BECKER, Silvério. Uma análise epistemológica do jogo, 2009. 67 f

Transcrição

BECKER, Silvério. Uma análise epistemológica do jogo, 2009. 67 f
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SILVÉRIO BECKER
UMA ANÁLISE EPISTEMOLÓGICA DO JOGO
Trabalho apresentado como requisito parcial à disciplina Trabalho
de Conclusão de Curso, Curso de Pedagogia, Centro Universitário
Municipal de São José – USJ
Orientador: Prof. MSc. Evandro Oliveira Brito
SÃO JOSÉ, 2009
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SILVÉRIO BECKER
UMA ANÁLISE EPISTEMOLÓGICA DO JOGO
Trabalho de Conclusão de Curso elaborado como requisito parcial para a aprovação no Curso
de Pedagogia do Centro Universitário Municipal de São José - USJ.
Avaliado em 07 de julho de 2009 por:
__________________________
Prof. MSc. Evandro Oliveira de Brito
Orientador
______________________________
Prof. MSc. Andréa Simões Rivero
Membro Examinador
______________________________
Prof. Dr. Angelita Darela Mendes
Membro Examinador
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SUMÁRIO
I.
INTRODUÇÃO .................................................................................................................................. 4
II.
QUESTÃO NORTEADORA ................................................................................................................. 8
III. OBJETIVOS ..................................................................................................................................... 9
III.I. OBJETIVO GERAL ................................................................................................................... 9
III.II. OBJETIVOS ESPECÍFICOS .................................................................................................... 9
IV. HIPÓTESE.......................................................................................................................................... 10
V. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS ............................................................................................... 11
VI. O DEBATE SOBRE O CONCEITO DE JOGO E O CONTEXTO HISTÓRICO. ............................................ 12
VI.I. WALTER BENJAMIN: BRINQUEDO, BRINCADEIRAS E JOGOS ..................................................... 18
VII. PILARES DA EDUCAÇÃO: VIGOTSKY E PIAGET ................................................................................. 24
VII.I. VIGOTSKY: O JOGO COMO IMAGINAÇÃO E GÊNESE DAS OPERAÇÕES COGNITIVAS ............... 24
VII.II. PIAGET: O JOGO COMO INSTRUMENTO DE ASSIMILAÇÃO DA REALIDADE ............................ 30
VIII. HUIZINGA: O JOGO COMO ELEMENTO ESPIRITUAL E SEU CARÁTER ESTÉTICO ............................ 34
IX. CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................................... 42
IX.I. JOGOS OU BRINCADEIRAS? ....................................................................................................... 42
X. POSFÁCIO ......................................................................................................................................... 48
X.I. WITTGENSTEIN: O SIGNIFICADO DE UMA PALAVRA É SEU USO NA LINGUAGEM...................... 48
X.II. KISHIMOTO : O JOGO COMO ALGO INDETERMINADO .............................................................. 53
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 57
JOGOS OU BRINCADEIRAS? ................................................................................................................... 59
REFERÊNCIAS ......................................................................................................................................... 67
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I.
INTRODUÇÃO
Este trabalho constitui-se de uma pesquisa que teve o intuito de analisar a relação entre
o conceito “brincadeira” e as atividades infantis geralmente denominadas dessa forma.
Através de uma pesquisa bibliográfica junto a alguns textos clássicos que abordam o assunto,
eu pretendia lançar mais luz sobre a relação existente entre o termo “brincadeira” e as
(algumas) atividades realizadas pelas crianças, pois a união dessas duas noções sob o mesmo
termo vinha me causando certo estranhamento. Devido a esse estranhamento, pretendi
conhecer os motivos que levam os discursos pedagógicos - cujo reflexo se dá no senso
comum -, de modo geral, a associarem as atividades infantis à brincadeira, bem como analisar
a validade dessa relação que ao senso comum e a linguagem ordinária torna-se óbvio demais
para ser questionado. Portanto, em principio, só fazia parte do escopo desse trabalho a questão
das brincadeiras infantis, ou seja, aquelas atividades que de modo geral são referidas por esse
termo.
A inquietação e desconforto com relação ao modo como a palavra “brincadeira” é
usada em relação ao universo infantil, surgiu durante minha experiência de relacionamento
com crianças e minhas observações do agir dos infantes, principalmente ao longo do curso de
pedagogia onde as questões relacionadas à infância vinham sendo discutidas, e quando passei
a prestar mais atenção aos infantes, bem como conviver mais com eles. Tal inquietação
levou-me a suspeitar que as relações travadas com as crianças pelo mundo adulto são, em
grande parte, influenciadas pelo uso indiscriminado e irrefletido da palavra “brincadeira”
quando esta tem como referência as atividades, quer espontâneas, quer dirigidas, dos infantes.
Essa suspeita tornava relevante a busca pelos fundamentos teóricos dos discursos pedagógicos
que descrevem as ações, ou jogos infantis como brincadeiras; bem como uma análise da
propriedade ou não do uso desse termo para designar qualquer atividade desenvolvida pelas
crianças.
Brincadeiras e jogos estão, indubitavelmente, presentes na vida de todo infante, a
menos que uma força maior impeça tais atividades. Ocorre que a palavra “brincadeira”, como
também a palavra “jogo”, é usada, também, para designar, apenas, algumas atividades ou
comportamentos das pessoas adultas, ao passo que é usada para designar a maioria, e em
alguns casos todas as atividades das crianças. Nessa ótica, parece que existe algo que
relaciona essas atividade ou que as assemelha, pois de modo geral, espera-se que coisas que
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caem sob o mesmo conceito (sinônimos), sejam ou idênticas, ou tenham pelo menos alguma
similaridade. Isso vale, até mesmo, em relação aos conceitos mais vagos, onde se espera que
haja, ao menos, alguma relação de semelhança à qual o conceito utilizado esteja voltado. De
outro modo, não se justifica o uso de uma mesma palavra como significante de coisas ou de
significados diferentes, ainda que o significado das palavras esteja atrelado ao seu uso na
linguagem ordinária.
Colocar as atividades infantis sob um conceito que, na linguagem ordinária, tem uma
conotação um tanto pejorativa, parecia-me uma forma, ainda que velada, de rechaçamento, de
negar, de certo modo, a alteridade do infante, o que contribuiria para a justificação de uma
postura autoritária, assumida por muitos adultos frente às crianças e, também por parte de
alguns professores no desenvolvimento de suas atividades pedagógicas. Além disso, esse
modo de perceber o universo infantil, como um mundo de “brincadeiras”, termo muitas vezes
atrelando à frivolidade e à futilidade, em meu modo de ver, não levava em consideração a
existência de uma cultura peculiar da infância, dentro da qual a palavra “brincadeira” não teria
lugar, pelo menos não com o mesmo sentido/significado que ela tem no mundo adulto.
Como o conceito “brincadeira”, de modo geral é tido como bem compreendido, dado o
fato de sua larga utilização na linguagem, seu significado não é assunto de muita reflexão.
Mesmo sem considerar o que está contido em um conceito, é natural acreditar-se que as coisas
em referência às quais ele é usado tenham algo em comum, pois para a designação de coisas
que mais diferem e menos se parecem entre si torna-se mais apropriado o uso de palavras
distintas; quando por algum motivo, não obstante a falta de atributos comuns, opta-se pelo uso
do mesmo termo, faz-se necessário o uso de algum tipo de adjunto de diferenciação, para que
fique claro aquilo sobre o que se está falando, ou seja, a referência e/ou o sentido dos termos
ou das proposições. Mesmo que a significação do termo esteja apenas em seu uso na
linguagem, conforme asserido por alguns dos autores que foram analisados durante a
realização deste trabalho, não é aconselhável o uso do mesmo termo para designar coisas
completamente diferentes, sob pena de dificultar a compreensão, ou mesmo levar a um
entendimento errôneo daquilo que se diz, correndo-se o risco de se tomar uma coisa por outra
que, talvez, nada tenha em comum com aquela, o que poderá vir a distorcer um dos conceitos
(no caso de termos ambíguos) ou mesmo, ambos, já que o uso da palavra criará, ao menos na
mente dos falantes, um vínculo entre as duas coisas, antes não existente.
A hipótese, que em principio foi levantada, acerca da pergunta norteadora desse
trabalho, foi que o uso da palavra “brincadeira” com referência a qualquer tipo de atividade
infantil fosse equivocado, e que aquelas atividades das crianças comumente designadas de
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“brincadeiras” não teriam nada em comum com as atividades ligadas à frivolidade, a
futilidade ou a vaidade, termos esses que, me pareciam, estavam implícitos no significado da
palavra “brincadeira” em seu uso na linguagem ordinária. Essa hipótese estava baseada na
crença de uma objetividade do universo infantil, no qual as ações se dariam entre o sujeito (o
infante) e o real (realidade psíquica desse suposto mundo). Nessa ótica, as “brincadeiras”
infantis teriam para as crianças um significado pleno e nelas a ressignificação se daria,
sempre, do real para o real, e não num mundo fantástico. Essa hipótese, porém, foi descartada
no desdobramento da pesquisa.
Como, na maioria dos casos, na literatura que aborda o assunto,as palavras “jogo” e
“brincadeira” são usadas de forma indiscriminada pelos autores, uma pergunta que logo
surgiu foi se as atividades infantis eram mesmo “brincadeiras” ou se se tratavam de “jogos”,
já que alguns autores usam apenas esse segundo termo quando se referem ao assunto. Nessa
perspectiva todos os tipos de brincadeiras são, na verdade, jogos. Como a identidade entre
jogos e brincadeiras foi ficando clara, apareceu também a necessidade, não só de esclarecer o
termo “brincadeira”, como também o termo “jogo”.Afinal, o que é o Jogo1?
A metodologia utilizada neste trabalho foi uma metodologia de caráter filosófico.
Primeiramente, por ser um trabalho de cunho bibliográfico e literário, realizei uma pesquisa
bibliográfica/exploratória, com o intuito de conhecer o significado dos termos “jogo” e
“brincadeira” no léxico português e, em seguida, também busquei conhecer o significado da
palavra “jogo” em outras línguas. Depois da questão semântica é abordado o contexto
histórico da questão dos jogos e das brincadeiras infantis. Em seguida, busquei conhecer o
pensamento de alguns teóricos conforme expostos em suas obras sobre a relação entre jogos
ou brincadeiras e o desenvolvimento cognitivo humano. Foi seguindo a indicação dos próprios
textos estudados que ocorreu a seleção dos autores a serem analisados na pesquisa, sobretudo
Benjamin e Huizinga, que são autores que contribuem, significativamente, para elucidação da relação
entre jogos e brincadeiras. A escolha de Vigotsky e Piaget deveu-se ao fato de serem ambos
considerados pilares da pedagogia contemporânea, além disso, a importância de seu pensamento
em relação às brincadeiras ou jogos é reconhecida de modo quase unânime pelos demais autores
que abordaram o assunto depois deles.
Desde o princípio, também tinha em mente que as relações de ligação que eu buscava
esclarecer através deste trabalho, por só virem à luz quando o trabalho estivesse concluído,
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A palavra Jogo com inicial maiúscula é utilizada aqui da mesma forma que o será doravante: como referência
a categoria geral de Jogo que engloba todos os tipos possíveis de manifestação desse fenômeno.
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poderiam se mostrar diferentes daquilo que em principio eu imaginava ser o caso. Esta
postura frente ao assunto, tomando o cuidado para que as notas preparatórias ou as hipóteses
não prevalecessem sobre a obra, antes buscando ser dirigido por ela (pela pesquisa), está
baseado no pensamento de Goldschmidt (1963) que afirma que um autor antes de expor suas
idéias já as possui, sob certa forma, porém essas idéias somente assumem uma forma definida
e suas descobertas só vêm à luz, mesmo para o próprio autor, durante o processo de pesquisa
ou de exposição do mesmo sob uma metodologia, ou mais precisamente, em termos mais
plenos, quando a obra está concluída. Assim, mesmo admitindo-se que uma teoria já exista
antes mesmo de sua exposição, ela precisa ser de algum modo exposta, encadeada por um
raciocínio, para que o princípio das relações entre suas idéias possa ser descoberto ou
compreendido.
Nessa ótica, eu aceitava de antemão que alguns aspectos da pesquisa, bem como da
análise dos dados poderiam mudar no decorrer das mesmas. Portanto, o método foi utilizado
aqui, não apenas como uma ferramenta de exposição, mas, sobretudo, como um meio de
descoberta.
Na análise dos dados foram comparados alguns aspectos das teorias analisadas, bem
como a coerência interna de algumas delas. Não foram analisados todos os pontos de cada
teoria exposta, apenas aqueles que pareciam mais contribuir para uma elucidação dos termos
que foram colocados em discussão.
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II.
QUESTÃO NORTEADORA
As crianças brincam (podem os jogos infantis serem, com propriedade, adjetivados
como brincadeiras)?
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III. OBJETIVOS
III.I. OBJETIVO GERAL
Este trabalho tem por objetivo analisar o conceito “jogo” e sob que sentido o termo
“brincadeira” é utilizado com relação a ele e ao universo infantil por alguns autores que
dissertaram sobre o assunto.
III.II. OBJETIVOS ESPECÍFICOS
- Definir teoricamente os termos “brincadeira” e “jogo”.
-Analisar algumas teorias do “jogo”, com intuito de saber o que é “jogo” e o que é
“brincadeira” para os autores clássicos.
-Refletir sobre a possibilidade ou não de uma criança brincar, a partir de uma
definição dos termos “brincadeira” e “jogo”, baseada nas fontes bibliográficas analisadas.
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IV. HIPÓTESE
A hipótese em principio levantada, acerca da pergunta norteadora desse trabalho, foi
que o uso da palavra “brincadeira” com referência a qualquer tipo de atividade infantil é
equivocado, e que aquelas atividades das crianças comumente designadas de “brincadeiras”
não tem nada em comum com as atividades ligadas à frivolidade, a futilidade ou a vaidade,
termos esses que, me parece, estão implícitos no significado da palavra brincadeira em seu
uso na linguagem ordinária. A hipótese foi que alguns autores, algumas vezes, se equivocam,
tomando uma coisa por outra, como é o caso, por exemplo, do discurso de Fantin (2000) que
utiliza ambos os termos de modo indiscriminado, se comparado aos discursos de Brougère
(1995/1998) onde os termos são delineados, de forma que mais claramente se percebe quando
o autor faz referência a um ou a outro. Essa hipótese afirma, ainda, a objetividade do universo
infantil e que, portanto, nesse universo as ações se dão entre o sujeito (o infante) e o real.
Nessa perspectiva, as “brincadeiras” infantis tem para as crianças um significado pleno e
nelas a ressignificação se dá, sempre, do real para o real, e não num mundo fantástico.
Essa hipótese não deixava de considerar o fato de que a linguagem, por ser viva, é
também dinâmica e, a semântica, algumas vezes, se diferencia da etimologia ao ponto de, em
muitos casos, esta não servir mais para explicar aquela; levava em conta também o fato de
que, sendo a gramática uma criação do homem e, por estar em constante transformação, este
pode usar qualquer palavra para designar alguma coisa, ou mesmo um estado de coisas. A não
conveniência no uso do adjetivo “brincadeira”, nesse caso, acredito, deve-se ao fato de que
seu uso implica em uma mudança no modo com que o mundo adulto encara o universo
infantil, levando a uma infantilização demasiada deste, bem como a importância dada pelo
mundo adulto ao mundo infantil, sendo assim, em parte, responsável pelo menosprezo da
condição infantil, facilmente percebido, na linguagem ordinária e até mesmo em alguns
discursos da Educação Infantil. Tal hipótese partia da perspectiva de que as “brincadeiras”
infantis nada têm, substancialmente, em comum com as brincadeiras dos adultos - essas sim,
talvez pudessem ser, com propriedade, chamadas de “brincadeira”, conforme o significado
comum desta palavra na linguagem - e, por isso mesmo, deveriam ser designadas de outra
forma.
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V. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Em principio, este trabalho, por ter um caráter de cunho bibliográfico e literário, lançou
mão de uma pesquisa bibliográfica/exploratória, através da qual buscou conhecer o
pensamento de alguns teóricos expostos em suas obras sobre a natureza e/ou história dos
jogos e das brincadeiras. Tenha-se em mente que as relações de ligação, que este trabalho
buscou esclarecer, entre crianças, jogos e brincadeiras só vieram à luz quando trabalho estava
concluído.
Segundo Goldschmidt (1963), um autor antes de expor suas idéias já as possui, sob certa
forma, porém essas idéias somente assumem uma forma definida e suas descobertas só vêm à
luz, mesmo para o autor, durante o processo de pesquisa ou de exposição do mesmo sob uma
metodologia, ou mais precisamente, em termos mais plenos, quando a obra estiver concluída.
Assim, mesmo admitindo-se que uma teoria já exista antes mesmo de sua exposição, ela
precisa ser de algum modo exposta, encadeada por um raciocínio, para que o princípio das
relações entre suas idéias possa ser descoberto ou compreendido. Assim:
Notas preparatórias, onde o pensamento se experimenta e se lança, sem ainda
determinar-se, são léxis sem crença e, filosoficamente, irresponsáveis; elas não podem
prevalecer contra a obra, para corrigi-la, prolongá-la, ou coroá-la; muito
freqüentemente, não servem senão para governá-la, e, desse modo, falseá-la. Ora, o
historiador não é, em primeiro lugar, crítico, médico, diretor de consciência; ele é
quem deve aceitar ser dirigido, e isso, consentindo em colocar-se nesse tempo lógico,
de que pertence ao filósofo a iniciativa (GOLDSCHIMIDT 1963 p. 147).
Portanto, alguns aspectos dessa pesquisa, bem como da análise dos dados poderiam
mudar no decorrer dos mesmos. O método foi utilizado aqui, não apenas como uma
ferramenta de exposição, mas, sobretudo, como um meio de descoberta.
A análise dos dados, por sua vez, em princípio, tomou o caráter de uma análise
comparativa à medida que buscou uma comparação entre os diferentes conjuntos de teorias
filosóficas que versam sobre as atividades infantis (jogos e brincadeiras). A análise atentou
para os pontos em comum entres as teorias, para os pontos que as diferenciam, bem como
para possíveis contradições que foram encontradas no interior de cada uma delas.
A partir da análise e das comparações entre os diferentes modos de ver “jogos” e
“brincadeiras” tentei chegar a uma definição de “jogo” e uma definição de “brincadeira”.
Também tentei compreender porque esses dois termos, muitas vezes, são usados de forma
indiscriminada quando fazem referência ao universo infantil.
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VI. O DEBATE SOBRE O CONCEITO DE JOGO E O CONTEXTO
HISTÓRICO.
Tanto o conceito “brincadeira”, como o conceito de “jogo”, são conceitos muito
abrangentes, sendo utilizados na linguagem com um variado número de significações. De
modo geral, porém, esses conceitos são tomados como sinônimos.
O problema de terminologia é apontado por Linaza, no prólogo do livro Psicologia do
Jogo, de D. B. Elkonin (1998), entre outros. Linasa aponta várias categorias e subdivisões
encontradas na literatura como, por exemplo: jogo imaginativo, imaginativo individual ou
social, jogo turbulento e desordenado, jogo simbólico, jogo cooperativo, jogo de ficção, jogo
sociodramático, jogo criativo, jogo de representações de papéis etc. Linasa lembra que alguns
desses termos assinalam diferenças teóricas entre autores que os utilizam. Há porém, autores
que englobam tudo sob o mesmo termo; como exemplo, Linasa aponta Piaget que, segundo
ele, coloca tudo sob a denominação de “jogo simbólico”.
