livro – o amor e suas variantes

Transcrição

livro – o amor e suas variantes
O amor
e suas variantes
Textos por Tati Bernardi
São Paulo | Editora Panda Books 2011
Projeto Gráfico:
Ilustração Capa:
Ilustração Miolo:
Diagramação:
Revisão:
Formatação:
Marina Lacerda
Marina Lacerda
Nathalia Queiroz
Marina Lacerda
Marina Lacerda
Marina Lacerda
© 2011, Editora Panda Books | © 2011, Tati Bernardi
Este livro ou parte dele só poderá ser reproduzido mediante citação da fonte.
O amor e suas variáveis | Tati Bernardi - São Paulo:
Editora Panda Books , 2011.
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Sumário
Apresentação
7
Texto 1
O amor
9
Texto 2
Eu preciso saber
11
Texto 3
Na fila do supermecado
15
Texto 4
O único lugar pra sempre
19
Texto 5
Tudo errado
23
Texto 6
O homem mais bonito do mundo
25
Texto 7
Sexo
29
Texto 8
Insuportável
32
Texto 9
Música
35
Texto 10
A louca do jardim
37
Texto 11
Vencedor
41
Texto 12
À espera de Leopoldo
43
Texto 13
Isso não é amor, menina
45
Texto 14
Consideração
49
Sobre a autora
56
Memorial Descritivo
58
Apresentação
O amor e suas variantes é um livro que reuni quatorze
textos de tamanhos pequenos à medios, que abordam
o amor de diversas formas. Foram todos escritos pela
escritora Tati Bernadi e publicados pela mesma em seu site.
O interesse pelos textos dela partiu do encanto pelo
modo natural, espontâneo e engraçado que ela escreve;
onde estes são adjetivos semelhantes na definição, mas
tratande-se de Tati Bernardi cada um insere-se em algum
trecho de seus textos.
Com a intenção de homenageà-la, reuni quatorze textos
que relatam o amor de diversas formas e os sentimentos
variantes à ele. São textos que descrevem amor de amigo,
amor eterno, amor de uma noite, amor platônico e até
amor que nem existe, mostrando assim que o amor está,
ou pelo menos deveria estar, em quase todos os momentos
que nos acontecem.
Por fim é um livro que tem o objetivo de entreter e
mostrar o trabalho incrivel de uma escritora que esquece a
razão na hora de escrever.
7
O amor
Semana passada liguei pro meu melhor amigo e convidei
para um cinema. A gente não se falava desde o ano novo,
quando tudo deu errado pro nosso lado. De tempos em
tempos sumimos, falamos umas coisas horríveis de quem
se conhece demais. Ele topou desde que fosse daqui pra
frente, preguiça de conversar da briga e tal. E fomos. Cheguei
antes, comprei. Ele chegou depois, comprou água. Porque
eu comprei os ingressos, ele comprou também uns doces e
disse que pagaria o estacionamento. Porque ele pagaria o
estacionamento, eu disse que daria a carona da volta. E com
meu coração tão calmo eu voltei a sentir o soninho de sofá de
casa com manta que sinto ao lado dele. A gente não se beija
nem nada, mas quando vai ver pegou na mão um do outro
de tanto que se gosta e se cuida e se sabe. Já tivemos nossos
tempos de transar e passar nervoso e aquela coisa toda de
quem ama prematuramente. Mas evoluímos para esse amor
que nem sei explicar. Ele me conta das meninas, eu conto
dos caras. Eu acho engraçado quando ele fala “ah, enjoei,
ela era meio sem assunto” e olha pra mim com saudade.
Ele também ri quando eu digo “ah, ele não entendeu nada”
e olho pra ele sabendo que ele também não entende, mas
pelo menos não vai embora. Ou vai mas sempre volta. Não
temos ciúmes e nem posse porque somos pra sempre. Ainda
que ele case, more na Bósnia, são quase quinze anos. Somos
pra sempre. Ele conta do filme que tá fazendo, eu do livro. Os
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mesmos há mil anos. Contar é sem pressa de acabar. Se ele
me corta é como se a frase que eu fosse falar fosse mesmo
dele. É um exibicionismo orgânico, como se meu silêncio
pudesse continuar me vendendo como uma boa pessoa. São
quinze anos. É isso. Ele me viu de cabelo amarelo enrolado.
Eu lembro dele gordinho e mais baixo. Ele sempre comprou
meus testes de gravidez, mesmo a suspeita nunca sendo
nossa. Eu já fui bem bonita numa festa só porque ele queria
me fazer de namorada peituda pra provocar a ex mulher.
Minha maior tristeza é que todo novo amor que eu arrumo
vem sempre com algum velho amor tão longo e bonito. E
eu sofro porque com pouco tempo não consigo ser melhor
que o muito tempo. E de sofrer assim e enlouquecer assim,
nunca dou tempo de ser muito para esses amores porque
estrago antes. Mas meu melhor amigo é meu único amor. O
único que consegui. Porque ele sempre volta. E meu coração
fica calmo. E ele vai comigo na pizzaria e todos meus amigos
novos morrem de rir porque ele é naturalmente engraçado
e gente boa e sabe todos os assuntos do mundo. E todo
mundo adora meu melhor amigo. E eu amo ele. E sempre
acabamos suspirando aliviados ‘‘alguém é bobo como eu,
alguém tem esse humor’’ e mais uma vez rimos da piada
que inventamos, do pai que chega pro filho e fala: sua mãe
não é sua mãe, eu transei com outra. E esse é meu presente
dessa fase tão terrível de gente indo embora. Quem tem que
ficar, fica.
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Eu preciso saber
A recaída de amor acontece como num daqueles
pesadelos que se está caindo. De repente você acorda
sentado na cama: Meu Deus, eu preciso saber! Mas se eu já
estava tão bem há semanas. Volte a dormir, volte a dormir.
Você já tinha decidido lembra? Nada a ver com você, chato,
bobo, não deu certo. Mas eu preciso saber. Não, não precisa.
Pra quê? Vai te machucar. Não! Eu preciso saber. Então
levanto da cama. Facebook, a desgraça em formato de
parquinho virtual. Nome dele, aparece a foto azulada e ele
de perfil. É tão bonito. Mas não há mais nada que eu possa
ver. Nos deletamos mutuamente pra evitar justamente esse
tipo de inspecão noturna. Mas isso não vai ficar assim. Ligo
pra nossa amiga em comum. Ela não atende, afinal, são duas
da manhã. Mando mensagem ‘‘me manda sua senha do
Facebook agora ou vou ficar te ligando até amanhã cedo’’. Ela
manda a senha e um palavrão. Acesso. Vamos ver. Eu preciso
saber. Eu preciso. Então vejo que ele não posta nada há cinco
semanas. Fotos, fotos. A única foto nova é o flyer de uma
festa que eu fui e ele não estava. Nada. Jogo o nome dele no
Google. Aparece uma foto dele alcoolizado dando entrevista
em uma festa de mídia. Como é lindo. Tento o Twitter mas
ele só escreve piada de político. Tento o Facebook, Twitter
e blogs de amigos. Está ficando tarde. Se eu tivesse essa
mesma concentração e minuciosidade e empenho e energia
para o trabalho estaria rica. Estou retesadamente motivada
e atenta. Mas não consegui nenhuma informação e eu
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ainda preciso saber. São seis da manhã. Estou cansada.
Coloco a música de quando você forçou a porta do quarto e
entrou. Black Swan. Não sou boa de inglês como você, mas
sei que é a história de algo que já começou fodido porque
cresceu demais antes da hora, você que pegue um trem e
suma daqui. Que bela música pra começar. Ok, agora estou
chorando. Lembrei que eu me sentia tão viva com você me
olhando bem sério e bem no fundo dos olhos e machucando
meu braço. Sim, é definitivamente uma recaída e eu acabo
de decidir que te amo mais que tudo no universo e que
amanhã, ou hoje, porque já são sete e meia da manhã,
vou resolver isso. Agora preciso dormir só um pouquinho.
Volto pra cama. Coração disparado. Não tem posição na
cama. O que eu faço? Não tô a fim de ler, não tô a fim de
ver TV. Aquelas outras coisas que se faz pra acalmar tô com
preguiça agora, minha imaginação está indo toda para traçar
um plano para que eu descubra. Descubra o quê? Não sei,
mas sei que algo está acontecendo, ou eu não estaria assim.
Porque eu sinto quando ele está com alguém, sabe? Eu sinto.
