anais - UCSal
Transcrição
anais - UCSal
ANAIS O ORG GANIIZZA AÇ ÇÃO Universidade Católica do Salvador – UCSal / Programa de Pós-Graduação em Família na Sociedade Contemporânea Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana – SBPW International Winnicott Association – IWA C Coom miissssããoo oorrggaanniizzaaddoorraa:: José Euclimar Xavier de Menezes – Coordenador Fernanda Leal – Assessoria de Captação de Recursos Teresa Oliveira – Assessoria de Redes Sociais Luciene Santos Figueiredo – Assessoria de Blog Priscilla Ramos – Assessoria de Projetos e Links UCSAL. Sistema de Bibliotecas Setor de Cadastramento C719 Colóquio Winnicott (4.: 2014 maio 19: Universidade Católica do Salvador) Anais do IV Colóquio Winnicott: O Pai: Suporte do Amadurecimento, 19 de maio de 2014. - Salvador: UCSAL - Universidade Católica do Salvador, 2014. 123p. 1.Winnicott - Colóquio - Brasil. 2. Pai – aspecto psicológico 3. Família I. Universidade Católica do Salvador. II. Título. CDU 063:316.356.2-055.1 2 Sumário Apresentação José Euclimar de Menezes Xavier ............................................................................... 04 Mesa 1 - O Pai no Processo de Socialização Winnicott e o monoteísmo de Freud ZelikoLoparic ............................................................................................................... 06 Loparic: “mode d´imploir” – o leitor entusiasmado de Winnicott José Euclimar de Menezes Xavier ............................................................................... 40 Mesa 2 - Idealização no Processo Terapêutico – uma abordagem da psicologia do Self Idealização no Processo Terapêutico – uma abordagem da psicologia do Self Yossi Tamir ................................................................................................................. 48 Um comentário sobre o texto “Idealização no processo terapêutico, uma abordagem da psicologia do Self” de YossiTamir Claudia Mascarenhas Fernandes................................................................................. 59 Função paterna e maternagem: uma questão com a imagem do pai Fernanda Leal............................................................................................................... 64 Mesa 3 - Provisão Ambiental Paterna O pai no processo amadurecimento Claudia Dias Rosa ........................................................................................................ 74 Comentário ao texto “Provisão ambiental paterna” Conceição Aparecida Serralha .................................................................................... 88 Comentário ao texto “Provisão ambiental paterna”. Por um cuidado afetivo do pai Marlene Brito de Jesus Pereira .................................................................................... 96 Mesa 4 - Democracia como Forma de Maturidade El ambiente: red de cuidados Leticia O. Minhot …………………………………........................................................... 108 Comentários a partir do Texto de Letícia O. Minhot: El Ambiente: Red de Cuidados Elaine Pedreira Rabinovich ......................................................................................... 117 3 APRESENTAÇÃO Os Colóquios Winnicott de Salvador, organizados anualmente, nasceram da parceria entre a Universidade Católica do Salvador com a Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana de São Paulo e com a InternationalWinnicottAssociation – IWA, que possuem redes internacionais próprias de cooperação em produção e disseminação científica com intensa produção na temática acerca da família, de sua dinâmica, de seu modo de funcionamento, de sua multiplicidade. Essas redes foram mobilizadas para os três Colóquios Winnicott da Bahia anteriores, realizados em 2012 e 2013 e sediados na Universidade Católica do Salvador, para os quais acorreram cerca de 200 participantes em cada ocasião. Os títulos dos três primeiros Colóquios foram: Ordem Psíquica X Ordem Familiar, realizado em 28/05/2012. A primeira edição do Colóquio reuniu profissionais das três instituições que iniciavam a parceria promotora dessa reunião científica que debatem, interdisciplinarmente, questões relativas à organização psicológica do sujeito e de sua inserção e/ou pertencimento ao núcleo familiar. O foco deste encontro, em particular, foi posto no cotejamento das teorias freudiana e winnicottiana acerca do papel da família para a organização psicológica do sujeito. Em 24/08/2012 foi realizado o segundo Colóquio com a temática A família na psicanálise de Winnicott, quando foram debatidas questões como: “Da família edipiana de Freud ao ambiente familiar winnicottiano: tensões”; “Para além das funções do ambiente familiar”; “A família e o amadurecimento pessoal”. Realizado em 14/10/2013, o terceiro Colóquio discutiu os Olhares Interdisciplinares sobre Família e Adoção, contando com a realização de quatro mesas-redondas com os seguintes temas: “Família e Constituição do Indivíduo”; “Adoção X Provisão Ambiental: elementos da ética e do cuidado”; “Ambiente Familiar 4 e Tendência Antissocial: presença de Winnicott no direito”; “Ambientes e Laços Neofamiliares: paradigmas alternativos”. Nesta versão de 2014, o Colóquio traz como temática de discussão o Pai: suporte do amadurecimento. Dada à mutação veloz e intensa pela qual passa a família, fato que redesenha papéis e funções dos seus membros em seu interior, pensar a figura do pai a partir da sensibilidade terapêutica e da reflexão de Winnicott em diálogo com vários especialistas da interdisciplinaridade pareceu, aos organizadores da reunião, de extrema atualidade e de grande pertinência. Tempos novos desafiam à reinvenção da paternidade. Mas a figura do pai, no ordenamento familiar e, mais focadamente, no desenvolvimento da dimensão psicológica dos filhos, o que pede desde sempre, pela sua presença, mesmo que fatores socioculturais se interponham? A busca de aprofundamento desta invariante reúne aqui, nestes anais, as reflexões dos especialistas que aprofundam o debate sobre o tema. Prof. Dr. José Menezes Pró-Reitor de Pós Graduação e Pesquisa/UCSal 5 MESA-REDONDA 1: O PAI NO PROCESSO DE SOCIALIZAÇÃO Conferencista: Prof. Dr. ZeljkoLoparic1 Comentadores: Prof. Dr. José Menezes2 (UCSal/FSBA) e Profa. Dra. Caroline R. Vasconcelos3 (UEFS/BA) Winnicott e o monoteísmo de Freud4 ZeljkoLoparic Resumo:O presente trabalho será iniciado pela análise dos fundamentos edípicos da teoria freudiana das origens da religião monoteísta. Serão apresentadas duas versões da derivação freudiana do monoteísmo, a filogenética e a ontogenética. Em seguida, serão estudadas as críticas que Winnicott dirige a ambas. Palavras-chave: Winnicott, Freud, pai, filogênese, monoteísmo. 1. Introdução Para muito leitores de textos psicanalíticos, o tema “O pai e o monoteísmo” faz imediatamente pensar em Freud e em sua teoria psicanalítica da religião monoteísta como produto de conflitos originados em situações de natureza edípica. Winnicott 1 Doutor em Filosofia pelo UniversitéCatholique de Louvain, Bélgica (1982), Professor Titular da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil. 2 Doutor em Filosofia pela Universidade Estadual de Campinas, Brasil (2003), Professor Adjunto IV da Universidade Católica do Salvador, Brasil 3 Doutora em Filosofia pela UNICAMP (2008), Professora Titular da Universidade Estadual de Feira de Santana, Brasil. 4 O presente trabalho é uma versão modificada e substancialmente ampliada em seções iniciais do meu artigo “O deus da alcova e o deus do berço” publicado na Festschrift em homenagem a Oswaldo Giacoia. O primeiro esboço desse conjunto de ideias foi apresentado em maio de 2012, em São Paulo, no XVII Colóquio Winnicott Internacional da Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana, sob o título “Pai e o monoteísmo” e, no mês de outubro do mesmo ano, em Paris, no Grupo Winnicott da SFP, dirigido por Laura Dethiville. 6 parece não ter nada a dizer sobre esse assunto, ele seria, sobretudo, se não exclusivamente, um teórico da relação dual mãe-bebê, anterior ao surgimento dos relacionamentos triangulares e, portanto, da religião como forma da vida cultural. Quando fala de religião, o Winnicott psicanalista não poderia fazer mais do que repetir Freud. Pois bem, isso é um engano. Para se convencer disso, basta ler os comentários de Winnicott sobre Moisés e monoteísmo de Freud, datados de janeiro de 1969, nos quais é apresentada uma crítica direta das teses freudianas centrada na dinâmica pulsional, seguida de uma concepção psicanalítica alternativa do monoteísmo, baseada num novo conceito de situaçãoproblema exemplar da psicanálise – a do bebê no colo da mãe, que passa a ocupar o lugar da situação edípica –, numa nova visão geral do campo de pesquisa da psicanálise, formulada como teoria do amadurecimento, e no deslocamento do ponto de origem desse tipo de religiosidade para um estágio anterior àquele dominado por relações edípicas. Tratei da concepção winnicottiana do monoteísmo num trabalho separado (Loparic, 2013b). No que segue, proponho-me a analisar a sua crítica da derivação freudiana do monoteísmo da dinâmica pulsional. 2. Fundamentos factuais e teóricos da derivação do monoteísmo em Freud O fundamento factual da derivação do monoteísmo em Freudé, como indiquei, um conjunto de fenômenos relacionados a conflitos gerados pela sexualidade infantil, em particular a dos meninos, chamado por Freud de complexo de Édipo. Observa-se o amor, de características sexuais, do menino pela mãe e a hostilidade para como o pai, que também é amado. Existem ainda formas invertidas desse fenômeno: o menino faz o pacto homossexual com o pai e se afasta da mãe. Fenômenos parecidos, com sinais invertidos, observam-se nas meninas. Freud encontrou esse material primeiramente na sua auto-análise e, em seguida, na clínica (nos casos Dora, Pequeno Hans e Homem dos Lobos). 7 Na psicanálise freudiana, o complexo de Édipo não é apenas o ponto de partida da derivação do monoteísmo, mas também de todas as outras formações da cultura: ordem social, moral, artes, saberes. O Édipo dá origem a 1) estruturação do ser humano como aparelho psíquico com diferentes instâncias (id, ego, superego), ativadas pelas forças internas, descrita numa linguagem mista, descritiva e especulativa, 2) surgimento dos distúrbios da competência da psicanálise (neuroses), 3) formas da vida cultural: ordem social, religião (da qual o monoteísmo é a forma mais elevada), eticidade (moralidade baseada nas leis), arte e as diferentes modalidades do saber, tanto científico quanto filosófico.5 A teoria freudiana desses desenvolvimentos é elaborada em dois níveis: o da teoria da sexualidade e o da metapsicologia. A teoria freudiana da sexualidade, peça principal da sua psicanálise, valoriza de modo especial a cena primária, sobre a qual se baseia também a clínica freudiana da sexualidade. Essa teoria, em si mesma factual, é enriquecida de componentes especulativos de diferentes tipos: supra-estrutura meta psicológica propriamente dita (pulsões, aparelho psíquico), criada no âmbito da visão kantiana da teorização científica; mitológica grega (numa determinada leitura)6; especulações mitológicas da lavra do próprio Freud, inspiradas em Darwin; referências literárias (O Édipo Rei, Hamlet); doutrinas e práticas religiosas judaico-cristãs (por exemplo, a prática de circuncisão). Note-se que, segundo o próprio Freud, esses componentes especulativos da sua psicanálise não consistem de enunciados que possam ser verdadeiros ou falsos (confrontados com a experiência), mas de convenções, construtos elaborados com a finalidade de serem usados como guias na busca e na organização dos fenômenos sexuais teórica e clinicamente relevantes.A metapsicologia freudiana é, no essencial, o horizonte hermenêutico para a interpretação dos fenômenos sexuais com o objetivo de 5 Freud tem em mente a cultura em geral, embora tenha pouca disposição em dialogar diretamente com as culturas indiana e do extremo oriente. 6 Essa leitura foi objeto de crítica severa de Vernant (2001, cap. 4). Segundo Vernant, xxx. Para uma leitura hegeliana do mito de Édipo, veja ainda Goux, 1990. Uma interpretação baseada em Heidegger encontra-se em Loparic, 1990. 8 permitir a formulação de problemas clínicos de modo a poderem ser tratados pelas técnicas à disposição da psicanálise.7 Não é por nada, portanto, que, numa nota de rodapé da parte III.5 dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, acrescentada à edição de 1920, Freud afirma que, como progresso da psicanálise, ficou cada vez mais em evidência o significado do Édipo como complexo nuclear das neuroses, isto é, como peça essencial no conteúdo das neuroses, e o reconhecimento desse fato, diz Freud, “tornou-se o Schiboleth[das Schiboleth] da psicanálise”,8 o signo identificador que separa “os seguidores da psicanálise de seus adversários”, entenda-se, de seus inimigos teóricos em geral (de Jung, por exemplo) e não apenas daqueles que, por limitações teóricas ou mesmo pessoais, não são capazes de entender essa ou aquela parte da psicanálise.9 A psicanálise 7 Pelo que pude observar, muitos freudianos esquecem que a metapsicologia freudiana, por ser uma convenção especulativa elaborada para atender fins metodológicos teóricos, não tem relevância clínica direta, isto é, não pode, de direito, ser aplicada como tal na descrição de problemas clínicos, sexuais ou derivados destes, nem na determinação de práticas de resolução psicanalítica desses problemas. 8 Note-se que, em 1920, Freud usa a grafia “Schiboleth” e em outras ocorrências, posteriores, “Schibboleth”. 9 Como é sabido, Freud usa o termo “Schibboleth” em várias ocasiões posteriores, mas sempre num sentido mais fraco do que na nota de 1920. Na primeira página de O ego e o id, de 1923, ele diz que a distinção entre a parte consciente e a parte inconsciente do psiquismo foi, desde o início, uma pressuposição fundamental da psicanálise, de modo que “aí está o primeiro Schibboleth da psicanálise” (hieristdasersteSchibbolethderPsychoanalyse). Pois, prossegue Freud, “a ideia de um psiquismo que não fosse também consciente é tão incompreensível à maioria dos que são educados filosoficamente, que ela lhes parece absurda e recusável por meios meramente lógicos”. A ideia do inconsciente psíquico serviu, portanto, como signo que permitia distinguir a psicanálise de uma determinada versão da filosofia da consciência que negava a existência do psiquismo inconsciente. Ora, a mesma distinção não podia ser usada para opor a psicanálise à filosofia da consciência, ou mesmo à filosofia, em geral, visto que o conceito de inconsciente psíquico não é uma novidade introduzida por Freud e pode ser encontrado, inclusive no sentido de inconsciente dinâmico, já em Kant e em Schoppenhauer, para não falar em V. Hartmann e Nietzsche. Nas Novas conferências, publicadas em1933, já na primeira página do capítulo inicial dessa obra, Freud faz notar que a teoria dos sonhos, que permaneceu como “a parte mais característica e específica da nova ciência”, foi investida, devido à estranheza das suas afirmações, do “papel de um Schibboleth” (die RolleeinesSchibboleth), pois “a sua aplicação decidia entre aqueles que podiam tornar-se seguidores da psicanálise e aqueles aos quais esta permanecia definitivamente incompreensível”. Para o próprio Freud, a teoria dos sonhos foi, de fato, um passo decisivo no seu caminho da psicoterapia médica à psicanálise e, na sequência das suas pesquisas, foi usada por ele como ponto de apoio seguro na tentativa de compreender os fatos ainda desconhecidos das neuroses, objeto da parte principal da psicanálise freudiana, que é centrada precisamente na teoria e na clínica dos distúrbios neuróticos, a interpretação dos sonhos fazendo parte da clínica desses distúrbios. A teoria dos sonhos não é, portanto, a peça central da psicanálise freudiana tomada como um todo, nem é “incompreensível” a todos aqueles que têm dificuldades com a teoria freudiana das neuroses. 9 de Freud é essencialmente edipiana e guerreira.10 O Édipo é o traço que a põe em conflito, como bem viram Klein, Bion e Lacan, não apenas com outras teorias psicoterápicas, mas também com várias reformulações da psicanálise de época de Freud, com as de Jung ou Ferenczi. Os freudianos ortodoxos transferiram essa hostilidade, em maior ou menor grau, a todas as reedições da psicanálise mais recentes, em particular, à psicanálise maturacional, não edipiana de Winnicott.11 Convém observar que, durante a história da psicanálise, o conceito freudiano de complexo de Édipo, que nunca foi devidamente explicitado e continha, desde o início, conforme foi dito, elementos míticos e meta psicológicos claramente ficcionais, foi reformulado e utilizado de maneiras não menos fantasiosas. Bion, por exemplo avançou a tese de que a descoberta da psicanálise não se fundamenta nos conflitos factuais de ordem sexual, em particular dos conflitos intra-familiares, descobertos por Freud pela auto-análise e na clínica, e que são objeto da sua teoria factual da sexualidade, mas no mito de Édipo. Segundo Bion, esse mito teria servido a Freud de instrumento para descobrir a psicanálise e esta, usada como instrumento, capacitou Freud a descobrir o complexo de Édipo como fato clínico, detectar o material edipiano nos sonhos etc. (Bion, 1963, p. 92). A psicanálise freudiana não se baseia em fatos sexuais, pois o termo “sexo” só tem sentido no contexto do mito de Édipo (p. 45). Isso se deve ao fato de o mito de Édipo ser um componente importante do conteúdo da mente humana (p. 47), 10 O termo “Schiboleth” usado por Freud é de origem hebraica e significa “espiga de trigo”. Segundo o Velho Testamento, Juízes 12: 1-15, esta palavra foi usada para distinguir entre duas tribos, ambas semitas,os gileadotas e os efraimitas, que estavam em estado de guerra uns contra outros. Os gileaditas, vencedores da batalha, cercaram os efraimitas sobreviventes e, a fim de os distinguir de membros do seu próprio grupo, exigiram que todos pronunciassem a palavra "schibboleth". Como os efraimitas, cujo dialeto era diferente, só conseguiam pronunciar "sibboleth", eram assim reconhecidos e executados. A partir da Bíblia, esse uso da linguagem para diferenciar grupos humanos em estado de guerra foi difundido mundialmente e, geralmente, para atuar de forma hostil contra aqueles que são reconhecidos como sendo pertencentes a grupos diferentes. Conforme se lê na Wikipédia do Google, durante o massacre das Vésperas Sicilianas, no séc. XIV, os franceses eram reconhecidos pela forma como pronunciavam “ciceri”, uma espécie de ervilha seca. Durante as revoluções de 1893 e de 1923, no Sul do Brasil, os uruguaios eram identificados fazendo-os pronunciarem a palavra pauzinhos, que eles pronunciavam como paucinhos. 11 Para detalhes sobre a distinção entre a psicanálise edipiana e não edipiana, veja Loparic, 1996 e 2001. A hostilidade dos grupos ortodoxos kleinianos em relação aWinnicott foi bem documentada em Little, 1992, pp. 14 e 111. Outros traços da teoria freudiana foram também usados como armas de guerra, por exemplo a metapsicologia, cujas variantes serviram para opor os kleinianos aos annafreudianos, numa disputa violenta que quase resultou na dissolução da BPS. 10 mais precisamente, uma pré-concepção inata, um estado de expectativa da mente vazio, adaptado à recepção de uma gama restrita de fenômenos pelos quais fica preenchida, realizada, tornando-se concepção (p. 23). Enquanto tal, o mito de Édipo faz parte do “equipamento de observação” padrão do material clínico (Bion, 1965, p. 50). Por tudo isso, a adesão ao complexo de Édipo pode e deve ser usado como um critério para distinguir os psicanalistas dos outros grupos de psicoterapeutas: Freud afirmou que um dos critérios segundo os quais um psicanalista deveria ser avaliado era o grau da sua fidelidade intelectual à teoria do complexo de Édipo. Ele demonstrou, assim, a importância que atribuía a essa teoria. O passar do tempo não trouxe nenhuma indicação de que Freud estaria errado por superestimar a importância do famoso complexo; a evidência a seu favor nunca está ausente, embora possa não ser observada. (BION, 1965, p. 49-50). É provável que Bion não esteja fazendo mais do que retomar, à sua maneira, a afirmação de Freud, de 1920, de que a teoria do Édipo, o complexo nuclear do qual se originam todos os distúrbios a cargo da psicanálise, é o Schibbolethda psicanálise.12 Dito isso, gostaria de precisar que o uso que farei do complexo de Édipo é baseado numa interpretação que poderia ser objetável a muitos leitores, embora não aos leitores winnicottianos, visto que, no essencial, é muito próxima da oferecida por Winnicott na parte II de Natureza humana. 3. A derivação filogenética do monoteísmo em Freud Usando as duas versões da sua análise de relações triangulares com base genital, Freud elaborou dois esquemas da derivação do monoteísmo, bem como de todas as demais conquistas do desenvolvimento cultural ocidental: o filogenético e o ontogenético, o primeiro, mitológico e o segundo, propriamente psicanalítico. Nos dois 12 Num artigo recente, bastante aplaudido, H. Faimberg se propõe a seguinte tarefa: mostrar que o mito de Édipo, utilizado como metáfora, permite resolver os principais problemas teóricos da psicanálise levantados pela clínica (Faimberg, 1993, p. 150-151). 11 esquemas, a ênfase é posta na derivação do monoteísmo nos meninos. As meninas são vistas como incapazes de pleno desenvolvimento da religiosidade e da moralidade. Consideremos, em primeiro lugar, a versão filogenética do monoteísmo, que faz parte da filogênese especulativa freudiana da sociedade humana e é, de longe, a mais explorada e aplicada por Freud. Ela é baseada no mito elaborado por Freud com base em material da antropologia da época e na história natural darwiniana, organizado numa narrativa inspirada na mitologia judaico-cristã.13 O monoteísmo nasceu, diz o mito, da disputa violenta entre os machos pelos objetos sexuais, isto é, pelas fêmeas, na horda primitiva, portanto, numa situação que é anterior à existência da cultura, a saber, da ordem social, da religião, da moral e das artes. Temos aqui o equivalente sexual da luta pela existência (struggle for existence) de Darwin. Darwin descreve a “lei da batalha” (Law ofBattle) sexual entre os machos da seguinte maneira: With barbarous nations, for instance with the Australians, the women are the constant cause of war both between the individuals of the same tribe and between distinct tribes. So no doubt it was in ancient 14 Helenammulierteterrima belli causa". times; "namfuit ante With the North American Indians, the contest is reduced to a system. That excellent observer, Hearne,says: "It has ever been the custom among these people for the men to wrestle for any woman to whom they are attached; and, of course, the strongest party always carries off the prize. A weak man, unless he be a good hunter, and well-beloved, is seldom permitted to keep a wife that a stronger man thinks worth his notice. This custom prevails throughout all the tribes, and causes a great spirit of emulation among their youth, who are upon all occasions, from their childhood, trying their strength and skill in wrestling." With the Guanas of South America, Azara states that the men rarely marry till twenty or more years old, as before that age they cannot conquer their rivals. (1871, p. 323-324) 13 A especulação sobre a horda primitiva foi chamada, e Freud não se incomodou, de história como se (just-sostory, SA, IX, p. 114). Ele próprio a denominou “mito científico” (ibidem, p. 126, 426) inspirado em Darwin, não fugindo da comparação com um romance. Temos aqui, por um lado, um caso particular do uso do método especulativo preconizado por Kant e, por outro, uma utilização laicizada das narrativas mitológicas judaico-cristãs, conforme observou muito bem o cripto-católico Jacques Lacan (Lacan, 2005, p. 37). 14 “Pois antes de Helena [de Troia] a mulher foi a mais fatal causa de guerra”. Darwin está citando um verso da sátira 3, do livro I de Sátiras de Horácio. 12 Na luta pelas fêmeas, homens mais fortes e mais ousados tiveram mais sucesso não apenas na batalha geral pela vida na guarda das mulheres, de modo que tiveram proles mais numerosas. Na conclusão do seuestudo, Darwin observa: For he would then, as we may safely conclude, have been guided more by his instinctive passions, and less by foresight or reason. He would not then have been so utterly licentious as many savages now are; and each male would have jealously guarded his wife or wives. He would not then have practised infanticide; nor valued his wives merely as useful slaves; nor have been betrothed to them during infancy. (Darwin, 1971, p. 384; os itálicos são meus) Freud refaz as etapas dessa luta dos machos pelas fêmeas em termos da sua teoria do conflito edípico, que em partes decisivas claramente discorda das análises de Darwin. O pai da horda deseja possuir com exclusividade todas as mulheres da horda, inclusive as próprias filhas, como objetos sexuais– ele é ciumento e incestuoso. Em decorrência disso, ele vê em seus filhos, homens biológicos, ele os vê como rivais, em termos psicanalíticos, ele os odeia e lhes proíbe o uso das mulheres da horda, ou seja, proíbe que eles pratiquem o incesto como ele e, portanto, impõe-lhes abstinência sexual. Para fazer vigorar a sua interdição, ele recorre à repressão, usando de força bruta – a castração de fato, expulsão da horda ou mesmo a eliminação física – que tem o significado de desterro e exílio – cometendo contra eles crimes que visam, no essencial, a tirar-lhes a potência sexual. Os filhos se juntam e começam a luta física com o pai, agora abertamente odiado, pelas fêmeas. Mas eles não se limitam a castrar, mutilar, esse pai, eles o matam e, em seguida o comem, como se fossem canibais, porque também amam as suas propriedades decisivas: sua força sexual e muscular. Ao mesmo tempo, sentem-se culpados pelo crime de parricídio. A fim de poder suportar essa ambivalência intolerável, fazem duas coisas. Primeiro, celebram o pacto pelo qual declaram entre si que, agora, a vontade do pai deve valer para todos e se impõem a proibição incondicional do incesto e a exogamia. Dessa maneira, preservam o componente amoroso do relacionamento pulsional com o 13 pai, que guardam como realidade psíquica. Segundo, recalcam o lado odiado do pai e o transformam em totem intocável. Os filhos continuam sob a vontade do pai transformada agora em lei. Esse tipo de episódio ter-se-ia repetido inúmeras vezes (1939, p. 529). Dessa forma, a vontade castradora bárbara do pai acabou ganhando força coercitiva e, por sublimação, tornou-se regra básica da vida social civilizada no seu todo.15 O modelo do Deus das religiões monoteístas evoluídas, do Deus Legislador santo, Governante todo-poderoso e Juiz implacável, é o pai primitivo castrador, que, transformado em totem, passa a garantir a vigência do pacto social que está na origem da ordem social familiar e da vida cultural, “espiritual”, em geral. A origem do monoteísmo é o totemismo, baseado na transformação do amor do pai em obsessão e do ódio em submissão. Por essas duas vias, a ambivalência não é integrada e tolerada, mas recalcada. Desde esse início, a religião pode ser caracterizada como um fenômeno da psicologia das massas, análogo à neurose obsessiva individual observada na clínica: uma neurose obsessiva da humanidade (1912/13, p. 363:1939, p. 504). Fenômenos análogos do retorno do recalcado na vida da espécie humana apareceriam, segundo Freud, nos indivíduos civilizados dos nossos dias, entre eles a ambivalência nas relações dos meninos (e meninas) com os pais reais, o sentimento de culpa decorrente disso, a constituição da instância do superego na estrutura da personalidade como defesa contra a ambivalência e a culpa, a internalização da proibição do incesto. As práticas de circuncisão, comuns nas sociedades primitivas e ainda hoje amplamente usadas mesmo nas sociedades avançadas, seriam, segundo Freud, um equivalente simbólico e uma substituição da castração primitiva.16 Da mesma forma, a força da coesão dos grupos humanos, exemplificados por Freud pelos exércitos e pelas igrejas, também deriva da coesão que o relacionamento ambivalente com o pai da horda primitiva imprimiu ao clã dos seus filhos perseguidos 15 Sobre a relação entre a proibição efetiva (e não apenas simbólica, incidindo sobre objetos usados como substitutos de objetos interditados) da instintualidade sexual ou agressiva por repressão ou opressão e a sublimação, veja Freud,1930, p. 227). 16 Ainda nos dias de hoje, aproximadamente 30% dos homens no mundo inteiro são circuncisados. Nos Estados Unidos sobe significativamente e nos países muçulmanos essa média atinge os 75%. 14 (1921, cap. X). A ambivalência e as defesas correspondentes são outros fenômenos que chamam por uma explicação filogenética.17 Note-se que, em Freud, os exemplos de sociedades são grupos sociais aguerridos e que a coesão é vertical, não horizontal, democrática. De fato, na psicanálise freudiana fica difícil elaborar uma teoria de grupos democraticamente estruturados e da democracia.18 A forma mais apurada e menos eurocêntrica dessa figura paterna seria a razão prática de Kant e o Deus Logos venerado por Freud. Essas duas figuras de Deus monoteísta preservam, na forma transfigurada, um aspecto essencial do pai da horda primitiva – melhor dito, do pai inventado por Freud com base na sua própria concepção monoteísta de Deus e, provavelmente, na sua experiência com o pai – e do superego individual, a saber, o caráter tirânico da sua vontade, o sic volo, sic iubeo, o assim quero, assim mando. Assim como o Decálogo, o imperativo categórico de Kant e os mandamentos do Deus Logos, dois elementos centrais do superego cultural de Freud (1930, p. 267), são também inapeláveis e não admitem (Lacan viu isso muito bem19) qualquer justificativa, nem mesmo a pragmática, que diz que a ditadura imposta salva a humanidade de conflitos libidinais e outros. O sentido último da ditadura do pai primitivo e de seus equivalentes simbólicos civilizados, não é, como na fase da horda primitiva, a abstinência sexual (1939, p. 564), mas a imposição da renúncia à pulsão (Triebverzicht), a sujeição do filho à vontade de poder paterna, a própria proibição de incesto, privilégio dos deuses e dos reis, servindo de símbolo, assim como posteriormente a circuncisão, da sujeição.20 17 Freud não está claro sobre as raízes filogenéticas da ambivalência. M. Klein toma outro caminho: ela não tenta explicar a ambivalência pela filogênese, história natural ficcional da espécie humana, mas pela constituição inata da mente humana, pela presença nela de instintos de vida e de morte (Klein, 1988, p. 54). 18 Esse traço do freudismo parece estar relacionado com o comportamento de grupos psicanalíticos assinalado anteriormente. 19 Veja-se, entre muitos outros textos, Lacan, 2005, pp. 35-36 e 63. 20 Talvez se possa dizer que o mito bíblico de Deus que proíbe a Adão, sob pena de morte, tocar e comer os frutos da árvore do conhecimento do bem e do mal, situada no centro do paraíso, ilustre a mesma ideia de submissão incondicional à vontade do outro, cuja desobediência é punida pela pena máxima, não tendo perdão. 15 Freud reconhece a dificuldade em explicar a maneira como se transmite a lembrança do que aconteceu na horda primitiva, em particular, esse tipo de formação do inconsciente coletivo. Ele se contenta em declarar necessária a suposição de uma alma coletiva ou psique das massas, enunciada já em Psicologia das massas e análise do eu (1921, pp. 67. 