Capa e projeto gráfiCo
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Capa e projeto gráfiCo
Andrea Silveira Wonta na ra : estamos juntos? 1a Edição São Paulo 2014 O trabalho “Wontanara: estamos juntos?” de Andrea Silveira está licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - CompartilhaIgual 3.0 Brasil. Baseado no trabalho disponível em: http://www.wontanara.com.br. Capa e projeto gráfico Wedologos Fotografias Fabio Biolchini Letícia Passowski Lysanne Lafetière Andrea Silveira Juliane Raoul Jessica de Menezes freepik.com Revisão Guilherme Valle Luciene Xavier de Siqueira Oficina de Literatura Cairo Trindade Tradução para o francês Maria Luisa Dominici Cunha Alexis Gourdol Editoração Eletrônica Wedologos Ende re ço para contato www.wontanara.com.br [email protected] SUMÁRIO Prefácio ...........................................................................................................10 Antes mesmo de começar ..................................................................14 1. Quando eu crescer... ................................................................................17 2. Encontrando minha vocação 3. O salto quântico ..............................................................21 .........................................................................................25 4. We plan as we go ......................................................................................29 5. O mundo em guerra e a proposta de salvá-lo 6. Sonhos que se realizam ........................33 .........................................................................37 7. Meu sobrenome? Metamorfose! .......................................................41 8. Pequeno país, grandes desafios ........................................................45 9. Desembarcando no campo 10. Bem-vindos a Conakry .................................................................50 ........................................................................56 11. O tabu do HIV/AIDS na Guiné .......................................................61 12. Wontanara ..................................................................................................66 13. Desafios e oportunidades ..................................................................70 14. Humanitarismo ou dominação maquiada? ............................76 15. Uma babel sem fronteiras .................................................................81 SUMÁRIO 16. Lá se foram quatro meses .................................................................86 17. Enquanto isso, a vida acontece lá fora ......................................90 18. Nem tudo é resistência ........................................................................94 19. Um jardim para a esperança 20. A cor da África ..........................................................98 ......................................................................................104 21. A peculiaridade do Marché Madina .........................................108 22. Mulheres, mães e as Amazonas da Guiné ...........................112 23. Tambores mágicos ...............................................................................119 24. De volta ao dilema da cultura .......................................................123 25. A pedra no lago ....................................................................................128 26. Sobre morrer, já que a morte não existe ................................133 27. Reclusão compulsória ........................................................................138 28. Quase a quarta esposa, eu?! .......................................................142 29. Ils sont où les noirs? ...........................................................................147 30. Paralisada pelo paradoxo ...............................................................151 31. Finalizando, à sombra do idealismo ........................................156 Agradecimentos ........................................................................................160 Wontanara: estamos juntos? 7 Aos meus queridos amigos da Guiné, tambores que continuam tocando meu coração. Wontanara: estamos juntos? 8 C’est une vérité évidente que personne ne viendra développer notre cher pays à notre place. Il faut compter sur chaque guinéen avant d’appeler les pays voisins, la communauté internationale avec sa cohorte d’organisation et d’ONG. Jeune de Guinée, si ce n’est pas nous, alors ce qui? Si ce n’est pas maintenant, alors ce quand? 1 Ibrahim Sowh (um dos tambores que tocam a Guiné) 1. É uma verdade evidente que ninguém virá desenvolver nosso querido país em nosso lugar. Devemos contar com cada guineense antes de chamar os países vizinhos e a comunidade internacional com sua corte de organizações e ONGs. Jovens da Guiné, se não formos nós, então será quem? Se não for agora, então será quando? Wontanara: estamos juntos? 9 PREFÁCIO Wontanara - estamos juntos? É o relato de uma vivência, é perspectiva, é comprometimento! É uma viagem pela África, uma crítica social e ao mesmo tempo uma proposta de ação, de amor ao próximo, unindo emoção e razão, vivência e conhecimento técnico. Este livro é um olhar para além do acadêmico, uma visão Humanista e Espiritualista da nossa corresponsabilidade na construção de um mundo mais justo, de uma vida mais digna para todos. Antes de prosseguir, quero expressar a minha gratidão pelo convite, num primeiro momento, para revisar este manuscrito, não em seus aspectos teóricos ou linguísticos, mas naquilo com que eu podia colaborar: oferecer o feedback de um leitor que, apesar de nunca ter ido à África, comunga muitas ideias com a autora, minha amiga Andrea Silveira. Depois, num segundo momento, pelo convite para escrever o prefácio, o que muito me honrou, pois sei de seu afeto por esta obra. De maneira imprevista e por mim não esperada, num reencontro com a autora, depois de quase um ano de sumiço do Brasil e após a sua aventura pela África, ela me deu a oportunidade de contribuir, com o meu olhar, para o registro da sua experiência em um projeto social naquele continente. Processo marcado também pelo seu desejo de sintetizar o momento de Vida, a história pessoal e a trajetória profissional, numa espécie de balanço sobre um trecho da sua caminhada – que, desde já, desejo que seja longa, pelo muito que ela tem a contribuir. Wontanara – estamos juntos? Sim! Talvez eu seja a primeira feliz “vítima” dessa obra. Na realidade ninguém é vítima; todos nós, de alguma forma, somos os artífices de nossa vida, através das nossas escolhas! E espero que você, leitor, ao final se sinta também uma feliz vítima do encontro com este livro e possa responder SIM à pergunta inicial do seu título. Certamente, este livro, que antevejo como um projeto, terá desdobramentos, pois possui um potencial para auxiliar a quem deseja participar de projetos sociais de uma maneira consequente! Sem dúvida, Wontanara: estamos juntos? 10 irá emocionar as almas sensíveis, já que foi construído com muito carinho. Fruto de um momento especial na vida de sua autora, dos seus sonhos, ideais, encontros, desencontros, realizações e fracassos, o que só o enriquece. É um livro com alma! Sua obra é fruto de uma sólida formação acadêmica, de um rígido senso crítico e ético, de uma visão humanista e busca espiritual. Pelo menos é assim que vejo a autora, desde quando os nossos caminhos se cruzaram, intercalados de momentos distantes e outros mais próximos. A emoção e a sensibilidade que relato no meu envolvimento com este seu projeto estão presentes ao longo de todo o livro, que fala de um certo modus operandis da autora e da sua proposta de ação social, baseada em afeto, na valorização do outro, no estímulo aos potenciais de cada pessoa, no engajamento pela construção de um mundo melhor para todos. Neste início de século XXI a Humanidade e o planeta Terra se encontram em um momento crítico e de perigo. Aquele momento onde é real e muito próxima a possibilidade de autodestruição da Humanidade. Momento em que os valores dominantes se esgotam em si mesmo. Ponto onde o outrora remédio, vira veneno! Só a mudança de paradigma e a adoção verdadeira de novos valores poderão proporcionar uma saída! É real a possibilidade de destruição, mas o otimismo presente na visão Humanista aponta para a esperança e fé no potencial humano. O livro “Wontanara” toca nestas questões, ao relatar a experiência de uma psicóloga social num ponto da África, na Guiné, através do trabalho humanitário de uma ONG internacional. A autora faz uma ponte entre culturas, comunidades e pessoas, como ela gosta de dizer: “construir pontes entre o abandono e o aconchego, entre o injusto e a igualdade de direitos, entre a miséria e a possibilidade de realizar sonhos”. Ponte entre culturas e visões de mundo é bem mais difícil do que construir uma ponte física entre dois pontos fixos e distantes, desafio para os engenheiros. Ponte entre as diversidades culturais, entre as diferenças sociais, econômicas ou educacionais, e entre as comunidades ou as pessoas que compõem a grande família Humana, é um desafio bem maior! Pois exige sensibilidade, escuta, empatia, compaixão, tolerância comprometimento, solidariedade. Não se tem fórmulas ou cálculo preciso na sua construção, muitas vezes precisa mais do que suor: demanda lágrimas, afeto, sorriso, gentileza, alegria. Wontanara: estamos juntos? 11 Fiquei feliz que a autora, após conseguir transformar em um belo texto a rica experiência vivida, elaborou, em paralelo, o Caderno Técnico, propondo caminhos para uma ação social, a partir de sua visão de “intervenção” social, coerente com princípios éticos, com uma visão humanista, espiritualista e critica. Aos que se interessarem para além das crônicas e quiserem estar juntos em algum projeto de ação social, os dois livros são plenamente complementares: emoção e razão, ciência e espiritualidade, crítica e engajamento, noite e dia, sol e lua. Com os dois juntos a vivência não fica sem fundamentação e referências técnicas. O teórico não fica frio e vazio, ganha emoção, espiritualidade e valores. Convido o leitor para saborear os capítulos deste livro e acompanhar, passo a passo, a história que levou a autora à África: suas expectativas, descobertas, frustrações e questionamentos. Mas, fiquem atentos às frases especiais e de efeito, ao longo do relato! Há muito material para reflexão nos momentos poéticos e belos, como um por de sol, e em outros, com críticas de tirar o fôlego, como um soco na boca do estômago dado por um pugilista profissional. Pelo menos, foi como eu senti! Diferentes leitores poderão experimentar diferentes emoções e chegar a outras conclusões. Eu sei que a mim emocionou! Me fez refletir! E sei que todos os que fazem parte da mesma tribo, a dos que anseiam por um mundo melhor e mais humano, irão se encantar. WONTANARA!! Guilherme Azevedo do Valle Brasil, Curitiba, fevereiro de 2014. Wontanara: estamos juntos? 12 Wontanara: estamos juntos? 13 A ntes mesmo de c o me ç ar Wontanara2 é uma expressão africana que significa “estamos juntos”. Termo soussou, uma das etnias na Guiné3 , amplamente utilizado pelas demais descendências do país. Palavra simples, carregando um universo de possibilidades para as relações fraternas entre povos de um mesmo país e diferentes continentes. 2. A pronúncia correta da palavra é: uontanará 3. A Guiné é também conhecida como Guiné-Conakry, para diferenciá-la da Guiné Bissau. É difícil pronunciar essa palavra sem que o som não tenha como origem um lugar especial: o fundo do coração. Ela sai da nossa boca, explodindo dentro dos ouvidos do mundo, como fogos de artifício feitos de alegria e amor. “Estamos juntos” quer dizer “navegar no mesmo barco e coordenar os remos, de mãos dadas”. Implica nos reconhecermos em idêntico nível e posição, em sintonia e pé de igualdade. Mais do que isso, Wontanara expressa o desejo genuíno de dois serem um só, buscando o elo comum. Traduz o testemunho partilhado e a cumplicidade no processo de ser e fazer. Revela o acolhimento da diversidade de todas as etnias, todos os credos. É a unidade incorruptível. Wontanara: estamos juntos? 14 Assim, ao tentar descrever minha experiência na África, em apenas algumas páginas, não poderia encontrar palavra melhor para contemplar, com tanta qualidade e emoção, o que foi o meu cotidiano. Durante onze meses, não existiu dificuldade ou contratempo capaz de despertar em mim qualquer arrependimento por estar ali. Mesmo com todas as ressalvas e críticas sobre a intervenção institucional e as adversidades impostas pela realidade física do lugar, me sentia remando com os guineenses. Esta é uma história de amor, não apenas pela equipe maravilhosa com quem convivi. Amor que nasceu há muito tempo, sem eu perceber, e foi cultivado, por uma parte de mim, desde então. Me dei conta de que ele pulsava quando eu já estava instalada em Conakry, durante um seminário organizado com grupos de diferentes associações de apoio às pessoas vivendo com o HIV/AIDS. Após me apresentar, alguns deles perguntaram por que eu havia escolhido a África e, imediatamente, respondi: “Por amor. Um amor que me conquistou aos dez anos de idade!” Ao voltar para o Brasil, vários amigos sugeriram que eu escrevesse sobre minha vivência. Inicialmente relutei. Havia divergido do modelo de intervenção da ONG em que trabalhei, tinha passado por situações delicadas no campo e não queria tornar públicos determinados “absurdos”. Somente depois de muito conversar e refletir sobre o assunto, entendi que não haveria mal algum em compartilhar minha jornada na Guiné. Afinal, todas as vivências são permeadas de desafios e oportunidades. De coisas que inicialmente nos fazem mal, mas que depois, com o tempo, se tornam lições importantes para o nosso caminho. O que experimentei foi de uma riqueza ímpar e eu tive muito mais insights sobre a vida do que decepções. As ressalvas se referiam apenas a dois aspectos: a metodologia de intervenção e algumas contradições no campo da ética. Mas isso tem a ver com a minha forma de conceber o mundo e nossas ações sobre ele. Muitos voluntários viveram e continuam enfrentando as mesmas contingências que eu e reagiram e reagem de outras formas. Wontanara: estamos juntos? 15 Portanto, as páginas que se seguem refletem um estado de alma (da minha!) muito mais do que uma verdade absoluta. Uma perspectiva (a minha!), muito mais que uma razão. Houve momentos de magia (de todas as cores!) e outros de puro descontentamento (organizacional). Alguns momentos de clareza e outros em que a realidade ficava turva demais para encontrar a porta de saída. Mas, em todos eles, eu não estava sozinha. Minha crença espiritual me permitia reconhecer uma força sagrada acompanhando meus passos e estimulando o encontro com outras almas. Eu percebia as energias se convergindo, o que me possibilitou superar os desencantos e viver um grande amor pela África. Verdadeiras alianças, que me fizeram persistir no ideal humanitário. Alguns podem tecer críticas, afirmando que estou supervalorizando uma experiência na Guiné, como se ela fosse representativa de um continente com muitos países. Seria um argumento legítimo, não fosse a intensidade do meu sentimento. Identifico-me não apenas com os soussous, malinkés, poulars, forestiers. Trata-se de um tipo de amor sem bandeiras. Só tenho a agradecer por tudo e a todos. E esclarecer que estas linhas, mesmo que deixem escapar certo tom de contestação, representam minha maneira de honrar este coração africano. Wontanara: estamos juntos? 16 Capítulo 1 Wontanara: estamos juntos? 17 1 Qua ndo e u Cre sc e r ... Caminhava rua abaixo, em direção ao centro da cidade. Sem compromisso, sem destino certo. O plano era passar aleatoriamente pelas lojas para encontrar o que eu precisava. Mas nem lembro me exatamente o que era. Nessa altura do campeonato, isto não tem a menor relevância, pois esse dia mudaria a direção da minha vida, muitos anos mais tarde. “No meio do caminho tinha uma pedra. / Tinha uma pedra no meio do caminho”. Uma pedra social. Do tipo que a sociedade tem costume de esconder ou ignorar. Mas o que fazia uma pedra no caminho do centro da cidade? Alguns quarteirões antes de chegar no calçadão do comércio, passei em frente a uma casa e minha atenção foi capturada imediatamente. Havia uma espécie de orfanato instalado ali e várias crianças corriam pelo alpendre. Até aquele momento, não fazia ideia de que as crianças “podiam” ser abandonadas de verdade. Já tinha ouvido falar de instituições como aquela, mas nunca havia colocado meus olhos sobre uma. Igual a todas as crianças de classe média, numa cidade do Wontanara: estamos juntos? 