Sim! A cartomante! Ligo pra Zuleide. Você atende hoje? Mas
é domingo, Tati! Atende? Só se for por telefone. Tá bom,
então joga aí: ele está com alguém? Mas Tati, você quer
mesmo saber isso? Quero, mulher. Eu preciso saber. Joga
aí: ele está com alguma puta? Tati, eu não posso perguntar
isso pras cartas. Pergunta aí: ele tá com alguma piranhuda
desgraçada vagabunda vaca dos infernos? Zuleide pede
desculpas e desliga. Preciso do Lexapro mas ele acabou há
semanas, igual meu amor. E agora, de repente, preciso tanto
dos dois novamente. Você acha que ele está com alguém?
Não sei, Tati, eu ainda tô dormindo, posso te ligar mais
tarde? Você acha que ele está com alguém? E se estiver, Tati,
quer ir ao cinema mais tarde? Você acha que ele está com
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alguém? Putz, sei lá, homem sempre tá comendo alguém
né? Você acha que ele está com alguém? Tati, do jeito que
ele gostava de você? Claro que não! Chega, chega. Preciso
me acalmar. Pra que isso? Se ele estiver com alguém agora, e
daí? Terminamos não terminamos? Ele e eu não temos nada
a ver, certo? Decidimos que era melhor assim, certo? Eu não
tava bem com ele e nem ele comigo, certo? Porque era bom
e tal. Aliás, meu Deus, como era bom. Mas não era bom pra
ficar junto, certo? Então pronto. Chega. Adulta, adulta. Qual
o problema se ele estiver agora, justamente agora, lambendo
a virilhazinha de alguma desgraçada? Qual o problema? Ok,
eu posso morrer. Eu definitivamente posso morrer. Chega,
vou acabar com essa palhaçada agora mesmo. Tomo banho,
me visto, pego a bolsa, entro no carro. Considerando que
ele não mora em São Paulo, não sei exatamente o que eu
pretendo com isso. Mas me faz bem enganar o cérebro e
fazer de conta que estou indo atrás da verdade. Na verdade
vou só na casa de outro, preciso fazer qualquer coisa que
não seja sofrer, mas não consigo. O outro não conhece
Black Swan, não ri da história da Zuleide, não me aperta o
braço. Volto pra casa, destruída. Sinto tanto amor dentro
de mim que posso explodir e bolhas de corações vermelhas
atingiriam o Japão. Quase não consigo respirar. Chega,
chega. Ligo pra ele. Ele não atende. Ligo de novo. Ele atende
falando baixinho. Você está com alguém? Estou. Desligamos.
Pronto, agora eu já sei. Depois de um final de semana inteiro
de palpitacões, descargas de adrenalina, músicas, textos,
amigos, danças, gritos, sensações, assuntos, choros, dores,
vida. Agora eu já sei. O que eu nunca vou saber é porque
faço tudo isso comigo só porque tenho tanto pavor do tédio.
Era só isso o que eu precisava saber.
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Na fila do supermercado
Quando ele colou meus livros na boca eu entendi que era
uma maneira de encostar em mim sem encostar em mim.
Ele tava de ressaca de pinga e eu de tudo. Não era pra gente
se beijar. Apesar de eu estar fazendo bico sem parar, uma
mistura de vontade de chegar mais perto com vontade de
me proteger. Ele se desculpava pelo cheiro e pela cara feia. E
eu não desculpava nada. Era tudo tão bom. O cheiro e a cara
feia. Tudo tão bom e nada feio. Seu nariz ganhou o prêmio
de melhor coisa do ano. Eu disse e ele riu. E já que ele não
trouxe a gaita, que pelo menos fizesse a dancinha pra mim.
E ele quase fez mas foi mexer nos meus livros e eu tive a
idéia de emprestar meu amado Martin Page só pra depois
ter desculpa de pegar de volta. E ele topou. É um livro sobre
como tudo é insuportável e a gente quer morrer mas de
repente tudo fica incrível e a gente quer viver. E ele entendeu.
E melhor uma das primeiras visitas pra minha casa nova não
podia ter. Mas já? Já? E então ele tomou minha água de coco
e foi ficando melhor. E eu fui ficando melhor. Ressaca passa.
É isso, simples. Você pensa que vai morrer, mas passa.
As mulheres não me aguentam porque sou muito
desligado. Ele disse. Os homens não me aguentam porque
sou ligada demais. Coisas soltas ditas enquanto ele me
contava que tinha o pôster do ‘‘Homem que amava as
mulheres’’ igual ao meu e gostava de House. Você vai na
minha casa um dia? Claro. Você vem na minha de novo?
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Claro. A gente vai se ver o ano que vem? Claro. Adoro coisas
claras. Mas já? E então ele pediu dedicatória e eu comecei a
chupar a caneta. E ele continuava encostando meu livro na
boca. Até que a gente percebeu e deu risada. Essa coisa é
mesmo absurda. Mas já? Tô achando minha dor duvidosa,
porque agora, por exemplo, não tenho dor nenhuma. E ele
riu e disse que também não tinha dor nenhuma naquele
momento. E quando ele riu, eu percebi. Eu percebi que eu
estava na merda. Porque adoro esses caras que dão risada
com a cara inteira mas continuam com os olhos um pouco
tristes e parados. E adoro que a ressaca dele não permitia
muita emoção e por isso ele fechava um pouco os olhos e
ficava quietinho. É impressionante como eu não gosto de
ninguém mas, de vez em quando, escapa um momento, um
gesto, uma pessoa perdida e linda e única. E eu fico nessa
felicidade de ser uma pessoa boa e capaz dessas coisas boas.
E então eu contei pra ele que não fumava e ele que já tinha
tomado drogas pesadas com aquele cantor fodão que faz as
mulheres ajoelharem. E dos amigos que morreram e tudo
muito rock and roll e achei divertido se é que se pode achar
isso. Eu nunca namorei escritoras. E eu que nunca namorei.
Acho. E então falamos do melhor japonês do bairro e do
melhor livro do Philip Roth e ele confundiu Quarto do Filho
com filho do quarto e quase falou mal do John Fante e de
repente tudo ficou tão bem, tão bem. Mas já? Todo mundo
é um pouco triste e um pouco louco e já estava muito tarde.
E na televisão tava passando um filme brasileiro idiota. E
ele imitou viado pra mim, porque achei o fim do mundo ele
ser um comunista rock and roll que fala francês e gosta de
coelhinhos. E tudo era legal, tudo, qualquer coisa nele é tão
legal. Vai da camisa até o nariz. E do jeito dele falar até o
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tempo todo que ele fica quieto. É tudo tão legal. E a força
que saia de dentro dele aquele dia e agora ele sem forças. E
tudo forte e ao mesmo tempo eu quase com sono e calma.
E de como ele fala de coisas terríveis quase sorrindo. E de
como ele diz que me liga em meses e liga no dia seguinte.
E de como ele chegou até aqui completamente bêbado e
completamente bom moço. E de como ele disse, da maneira
mais sensual do mundo, que queria, um dia, fazer sacanagens
meigas comigo. E eu perguntei se eram bregas, os textos. E
ele disse que eram no limite, porque ninguém diz verdades
sem ser. E nada disso me descontrolou porque a voz dele é
quase uma meditação. E ele disse que precisava me contar
uma coisa que ia me deixar triste. E eu disse vai com tudo. E
ele disse que não tinha nenhuma música falando «na fila do
supermercado». Eu tinha imaginado tudo. Era outra frase,
era outra coisa, eu tinha imaginado tudo. É isso que eu faço,
baby. Eu imagino tudo. A sua profissão é escrever para os
outros imaginarem, a minha é imaginar para eu escrever. E
ele me achou inteligente e eu adoro isso porque é um tipo
de sexo que se faz que não enlouquece e nunca sacia. E ele
ficou melhor e foi embora. E eu fiquei melhor e voltei. Não
quero mais morrer, eu só quero meu livro de volta. Viver é
bom demais.