Segundo Linasa
para avançar na compreensão científica do jogo é importante aumentar a quantidade e
a qualidade dos nossos dados sobre os seus mais diversos aspectos, mas também
necessitamos de teorias que nos guiem na obtenção e análise dos dados. (ELKONIN
1998, p. X)
É nessa ótica que esse trabalho pretende cooperar para a compreensão do termo
“jogo”, o qual, conforme será mostrado mais adiante engloba todas aquelas atividades
comumente denominadas “brincadeiras”, escopo principal desse trabalho. A relação do Jogo,
qualquer que seja a designação que se dê a ele, com o desenvolvimento cognitivo da criança é
bastante evidente, o que ratifica a importância dos estudos, no campo pedagógico, sobre esse
fenômeno. “A multiplicidade das pesquisas sobre o jogo mostra que não se pode nem
conhecer nem educar uma criança sem saber por que e como ela joga” (Bandet e Sarazanas
apud ROSAMILHA 1979, p.54).
D. B. Elkonin (1904-1984), que trabalhou com Vigotski na década de trinta (século
XX) quando iniciou seus estudos sobre o Jogo, afirma que é difícil saber o significado
original das locuções que designam tipos diferentes de jogos, como também é difícil saber
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como tais locuções foram adquirindo, ao longo do tempo, novos significados, diferentes dos
originários.
Os vocábulos “jogo” e “jogar” possuem muitas acepções. A palavra “jogo” empregase com o significado de entretenimento e diversão. “Jogar” significa divertir-se;
também se emprega no sentido figurado de manejar com habilidade: “jogar com os
sentimentos de alguém”; ou de conduzir-se com lisura e honestidade: “jogar limpo”;
correr um risco: “jogar com a própria vida”; tratar um assunto sério com leviandade:
“jogar com o fogo”; arremessar em alguma direção: “jogar pedras”; combinar: “jogo
de luzes”, “jogo de sofás” etc. (ELKONIN 1998, p. 11. Grifos do autor)
Elkonin (1998) também reconhece que a distinção comumente feita pelos dicionários
com relação ao sentido direto e o sentido figurado da palavra “jogo”, não é muito clara.
Conforme o autor, a primeira descrição sistemática dos jogos infantis na Rússia pertence a
Petróvski:
O conceito „jogo‟ apresenta algumas diferenças entre os diversos povos. Assim, para
os antigos gregos a locução „jogo‟ significava as ações próprias das crianças e
expressava o que entre nós se chama hoje ‟fazer traquinices‟. Entre os judeus a palavra
„jogo‟ correspondia ao conceito de gracejo e riso. Para os romanos „ludo‟ significava
alegria, regozijo, festa buliçosa. Em sânscrito, „kliada‟ era brincadeira, alegria. Entre
os germanos a palavra arcaica „spilan‟ definia um movimento ligeiro e suave como o
do pêndulo que produzia um grande prazer. Posteriormente a palavra „jogo‟ começou
a significar em todas essas línguas um grupo numeroso de ações humanas que não
requerem trabalho árduo e proporcionam alegria e satisfação. Assim, nesse amplo
círculo, adequado aos conceitos modernos, começou a entrar tudo, desde o jogo pueril
com soldadinhos de chumbo até a representação trágica nos palcos dos teatros, desde
o jogo infantil com bolas de gude até o jogo de bolsa para ganhar dinheiro, etc.
(Petróvski apud ELKONIN 1998, p. 12. Grifos do autor).
Elkonin também faz alusão à análise etimológica da palavra jogo oferecida pelo
psicólogo holandês Buytendijk onde aparecem como traços característicos do jogo o
movimento de “vaivém”, a espontaneidade e a liberdade, a alegria e o espairecimento.
Segundo Elkonin, Buytendijk teria exortado os investigadores do assunto a voltarem sua
atenção para o emprego que as crianças dão a palavra , isto porque, segundo Buytendijk, as
crianças sabem muito bem distinguir o Jogo daquilo que não merece tal designação. No
entanto, Elkonin afirma que não é possível através de uma investigação etimológica
compreender as características do Jogo, mesmo porque, essa palavra, como quase todas as
outras, sofreu ao longo do tempo uma transposição de significados. O autor lembra ainda que
o uso que as crianças fazem da palavra “jogo”, elas o tomam, simplesmente, da linguagem
dos adultos. Elkonin:
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A palavra jogo não é um conceito científico stricto sensu. É possível que por isso
mesmo alguns pesquisadores, procurassem encontrar algo de comum entre as ações
mais diversas e de diferente aspecto denominadas com a palavra “jogo”, não temos,
até hoje, uma delimitação satisfatória dessas atividades e uma explicação, também
satisfatória, das diferentes formas de jogo (1998, p. 13. Grifo do autor).
A existência de uma variedade de vocábulos relativos ao Jogo em várias línguas
ocidentais, bem como a existência de vários vocábulos relativos a esse tipo de atividade em
uma mesma língua, como é o caso do português, demonstram a vagueza do termo na
linguagem e a necessidade, para a compreensão desse fenômeno, tão importante para a
educação, de uma melhor caracterização da natureza do Jogo, para, a partir daí, estudar seus
atributos ou características.
Para Rosamilha (1979), o adjetivo “lúdico” significa aquilo que tem caráter de jogos,
brinquedos ou divertimentos e o termo “ludismo” é relativo à qualidade ou caráter daquilo
que é lúdico. O termo “ludo”, para o autor significa jogo, brincadeira, divertimento, podendo
indicar também um tipo específico de jogo.
Segundo a Enciclopédia Mirador Internacional (1975) no verbete brinquedo, esta
palavra aparece em português, no século XIX, derivada, por sua vez, de brinco, jogo
de crianças, divertimento, folguedo, do século XIII. Este, por sua vez, origina-se de
brincar. Poderia ser do alemão blinken, brilhar, cintilar, com evolução para o sentido
de agitar-se, semelhante à palavra latina caruscare, brilhar, luzir, agitar-se. Outra
hipótese é que veio de brinco, objeto de enfeite da orelha, de forma anular, que
também enfeitava a chupeta das crianças. No espanhol a palavra correspondente seria
juguete, derivado de juego, originário do latim jocus, significando gracejo, graça,
pilhéria. De forma semelhante o termo Frances jouet deriva de jouer, que surgiu do
latim jocare, gracejar, zombar, mofar. O termo italiano gioco vem do latin jocus
(ROSAMILHA 1979, p. 04. Grifos do autor).
Na mesma enciclopédia, segundo Rosamilha, a palavra “jogo” corresponde ao latim
jocus e ao italiano gioco e ao inglês game; o termo “lúdico” é uma expressão portuguesa
oriunda do ludus latino que, por sua vez, é sinônimo de jocus.
Rosamilha lembra também que, tanto o termo inglês play, quanto o termo alemão
spielen podem significar muitas coisas como: brincar, representar, tocar; podendo ser tanto
verbo transitivo como verbo intransitivo. A partir daí o autor conclui que to play do inglês,
jouer do francês e spielen do alemão correspondem tanto ao “jogar” como também ao
“brincar” em português.
Conforme nota de rodapé da obra Homu Ludens de Johan Huizinga (2007, p. 03),
impetrada pelo tradutor da obra para o português, João Paulo Monteiro, a diferença entre as
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principais línguas européias, onde vocábulos como spielen, to play, jouer e jugar significam
tanto “brincar” quanto “jogar”, e o português, obrigam, com freqüência, a escolha do uso de
um dos dois termos (jogar ou brincar). Ainda segundo Monteiro, a exatidão da tradução de
alguma dessas unidades terminológicas nem sempre é possível.
Para o Dicionário Escolar da Língua Portuguesa de Francisco da Silveira Bueno
(1976), o termo “brincadeira” refere-se à: I) divertimento, sobretudo entre crianças; II)
folgança; III)
gracejo, zombaria. O vocábulo “jogo”, por sua vez, conforme o referido
dicionário, designa: I) brinquedo, folguedo; II)
divertimento; III)partida esportiva; IV)
astúcia.
Conforme o Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa, de Aurélio
Buarque de Holanda Ferreira (1999), o vocábulo “brincadeira” designa: I) divertimento
(sobretudo entre crianças), brinquedo, jogo; II) passatempo, entretenimento, divertimento; III)
gracejo, zombaria, pilhéria; IV) Coisa que se faz irrefletidamente ou por ostentação, podendo
causar prejuízo, aborrecimento, etc.; V) folguedo, festa e; VI) coisa de pouca importância. Já
o vocábulo “jogo” designa: I) atividade física ou mental organizada por um sistema de regras
que definem a perda e o ganho; II) brinquedo, passatempo, divertimento; III) Regras que
devem ser observadas quando se joga; IV) série de coisas que formam um todo ou uma
coleção.
Para o Minidicionário da Língua Portuguesa, de Sérgio Ximenes (2000), dicionário
distribuído pelo Ministério da Educação do Brasil para alunos de escolas públicas municipais
em parte do país, o vocábulo “jogo” designa: I) atividade física ou mental, geralmente
coletiva, determinada por regras que definem ganhadores e perdedores; II) brincadeira,
passatempo e; III) conjunto de objetos que formam um todo. O vocábulo “brincadeira”,
segundo o mesmo dicionário, denota: I) divertimento, especialmente de crianças; II) gracejo,
zombaria e; III) recreação, divertimento.
Num exame lingüístico da noção de Jogo, Huizinga (2007) propõe uma identidade
entre Jogo e competição. Segundo ele, tanto a noção como a palavra “jogo” tiveram sua
origem na linguagem criadora, não num pensamento lógico ou cientifico. Assim não se
poderia esperar que cada língua tivesse uma mesma palavra ou uma mesma idéia que expresse
a noção de “jogo”, assim como acontece com, por exemplo, as noções de “pé” ou “mão”.
Huizinga:
Em todos os povos encontramos o jogo, e sob formas extremamente semelhantes, mas
as línguas desses povos diferem muitíssimo, em sua concepção de jogo, sem o
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conceber de maneira tão distinta e tão ampla como a maioria das línguas européias
modernas (HUIZINGA 2007, p. 34).
Para Huizinga, o fato de que algumas culturas e em algumas línguas existam palavras
inteiramente diferentes para diferentes formas de Jogo e não exista um conceito geral de Jogo,
pode ser comparado ao fato de que em várias daquelas chamadas “línguas primitivas” existem
palavras que designam diferentes espécies de peixes individualmente, sem, no entanto, existir
um termo que designe a categoria geral Peixe. Esse também é um dos motivos apontados por
Huizinga para o fato de que, em algumas línguas, o termo que designa Jogo é totalmente
diferente do termo que designa competição, como por exemplo a língua grega que, não
obstante, possuir dois termos diferentes para “jogo”, um designando aquilo que é próprio das
crianças (παιδιά), associado às idéias de alegria e despreocupação, e outro (αθύρω) associado
às idéias de frivolidade e futilidade, utiliza um terceiro termo (άγών) não associado à esses,
para designar competição ou concurso.
Em sua analise etimológica da palavra “jogo” Huizinga apresenta que no sânscrito
encontram-se quatro raízes verbais que correspondem ao conceito “jogo”. São elas: kridati,
que se refere ao jogo tanto entre os animais como entre as crianças e mesmo entre os adultos,
servindo também para designar o movimento do vento ou das ondas à semelhança de Spiel e
play nas línguas germânicas; divyati, que designa os jogos de azar, podendo significar
também brincar, contar piadas, fazer troça; las, que designa brilho, aparecimento súbito, ruído
súbito, subir, ir e vir, brincar e ocupar-se com alguma coisa (correspondente ao alemão etwas
treiben, que significa estar fazendo alguma coisa) e; lila, cujo significado original, apontado
por Huizinga, é “balançar”, e que, segundo o autor, designa os aspectos mais ligeiros,
frívolos, descuidados e insignificantes do Jogo e, sobretudo, seu caráter representativo ou
imitativo à semelhança de like, likeness em inglês e gleich, Gleichnis no alemão.
Huizinga também apresenta (baseado em Duyvendak) alguns termos que em chinês
são usados para exprimir os “jogos”: wan, refere-se, predominantemente, aos jogos infantis,
fazendo conotação a estar ocupado, ter prazer em alguma coisa, entreter-se, recalcitrar, contar
piadas, fazer troça. Além disso, segundo o autor, o termo também é usado para designar a
idéia de manejar, examinar, “farejar”, dispor pequenos ornamentos e, até mesmo, apreciar o
luar. Em suma, a palavra faz denotação a entregar-se a alguma coisa despreocupadamente;
tcheng, termo usado para designar competições (segundo Huizinga, tcheng é o correspondente
exato da palavra grega άγών).
Com base nos estudos de Uhlenbeck, Huizinga apresenta o conceito de “jogo”
conforme expresso na língua blackfoot, considerada uma língua primitiva. No blackfoot o
17
termo koani designa os jogos infantis de modo geral, porém, não é mais utilizado em relação
aos jogos dos adolescentes e adultos, ainda que se tratem dos mesmos jogos. Entre
adolescentes e adultos, segundo Huizinga, o termo koani reaparece sob uma conotação
erótica, sobretudo com referência a relações consideradas ilícitas. Com relação às
competições, o termo utilizado é kaxtsi, que faz referência aos jogos organizados segundo
regras, jogos de azar e jogos de destreza e força. Huizinga afirma uma semelhança da relação
entre koani e kaxtsi e a relação entre παιδιά e άγών no grego, com a diferença que em grego
são nomes, ao passo que no blackfoot são verbos. Huizinga observa ainda que na língua
blackfoot pode-se dar a qualquer verbo o significado secundário de “brincadeira” de “não ser
sério” apenas acrescentando o prefixo kip, que significa “simplesmente” ou “apenas”. O
exemplo citado pelo autor é a palavra aniu que na língua blackfoot significa “ele diz” ao passo
que a palavra kipaniu significa “ele diz de brincadeira” ou “ele apenas diz”
Sobre a língua japonesa as observações de Huizinga dão conta de que a referida língua
utiliza um termo único que abrange todas as atividades lúdicas: asobi (substantivo) ou asobu
(verbo), que designa o Jogo em geral: recreação, relaxamento, divertimento, passatempo,
excursão ou passeio, distração, deboche, preguiçar, ócio, disponibilidade, jogo de azar, estar
desempregado, jogar alguma coisa, imitar, representar. Conforme Huizinga, asobu pode
significar ainda o estudo sob a direção de um professor ou numa universidade; pode ainda
significar um combate simulado, mas não uma competição mesmo.
No latim, segundo Huizinga, a palavra ludus abrange todo o terreno do jogo: jogos
infantis, recreações, competições, representações litúrgicas e teatrais e os jogos de azar. Já as
palavras compostas alludo, colludo e illudo, apontam, segundo o autor, no sentido irreal, do
ilusório. Para Huizinga, a palavra ilusão deriva de inlusio, illudere ou inludere e significa
literalmente “em jogo”. Desse modo, a palavra “lúdico” tem a mesma origem da palavra
“ilusão”.
Huizinga salienta que jocus, jocari, no latim clássico, não significa exatamente Jogo.
Tem antes o sentido de fazer humor, contar piadas. Nas línguas românicas, afirma Huizinga,
ludus não aparece mais, sendo suplantado por um derivado de jocus cujo sentido original
(gracejar) foi ampliado para o de Jogo em geral. Como exemplos, o autor cita o frances jeu,
jouer; o italiano gioco, giocare; o espanhol juego, jugar; o português “jogo”, “jogar”.
Para confirmar a idéia de identidade entre “jogo” e “competição”, Huizinga afirma que
em todas as línguas germânicas, como também em outras, os termos tipicamente lúdicos são
também utilizados para designar o combate à mão armada, o que, segundo o autor, é indício
de identidade essencial entre jogo e competição. Para reforçar essa idéia, Huizinga cita uma
18
passagem do Antigo Testamento, no Segundo Livro de Samuel 2:14, que diz: “ Levantem-se
os moços e joguem perante nós (Surgan pueri et ludant coram nobis). Então, se levantaram e
vieram em igual número: doze de Benjamim, da parte de Isbosete, filho de Saul, e doze dos
homens de Davi. Cada um lançou mão da cabeça do outro, meteu-lhe a espada no lado, e
caíram juntamente; donde se chamou aquele lugar Campo das Espadas, que está junto a
Gibeão”. Nessa passagem, conforme tradução apresentada pelo autor em latim, existe uma
identidade entre jogo e combate. Conforme Huizinga, o texto original em hebraico emprega
uma forma do verbo sahaq, que significa “rir”, “fazer algo jocosamente” ou “dançar”.
Huizinga observa também que, em algumas línguas, a palavra “jogo” tem uma
aplicação relacionada à musica. Segundo o autor, algumas línguas européias, principalmente
as germânicas, já em sua fase medieval, designam a maestria musical pela palavra “jogo”.
Tanto que, em alemão, spielmann adquiriu a conotação de músico. Mas, para Huizinga, o elo
entre música e Jogo, deve-se a ligação entre jogo e habilidade; no caso da música, a agilidade
e ordenação no movimento dos dedos.
Huizinga também lembra que a palavra “jogo” é também usada com sentido erótico.
Segundo o autor, aplicações eróticas da palavra “jogo” nas línguas germânicas são
abundantes, como por exemplo, Spielkind, em alemão ou speelkind, em holandês, são usados
para designar uma criança nascida fora do casamento. Mas, para Huizinga a palavra “jogo”,
nesses e em outros casos em que é usada em sentido erótico, não se refere ao ato sexual
propriamente dito, mas ao caminho que a ele conduz, o prelúdio, a preparação para o mesmo.
O que também se observa na exposição feita por Huizinga é que muitas vezes, em
diferentes línguas, a palavra que designa o Jogo aparece dentro de uma espécie de “jogo de
linguagem”, ou então como uma forma derivada, ou ainda metafórica do conceito Jogo.
VI.I. WALTER BENJAMIN: BRINQUEDO, BRINCADEIRAS E JOGOS
Os brinquedos, conforme informa Benjamin (2002), não foram inventados por
fabricantes especializados, mas seu surgimento se deu em oficinas de entalhadores em
madeira, de fundidores de estanho e outros semelhantes. A industrialização especializada de
brinquedos, de acordo com Benjamin, teve seu inicio apenas no século XIX. Antes disso, por
esse tempo, o brinquedo representava apenas um produto secundário nas diversas indústrias
manufatureiras onde era fabricado e isso, afirma Benjamin, explica o estilo e a beleza das
peças mais antigas encontradas em alguns museus e, em alguns casos, ainda no quarto de
19
algumas crianças. O inicio da industrialização especializada de brinquedos teve de enfrentar
as restrições corporativas da época, que limitava a fabricação das indústrias manufatureiras
somente àquilo que competia ao seu ramo. Isso encarecia a produção, pois obrigava varias
manufaturas a dividirem entre si até mesmo os trabalhos mais simples. Desse modo o
comércio, ou a distribuição desses brinquedos, inicialmente, também não era feito por
comerciantes específicos: “assim como se podiam encontrar animais talhados em madeira
com o marceneiro, assim também soldadinhos de chumbo com o caldeireiro, figuras de doce
com o confeiteiro, boneca de cera com o fabricante de velas”. (Benjamin 2002, p. 90).
Como era de se esperar, logo surgiu o comércio intermediário fazendo o papel de
distribuidor. Tal comércio, afirma Benjamin, começou a açambarcar os brinquedos
provenientes das manufaturas e da indústria doméstica e os distribuía no comércio da região.2
Segundo Benjamin, os avanços da Reforma (a Reforma Protestante) na época, obrigaram
muitos artistas a reorganizarem sua produção, voltando-a para a demanda de pequenos objetos
domésticos, voltados à decoração (até então muitos desses artistas produziam apenas para a
igreja, de modo geral, obras de grande formato). Desse modo houve enorme difusão de
pequenos objetos –um mundo de coisas minúsculas- que, conforme Benjamin faziam não só a
alegria dos adultos nas chamadas salas de “arte e maravilhas”, como também a alegria das
crianças nas estantes de brinquedos. A partir daí, a fama das “quinquilharias de Nuremberg”
se espalhou e, como resultado, os brinquedos alemães granjearam status em todo o mundo.