18 interior, minha infância aconteceu na rua. Não porque meus pais me abandonaram ou fossem negligentes. A rua era o lugar onde a vida desabrochava, longe do controle dos adultos. O contato com a realidade social era mediado pelas brincadeiras. Eu sabia da pobreza, da violência, da problemática social, do caos que poderia ser um lar desequilibrado. Isso fazia parte do meu contexto e relações de vizinhança. Era tudo “normal”. Simplesmente eu não tinha um olhar crítico para esses fenômenos. Por isto, como dizia Drummond, “Nunca me esquecerei desse acontecimento, / na vida de minhas retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra.” Mas eu era uma criança saudável e minhas retinas estavam, no máximo, condicionadas a ver o mundo colorido. Pelo menos, até eu tropeçar naquela pedra. Devia estar beirando os dez anos de idade. Entrei no orfanato como voluntária e ali resolvi: quando eu crescer, quero construir pontes entre o abandono e o aconchego, entre o injusto e a igualdade de direitos, entre a miséria e a possibilidade de realizar sonhos. No meio do caminho, meus olhos se abriram diante do mundo e aprendi que a vida era muito mais complexa do que jogar taco na rua e mais desafiadora do que brincar de esconde-esconde. Embora eu já ensaiasse os primeiros confrontos com a realidade, por meio das minhas redações da escola, foi ali que o meu senso de humanismo adolesceu. Os anos se passaram e aquela experiência social com as crianças do orfanato ocupou um lugar na minha memória remota. Por razões que ainda desconheço, minha vida de voluntária durou pouco. Tudo o que consigo recuperar desse arquivo é a imagem daquela casa azul e o registro das crianças em meio a uma gestão institucional questionável. Nos anos seguintes, minha vida foi tomada pelas tradicionais questões de uma adolescência rebelde e nunca mais voltei a enxergar a realidade com as mesmas lentes ingênuas. A revolta se instalou no cotidiano, mas a preocupação maior era me adaptar ao meio ao invés de contestá-lo. Embora, dizem, meu poder de argumentação fosse aguçado, era mais Wontanara: estamos juntos? 19 fácil agir por conta própria do que lutar para ter razão. Naquela época, eu já deduzia: ser feliz e ter razão são, frequentemente, incompatíveis. Olhando para aquele período, acho que o mais engraçado foi me deparar com o desejo de ser freira. Claro, minha motivação não era legítima e recebi orientações para canalizar meu potencial de solidariedade de outras formas. Foi quando a juventude chegou e debutou, intensamente, no curso de comunicação social. De repente percebi as janelas se abrindo no horizonte e a infinidade de coisas que precisariam mudar para que a nossa sociedade fosse, de fato, um espelho da centelha divina que existe dentro de nós. A transformação tinha que começar dentro de mim. Por sorte, ou por destino, as contingências da vida se tornaram, gradativamente, grandes lições de amor e desamor. Elas retiraram, pouco a pouco, o véu de proteção que cobria meu ideal de sociedade. Ainda assim, eu passava a maior parte do tempo trabalhando no projeto de ser uma pessoa melhor e sobrava pouca energia para investir no projeto de salvar o mundo das injustiças humanas. Eu continuava procurando uma vocação para quando crescesse. Wontanara: estamos juntos? 20 Capítulo 2 Wontanara: estamos juntos? 21 2 Encontrando m in h a VO C AÇÃO Com o meu histórico de vida, eu poderia ter sido a própria contradição ambulante. Andar descalça na praça, com o cabelo trançado, vestindo roupa de algodão cru e as orelhas enfeitadas com falsas penas de aves; colocar no pé um salto número dez, combinando com a bolsa e o jeans de marca, da última coleção para ir ao clube social. Desde a primeira vez que subi as escadas daquela casa azul para brincar com os “órfãos” até reconhecer a minha vocação, oscilei exageradamente pelos prováveis extremos. Sem nenhum arrependimento! Eu seria injusta se dissesse “pouco importa tudo o que eu fiz, afinal acabei me encontrando”, pois foi justamente esta ondulação existencial que me trouxe até aqui. A experimentação de todas as possibilidades permitiu o amadurecimento da minha vocação e também a lapidação de quem sou. Cada história vivida, todas as tentativas, erros e acertos. Detalhes pequenos, na ocasião, tornaram-se referência decisiva para as minhas escolhas, anos mais tarde. Eu me lembro da regra defendida pelos meus pais para nos ajudar a colocar ordem no devaneio: “Nunca abandone as coisas pela metade. Defina sua meta e trabalhe por ela do Wontanara: estamos juntos? 22 começo ao fim!” Éramos incentivados a buscar a estabilidade como forma de manter o juízo e a normalidade. Mas eu queria e fazia qualquer outra coisa, exceto isto. Afinal, me encontrava em plena juventude, no desabrochar da identidade social. Queria arriscar e me tornei uma espécie de ovelha desgarrada. Analisando minha trajetória, tenho uma coleção invejável de coisas deixadas para trás. Contradizendo o estabelecido, comecei e parei, sem concluir, diferentes atividades, cursos de música e esportes. Alimentava um enorme interesse pelo mundo e explorava suas fronteiras. Inclusive a primeira faculdade, de comunicação social, eu interrompi pela metade. Minha curiosidade era um dom precioso e, forjando exceções à regra, fui acreditando na intuição de que o cosmo tinha muito mais a oferecer. Era uma cidadã do mundo e isto constituiu um princípio fundamental: minha nacionalidade humana. A abundância de experiências foi responsável por construir uma base sólida de valores pessoais e ajudou a esclarecer que a minha vocação, de fato, era ser engenheira: construir pontes para ligar a teoria à prática e unir caminhos; edificar portas de entrada para soluções factíveis de enfrentamento dos problemas; abrir janelas para expandir o potencial humano. Isto demandaria postura inovadora; flexibilidade para acolher o novo e me desapegar de paradigmas; determinação para transformar a realidade. Foi assim que, em “idade mais avançada”, resolvi ser psicóloga e voltei para a Universidade. Porém, com o conhecimento já adquirido quando morei na França, não poderia escolher ser psicóloga e ponto. Observando vários trabalhos da psiquiatria cultural, realizados por alguns franceses, eu estava decidida a enriquecer a minha prática. Queria agregar a perspectiva de que somos seres conectados por uma força de atração muito além das tramas psíquicas. Por isso, tinha que acrescentar um qualitativo no meu papel: psicóloga social foi a alternativa que mais me aproximou daquela casa azul. Wontanara: estamos juntos? 23 E toda vez que penso sobre como a minha vocação de engenheira ressignificou o meu trabalho como psicóloga, fico agradecida profundamente por ter quebrado a regra e assumido o compromisso com a mudança, com o “desenvolvimento” da minha alma humana. Nem imaginava, quando subi as escadas daquele orfanato, a repercussão que ele teria na construção do meu Ser. No campo profissional, depois de ter me formado, dei início a vários projetos, mas raros foram aqueles que eu mesma concluí. Não por falta de instrumentos ou de conhecimento. Apenas porque fazia parte da caminhada. Eu era somente coadjuvante do processo. Acabei me especializando em construir pontes e em ajudar a travessia entre as margens. O resto, cada um fazia por si mesmo. Minha vocação se definiu assim: simplesmente criar ferramentas e condições para que as pessoas assumam o leme e posicionem as velas de maneira favorável ao sopro do universo sagrado. Wontanara: estamos juntos? 24 Capítulo 3 Wontanara: estamos juntos? 25 3 O SALTO Q U Â NTI CO Dizem que tatuamos nossos ideais na alma, mas que o cotidiano se encarrega de esconder as pistas que nos levam a reencontrá-los. Assim, passamos uma vida inteira a percorrer atalhos na busca da realização pessoal. Estrada afora, vamos espalhando as migalhas de pão e marcando o caminho de volta. Contudo, depois de vagar em círculos, constatamos que alguns episódios apenas nos distanciam do ponto de partida: a morada interior. Aprendemos que é desnecessário ir tão longe para chegar tão perto. Nem precisamos de tanto tempo. Às vezes, um único raio de luz é capaz de nos fazer enxergar nosso caminho. Os contornos da estrada se tornam perceptíveis quando recebemos uma sacudida da vida. Daquelas que nos fazem perder o prumo, num primeiro instante, e em seguida recuperar a lucidez cósmica. Momentos mágicos que nos reconectam com a realidade da alma. É quando, enfim, conseguimos colocar nossa vocação a serviço da profissão para a qual nos preparamos e integramos tudo isto com o compromisso da transformação. O resultado Wontanara: estamos juntos? 26 é incontestável: engajamentotal! No meu caso, o turning point 4 veio mascarado de perda. Foi preciso experimentar, de fato, minha capacidade de amor incondicional para recolocar o trem no trilho. Sempre achei a maternidade uma forma de desenvolvermos este potencial dentro de nós. Porém, acabamos transferindo nossas expectativas para os filhos, o que nos impede de amar sem barganha. 4. Momento em que ocorre uma mudança de paradigma significativa, impulsionando novos movimentos e configurações na vida, conforme explica Fritjof Capra. Já acompanhar alguém no seu leito de morte é, invariavelmente, um teste para a solidariedade e incondicionalidade do amor. Amálgama necessária no caminho. Ao exercitar a doação daquilo que tinha de melhor em mim, “des-cobri” o que tinha de melhor em mim e pude enxergar o quanto queria me entregar por completo à minha vocação. Ainda encontro alguns resquícios de dúvida sobre o que faria se não tivesse passado por um luto. Porém, cada vez com menos frequência, questiono as estratégias do plano espiritual para me impulsionar até o começo do resto da minha vida. Aquele foi o raio de luz necessário na configuração do agoraqui. Estar nesta situação, repassando minhas memórias e emoções, compilando os registros de uma vida inteira, representa a “cereja em cima do bolo”. Não tenho certeza do que vem pela frente. Abandonei essa preocupação no auge da minha equação africana. Aprendi a lidar mais com as possibilidades e a evitar expectativas. Hoje, quando defendem a evolução da vida íntima em saltos quânticos, entendo bem o que isto significa. Compreendo por que muitas pessoas levam anos a fio para mudar de estágio, enquanto outras nem realizam mutações profundas. A tarefa é complexa, pois nossa existência transcende o tempo e o espaço. Semelhante àquelas tatuagens que gravamos na alma do infinito. É preciso morrer, a cada dia, para nascer na eternidade. Encontrar um ponto de equilíbrio que viabilize a coexistência de todas as nossas descobertas e consiga harmonizar os ideais Wontanara: estamos juntos? 27 e os dados de realidade com atos transformadores é o grande desafio de quem deu o salto e está prestes a aterrissar em um novo ciclo de vida. Após despertar para o universo, foi fundamental juntar as peças do quebra-cabeça e processar a noção do todo nas suas várias partes. Ao fazer isso, constatei que a minha vida de “engenheira-psicóloga-social” carecia de rumos concretos e que, por fim, eu deveria me desapegar da rotina para ousar novos atalhos. Naquele ano, a vida virou do avesso e eu comecei a entender minha vocação. Finalmente, estava pronta para abandonar o porto seguro e colocar meu barquinho em alto-mar! Wontanara: estamos juntos? 28 Capítulo 4 Wontanara: estamos juntos? 29 4 WE PLAN A S WE GO Planejamos conforme o andar da carruagem ou, como ensinava Paulo Freire, educador brasileiro, o “caminho se faz caminhando”. Se pudéssemos integrar esta máxima em nossa prática, evitaríamos uma série de atropelos. Mas ainda que eu tivesse dado o salto quântico transformador, demorei alguns anos para incorporar este registro. Depois do ano da reviravolta, fiz um retiro espiritual e um curso de introdução ao Budismo Tibetano na Índia e, na sequência, mergulhei no pragmatismo científico com o doutorado nos Estados Unidos. Esses dois eventos aceleraram meu movimento de sair da zona de conforto. O primeiro, porque reafirmou minha base de valores e consolidou a crença de que era crucial trazer para o campo profissional a vivência espiritual. O segundo, porque reforçou a necessidade de buscar outras estratégias de intervenção profissional que honrassem minha visão de homem e de mundo. Voltei para o Brasil entusiasmada para sair do Brasil! Tinha clareza de que o meu lugar era não ter um lugar comum. Considerando as novas perspectivas de trabalho comunitário, Wontanara: estamos juntos? 30 estabeleci o prazo de cinco anos para redirecionar meu caminho. Comecei a pesquisar várias instituições, a analisar diferentes possibilidades, e revigorei esse processo, me envolvendo com alguns projetos interessantes no cenário nacional. Minha experiência anterior com comunidades em situação de vulnerabilidade, o senso de organização e gestão de recursos e a capacidade tecnometodológica se tornaram cúmplices da minha vocação. Pela primeira vez, eu estava arquitetando um trabalho de corpo, alma e conhecimento. E sabia: em cinco anos me mudaria para sempre da minha casa e trabalharia como “engenheira”, num mundo sem fronteiras. Mas planejamento não é uma camisa-de-força. Os cinco anos viraram três. E antes de abrir meu plano de voo para revisar a rota, o destino tomou as rédeas da carruagem em suas mãos, mudando discretamente seu curso. Desfiz o meu lar e tomei outros rumos, mesmo achando que estava me distanciando do plano original. Mais uma lição e oportunidade de resignação com a proposta do universo. Sinal de que podemos planejar nossas ações para asseguramos alguns procedimentos. Porém, no final do dia, o resultado será, impreterivelmente, derivado dos pequenos passos e decisões que tomamos enquanto caminhávamos. Foi então que decidi: daquele momento em diante, viveria a vida num tabuleiro de xadrez. Guardaria no pano de fundo a noção do todo e a função de cada peça. No mais, só escolheria o próximo passo quando a vida já tivesse feito sua jogada. E, com isto instituído, me aquietei. Até o dia em que recebi um artigo sobre o trabalho de outra psicóloga numa ONG humanitária, de atuação no âmbito internacional. Nem me lembro qual era o projeto em questão, mas me recordo perfeitamente do sentimento avassalador me provocando: “Está na tua hora. Vai lá. Faz a inscrição e deixa acontecer!”. Reuni meus documentos, revisei o currículo, escrevi a carta de motivação, preenchi todos os formulários solicitados e Wontanara: estamos juntos? 31 me propus realmente a desligar a cabeça desse fato. Aquela tradicional versão do efeito dominó é a melhor imagem para ilustrar o que aconteceu comigo depois que eu cliquei “enviar”. Aliás, abrindo um parênteses, o encadeamento de eventos é uma constante na vida de todos nós, e não especialmente na minha. Assim como outras pessoas, eu também passei a prestar mais atenção no cotidiano e a perceber melhor o fluxo, quando inaugurei a minha “jornada do herói”. Não há nada de extraordinário nisso quando, humildemente, aceitamos o comum: o ordinário do ser, o natural e espontâneo da vida, a comunhão cósmica. As coisas fluem naturalmente, quando nos permitimos a entrega com o coração. Duas semanas mais tarde, recebi o e-mail da ONG me convidando para participar do processo seletivo no Rio de Janeiro. Acontece que eu já estava até com a passagem comprada para visitar uma amiga carioca, exatamente no período em questão. Coincidência ou sincronicidade? Wontanara: estamos juntos? 32 Capítulo 5 Wontanara: estamos juntos? 