Faça o de um dos capítulos.

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Faça o de um dos capítulos.
Lingüística II
Autora
Angela Paiva Dionisio
2008
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos
direitos autorais.
D592
Dionisio, Angela Paiva. / Lingüística II. / Angela Paiva
Dionisio. — Curitiba : IESDE Brasil S.A. , 2008
192 p.
ISBN: 978-85-7638-863-0
1. Lingüística. 2. Atos da fala (Lingüística). 3. Conversação.
I. Título.
CDD 410
Todos os direitos reservados.
IESDE Brasil S.A.
Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel
80730-200 • Curitiba • PR
www.iesde.com.br
Sumário
Morfologia: campos de ação e conceitos básicos | 7
Campo de ação da Morfologia | 9
Conceitos básicos da Morfologia: palavra e morfema | 10
Morfologia: formação de palavras | 21
Flexão e derivação: como se definem e se distinguem? | 23
Processos de formação de palavra | 26
Formação de palavra e os outros sistemas de linguagem | 29
Sintaxe: constituintes e estruturação da oração | 35
Alguns conceitos fundamentais | 37
A estrutura da oração | 38
Sintaxe: participantes, processos e usos | 47
A transitividade na Lingüística Sistêmica Funcional (LSF) | 50
Os tipos de processo e de participantes | 51
Transitividade em uso | 53
Semântica: relações semânticas entre as palavras | 61
Reflexões sobre a construção do sentido | 63
Tipos de relações semânticas: sinonímia, antonímia, homonímia e polissemia | 67
Pragmática: a dêixis e a anáfora | 75
De que trata a Pragmática? | 77
A dêixis e a anáfora | 80
Pragmática: atos de fala, implicaturas e máximas conversacionais | 89
A Teoria dos Atos de Fala | 92
Princípio de cooperação e máximas conversacionais | 95
Implicaturas conversacionais | 96
A pressuposição | 98
Lingüística de texto: campo de atuação e conceitos básicos | 105
Afinal, o que é um texto? | 107
Intertextualidade: conceito e tipos | 119
Afinal, o que é intertextualidade? | 120
Psicolingüística: campo de atuação e conceitos básicos | 137
Teorias da aquisição da linguagem | 143
Sociolingüística: campo de atuação e conceitos básicos | 151
Variedades lingüísticas | 161
Afinal, o que são as mudanças lingüísticas? | 163
Variações lingüísticas: o que são e como se realizam | 165
Gabarito | 179
Referências | 185
Anotações | 191
Apresentação
Um livro para chamar de meu...
Um livro para chamar de meu? Ou de seu? Um livro nosso, melhor
dizer. Muitos são os autores que falam neste livro, muitos são os temas
que se entrecruzam nestes capítulos, muitos são os questionamentos que
espero que surjam. Muitas devem ser as respostas que devem ser também
encontradas, mas jamais com a finalidade de dar por concluído o tema
abordado em cada capítulo.
Morfologia, Sintaxe, Semântica, Pragmática, Lingüística de Texto,
Psicolingüística e Sociolingüística são os grandes temas que se desmembram em tantos outros como, morfemas e palavras; estrutura e predicação
da oração, relações semânticas, atos de fala e implicaturas conversacionais; noção de texto e de gênero textual; intertextualidade; aquisição da
linguagem e construção de sentido; competência lingüística e competência comunicativa; variedades e mudanças lingüísticas.
Os capítulos apresentam uma estrutura que visam auxiliar você,
estudante, no processo de aprendizagem. Começam com a utilização de
um texto que subsidiará a discussão inicial sobre o tema, sempre recorrendo à definição dos termos técnicos, objeto de estudo, com o emprego
de exemplos oriundos das fontes mais diversas. Após essa discussão, há
um momento de interação com um autor ou uma autora convidada. A
seção “Leia o texto a seguir e reflita sobre as questões abordadas pela/
pelo autor/a” traz uma transcrição de um pequeno texto relacionado com
o tema do capítulo que servirá como transição para a segunda parte do
capítulo, como aprofundamento de algum conceito relevante para o capítulo, ou ainda como apresentação de um subtópico. A seguir, retomase o assunto da aula, com o desenvolvimento dos itens que se fizerem necessários. Para finalizar a apresentação do conteúdo, surge a seção “Texto
complementar” que, ao mesmo tempo em que retoma alguns aspectos
discutidos anteriormente, contribui com novas informações sobre o tema
em questão, ao utilizar-se de um texto também de autores convidados.
Melhor esclarecer esta noção de autor convidado: são todos aqueles especialistas que tiveram transcritos fragmentos relativamente longos de
capítulos de livros, de teses, de dissertações ou de artigos científicos.
O que os fazem diferentes das demais citações é o fato de eles não serem comentados, não estarem inseridos no meu próprio texto, ou seja,
eles têm autonomia, eles têm a própria voz. Voltando à estrutura do livro, depois de tanto estudo, chegou a hora de checar a aprendizagem,
ou seja, são propostos três exercícios para serem resolvidos. Com a certeza de que você vai buscar mais leituras sobre o tema estudado, a última parte do livro consiste na citação das referências. Bem, este é o perfil
deste livro para chamar de nosso!