Benjamin, considerando a história do brinquedo, afirma que o formato parece ter uma
importância muito maior do que se poderia supor. O autor afirma que na metade do século
XIX houve uma acentuada queda naquele modo de produção artístico dos brinquedos e que,
como conseqüência, os brinquedos se tornaram maiores, perderam seu elemento discreto,
minúsculo e sonhador, permitindo assim que a criança obtivesse um maior grau de autonomia
em relação aos seus brinquedos, pois sendo eles maiores, não necessitavam mais da presença
constante e vigilante da mãe. Assim a criança já pôde ter seu próprio quarto de brinquedos e
uma estante onde podia guardar seus livros separados dos livros dos adultos. Nessa ótica,
Benjamin aponta um caminho de emancipação do brinquedo, pois “quanto mais a
industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se subtrai ao controle da
família, tornando-se cada vez mais estranho, não só às crianças como também aos pais” (p.
91-92).
2
A região a que se refere Benjamin é a região de Nuremberg especificamente. Entende-se que tal descrição
histórica do surgimento da indústria de brinquedos pode ser estendida a boa parte da Alemanha, pois
Benjamin parte, em seus escritos, da descrição de uma exposição de brinquedos antigos no Märkische Museun
de Berlin, no inicio do século XIX.
20
No entanto para Benjamin a simplicidade do brinquedo moderno que surgia era falsa,
tratando-se de uma intenção subjetiva de reconquistar o vínculo com o brinquedo artesanal
primitivo e com aquela indústria doméstica que o concebera. Essa tentativa da indústria, de
asenhorar-se definitivamente do brinquedo como algo que por natureza lhe pertence,
Benjamin vê como algo lastimável, pois, segundo ele, a madeira seria o material mais
apropriado para a fabricação de brinquedos, isso devido principalmente a sua resistência e sua
capacidade de assimilar cores. Para Benjamin é a questão da técnica e do material que permite
ao observador penetrar fundo no brinquedo. Com referência à criança que brinca, Benjamin
afirma que podemos falar de uma relação antinômica, pois:
Nada mais adequado à criança do que irmanar em suas construções os materiais mais
heterogêneos – pedras, plastilina, madeira, papel. Por outro lado, ninguém é mais
casto com relação aos materiais do que as crianças: um simples pedacinho de madeira,
uma pilha ou uma pedrinha, reúnem na solidez, no monolitismo de sua matéria, uma
exuberância das mais diferentes figuras. E ao imaginar para crianças bonecas de bétula
ou de palha, um berço de vidro ou navios de estanho, os adultos estão na verdade
interpretando ao seu modo a sensibilidade infantil (2002, p. 92).
Para Benjamin, madeira, ossos, argila e tecidos representam, nesse mundo em miniatura
(microcosmo), os materiais mais importantes e, “todos eles já eram utilizados em tempos
patriarcais, quando o brinquedo era ainda a peça do processo de produção que ligava pais e
filhos” (2002, p. 92).
O que significa um brinquedo é, para Benjamin, uma questão que ultrapassa sua
moldura original e leva a uma classificação filosófica do brinquedo. Assim sendo, Benjamin
aponta como um equívoco básico a idéia de que a brincadeira da criança é determinada pelo
conteúdo imaginário do brinquedo. Para Benjamin, dá-se o contrário: “a criança quer puxar
alguma coisa e tornar-se cavalo, quer brincar com areia e tornar-se padeiro, quer esconder-se
e tornar-se bandido ou guarda” (BENJAMIN 2002, p. 93). Na perspectiva de Benjamin, os
instrumentos de brincar arcaicos como a bola, o arco, a roda de penas e a pipa, por exemplo,
desprezam toda a máscara imaginária. Nessa perspectiva, Benjamin afirma que os brinquedos
são tanto mais autênticos quanto menos o parecem ser aos adultos e, quanto mais atraentes
aos sentidos, mais eles se distanciam dos instrumentos de brincar. Pois “quanto mais
ilimitadamente a imitação se manifesta neles, tanto mais se desviam da brincadeira viva”
(202, p. 93). A imitação seria, segundo Benjamin, antes familiar ao jogo/brincadeira do que ao
brinquedo.
Sobre a relação do universo infantil com o mundo adulto, afirma Benjamim:
21
No entanto não chegaríamos certamente á realidade ou ao conceito do brinquedo se
tentássemos explicá-lo tão somente a partir do espírito infantil. Pois se a criança não é
nenhum Robson Crusoé, assim também as crianças não constituem nenhuma
comunidade isolada, mas antes fazem parte do povo e da classe a que pertencem. Da
mesma forma os seus brinquedos não dão testemunho de uma vida autônoma e
segregada, mas são um mudo diálogo de sinais entre a criança e o povo. (2002, p. 9394).
Benjamin percebia em sua época (início do século XX) um despertar do interesse por
aquilo que chamou de brinquedos autênticos. Segundo ele, os adultos usavam, como pretexto,
supostas necessidades infantis para satisfazer suas próprias necessidades pueris, dando a
entender que, ou esses adultos não haviam vivido sua infância de modo adequado, ou a
infância é algo que sempre faz parte do homem em qualquer idade. Essas necessidades
infantis forjadas pelos adultos são, também, na ótica de Benjamin, responsáveis pela
impregnação do mundo da percepção infantil de vestígios das gerações mais velhas com as
quais as crianças vivem. Isso também é verdade, segundo Benjamin, com relação aos jogos,
impossibilitando sua construção em um âmbito de fantasia, “no país feérico de uma infância
ou artes puras” (2002, p. 96). Benjamin afirma que muitos dos brinquedos, mesmo os mais
antigos como a roda de penas, a pipa, a bola e, o arco, teriam sido impostos pelos adultos às
crianças como objeto de culto. A criança, porém, mais tarde, graças a força de sua imaginação
é que os transformou efetivamente em brinquedo. Por essa razão Benjamin acredita que o
brinquedo é sempre um confronto do adulto com a criança, mesmo que esses brinquedos não
imitem os instrumentos dos adultos. Portanto, na ótica de Benjamin, nem todos os brinquedos
são determinados unicamente pela necessidade que move as crianças.
Benjamin coloca que a simplicidade era uma “palavra de ordem” nas oficinas
artesanais que fabricavam brinquedos. Porém, ela devia-se mais ao processo de produção, ou
seja, a técnica que era empregada, do que às formas dos brinquedos, pois as mais refinadas
técnicas, por vezes, também se mostravam presentes em alguns brinquedos em tempos
posteriores. Assim sendo, o brinquedo, segundo Benjamin, é condicionado pela cultura
econômica e também, pela cultura técnica da coletividade. Mas
até hoje o brinquedo tem sido demasiadamente considerado uma criação para a
criança, quando não como criação da criança, assim também o brincar tem sido visto
em demasia a partir da perspectiva do adulto, exclusivamente sob o ponto de vista da
imitação ( BENJAMIM 2002, p. 100).
22
Uma teoria do Jogo, afirma Benjamim, para ser tratada em todo o seu contexto,
deveria se ocupar com a questão dos gestos lúdicos, dos quais os principais poderiam ser
resumidos em três exemplos: I) os jogos de perseguição (gato e rato, por exemplo); II) os
jogos que representam a defesa do ninho pela fêmea (o goleiro e o tenista, por exemplo) e; III)
a luta entre dois animais pela presa, pelo osso ou pelo objeto sexual (o jogo de futebol ou de
pólo, por exemplo). Essa teoria, para Benjamim, teria de investigar o magnetismo que se
estabelece entre todas as partes, no jogo:
Provavelmente, acontece o seguinte: antes de penetrarmos, pelo arrebatamento do
amor, a existência e o ritmo freqüentemente hostil e não mais vulnerável de um ser
estranho, nós já teremos vivenciado desde muito cedo a experiência com ritmos
primordiais, os quais se manifestam, nas formas mais simples, em tais jogos com
objetos inanimados. Ou melhor, é exatamente através destes ritmos que pela primeira
vez nos tornamos senhores de nós mesmos. (BENJAMIN 2002, p. 100-101).
O “mundo dos jogos”, segundo Benjamim, é regido, acima de todas as regras e ritmos
de cada um deles, pela lei da repetição. Tal lei é, para o autor, a “alma” do Jogo, pois o que
mais deixa a criança feliz no jogo é a idéia do “mais uma vez”. Essa obscura compulsão pela
repetição é, para Benjamin, tão poderosa e tão ardilosa quanto o impulso do amor. Mesmo
porque “toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de
todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou
o impulso inicial” (BENJAMIN 2002, p. 1001). A ação da criança está, segundo Benjamin,
baseada nesse impulso e para ela não basta uma repetição, ela quer sempre experimentar
novamente, centenas e milhares de vezes:
O adulto, ao narrar uma experiência, alivia seu coração dos horrores, goza duplamente
uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma
vez do início. Talvez resida aqui a mais profunda raiz para o duplo sentido nos
“jogos” alemães3: repetir o mesmo seria o elemento verdadeiramente comum. A
essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”,
transformação da experiência mais comovente em hábito (2002, p. 102. Grifos do
autor; nota minha).
Para Benjamin, a origem de todo o hábito como comer, vestir-se, lavar-se, tem sua origem no
jogo, e é através do jogo que se deve inculcar, de maneira lúdica, nos pequenos, tais hábitos.
Como o hábito entra na vida através da brincadeira, mesmo quando ele se torna enrijecido,
ainda traz em se bojo, afirma Benjamim, um resquício de brincadeira:
3
Spiele no alemão tem o sentido de jogo e também de brincadeira. Talvez por isso Benjamin fale em duplo
sentido nos “jogos” alemães.
23
Formas petrificadas e irreconciliáveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro
terror, eis o que são os hábitos. E mesmo o pedante mais insípido brinca, sem o saber,
de maneira pueril, não infantil, brinca ao máximo quando é pedante ao máximo.
Acontece somente que ele não se lembra de suas brincadeiras [...]. Mas quando o
poeta moderno diz que para cada um existe uma imagem em cuja contemplação o
mundo inteiro submerge, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma
velha caixa de brinquedos? (2002, p. 102).
Entende-se, assim, que para Benjamin, o Jogo está na gênese da maioria das
características humanas.
24
VII. PILARES DA EDUCAÇÃO: VIGOTSKY E PIAGET
VII.I. VIGOTSKY: O JOGO COMO IMAGINAÇÃO E GÊNESE DAS OPERAÇÕES
COGNITIVAS
Conforme Vigotsky (2007), o desenvolvimento cognitivo é um processo para adquirir
cultura, e ao propor a utilização dos jogos infantis como recurso pedagógico fica clara sua
visão da relação entre “jogo” e desenvolvimento cognitivo. Por isso mesmo, o jogo é, para
Vigotsky, uma questão crucial para a compreensão do desenvolvimento psíquico da criança.
Para Vigotsky, o jogo não pode ser definido simplesmente como algo que dá prazer a
criança, pois existem, segundo ele, jogos nos quais a atividade não é agradável em si, e que só
dão prazer à criança se o resultado for aprazível. Como exemplo, Vigotsky aponta que os
jogos esportivos só são agradáveis à criança quando o resultado lhe é favorável. Segundo
Vigotsky, o que caracteriza o jogo, além da ação, é a presença de um significado, diferente do
original, conferido aos objetos do jogo. Assim, no jogo:
A ação surge das idéias e não das coisas: um pedaço de madeira torna-se um boneco e
um cabo de vassoura torna-se um cavalo. A ação regida por regras começa a ser
determinada por idéias e não pelos objetos (VIGOTSTKY 2007, p. 115).
Esse significado, afirma Vigotsky, não precisa ser, necessariamente, similar ao objeto
(significante), mas precisa ter uma relação com o gesto efetuado com ou a partir do objeto.
Para o autor, as ações no Jogo também não têm seu significado original, mas são revestidas de
um novo.
Vigotsky também chama a atenção para a seriedade do jogo para a criança com menos
de três anos de idade, pois esta, segundo ele, não discerne a situação imaginária da real. Nesta
idade é o objeto que determina o jogo e na medida em que a criança vai crescendo o
significado se sobrepõe ao próprio objeto. Há ainda, segundo Vigotsky, um terceiro momento,
no qual as regras do jogo é que passam a predominar sobre o objeto e sobre a significação
deste. Nesse momento as regras, que já estavam implicitamente presentes nos momentos
anteriores, tornam-se explicitas e sua quebra se torna flagrante e não é mais aceita pela
criança. As aquisições da criança no jogo serão, segundo Vigotsky, a base das futuras ações
da mesma. Assim,
25
Para Vygotsky, a imaginação em ação ou brinquedo é a primeira possibilidade de ação
da criança numa esfera cognitiva que lhe permite ultrapassar a dimensão perceptiva
motora do comportamento. (DIAS, 2001, p. 51)
Conforme Vigosky, o Jogo é um mundo imaginário, um mundo ilusório, onde a
criança pode realizar os desejos que lhe são irrealizáveis no mundo real. Essa situação
imaginária é que diferencia o Jogo de outras atividades que a criança realiza.
A imaginação é um processo psicológico novo para a criança; representa uma forma
especificamente humana de atividade consciente que não está presente na consciência
das crianças muito pequenas e está ausente nos animais. Ela surge primeiro em forma
de jogo, que é a imaginação em ação (VIGOTSKY, 2007, p. 109).
Ratificando ainda a idéia de identidade entre Jogo e imaginação, Vigotsky coloca que:
Como todas as funções da consciência ela surge originalmente da ação. O velho
adágio de que o brincar da criança é a imaginação em ação deve ser invertido:
podemos dizer que a imaginação nos adolescentes e adultos é o brinquedo sem ação
(Vigotsky 2007, p. 109).
Vigotsky afirma que a existência de uma situação imaginária no jogo sempre foi
reconhecida. Porém, para o autor, a situação imaginária nunca era vista como uma
característica definidora do Jogo, antes era vista como um atributo de subcategorias
específicas do brincar (ou do jogar), o que levava, segundo o autor, a uma visão do Jogo como
algo simbólico. Tal visão, segundo Vigotsky, acarreta o perigo de o Jogo ser considerado
como uma atividade semelhante a álgebra, ou seja, o Jogo seria considerado como um sistema
de signos que generalizam a realidade sem nada que o caracterize especificamente. Mas, para
Vigotsky, se assim fosse, faltaria demonstrar a motivação do Jogo bem como suas
circunstâncias e o papel do Jogo no desenvolvimento posterior da criança.
Segundo Vigotsky, o brincar preenche necessidades que mudam de acordo com a
idade da criança e que brinquedos que interessam a um bebê, por exemplo, deixam de
interessar a uma criança mais velha.
Em Vigotsky encontramos que as situações imaginárias em qualquer forma de jogo já
contém regras de comportamento. Segundo o autor, a criança só pode se comportar em uma
situação imaginária seguindo regras. A referência que Vigotsky (2007, pp 110-111) faz de
Suelly, sobre a possibilidade de coincidência entre Jogo e realidade, aproxima bastante seu
pensamento da idéia de Piaget, onde o jogo aparece como uma forma de assimilação do real
conforme as necessidades do “eu” da criança. Nesse sentido a criança vai aos poucos,
26
internalizando as leis do mundo físico bem como as regras de comportamento da sociedade.
Vigotsky afirma que quando a situação imaginária deixa de existir no jogo, restam apenas as
regras, regras estas que têm sua origem na própria situação imaginária (não as regras préformuladas que podem mudar durante o jogo). Outrossim, todo jogo com regras, para
Vigotsky deve contém, também, uma situação imaginária. Como exemplo Vigotsky cita o
jogo de xadrez, onde para o autor, as peças só podem se mover de maneiras determinadas,
sendo que proteger e capturar peças são puramente conceitos do xadrez, o que constitui uma
situação imaginária:
O mais simples jogo com regras transforma-se imediatamente em uma situação
imaginária, no sentido em que assim que o jogo é regulamentado por certas regras,
várias possibilidades de ação são eliminadas (VIGOTSKY 2007, p. 112).
Vigotsky afirma ainda que toda situação imaginária contém regras de forma oculta e
todo o jogo com regras contém uma situação imaginária, também de forma oculta, e é a
passagem de uma forma de jogo para a outra que delineia a evolução dos jogos do infante.
Vigotsky destaca a enorme influência do jogo no desenvolvimento da criança, e coloca
que o envolvimento em uma situação imaginária é o que libera a criança das restrições
impostas pelo ambiente imediato. Outrossim, ao destacar que para uma criança de menos de
três anos é essencialmente impossível o envolvimento em uma situação imaginária, afirma
que suas atividades são determinadas de modo considerável pelas condições em que sua
atividade ocorre. Na situação imaginária é que, segundo Vigotsky, a criança aprende a agir em
uma esfera cognitiva e passa a depender das motivações e tendências internas e não mais em
dependência apenas do que vê e dos incentivos oferecidos pelos objetos externos.
Na perspectiva de Vigotsky, os objetos, em princípio, têm uma força motivadora
determinante sobre a ação das crianças muito pequenas:
Nessa idade, a percepção não é, em geral, um aspecto independente, mas, ao contrário,
é o aspecto integrado de uma reação motora. Toda a percepção é um estímulo para a
atividade. Uma vez que uma situação é comunicada psicologicamente através da
percepção, e desde que a percepção não está separada da atividade motivacional e
motora, é possível que a criança, com sua consciência estruturada dessa maneira, seja
restringida pela situação em que se encontra (VIGOTSKY 2007, p. 114).
Já no jogo, a criança começa, afirma Vigotsky, a agir de modo diferente em relação
àquilo que vê e os objetos perdem sua força determinadora sobre ela. Nesta situação a criança
aprende a dirigir sua atenção para além da percepção imediata, ou seja, para o significado
27
desta. Para Vigotsky, o fato de haver uma fusão muito íntima entre aquilo que se vê e o seu
significado é que impossibilita a criança muito pequena a separar aquilo que vê de seu
respectivo significado. A divergência entre esses dois campos tem seu início, afirma
Vigotsky, na idade pré-escolar.
Vigotsky afirma que, no jogo, a ação está ligada às idéias e não às coisas, pois nele o
pensamento está separado do objeto e ligado ao seu significado (significado no jogo). Assim,
a ação regida por regras surge não mais determinada pelos objetos, mas pelas idéias. Essa é
uma mudança na esfera de ação que surge paulatinamente. O sustentáculo dessa mudança é,
para Vigotsky, o objeto utilizado no jogo (o brinquedo). Como a criança, em principio, ainda
não consegue separar o pensamento do objeto real, ela precisa de um significante que tenha
alguma coisa em comum com o significado a ele atribuído: um cabo de vassoura pode
significar um cavalo, ao passo que um palito de fósforo não pode; isso porque a criança pode
sentar-se sobre aquele ao passo que sobre este isso não é possível. Nessa fase de transição,
não é qualquer objeto que pode ser usado pela criança para qualquer de seus jogos. A criança
pode usar qualquer objeto, mas cada jogo comporta/exige objetos específicos, que tenham
certa propriedade que facilite a relação entre eles e seu significado no jogo.
Um símbolo é um signo, mas o cavalo de vassoura não funciona como um signo de
um cavalo para a criança, a qual considera ainda a propriedade das coisas, mudando,
no entanto, seu significado. No brinquedo o significado torna-se o ponto central e os
objetos são deslocados de uma posição dominante para uma posição subordinada
(VIGOTSKY 2007, p. 116).
Portanto, para Vigotsky, o brinquedo, suporte do Jogo, tem caráter de transição, ou
seja, favorece a saída da criança do estado de restrições puramente situacionais, característico
da primeira infância, facilitando sua passagem para o modo de pensar adulto que pode ser
totalmente desvinculado de situações reais. Em um primeiro momento, afirma Vigotsky, a
criança faz isso de forma inconsciente, depois passa a realizar tais atos conscientemente.