33 5 O MUNDO E M GUE RRA E A PROPOSTA DE SALVÁ-LO Somávamos apenas três participantes no encontro que eu acreditava ser uma dinâmica de seleção. Ao contrário do tradicional modelo utilizado pelos recrutadores, não havia concorrentes entre si. Cada profissional representava uma área: médica, paramédica (meu caso) e não-médica. Apresentações feitas, falamos sobre nossas intenções e passamos a nos concentrar, essencialmente, sobre as muitas informações a respeito da instituição e do seu trabalho. Uma explanação bem aprofundada. Recebemos muito mais do que fornecemos. Se aquela reunião era para nos conhecerem melhor e analisar nosso potencial de colaborarmos com a Organização, então alguma coisa não estava muito clara. Mas, enfim, eles tinham nossos formulários em mãos, e talvez aquilo fosse suficiente. Na medida em que a Organização era promovida, uma espécie de encantamento foi tomando conta de mim. Realmente, é muito animador você pensar que tem uma “liga de superheróis” em vigília, pronta para combater o mal e salvar o mundo de si mesmo. Principalmente quando você já sabe que Wontanara: estamos juntos? 34 o mundo lá fora está em guerra e a miséria vem aniquilando populações inteiras. O discurso do “estamos fazendo alguma coisa” pode ser bastante convincente. E, na prática, se analisarmos os números, os resultados contabilizam a ajuda: com um real por dia, no final do mês, você consegue atender cem pessoas com água potável ou tratar uma criança desnutrida. Pode não ser um valor significativo, mas o mundo precisa deles, desde sempre. E para sempre, muito provavelmente. Participar de ações que podem fazer a diferença para milhares de pessoas é dignificante. A mínima possibilidade de contribuir para um bem maior já é, por si só, uma variável motivadora. Quem se inscreve num trabalho dessa natureza tem uma postura de solidariedade como base. Ninguém entra num projeto de salvar o mundo, pensando em ganhar dinheiro, status ou poder. Certo? Errado! Pesquisas já demonstraram que as pessoas se dedicam a trabalhos solidários por razões diversas. Não necessariamente elas têm um projeto de sociedade justa e igualitária. É uma ilusão acreditar que todos os praticantes do voluntariado comungam da mesma Ética e têm a mesma perspectiva de ação. Se eu pensava que a realidade seria diferente, por ser uma ONG internacional conhecida e sólida, fui logo mudando de ideia quando entrei na sala do recrutamento. A primeira pessoa que encontrei foi uma das participantes que chegou mais cedo. Procurando ser cordial com ela, tomei a iniciativa da conversa. Mas senti uma indiferença vindo do lado de lá, e pensei: “Nossa! Que destoante com este contexto!” Imediatamente me corrigi, autopoliciando meus estereótipos. Porém, ao longo da apresentação sobre a instituição, essa pessoa fez colocações tão bizarras que provocaram uma desconfiança maior ainda: “Ah! Deve ser uma atriz contratada para o role play, tentando desestabilizar nossas crenças humanitárias. É parte do processo de seleção.” Wontanara: estamos juntos? 35 Claro, eu estava enganada! Tratava-se de uma candidata ao trabalho humanitário. Quando saí do escritório, me sentia feliz pela chance de ter participado daquele encontro e conhecido melhor a Organização, mas cheia de dúvidas a respeito da minha escolha. Repetia para mim mesma: “Se eles contratarem alguém com o perfil daquela pessoa, vai ser difícil acreditar na seriedade da ONG!”. Devemos ser críticos sobre o propósito do voluntariado, mas é necessário aplicar a mesma lógica para analisarmos como as organizações sociais e humanitárias desempenham seu papel e suas funções. Em geral, somos seduzidos pelo próprio imaginário e passamos a acreditar que a resposta para a fome e flagelos das guerras está nessas doações e projetos. Isso representa um grande perigo. É fundamental usarmos um crivo menos ingênuo ao olharmos para essas instituições. Muitas delas operam como fachada para diferentes interesses minoritários. São as ONGs que “pelo menos, estão fazendo alguma coisa”. Numa outra categoria, encontram-se aquelas que, efetivamente, estão interessadas no bem comum e atuam com Ética, no sentido mais amplo do termo. Como preconiza o ditado popular: “É preciso comer um saco de sal juntos para realmente conhecermos nosso parceiro”. Enfim, só enxergamos a realidade institucional quando nos tornamos parte dos bastidores. Assim como nos deparamos com uma variedade de voluntários, também podemos encontrar todo tipo de instituição no terceiro setor. Acredito que tudo depende dos valores fundamentais da organização e da pessoa em questão. É perfeitamente compreensível que um voluntário selecionado se mostre inadequado para executar a tarefa, ao longo do tempo. E o inverso também é verdadeiro. Uma coisa é o que vemos ou queremos ver na propaganda, outra é o que descobrimos na realidade do trabalho de campo. Às vezes, o voluntário corresponde ao perfil desejado, mas o projeto foge dos seus parâmetros éticos. Wontanara: estamos juntos? 36 Capítulo 6 Wontanara: estamos juntos? 37 6 SONHOS QUE SE REALIZAM Alguns dias depois do encontro na sede da Organização, recebi um telefonema informando que eu havia sido selecionada e passaria para o banco de profissionais reservas. Isto significava que, tão logo eles tivessem necessidade de um profissional com o meu perfil, eu seria convidada para a missão. Num cadastro composto por centenas de pessoas de diferentes nacionalidades e perfis correlatos, isso poderia levar alguns meses. Não me importei com esta perspectiva. Sempre repetia, para mim mesma, que não importava o que fosse acontecer. Alguma coisa aconteceria, como sempre acontece, do jeito que deve acontecer. Enquanto esperava, comecei a ter aulas particulares para desenferrujar o francês. Achava que poderia ser enviada para um país de língua francesa. Recebi materiais adicionais sobre o trabalho da e na ONG e me dediquei a estudá-los com bastante atenção. Comecei a providenciar os documentos complementares solicitados e preparei uma espécie de arquivo impresso para enviar ao Escritório. Wontanara: estamos juntos? 38 Havia passado um mês, aproximadamente, e eu estava com outra viagem agendada para o Rio. Assim, resolvi fazer contato com os responsáveis do recrutamento, para combinar a entrega da pasta pessoalmente, numa segunda-feira. Cheguei à cidade no final da semana e, domingo à noite, tive um sonho: eu entrava no escritório da Organização, sendo recebida por um dos responsáveis, que me dizia: “Muito bem, temos uma surpresa para você. Encontramos uma missão que precisa de profissional com o seu perfil. Mas é num país da África, e você precisa partir dia 15 de novembro!”. Acordei com o coração batendo mais forte do que os tambores de Angola! O sonho parecia extremamente real, daqueles em que você sente até o cheiro das coisas. Os detalhes da sala eram vivos demais. Entretanto, como psicóloga, eu não podia ignorar as reminiscências do dia anterior. Afinal, eu estava no Rio, com a minha pastinha de documentos na mala e a entrega agendada. Esperava ser chamada. Era natural que meu sonho expressasse o desejo de partir em missão. Quanto à sala, eu já havia estado ali antes e guardava as informações na minha memória. Sobre o país, quando fiz minha inscrição no processo seletivo, registrei como preferência projetos na África, Oriente Médio, Ásia e América Latina. Exatamente nesta ordem de interesse. Por isto, um país da África não era nenhuma surpresa, já que o inconsciente é porta-voz de nossos anseios mais íntimos. Levei pouco tempo para recuperar o fôlego e colocar os pés no chão. Precisei pular da cama rapidamente para atender o telefone. Do outro lado da linha, uma das pessoas da ONG perguntava se eu já havia chegado no Rio e quando passaria por lá, pois precisavam conversar comigo. Meu corpo arrepiou todo e corri para o Escritório, a quatro estações de metrô. Mas àquela altura, já sabia o que estava para acontecer. Era só uma questão de chegar lá. Entrando na sala, dessa vez foi minha alma que arrepiou. Tudo parecia exatamente do jeito que sonhei, inclusive os Wontanara: estamos juntos? 39 móveis. Na época do recrutamento, a disposição era outra, o que tornava meu sonho ainda mais significativo. Emocionada com minhas constatações, recebi a notícia de que havia um projeto disponível para o meu perfil. O país de destino era de língua francesa, ficava na África ocidental e, se eu aceitasse o trabalho, teria que partir no início de novembro. Se eu aceitei? Sequer cogitei recusar. Estava pronta para partir. Tudo aquilo fazia sentido na minha história e representava apenas mais uma peça do dominó se movendo. Eu só precisava me entregar, no fluxo dos acontecimentos. E foi o que eu fiz. Em menos de um mês, solucionei todas as minhas pendências e ainda fui para Machu Picchu, com meu filho. Uma dessas viagens eternizadas na memória da alma, pela qualidade do afeto e do reencontro com o sagrado. Três dias caminhando na trilha dos Incas foi a medida certa, antes de partir para a África. Mas isto é uma outra história. Wontanara: estamos juntos? 40 Capítulo 7 Wontanara: estamos juntos? 41 7 MEU SO BRENOME ? METAMORFOSE Estava prestes a fazer uma mudança importante, de país e de trabalho. Morar nove meses em Conakry, na República da Guiné, e trabalhar numa ONG que eu desconhecia. Os amigos que acompanham meus passos sabem: mudança é palavra-chave, minha força motriz. Em constante movimento, tenho experimentado a vida nas suas diferentes perspectivas e aproveitado as oportunidades para alargar meus horizontes. Nem sempre consigo mudar, dentro e fora de mim, o que penso ser necessário. Mas pelo menos me lanço na roda do mundo e procuro girar com a energia transformadora. Mudança, com o objetivo de aprimorar aquilo que somos, é sempre muito saudável. Levanta nosso astral, sacode a poeira e nos faz enxergar melhor a nós mesmos e ao mundo onde vivemos. Mudança, quando aproveitada na sua essência, nos tira da zona de conforto e impulsiona a novos aprendizados. Mudança é experimentar a si mesmo e o fluxo da vida em si mesmo. Às vezes, provocada por fatores externos; outras, por motivações internas; e, em algumas situações, pela combinação destas variáveis. Difícil definir o meu caso. Wontanara: estamos juntos? 42 Quando contava para as pessoas sobre as coisas que ainda estava para viver, algumas me diziam: “Espero que você encontre aquilo que busca”. Outras se solidarizavam: “Tomara que você se encontre” ou “que você se realize”, ou mesmo “que você encontre a felicidade que procura”. Embora eu entendesse o sentido positivo que as pessoas atribuíam às suas falas e percebesse a torcida delas pelo “sucesso” das minhas empreitadas, me inquietava com o eco que essas colocações provocavam dentro de mim. Ficava me perguntando: “Seria possível uma pessoa ainda transitar neste planeta sem estar buscando alguma coisa? O que o fato de já me sentir realizada com a vida faz de mim: uma pessoa que não sabe reconhecer seus vazios e se coloca na busca permanente do Todo ou uma pessoa em paz com os vazios que a definem e que se coloca à disposição do Todo?” Lembro-me de um período de noites escuras e provações, numa época em que eu estava sempre correndo atrás da felicidade, mas não a encontrava. Fazia muitas coisas, e nada. Experimentava várias coisas, e nada. Atribuía a responsabilidade pela minha realização e felicidade a tudo e a todos que estavam ao meu redor e, óbvio, nada. A felicidade nunca estava presente e sempre parecia algo a ser alcançado num futuro qualquer. Custou muito (em vários sentidos!) para que eu, finalmente, entendesse o significado de Felicidade. E quando compreendi realmente o seu lugar, passei a Ser Feliz, permanentemente. Sem dúvida, fico triste com os antagonismos e desequilíbrios que permeiam nossas sociedades. As adversidades da vida me mobilizam profundamente. Mas me sinto feliz mesmo assim. Seria a felicidade plena, ou qualquer outra plenitude, apenas uma ilusão? Ou simplesmente podemos defini-la como “o estado da alma que encontrou, dentro de si, o amor incondicional e tenta romper com as fronteiras geofísicas da sua condição material”? Entendo que nenhuma doença, nenhum problema material ou dificuldade profissional, nenhum desentendimento pessoal ou desencontro afetivo, podem tirar de alguém a condição de Ser Feliz. Chamo isto de “felicidade sem fronteiras”. E Wontanara: estamos juntos? 43 minha alma é Feliz! Por esta razão, meus movimentos significam para mim muito mais do que a busca da felicidade. Reconheço-os como “sonhos que transcendem a esfera do ideal, para se concretizarem na realidade da minha alma”. Do racional abstrato para o palpável, com os braços do coração. E, assim, me deixo abraçar por essas oportunidades, como uma filha que recebe do Sagrado um presente de proporções eternas. Entrego todo o meu Ser à certeza da ressonância espiritual que essas experiências implicam. Acolho a metamorfose e agradeço. Deixo crescer dentro de mim um sentimento forte de responsabilidade por Ser Feliz e de compartilhar isso ao meu redor, onde quer que eu esteja. E agradeço mais uma vez. Permito que meu pensamento seja inspirado pelo conhecimento e vivência de outras pessoas, tomando para mim suas lições de humildade e determinação. E agradeço eternamente. Coloco-me a serviço do que se direciona a mim, confiando e reconhecendo sua sincronia com o Universo. E então concluo: não há busca; apenas, realização! Havia chegado a hora. Para aqueles que compartilhavam o mesmo caminho ou os seus atalhos, cabia registrar o meu carinho e apenas solicitar para me manterem em seus radares. Em breve eu partiria, mas manteria suas lembranças como uma luz acesa dentro do meu coração, finalmente africano! Wontanara: estamos juntos? 44 Capítulo 8 Wontanara: estamos juntos? 45 8 Peq ueno pa ís g r an des desaf io s A República da Guiné, quando comparada ao continente africano, permanece quase despercebida. Embora não seja muito pequena, é necessária uma boa escala para notarmos mais facilmente sua localização no mapa. O país faz fronteira com a Guiné Bissau, Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa, o Senegal e Mali, além do Oceano Atlântico. Seu território é configurado em quatro regiões: Alta Guiné, Guiné Média, Guiné Marítima ou Baixa Guiné e Guiné Florestal. Do ponto de vista administrativo, essas regiões subdividemse em oito, nas quais constam 33 prefeituras, 38 comunidades urbanas, mais de 300 subprefeituras e comunidades rurais. Mesmo depois de viver onze meses na Guiné, não consegui compreender exatamente como é segmentada sua política. Só consigo resumir dizendo que o país tem um governo federativo, com presidente e primeiro ministro, mas ainda não se estabilizou; já foi palco de golpe militar e conflitos étnicos importantes; a marcha rumo à democracia ainda é lenta; a eleição presidencial deveria ter ocorrido no ano em que cheguei (2011), mas limitou-se à promessa dos governantes. Wontanara: estamos juntos? 46 No total, são aproximadamente dez milhões de habitantes dos quais, dois milhões se concentram na capital, Conakry. Existe mais de trinta dialetos em todo o país, predominando quatro etnias: soussou, poular, malinké e forestier. A língua oficial, entretanto, é o francês, em função da sua colonização pela França. Praticamente 95% dos guineenses são muçulmanos e 5% professam outras religiões, em especial o catolicismo e a religião evangélica. O clima tropical faz a temperatura permanecer quase sempre elevada (a média varia entre 29°C e 35°C), com muita umidade. Os meses de novembro a maio são os mais quentes. No período de junho a outubro chove bastante, e o calor ameniza um pouco. A falta de estrutura das vias públicas e as condições precárias de saneamento básico ajudam a piorar o cenário, na época das chuvas, contribuindo para aumentar as inundações constantes e provocar surtos de doenças, principalmente o cólera. A Guiné é rica em ferro, diamante, ouro, bauxita e urânio. Entretanto, a taxa de desemprego é alta. O mercado informal, porém, tenta equilibrar o orçamento doméstico, permitindo a sobrevivência das famílias. O comércio ambulante é especialmente difundido na capital, que concentra um dos maiores mercados na região da África ocidental. Por onde se passa, encontramos pessoas (principalmente mulheres) com suas bacias e/ou cestos sobre a cabeça, vendendo comida e produtos industrializados. Culturalmente a diversidade é grande, pois em cada região são adotados costumes particulares em relação a modo de se vestir, gastronomia, música, artesanato, entre outros hábitos sociais. Por outro lado, a taxa de analfabetismo é enorme: apenas 30% dos adultos sabem ler e escrever. O IDH da Guiné é um dos piores do ranking e mais da metade da população vive abaixo da linha da pobreza. É uma nação jovem (42% da população tem menos de 15 anos), com baixa expectativa de vida (54 anos). Imaginem, eu estava com quarenta e sete anos quando cheguei na Guiné, ou seja, muito perto da idade de ser considerada uma “sobrevivente anciã”. Wontanara: estamos juntos? 