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O único lugar pra sempre
Mesmo sabendo que eu colocaria em risco essas coisas
que faço e me soam tão bem. O Pilates, por exemplo, que
faço às terças e quintas duas horas após almoçar na minha
mãe. Isso me parece um pedaço agradável de uma agenda
encantada, dias felizes, nada demais. A aula de dança das
segundas e quartas, a acupuntura da sexta, a análise quinta
cedinho, o parque do sábado a hora que der na telha, o
japonês com a Letícia, meu emprego na televisão e na
editora que me permitem mandar em boa parte do meu
tempo sem ser, por isso, uma louca duranga, o costume
de escrever até tarde ouvindo Beck ou Antony and the
Johnsons, os mocinhos que aparecem, com intervalos de
dez ou vinte dias, e me abastecem de um gostar possível e
descartável, algum bar chato que serve pra me tirar de casa
e até mesmo rir de um ou outro ser humano mais parecido
com o que eu acho que deveria ser um ser humano. Nada
disso me soa banal e aprendi mesmo a chamar de minha
vida. Agora serão dias achando tudo idiota e até mesmo
medíocre. O Pilates, os almoços em família, os bares, tudo
uma tortura. Ainda assim, mesmo sabendo que depois é
cheia de dor que carrego minhas horas, ainda assim eu cortei
o cabelo um dia antes e comprei uma jaquetinha preta em
promoção. Ainda que sentir de verdade pareça uma outra
vida, às vezes cansa viver dentro das coisas que invento. Com
você, mesmo eu inventando tudo também, dá pra ter essa
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sensação de desordem, atropelamento, vida dizendo e não
minha cabeça falastrona. Mesmo sendo ofensivo pra minha
existência que pessoas como você existam. Mesmo que sua
tristeza e preguiça e desistência mostrem pra minha frescura
de sentidos como tudo pode ser amargo e pior: mostre que
tudo sempre foi e eu é que, vai ver, sou forte ou abençoada
demais pra não sucumbir. Mesmo que sua alegria nunca
seja por mim. E que sua alegria torne, quando por mim,
minha vida intolerável. Sua existência é um absurdo e isso
é a maior verdade que me vem à mente quando penso em
você ou estou ao seu lado. Passamos a tarde juntos. Foi leve
e eu estava quieta, coisa que nunca aconteceu nenhuma
das vezes que saímos. Eu estava sempre histérica e hoje eu
estava muito quieta, até demais. Talvez seja porque eu não
tenho mais a euforia louca de ser amada. Eu piro quando
alguém me ama e ao ver em você a calmaria dos vencedores
corriqueiros, larguei o corpo. Acabou sendo boa, a sensação
de tarde ordinária, encontro ordinário. Eu pude habitar o
papel de amiga caminhando ao lado, uma forma de ouvir
por perto sua respiração pigarrenta que amo como se fosse
o único sopro saudável do mundo. Eu permaneci e isso foi
diferente, triste, insuportável, mas possível. Como os mortos
que ficam em qualquer lugar, até mesmo embaixo da terra.
Morto não deseja e por isso mesmo permanece. Acho que
seu desejo morreu e talvez o meu também, já que boa parte
desse amor enorme que eu sentia e sinto por você, vinha e
venha da minha alegria desmesurada em me sentir amada
pelos meus próprios sonhos. Você encerrava em mim eu
mesma e era uma loucura tudo, como eu sentia, como eu
queria me vomitar e ensanguentar e explodir e rodopiar
em mim até furar o chão como uma broca desgovernada
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e depois sair derrubando o mundo como o único pião que
sabe a verdade e precisa chacoalhar seu entorno pra não
enlouquecer sozinho. Era uma loucura tudo. Mas a morte,
o fim, nós, andando calmos, ao lado um do outro, isso me
permitiu estar de alguma forma sem querer habitar cada
instante do estar e para isso me retirando o tempo todo. E
isso pode ser viver mas viver é terrível. E antes, quando eu
não sabia viver e me sentia amada, era ainda mais terrível.
Daí que sobra essa sensação de uma solidão filha da puta mil
vezes pois em nada dá pra ser com você. E tudo bem, não é
você, nunca foi, mas escuta a maluquice: é que nada disso
impede que eu sinta um amor absurdo por você. Me peguei
uma hora, olhando você, andar, tão feinho, seu ombro
encolheu um pouco, cada dia que passa mais e mais é uma
concha o que você se torna. Dessas que é mentira a pérola e
o som do mar, mas eu os vejo, o tempo todo. Você andando
desse seu jeito meio de louco, que chacoalha a cabeça. E
se veste mal quando pouco se importa, eu sei, eu entendi.
E a manga suja de café. A roupa bege da cor de tudo que é
você. Você é tão errado e cheio de estragos. E me peguei
olhando pra tudo isso e amando tanto, tanto, tanto. Como se
nada mais no mundo fosse tão bonito ou correto ou mesmo
perfeito porque perfeito é o que não tem mesmo cabimento.
O resto nem existe porque vemos ou explicamos. Na sua
varanda sem céu, certa vez, você se sentou naquela cadeira
sem fundo. Me colocou no seu colo e me deu o abraço que
disparava corações em mim como se eu tivesse um em cada
nó de veia. E me disse, com sua voz tão bonita, a mais bonita
que eu já ouvi, que eu tinha subido todos os seus andares. Eu
entendi que você era o homem da cobertura de aço e eu uma
espécie rara de passarinho que tinha algum tipo de chave que
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se autodestruiria em poucos segundos. E eu entendi também
que agora que tinha chegado ali, só me restava pular, já que
ninguém aguenta o alto tão alto muito tempo. A vertigem
que era o nosso amor. Minhas olheiras, meu cansaço, meus
quarenta e dois quilos. Eu poderia morrer porque você tinha
uma carninha mais mole atrás da sua orelha direita e isso
me impossibilitava, dia após dia, que eu vivesse sem sentir
você o tempo todo. Mas quem é mesmo que morre dessas
coisas? Não, não podemos, com tanta coisa pra fazer, os
meninos de dez a vinte dias, os bares, e almoços, o Pilates,
a dança, os empregos, escrever, tudo isso que é minha vida
antes e depois de você. Tudo isso que daqui a pouco, quando
a sensação desgraçada de absurdo e solidão passar, tudo isso
volta, se acomoda, a agenda mágica, o gostosinho no peito,
esquecer você todo dia um pouco pra vida e todo dia muito
pro dia. Mas agora, hoje, guarda isso, eu amo demais você.
Por que escrevo? Porque é a minha vingança contra todas as
palavras e sensações que morrem todos os dias mostrando
pra gente que nada vale de nada. Toma esse texto, o único
lugar seguro e eterno pra gente.
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Tudo errado
A primeira parte da primeira vez que fomos jantar foi um
completo fracasso. Eu escolhi o restaurante, eu peguei ele
em casa, eu paguei a maior parte da conta porque “você que
inventou de pedir o vinho” e ele estava muito mal vestido e
não tinha tomado banho depois de um dia inteiro de trabalho.
Erro, erro, erro. Assim que paguei sozinha o manobrista
e me vi andando na chuva até ele, que aguardava o carro
tranquilamente embaixo de um toldo, tive a certeza: esse não
serve nem pra amigo que você cumprimenta quando cruza
na rua uma vez a cada quinze anos. Mas eu estava uns bons
meses sem transar, sem o menor saco de conhecer gente
nova, sem a menor cara de pau para ligar para ex namorados
e ele havia sido recomendado por amigas limpinhas “vai que
é bom” e, por total falta de opção numa terça fria, deixei ele
subir no meu apartamento. Na manhã seguinte, já éramos
melhores amigos. Cantamos todas as músicas do Radiohead
tão alto que a vizinha de baixo bateu com o cabo da vassoura
no teto. Fizemos campeonato de quem imitava melhor
a dança epilética do Ian Curtis, falamos mal das meninas
que usavam saltos muito altos nos domingos ensolarados,
pulamos de alegria quando descobrimos que estávamos
lendo o mesmo livro do Philiph Roth e ele instalou todos os
aparatos eletroeletrônicos que, assim como eu, aguardavam
um homem inteligente dentro de uma caixinha semi aberta.
Ele foi embora se despedindo de mim com um beijo amigo
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e pela primeira vez na vida achei essa ideia ótima “ele está
indo embora sem promessas de amor eterno e eu não estou
sofrendo nem um pouco com isso”.
Sem mensagenzinhas de carinho ou e-mails fofos,
seis dias depois nos encontramos de novo para mais uma
maratona de sexo sem amor, e assim ficamos por uma vida.
Com intervalos para quando ele arrumava uma namorada ou
eu achava que arrumava um namorado. Era leve, divertido,
gostoso e uma experiência incrível para a minha pessoa
ciumenta: eu ajudava ele a paquerar em baladas e me
divertia quando ele ligava na manhã seguinte “a mala da mina
apaixonou, e agora?” E agora vamos no cinema mais tarde.
E pronto. Esse ano ainda não havíamos nos encontrado.
Ele porque arrumou uma mulher bem ao seu estilo (que
escolhe restaurante que aceita Visa Vale, usa chinelas crocs
com meias de lã coloridas e super se preocupa mesmo com
aquelas passeatas dentro do prédio de sociais da USP) e eu
porque estava tão apaixonada por outra pessoa que preferia
deitar na cama sozinha, só com a voz dele do outro lado da
linha, a milhões de quilômetros de mim.