Vigotsky também coloca que, em principio, na busca pelo prazer oriundo do Jogo a
criança tende a seguir o caminho mais fácil, o caminho do menor esforço, mas aos poucos ela
vai aprendendo que é seguindo as regras do jogo (mormente o caminho mais difícil) o
caminho para o prazer ao qual o Jogo está unido, e que ela só consegue chegar lá mediante a
renúncia de suas ações impulsivas:
Continuamente a situação de brinquedo exige que a criança aja contra seu impulso
imediato. A cada passo a criança se vê entre um conflito entre as regras do jogo e o
que ela faria, se pudesse, de repente, agir espontaneamente. No jogo ela age de
28
maneira contrária a que gostaria de agir. O maior autocontrole da criança ocorre na
situação de brinquedo. Ela mostra o máximo de força de vontade quando renuncia a
uma atração imediata do jogo (como por exemplo, uma bala que, pelas regras, é
proibido comer, uma vez que se trata de algo não comestível). Comumente, uma
criança experimenta subordinação às regras ao renunciar a algo que quer, mas aqui, a
subordinação a uma regra e a renúncia de agir sob impulsos imediatos são os meios de
atingir o prazer máximo (VIGOTSKY 2007, p118).
Desse modo, afirma Vigotsky, a regra torna-se um desejo pois satisfazer a regra é uma
fonte de prazer, e esse é um atributo essencial do brinquedo. Por fim a regra sempre vence,
pois o prazer está condicionado à ela e, por isso, ela é capaz de vencer até mesmo o impulso
mais forte, capaz de incutir autocontrole e submissão às leis da natureza (natureza da criança),
pois:
Tal regra é uma regra interna, uma regra de autocontenção e autodeterminação, como
diz Piaget, e não uma regra que a criança obedece à semelhança de uma lei física. Em
resumo, o brinquedo cria na criança uma nova forma de desejos, ensina-a a desejar
relacionando seus desejos a um “eu” fictício, ao seu papel no jogo e suas regras. Dessa
maneira as maiores aquisições de uma criança são conseguidas no brinquedo, ações
que no futuro tornar-se-ão seu nível básico de ação e moralidade (VIGOTSKY 2007,
p. 118).
Conforme Vigotsky, do mesmo modo que a operação com significados de coisas desenvolve
o pensamento abstrato, a operação com significados de ações desenvolve a vontade, a
capacidade de fazer escolhas: “No brinquedo uma ação substitui outra ação assim como um
objeto substitui outro objeto” (2007, p. 120)
Ao contrário do que sugerem alguns autores, para Vigotsky, o fundamento do
comportamento da criança no dia-a-dia é oposto ao fundamento de seu comportamento no
Jogo. Enquanto neste a ação está subordinada ao significado, naquele a ação é que domina o
significado. Por isso o autor afirma que “é absolutamente incorreto considerar o brinquedo
como um protótipo e forma predominante da atividade do dia-a-dia da criança” (2007, p.
120). Segundo Vigotsky, o Jogo não é outro mundo, mundo da criança, mesmo porque ele
não é a forma predominante de atividade na criança. Assim, não existe uma “realidade de
brincadeira” (mundo do faz-de-conta ou da ressignificação) referente ao universo infantil e
uma “realidade séria” referente ao mundo adulto. Existe, segundo Vigotsky, apenas uma
realidade e a lógica dominante é a “lógica real”, ou seja, a lógica do mundo adulto e não há,
no universo infantil uma lógica dos desejos onde o ímpeto de satisfazê-los domina a vida da
criança. Para Vigotsky, não obstante o significado atribuído às ações e objetos pela criança no
jogo, ela sabe que no mundo real, ou seja, na cultura adulta na qual está inserida e que
também é a sua, tais ações e objetos tem outro significado. Vigotsky:
29
Mas a transferência ubíqua do comportamento de brinquedo para a vida real só pode
ser considerada como um sintoma doentio. Comportar-se numa situação real como
numa situação imaginária é o primeiro sinal de delírio. Situações de brinquedo na vida
real só são encontradas habitualmente num tipo de jogo em que as crianças brincam
aquilo que de fato estão fazendo, criando, de forma evidente, associações que
facilitam a execução de uma ação desagradável (como, por exemplo, quando as
crianças não querem ir para a cama e dizem: “Vamos fazer de conta que é noite e que
temos de ir dormir”) (2007, pp 121-122).
Para Vigotsky, pensar que o Jogo é a atividade predominante na vida das crianças em
idade pré-escolar é supor que elas não têm que satisfazer as necessidades básicas da vida e
podem, assim, viver à procura de prazer. Pensar assim, afirma o autor, seria supor que o
comportamento de uma criança é sempre guiado pelo significado e que ela nunca é capaz de
comportar-se de modo espontâneo. Mas, para Vigotsky, embora seja possível estar
estritamente subordinado às regras no jogo, na vida real isso é impossível. Conforme
Vigotsky,
[...] o brinquedo cria uma zona de desenvolvimento proximal da criança. No
brinquedo a criança sempre se comporta além do comportamento habitual de sua
idade, de seu comportamento diário; no brinquedo é como se ela fosse maior do que é
na realidade. Como no foco de uma lente de aumento, o brinquedo contém todas as
tendências do desenvolvimento, sob forma condensada, sendo ele mesmo, uma grande
fonte de desenvolvimento (VIGOTSKY 2007, p. 122).
Assim, o brinquedo se constitui no mais alto nível de desenvolvimento pré-escolar,
pois nele aparecem: a ação na esfera imaginativa; a criação das intenções voluntárias; além
dos planos da vida real e as motivações volitivas. Desse modo, o desenvolvimento da criança
se dá, essencialmente, através da atividade do jogo, onde começando com uma situação
imaginária muito próxima do real, que se assemelha a uma reprodução, como no caso em que
a criança brinca de boneca repetindo quase com exatidão o que sua mãe faz (nesse primeiro
momento o jogo está, para Vigotsky, mais voltado à memória do que a uma situação
imaginária nova), desenvolvendo-se, depois, sempre em direção a um propósito.
É incorreto conceber o brinquedo como uma atividade sem propósito. Nos jogos
atléticos, pode-se ganhar ou perder; numa corrida pode-se chegar em primeiro,
segundo ou em último lugar. Em resumo, o propósito decide o jogo e justifica a
atividade (VIGOTSKY 2007, p. 123).
Nessa ótica, todo jogo tem um objetivo final que é o estímulo que leva a criança a
jogar. Na corrida, por exemplo, coloca Vigotsky, a criança pode experimentar pouco prazer
funcional, já que para ela correr pode ser doloroso e, além disso, ela também pode ser
30
ultrapassada por alguém. Nesse tipo de jogo, afirma Vigotsky, o objetivo é vencer, assim
como em todos os jogos esportivos, e é somente vencendo que o se obtém o prazer buscado
no Jogo e, não se pode vencer sem seguir as regras do jogo. Vigotsky:
No final do desenvolvimento surgem as regras, e, quanto mais rígidas elas são,
maior a exigência de atenção da criança, maior a regulação da atividade da
criança, mais tenso e agudo torna-se o brinquedo. Correr simplesmente, sem
propósitos ou regras, é entediante e não tem atrativo para a criança
(VIGOTSKY 2007, p. 122).
Vigotsky reconhece que, não obstante a criança ser livre para determinar suas ações no
Jogo, em certo sentido essa liberdade também é ilusória, pois está sempre subordinada aos
significados dos objetos do Jogo (os brinquedos), e a ação da criança não pode deixar de lado
esse significado.
Essencialmente, o Jogo, para Vigotsky, cria uma nova relação entre situações no
pensamento e situações reais, ou seja, entre o campo do significado e o campo da percepção
visual. A criação de uma situação imaginária é, para Vigotsky, um meio para desenvolver o
pensamento abstrato e “o desenvolvimento correspondente de regras conduz a ações com base
nas quais se torna possível a divisão entre trabalho e brinquedo” (VIGOTSKY 2007, p. 124).
Com relação à seriedade do jogo para a criança, Vigotsky afirma:
Tal como disse, em sentido figurado, um pesquisador, para uma criança com menos de
três anos de idade o brinquedo é um jogo sério, assim como o é para um adolescente,
embora, é claro, num sentido diferente da palavra; para uma criança muito pequena,
brinquedo sério significa que ela brinca sem separar a situação imaginária da situação
real (VIGOTSKY 2007, p. 124).
Já na idade escolar o Jogo assume, segundo Vigotsky, um aspecto mais voltado às
atividades do tipo atlético, preenchendo um papel específico no desenvolvimento da criança
dessa idade.
VII.II. PIAGET: O JOGO COMO INSTRUMENTO DE ASSIMILAÇÃO DA
REALIDADE
Para
Piaget
(1986;
1990),
os
jogos
estão
diretamente
relacionados
ao
desenvolvimento cognitivo. Num pensamento que, em partes, se assemelha ao de Vigotsky,
31
Piaget afirma que a representação em atos (através do jogo simbólico), marca a passagem da
inteligência sensório-motora, baseada nos sentidos e na motricidade, à inteligência simbólica
(inteligência representativa mediada por símbolos subjetivos) que posteriormente se
transformará em inteligência operatória mediada por símbolos culturais.
Piaget também distingue três tipos básicos de jogos, a saber: o jogo de exercício; o
jogo simbólico e; o jogo de regras, cada qual ocorrendo em um estágio diferente do
desenvolvimento infantil.
De fato a própria presença do atraso demonstra a existência de três níveis, que se hão
de distinguir, e não apenas dois como o faz Wallon quando se limita a sucessão “ do
ato ao pensamento”: há, no principio, o nível sensório motor, de ação direta sobre o
real; há o nível das operações, desde os 7-8 anos, apoiadas igualmente nas
transformações do real, mas por ações interiorizadas e agrupadas em sistemas
coerentes e reversíveis (reunir e dissociar, etc.); e entre os dois há, de 2-3 a 6-7 anos,
um nível que não é de simples transição, pois, se progride seguramente em relação à
ação imediata, que a função semiótica permite interiorizar, é também assinalado, sem
dúvidas, por obstáculos sérios e novos, visto que são precisos 5 ou 6 anos para a
passagem da ação à operação. (PIAGET e INHELDER 1986, p. 81).
O jogo de exercício, segundo Piaget, não comporta nenhum simbolismo e nenhuma
técnica especificamente lúdica, mas consiste apenas na repetição, pelo prazer, de atividades
adquiridas e, sua finalidade é a adaptação. O prazer, aqui, está relacionado ao prazer de ser
causa de um fenômeno e ao prazer da afirmação de um saber recentemente adquirido. O jogo
simbólico, conforme Piaget, se caracteriza pelo início dos jogos de construção que, partindo
do simbolismo lúdico, simbolismo mais direto que permite reviver um acontecimento não
usando apenas uma evocação mental, constroem adaptações (construções mecânicas, etc.) ou
soluções de problemas (conflitos afetivos, etc.) e criações inteligentes. Os jogos de regras,
conforme Piaget, são aqueles que se transmitem socialmente entre as crianças, e de acordo
com o progresso da vida social da criança têm sua importância aumentada.
Nessa ótica, Piaget relaciona o Jogo ao nascimento da representação, base da
transformação da inteligência em pensamento, dando ênfase ao jogo simbólico característico
da fase intermediária entre o nível de ação motora e o nível de operações concretas do
pensamento.
A representação, afirma Piaget, é uma função simbólica, ou seja, uma
capacidade de diferenciação entre significantes e significados, o que permitiria a evocação,
através de significantes, de significados que não estejam, no momento, ao alcance dos
sentidos do sujeito.
A gênese da imaginação, para Piaget, está no Jogo, que é um instrumento através do
qual a criança, primeiro, enfrenta a realidade. Conforme Piaget, no Jogo a interação da criança
32
com os objetos não depende da natureza dos mesmos, antes o que importa é a função atribuída
pela criança aos objetos. O objeto desempenhará, no Jogo, a função que lhe for atribuída,
podendo ser essa sua função real ou não: um pedaço de madeira pode ter, no Jogo, tanto a
função de um pedaço de madeira, quanto à função de um trem ou um avião. Assim, o jogo
amplia as possibilidades de ação e compreensão do mundo, ou seja, abre as portas ao
conhecimento na medida em que, sendo um setor de atividade que permite à criança assimilar
a realidade de acordo com as suas necessidades (necessidades internas), faz com que o
conhecimento não esteja restrito as coisas que a criança tem sob seus sentidos, possibilitando
a imaginação de coisas que não lhe estejam próximas, sua representação, bem como a
associação de idéias. Assim, o jogo simbólico é responsável por uma fase no desenvolvimento
da inteligência na criança, onde a assimilação se sobrepõe a acomodação e, através dele toda a
experiência vivida pela criança é consolidada em maior ou em menor grau.
Obrigada a adaptar-se sem cessar a um mundo social de mais velhos, cujos interesses
e cujas regras lhe permanecem exteriores, e a um mundo físico, que ela ainda mal
compreende, a criança não consegue, como nós, satisfazer as necessidades afetivas e
até intelectuais do seu eu nessas adaptações, as quais para os adultos são mais ou
menos completas, mas que permanecem para ela tanto mais inacabadas quanto mais
jovem for. É, portanto, indispensável ao seu equilíbrio afetivo e intelectual que possa
dispor de um setor de atividade cuja motivação não seja a adaptação ao real, senão,
pelo contrário, a assimilação do real ao seu eu, sem coações nem sansões; tal é o jogo,
que transforma o real por assimilação mais ou menos pura às necessidades do eu, ao
passo que a imitação (quando constitui fim em si mesma) é acomodação mais ou
menos pura aos modelos exteriores e a inteligência é equilíbrio entre assimilação e
acomodação. (PIAGET e INHELDER 1986, pp 51-52).
Os signos verbais se tornam, segundo (1986), uma das formas mais representativas de
significantes tão logo a criança aprenda a falar. Por essa razão, para Piaget e Inhelder, o
principal instrumento de adaptação social da criança é a linguagem. Mas a linguagem, por ser
de natureza coletiva e não inventada pela criança, não é o melhor instrumento para a
transmissão de necessidades e experiências por parte da mesma. Por isso a necessidade,
apontada pelos autores, da existência de um meio de expressão próprio da criança, ou seja, um
sistema de significantes que ela mesma constrói, e que lhe seja maleável:
Tal é o sistema de signos próprios do jogo simbólico, tomados de empréstimo à
imitação a título de instrumentos, mas a uma imitação não procurada por si mesma e
simplesmente utilizada como meio evocador a serviço da assimilação lúdica: tal é o
jogo simbólico, que não é apenas assimilação do real ao eu, como o jogo em geral,
mas assimilação assegurada (o que a reforça) por uma linguagem simbólica construída
pelo eu e modificável a medida das necessidades (PIAGET e INHELDER 1986, p.52).
33
Para Piaget e Inhelder, o jogo simbólico pode servir para a solução de conflitos, para a
compensação de necessidades não satisfeitas, a inversão de papeis (obediência e autoridade) e
para a liberação e extensão do eu.
Karl Goos (apud Piaget e Inhelder 1986) foi um dos primeiros a apontar que o Jogo,
tanto das crianças como dos animais, tem significado funcional e não é apenas um
passatempo. Para Goos (apud KISHIMOTO 2001) o Jogo é um pré-exercício das atividades
que o individuo exercerá no futuro, sendo uma necessidade biológica, um instinto e,
psicologicamente, um ato voluntário.
34
VIII. HUIZINGA: O JOGO COMO ELEMENTO ESPIRITUAL E SEU
CARÁTER ESTÉTICO
Para Huizinga (2007), o Jogo é uma categoria que pode ser considerada um dos
elementos espirituais básicos da vida e sua existência é anterior à cultura. Isso porque,
segundo o autor, toda a definição de cultura pressupõe a existência da sociedade humana e
esta, por sua vez, não acrescentou nenhuma característica essencial á idéia geral de “jogo”.
Para o autor:
O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e
determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas,
mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um
sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida
cotidiana” (HUIZINGA 2007, p. 33. Grifo do autor).
Para Huizinga o Jogo é uma atividade tanto humana como de animais. Em ambos os
casos Huizinga afirma que o Jogo pode ser observado como uma atividade social, como
composto de regras, permeado por um elemento simbólico e gerador de prazer para os
jogadores. Também entre os animais, afirma o autor, existem jogos mais simples e jogos mais
complexos. Huizinga:
Desde já encontramos aqui um aspecto muito importante: mesmo em suas formas
mais simples, ao nível animal, o jogo é mais que um fenômeno fisiológico, ou um
reflexo psicológico. Ultrapassa os limites da atividade puramente física ou biológica.
É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existem
algumas coisas em “jogo” que transcendem as atividades imediatas da vida e confere
um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa. Não se explica nada chamando
“instinto” ao princípio ativo que constitui a essência do jogo; chamar-lhe “espírito” ou
“vontade” seria dizer demasiado. Seja qual for a maneira como o considerem, o
simples fato de o jogo encerrar um sentido implica a presença de um elemento não
material em sua própria essência (2007, p. 04. Grifos do autor)
Segundo Huizinga, todas as teorias que definem a origem e o fundamento do Jogo,
seja: como descarga da energia vital superabundante; como satisfação de um instinto de
imitação; como uma necessidade de distensão; preparação do jovem às atividades sérias da
vida adulta; um exercício de autocontrole; um impulso inato para exercer determinada
faculdade; desejo de dominar ou competir; um escape para impulsos prejudiciais; uma abreação, a realização do desejo etc., todas partem do pressuposto de que o Jogo tenha uma
35
finalidade biológica e buscam o porquê e os motivos do Jogo. Mas para Huizinga, todas as
respostas apresentadas não podem, se não, oferecer soluções parciais ao problema do que seja
o Jogo. “Se alguma delas fosse realmente decisiva, ou eliminaria as outras ou englobaria todas
em uma unidade maior” (HUIZINGA 2007, p. 5). Para Huizinga, todas essas teorias ao
abordarem diretamente o Jogo, esquecem seu caráter profundamente estético. A explicação
que deve ser buscada, segundo o autor é o porquê do prazer no Jogo, já que devido à ele o
jogador se deixa absorver inteiramente com o jogo, como por exemplo, quando uma multidão
de pessoas é levada ao delírio por uma partida de futebol. Mas isso, segundo Huizinga, não
pode ser explicado por abordagens biológicas, pois a natureza bem poderia ter nos oferecido
todas essas funções mediante exercícios e reações puramente mecânicas.
Também, para Huizinga, o Jogo não pode ter seu fundamento na racionalidade, pois o
Jogo, para o autor, é uma categoria absolutamente primaria da vida, tanto de homens como de
animais, não podendo, portanto, ser ligado diretamente ao elemento racional. Assim:
A existência do jogo não está ligada a qualquer grau determinado de civilização, ou a
qualquer concepção do universo. Todo ser pensante é capaz de entender á primeira
vista que o jogo possui uma realidade autônoma, mesmo que sua língua não possua
um termo geral capaz de defini-lo. A existência do jogo é inegável. É possível negar,
se se quiser, quase todas as abstrações: a justiça, a beleza, a verdade, o bem, Deus. É
possível negar-se a seriedade, mas não o jogo (HUIZINGA 2007, p. 6).
Nessa perspectiva, num mundo regido por forças cegas, o Jogo seria absolutamente
supérfluo. Assim, o Jogo só é possível, pensável e compreensível em um mundo não
determinado. Huizinga coloca o Jogo como tendo um caráter irracional e, o fato de o homem
jogar e ter consciência disso mostra que ele é mais do que apenas um ser racional, mas tem
uma natureza “supralógica”: “Reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois
o Jogo, seja qual for sua essência, não é material. Ultrapassa, mesmo no mundo animal, os
limites da realidade física” (HUIZINGA 2007, p. 6).