47 Wontanara: estamos juntos? 48 Em média, são registrados cinco filhos por família. O status social da mulher permanece no limbo. Há uma feminilização da pobreza e do HIV/AIDS. Neste último caso, a prevalência não é oficialmente expressiva (1,5% no país, 2,1% na capital) e ainda não existe um programa nacional inteiramente gratuito para a população. A dupla estigmatização/discriminação resiste como forte inimiga dos guineenses infectados pelo vírus e alguns costumes agravam ainda mais sua propagação: cerca de 96% das mulheres são excisadas5 ; o regime da poligamia, permitido entre os muçulmanos, favorece a contaminação (lembrando que, na Guiné, o homem pode se casar com até 4 mulheres). Embora as adversidades sejam rotineiramente significativas, há uma aura de alegria no cotidiano guineense: o colorido das roupas, os panos que enfeitam as cabeças das mulheres, o sorriso sempre estampado no rosto, a movimentação nas ruas, a comilança desde as primeiras horas do dia. Para além da visível pobreza e precariedade de recursos materiais, encontramos a gentileza natural no aperto de mão, que é, impreterivelmente, acompanhado pelo nosso primeiro nome. Neste mundo, aparência e essência brigam entre si nas diferentes horas do dia, mas, no cômputo geral, é o encantamento pela alma humana que prevalece. Wontanara: estamos juntos? 5. Excisão feminina significa cortar e costurar, total ou parcialmente, os genitais da mulher. Também conhecida como “mutilação genital feminina”. 49 Capítulo 9 Wontanara: estamos juntos? 50 9 d e se m bA rc a n d o n o c am p o “Base para 106... Base para 106!” “Copiado 106.” “Estamos saindo do aeroporto, em direção ao escritório central. Motorista e Andrea estão no carro. Câmbio!” “Okay 106, bem entendido, Câmbio.” E assim partimos, o motorista e eu (agora com uma nova identidade: expatriada6), numa daquelas camionetes brancas grandonas, inaugurando a temporada de eventos atípicos, para mim. Independente da distância ou finalidade, a conduta para todos os deslocamentos feitos com o veículo da Organização era essa: você chama a Base pelo rádio, informa o número do veículo, de onde sai, para onde vai e o nome dos passageiros. Mas se você mudar o destino ou fizer alguma parada, durante o percurso, também precisa comunicar o operador do rádio. 6. Termo utilizado para se referir aos estrangeiros trabalhando num país diferente de sua origem. No aeroporto a espera para passar pela imigração havia sido diferente e longa. Entre tantas filas, acabei ficando por último Wontanara: estamos juntos? 51 (que novidade!), o que me deu a chance de observar toda a movimentação. Um vai-e-vem de pessoas acompanhadas por policiais (aliás, de quem pareciam muito amigas), furando a fila para se registrar no guichê dos agentes federais. Fiquei com a impressão de que havia algum favoritismo no procedimento, mas permaneci tranquila e calorenta. Após ver várias pessoas sendo maltratadas só porque haviam ultrapassado a linha vermelha traçada no chão, com a palavra “stop”, concluí que era mais prudente aceitar a lentidão do processo. Depois veio o “desembaraço” da bagagem, me lembrando de alguns aeroportos do Brasil, antigamente. Eles também tinham fiscais que conferiam seu ticket de bagagem e só então entregavam seus pertences. Como disse o funcionário do aeroporto, “assim é mais seguro e ninguém troca ou rouba sua mala”. Mas tanta precaução favorecia outro propósito, direcionado firmemente ao nosso bolso: “Pas de cadeau, madame?” 7 Pronto, também começava a “temporada da barganha”! 7. Expressão francesa que significa “sem presentinho, senhora?” Recordo de quando fui ao Egito e tudo funcionava dessa forma. Em Angola, o padrão era o mesmo. Mais recentemente, no Peru, a experiência se repetiu. A barganha é quase como um ato obrigatório. Faz parte do código cultural global e é praticada por todo mundo, nos diversos lugares e situações. Portanto, espera-se que você também adote esse comportamento. Ou seja, não existe compra sem uma negociação acirrada. Quando se trata de pedir propina, é bom você entrar no jogo do “Ahn? Não entendi!”, caso contrário sempre vai desembolsar um bom dinheiro para “presentear” todo mundo. No caso das compras, sou a favor de não pechinchar. Mas aprendi a ficar esperta e somar os valores rapidamente, para diminuir o risco de pagar mais do que o devido. Voltando ao itinerário inicial, depois de alguns minutos de congestionamento e buzina ecoando intensamente, chegamos à sede da ONG, ao lado do alojamento onde eu permaneceria pelo resto do período. Mochila para lá e para cá, fui instalada e voltei ao escritório. Por coincidência, a coordenadora do projeto encerrava sua missão e havia uma festa de despedida. Wontanara: estamos juntos? 52 Quase todos os expatriados e o staff nacional estavam presentes, o que foi ótimo para conhecê-los. Senti-me um pouco perdida com tantas apresentações, mas foi divertida a interação. Até dancei em ritmo africano! No dia seguinte, e até mesmo nas semanas seguintes, fui incapaz de repetir o nome daquelas pessoas. Realmente eram muitas, a música estava alta e os nomes guineenses são bem diferentes dos brasileiros. É horrível quando você reencontra a pessoa e não lembra se já haviam sido apresentados, muito menos qual o nome dela. Mas o fato é que os cidadãos guineenses são muito parecidos entre si. Tirando as mulheres, que dá para distinguir bem por causa das roupas (maravilhosas, diga-se de passagem!), os homens têm uma feição muito similar. Primeira dificuldade a ser superada no decorrer dos nove meses de missão. Algumas poucas horas depois de chegar à festa, o cansaço me convidou para bater em retirada. Voltei ao alojamento e, surpresa... não tinha mais água. Já prevendo essa possibilidade, havia tomado um “último-belo-banho” em Bruxelas, onde fiquei por alguns dias lidando com questões administrativas na sede da ONG. Então, nada que um punhado de lenço umedecido não desse conta de disfarçar. Tomar banho de gato é uma lição aprendida nas minhas expedições para a Amazônia. Essa não era a minha primeira vez. Como dizia uma amiga apaixonada pelos seus felinos, “os gatos são bem limpinhos e higiênicos”. Voilà! O alojamento era bem agradável, com estreita vista para o mar. Um prédio de estilo árabe e pé direito alto, causando a sensação de ser amplo. Tinha três andares: um apartamento em cada piso, destinado a três expatriados cada um, já que contava com três quartos individuais. Os apartamentos eram equipados com cozinha, copa, sala de estar e varanda. Parte do mobiliário era fornecido pelo proprietário e a outra parte ficava a cargo da ONG. Wontanara: estamos juntos? 53 Wontanara: estamos juntos? 54 Durante a semana, o almoço era preparado por uma cozinheira contratada pelo projeto e servido, no refeitório do nosso escritório, para todos os funcionários que cotizavam os custos. Cabia aos expatriados providenciarem o café da manhã, jantar e refeições do final de semana, se organizando individualmente ou em parceria com os demais colegas do alojamento. Como aterrissei em solo guineense no começo da noite de uma sexta-feira, só comecei a me inteirar do trabalho na manhã da segunda. Fui logo aprendendo que no final de semana a maioria dos expatriados aproveitava para descansar. Ritmo que não consegui respeitar. Mas, ainda assim, eu me obrigava a fazer algumas brechas refrescantes na piscina para aplacar o calor. Para resumir as impressões gerais do primeiro contato: Viva! Estava tudo certo! Finalmente em solo africano! As pessoas eram realmente simpáticas e, surpreendentemente, a estrutura da ONG era excelente! Conakry mais se assemelhava a um canteiro de obras: “ótimo, o país está em expansão!”, deduzi. O trânsito caótico e com pouca sinalização (eles se entendiam com os gestos e, principalmente, as buzinas) fazia a agitação de São Paulo parecer uma brincadeira de criança. O calor era intenso (“mas, ufa... tem ar-condicionado no quarto, no escritório”, conclui esperançosa), com bastante umidade. Como em toda cidade de praia, gotejávamos! Wontanara: estamos juntos? 55 Capítulo 10 Wontanara: estamos juntos? 56 10 bem -vind os a conakry África de muitos países, com um sincretismo cultural extraordinário, apesar da grande disputa de governos. Sem sombra de dúvidas, uma descrição rica sobre este continente pode ser encontrada no livro “Candongueiro – Viver e viajar pela África”, escrito pelo jornalista João Fellet. Ele viveu algum tempo em Angola e durante cinco meses percorreu pouco mais de dez mil quilômetros, visitando um total de quase quarenta cidades, em diferentes países da África. Recomendo! Seus relatos são ricos em detalhes e retratam muitas situações similares àquelas que eu pude observar na Guiné. Em Conakry também a vida parecia acontecer, sobretudo, no espaço coletivo. Tudo se passa nas calçadas, em frente às casas. As pessoas cozinham e se agrupam na rua para comer e conversar, festejam casamentos e batizados, tomam banho de bacia, lavam a roupa, vendem coisas, cortam cabelo e amarram suas tranças... na rua! Muitas, inclusive, fazem suas necessidades fisiológicas em via pública. Wontanara: estamos juntos? 57 Enquanto o lixo se acumula em determinados terrenos, os vários campos de futebol (de chão batido) estão quase sempre bem limpos e ocupados pelos jogadores. Para os guineenses, Brasil é sinônimo de Ronaldinho, Kaká, Roberto Carlos e, como não podia faltar, “Ronaldô”. Muitos, inclusive, ficaram tristes quando eu informei que o Fenômeno havia deixado o futebol, naquele ano. Os mais antigos ainda evocavam o nome do Pelé e faziam questão de registrar sua admiração pelo rei. Na primeira semana de trabalho, fiz uma visita aos cinco Centros de Saúde com os quais trabalhávamos no projeto e tive a oportunidade de passar por diferentes bairros. Quer dizer, na prática, sua estrutura é similar: as casas são mais ou menos padronizadas e as ruas, na sua maioria, sem asfalto. Durante o percurso, muitas feiras, muitas mulheres e crianças de colo. Nessas feiras abertas, podíamos encontrar de tudo. Desde alimentos até roupas e outros produtos industrializados, de uso pessoal e doméstico. As mulheres, na sua maioria, com os panos coloridos na cabeça. Dependendo do bairro, víamos mais ou menos muçulmanas de véu ou de burca. As crianças, invariavelmente nas costas das mães, sempre dormindo tranquilas, como se o mundo não existisse para além daquele corpo. Repetidamente, meus olhos eram capturados por imagens de crianças pequenas que carregavam, nas suas Wontanara: estamos juntos? 58 costas, um outro bebê (provavelmente irmão ou irmã). Era fascinante! No trânsito, muitas curiosidades. Às vezes, eles param o carro em fila tripla e ninguém mais passa na rua. Dá-lhe buzinar! Não existe ônibus municipal. O transporte coletivo é feito pelas Mabaras, como chamam as vans de lotação. Um dia vi uma delas cheia de crianças uniformizadas. Eram quase cinquenta! Nem consegui contar quantas cabecinhas avistava, tamanha aglomeração. O mesmo se repete para o transporte de carga. Os táxis, que em geral são veículos velhos, circulam com os porta-malas tão lotados, que nem podem fechar a tampa. Os pneus ficam arriados com o sobrepeso. Por mais surreal que possa parecer, vi um deles transportando um boi inteiro, amarrado pelas patas e com a cabeça ligeiramente tombada. Imagino que o boi estivesse morto. Pobre coitado. Tomara mesmo que tenha sido um boi morto! Os primeiros quinze dias voaram. O trabalho fluía tão tranquilamente quanto a interação com o staff nacional e expatriados. As dificuldades iniciais com a língua e o impacto do calor logo cederam espaço para contemplar a convivência com os guineenses. Na maior parte dos dias, eu custava a pegar no sono, porque o coração não parava de pular de alegria e de sorrir me dizendo: “Obrigado por essa oportunidade!” Wontanara: estamos juntos? 59 Wontanara: estamos juntos? 60 Capítulo 11 Wontanara: estamos juntos? 61 11 o ta bu d o hiv / ai ds n a guiné No dia primeiro de dezembro daquele ano realizamos um grande evento de sensibilização em favor da luta contra a estigmatização e a discriminação de pessoas vivendo com HIV/AIDS. Promovemos várias palestras ao longo do mês, visitando escolas, abrigos de jovens e centros de saúde. A mensagem, além de combater o preconceito, alertava sobre os riscos de contaminação e estimulava o diagnóstico precoce entre mulheres grávidas. Wontanara: estamos juntos? 62 A população tende a ignorar os cuidados básicos de proteção e a observância do tratamento quando descobrem sua soropositividade. As razões para isto compõem uma rede complexa de fatores culturais, sociais, políticos e econômicos. O país não conta com uma política de saúde efetiva no caso HIV/AIDS, embora exista um plano nacional elaborado de forma abrangente e competente. Na prática, as pessoas infectadas pelo vírus devem pagar pelo tratamento, o que representa uma fortuna. Todo serviço de saúde é pago. Existem centros de saúde privados, confessionais (de organizações e/ou fundações da sociedade civil) e estatais, mas mesmo nesses últimos a assistência é cobrada, pois cada centro deve se autofinanciar por meio dos serviços prestados. Ou seja, não existe um plano social subsidiado. Independente da gratuidade oficialmente declarada, a disponibilização dos medicamentos não é assegurada: falta importação e distribuição equânime. Do ponto de vista sociocultural, a coisa se complica ainda mais. Semelhante ao efeito dominó, uma variável puxa outra e juntas formam uma bola de neve capaz de propagar o vírus e comprometer a adesão ao tratamento. Muito resumidamente (e correndo o risco de não estar percebendo corretamente o cenário), ali uma pessoa diagnosticada HIV+ tem grandes dificuldades para anunciar sua condição, inclusive entre familiares. Motivos... variados! Ponto comum: a discriminação, a reclusão, o medo. Quando a família é muçulmana, isso pode significar a completa exclusão da mulher. Ela é pressionada até o ponto de perder o direito sobre os filhos. Já o homem, ele teme o conflito entre suas diferentes esposas. Nos dois casos, não há sexo seguro, o que leva à contaminação de vários adultos do mesmo grupo. Sem contar as crianças geradas no anonimato da soropositividade. Porém, o problema de esconder a condição de HIV+ não existe apenas entre os muçulmanos. O mesmo se passa com famílias de outras religiões e, no geral, há muitos (muitos!) casos de abandono, divórcio, rejeição e suicídio. Wontanara: estamos juntos? 63 Ao esconder sua soropositividade, a pessoa vive um pesadelo ainda maior (o peso do diagnóstico e a reclusão social) e também tem mais dificuldade para seguir corretamente seu tratamento. Seja por conta do dinheiro necessário para comprar a medicação ou porque precisa justificar o fato de tomar remédio, aos familiares e amigos da sua convivência. Mesmo no caso do nosso projeto, em que tudo era gratuito (diagnóstico, consultas médicas, acompanhamento psicossocial, exames, medicação e internação sempre que necessário), a adesão ao tratamento representava um dos pontos mais sensíveis. Frequentemente, as pessoas relatavam que preferem esconder a medicação para tomá-la longe dos olhos dos outros. Levem em conta que a vida por lá é muito coletiva e compreenderão, de relance, o quanto isso complica a manutenção dos horários e a frequência com que ingerem corretamente os comprimidos. Resultado: o tratamento não funciona como esperado, inclusive podendo elevar a carga viral no organismo. O problema se estende também para o nível clínico. É comum o fato de pessoas soropositivas não assumirem isso frente ao cônjuge também soropositivo e manterem relações sexuais sem proteção. Resultado: reinfecção, mutação do vírus, aumento da resistência em relação ao medicamento anteriormente utilizado. A dificuldade do sexo protegido tem sua raiz na falta de informação sobre como utilizar o preservativo (seja masculino ou feminino), na escassez do produto de qualidade e, sobretudo, em mitos e verdades associados ao uso da camisinha: diminui a sensação e o prazer; se usar é porque está traindo o cônjuge. Para o africano adiciona-se, ainda, uma dose de machismo, pois isso é encarado como uma afronta para a sua virilidade. Mesmo algumas africanas sentem sua honra questionada: “Quem você pensa que eu sou? Não sou como essas por aí!”