Ontem nos encontramos numa festa de um amigo em
comum. Ele estressado, com a menina ciumenta ligando
no seu celular de meia em meia hora; e eu pelos cantos,
suspirando por mais um amor perdido pelo excesso. Ficamos
abraçados por horas. Meu coração não disparou e nem o
dele. E só por isso o abraço durou tanto.
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O homem mais bonito
do mundo
Uma vez eu conheci o homem mais bonito do mundo.
Eu estava sentada no chão de uma festa com pocinhas. Toda
festa de jornalista forma pocinhas, pode reparar. E ele veio
falar comigo “vai molhar a calça”. Ah, mas vou mesmo. Se
tratava do homem mais bonito do mundo, eu não tinha
nenhuma dúvida. Quem poderia ser mais bonito do que ele?
Javier Bardem? Não. Basta vê-lo no filme da cólera pra saber
o potencial que ele tem pra feiúra. O Brad Pitt? Eu prefiro
os morenos. O Jesus Luz? Acho fraco, ele tem aquele lapso
de vergonha suburbana no branco dos olhos. Não gosto de
homem que se sente devendo algo ao cosmos. Homem que
faz pose de topo de cadeia alimentar mas sofre as dores de
uma coluna ainda arredondada pelo começo da evolução.
Enfim, tratava-se do homem mais bonito do mundo. E
ele veio falar comigo. E eu estava sentada no chão. E ali
mesmo trocamos uns beijos e telefones e confissões e eu
lembro que, apesar de estar com muito sono e cansaço e
desesperança com a vida, fiquei tentando descobrir o que
um homem daquele nível supremo de beleza (um metro e
noventa, olhos azuis, cabelos castanhos cacheados, ombros
que iam até o Chile) tinha visto numa garota bem mediana
que estava sentada no chão em um dos dias de menor brilho
de sua carreira social. Apliquei o teste do cotovelo durante
o beijo (a leve roçadinha sem querer pra saber se o membro
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promete ou não promete). Apliquei o teste da sapiência
média (você comenta que quando você olha pro abismo, o
abismo olha pra você, e espera pra ver se ele tem alguma
cultura de filosofia de almanaque). Apliquei o teste da bobeira
erudita, uma merda qualquer que você lança no ar tipo “ai
que vontade de chafurdar por essas lamas universais” e se
o cara for minimamente interessante ele compra a besteira
e devolve uma outra melhor ainda. Se ele for um tapado
ele ri e fala algo idiota tipo “quero o mesmo que você está
tomando” e daí você sabe que está, novamente, sozinho
no mundo. Como sempre. E ele, do alto de sua absurda e
dolorosa beleza, foi tirando nota sete e meio em todos os
quesitos. Devolveu uma besteira à altura, conhecia frases
pessimistas perfeitas para uma noite estrelada e passou com
certo louvor no teste do cotovelo. No dia seguinte, já pela
manhã, chegou uma mensagem de texto do homem mais
bonito do mundo “quero te ver”. E foi então que resolvi pedir
ajuda. Juntei a mulherada em casa. E todas nós, em silêncio,
começamos a “googla-lo”. Até que uma foto bem grande,
dele só de bermuda, sorrindo, ocupou a tela inteira e o
coração de todas nós. Algumas suspiraram. Algumas tiveram
ataque de riso nervoso. Uma ficou bem irritada e foi embora.
Outras me olharam com a miopia bem apertada tentando
descobrir que é que eu tinha pra merecer aquilo tudo. Ele
era realmente o homem mais bonito do mundo. Todas
concordaram. Não existe homem mais bonito do que esse e
talvez nunca existirá. E, ao que tudo indica, trabalhador, com
amigos do bem, amante da natureza e das crianças. A ficha.
com estava limpíssima. Mas você viu se ele…Vi, vi, sim, ele
passou no teste do cotovelo. Burro? Não. Então o quê hein?
Pois é, amigas tão honestas, eu também não sei o que ele
viu em mim. Tentaram uma última explicação, olhando para
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os meus pés “ah, vai ver ele gosta de sexo bizarro”. É, vai ver.
Outra explicou assim ‘‘ah, tem tanto casal que a gente vê e
não se conforma’’. Pois é. Fiquei quarenta e sete dias com o
homem mais bonito do mundo. Todo mundo olhava pra ele.
Homens, mulheres, velhinhos, crianças, cachorros, pombas,
formigas. Ele poderia ter qualquer uma das anjinhas da
Victoria’s Secret (caso além de perfeito fosse trilhardário
também. . . não era o caso, mas era bem de vida) mas
preferia estar comigo. Ele definitivamente não tinha nenhum
problema sexual, aliás, muito pelo contrário: fazia parte
do seletíssimo grupo de homens que, apesar de não fazer
feio em medidas, são adeptos do sexo minimalista (aquele
que sabe o valor da delicadeza pontual, ritmada, paciente
e amorosa), entendia os filmes do Reserva Cultural e me
explicava as palavras mais difíceis das músicas do Radiohead.
Tudo ia muito bem até que um dia, na fila pra comprar uma
bomba de chocolate numa rua de Higienópolis, eu resolvi
explodir aquela relação. Ele era tão bonito que me... que
me... que... sei lá. Lembro que na hora pensei algo assim
‘‘ah, má vá ser bonito assim lá na puta que o pariu’’. E ele foi.
27
Sexo
Na semana passada, ele pintou um pontinho de caneta
azul no meu dedinho. Isso foi a coisa mais sexual que me
aconteceu nos últimos cem anos. Um pontinho de caneta
azul no dedinho. Meu coração disparou e meu dedão do
pé direito tentou estalar mesmo com a bota apertada. Um
pontinho de caneta azul no dedinho. Uma língua na orelha
é pau. Uma língua dentro da boca é pau. Pau é pau. Dedo é
pau. Mas um pontinho de caneta azul no dedinho é como
um espaço gigantesco de um pau que não existe. O maior
pau do mundo que não existe. Não sei explicar, mas sei que
é mais pau que pau. Na semana passada, ele encostou o
braço no meu, quando pediu emprestado meu carregador
de celular. Eu emprestei e depois descobri que ele tem um
Iphone. Então o quê? Não sei. Mas sei que aquele braço no
meu foi a coisa mais sexual que me aconteceu nos últimos
cem anos. Minha língua lutou bravamente contra o céu da
minha boca. Uma vontade de me enfiar num buraco dentro
do meu próprio buraco. Nem nos olhamos, mal trocamos
palavras, nem sei o nome dele, só o apelido. Mas eu gosto
quando ele chuta sem querer a minha cadeira, no meio de
uma reunião chata, e pede desculpas. Desculpa, e fala meu
nome. Eu gosto de sentir os poucos centímetros que o pé
dele causa no espaço entre a rodinha da cadeira e o meu
corpo. Gosto de mudar de lugar no mundo por sua distração.
Eu gosto que o chute é seco e decidido. E curto. E daqui a
29
pouco mais um pouco. E desculpa, e fala meu nome. Tudo
isso é minha vida sexual do momento. Quando no elevador
ele vira de costas pra apertar o andar e eu meço com meus
dentes quantas mordidas dá uma lateral de pescoço. Quando
ele espreguiça e o pedacinho de barriga que aparece tem
o tamanho exato de uma lambida rápida. Essas coisas que
quando vou ver, já pensei. Não, eu não quero mudar o texto,
repensar o roteiro, arquitetar o layout. Eu queria mesmo era
saber se sua cervical inteira secaria a minha língua numa
lambida sem intervalo. E chego mesmo a abrir um pouco a
boca, mas por fora é apenas um misto de cara de atenção
com sinusite.
Na semana passada, porque talvez algumas coisas nos
ultrapassem mesmo, ele beliscou com toda a força a minha
cintura. E disse. Não sei. Acho que não disse nada. Ele riu à
vontade, porque o tesão natural parece mesmo a coisa mais
íntima do mundo. Nos conhecemos há mil anos, apesar de
ser apenas a semana passada. E eu retribui unhando o seu
cotovelo num belisquinho. Também sem dizer nada. E até
agora não me caiu a ficha do quanto isso foi estranho. Ou
caiu e eu nem pude experimentar essa estranheza, já que
estou ocupada demais tentando entender porque algumas
pessoas nos agradam pelo cheiro do pelo e não do perfume.
São tantas obrigações entre uma sala e outra que ser bicho
na copa parece férias. Tudo isso foi a coisa mais sexual que
me aconteceu nos últimos cem anos. E talvez eu nunca mais
cruze com ele, porque ele nem é do meu andar e eu nem
sinto nada de bonito. Mas por via das dúvidas me depilei
e tenho sorrido mais. Uma mulher não precisa transar para
estar transando.