Uma palavra final, para que o livro se tornasse real, concreto,
por razões físicas eu dependi totalmente de outras pessoas. Dentre
elas, eu quero agradecer especialmente a Maria Cândida Paiva Dionisio,
minha irmã, que parou a sua vida e veio ser as minhas mãos por meses. Meus sobrinhos Rogério e Bianca também deram uma mãozinha!
As minhas amigas e colegas Emília Ferreira, Fabíola Santana, Judith
Hoffnagel, Medianeira de Souza, Normanda Beserra e Regina Dell’Isola
também deixaram suas digitais! Por tudo isso, este é um livro realmente para chamar de nosso livro de Lingüística!
Angela
Morfologia: campos
de ação e conceitos básicos
Angela Paiva Dionisio*
Marcelo, personagem de Ruth Rocha, questiona o nome que as coisas têm; recebe do pai uma
explicação, mas não fica satisfeito. Resolve, então, alterar a forma de nomear os objetos e as ações do
seu dia-a-dia. Vejamos um fragmento do livro Marcelo, Marmelo, Martelo (ROCHA, 1999b, p. 13-14):
E Marcelo continuou pensando:
– Pois é, está tudo errado! Bola é bola, porque é redonda. Mas bolo nem sempre é redondo. E
por que será que a bola não é a mulher do bolo? E bule? E belo? E bala? Eu acho que as coisas deviam
ter nome mais apropriado. Cadeira, por exemplo. Devia chamar sentador, não cadeira, que não quer
dizer nada. E travesseiro? Devia chamar cabeceiro, lógico! Também, agora, eu só vou falar assim.
Logo de manhã, Marcelo começou a falar sua nova língua:
– Mamãe, quer me passar o mexedor?
– Mexedor? Que é isso?
– Mexedorzinho, de mexer café.
– Ah... colherinha, você quer dizer.
– Papai, me dá o suco de vaca?
– Que é isso, menino!
– Suco de vaca, ora! Que está no suco-da-vaqueira.
– Isso é leite, Marcelo. Quem é que entende este menino?
* Pós-doutora pela University of Califórnia – Santa Bárbara. Doutora e Mestre em Lingüística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).
Graduada pela Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Autora de capítulos de livros e artigos publicados na área dos estudos do texto oral e
escrito, bem como da teoria dos gêneros e ensino de língua materna. Nessas mesmas áreas, possui livros organizados em parceria.
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Lingüística II
(ROCHA, 1999b, p. 13-14)
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Em quais aspectos se baseiam as preocupações de Marcelo? As palavras propostas por ele são
possíveis de serem criadas na língua portuguesa? Se podem, por que seus pais reagem de forma tão
espantada? Tomemos para análise alguns trechos:
1. “Cadeira, por exemplo. Deveria chamar sentador.”
2. “Mamãe, quer me passar o mexedor?”
3. “E travesseiro? Deveria chamar cabeceiro, lógico!”
4. “E por que será que a bola não é a mulher do bolo?”
Em (1) e (2), ao formar as palavras sentador e mexedor, Marcelo usa uma das Regras de Formação
de Palavras (RFP) bastante recorrente, que é substantivo formado a partir do verbo com o acréscimo do
sufixo -dor (V  S -dor). Interessante que se destaque o fato de ambos os substantivos formados por
Marcelo decorrerem de verbos cuja ação serve para nomear os objetos. Em outras palavras, a utilidade
principal dos objetos é definida pelo sentido dos verbos.
A substituição de travesseiro por cabeceiro em (3) segue o mesmo princípio empregado em (1) e
(2), ou seja, o objeto é nomeado pela função, no caso guardar a cabeça. Porém, nesse caso, é formado a
partir do próprio substantivo com o acréscimo do sufixo -eiro (S S -eiro).
Mas o que acontece em (4) “E por que será que a bola não é a mulher do bolo?” Bem, alguns fatores morfológicos estão aqui envolvidos: (i) a flexão de gênero em Português se dá por vários processos
e não apenas pela substituição de -o ou morfema Ø por -a, como em gato–gata; (ii) há palavras que
não se flexionam em gênero, como em bolo e bola, em que o -o e -a finais indicam apenas a classe gramatical, isto é, são substantivos. O -a em bola é um morfema classificatório e não um morfema aditivo
indicador de gênero. A indicação de gênero, nesse caso, dar-se-á pelo uso do artigo feminino a, que o
acompanhará, inserindo, dessa forma, a palavra bola na classe de palavras femininas. Ah! Marcelo ainda
precisa descobrir que não se pode confundir gêneros das palavras com sexo.
Enfim, essa reflexão inicial serve para ilustrar algumas das áreas de atuação da Morfologia, ou
seja, para situar o campo de estudo da Morfologia.
Morfologia: campos de ação e conceitos básicos
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Campo de ação da Morfologia
O que estuda a Morfologia? Vejamos o verbete Morfologia no Dicionário de Linguagem e Lingüística, de Trask (2004, p. 199-200):
Morfologia (morphology) – A estrutura da palavra, ou o ramo da Lingüística que estuda esse assunto. As palavras têm
tipicamente uma estrutura interna e, em particular, são constituídas por unidades menores chamadas morfemas. Por
exemplo, a forma verbal tomando comporta dois morfemas: o radical verbal tom- e a terminação gramatical -ando.