. Resultado: HIV 10 X 0 Proteção. Eram muitas as histórias e as justificativas. Todas denunciavam o descaso, o descuido, a desvalorização da vida e das relações humanas. E não podemos pensar que isto ocorre somente entre as pessoas soropositivas. Estamos todos implicados Wontanara: estamos juntos? 64 nessa teia. Como eu nunca havia trabalhado diretamente com pessoas que lidam com o HIV no seu dia a dia, não saberia dizer, mesmo hoje, como as coisas acontecem em outros países. Porém, imagino que tudo isto não seja uma prerrogativa da Guiné. Reforçando o coro, o maior problema não é o vírus em si. Ele pode ser controlado e representa apenas a ponta do iceberg! Wontanara: estamos juntos? 65 Capítulo 12 Wontanara: estamos juntos? 66 W ON TA NAR A 12 Ikhéna Bom dia Wonouwali Wotobarafa Agradeço a presença de vocês MBaraGnakhalin Estou feliz por estar aqui Wontanara Estamos juntos Assim comecei minha primeira reunião com o staff psicossocial do projeto, provocando um burburinho entre os presentes. No início da temporada encontrava dificuldade para discernir quando eles falavam em francês ou no dialeto local, pois misturavam as línguas numa mesma frase. Naquele dia, a equipe também reagiu como se não entendesse muito bem que eu tentava falar no dialeto soussou. Quando compreenderam aqueles sons, mesmo carregados de um sotaque desconhecido, todos demonstraram entusiasmo. Foi muito divertido. Desejava agradecê-los por estarem todos ali, acolhendo mais um expatriado chamado a colaborar com o projeto. Queria sinalizar meu esforço para apreender sua realidade e compartilhar minha intenção de abrir nossos horizontes para o trabalho da equipe. A mensagem deveria sublinhar também minha posição de aprendiz. Wontanara: estamos juntos? 67 Em meio à emoção de começar o trabalho, após quase vinte dias de passassion8 , mal podia acreditar que estava ali, naquela sala de reuniões, misturando soussou com francês para falar de temas tão familiares dentro da minha experiência profissional. As perspectivas se mostravam realmente positivas e estimulantes. Minha equipe era composta por quinze guineenses, sendo dois assistentes sociais; uma enfermeira responsável pela testagem de novos casos; cinco pacientes cuja função era sensibilizar outros pacientes e a comunidade, através do testemunho; seis conselheiros, a maioria com formação em sociologia; e um assistente de coordenação. Formavam um grupo forte, dinâmico, interessado e motivado. Muitos deles já participavam do projeto algum tempo e conheciam bem as necessidades dos pacientes. 8. Expressão usada no projeto para definir o período de repasse de informações e orientações entre o expatriado em fim de missão e o recémchegado. Quando cheguei, as atividades ainda eram desenvolvidas isoladamente. Faltava interação com os outros componentes do projeto (enfermeiros, médicos, parteiras) e a dimensão interdisciplinar do trabalho ainda carecia de reforço. A descentralização dos serviços oferecidos no Centro Comunitário de Saúde para as unidades de saúde, em diferentes bairros, começava a exigir mais atenção. Havia muito trabalho pela frente. Depois de ir e vir em todos os serviços e trocar ideias com os demais profissionais do projeto, também apresentei duas propostas para o período da minha missão. A primeira, nacionalizar a minha função, significava fazer um coaching com o meu assistente. Devidamente preparado, ele poderia assumir a gestão do nosso departamento, dispensando a contratação de outro expatriado para o cargo. Tratava-se de um sociólogo guineense supercompetente e sensível. Uma daquelas almas íntegras que Deus coloca no mundo para fazer diferença ao seu redor. A segunda, organizar o departamento psicossocial de forma integrada e articulada com os demais setores, representava um desafio maior. Havia pouco compromisso dos parceiros e a política local na área de saúde dificultava bastante. Por outro lado, o potencial da equipe psicossocial ajudaria a superar as barreiras externas. Wontanara: estamos juntos? 68 Para quem conhece um pouco o meu jeito de trabalhar, facilmente imagina como eu me sentia em casa. Esse projeto era a minha cara. Wontanara! Assim eu me reconhecia por lá: junto com o grupo, compartilhando o ideal do trabalho, em solo africano. Eu fazia parte daquele mundo. Durante todo o período da minha missão, consegui realizar várias coisas com a equipe. Entre reuniões de trabalho e encontros sociais, fomos encurtando a distância e nos tornando mais íntimos. Com cada um, sem exceção, tive encontros fraternos. Não tenho nenhuma dúvida sobre a benção que eles representam na minha trajetória. A tendência de aconchegar as pessoas com alguma palavra de conforto, sem perder a oportunidade para tocar seu coração e motivá-las para a vida, logo me rendeu fama. Em pouco tempo, ganhei o apelido de mamie9 entre os membros da minha equipe. Este jeito carinhoso foi rapidamente adotado pelos colaboradores guineenses dos outros departamentos e, sem que eu percebesse, até alguns expatriados passaram a utilizá-lo. 9. Expressão francesa que significa “vovozinha”. Sentia um respeito profundo pelo staff nacional e sabia que a recíproca era verdadeira. Estabelecemos um laço de amizade que permanece forte até o momento. Eles fizeram uma enorme diferença em meu ser e, quanto mais eu entendia a preciosidade daquelas pessoas, mais eu me sentia honrada por aquela oportunidade. Wontanara: estamos juntos? 69 Capítulo 13 Wontanara: estamos juntos? 70 13 d e safios e oportunidades Quando fui para a Guiné, a ONG executava dois projetos no país, ambos voltados para pessoas vivendo com HIV/ AIDS. Um deles era desenvolvido numa cidade do interior e o outro, do qual eu fazia parte, acontecia na capital. A sede da coordenação geral também ficava em Conakry, onde se concentravam as atividades administrativas e estratégicas de âmbito nacional. Nosso projeto tinha sede e equipe de coordenação próprias. Cada departamento contava com um escritório e compartilhávamos a sala de reuniões, utilizada ainda como refeitório, já que almoçávamos nela todos os dias. Nossas atividades de campo aconteciam no Centro Médico Comunitário e em cinco unidades de saúde. Fazíamos deslocamentos todos os dias para trabalhar nesses locais. O Centro Médico equivale a um hospital de pequeno porte e oferece os seguintes serviços: pronto socorro, hospitalização, centro cirúrgico para intervenções menos complexas, maternidade, pediatria, nutrição, vacinação, ambulatório de tuberculose (CAT), ambulatório de HIV/AIDS (CTA), Wontanara: estamos juntos? 71 laboratório de análises, farmácia e centro de testagem voluntária (CDV). Estrutura similar a uma combinação dos postos de saúde com os centros especializados e os ambulatórios médicos dos hospitais gerais. As unidades de saúde seguem mais ou menos esse padrão, exceto pelo centro cirúrgico, o laboratório de análises e o CAT. Por estarem localizadas no interior dos bairros, parecem com as unidades de saúde brasileiras. Por outro lado, a maternidade é uma realidade à parte. Funciona da mesma forma em todas as estruturas, seja de grande, médio ou pequeno porte. Raramente fazem cesariana. Os partos são auxiliados por parteiras e os obstetras atuam somente em casos de complicação. Nas unidades de saúde, quando necessária a intervenção cirúrgica, a mulher é imediatamente transferida para um centro médico maior. Se o parto é normal, a mãe e a criança recebem alta no mesmo dia, dependendo da hora em que ocorre. Fiquei impressionada com a movimentação da maternidade nos serviços de saúde. Só perdia mesmo para a quantidade de atendimentos da ala pediátrica, esta sim, surreal. No projeto da ONG, desenvolvíamos atividades com as parteiras responsáveis pelo acompanhamento das gestantes. O teste para identificar a sorologia não fazia parte do protocolo de pré-natal e, por razões culturais e políticas, um número muito reduzido de grávidas se dispunham a fazê-lo. Nosso trabalho, então, consistia em estimular a realização do teste e, em caso de HIV positivo, as mulheres eram encaminhadas para consulta médica especializada, visando ao tratamento medicamentoso e psicossocial necessário. Quando ela entrava em trabalho de parto, aplicavam-se os cuidados diferenciados e a criança ingressava no programa de monitoramento, até o diagnóstico conclusivo da sua sorologia. Para todos os pacientes (mulheres grávidas, demais adultos, jovens e crianças), o protocolo incluía diferentes atividades psicossociais, mas nem todas estavam devidamente implantadas nos serviços de saúde parceiros. Essa era uma das metas da minha missão. Wontanara: estamos juntos? 72 No momento em que assumi, apenas o Centro Médico Comunitário contava com o pacote completo e as atividades se concentravam no CAT e no CTA. No primeiro ambulatório, fazíamos uma sensibilização10 na sala de espera, incentivando os pacientes com tuberculose a procurarem o CDV. Da mesma forma, se o resultado fosse positivo, a enfermeira da equipe encaminhava a pessoa para o CTA. E era nesse ambulatório que passávamos a maior parte do tempo. Ali realizávamos as consultas médicas, os atendimentos psicossociais e, numa sala anexa, as reuniões de grupo terapêutico. 10. Conversa/palestra curta sobre determinado assunto, com o objetivo de informar e/ou despertar a reflexão dos participantes. Já nas unidades de saúde dos bairros, dispúnhamos de consultórios pequenos, o que restringia um pouco nossa ação. Na época, realizávamos somente as sessões individuais de aconselhamento e as palestras em sala de espera, mas caminhávamos firmes no propósito de ampliar o espaço com as atividades grupais. Basicamente o departamento psicossocial se responsabilizava pelas seguintes tarefas: realização do pré-teste, teste do HIV (em parceria com a enfermagem) e pós-teste; sessões de aconselhamento para início do tratamento com os antirretrovirais; sessões de aconselhamento para reforçar a adesão ao tratamento; sessões de escuta-ativa; grupos de educação terapêutica com crianças, jovens e adultos; sensibilização na sala de espera; assistência social (benefícios e acompanhamento hospitalar). No Centro Médico Comunitário contávamos com um grupo especialmente formado para essas práticas, mas nas unidades de saúde ainda precisávamos desenvolver mais as habilidades das equipes locais. Todas as atividades eram realizadas por “Mediadores” com formação escolar bastante limitada. Alguns deles já trabalhavam na unidade e foram designados para o atendimento psicossocial. Em outros casos, membros de alguma associação de pessoas vivendo com HIV/AIDS passaram a colaborar com o projeto, desempenhando esse papel. As condições de trabalho em cada serviço variavam pouco. Mesmo sendo instituição de saúde, em geral, os serviços Wontanara: estamos juntos? 73 parceiros não dispunham da estrutura sanitária adequada. Faltava água e higiene básica. Nosso staff responsável pelo controle de infecção ficava em estado de polvorosa, pois realizavam inúmeras formações com os higienistas e, ainda assim, não conseguiam obter o resultado pretendido. Várias unidades de saúde sem eletricidade e sem esgoto adequado, tornavam um pouco mais complicado o processo de melhoria do atendimento. A presença do comércio ambulante de comida na frente dos estabelecimentos e/ou dentro do pátio aumentava, significativamente, a sujeira. Ao longo do dia, o lixo se acumulava, pois as pessoas costumavam jogar papel e embalagens no chão. Infelizmente, até mesmo os profissionais de saúde se comportavam desta maneira. Entre as unidades de saúde parceiras, havia duas que eu apreciava mais. Talvez porque as Autoridades Sanitárias fossem profissionais com uma visão verdadeiramente comunitária e estivessem realmente engajadas na proposta. Numa delas, por exemplo, conseguimos incluir autoridades de várias mesquitas, os Ulemás, nas atividades de sensibilização da população local. O objetivo era motivá-los a repassarem as informações nas mesquitas e influenciar a mudança de comportamento entre os seguidores. A comunidade do Wanindara me atraía bastante: arquitetura simples, ruas superlimpas e vizinhança tranquila. Mesmo sem asfalto, tudo parecia mais bem organizado. As casas compartilhavam um grande quintal e, geralmente, víamos as pessoas reunidas em baixo das mangueiras. Comumente, encontrávamos as famílias realizando suas atividades domésticas. Havia expressão de fraternidade nas relações de vizinhança. O trabalho em algumas unidades de saúde continuava marcado pela falta de engajamento profissional. Sofríamos forte pressão para decidir sobre a nossa permanência naqueles locais. Nossa missão avançava pouco e lentamente, desmotivando bastante nosso grupo. As Autoridades Sanitárias menos envolvidas tornavam a gestão das equipes mais complicada. Wontanara: estamos juntos? 74 De alguma forma, o projeto me lembrava daquela historinha da vaca jogada no precipício. Para quem nunca ouviu falar desta metáfora, tudo começa quando o Mestre e seu discípulo passam por uma pequena vila onde as casas inacabadas abrigavam, precariamente, pessoas muito desnutridas e sem nenhuma educação. Todas, no entanto, faziam fila para tirar leite da única vaca existente no lugarejo. O discípulo pede para o Mestre ajudá-los. Então, ele simplesmente joga a vaca no precipício. Inconformado com a atitude do Mestre, o discípulo partiu sozinho. Retornando alguns anos mais tarde, encontrou uma cidade completamente transformada: as crianças brincavam alegres no pátio da escola, o pomar florescia e a horta estava repleta de verduras; os moradores, com uma feição saudável, celebravam a conclusão das obras habitacionais. Tudo muito limpo e florido. Perguntando a um deles o que havia acontecido, o discípulo tomou conhecimento de que, ao perderem sua única fonte de alimento (a vaquinha), a comunidade resolveu se organizar e agir coletivamente. Estava apenas no início do meu contrato com aquele projeto, mas já reconhecia sinais de problemas. O sentimento de deslocamento começava a ameaçar as fronteiras da minha zona de conforto. Certas horas eu pensava: “Essa ONG é a vaquinha que deveria ser jogada no despenhadeiro”. Wontanara: estamos juntos? 75 Capítulo 14 Wontanara: estamos juntos? 76 14 HUMAN I TAR ISMO OU DOM I NAÇÃ O MAQUIADA? Para aumentar o desconforto, me deparei com um artigo a respeito do movimento humanitário nos dias de hoje, que questiona o papel das organizações internacionais. A preocupação de fundo é se, de fato, as tantas agências que se dizem humanitárias trabalham realmente a favor do humanismo ou se, simplesmente, mascaram ações de dominação. A serviço de quem e do quê elas existem? Numa análise global da situação do planeta, o texto ressalta as inúmeras guerras e conflitos civis que dizimam, cada vez mais, a dignidade humana e reduzem, paulatinamente, as condições de vida de milhões de pessoas. No seu conjunto, as ideias revelam um mundo antagônico, que amedronta a solidariedade e coloca vários pontos de interrogação sobre a sobrevivência e a função do terceiro setor. O texto começa perguntando: “Estaria o espaço humanitário em perigo?” Meus olhos percorriam os parágrafos, mas meu coração se prendia à pergunta inicial. Para a qual eu gostaria de responder simplesmente: “Não”. Preferia continuar acreditando que as populações vulneráveis não correm o Wontanara: estamos juntos? 