30
Insuportável
Que tem por trás dessas merdas todas que você
fala, sempre iguais, sempre mudando a voz porque você
mesmo não suporta dizê-las e diz misturando espanhol,
francês, americano e favelado. Sempre diz rápido demais,
se atropelando, pra dizer como lembra, medo de perder as
vírgulas. E não como traduzindo pro seu mundo, com seu
oxigênio pra pontuar e tocar nas pessoas. Você sopra pum
dos outros no meu ouvido. E me olha feio porque desdobro a
boca num muxoxo de não quero. Mas me conquista dizendo
coisas tipo “não vou te deixar ir sozinha ao casamento”.
Mexendo com minha velha dor de ser sempre menos um.
Dor que nem sei explicar porque é só me imaginar chegando
com alguém dos tipos que o mundo oferece, para eu lembrar
que não me restou ser assim mas ser assim é o que me
resta. Eu não gosto de você. É muito importante que isso
fique bem claro. Não porque sou boa e não quero te iludir,
mas porque preciso sempre deixar claro quando não gosto
de alguém. Me sinto muito grandiosa me separando de
gente assim «olha, eu sou gente o suficiente pra saber que
tipo de gente eu não sou e eu não sou você». Mas você é
bonito e de repente é só uma terça sem nada. E deixo você
aparecer pra me dizer essas coisas que eu não suporto. Você
lê sem absorver e vomita em mim como papel amassado,
sem nenhum pouco de gosma, você não digere essas coisas
que me diz. Não passam por você além de anotações de
31
bloquinhos que despencam de você sem nunca pegar seu
cheiro. Não tem nem cheiro, você parece um banho de
desinfetante sem cheiro. Nada seu vem com sangue, catarro
ou porra. Vem tudo branquinho e digitado e novo. Talvez um
pouco amassado, pra ver se alguém se engana que você vale
a pena. Você decora ser um cara interessante, mas não é.
Não gosto de você, mas porque você tem mania de segurar
minhas duas mãos juntas, num bolinho que você faz, quando
me abraça por trás, antes de pegar no sono. Às vezes tenho
saudade de você. Você é o que me resta de vontade de ter
alguém. É como se por um segundo eu experimentasse. E
se fosse sempre assim, sempre esse bolinho de mãos? E ele
indo comigo a esses eventos que sempre me obrigo e que
sempre me sinto pisando em cacos de vidros de presentes
que eu mesma quebrei. Sempre sozinha. E sei lá, mesmo eu
sabendo que está bom e é como posso, porque todo mundo
me olha com curiosidade lanço ela pra mim também. Há
algum problema comigo? E se fosse sempre assim? Até que
ele lê umas coisas, escuta outras, assiste outras. Não é um
completo imbecil. E esse montinho de mão, rezar de vez em
quando, ser presa de vez em quando. Sair sem fazer barulho
do banheiro. Enfim, ter a delicadeza do limite de outra pessoa
na minha casa. Não ser mais o cavalo pelado que desbrava
sua jaula como uma criança num dia sem escovar dentes ou
um cego cagado ou um bicho estranho que se dá o direito de
exagerar sem lâminas. E se fosse sempre assim? Poder levar
alguém no almoço do domingo. Ter alguém pra ligar quando
chove e a cidade para. Ter alguém pra fazer a droga de
montinhos nas minhas mãos que doem tanto. Meu corpo dói
demais. Minha cabeça não para. Sempre lista de tudo, para
eu poder saber, nos mínimos detalhes, todas as coisas chatas
que não vou fazer. Junto tudo, boto números, pra saber do
32
que abro mão e chuto longe e deixo voar. As coisas mas eu
fico. E daí já estou presa a outras coisas todas que preciso
organizar pra não fazer. Eu organizo minha impossibilidade o
tempo todo. Pra saber que deixei de e não fui deixada de. De
de quê? Pra ter controle do que não consigo. Eu listo minha
preguiça. Eu sei de cor a chatice de tudo que tô desdenhando.
E sofro porque sou a certinha da anarquia. Sempre com o
cansaço de defender o lugar do meio, com tanta porrada
vindo dos dois lados. O morno de ser. O quase de tentar. A
corda bamba de se manter. Nem lá nem lá. Cá mesmo. Meu
dente aperta demais os de cima com os de baixo. E não é
charminho de gente que escreve ou sei lá que coisa. O fato é
que agora que perdeu a graça sofrer pra fazer graça, sobrou
só essa verdade que nem merece destaque, que nem me
assusta mais, de que eu sofro mesmo. Eu sofro muito mais
do que consigo sofrer. Então, será, alguém pra valer a pena
colocar flores em cima da mesa? Se eu soubesse quem é
você. Se eu visse mesmo. Se você me trouxesse o veneno do
mundo. Se você me dissesse coisas malucas que estão antes
de tudo isso que você diz, querendo tanto estar depois.
Se você pudesse calar a boca. Se ao invés dessas besteiras
decoradas que você fala sem parar, pra me mostrar que lê
e vê e escuta, você ficasse quieto um pouco, me invadindo
do mistério desgraçado de outra pessoa no mundo. Se você
fosse só bonito sem comprar roupas e cabelos e notícias que
ilustrem isso. O bonito estragado. Eu queria que você fosse
o bonito estragado. Mas você se melhora o tempo todo e eu
tenho nojo de você. Se eu amasse você, não poderia estar
agora, que nem uma panaca, te esperando chegar, calma e
alisada, o interfone tocar, você feliz, você bonito, sua boca
boa de beijar. Você sem cheiro de rua, de suor, de cigarro, de
velhice, de dor. Você com seu cheiro insuportável de menino
33
bom e desinfetado. Eu com fome, jantamos. Eu como.
Conversamos. Eu posso. Tenho a voz doce, me mantenho
ereta, sorrio como nessas mesas de mocinhas que não
sentem o desespero apesar da situação de vitrine. Com você
eu posso. Eu durmo. Não tenho olheiras. Com você eu posso
amar, porque não penso «olha: eu amo». Com você eu posso
sentir porque não sinto tanto que preciso parar de sentir. E
é isso que me entristece. Você é uma piscina de plástico pra
criança. Pra eu retomar meu contato com a água depois do
trauma com a cachoeira de milhões de metros e velocidades.
E eu molho os pés e posso. Você é uma via acolchoada,
para eu voltar a dar os passos, depois do acidente que me
deixou sem músculo desejoso. E você segura bem forte na
minha mão e diz ‘‘eu posso ir com você, eu posso dormir
aqui, eu posso ficar’’. E eu serei eternamente grata, mas não
eternamente. As pessoas rompidas pelos amores que não
puderam suportar, se juntam e seguem. Anos. Casamentos.
Mãos fechadas, quentinhas. Isso não é pra mim, ainda que o
oposto também não seja. Daqui a pouco, eu sozinha, cacos
de vidro. Nem cachoeira e nem piscina. Eu seca. Porque só
sei viver esperando ser molhada e não molhada. Molhada
me resfrio, gripo, tenho medo de acabar. Seca é a espera
e é como posso. Esse tempo com você, preciso que você
saiba: uma saudade imensa de quando eu lambia o diabo. O
que secou minhas plantas, minhas larguras, meus líquidos.
O amor bom deixa sempre a melancolia de não estar mais
morrendo. A saudade do abismo insuportável de se sentir
viva. A certeza de que uma hora se volta pro amor ruim,
sabendo, de algum lugar que não se pode jamais interferir,
que ruim não é exatamente a palavra. A palavra que não se
sabe e daí chamamos de ruim.
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Música
As pessoas seguram uma risada quase de pena. Mas se
ele nem morava aqui, mas se ele não ficou mais do que uma
semana com você, mas se já faz tempo que ele se foi, sem
nunca ter sido. Então o quê? Nem eu sei. Mas sei da minha
enxaqueca que já dura uma semana. Latejando sem parar.
O coração que subiu nos meus ouvidos. Gritando que sente
falta e pronto. Eu sinto falta de ligar o celular, depois do
avião aterrissar, e ter uma mensagem sua dizendo que vai
dar tudo certo. E sorrir mesmo estando numa fila gigantesca
para o táxi, embaixo daqueles 78 graus do Rio de Janeiro.
Não tem poesia nem palavra difícil e nem construção
sofisticada. O amor é simples como sorrir numa droga de
fila. E não se sentir mais sozinho e nem esperando e nem
desesperado e nem morrendo e nem com tanto medo.