Huizinga procura tratar o Jogo, não como ele aparece na vida do animal ou da criança,
mas como função da cultura, ou seja, o Jogo como uma forma específica de atividade, por seu
caráter significante. O Jogo, conforme Huizinga, marca inteiramente as grandes atividades
que caracterizam o ser humano, entre elas a linguagem que é, segundo o autor, o supremo
instrumento que o homem forjou com o intuito de se comunicar. Huizinga:
É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em
resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na
criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de
36
designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as
coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda
metáfora é jogo de palavras (HUIZINGA 2007, p. 7).
Huizinga, apesar de reconhecer que o Jogo é uma atividade não material, coloca que
ele não está ligado a nenhuma função moral, não sendo possível, portanto, atribuir-lhe noções
de vicio ou virtude. É nessa ótica, dada a impossibilidade de relacionar o Jogo às categorias
do bem ou da verdade, que Huizinga procura incluí-lo no domínio da estética. Segundo o
autor, o Jogo tem sempre uma tendência a assumir elementos de beleza e, a vivacidade e a
graça estão ligadas até mesmo às formas mais primitivas de jogo. Além disso:
Em suas formas mais complexas o jogo está saturado de ritmo e de harmonia, que são
os mais nobres dons de percepção estética de que o homem dispõe. São muitos, e bem
íntimos os laços que unem o jogo e a beleza (HUIZINGA 2007, pp 9-10).
Para Huizinga, a característica lúdica, atributo dos jogos mais primitivos, tanto das
crianças como dos animais, resiste à análise, ao passo que o Jogo em sua forma mais elevada,
como elemento da cultura, é mais fácil de ser analisado.
Huizinga define três características principais do Jogo, a saber: liberdade; brincadeira
e; isolamento. Conforme o autor, o Jogo é, sobretudo, uma atividade voluntária e somente
nessa condição livre ele é Jogo. Doutro modo torna-se outro tipo de atividade, não mais Jogo.
Segundo Huizinga, “as crianças e os animais brincam porque gostam de brincar, e é
precisamente em tal fato que reside sua liberdade” (2007, p. 10), assim sendo, o autor não
aceita a idéia de que as crianças ou os animais são levados a jogarem pela força de um instinto
natural ou pela necessidade de desenvolvimento de certas faculdades físicas e seletivas.
Seja como for, para o individuo adulto e responsável o jogo é uma função que
facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade
urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade
(HUIZINGA 2007, p. 7).
De acordo com Huizinga, o fato de que o Jogo, de modo geral, é praticado nas horas de ócio e
que pode ser suspenso ou adiado a qualquer momento, mostra que ele não é uma necessidade
nem física, nem moral, a não ser nos casos em que está ligado ao culto ou a algum ritual como
função cultural.
Portanto, para Huizinga, a característica do Jogo como brincadeira deve-se ao fato de
que, segundo Huizinga, ele ocorre em uma dimensão paralela à vida real. Huizinga:
37
[...] o jogo não é a vida “corrente” nem vida “real”. Pelo contrário, trata-se de uma
evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade com orientação própria.
Toda criança sabe perfeitamente quando está “só fazendo de conta” ou quando está
“só brincando” (HUIZINGA 2007, p. 11. Grifos do autor).
Entretanto, para Huizinga, isso não significa que o Jogo não possa assumir ares de
seriedade, pois o jogador pode, por alguns momentos, ser absorvido totalmente pelo Jogo.
Mas quando acaba o jogo “o apito do árbitro quebra o feitiço e a vida „real‟ recomeça”
(HUIZINGA 2007, p. 14. Grifo do autor).
Como, de acordo com Huizinga, o Jogo se situa fora da vida “real”, ele também se
situa fora da dimensão de satisfação imediata das necessidades e dos desejos, interrompendo
esse mecanismo. Desse modo o Jogo é uma espécie de intervalo em nossa vida “real”, não
obstante, Huizinga admitir uma qualidade de distensão no Jogo, o que, conforme ele salienta,
o torna parte da vida “real”, pois se torna culturalmente útil:
Ornamenta a vida, ampliando-a, e nesse sentido torna-se uma necessidade tanto para o
indivíduo quanto para a sociedade, devido ao sentido que encerra, a sua significação, a
seu valor expressivo, a suas associações espirituais e sociais, em resumo, como função
cultural. (HUIZINGA 2007, p. 12).
A característica de isolamento apontada por Huizinga deve-se ao fato de que o Jogo se
distingue da vida “real” também pelo local que ocupa e pela sua duração, isto é, o Jogo é
limitado no tempo e no espaço: “o jogo inicia-se e, em um determinado tempo, „acabou‟.
Joga-se até que se chegue a um certo fim” (HUIZINGA 2007, p. 12). Mas, depois de acabado,
afirma Huizinga, o Jogo permanece na memória como uma “criação nova do espírito”, o que
lhe permite ser transmitido, transformando-se desse modo em tradição, em fenômeno cultural,
possibilitando sua repetição em outro momento. Também:
Uma de suas qualidades fundamentais reside nessa capacidade de repetição, que não
se aplica apenas ao jogo em geral, mas também a sua estrutura interna. Em quase
todas as formas mais elevadas de jogo os elementos de repetição e de alternância [...]
constituem como que o fio e a tessitura do jogo (HUIZINGA 2007, p. 13).
Huizinga afirma que ainda mais explicita que a limitação do Jogo no tempo é sua
limitação no espaço. Para o autor, existe sempre um “campo de jogo” previamente limitado
dentro do qual o Jogo se processa e cujos limites não pode escapar. Huizinga:
38
A arena, a mesa do jogo, o círculo mágico, o templo, o palco, a tela o campo de tênis,
o tribunal etc., têm todos a forma e a função de terrenos de jogo, isto é, lugares
proibidos, isolados fechados, sagrados, em cujo interior se respeitam determinadas
regras. Todos eles são mundos temporários dentro de um mundo habitual, dedicados à
prática de uma atividade especial (HUIZINGA 2007, p. 13).
Dessa forma, Huizinga faz uma aproximação entre Jogo e culto, afirmando algumas
características semelhantes entre esses dois fenômenos, cuja forma, segundo o autor, é a
mesma. O “terreno do jogo”, previamente delimitado, pode ser delimitado não apenas de
maneira material, mas também de maneira imaginária e, tal delimitação pode ser tanto
deliberada quanto espontânea. Do mesmo modo, Huizinga coloca o culto como uma forma de
jogo, pois, para o autor, a ludicidade pode estar presente nas formas de ação mais elevadas.
Nessa ótica, a própria criança joga e brinca com um caráter sério, num caráter sagrado. Para
Huizinga, o culto é a forma mais elevada e mais sagrada da seriedade, não obstante ser um
jogo. Conforme o autor, “todo jogo, tanto de adultos como de crianças pode efetuar-se dentro
do mais completo espírito de seriedade” (HUIZINGA 2007, p. 21), pois Jogo e seriedade não
constituem uma antítese absoluta como é comum se pensar. Para o autor, não obstante o fato
que a criança saber perfeitamente que é um jogo aquilo que ela faz ao brincar, ela joga e
brinca dentro da mais perfeita seriedade, do mesmo modo que um desportista joga com
entusiasmo fervoroso. Huizinga:
O jogador pode entregar-se de corpo e alma ao jogo, e a consciência de tratar-se
“apenas” de um jogo pode passar para um segundo plano. A alegria que está
indissoluvelmente ligada ao jogo, pode transformar-se, não só em tensão, mas também
em arrebatamento. A frivolidade e o êxtase são os dois pólos que limitam o âmbito do
jogo (HUIZINGA 2007, p. 24. Grifo do autor).
Conforme Huizinga, naquilo que concerne à vida religiosa dos povos primitivos, é
impossível perder de vista o conceito de “jogo”, pois para descrição de alguns desses
fenômenos somos forçados ao uso da palavra “jogo”. Numa comparação entre o fenômeno do
culto dos povos primitivos e o fenômeno do “jogo” Huizinga afirma:
Tudo aquilo que se nos oferece como objeto de estudo é uma comunidade religiosa
que recebe as imagens de seu culto sob a forma de um material tradicional tão
“acabado” como acontece no caso da criança e que reage a essas imagens de maneira
semelhante (HUIZINGA 2007, p. 29).
Huizinga, embora afirme que a questão continua em aberto, sugere que talvez a
melhor maneira de aprender o estado de espírito do homem primitivo (o selvagem) no
momento em que celebra seus rituais religiosos, é um recurso a noção primária e, reconhece
39
ele, universalmente compreendida, de “jogo”. Porém o autor lembra que é necessário cuidado
com os limites e diferenças de nossos meios de expressão em relação ao homem primitivo,
pois para nossas formulações concernentes aos hábitos mentais do selvagem utilizamos ,
mesmo porque não há outro modo de fazê-lo, uma terminologia que não é a terminologia do
homem selvagem, mas é a nossa. Desse modo quando afirmamos que o selvagem ao
“incorporar” um animal em seus ritos está brincando ou jogando embora para ele isso seja
uma realidade, devemos ter em mente que ele nada sabe sobre nossas definições conceptuais
do que seja “ser” e “jogo”, ou sobre o que seja, para nós, “identidade”, “imagem” ou
“símbolo”.
Há ainda, segundo Huizinga, no interior do “terreno do jogo” o predomínio da ordem.
Assim uma das características mais positivas do Jogo, para o autor, é a ordem, pois “ele cria
ordem e é ordem” (HUIZINGA 2007, p. 13). Qualquer quebra nessa ordem, qualquer quebra
das regras, estraga o jogo. Desse modo, o Jogo coloca uma perfeição, ainda que temporária e
limitada, na imperfeição do mundo, colocando em ordem a confusão, aparentemente,
característica deste. Huizinga vê nessa ligação entre Jogo e ordem uma tendência do Jogo de
ser belo, o que, segundo o autor, é mais um motivo para que o Jogo seja colocado junto ao
domínio do estético.
As palavras que utilizamos para designar seus elementos pertencem todas à estética.
São as mesmas palavras com as quais buscamos descrever os efeitos da beleza: tensão,
equilíbrio, compensação, contraste, variação, solução, união e desunião. O jogo lança
sobre nós um feitiço: é “fascinante”, “cativante”. Está cheio das duas qualidades mais
nobres que somos capazes de ver nas coisas: o ritmo e a harmonia (HUIZINGA 2007,
p. 13. Grifos do autor).
Huizinga atribui papel importante, ao elemento de tensão presente no Jogo. Existe,
segundo o autor, uma tendência, por parte do jogador, de levar o jogo ao seu desenlace: “o
jogador quer que alguma coisa „vá‟ ou „saia‟, pretende ganhar, a custa de sue próprio esforço”
(HUIZINGA 2007, p. 14. Grifos do autor). Assim uma das características presente nos mais
diferentes tipos de jogos: uma garotinha estendendo a mão para um brinquedo ou jogando
bola e um gato brincando com um novelo, por exemplo, é o fato de que ambos procuram
acabar com uma tensão, isto é, procuram “ganhar” ou “vencer” o jogo. É esse elemento de
tensão que, segundo Huizinga, domina os jogos solitários de destreza e aplicação como os
“quebra-cabeças” e o “tiro ao alvo”, por exemplo. Já nas competições esportivas e nos jogos
de azar esse elemento de tensão chega ao extremo. A presença do elemento competitivo,
segundo Huizinga torna o Jogo mais apaixonante. Desse modo, o Jogo, embora esteja,
40
conforme Huizinga, além do domínio do bem ou do mal, toma certo valor moral, pois ao
mesmo tempo em que são colocadas à prova as qualidades e habilidades do jogador, também
é colocada a prova sua lealdade, não obstante seu ardente desejo de ganhar, o jogador não
pode deixar de obedecer as regras do jogo. As regras, afirma Huizinga, são muito importantes
para o conceito de Jogo, pois não há jogo sem regras, e dentro do mundo temporário do Jogo,
são as regras que determinam o que “vale” e o que “não vale”. Não se pode duvidar das regras
do jogo, pois elas são absolutas, porque estão assentadas em princípios que são considerados
verdades inabaláveis (dentro do jogo) e que não permitem discussão. Para Huizinga, a quebra
das regras implica a derrocada do próprio Jogo.
Huizinga, porém, observa que existe uma diferença entre o jogador que ignora ou que
desrespeita as regras do jogo (o desmancha-prazeres) e aquele que é desonesto e que finge
jogar seriamente. Para o autor, os jogadores costumam ser muito mais indulgentes com o
último do que com o primeiro. Huizinga atribui isso ao fato de que o jogador que
simplesmente desrespeita as regras ignorando-as, abala o próprio mundo do Jogo, ou seja,
provoca a derrocada deste, na medida em que “denuncia o caráter relativo e frágil desse
mundo, no qual, temporariamente, se havia encerrado com os outros” (HUIZINGA 2007, p.
14). Como o desmancha-prazeres torna-se uma ameaça ao jogo ele deve, de acordo com
Huizinga, ser expulso pela comunidade de jogadores, principalmente nos jogos infantis.
Huizinga:
O desmancha-prazeres destrói o mundo mágico, portanto, é um covarde e precisa ser
expulso. Mesmo no universo da seriedade, os hipócritas e os batoteiros sempre
tiveram mais sorte que os desmancha-prazeres; os apostatas, os hereges, os
reformadores, os profetas e os objetores de consciência (HUIZINGA 2007, p. 15).
Resumindo as características formais do Jogo, Huizinga o considera uma atividade
livre, conscientemente tomada como não séria e exterior a vida habitual (real), embora capaz
de absorver de modo total o jogador. Também não há no Jogo nenhum interesse material, pois
através dele não se pode obter qualquer lucro. Além disso, para Huizinga, o Jogo é
desenvolvido dentro de certos limites, tanto espaciais como temporais, em conformidade com
uma ordem e regras que lhe são intrínsecas. Quanto às funções do Jogo, Huizinga apresenta
dois aspectos que considera fundamentais, a saber, a busca de alguma coisa e a representação
de alguma coisa. Nessa ótica o Jogo também pode representar uma luta como também pode se
tornar uma luta por uma melhor representação de algo. Assim, ao jogar
41
A criança fica literalmente “transportada” de prazer, superando-se a si mesma a tal
ponto que quase chega a acreditar que realmente é esta ou aquela coisa, sem contudo
perder inteiramente o sentido da “realidade habitual”. Mais do que uma realidade
falsa, sua representação é a realização de uma aparência: é “imaginação”, no sentido
original do termo (HUIZINGA 2007, p. 17. Grifos do autor).
Para Kishimoto (2001) o caráter não sério apontado por Huizinga não implica que a
brincadeira infantil não seja séria, pois a criança brinca de modo compenetrado, o que faz com
que, para ela tal, atividade seja uma atividade séria. Segundo Kishimoto, não-seriedade
apontada por Huizinga, diz respeito ao cômico, ao riso que acompanha o ato lúdico,
diferenciando-o do trabalho, considerado uma atividade séria. Quanto à questão da liberdade,
Kishimoto afirma que Huizinga coloca o Jogo como uma atividade voluntária e que quando
imposto, não é Jogo. No que se refere à separação do cotidiano, para Kishimoto, isso se refere
à dimensão imaginária em que o Jogo ocorre. Sobre as regras, Kishimoto afirma que na ótica
de Huizinga existem regras explícitas e regras implícitas, dependendo do tipo de jogo em
questão, mas que são todas regras internas, ocultas, que ordenam e conduzem o Jogo.
42
IX. CONSIDERAÇÕES FINAIS
IX.I. JOGOS OU BRINCADEIRAS?
Uma análise referente à conceituação do termo “brincadeira”, como também do temo
“jogo” e a própria justificativa da necessidade dos mesmos, não se configura um trabalho
fácil de realizar. A amplitude dos termos quando usados em relação ao universo infantil e a
aparente discordância entre os teóricos, além do pouco entendimento sobre as culturas
infantis, justificam essa dificuldade.
Na busca da adequabilidade da palavra “brincadeira” as atividades infantis,
encontramos que tal palavra é usada, conforme registrado pelos lexicógrafos (alguns
exemplos são apontados no inicio desta obra), com sentidos e, por conseguinte, com
significados diferentes, que vão desde “gracejo” e “zombaria” passando por “coisa de pouca
importância” até “divertimento”, conforme comentado no primeiro capítulo deste texto. Cabe
lembrar que o que o lexicógrafo faz, ou deveria fazer, não é determinar o significado de uma
expressão, mas tão somente registrar os significados que ela adquire na linguagem. Mas o que
se percebe, na análise dos temos nos três dicionários citados neste trabalho, é que há uma
preocupação maior em registrar aquilo que os outros dicionários apontam como o significado
do termo. Grande parte do significado da palavra “brincadeira”, apontado pelo Minidicionário
da Língua Portuguesa, de Sérgio Ximenes (2000), parece, simplesmente compilado do Novo
Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa, de Aurélio Buarque de Holanda
Ferreira (1999), cujas definições, por sua vez, também parecem, em grande parte, compiladas
do Dicionário Escolar da Língua Portuguesa de Francisco da Silveira Bueno (1976).
Compreende-se a partir desses três dicionários, que um dos significados da palavra
“brincadeira” está associado à frivolidade, a coisas inúteis. Na linguagem, porém, isso não é
muito claro, pois sempre que o termo é utilizado faz referência a alguma coisa, que dentro de
seu contexto assume importância, ainda que momentânea, muito embora tal importância possa
ser negada pelo falante, como nos casos em que se diz: “fiz isso por brincadeira” ou “eu
estava brincando”, ou seja, em casos como esses, parece que o falante está querendo dizer:
não há nada de importante naquilo que fiz ou naquilo que falei.
Já nos discursos dos teóricos, cujos pensamentos foram apresentados nos capítulos
anteriores desta obra, o vocábulo “brincadeira” aparece atrelado ao vocábulo “jogo”, sendo
usados, no mais das vezes, sem discriminação entre um e outro, ou seja, como sinônimos.
43
Se “jogo” e “brincadeira” são sinônimos, como concordam a maioria dos autores
estudados nesse trabalho, e conforme também estou convencido, a palavra “brincadeira”
sempre designa algo mais do que coisas sem importância. Nessa ótica a palavra “brincadeira”
não designa atividades frívolas e desnecessárias, conforme eu cria ao engendrar a pesquisa
que originou este texto, pois o Jogo tem sua importância no desenvolvimento humano
reconhecida pelo meio científico e até mesmo pelo senso comum e raramente aparece atrelado
à frivolidade ou a coisas sem importância.
Desse modo a hipótese em principio levantada, que as crianças não brincam, se mostra
infundada, pois estava baseada na idéia de brincadeira como algo desnecessário, como oposto
à seriedade, o que se revelou uma compreensão errônea do significado dessa palavra.
Quando Vigotsky (2007) afirma que o brincar preenche necessidades que mudam de
acordo com a idade da criança e que brinquedos que interessam a um bebê, por exemplo,
deixam de interessar a uma criança mais velha, fica clara a relação entre Jogo e
desenvolvimento cognitivo ou intelectual. Na medida em que nos desenvolvemos vamos
perdendo o interesse por alguns jogos (brincadeiras) e nos interessando por outros. Parece que
o interesse pelos jogos revela um vestígio da infância presente em muitos adultos.
O fato de Benjamin (2002) afirmar que a brincadeira da criança não é determinada
pelo conteúdo imaginário presente no brinquedo mostra que mesmo que alguns brinquedos
sejam impostos as crianças como objeto de culto ou por outro motivo qualquer, a criança é
que o transforma efetivamente em brinquedo, o que também é verdade em relação a qualquer
objeto, imposto ou não as crianças, isto é, é sempre a criança que através da imaginação,
transforma os objetos em brinquedos, qualquer que sejam eles. Assim sendo, o brinquedo é
uma criação da criança e não dos adultos para a criança. A criança forja os seus brinquedos
em resposta as necessidades que seu próprio desenvolvimento apresenta, razão pela qual ela,
com o passar do tempo, e perde o interesse por alguns brinquedos interessando-se por outros.