Analogamente, o substantivo catavento comporta os morfemas cata e vento, e o advérbio vagarosamente consta dos
morfemas vagar, -os, -a e -mente. Convencionalmente, a Morfologia divide-se em duas áreas principais: a flexão –isto
é, a variação na forma para fins gramaticais de uma única palavra, como em tomo, tomas, tomava, tomei, tomando,
tomar etc. – e a formação de palavras – a construção de palavras novas com base nas já existentes, como nos exemplos
catavento e vagarosamente. Um tipo de formação de palavras particularmente importante é a derivação, como em
reescrever, infelicidade e insolação.
Para alguns estudiosos, a Morfologia deve centralizar-se no estudo das formas das palavras, restringindo-se ao nível do vocábulo. Já para outros, a análise das formas deve ocorrer no plano das sentenças. Nesse nível, fala-se em Morfossintaxe. Passemos, agora, para algumas definições do campo de
atuação da Morfologia:
Tradicionalmente, a Morfologia estuda a estrutura interna das palavras e suas relações com outras palavras dentro do
paradigma. A Sintaxe, por sua vez, ocupa-se com as funções exteriores e com a relação com outras palavras no interior
da sentença. [...] A Morfologia é o ramo da Lingüística que trata das formas das palavras em diferentes usos e construções (MATTHEWS, 1974, p. 33).
A gramática tradicional distinguia a Morfologia da Sintaxe, de acordo com o critério das dimensões relativas dos significantes. Assim caberia à Sintaxe estudar as construções superiores à palavra (locuções, frases etc. nas quais a palavra
fosse a unidade constituinte mínima), e caberia à Morfologia efetuar o estudo das construções cujos constituintes mínimos fossem palavras, ou partes de palavras (sufixos, raízes etc.). Os lingüistas da atualidade, e já desde Saussure – tanto
os estruturalistas, como Hjelmslev e Pottier, quanto os gerativo-transformacionalistas, que não levam em conta a teoria
dos níveis de descrição – apontam as sobreposições freqüentes entre os dois setores e recusam-se a distingui-los: a
sintaxe, para eles, “começa a partir do encontro de dois morfemas” (parecer de Pottier), e seria mais apropriado falar-se,
nesse caso, de Morfossintaxe (LOPES, 1977, p. 45).
Uma definição de Morfologia que a considere como um componente separado da Sintaxe e tendo como unidade
mínima e máxima de seu objeto, respectivamente, o morfema e a palavra seria: parte da gramática que descreve as
unidades mínimas de significado, sua distribuição, variantes e classificação conforme as estruturas onde ocorrem, a
ordem que ocupam, os processos na formação de palavras e suas classes (SCLIAR-CABRAL, 1973, p. 129).
É uma disciplina lingüística que tem a palavra por objeto, e que estuda, por um lado, a sua estrutura interna, a organização dos seus constituintes, por outro, o modo como essa estrutura reflete a relação com outras palavras, que parecem
estar associadas a ela de maneira especial. Nesse estudo inclui-se a análise das unidades que são usadas nas alterações
sofridas, como, por exemplo, afixos flexionais e derivacionais, bem como as regras que são postuladas para dar conta
dessas alterações (AZUAGA, 1996, p. 216).
Pode ser observado que morfema e palavra perpassam as definições acima, demonstrando que
esses são os dois conceitos essenciais para os estudos morfológicos. A morfologia dedica-se, portanto,
ao estudo da palavra, da sua estrutura interna, das relações dos constituintes nos processos de formação e de conversão de palavras.
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Lingüística II
Conceitos básicos da Morfologia: palavra e morfema
Afinal, o que é uma palavra?
Intuitivamente, nós, falantes nativos de uma língua, sabemos muito bem definir se determinada
realização lingüística é uma palavra possível ou não, se aquela palavra é adequada a tal situação comunicativa, se é possível brincar com as palavras naquele gênero, se alguém está dizendo um palavra por
outra. Enfim, pedimos com segurança para não colocarem palavras na nossa boca, quando nos acusam
de algo que não dissemos. Quando Marcelo pediu a mamãe para passar o “suco da vaca”, temos uma ou
três palavras? E em “guarda-louça” e “casa de detenção”? Aliás, “suco da vaca” existe?
Leia o texto a seguir e reflita sobre as questões abordadas pelo autor.
Palavras, palavras, palavras
(Possenti, 2001, p. 125-126)
Se você é professor de português (ou lingüista), certamente já ouviu uma das seguintes perguntas: a) A palavra “x” existe? Como se escreve a palavra “y”? Qual é a pronúncia correta da palavra “z”? Qual o sentido da palavra “w”? Se você não é nem professor de português nem lingüista
(e mesmo sendo), certamente também já fez alguma dessas perguntas, ou todas. A razão para sua
ocorrência constante é que elas são as questões mais comuns que ocorrem aos falantes curiosos
em relação às palavras ou às possíveis palavras de uma língua.
Em geral, espera-se que haja para essas perguntas uma resposta categórica, do tipo sim-não
(tal palavra existe, tal palavra não existe) ou do tipo “a” ou “b” (a escrita correta é tal, a pronúncia
correta é tal, o sentido da palavra é esse e não aquele). Essas respostas são certamente as esperadas, mas, invariavelmente, respostas categóricas como essas são problemáticas. Pelo menos,
são freqüentemente problemáticas. Respostas mais adequadas são de natureza diferente, mais ou
menos como as seguintes: a) Se tal palavra existe? Depende. Você não acabou de dizê-la? Ouviu
de quem? Ou: Que eu sabia, não. Ou; é usada em tal região, e em tal profissão. Ou: existe, é uma
palavra francesa (ou inglesa, ou da língua tal e tal). A pronúncia? No sul ou no norte? Neste século
ou no passado? No Brasil ou em Portugal (na Inglaterra ou nos Estados Unidos)? Como se escreve?