Eu sinto falta de querer fazer amigos em qualquer festa,
só pra conhecer gente estranha e te contar depois. Agora,
eu fico pelos cantos das festas. Voltei a achar todo mundo
feio e bobo e sem nada a dizer. Porque eu acho que estava
gostando mais das pessoas só porque te via em tudo. Agora
as pessoas voltaram a me irritar. E eu voltei a ter que fazer
muita força pra sair de casa. Quando alguém não entende o
meu amor, eu lembro daquele dia que você não queria tocar
violão pra mim. Até que dedilhou reclamando que não era o
seu violão. Daí tentou uma música conhecida. Tentou uma
menos conhecida. Daí tocou uma sua, com a voz baixinha
35
e olhando pro nada. E então me encarou e cantou com a
voz alta. E então largou o violão, me encarou e cantou bem
alto a sua dor, de pé, na minha frente, e eu achei que meu
peito ia explodir. E ri achando que você ia sair correndo e
dar um show na padoca da frente. E naquele momento eu
pensei que poderíamos ser infinitos se fossemos música.
E isso explica tudo, mas ninguém entende. Você entende.
Mas cadê você? Quando vai dando assim, tipo umas onze da
noite, o horário que a gente se procurava só pra saber que
dá pra terminar o dia sentindo algum conforto. Quando vai
chegando esse horário, eu nem sei. É tão estranho ter algo
pra fugir de tudo e, de repente, precisar principalmente fugir
desse algo. E daí se vai pra onde?
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A louca do jardim
Pra onde vai o amor? De manhã eu preciso buscar um
remédio pra minha mãe, depois tenho pilates e às 11 em
ponto preciso estar na agência pra decidir um roteiro de
vídeo para uma apresentação interna que o cliente vai
fazer para a área comercial. Pra onde vai o amor? Quero
aparecer na sua agência, subir as escadas correndo porque
essa pergunta precisa ser feita de peito ofegante. Pra onde
vai o amor? Você tem a apresentação de uma concorrência.
E tem uma equipe, uma mesa, um lixo, um carro alto, um
cabelo grande, um sobrenome importante, um quadro
caro, uma ex-namorada top model, dezenas de garotinhas
apaixonadas. Pra onde vai o amor? Porque quando deitamos
no chão da sua sala e você me perguntou “quanto tempo
você demora pra dizer que ama?”. Porque quando você me
mandou aquele e-mail falando que dormiu bem quando
me conheceu. Porque a gente estava tão nervoso no dia do
Astor, Subastor. Porque eu tinha uma escova de dente aí e
você tinha uma escova de dente aqui. Pra onde vai o amor?
O que você fez com o seu? Deu descarga? O que eu faço
com o meu? Dai eu te ligo, escondida no jardim da agência
que eu trabalho. Chorando horrores. E te peço desculpas.
«Eu sei que faz só um mês que estamos juntos mas o que
você fez com o nosso amor?». Por que você ficou frio e
sumiu e esqueceu e secou e matou e deletou e resolveu e
foi? E você diz que está trabalhando e eu me sinto idiota.
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Me sinto esfolada viva pelo mundo. Me sinto enganada por
anjos. Me sinto inteira uma enganação. Respiro mentiras.
Visto desculpas. Ajo disfarces. Porque a gente estava sim
se amando mas você correu pra levantar antes a bandeira
do «se fudeu trouxa, o amor não existe». Justo você que eu
escolhi pra fugir comigo das feiúras do mundo. Porque você
me emprestava a mão dormindo e pedia colo vendo tv e
queria me fazer camarões fritos e escondia as meias suadas
quando eu chegava antes do que você esperava. E você me
perguntava o tempo todo se eu percebia como era legal a
gente. E então, só pra fazer parte da merda universal de toda
a bosta da vida, você se bandeou pro lado do impossível
e se foi e me deixou como louca, escondida no jardim da
agência, chorando, te perguntando pra onde foi o amor. E
você riu e disse «mas eu só estou fazendo minhas coisas». E
eu me senti idiota e louca e chata e isso foi muito cruel ainda
que seja tão normal. Normal não me serve não encaixa não
acalma. E eu achei que a gente podia ter uma bolha nossa
pra ser louco e improvável e protegido do lugar comum do
mundo mediano adulto das pessoas que riem e fazem suas
coisas. E tudo ficou feio, até você que é lindo ficou feio. E eu
quis me fazer cortes. Porque viver é difícil demais. E todo
mundo me olhando, rindo, fazendo suas coisas. E daqui a
pouco eu rindo e fazendo minhas coisas. E no fundo, abafado,
dolorido, retraído, medicado, maduro, podre: onde está o
amor? Onde ele vai parar? Onde ele deixou de nascer? Onde
ele morreu sem ser? Por que eu sigo fazendo de conta que é
isso. As pessoas seguem fazendo de conta que é isso. E por
dentro, mais em alguns, quase nada em outros, ainda grita a
pergunta. O mundo inteiro está embaixo agora do seu lindo
e refinado e chique e rico prédio empresarial de milionários.
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Gritando nas janelas, batendo nas portas, tirando você da
sua reunião: o que você fez com o amor? Esse dinheiro
todo, essa responsabilidade toda, esses milhões todos, essas
pessoas todas que você quer que te achem um homem. E
o amor, o que você fez com ele? Enfiou no cu? Colocou na
máquina de picar papel? Reaproveitou a folha pra escrever
atrás? Reciclou? Remarcou pra daqui dois anos? Cancelou?
Reagendou o amor? Demitiu o amor? É o amor que vai fazer
você ser isso tudo e não isso tudo que você usa pra dar essas
desculpas pro amor. Porque quando eu sentei no cantinho da
cama e você leu seu livro de poesias de quando era criança.
Porque quando você ficou nervoso porque queria me dizer
que naquele minuto não estava me amando porque você
acha que amor é isso além do que você pode. Amor é só o
que você já estava podendo. O que você fez com esse pouco
que virou nada? Com o muito que poderia virar? Eu aleijada,
engessada, roxa, estropiada, quebrada, estou na porta,
esperando você, por favor, me ensina, o que fazer, vou fazer o
mesmo com o meu. Vou mandar junto com o seu. Nosso amor
pro inferno, longe, explodido, nada. E a gente almoçando
em paz falando sobre o tempo e as pessoas escrotas e o
filme da semana. Bela merda isso tudo, bela merda você,
bela merda eu, bela merda todos os sobreviventes que
riem e fazem suas coisas e almoçam e falam de filmes. E por
dentro o buraco gigante preenchido por antidepressivos,
ansiolíticos, calmantes, cervejas, maconhas, viagens e mais
reuniões. Pra onde foi o amor? De pé seguimos pra nunca
saber, pra nunca responder, pra nunca entender. Pra onde?
Você lendo o texto mais lindo da minha vida sobre o último
dia morando com seus pais, você achando as moedinhas
que o seu pai escondia no jardim quando você era criança,
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você me contando isso tudo baixinho e eu sentindo tantas
milhares de coisas lindas, você falando da merda boiando
e a dor dos seus fins de amor, você dormindo com seus
cachinhos virados para o meu nariz, você fazendo a piada
dos ombrinhos mais altos e mais baixos pra tirar sarro dos
homens artistas e burocráticos, você por um mês e tanto
amor. Todos os cheiros de todos os seus cantos. E agora
eu louca porque não se pode sentir, porque senti sozinha,
porque não se pode sentir em tão pouco tempo. Que tempo
é esse quando o amor se apresenta tão mais forte e sábio
que as regras de proteção? Quem quer pensar em acento
flutuante quando se está voando? Quem quer pensar em
pouso de emergência quando se está chegando em outro
mundo melhor? E agora nada e você nada e tudo nada. O
amor no planeta das canetas Bic que somem. O amor mais
um como se pudesse ser mais um. O amor da vida de um
mês. Você com medo de ser mais um e você único e tanto
amor e tão pouco tempo. O que você fez com ele para eu
nunca fazer igual? Eu prefiro ser quem te espera na porta
pra entender. Eu prefiro ser quem te espera na outra linha
pra entender. Eu prefiro ser a louca do jardim enquanto o
mundo ri e faz suas coisas. Do que ser quem se tranca nessas
salas infinitas suas pra nunca entender ou fazer que não
sente ou não poder sentir ou ser sem tempo de sentir ou ser
esquecido e finalmente não ser.