68 e 73), capaz de preservar uma herança arcaica da humanidade, abrangendo não apenas as disposições adquiridas, mas também os conteúdos, mantendo-os vivos, os quais, embora não tenham sido nem possam ser aprendidos por experiência direta, exercem influência decisiva inconsciente sobre a vida psíquica de cada indivíduo das gerações posteriores (1939, pp. 545-547).21 A alma coletiva teria capacidade simbólica semelhante àquela observada no uso da linguagem: assim como as palavras são usadas para fazer as vezes (vertreten) de outras palavras, assim também objetos são usados para fazer as vezes de outros objetos. A capacidade simbólica da psique coletiva não obedece a regras gramaticais precisas, pois não opera diretamente sob repressão original, que é real, mas a serviço do recalque de pulsões ou seus representantes, afetos ou representações.22 Como visa a influenciar e não a convencer 21 Embora Freud protestasse, não há como deixar de pensar aqui em inconsciente coletivo de Jung, conceito não muito mais claro que o da alma coletiva de Freud. 22 Estou usando, como é de praxe, o termo “recalque”, em francês “refoulement”, para traduzir o termo Verdrängung de Freud quando usados para designar uma modalidade de defesa interna contra a instintualidade proibida, reprimida ou contra conteúdos mentais que a acompanham. Por exemplo, a consciência moral é usada como proteção contra a agressão intolerável sobre o pai, potencializada pela defesa do tipo recalque contra a agressão efetivamente realizada sobre o pai primitivo (1930, p. 256; veja, ainda, 1912/13, pp. 354 e 1939, p. 548). Freud usa o mesmo termo para falar de repressão que resulta da ameaça de agressão externa ou mesmo da agressão física externa efetiva (mutilação, castração, morte). Também para designar todas as outras formas de impedimento (Hindernis), proibição ou interdição (Verbot) ou desterro (Verbannung) externos do uso da institualidade sexual ou agressiva sobre seus objetos diretos que causam não satisfação (1912/1913, p. 321-322), sentido que no seu Vocabulário de psicanálise Laplanche e Pontalis traduzem por “répression” e opõem ao recalque. Diferentemente do que dizem os dois autores, nos dois casos Freud fala também de Unterdrükung, opressão, sujeição (1909, p. 113; 1930, pp. 227 e 256). Esse engano provém provavelmente do fato de eles não considerarem o uso que Freud faz dos termos psicanalíticos fora do campo da clínica, por exemplo, nos textos sobre a origem dos fenômenos culturais; de fato, no Vocabulário não constam verbetes sobre itens tais como tabu, totem, cultura, religião, monoteísmo, moral, arte, família, sociedade e guerra, não propiciando dessa forma o pleno entendimento da terminologia freudiana. A forma verbal (unterdrücken, unterdrückt) da palavra Unterdrückung encontra-se , por exemplo, em Freud 1909, p. 113, e num trecho de Frazer citado por Freud na tradução alemã, que trata da proibição pela lei e da punição do uso dos instintos conforme as inclinações naturais (1912/1913, p. 409). As traduções inglesas de Freud usam “repression” para os dois sentidos de Vergrängung e, portanto, também para Unterdückung. Winnicott segue esse uso, seja por falta de uma boa solução terminológica em inglês, seja por achar que os dois sentidos não são tanto distintos assim, pois o recalque que é uma herança arcai ou individual da repressão externa (veja, por exemplo, 1923, p. 302). Em português, convém, sempre que possível, preservar terminologicamente essa diferença. 16 racionalmente, seu modo de atuar é associativo, assemelhando-se mais bem ao uso retórico das palavras, do qual parte o deslocamento e a condensação (a metonímia e a metaforização), do que o lógico. O resultado se parece mais bem com uma carta enigmática – mensagem truncada, mistura de imagens de coisas e de palavras recortadas, que pede para ser decifrado, “interpretado” – ou com uma poesia do surrealismo radical, verbo fragmentado, do que uma simples comunicação em bom português a ser comentada. Dessa forma, assim como a palavra “Deus” pode passar a dizer algo parecido com o que diz a palavra “pai”, assim também, um general de exército – estou usando um exemplo de Freud – pode assumir o lugar do pai protetor e desempenhar o papel atribuído inicialmente ao totem, reedição do pai da horda primitiva, idealizado pelo recalque, mas não pela eliminação, da ambivalência assassina dos seus filhos. 23 4. A filogênese e a história do monoteísmo judaico Segundo Freud, o episódio bárbaro da pré-história da espécie humana tornar-seia herança filogenética, parte do conteúdo da psique coletiva, que volta na vida das sociedades civilizadas e dos indivíduos de várias formas. Um episódio especialmente marcante desse tipo seria o surgimento, no antigo Egito, do monoteísmo, no lugar do politeísmo de traços totêmicos (os deuses representados pelas figuras de animais). O protagonista dessa revolução religiosa, que significava um claro progresso, era Amenofis IV, “uma personalidade notável, de fato única, digna do maior interesse” (1939, p. 471). O Egito se tornara potência mundial e esse fato se refletia no universalismo religioso e no monoteísmo. Em oposição aos sacerdotes do Deus Amon, Amenofis passou a pregar o Deus Aton, o Deus único, criador de tudo e mantenedor de tudo pela sua força em termos da verdade e justiça (Ma´at). Era simbolizado pelo sol, mas não era o sol, objeto visível interno ao mundo. 23 Talvez tenhamos aqui uma das principais fontes da tese lacaniana de que o inconsciente é estruturado como uma linguagem. 17 Por devoção a ele, Amenofis destruiu todas as inscrições referentes a Amon e aos outros deuses, inclusive os do nome do seu pai Amenhotep III, derivado do nome de Amon. Ele mesmo trocou de nome e passou a se chamar Ikhnaton, incluindo, portanto, o nome de Aton no seu próprio. Desde o início, no Egito, o monoteísmo de revelou uma religião que hostilizava todas as outras, mais precisamente, que declarou guerra a todas as outras, iniciando o que foi possivelmente a primeira guerra religiosa da história da humanidade. Com a criação do Deus único, que não admite a existência de outros, nasceu quase inevitavelmente, observa Freud, a “intolerância religiosa” (1939, pp. 471, 476). Mas isso não é tudo. Segundo Freud, o poder da religião de Aton, seu caráter coercitivo, que distinguirá todo monoteísmo posterior, viria, considerações do império a parte, da recordação da vontade impositiva do pai da horda primitiva e a submissão a esta estaria ligada ao sentimento de culpa pelo crime do assassinato do pai. Portanto, tratar-se-ia do retorno do recalcado transformado simbolicamente, a figura do pai da horda primitiva, inicialmente de totem animal, tendo sido transformada na figura de um único Deus criador e mantenedor de tudo, com traços humanos de um pai e um imperador (1939, III, I(D)). Um dos símbolos da submissão dos filhos seria a circuncisão, tradicionalmente praticada no Egito antigo politeísta e preservada por Ihknaton. Contudo, o amonismo parcialmente totêmico reagiu violentamente e, depois da morte de Ikhnaton, retomou o poder. Tratava-se de uma vingança, diz Freud (1939, p. 508); ou seja, da vitória do politeísmo moderadamente totêmico sobre o monoteísmo inicial numa segunda guerra de religião no Ocidente. Esse monoteísmo teria sido salvo por Moisés, um egípcio nobre próximo de Ikhnaton, e ressurgiria numa versão purificada imposta por Mosés aos judeus: monoteísmo estrito, leis proibitivas, manutenção ativa do sentimento de culpa, que decorre do recalque do lado hostil da ambivalência e que, na história posterior do judaísmo, ficou a cargo dos profetas (1939, p. 578-579), prática de circuncisão (“substituição simbólica da castração”, que causa estranheza e mesmo horror aos 18 estranhos, mas que, para os judeus, era signo de elevação e de nobreza, e lhes abria o caminho da espiritualidade, 1939, pp. 480 e 567), proibição de fazer imagem sensível de Deus, proibição da mística e da magia, ou seja, de identificação com Deus, a não ser na forma de submissão à sua vontade.24 A conjunção de uma grande personalidade (herói) com uma ideia religiosa criou um povo, o povo judeu. Com essa tese, Freud retoma a sua teoria de socialização baseada numa ideia de contrato social baseada na renúncia à pulsão (1939, p. 530), desenvolvida em Totem e tabu (1912/13) no quadro de um estudo da formação de clãs e de sociedades tribais em geral, continuada em Psicologia das massas e a análise do eu (1921), que aborda grupos tais como exércitos e igrejas, e posteriormente estendida aos grupos sociais de um tipo diferente – os povos inteiros, a começar pelo povo do Deus único. Já no início do processo de socialização assim pensado encontra-se o superhomem (Übermensch), que Nietzsche aguardava somente do futuro, figura que ainda hoje “os indivíduos comuns necessitam como ficção de que serão amados de maneira igual e justa por um líder (Führer), o qual, de fato não precisa amar ninguém, que pode ter a natureza de dominador, ser absolutamente narcísico, mas seguro de si e independente” (1921, p. 115). Os traços essenciais desse superhomem reaparecem no deus mosaico, cujo modelo é um ”superpai”, caracterizado pelos pensamentos decididos, força de vontade, impetuosidade no agir, mas sobretudo “pela autonomia e independência do grande homem” (1939, p. 556). Esses traços fazem dele um protetor altamente desejável. Enquanto um cidadão britânico, num país estranho em plena convulsão social, se sente protegido pela frota que lhe será envida pelo Government do British Empire, os seguidores do Deus da religião de Ikhnaton e de Moisés apostam na proteção divina do todopoderoso. Eles acreditam na “vitória da espiritualidade sobre a sensibilidade”, na supremacia da força do pensamento tanto sobre a força bruta dos primitivos ou dos imperialistas modernos, quanto sobre os benefícios que traz a harmonia entre as atividades espirituais e corpo 24 Um estudo recente do mundo religioso do Egito antigo encontra-se em Hornung, 2005. Para uma reconstrução atualizada do monoteísmo egípcio, acompanhada de avaliação das construções especulativas de Freud, veja Assmann, 1995 e 1998. 19 reais alcançada pelos gregos. A elevação do pensamento sobre o corpo enquanto lugar de força e do sensível foi um passo decisivo dado pelo povo judeu em direção do que é culturalmente mais valioso (1939, p. 558-561). Esse ponto chama atenção por duas razões. Primeiro, em O futuro de uma ilusão (1927), Freud desclassifica a religião como caminho em direção aos valores culturais do mundo moderno, colocando no seu lugar a ciência. Segundo, em Moisés e o monoteísmo, ele não consegue achar nenhuma “verdade histórica” que estaria relacionada à horda primitiva e, detectada pela psicanálise, justificaria a pretensão dos judeus religiosos a serem o povo escolhido por Deus, destinado a assisti-lo no governo do mundo e a promover a espiritualidade – um traço distintivo que Freud deixa bem claro. Ao mesmo tempo, ele faz notar que não há notícia de outro caso desse tipo na história das religiões humanas (1939, p. 494). Via de regra, são os povos que escolhem os seus deuses e não o Deus o seu povo. Freud se contenta com a hipótese de Moisés, um nobre egípcio, ter-se rebaixado aos judeus, um grupo marginal no Império egípcio, fazendo deles “seu povo escolhido” (1939, p. 494-495), reconhecendo que, desta forma, o universalismo do monoteísmo egípcio sofreu um estreitamento (1939, p. 536). 5. A filogênese e o monoteísmo cristão Com o cristianismo aconteceu um novo retorno do mesmo recalcado arcaico. Em oposição à religião do pai do judaísmo baseada na culpa imperdoável e não reconhecida pelo assassinado do pai primitivo, surgiu uma religião do filho que aceita morrer para pagar pela culpa e, desta maneira, salvar a humanidade do pecado original (ibidem). Criada para as massas miseráveis por Paulo (Saulo) de Tarso, um judeu cidadão do império romano, essa nova versão do monoteísmo representa, por um lado, uma regressão cultural em relação ao monoteísmo judaico: o cristianismo não é mais estritamente monoteísta (Deus é uno e trino), introduz cerimonial, venera uma divindade feminina (a virgem Maria), integra politeísmo mal disfarçado (os santos), inclui elementos mágicos, místicos e totêmicos (a comunhão), hostiliza os judeus 20 monoteístas estritos, aboli a circuncisão e o exclusivismo judaico. Continuador do judaísmo, Paulo de Tarso foi também o seu “destruidor” (1939, p. 536 e 580). Ou seja, com o cristianismo, a guerra das religiões continuou. A religião de Amon, diz Freud, obteve uma “nova vitória”, uma “nova vingança” sobre a religião monoteísta de Aton (ibidem). Contudo, numa forma essencialmente modificada. Logo que se tornou religião do império romano, o cristianismo passou a destruir também todos os traços do paganismo, a começar pela destruição de templos politeístas e perseguições que fizeram os seguidores dessa forma de religiosidade tornarem-se progressivamente “pagãos”, habitantes de regiões afastadas, rústicas. Apesar dessas críticas, Freud reconhece que a religião do filho de Paulo de Tarso representou um progresso cultural em relação ao monoteísmo exclusivista judaico. Ao pagar pela morte do pai com a morte do filho e, desta feita, reconhecendo o assassinato do pai, agora Deus pai, o cristianismo substituiu a submissão à lei do pai pela divinização do filho. “Do ponto de vista da história das religiões, isto é, com respeito ao retorno do recalcado, o cristianismo foi um progresso, que em certa medida transformou a religião judaica em um fóssil” (1939, p. 536). O judaísmo tradicional era baseado no sentimento de culpa, sem a admissão de culpa de parricídio, o qual, mediante o processo de simbolização da psique coletiva acabou sendo transformado em deicídio. Paulo substituiu essa base do monoteísmo pelo sacrifício do filho de admite a culpa, o “pecado original”, gesto que consegue a salvação libertadora, extensiva à humanidade toda (1939, p. 380). Aplicando os termos do mito bíblico, o homem, a suprema criatura de Deus, mesmo no paraíso desde o início, não pôde deixar de comer os frutos amargos da árvore do conhecimento do bem e do mal, mas, ao invés de continuar a se ver como habitante de um mundo transformado em penitenciária, aceitou de pagar o preço pelo conhecimento que adquiriu, valorou isso como um progresso pessoal e grupal, e foi capaz de levar adiante sua vida à luz desse conhecimento. 21 Na linguagem da teoria do amadurecimento individual de Winnicott, tudo se passa como se o filho tivesse criado condições pessoais não para negar, mas para reconhecer e tolerar a sua ambivalência, inclusive a fantasia da morte do pai (Winnicott, 1988, p. 49; tr.. p. 77). A aquisição de tolerância da ambivalência o capacitou para continuar a viver e permitir que o pai viva (1988, p. 49; tr. p. 67). Ao invés de matar o pai e pagar por esse crime imperdoável pela submissão inapelável à vontade do pai, ele pode agora preservar o pai e, ao mesmo tempo, rivalizar com ele. Várias condições ambientais e individuais são necessárias para que a criança possa resolver os problemas da ambivalência inerentes ao processo de amadurecimento e para que o processo de socialização vá nessa direção. Os pais devem ter madurecido ao ponto de poder tolerar ideias hostis dos filhos. Essa capacidade é parte da maturidade social: “Um sistema social maduro (se por um lado faz certas exigências no tocante à ação) permite a liberdade de ideais e sua livre expressão” (1988, p. 59-60; tr. p. 78). As crianças, mesmo sadias, podem não conseguir, de início, “tolerar os conflitos e ansiedades que atingem seu ponto máximo no auge da experiência institual” (ibidem). A solução de problemas da ambivalência, virá mediante “a elaboração imaginativa de todas as funções”. Sem a fantasia, “as expressões de apetite, sexualidade e ódio em sua forma bruta seriam a regra” (1988, p. 60; tr. p. 78), ou seja, teríamos uma situação análoga à imaginada por Freud na horda primária. Dessa forma, a fantasia prova “ser a característica do humano, matéria-prima da socialização, e da própria civilização” (ibidem). A fim de ter essa virtude libertadora, a criança precisa ter condições de distinguir entre a fantasia e a realidade. Para tanto, é necessário que os pais possam fazer o mesmo. Um dos primeiros passos na socialização do filho, que alcançou a capacidade de tolerar a ambivalência, é o desenvolvimento da capacidade de identificação cruzada com o pai. O filho precisa amadurecer ao ponto de poder se colocar no lugar do pai, inclusive no lugar do pai que possui a mãe e proíbe essa posse ao filho gerando seu ódio; de ser uno como o pai e ocupar a posição dele numa situação diferente da família original, por exemplo, na sua própria família que criará um dia. O filho deve ser capaz 22 de entender o que significa ser pai e não mais apenas obedecer como um escravo.25 Em seguida, ele poderá identificar-se com grupos sociais mais amplos ainda, com sociedades inteiras de indivíduos que se reconhecem e se querem iguais, mas que não ignoram e toleram o fato de que também estão em conflito. Nessa perspectiva, a saída do Édipo e a socialização do ser humano não consiste mais na submissão à lei de proibição do incesto e na espera da dignificação, de materialização e espiritualização (libertação às sensibilidades em geral, que predomina no relacionamento com a mãe e com as mulheres como tais em geral, 1939, p. 560-1), isto é, na vida sublimada, governada pelas equivalências simbólicas que, depois de devidamente criticadas, nos impõem em última instância a ditadura da razão, do Deus Logos. O cristianismo nunca quis dar esse passo e reconheceu que o reino de Deus não é deste mundo. Como fiz notar num outro trabalho, Freud explicitou, com aprovação, o caráter ditatorial da razão e os benefícios da “coerção” sobre todos os homens exercida pelo “domínio da razão”: o intelecto – ou, para chamá-lo pelo nome que nos é mais familiar, a razão – é um dos poderes dos quais nos é permitido esperar antes que de outros uma influência unificadora sobre os homens, esses homens que é tão difícil manter unidos e que, portanto, são quase impossíveis de governar. [...] A nossa maior esperança para o futuro é que o intelecto – o espírito científico, a razão – estabeleça, com o tempo, a ditaduradentro da vida mental. A essência da razão garante que, em tal caso, ela não deixaria de assinar seu devido lugar a moções afetivas dos homens e a tudo o que é determinado por estas. (1933, SA, p. 598) O fundamento dessa esperança é a verdade, a qual é fonte de um novo tipo de intolerância, não ditada por motivos decorrentes da dinâmica pulsional, como a do pai primitivo, mas pelas exigências da racionalização: Acontece que a verdade não pode ser tolerante, não admite compromissos nem restrições; a pesquisa considera como de sua alçada todos os campos de atividade 25 Aqui temos uma dica para entender o interesse de Lacan pela “dialética” entre o Senhor e o Escravo. 23 humana e deve tornar-se implacavelmente crítica quando um outro poder quiser confiscar para si qualquer uma dessas áreas. (1933, SA, p. 588; os itálicos são meus) A verdade que não pode ser tolerante é a proveniente da razão teórica e a prática – o imperativo categórico de Kant sendo devidamente reinterpretado como a herança intrapsíquica da proibição do incesto, sobre a qual se funda a estrutura psíquica dos indivíduos humanos, e a ordem social e moral.26 Em Winnicott, a submissão a um senhor, o conformismo é “a moralidade no seu mais baixo calão, frente as quais, as ofensas sexuais, mal contam” (1965, p. 102; tr. p. 96). Mesmo quando baseado esse Senhor se apresenta como a Razão. Precisamos, diz Winnicott, de duas verdades, a racional-científica e a poética, pois sem a primeira não podemos racionalizar, isto é, planejar e controlar as nossas vidas e sem a segunda perdemos de vista o ser humano como um todo e não podemos ir criando livremente os nossos modos de viver (1986, p. 172-173; tr. p. 136). A atividade cultural, tanto poética quanto científica, não é baseada nem movida pela repressão e recalque, mas pelo impulso criativo inato, pelo qual o mundo é criado de novo por cada bebê humano e cujas primeiras manifestações se observam na sua capacidade de brincar. Essa capacidade amadurece na direção de capacidades culturais sofisticadas, que se nutrem, nas suas contribuições, da tradição cultural, estoque de riquezas da herança comum da humanidade. A tradição cultural não tem a força de uma neurose obsessiva coletiva que decorresse de alguma herança arcaica. Ela se torna viva e forte tão somente na medida em que, ao invés de ser apenas repetida ou copiada, é usada de modo criativo. Tal como o brincar, a criatividade cultural é uma atividade excitada e, mesmo quando exige grande esforço e sacrifícios, essencialmente prazerosa e livre, sem ser submetida a coerções instituais ou imposições internas (obsessão) ou externas (repressão). O artista winnicottiano não se parece com um neurótico obsessivo, que busca satisfações substitutivas de suas moções pulsionais reprimidas ou recalcadas, mas com as crianças 26 Conforme fiz notar no trabalho mencionado, Freud atribui o mal-estar na cultura não somente à moral religiosa – à religião enquanto ilusão –, mas também à razão iluminista. A sua teoria da censura neurotizante trabalha tanto com o conceito de repressão não-esclarecida quanto com o de repressão esclarecida, uma vez que a objetificação como tal, pode ser repressiva ao ser intrusiva ou impossibilitadora da vida humana. 24 que, como diz um verso de Tagore citado por Winnicott, “brincam na praia do mar dos mundos sem fim” (1971, p. 112; tr. p. 133) Em termos psicanalíticos, nós devemos ter condições de analisar o papel da razão e, esse é o ponto que interessa mais ainda no presente contexto, o do pai. Tudo se passa como se, em Freud a condição de possibilidade e de necessidade da psicanálise fosse a figura de pai castrador não analisável, porque transmitida filogeneticamente (1918, p. 229). Em Winnicott, essa impossibilidade, que contribuiu para a totemização de Freud por vários grupos psicanalíticos, não existe. Sabemos que Winnicott se deu a liberdade de analisar Freud em termos da sua teoria do amadurecimento.27 Na sua resenha da edição inglesa das cartas de Freud, Winnicott faz notar que, numa carta a Bárbara Low de 1920, Freud afirma que os judeus têm em comum “essa coisa milagrosa – inacessível à análise até agora – que faz o judeu” (1989, p. 475; tr. p. 360). No prefácio à edição hebraica do seu livro Totem e tabu, Freud se diz alheio à religião paterna judaica e aos ideais nacionalistas do sionismo, mas se reconhece como alguém que sente o seu modo de ser como judaico e não o quer de outra forma. E prossegue: Se se perguntar a esse alguém: O que em você ainda é judeu?,este responderia: Ainda há muita coisa, provavelmente o principal. Mas essa coisa essencial ele não pode no presente momento formular em palavras claras. Ela certamente se tornará em algum momento posterior acessível à compreensão científica. [...] (1912/1913, p. 293). Freud termina o prefácio dizendo que espera poder compartilhar com seus leitores a convicção de que “uma ciência sem preconceitos não pode ser alheia ao espírito do novo judaísmo”.28 Ao que parece, Freud tentou alcançar essa compreensão em Moisés e o monoteísmo e esta pode ser resumida na tese de que Moisés, seguidor de Ihknaton, que 27 Esse ponto está desenvolvido em Loparic, 2014. 28 Lacan tem coisas interessantes a dizer sobre o novo judaísmo de Freud, articulado na linguagem da sua psicanálise (veja Lacan, 2005). 25 foi possivelmente o primeiro indivíduo na história da humanidade, inventara o judeu como sujeito do deus único, avatar inconsciente o pai primitivo que instaurou, de modo implacável, uma proibição que tomará o sentido de renúncia à instintualidade e submissão ao verbo de um Deus sem rosto, estando assim na origem de um destino irresistível, obsessivo, de buscar o poder e a vitória da espiritualidade sobre a sensibilidade. Winnicott continuou essa análise, derivando esse tipo de monoteísmo de um determinado estágio do processo de amadurecimento, o de EU SOU. Dessa forma, o monoteísmo foi reduzido a uma determinada forma de religiosidade que coexiste, tanto na vida do indivíduo como na da humanidade, com várias outras, que incluem a mística ocidental e oriental do vazio, o panteísmo, o abandono do monoteísmo estrito em prol de dualismo no mundo numinoso (Satanás, além de Deus), do Deus uno e trino cristão, que tem a estrutura de uma família etc.29 6. Derivação ontogenética Passemos ao esquema ontogenético de Freud. O ponto de partida é o fato de, na vida familiar das sociedades atuais, o pai possuir a mãe como objeto sexual e de existir a ameaça de castração do menino que deseja sexualmente a mesma mãe, feita se não pelo próprio pai, então pela mãe ou pelos terceiros (médicos, babás etc.). Aqui se insere também a cena primária, vivência da ameaça de castração por um pai amado, isto é, da 29 Depois do holocausto, o judaísmo, tanto religioso como leigo, viu-se obrigado a se redefinir por razões de outra natureza. Hans Jonas, aluno de Heidegger, especialista em gnose formado por Bultmann, sionista, membro de uma unidade de artilharia que participou da invasão aliada da Alemanha 1945, cuja mãe morreu em Auschwitz, reconheceu que, para os judeus, a “condição de povo escolhido se transformara em maldição horrível” (1987, p. 13). Deus, caso fosse o Senhor da história, nunca poderia ter permitido que tal coisa aconteça com o seu povo escolhido para assisti-lo no governo do mundo. Depois de Auschwitz, o que ficou em questão é o próprio conceito tradicional de Deus. A experiência judaica da história não pode mais ser articulada em categorias teológicas do judaísmo antigo (1987, p. 14). Impõe-se a conclusão que Deus não é compreensível ou que não é todo poderoso (p. 39). Jonas opta pela segunda alternativa e propõe um conceito de Deus diferente do encontrado no Livro de Jó: no lugar da plenitude do poder, Jonas propõe a renúncia ao poder (Machtentsagung) da espiritualidade sobre a sensibilidade, na qual Freud, judeu iluminista da melhor tradição judaico-alemã, ainda acreditava. Às perguntas sobre os desígnios de Deus como as de Jó, coberto de chagas, Jonas responde: “é nele [Jó] que o próprio Deus sofre” (p. 49). 26 ambivalência. O resultado não é a criação da capacidade de tolerar a ambivalência (continuar a amar o pai e querer ser como ele, mas em relacionamentos diferentes dos da família original), mas do superego castrador como parte do aparelho psíquico, e do ideal do ego. A essa instância atribui-se a legislação moral proibitiva, cujo núcleo é a proibição do incesto e que acaba por receber várias formas. Na vida amorosa, a interdição superegoica manifestar-se-á pelo fato de os homens terem a tendência de idealizar as mulheres ou de degradar as mulheres, nenhuma chegando a ocupar o lugar da mãe perdida para sempre. Na vida cultural, surgirão formas mais sofisticadas de recalque. Por exemplo, o imperativo categórico de Kant, herança direta do complexo de Édipo, será elevado em norma máxima do superego que deve comandar o agir dos seres humanos. Contudo, de acordo a filogênese de Freud, o primeiro ideal dos seres humanos é a figura do pai originário, ciumento e brutal, que ocupa o lugar que posteriormente será o do ideal do ego (1921, p. 119). A figura do grande homem, tal como Moisés, tomada como modelo e mesmo a figura de um Deus onipotente, figura inicial do Deus do monoteísmo, não podem ser vistas como fonte da força coercitiva (Zwang) que caracteriza as formas ocidentais da religiosidade monoteísta e da moralidade, análoga a força coercitiva da neurose obsessiva. A única explicação possível, segundo Freud, consiste em supor que a origem da força do superego individual e cultural, isto é, coletivo, provém da recordação inconsciente coletiva do assassinato do pai da horda primitiva, do sentimento de culpa decorrente e da defesa contra essa culpa pela submissão incondicional à vontade do pai, agora representada simbolicamente, em diferentes formulações, pelas leis religiosas e morais (1939, p. 546, 556, 562, 565). Da mesma maneira, a tradição cultural religiosa, oral ou escrita, tampouco possui, por si só, o caráter coercitivo que pudesse explicar esse mesmo traço revelado pelas religiões monoteístas, que produzem instâncias de controle nos indivíduos na forma da consciência moral e aglutinam e disciplinam as massas, fenômenos que observamos com espanto e, aos quais, até do surgimento da psicanálise freudiana, ficaram incompreendidos (1939, p. 548). 27 7. Crítica winnicottiana da derivação freudiana do monoteísmo Começo pela crítica do caráter central do complexo de Édipo, o Schibboleht da psicanálise e elemento essencial dos fundamentos da derivação freudiana do monoteísmo e dos fenômenos culturais em geral. Segundo Winnicott, para que a psicanálise possa progredir e resolver problemas do processo de amadurecimento que não podem ser tratados àluz da teoria freudiana da sexualidade, é necessário reconhecer que a situação edipiana tem poderes explicativos limitados: Para fazer progresso no sentido de uma teoria operacional da psicose, os analistas devem abandonar toda a ideia da esquizofrenia e da paranoia, tal como vistas em termos de regressão do Complexo de Édipo. A etiologia destes transtornos leva-nos inevitavelmente a estágios que precedem o relacionamento de três corpos.30 O corolário estranho é que existe, na raiz da psicose, um fator externo. É difícil para os psicanalistas admitir isso, após todo o trabalho que tiveram chamando a atenção para os fatores internos, ao examinarem a etiologia das psiconeuroses. (Winnicott, 1989a, p. 246; tr. p. 191) Xxx Os limites explicativos No essencial, Winnicott simplesmente desconsidera o que Freud diz na sua “mitologia científica” a respeito da origem do totemismo e do monoteísmo do crime de assassinato do pai da horda primitiva e descarta as teses de Freud sobre o monoteísmo e suas práticas baseadas nessa mitologia. Entretanto, em vários momentos Winnicott apresenta observações críticas à filogênese freudiana, mesmo quando não fala dela explicitamente. Vejamos algumas dessas passagens. A prática da circuncisão seria, segundo Freud, um equivalente e uma substituição sublimada da castração pelo pai da horda primitiva. A castração, no 30 Em Winnicott, a expressão “relacionamento de três corpos” refere-se aos relacionamentos triangulares, em geral com base genital, isto é, edípicos, em oposição aos “relacionamentos de dois corpos”, que pertencem aos estágios anteriores ao do assim chamado Édipo (Winnicott, 1965b, p. 29; tr. p. 32). Essa expressão com esse sentido foi introduzida por J. Rickman em 1950. Logo em seguida foi aceita por M. Balint (Balint,1952, p. 353). 