinguir as formulações correctas das teorias das formulações incorrectas mas que são subtilmente semelhantes às correctas. Por exemplo, a teoria consequencialista, em ética, não se caracteriza por defender que nada além das consequências tem importância moral, mas antes por defender que nada além das consequências tem importância moral primitiva. Esta última qualificação, a palavra "primitiva", faz uma enorme diferença. Clarificar e explicar estas diferenças subtis é uma boa maneira de garantir que se compreende cabalmente uma teoria. Argumentos É necessário procurar os argumentos ou razões que os filósofos apresentam a favor das suas ideias. Um argumento é muito diferente de uma simples afirmação. Uma afirmação ou proposição não nos dá qualquer razão para a aceitarmos; limita-se a declarar algo que pode ser verdadeiro ou falso (ainda que ninguém saiba se é verdadeiro ou falso). Eis alguns exemplos de afirmações: O livre-arbítrio é uma ilusão. A ética é relativa à sociedade. Não é possível definir a arte. Como se vê, podemos concordar ou discordar destas afirmações; mas as próprias afirmações não oferecem qualquer razão para as aceitarmos. As afirmações contrastam com os argumentos: Um argumento é um conjunto de afirmações de tal modo organizadas que se pretende sustentar uma delas (a conclusão) recorrendo às outras (as premissas). Eis um exemplo de um argumento: 1. A ciência mostra-nos que, à excepção do mundo atómico, tudo está causalmente determinado. 2. Se tudo está causalmente determinado, não pode haver livre-arbítrio. 3. Logo, não há livre-arbítrio. As afirmações 1 e 2 são as premissas; a afirmação 3 é a conclusão. Os argumentos, ao contrário das premissas e conclusões, não são verdadeiros nem falsos. Os argumentos são válidos ou inválidos. Um argumento é válido quando é impossível, ou muitíssimo improvável, que as premissas sejam verdadeiras e a conclusão falsa. Isto significa que quando um argumento é válido não podemos aceitar as premissas e rejeitar a conclusão. Mas quando um argumento é inválido podemos aceitar as premissas e recusar a conclusão. Não basta, contudo, que um argumento seja válido para ser bom. É preciso que seja também sólido: Um argumento sólido é um argumento válido com premissas verdadeiras. Um argumento sólido não pode ter conclusão falsa. Isto significa que, se estamos perante um argumento sólido, temos de aceitar a sua conclusão. Não basta, contudo, que um argumento seja sólido para ser bom. É preciso que, além de sólido, tenha premissas mais plausíveis do que a sua conclusão. Assim, para argumentar correctamente, é necessário usar argumentos sólidos com premissas mais plausíveis do que a conclusão. Quando as premissas não são mais plausíveis do que a conclusão, quem não concorda com a conclusão também não irá concordar com as premissas. É por isso que alguns argumentos sólidos não são bons. Por exemplo, o seguinte argumento não é bom, mesmo que seja sólido, porque as suas premissas não são mais plausíveis do que a sua conclusão: Se Deus existe, a vida faz sentido. Deus existe. Logo, a vida faz sentido. Neste caso, as premissas não oferecem boas razões para aceitar a conclusão, pois aquelas são, no mínimo, tão discutíveis como esta. Assim, é difícil fazer alguém aceitar a conclusão com base em premissas que suscitam tão grande discussão. A força de um argumento nunca é superior à força da mais discutível das suas premissas. Um argumento bom ou forte obedece a três condições: 1. É válido; 2. É sólido; 3. Tem premissas mais plausíveis do que a conclusão. Assim, ao discutir os argumentos dos filósofos é necessário não apenas saber se os seus argumentos são válidos, mas também se partem de premissas plausíveis — mais plausíveis do que a conclusão a que desejam chegar. Por exemplo, no texto 38, Swinburne levanta precisamente este tipo de objecção ao chamado argumento moral de Kant a favor da existência de Deus. Como se pode ver também neste texto, Swinburne apresenta uma interpretação do argumento de Kant, reconstituindo explicitamente as premissas e conclusão que poderão corresponder ao pensamento de Kant. Este trabalho de reconstituição de argumentos é fundamental em filosofia, mas não se deve confundir com a mera interpretação linguística. Ou seja, não se trata apenas de compreender cabalmente o que diz o filósofo que estamos a discutir, mas de reconstituir activamente os seus argumentos, de modo a que sejam maximamente