77 risco de serem abandonadas. Um “salvador qualquer” estará permanentemente alerta para socorrer os “necessitados”. Tentava me convencer de que as organizações internacionais apenas lutam contra a pobreza e a falta de acesso às condições mínimas de vida. Eu repetia em voz alta: “Não tardará o dia em que nos tornaremos um mundo equânime.” Entretanto, a polarização do bem e do mal, do certo e errado, do culpado e inocente, dos aliados e inimigos, dos ricos e pobres, da teoria e prática, dos desenvolvidos e “em vias de desenvolvimento”, dos radicais e democráticos, dos violentos e pacíficos, não permitia formular uma resposta contundente. Ao contrário, sua constatação preenchia as lacunas do pensamento com pontos de interrogação e ameaçava minha crença num mundo convergente, impondo-me certo grau de desesperança. Ainda hoje, encontro dúvidas em relação ao caráter e à legitimidade das organizações que disputam o cenário mundial com suas bandeiras de altruísmo e salários competitivos. Afinal, que jogo de interesses está por trás das suas intervenções? Que ideologias movem os recursos colocados à disposição dos fragilizados, vitimados, excluídos? Qual sentimento delimita suas estratégias? Estariam elas, de fato, desprovidas do maniqueísmo? São muitos os agentes que operam tais ações. Pessoas com diferentes perfis e interesses. Profissionais de diferentes áreas, funções e experiências. Todos engajados em projetos com o objetivo maior da realização humana. Com o objetivo maior da realização humana? Realização humana? Eu me pergunto qual lógica define seus perfis operacionais. Afinal, quando entramos no campo dito humanitário, o que realmente nos motiva? Olhando de fora, percebo rostos que se confundem com contratos de trabalho. Num mundo ocidental em crise, atuar em zonas de conflito como um soldado humanitário é uma grande oportunidade de emprego. Em nome do ideal humano, porém. Reconheço projetos equivocados na construção de uma nova ordem continental (ou mesmo mundial). Em nome do ideal humano, porém. Wontanara: estamos juntos? 78 A desesperança surgia exatamente dessa constatação. Num momento da vida em que acreditava já ter visto um pouco de tudo, a oportunidade me trazia para um continente empobrecido e me fazia perguntar por onde caminha o humanitarismo. Certamente aquele texto provocava meus questionamentos. Mas assistir, rotineiramente, o ir e vir dos “veículos humanitários” com seus logos inconfundíveis e repletos de brancos, num país de negros, me deixava incrédula. Bem intencionados, parecíamos todos. Apenas a bandeira variava entre uma causa e outra, entre uma agência humanitária e outra. Por isso minha consciência tentava me alertar: “Não estamos, todos, tentando promover uma reorganização do mundo?” De perto, ninguém é perfeito. E o humanitário pode representar um mero pretexto para impor o modus operandi de quem propõe a intervenção. Quem detém a tecnologia e os padrões de excelência é, talvez, aquele que será ouvido e pensa que deve ser ouvido. Aquele que acredita conhecer o caminho para tirar o mundo da sua condição miserável. De perto, ninguém é perfeito. E a comunidade internacional se organiza rapidamente para agir contra “o mal”: denuncia a precariedade do sistema alheio, testemunha o descaso com a vida humana. No entanto, há décadas as guerras matam inocentes e a fome reina nas estatísticas de certos países. De perto, o mundo se rende perplexo diante de algumas atrocidades. Mas, no dia seguinte, continuamos tirando nossos carros da garagem para ir ao supermercado. Prosseguimos com as nossas vidas medíocres, acreditando estar “fazendo alguma coisa para salvar o mundo, por termos doado algo para alguém realizar um projeto”. Em que pese o dilema da cultura, eu não consigo digerir, por outro lado, o fato de que as agências internacionais se instalam ali e em qualquer outro lugar, com seu “pacote de salvação”. Talvez, um dia, eu morra de congestão, pois não dá para simplesmente engolir a arrogância humana mascarada Wontanara: estamos juntos? 79 de advocacy ou de “é pelo bem da humanidade”. Sejamos claros. No mínimo, honestos sobre os nossos propósitos. Wontanara: estamos juntos? 80 Capítulo 15 Wontanara: estamos juntos? 81 15 Um a bab el se m f r o nt eir a s O termo Babel logo nos remete à história da construção da torre que pretendia igualar os homens a Deus. Mas, tomando isto como uma ousadia, Ele castigou a todos, fazendo-os falar diferentes idiomas, dificultando assim sua comunicação e entendimento. Talvez seja por isso que, quando o caos está estabelecido e nos encontramos em alguma situação confusa, dizemos estar vivendo numa babel. E diante da diversidade também recorremos a essa figura emblemática. Vou tomá-la emprestada para ilustrar minha experiência. Além da interferência simultânea de diferentes canais de informação e línguas, eu ainda constatava uma heterogeneidade de culturas e olhares para a realidade em que vivia. Em muitos momentos, me sentia imersa em uma confusão sem precedentes na minha trajetória profissional. Não por falta de familiaridade com contextos de diversidade e divergência. Afinal, trabalhar na área social, transitar por diferentes instituições do terceiro setor e estabelecer parcerias com o setor público, representaram uma grande escola. Wontanara: estamos juntos? 82 Num país com mais de trinta dialetos e uma língua oficial (francês) imposta por colonizadores, a complexidade da comunicação fugia, frequentemente, à nossa compreensão. A cada dia que passava em Conakry, eu observava outras nuances sobre a maneira de as pessoas interagirem. E não creio que a comunicação fosse um desafio apenas para os poliglotas guineenses. Entre nós, expatriados, também existiam códigos e sinais que precisavam ser decifrados cuidadosamente. Éramos profissionais com nacionalidades, culturas e experiências de vida diversas. No período da epidemia do cólera, por exemplo, chegamos a mais de vinte expatriados em Conakry. Um dia em que almoçávamos quase todos juntos, o cenário nos remetia à torre de babel: além dos guineenses que falam diferentes dialetos, representávamos outros dezessete países. Portanto, era compreensível que algumas dificuldades surgissem nas relações interpessoais. À luz da subjetividade, tínhamos que levar em conta a maneira como cada um se expressava, em função das suas características individuais e do idioma. A linguagem desempenhava um papel intrigante na forma como as relações eram estabelecidas dentro e fora do trabalho, e com os objetivos do projeto. Se a comunicação é uma via de mão dupla, no projeto o caminho era cheio de bifurcações ou, no mínimo, uma via de quatro mãos: a da intencionalidade, a que se falava, a que se entendia e aquela em que as coisas eram feitas de fato. Nada era muito simples. Nessa estrada, quase tudo tinha que ser dito e repetido, confirmado e reconfirmado, antes de assimilarmos a informação. Os ruídos e os interditos causavam um estrago notável. Nem sempre sabíamos se estávamos fazendo o que deveríamos fazer. Às vezes, porém, eu estava convencida de que deveríamos fazer diferente. Momentos de incertezas foram inúmeros, mas não vale recontar os “causos acontecidos”. Acredito que a questão central seja a disparidade entre o discurso e as ações. Tento ser suave em minhas críticas, mas houve situações de grande contradição, gerando fortes tensões com os meus interlocutores, por conta da divergência de paradigmas. Múltiplas vozes e perspectivas são requisitos mínimos para a Wontanara: estamos juntos? 83 participação democrática em qualquer processo de decisão. Quando se trata do estabelecimento de metas e diretrizes para a vida dos outros, ou até mesmo para uma política pública, é ainda mais importante trazer os interessados para a mesa de discussão. O diálogo precisa ser garantido com transparência. Na teoria, todo mundo parecia entender bem o que isto significava. Talvez, justamente por isto, a prática era outra. Percebia, então, que o custo político da tomada de decisões sobre algumas diretrizes era muito mais alto do que o projeto estava disposto a pagar. Provavelmente, os princípios da neutralidade e da imparcialidade estabelecidos pela Organização justifiquem o pouco (ou quase inexistente) diálogo com os fazedores de política locais. Assim, principalmente durante os meus primeiros meses de projeto, a política de substituição prevalecia. Estávamos ali fazendo “no lugar de”, e não “em parceria com”. E o projeto funcionava, na mesma perspectiva, há mais de cinco anos. Foi somente depois da visita de alguns representantes superiores da ONG que nossos objetivos começaram a ser mais profundamente discutidos. Eles emitiram pareceres técnicos desfavoráveis à continuidade do trabalho, tal como estava implantado. Ainda assim, tudo ocorria a passos muito lentos e conturbados. A lógica imediatista da Organização, de certo modo, restringe o desenvolvimento de ações de longo prazo. O objetivo é salvar vidas em contextos onde elas estejam ameaçadas e os recursos sejam limitados, obedecendo o caráter de urgência. Porém, trabalhar com HIV/AIDS não é a mesma coisa que lidar com desastres intensos, como é o caso de um terremoto, um tsunami. Nessas ocasiões, uma interferência externa pontual pode até ser necessária e imprescindível. Fenômenos como desnutrição, mortalidade infantil, epidemia de cólera, malária, HIV/AIDS, entre outros, devem ser considerados como “desastres extensos” e requerem uma ação compreensível. Isto é, integrada e integradora. A base do planejamento depende da análise criteriosa sobre as condições de vulnerabilidade que delimitam o evento Wontanara: estamos juntos? 84 em questão. Portanto, devemos averiguar a capacidade de resposta da população e do governo e sua disposição para compor parcerias. A política de enfrentamento da fome e da falta de acesso aos recursos de saúde não pode se limitar à intervenção sobre um evento disparador (e no caso do HIV/AIDS qual seria o evento disparador?). É preciso ir além da atrofia social, o que demanda identificar os pequenos desastres acumulados antes de chegarmos naquele ponto. É fundamental mapear o maior número possível de fatores que interferem no contexto, antes de definir as estratégias de ação. E, sem dúvida, manter a investigação aberta, permanentemente, para fazer os ajustes necessários ao longo da implementação das propostas. Espaços ocupados por agentes externos podem criar a falsa ideia de que o problema está sendo superado, quando, na realidade, está apenas sendo contornado. O “metamorfismo social” é uma característica bem clara de que, na maioria das vezes, atacamos os sintomas e não as causas. Ou seja, os problemas mudam de lugar e nós permanecemos com os extintores na mão, tentando apagar incêndios. Acredito que a ação transformadora reivindicava uma convergência de valores, sem a qual estávamos realmente fadados a viver numa babel, mesmo transfronteiriça. Os resultados tornavam-se pequenos diante do tamanho do problema e mesmo que atendêssemos uma minoria, infelizmente, era o mesmo que dizer: estávamos tentando tapar o sol com a peneira. Wontanara: estamos juntos? 85 Capítulo 16 Wontanara: estamos juntos? 86 16 LÁ SE FORAM QUATRO M ES ES A sensação de que o tempo se vai com a mesma velocidade da luz me inquietava. Fim de expediente e agenda pela metade. No dia seguinte a esperança de vencer a pauta atrasada se diluía antes de a manhã terminar. Esse movimento se repetia diariamente e, quando eu abria os olhos, já era o começo de uma nova semana, um novo mês. Os físicos afirmam, em algum lugar, que houve uma aceleração ou redução importante do tempo. Não sei ao certo, mas podia jurar que faltavam várias horas no nosso dia. Nunca compreendi muito bem como isso funciona, pois, quando olhava no relógio, os ponteiros rodavam da mesma forma. De qualquer maneira, empiricamente, sentia que os cientistas estão com a razão! Quando eu me imaginava mudando para uma nova ordem cronológica quase entrava em pânico: ainda havia muito a fazer e minha missão era de apenas nove meses. Mais do que nunca, seria melhor não perder tempo com os desencontros do cotidiano, que eram muitos. Num projeto com mais de 50 pessoas envolvidas na execução das atividades, imaginem o Wontanara: estamos juntos? 87 desafio de conciliar necessidades reais com interesses egoicos. Não era o fato de ser um projeto humanitário que o tornava um campo isento das disputas de poder. Meu desassossego também decorria da forma como priorizávamos nossas ações e estabelecíamos as metas a cada reunião. Questionava os recursos concentrados em determinadas atividades, em detrimento de outras que, na minha avaliação, deveriam ser valorizadas. Afinal, como estávamos aproveitando o tempo para efetivamente colaborar com aquela população? Acreditava ser imprescindível redefinir nossos objetivos e procedimentos. Estava na hora de reduzir a complexidade das ações e privilegiar o essencial. Porém, a noção de importância era relativa e os departamentos continuavam isolados, sem a perspectiva do todo. O que seria realmente essencial? Como estabelecer, na prática, quais ações poderiam fazer a diferença, se não tínhamos um consenso sobre nossa intencionalidade? Durante todo o período que fiquei na Guiné, trabalhava de dez a doze horas por dia, reservando apenas o domingo para as tarefas pessoais. Era a primeira a chegar e a última a sair. Não porque os outros colegas tivessem menos trabalho ou se dedicassem menos. Talvez por entender que o investimento no trabalho deveria ser proporcional ao tamanho do desafio: preparar uma equipe para caminhar sem a presença de outro expatriado e, principalmente, ajudá-los a abrir horizontes para integrar uma visão sistêmica nas atividades psicossociais. A equipe havia sido formada dentro de parâmetros preestabelecidos pela ONG para todos os seus projetos. Mesmo com as adequações culturais do material didático usado nos atendimentos, faltava uma compreensão mais ampla sobre aspectos sociopolíticos, no momento de definir nossas estratégias. Negligenciávamos a gestão participativa do projeto e as metas eram basicamente definidas pelo modelo intervencionista. Adotava-se um paradigma “médico-clínicourgentista”. Eu não parava de me perguntar: “O que estou fazendo aqui? Que espaço restaria para uma psicóloga social? Seria possível transformar a ação ou eu teria que me conformar com a adaptação solicitada?” Wontanara: estamos juntos? 88 Foram muitos os conflitos ocorridos nos bastidores desses quatro primeiros meses. Fatos éticos (da falta de ética!) e estratégicos. Situações pessoais e profissionais envolvendo membros da equipe (nacional e expatriados). Um período de grandes reviravoltas na equipe do projeto como um todo e poucas mudanças na condução do trabalho. Da minha maneira, tentava esculpir uma porta de saída para preservar minha visão holística e minha ética, sem comprometer a relação de trabalho com a coordenação. Simultaneamente, procurava estimular a equipe psicossocial para a inovação do nosso serviço. Certos dias eu acreditava estar falando sozinha. Mas, nos seminários organizados com o grupo, sentia ecoar a demanda: precisamos mobilizar nosso potencial participativo e social; trabalhar para ampliar a consciência das pessoas que atendemos e buscar uma nova abordagem, mesmo que isto signifique algum nível de confronto metodológico. Finalmente estávamos, dentro da equipe psicossocial, entendendo que nossas atividades rotineiras eram consideradas apenas detalhes. Simples arranjos de uma melodia orquestrada por agentes externos ao contexto. Porém, sem elas, o trabalho não tinha o mesmo colorido e a música não ficava completa. Elas não eram o fim, mas sabíamos que representavam um caminho importante, o qual deveríamos percorrer para chegar a um objetivo maior: levar as pessoas a se apropriarem desse universo que representa o HIV/AIDS e a transformar a luta individual numa ação coletiva e pública. Resumindo a ópera: o véu de idealismo que cobria meus olhos quando me inscrevi nessa ONG, transformava-se num outro tecido, chamado “realidade do campo”. Quatro meses de uma experiência que parecia estar apenas começando haviam passado e concluí que não poderia me ater às perfumarias. “O fruto não cai da árvore sem que esteja maduro”, mas era chegado o momento das primeiras colheitas e eu precisava dar uma boa chacoalhada no galho para ver o resultado. E, porque o tempo escapou por entre as mãos, aceitei, então, prorrogar minha missão de nove para onze meses. Wontanara: estamos juntos? 89 Capítulo 17 Wontanara: estamos juntos? 