28 sentido de destruição da potência sexual dos filhos é – Freud não deixa dúvida sobre isso – uma prática bárbara, mas, ao retornar nas sociedades civilizadas na forma de ameaça de castração, verbal ou efetiva (por exemplo, a circuncisão), ela permanece a principal arma da repressão da instintualidade e, portanto, primeiro motor do processo civilizatório. Já vimos que a força do sentimento de culpa, chamado por Freud de “problema mais importante do desenvolvimento cultural” (1930, p. 260), não advém, para ele, da experiência pessoal, sendo uma consequência direta do crime primordial, do assassinato do pai. Winnicott está longe de concordar com isso. Adversário decidido de terapias físicas das desordens psíquicas, Winnicott opunha-se categoricamente às intervenções cirúrgicas com tal finalidade, por exemplo, à leucotomia. Ao discutir esse assunto em 1951, na London SchoolofEconomics, ele abordou também a questão de circuncisão: “A circuncisão é frequentemente realizada para curar ou impedir a enurese, a masturbação, as aberrações sexuais, demonstrando que a cirurgia pode facilmente tornar-se serva da superstição e do ódio inconsciente” (1989a, p. 549; tr. p. 417). Num texto posterior, irá se mostrar mais reservado quanto às origens psicológicas dos motivos religiosos e inconscientes da circuncisão, e enfatizando suas desvantagens, em particular aquelas que prejudicam a constituição da sexualidade e o desenvolvimento emocional infantis: Naturalmente, nada de bom resulta do despertar artificial da excitação do pênis. Parece provável que as roupas usadas depois da circuncisão estimulem frequentemente as ereções e provoquem uma desnecessária associação da ereção com a dor, sendo esta uma das muitas razões por que a circuncisão quase nunca deveria ser realizada (exceto por motivos religiosos). [...] e certamente qualquer estimulação artificial dos genitais infantis (mediante um processo pós-operatório ou pelo desejo de babás sem educação de provocarem um sono que acalme) é uma complicação; e o processo do desenvolvimento emocional da criança já é, por si só, bastante complexo. (1964a, p. 158-159; tr. p. 180) Essa discordância de Freud fornece a medida certa de quanto Winnicott se afastou não apenas da filogênese mitológica, mas, sobretudo, dos próprios fundamentos 29 sexual-edípicos e religiosos – elementos da mitologia judaico-cristã refeitos na forma do “mito científico” da psicanálise –, da derivação freudiana da cultura.31 Creio que a atitude de Winnicott com respeito à filogenética de Freud pode ser compreendida à luz da consideração – nesse ponto eu discordo de Bion, Faimberg e muitos outros leitores de Freud – de que o mito freudiano da horda primitiva é uma projeção sobre história da humanidade da situação edípica constatada na clínica, a qual projeção, enriquecida de um material proveniente da antropologia, mitologia e história das religiões, é usada, em seguida, para dar maior inteligibilidade e força aos relacionamentos triangulares. Como o próprio Freud diz, trata-se de uma “construção” de caráter especulativo e, portanto, fictício (1939, p. 479 e 481). O que Freud não diz, contudo, é que essa construção padece de circularidade, pois não faz mais do que encobrir, mediante uma fábula de aparência naturalista, mas na sua essência tributária da ética da lei judaico-cristã, a falta do poder explicativo da derivação ontogenética freudiana do monoteísmo e da religiosidade em geral (1939, p. 518 e 574). 8. Crítica winnicottiana da derivação ontogenética Por outro lado, a crítica winnicottiana da derivação ontogenética é explícita e bem argumentada. Segundo um comentário importante de Winnicott sobre a terceira parte de Moisés e o monoteísmo, de 1969, Freud, baseado na sua crença na repressão 31 Recentemente, a prática de circuncisão tornou-se objeto de um número crescente de críticas em diferentes países, inclusive de reclamações ou mesmo contestações de caráter judicial. Nos Estados Unidos, em 1985, foi fundada a NationalOrganizationofCircumcisionResource Centers, primeiro grupo crítico da circuncisão. Em 2008, foi lançada a campanha internacional dos grupos críticos da circuncisão sob o título “autonomia genital“. Em 2012, um tribunal de Köln proibiu-a alegando que a circuncisão não consentida constitui uma invasão corpórea significativa e irreversível e, como tal, fere o direito humano de autodeterminação somática. No mesmo ano, a Academia Alemã de Criança e Adolescente, e a Sociedade Alemã da Cirurgia Infantil, pronunciaram-se contra a circunciusão de menores por motivos religiosos e rituais. Simultaneamente, a Associação Profissional dos Médicos de Crianças e Adolescentes Alemã, depois da sessão do Conselho de ética nacional, declarou-se escandalizada pelo fato de o direito da criança à integridade corpórea não ser levado em conta. Grupos religiosos alemães judaicos e muçulmanos protestaram veementemente. De certo, essa não é a primeira vez que, no Ocidente, as razões da razão esclarecida se chocam com as posturas motivadas pela fé ou, na liguagem de Freud, pelas recordações que pertencem à herança arcaica da humanidade. Um estudo detalhado da derivação freudiana do monoteísmo encontra-se em Loparic, 2014b. 30 originária como mecanismo de constituição da cultura, “teria se excedido na sua formulação do monoteísmo como importante por causa da verdade universal do pai amado e do recalque [repression] disso na sua forma original e dura (do id)”(1989, p. 241; tr. p. 187). Esse argumento de Freud “não suporta um exame atento” (ibidem). Não que Freud esteja errado “a respeito do pai e do laço libidinal que se torna recalcado [repressed]”; contudo há de se notar “que certa proporção de pessoas no mundo não chega ao complexo edipiano” e que, portanto, para elas, “o recalque [repression] da figura paterna libidinizada tem apenas pouca relevância” (p. 241; tr. p. 187). O ponto de Winnicott parece ser o seguinte: Na fase edípica, segundo Freud, a proibição do incesto, do relacionamento libidinal com a mãe, imposta ao filho pelo pai afeta também o relacionamento libidinal (o id) do filho com o pai. Como Freud observou já no caso Pequeno Hans, esse relacionamento torna-se ambivalente, passa a oscilar entre o amor e o ódio: ameaçado verbalmente de castração, Hans agora não pode deixar de odiar como rival o mesmo pai que ele amou desde sempre, pois este era “seu ideal, seu primeiro parceiro nas brincadeiras e, ao mesmo tempo, seu cuidador dos primeiros anos” (1909, p. 113). Considerando as forças pulsionais em jogo, Hans não tem outra saída do que continuar a amar e, ao mesmo tempo, reprimir ou, melhor, recalcar [unterdrücken] o ódio, sem poder suprimi-lo. Em virtude desse conflito, Hans passa a se relacionar com o pai de forma ambivalente, a ambivalência sendo um traço essencial do relacionamento dos filhos com os pais (1939, p. 578).Em cada ser humano, esse tipo de conflito afetivo é potencializado pela herança arcaica do relacionamento ambivalente dos filhos com o pai da horda primitiva. Eles também não podem mais continuar a amar o pai como antes, nem se entregar simplesmente ao ódio. O destino desse conflito pulsional é descrito por Freud de diferentes maneiras na suba obra. Uma descrição consiste em dizer que pulsão parcial amorosa passa a ter a sintomatologia de obsessão e se torna origem das neuroses de obsessão, e que a pulsão parcial hostil irresistível, o ódio, se transforma em sentimento de culpa imperdoável e, por sublimação, produz fenômenos culturais, em particular a religião (1930, p. 264). Ambas as sintomatologias encontram-se no monoteísmo derivado por Freud: os mandamentos monoteístas têm a força de práticas que caracterizam neuroses obsessivas e são sempre 31 acompanhados de sentimento de culpa que não pode ser perdoada e que só pode ser paga pela submissão renovada e mais severa. Winnicott prossegue: Se se olhar para pessoas religiosas, certamente não é verdadeiro dizer que os princípios monoteístas só pertencem àqueles que atingem o complexo edipiano. Uma grande parte da religião acha-se ligada com a quase-psicose com osproblemas pessoaisque se originam da grande área da vida do bebê que é importante até que se chegue a um relacionamento de três corpos [relações familiares triangulares com base genital] entre pessoas inteiras. (1989, p. 241; tr. p. 187; os itálicos são meus) Em outras palavras, os princípios monoteístas pertencem também aos indivíduos que não alcançaram a capacidade de relacionamentos ambivalentes. Eles são criados em algum estágio de pré-ambivalência. Portanto, a sua origem não pode ser remetida ao complexo de Édipo. Winnicott prossegue observando que, do ponto de vista do estado da psicanálise em1969, Freud, ao teorizar sobre a religião, estava em desvantagem, pois ele só podia utilizar a psicanálise conhecida na sua época. Mas nesse quadro, que é o da sua teoria da sexualidade ampliada por uma metapsicologia e uma mitologia de própria lavra, não se consegue dar conta do surgimento do monoteísmo. Winnicott reconhece, como foi dito, Freud já sabia tudo sobre a frustração da instintualidade genital das crianças e os mecanismos de defesa correspondentes, mas avisa também que ele não tinha idéia da existência de necessidades dos bebês, e de todos os seres humanos em todas as idades, que exigem provisão ambiental do tipo apropriado. Atendimento dessas necessidades dos bebês pelas mães adaptadas e, durante o processo de socialização posterior, por ambientes mais amplos, tais como a família, é algo muito diferente da satisfação prazerosa de seus impulsos instintuais. Enquanto teórico da religião monoteísta, Freud pertence ao passado por desconhecer certos fatos novos relativosao processo de amadurecimento. Outra limitação da concepção freudiana do monoteísmo decorre do horizonte hermenêutico utilizado por Freud – a sua metapsicologia centrada na teoria das pulsões, 32 inclusive de pulsões parciais, que determinam a dinâmica dos relacionamentos objetais e o interjogo das três instâncias do funcionamento intrapsíquico, mental, o id, o ego e o superego (p. 243; tr. p. 189).32 O seguinte trecho explicita bem a objeção de Winnicott à concepção do ser humano em termos de estados mentais internos e não em termos de relacionamentos ambientais e objetais efetivos: Em outras palavras, Freud, no arcabouço de seu próprio e bem-disciplinado funcionamento mental, não sabia que temos hoje que lidar com um problema como o seguinte: o que há na presença real do pai, e no papel que ele desempenha na experiência do relacionamento entre ele e a criança e entre a criança e ele? O que isso faz ao bebê? Pois há uma diferença, que depende de o pai achar-se lá ou não, se é capaz de estabelecer um relacionamento ou não, se é são ou insano, se é livre ou rígido na sua personalidade. (1989, p. 242; tr. p. 188; os itálicos são meus) O que faz diferença no processo de amadurecimento emocional e pessoal do bebê não é o pai representado mentalmente, ou seja, a imago do pai, mas o pai que é uma figura real, mais do que isso, que é pai-ambiente; mais precisamente ainda, que é elemento constitutivo do ambiente familiar, o primeiro grupo natural, que substitui a mãe-ambiente e cuja estrutura “deriva em grande parte das tendências para a organização presentes na personalidade individual” (Winnicott, 1965c, p. VII; tr. p. IX). Em resumo, a concepção da origem do monoteísmo defendida por Freud é datada, devido, por um lado, à descoberta de fatos clínicos novos e, por outro lado, por causa das limitações do quadro de interpretação de fenômenos culturais, da sua origem e natureza, oferecido pelo seu paradigma.33 Winnicott faz notar, entretanto, que, na primeira parte de Moisés e o monoteísmo depois de enfatizar a singularidade da personalidade de Amenofis, Freud acrescenta 32 Freud não tem uma teoria (nem uma clínica) dos estados pré-edípicos. M. Klein não o convence, visto que não faz sentido falar em Édipo precoce. Neste ponto, Freud concorda com Winnicott. 33 Observações importantes sobre os limites teóricos da psicanálise freudiana, sobre casos que revelama ineficiência da técnica clínica preconizada por Freud, bem como sobre traços da sua personalidade que limitavam a sua capacidade terapêutica (fuga para a sanidade) encontram-se na resenha de Winnicott da autobiografia de Jung, republicada como capítulo 57 de Explorações psicanalíticas. Uma análise detalhada dessa resenha encontra-se em Loparic, 2012. 33 uma nota de roda-pé que diz: “Breasted (1906) chama-o (Amenofis) de ´thefirst individual in humanhistory´34” (1989, p. 244; tr. p. 189). Para Winnicott, nessa nota, Freud estaria antecipando a tese de que existiria uma relação estreita entre a unidade pessoal e o monoteísmo, a mesma que Winnicott tentará elaborar. Mas Freud não conseguiu colocar essa tese no corpo do seu texto “por não poder lidar com isso em termos de recalque, mecanismo de defesa, e interjogo de id, ego e superego” (1989, p. 244; tr. p. 189). Assim mesmo, Winnicott diz acreditar, “daria boas-vindas a um trabalho novo que desse sentido ao comentário de Breasted em termos de um universal no desenvolvimento emocional do indivíduo, qual seja, a tendência integradora que pode conduzí-lo a um status de unidade” (p. 244; tr. p. 189). Ou seja, se estivesse vivo, Freud saudaria a mudança paradigmática operada por Winnicott. Entretanto, para poder dar esse passo e aceitar a interpretação winnicottiana da origem do monoteísmo, está claro que Freud teria de pagar um alto preço teórico. Ele deveria aceitar várias mudanças revolucionárias, entre elas o reconhecimento do caráter decisivo para o desenvolvimento do indivíduo de estágios primitivos anteriores ao do Édipo, a inclusão da teoria da sexualidade na teoria mais geral de amadurecimento e, sobretudo, o abandono da metapsicologia e da tese de herança arcaica.35 Quanto à metapsicologia, Winnicott não deixa a menor dúvida: a estrutura do ser humano não pode ser interpretada em termos de um aparelho psíquico, composto do id, ego e superego, mas como uma história feita de conquistas maturacionais efetivas. A pulsão de morte não seria outra coisa do que a reafirmação do pecado original (1971, p. 82). A metapsicologia seria mais bem uma mitologia de inspiração bíblica do que um componente teórico–metafísico. Da mesma forma, não há espaço na psicanálise winnicottiana para uma “psicologia das massas” que trate da psique das massas, das suas disposições e mesmo de seus conteúdos. Não há como conceber no quando da teoria do amadurecimento a 34 O primeiro indivíduo na história humana. 35 A seção I (E) da terceira parte de Moisés e o monoteísmo xxx. 34 lembrança coletiva dos homens dos nossos dias de um crime primordial, cometido por seus ancestrais nos tempos imemoriais, o qual determinaria causalmente ainda hoje, para além da tradição oral ou escrita, um sentimento de culpa imperdoável, a qual seria, por sua vez, o motor do mecanismo que gera, por expiação infindável, o processo cultural. Winnicott trabalha com o conceito de potencial herdado que é atualizado por relacionamentos ambientais e objetais, o que possibilita uma reedição criativa, imaginativa, do mundo por cada indivíduo humano com base nas suas funções corpóreas e na tradição. Embora trabalhe como Freud na tradição darwiniana, Winnicott privilegia a variabilidade nos indivíduos sobre o determinismo histórico, fundado no jogo cego de forças psíquicas (Eros e necessidade) num aparelho suprapessoal e mental. Melhor dito, Winnicott introduz na psicanálise, no lugar da psicogênese, o conceito de história individual e grupal, a qual, embora não tenha qualquer fim último positivo, nem obedecer a nenhuma teleologia, além da decorrente da tendência à integração que acaba tendo de integrar até mesmo a morte, vive e floresce da produção do sentido pelos indivíduos para seus relacionamentos excitados e tranquilos com o mundo. Para quem conhece os fatos básicos da história da psicanálise, o otimismo de Winnicott quanto a um possível entendimento entre ele e Freud nesse ponto deve parecer exagerado. Não apenas por motivos teóricos, mas também pelos pessoais. Já no começo dos anos 1960, na sua resenha da autobiografia de Jung,36Winnicott atribui a Freud a fuga para a sanidade – um sintoma, que consiste, conforme Winnicott esclareceu já em 1945, em ter medo ou negar “a capacidade inata de todo indivíduo de estar não integrado” (1958a, p. 150; tr. p. 225) – e põe na conta desse traço da personalidade de Freud o seu fracasso de entender a personalidade cindida de Jung.37 Um episódio contado por Jung na sua autobiografia ilustra bem as dificuldades pessoais que Freud teria de vencer. No Congresso de Psicanálise realizado em Munique, em 2012, foi enfatizado o fato de que Amenofis, devido a sua atitude negativa em relação ao pai, destruíra as inscrições referentes a este nas estrelas e de que “havia um complexo 36 Veja o capítulo 57 de Winnicott, 1989. 37 Analisei detalhadamente esse ponto especificamente psicanalítico de crítica de Winnicott a Freud em Loparic, 2012. 35 paterno na origem da sua grande criação de uma religião monoteísta” (Jung, 2006, p. 192). Jung ficou irritado e procurou mostrar que “Amenofis era um homem criador e profundamente religioso, cujos atos nunca podiam ser explicados por meros atos de resistência a seu pai. Pelo contrário, honrara a memória do pai ...” (ibidem; os itálicos são meus). Jung mal terminou de falar, quando Freud escorregou da cadeira e desmaiou. Jung o pegou nos braços e levou num quarto vizinho. Na sua fraqueza, Freud olhou para mim, diz Jung, “como se eu fosse o pai dele”.38 Isso pode querer dizer que Freud se sentiu destruído pelo Jung tal qual um filho mais fraco pelo pai ciumento. Mas pode também significar o oposto, a saber, que Freud, recuperando-se do desmaio, mesmo ainda fraco e indefeso diante de Jung, quis destruir Jung, assim como um filho mais fraco ameaçado pelo pai pode querer matar o pai. Para Freud, todo esse episódio de desmaio era permeado, diz Jung, pela fantasia do assassinato do pai. O exame aqui proposto da crítica de Winnicott à concepção da origem e da natureza do monoteísmo defendida por Freud tem um interesse adicional: explicitar, falando da religião em dois autores, as profundas diferenças entre a psicanálise winnicottiana e freudiana. Aqui surge, naturalmente, a pergunta de saber se a disciplina psicanalítica ainda preserva uma unidade. A resposta é positiva, como argumentei em outros textos, pois o conjunto das diferenças que separam Winnicott de Freud pode ser visto como uma revolução científica no sentido de Kuhn: como um Gestalt switch paradigmático na psicanálise, motivado por dificuldades internas, mudança que, embora modifique a estrutura dessa disciplina, preserva a sua capacidade de resolver problemas e, ao mesmo tempo, estende essa capacidade a áreas de problemas antes inabordáveis; ou seja, não dissolve, mas faz progredir a psicanálise. Outra diferença entre Winnicott e Freud que merece ser destacada é a seguinte: a psicanálise winnicottiana não se distingue por nenhum Schibboleth, por nenhum símbolo guerreiro que a torne excepcional e única– ela é baseada em soluções de problemas exemplares, generalizações-guia, métodos e valores abertos à discussão por todos. 38 Aqui estou seguindo a tradução inglesa da autobiografia de Jung, evidentemente mais fiel que a brasileira (veja Jung, 1963). 36 Referências ALLEN, D. (Org.)Culture and selfBouilder. Colorado: WestviewPress, 1977. ASSMANN, J. Ma´at: Gerechtigkeit und UnsterblichkeitimaltenÁgypten. München: C. H. Beck., 1995. ASSMANN, J. Moses der Ägypter. Darmstadt:WissenschaftlicheBuchgesellschaft, 1998. BION, W. Elements of psychoanlaysis. London: Karnac, 1963. _______. Transformations. London: Karnac, 1965. DARWIN, Ch. The descent of man, and selection in relation to sex. London: John Murray, 1871. v.2 FAIMBERG, H. Le mythed´Oediperévisité. In: KAËS et al. (Orgs.), 1993, p. 150-169. FREUD, Sigmund. Análise da fobia de uma criança de cinco anos. SA, 1909. v. 8. _______. Totem e tabu. SA, 1912/1913. v.9. _______.História de uma neurose infantil. SA, 1918. v.8. _______.Psicologia das massas e a análise do eu. SA, 1921. v.9. _______.O ego e o id. SA, 1923. v.3. _______.O mal-estar na cultura. SA, 1930. v. 9. _______. Novas lições introdutórias à psicanálise. SA, 1933. v. 1. _______.Análise finita e infinita. 1937. _______.Studienausgabe. Frankfurt a/M: Fischer.1974.v.10. GOUX, J. J. Oedipe philosophe. Paris: Aubier, 1990. HORNUNG, E. Der Eine und die Vielen: AltägyptischeGötterwelt. Darmstadt: WissenschaftlicheBuchgesellschaft.2005. 37 JONAS, H. Der Gottesbegriffnach Auschwitz. Frankfurt a/M: Suhrkamp, 1987. JUNG, C. G. (1963) Memories, dreams, reflexions.New York: Pantheon Books. Tradução brasileira: Memórias, sonhos, reflexões. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. KAËS, R. et al. (Orgs.) Transmission de laviepsychique entre générations. Paris: Dunod, 1993. KLEIN, M. Envy and gratitude, and other works, 1946-1963.London: Virago Press, 1988. LACAN, J. Le triomphe de lareligion, précédé de discoursauxcatholiques. Paris: Seuil, 2005. LITTLE, M. Ansiedades psicóticas e prevenção. Rio de Janeiro: Imago, 1992. LOPARIC, Z. Heidegger réu: ensaio sobre a periculosidade da filosofia. Campinas: Papyrus, 1990. _______. Winnicott: uma psicanálise não-edipiana. Percurso, São Paulo, n. 17, p. 4147, 1996. _______. Esboços do paradigma winnicottiano. Cadernos de história e filosofia da ciência, São Paulo, v. 11, n. 2, p. 7-58. 2001. _______. Objetificação e intolerância. Natureza Humana, São Paulo, v. 9, n. 1, p. 5195, 2007. _______. Winnicott e Jung. Winnicott e-Prints, São Paulo, v. 7, n. 2, 2012. _______. Winnicott e Jung. São Paulo: DWW editorial.2014a. (Coleção Winnicott em foco). _______.Amadurecimento e formas da religiosidade em Winnicott. Winnicott e-Prints, São Paulo, v. 9, n. 1, 2014b. (No prelo.) LOPARIC, Z. (Org.)Winnicott e a ética do cuidado. São Paulo: DWW editorial, 2013a. _______. O pai e o monoteísmo em Winnicott. Xxx2013b. ROSA, C. D. A presença do pai no processo de amadurecimento pessoal segundo Winnicott.2007. 139f. Dissertação (Mestrado em Psicologia Clínica), Núcleo de Práticas Clínicas, Pontifícia Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. ________. As falhas paternas em Winnicott. Tese (Doutorado) - Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo: 2011. 38 VERNANT, J. P.; VIDAL-NAQUET, P. Mytheettragédie em Grèceancienne. Paris: La Découverte/ Poche, 2001. WINNICOTT, D. W. (1958) Throughpaediatrics to psychoanalysis. London: Karnac. Tradução brasileira: Da pediatria à psicanálise. Rio de janeiro: Imago, 2000. _________. (1965a).Maturationalprocessesandfacilitatingenvironment. London: Karnac. Tradução brasileira: O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1983. _________. (1965b). Thechild, the family and the outside world.London: Penguin Books. Tradução brasileira: Criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Zahar,1982. _________. (1965c). The family and individual development.London: Routledge. Tradução brasileira: A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: Martins Fontes, 2005. Winnicott, D. W. (1971). Playing and reality.London: Penguin. Tradução brasileira: O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1975. _________. (1986). Home is where we come from. London: Penguin. Tradução brasileira: Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 1989. _________.(1988). Human nature.London: Free Association Books. Tradução brasileira: Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990. _________. (1989). PsychoanalyticExplorations. London: Karnac. Tradução brasileira: Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: ArtesMédicas, 1994. _________. (1996). Thinking about Children. London: Karnac Books. Tradução brasileira: Pensando sobre crianças. Porto Alegre: Artes Médicas, 1997. 39 Comentário ao texto “O pai e o monoteísmo em Winnicott”. Loparic: “mode d´imploir” – o leitor entusiasmado de Winnicott José Euclimar de Menezes Xavier Gostaria de começar com uma digressão em forma de pergunta: o que sustenta esse meu lugar de comentador do belo texto do Professor Loparic? Revelo a vocês que Loparic foi meu professor há 25 anos!!! Com ele aprendi a ler um Freud imerso em uma problematização cultural. Embora tivesse criado o CLE/UNICAMP, espaço no qual o lugar de Freud era situado, digamos, muito tecnicamente, o trabalho de Loparictinha um viés muito mais de “mar aberto”. E digo isso pensando no professor de quem me aproximei pela admiração a um modo de pensar hirto, ao tempo em que poético. Imaginem vocês que fiz com ele um curso no consultório da Elsa, no qual aprofundávamos o difícil Ser e Tempo do Heidegger durante 1 ano: concentração extrema linha a linha, uma exegese apaixonante para o garoto de 25 anos, que se iniciava no trabalho do hermeneutaque cruzava Heidegger com Pessoa, sem fazer dessa fertilização um ornitorrinco: toda a tragicidade do pensar de Heidegger, no leitor que iniciava leitores nas tramas difíceis do pensador da Floresta Negra, ganhava a aspiração poética de infinito do Navegador do Tejo. O caudaloso rio português singrava, no imaginário fascinante do grupo que ali rodeava um mestre do pensar, a vasta floresta do ocaso de um modo de ser que é o ocidental. Rio e Floresta como coisas elementares para um pensar desse mestre que atravessava com uma espécie de lamparina segura pela mão eque apontava e esquadrinhava os detalhes que eu não perceberia sem aquele foco delicado de um pensador, treinado por Gadamer, Ricouer e pelo próprio Heidegger. Como vocês vêm, meu texto começa por uma reverência a esse professor a quem comento hoje, e que se tornou um amigo ímpar e um conspirador de ações promotoras 40 de formação de gente que me desafia a olhar oceanicamente. Tejo, Floresta Negra, Baía de Todos os Santos: meus lugares de referência professor! Não posso não lhe agradecer por isso. Como dizia o velho e bom Lacan: espaços de significação. Como viver é muito perigoso, sobretudo em tempos onde a técnica se tornou tirânica, pensar livremente se tornou, para mim, uma necessidade. E aqui uma confissão: no quase prosaísmo de Winnicott, sou estimulado por vosmicê a pensar filosoficamente. Estivesse eu tête-à-tête solitariamente com o texto de Winnicott, jamais veria filosofia ali. Talvez visse um cronista do espaço ordinário da casa, da intimidade do lar. Ponto e basta. Escavar camadas de significações filosóficas em Winnicott tem a ver com, mais uma vez, o seu candinheiro iluminando os escaninhos miúdos que capturam olhares mais sutis e delicados. Vamos ao exercício do pensar que acho ter aprendido, a meu modo, é verdade, em um uso específico que cometo do seu belo texto, aqui fragmentado pela exiguidade do tempo em uma “única estação reflexiva”. Irei me concentrar no comparativo entre Winnicott e Freud para pensar a organização psíquica do sujeito e nela, o lugar da figura do pai. A primeira proposição do texto refere-se a uma espécie de virada de perspectiva que Winnicott teria realizado na reflexão e na prática psicanalíticas: trata-se da ocupação de Winnnicott com esta realidade viva e intensa que é a mãe dedicada ao seu bebê. E aqui uma pequena digressão para entender o que em outros textos,Loparic chama de mudança completa de paradigma efetivado por Winnicott, ao pensar o sujeito sendo, ao refletir sobre essa delicada tarefa de o bebê se tornar um eu, a partir dessa relação que nomeio de “relação elementar de cuidados”. Toda mãe de bebês pequenos sabe bem o significado de uma série de procedimentos a serem providenciados numa cena como a de um simples banho. Imaginemos, como a famosa “experiência” do sensualista Condillac:e no lugar da estátua, neste cenário do banho, tomemos o bebê. Quais são as ocorrências que se sucedem?:é despido, é imerso na banheirinha com água em uma temperatura x, o corpo recebe a água do banho, tem o roçar da mão da mãe percorrendo a superfície da pele, o 41 deslizar do sabonete, o esfregar da toalha que enxuga cada reentranciazinha do corpo, o contornar do cotonete que se passa aqui e ali nos orifícios corpóreos para os procedimentos minúsculos de higiene, a unção do perfume e do hidratante, o aspergir do talco, a vestimenta da roupinha, o acalanto, no colo, e o consolo, quase premiado, de um peito abocanhado e tateado... enfim... Tudo isso feito por este outro que se “DEVOTA” aos cuidados indispensáveis, nem sempre agradáveis de receber (e diriam as feministas... de fazer, porque exige tempo, disposição, renúncias, maternagem). Nesta cena, nada fictícia, absolutamente trival, prosaica de fato, algo se processa. E não se trata de meras impressões sendo armazenadas em um sistema de representações. Na reflexão de Winnicott, trata-se de um conjunto de ações que, numa sucessão infinita de repetições, vão se apresentando ao ser que está sendo, da sein, como o ambiente de cuidados, proteção e amor suficientemente bons para conferir a garantia do viver, a experiência elementar de ser cuidado. Um artista bem famoso daqui do recôncavo escreveu as boas-vindas ao seu último filhote, e dizia assim, sincrônico a esse ambiente-colo, ambiente-mãe, ambiente família descrito na letra de Winnicott: “Sua mãe e eu; seu irmão e eu; e a mãe do seu irmão; minha mãe e eu; meus irmãos e eu; e os pais de sua mãe: lhes damos as boasvindas, boas-vindas, boas-vindas! Venha conhecer a vida...” Pois é: naquilo que é próprio de um grande observador, Winnicott nos é apresentado nesse texto como um clínico atento aos inúmeros detalhes do cotidiano de um bebê, cuja significação só se alcança se se supera um modo especulativo que pensa estruturas prévias e rígidas depositadas em um sujeito que vem ao mundo com desejo já formatado, e com um esquema emocional cujo investimento équase que exclusivamente hostil. Sabemos que aqui a referência é Édipo: em Freud, o bebê já se inaugura querendopossuir libidinalmentea mãe que não é sua mulher; possui um pai temido e invejado que o ameça e o culpabiliza; está acossado entre impotência absoluta e um desejo insaciável. Lembro a remissão de Freud à Diderot para desenvolver a sua antropologia: “Se um bebê de três meses tivesse a força de um homem de 30 anos de idade, devoraria a sua mãe e torceria o pescoço de seu pai”. A este esquema 42 especulativo, nos lembraLoparic, opõe-seWinnicott. De sua experiência no cuidado com bebês, este esquema apriorístico de organização psíquica não faz qualquer sentido para pensar o que ocorre, de fato, no âmbito da intimidade familiar, em cujo cenário o colo se destaca como ambiente.Alí, o que mais importa é que verifiquemos os imperativos dessa tarefa do cuidado, refletido nos detalhes e nessa troca intuitiva que ocorre entre o bebê que recebe a atenção e a mãe, agente prioritária deste ambiente. Nesse sentido, poderia dizer que, na lupa que Loparic coloca no texto de Winnicott o âmbito familiar é, por natureza, o espaço propiciador de vivências e de ações inscritas na ética do cuidado. Não há apriori, nem representações, qual estrutura rígidas. Há fragilidade e delicadeza: de um lado a mãe que acode às carências do bebê, do outro, o bebê-ai, vivenciando a pacificação de seus instintos mais elementares: fome, sono, desconforto. Qual, pois, o papel do pai neste ethos? Cito Loparic: “Em Winnicott, o pai serve como esquema para alcançar a unidade e garantia da integração da instintualidade dos seus filhos na unidade pessoal de cada um deles”. Eu acrescentaria: O pai surge como suporte. Sem recursos aos feminismos, Winnicott aí parece dizer: a presença de apoio que ajuda ao bebê ir se constituindo como um “si mesmo” é o pai; ele aparece como retaguarda de um trabalho delicado, quase natural,empenhativo e devotado que é, via de regra nas culturas ocidentais, a ação materna. No seu pragmatismo que possivelmente decola de sua experiência como pediatra, Winnicottpensa o bebê vivenciando experiências emocionais enquanto está ali, pleno de demandas, e desprovido dos recursos operativos para o seu atendimento. Leitor de Freud, e com seu espírito nada especulativo, Winnicott se volta para a emergência da vida: trata-se do cotidiano que se impõe aos homens, mesmo que sejam bebês. É a fome que está ali e o sujeito não pode de per si sanar (é a mãe quem o faz!); é o sono e a impaciência que está ali e o diabinho não consegue o mínimo controle de si, de per si, para ir pacificando o espírito e se rendendo à entrega à quietude(é a mãe quem nina, quem acalanta, quem conduz ao sossego do sono); é o cocô que está ali incomodando e o seu produtor não tem competências para se limpar (é a mãe que, 43 devotada, o faz), etc. Todas essas coisinhas ordinárias recebem do olhar de Winnicott uma dignidade de tratamento que as transforma em objeto de investigação e de reflexão, mais ainda de intervenção, de operatividade, reveladoras de um ethos que se ocupa do cuidado. Estou plenamente de acordo com o Loparic nesse quesito: em Freud, há uma excessiva importância atribuída à sexualidade para pensar o estar-sendo do bebê. Outros