9. Discurso sobre massacre de Eldorado de Carajás

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9. Discurso sobre massacre de Eldorado de Carajás
9. Discurso sobre massacre de Eldorado de Carajás:
a voz de um sujeito-jornalista
Thaís Harumi Manfré Yado1
Lucília Maria Sousa Romão2
Resumo: Baseado no escopo da Análise do Discurso (AD) de matriz francesa, esse trabalho tem por
objetivo investigar discursivamente recortes de um corpus constituído por relatos do autor Eric
Nepomuceno na obra “O massacre – Eldorado de Carajás: uma história de impunidade”. Nessa obra,
temos a inscrição de relatos investigativos sobre o massacre de Eldorado de Carajás ocorrido em abril de
1996, no interior do estado do Pará que resultou na morte de 19 trabalhadores rurais sem-terra, ligados ao
movimento do MST. Buscamos estudar a materialidade lingüística entrelaçando-a com as noções de
sujeito e memória discursiva apresentadas por Pêcheux (1969). Na análise dos dados, observamos efeitos
de denúncia, violência, impunidade em relação ao percurso que antecedeu o massacre, o ato em si e todos
os trâmites jurídicos deflagrados pelo caso até os dias atuais, já que ainda não foram devidamente
julgados os responsáveis pelo ocorrido. Trabalhamos finalmente com a constituição de uma reflexão, não
apenas sobre o massacre de Eldorado, mas sobretudo com a interpretação de um arquivo discursivo sobre
a impunidade no Brasil, o que nos possibilita retomar os fios da memória sobre questões tão recorrentes
na atualidade, tais como terra, violência, justiça.
Palavras-chave: memória, discurso, Eldorado de Carajás, Eric Nepomuceno.
1.Introdução
Com a base teórica da Análise do Discurso (AD) de matriz francesa, esse
trabalho tem por objetivo investigar discursivamente recortes de um corpus constituído
por relatos na obra “O massacre – Eldorado de Carajás: uma história de impunidade” do
autor Eric Nepomuceno. Observamos que a referida obra marca a inscrição de dizeres
sobre o massacre de Eldorado de Carajás ocorrido em abril de 1996, no estado do Pará,
que resultou na morte de 19 trabalhadores rurais sem-terra ligados ao movimento do
MST. Busca-se estudar a materialidade lingüística, entrelaçando-a com as noções de
arquivo e memória discursiva, apresentadas pelo linguista francês Michel Pêcheux.
Mobilizando tais conceitos, buscamos entender a linguagem, qual seja, aquele em que o
1
Bacharel em Ciências da Informação e da Documentação e Biblioteconomia pela Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Mestre em CTS,
UFSCar.
2
Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo. Docente do curso de graduação em Ciências da
Informação e da Documentação e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da FFCLRP/USP.
Professora colaboradora do Programa de Mestrado em Ciência, Tecnologia e Sociedade da UFScar.
Bolsista CNPQ. FAPESP.
sentido está permanentemente em jogo, aberto a sofrer aos movimentos do político,
afetado pelas condições de produção e pelo modo como a ideologia assalta o sujeito.
2.A memória e o arquivo na perspectiva discursiva
Fundada por Michel Pêcheux no fim da década de 60, a Análise do
Discurso (AD) de matriz francesa coloca no centro da teoria a noção de discurso
definido como efeito de sentidos entre interlocutores. Isso marca outro modo de
entender a linguagem, qual seja, aquele em que o sentido está permanentemente em
jogo, aberto a sofrer aos movimentos do político, afetado pelas condições de produção e
pelo modo como a ideologia assalta o sujeito. Com o referencial da AD, nos é permitido
compreender a relação existente entre o mundo e linguagem (mediada pela ideologia),
ou seja, todo enunciado é suscetível à interpretação considerando que os caminhos da
língua, da história e da sociedade encontram-se entrecruzados (FERREIRA, 2008: 17).
Deriva daí o nosso interesse pelo conceito de historicidade, que pode ser compreendido
como a inscrição da história na língua, ou seja, como as marcas sócio-históricas da
língua podem ser flagradas nos movimentos por onde o sujeito tece o seu discurso. Isso
valida o postulado de que, pela exterioridade e pela historicidade, torna-se possível a
relação entre sujeito e língua.
Para entender o conceito de memória discursiva, é necessário considerar o
sentido sempre está filiado a uma rede de outros sentidos já falados antes, constituindo
assim “o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do
pré-construído, o já-dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da
palavra” (ORLANDI, 2005: 31). Por isso, esse quadro teórico fundamenta-se na
investigação da espessura dos processos de produção dos sentidos, escutando o modo
como eles retornam, são repetidos, deslocados e rompidos no momento em que o sujeito
enuncia. Assim, falar de discurso reclama a consideração de que há sempre uma
memória discursiva sustentando a possibilidade de dizer, isto é, de que as palavras
carregam sentidos dos modos como já foram usadas em outros contextos sociais.
Segundo Pêcheux ( 1999: 50), uma seqüência lingüística “deve ser entendida aqui não
no sentido diretamente psicologista da ‘memória individual’, mas nos sentidos
entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas (...)”.
Guiando-se por esse mesmo caminho Maingueneau (1989 apud LUCAS, 2003: 226)
defini interdiscurso como sendo “um processo de reconfiguração incessante” e é por
esse incessante processo que a formação discursiva é levada e incorporada aos
elementos pré-construídos. Ou seja, a memória discursiva implica a percepção do jádito como condição da linguagem, já que os sentidos que utilizamos estão sempre
carregados de diversos outros significados constituídos anteriormente que traçam “um
percurso escrito discursivamente em outro lugar” (PÊCHEUX, 1999).