Veja no dicionário, mas saiba que sua grafia já foi outra. Você viu essa palavra escrita de forma
estranha? Quer saber por que isso ocorre? Bem, uma grafia errada tem muitas vezes boas explicações. O sentido da palavra? Ih, meu, agora ficou difícil. Em geral, as palavras significam tantas
coisas! Você já olhou num dicionário? Já notou que é difícil encontrar palavras com um sentido só?
Nunca olhou? Faça a experiência: comece bem no começo. Bem no começo mesmo, no “a”. Você
verá que nem mesmo o “a” é uma coisa só. Descobrirá o óbvio: que o “a” pode ser uma letra, uma
preposição, um artigo, uma conjunção, uma vogal.
Morfologia: campos de ação e conceitos básicos
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Estamos (ou estivemos) muito acostumados a uma idéia normativa de língua. Ela seria imóvel,
imutável, fixa. Seria, ainda, um código perfeito. Por isso, cada pergunta deveria ter uma resposta
só, e correta desde sempre e para sempre. Mas a realidade não é assim. Isso só poderia valer para
uma língua inventada (e que não funcionaria de jeito nenhum). As línguas costumam ter alguns aspectos rigidamente organizados e outros muito móveis e variáveis. O princípio vale também para
as palavras. Às vezes, é muito difícil decidir se uma palavra existe, ter certeza de sua pronúnciapadrão, ou ter outras certezas, qualquer uma.
Faça testes com palavras como “obeso”, “bandeja”, “caranguejo” etc. E não esqueça de discutir a pronúncia de “subsistir”, por favor. Para saber o sentido das palavras, freqüentemente temos
que saber em que contexto foram usadas. Há muitas coisas interessantes sobre as palavras, além
de sua impossível uniformidade e bom comportamento, que fomos acostumados a procurar descobrir. Aliás, é muito mais interessante olhar para elas como se olha para outros fenômenos da
natureza. É mais instigante querer saber como se comportam de fato no mundo (o mundo de uma
língua é seu uso por muitos falantes bastante diferenciados em numerosos contextos), do que
querer congelá-las numa redoma.
Se afirmar que tal palavra existe ou não já é difícil, conceituar palavra é mais complicado ainda,
visto que há várias perspectivas para se fazer isso. Podemos sistematizar as seguintes noções de palavras:
palavra ortográfica, palavra fonológica, lexema e palavra morfossintática (AZUAGA, 1996; TRASK, 2004).
::: Palavra ortográfica – corresponde à unidade escrita delimitada por espaços em branco. Esse
conceito, porém, apresenta algumas restrições, como: (i) palavras com o uso do hífen e do
apóstrofo, como em suco-da-vaqueira, copo d’água, preenchem o espaço com sinais gráficos;
(ii) palavras homônimas devem ser contadas como uma ou duas? Na frase “Como bancas as
bancas neste cassino?”, as repetições devem ser contadas por terem significados diferentes?
::: Palavra fonológica – corresponde à unidade “resultante de um determinado tipo de segmentação do contínuo sonoro” (Azuaga, 1996, p. 221), como ocorre em “leste (verbo) – leste
(substantivo)”; cavalo (substantivo) – cavá-lo (verbo).
::: Lexema – “unidade lexical, abstrata, que reúne todas as flexões de uma mesma palavra. Em
princípio, os lexemas são distintos uns dos outros, porque são portadores de sentidos diferentes – PAI – MÃE” (Azuaga, 1996, p. 221); unidade que o usuário espera que possua uma
entrada própria no dicionário.
::: Forma gramatical da palavra – unidades distintas por serem variantes flexionais da mesma
unidade lexical: “sou” e “é” são flexões do lexema ser, “mudei” é flexão do lexema mudar.
::: Palavra morfossintática – “termo que se deve utilizar quando pretendemos designar a especificação ou a descrição de uma das formas de um lexema, tal como ela ocorre no enunciado.” (Azuaga, 1996, p. 222). Em “Pintei um pires ontem” e “Pintei dois pires ontem”, o lexema pires é singular na primeira estrutura e plural na segunda. São, portanto, duas palavras
morfossintáticas.
Vejamos agora alguns exemplos elencados por Trask (2004, p. 218-219), traduzidos e adaptados
por Rodolfo Ilari, que nos fazem pensar ainda mais sobre a complexidade do tema:
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Lingüística II
::: grana preta: duas palavras ortográficas, uma palavra fonológica, um único item lexical e uma
única forma gramatical (usa-se granas pretas?);
::: cão e cães: duas palavras ortográficas, duas palavras fonológicas, duas palavras morfossintáticas e um único lexema;
::: àqueles (para aqueles): uma única palavra ortográfica, uma única palavra fonológica, duas
palavras morfossintáticas e dois lexemas (preposição a + pronome aquele).
Enfim, Trask (2004, p. 219) sugere que, “quando estivermos falando de palavras, é essencial que
especifiquemos exatamente que sentido temos em mente [...]”. Mas, finalmente, o que é uma palavra?