Huizinga (2007), para quem as palavras “jogo” e “brincadeira” denotam a mesma
coisa, é um dos autores que vê a seriedade como sendo algo oposto à brincadeira. O autor
aponta a seriedade como a antítese do Jogo, devido ao fato de que em algumas línguas o
termo seriedade está atrelado a idéia de “zelo”, “rapidez”, “pesado”, como é o caso de grego
σπονδή e do latim serius. Já as palavras germânicas ernest, ernust, eornost têm, conforme
Huizinga, o sentido de “luta”, “combate”. Nessa perspectiva, as diversas expressões de
seriedade, estão ligadas às idéias de “zelo”, “esforço” e “aplicação”. Para Huizinga, enquanto
o significado de seriedade é definido de forma negativa, pela negação do “jogo”, ou seja, tudo
o que não é “jogo” é sério, o significado de “jogo” é definido de forma positiva, pois não pode
44
ser definido, simplesmente, pela ausência de seriedade, isso porque, embora a seriedade,
segundo o autor, exclua o Jogo, o Jogo ou brincadeira pode incluir a seriedade. Para Huizinga,
o Jogo é uma entidade autônoma, cujo conceito é de ordem mais elevada que a seriedade.
Assim, embora Huizinga contraponha Jogo e seriedade, o caráter de “não-seriedade”
atribuído pelo autor ao Jogo ou a brincadeira, não é algo que, segundo ele, defina o Jogo,
mesmo porque, segundo Huizinga, alguns jogos são extraordinariamente sérios e, em
contrapartida existem outras categorias de atividades não sérias que não apresentam relação
com o Jogo, como por exemplo, o riso e o cômico. Dessa forma fica claro, nas próprias
palavras do autor, que Jogo e seriedade não são opostos. Huizinga lembra ainda que, nas
sociedades antigas, crianças e adultos jogavam os mesmos jogos e não havia distinção entre
jogos de adultos e jogos de criaças. O fato de adultos e crianças brincarem (jogarem) as
mesmas brincadeiras (jogos) demontra a importância dessas atividades, e contribui para o
afastamento delas da futilidade.
Kishimoto4 (2001), um dos poucos autores que tenta discriminar jogos e brincadeiras,
tomando-os como dois conceitos diferentes, afirma que o uso indiscriminado desses termos,
deve-se a pouca clareza sobre esses conceitos, mas ela própria toma “jogo” e “brincadeira”
como sinônimos quando afirma que a ação desempenhada pela criança ao concretizar as
regras do jogo é a brincadeira. Mas se assim for, o que é jogar? Se jogar for concretizar as
regras do jogo, então na própria definição de Kishimoto temos que “jogo” e “brincadeira” se
confundem, ou seja, são indiscrimináveis. Isso também se percebe em outras passagens da
obra da mesma autora, como por exemplo, em O Brincar e a Linguagem ( 2005).
A brincadeira ou o Jogo se dá em uma dimensão simbólica, permitindo a
interiorização do mundo, esvaziando-o de seu caráter sensorial e transformando-o em matéria
da consciência, ou seja, em pensamentos e palavras. O Jogo está na gênese do humano. Ao
brincar ou jogar, a criança não cria um mundo próprio, um mundo de fantasia, antes, procura
entender o mundo real, investigando-o, fazendo experiências por meio das decisões/ações que
efetua. Essa também é uma das razões pela quais as crianças repetem em seus jogos suas
experiências, ou as experiências de outras pessoas de seu entorno:
Dentro de uma mesma cultura, crianças brincam com temas comuns: educação,
representações familiares e vários papeis que representam as pessoas que integram
essa cultura. Os temas, em geral, representam o ambiente das crianças e aparecem no
contexto da vida diária. Quando o contexto muda, as brincadeiras também mudam.
4
Sobre o pensamento de Kishimoto acerca desse assunto vede o texto Kishimoto: o jogo como algo
indeterminado, no posfácio dessa obra.
45
Pode-se dizer, então, que o ambiente é a condição para a brincadeira e, por
conseguinte, ele a condiciona (Garbarino e colab. Apud BONTEMPO 2001, p.68).
Esse pensamento também aponta para o caráter investigativo do Jogo.
Também podemos dizer, corroborando o pensamento de Vigotsky (2007) e Huizinga
(2007), que a criança ao brincar sabe que aquilo que faz se dá em uma esfera à parte do
mundo real. Desse modo, ela ressignifica as ações e os objetos do mundo real para o mundo
da fantasia e não do real para o real. É verdade que a criança pode estar absorta no Jogo de
modo tal que aquilo, no momento, lhe pareça como se fosse a vida real, mas ela sempre sabe
que está brincando e, sabe que a qualquer momento sua mãe pode lhe chamar dizendo que o
horário de brincar terminou e, quando isso acontece, ela tem de deixar o mundo de fantasia e
voltar para o mundo real (de preferência antes que a comida do jantar esfrie).
Sobre brincadeiras, jogos e brinquedos, Walter Benjamin escreveu:
Jamais são os adultos que executam a correção mais eficaz dos brinquedos – sejam
eles pedagogos, fabricantes ou literatos -, mas as crianças mesmas, no próprio ato de
brincar. Uma vez extraviada, quebrada e consertada, mesmo a boneca mais
principesca transforma-se numa eficiente camarada proletária na comuna lúdica das
crianças. (2002, p. 87)
A brincadeira, para o senso comum e também para alguns autores que afirmam que
jogos e brincadeiras são discrimináveis (como Kishimoto, por exemplo), é uma atividade
atrelada ao mundo do faz-de-conta, da imaginação. Porém, para Vigotsky (2007), em toda
situação imaginária existem regras de forma oculta e todo o jogo com regras contém uma
situação imaginária, também de forma oculta, e é a passagem de uma forma de jogo para a
outra que delineia a evolução dos jogos do infante. Portanto, para o autor, a brincadeira, como
situação imaginária, é idêntica ao Jogo. O fato de em toda a brincadeira estarem presentes
regras, ainda que de forma oculta, parece ter passado despercebido por aqueles que tentam
diferenciar jogos de brincadeiras.
A idéia de que os objetos, em princípio, têm uma força motivadora determinante sobre
a ação das crianças muito pequenas, declarada por Vigotsky, se assemelha muito ao
pensamento de Piaget quando este fala sobre a etapa do Jogo que denominou jogos de
exercício:
Certos jogos não supõem qualquer técnica particular: simples exercícios, põem em
ação um conjunto variado de condutas, mas sem modificar as respectivas estruturas,
tal como se apresentam no estado de adaptação atual.[...] Esse jogo de simples
exercício, sem intervenção de símbolos ou ficções nem de regras, caracteriza
especialmente as condutas animais. Quando um gatinho corre atrás de uma folha
46
morta ou de um novelo, nenhuma razão temos para supor esses objetos como símbolos
do rato. Sem dúvidas, quando uma gata luta com o seu filhote usando as garras e os
dentes, ela sabe muito bem que a luta não é “séria” [...]. (PIAGET 1990, pp 144-145).
Nessa ótica temos que até os animais, ao brincarem ou ao jogarem, sabem que sua atividade
não é séria e que não faz parte do mundo real, senão de um mundo imaginário. Além disso,
fica claro que também para Piaget jogos e brincadeiras são indiscrimináveis.
Cabe lembrar ainda que na análise do significado de um termo devemos considerar o
fato de que a linguagem, por ser viva, é também dinâmica e, a semântica, algumas vezes, se
diferencia da etimologia ao ponto de, em muitos casos, esta não servir mais para explicar
aquela. Também devemos levar em conta o fato de que, sendo a gramática uma criação
humana e, por estar em constante transformação, este pode usar qualquer palavra para
designar alguma coisa, ou mesmo um estado de coisas. Em alguns casos, dependendo da
significação que, através do uso ou de convenções, algum termo tenha adquirido, seu uso em
referência a certas coisas deve ser evitado, pois tal uso pode implicar em uma mudança no
modo como as pessoas encaram a coisa designada e, conseqüentemente, o mundo. No caso do
uso do termo brincadeira de modo irrefletido, pode levar a uma infantilização demasiada do
universo infantil, fazendo com que este tenha sua importância frente ao mundo adulto
diminuída na mente das pessoas, o que refletirá posteriormente em seu comportamento,
podendo ser, assim, causa de menosprezo da condição infantil, coisa que facilmente se
percebe na linguagem ordinária e até mesmo em alguns discursos voltados à Educação
Infantil.
Tomar as atividades infantis como sendo brincadeiras somente se justifica se a
brincadeira tiver sua natureza e importância reconhecida. Como uma atividade associada
diretamente à frivolidade a “brincadeira” não pode ser considerada como atividade
característica de uma etapa da vida cuja importância no desenvolvimento de qualquer pessoa é
indiscutível. Sendo as ações das crianças denominadas de “brincadeiras”, o significado desse
termo deveria estar bem claro na mente dos falantes, pois desse modo a maneira de pensar e
de encarar aquelas atividades será transformada de modo significativo e, talvez assim, se
abram oportunidades para uma nova concepção de infância venha à luz.
Esse esclarecimento pode influenciar as relações cotidianas entre adultos e crianças,
entre pais e filhos entre professores e alunos infantes e mesmo quando se pensa no modo
como as próprias crianças, de modo geral, encaram sua condição no mundo. Se o termo for
usado de modo pejorativo, como é muito comum, isso pode ter um forte impacto na vida dos
infantes, pois suas relações com a sociedade dependem do modo como aqueles são vistas e
47
tratados por esta. Tratamento esse que, em última análise, é resultante da visão do mundo
infantil que os adultos cultivam. Convém lembrar ainda que, o modo como as crianças vêm a
si mesmas influenciará sua auto-estima, bem como sua incursão rumo à autonomia.
48
X. POSFÁCIO
X.I. WITTGENSTEIN: O SIGNIFICADO DE UMA PALAVRA É SEU USO NA
LINGUAGEM
Wittgenstein, em seu livro Investigações Filosóficas (1994), propõe uma visão
panorâmica sobre como funciona a gramática, com o intuito de mostrar que o significado de
uma palavra ou expressão lingüística é seu uso na linguagem ordinária. Nesta obra,
Wittgenstein, convida ao leitor para que procure ver e não pensar: “Não pense. Veja”;
evitando assim, aquilo que ele chamou de “tendência do pensamento em hipostasiar-se em
entidades metafísicas”. Tal tendência seria, segundo ele, responsável pela crença na existência
de processos mentais subjacentes à linguagem e numa possível realidade designada por esta.
O ponto de partida tomado pelo autor não é o mesmo que tomaram outros filósofos da
linguagem, ou seja, a busca por algo comum a todos os processos de linguagem e que os torna
linguagem:
Em vez de indicar algo que é comum a tudo o que chamamos de linguagem, digo que
não há uma coisa sequer que seja comum a essas manifestações, motivo pelo qual
empregamos a mesma palavra para todos, - mas são aparentadas entre si de muitas
maneiras diferentes. Por causa deste parentesco ou destes parentescos, chamamos a
todos de “linguagens”. (1994, p. 51)
Wittgenstein não aceita a noção de essência, de algo em comum, de universalidade ou
generalidade. Ele atribui essas coisas (conceitos) a uma “ânsia de generalidade” que dominou,
segundo ele, quase toda a história da filosofia. Nessa ótica, toda a história da filosofia seria
apenas a história de pensamentos baseados em ilusões gramaticais, ou seja, ilusões sobre o
modo como são usadas as palavras na linguagem.
Essa metáfora, “nossa ânsia de generalidade”, conforme Wittgenstein, refere-se à
tendência de se buscar algo em comum aos conceitos e sentenças, ou seja, sua essência, sua
universalidade ou generalidade. Seria a idéia de que a essência da proposição coincidiria com
a essência da realidade; a busca por algo comum na linguagem, na realidade ou, entre a
linguagem e a realidade. Trata-se da ânsia de afirmar (de querer) que a essência da proposição
49
deve coincidir com a essência da realidade. Mas para Wittgenstein, tais coisas – essência da
proposição e essência da realidade – não existem, são apenas ilusões gramaticais.
A estratégia adotada por Wittgenstein contra o essencialismo, se dá a partir da crítica à
noção de algo em comum. Segundo ele a noção de “essência da proposição”, ou seja,
"encontrar a essência da proposição é encontrar a essência da realidade”, é uma ilusão da
razão (ilusão gramatical) herdada da metafísica grega. Para Wittgenstein, o essencialismo é
uma ilusão acerca do funcionamento da linguagem. A ilusão consistiria na “ânsia de
generalidade”, em querer uma resposta ao “que” constitui as coisas; ao “que” é a linguagem
ou; ao “que” é o pensamento; ao invés de uma resposta ao “como” funciona a linguagem.
Wittgenstein afasta o “algo em comum”, aquilo que estaria em principio oculto e subjacente
ao pensamento; para ele “nada está oculto”. Nessa ótica, a aspiração por um ideal de perfeição
da linguagem seria apenas um mito intelectualista que não passaria de uma “ilusão
gramatical”. A essência dos conceitos estaria apenas no seu uso na linguagem. Assim não
haveria nada em comum na linguagem nem tampouco na realidade e, sendo assim, não pode
haver nada em comum entre linguagem e realidade. Seria vã, portanto, o esforço pela busca
de uma intencionalidade na linguagem, ou seja, de algo que ligue a linguagem à realidade.
Esse terceiro elemento, esse processo mental, que afirmaria que a essência da proposição
coincide com a essência da realidade, segundo Wittgenstein, não existe.
A compreensão, portanto, não seria um processo mental e o critério para a compreensão
seria a aplicação, o uso que se faz da palavra, a justificação de seu uso, o uso da palavra na
linguagem, não a sua definição. Assim a compreensão de uma palavra (como “jogo” ou
“brincadeira”, por exemplo) ou sentença não estaria assegurada por explicações e definições,
mas apenas pelo seu uso na linguagem, pois o diálogo se originaria na compreensão.
Nessa perspectiva, não significa, que o diálogo coincida com a compreensão, pois no
diálogo a compreensão permanece aberta, pois sendo ela a própria execução do diálogo, ela
sempre permanece em suspenso. Desse modo, o significado de termos como “jogo”, e
“brincadeira”, seria apenas seu uso na linguagem, pois a “explicação” e a “compreensão”,
segundo Wittgenstein, dizem respeito somente ao modo como as palavras são usadas na
linguagem. Nessa ótica, para a compreensão de uma sentença, a definição de seus
componentes, não tem utilidade alguma. A compreensão, segundo Wittgenstein é autônoma e
não se pode eliminar a vagueza da linguagem. A compreensão está na própria gramática,
assim sendo, não se deve buscá-la em alguma essência comum as coisas ou aos conceitos e
que esteja fora da linguagem. A práxis da linguagem, ou seja, a execução da linguagem é o
que vivifica e dinamiza a linguagem.
50
Para o autor, “a compreensão não é um processo mental” e “a aplicação permanece a
critério da compreensão”. Assim, Wittgenstein também afasta uma concepção analítica da
linguagem, pois nela (na linguagem) “nada está oculto” e por isso a compreensão não envolve
nenhum processo mental. O próprio uso da palavra na linguagem traz consigo sua
compreensão, por isso não há necessidade de pensar, apenas ver aquilo que se mostra, nem é
preciso buscar na metafísica nenhuma definição: “não pense, veja!”
O diálogo, segundo Wittgenstein, pressupõe uma compreensão antecipada daquilo que se
fala, pois é na compreensão que o diálogo se origina. Portanto, a execução do diálogo é prova
de sua compreensão, pois sem esta, aquele não seria possível. Não haveria, portanto, um
ponto de vista externo à linguagem e, a habilidade para dizer não depende de uma habilidade
para definir. Para Wittgenstein, a compreensão e a explicação dizem respeito somente ao
modo como as palavras são usadas na linguagem e o critério para compreensão de uma
sentença não depende da definição dos conceitos que a compõem, pois a compreensão é vaga
e só pode ser dada pelo uso da sentença na linguagem, não pela definição de seus conceitos. A
definição, portanto, é impossível, pois o significado diz respeito somente ao modo como as
palavras são usadas na linguagem, não a uma possível essência subjacente às mesmas. Assim,
para o autor ,não há uma essência do “jogo” ou de “brincadeira”a ser esclarecida, ou a ser
buscada.
Na perspectiva de Wittgenstein, quando alguém afirma: “sei, mas não sei dizer” está
expressando uma ilusão gramatical. Tal ilusão consiste em tomar a definição como correlato
da compreensão, quando na verdade tal correlato é, segundo o autor, a explicação do uso, não
havendo diferença entre a gramática desta e a da definição. Segundo Wittgenstein, não existe
um processo mental subjacente à linguagem, pois a linguagem é o próprio pensamento; a
execução da linguagem é a execução do pensamento. Assim sendo, não se precisa saber
definir um conceito para poder usá-lo na linguagem, pois o significado do mesmo é o modo
como ele é usado, ou seja, seu uso na linguagem ordinária. Portanto, usar um conceito
significa também saber do que se trata, pois o significado dos conceitos e sentenças é restrito
ao seu uso na linguagem e não há uma essência que deva ou possa ser definida. Assim, não
existem conceitos universais e abstratos e, o significado dos conceitos está apenas na
execução da linguagem. Explicações e definições não asseguram a compreensão de uma
sentença ou de uma palavra, mas é o próprio uso da palavra que elucida seu significado.
Desse modo, fica abolido, para o autor, o anseio por um ideal de perfeição baseado na
idéia de que a essência das coisas poderia ser alcançada mediante um pensamento correto e
expresso por uma linguagem perfeita. Para Wittgenstein, os conceitos “proposição”,
51
“linguagem”, “pensamento” e “mundo” estão numa série, concatenada, cada um equivalendo
ao outro. Assim o pensamento, ou seja, a linguagem, é o único correlato, ou a única imagem
do mundo.
Para o autor, não se pode colocar diante de uma palavra como “jogo” a pergunta “o que é
isto?”. Segundo ele, quando se descreve os diversos tipos de jogos não se está buscando algo
em comum a eles, mas apenas descrevendo-os com suas diferentes práticas e diferentes
regras. Wittgenstein compara as semelhanças entre os diferentes tipos de jogo às semelhanças
entre os membros de uma mesma família:
Não posso caracterizar melhor essas semelhanças do que por meio das palavras
“semelhanças de família”; pois assim se sobrepõe e se entrecruzam as várias
semelhanças que existem entre os membros de uma família: estatura, traços
fisionômicos, cor dos olhos, andar, temperamento, etc., etc. –E eu direi: os „jogos‟
formam uma família (WITTGENSTEIN 1994, p. 52. Grifos do autor).
Para Wittgenstein, tudo (“proposição”, “linguagem”, “pensamento”, “mundo”, etc.) são
“jogos de linguagem” e, no exemplo da palavra “jogo”, está envolvido um jogo de linguagem
que não depende de uma essência subjacente ao uso da palavra “jogo” em qualquer dos
contextos em que ela é utilizada, mesmo porque, é impossível delinear seu conceito de forma
precisa. Assim, para enumerarmos vários exemplos de “jogos” não precisamos buscar algo
intermediário que seja comum a todos eles. Para o autor, nenhuma característica comum
poderia se interpor ao critério semântico, ou seja, ao uso das palavras na linguagem. Não se
poderia distorcer o uso efetivo da palavra na linguagem atribuindo-lhe a designação de um
elemento intermediário, uma espécie de “mostruário mental”, que seja comum a todos os
“jogos”; isso, segundo Wittgenstein, é apenas uma ilusão gramatical. Segundo o autor, o que
vem a ser uma cor, um jogo, um sabor, um odor ou mesmo um pensamento não é garantido
por um processo mental. Para responder como se reconhece uma dessas coisas, não se faz
necessário a invocação de um processo mental, pois não temos na mente um padrão ou um
modelo ao qual podemos comparar, por exemplo, um jogo, para saber se trata ou não de um
“jogo”.