autores já fizeram essa crítica à restrição freudiana por excelência. O que é especial em Winnicott?No meu modo de ver, o seu recuo a uma dimensão de originariedade: antes mesmo das descobertas sexuais, está ali o bebê, carecendo tornar-se “si mesmo”. E em que o pai coopera nisso? Como essa figura subsidiária da mãe, que está extremamente envolvida com os cuidados cotidianos com o filhote, torna-se significativa na tarefa que coopera para o bebê ser? Não vou reconstituir a trajetória reflexiva do leitor de Winnicott, de quem empresto a lente para cometer, eu mesmo, as minhas entradas nos interstícios de nossa fonte primária. Vocês terão acesso ao texto que será publicado na coletânea derivada desta reunião científica e poderão se deliciar com a bela escrita e a erudição admirável do professor Loparic que nos leva a rastrear a questão da religiosidade como um fio condutor, no ocidente, para pensar o pai. Vou direto e objetivamente ao ponto: o que Winnicott propõe para pensar a significação do pai, passando a ser integrante do ambiente que possibilita ao bebê ser? Loparic, reunindo suas leituras de vários momentos da obra de Winnicott nos afirma que ele “põe em evidência as formas de religiosidade que remetem, na sua origem, ao cuidado, não para com o que é santo, mas para com o que é sagrado na natureza humana e nas relações humanas”. Refere-se, como podemos deduzir, a toda uma tradição instaurada pelos monoteísmos, que vinculam santidade a sacralidade. Naquele sentido, sagrado tem a ver com uma ética da lei. Na dissociação promovida por Winnicott, sagrado implica uma ética do cuidado. No meu entendimento, isso se traduz por uma espécie de reserva de si que o bebê experimenta, não obstante a dependência absoluta aos cuidados do outro. Loparic o diz belamente do seguinte modo: 44 Na situação-problema exemplar da psicanálise winnicottiana, o ser humano tem que resolver os seguintes problemas iniciais: estabelecer contato com a mãe, que é simultaneamente ambiente e objeto, integrar-se no tempo e no espaço, alojar-se no corpo (personalização), entrar em relações objetais, constituir e manter o senso de realidade do si-mesmo (impulsividade pessoal criativa), aquisições que não eliminam, contudo, a capacidade de ficar não integrado e a solidão essencial inerente a cada indivíduo humano. Isso é estruturante do humano. O bebê porta essa aspiração: mesmo poroso em vulnerabilidade, mesmo acudido em suas carências as mais elementares, a capacidade de ser si mesmo lhe é estruturante. Permita-me, professor Loparic, a tradução em meus termos do seu belo dizer: o bebê não é marionete da mãe e do pai; em deles recebendo todos os elementos, a rigor, de garantia de sua sub-existência, não se cola a esses outros “caninamente”. Mas a existência mesma do bebê, sua condição de humano, é, se entendo bem Winnicott, auto acionada. Em termos mais simples: o bebê percebe mãe, pai, ambiente, a despeito da apresentação insidiosa que a própria vida impõe a este frágil ser. Essa estrutura, no autor, é instaurada pela figura da mãe. Todas as outras presenças que se sucedem, inclusive a do pai, será elemento propiciador do que Winnicott chamará de amadurecimento, que reiterarão essa matriz relacional criada pela mãe ambiente. Pai, então, subsidiário da ética do cuidado? Se tudo corre bem, o bebê chega a perceber a mãe e todos os outros objetos e os vê como não-eu, de tal modo que agora há o eu e o não-eu. (O eu pode incorporar [take in] e conter elementos não-eu.). Esse estágio dos primórdios do EU SOU só se torna atual no estabelecimento do si-mesmo do bebê na medida em que o comportamento da figura materna é suficientemente bom – isto é, no que diz respeito à adaptação e à desadaptação. Assim, a mãe é, no início, uma desilusão que o bebê precisa ser capaz de desautorizar, e há necessidade 45 de que ela seja substituída pela unidade desconfortável do EU SOU, que envolve a perda da fusão unitária original, que é segura. O ego do bebê é forte se houver um suporte do ego materno para fazê-lo forte; do contrário, ele é fraco. (Tudo começa em casa; p. 49) Issoé algo bem mais significativo: no curso da tendência ao amadurecimento, o pai é a presença que suporta a desrupção do vínculo mãe-bebê, necessária a que a integração de si seja promovida. No belo dizer de Kierkegaard: “feliz do filho que não se separou da mãe de outro jeito”. Desmame feito para que o indivíduo torne-se si mesmo, suporte do pai que aguenta essa perda elementar primária e significativa da própria existência: a mãe não será mais a mesma, o modo de nela ter todos os elementos indispensáveis para a garantia da vida não mais estarão ali. Aqui estou me referindo à mãe percebida em sua parcialidade, claro: era um peito e passa a ser mãe não por eventos mágicos, mas por um doloroso processo de separação, indispensável à integração do bebê. Esta travessia, essa passagem, é assegurada pela presença do pai, percebido pelo bebê como uma totalidade. Palavras de Winnicott: “...a terceira pessoa desempenha ou parece desempenhar um grande papel. O pai pode ou não ter sido um substituto materno, mas em alguma ocasião ele começa a ser sentido como se achando lá em um papel diferente [...]”. Um terceiro que não é mais a xerox da performance da maternagem. Um terceiro que não é excluído na constituição da individualidade, como no esquema freudiano, aí tiranicamente presente como fonte de ameaça e extrema angústia. Nada disso em Winnicott: “o bebê tem a probabilidade de fazer uso do pai como um esquema para a sua própria integração”. Figura de báscula, digo eu, que baliza os movimentos matriciais das experiências elementares de ser. Ouso dizer, professor Loparic, que Winnicott parece ter sorvido o espírito da filosofia e da poesia em sua reflexão para pensar na delicadeza desta vivência originária: “Tem o sol e tem a lua; Tem o medo e tem a rosa; Eu digo que ela é gostosa. Tem a noite e tem o dia; A poesia e tem a prosa; Eu digo que ela é gostosa. Tem a morte e tem o amor; E tem o mote e tem a glosa; Eu digo que ela é gostosa, Eu digo 46 que ela é gostosa. Tua mãe e eu; Seu irmão e eu; E o irmão da sua mãe”. O pai de Zeca remata o que me estribucho aqui para cometer, qual pensar, lendo o seu texto Loparic. A presença do pai no circuito dos cuidados elementares disponibilizados ao bebê cumpre essa dupla tarefa: a primeira de especulum: Colocar-se como um espelho para receber do bebê as projeções de si. Dizendo melhor: é ao pai que Winnicott atribui a tarefa de RECONHECER a si como uma unidade se fazendo. Aquelas cacofonias divertidíssimas que escutamos os adultos dizerem aos seus filhos aqui reunidas se tornam indicadores de um processo de identificação. É o pai, nessa ruptura simbiótica com a mãe quem está ali dizendo: “neném, mamãe, papai...”. O que isso significa? Realizar um papel indicativo do perfil de uma identidade: apresenta o bebê a ele mesmo; apresenta o bebê à mãe; apresenta o bebê a si, que fala, que designa: “neném, mamãe, papai”. Ambiente elementar a ser expandido na família extensa e, depois, nos circuitos mais sociais mais amplos. 47 MESA-REDONDA 2: IDEALIZAÇÃO NO PROCESSO TERAPÊUTICO – UMA ABORDAGEM DA PSICOLOGIA DO SELF Conferencista: YossiTamir39 Comentadores: Profa. Dra. Cláudia Mascarenhas 40 (BA) e Fernanda Leal41 (UCSal/Ba) Durante as últimas décadas, psicanalistas mudaram de uma centralização exclusiva nas pulsões e suas vicissitudes para uma ênfase cada vez maior nas necessidades do desenvolvimento. Este movimento teórico induziu a uma retratação da mente humana e sua evolução em termos de experiências próprias e senso de self. Os mais proeminentes representantes desta mudança paradigmática foram Winnicott e Kohut, que promoveram novos conceitos. Winnicott42nos apresentou o “self verdadeiro”, no sentido do sentimento subjetivo de autenticidade. Similarmente, Kohut43 desembaraçou a dimensão experiencial do self, uma dimensão que se refere aos sentidos da coesão, harmonia, vitalidade e continuidade. O processo de formação do self – de acordo com Winnicott e Kohut – depende da existência da presença humana que exerce a importante função de cumprir, repetitivamente e consistentemente, necessidades básicas de desenvolvimento. Estas são 39 Associação Psicanalítica Israelense. 40 Doutorado em Psicologia Clínica Trabalha no Instituto Viva Infância , Brasil pela Universidade de São Paulo, Brasil(2010) 41 Doutoranda e Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador, Especialista em Psicologia Perinatal (Instituto Brasileiro de Psicologia Perinatal, Gerar - SP). Bolsista da Fapesb. 42 Winnicott, D. (1960) 2Kohut, H. (1977) 3Kohut (1971) designou o termo selfobjeto para denotar uma representação interna de um objeto externo. Isto é precisamente análogo aoObjekt Kantiano. O termo selfobjeto não se refere a uma pessoa objetiva ou qualquer objeto concebido para ser externo à consciência, e o termo somente tem sentido em relaçãoà pessoa experienciando. 48 necessidades para experiências específicas e elas incluem experiências de segurança e proteção, de visibilidade, de singularidade, de fusão e pertinência. Na visão de Kohut, estas são “experiências de selfobjeto44” e elas se referem a um específico estado de consciência em que não há distinção entre self e outro, como no “estado transicional” de Winnicott. Este estado é tanto uma experiência de desenvolvimento quanto existencial. Em outras palavras, nem a “experiência transicional”, nem as “experiências de selfobjeto” são identificadas somente como experiências de desenvolvimento e “primitivas”. Ao contrário, elas são vistas como fenômenos existenciais que constituem um aspecto importante e necessário de estar dentro de todos os estágios da vida. O título do último, postumamente, livro publicado de Kohut era “How does analysis cure?” Em minha opinião, este título reflete sua busca persistente para o processo mental, que é responsável por cura e mudanças físicas. Sua busca trouxe à tona muitas ideias bastante conhecidas e inovações, entre as quais a reconsideração da idealização como um fenômeno mental e de desenvolvimento e do relacionamento idealizado no encontro terapêutico. Um dos pontos de início de meu interesse neste assunto é relacionado a uma experiência do início da minha carreira profissional. Eu então tratava de um menino de 8 anos que era criado apenas por sua mãe, pois seu pai havia desaparecido quando ele nasceu. Durante uma das sessões antes da minha partida para uma longa temporada servindo o exército, ele me perguntou o que eu faria no exército. Enquanto eu hesitava (pois eu havia sido instruído a não responder perguntas pessoais), ele prosseguiu: “Eu sei que você recebeu uma medalha por bravura na última guerra; você foi ferido, não foi?” Enquanto eu novamente tentava me recuperar da pergunta direta e encontrar um tipo de resposta terapêutica adequada, ele continuou e perguntou: “Por que você recebeu uma medalha por bravura? O que você fez lá? Foi perigoso?” 49 Eu me senti envergonhado e não sabia muito o quanto deveria contar a ele. Eu pensei que eu poderia suscitar uma ansiedade desnecessária nele caso descrevesse o perigo em que estive e as circunstâncias em que fui ferido. Eu falei algo evasivo que, aparentemente, suscitou sua ansiedade e ele imediatamente perguntou: “Você não vai morrer lá? Você vai voltar?” Eu fui novamente surpreendido por suas perguntas e não soube como responder. Aparentemente ele havia sentido minha ansiedade: era o período da Guerra de Desgaste, eu estava prestes a partir para o Canal de Suez por um período longo e meu primeiro filho acabara de nascer. De alguma maneira me recuperei e disse a ele algo reflexivo/interpretativo como: “Você tem medo que eu vá desaparecer como seu pai”, me sentindo bastante satisfeito com a interpretação de transferência que eu tinha formulado. Mas, para minha surpresa, ele não retornou nas duas próximas sessões. Eu então entendi isso como uma expressão de raiva e vingança do meu abandono ou como um rompante de ansiedade como resultado da minha interpretação. Quando discuti minha resposta com meu supervisor, ele me perguntou: “Por que você simplesmente não disse a ele que não morreria lá, que você voltaria e continuaria a atendê-lo como de costume?” Quanto à pergunta se eu deveria ter contado ao menino como eu havia recebido a medalha por bravura, ele respondeu: “É claro. Isso só poderia ter feito com que ele se sentisse bem por ele ter alguém de quem se orgulhar.” Eu lembro que fiquei muito mexido e impressionado pela atitude do meu supervisor, mas acho que apenas anos depois, quando me familiarizei com as ideias de Kohut, é que pude entender sua profundidade e sabedoria e o significado deste encontro terapêutico. Do meu ponto de vista hoje, eu acho que perdi a oportunidade de proporcionar a ele, e embasá-lo em uma experiência emocional curativa45 - uma experiência relacionada a um “outro” grande, forte e confiante. Eu perdi a oportunidade não apenas por causa do rompante da minha contratransferência (minha própria ansiedade ao partir 45 Uma experiência curativa, de acordo com o paradigma da psicologia do self se refere a uma experiência de desenvolvimento corretiva. 50 para o front), mas principalmente por causa da minha falta de sensibilidade em relação a suas necessidades específicas do self. Desta posição, me parece que seu “desaparecimento” antes da minha partida para servir o exército não foi uma expressão de raiva e vingança diante do meu abandono, meu desaparecimento. Ao contrário, foi uma resposta doída para um outro tipo de “desaparecimento” da minha parte: que eu não tinha estado a seu lado quando não correspondi de uma maneira afinada à sua necessidade de mim como uma figura idealizada. Isto é, eu não havia concordado de assumir esta função, da qual ele tinha tanta necessidade naquele momento específico e que eu não reconheci a importância curativa do relacionamento idealizado. Foi apenas alguns anos depois, quando eu me deparei com a seguinte passagem nos escritos de Kohut46: "A little boy is eager to idealize his father, he wants his father to tell him about his life, and the battles he engaged in and won. But instead of joyfully acting in accordance with his son's need, the father is embarrassed by the request. He feels tired and bored and, leaving the house, finds a temporary source of vitality for his enfeebled self in the tavern, through drink and mutually supportive talk with friends". A ilustração de Kohut descreve a necessidade de desenvolvimento da criança de admirar seu pai. Meu exemplo clínico demonstra também esta necessidade de admirar, mas também chama a atenção para a necessidade de ser acalmada e reassegurada. Kohut retrata a matriz de relacionamento desta necessidade como “a mother holding 46 Kohut, H. & Wolf, E. (1978) “Um menino está ávido para idealizar seu pai, ele quer que seu pai lhe conte sobre sua vida, as batalhas que ele travou e ganhou. Mas ao contrário de concordar alegremente com esta necessidade do filho, o pai fica constrangido com este pedido. Ele se sente cansado e entediado e, saindo de casa,encontra uma fonte temporária de vitalidade para seu self enfraquecido no bar, através de bebidas e apoio mútuo dos amigos.” (Trad. Livre). 6 Kohut, H. (1980) “Uma mãe segurando seu bebê magoado e possibilitando a ele se fundir com seu corpo forte e calmo.” (Trad. Livre). 7 Kohut, H. (1966). 51 upherupset baby andenablinghimto merge withher Strong, calmbody47” As citações supracitadas indicam que Kohut conectou esta necessidade de desenvolvimento ao modo de presença de ambos, pai e mãe. Em minha opinião, isso pertence mais a uma função parental como o próprio Kohut faz referência a sua configuração narcisista como a “idealizedparental imago48”. Contudo, se nos atermos a esta visão de que há uma diferenciação entre as funções maternais e paternais, nós podemos suscitar o pressuposto que necessidades de admiração estão relacionadas a atributos paternais de parentalidade e necessidades de acalmar e reassegurar – a atributos maternos de parentalidade. O seguinte exemplo clínico demonstra a expressão da necessidade suprimida por um selfobjeto calmante e abrangente e sua manipulação terapêutica. Shimshon, 9 anos, foi encaminhado para mim com queixas de dificuldade no autocontrole na escola e em casa. Ele estava crescendo como uma mãe narcisista e infantil, que estava profundamente absorvida nela mesma e tendia à depressão. Seu pai estava imerso em sua carreira e dedicava muito pouco tempo a seu filho e sua casa. As respostas de Shimshon à situação terapêutica indicavam que ele estava crescendo como uma criança “abandonada”: ele costumava chegar muito cedo às sessões e achava difícil terminá-las, bem como aceitar outros limites; ele costumava buscar contato físico comigo ou se dirigir a mim em um tom mandão – um tom que refletia a profundidade de seu “self faminto”. As tentativas de Shimshon de dominar o espaço físico e temporal encontraram expressão já em uma das primeiras sessões, quando ele mandou que seus desenhos fossem colados nas paredes de todos os cômodos e que eles ficassem lá para sempre. A dimensão da transferência e o sentido arcaicode sua demanda eram bastante 52 óbvios: ele queria “marcar seu território” e mantê-lo para si mesmo, colado a ele, fundido nele. Como eu não podia suprir sua demanda tecnicamente, eu ofereci a ele concessões junto com meu entendimento verbal. Ele prontamente rejeitou ambos. Eu percebi que ele estava planejando levar seu plano adiante e comecei a me sentir completamente desamparado – ele estava me ignorando completamente. Eu repeti muitas vezes, cada vez de uma maneira mais enfática, que eu não podia concordar com o que ele queria fazer. Ele me desconsiderou, pegou um desenho cheio de cola e pregou na parede. Enquanto eu estava considerando fazer ou dizer algo mais eficiente, eu me lembrei de como nós costumávamos acalmar o comportamento selvagem de crianças em terapia de grupo ao segurá-las e abraçá-las. Eu decidi que não havia outra alternativa e que eu deveria adotar a mesma tática. Eu disse a ele que percebi que ele não estava respondendo ao que eu dizia, mas que eu sabia que ele estava ouvindo e que agora eu ia dizer a ele o que eu estava pensando. Eu esperei alguns segundos, o vi parando sua atividade e entendi que ele estava em contato comigo. Eu continuei, dizendo a ele que eu via que ele precisava das minhas mãos fortes para segurá-lo e ajudá-lo a se controlar e que eu concordava em dá-las a ele, para que ele pudesse usá-las quando precisasse. Ele não respondeu, levando outros desenhos para outro canto da sala. Eu fiquei em sua frente, novamente dizendo que eu não podia permitir isso, apesar de entender o quanto isso era importante para ele. Ele reagiu com agitação e começou a correr loucamente pela sala, gritando ele podia fazer isso o que ele quisesse lá, bem como eu havia dito a ele, xingando, chutando os móveis e jogando coisas aleatoriamente. Eu fui até ele e pus meus braços em volta dele, tentando acalmá-lo ao fazer isso. Ele começou a lutar com meu punho, tentando me chutar. Eu respondi segurando cada vez mais forte e comecei a falar calmamente com ele. Eu disse que sabia que ele era forte, muito forte mesmo, e que eu estava segurando ele daquela maneira com minhas mãos para dar-lhe ainda mais força, para que ele pudesse ficar muito-muito forte. 53 Depois de dois ou três minutos ele se acalmou, descansando quietinho em meus braços, não mais se opondo à minha contenção. Durante estes minutos, eu tive a sensação de que nós estávamos nos tornando um corpo. Depois de alguns minutos eu senti ele se acalmar e afrouxei a contenção. Ele reagiu com agressividade e inquietude. Então, eu o contive com meus braços novamente. Esta interação não verbal repetiu-se algumas vezes: eu o sentia mais calmo e afrouxava o abraço, ele reagia com agitação; eu renovava o abraço forte e ele se acalmava novamente. Eu entendi essa recorrência como uma indicação de seu senso de coesão danificado. Ele precisava de um certo tipo de “cola” de um selfobjeto. Sua reação agitada ao afrouxamento do abraço, foi sua maneira de expressar que ele ainda não tinha tido o suficiente ou, em outras palavras, que ele ainda não havia recebido “cola” suficiente. Esta interação se repetiu durante muitas sessões, a causa da “luta” mudando vez ou outra. Eu percebi mais e mais claramente o quanto ele precisava e desejava um abraço longo e apertado. Quando eu tentei falar com ele sobre esta sua necessidade e seu medo de que eu não fosse concordar em abraçá-lo ou que eu fosse parar de abraçá-lo antes que ele estivesse pronto, ele prontamente rejeitou minhas palavras: “Do que você está falando? Eu não quero que você me abrace coisa nenhuma! Quem é que precisa dos seus abraços e suas besteiras!” Ele estava certo! Ele precisava dos abraços sem palavra alguma! Então, eu decidi parar com verbalizações interpretativas e continuou com a mesma “aceitação ativa” de sua necessidade por um longo tempo até que, em uma das sessões, ele pediu que eu o treinasse para ser um goleiro. É claro que eu concordei com muito boa vontade (eu já me sentia muito cansado). Este pedido se mostrou ser o marco de uma mudança. Conceitualmente, me parece que esta mudança foi alcançada através de uma experiência emocional de idealização que havia se desenvolvido por meio dos abraços. Mas, não foram os abraços fisicamente falando que foram cruciais. Em minha opinião, um fato essencial foi minha posição emocional face-a-face com minhas reações: eu estava preparado para segurá-lo o quanto ele precisasse sem me 54 sentir manipulado ou que ele estivesse tentando tirar vantagem de mim e eu estava pronto para deixá-lo me usar como uma função calmante, provendo o sentimento de coesão que ele necessitava. Eu não acho que foi um simples ato de “impor limites” da mesma maneira que pode parecer “olhando de fora”. Ao contrário, foi a minha presença, um “barril de força”, do qual ele pode tirar toda força de que ele precisava. Mais tarde eu também pensei sobre o significado terapêutico da intervenção verbal que acompanhou meu “holding” com Shimshon. Não está claro para mim quanto o conteúdo de minhas palavras foi importante e significativo para ele e qual seu o peso curativo, mas de alguma maneira eu sei e sinto que eu precisava destas palavras e o entendimento dinâmico traduziu em minhas palavras específicas para que eu pudesse me expressar num tom de voz afinado com o modo de holding. Eu vejo isso como uma canção de ninar cujo efeito, geralmente, não vem de seu conteúdo, mas de seu tom – um tom cuja transmissão é possível através de palavras. Eu sugiro que às vezes o entendimento dinâmico-empático, e a interpretação verbal resultando disso, é necessário para o terapeuta para que ele possa prover um holding eficaz. No curso do desenvolvimento, as experiências infantis de idealização com ambos pais são assimiladas na mente e transmutadas na idealização adulta que, nela mesma, é uma capacidade de se relacionar a um ideal e ser devota a ele. Estas experiências infantis também são as condições predominantes que facilitam a emergência e consolidação de confiança básica, a “capacidade de esperança” e a “capacidade de se preocupar”. Este processo é construído sobre a presença de outro que concorda em “vestir” os atributos idealizados de uma maneira absoluta e abrangente e participar completamente nesta “matriz idealizadora49”. “Vestir estes atributos” 49 A resposta afinada e ótima para esta necessidade, cria um processo de sobriedade da ilusão de onipotência por um lado e mormente estabelece a base para capacidade de usar presenças disponíveis para outros para a consolidação do self. 55 demanda uma prontidão do terapeuta de usar sua capacidade de brincar como é demonstrada na seguinte troca terapêutica. A paciente era uma mulher de meia idade que sofria de leve depressão, recorrentemente sentindo que ela tinha um vazio em sua vida e uma falta de expectativa. Como resultado de seu desespero, a paciente costumava reclamar repetidamente que não havia nenhuma melhora em sua angústia mental dizendo: “Qual é a razão de me esforçar? Tudo vai acabar mesmo, e você também vai morrer”. Em um determinado momento, durante uma dessas lamentações, eu decidi responder de uma maneira diferente; isto é, não a partir de uma maneira interpretativa, como eu havia feito tantas vezes antes. Eu disse a ela com toda seriedade: “Eu não vou morrer e te largar!!!” Ela olhou pra mim muito surpresa e resmungou: “E como é que você pode falar uma coisa dessas? No fim das contas você vai morrer, como todo mundo!” E eu respondi com a voz ainda bem firme: “Eu não vou morrer e te largar.” Então ela sorriu e disse: “Sabe, mesmo que eu não acredite em você, apesar de não ter jeito de acreditar em uma loucura dessas, ainda assim eu acredito que você possa... Você pode me dizer isso outra vez?” Deste momento em diante, toda vez que ela tinha dificuldades em aceitar a possibilidade de que alguma coisa positiva acontecia como resultado de seu tratamento, ela concluía dizendo com um sorriso: “Sabe, um dia eu ainda vou acreditar que você nunca vai morrer.”. Eu enfatizo o fato de que ela sorria enquanto me dizia sua “conclusão”,porque me parecia que isso era um sinal claro do que eu conceitualizo como “idealização saudável”, ou um renascimento da imagem idealizada dos pais. 56 Conclusões Finais Psicanálise clássica se refere à idealização como um modo de relações de objeto e enfatiza sua função patológica e defensiva. Acontece que a relação idealizada não foi organizada nela mesma, como uma experiência humana básica, mas como uma derivação de “alguma outra coisa”. Ao contrário desta abordagem, Kohut50 viu a idealização como uma necessidade primitiva, de desenvolvimento e existencial. Sua revisão revolucionária sugerida da teoria do narcisismo o levou a identificar a dimensão narcisista de sua necessidade. Sob esta ótica, ele não se referiu à idealização como a relação a um objeto, mas a uma experiência narcisista, uma experiência própria (do self). Em outras palavras, através do apego a um outro idealizado (um outro onipotente, onipresente), o sujeito idealizador experimenta tanto os dois sentimentos de segurança e proteção, bem como um senso de plenitude e perfeição. É importante salientar que uma quebra recorrente no processo de transformação da idealização da infância para a idealização adulta leva a uma formação de uma idolatria51 – uma devoção cega, que é uma idealização maligna e patológica. Referências KHAN, M. R. Alienation in perversions.London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1979. KOHUT, H. Forms and transformations of narcissism. J. Amer. Psychoanal Assn., v.14, p. 243-272, 1966. ________. The psychoanalytic treatment of narcissistic personality disorders.thepsychoanal.St. Child, v. 23, p. 86-113, 1968. 50 Kohut (1966) 10 Khan (1979) speaks of this type of relation as a perversion of the mother-child relationship. 57 ________. The restoration of the self. New York: International Universities Press, 1977. ________. (1980).Letters.The Search for the Self, New-York, v. l. n.4, p. 669-674, 1991. WINNICOTT, D.W. Ego distortion in terms of true and false self.In: ______. The maturational processes and the facilitating environment. London: The Hogarth Press and the Institute of Psycho-Analysis, 1960. 58 Um comentário sobre o texto “Idealização no processo terapêutico, uma abordagem da psicologia do Self” de YossiTamir Claudia Mascarenhas Fernandes Falar sobre a clínica da psicanálise é, em qualquer tempo, parte do ofício de um analista. Destacar algum elemento desse manejo clínico para teorizar é portanto imprescindível no “fazer" analítico, mas nem sempre encontramos exposições tão vivas e honestas quanto a de YossiTamir. Viva porque vemos em seus fragmentos uma clínica que pulsa, que se movimenta como a "maré das transferências” (empresto aqui a expressão de um psicanalista muito criativo e querido para nós baianos, Emílio Rodrigué). Honesta porque se apresenta desnuda de narcisismos ou de possíveis rompantes de maestria. Aqui o interesse é o de como podemos avançar na nossa prática a cada caso clínico, a cada paciente, a cada discussão, a cada escrito. Meus comentários para esse debate, portanto, partem desse princípio proposto por YossiTamir, de uma conversa amigável com um objetivo comum: compreendermos a delicadeza da nossa clínica do dia a dia. Yossi inicia seu texto dividindo a psicanálise em duas grandes visões: a que centraria sua atenção maior nas pulsões e suas vicissitudes e a que coloca a tônica nas necessidades do desenvolvimento. Chamo atenção que essa divisão não se baseia simplesmente em diferenças de autores dentro da psicanálise (pois ele trabalha com Winnicott e Kohut) e nem, necessariamente, baseia-se numa divisão entre a clínica com crianças (supostamente mais desenvolvimentista) ou adultos (mais apoiada em fenômenos existenciais). Tentarei explanar algumas questões que podem abrir uma linha de diálogo a respeito dessa divisão proposta e suas possíveis vicissitudes. 