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Vencedor
Venho por meio dessa lhe informar do prêmio. Será
entregue em sua residência. Em plástico bolha, fita crepe,
caixa de papelão, papel dourado espelhado. Pode colocar
na mesinha preta, ao lado daquele troço legal que sua
mãe te deu. Uma peça de design chique e um coração
ensanguentado. Vão te perguntar de onde vem aquele
coração e você vai ter mais uma história pra contar baixinho,
no ouvido das garotas: essa é boa, quer ouvir? Eu no meio
de suas carrancas, cabeças de faraós, estrelas e leões. O
vencedor.
Pode voltar a respirar, pode fechar a janelinha emperrada
da cozinha. Caso fique pesado para a sua decoração, me
deixe com os bonequinhos do banheiro.
Não serviu a saudade que eu sentia só porque você
espremia saquinho por saquinho do shoyo longe de mim.
Nem era longe, era logo ali, mas eu sentia saudade. Você
queria uma prova, você queria a cabeça pra levar pro rei
do seu peito. Você queria decapitar a mente que poderia
te magoar. Eu jurei, um dia, vendo você dormir e gostando
tanto de você pra pouco tempo, que não teria medo
e seria doce e não escreveria uma linha e você seria o
escolhido pra não ser mais um escolhido. Mas você levou
meu coração, então só me resta a maldade, a bondade
contrariada, que sempre me faz recorrer ao lugar comum
de escrever um texto. O lugar onde tanta gente já esteve,
41
o que é uma mentira só pra te ferir. O amor não é um jogo,
mas você ganhou. Daqui a pouco você vai se pergunta
o que faz exatamente com isso, se não era melhor ter me
deixado com o coração, assim eu poderia continuar gostando
de você. Eu gostar de você só é um mérito se eu puder ir
junto.
Talvez você me mande de volta o prêmio, a caixa
rasgada, o papel dourado amassado, o laço frouxo, o coração
assustado. E me peça que continue apenas sentindo saudade
de quando você demora com os saquinhos de shoyo. Pra
gente voltar de onde se tem coragem. De onde a pressa é
angustia solitária e não um caminhão de lixo que se joga no
outro. De onde a insegurança é um gatinho preso numa jaula
alta e não um tigre alimentado pelo ego. O amor recémnascido e alimentado com água pura. Eu estava nele quando
você achou que diminuindo seu ritmo você aumentaria
suas chances. O triste, e por isso eu te ligo e reclamo que é
solitário, é que enquanto você pensa em chances, ritmos e
ganhos, eu só penso em você.
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À espera de Leopoldo
Foi depois do almoço das casadas que me deu a louca.
Uma tava de regime porque o marido reclamou do seu peso.
A outra tava de aplique porque o marido reclamou do cabelo
curto surpresa. A outra, maquiada tal qual uma palhaça e
usando saltos desproporcionais ao propósito da tarde, disse
que seu marido pedia «esteja sempre linda, para que eu
nunca enjoe». Isso era de pronto e resumido, o disparado
mais chocante. Mas nuances e pontos eram a cada minuto
assustadoramente colocados. Eu jamais poderia ser uma
dessas, jamais. Diferente do que é saudavelmente sugerido
ou sedutoramente instigado, ao mandado de um homem ou
de qualquer ser humano eu só poderia, tentar até o fim, dizer
não. Nem água eu serviria. Nem o tom da voz eu baixaria.
Até uma mão no braço me incomoda, caso eu não tenha,
antes, encaminhado o braço até a altura da mão. De que país
ou século ou sistema solar saíram aquelas mulheres? O que
eu estava fazendo ali?
Foi então que entendi tudo. Como uma daquelas
surpresas que faz a gente sair correndo de volta pra casa
pra se encarar rindo, pelada, de frente pro espelho. Aquilo
que me dizem o tempo todo, quando reclamo de meus
amores que não passam de semanas e de minha solidão.
Que escrevendo, fica difícil. Que sendo assim, fica difícil. Que
com meu egoísmo fica quase impossível. Meu jeito crítico ou
não mocinha ou não delicado ou agressivo, nunca sei. Fica
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difícil. E então e então e então. Pela primeira vez desde que
comecei com a ideia de que talvez estivesse mesmo na hora
de ter alguém dentro de casa, talvez um filho também. Pela
primeira vez eu entendi, clamar das profundezas da minha
alma. Um grito sufocado. A verdade enterrada. Você, minha
querida, não quer. Você, fulana aí do topo de tudo o que tem
aqui dentro. Escuta isso: você não quer essa vida pra você!
Não era, definitivamente, de um marido o que eu
precisava. Era de Leopoldo. O garoto durango de sotaque
perfeito que me comeria num quarto de hotel com mantas
nojentas numa cidade pequena bem longe daqui. Se isso não
é ser mulher pra casar, mais um motivo para ser. Perceber
isso foi entender tudo. Tão libertador quanto, depois de
trinta anos sofrendo por não parecer com nada, descobrir o
prazer salvador de não parecer com nada.
Amanhã, querida, quando ele for embora com seu violão
e falta de jeito com mulheres de dia seguinte, não sucumba
ao que dizem ser o amor e você por muitos anos acreditou.
Amor não é pedir saltos, cabelos, magrezas, espaços no
armário, silêncios, desejos. Amor é o que dá pra fazer da vida
enquanto somos honestos com nossa vontade de ser livre.
44
Isso não é amor, menina
Apesar da gente nunca ter namorado ou casado ou
feito planos, hoje completamos oito anos juntos. Se nosso
primeiro encontro não tivesse se dado numa data tão
conhecida, jamais saberíamos. Nunca contamos o tempo
ou demos nomes aos nossos sentimentos de compromisso.
Simplesmente tudo se desenrolou sem drama ou pedido ou
conjecturações ou vingança. Foi e foi e foi. Aquilo que dizem
sobre o que é pra ser. Simplesmente fomos e continuamos
sendo. Quem diria que um dia eu seria tão feliz a ponto de
não contar ou reduzir sensações a palavras? Mas é isso, sou
feliz com você. Sem esforço e mesmo sendo, muitas vezes,
bem infeliz. Sou feliz.
Não faz muito tempo que nos mudamos pra essa casa
maior. A cama gigante que sempre cabe mais gente quando
a noite dá medo no vizinho de quarto. O jardim, o quartinho
dos brinquedos e livros, a janela do lavabo que tem a
melhor vista da casa. As figurinhas coladas perto do rodapé
parecendo um cineminha de forminhas, os coquinhos
destruídos na garagem, a casinha termômetro que você me
deu porque eu disse que lembrava meu avô.
Daqui, deitada nesse ângulo quase indecente, vejo você,
safado, acender seu cigarro de domingo e me olhar sabendo
que, inexplicavelmente, justo eu, te aceito seja lá como for.
Você, idem. Não fomos fáceis a nada e nem a ninguém, mas cá
estamos. Sem a comemoração deslumbrada e terrivelmente
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curta do amor e por isso mesmo podendo celebrar o pouco
cabível de cada instante. E por isso mesmo, vai ver, amando.
Sabemos tanto que é amor que nem parece aquele coisa
que dizem: amor. A-m-o-r. Ah, deve ser. Mas não o que um
dia quisemos tanto e por isso mesmo afastamos, mas o que
podemos e por isso mesmo nos soa tão possível. Sei que
parece óbvio, mas só agora. E eu continuo nessa pose quase
indecente, retardando a vontade do xixi e do banho, olhando
você e querendo apenas um presente pra comemorar
nossos oito anos juntos. Olhando seu ombro que eu curto
tanto desde o primeiro segundo. Seu pé direito retesado e
tão diferente do esquerdo sempre relaxadão. A sua mania
de entregar um pouco mais de ‘‘cofrinho’’ do que permitido,
quando concentrado e um pouco curvado.
Vai começar a chover e eu posso chorar. Hoje completamos
oito anos juntos e eu só queria um presente. Voltar no
tempo, me encontrar e chacoalhar meu corpo. Aquela época
em que eu já estava quase cínica, mas ainda acreditava em
um relacionamento com todas as forças do mundo. Porque
quanto mais cinismo e cansaço, mais força fazemos e mais
forte parece. Eu queria me chacoalhar e dizer que ele existe,
sim, o tal do amor, mas você, querida, não sabe ainda nada
disso. Isso que você acha que é amor, menina, não passa
nem perto.
Eu me faria uma visita naquele apartamentinho pequeno
e cheio de tentativas de charme e maturidade. E diria pra
mim o que ninguém, sabe-se lá porquê, foi capaz de me dizer
numa época tão necessária e quase triste. Época de tentar
de tudo pra chegar perto do que, um dia, simplesmente
acontece mesmo a gente achando que só funciona para os
disciplinados na cultura da imbecilidade. Esse povo estranho
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que divide armário e sorriso de foto. Eu diria: menina, amar
a dúvida, o silêncio, a ingratidão, o fim, o atraso, a invenção,
a lacuna, o pode ser, as hipóteses, a não resposta, a raiva, o
absurdo, o não, a impossibilidade, o depois que foi, o antes
de chegar, o difícil, o pode não, amar essas coisas, menina, é
amar o mistério e não um homem.