Uma definição concisa de palavra é dada por Sândalo (2001, p. 181): “unidade mínima que pode
ocorrer livremente”. A autora lembra que alguns pronomes como os oblíquos de terceira pessoa (o, a)
não se definem como uma palavra, uma vez que não são sujeito de uma sentença nem uma resposta
a uma pergunta. Essa definição, apresentada por Bloomfield (1933) na década de 1930, decorre da
clássica tipologia entre formas livres (aquelas que constituem um enunciado) e formas presas (aquelas
que não são suficientes para constituírem um enunciado). As marcas de plural, as marcas de gênero,
o sufixo -mente formador de advérbio exemplificam as formas presas, pois só se realizam agregadas,
como as formas livres gato/gata – gata/gatas – livre/livremente. Nessa classificação de Bloomfield
(1933) não entram os artigos, as preposições, os pronomes oblíquos átonos e tônicos, por exemplo.
Mattoso Câmara Jr. (1970, p. 70) introduz um terceiro conceito – o de formas dependentes – isto é, uma
forma que não é livre, porque não pode funcionar isoladamente como um enunciado, mas também
não é presa porque é separável da forma livre a que se liga, admitindo intercalações e inversões. Tomemos um fragmento da música Palavras de Titãs (1997):
Palavras eu preciso
Preciso com urgência
Palavras que se use
Em casos de emergência, para ilustração.
BRITO, Sérgio; FROMER, Marcelo. Palavras. In: Acústico. WEA, 1997. 1 disco, faixa 10.
É possível se fazer uma intercalação no fragmento com urgência, alterando para com muita urgência, assim como se pode fazer uma inversão com urgência preciso.
Como lembra o lingüista americano Lyons (1979, p. 211), “uma das características da palavra é
que ela tende a ser estável internamente, quanto à ordem dos morfemas que a compõem, mas é móvel
quanto à posição: pode trocar de posição com outras palavras na frase.”
Em seu livro “Alice no país da linguagem”, Yaguello1 (1990, p. 57), no capítulo “Serrar as palavras”
acrescenta:
“Dizer uma palavra por outra”, “enganar-se nas palavras”, “medir as palavras”, “a brincar com as palavras”, “a força das palavras”, “palavras ao vento”, tudo isso são expressões que provam que, para os locutores, a unidade formal da linguagem é
de facto a palavra, unidade móvel e autônoma. Entre as palavras, convém distinguir as palavras completas das palavras
instrumentos, sendo as primeiras (substantivos, adjectivos, verbos, advérbios) capazes de, por si só, formar enunciados
completos: “Anda!”, “Satisfeito?”, “Às vezes”, “Lamento”; as segundas (artigos, conjunções, preposições, partículas) nunca
1 Foi mantida a ortografia original do livro escrito em Português de Portugal.
Morfologia: campos de ação e conceitos básicos
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aparecem sozinhas. Os pronomes podem pertencer às duas categorias, conforme apareçam na sua forma absoluta, o
meu, ou relativa, meu. “O meu” é um enunciado, mas “meu” já não é2.
Será, então, o morfema uma invenção dos lingüistas? Umas vezes coincidindo com a palavra, sendo, na maioria dos
casos, uma parte da palavra3, os seus contornos nem sempre estão claramente definidos para os locutores, e a sua definição é de certa maneira negativa, visto que ele é “a mais pequena unidade de sentido”, para lá da qual não é possível
continuar a segmentar, conservando, ainda, um sentido autónomo.
Afinal, o que é um morfema?
Retomemos a definição de morfema apresentada no interior do verbete morfologia, do Dicionário de Linguagem e Lingüística, mencionado anteriormente:
As palavras têm tipicamente uma estrutura interna e, em particular, são constituídas por unidades menores chamadas
morfemas. Por exemplo, a forma verbal tomando comporta dois morfemas: o radical verbal tom- e a terminação gramatical -ando. Analogamente, o substantivo catavento comporta os morfemas cata e vento, e o advérbio vagarosamente
consta dos morfemas vagar, -os, -a e -mente. (TRASK, 2004, p. 199-200)
As três palavras tomando, catavento e vagarosamente foram segmentadas em unidades gramaticais mínimas. A análise morfológica deve realizar-se pelo princípio da comutação, que consiste numa
operação contrastiva com a permuta de elementos em subconjuntos numa relação paradigmática.
Vejamos:
• tomando
toma
-ndo
• catavento
cata
cata e vento
• vagarosamente
vagarosa
-mente
vagarosa
vagaros
-a
vagaroso
vagar
-oso
2 As palavras completas são menos redundantes do que as palavras instrumentos, uma vez que são estas últimas que os telegramas omitem.
3 Sem ser, no entanto, uma palavra composta, que é a adição de duas ou mais palavras, donde a questão que sempre se põe aos estudantes:
“Escreve-se numa palavra ou em duas, com traço ou sem traço?
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Lingüística II
Além da comutação, mais dois princípios fazem parte da análise morfológica, como salientam Silva e Koch (1997): a alomorfia e a mudança morfofonêmica. O plural da seqüência professor-aluno-papel é
professores-alunos-papéis. A marcação de plural ocorreu pelo uso do morfema -s, padrão em português,
e das variações -es e -is. A esse princípio de variação se dá o nome de alomorfia, e a cada forma variante,
alomorfe. Os blocos faz, fez, fiz, bem como saúde, saudável, salutar e insalubre apresentam alomorfes
dos morfemas lexicais fazer e saúde. Já o morfema negativo -in, por exemplo, mantém seu significado,
mas varia sua forma em -im, -ir, -i, dependendo do fonema da sílaba seguinte: insensível, impraticável,
irreal, ilegal. Verifica-se, então, uma mudança morfofonêmica.