90 17 E N Q UANTO ISSO A VIDA ACONTECE L Á F ORA Em meio ao telhado das casas e às copas de algumas árvores, quatro torres reinam imponentes no horizonte. São as torres da maior mesquita de Conakry, que ocupa praticamente um quarteirão inteiro. As atividades começam cedo. O chamado para o primeiro horário de oração é por volta das cinco da manhã. De longe, entoa uma espécie de canto, que percorre as casas, despertando os adeptos e os não adeptos. Hora de acordar para agradecer a vida. Wontanara: estamos juntos? 91 Vida que passa, porém, despercebida do lado de fora da mesquita. Talvez o melhor termo seja “marginalizada”, pois é impossível deixar de notar as dezenas de pessoas que moram na calçada da frente. Pessoas com, aparentemente, todos os tipos de condições físicas. De corpos saudáveis a portadores de necessidades especiais. Pessoas em cadeira de rodas e com muletas; pessoas que caminham com as mãos, outras que engatinham com os joelhos. Que não enxergam, mas certamente sentem a movimentação dos fiéis no entra-e-sai da mesquita. Um grande número de albinos. Idosos, adultos, jovens, crianças e bebês. Homens e mulheres. Todos humanos. Expectadores à espera de alguma caridade ou milagre, talvez. Naquele lugar eles dormem, comem, fazem suas necessidades fisiológicas, socializam e formam famílias. Por ali circula uma boa parte da sociedade, pois fica numa rua movimentada, paralela ao maior hospital da cidade. Todo mundo já passou por ali pelo menos uma vez, seja num táxi enferrujado, num veículo oficial ou mesmo num carro novo, último tipo. Vidas claramente afetadas pelo descaso da humanidade. Discriminadas, com certeza. Incompreendidas, talvez. Que provocavam, em mim, sentimentos antagônicos e intensos, na maior parte das vezes. Até mesmo certa dúvida existencial colocava a fé em xeque-mate. Um pouco adiante, outras torres reinam imponentes sobre o monte. Antenas de rádio e televisão que conectam as pessoas ao mundo. Que levam e trazem notícias. Difundem e confundem. Talvez maquiassem a realidade. Ou, simplesmente, ignorassem por completo as mazelas encontradas embaixo das torres vizinhas. Parabólicas diabólicas e distantes da sua função social. Entre uma torre e outra, entre o sagrado e o profano, a vida seguia seu próprio percurso. E eu, dentro do meu próprio “templo protegido”, procurava a mão de Deus nos bastidores desse cenário. Tentava assegurar, no meu íntimo, que a lógica da vida terrena é justa. Repetia a máxima “nada é por acaso” como um mantra permanente, para me lembrar de que Wontanara: estamos juntos? 92 nem tudo era o que parecia ser. Nem mesmo aquela miséria humana, nem mesmo a proposta de salvar o mundo! Wontanara: estamos juntos? 93 Capítulo 18 Wontanara: estamos juntos? 94 18 Nem TUDO É RESISTÊN CIA Ponderando sobre o processo de adaptação, não me surpreendi com a rapidez com que minha rotina africana passou a fluir naturalmente. É interessante como nosso corpo colabora, numa tentativa espontânea de mimetismo. Num instante minha mente passou a operar um outro “código” e tudo se tornou familiar. Com menos esforço para ler a “legenda da vida”, aquela língua estrangeira começou a habitar inclusive os sonhos. A convivência com tanta diversidade cultural não era fácil, mas a interação humana compensava. Cada pessoa com seus trejeitos, características, gostos, preferências, referências, porém alimentando um objetivo comum. Nem sempre compartilhávamos metas, contudo, nossos saberes convergiam e se completavam. Algumas vezes, até mesmo as opiniões divergentes se complementavam, nos permitindo encontrar algum consenso. O grupo de expatriados habitava três locais diferentes e distantes, mas nos encontrávamos praticamente todos os dias no ambiente do trabalho. Alguns estavam ali com suas famílias Wontanara: estamos juntos? 95 e formávamos uma grande equipe. Num dos finais de semana de janeiro, por exemplo, promovemos uma festa com todos os expatriados e staff nacional, na sede da coordenação geral, reunindo mais de duzentas pessoas. Fiquei impressionada com o número de participantes e também com a organização da comida. O cenário me lembrou das festas interioranas em que os vizinhos se juntam para cozinhar no quintal de casa e transformam os preparativos numa comemoração à parte. A rotatividade dos expatriados era relativamente pequena, pois o tempo de missão na Guiné variava de seis a doze meses. Mesmo assim, a renovação acontecia sistematicamente, já que o início e o fim dos contratos não coincidiam e algumas pessoas prorrogavam ou encurtavam o prazo. Ou seja, sempre tinha alguém chegando ou partindo. Não necessariamente nesta ordem. De qualquer forma, tínhamos a oportunidade de conhecer um pouco mais as pessoas, e por um período maior. Isto ajudava a estabelecer uma relação de proximidade... ou não! Obviamente, sempre havia aqueles que preferiam ficar no seu canto. Além do que, a formação de “tribos” é natural; faz parte da natureza humana. Na missão, o agrupamento variava de acordo com a afinidade pessoal e cultural. Entretanto, era nítido o resquício de geração: os “mais jovens” passavam bastante tempo juntos e os “mais maduros” interagiam com maior frequência entre si. De minha parte, transitava por todas as “tribos”, embora me enquadrasse melhor no grupo dos “mais velhos”. Jovens ou maduros, uma coisa era certa: todos nós gostávamos de passar uma parte do final de semana no terraço, trocando ideias e ouvindo música. Geralmente preparávamos alguma refeição juntos e sentávamos no terraço para saboreá-la. Durante a semana, quando voltávamos do trabalho, elegíamos o terraço de um dos andares como ponto de encontro para colocar a conversa em dia. Da mesma forma que os expatriados iam e vinham, as histórias circulavam pela “rádio peão”. Era impossível evitar o disse-me-disse. Então, rapidamente a vida privada Wontanara: estamos juntos? 96 se tornava pública. Simples questão de minutos. Era uma verdadeira comunidade! Nesses momentos de descontração, muita informação vinha à tona, revelando a outra faceta do projeto, da ONG, das pessoas. Além dos “causos de bastidores”, compartilhávamos as conquistas do dia, nossas frustrações e críticas. Buscávamos apoio mútuo e, sobretudo, uma compreensão comum a respeito do nosso papel e da importância daquele projeto para a Guiné. Muitas interrogações ficavam sem respostas, mas procurávamos alimentar a esperança de mudar o rumo das coisas. Wontanara: estamos juntos? 97 Capítulo 19 Wontanara: estamos juntos? 98 19 UM J ARD I M PARA A ESPERANÇA Da mesma maneira que ainda acontece em muitos lugares no Brasil, o saneamento básico na Guiné é bastante deficiente; praticamente inexistente. Mesmo na capital, há uma grande quantidade de bairros sem esgoto e água encanada. Durante a semana o fornecimento de água e eletricidade respeita um rodízio entre os bairros. A precariedade das condições de moradia e a inexistência da coleta pública de lixo, tornam a circulação em vias públicas um grande desafio. Existe sempre uma montanha de lixo nas ruas, o esgoto a céu aberto, uma enorme aglomeração de coisas na frente das casas e das lojas, muitas barracas de comércio ambulante na frente e dentro dos estabelecimentos de grande movimentação de pessoas. Quando alguma coisa estraga, continua sendo usada até o limite da possibilidade. A partir de então, é encostada em algum canto e lá fica. Não existia a cultura de manter os ambientes limpos e organizados. No começo, eu atribuía o caos à falta de recursos. Aos poucos, Wontanara: estamos juntos? 99 fui me lembrando da frequentadora de uma das instituições onde trabalhei, no Brasil, dizendo: “Quem faz a favela é o favelado; não é porque a gente mora aqui (na favela) que precisa ser sujo e desorganizado!”. Era uma senhora nos seus quarenta e poucos anos e cento e vinte quilos, superengajada com a comunidade. Costumava participar ativamente das várias formas de controle social do bairro e toda vez que voltava de uma reunião importante juntava os vizinhos, subia num banquinho e repassava as informações. A imagem dela articulando a vizinhança, defendendo as reivindicações dos moradores e, ao mesmo tempo, reforçando seus deveres e o espírito de colaboração, é uma das marcas mais importantes da minha trajetória comunitária. Com essa referência, olhava os guineenses e repetia: “Eles também podem!” O senso de coletividade entre africanos é mais ou menos similar ao que, habitualmente, dizemos existir entre os latinos: um por todos e todos por um. A vida no seio da família não é compartilhada apenas com o pequeno grupo nuclear. Aliás, lá não existe nada muito pequeno quando se trata de formar família. Enfim, o que chama a atenção é o forte laço de Wontanara: estamos juntos? 100 solidariedade entre as pessoas. Se você “mexe com um, está mexendo com o grupo”. Todo mundo fica sabendo tudo, o tempo todo. É uma rede sólida. Então pensei: “Por quê não aproveitar esse potencial para reverter a desorganização em nosso ambiente de trabalho?” Determinada a gerar um impacto positivo no público que atendíamos, resolvi investir primeiro na minha equipe. Rapidamente fiquei conhecida como “a dama de ferro dos recursos”. Fizemos a “revolução 3 Rs”: Reduzir as solicitações de materiais, Reutilizando o que estava sobrando de forma criativa e Reciclando tudo que o era possível, para tornar o ambiente mais agradável e mais aconchegante também para os pacientes. Mudamos a disposição dos móveis na sala de espera, visando privilegiar a interação entre as pessoas e a troca de informações. Embora essa tenha sido a estratégia mais controversa, gerando insegurança por causa do contato com pacientes tuberculosos, aos poucos fomos nos adaptando e colhendo bons frutos. Em função dessa nova interação entre pacientes e equipe psicossocial, descobrimos vários casos que necessitavam da nossa intervenção e pudemos reverter o quadro. Nossa proposta, que antes havia sido considerada “apenas um capricho estético”, logo ganhou adeptos e passou a ser incorporada pelos profissionais de outros setores e serviços parceiros. Além do Centro Médico Comunitário, as equipes das unidades de saúde começaram a proceder dentro da mesma ótica. Foi bonito de ver! O ápice do processo foi um mutirão organizado no hospital, para pintar a sala de trabalho de grupo e preparar um jardim. Trabalhamos um dia inteiro para transformar uma pequena parte do nosso espaço. Mas foi muito gratificante, pois nas semanas seguintes as pessoas admiravam nosso jardim. E se diziam encantadas! Wontanara: estamos juntos? 101 Concluímos antes da temporada de chuva, então tudo começou a germinar em muito pouco tempo. Nas floreiras suspensas, feitas de garrafas PET, transbordavam os botões de flor, alegrando a passagem. As pessoas se importavam com aquilo e constatavam a diferença das plantas de uma semana para a outra. Toda vez que eu chegava no hospital, ficava um tempo no jardim para apreciar a nossa obra coletiva. Um dia, reparei Wontanara: estamos juntos? 102 que uma das floreiras estava minguadinha, em comparação com as outras. Comecei a conversar com ela e isto despertou o interesse de um dos funcionários da recepção, que acabou se propondo a “adotá-la”. Daquele dia em diante, ele passou a cuidar dela pessoalmente e não esperou muito para ver o resultado. Em menos de duas semanas, a planta encorpou e floresceu. O jardim tornou-se um símbolo. Uma alusão ao potencial transformador que existe em cada um de nós, independente de credo, etnia e estado de saúde. Durante vários meses ele manteve acesa, dentro do meu coração, a chama da esperança. Quando concluí minha missão, fizeram uma cerimônia de despedida e escolheram o jardim como local para a “foto oficial” da minha passagem por lá. Wontanara: estamos juntos? 103 Capítulo 20 Wontanara: estamos juntos? 104 A COR DA 20 ÁFRI CA Foté, foté!! 11 É como gritavam as crianças quando nós, expatriados brancos, passávamos na rua. Elas colocavam seus olhos curiosos sobre nós e, às vezes, até apontavam o dedo em nossa direção, fazendo rir a todos com a brincadeira. Em geral, respondíamos acenando com a mão e mandando beijinhos. 11. Expressão no dialeto soussou que significa “branquela, branquela”. Certa manhã, aprendi que não eram apenas as crianças que nos chamavam de “branquelos”. Mas, naquela vez, não teve beijinho de volta, nem aceno de mão! Estava num mercado aberto, bem pertinho de casa, para comprar legumes e frutas, e uma das feirantes insistiu em anunciar a presença de uma foté. Não compreendi muito bem o restante do que estava sendo dito na língua local, mas pelo tom da voz imaginei que ela e as outras amigas feirantes estavam, provavelmente, questionando: “O que faz uma branquela dessa no nosso mercado?!” Wontanara: estamos juntos? 105 Tratei de colocar um sorriso no rosto, como quem tem certeza de que tudo não passa de uma brincadeira, e segui meu caminho. Confesso, porém, que me senti um peixe fora d’água. Reconheço que o número de brancos nas ruas de Conakry era quase nulo. Praticamente só os expatriados contratados pelas diferentes agências internacionais (UNICEF, ONU, Cruz Vermelha, e outras ONGs) e que andavam para cima e para baixo, por conta do trabalho nas comunidades. Fora isso, os representantes das embaixadas ou consulados e os funcionários de empresas multinacionais (do Brasil, por exemplo, conheci pessoas da Vale e da Andrade Gutierrez), mas que quase não circulavam pelas ruas, em função dos seus respectivos compromissos. Era mais comum encontrar esse pessoal no supermercado, no Centro Cultural França-Guiné e nos passeios de barco para as ilhas. De acordo com os relatos do jornalista João Fellet, a cor da pele ainda é uma questão não resolvida em vários países da África. Podemos incluir a República da Guiné nessa lista. Como me contou um dos motoristas do nosso projeto, o “café com leite” (palavras dele) só começou a ser tolerado entre os guineenses recentemente. Ainda assim, há regiões (comunidades mais tradicionais) em que os negros não se misturam com os brancos. Ao comentar com esse mesmo motorista sobre o hábito das crianças, ele reforçou a curiosidade delas pelo diferente, esclarecendo que fazem isto como uma estratégia para se aproximarem da pessoa. De fato, várias vezes eu fui seguida por pequenos grupos que vinham pegar na minha mão assim que eu reagia à brincadeira, sorrindo e acenando. Para ele, era muito natural que o contrário também acontecesse nos países onde a maioria é branca. Qual não foi a sua perplexidade quando expliquei que, hoje, no Brasil, bem como em outros lugares que conheço, não podemos apontar o dedo para um negro e brincar dizendo “negro, negro”. Certamente seríamos enquadrados como politicamente incorretos ou até mesmo processados, dependendo da situação. Provavelmente, para além das brincadeiras, existia um resquício da colonização. Eu me perguntava o que teria para Wontanara: estamos juntos? 106 além da colonização. A relação de dominação dos brancos sobre os negros deixou marcas inconfundíveis na história da humanidade. Portanto, não tenho dúvidas sobre o sentimento de injustiça que ainda perdura. Eu mesma me sinto constrangida ao ter que reconhecer nossa história escravagista. Ainda vivemos, nos dias de hoje, um nível de estigmatização e discriminação que extrapola a cor da nossa pele e se mascara de tantas formas, que talvez seja impossível listálas. O preconceito, o julgamento, o estereótipo e o racismo se tornaram muito presentes e fortes em nossos discursos, brincadeiras, piadas e referências cotidianas. Mesmo no âmbito da economia e da organização política, decisões importantes são tomadas sem levar em conta o impacto que provocam na segregação social, retardando nosso desenvolvimento espiritual como um todo. O que ainda pesa no coração é justamente isso. Apesar dos avanços, continuamos incapazes de superar a “natureza desumana” para alcançarmos níveis de maior tolerância e solidariedade. Que todos os países pudessem colocar em prática o que realmente suas bandeiras proclamam; que todas as nações pudessem transcender suas fronteiras, unindo-se no ideal comum; que todos os povos, mesmo guardando sua diversidade, pudessem criar uma unidade harmonizada com o cosmo... seria desejar demais? Wontanara: estamos juntos? 107 Capítulo 21 Wontanara: estamos juntos? 