59 Propondo ao acompanhar o pensamento de Winnicott e Kohut, reconsiderar a idealização como um fenômeno mental, de desenvolvimento e que faz parte do encontro terapêutico, percebo que o autor consegue, no texto, realizar uma positividade na noção de idealização. Essa torção, passar uma noção aparentemente negativizada (como mecanismo de defesa sintomático, por exemplo) para positivá-la, parece-me uma fórmula bem psicanalítica, diria inclusive, bem freudiana. No texto do autor seria mais precisamente: recolocar a idealização dentro do manejo terapêutico para que se possa usá-la no sentido da mudança terapêutica. No primeiro fragmento clínico, que nos ensina muito pela hesitação que o analista vivenciou, e que apenas após todo esse tempo de distanciamento do caso, pode fazer a leitura clínica sobre a necessidade de positivar a idealização. Ao invés de tomar a pergunta de seu paciente como a necessidade do paciente de colocar o analista como uma figura idealizada, por sua contransferência, refere-se o autor, e por falta de sensibilização em relação a suas necessidades específicas do self, seguiu sua instrução de “não responder a perguntas pessoais” e, não depois de certa hesitação, fez uma interpretação da transferência. Bem, seu paciente não voltou por duas sessões, isso lhe trouxe um sinal de alerta. Primeiro aprendi que a divisão entre interpretação da transferência e interpretação na transferência feita por Lacan como uma distinção que representaria um divisor de águas entre algumas abordagens dentro da psicanálise, aqui cai por terra. Pois, o analista fez uma interpretação da transferência “você tem medo que eu vá desaparecer como seu pai", que pelo menos por seu relato não funcionou, mas o seu supervisor (que aqui suponho que compartilhava de sua mesma abordagem psicanalítica), faz uma sugestão de uma interpretação na transferência, ou seja, o analista poderia responder a partir de seu lugar na transferência, por exemplo: “não vou morrer lá, vou voltar a te atender como sempre fiz”. A segunda questão sobre esse riquíssimo fragmento é que: será que a contratransferência não teria provocado, antes de qualquer interpretação possível, também, além do que já foi muito bem colocado nas reflexões de Yossi nesse tempo do 60 só depois, uma resistência no paciente de falar do medo da morte? Será que isso iria realmente provocar uma grande ansiedade "não administrável” pelo paciente? Ou poderia o paciente, ao passar pelo assunto da morte ou da perda, que estava bordejando sem poder ser dito, conseguir palavras para elaborar essa ideia tão insuportável do risco de morte de seu analista? Ou melhor, além da necessidade de idealização do paciente sobre o analista e que este não sustentou, será que não caberia aqui também a ideia de que a resistência do próprio analista ao assunto da morte, de sua possível morte,que provocara a interrupção das sessões posteriores? Antes de uma interpretação que fizesse o paciente se sentir bem com a possibilidade do uso da admiração para chegar a idealização, não será que ao analista caberia poder sustentar a angústia de morte que ali se apresentava na transferência? Esse fragmento realmente me fez pensar e me interrogar sobre muitos aspectos das nossas intervenções, independentemente da abordagem que nos identifiquemos mais, em psicanálise. Independente, não por que as abordagens sejam semelhantes ou seus fundamentos clínicos sejam “no fundo iguais”, ou mesmo por que possamos fazer uma "bela mistura” entre elas; mas pelo fato de que ele nos mostra a oportunidade de podermos nos interrogar sobre a clínica e podermos modificá-la. Outro aspecto muito interessante é a ideia da "presença do analista", o quanto que para poder fazer uma interpretação, seja na ou da transferência, a presença inteira e próxima do analista pode fazer diferença na mudança a ser alcançada pelo paciente. E quando falo presença e proximidade, não me refiro obviamente à intimidade ou ao uso de aspectos do ser do analista, mas a intensidade e inteireza que o analista precisa ocupar em seu lugar de analista: “pode falar, estou com você, aqui realmente te escutando”. Fui com esse fragmento também lá nos primórdios da psicanálise freudiana, mais exatamente no texto “A dinâmica da transferência” em 1912. Nesse texto incrível, Freud teoriza o quanto a transferência e a resistência se relacionam quase como duas faces de uma mesma moeda. Diz ele “nosso segundo problema, é o problema de saber por que a transferência aparece na psicanálise como resistência" (FREUD, p. 136). Mais 61 adiante: “assim a transferência no tratamento analítico, invariavelmente nos aparece, desde o início, como arma mais forte da resistência”(FREUD, p. 139). “Quando algo no material complexivo (no tema geral do complexo) serve para ser transferido para a figura do médico, essa transferência é realizada; ela produz a associação seguinte e se anuncia por sinais de resistência, por uma interrupção por exemplo. (FREUD, p. 138). Minha questão, se seguimos essa experiência clínica de Freud é: como podemos sustentar a necessidade da figura idealizada do analista, desse modo positivado e a favor do trabalho analítico, mas ao mesmo tempo não enfatizarmos a resistência, dada que ela tem essa relação direta com a transferência assim que aparece a figura do médico e, consequentemente, se a transferência aumenta, a resistência aumenta na mesma proporção? No fragmento o paciente falta às sessões após o analista ter interpretado a transferência, interpretação esta que colocou o analista explicitamente no lugar do pai do paciente, acompanhando o raciocínio de Freud, à medida que o paciente se aproxima de um núcleo “patógeno”, ele em seu discurso se aproxima da “figura do médico”, refere-se a alguma coisa do analista, mas e se o próprio analista faz essa referência, não estaria ele mesmo promovendo essa resistência? Uma outra questão que me passou, dado que não tenho familiaridade com a teorização de Kohut, foi: qual a diferença na clínica da teorização da "necessidade de idealização da figura do analista” em alguns momentos do trabalho analítico, e como esta estaria ligada à necessidade de desenvolvimento do modo de presença de ambos, pai e mãe, e o trabalho com o eu ideal (imagos parentais ideias internalizadas) ou ideal de Eu (representações idealizadas dos ideais sociais, que inicialmente vêm também dos pais) ? Há alguma relação nisso? Onde se aproximam e onde se distanciam? Outro aspecto muito interessante que Yossi nos traz em seus fragmentos clínicos, é o que um analista precisa fazer no manejo clínico, quando num determinado momento do percurso analítico, ao paciente lhe faltam as palavras? Freud praticou a necessidade da abstinência e recuo do analista como uma intervenção, Lebovici a intervenção a partir da “enação" (ação acuculada do analista de agir a partir da empatia metaforizaste), Lacan teoriza o Ato analítico, e, Yossi, a partir 62 de Winnicott e Kohut, favorece a teorização da necessidade de intervenção a partir da idealização do analista pelo paciente. São perspectivas, claro, absolutamente distintas, que se sustentam dentro de fundamentos epistemológicos bem diferentes também, mas todas tratam da teorização que o analista precisa fazer sobre esses momentos clínicos em que ao paciente lhe falta palavras, melhor dizendo, são impossíveis de serem elaboradas por interpretações clássicas. O analista precisa inventar uma intervenção que se distancia da clássica interpretação, e ele precisa usar seu corpo, precisa agir de modo calculado, mas é um tempo que ainda a palavra não chega. Então, volto ao ponto da riqueza que é a abertura de um diálogo que possa nos fazer repensar a clínica, a psicanálise, nosso lugar de analista…Agradeço pelo texto e todas as aberturas que me fez pensar. Por fim, deixo uma outra interrogação: será mesmo que durante as últimas décadas os psicanalistas mudaram de uma abordagem exclusivamente apoiadas nas pulsões e suas vicissitudes para uma posição de maior ênfase nas necessidade de desenvolvimento? É possível fazer essa leitura evolucionista distintas abordagens dentro da psicanálise? Ou a psicanálise pode comportar, segundo a grande abertura de seu campo e a riqueza de sua clínica, uma convivência, uma tensão profícua, até os dias de hoje, entre abordagens distintas, mas que fazem parte desse imenso oceano que é a psicanálise? Obrigada! 63 Função paterna e maternagem: uma questão com a imagem do pai Fernanda Leal52 A questão do pai sempre me trouxe grande entusiasmo.A exposição do Dr. YossiTamir sobre a importância da idealização no processo terapêutico se apresenta para mim como um presente, principalmente se considerar que me detive, ao longo dos últimos anos, debruçada sobre questões relacionadas ao estatuto do pai nas sociedades modernas e pós-modernas, tanto no que se refere à sua imago quanto à sua função simbólica. Gostaria, portanto, de destacar da exposição de Dr. Tamir a importância da imago parental idealizada para o processo de amadurecimento. E apesar de Kohut ter desenvolvido esse termo relacionado a ambos, pai e mãe, como o próprio YossiTamir sinalizou, me deterei na importância dada à imago paternana literatura psicanalítica, mas especificamente em Lacan, no início de seus estudos, tomando como referência seu artigo de 1938, intitulado A família. Ressalto que o recorte que realizo não foca o conceito de Idealização desenvolvido por Kohut, mas privilegia o conceito de imago paterna que foi bastante explorado por Lacan nesse texto. Pretendo com isso estabelecer uma reflexão acerca da função do pai na contemporaneidade no que se refere a sua participação no processo de constituição psíquica dos sujeitos, para compreender como podemos pensar o papel do pai desde os primórdios da vida do bebê a partir do estatuto de sua imagem social. Vejam que destaco dois conceitos distintos: o de imago – que se inscreve numa análise histórica e sociológica – e o de função paterna – que adquire sua importância a partir da psicanálise. Iniciemos pelo conceito de imago paterna, que me pareceimportantíssimo para se pensar o complexo de Édipo freudiano e consequentemente a família contemporânea, principalmente a partir do recorte realizado por Lacan, o qual utiliza o conceito 52 Doutoranda e Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador, Especialista em Psicologia Perinatal (Instituto Brasileiro de Psicologia Perinatal, Gerar - SP). Bolsista da Fapesb. 64 considerando a maneira como esse pai aparece na sociedade vienense em fins de século XIX, justamente a sociedade palco das descobertas freudianas. Lacan não transita sobre as formas de apreensão dessa imago, elevai direto ao seu aspecto declinante, apreende sua dimensão desvalorizada e a explora à exaustão. Para Lacan, portanto, a imago paterna sofre o grande golpe no período posterior à revolução industrial e revolução francesa, período em que os especialistas convencionam iniciar a falência da família patriarcal. A própria referência que faz da falência da autoridade patriarcal – Lacan se refere a essa falência como um “declínio social da imago paterna” (1987[1938], p. 62) – já manifesta o caminho queele percorre. Esse declínio, por sua vez, podia ser percebido a partir de uma imagem paterna fragilizada, instável e desvalorizada socialmente, e, para Lacan, estava associado à crise da modernidade que representava os avanços desmedidos das mudanças decorrentes do período pós-revoluções, que influenciou tanto a família quanto a organização política, social e econômica da Europa no fim do século XIX. Alguns estudos como os de Roudinesco (2003), de Delumeau (1990), de Ariès (1991), dentre outros, são testemunhos da realidade a que esteve exposto o pai de outrora até chegarmos ao pai de hoje. Esta realidade histórico-social está presente na reflexão lacaniana sobre a falência paterna, igualmente observadapor Tellenbach (1983, p. 15): Que o pai esteja cada vez mais hesitante e inconsistente em sua inteligência, que ele apreenda e realize cada vez menos as potencialidades de sua paternidade, essas são as constatações que procedem de uma longa história; mas é somente no decorrer das últimas décadas que se pode mais claramente tomar consciência dessa situação, a ponto de não ser mais possível recusá-la53. Para completar, em 1793, morre guilhotinado o rei Luís XVI, depois da abolição da monarquia. Fato este que Roudinesco analisa fazendo referência a Balzac: “Ao cortar 53 Original em francês (Tradução livre da autora). 65 a cabeça do rei, dirá Balzac, a Revolução derrubou a cabeça de todos os pais de família” (ROUDINESCO, 2003, p. 33). Essa queda do patriarca que se manifestava através da desvalorização de sua imagem parece ser retomada por Lacan com o propósito de contextualizar o surgimento da teoria freudiana sobre as neuroses. Pois, como a metáfora balzaquiana já insinua, a correspondência entre os dois personagens, rei e pai, nos sugere que algumas condições, das quais destacamos as simbólicas, foram sendo criadas para pensar a família burguesa ordenada com um pai menos potente. Um corte fica estabelecido. E com o corte surge a possibilidade de se pensar a organização familiar de outra maneira:como provedora de subjetividades mesmo diante da falência da autoridade paterna. Assim, compreende-se que o pai, apesar da desvalorização de sua imagem, tem um papel importantíssimo para a constituição psíquica dos indivíduos. É, ao menos, a saída que Freud encontrou, segundo Lacan, para revalorizar o pai. Se ele não mais detém o poder de autoridade inquestionável dentro das sociedades, ele adquire um papel fundamental dentro da família – papel que não diz respeito ao autoritarismo ou a uma posição social de poder, mas àquilo que a psicanálise elabora sob o nome de Complexo de Édipo, que se encontra como importante referencial lacaniano na sua abordagem da função paterna. Para Lacan, portanto, o Complexo de Édipo se constitui numa forma de valorização do pai diante da crise que se impunha; uma valorização eminentemente simbólica. Conforme as palavras de Lacan: “Seja qual for o futuro, este declínio constitui uma crise psicológica. Talvez seja a esta crise que se torna necessário relacionar a aparição da própria psicanálise” (LACAN, 1987[1938], p. 62). Se a psicanálise não poderia solucionar a crise que eclodia nem, tampouco, resgatar a autoridade do patriarca dentro da família, poderia, ao menos, oferecer-se como um dispositivo simbólico de ordenação psíquica, apesar da crise social do pai. No entanto, nessa função do pai, podemos observar uma fragilização – que se manifesta através de subjetividades vulneráveis a psicopatologias – que seria resultante da 66 influência do declínio de sua imagem. O que nos faz colocar em evidência aquilo que Dr. Tamir destaca na sua exposição, ou seja, o quanto a imagem do pai (e dos pais) exerce importante papel no processo de amadurecimento do indivíduo. Lacan não despreza essa constatação. Ao contrário, apesar da polêmica afirmação de Lacan quanto ao surgimento da psicanálise, a ênfase recai, não no nascimento desse campo do saber, mas sim nos efeitos psicopatológicos procedentes das novas formas familiares que se sustentam numa imagem social paterna fragilizada. É o que podemos constatar na sequência do texto de 1938: Seja como for, são as formas de neuroses dominantes no fim do século passado que se revelaram ser intimamente dependentes das condições de família. Estas neuroses, desde o tempo das primeiras adivinhações freudianas, parecem ter evoluído no sentido de um complexo caracterial onde [...] se pode reconhecer a grande neurose contemporânea. A nossa experiência leva-nos a designar aí a determinação principal na personalidade do pai, sempre faltando de certo modo ausente, humilhada, dividida ou artificial (LACAN, 1987[1938], p. 62). Dito de outro modo, para Lacan, os sintomas neuróticos são o reflexo das formas de família dominantes e, portanto, intimamente ligados à fragilidade da imagem paterna.As possíveis saídas do Édipo, segundo a teoria freudiana, servem aqui de testemunho: não se pode sair do Édipo senão ao preço de um adoecimento psíquico, ainda que este seja a neurose. Podemos concluir, a partir desse longo passeio pela história e pelo artigo de Lacan, que as psicopatologias contemporâneas são, na verdade, manifestações das novas possibilidades de organização psíquica que os sujeitos contemporâneos estão suscetíveis diante das novas formas de organização familiar ocidental, que se constituem a partir de um pai simbólico. Mas essa longa análise não nos mostra como podemos pensar o pai – como ele participa, como ele intervém, e se ele intervém – nos primeiros dias da vida do bebê. 67 Mas para refletir a respeito da atualidade da função paterna na constituição subjetiva do bebê desde seus primeiros dias de vida, penso ser necessário analisar rapidamente de que forma o pai participa num período ainda tão prematuro da vida de um bebê. Nesse campo de estudo das relações do bebê e seu pai, gostaria de destacar os estudos de Winnicott. Seus ensinos privilegiam a díade mãe-bebê, excluindo, de certa forma, o pai como personagem de destaque nos primeiros contatos do bebê com seu ambiente.Não existe, portanto, uma clara diferença entre as funções desempenhadas pela mãe e pelo pai, pois, para Winnicott, a relação do bebê com o ambiente, no caso, a mãe, é compreendida dentro de uma relação dual, onde não há a percepção de um terceiro nos primeiros momentos de sua vida. Para ele, essa percepção é mais uma das conquistas que a criança adquire à medida que avança no seu desenvolvimento (WINNICOTT, 1990). Se não há a percepção de um terceiro nos primeiros meses de vida, o pai não existe enquanto tal para o bebê, e, portanto, não poderíamos falar em função paterna nos primórdios da vida de uma criança na perspectiva winnicottiana, muito menos nos efeitos psicopatológicos que Lacan constata como resultante da nova forma de paternidade, alicerçada numa imagem do pai desvalorizada. Mas antes de abandonar Winnicott, eis que me deparo, num texto de 1960, com a seguinte frase: “...um cuidado materno satisfatório, que significa cuidado paterno.” (WINNICOTT, 1983[1960], p. 44). Na sequência do texto, Winnicott define cuidado paterno satisfatório classificado em três estágios: 1. Holding; 2. Relação dual mãe-bebê, onde o pai não é conhecido do bebê; e 3. Pai, mãe e lactente. Acredito que Winnicott é claro em sua afirmação, e que podemos compreender a relação direta entre a mãe suficientemente boa e o cuidado paterno nesse pequeno trecho (e em todo o artigo54). Talvez, para ele o pai não possa ser conhecido pelo bebê, 54 Artigo Teoria do relacionamento paterno-infantil (1960) que pode ser encontrado em WINNICOTT. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artesmédicas, 1983. 38-54 p. 68 pois em sua obra o processo de maturação requer outras conquistas para alcançar esse nível de desenvolvimento. No entanto, ele não descarta a importância desse pai desde o início de seu nascimento, como podemos verificar na afirmação citada, que nos faz crer que para Winnicott, para que uma mãe desempenhe sua função maternante a presença do cuidado paterno é de suma importância. Recorro a outro texto de Winnicott para dar suporte a essa afirmação, onde ele escreve: ...o que hoje em dia é tão necessário, ou seja, dar suporte moral à boa mãe comum, (...), e protegê-la contra tudo e todos que se interpuserem entre ela e o bebê. Todos nós devemos juntar forças que capacitem o início e o desenvolvimento natural da relação emocional entre as mães e seu bebê. Esse trabalho coletivo é uma extensão do trabalho do pai, do trabalho do pai desde o início, quando a mãe está carregando, sustentando e amamentando seu bebê; no período anterior ao qual o bebê vai poder usar o pai de outras maneiras”(WINNICOTT, 2005, p. 122). Ou seja, Winnicott nos diz claramente há um trabalho do pai desde o início (...). Reforço:“no período anterior ao qual o bebê vai poder usar o pai de outras maneiras”, maneira essa que podemos supor estar associada ao Édipo. Mas antes do Édipo o bebê pode usar o pai dessa maneira, indireta, porém salutar, pois que o seu trabalho de suporte moral à boa mãe permite o início e o desenvolvimento natural da relação emocional entre a mãe e o bebê(WINNICOTT, 2005, p. 122). O que parece importar nesse momento inaugural das relações do bebê com o seu entorno é mais o lugar que o pai ocupa junto à mãe desde a gestação até o desenrolar dos primeiros meses do recém-nascido. Outros autores reforçam a afirmativa de Winnicott, dentre eles, Nadia e Daniel Stern. Segundo eles, a função primeira do pai, no modelo tradicional de família, consiste “em oferecer à mulher um suporte emocional, físico, prático e financeiro, que vai fazer a ponte com o mundo exterior e lhe deixar 69 espaço necessário para aprender a se ocupar do bebê” (STERN, BRUSCHWEILERSTERN,1998, p. 213). Esse ponto de vista do papel do pai, o de estar ao lado da mulher a cada etapa da maternidade, desde a gestação, enquanto suporte emocional, sugere-nos uma forma de presença do outro da mãe interferindo de alguma maneira na relação dual. Pois se considerarmos a importância desse entorno da mulher para sua maternagem, o pai, como parte do ambiente materno, estaria favorecendo a função materna imprescindível ao desenvolvimento do bebê. Nesse cenário que Stern nos apresenta de inscrição da maternagem, poderíamos, então, supor que o papel do pai corresponde a uma função paterna, e, portanto, simbólica, que atua de forma a permitir a maternagem do bebê e consequentemente seu desenvolvimento psíquico, mesmo antes de sua entrada nas relações edipianas. Função simbólica, uma vez que, ao tomar parte junto às referências sociais da mãe, ele possibilitaria a mulher aceder à significação de sua maternagem. Não poderia deixar de recorrer a Lebovici, psiquiatra e psicanalista que tanto se debruçou sobre as questões do recém-nascido, para complementar e reforçar aquilo que Winnicott nos traz de forma tão brilhante. Segundo as palavras do psiquiatra francês: “Depois dos trabalhos de Bowlby sobre o apego, considero que os pais têm por função ajudar suas mulheres no processo de maternalização” (LEBOVICI, 1989, p. 73). E o que seria essa ajuda senão uma operação simbólica? E se pudemos considerar o papel do pai nesse período que vai desde a gestação até os primeiros meses de vida do bebê como uma função paterna deveríamos supor, igualmente – pois que estamos lendo esses autores a partir da tese lacaniana de 1938 – que essa função traz em si os traços de sua imagem social desvalorizada. Assim como, segundo os argumentos de Lacan, as psicopatologias do bebê poderiam ser compreendidas como efeito da nova realidade do pai do período pós-revoluções. 70 O objetivo não é patologizar as expressões sintomáticas do lactente, nem mesmo interpretar a família contemporânea como uma família que faz o sujeito adoecer. Ao contrário, o que se verifica nas leituras recorridas é a atualidade de uma constituição subjetiva marcada pela nova lei que a funda, a saber, a lei simbólica, que traz em si uma inadequação própria do mundo simbólico. A representação dessa lei pode ser compreendida à luz da antropologia de Lèvi-Strauss, que tanto influenciou o pensamento lacaniano a partir de 1952, quando do seu retorno à Freud. Segundo o antropólogo, o mundo simbólico impõe um limite que lhe é próprio: “não pôde e jamais poderá consistir senão em retificar recortes, proceder a reagrupamentos, definir pertenças e descobrir recursos novos, no seio de uma totalidade fechada e complementar consigo mesma” (LÉVI-STRAUSS, 2003. p. 42). Lacan nos diz algo parecido porém de outra maneira, já integrando a questão da família. Segundo ele, “De fato mesmo representada por uma única pessoa, a função paterna concentra em si relações imaginárias e reais, sempre mais ou menos inadequadas à relação simbólica que a constitui essencialmente” (LACAN, 1998, p. 279). Ou sempre algo escapa ao sujeito, ou, tudo ele capta do outro sem no entanto poder compreender o que capta, sem no entanto poder falar sobre aquilo. Se ele não pode falar, se ele não pode compreender, se ele não pode ter acesso a um sentido que dê conta, resta a ele adoecer. Manifesta, portanto, através de sintomas aquilo que não pode significar de outra maneira. Dessa forma o sintoma fala, sendo a forma do bebê se comunicar com o outro. Partindo desse ponto de vista, as psicopatologias do lactente seriam, portanto, efeito do tipo de organização a que estamos submetidos, organização familiar que se constitui e funciona a partir de operações simbólicas: metáforas, significações, representações, interpretações; que possui em sua estrutura o caráter inerente ao mundo da linguagem, a saber, o limite, o furo, a inadequação, a idiossincrasia, o paradoxo, o mal entendido, o equívoco. Que estejamos diante de um período onde vemos a função paterna em seu declínio, não é o que pretendo denunciar, afinal de contas, os autores contemporâneos o fazem muito bem. O que sinalizo, pontuo e reforço é algo anterior ao que se constata 71 com relação ao declínio da função paterna, e que acredito ser de grande importância para a compreensão da proliferação das psicopatologias do bebê, ou seja: devemos pensar a relação dual mãe-bebê como estando permeada por um terceiro – não importa qual – que pode fazer a função de pai que o complexo de Édipo freudiano nos propõe como esteio para a constituição do sujeito humano. Seja na simbolização da maternagem; como ambiente facilitador ou como suporte moral da mãe; ou ainda, como interditor na relação mãe-bebê, a função paterna deve ser considerada desde o início da vida do recém-nascido. No entanto, o que a atualidade da constituição subjetiva nos esclarece é que não se pode pensar essa função sem o seu caráter simbólico e, consequentemente, sem os efeitos inerentes ao mundo da linguagem no qual se sustenta a própria função paterna. Tanto e de tal forma, que podemos, inclusive, nos preocupar quando diante de bebês que não adoecem, que não manifestam sintomaticamente as idiossincrasias do mundo que os rodeiam. Se a presença de um sintoma pode se constituir num sinal de alerta, sua ausência, no entanto, pode indicar algo muito pior. E para darmos o sentido devido a essa realidade da maternagem, devemos sempre ter em mente que a mãe, ao desempenhar seu papel de mãe, tem todo um ambiente em torno dela que pode favorecer ou não essa maternagem. Dito de outro modo: a mãe nunca está só, ou quando está, é porque algo do seu entorno falta, claudica. Para que a mulher cumpra seu papel de forma minimamente saudável para ambos, para ela e o recém-nascido, deve haver um ambiente que favoreça as interações mãe/bebê. Alguém que possa ser o terceiro da relação, alguém que possa ser o outro da mãe. E quem nos diz isso é o próprio Winnicott, como vimos anteriormente: “...um cuidado materno satisfatório, que significa cuidado paterno.” (WINNICOTT, 1983[1960], p. 44). Para finalizar, utilizo as palavras de Simone de Beauvoir: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. (...) Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro” (BEAUVOIR, 1967, p. 9). O mesmo podemos dizer com relação à mãe. 72 Referências ARIÈS, P. História da vida privada. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. BEAUVOIR. S. O Segundo sexo II:.a experiência vivida. São Paulo: DifusãoEuropéia do Livro, 1967. DELUMEAU, J.; Roche, D. (Orgs.). Histoire des pèreset de la paternité..Paris: Larousse, 1990. LACAN. J.A família. Lisboa: Assírio&Alvim, 1987. ______. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. In: ______.Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998. p. 238-324. LEBOVICI, S.; WEIL-HALPERN, F. Psychopathologie du bébé.Paris: P.U.F, 1989. LÉVI-STRAUSS. Introdução à obra de Marcel Mauss. In: MAUSS, M. Sociologia e antropologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. p. 11-46. ROUDINESCO. A família em desordem. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. STERN, D.; BRUSCHWEILER-STERN, N. La naissance d’une mere. Paris: PochesOdile Jacob, 2008. TELLENBACH.L í mage du pèredans le mytheet l ́histoire.Paris: P.U.F., 1983. WINNICOTT, D. W. Teoria do relacionamento paterno-infantil. In: ______. O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas, 1983. p.38-54. ___________. Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago, 1990. ___________. A contribuição da mãe para a sociedade. In: ________. Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes, 2005. p.117-122. 73 MESA-REDONDA 3: PROVISÃO AMBIENTAL PATERNA Conferencista: Profa. Dra. Claudia Dias Rosa 55 Comentadores: Profa. Conceição Serralha (SBPW)56 e Doutoranda Marlene Brito (UCSal/Ba)57 O pai no processo amadurecimento58 Claudia Dias Rosa Nesta exposição, apresentarei um panorama geral do papel do pai no processo de amadurecimento – do estágio inicial da primeira mamada teórica ao período edípico (não poderei me deter no tema da adolescência que extrapola o tempo que eu tenho aqui). Pretendo, neste percurso, mostrar que a importância da presença paterna começa antes mesmo do bebê ter condições de reconhecer o pai como pai; tenho a intenção, também, de deixar clara a sua importância como membro do casal parental – o segundo ambiente, depois da mãe, que a criança encontra e com o qual conta para continuar amadurecendo. Explicitarei, de maneira sucinta, os diversos papéis que ele assume no decorrer da vida do indivíduo e que variam segundo as necessidades relativas a cada estágio. Deterei-me, mais longamente, na discussão de sua participação no estágio das relações triangulares, quando ele assume um papel privilegiado para auxiliar a criança nas elaborações das questões próprias a este período. 55 Psicóloga, Doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, membro da SBPW (Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana), Professora da Escola Winnicottiana de Psicanálise do CWSP, Coordenadora do SAP (Serviço de atendimento em psicanálise) do CWSP e do CWCamp. 56 Doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil(2007). Professor Adjunto III da Universidade Federal do Triângulo Mineiro, Brasil 57 Graduação em Licenciatura em Psicologia pela Universidade Regional do Nordeste, Brasil (1989) Psicóloga com atuação na área clínica do Consultório de Psicologia , Brasil. 58 Este artigo deriva de minha tese de doutorado “As falhas paternas em Winnicott”, defendida na PUC/SP em 2011 e que contou com o apoio do CNPq. (Cf. Rosa, Claudia Dias, 2011). 74 Primeiramente gostaria de observar que, embora relevante, tanto do ponto de vista teórico quanto clínico, o tema do pai mereceu pouco destaque entre os pesquisadores da psicanálise winnicottiana. A literatura secundária sobre Winnicott deu especial ênfase à questão da relação mãe-bebê, justificável pela importância que o próprio autor dá ao tema em suas formulações teóricas e clínicas. Entretanto isso acabou por obscurecer o fato – e, portanto, o estudo sobre ele – de que, desde o início, o pai participa de modo decisivo do processo de amadurecimento e de que, muitas vezes, a origem ou o agravamento de um determinado distúrbio devese a uma falha paterna. De fato, na clínica, nos deparamos com histórias de vida cuja problemática apresentada, muitas vezes a central, toca em aspectos que dizem respeito à relação com o pai e suas falhas. A qualidade de sua presença, ou sua ausência, os distúrbios que o afetam e que transbordam para a relação com os filhos, a imaturidade de sua personalidade, sua incapacidade de dar apoio à esposa ou sua necessidade de ocupar o lugar desta, a impossibilidade de confrontar, de se envolver íntima e pessoalmente com as questões que afligem a criança ou o adolescente, sua omissão frente a determinados assuntos, sua violência ou total complacência, são exemplos de como o pai pode falhar em seu papel e afetar a vida dos filhos. A questão do pai não é, pois, um tema secundário, não é meramente teórico e temimplicações clínicas que não podem deixar de ser analisadas. Dito isso, passo, agora, à apresentação de alguns dos papéis que cabem ao pai nos diferentes estágios do processo de amadurecimento saudável: 1. O pai no período de dependência absoluta Durante esse período, bebê e mãe formam uma só unidade; embora indiretamente, o pai participa desta relação e a qualidade da sua presença no ambiente é de extrema importância, pois modula o espírito da mãe: o sentimento de estar protegida e amparada depende em parte do que o pai é capaz de fornecer. É natural, portanto, a constatação de que todo o efetivo cuidado paterno – com relação à qualidade do 75 ambiente em que a dupla mãe-bebê habita e com relação ao atendimento das necessidades especiais da mãe – fazem parte do colo materno que o bebê recebe. Daí a necessidade de se conjeturar que, nas formulações de Winnicott, está contida a ideia de que a mãe e o pai, juntos, compõem o ambiente total que o bebê precisa encontrar para amadurecer, ainda que o lugar do pai não seja o mesmo da mãe na relação direta com o bebê. O pai nesse período ajuda a mãe a ser mãe. Se tiver uma presença efetiva e fizer a sua parte, contribui, de maneira preciosa e particular, para que ela seja suficientemente boa. No período da dependência absoluta, pode-se dizer que, basicamente, o pai assume dois principais papéis: o de mãe substituta, e o de dar sustentação à mãe. Ele, além disso, propicia, junto com a esposa, os alicerces do sentido de família. Veremos, no decorrer desta exposição, como, nesta teoria, a família tem um valor relevante e decisivo para muitas das questões envolvidas na conquista da saúde. A família fornece a continuidade no tempo desde a concepção da criança até o fim da dependência, que caracteriza o término da adolescência (cf. 1988/1990, p. 57). Segundo Winnicott, cito: cabe a cada indivíduo empreender a longa jornada que leva do estado de indistinção com a mãe ao estado de ser um indivíduo separado, relacionada à mãe, e ao pai e à mãe enquanto conjunto. Daí o caminho segue pelo território conhecido como família, que tem no pai e na mãe suas principais características estruturais. (Winnicott, 1961b[1957]/2001 p. 60). 