Assim, a memória discursiva implica considerar o conceito de ideologia,
mecanismo que promove um efeito de ‘evidência’ que se sustenta pelos já-ditos, pelos
sentidos já institucionalizados, tidos como naturais em um determinado momento sóciohistórico. Observamos que, para alguns sentidos serem oficializados, outros sentidos
outros precisam ser silenciados, apagados e instituídos como silêncio (ORLANDI,
1997), o que não significa que eles não serão ditos, já que podem ser discursivizados de
modo deslocado. Como memória, sujeito e sentido são heterogeneamente constituídos, a
cada nova inscrição na língua intervém a história, o que faz falar o outro, o diferente, o
singular, isto é, o impossível de controlar; por isso, de acordo com a teoria discursiva,
sustentamos que a memória discursiva é heterogênea e lacunarmente repleta de
ambigüidades, furos e conflitos, o que marca o jogo basculante da estrutura e/ou
acontecimento.
a memória tende a absorver o acontecimento, como uma série
matemática prolonga-se conjeturando o termo seguinte em vista do
começo da série, mas o acontecimento discursivo, provocando
interrupções, pode desmanchar essa “regularização” e produzir
retrospectivamente uma outra série sob a primeira, desmascarar o
aparecimento de uma nova série que não estava constituída enquanto
tal e que é assim o produto do acontecimento; o acontecimento, no
caso, desloca e desregula os implícitos associados ao sistema de
regularização anterior. (PÊCHEUX, 1999: 52)
Foucault (1971) refere-se à memória discursiva como sendo a “voz sem nome”,
fazendo uma referencia a presença de uma voz que, na maioria das vezes, encontra-se
difusa e dispers e que é o domínio de memória como “uma camada espessa de citações e
de retornos ao interior de estratos discursivos que se interpõem entre a irregularidade do
texto primeiro e o texto que o cita”, dessa forma, essas formulações seguem um
caminho que a “transformam, truncam-se, escondem-se para reaparecerem mais adiante,
atenuam-se ou desaparecem, misturando, inextricavelmente, memória e esquecimento”
(COURTINE, 1999 apud GREGOLIN, BARONAS, 2003: 55).
Do ponto de vista da AD, entendemos arquivo discursivo como um “campo de
documentos pertinentes e disponíveis sobre uma questão” (PÊCHEUX, 1990), ou seja,
o conceito de arquivo está relacionado com o que está disponível ao sujeito, aqueles
documentos aos quais ele tem acesso, o que nos permite inferir que o sujeito não tem o
domínio de todos os sentidos, uma vez que eles não são transparentes nem o todo da
linguagem é acessível àquele que enuncia. Mittmann (2008: 117) diz que “o arquivo não
é reflexo passivo de uma realidade porque nenhum discurso é. Ao contrário, se todo
discurso em arquivo e a discursivização desse arquivo será necessariamente
conflituosos”. Porque, como os bancos de dados, os arquivos não são construídos
pacificamente, sua montagem é sempre tensa, heterogênea e contraditória justamente
porque não temos acesso infinito a todos os significados e seus sentidos, já que a
incompletude nos é constitutiva. Mesmo assim, encaramos o efeito de totalidade como
natural e evidente, pois o arquivo possibilitaria o controle de certos sentidos sobre o
mundo; mais ainda, pelo efeito ideológico de evidência, temos naturalizado o sentido de
que, no arquivo, os saberes encontram-se como que organizados naturalmente,
desfazendo a imagem atordoante de caos, de bagunça e de confusão derivante dos
sentidos em fluxo. Continuando nossa investigação sobre arquivo, Foucault (1986 apud
SARGENTINI, 2008: 132) apresenta o conceito de arquivo, como sendo
não como um simples agrupamento de documentos dotados de
chancela institucional, uma data ou um nome próprio, mas como uma
operação de análise de um conjunto de enunciados efetivamente
produzidos, respondendo a um sistema de enunciabilidade – “a lei do
que pode ser dito, o sistema que rege o aparecimento dos enunciados
como acontecimentos singulares”. Tal noção complementa-se, ainda,
com uma concepção de arquivo que faz “aparecerem as regras de uma
prática que permitem aos enunciados subsistirem e, ao mesmo tempo,
se modificarem regularmente”. Trabalhar com a noção de arquivo
exige do analista que o material em análise receba uma leitura que
traga à tona dispositivos e configurações que permitam flagrar o
sistema de formação e transformação dos enunciados a partir da
diversidade de textos, de um trajeto temático ou ainda de um
acontecimento.
O mesmo autor (2005: 146-147) apresenta ainda o conceito de arquivo do ponto
de vista do enunciado, dos discursos, e não mais da visão de que arquivo seria um
conjunto de documentos armazenados para um fim.
Não entendo por esse termo a soma de todos os textos que uma
cultura guardou em seu poder, como documentos de seu próprio
passado, ou como testemunho de sua identidade mantida; não
entendo, tampouco, as instituições que, em determinada sociedade,
permitem registrar e conservar os discursos de que se quer ter
lembrança e manter a livre disposição. Trata-se antes, e ao contrário,
do que faz com que tantas coisas ditas por tantos homens, há tantos
milênios, não tenham surgido apenas segundo as leis do pensamento,
ou apenas segundo o jogo das circunstâncias, que não sejam
simplesmente a sinalização, no nível das performances verbais, do
que se pôde desenrolar na ordem do espírito ou na ordem das coisas;
mas que tenham aparecido graças a todo um jogo das coisas; mas que
tenham aparecido graças a todo um jogo de relações que caracterizam
particularmente o nível discursivo; que em lugar de serem figuras
adventícias e como que inseridas, um pouco ao acaso, em processos
mudos, nasçam segundo regularidades específicas; em suma, que se
há coisas ditas – e somente estas –, não é preciso perguntar sua razão
imediata às coisas que aí se encontram ditas ou aos homens que as
disseram, mas ao sistema da discursividade, às possibilidades e às
impossibilidades enunciativas que ele conduz.
Ou seja, nessa concepção, o arquivo é um sistema que rege o aparecimento dos
enunciados como acontecimentos únicos; concomitantemente, ele é responsável por
fazer com que todas as coisas ditas não se “acumulem indefinidamente em uma massa
amorfa” (op. cit.), ou seja, o arquivo agrupa figuras distintas, oferecendo-nos relações
múltiplas, mantendo-se ou esfumaçando-seravés de regularidades específicas. Mais
ainda, o arquivo faz falar uma forma de interpretação.