Para Wittgenstein, se atentarmos para os processos os quais denominamos “jogo” não
encontraremos nada que seja comum a todos eles, apenas uma boa quantidade de parentescos,
semelhanças. Segundo o autor, na comparação entre os diferentes processos que
denominamos “jogo” algumas semelhanças aparecem e outras desaparecem:
52
E assim podemos percorrer os muitos, muitos outros grupos de jogos, ver as
semelhanças aparecerem e desaparecerem. E o resultado dessa observação é: vemos
uma complicada rede de semelhanças que se sobrepõe umas as outras e se
entrecruzam. Semelhanças em grande e em pequena escala (WITTGENSTEIN 1994,
p. 52).
Assim, a compreensão das palavras depende do domínio de técnicas sutis do uso das
mesmas na linguagem, ou seja, a vivência da significação das palavras. Para Wittgenstein,
aprendemos o significado da palavra “jogo” em conexão com comportamentos que expressam
aquilo que queremos dizer quando usamos a palavra e, percebemos que os outros, com a
mesma palavra, se referem às mesmas coisas que nós, ou seja, que eles, em geral, dão o
mesmo nome as mesmas coisas. Ainda para o autor, somente podemos ensinar o significado
das palavras mostrando como elas são aplicadas a objetos, a sensações, a estados de coisas,
etc.
Além disso, para a compreensão de uma palavra ou expressão, “muita coisa já deve estar
preparada na linguagem”, ou seja, já se deve saber qual papel uma palavra ocupa no “jogo da
linguagem”:
[...] é o que acontece quando se concentra a atenção; pois, desse modo imprimo em
mim a ligação do signo com a sensação. -“Eu a imprimo em mim” só pode querer
dizer que; este processo faz com que eu, no futuro, me lembre corretamente da ligação
(1994, p. 128)
Em suma, para Wittgenstein, quando se nomeia uma sensação, ou um estado de coisas,
ou quando se define um signo, a gramática da palavra em questão já deve, de antemão, estar
preparada e acessível à memória do falante e é ela, a gramática, que indicará o lugar no “jogo
da linguagem”, que a palavra ocupará. Assim para compreensão de palavras como “jogo” ou
“brincadeira”, deve-se saber, previamente, o lugar no “jogo de linguagem” que está sendo
utilizado naquele momento, que tais palavras podem ocupar (como no jogo de xadrez temos
que saber, antecipadamente, quais locais do tabuleiro cada peça pode ocupar, doutro modo
não saberemos jogar o “jogo”). De outra forma não se poderia falar dessas coisas, pois elas
adquirem significados diversos de acordo como o “jogo de linguagem” no qual são inseridas.
É precisamente nessa teoria acerca da linguagem que alguns autores se ancoram para
justificar sua falta de definição do conceito de Jogo. Exemplo disso é Kishimoto (2001), cujo
pensamento é exposta a seguir.
53
X.II. KISHIMOTO : O JOGO COMO ALGO INDETERMINADO
Kishimoto (2001) discutiu a natureza do Jogo, suas manifestações e funções. Para a
autora, a questão do “jogo” congrega uma miríade de fenômenos e por esta razão, a definição
do que seja Jogo não é tarefa fácil:
Quando se pronuncia a palavra jogo, cada um pode entendê-lo de modo diferente.
Pode-se estar falando de jogos políticos, de adultos, crianças, animais ou amarelinha,
xadrez, adivinhas, contar estórias, brincar de “mamãe e filhinha”, futebol, dominó,
quebra-cabeça, construir barquinho, brincar na areia e uma infinidade de outros. Tais
jogos, embora recebam a mesma denominação, tem suas especificidades. Por
exemplo, no faz-de-conta, há forte presença da situação imaginária; no jogo de xadrez,
regras padronizadas permitem a movimentação das peças. Brincar na areia, sentir o
prazer de fazê-la escorrer pelas mãos, encher e esvaziar copinhos com areia requer a
satisfação da manipulação do objeto. Já a construção de um barquinho exige não só a
representação mental do objeto a ser construído, mas também a habilidade manual
para operacionalizá-lo (KISHIMOTO 2001, p.13).
Em seu discurso, Kishimoto coloca algumas questões sobre a natureza do Jogo. O que
diferentes manifestações do fenômeno “jogo” teriam em comum para estar sob o mesmo
conceito? Para a autora alguns jogos se caracterizam pela estratégia e pela astúcia, alguns
apenas pela estratégia, alguns pelo objetivo; em alguns jogos há uma grande presença de
incerteza, em outros de astúcia; alguns jogos são acompanhados pelo prazer, em outros há
grande flexibilidade de conduta; alguns jogos desenvolvem significativamente habilidades
cognitivas, manuais e sociais, outros têm como característica marcante a futilidade, o caráter
não sério. Mas o Jogo, segundo a autora, inclui sempre uma intenção lúdica do jogador.
Kishimoto também aponta que em jogos que são disputas profissionais os jogadores
não objetivam o prazer e não jogam pela “vontade de jogar”, antes, eles são obrigados por
circunstâncias; por exemplo, no caso da competição esportiva. Kishimoto:
Um tabuleiro com peões é um brinquedo quando usado para fins de brincadeira. Teria
o mesmo significado quando vira recurso de ensino destinado à aprendizagem de
números? É brinquedo ou material pedagógico? Da mesma forma um tabuleiro de
xadrez feito de material nobre como o cobre ou mármore, exposto como objeto de
decoração, teria o significado de jogo? (2001, p.15).
Outra dificuldade apontada por Kishimoto para a definição do que seja “jogo” é o fato
de que um mesmo comportamento pode ser visto como “jogo” ou não-jogo. Como exemplo a
autora apresenta que para a comunidade indígena, uma criança atirar com arco e flecha em
54
pequenos animais é uma forma de preparo para a arte da caça, necessidade da comunidade
para sua subsistência, enquanto que para um observador que não pertence à comunidade
indígena, o mesmo ato poderia parecer uma brincadeira (um jogo). Neste caso, para alguns
atirar com arco e flecha é um jogo, enquanto que para outros é preparo profissional. A
dificuldade de elaborar uma definição de Jogo que abranja a multiplicidade de suas
manifestações concretas é aumentada, segundo Kishimoto, pelo fato de que a mesma
atividade em uma cultura é considerada “jogo” e em outra não. Outras vezes a mesma
atividade, em uma mesma cultura, ora é considerada “jogo”, ora é considerada não-jogo.
Desse modo, para Kishimoto, a simples observação nem sempre revela o que é “jogo” e o que
não é:
Muitas vezes, ao observar brincadeiras infantis, o pesquisador se depara com duas
situações que, externamente são idênticas em que a criança diz: “Agora eu não estou
brincando”, mas, logo em seguida, expressando a mesma conduta diz que está
brincando. O que diferencia o primeiro momento (não brincar), que aparentemente é
idêntico ao segundo (brincar), é a intenção da criança, o que cria uma certa dificuldade
para realizar pesquisas empíricas sobre o jogo infantil (KISHIMOTO 2001, p. 25).
Enfim, Kishimoto, a exemplo de Brougère (1998) e Huizinga (2007), faz coro a
Wittgenstein (1994) que afirma que não existe algo que possa ser denominado de Jogo e que
esse é um termo impreciso, vago, e que pode assumir múltiplos significados, todos
relacionados ao uso da palavra na linguagem ordinária.
Para Kishimoto (2001), na visão de alguns pesquisadores por ela estudados (sobretudo
Brougère e Henriot) existem três níveis de diferenciação entre os significados atribuídos ao
termo “jogo”, a saber: i) o “jogo” como resultado de um sistema lingüístico dentro de um
contexto social determinado, onde a noção de “jogo” está vinculada ao seu uso na linguagem,
ou seja, é “jogo” aquilo que as pessoas chamam de “jogo”. ii) um sistema de regras através do
qual é possível identificar uma estrutura seqüencial que identifica diferentes modalidades de
“jogo”. Neste caso o mesmo objeto pode ser usado para jogos diferentes, pois o que determina
o jogo são as regras. iii) o terceiro nível de diferenciação diz respeito à materialização do
“jogo” nos objetos usados para jogar. Aqui o “jogo” é tomado como sendo o objeto.
Já o “brinquedo”, para Kishimoto, supõe uma relação íntima com a criança e uma
indeterminação quanto ao uso, isto é, não existem regras para utilização do brinquedo de uma
forma específica. Por essa razão:
O brinquedo estimula a representação, a evocação de imagens que evocam aspectos da
realidade. Ao contrário os jogos, como xadrez e jogos de construção exigem, de modo
55
explícito ou implícito, o desempenho de certas habilidades definidas por uma estrutura
preexistente no próprio objeto e suas regras (KISHIMOTO 2001, p. 18).
Conforme Kishimoto, um dos objetivos do brinquedo é substituir os objetos reais para
que a criança possa manipulá-los. Assim sendo o brinquedo representa uma imagem da
realidade, reproduzindo objetos e a própria realidade social. Além disso, afirma Kishimoto, o
brinquedo pode representar realidades imaginárias da criança.
O brinquedo propõe um mundo imaginário da criança e do adulto, criador do objeto
lúdico. No caso da criança o imaginário varia conforme a idade: para a pré-escola de 3
anos, está carregada de animismo; de 5 a 6 anos, integra predominantemente
elementos da realidade (KISHIMOTO 2001, p. 19).
Para Kishimoto, existem imagens culturais inseridas no “brinquedo” pelo seu
fabricante. Tais imagens estão, conforme Kishimoto, vinculadas ao modo de ver, tratar e
educar as crianças, específicos de cada cultura e, segundo a autora, existem imagens
diferentes e contraditórias da infância.
A imagem de infância é reconstruída pelo adulto por meio de um duplo processo: de
um lado, ela está associada a todo um contexto de valores e aspirações da sociedade,
e, de outro, depende de percepções próprias do adulto, que incorporam memórias do
seu tempo de criança. Assim se a imagem de infância reflete o contexto atual, ela é
carregada, também, de uma visão idealizada do passado do adulto, que contempla sua
própria infância. A infância expressa no brinquedo contém o mundo real, com seus
valores, modos de pensar e agir e o imaginário do criador do objeto (KISHIMOTO
2001, p. 19).
Sobre esse modo de pensar, Kishimoto faz referência a Bachelard, que em sua obra A
Poética do Devaneio (1996) afirma que existe sempre uma criança em todo o adulto.
Kishimoto:
Bachelard considera as imagens que sobrevém da infância como resultado de dois
elementos: a memória e a imaginação. Os fatos ocorridos são metamorfoseados pela
imaginação, que recria as situações com novo olhar, com novo brilho. Daí nem
sempre a memória ser aceita como documento factual em trabalhos de história
(KISHIMOTO 2001, p. 20).
Nessa ótica, o brinquedo contém sempre uma referência à infância do adulto com
representações conduzidas através da memória e da imaginação. Numa tentativa de
descriminar os vocábulos “jogo”, “brinquedo” e “brincadeira”, Kishimoto afirma.
56
O vocábulo “brinquedo” não pode ser reduzido à pluralidade de sentidos do jogo, pois
conota criança e tem uma dimensão material, cultural e técnica. Enquanto objeto é
sempre suporte da brincadeira. É o estimulante material para fazer fluir o imaginário
infantil. E a brincadeira? É a ação que a criança desempenha ao concretizar as regras
do jogo, ao mergulhar na ação lúdica. Pode-se dizer que é o lúdico em ação. Dessa
forma, brinquedo e brincadeira relacionam-se diretamente com a criança e não se
confundem com o jogo (KISHIMOTO 2001, p.21).
Numa análise histórica, Kishimoto afirma que o aparecimento da visão do Jogo como
conduta típica e espontânea da criança está relacionado com o novo modo de ver a infância
iniciado no renascimento, quando a criança passa a ser vista como dotada de valor positivo e
de natureza boa. O “jogo” então, segundo a autora, passa a ser visto como um modo de
expressão espontânea da criança.
57
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58
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XIMENES, Sérgio. Minidicionário da Língua Portuguesa. 2 ed. São Paulo: Ediouro, 2000.
59
JOGOS OU BRINCADEIRAS?5
ACADÊMICO: Silvério Becker
ORIENTADOR: Evandro O. Brito
Resumo:
Este artigo aborda a relação entre o jogo e as brincadeiras infantis. Através de uma
exposição do pensamento de alguns autores clássicos sobre o Jogo e sobre o brincar,
procura analisar a relação de ligação entre esses dois conceitos. O artigo expõe o
pensamento de Benjamin, Vigotsky, Piaget e Huizinga sobre o Jogo e analisa os motivos que
levam esses autores a chamar brincadeiras à alguns tipos de jogos infantis.
Palavras-chave: Jogo. Brincadeiras. Walter Benjamin. Vigotsky. Piaget. Huizinga.
Abstract:
This article approaches the relation between the Game and infantile tricks. Through an
exposition of the thought of some classic authors on the Game and playing, it looks to
analyze the link between these two concepts. The article displays the thought of Benjamin,
Vigotsky, Piaget and Huizinga on the Game and analyzes the reasons that causes these
authors to call tricks some types of infantile games.
Words-key: Game. Tricks. Walter Benjamin. Vigotsky. Piaget. Huizinga.
Uma análise referente à conceituação do termo “brincadeira”, como também do temo
“jogo” e a própria justificativa da necessidade dos mesmos, não se configura um trabalho
fácil de realizar. A amplitude dos termos quando usados em relação ao universo infantil e a
aparente discordância entre alguns teóricos, além do pouco entendimento sobre as culturas
infantis, justificam essa dificuldade. Tanto o conceito “brincadeira”, como o conceito de
“jogo”, são conceitos muito abrangentes, sendo utilizados na linguagem com um variado
número de referências. Afinal, o que é o Jogo6, e qual sua relação com a brincadeira? Porque
esses conceitos, de modo geral são tomados como sinônimos? É nessa ótica que esse trabalho
pretende cooperar para a compreensão do termo “jogo”, o qual, conforme será mostrado
5
Artigo apresentado como requisito parcial da disciplina Trabalho de Conclusão de Curso, curso de Pedagogia,
Centro Universitário Municipal de são José, São José – SC.
6
A palavra Jogo com inicial maiúscula é utilizada aqui da mesma forma que o será doravante: como referência
a categoria geral de Jogo que engloba todos os tipos possíveis de manifestação desse fenômeno.
60
engloba todas aquelas atividades comumente denominadas “brincadeiras”, e de sua relação
com as chamadas “brincadeiras”.
A relação do Jogo, com o desenvolvimento intelectual da criança é bastante evidente,
o que ratifica a importância dos estudos, no campo pedagógico, sobre esse fenômeno. “A
multiplicidade das pesquisas sobre o jogo mostra que não se pode nem conhecer nem educar
uma criança sem saber por que e como ela joga” (Bandet e Sarazanas apud ROSAMILHA
1979, p.54).
Walter Benjamin (2002), em um relato histórico sobre o brinquedo, afirma que estes
não foram inventados por fabricantes especializados, mas seu surgimento se deu em oficinas
de entalhadores em madeira, de fundidores de estanho e outros semelhantes. A
industrialização especializada de brinquedos, de acordo com Benjamin, teve seu inicio apenas
no século XIX. Antes disso, o brinquedo representava apenas um produto secundário nas
diversas indústrias manufatureiras onde era fabricado. O inicio da industrialização
especializada de brinquedos teve de enfrentar as restrições corporativas da época que limitava
a fabricação das indústrias manufatureiras somente àquilo que competia ao seu ramo. Isso
encarecia a produção, pois obrigava varias manufaturas a dividirem entre si até mesmo os
trabalhos mais simples. Desse modo o comércio, ou a distribuição desses brinquedos,
inicialmente, também não era feito por comerciantes específicos: “assim como se podiam
encontrar animais talhados em madeira com o marceneiro, assim também soldadinhos de
chumbo com o caldeireiro, figuras de doce com o confeiteiro, boneca de cera com o fabricante
de velas”. (Benjamin 2002, p. 90). Somente a partir do século XIX é que o comercio
intermediário açambarcou os brinquedos provenientes das manufaturas e das indústrias
domésticas, e a indústria assenhorou-se do brinquedo como algo que por natureza lhe
pertence.
Mas, o que significa um brinquedo é para Benjamin uma questão que ultrapassa sua
moldura original e leva a uma classificação filosófica do brinquedo. Assim sendo, Benjamin
aponta como um equívoco básico a idéia de que a brincadeira da criança é determinada pelo
conteúdo imaginário presente no brinquedo. Para Benjamin, dá-se o contrário: “a criança quer
puxar alguma coisa e tornar-se cavalo, quer brincar com areia e tornar-se padeiro, quer
esconder-se e tornar-se bandido ou guarda” (BENJAMIN 2002, p. 93). Na perspectiva de
Benjamin os instrumentos de brincar arcaicos como a bola, o arco, a roda de penas e a pipa,
por exemplo, desprezam toda a máscara imaginária, não se caracterizando autenticamente
como brinquedos, pois, segundo ele, os brinquedos são tanto mais autênticos quanto menos o
parecem ser aos adultos e, quanto mais atraentes aos sentidos, mais eles se distanciam dos
instrumentos de brincar. Pois “quanto mais ilimitadamente a imitação se manifesta neles,
tanto mais se desviam da brincadeira viva” (BENJAMIN 2002, p. 93).
Segundo Benjamin, os adultos usam, como pretexto, supostas necessidades infantis
para satisfazer suas próprias necessidades pueris. Essas necessidades infantis forjadas pelos
adultos é que são, na ótica de Benjamin, responsáveis pela impregnação do mundo da
percepção infantil de vestígios das gerações mais velhas com as quais as crianças vivem. Isso
também é verdade, segundo Benjamin, com relação aos jogos, impossibilitando sua
construção em um âmbito de fantasia, “no país feérico de uma infância ou artes puras” (2002,
p. 96). Conforme Benjamin, muitos dos brinquedos, mesmo os mais antigos como a roda de
penas, a pipa, a bola e, o arco, teriam sido impostos pelos adultos as crianças como objeto de
culto. A criança, porém, mais tarde, graças à força de sua imaginação, é que os transformou
efetivamente em brinquedo.
Benjamin coloca que a simplicidade era uma “palavra de ordem” nas oficinas
artesanais que fabricavam brinquedos. Porém ela devia-se mais ao processo de produção, ou
seja, a técnica que era empregada, do que às formas dos brinquedos, pois as mais refinadas
técnicas, por vezes, também se mostravam presentes em alguns brinquedos ao longo do
61
tempo. Assim sendo, o brinquedo, segundo Benjamin, é condicionado pela cultura econômica
e também, pela cultura técnica da coletividade. Para Benjamin,
até hoje o brinquedo tem sido demasiadamente considerado uma criação para a
criança, quando não como criação da criança, assim também o brincar tem sido visto
em demasia a partir da perspectiva do adulto, exclusivamente sob o ponto de vista da
imitação ( BENJAMIM 2002, p. 100).
Para Benjamin, o “mundo dos jogos” é regido acima de todas as regras e ritmos de
cada um deles pela lei da repetição. Tal lei é, para o autor, é a “alma” do Jogo, pois o que
mais deixa a criança feliz no Jogo é a idéia do “mais uma vez”. Essa obscura compulsão pela
repetição é, para Benjamin, tão poderosa e tão ardilosa quanto o impulso do amor. Mesmo
porque “toda e qualquer experiência mais profunda deseja insaciavelmente, até o final de
todas as coisas, repetição e retorno, restabelecimento da situação primordial da qual ela tomou
o impulso inicial” (BENJAMIN 2002, p. 1001). A ação da criança está, segundo Benjamin,
baseada nesse impulso e para ela não basta uma repetição, ela quer sempre experimentar
novamente, centenas e milhares de vezes. Benjamin:
O adulto, ao narrar uma experiência, alivia seu coração dos horrores, goza duplamente
uma felicidade. A criança volta a criar para si todo o fato vivido, começa mais uma
vez do início. Talvez resida aqui a mais profunda raiz para o duplo sentido nos
“jogos” alemães7: repetir o mesmo seria o elemento verdadeiramente comum. A
essência do brincar não é um “fazer como se”, mas um “fazer sempre de novo”,
transformação da experiência mais comovente em hábito (2002, p. 102. Grifos do
autor; nota minha).