Petter (2003, p. 65-68), num artigo dedicado à Morfologia, cita os processos morfológicos que as
diferentes línguas empregam para produzir um novo signo lingüístico. São eles: adição, reduplicação, alternância e subtração. A adição se dá “quando um ou mais morfemas é acrescentado à base, que pode ser
uma raiz ou radical primário, isto é, o elemento mínimo de significado lexical. Em aprofundar, temos os seguintes morfemas: a-profund-ar, onde a- e -ar são morfemas aditivos, que se acrescentam à raiz profund-.
Aprofund- é a base de aprofundar.” [...] A reduplicação consiste na repetição de fonemas da base, com ou
sem modificações. “Nas línguas clássicas – latim, grego e sânscrito – está associado à flexão verbal.”
Já a alternância ocorre “quando alguns segmentos da base são substituídos por outros, de forma
não-arbitrária, porque são alguns traços que se alternam com outros; como em português; pus/pôs; fiz/
fez; fui/foi; ou em inglês, em alguns plurais como foot/feet; man/men.” (PETTER, 2003, p. 67). O último
processo, a subtração, consiste na eliminação de segmentos da base “para expressar um valor gramatical”, como em órfão/órfã, anão/anã.
Temos, até o momento, mencionado uma variedade de morfemas, tais como morfema zero, morfema classificatório, morfema aditivo, morfema lexical. Isso se deve à diversidade dos tipos de morfema
existentes na literatura especializada.
Kehdi (1996), em Morfemas do Português, propõe que os morfemas sejam classificados segundo
os aspectos formal e funcional. Do ponto de vista formal, os morfemas do português se agrupam em:
radical, afixos, desinências, vogais temáticas, vogais e consoantes de ligação. Em relação à função, os
morfemas são dos seguintes tipos: morfema aditivo, morfema subtrativo, morfema alternativo, morfema reduplicativo, morfema de posição e morfema zero. Silva e Koch (1997) os classificam, quanto ao
significado, em lexicais e gramaticais. Os morfemas gramaticais dividem-se em classificatórios, flexionais, derivacionais e relacionais. Trataremos neste capítulo dos dois primeiros tipos.
Duas distinções merecem ser feitas antes de prosseguirmos: radical versus raiz; desinência versus
sufixo. O radical corresponde à forma lingüística base para construir formas flexionadas, seguido da
vogal, como cant em cantaremos (canta- + -re- + -mos); a raiz, por vez, é o elemento que forma a base de
uma palavra (cant- + -aremos, cant- + -amos, cant- + -arei, cant- + -aras). Kehdi (1996, p. 27) sugere que
ao se fazer um estudo sincrônico da língua, deve-se evitar o termo raiz, visto que “nem sempre há coincidência entre os enfoques sincrônico e diacrônico: em comer, o radical é com- (cp. comida, comilão), ao
passo que a raiz é ed-”. Em relação ao par desinência versus sufixo, registra-se a obrigatoriedade de uso
sem a criação de novas palavras para a desinência, como se verifica em cantaremos, onde -re- (sufixo de
tempo futuro do presente) + -mos (sufixo de concordância de pessoa), ao passo que o uso do sufixo gera
uma nova palavra (caderno/caderneta, livre/livremente).
Os classificatórios recorrem às vogais temáticas nominais (-a, -e, -o) e verbais (-a, -e) para classificar os vocábulos como nomes (substantivos e adjetivos) e verbos. Localizam-se entre o radical e as
desinências e os sufixos.
Morfologia: campos de ação e conceitos básicos
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Os morfemas flexionais modificam os morfemas lexicais, atribuindo-lhes categorias gramaticais
como gênero e número aos nomes e modo–tempo e número–pessoa aos verbos. Há os flexionais que
se adicionam para indicar as noções de gênero e número, como em vendedor–vendedora (-a) e vendedor–vendedores (-es). A estes se atribui o nome de aditivos. Retomemos o exemplo cantaremos, para
observarmos que os segmentos -re- e -mos acumulam mais de uma informação gramatical: -re (modo
indicativo + tempo futuro do presente) e -mos (primeira pessoa plural – noções de número e pessoa). São
denominados de morfemas flexionais aditivos cumulativos.
O segundo tipo – o subtrativo – indica a noção de gênero pela redução da forma masculina, como
em cirurgião/cirurgiã.
Em sogro–sogra e ovo–ovos, observa-se que as flexões de gênero (sogro–sogra) e de número
(ovo–ovos) apresentam uma alternância vocálica /ô/ para o masculino e singular e /ó/ para o feminino e
plural. Esse tipo de morfema se chama alternativo. Além da alternância vocálica, ainda são utilizados os
aditivos -a, para o gênero em sogra, e -s, para o plural em ovos. Silva e Koch (1997, p. 23) enfatizam que
“em português é mais adequado considerar-se tais alternâncias como morfemas redundantes, dada a
sua função unicamente secundária, e enquadrá-los como uma subclasse dos alternativos [...]”.