Trabalhar a historicidade implica em observar os processos de
constituição dos sentidos e com isso desconstruir as ilusões de clareza
e de certitude. Ao mesmo tempo, trabalhar a historicidade na leitura
de arquivos leva a realizar percursos inusitados, seguindo-se as pistas
lingüísticas, traçando percursos que desfazem cronologias
estabelecidas, que explicitam a repetição de mecanismos ideológicos
em diferentes momentos históricos, que localizam deslocamentos e
rupturas. Desse modo, o arquivo não é visto como um conjunto de
"dados" objetivos dos quais estaria excluída a espessura histórica, mas
como uma materialidade discursiva que traz as marcas da constituição
dos sentidos. O material de arquivo está sujeito à interpretação e, mais
do que isso, à confrontação entre diferentes formas de interpretação e,
portanto, não corresponde a um espaço de "comprovação", onde se
suporia uma interpretação unívoca. (NUNES, 2005).
Concordamos com a citação acima no sentido de que um arquivo – seu discurso
e(m) seu campo de documentos – instala sempre um espaço de comprovação, marcado
pela inscrição histórica dos sentidos, pelos movimentos do sujeito, pela forma como a
ideologia faz parecer naturais e unívocos os sentidos de documentos e a ordem do
próprio arquivo. Diante disso, a AD francesa sinaliza uma contribuição importante,
visto que funda o conceito de arquivo discursivo, conceito que passa pelo interesse de
Pêcheux quando ele se depara com os problemas relacionados ao tratamento de textos,
principalmente do “banco de dados”, ou seja, do discurso informatizado. Diferente da
visão tradicional dos leitores de arquivos, que “praticam cada um deles sua própria
leitura singular e solitária) construindo o seu mundo de arquivos” (PÊCHEUX, 1982:
56), o arquivo discursivo é atravessado pelo que o autor chamou de clivagens
subterrâneas, ou seja, pela substância de sua própria fragmentação e pela condição de
não poder tudo dizer nem tudo poder conter.
Os fatos da língua que constituem a base material dos arquivos são
fatos historicizados cuja interpretação requer uma atribuição de
sentidos compatíveis com as circunstâncias histórico-sociais em que
os mesmo foram produzidos e com as condições de produção em que
serão lidos. (FERREIRA, 2008: 21-22)
Ou seja, os gestos de leitura do/no arquivo podem ser variados, tecendo os
sentidos através de nossa história e do trabalho de memória discursiva, na retomada do
que já foi dito em um dado momento. Posto isso, marcamos que, no nosso trabalho,
objetivamos flagrar os movimentos de sentidos do/no discurso jornalístico a partir do
observatório conceitual da teoria discurso, especialmente as noções de memória e
arquivo, entendendo-os atrelados a relações de poder, principalmente em relação ao
massacre de Eldorado de Carajás, um dos maiores símbolo de impunidade no Brasil.
3.
Eldorado de Carajás: uma narrativa do massacre
Aqui faremos um relato das condições de produção sobre o discurso que será
analisado a seguir, qual seja, recortes do livro reportagem de Eric Nepomuceno sobre o
massacre de Eldorado de Carajás. Consideramos importante situar o lugar social de
onde os sentidos são produzidos e a memória discursiva que sustenta os efeitos de
justiça, violência e impunidade. O estado do Pará ocupa cerca de 16% do território
brasileiro (260 mil quilômetros quadrados), possui uma população de seis milhões e
seiscentos mil pessoas (um terço da população do estado de São Paulo). Assim,
observamos o excedente de terras que esse estado possui, porém a sua situação não é tão
favorável quanto a sua abundância de terras, uma vez que os conflitos relacionados à
disputa por terra são fatos constantes nessa região do território brasileiro. Conflitos
acirrados, atos de violência, crimes e impunidade fazem parte do cotidiano local; Chico
Mendes, Dorothy Stang são alguns dentre tantos nomes que provam isso
(NEPOMUCENO, 2007: 30). Trata-se de um estado com uma vasta reserva de recursos
naturais, seja pelos subsolos com todos os tipos de minérios ou pela terra de boa
qualidade, porém a pobreza da população local é algo assombroso, falta trabalho, sobra
terra, a injustiça e o abandono são só intensificados. O longo capítulo do trabalho
escravo faz parte da economia local até hoje; vários órgãos, nacionais e internacionais,
como a OIT (Organização Internacional do Trabalho) e vários sindicatos de
trabalhadores rurais, a OEA (Organização dos Estados Americanos) demonstram em
suas pesquisas que não há outro estado brasileiro com um índice tão alto de escravidão e
que, em nenhum lugar do mundo, todo o número de mortes ligadas à questão de disputa
de terra é tão grande. O Ministério do Trabalho divulgou nos dados de 2006, que 35,5%
dos donos de terras do Brasil, faziam uso da mão-de-obra escrava encontravam-se no
Pará (op. cit.).
Nessa parte do Brasil, em especial, os latifúndios são uma característica local,
tais latifúndios atuam principalmente na extração de minérios, pastos, de plantações de
soja, castanha-do-pará, nas carvoarias, nas siderurgias além da grandiosa Vale do Rio
Doce. O gigantismo da Vale do Rio Doce é tão sólido que, mesmo instalada em
Eldorado, nada do que acontece no estado atinge sua estabilidade. A história do estado
do Pará é escrita por vários pontos referentes ao elevado número de mortes ocorridas,
mortes essas relacionadas com a disputa por terras. Entre os anos de 1980 e 1989,
estudos comprovam que mais de uma pessoa morria por semana em decorrência das
disputas por terra no Pará e, especialmente entre 1984 a 1985, os índices de morte por
essa razão eram ainda maiores, uma morte a cada três dias, o que contabilizava mais de
dez mortes a cada mês. Nos anos seguintes, encontra-se um tempo de quase paz – uma
morte a cada quinze dias. Porém, entre os anos de 1994 e 2004, tornou-se o “principal
produtor de mortos”, mais de 173 pessoas foram assassinadas, outras centenas viveram
sob constantes ameaças de morte, e durante esses dez anos houve no Pará mais de 837
conflitos violentos ligados a questão da terra, acredita-se que todos tiveram origem a
mando dos grandes latifundiários. A maioria das mortes, nesses estudos, refere-se à
morte de trabalhadores rurais e o que é mais curioso, dentre tantas mortes e crimes
ocorridos, menos de um terço desses fatos foram investigados pela polícia. Ou seja,
nada foi feito para impedir esse número espantoso de mortes ou para responsabilizar
executores e mandantes de tais assassinatos.