1.2. O pai no período de dependência relativa Ainda nos estágios iniciais, o bebê saudável, que pôde viver o tempo necessário a experiência de onipotência, começa a adquirir uma crescente compreensão mental e precisa que a mãe não mais o atenda prontamente – desiludindo-o por meio de uma desadaptação gradual – para poder exercitar essa capacidade e realizar incipientes experiências de autonomia e de diferenciação com relação à mãe. Não é difícil avaliar que nem sempre é tranquilo à mãe proceder à desadaptação gradual do bebê e dar início a todo o conjunto de cuidados relativos ao desmame. O pai 76 tem uma contribuição preciosa a fazer para que a mãe consiga operar essa separação. Nos bons casos ele tem um interesse particular para que os dois componentes desta dupla ganhem rapidamente autonomia: quer ver seu filho crescer e espera reaver sua mulher para si. No mesmo sentido de facilitar o caminho que levará o bebê à separação e àautonomia, ele estando presente no ambiente, será, cito “o primeiro vislumbre que a criança tem da integração e da totalidade pessoal” (Winnicott, 1989xa[1969]/1994, p.188), antecipando o indivíduo unitário que vai chegar a si. O bebê utiliza o pai como uma espécie de diagrama para a sua própria integração, num momento em que esta integração ainda não foi conquistada por ele.Winnicott diz, cito: O pai pode ou não ter sido um substituto materno, mas em alguma ocasião ele começa a ser sentido como se achando lá em um papel diferente, e é aqui que sugiro que o bebê tem probabilidade de fazer uso do pai como um diagrama para a sua própria integração, quando apenas se torna, às vezes, uma unidade. (1989xa[1969]/1994, p.188) Essa citação exemplifica um dos pontos inovadores do pensamento de Winnicott relativo ao tema do pai: ao invés de simplesmente interventor, o pai surge antes, não como lei, mas como modelo de integração, antecipando o status unitário a que o indivíduo irá chegar, se tudo correr bem. 1.3. O pai no estágio do concernimento Será somente após ter alcançado com mais solidez o estabelecimento de um eu unitário, e, portanto, a possibilidade de relacionar-se com pessoas inteiras, que a criança estará apta a integrar, como pessoal, os seus impulsos instintuais, assumindo com isso, a potência de seus impulsos amorosos primitivos; por serem esses impulsos inerentemente destrutivos, ela terá também que assumir a responsabilidade relativa a essa destrutividade: esta é a tarefa básica do estágio do concernimento que contará, em determinado momento, com o reconhecimento do pai no mundo exterior. 77 Tendo um pai forte e protetor à frente, a criança não teme destruir a mãe e, assim, pode experimentar, de forma segura e espontaneamente, sua destrutividade pessoal. A mãe que, estando protegida pelo pai, sobrevive aos ataques dirigidos a ela no auge da experiência excitada, tem condições de sustentar a situação no tempo até que a criança encontre meios de reparar os estragos feitos e entre no círculo benigno, adquirindo a capacidade para o sentimento de culpa e a responsabilidade - base da moralidade pessoal. Winnicott afirma que quando há saúde, a criança, antes de adotar a moralidade dos pais, da educação ou da religião, desenvolve uma moralidade pessoal, conquistada neste estágio. A integração da destrutividade que é própria da conquista da capacidade para o concernimento é pré-condição para que a criança torne-se apta para viver, um pouco mais tarde, as experiências agressivas relativas às fantasias e tensões inerentes ao estágio das relações triangulares. É necessário que o pai, assim como a mãe, tenha maturidade suficiente para permitir que a criança explore plenamente os sentimentos e ansiedades que pertencem a esse período. Diz Winnicott: A criança [...] descobre que é seguro ter sentimentos agressivos e ser agressiva por causa da estrutura da família, que representa a sociedade de forma localizada. A confiança da mãe em seu marido, ou no apoio que vai conseguir, caso o solicite, da sociedade local [...] cria a possibilidade da criança explorar rudemente atividades destrutivas que se relacionam ao movimento em geral, e mais especificamente à destruição relacionada à fantasia que se acumula em torno do ódio. Nesse caminho (por causa da segurança ambiental, da mãe sendo apoiada pelo pai etc.) a criança torna-se capaz de fazer uma coisa muito complexa, ou seja, integrar seus impulsos destrutivos com os amorosos, e o resultado, quando tudo corre bem, é que a criança reconhece a realidade das ideias destrutivas que são inerentes, na vida, ao viver e ao amor, e encontra modos e maneiras de proteger, de si mesma, pessoas e objetos valorizados. (1984c[1960]/1999, p.85) 1.4. O pai no estágio das relações triangulares 78 Antes de iniciar o exame das questões paternas propriamente ditas, referentes à etapa das relações triangulares, assinalo o seguinte: se tomarmos as formulações do autor a respeito desse período veremos que esse estágio, denominado edípico por Freud, traz à tona, segundo Winnicott, toda uma gama de relações e sentimentos relativos às experiências triangulares recém-descobertas, as quais, embora incluam as questões especificamente genitais, que pertencem à linha instintual do amadurecimento, extrapolam o âmbito sexual que essencialmente as define. Ao ocupar osdiferentes vértices do triângulo familiar, a criança também experimenta relações cuja natureza intrínseca se encontra na linha identitária do amadurecimento, não diretamente referida, portanto, à sexualidade. A lealdade e a deslealdade, a confiabilidade nas relações parentais, as diferentes formas de participar da rotina e dos afazeres domésticos que incluem toda a família, são exemplos de outros aspectos contidos nas relações familiares que, embora possam estar mesclados às excitações sexuais, estão longe de poder ser reduzidos ou mesmo definidos por estas. Creio, portanto, a partir de Winnicott, que seria mais preciso chamar esse estágio de estágio das relações triangulares (ou das relações familiares). O autor afirma que Quando chega ao estágio de desenvolvimento em que consegue perceber a existência de três pessoas, ela própria e duas outras, a criança encontra, na maioria das culturas, uma estrutura familiar à sua espera. No interior da família, a criança pode avançar passo a passo, do relacionamento entre três pessoas para outros mais e mais complexos. É o triângulo simples que apresenta as dificuldades e também toda a riqueza da experiência humana. (Winnicott, 1988/1990, p.57; itálicos meus) Winnicott faz notar que, em meio a toda complexidade que caracteriza o estágio das relações triangulares, a psicanálise freudiana deu primazia às questões edípicas. Cito: De todas as possibilidades Freud elegeu como objeto de seu estudo o complexo de Édipo, e por esses termos passamos a indicar o nosso reconhecimento da totalidade do problema, derivado da aquisição, pela 79 criança, da capacidade de relacionar-se enquanto ser humano com dois outros seres-humanos, a mãe e o pai a um só tempo. (1958m[1956]/2000, p.420, os itálicos são meus) Nota-se assim que, na visão winnicottiana, o complexo de Édipo representa apenas uma fatia, um dos aspectos da “totalidade” das questões familiares que passam a estar envolvidas nesse estágio. Aqui o contexto familiar, já importante anteriormente, ganha nova relevância: passa a ser o principal ambiente sustentador, no qual o jogo das relações interpessoais se apoia, se desenrola e ganha realidade. Para Winnicott, a situação edipiana acontece dentro de uma família, e não o contrário: não é dinâmica desejante da triangulação edípica que condiciona e estrutura as relações familiares. O pai é significativo pelo fato de, como integrante da família, marido da mãe e homem, realizar ações a partir desse lugar e, não somente por representar para a criança um terceiro que exerce a função de interditor sexual ou objeto de desejo. Além disso, o pai não é somente o principal representante pela introdução dos códigos éticos e morais, aquele que deve ser temido, e respeitado, como se esses atributos fossem dados de antemão, pelo fato de ele ocupar esse lugar. A pessoa do pai precisa antes, e como condição para que isso se dê e se estabeleça, ser o homem real que exerce ações concretas de proteção, moldura e sustentação das relações familiares e também ter, efetivamente, presença nas brincadeiras e jogos das crianças, conhecendo suas coisas, a preferência de um filho, o jeitinho do outro. Winnicott afirma que: especialmente quando o pai bate o pé com firmeza é quando ele se torna significativo para a criança pequena, desde que ele tenha conquistado antes o direito de assumir uma atitude firme ao ter uma presença assídua e amistosa em casa. (1993i[1960]/1999, p. 100) Quando, ao mesmo tempo em que exerce o papel de interventor, o pai continua a proteger e a manter a vida cotidiana, ele também ajuda a criança a discriminar entre fato 80 e fantasia. A capacidade para essa discriminação, no dia a dia, é de grande auxílio na resolução do Complexo de Édipo. Nestaetapa, as fantasias sexuais da criança ganham grande força (cf. 1988, p. 59) e as experiências edípicas podem ser vividas e elaboradas se, entre outras coisas, essas fantasias não forem soberanas aos fatos. Embora, ao longo da vida, sejamos sempre confrontados pela eterna tarefa de separar a fantasia da realidade, neste começo da vida são os pais que devem auxiliar seus filhos nessa discriminação.59 Mas, para tanto, eles mesmos devem ter fortemente estabelecida essa distinção de modo a ajudar os filhos a alcançar essa capacidade, sem, com isso, perderem o exercício salutar da imaginação criativa.Winnicott afirma que mesmo os pais que tendem a ser satisfatórios, podem facilmente falhar na criação de seus filhos por não serem capazes de distinguir claramente entre os sonhos da criança e os fatos. Pode ocorrer de eles apresentarem uma ideia como se fosse um fato, ou reagir impulsivamente a uma ideia como se esta fosse um ato. Na verdade, é possível que eles temam mais as ideias do que os atos. A maturidade implica, entre outras coisas, na capacidade de tolerar ideias e quem é pai e mãe precisa desta capacidade, que na melhor das hipóteses faz parte da maturidade social [...]. A criança só aos poucos adquire a capacidade de distinguir entre fantasia e realidade. (1988/1990, p.78) Vejamos como isso ocorre na situação edípica padrão do menino. O filho deseja ocupar o lugar do pai junto à mãe. O pai, homem real, ao mesmo tempo em que aceita a rivalidade, não desautorizando nem desmerecendo a fantasia, faz a sua parte e realiza o 59 Num texto (1965f) em que relata o caso de um menino, Patrick, de 11 anos, há um trecho de uma carta que Winnicott redige à escola do menino recomendando seu retorno à vida escolar, tendo em vista que o menino tivera já uma boa recuperação de sua doença, durante o recesso promovido pelo próprio Winnicott. O que interessa, aqui, é a citação que se segue, pois nela fica claro o valor que o autor atribui aos fatos reais. Ele escreve: “Pode ser útil que aqueles que estão trabalhando com ele [Patrick] saibam que não são as grandes coisas que preocupam Patrick; ele não fica realmente perturbado se alguém ficar muito zangado com ele, porque isto é real e acha-se relacionado à situação real objetivamente percebida. O que facilmente perturba Patrick é apenas uma pequena reprovação ou louvor e o efeito deste pode ser inteiramente fora de proporção com algo de real [...] Se tiverem de ficar manifestamente zangados com Patrick, isto não é o tipo de coisa que, acredito, cause problemas” (1965f p.279, os itálicos são meus) 81 ato objetivo de intervir na consecução dos desejos da criança, impedindo, por exemplo, que esta, sistematicamente, durma com a mãe na cama do casal. Mas, ao mesmo tempo em que intervém, podendo até zangar-se, ele continua cuidando da criança, como sempre o fez, a partir da real maturidade dela. Depois da intervenção, aceita o eventual convite para andar de bicicleta ou, antes de este ir dormir, lê para ele o livro de histórias, retomando com o filho a vida comum. É também importante observar que as questões relativas ao complexo edípico, de modo geral, já se encontravam presentes no estágio do concernimento, acrescidas agora do elemento sexual com a primazia da genitalidade e pagam um tributo, em termos de sua resolução, aos bons resultados encontrados nessa última fase (concernimento).Esclarecendo: se frente à descoberta da destrutividadepessoal a criança pôde tolerar a culpa relativa à mesma, encontrando modos de reparar os danos causados por seus atos e ideias no auge da experiência excitada, ela tem as pré-condições para aguentar – e com isso grande probabilidade de resolver de maneira saudável – as tensões geradas pela ambivalência de seus sentimentos no estágio das relações triangulares com base genital. Winnicott aponta para o alívio que meninos e meninas experimentam com a entrada nesta fase quando contam com um pai e uma mãe que são presentes em suas vidas e, mais ainda, quando estão reunidos numa relação de casal, cito: Nessa situação triangular, o menino pode conservar o amor pela mãe tendo à frente a figura do pai, e do mesmo modo a menina, com a mãe à frente, pode conservar seu desejo pelo pai. Na ausência de uma terceira figura, a criança só tem duas alternativas: ser engolida ou se afastar violentamente. (1965p[1960]/2001, p.135) Segundo Winnicott, quando os pais sabem “gozar da potência que deriva da maturidade emocional individual” (1961b[1957]/2001, p.62), todos os envolvidos – os filhos em especial – têm muito a lucrar. De seu ponto de vista, a relação sexual dos pais é“uma rocha a que ela [a criança] se pode agarrar e contra a qual pode deferir seus 82 golpes” (1945i[1944]/1982, p.129), não somente porque essa união assegura a intimidade, o interesse excitante e o desejo entre o casal, mas também porque envolve o empenho de ambos em manter a vida familiar – sendo a família um arcabouço que “fornece parte dos alicerces naturais para uma solução natural do problema das relações triangulares” (Winnicott, 1945i[1944]/1982, p.129). O amor do menino pelo pai e, ao mesmo tempo, o fato de encontrá-lo no caminho entre ele e a mãe, o ajudam a sair do emaranhado de fantasias que o assolam. Ao ocupar esse lugar, o pai, que já vinha desenvolvendo com a criança uma relação de confiança e proximidade, torna-se para o filho uma figura forte e protetora, digna de admiração e de identificação. O menino se identifica com o pai, aceita os limites por este colocados, e assim é aliviado das tensões e insatisfações que a manutenção das fantasias eróticas com relação à mãe causaria. A criança que sonha ter a mãe não tem, simplesmente, como realizar o sonho e é desse modo que, ao intervir, o pai protege o filho de ter que lidar com sua real imaturidade para essas questões. A intervenção paterna torna-se, assim, uma boa saída para preservar a potência relativa que está começando a ser testada pela criança. É nesse sentido que a castração fantasiada pela criança tem, segundo esse autor, o valor de cuidado e proteção, ele diz: “o medo à castração pelo genitor rival torna-se uma alternativa bem vinda para a angústia da impotência” (Winnicott, 1988/1990, p.62). Sem essa oposição, restaria à criança permanecer no terreno da fantasia ou ver-se mergulhada na impotência. O pai é, neste sentido, um facilitador para que o filho continue amando a mãe de forma segura e fique também liberado para o sonho com outras mulheres. Pela via da identificação, o menino encontra uma nova forma de relação com o pai: ao invés de se opor diretamente a ele e de reivindicar uma potência semelhante, ele abdica de parte dessa potência e estabelece com o pai, nas palavras de Winnicott, um “pacto homossexual”, de maneira que, na sua fantasia, a potência paterna passa a ser também sua – porém adiada para a adolescência. 83 Espera-se que o pai seja suficientemente maduro para aguentar, além de todo o ódio dirigido contra ele, toda a gama de sentimentos e comportamentos afetivos que o filho venha a apresentar na sua relação com ele, e isso, acrescenta o autor, “liberta outro problema, que é a amizade entre o menino e o pai, ou entre meninos” (Winnicott, 1971t/1984, p.100). Winnicott ainda faz a importante consideração de que o surgimento da moral no indivíduo não está, como em Freud, localizado no âmbito edípico e nem aparece em consequência da ameaça do pai. Não é pela imposição da lei ou pelo medo da castração que a consciência moral se institui. Para ele, a moralidade já teve uma história pregressa na relação mãe-bebê e, portanto, não se origina e nem deriva da interdição do pai: é essa pré-história, no fundo, que condiciona e possibilita a legitimação da ordem e dos códigos morais que o pai coloca nesse momento. Ou seja, quando a lei paterna vem desempenhar seu papel nas questões edípicas, ela já corresponde a um segundo momento, por assim dizer, de cunho mais instrumentalizador e normativo das regras sociais, do que propriamente a instauração da noção pessoal e do sentimento de responsabilidade, culpa e reparação com relação aos danos causados pela própria existência. A importância de todas essas questões é evidente e, sem dúvida, o amplo exame do papel do pai no processo de amadurecimento da criança permite, também,a análise de suas falhas em cada uma das etapas que compõem esse processo e suas consequências na vida dos indivíduos, estudo este que realizei na tese de doutorado intitulada“As falhas paternas em Winnicott”60. Dentre as reflexões que ainda estão em aberto, seria necessário examinar, por exemplo, o papel do pai no período da latência e na conturbada etapa da adolescência, quando não apenas recrudescem as angústias primitivas, como também o jovem é apanhado na assustadora evidência de uma potência nova e real capaz de realizar aquilo 60 Cf. Rosa, Claudia Dias, 2011 84 que antes habitava, sobretudo, o terreno da fantasia. Nesse momento, cabe ao pai suportar e sobreviver aos confrontos que surgirão, se há saúde, no relacionamento com o filho. O que está em jogo aqui, não é a disputa pela mãe, mas a necessidade do jovem de encontrar um lugar próprio e seu, em si-mesmo e na vida social, e para isso, precisa rebelar-se e afastar-se do ponto de origem, sem, entretanto, perder a confiança nos pais, o lugar de retorno, a família. Não menos importante, é a compreensão do valor da presença paterna quando o filho torna-se um jovem adulto e começa a almejar a paternidade e, ainda mais tarde, quando o pai torna-se avô e novas exigências e desafios – que, mesmo sem consentimento, podem atualizar dificuldades não ultrapassadas – se impõem a ambos. Se não raras vezes as dificuldades se reapresentam nessas ocasiões, a oportunidade desses novos lugares também propicia uma nova chance para o resgate e a vivência de aspectos da masculinidade, da paternidade e da filiação que não puderam ser experimentados numa época anterior. Nessaocasião, diz Winnicott,o avô, no melhor dos casos, é chamado a dar sua contribuição às crianças a partir desse novo lugar. Diversas questões afins, na esteira da abertura deixada pela teoria winnicottiana, poderiam igualmente ser tratadas, tais como o papel paterno na educação, na cultura eno vasto território da vida social, bem como a compreensão desse papel nos agrupamentos e situações familiares de nossos tempos: pais separados com novos lares, uniões homossexuais, pais muito ausentes, maridos que assumem o papel da mulher na vida doméstica e no cuidado com os filhos, vidas em comunidade etc., à procura de subsídios para o esclarecimento do que, no que diz respeito ao pai, deve estar presente nos diversos lares como condição preventiva para a manutenção da saúde da criança e da própria família. A análise e a explicitação do valor da presença do pai ao longo do processo de amadurecimento não só mostra que Winnicott se ocupou deste tema em sua obra, mas também que trouxe novas e importantes contribuições para o aprofundamento do mesmo, tanto em termos teóricos como clínicos. 85 Referências ROSA, Claudia Dias. As falhas paternas em Winnicott. Tese (Doutorado) - Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, São Paulo, 2011. WINNICOTT, D. W. (1982). A criança e seu mundo.6. ed. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos. (Trabalho original publicado em 1964a). _______. (1982). E o pai? In: _______. (1982/1964a) A criança e seu mundo.6. ed.. Rio de Janeiro: LTC, 1982. p. 127-133 (Trabalho original publicado em 1945i[1944]) _______. (1984). Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1971b) _______. (1984). ‘Robert’ aos 9 anos. In: _______. (1984/1971b) Consultas terapêuticas em psiquiatria infantil. Rio de Janeiro: Imago, 1984. p.100-115. (Trabalho original publicado em 1971t) _______. (1990). Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago (Trabalho original publicado em 1988) _______. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Arte Médicas (Trabalho original publicado em 1989a) _______. (1994). O uso de um objeto no contexto de Moisés e o Monoteísmo. In: _______. (1994/1989a) Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas.p. 187-191 (Trabalho original publicado em 1989xa [1969]) _______. (1999) Tudo começa em casa.3. ed. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1986b) _______. (1999). Agressão, culpa e reparação. In: _______. (1999/1986b)Tudo começa em casa. 3. ed.. São Paulo: Martins Fontes.p. 69-91 (Trabalho original publicado em 1984c[1960]) _______. (1999). Conversando com os pais. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1993a) _______. (1999). O que irrita? In: _______. (1999/1993a) Conversando com os pais.2. ed. São Paulo: Martins Fontes, p.77-100 (Trabalho original publicado em 1993i[1960]) 86 _______. (2000). Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958a) _______. (2000). Pediatria e neurose da infância. In: _______. (2000/1958a) Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago.p. 417- 423. (Trabalho original publicado em 1958m[1956]/2000) _______. (2001). A família e o desenvolvimento individual. 2. ed.São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1965a) _______. (2001). Fatores de integração e desintegração da vida familiar. In:_______. (2001/1965a) A família e o desenvolvimento individual. 2. ed.São Paulo: Martins Fontes. p.59-72. (Trabalho original publicado em 1961b[1957]) _______.(2001). Família e maturidade emocional. In:_______.(2001/1965a), A família e o desenvolvimento individual. 2. ed.São Paulo: Martins Fontes. p. 129-138. (Trabalho original publicado em 1965p[1960]) 87 Comentário ao texto “Provisão ambiental paterna” Conceição Aparecida Serralha Ao ouvir a exposição de Claudia sobre o papel do pai nos diferentes períodos de dependência da criança de seu ambiente, durante o desenvolvimento desta, eu gostaria de trazer uma contribuição ao que ela expôs sobre a qualidade da presença ou da ausência do pai para o amadurecimento emocional e pessoal da criança, com a síntese de um caso clínico. Mais especificamente, ao que Claudia evidencia sobre situações em que distúrbios que afetam os pais acabam transbordando para a relação com os filhos, em que se evidencia imaturidade na personalidade do pai, com uma incapacidade de dar apoio à esposa, uma impossibilidade de confrontar, de se envolver íntima e pessoalmente com as questões que afligem os filhos. Entendo que, quando Claudia descreve o papel dos pais, ela apresenta o papel suficientemente bom destes, referido por Winnicott (1988/1990) em pessoas que tiveram a oportunidade de amadurecer e, assim, conseguir assumir todas as responsabilidades inerentes aos seus papéis, quer fosse o papel materno, quer fosse o paterno. Contudo, infelizmente, não é essa a realidade das pessoas que, muitas vezes, buscam atendimento de problemas físicos ou psicológicos, para si ou para seus filhos. Esse fato, por sua vez, nos possibilita acompanhar Winnicott em sua teorização sobre as dificuldades no exercício dos papéis parentais, quando as pessoas responsáveis por exercê-los tiveram o seu próprio processo de amadurecimento comprometido. No cotidiano da clínica, são verificadas várias consequências, nos filhos, de falhas no amadurecimento pessoal dos pais para o desempenho de seus papéis. Podem ser encontrados pais e mães que não conseguem sair da condição de serem cuidados para a condição de cuidadores, o que traz sofrimento para a criança e para eles. Encontram-se, também, mães que não se permitem compartilhar a criação do seu bebê com o pai, sendo importante questionar, nestes casos, não só a condição imatura da mãe, mas a condição de amadurecimento desse pai a quem a mãe não permite um compartilhamento, ou seja, se ele se mostrou confiável durante o relacionamento de 88 ambos. E mais um exemplo pode ser encontrado em pais e mães que, por se identificarem com os filhos em sua reação a falhas no atendimento de suas necessidades, não sabem manejar a situação e partem para a agressão ou, por dó, superprotegem ou abandonam seus papéis, delegando à sorte o futuro de seus filhos. Segundo Winnicott (1986a/1991): (...) quando você tem pais que pode incorporar, muito vai depender de como são esses pais, se eles são, de certa forma, rígidos ou adaptáveis. Se você só pode contar com pais rígidos, sua posição é quase a de um órfão, que perdeu algum aspecto humano nos cuidados iniciais (p. 143). Também em outro texto Winnicott (1993a/1993) assinalou: “(...) certamente os pais que são superprotetores causam situações angustiantes em seus filhos, assim como os pais que não podem ser confiáveis tornam seus filhos confusos e assustados” (p. 101). Trago um caso, cuja identificação do pai com o filho, em sua condição de filho reativo a falhas nos cuidados necessitados, ficou evidente. Ou seja, o pai se identificava com o filho – com as características deste de poucos recursos amadurecidos para lidar com determinadas situações –, quando este reagia agressivamente. Sobre essas ocasiões, o pai não só relatava se lembrar de cenas de sua própria infância, como tentava dar-lhes um sentido, muitas vezes sem sucesso, em razão da ansiedade relacionada ao ocorrido na ocasião, que também se atualizava nesses momentos. Winnicott (1986b/1996; 1989a/1994), inúmeras vezes, apontou a capacidade de identificação entre pessoas humanas e a importância desta para o papel facilitador do ambiente no tocante ao amadurecimento humano; em outras palavras, a importância da capacidade de se colocar na pele do outro, de sentir-se na situação do outro e se dar conta das necessidades deste para, enfim, atendê-las. Entretanto, esse processo pode se complicar se essa identificação ocorre em relação a situações não suficientemente elaboradas, ou mesmo, de fato, não experienciadas, na infância dos próprios pais. De 89 acordo com Winnicott (1989a/1994), algumas pessoas podem ter vivido eventos traumáticos relativos a um cuidado não suficientemente bom, em cujo momento de ocorrência não havia ali um eu capaz de experienciar e temporalizar esse evento. Ao se identificarem deste modo, os pais perdem qualquer capacidade de atendimento das necessidades da criança e o que se instala pode se aproximar de uma situação de caos. Pedro – uma criança de seis anos – era descrito pelos pais como muito “nervoso sem a medicação”, e quando diziam “não” para ele. Embora a mãe achasse que ele ficava melhor com a medicação, o pai não concordava com isso. Também a mãe achava que Pedro respeitava mais o pai. Este, por sua vez, dizia que Pedro havia perdido o respeito por ele; assim, habituara-se a colocá-lo de castigo ou bater. A mãe, quando nervosa, batia nele e até o mordia, “pegava-o pelo pescoço”. Pedro a xingava, ficava emburrado e falava que ia fugir. A mãe o ameaçava e o amedrontava dizendo que “o louco” viria pegá-lo. Os pais disseram que Pedro, por outro lado, era muito carinhoso. Às vezes, segundo a mãe, ele tentava beijá-la, mas ela não tinha paciência com isso por estar cansada e ter que dar conta do serviço da casa após um dia inteiro de trabalho em uma empresa. De acordo com a mãe, ela própria, quando criança, não podia “agarrar” sua mãe sempre que queria e não estava acostumada com esse tipo de carinho. O pai também contou que, quando criança, se fosse beijar sua mãe, levava um “tapa”. Os pais dataram o início do comportamento agressivo do filho a partir dos três anos de idade, entendendo esse início em razão das várias brigas conjugais causadas pelo ciúme paterno e que foram presenciadas por Pedro. Em uma das ocasiões, Pedro se escondeu embaixo do tanque, tamanho o medo que sentiu. Apavorava-se com a possibilidade da separação dos pais. O pavor de Pedro, relatado, parecia se aproximar muito de uma “agonia impensável” devido à desorganização que tomava conta dele, muitas vezes envolvendo agressões e destruição do ambiente. Esse tipo de sofrimento se aproximava, para Winnicott (1986b/1996), de “um estado de confusão, de desintegração da personalidade, um cair para sempre, uma perda de contato com o corpo, uma 90 desorientação completa, e outros estados dessa natureza” (Winnicott, 1986b/1996, p. 77). O pai relatou que, aos domingos, o filho era mais calmo. Acreditava que Pedro devia sentir falta dele e, no domingo, procurava ficar mais com o filho. Disse: “Me preocupo muito com o nervosismo dele. Eu era assim quando menino, dava trabalho. Minha família fala que é de família. Às vezes, sofro”. Disse ainda: “Eu tinha ausência do meu pai. Eu trabalho, mas quando dá, brinco com ele. Meu pai era totalmente diferente. Ele nunca sentou comigo pra conversar. Com minha irmã já... isso me deixava muito nervoso. Até uns dez anos atrás, tinha revolta contra ele. Ele me espancava muito, de tirar sangue. Mas não adiantava. Sempre senti falta. Tenho meu pai, mas nunca foi presente”. Embora o pai de Pedro sentisse necessidade de ser diferente do próprio pai, sendo mais presente na vida do filho, não conseguia. A mãe disse que ele saía com o filho aos domingos, mas não dava atenção a ele. Levava-o para junto de seus amigos pessoais e, enquanto mantinha-se entretido, Pedro ficava sem atenção. Nos outros dias da semana, após o trabalho, o pai não conseguia ficar em casa, saía para o bar e deixava a mãe sozinha com os afazeres domésticos e com o cuidado dos filhos. Ao longo dos relatos da mãe, pôde ser percebido que ela esteve sempre muito só na lida com os filhos. O pai pareceu ter tido muitas dificuldades de exercer seu papel à época do nascimento dos filhos, que, de acordo com Winnicott (1958a/2000), como relatou Claudia, é de extrema responsabilidade no que tange ao apoio que a mãe necessita para conseguir desempenhar o seu próprio papel de forma satisfatória para o bebê. Essas dificuldades podem ter contribuído para a depressão pós-parto que a mãe viveu após o nascimento da irmã mais velha de Pedro. De acordo com Winnicott (1958a/2000), no período inicial de maternagem, a mãe se torna, em vários momentos, imatura, dependente, desamparada e, somente assim, pode se colocar na pele de seu bebê. Entretanto, a orientação especial por parte da mãe para com seu bebê, 91 (...) não depende apenas de sua própria saúde mental, mas é afetada também pelo ambiente. No caso mais simples o homem, apoiado pela atitude social que é, em si, um desenvolvimento da função natural do mesmo, lida com a realidade externa para a mulher, de modo a tornar seguro e razoável para ela se tornar temporariamente introvertida e egocêntrica (Winnicott,1965b/1990, p. 135). No caso dos pais de Pedro, esse apoio parece não ter ocorrido suficientemente bem. Além disso, a mãe contou que, após o nascimento da filha, tomou anticoncepcionais durante três anos e interrompeu esse uso porque o marido parou de comprar o remédio, deixando subentender que ela não queria ter engravidado novamente, o que acabou ocorrendo. Winnicott (1993a/1993) também escreveu: (...) no meu trabalho, aprendi muito sobre as dificuldades que as mães enfrentam quando não desfrutam uma posição favorável. Talvez tenham grandes dificuldades pessoais, de modo que não podem ter um bom desempenho, mesmo quando são capazes de ver o caminho; ou têm maridos que estão longe, ou que não fornecem um apoio adequado, ou que interferem, que são até ciumentos; algumas não têm marido, mas têm ainda que criar o bebê (p. 36). Além de todos esses pontos analisados sobre o ambiente familiar de Pedro, torna-se importante retomar um ponto do relato do pai: “Eu tinha ausência do meu pai. Eu trabalho, mas quando dá, brinco com ele. Meu pai era totalmente diferente. Ele nunca sentou comigo pra conversar. Com minha irmã já... isso me deixava muito nervoso.” Pôde ser notado que a história da relação amorosa entre o avô de Pedro e a irmã de seu pai, que tanta revolta produziu no pai, se repetia na história deste com a irmã de Pedro. Segundo os próprios pais, a relação dos dois (pai de Pedro e a irmã deste) era “maravilhosa”. A identificação com o filho – que fazia o pai reviver o intenso sofrimento vivido quando menino – e, ao mesmo tempo, a ausência de recursos 92 amadurecidos para lidar com essa identificação, fazia com que ele se afastasse do filho e, muitas vezes, gerava um comportamento agressivo no contato com a criança. As falhas nos papéis materno e paterno ficaram evidentes. Uma origem específica das dificuldades apontadas não seria acessível, uma vez que se entende que falhas em um papel acabam gerando falhas no outro, mostrando a interdependência destes para os seus desempenhos. Nesta análise, em relação ao papel paterno, especificamente, destacaram-se falhas no tocante à criação de um ambiente estável e indestrutível para a criança poder se desenvolver. Esse ambiente, com essas características, está relacionado ao apoio à mãe e à sustentação da lei e da ordem, que, segundo Winnicott (1988/1990), é implantada pela mãe, inicialmente, na vida da criança, como nos mostrou Claudia. O comportamento agressivo e sintomático dessa criança surgido por volta dos dois a três anos de idade, parece ter se originado de falhas na provisão ambiental, que já tinha por base algum grau de falhas anteriores. Nesse caso, como mostrou Claudia, em sua tese, (...) a criança não atinge o sentimento de culpa, ou, se já o alcançou, pode perdê-lo. A destrutividade em tais situações não é nem inibida, nem integrada, ela é atuada compulsivamente no ambiente por meio de atos antissociais. Isso porque a criança deprivada, quer se trate de uma deprivação materna, paterna ou ambas, sente que o ambiente tem um débito para com ela. O sentimento é de ter sido roubada daquilo do qual tinha direito (a mãe, o ambiente estável mantido pela presença do pai, etc.). Esse débito impede, por assim dizer, que ela entre no círculo benigno. Ou seja, impede que a solução buscada para a destrutividade que é inerente ao viver seja elaborada por via da reparação, pois, nesse caso, o devedor é o ambiente e não ela: portanto, a criança não se sente impelida a curar, remendar, consertar os estragos feitos; a capacidade para o sentimento de culpa fica muito prejudicada ou, dependendo do grau, não é alcançada. Ao contrário, ela espera (ainda que não tenha consciência disso) que sejam os pais que assumam e tomem para si esses cuidados (Rosa, 2011, pp. 91-92). 