Anteriormente, usamos as estruturas “Pintei um pires ontem” e “Pintei dois pires ontem” e verificamos que a idéia de singular e plural depende do contexto imediato, no caso do uso de numerais (1 (um)
e 2 (dois)). A esse tipo denomina-se de morfema latente ou alomorfe Ø. A categoria de gênero muitas
vezes é indicada em nossa língua por esse tipo de morfema: “o jornalista entrevistou o pianista” – “a
jornalista entrevistou a pianista.”
O último tipo de morfema flexional a ser discutido é o morfema zero (Ø), ou seja, a ausência de
marca de pessoa e número para os verbos e plural e feminino para os nomes. Nos pares falava–falávamos e fiel–fielmente, em qual deles temos a ocorrência do morfema Ø? Para Kehdi (1996, p. 24), um
morfema Ø deve preencher três condições, que são: corresponder a um espaço vazio, esse espaço deve
se opor a um ou mais segmentos e expressar uma noção inerente à classe gramatical do vocábulo examinado. Portanto, é o par falava–falávamos que atende a tais critérios, pois o espaço vazio em falava
Ø se opõe à noção de primeira pessoa plural, inerente à flexão dos verbos. Mas não há entre os autores
consenso na conceituação desse morfema. Freitas (2007, p. 60-61), entre outros, considera a inexistência e não apenas a ausência de traço flexional como ocorrência do morfema Ø. Assim, para esse autor,
pires é um exemplo de morfema Ø.
Texto complementar
Análise mórfica
(CÂMARA JR., 1970, p. 72-75)
É a depreensão das formas mínimas, ou morfemas, constituindo o vocábulo formal unitário, que se chama a análise
mórfica. Por meio dela procede-se à descrição rigorosa das formas de uma língua dada.
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Lingüística II
O método dessa análise consiste na técnica da “comutação”. Por esse nome se entende a substituição de uma
invariante por outra, de que resulta um novo vocábulo formal. Se a gramática tradicional transferiu às cegas as categorias e os membros das categorias latinas para as línguas européias modernas [...], é porque ainda não se compreendia claramente a relevância do teste da comutação para o conteúdo lingüístico (HJELMSLEV, 1953, p. 47).
Talvez a melhor maneira de bem compreender o método assim definido seja a sua exemplificação com uma forma verbal simples portuguesa, como falamos. As nossas gramáticas em regra
não se preocuparam mais do que em separar o “radical” da “terminação” em nossos verbos. Assim
lhes escaparam inteiramente as noções gramaticais, morfema por morfema, que neles podem
entrar. Nessa análise temos de levar em conta o morfema gramatical zero (Ø), isto é, a ausência
de um morfema, num dado vocábulo, que aparece noutro vocábulo e estabelece com o primeiro
uma oposição significativa. É, por exemplo, o que se dá com o singular entre os nomes portugueses, aí caracterizado apenas pela ausência do morfema /S/ de plural: lobo / lobos, ou seja, lobo +
Ø / lobo + /S/.
No exemplo falamos notemos preliminarmente uma homonímia entre presente e pretérito,
decorrente de não haver para um e outro um morfema específico e o morfema -mos, da 4.ª pessoa
gramatical, ou 1.ª pessoa do plural, ser sempre o mesmo em todos os verbos e tempos portugueses1. Aceitemos a homonímia e fixemo-nos no presente, partindo de um contexto como “Falamos
aqui neste momento”.
A primeira comutação, que ocorre, é um zero (0), que nos dá o vocábulo fala. Como passa então a se tratar de outra pessoa gramatical (a 3.ª pessoa do singular), concluímos que -mos é que é o
morfema da 1.ª pessoa plural, ou 4.ª pessoa gramatical. Por outro lado, a comparação de falamos,
como falávamos, faláramos, falaremos e falaríamos, indica um presente e um pretérito com morfema zero e dois outros pretéritos, com morfemas -va- e -ra-, respectivamente, e com dois futuros,
respectivamente, de morfemas -re- (tônico) e -ria- (com a tonicidade no /i/). Finalmente, a diferença
de falamos com bebemos e partimos mostra que os verbos portugueses se distribuem em três classes mórficas (as tradicionais “configurações”), caracterizadas sucessivamente pelas vogais /a/, /e/,
/i/. O primeiro elemento indivisível, comum a todas as formas de cada um dos verbos, é o morfema
lexical, em que se concentra significação específica do ato que o verbo expressa: fal-, em falamos,
referente a uma atividade vocal distinta da de cantamos (morfema lexical cant-), ou da de gritamos
(morfema lexical grit-), ou da de choramos (morfema lexical chor-). Da mesma sorte bebemos, com
beb-, se opõe a comemos, com com-, e partimos, com part-, se distingue de fugimos com fug- /fuz/.
Todas essas comutações nos levam a analisar o vocábulo verbal português, além do seu morfema lexical, com um morfema classificatório de conjugação, um morfema de tempo verbal e um
último de pessoa gramatical, referente ao sujeito.
Também a análise introduz um conceito novo, que é o da “cumulação”. Com efeito, em falamos, falávamos, faláramos, falaremos, falaríamos, vemos que -mos, indivisível, acumula em si,
além da noção de 1.ª pessoa gramatical (o falante), a noção de plural. Analogamente, os morfemas
de tempo verbal, ou temporais, incluem a intenção objetiva da comunicação, própria do modo
indicativo, em face de uma atitude subjetiva de dúvida ou, ainda, suposição, que transparece em
falemos, falássemos e falarmos, além da circunstância, talvez a mais relevante destes três últimos
tempos só figurarem em padrões especiais de frase, dependentes de outro “principal”.