Para impedir novas mortes, faz-se quase nada – se é que se poderia
fazer alguma coisa concreta contra essa cadeia em que um elo leva a
outro, e todos levam à impunidade. A única lei que realmente
funciona é a da força, da pistola, dos disparos vindos de algum lugar e
dando sempre no alvo certo. (NEPOMUCENO, 2007: 36)
Especialmente no ano de 1996, o recorde de matança de trabalhadores rurais é
alcançado, cerca de 72% do computado durante esse intervalo de tempo. Tal número é
tão alto principalmente pela carnificina que aconteceu no mês de abril daquele ano.
Com a presença dos grandes latifúndios paraenses, desde 1995, o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) pedia a desapropriação da fazenda Macaxeira,
uma área imensa com mais de 40 mil hectares que, em grande parte, estava abandonada.
Essa área estava reclamada para um assentamento de família sem-terra, então, as
negociações começaram a ser feitas. Em meio as negociação com o então governador
Almir Gabriel (PSDB) e o INCRA (Instituto de Colonização e Reforma Agrária), mais
de mil trabalhadores rurais ocuparam parte dessa fazenda - todos ex-garimpeiros e
novos integrantes do MST - para chamar a atenção para sua reivindicação visto que, no
ano seguinte, as negociações para a desapropriação dessa fazenda não estava mais
acontecendo e a promessa de desapropriação caía como letra morta no esquecimento.
Então no dia 10 de abril de 1996, o MST organizou-se e iniciou uma caminhada
do interior do estado do Pará até a capital – Belém (trajeto 812 Km), mais de 4221
pessoas estavam na caminhada;tal marcha tinha como objetivo reivindicar ao governo
federal a desapropriação imediata de 40 hectares da fazenda Macaxeira. Vale destacar
que esta caminhada estava sendo acompanhada por policiais militares da tropa de
Paraupebas, seguindo ordens do major José Maria de Oliveira. Para esta caminhada os
dirigentes do movimento pediram ao governador Almir Gabriel para que enviasse
comida, remédio e calçados para poderem ir a Belém, este pedido foi recusado, no
entanto, a força policial continuava ali presente. Como a caminhada já havia começado
pessoas começaram a passaram mal por falta de comida e doenças, diminuindo o
número de participantes pela metade. No dia 15 de abril de 1996, somente parte da
comida que haviam pedido fora entregue; então, no dia seguinte, os sem-terra
saquearam um caminhão, que iria abastecer algumas instalações de comércios no
interior do estado, e interditaram um trecho da rodovia PA-150, um lugar popularmente
conhecido como Curva do S. Estabeleceram um prazo para suas reivindicações serem
atendidas até o meio dia do dia 17 de abril (quarta-feira). No dia 16 de abril, o major
que dava instruções para os policiais militares acompanhantes da manifestação foi até o
local e disse que não havia possibilidade de negociação sobre a estrada. A partir dessa
informação do major Oliveira, Paulo Sette Câmara (secretário do estado do Pará)
recebeu ordens do governador Almir Gabriel para o restabelecimento da denominada
ordem e o retorno dos manifestantes ao acampamento em Curianópolis; tal ordem
deveria ser cumprida fazendo uso de todos os meios e recursos disponíveis. Esse
comando repassou a ordem para o comandante geral da Polícia Militar, coronel Fabiano
Lopes, que incumbiu o coronel Mario Colares Pantoja e sua equipe para cuidar dessa
ação; “a ordem era dispersar a marcha, deter seus dirigentes, fazer o necessário para
acabar com aquilo que ameaçava ganhar proporções imprevisíveis em Eldorado”
(NEPOMUCENO; 2007: 137). Por volta das onze horas do dia 17, o tenente José
Nazaré Araújo dos Santos, chega à Curva do S, trazendo o parecer do major Oliveira
que não concordava com os pedidos do MST. Então, duas barreiras foram erguidas,
feitas de sacas de arroz e feijão, mais os integrantes do movimento (uma em cada
sentido da rodovia). Logo depois, duas tropas seguiam para este trecho da estrada,
ambas receberam a ordem curta e clara do coronel Pantoja:
liberar a estrada bloqueada por cerca de 2500 manifestantes do MST.
Levaram pouco menos de quarenta minutos para cumpri-la, ao mesmo
tempo, deixar a marca perene numa história salpicada de violência
contra aquela gente miserável, muitas vezes faminta, que punha em
jogo a vida para ter um pedaço de terra onde plantar, viver e morrer.
(NEPOMUCENO; 2007: 120)
Uma das tropas era liderada pelo major Oliveira, que saiu de Paraupebas com
um ônibus, chegando ao local por voltas das 16 horas; permaneceu em formação a certa
distância, visto que eles só deveriam entrar em ação depois da chegada da tropa de
Marabá (liderada pelo coronel Pantoja) que estava a caminho. Meia hora depois, chegou
a tropa de Marabá, com dois ônibus e uma caminhonete. Com cada tropa localizada em
um dos sentidos da rodovia, os manifestantes encontravam-se encurralados nos dois
sentidos, sem ter como fugir. As tropas somavam a presença de 155 soldados, entre
eles, encontravam-se cabos, sargentos, um tenente, um capitão, um comandante e os
líderes de cada tropa (o major e o coronel). O coronel Mário Colares Pantoja estava no
comando de 85 homens e o major José Maria Oliveira com mais 68 homens, as tropas
contavam com um arsenal de 7 revólveres calibre 38, 11 revólveres calibre 32, 10
submetralhadoras calibre 9 milímetros, 66 fuzis calibre 762, mais 29 cassetetes, 14
escudos, bombas de gás lacrimogêneo e bombas de efeito moral (mais algumas armas
de procedência desconhecida da corporação). Esses homens iniciaram fogo contra os
integrantes do movimento que possuíam somente 3 revólveres, uma garrucha, dezenas
de foices e facções, bastões, porretes, enxadas, várias garrafas explosivas. Porém o
inquérito policial afirma que o MST possuía um arsenal bem maior e este havia sido
utilizado.