Nessa mesma ótica, Benjamin afirma que a origem de todo o hábito como comer,
vestir-se, lavar-se, tem sua origem no Jogo, e é através do Jogo que se deve inculcar, de
maneira lúdica, nos pequenos, tais hábitos. Como o hábito entra na vida através da
brincadeira, mesmo quando ele se torna enrijecido, ainda traz em se bojo, afirma Benjamim,
um resquício de brincadeira. Benjamin:
Formas petrificadas e irreconciliáveis de nossa primeira felicidade, de nosso primeiro
terror, eis o que são os hábitos. E mesmo o pedante mais insípido brinca, sem o saber,
de maneira pueril, não infantil, brinca ao máximo quando é pedante ao máximo.
Acontece somente que ele não se lembra de suas brincadeiras [...]. Mas quando o
poeta moderno diz que para cada um existe uma imagem em cuja contemplação o
mundo inteiro submerge, para quantas pessoas essa imagem não se levanta de uma
velha caixa de brinquedos? (2002, p. 102).
Entende-se, assim que, para Benjamin, o Jogo está na gênese da maioria das
características humanas.
Conforme Vigotsky (2007), o desenvolvimento cognitivo é um processo para adquirir
cultura e no Jogo está a gênese das operações cognitivas. Quando Vigotsky propõe a
utilização dos jogos infantis como recurso pedagógico fica clara sua visão da relação entre
Jogo e desenvolvimento cognitivo.
Para Vigotsky o Jogo não pode ser definido apenas como algo que dá prazer a criança,
pois existem, segundo ele, jogos nos quais a atividade não é agradável em si, e que só dão
prazer à criança se o resultado for aprazível. Como exemplo, Vigotsky aponta que os jogos
7
Spiele no alemão tem o sentido de Jogo e também de brincadeira. Talvez por isso Benjamin fale em duplo
sentido nos “jogos” alemães.
62
esportivos só são agradáveis à criança quando o resultado lhe é favorável. Segundo Vigotsky,
o que caracteriza o Jogo, além da ação, é a presença de um significado, diferente do original,
conferido aos objetos do jogo. Assim, no Jogo:
A ação surge das idéias e não das coisas: um pedaço de madeira torna-se um boneco e
um cabo de vassoura torna-se um cavalo. A ação regida por regras começa a ser
determinada por idéias e não pelos objetos (VIGOTSTKY 2007, p. 115).
Esse significado, afirma Vigotsky, não precisa ser, necessariamente, similar ao objeto
(significante), mas precisa ter uma relação com o gesto efetuado com ou a partir do objeto.
Para o autor, no Jogo as ações também não têm, seu significado original, mas são revestidas
de um novo.
Vigotsky também chama a atenção para a seriedade do Jogo para a criança com menos
de três anos de idade, pois nesta faixa etária, a criança não discerne a situação imaginária da
real. Nesta idade é o objeto (brinquedo) que determina o Jogo e, portanto esse tipo de Jogo
não se caracteriza como brincadeira. Na medida em que a criança vai crescendo o significado
se sobrepõe ao próprio objeto. Há ainda, segundo Vigotsky, um terceiro momento, no qual as
regras do Jogo é que passam a predominar sobre o objeto e sobre a significação deste. Nesse
momento as regras, que já estavam implicitamente presentes nos momentos anteriores
tornam-se explicitas e sua quebra se torna flagrante e não é mais aceita pela criança. Nesta
fase o Jogo torna-se algo cultural, cujas regras podem ser transmitidas e aprendidas de outras
pessoas. As aquisições da criança no Jogo serão, segundo Vigotsky, a base das futuras ações
da mesma. Assim,
Para Vygotsky, a imaginação em ação ou brinquedo é a primeira possibilidade de ação
da criança numa esfera cognitiva que lhe permite ultrapassar a dimensão perceptiva
motora do comportamento. (DIAS, 2001, p. 51).
Conforme Vigosky, o Jogo é um mundo imaginário, um mundo ilusório, onde a
criança pode realizar os desejos que lhe são irrealizáveis no mundo real. Essa situação
imaginária é que diferencia o Jogo de outras atividades que a criança realiza.
A imaginação é um processo psicológico novo para a criança; representa uma forma
especificamente humana de atividade consciente que não está presente na consciência
das crianças muito pequenas e está ausente nos animais. Ela surge primeiro em forma
de jogo, que é a imaginação em ação (VIGOTSKY, 2007, p. 109).
Portanto, na perspectiva de Vigotsky, na fase em que o significado determina o Jogo (fase de
autenticidade do Jogo) e também na fase posterior, quando o Jogo é regido por regras
predeterminadas, a atividade da criança pode ser definida como brincadeira, pois é uma
atividade de caráter imaginário, ocorrendo, portanto em uma esfera à parte com relação à vida
“real” da criança. Ratificando ainda a idéia de identidade entre Jogo e imaginação, Vigotsky
coloca:
Como todas as funções da consciência ela surge originalmente da ação. O velho
adágio de que o brincar da criança é a imaginação em ação deve ser invertido:
podemos dizer que a imaginação nos adolescentes e adultos é o brinquedo sem ação
(Vigotsky 2007, p. 109).
Vigotsky afirma que, embora a existência de uma situação imaginária no Jogo sempre
tenha sido reconhecida, ela não era vista como uma característica definidora do Jogo, antes
era vista como um atributo de subcategorias específicas do brincar (ou do jogar), o que
levava, segundo o autor, a uma visão do Jogo como algo simbólico. Tal visão, segundo
63
Vigotsky, acarreta o perigo de o Jogo ser considerado como uma atividade semelhante à
álgebra, ou seja, o Jogo seria considerado como um sistema de signos que generalizam a
realidade sem nada que o caracterize especificamente. Mas, para Vigotsky, se assim fosse,
faltaria demonstrar a motivação do Jogo bem como suas circunstâncias e o papel do Jogo no
desenvolvimento posterior.
Para Vigotsky, as situações imaginárias de qualquer forma de jogo já contém regras de
comportamento. Segundo o autor, a criança só pode se comportar em uma situação imaginária
seguindo regras. Vigotsky afirma que quando a situação imaginária deixa de existir no Jogo,
restam apenas as regras, regras estas que têm sua origem na própria situação imaginária.
Outrossim, todo Jogo com regras, para Vigotsky deve conter uma situação imaginária. Como
exemplo Vigotsky cita o jogo de xadrez, onde para o autor, as peças só podem se mover de
maneiras determinadas, sendo que, proteger e capturar peças são puramente conceitos do
xadrez, o que constitui uma situação imaginária:
O mais simples jogo com regras transforma-se imediatamente em uma situação
imaginária, no sentido em que assim que o jogo é regulamentado por certas regras,
várias possibilidades de ação são eliminadas (VIGOTSKY 2007, p. 112).
Vigotsky afirma ainda que toda situação imaginária contém regras de forma oculta e
todo o jogo com regras contém uma situação imaginária, também de forma oculta, e é a
passagem de uma forma de jogo para a outra que delineia a evolução dos jogos do infante.
Para Piaget (1990; 1986), os jogos estão diretamente relacionados ao desenvolvimento
cognitivo, sendo uma espécie de instrumento de assimilação da realidade. Num pensamento
que, em partes, se assemelha ao de Vigotsky, Piaget afirma que a representação em atos
(através do jogo simbólico), marca a passagem da inteligência sensório-motora, baseada nos
sentidos e na motricidade, à inteligência simbólica (inteligência representativa mediada por
símbolos subjetivos) que posteriormente se transformará em inteligência operatória mediada
por símbolos culturais. Em Piaget, o Jogo aparece como uma forma de assimilação do real
conforme as necessidades do “eu” da criança. Nesse sentido a criança vai aos poucos,
internalizando as leis do mundo físico bem como as regras de comportamento da sociedade.
Piaget relaciona o Jogo ao nascimento da representação, base da transformação da
inteligência em pensamento, dando ênfase ao jogo simbólico, característico da fase
intermediária entre o nível de ação motora e o nível de operações concretas do pensamento.
A representação, afirma Piaget, é uma função simbólica, ou seja, uma capacidade de
diferenciação entre significantes e significados, o que permite a evocação, através de
significantes, de significados que não estejam, no momento, ao alcance dos sentidos do
sujeito.
A gênese da imaginação, para Piaget, está no Jogo, que é um instrumento através do
qual a criança, primeiro, enfrenta a realidade. Conforme Piaget, no Jogo, a interação da
criança com os objetos não depende da natureza dos mesmos, antes o que importa é a função
atribuída pela criança aos objetos. O objeto desempenhará, no Jogo, a função que lhe for
atribuída, podendo ser essa sua função real ou não: um pedaço de madeira pode ter, no Jogo,
tanto a função de um pedaço de madeira, quanto à função de um trem ou um avião. Assim, o
Jogo amplia as possibilidades de ação e compreensão do mundo, ou seja, abre as portas ao
conhecimento na medida em que, sendo um setor de atividade que lhe permite assimilar a
realidade de acordo com as suas necessidades (necessidades internas), faz com que o
conhecimento não esteja restrito as coisas que a criança tem sob seus sentidos, possibilitando
a imaginação de coisas que não lhe estejam próximas, bem como sua representação. Assim,
Para Piaget, o jogo simbólico é responsável por uma fase no desenvolvimento da inteligência
64
na criança, onde a assimilação se sobrepõe a acomodação e, através dele toda a experiência
vivida pela criança é consolidada em maior ou em menor grau.
Obrigada a adaptar-se sem cessar a um mundo social de mais velhos, cujos interesses
e cujas regras lhe permanecem exteriores, e a um mundo físico, que ela ainda mal
compreende, a criança não consegue, como nós, satisfazer as necessidades afetivas e
até intelectuais do seu eu nessas adaptações, as quais para os adultos são mais ou
menos completas, mas que permanecem para ela tanto mais inacabadas quanto mais
jovem for. É, portanto, indispensável ao seu equilíbrio afetivo e intelectual que possa
dispor de um setor de atividade cuja motivação não seja a adaptação ao real, senão,
pelo contrário, a assimilação do real ao seu eu, sem coações nem sansões; tal é o jogo,
que transforma o real por assimilação mais ou menos pura às necessidades do eu, ao
passo que a imitação (quando constitui fim em si mesma) é acomodação mais ou
menos pura aos modelos exteriores e a inteligência é equilíbrio entre assimilação e
acomodação. (PIAGET e INHELDER 1986, pp 51-52).
Os signos verbais se tornam, segundo Piaget e Inhelder (1986), uma das formas mais
representativas de significantes, tão logo a criança aprenda a falar. Por essa razão, para Piaget
e Inhelder, o principal instrumento de adaptação social da criança é a linguagem. Mas a
linguagem, por ser de natureza coletiva e não inventada pela criança, não é o melhor
instrumento para a transmissão de necessidades e experiências por parte da mesma. Por isso a
necessidade, apontada por Piaget, da existência de um meio de expressão próprio da criança,
ou seja, um sistema de significantes que ela mesma constrói, e que lhe seja maleável:
Tal é o sistema de signos próprios do jogo simbólico, tomados de empréstimo à
imitação a título de instrumentos, mas a uma imitação não procurada por si mesma e
simplesmente utilizada como meio evocador a serviço da assimilação lúdica: tal é o
jogo simbólico, que não é apenas assimilação do real ao eu, como o jogo em geral,
mas assimilação assegurada (o que a reforça) por uma linguagem simbólica construída
pelo eu e modificável a medida das necessidades (PIAGET e INHELDER 1986, p.52).
Desse modo, para Piaget, o jogo simbólico pode servir para a solução de conflitos,
para a compensação de necessidades não satisfeitas, a inversão de papeis (obediência e
autoridade) e para a liberação e extensão do eu.
Piaget distingue três tipos básicos de jogos, a saber: o jogo de exercício; o jogo
simbólico e; o jogo de regras, cada qual ocorrendo em um estágio diferente do
desenvolvimento infantil.
O jogo de exercício, segundo Piaget, não comporta nenhum simbolismo e nenhuma
técnica especificamente lúdica, mas consiste apenas na repetição, pelo prazer, de atividades
adquiridas e, sua finalidade é a adaptação. O prazer, aqui, está relacionado ao prazer de ser
causa de um fenômeno e ao prazer da afirmação de um saber recentemente adquirido. Nessa
fase de desenvolvimento, portanto, não parece licito dizer que a criança brinca.
O jogo simbólico, conforme Piaget, se caracteriza pelo início dos jogos de construção
(inicio do pensamento representativo) onde a criança, partindo do simbolismo lúdico
(simbolismo mais direto que permite reviver um acontecimento não usando apenas uma
evocação mental), constrói adaptações (construções mecânicas, etc.) ou soluções de
problemas (conflitos afetivos, etc.) e criações inteligentes. Aqui, onde a imaginação começa a
aparecer, o Jogo toma características de brincadeira, pois, pode-se dizer que ele ocorre em
uma dimensão paralela ao mundo “real”, isto é, a criança tem a consciência de que suas ações
se dão em um mundo de fantasia e que este não é o mundo em que vivem os adultos.
Os jogos de regras, conforme Piaget, são aqueles que se transmitem socialmente entre
as crianças, e de acordo com o progresso da vida social da criança têm também sua
65
importância aumentada. Pelos mesmos motivos que o jogo simbólico, estes também podem
ser denominados brincadeiras.
Para Huizinga (2007), o Jogo é uma categoria que pode ser considerada um dos
elementos espirituais básicos da vida e sua existência é anterior à cultura. Isso porque,
segundo o autor, toda a definição de cultura pressupõe a existência da sociedade humana e
esta, por sua vez, não acrescentou nenhuma característica essencial á idéia geral de Jogo. Para
o autor:
O jogo é uma atividade ou ocupação voluntária, exercida dentro de certos e
determinados limites de tempo e de espaço, segundo regras livremente consentidas,
mas absolutamente obrigatórias, dotado de um fim em si mesmo, acompanhado de um
sentimento de tensão e de alegria e de uma consciência de ser diferente da “vida
cotidiana” (HUIZINGA 2007, p. 33. Grifo do autor).
De acordo com Huizinga, o fato de que o Jogo, de modo geral, é praticado nas horas
de ócio e que pode ser suspenso ou adiado a qualquer momento, mostra que ele não é uma
necessidade nem física, nem moral, a não ser nos casos em que está ligado ao culto ou a
algum ritual como função cultural:
Seja como for, para o individuo adulto e responsável o jogo é uma função que
facilmente poderia ser dispensada, é algo supérfluo. Só se torna uma necessidade
urgente na medida em que o prazer por ele provocado o transforma numa necessidade
(HUIZINGA 2007, p. 7).
Huizinga define três características principais do Jogo, a saber: liberdade; brincadeira
e; isolamento. A característica do Jogo como brincadeira deve-se ao fato de que, segundo
Huizinga, ele ocorre em uma dimensão paralela à vida “real”:
[...] o jogo não é a vida “corrente” nem vida “real”. Pelo contrário, trata-se de uma
evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade com orientação própria.
Toda criança sabe perfeitamente quando está “só fazendo de conta” ou quando está
“só brincando” (HUIZINGA 2007, p. 11. Grifos do autor).
Entretanto, para Huizinga, isso não significa que o Jogo não possa assumir ares de
seriedade, pois o jogador pode, por alguns momentos, ser absorvido totalmente pelo Jogo.
Mas quando acaba o jogo “o apito do árbitro quebra o feitiço e a vida „real‟ recomeça”
(HUIZINGA 2007, p. 14. Grifos do autor).
Como, de acordo com Huizinga, o Jogo se situa fora da vida “real”, ele também se
situa fora da dimensão de satisfação imediata das necessidades e dos desejos, interrompendo
esse mecanismo. Desse modo o Jogo é uma espécie de intervalo na vida “real”, daquele que
joga, não obstante ser uma necessidade para seu desenvolvimento cognitivo.
Nos discursos dos teóricos, cujos pensamentos foram analisados nesta obra o vocábulo
“brincadeira” aparece atrelado ao vocábulo “jogo”, sendo usados, sem discriminação entre um
e outro, ou seja, como sinônimos. Para todos eles as crianças brincam, pois têm consciência
de que suas atividades, aquelas que envolvem a imaginação e a fantasia se dão em um mundo
à parte do mundo real, isto é, elas sabem que tais atividades são passageiras e que somente
podem se ocupar delas quando suas necessidades básicas de existência estejam já satisfeitas.
Além disso, tais atividades se dão em um momento determinado e dentro de um espaço
circunscrito para sua efetivação. Em outras palavras, existem um “campo de jogo” e uma
“hora de brincar” e as crianças sabem que o mundo “real” continua existindo em todo o
espaço e em todo o tempo.
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Talvez a palavra brincar não seja a palavra mais apropriada para designar o Jogo das
crianças muito pequenas, pois falta-lhes a consciência de que brincam. Mesmo assim no que
diz respeito aos jogos das crianças onde o pensamento representativo já se faz presente o uso
desta palavra parece bastante apropriado, todavia a palavra “brincadeira” sempre designa algo
mais do que coisas sem importância. Nessa ótica a palavra “brincadeira” não designa
atividades frívolas e desnecessárias, pois o Jogo tem sua importância no desenvolvimento
humano reconhecida pelo meio científico e até mesmo pelo senso comum e, raramente,
aparece atrelado à frivolidade ou a coisas sem importância.
Ver as brincadeiras a partir dessa perspectiva pode influenciar as relações cotidianas
entre adultos e crianças, entre pais e filhos entre professores e alunos infantes e mesmo,
quando se pensa no modo como as próprias crianças, de modo geral, encaram sua condição no
mundo. Se o termo for usado de modo pejorativo, como é muito comum, isso pode ter um
forte impacto na vida dos infantes, pois suas relações com a sociedade dependem do modo
como aqueles são vistas e tratados por esta. Tratamento esse que, em última análise, é
resultante da visão do mundo infantil que os adultos cultivam. Convém lembrar ainda que, o
modo como as crianças vêm a si mesmas influenciará sua auto-estima, bem como sua
incursão rumo à autonomia.
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REFERÊNCIAS
BENJAMIN, Walter. Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. 34 Ed. São Paulo: Duas
Cidades, 2002.
DIAS, M.C.M. Metáfora e Pensamento: considerações sobre a importância do jogo... in:
KISHIMOTO, Tizuko M. (org). Jogo, brinquedo, brincadeira e a educação. 5 ed. São
Paulo: Cortez, 2001. p. 45-56.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura. Trad. João Paulo
Monteiro. 5 ed.Sao Paulo: Perspectiva, 2007.
PIAGET, Jean; INHELDER, Bärbel. A Psicologia da Criança. Trad. Octavio Mendes
Cajado. 9 ed. São Paulo: Difel, 1986.
PIAGET, Jean. A Formação do Símbolo na Criança: imitação, jogo e sonho, imagem e
representação. Trd. Álvaro Cabral e Cristiano M. Monteiro. 3 ed. Rio de Janeiro: LTC, 1990.
ROSAMILHA, Nelson. Psicologia do Jogo e Aprendizagem Infantil. São Paulo: Pioneira,
1979.
VIGOTSKY, L. S. A Formação Social da Mente. Trd. José C. Neto, Luiz S. M. Barreto,
Solange C. Afeche. 7 ed. Martins Fontes. São Paulo, 2007
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