[...]
1 Já rechaçamos, em capítulo precedente, a precária e inconsistente distinção entre falamos /â’/, no presente, e falámos /à/ no pretérito.
Morfologia: campos de ação e conceitos básicos
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Por outro lado, na depreensão da invariante que é o morfema, é preciso não esquecer a possibilidade da sua variação, ou seja, seus alomorfos. No tempo futuro, a que pertence cantaremos, falaremos etc., há também a variante -rá-, que aparece em falará, cantará etc., ou em falarás, cantarás etc.
A alomorfia pode ser de natureza puramente mórfica, privativa da primeira articulação da
linguagem, como na variação /rê’/ - /ra’/, ou pode depender da segunda articulação, como conseqüência das distribuições imperativas que se verificam no plano fonológico. Assim, as vogais /ê/ e
/i/, que caracterizam duas classes mórficas de verbos portugueses, em posição átona final sofrem
a redução, que já conhecemos, a um débil alofone de /i/, que a escrita representa pela letra -e. Este
/i/, escrito -e, é um alomorfe, condicionado pela posição átona final da vogal, tanto do morfema
/ê/ (da 2.ª conjugação), como do morfema /i/ (da 3.ª conjugação).
Finalmente, pode-se dar a neutralização no plano mórfico, semelhante à que já conhecemos no
plano fonológico entre fonemas. A neutralização torna indistinta a diferença, ou melhor dito, anula
a oposição entre dois morfemas pelo aparecimento de um morfema único. Isso pode-se dar apenas
dentro do plano formal como numa forma verbal falaram, que no plural da 3.ª pessoa tanto se refere ao
singular falou, de um dos três pretéritos portugueses, como ao singular falara, correspondente a outro
desses pretéritos. Mas também pode ser uma conseqüência de uma neutralização fonológica, previamente operada na segunda articulação, com a eliminação da oposição entre dois fonemas. Assim, a
neutralização mórfica, que torna indistintas entre si a 2.ª e a 3.ª conjugação em teme e parte, por exemplo, resulta da circunstância de que há neutralização entre os fonemas /ê/ e /i/ em posição átona final.
A neutralização morfológica é compensada de duas maneiras na estrutura gramatical da língua. Por outro lado, ela entra em regra num “paradigma”, isto é, num conjunto de formas concatenadas entre si, como são as formas de cada verbo português. Se a oposição com outra forma se
anula para uma dada forma, como em falaram, ela se recria alhures, como entre falou e falara. Por
outro lado, o contexto da comunicação faz compreender a distinção que a neutralização tornou
latente. Só se emprega em português falaram como contraparte de falara em certos tipos de frase,
enquanto é em outros tipos que se emprega falaram como contraparte de falou.
A alomorfia pode-se verificar, evidentemente, entre elementos fonológicos de natureza diversa.
É o que acontece, para certos verbos portugueses ditos “irregulares”, entre um fonema ou conjunto de
fonemas, acrescentado ao radical do verbo, e uma alternância vocálica dentro do radical. Por exemplo
fiz, do verbo fazer, corresponde ao -i final de temi, do verbo temer. Ambas as formas indicam a 1.ª pessoa gramatical de um determinado tempo passado português. Mas em temi houve acréscimo de um
i- tônico ao radical, ao passo que em fiz houve no radical a mudança da sua vogal -a- (faz+er) para -i-.
Assim, em fiz temos um tipo de morfema que não é o do -i final de temi. Neste, houve o acréscimo
de um segmento fônico ao radical. Naquele houve uma alternância da vogal do radical. Essa alternância, que em português é esporádica e só aparece num grupo mínimo de verbos, é em outras línguas um
morfema geral e “regular”, ou ainda, em outras, como o inglês, uma alomorfia bastante generalizada
(cf. – ing. sit “sentar”) I sat “sentei”, drive / draiv/ “dirigir”: O drove / drouv/ “dirigir”, e assim por diante2.
2 Há aí, como sempre na língua, uma distribuição em padrões, de maior ou menor número de itens, que a gramática tradicional inglesa
não se preocupa em depreender, enumerando todos esses verbos pela “ordem” alfabética, com a descrição gramatical deturpada numa
espécie de lista telefônica.
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Lingüística II
Estudos lingüísticos
1.
Nos quatro primeiros versos da música Palavras de Titãs
“Palavras não são boas
Palavras não são quentes
Palavras são iguais
Sendo diferentes”
temos:
a) 13 palavras ortográficas, 11 lexemas e 8 palavras morfossintáticas.
b) 8 palavras ortográficas, 7 lexemas e 8 palavras morfossintáticas.
c) 7 palavras ortográficas, 7 lexemas e 7 palavras morfossintáticas.
d) 13 palavras ortográficas, 7 lexemas e 8 palavras morfossintáticas.
2.
Classifique os pares abaixo, quanto aos morfemas flexionais:
a) réu – ré
b) grosso – grossa
c) quebra – quebraremos
d) igual – iguais
Morfologia: campos de ação e conceitos básicos
3.
Indique os processos morfológicos empregados na formação de feminino em português:
a) bisavô – bisavó
b) comprador – compradora
c) cirurgião – cirurgiã
d) apto – apta
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