O início do massacre é uma incógnita. De concreto, o ataque iniciou com a tropa
de Marabá, primeiramente com bombas de gás lacrimogêneo e depois tiros para o alto.
Os sem-terra reagiam atirando pedra e pedaços de madeira nos PMs, que, então,
iniciaram os disparos a esmo. A primeira vítima foi Amâncio Rodrigues dos Santos, 42
anos, ele foi morto por estar bem na linha de frente entre o MST e os policiais, uma vez
que, sendo surdo, não seguiu as ordens dos lideres do movimento. Depois de mais ou
menos quatro horas e meia, a tragédia fora concluído – “foi um massacre pesado, com
requinte de violência e alvos determinados” dizem especialistas já que, dentre 19
cadáveres, estavam os líderes e coordenadores dos sem-terra que levaram a maioria
mais de um tiro, além de golpes de armas brancas (curiosamente nenhuma mulher e
nenhuma criança) e vários feridos (somente 11 policiais), ou seja, tudo indica que esse
massacre foi uma verdadeira carnificina programada, uma caçada sanguinária com
execuções sumárias.
Na volta a Marabá, Pantoja disse aos soldados: “Ninguém sabe nada, ninguém
viu nada. Todos calados” (NEPOMUCENO; 2007: 106). Mas ele se esqueceu das
testemunhas, como por exemplo, o motorista do ônibus fretado da empresa contratada
para levar os policiais ao local do massacre, que dirigia nesse momento. Quando tudo
terminou, os policias militares foram embora. Os corpos foram jogados na caçamba de
uma caminhonete e levados para Curianópolis para a realização das autópsias, que
iniciaram naquela mesma noite, com funcionários estaduais da Secretaria de Segurança
Pública do Pará. Naquela noite, acabou a luz várias vezes, assim, os legistas tiveram que
trabalhar a luz de lanternas e tiveram que escrever os laudos em cima dos joelhos, uma
vez que não havia nem uma mesa para eles realizarem o trabalho. A identificação dos
corpos foi muito difícil, só terminou dia 20 de abril de 1996; isso porque muitos não
tinham documentos e foi preciso constar com a ajuda dos familiares para o
reconhecimento dos corpos. Várias pessoas desmaiaram ao olharem os corpos e as fotos
dos mortos porque estavam totalmente desfigurados, mutilados e deformados tamanha a
violência que sofreram.
Na sexta-feira daquela semana (dia 19 de abril), chegou ao local Nelson Massini,
um respeitado perito legal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, enviado pela
Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados (Brasília). Num primeiro
momento, ele foi impedido de ver os corpos, somente depois da Denúncia do Conselho
de Defesa Permanente da Pessoa Humana (ligado ao Ministério da Justiça) é que
Massini conseguiu ter acesso aos corpos e disse “os corpos já exalavam, estavam
putrificados, mas ainda assim não havia como apagar todas as evidências. Foi um
massacre típico, com uso de força desnecessária, imobilização das vítimas, seguida de
execução sumária” (NEPOMUCENO; 2007: 111). Corroborando com os laudos
emitidos por Massini, os inventários relatam que
as mortes dos integrantes do MST não resultaram do confronto. A
perícia técnica, robustecida pela prova testemunhal, autoriza a
constatação de uma desmedida e injustificável execução sumária
revelada por tiros de precisão, inclusive à queima-roupa, por corpos
retalhados a golpes de instrumentos cortantes, inclusive com
esmagamento de crânio e mutilações que evidenciam o animus
recandi (vontade de matar) dos executores da ação criminosa.
(NEPOMUCENO; 2007: 111-112)
Dias depois da matança, Fernando Henrique Cardoso, presidente na época, fez
um pronunciamento nos seguintes termos: “que ponham na cadeia o responsável, ou
ninguém mais vai acreditar neste país. Tenho a convicção de que, desta vez, os culpados
serão julgados”. Meses depois, FHC desapropriou parte da fazenda Macaxeira e, assim,
surgiu a Vila 17 de abril; assim é chamada a agrovila, núcleo urbano de assentamento
que pertence à fazenda Macaxeira (mais ou menos 15 Km de Eldorado do Carajás).
Lugar pobre, feio, com comércio de pobre, mas tem o privilégio de estar no
entroncamento de duas importantes estradas estaduais (PA-150 e PA-276 – esburacadas,
sem sinalização, perigosas, mas asfaltadas), a Vila não possui sistema de saneamento
básico e os moradores dependem de mananciais vizinhos para serem abastecidos. Ela é
estruturada em vários lotes, entre eles há 19 ruas e cada uma delas leva o nome de um
trabalhador rural morto em 17 de abril de 1996.
Sobre os feridos (69 pessoas) no ataque, 3 morreram em poucos dias por causa
da conseqüência dos tiros. Entre os 66 sobreviventes, somente 20 conseguiram, em
1998, entrar na Justiça e para pedir por indenizações. Somente em 1999, 20 pessoas
ganharam o direito à indenização (direito a tratamento médico e pensão do estado do
Pará – de salário mínimo a um salário mínimo e meio). Tal direito, eles só começaram a
receber em 2006, 7 anos depois da sentença, 8 anos do início do processo e 10 anos, 3
meses e 14 dias depois do massacre. O acordo foi firmado em 1 milhão e 200 mil reais e
a indenização de cada vítima variou entre 30 a 90 mil reais; os outros 46 sobreviventes
continuam esperando.
Os “os mutilados”, como são conhecidos na Vila 17 de abril, trazem balas
alojadas na cabeça, muitos perderam a audição ou a visão, sofrem de enxaquecas
profundas, fora os traumas psicológicos que levaram ao alcoolismo ou a depressão.
Com relação ao julgamento do caso, iniciou-se em 1999 com o juiz Ronaldo Marques
do Valle, considerado um conservador declarado; foram necessárias 27 sessões para
julgar todos os acusados (151 pessoas ao todo). Foram julgamentos confusos e
contraditórios, permitindo até criticas grosseiras e irônicas. Pantoja e Oliveira foram
considerados inocentes por falta de provas; assim o julgamento dos 151 réus foi
suspenso depois da repercussão negativa que teve, principalmente perante a imprensa.