plausíveis. Este tipo de trabalho faz-se mesmo que o texto original do filósofo não contenha argumentos explicitamente, interpretando as suas palavras da forma mais justa possível. E faz-se este trabalho para que possamos entrar em diálogo com o texto desse filósofo. Caso contrário, tudo o que poderíamos fazer seria concordar ou discordar, sem qualquer fundamentação. Para podermos discutir a posição de um filósofo temos de apresentar argumentos a favor ou contra essa posição — quer o filósofo em causa tenha apresentado argumentos, quer não. Por vezes, as teorias não são defendidas directamente com argumentos; o único argumento a favor da teoria é o seu poder para resolver o problema que se propunha resolver. Neste caso, discute-se a questão de saber se a teoria resolve realmente o problema em causa, se provoca outros problemas piores ou se exige que aceitemos ideias muitíssimo implausíveis. Tomar posição Diz-se que a filosofia é "o lugar crítico da razão", uma expressão algo pomposa. Mas que quer isto dizer? Quer dizer que em filosofia, como começámos por explicar, se exige aos estudantes que tomem uma posição crítica — e não apenas que compreendam o que dizem os especialistas, como é comum ao estudar matemática ou história. Imaginemos que vamos ao médico porque temos um problema muito complicado. Tão complicado que exige um estudo muito atento da parte do médico — e talvez diferentes médicos tenham diferentes opiniões sobre o nosso problema. Há dois tipos de reacções do médico que não desejamos. Não queremos que o médico se limite a dizer o que vem nas enciclopédias e livros de medicina; isso poderíamos nós fazer calmamente em casa. Queremos que o médico tome uma posição pessoal: que faça um diagnóstico. Mas também não queremos que tal diagnóstico seja feito na mais completa ignorância da ciência médica e sem qualquer reflexão por parte do médico: para ter palpites desses não iríamos ao médico, pois até o padeiro nos pode dar palpites desse género. Em suma, não queremos que o médico recite enciclopédias nem que dê palpites de amador. Queremos uma opinião pessoal, certamente, mas uma opinião profissional. Ou seja, uma opinião baseada 1) num conhecimento sólido da medicina e 2) numa reflexão sistemática do médico. Alguns estudantes ficam surpreendidos quando descobrem que em filosofia têm de dar a sua opinião, não se tratando apenas de compreender e explicar o que pensam os filósofos. Só que os estudantes têm muitas vezes uma ideia errada do tipo de opinião que lhes é exigida. O tipo de opinião que se pede em filosofia é o mesmo tipo de opinião que pedimos ao médico: uma opinião profissional. No nosso caso, uma opinião é profissional quando se baseia num conhecimento amplo dos problemas, teorias e argumentos da filosofia relevantes para o tema em causa, e quando resulta de uma reflexão sistemática. Isto não significa que não se possa concordar com um dado filósofo em relação a certo aspecto. Significa apenas que, se concordamos com ele, temos de dar razões para isso. E essas razões não podem consistir na mera repetição das razões do filósofo; ao invés, têm de resultar de uma opinião reflectida e têm de ser as nossas razões. Isto significa que as opiniões "filosóficas" que temos antes de estudar filosofia não são opiniões profissionais, precisamente porque antes de estudar filosofia não temos um conhecimento mínimo dos conteúdos centrais da disciplina; não sabemos o que pensam os grandes filósofos do passado e do presente; e não se reflectiu de forma sistemática sobre o tema em causa. Só quando se faz tudo isto podemos ter uma opinião profissional sobre os temas da filosofia. Ajudar a dar os primeiros passos nesta direcção é o que este livro procura fazer. Obras de consulta Almeida, Aires (org.) (2003) Dicionário Escolar de Filosofia. Lisboa: Plátano. Kenny, Anthony (1998) História Concisa da Filosofia Ocidental. Lisboa: Temas & Debates, 1999. Leitura complementar Kolak, Daniel e Martin, Raymond (2002) Sabedoria sem Respostas: Uma Breve Introdução à Filosofia. Lisboa: Temas e Debates, 2004. Warburton, Nigel (1995) Elementos Básicos de Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1998. Nagel, Thomas (1987) Que Quer Dizer Tudo Isto? Uma Iniciação à Filosofia. Lisboa: Gradiva, 1995. Recursos na Internet A Arte de Pensar: Site Oficial. Crítica: Revista de Filosofia e Ensino. Filosofia e Educação.
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