93 No caso de Pedro, houve evidências de que dificuldades de ambos os pais em seus próprios processos de amadurecimento prejudicaram o exercício de seus papéis parentais. Como tudo ocorreu não seria possível compreender integralmente dentro dos moldes do trabalho realizado, mas o processo de identificação dos pais com as reações de seus próprios filhos ficou claro. No caso relatado, o processo de atendimento das necessidades do filho a partir da identificação do pai com este não se completou, uma vez que faltou a esse pai, na linha de seu amadurecimento pessoal, um modelo de integração, que lhe protegesse de angústias ou lhe fornecesse uma sustentação para, na vivência de uma angústia, conseguir elaborá-la. Assim, a identificação com o filho, em relação às suas características imaturas – que provocavam reações às angústias geradas pela falta de atendimento às suas necessidades, principalmente, de um ambiente estável, fazendo-o reviver as próprias angústias –, não lhe possibilitou condições para o atendimento dessas necessidades. Desse modo, a própria existência da criança fica ameaçada em razão da perda do ambiente estável, pois a mínima organização de eu pode se perder ou ficar por trás de vários tipos de sintomas e ganhos secundários. Por fim, eu gostaria de perguntar à Claudia, a partir do caso apresentado, como ela acredita que devam ser os cuidados oferecidos por profissionais da saúde e terapeutas para o atendimento de crianças pequenas com queixas de comportamentos agressivos, em que pese a dificuldade do pai de assumir as responsabilidades inerentes ao seu papel? Seria possível um atendimento à criança sem dirigir cuidados também aos pais? REFERÊNCIAS ROSA, Claudia Dias. As falhas paternas em Winnicott. Tese (Doutorado) - Faculdade de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica. São Paulo, 2011. 94 ROUDINESCO, E.; PLON, M. (1998). Dicionário de psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Trabalho original publicado em 1997). WINNICOTT, D. W. (1994). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artmed. (Trabalho original publicado em 1989 – 1989a) _______. (2000). Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1958 – 1958a). _______. (1999). Privação e delinquência. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1984 – 1984a). _______. (1996). Tudo começa em casa. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1986 – 1986b). _______. (1993). Conversando com os pais. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1993 – 1993a). _______. (1991).Holding e interpretação. São Paulo: Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1972 – 1986a). _______. (1990). O ambiente e os processos de maturação. Porto Alegre: Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1979 – 1965b). _______. (1990).Natureza humana. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1988). _______. (1982).A criança e o seu mundo. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan. (Trabalho original publicado em 1964a). 95 Comentário ao texto “Provisão ambiental paterna” Por um cuidado afetivo do pai Marlene Brito de Jesus Pereira61 Na apresentação da Dra. Claudia Rosa foram destacados o lugar do pai no decorrer da vida do indivíduo e sua importância no processo de amadurecimento pessoal.Consideremos que todos os períodos em que o pai está presente para apoiar a mãe, nos cuidados com o bebê, antes mesmo do nascimento, até o período dastrocas em pais e filhos, são igualmente importantes. Inicialmente quero destacar o pai no período de dependência absoluta e o pai no período de dependência relativa. E de uma maneira abreviada os dois últimos períodos. Começo por ressaltar que a importância do pai sempre esteve presente na cena familiar, com a imagem associada à autoridade e o governo da família. Desde o antigo regime em que aautoridade do patriarca era suprema, até os dias atuais emque o pai é convocado a ocupar um lugar domesticado. Esse novo contrato social idealizado na era moderna por Hobbes (1974) e Locke (1998) fez nascer a noção de pai com poderes não maisincontestáveis e absolutos. Goran Therborn (2006) em Sexo e Poder: a família no mundo (1900-2000), mostra o declínio dos poderes do pai e ressalta quea industrialização, após a separação em grande escala entre o lugar de trabalho e da casa, enfraqueceu o controle paterno que se reproduziu no controle da economia do salário e das normas familiares.Nos tempos atuais, essa realidade parece fluída como se algo estivesse se desarrumado ou fora do lugar. 61 Psicóloga. Mestre em Família na Sociedade Contemporânea pela Universidade Católica do Salvador, com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia - FAPESB (2010). Doutoranda do PPG em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador –UCSal e l’EcoledesHautesÉtudesenSciencesSociales – EHESS em Paris/França, com o apoio do Centro de Aperfeiçoamento de Pessoal de Ensino Superior - CAPES 96 François de Singly (2007) em Sociologia da FamíliaContemporânea nos alerta sobreas mudançasorquestradas nacontemporaneidade. “Na segunda metade do século XX, em um período caracterizado pelos especialistas como segunda modernidade, houve mudanças significativas na sociedade ocidental, como a criação de leis que possibilitaram a equidade de poder nas relações entre homens e mulheres” (SINGLY, 2007, p.48). Nomodelo novo o homem, e o pai, não é mais o exclusivo provedor nem protetor familiar.Mas esse novo modelo não tem sido vivido sem conflitos.Arrumar a casa dos sentimentos nãotem sido o domínio do pai. Através de experiências relatadas por homens e mulheres acerca das suas relações interpessoais e familiares, no cotidiano das práticas de trabalho clínico em psicologia, pude conhecer relatos de vida queevidenciaram disputas de poder, autoritarismo, submissão e violência. Em destaque, relatos em que mulheres sofreram de violência familiar perpassando gerações. As mulheres relataram sofrer violência psicológica e física dos seus maridos, namorados ou parceiros. Por outro lado, homens relataram o constrangimento, vergonha e intolerância de não poder prover a família, de perder a autoridade e não ser mais respeitado como o “chefe da casa”. Com a escuta sensível pertinente ao exercício da psicologia clínica parecia possível estabelecer uma estreita relação entre os relatos de vida que demonstravam sofrimento, com conflitos de gênero com asexperiências de homens e mulheres, enquanto mães e pais. A idealização da figura da mãe ainda é parte fundamental da moderna construção da maternidade. Parafraseando a filósofa ÉlisabethBadinter (1980) a maternidade é, ainda hoje, um tema sagrado. “Continua difícil questionar o amor materno, e a mãe permanece, em nosso inconsciente, como símbolo do indefectível do amor oblativo do amor emdoção” (p.34). Condição que por vezes não se dá sem um sentimento de culpa ou de um conflito em ser mãe e mulher (BADINTER, 2010). Por apresentar uma história de luta nocuidado dacasa e dos filhos e aomesmo tempo viver situações dedesamparo e violência, passei a meinteressar pelo pai e a aprofundar o interesse sobre amãee amulher pela perspectiva de gênero.É como sustentar o olhar nafigura que maisparece precisar de amparo. A partir daí as questões 97 me levaram a questionar a teoria freudiana através docomplexo deédipo62 ea destacar o quão preciosa é a sensibilidade freudiana emperceber aambivalência da criança na relação mãe e pai, mas também umaausência de um olhar mais cuidadoso sobreo ambiente e as relações de poder que afetam as relações familiares. Em suas proposições fundamentais, Freud (1905; 1913; 1924; 1930), aborda a família sob diversos aspectos e modos discursivos: nos estudos sobre a histeria, sobre as formas constitucionais de organização social; em documentos técnicos sobre a psicanálise; nos estudos da metapsicologia, história, sociedade e cultura. “A família é o elo das experiências com que a psicanálise está em causa. Freud procura decompor o indivíduo no seu essencial (porém inconsciente) às relações familiares” (POSTER, 1979, p.120). Ao descrever o Caso Elizabeth, Freud ressalta que os sintomas histéricos apresentados pela paciente têm como gênese a forma como a mesma lida com os valores da família e com as manifestações dos seus desejos: há culpa por desejar e, portanto, julga-se impura. O conflito de Elizabeth está entre o fato de ter desejos, e o sentimento de castração de não poder sentir tal desejo, de proibir-se, ou seja, um conflito entre as instâncias psíquicas, da vontade e da moral. Cito Freud: A saúde da mãe era frequentemente perturbada por uma afecção dos olhos, bem como por estados nervosos. Foi assim que ela se viu 62 O complexo de Édipo é um conjunto organizado de desejos amorosos hostis que a criança sente em relação aos pais. Sob a sua forma dita positiva, o complexo apresenta-se como na história de Édipo-Rei: desejo de morte do rival que é a personagem do mesmo sexo e desejo sexual pela personagem do sexo oposto. Sob sua forma negativa, apresenta-se de modo inverso: amor pelo progenitor do mesmo sexo e ódio ciumento ao progenitor do sexo oposto. Na realidade, essas duas formas encontra-se em graus diversos na chamada forma completa do complexo de Édipo” (LAPLANCHE & PONTALIS, 2001, p.77). De acordo com Freud (1924), o apogeu do complexo de Édipo é vivido entre os três e os cinco anos, durante a fase fálica; o seu declínio marca a entrada no período de latência. É revivido na puberdade e é superado com maior ou menor êxito num tipo especial de escolha do objeto. Para a teoria psicanalítica o complexo de Édipo desempenha papel fundamental na estrutura da personalidade e na orientação do desejo humano. Para os especialistas ele é o principal eixo de referência da psicopatologia; para cada tipo patológico eles procuram determinar as formas particulares da sua posição e da sua solução. 98 atraída por um contato muito íntimo com o pai, um homem alegre e experiente conhecedor da vida que costumava dizer que a filha ocupava o lugar de um filho e de um amigo com quem ele podia trocar ideias. Embora a mente da moça encontrasse estímulo intelectual nessa relação com o pai, ele não deixava de observar que a constituição mental dela estava, por causa disso, afastando-se do ideal que as pessoas gostam de ver concretizado numa moça [...] Ela se sentia, de fato, muito desconcertante por ser mulher (FREUD, 1893, p. 165). As descrições sobre o comportamento de Elizabeth indicam as mudanças ocorridas na modernidade em que o ideal de indivíduo pareceu ser alcançável por uma moça. A aproximação com o pai fez com que a moça realizasse modos de pensar que não eram pertinentes ao sexo feminino. Elizabeth sente-se culpada por desejar, sente-se estranha por ser uma mulher com domínio intelectual. Os sintomas histéricos revelamse frente aos conflitos engendrados pela realização de uma fantasia inconsciente que está a serviço da realização de um desejo: “Ela recalcou uma ideia erótica fora da consciência e transformou a carga de seu afeto em sensações físicas de dor [...] Foi o círculo de representações de natureza erótica que entrou em conflito com todas as suas representações morais [...]” (FREUD, 1893, p.187). O recalque age sobre os desejos, que são barrados, julgados impuros ou indignos para as mulheres, refere-se à forma como as mulheres lidavam com a sexualidade e devem ser compreendidos como atuantes em uma forma integrada no interior dos valores estabelecidos na sociedade moderna. Tudo indica que Freud termina por se render às questões organicistas que distorce sua compreensão das relações entre os sujeitos humanos. Em o Declínio do Homem Público: sobre as tiranias da intimidade,Sennett (1988) nos alerta sobre o catálogo de queixas da medicina familiar do século XIX que consistia na descrição de aflições físicas originadas por ansiedade, prolongada tensão nervosa ou temor paranoico “a doença verde era um nome usado para designar a prisão de ventre crônica das mulheres [...] a doença branca acometia as mulheres que temiam sair de casa, pelo medo de serem expiadas” (SENNETT, 1988, p. 227). O autor ressalta 99 que as análises das queixas eram atribuídas às questões fisiológicas, mas todos os relatórios de diagnósticos partiam de um ponto comum: medo de expressar ações espontâneas de se expressar erroneamente, medo de expressar sentimentos julgados não próprios para uma mulher. O catálogo de queixas encontrado nos relatos médicos do século XIX atesta para os moldes de controle do comportamento feminino na expressão das ações e sentimentos, principalmente frente à sexualidade. “Quando uma sociedade propõe a seus membros que a regularidade e a pureza de sentimentos são o preço que pagam para ter um eu próprio, a histeria se torna a rebelião lógica se não a única” (SENNETT, 1988, p. 228). A educação ensinada às mulheres evocava uma conduta dissociada de qualquer interesse sexual que não fosse voltado para a procriação. A sexualidade da mulher era tida como ameaçadora para o homem; deveria ser controlada e reprimida a fim de representar o lugar que deveria ocupar na família. Muito embora as causas histéricas não se encerrem em uma questão de dificuldades do sujeito em lidar com fatores ambientais, as queixas das moças burguesas eram inerentes aos modos de vida que estavam ‘predestinadas’: cuidar da casa, dos filhos e do marido, e ao mesmo tempo atraídas pela ideia de ser um indivíduo livre. As hipóteses formuladas pela teoria freudiana parecem deixar de fora as regras morais e sexuais da sociedade de sua época, muito embora como bem argumenta a psicanalista francesa ÉlisabethRoudinesco (2003), em diversas argumentações sobre a sexualidade, Freud estavaà frente do seu tempo. Tenho desenvolvido trabalhos63 que destacam as relações familiares pela lente do sistema de relação de gênero,conforme os debates produzidos porButler (2008) e Pateman (1993). Meu interesse consiste na problematização sobre as atribuições dadas aos homens e às mulheres e astensões econflitos familiares pelas relações de poder, sem deixar de consideraros aspectospsicológicos eas questões socais que as envolvem. Privilegio os construtos que favorecem oestudo das famílias com uma lente de aumento 63 Tese de dourado em curso intitulada Ecos doentrelace do contrato social com o sexual: indivíduos, famílias e sexualidades pelo Programa de Pós-Graduação Doutorado emFamília na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador e L’ÉcoledesHautesÉtudesenSciencesSociales – l’EHESS com apoio do CAPES e FAPESB.Dissertação de mestrado: Gênero como Variante do Micropoder pelo PPG em Família na Sociedade Contemporânea da Universidade Católica do Salvador – UCSal com apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado da Bahia – FAPESB (2010). 100 para as mulheres enquanto mães e os homens enquanto pais, destacando as relações de poder eas normatizações sociais sobre suas ações. Por que trazerDonald W. Winnicott? Por que trazer um autor que privilegia o cuidado ea atenção ao bebêem estudossobre famílias, sexualidades e gênero? Porque ele traz o olhar para asfamílias comuma sensibilidade quenos captura. Quando Winnicott propõe o cuidado com o bebê antesmesmo do nascimento, ele está alertando para a importância do ambiente. Winnicott (2011)está preocupado com o desenvolvimento psíquico do bebê mas também estápreocupado com as atribuições que são dadas as mulheres e aos homens. Winnicott destaca: “Espero não incidir no erro de pensar que se pode avaliar um homem ou uma mulher sem levar em conta seu lugar na sociedade” (WINNICOTT,2011, p.22). Em um de seus trabalhos sobre reflexões sobre a sociedade e sobre o feminismo ele escreve“Sei que os pais são tão importantes quanto as mães, e realmente um interesse na maternagem inclui um interesse nos pais e na parte vital que eles desempenham” (WIINNICOTT,2011, p.03). No estágio da dependência absoluta, “Omodo comoa mãeolha quando se dirige à criança, o tom e o som antes que se compreenda o discurso” (WINNICOTT,2011 p.142) é antes de tudo um ato de doação,de permitir ao outro a experiência do seu significado, de dar sentido à sua presença. Porque somosseres que acreditam. “E acreditamos porque alguém nos proporcionou um bom início. Recebemos uma comunicação silenciosa, por um certo período de tempo, de que éramos amados, no sentido de que podíamos confiar...” (WINNICOTT, 2011, p.43).O autor põeem relevoa relação mãe-bebê, e o estado de ‘apaixonamento’ da relação dual prevalece com maestria.E é nesse período queo pai é postoà prova. A dependência absoluta do bebê, o estado de apaixonamento da mãe pelo bebê, vai lhe exigir umacondição de atenção e cuidado, quetalvez elenão seja capazde sustentar. Ele é chamado para dar apoio à mãe, muitas vezes na ausência de uma linguagem afetiva, que não é parte da maneira como ele aprendeu a resolver as coisas, o seu manejobem sucedido parece ser o de mascarar as demandas dos sentimentos e emoções (NOLASCO, 1995: BADINTER, 1993). É no período da dependência absoluta que a vida conjugal aintimidade do casal é mais comprometida e o 101 cuidado e atenção da mãecom o bebê, pode fazer surgir dificuldades quase intransponíveis, frente as exigências de uma cultura ou suas próprias exigênciascomohomem. Dentro de uma sociedade emque o si mesmo, o individualismo vem em primeiro plano, exercera maternidadee a paternidade num ato de doação, ou seja, a maternagem, que significa abster-se de si, é viver um novelo de contradições. Essas transformações podem parecer até impossíveis no primeiroolhar,mas seconsiderarmos que o homem e a mulher não são elementos constituídos por fenômenos naturais, mas habitantes da cultura são realidades que podem ser vividas de outra maneira.Opai no período de dependência absoluta e relativa, pode agir para não só que o bebê tenha um ambiente saudável,mas que amãe possa também viver essa realidade. Sobre o pai no estágio do concernimento eo pai no estágio das relações triangulares, talvez as pistas devam ser seguidas napreocupação de D.Winnicott com ‘as rotinas caseiras’, com as demandas próprias davida familiar, em que as mães aparecem como as principais regentes. Há 54 anos, (em 1960), quando Winnicott (1999) dava suas palestrasna rádioBBC de Londres (descritas em sua obra Conversando com os pais) ele pediu àsmães paracontarem o que as irritavam a respeito de ser mãe, e quantos filhos elas tinham. Aprimeira mãe, a Sra.W, respondeu: “Tenho sete, o mais velho com 20 anos e o caçula com 3 anos”. Winnicott pergunta: ‘A senhora acha mesmo uma tarefa incômoda ser mãe’? Sra. W:”sim acho. É o que penso, de um modogeral, para ser bem sincera. Penso que a dificuldade numa família e, realmente, asérie de coisinhas irritantes, como a constante desarrumação e sujeira, e sempre correndo atrás de ume de outro para tentar colocá-los na 102 cama… essas coisas, eu acho francamente irritantes” (WINNICOTT, 1999, p.78). “Sra. A:Bem só tenho dois filhos… um bebêe umque está começando agora a andar, e este é claro, o que me irrita. Tal como a Sra. W., são as pequenas coisas, e também a falta de tempo para me relacionarmelhor com as crianças – é tudo feito as presas, o meu caçula quer sempre alguma coisa em cima da hora, quando temos que nos aprontar num piscar de olhos para sair.”(WINNICOTT, 1999, p.78). E as mães dizem que estão cansadas. Winnicott pergunta:“oque vocês acham queé a causa da fadiga entre mães”? Sra. S:“Eu penso que é ter que realizar muitas tarefas num prazo limitado de tempo. Temos que cuidar das crianças, a louça tem que ser lavada, o bebê tem que ser alimentado e o jantar preparadopara o marido. Tudo isso emquestão deuma hora” (WINNICOTT, 1999, p.79). Winnicott (1999)ressalta que não se deve duvidar do amor que estas mães sentem por seu filhos, “elas estão completamente seguras do seu amor pelos filhos” (p.43). Mas o que se exige dela deve ser olhado comatenção. E acrescenta: Sem nenhum idealismo tenhode ser cuidadoso. Ao descrever com tanta desenvoltura o que as crianças muito pequenas necessitam, pode parecer que espero dos pais a impecável conduta de anjos num mundo real, como um jardim suburbano no verão, com o paicortando a grama, a mãe preparando o jantar dominical e o cão ladrando por cima da cerca para o ao vizinho.Pode-se dizer quecrianças, mesmo os bebês precisam de seres humanos, pais suficientemente bons, e suficiente bons significa você e eu (WINNICOTT, 1999, pp.140/141). 103 O autor revela o compromisso dos seus trabalhos com as relações sociais e o ambiente em que o lugar da mãe é compelido a responder, permitindo uma reflexão sobre a necessária participação do pai. Em minhas pesquisas e estudos sobre famílias, Rousseau é um autor queaparece colocando a família comoa mais natural em uma ordem devalores quesuscita tensões (PATEMAN, 1993). O Contrato Social em Rousseau (1996)64 ressalta a famíliacomo “a mais antiga de todas as sociedades e a única natural” (ROUSSEAU,1996, p.11).A famíliaé vista como o primeiro modelo das sociedades políticas sob o governo do patriarca. Nesse modelo parece não haver lugar para o pai domesticado. Mas talvez a teoria do contrato social que simboliza a morte do pai patriarca e fez nascer o indivíduo, almejasse opai domesticado, conformenos alerta Roudinesco (2003) e, portanto, mais próxima dospropósitos de JeanJacques Rousseau. É o que nos faz refletir suas confissões. Para finalizar a minha participação nesta mesa, quero destacar um trecho da obra LesConfessions65 em que o autor faz umahomenagem aos seus pais. Meu pai, após o nascimento do meu único irmão foi para Constantinopla, onde ele foi chamado e tornou-se um relojoeiro do harém. Durante sua ausência, a beleza da minha mãe, sua mente, seus talentos, ele desenhou homenagens e minha mãe tinha mais do que a virtude de defender meu pai ela amava muito o marido. Ele deixou tudo e voltou. Eu fui o triste resultado dessa troca. Dez meses depois, eu nasci aleijado e doente. Eu tirei a vida da minha mãe, e meu nascimento foi o primeiro dos meus infortúnios. Eu não sabia como meu pai suportava esta perda. Ele acreditou em mim e sem ser capaz de esquecer que eu o tinha levado a sua amada, ele nunca me beijou que eu sentisse seus suspiros, seus abraços convulsivos, um lamento amargo misturado com suas carícias que eram macias. Quando ele me disse: Jean Jacques, vamos falar sobre 64 Tradução nossa da obra original Du ContratSociale, (ROUSSEAU, 1996) Tradução nossa da obra original LesConfessions, Rousseau (2012) (obra redigida entre 1765 et 1770, com publicação póstuma em 1782 e 1789). 65 104 sua mãe, disse-lhe: Bem! meu pai, por isso vamos chorar, e que a palavra por si só já puxou as lágrimas. Ah! ele disse com um gemido, olhe para mim, para me consolar ele disse:você preencheu o vazio que ela deixou em minha alma. Eu te amo,como se você fosse só o meu filho. Quarenta anos depois ele morreu nos braços de uma segunda esposa, mas o nome da primeira ea sua imagem no coração. Estes foram os autores da minha vida. De todos os dons que o Céu lhes tinha alienado, o coração sensível é o único que me deixou, mas fez-losfelizes, fez diminuir todos os meus infortúnios (ROUSSEAU, 2012, p.09). Essa homenagem feita por Rousseauaos seus pais, pode nos levar a algumas reflexõessobre osquatros períodos fundamentais no processo de amadurecimento do indivíduo comobem argumentou em sua palestra aDra. Claudia Rosa. São períodos que convocamo pai parao domínio de uma linguagem afetiva, que se faz presente na vida dos filhos, com os modos de agir que difere da mãe, mas pertence ao universo familiar de cuidado e atenção. Em suas teorias Winnicott(2012;2011,1999,1994;1980) nos fornece osinstrumentos para pensar a família e as relações entre seus membros considerando asinfluências doambiente parao bebê, para amãe e para o pai.O que queroressaltar é que não há comofalar do pai sem falar damãe e a recíproca se faz sempre necessária. De acordo com Laura Detheville, psicanalista francesa que se dedica aosestudos sobrea vida e a teoria winnicottiana “No fim da vida Winnicott passou a usar mais o termo ‘mãe ambiente’ e o ambiente ficou mais genérico, por incluir os ‘outros’ da mãe, em particular o pai, a família, a realidade social, etc. Nesse ponto a mãe ambiente é uma função, mesmo quando é um sujeito” (DETHIVILLE, 2013, p. 09). Nesse sentido a maternagem pode ser um objeto das vivências do pai. 105 Referências BADINTER.Élisabeth. Le Conflit la Femme e La mère. Paris, 2010. _________.Sobre a identidade masculina, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1993. _________.L’Amour en plus: histoire de l’amour maternel XVII –XX siècle le livre de poche. Paris: Flammarion, 1980. BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008. DETHIVILLE. Laura; WINNICOTT, Donald W. Uma nova abordagem. São Paulo: Campinas: Armazém do Ipê, 2011. FREUD, Sigmund. (1905/1901). Fragmento da análise de um caso de histeria.Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 19. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). _________. (1913) Totem e tabu. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v. 21 (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). _________. (1924). A dissolução do complexo de Édipo. Rio de Janeiro: Imago, 1996. v.19. (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). _________. (1930) O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 1996.v.21 (Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud). HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. In: _______. Os pensadores. São Paulo: Abril, 1974. LAPLANCHE, Jean; PONTALIS. Vocabulário de psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 2001. LOCKE, John (1689). Segundo tratado sobre o governo civil: ensaio sobre a origem, os limitese os fins verdadeiros do governo civil. Petrópolis: Vozes, 1998. NOLASCO, Sócrates. O Mito da masculinidade. Rio de Janeiro: Rocco, 1995. PATEMAN, Carole. O Contrato sexual. [S.l.]: Paz e Terra, 1993. POSTER, Mark. Teoria crítica da família. Rio de Janeiro: Zahar, 1979. ROUSSEAU, Jean J.Les confessions. Paris : Editions Livre de Poche, 2012. ________. (1762) Du contrat social ou principes du droit politique. Paris :LibrairieGéneraleFrançaise,1996. 106 SENNET, Ricardo. O Declínio do homem público: as tiranias da intimidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1988. SINGLY, François. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: FGV, 2007. THERBORN, Goran. Sexo e poder: a família no mundo 1900-2000. São Paulo: Contexto, 2006. WINNICOTT, Donald W.(1986). Tudo começa em casa.Trad.Paulo Sandler. 5. edSão Paulo: Martins Fontes, 2011. _________. (1965). A família e o desenvolvimento individual. Trad. Marcelo Brandão Cipola. São Paulo: Martins Fontes, 2009. _________.(1993). Conversando com os pais. Trad. Álvaro Cabral. São Paulo: Martins Fontes, 1999. _________. (1989). Explorações psicanalíticas. Porto Alegre: Artes Médicas, 1994. _________. (1965). Família e o desenvolvimento do indivíduo. Belo Horizonte: Interlivros, 1980. 107 Mesa-Redonda 4: Democracia como forma de maturidade Conferencista: Profa. Dra. Letícia Minhot, Universidade Nacional de Córdoba (Argentina66); Comentadores: Profa. Dra. RoseanaGarcia (SWSP) 67e ElaineRabinovich (IPUSP/UCSal/Ba)68 El ambiente: red de cuidados. Leticia O. Minhot En este trabajo queremos abordar el lugar del padre desde una consideración ontológica a la que definiremos como relacional. Desde ésta, defendemos la idea según la cual la teoría winnicottiana de la maduración nos ofrece una teoría de la individuación, es decir, da cuenta del proceso por el cual se llega a ser individuo a partir de una realidad preindividual. Esa realidad es concebida como ambiente, se trata de una ontología relacional pues el individuo es posible gracias a los vínculos que son previos y permiten o no el proceso de individuación. Dichas relaciones son relaciones de cuidado. Si bien el vínculo fundamental es el dado entre la madre y el bebé, sin embargo, la noción de ambiente se puede extender si consideramos que, a su vez, la cuidadora principal, la mamá, necesita ser cuidada en especial en los momentos en que ella debe estar completamente entregada a la tarea de cuidar del bebé. Para poder comprender al padre como soporte de la maduración es importante que nuestra concepción de ambiente sea como una red de cuidados en la que se pueda insertar el rol de cuidador del cuidador. Esta noción de padre, totalmente vincular, se opondrá a la noción de padre como portador de la ley que otras líneas psicoanalíticas defienden. Palabras claves: ontología relacional, individuación, cuidador del cuidador. In this work we approach the place of father from an ontological consideration defined as relational. From it, we defend the idea that the Winnicottian theory of the maturation offers us a theory of the individuation, this is, and it accounts the process by which it arrives to be individual from a preindividual reality. That reality is conceived as environment, this is an relational ontology because the individual is possible thanks to the links that are previous and allow or not the process of individuation. Such relations 66 LetíciaMinhot, Universidade Nacional de Córdoba (Facultad de Psicología. Facultad de Derecho y Ciencias Sociales-Escuela de Trabajo Social. Universidad Nacional de Córdoba. 