Num segundo momento, a juíza Eva do Amaral Coelho, única que aceitou o caso
na época, assumiu a condução de um novo julgamento, iniciado em 2001, para os três
oficiais que foram absolvidos no julgamento anterior. Encomendou um laudo de
especialistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que confirmou que a
maioria dos disparos tinha sido feitos pelos PMs. Dessa forma, ela foi aconselhada a
rever a sua decisão, assim o julgamento foi adiado até maio de 2002 e a pedidos dos
sem-terra ela foi afastada do caso e foi nomeado outro juiz. Por fim, o novo magistrado
Roberto Moura iniciou, em 2002, mais um julgamento no qual aconteceu algo
inédito: em uma única sessão, Moura julga 128 acusados mobilizando uma média de um
minuto e meio para os promotores e assistentes apresentarem as provas de participação
dos acusados. Em 5 sessões, ele julgou 144 PMs, em que somente dois deles foram
condenados – o coronel Pantoja (228 anos de prisão – 19 penas de 12 anos cada uma;
pena máxima para o seu caso) e o major Oliveira (158 anos de prisão), ambos tiveram o
benefício de recorrerem em liberdade. Depois de diversos recursos, ambos foram
detidos em novembro de 2004, mas em poucos meses foram soltos (setembro de 2005).
Até meados de 2007, ainda não havia previsão para que esses novos recursos,
apresentados por ambos, fossem julgados. Assim, a partir das cinco horas da tarde
daquele fatídico dia, 17 de abril, tornou-se o Dia Mundial da Luta pela Terra. Tal
acontecimento passou a ser considerado um símbolo de desigualdades, injustiças,
perversidade de um sistema que visa privilegiar uns (poucos) e marginalizar outros
(maioria), assegurando dessa forma a impunidade. Dessa maneira, dizer o nome
Eldorado de Carajás faz falar uma região do interdiscurso que escancara os sentidos de
violência e de abuso de poder do Estado, que não assegura condições dignas de vidas a
seus cidadãos, tampouco, julga-os da mesma maneira. É, também, a atualização de uma
memória discursiva que implica o efeito de luta e resistência de sujeitos que reivindicam
justiça, terra e trabalho e que, historicamente em diferentes momentos, foram tratados a
bala e calados, tombados no chão que não lhes pertencia.
4. Os dizeres de Eric Nepomuceno: um outro lugar de dizer
Para compor nossa análise, constituímos um corpus com recortes do
livro “O massacre – Eldorado do Carajás: uma história de
impunidade”, de Eric Nepomuceno, publicado pela Editora Planeta,
em 2007. Essa obra tem o objetivo de reconstruir a trajetória anterior
ao massacre de Eldorado de Carajás colocando-se o sujeito-jornalista
inserido nos momentos que antecederam a reivindicação por terra, partindo do contexto
em que se encontravam os trabalhadores rurais sem-terra, quais eram suas
reivindicações quando obstruíram a rodovia naquela tarde, como se deu o
comando do governador do estado do Pará, os detalhes dos três julgamentos que
aconteceram para julgar os possíveis culpados por essa tragédia e a impunidade que
ainda está presente nesse caso. Nepomuceno, ao produzir um livro-reportagem sobre o
tema, fez emergir detalhes na maioria das vezes escamoteados nos dizeres midiáticos, o
que inscreve outra formação discursiva. É isso que iremos flagrar nos recortes que se
seguem.
Quem disparou, mutilou e trucidou lavradores sem terra? Soldados, cabos,
sargentos e oficiais de uma força policial frequentemente corrompida, bastante
mal paga, totalmente despreparada, acostumada muitas vezes a atuar a troco de
tostões na defesa dos interesses de fazendeiros, grileiros, ocupantes ilegais de
terra, pequenos comerciantes.” (NEPOMUCENO, 2007: 17)
O sujeito constrói um efeito de gradação de violência quando inscreve a cadeia
verbal “disparou”, “mutilou”, “trucidou”; esse mesmo sentido de gradação é mobilizado
ainda em outros dois momentos, para se referir as diferentes formas de nomear a polícia
como instituição de violência, por exemplo, na sequência “soldados”, “cabos”,
“sargentos”, “oficiais”. Para se dirigir aos que, na formação discursiva a qual o sujeito
se filia são os criminosos, ele inscreve na língua palavras como “fazendeiros”,
“grileiros”, “ocupantes ilegais de terra”, “pequenos comerciantes”. Assim, os sentidos
de criminalização do movimento do sem-terra é negado e endereçado aos fazendeiros.
“Os conflitos se sucedem, e não há nada no horizonte que permita vislumbrar
algum sossego. Nesse confronto, a vida de um homem vale menos que a de uma
vaca e muito menos do que a de uma toupeira qualquer.” (NEPOMUCENO,
2007: 57
Neste caso, “conflitos” e “sossego” apresentam um efeito de repetição e de um
conjunto de interesses, em uma região de sentidos que não incrimina ninguém; daí o
efeito de “confronto”, além de não culpabilizar os mandantes, também implica na
diferença de interesses como zona de enfrentamento. Essa é uma análise rápida, visto
que tais palavras poderiam ser substituídas por outras, mas, como analistas do discurso,
levamos em consideração que está registrado, o que foi dito pelo sujeito já que essas
‘escolhas’ indicam o modo como a ideologia interpela e captura-o em um lugar dado.
Nesse mesmo trecho, o autor faz uma comparação da vida do homem com uma “vaca”
ou de “uma toupeira qualquer”, o que gera uma desvalorização ou diminuição do
homem.
“É verdade – o próprio MST admite – que o assentamento 17 de abril não
conseguia se transformar no modelo idealizado. Mas o resultado dessa trajetória,
da mobilização inicial aos dias de hoje, passando pela mortandade dos sem-terra e
pelo vasto rosário de percalços enfrentados pelos sobreviventes, certamente se
transformou num exemplo de que as reivindicações dos sem-terra eram válidas.