Amar um homem não é o telefone que não toca, é
o telefone que toca e ele tá daquele jeito que te irrita
justamente porque está irritado com você e você desliga
logo e ele liga de novo e vocês morrem de rir. Ah, e aí vai
dando certo. Foi e foi e foi e cá estamos. Você apaga o cigarro
de domingo, a luz e some. Eu escrevo esse texto na mente,
tomo banho e me chacoalho. Daqui a pouco a gente, sem se
dar conta de plurais e segredos, se encontra no corredor e
decide o que faz do resto do dia.
47
Consideração
Já tinha um mês e resolvi ir nessa festa com cara de festa
que você vai. Toda pessoa de cabelo cheio que entrava eu
achava que era você. Assim como acho quando estou na
rua, no supermercado, na fila do cinema, dormindo. Virei
uma caçadora de pessoas cacheadas. Virei uma caçadora de
você em todas as pessoas. Então você chegou na festa. E eu
apenas sorri e sorri e sorri. Porque era isso. Eu queria te ver
apenas. A dor numa caixinha embaixo dos meus pés e eu
mais alta pra poder te abraçar sem dor, perto da sua nuca e
por um segundo. Eu te acho bonito de formas tão variadas
e profundas e insuportáveis. Eu vejo você parecendo um
leãozinho no fundo da festa. Suando e analisando. O rei
escondido escolhendo a presa que não vai atacar. Com sua
eterna tristeza cheia de piadas afiadas. Suas facas afiadas
de graças para defender as tristezas que nadam baixas nos
seus olhos de quem não quer fazer mal. Mas faz. Seus olhos.
Em volta um riozinho melancólico e no centro o sol feliz e
novinho chegando. E tudo isso vem forte como um soco
de buquê de flores de aço no meu estômago. E eu quero ir
até você e te dizer que eu sei que você desmaia quando faz
exame de sangue. E como eu gosto de você por isso. E como
eu queria tirar todo meu sangue em pé pra você jamais
cair. E como eu gosto de você por causa do e-mail que você
mandou pro seu amigo com problemas. Como gosto quando
você lembra de alguém e precisa demonstrar naquela hora
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porque tem medo da frieza das suas distrações. Suas listas
de culturas e atenções. Os vasinhos. Os vasinhos coloridos
da cozinha me matam. A história do milagre que te salvou da
queda da estante. Você arrepiado falando em anjos. Essas
suas delicadezas em detalhes dormem e acordam comigo.
Acariciam e perfuram meu peito vinte e quatro horas por
dia. Uma saudade dos mil anos que passamos, ou das
três semanas. A loucura de gostar tanto pra tão pouco ou
simplesmente a loucura de tanto acabar assim. Fora tudo
o que guardei de você, me restou a consideração que você
guardou por mim. Sua ligação depois, quando me encontra.
Sua mão estendida. Sua lamentação pela vida como ela é.
Sua gentileza disfarçada de vergonha por não gostar mais
de mim. A maneira que você tem de pedir perdão por
ser mais um cara que parte assim que rouba um coração.
Você é o mocinho que se desculpa pelo próprio bandido.
Finjo que aceito suas considerações mas é apenas pra ter
novamente o segundo. Como o segundo do meu nariz
na sua nuca quando consigo, por um segundo, te abraçar
sem dor. O segundo do seu nome na tela do meu celular.
O segundo da sua voz do outro lado como se fosse possível
começar tudo de novo e eu charmosa e você me fazendo rir
e tudo o que poderia ser. O segundo em que suspiro e digo
alô e sinto o cheiro da sua sala. Então aceito a sua enorme
consideração pequena, responsável, curta, cortante. Aceito
você de longe. Aceito suas costas indo. Aceito o último cacho
virando a esquina. O último fio preso no pé da minha cama.
Não é que aceito. Quem gosta assim não come migalhas
porque é melhor do que nada, come porque as migalhas já
constituem o nó que ficou na garganta. Seus pedaços estão
colados na gosma entalada de tudo o que acabou em todas
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as instâncias menos nos meus suspiros. Não se digere amor,
não se cospe amor, amor é o engasgo que a gente disfarça
sorrindo de dor. Aceito sua consideração de carinho no topo
da minha cabeça, seu dedilhar de dedos nos meus ombros,
seu tchauzinho do bem partindo para algo que não me leva
junto e nunca mais levará, seu beijinho profundo de perdão
pela falta de profundidade. Aceito apenas porque toda a
lama, toda a raiva, todo o nojo e toda a indignação se calam
para ver você passar.
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Essa foi a Tati Bernardi abrindo
o coração para viver o amor de
diversas formas.
Sobre a autora
Tati Bernardi, como
é mais conhecida,
nasceu em 1979 em
São Paulo e formouse em Propaganda
e Marketing pela
Universidade Mackenzie.
Além da publicidade,
Tati também dedicase a literatura, já
tendo quatro livros
publicados, sendo
os mais conhecidos:
“A mulher que não
prestava” e “Tô com
vontade de alguma coisa
que eu não sei o que é”.
Tati Bernardi consagrou-se com seu site, onde a
maior parte do público são mulheres. Além disto, Tati
também é colunista e cronista de revistas, como a
Viagem & Turismo, blogueira e redatora da TV Globo.
Além disto, fez cursos de pós-gradução na área de
roteiro e cinema, e trabalhou muitos anos como redatora
publicitária nas principais agências de propaganda de São
Paulo, tais como W/Brasil, Talent, Leo Burnett e AgênciaClick.
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Memorial Descritivo
O refente memorial será descrito em duas partes, onde
a primeira descreverá a estrutura fisica e elementar do
livro e a segunda os conceitos aplicados à essa estrutura,
proporcionando entedimento do que foi utilizado e o porque
dessa utilização.
Em relação à estrutura física e elementar, trata-se de
um livro cuja página encontra-se em Formato A5, onde
o miolo possui um papel com uma gramatura menor em
relação à capa, a qual tem gramatura espessa. O fundo
dele é branco e a variação de cor encontra-se apenas entre
a cores preta e rosa. A fonte utilizada no título do livro
e no fólio foi a heartfont. No miolo, o conteúdo textual é
composto pela fonte Calibri, cujo corpo é de tamanho
12 e pela fonte eurofuence, de corpo 22, nos títulos dos
textos que compõe o livro. Já nos conteúdos pré e pós
textuais houve uma variação entre as três fontes citadas
anteriormente e os seus tamanhos também variaram, onde
estes vão desde o tamanho 11 ao 30. As margens superiores
e externas medem 2 cm, as inferiores 3 cm e internas 2,5
cm, em sua maioria. Porém algumas páginas dos conteúdos
pré e pós textuais possuem uma margem superior de 3 cm.
Por fim, a a entrelinha aplicada nos textos é de 15 pontos.
Com relação aos conceitos aplicados no livro, pode-se
dizer que ele foi pensado e projetado para um grupo femino
de jovens-adultas, o que explica a aplicação da cor rosa para
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algumas partes de destaque. O fundo branco e uma única
ilustração na parte do conteúdo textual foi escolhido com a
intenção do livro passar uma idéia de simplicidade, conforto,
clareza e proporcionar uma leitura agradável e harmoniosa
para quem o ler.
Por ser um livro cujo tema é o amor, houve apllicações
de fontes com detalhes que fazem referencia ao amor,
ilustrações com foco nesse tema e o fólio foi envolvido
por um coração, o qual veio anexado à fonte Pffft Regular
encontrada na internet. Por fim as ilustrações, onde a que
foi escolhida para a capa e a que encontra-se após os textos
trazem consigo um conceito de semelhança, visto que
possuem elementos figurativos que recordam à escritora
Tati Bernardi.
Visto todos esses aspectos citados acima é possivel
concluir que o livro possui base elementar, estrutural e
conceitual no tema do mesmo e no publico para o qual este
foi feito, onde é pretendido dessa forma não deixar duvidas
quanto às aplicações feitas à ele.
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A presente edição foi composta no ano de 2011 e impressa
na Gráfica Copyshop, localizada na Rua Dom Bosco, 1082 |
Recife - PE. A encadernação foi de tipo bruchura e os papéis
utilizados na impressão da capa e do miolo foram Cartão
250g e Offset 90g, respectivamente.