67 Dra. Roseana Garcia. Doutorado em Psicologia (Psicologia Clínica) pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil(2009) 68 Elaine Rabinovich.Doutorado em Psicologia Social pela Universidade de São Paulo, Brasil (1997) professor da Universidade Católica de Salvador , Brasil. 108 are relations of care. The fundamental link is the given between the mother and the baby, the notion of environment may be extend if we consider that the mother need to be hold, in special in the moments in that she should be completely delivered to the task of care of baby. In order to understand the father as support of the maturation is important that our conception of environment would be as a network of care where we can insert the role of carer of the carer. This notion of father is oppose to the notion of father as bearer of the law that other lines psychoanalytic defend. Key words: relational ontology, individuation, carer Neste trabalho abordamos o papel do pai a partir de uma consideração ontológica que definimos como relacional. A partir disso, defendemos a idéia de que a teoria do amadurecimento de Winnicott nos oferece uma teoria da individuação, ou seja, percebe o processo pelo qual uma pessoa se torna um indivíduo a partir de uma realidade préindividual. Essa realidade é concebida como um ambiente é uma ontologia relacional porque o indivíduo é possível pelos links anteriores que permitem ou no o processo de individuação. Essas relações são relações de cuidado. Enquanto o principal é a ligação dada entre mãe e bebê, no entanto, a noção de ambiente pode ser estendida se considerarmos que, por sua vez, o cuidador principal, a mãe, precisa receber cuidados, especialmente nos momentos em que ela deve ser completamente entregue à tarefa de cuidar do bebê. Para entender o pai como apoio da maturação é importante que o nosso conceito de meio ambiente seja uma rede de atendimento para que possa ser inserido o papel do cuidador do cuidador. Esta noção de pai vai opor-se à noção de pai como portador da lei que argumentam outras linhas psicanalíticas. Palavras-chave: ontologia relacional, individuação, cuidado. No se hace un mundo con simples átomos. Jean Luc Nancy En este trabajo seguimos la heurística que nos indica que la Teoría de la Maduración desarrollada por Winnicott nos ofrece, además de una teoría psicológica, una teoría de la individuación.i En la ontogénesis freudiana tenemos un ser sustancial primitivamente dado el cual soporta procesos que se operan mecánicamente a partir de un núcleo inicial. La ontogénesis queda reducida al desarrollo mecánico desde este núcleo. Estos procesos son los causantes de todas las significaciones que se producen sucesivamente. Tenemos así, un ser ya individuado y una ontogénesis. Parafraseando a Simondon (1958), el psicoanálisis freudiano parte del ser ya individuado y, a partir de 109 ese ser, busca comprender el devenir del mismo. En el psicoanálisis de Winnicott, a su vez, tenemos un proceso totalmente inverso: busca captar aquello que se “llega a ser”, el individuo, a partir del devenir, es decir, a partir de los procesos por los cuales se alcanza la unidad. Cabe aclarar que éstos no son mecánicos. Además, este devenir intenta ser comprendido desde su realidad preindividual. Esta diferencia que proponemos aquí la consideramos de gran importancia. En primer lugar, en el psicoanálisis freudiano, al no considerar la realidad preindividual ni el proceso por el cual se llega a ser una unidad, lo que se toma como individuo es una parte del ser y esa parte se supone como una totalidad. Cualquier individualismo es, como sostiene Nancy (1986: 17) “... un atomismo inconsecuente, que olvida que lo que está en juego en el átomo es un mundo”. Estamos ante una abstracción: “... el individuo revela ser el resultado abstracto de una descomposición.” En segundo lugar, al ser una parte la que ocupa el lugar del todo, esa parte agota todos los significados y no permite comprender muchos aspectos del ser. En tercer lugar, la operación por la cual seleccionamos la parte que va a ocupar el lugar del todo es una operación en función de algún proceso externo al ser el cual queda oculto, limitándonos aún mucho más la comprensión. Por todo esto, consideramos que el hecho de que la teoría de la maduración contenga una teoría de la individuación la coloca, no sólo en un paradigma diferente, sino en uno que ofrece ventajas a la hora de abarcar los sentidos y significaciones de la vida humana. Esta misma heurística nos indica también que la teoría de la maduración, en tanto teoría, se desarrolla sobre la base de una ontología relacional. Este tipo de ontología es el inverso a las ontologías de substancias u ontologías de individuos. En estas últimas, la relación es una categoría que supone a los individuos, se da entre dos términos extremos dados. En las ontologías relacionales la relación es un proceso de individuación, en ese sentido decimos que es una modalidad del ser. Los términos de la relación no pueden ser pensados fuera de la relación, pues ésta los hace posible. Esto no implica, de ninguna manera, que la relación es substancializada. Lo que esto, más bien, implica es que tenemos una totalidad constituida por la relación la cual, como proceso, hace posible lo que liga. No se puede conservar el sentido y disgregar relación por un lado y los extremos que une por otro y, mucho menos, acceder a estos términos de 110 modo conceptual y analizarlos y comprenderlos de modo independiente. Como la relación no es un proceso mecánico ni está substancializada tampoco podemos tener de ella una comprensión en sí misma separada de los extremos que hace posible. En esta totalidad no hay substancias, no lo son ni los términos extremos ni la relación. Esta ontología nos garantiza que la individuación es una operación de la relación, la cual no es dada ni está determinada según propiedades esenciales que existen en los individuos desde antes de la relación. En el caso de la Teoría de la Maduración de Winnicott el ambiente puede ser considerado, ontológicamente, no como un lugar en donde se da el proceso de individuación, sino como el proceso de individuación mismo, como el devenir del ser, como la relación que hace posible la realidad de lo que vincula. Esta teoría nos muestra el despliegue de la naturaleza humana, devenir del ser humano, “llegar a ser” que es su modalidad. Básicamente, lo que tenemos según esta teoría es un bebé con una tendencia innata a madurar, entendiendo por “madurar” procesos de integración y para que estos procesos se den en el momento y del modo adecuado se requiere de una previsión ambiental suficientemente buena. La unidad que se alcanza no es un resultado de un programa mecánico y universal, en consecuencia, no están garantizados de por sí, por ello, hay necesidad del ambiente. Como no pueden ser universales, porque no están asegurados por rasgos esenciales, la maduración es un desarrollo personal. No hay aquí un programa análogo al del principio de placer. Por eso, el proceso como devenir es también su modalidad. El ambiente cuando es suficientemente bueno garantiza que el bebé crezca a su propio modo. Y el ambiente es tal si hay una madre que se adapta a las necesidades del niño. Tal madre, al estar estrechamente identificada con el bebé, sabe de las necesidades de éste. Dijimos que el ambiente no es el lugar, el escenario en donde se da esta escena, el ambiente es la totalidad, es el bebé y su madre y es el vínculo entre ambos. El niño, en esta primera y más temprana etapa, se encuentra en un estado de fusión, sin haber separado todavía el “yo” del “no-yo”. Es importante poder ver en esta noción de ambiente todas las características que señalamos en una ontología relacional y en los procesos de individuación. Los procesos de maduración son procesos de integración que permiten que, en algún momento, el niño se establezca como una 111 unidad. Por lo que el “llegar a ser” esta unidad es el resultado de estos procesos que constantemente están siendo asegurados por el ambiente, es decir, por esa relación que se da entre la mamá y su bebé. Esa relación es de cuidado. Una falla en el ambiente es una interrupción del “seguir siendo” del bebé y es una falla en el cuidado. Cuando los bebés y los niños pequeños son cuidados de un modo confiable entonces decimos que son “cuidados suficientemente bien”. Esto permite la confiabilidad y, desde este estado, el pequeño puede entregarse a llevar a cabo las tareas de integración que esta etapa la vida le demande y continuar desplegándose en su maduración hacia su self. El cuidado, que es la relación que vincula a la mamá con el bebé, no es una relación que adviene a dos individuos dados que pueden ser comprendidos conceptualmente de modo independiente uno de otro y fuera de la relación. Como vimos, el cuidado garantiza el “seguir siendo” del bebé y su “llegar a ser” una unidad. Y este “seguir siendo” y “llegar a ser” son modos del ser del bebé, son modos personales. Claramente, el bebé no puede ser pensado en sí mismo de modo independiente al cuidado. Ahora bien, ¿y la mamá? El cuidado suficientemente bueno depende de la capacidad de la mamá para identificarse con el bebé y reconocer las necesidades de éste y poder satisfacerlas. En definitiva, el cuidado depende de la capacidad de la mamá para adaptarse al bebé. Pero esta adaptación tampoco es mecánica. Si en el bebé todos los procesos son personales no tenemos dos bebés iguales, por lo que la mamá también “llega a ser” por medio de los cuidados y de las identificaciones que cada bebé da lugar. Por lo tanto, tampoco podemos separar conceptualmente a la madre de la relación del cuidado y de su bebé. La comprensión debe ser de esa totalidad. Tampoco podemos substancializar el cuidado y, por no ser un proceso mecánico, tampoco podemos separarlo conceptualmente y analizarlo como un conjunto de protocolos y recomendaciones. Siempre tenemos la unidad-totalidad. “El infante y el cuidado materno, juntos forman una unidad” (Winnicott, 1960: 50). Cuando hablamos de ambiente suficientemente bueno lo hacemos en referencia al vínculo mamá-bebé. Los cuidados son la totalidad de cuidados que la mamá le brinda al bebé para que éste pueda realizar las tareas que la vida, en esos momentos, le 112 requiere. La pregunta que aquí nos planteamos es ¿podemos considerar a este par fusionado como una totalidad absolutamente aislada, separada del mundo? “En esta etapa muy temprana el padre aún no es significativo como persona de sexo masculino” (Winnicott, 1960a: 185) nos dice Winnicott. Sin embargo, ¿podríamos sostener con coherencia que Winnicott pretende considerar a esta unidad-totalidad de modo independiente del padre? ¿Es esto posible? Pensemos lo siguiente, para que la madre pueda entregarse a las tareas de cuidado de su pequeño requiere estar en una situación que se lo permita. Esto significa que la mamá, en tanto cuidadora, requiere, a su vez, ser cuidada. Es decir, requiere de un ambiente que la sostenga para que ella pueda entregarse a la tarea del cuidado de modo confiable. El padre entra en esta etapa como garante del cuidado materno: cuidando a la cuidadora. Pudiendo identificar las necesidades de la madre en esta etapa y satisfacerlas de modo tal que ella pueda cuidar. La cuidadora no puede ser considerada como omnipotente, porque la autonomía siempre es relativa, nunca absoluta. La cuidadora necesita ser cuidada. “De cualquier manera, el intento de los padres de proporcionar un hogar para sus hijos, en el que éstos puedan crecer como individuos y en el que cada uno de ellos adquiera gradualmente la capacidad de identificarse con los padres y luego con grupos más amplios, comienza desde el principio, cuando la madre se adapta a su bebé. Aquí el padre cumple la función de agente protector que asegura a la madre la libertad necesaria para consagrarse por completo a su bebé.” (Winnicott, 1950: 285) En el psicoanálisis freudiano el padre es considerado desde el complejo de Edipo y entra como límite al programa del principio de placer. Por eso, el padre se asocia a la ley que le adviene a un individuo ya constituido. En el psicoanálisis winnicottiano es totalmente diferente. La palabra clave sigue siendo “dependencia”. Por ende, necesidad de cuidado. Si por amor entendemos la totalidad de cuidados que la mamá le asegura al bebé, entonces el padre entra como amor y no como ley. Entra para sostener y hacer posible la unidad-totalidad madre-bebé y no como límite a un programa. El amor del padreii, en esta etapa, es el sostén a la madre para que ella pueda, a su vez, sostener a su pequeño. Esta idea de amor no es para nada sentimentalista, sino todo lo contrario. Hay, 113 así, una continuidad entre los cuidados maternos y la familia, la cual podemos considerar que está constituida, básicamente, por la unidad-totalidad madre-bebé más el padre. De este modo, sólo en un sentido muy limitado podemos separar conceptualmente los cuidados maternos de la familia pues la madre forma parte de dos relaciones a la vez, por una lado, como cuidadora en el vínculo con el bebé y constituyendo con él una unidad; por otro, como cuidada en el vínculo con el papá, en esta etapa. Sucede lo mismo que señalábamos más arriba con el cuidado del bebé. El cuidado no es un proceso mecánico, es personal. Sobre lo que deseo reflexionar en este trabajo es sobre el padre. Éste, en tanto cuidador, ¿necesita a su vez ser cuidado? Y en ese caso ¿qué tipo de cuidados necesita el padre? ¿Quién es el cuidador del padre? Aquí avanzo en la idea que sostiene que la Teoría de la Maduración nos ofrece, además de una teoría psicológica, las bases para una teoría sobre la sociedad. Según Winnicott, el animal humano pasa, en el desarrollo de su vida, de un origen de dependencia absoluta a una independencia relativa. Con esto quiere decir que nunca somos del todo independientes. Aún de adultos tenemos necesidades que sólo pueden ser satisfechas por otros. Nancy (1986: 17) nos habla de la necesidad de un clinameniii: “Hace falta una inclinación o una disposición del uno hacia el otro, del uno por el otro o del uno al otro.” Es importante ver al padre desde esta perspectiva. Si nadie es absolutamente independiente, si cada uno de los seres humanos tiene necesidad de otro, entonces cada uno requiere algún tipo de cuidado por parte de otro ser humano. Así, la sociedad solidaria es vista como una red de cuidados y esta concepción de la sociedad nos lleva a una ética del cuidado. Pero retomemos al padre. Éste también se inserta como cuidador en esta red, pero, a su vez, como adulto sano con independencia relativa, también necesita ser cuidado. Aquí aparecen otros miembros de la familia, abuelos, parientes, amigos, etc. Algunos de estos nuevos personajes pueden sostener al padre para que pueda cuidar a la cuidadora. Es claro que este cuidado no debe ser “intervencionista” sino que, todo lo contrario, debe ser de sostén. Recordemos que siempre el sostén 114 implica comprensión y empatía, que es, lo que en verdad hace falta. A veces el sostén puede tener la forma de comunicación, puede que sea necesario decir algo con palabras o simplemente escuchar, pero, con palabras o con gestos o con actos o simplemente estando, se demuestra que se comprende lo que se experimenta. Si bien el estado no puede ofrecer cuidado, pues un requisito de éste es que sea personal, sin embargo, puede desarrollar políticas orientadas a fortalecer una sociedad como red de cuidados. Así como hay una continuidad entre la pareja mamá-bebé y la familia, la hay también con la previsión social. Es necesario incrementar la consciencia referidas a las necesidades de cuidado en y a los hogares donde hay niños en sus primeras etapas. Por ejemplo, mediante políticas que piensen en la educación de la sociedad en general que se enseñe sobre la importancia de esta etapa y, particularmente, se lo transmitan a los funcionarios con los que los padres en situación de cuidado deben tratar. No hay que perder de vista que, por ejemplo, en el caso de la deprivación patología que está íntimamente relacionada con fallas en el ambiente en los primeros momentos de la vida- la mayoría de los niños-jóvenes delincuentes provienen de hogares pobres. Si bien un hogar pobre puede ser mejor ambiente que muchas casas bien ordenadas, sin embargo, no hay que dejar de considerar estos datos estadísticos. Hay que tener siempre presente que la clave de estas políticas reside en que no deben ser intervencionistas en los hogares, que el padre tenga libertad asegurada para cuidar a la cuidadora y ésta a su bebé. Deben ser políticas de sostén para que los padres puedan actuar suficientemente bien. Referências NANCY, Jean Luc. La comunidad desobrada. Madrid: Arena Libros, 2001. (Trabajo original publicado en 1986, en el cuerpo del artículo: Nancy (1986/2001). SIMONDON, Gilbert. La individuación a la luz de las nociones de forma y de información. Buenos Aires: Editorial Cactus y La Cebra Ediciones, 2009. (Trabajo original publicado en 1958, en el cuerpo del artículo: Simondon (1958/2009)). 115 VIRNO, Paolo. Cuando el verbo se hace carne: lenguaje y naturaleza humana. Madrid: Traficante de sueños, 2005. (Trabajo original publicado en 2004, en el cuerpo del artículo: Virno (2004/2005). WINNICOTT, D. W. La teoría de la relación entre progenitores-infante. In:______. Los procesos de maduración y el ambiente facilitador: estudios para una teoría del desarrollo emocional.Buenos Aires: Paidós, 2011. (Trabajo original publicado en 1960, en el cuerpo del artículo: Winnicott (1960/2011). ______. La distorsión del yo en términos de self verdadero y falso. In:______. Los procesos de maduración y el ambiente facilitador: estudios para una teoría deldesarrollo emocional. Buenos Aires: Paidós, 2011. (Trabajo original publicado en 1960, en el cuerpo del artículo: Winnicott (1960a/2011). ______. (1950) Algunas reflexiones sobre el significado de la palabra “democracia”.In: ______.El hogar, nuestro punto de partida: ensayos de un psicoanalista.Buenos Aires: Paidós, 1994.(Trabajo original publicado en 1950, en el cuerpo del artículo: Winnicott (1950/1994). 116 Comentários a partir do Texto de Letícia O. Minhot: El Ambiente: Red de Cuidados Elaine Pedreira Rabinovich, IPUSP/UCSal Resumo: Neste comentário a partir do artigo de Letícia Minhot, são propostas as seguintes questões: é possível opor totalmente Winnicott ao pensamento psicanalítico? Como está sendo vista atualmente a fusão na relação mãe-bebê? Necessita o pai como “corte”, ou como “portador da lei” ser contraditório ao pai como “rede de cuidados”, ie, não poderiam ser complementares? Uma maternagem, isso existe sem uma sociedade? Finalizando, a última questão seria: a noção de rede de cuidados como formadora de uma sociedade solidária não precisaria ser vista a partir de uma compreensão mais complexa dos fenômenos societais? Palavras-chave: Winnicott; rede de cuidados; cuidadores; mãe; pai. Abstract: In this commentary of LetíciaMinhot´s article are proposed the followings questions: is it possible to totally oppose psychoanalysis to Winnicott´s ideas? How is seen the mother/baby symbiosis nowadays? Does the father seen as “cutter” or as the “word of the law” need to be ontradictory to the father as “net of cares”? Does motherhood exists without a society? Finally, the last question would be: does not the notion of net of cares as forming society need to be seen from a more complex understanding of societal phenomena? Key words:Winnicott; net of cares; caretakers; mother; father. Resumen: En este comentario del antícolo de Leticia Minhot son propuestas las siguientes cuestiones: es posible oponer totalmente el psicoanálisis al pensamiento de Winnicott; como esta sendo vista actualmente la simbiosis madre/bebé; necesita el 117 padre visto como “corte” o como “portador del ley” ser contradictorio al padre como “red de cuidados”; la maternidad puede existir sin una sociedad; finalizando, la ultimacuestión seria: la noción de red de cuidados no necesitaría ser vista a partir de una comprensión más complexa de fenómenos sociales? Palavras llave:Winnicott; red de cuidados; cuidadores; madre; padre. Meus comentários serão breves, inclusive porque o texto é bastante claro e elucidativo. Apresenta ideias sugestivas e inovadoras. Avalio o texto também muito oportuno dado Winnicott ser um autor facilmente apropriável pela psicologia do desenvolvimento, pela abertura ao ambiente que seu entendimento propiciou. No entanto, compreendi minha tarefa de comentadora como um posicionamento meu ante as ideias expostas no artigo-referência, e apenas nele, o que realizo a seguir. O artigo de Letícia discute o que é o ambiente para Winnicott, inicialmente diferenciando-o da posição assumida pela psicanálise freudiana. Contudo, Winnicott é um “filho” de Melanie Klein, em decorrência tem uma forte influência da psicanálise em seu pensamento. Em um artigo publicado no jornal Libération, a propósito de duas biografias sobre Winnicott, Maggiori (2008) relata que este se manteve ligado à Sociedade Psicanalítica Inglesa, “entre” o grupo fiel a Anna Freud e o grupo fiel a Melanie Klein, fundando o middlegroup e permanecendo doze anos como presidente desta Sociedade. Uma “mãe suficientemente boa”, de Winnicott, pode ser vista como uma variação do “seio bom” kleiniano, e o pai como integrador pode ser visto como um objeto total em oposição ao objeto parcial representado pelo “seio”. Nesta direção, uma primeira pergunta seria: será que dá para opor totalmente a psicanálise ao pensamento de Winnicott? 118 Sua novidade, em relação à psicanálise, foi considerar o espaço real da criança, “um bebê, isto não existe”, o ser humano sendo, desde o início, um ser social, gestado em relações socialmente dadas. A noção de espaço potencial como o lugar da cultura, e seu correspondente, o de objeto transicional, também iluminam os estudos até hoje. Não há dúvidas, creio, sobre a colaboração própria e fundamental de Winnicott para a compreensão do humano. No entanto, a noção de simbiose ou fusão - que marcou a psicanálise e também Winnicott - é que me parece datada frente aos estudos do que ficou sendo denominado “bebê competente”, um bebê humano que nasce pronto para sobreviver em um ambiente humano sócio-histórico-evolutivamente dado (Brazelton, 1987; Klaus e Klaus, 1989; Rabinovich, 2013). O fato de um bebê humano depender dos cuidados humanos não implica, necessariamente, em uma fusão. Muito já se escreveu sobre os estudos que partem dos bebês (Cramer, 1987) para os estudos que partem da fala adulta para deduzir dinâmicas infantis e suas consequências sobre a formulação de conceitos que subjazem às teorias desenvolvidas. A denominação “bebê competente” decorre da compreensão, baseada em inúmeros experimentos, de que o bebê humano nasce “competente” para sobreviver em seu meio, qual seja, dentro do contexto sócio-histórico-cultural próprio ao ser humano. Esta “competência” significa que, embora e inclusive porque necessite de cuidados de outros humanos para sobreviver – cuidados estes que se estendem por muito mais tempo do que nos demais primatas – concomitantemente, e por meio de mecanismos equivalentes aos seus cuidadores, nasce “pronto” para que cuidem dele como necessita ser cuidado para sobreviver. Nesta direção, a unidade de estudo do desenvolvimento pode ser considerada o sistema formado pelo contexto do desenvolvimento e o próprio ser-em- desenvolvimento, aqui denominado globalmente como “sistema de desenvolvimento”. O conceito de contexto, aqui tratado como modo de vida, refere-se ao constructo sócio-histórico, significando que se leva em consideração a totalidade das formas 119 historicamente desenvolvidas e inter-relacionadas, assim como os modos das atividades sociais – trabalho, lazer, padrões de relacionamentos interpessoais, etc., típicos de uma dada sociedade, em sua unidade com a estrutura social e o estilo predominante de pensamento. Assim, segundo Oyama (1989, p. 24), “as ideias, ações, valores, hábitos e crenças de outras pessoas são parte do rico complexo de influências desenvolvimentais a partir das quais as vidas são construídas”. Segundo estes estudos, não haveria um bebê “pré-individual”, como supõe Letícia. Os bebês viriam ao mundo pré-formatados para se articular a um mundo que também está pré-formatado para recebê-los. É na interação entre ambos, de modo dialético e aberto, que ocorre o desenvolvimento único daquele ser humano. Portanto, a segunda questão seria: como está sendo vista a situação de simbiose/ fusão na relação mãe-bebê? Por outro lado, não creio que estes achados invalidem a teoria de Winnicott, justamente pela sua abertura ao ambiente desde os primeiros momentos de vida do bebê. Como durante muitos anos estive ligada à psicologia ambiental e/ou sócioambiental, gostaria de discutir a noção de ambiente proposta pela autora. Por um lado, o sistema de desenvolvimento como contexto pode ser compreendido como uma explicitação da noção de ambiente. A noção de sistema de desenvolvimento é uma contribuição da Teoria Geral dos Sistemas aplicada ao estudo do desenvolvimento da criança. Sistema de desenvolvimento “é um conjunto móvel de influências e entidades inter-atuantes. Inclui todas as influências sobre o desenvolvimento, em todos os níveis de análise” (OYAMA, 1989, p.26). Não contraditoriamente, Letícia apresenta o ambiente como a totalidade de vínculos estabelecidos. Como frisa a autora, trata-se de uma ontologia relacional em que o indivíduo é possível graças aos vínculos que permitem ou não o processo de individuação. Continua ela afirmando que tais relações são as de cuidado e que o 120 ambiente é o próprio processo de individuação. Nesta direção, haveria uma rede de cuidadores em que o ambiente é a totalidade dos vínculos estabelecidos. A nosso ver, os cuidados não se dão de forma casual, mas de modo coordenado e integrado segundo o sistema de objetos materialmente dados, do acesso a estes objetos e aos valores implicados nesta coordenação. Deste modo, o ambiente não implica apenas nos vínculos, mas deve ser visto como meio, como o que está no meio, mediando as relações e os vínculos, recuperando os sentidos de diferenciais de moyen e de milieu. Assim, por outro lado, o próprio ambiente pode ser concebido como relação (Berque, 1990), como o momento estruturado e estruturante do ser(verbo)-humano. Tiberghien (..., p. 93), apoiando-se em Heidegger, diz que “o limite não é onde alguma coisa cessa, mas onde começa”. O espaço humano só existe na medida em que é transformado em lugar (Tuan, 1983). Portanto, o que estou sugerindo é que a noção de ambiente vai além de vínculos interpessoais para abranger outras relações. Em continuação, a autora contrapõe a noção derivada da psicanálise a respeito da função paterna como portador da Lei, por meio do complexo de Édipo, para uma função paterna de cuidados, principalmente de cuidados em relação à mãe, ou substituto. Para ela, os cuidados são a totalidade dos cuidados maternos e a mãe, enquanto cuidadora, necessita também ser cuidada, por exemplo, pelo pai, assim como o pai precisa de suporte familiar e, em círculos mais amplos, societais. Pode-se pensar que Winnicott coloca esta função de “corte”, de certo modo, na própria mãe quando esta “desilude” o bebê, no denominado desmame em que o bebê sai da uma posição inicial de onipotência. No entanto, a figura/função paterna claramente não pode ficar restrita a isto. Parece-me, contudo, que o pai como corte, como portador da lei, não precisa ser necessariamente contraditório com o pai como rede de cuidados, ie, não poderiam ser complementares? 121 Sobre o lugar do pai como agente protetor e sobre quem cuida do pai, creio que a rede de cuidados atua em todos os momentos e em todos os níveis e em todos cuidadores e cuidados na forma de sistemas abertos. Quer dizer: não teria a mãe, depois o pai, depois os parentes, depois a sociedade, como as camadas de uma cebola: todos estes níveis atuariam ao mesmo tempo em interações múltiplas, tipo o átomo. A mãe já é a mãe+opai+parentes+sociedade=sistemas de cuidados. Parafraseando Winnicott “Um bebê, isso não existe sem a maternagem”, poderse-ia dizer: Uma maternagem, isso não existe sem uma sociedade? Nos estudos sobre família, atualmente, o conceito de rede tem sido cada vez mais aplicado em decorrência, em parte, da “individualização da sociedade” (DeloryMomberger, 2012). Letícia sugere que a Teoria do Amadurecimento forneceria uma base para uma teoria sobre a sociedade vista como “uma rede de cuidados”. Mas considerar a sociedade como uma extensão de indivíduos democraticamente ou solidariamente criados não me parece ser uma generalização que possa ser legitimamente feita. Finalizando, a última questão seria: a noção de rede de cuidados como formadora de uma sociedade solidária não precisaria ser vista a partir de uma compreensão mais complexa dos fenômenos societais? Referências BERQUE, Augustin. Médiance, de milieux em paysages. Paris: Belin, 1990. BERQUE, Augustin; BIASE, Alessia de; BONIN, Philippe. L´habiter dans sa poétique premiére:actes du colloque de Cerisy-la-Salle. Paris: Editions Donner Lieu, 2008. p.84-101. BRAZELTON, T. Berry. O bebê: parceiro na interação. In: BRAZELTON, T. Berry et al. A dinâmica do bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.p. 9-23. CRAMER, Bertrand. A psiquiatria do bebê: uma introdução. In: BRAZELTON, T. Berry et al. A dinâmica do bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1987.p. 24-74. 122 DELORY-MOMBERGER, Christine. A condição biográfica:ensaios sobre a narrativa de si na modernidade avançada. Natal: EDUFRN, 2012. KLAUS, Marshall; KLAUS, Phyllis.O surpreendente recém-nascido. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989. MAGGIORI, Robert. Winnicottpapy ours.Libération,Paris, 24 jeudi, p. 2.,25 déc., 2008. MOREIRA, Lúcia Vaz de Campos. Psicologia, família e direito:interfaces e conexões. Curitiba: Juruá, 2013. p.135-146. OYAMA, S. Ontogeny and the central dogma: do we need the concept of genetic programming in order to have an evolutionary perspective? In: GUNNAR, M. R.; THELEN, F. (Eds.). Systems and development: the Minnesota Symposium on Child Psychology. New Jersey: Lawrence Erlbaum,1989. v.27. RABINOVICH, Elaine Pedreira. O bebê competente como o « elo perdido ». In: TIBERGHIEN, Gilles A. Demeurer, habiter, transiter:une poétique de la cabane.In: TUAN, Yi-Fu. Espaço e lugar. São Paulo: Difel, 1983. i Esta tesis fue originariamente desarrollada por Virno (2004). ii Cabe aclarar que así como mamá es una función, pues si bien habitualmente la madre es la persona mejor capacitada para el cuidado del bebé, pero que cuando por alguna razón la madre biológica no puede llevar a cabo esa función otra persona puede cumplirla y ser la garante del “seguir siendo” del niño pequeño. Cuando aquí hablamos de padre no nos estamos refiriendo al padre como otra madre. Papá es una función, en este caso, es el que cuida de la mamá para que ésta pueda cumplir su función. iii Término latino acuñado por Lucrecio (TitusLucreciusCarus) por el que traducía el término griego "parénklesis" con el que Epicuro se refería a la desviación espontánea de la trayectoria rectilínea que experimentaban los átomos para explicar su agregación con otros átomos. Con esta desviación Lucrecio intenta solucionar el problema del libre albedrío, pues mediante ella se rompe el determinismo de sus movimientos. 123