Tanto é assim que produzem e desfrutam de um padrão de vida, apesar de suas
limitações, que até então permanecia confinado ao rincão dos sonhos impossíveis.”
(NEPOMUCENO, 2007: 91-92)
No presente recorte, observamos o sentido de veracidade no discurso sinalizado
pelo próprio MST de admissão das dificuldades em produzir um “modelo idealizado”
de reforma agrária. A formulação “É verdade – o próprio MST admite” inscreve o MST
na posição de movimento que não mente, diz a verdade e faz a autocrítica diante das
contradições que vive. É tão autêntico que até mesmo reconhece que não consegue
implementar um “modelo idealizado” de assentamento, mas aponta também que só
mesmo com muitos esforços o movimento conseguiu o estado de mobilização atual, o
que faz falar a disponibilidade para a luta. Assim, as reivindicações inscritas pelo
discurso do MST apresentam-se como justas e necessárias, o que reforça o valor da luta
dos sem-terra.
“Todos, principalmente o governador, ouviram exigências claras de ações mais
duras contra o MST. Sette Câmara recebeu uma lista com os nomes das lideranças
consideradas mais perigosas. Por uma ironia das coincidências, foram listados 19
nomes – o mesmo número de mortos em Eldorado do Carajás. Entre esses nomes,
destacavam-se os de Oziel Alves Pereira, Graciano Olímpio de Souza e Raimundo
Gouvêa. Os dois primeiros foram mortos na Curva do S. Raimundo Gouvêa
conseguiu escapar vivo.” (NEPOMUCENO, 2007: 133)
Nesse trecho, observa-se a voz das autoridades “do governador”, na época Almir
Gabriel, e do secretário de segurança do Estado, Paulo “Sette Câmara”, que fizeram
ações duras, repressivas e violentas. Naquela ocasião, essas autoridades compreenderam
que a manifestação, naquela rodovia pública no interior do Pará, estava gerando uma
ameaça à ordem e à paz, causando uma desordem e também uma situação de perigo.
Nessa formação ideológica reivindicar é considerado algo muito perigoso, fora-da-lei
aquela situação que precisa ser contido com força policial, pois não são atribuídos
sentidos de reivindicação ou luta aos atores sociais, mas sim de criminalidade.
Notamos, além do sentido de violência, a inscrição de que este foi um crime planejado
previamente. Nas formulações “uma ironia das coincidências” e “listados 19 nomes – o
mesmo número de mortos” é intensificado o número de mortos igual ao número de
assassinados, o que marca que as mortes foram provocadas pela polícia e caracterizamse como extermínio ou execução sumária.
“A única coisa que o major Oliveira podia fazer era esperar pelas ordens de entrar em
ação, que viriam do coronel Pantoja. E, quando as ordens viessem, a atitude seria
atacar. Do jeito que fosse.” (NEPOMUCENO, 2007: 145)
Nesse trecho, o sujeito reforça o sentido de violência ao descrever os detalhes do
massacre. Ao dizer “Do jeito que fosse”, interpretamos o movimento de o sujeito
denunciar o abuso policial, a ação de vale tudo da força repressiva, na qual nenhum
obstáculo deixaria de ser transposto. E termo “atacar”, que normalmente é atribuído a
bichos, faz referência a animalização da ação dos policiais em sua abordagem aos
manifestantes, como se o ataque dos soldados fosse uma atitude de irracionalidade, ou
seja, um ataque que os aproxima de animais. Ainda neste mesmo termo, temos que só é
“atacado” quem possui um aviso antecedente ao ataque, sendo utilizado como estratégia
de guerra, para que o exército inimigo prepare-se para combater, no entanto, na presente
ocasião, os manifestantes do movimento sem-terra não se encontravam em nenhuma
posição de combate. Assim, cria-se o sentido de que todas as pessoas feridas, atacadas,
mortas naquele momento foram vítimas de uma guerra não declarada.
“A desproporção entre o armamento e o número de homens armados desmente
qualquer possibilidade de confronto. Luiz Vanderley, por exemplo, reconhece que
disparou três ou quatro tiros sem acertar ninguém. Assustado, largou no chão o
revólver calibre 38 pego da mão de Julio César, outro militando do MST, e correu
para o matagal da beira da estrada, procurando abrigo e salvação.”
(NEPOMUCENO, 2007: 157)
No presente recorte, notamos, mais uma vez, que o MST é colocado na posição
de vítima do massacre, como sendo atacado. O recorte que se segue indicia isso ao
afirmar que a “desproporção entre o armamento e o número de homens armados
desmente qualquer possibilidade de confronto”, gerando um efeito de mentira
endereçado aos policiais e autoridades políticas. Uma das “vítimas” relata ter
“procurado abrigo e salvação”, o que coloca esse sujeito na posição de desespero
próximo da morte; daí o salvamento por intermédio religioso, pois naquela situação
nada poderia ser feito, ou seja, os sem-terra são discursivizados como estando em
situação sem salvação em que tudo se encontrava perdido.
“É verdade que as pistas de alguns personagens importantes sumiram na poeira do
tempo, algumas afirmações jamais foram investigadas até o fim, houve um certo afã
em dissolver acusações incômodas, sufocando-as num verniz duvidoso (...). É como se
prevalecesse a assustadora, absurda sensação de que, desde o princípio, já estivesse
tecida a trama do véu de impunidade que, passado mais de dez anos daquela tarde
fatídica, continua encobrindo os responsáveis pela morte, os ferimentos e a memória,
dilacerada para sempre, de quem estava na Curva do S.” (NEPOMUCENO, 2007: 166167)
Nesse dizer, o sujeito deixa várias perguntas sem respostas diretas. As dúvidas
dizem respeito a “alguns personagens importantes” – quais seriam eles?, “algumas
afirmações jamais foram investigadas até o fim” – quais investigações?, “acusações
incômodas” – para quem? Polícia ou fazendeiros? E ainda chama atenção para as provas
desse crime que “sumiram na poeira do tempo”. Tudo isso coloca o sujeito-autor em
uma zona de pouca clareza, recoberta por um “verniz duvidoso” que nos dá a entender
que as provas do massacre sumiram sem ninguém se dar conta ao longo do tempo, ou
melhor, especialmente porque alguém deu conta delas. O que sobraram foram provas
que se mostraram confusas e imprecisas. E mais uma vez, emerge o sentido de
impunidade dos responsáveis pela tragédia e, nesse lugar, a voz de denúncia da
impunidade reclama ser materializada contra a “tecida a trama do véu da impunidade”.
O véu da impunidade “continua encobrindo os responsáveis pela morte” e o sujeito
marca os movimentos do político na ordem do seu discurso, produzindo disfarces,
acobertamentos, esconderijos, silenciamentos e os assassinos que permanecem sem
rosto ou nome. Disso deriva o efeito de memória “dilacerada”, que nos remete ao
sentido de rasgada, tanto no corpo (“ferimentos”), quanto na história (“apagamentos”),
porque ainda não houve investigações levadas a cabo, porque dados oficiais sumiram,
porque nomes foram silenciados e, por fim, porque o massacre não foi entendido como
tal.
“Chegando lá, começou o penoso processo de identificação dos mortos. Nas
autópsias, eles foram identificados como “ignorado número 1”, e assim, em
sequência, até o número 19. Muitos estavam de tal modo deformados que só puderam
ser efetivamente reconhecidos por meio de uma tenebrosa comparação com suas
fotos, registradas na entrada do corpo no necrotério de Marabá. Muitos familiares
desmaiaram durante o reconhecimento, ao ver o estado em que se encontravam os
corpos. / Essa jornada macabra só terminou ao amanhecer do da 20 de abril.
Dezesseis mortos foram enterrados em Curianópolis. Um, em Eldorado do Carajás.
Um, em Marabá. E outro – Oziel – foi enterrado em Paraupebas, numa cerimônia de
demolidora emoção.” (NEPOMUCENO, 2007: 180)
No último recorte selecionado, observamos pistas que indicam a violência
sofrida pelos corpos e registradas pelos médicos legistas no Instituto Médico Legal; as
marcas linguísticas “penoso”, “tenebrosa”, “jornada macabra” indicam esse caminho. E
foi tamanha a violência sofrida por esses corpos, que a identificação foi igualmente
árdua; no caso, notamos a presença de uma violência não somente com o intuito de
matar, mas, sobretudo, de torturar, deformar os corpos das vítimas, tornando as faces
dos sem-terras mortas e também destruídas e destituídas de feição própria. Esse
movimento no discurso inscreve o ódio potencializado pela ação dos policiais militares
em sua abordagem aos sem-terra. E também há nesse trecho, a citação de um nome –
“Oziel”, dentre todos os mortos – somente o nome de Oziel é citado, este era um dos
principais líderes do movimento naquele momento. O nome dele estava entre os
primeiros a serem executados pela ação dos policiais, e o sujeito aponta que somente
esse cadáver teve o direito a uma “cerimônia”, a um ritual de respeito, de despedida.
Inferimos que a posse do nome próprio é um distintivo bastante singular que ordena o
modo como o sujeito morto é tratado. No entanto, as outras vítimas não tiveram seus
nomes citados e o sujeito não faz nenhuma referencia se eles tiveram ou não uma
celebração por sua morte, aparecem como seres anônimos, sem-nome e sem-terra.
Diante dos recortes da obra de Nepomuceno, podemos interpretar o modo como
esse sujeito indicia a violência policial no massacre, o tratamento desumano destinado
aos corpos das vítimas dessa tragédia, que foram torturadas, mutiladas e deformadas, a
maneira igualmente desrespeitosa com que os cadáveres foram tratados, a indiferença
dos legistas frente aos corpos daquelas vítimas. Todos esses sentidos, escamoteados
no/pelo discurso midiático e ausentes do discurso dos internautas, aparecem aqui dando
corpo a outra formação discursiva e fazendo o discurso girar de outro modo.
4. Palavras finais: um percurso nas bordas de dizer
Nosso intuito ao longo dessa pesquisa foi promover um estudo sobre os
significados sobre os conceitos de memória e arquivo no campo do discurso. Para
interpretar o jogo da memória e analisar um arquivo discurso, observamos os dizeres
sobre uma das maiores tragédias que o Brasil já presenciou; através do discurso do
jornalista Eric Nepomuceno, que ao descrever os detalhes do massacre de Eldorado de
Carajás, faz falar outra voz em relação aos mesmos integrantes do MST, aqui nomeados
como vítimas das diferentes formas de violências, violência contra o corpo, violência
contra a dignidade dessas pessoas, violência contra os direitos delas, e a impunidade,
violência que perpetua o efeito da injustiça há mais de uma década sobre esse caso. Esse
percurso nos levou a inferir que os dizeres são atravessados por fissuras, contradições,
heterogeneidades e tensões de sentidos, que sempre podem ser outros e que são
sustentados pela memória discursiva sobre os sentidos do agrário no país (ROMÃO,
2002).
Finalmente chegamos à conclusão de que uma data como a do massacre de
Eldorado de Carajás instala gestos de escrita e leitura a partir de uma memória
discursiva, implica considerar que as palavras não nascem no momento em que são
proferidas, mas inscrevem-se na teia do discurso, do fluxo e do movimento de sentidos
de repetição ou ruptura. A mesma data pode aglutinar em seu em torno um arquivo
discursivo de dizeres publicizados em diferentes veículos, aos quais o sujeito teve
acesso; isso é, quanto maior for o passeio pelas redes de memória, mais ele terá
condições de tecer sentidos em seu arquivo ou no arquivo com o qual ele poderá jogar
para a produção de novos sentidos. De nossa parte, tal data marca a possibilidade de
enunciar não apenas sobre os trabalhadores sem-terra mortos, mas também sobre a
impunidade dos autores do massacre e, sobretudo, sobre a desigualdade de poderes no
país em que pese a concentração fundiária. Nessa direção, instala-se nossa voz nas
bordas de dizer a tornar presente tanto os sentidos de vida dos homens e mulheres que
marcharam na curva do S, quanto a voz daqueles que hoje caminham em busca de vida
e justiça em nosso país.
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