108 21 A PECULIaRiDADE DO mAR C HÉ m ADINA Fazer compras pode ser uma necessidade da vida cotidiana. Mas fazer compra no mercado aberto em Conakry é uma aventura cultural e social imprescindível. Dessa vez, o mercado em questão era o Marché Madina; o maior do país. Isto significa o mais frequentado (inclusive por pessoas dos países vizinhos, à procura dos baixos preços para revender em suas cidades) e com maior diversidade de itens para consumo. É também o mais poluído em sujeira e barulho. Quem conhece ou já ouviu falar da Rua Vinte e Cinco de Março, em São Paulo, pode imaginar algo similar: é como se a região da Ladeira Porto Geral fosse acrescida de cinco vezes mais pessoas e mais ambulantes, em plena temporada de compras para o Natal. A concentração de pessoas é indescritível. A via pública precária (chão batido ou antipó gasto) abriga uma infinidade de barraquinhas e panos estendidos no chão, a céu aberto, com produtos variadíssimos: de legumes à made in China, de peixe defumado a galinha viva, de sabão em pedra a inseticida enlatado, de roupa ocidental a tecido Wontanara: estamos juntos? 109 africano, de cosméticos a material elétrico. O que sobra é um corredorzinho entre as fileiras de vendedores. No Madina, o conceito de ambulante é levado ao pé da letra: os vendedores perambulam pela feira, caotizando ainda mais a circulação. Decididas a conhecer melhor a localidade, minha colega e eu dedicamos a manhã para caminhar por lá. Às vezes nem precisávamos nos preocupar com a direção dos passos. Literalmente, éramos arrastadas pela multidão que vinha atrás de nós. Nesses momentos, a única tarefa era desviar das bacias cheias de produtos que ficavam no meio do caminho. Saltávamos ali e acolá, até encontrar uma vaga e fazer um pit stop. Quando avistávamos algo para comprar, simplesmente provocávamos um congestionamento temporário. Negociávamos o preço rapidamente, caso contrário a multidão começava a fazer barulho e empurrar. O vendedor apressava o ritmo da pechincha, gesticulando e atendendo três ou quatro ao mesmo tempo, até encontrarmos um consenso. A cada esquina, o testemunho de cenas tão excêntricas, que só pessoalmente para ter a exata dimensão. Numa delas, um grupo de quase cem mulheres eram penteadas. As cabeleireiras sentadas em cadeiras mais altas e as clientes, em banquinhos mais baixos, deitavam a cabeça no colo delas; agilmente o cabelo da cliente era trabalhado, enquanto tagarelavam com as vizinhas. Dali saía de tudo: de peruca a trança; de cabelo curto a megahair. E quando passávamos, logo ouvíamos: “Foté, foté, quer fazer tranças hoje?” Num mercado, com milhares de africanos, éramos as duas Wontanara: estamos juntos? 110 únicas brancas durante a nossa aventura. Mesmo perdidas na multidão, virávamos alvo fácil. Quando nos distanciávamos uma da outra, por conta das pessoas que entravam no meio do caminho, ficávamos esperando paradas e tinha sempre alguém nos socorrendo, dizendo: “Foté, sua amiga está lá atrás”. A noite ia caindo e não havia iluminação na maioria das ruas, levando as pessoas a se recolherem. Os ambulantes davam um jeitinho de esticar o horário comercial com suas poderosas e perigosas luminárias: uma vela acesa dentro de um galão plástico. Cenas como essas ficam afetivamente registradas, pois acredito que nem mesmo uma câmera fotográfica (se elas fossem autorizadas) conseguiria clicar a emoção que despertam. Tudo era muito intenso e lindo, mesmo que significasse a carência de infraestrutura. Wontanara: estamos juntos? 111 Capítulo 22 Wontanara: estamos juntos? 112 22 mu l he re s, m ã es e a s a m a zonas da g ui né Mesmo morando em Conakry por onze meses, jamais consegui encontrar estatísticas confiáveis sobre o senso na Guiné. No entanto, quando passava na rua sempre via muito mais homens do que mulheres. Eles estavam constantemente agrupados em número de quatro a seis pessoas. Quando se tratava de alguma atividade profissional, apenas um fazia o serviço, sob os olhos dispersos dos colegas. Nos bares e cafés todos eles tagarelavam, sem exceção. Em geral, os comerciantes passavam a maior parte do tempo sentados na calçada, na frente da loja ou da oficina, onde atendiam os clientes. Logo no começo, me perguntei por onde andavam as guineenses. Por ser uma sociedade de maioria muçulmana, talvez elas estivessem em casa. Naquela cultura, o machismo é propagado e a maternidade, o papel mais importante para as mulheres. Assim, naturalmente, eu imaginava que estivessem realizando as atividades domésticas. Mas, sem demora, seu paradeiro ficou mais claro. Com um pouco mais de observação, constatei meu erro. Wontanara: estamos juntos? 113 No comércio ambulante há uma hegemonia declarada. São elas, as mulheres, que tocam os negócios nas feiras. São elas, as mulheres, a maioria no mercado de pescadores. Estão na rua com suas bacias na cabeça, na frente das casas com suas barraquinhas de comida, e até mesmo na construção civil. Encontram-se espalhadas nas escolas, nos hospitais, nas repartições públicas, no serviço militar e em várias empresas. Wontanara: estamos juntos? 114 Pelo que contavam, são discriminadas e sofrem com a política salarial que valoriza a mão-de-obra masculina e reduz a igualdade de direito. Mas elas resistem bravamente. E se fazem notar com suas cores! Por onde passam, sua presença marca a harmonia das roupas coloridas e estampas arrojadas. Nem por isso caotizam. Ao contrário, a mistura de cores e linhas estabelece um mundo paralelo à miséria. As ruas empoeiradas ganham outra dimensão com aquelas cabeças enfeitadas pelos turbantes combinando com os vestidos. Até mesmo o pano de amarrar a criança nas costas combina com o “completo”12 do dia. As guineenses se vestem bem, com modelos sui generis. A maneira como enrolam o turbante na cabeça varia de acordo com a ocasião. A quantidade de atelier de costura (com profissionais-homens inclusive) chama a atenção. Praticamente um a cada quarteirão, e todos ocupados. O negócio é próspero. 12. “Completo” significa um conjunto de saia comprida e blusa. Poucas mulheres usam roupas ocidentais. Raramente repetem a mesma roupa num espaço curto de tempo. A maioria muda, de uma semana para outra, o estilo do cabelo. Segunda-feira é sempre dia de novidade. Ora cabelo trançado e megahair, ora curtinho e fios desfiados. Peruca chanel, ondulada, lisa, rastafári... umas mais comportadas e outras bem extravagantes. Wontanara: estamos juntos? 115 Elas são divertidas e, ao mesmo tempo, maternais, boas negociadoras, perspicazes. Têm jogo de cintura e um rebolado de fazer inveja (não para as nossas sambistas, é claro). As que cantam têm uma voz digna da caixa torácica, marca registrada entre as africanas. Um grupo de mulheres militares se destacou aos meus olhos e ouvidos, conquistando meu coração. Conforme me contou um dos motoristas do projeto, elas têm mais de sessenta anos (custei a acreditar) e integram a Orquestra Feminina da Polícia Militar Nacional. Fazem sucesso em vários países da África, há anos. Conhecidas como “As Amazonas da Guiné”, o grupo foi fundado no começo da década de sessenta, com o objetivo de estimular o espírito de liberdade nas mulheres. Suas músicas valorizam a condição feminina e convidam as africanas a questionarem a herança cultural machista e repressora. Elas cantam em francês e nos diferentes dialetos da Guiné. Esbanjam uma força fenomenal e nos contagiam com sua performance. Todos os papéis sociais femininos, entretanto, dividem espaço com a maternidade. Faltam palavras para descrever a mulher nesse protagonismo. A imagem delas levando suas crianças pequenas nas costas toca o coração. Desde quando podem e enquanto conseguem, não há uma idade limite para carregar nem para ser carregado. O critério é o tamanho e o peso da criança. Há mães jovens, avós com mais idade e até mesmo crianças que levam seus irmãos nas costas. A forma de amarrar “os pequenos” é muito simples, mas requer prática. A mulher curva o tronco ligeiramente para frente e coloca uma espécie de canga sobre as costas, na altura do quadril. Com movimentos sincronizados, ela ergue a criança, embrulhando-a no seu dorso com o pano, de maneira que os braços e as pernas estejam abertos em torno Wontanara: estamos juntos? 116 Wontanara: estamos juntos? 117 do corpo. E, voilà! Tudo pronto para que a mãe possa ir e vir, abaixar e fazer qualquer atividade, sem precisar se preocupar com aquela figurinha agarradinha nela. Na Guiné (e em outros países da África também) as crianças permanecem aos cuidados de suas mães até uma idade mais avançada. Quase não existe creche, e quando uma mulher trabalha fora ou precisa fazer compra, ela conta com a colaboração de outro membro da família ou leva as crianças junto dela. É comum a amamentação prolongada e as crianças dormem na cama do casal até quatro anos, a não ser que eles tenham outro bebê nesse ínterim. Sem nenhum pudor de expor os seios, as africanas levantam a blusa e amamentam suas crianças onde estiverem. O interessante é que, em função dessa naturalidade, elas pouco tapam os seios. Sempre víamos mulheres se lavando na calçada com um pano enrolado da cintura para baixo, mas com o tronco completamente nu. Vi algumas profissionais de saúde vestindo aqueles aventais abertos na lateral, diretamente por cima do sutiã, deixando tudo à mostra. Culturalmente, os seios de uma mulher são associados à alimentação das crianças. Nada mais do que mamas! Observando o comportamento dos guineenses, cheguei a pensar que esse aconchego da criança com sua mãe seja uma variável de grande impacto na afetividade deles. Mas, ao mesmo tempo em que as relações acontecem por esse campo, a via do carnal é bastante forte. Corporalmente podemos perceber que a ginga africana é outra. O jeito de andar e dançar é bem peculiar. Quase não há manifestação de carinho em público (por exemplo, casais se beijando e se abraçando), mas a sexualidade é vivida intensamente. A prática começa cedo, permanecendo em atividade até mais tarde. A poligamia autorizada e os casamentos arranjados corroboram esse quadro. Em contrapartida, a educação sexual em casa e nas escolas quase inexiste. Com percentual de alfabetização muito pequeno, o acesso à informação configura um caminho tortuoso. Em tempos de HIV, não é difícil imaginar o que isso representa. Wontanara: estamos juntos? 118 Capítulo 23 Wontanara: estamos juntos? 119 23 TAMBORES M Á G I COS Os músicos guineenses (adultos e crianças) me faziam lembrar do nosso fantástico Olodum. Em qualquer situação, ao começarem a tocar, arrancavam da cadeira até mesmo quem não estava ali para dançar! Com um batuque contagiante e repleto de estímulos, os tambores eram meus preferidos. Seus instrumentos, bem diversificados e fabricados de maneira que nunca vi antes. Tinha tambor de tudo quanto é tamanho e outras espécies de chocalhos, feitos de cabaça e de madeira, com som bem peculiar. Tudo me parecia muito interessante e curioso. As letras (as mais bonitas!) eram cantadas em língua local ou em francês. O ritmo, sempre misturado e harmoniosamente arranjado. Sobretudo dos tambores surgia uma energia especial. Um som primitivo e enraizado, despertando a alma dormente e criando um ritmo próprio para cada corpo. Se nos entregássemos à sua batida, seríamos capazes de deixar crescer dentro nós diferentes personagens: o guerreiro, o caçador, o capoeirista, o escravo, os orixás. Todos, vestidos de uma força enorme Wontanara: estamos juntos? 120 e alinhados por uma frequência musical que vitaliza. Talvez venham daí os jogos de cintura, de pés e de pernas, que caracterizam a dança africana. O gingado podia ser suave, como o vai-e-vem de uma cadeira de balanço. Ou então apressado, cheio de rebolado e insinuações corporais. De gente grande a crianças, não havia quem ficasse de fora. Nem mesmo quem estivesse na cozinha! Foi o caso das cozinheiras do restaurante que costumávamos frequentar. Sobrinhas da proprietária, elas se revezavam entre a grelha à carvão e as mesas dos clientes, trabalhando e tagarelando o tempo inteiro. Interagiam com os frequentadores, tornando o ambiente extremamente alegre e familiar. Mas bastavam os primeiros batuques de qualquer música para que elas começassem uma festa à parte. Depositavam bandejas e pratos sobre as mesas, formavam uma rodinha e passavam a dançar e cantar. Entre uma música e outra, elas voltavam às suas tarefas. No dia em que tinha DJ, eu pensava sozinha: “Vixi... isso vai longe. Pelo jeito, ficaremos sem jantar hoje!” Essa alegria e descontração fazem parte da vida deles. Ao contrário do que costumamos imaginar, a África é muito mais do que as mulheres brutalmente circuncisadas, do que crianças injustamente morrendo de fome, do que as vítimas sangrentas dos conflitos étnicos. A beleza do continente é maior do que toda a corrupção divulgada pela mídia, que gera no senso comum grande repulsa. Supera o estereótipo da falta de governança e ética. A África é o colorido negro e a força dos braços que outrora ergueram vários países do outro lado do oceano. É o brilho explorado pelas mãos desnutridas para enfeitar pescoços, dedos e orelhas no ocidente. É a fênix que ressurge eternamente das cinzas da pobreza. É o tambor que soa a alegria. Concordo que não podemos apenas valorizar as riquezas Wontanara: estamos juntos? 121 naturais e culturais do continente africano. Porém, reduzilo à miséria é uma boa estratégia de marketing para tornar os projetos humanitários vendáveis, gerando recursos que mantêm brancos no palco das intervenções. Nesse caso, tornar a igualdade verdadeira significaria romper com essa visão ingênua de que é a África que necessita de nós. Naquela altura da minha missão, esta já era uma reflexão muito presente, principalmente considerando todos os fatos ocorridos no “projeto Guiné”. Um misto de decepção/ realização, de basta/está-apenas-começando, de desilusão/ esperança, tomava conta de mim. No ritmo dos tambores, isso tudo ecoava forte na minha consciência. Wontanara: estamos juntos? 122 Capítulo 24 Wontanara: estamos juntos? 123 24 d e vo lta ao dilema da cu lt ura Após duas semanas consecutivas de grande agitação no trabalho, resolvi sossegar um pouco o corpo, para tentar sintetizar a caminhada da alma. Plagiando os índios norteamericanos: So that my soul can catch up with my body13. Vários acontecimentos e experiências intensas. Decisões sobre o rumo do projeto, impactando também a vida das pessoas. No meio disso tudo, um pequeno balanço me fez retornar ao dilema da cultura. Um questionamento sobre até que ponto devemos recuar diante dos hábitos culturais me “assombrava”, reforçando minha briga interna. 13. Expressão em ingles que significa “para a minha alma emparelhar com o corpo”. O sofrimento humano associado aos costumes de um povo me intriga profundamente. Diante dele, do sofrimento, fica difícil aceitar a cultura. Diante dela, da cultura, atinjo um nível de compreensão sobre a situação, o que permite entender o fato. Mas, ainda assim, me recuso a aceitá-lo. Um exemplo? Vamos pensar sobre a mutilação genital feminina em seus diferentes graus e consequências. Embora continue sendo praticada em silêncio, dificilmente conseguem Wontanara: estamos juntos? 124 mantê-la em segredo. Alguns países proibiram esse ritual, mas uma grande parte das famílias opta por levar a criança ou a pré-adolescente (de acordo com a região do país) a uma mulher de referência na comunidade para fazer a excisão. Outra parte recorre ao hospital para fazer o que eles chamam de “simulação”. Segundo me explicaram, são casos em que o procedimento não chega a ser completo. As famílias mais conservadoras passaram a antecipar a idade da criança (às vezes com três ou quatro anos) a fim de desviar a atenção da comunidade. Geralmente, é utilizada uma lâmina de gilete ou objetos cortantes como pequenas facas. No caso da infibulação, a costura é feita com agulha comum. O mesmo material é usado no atendimento de todas as clientes do dia, sem nenhum cuidado de esterilização. Esta mutilação pode ser feita em diferentes graus e sua escolha depende da crença familiar. A extirpação total do clitóris e dos pequenos e grandes lábios e o fechamento parcial, é a mais radical. Neste caso, é deixado apenas um orifício, do tamanho da cabeça de um palito de fósforo, para a eliminação da urina e do sangue menstrual. Na clitoridectomia (grau intermediário) o clitóris e pequenos lábios são eliminados parcial ou totalmente. Sunna é considerada a menos drástica e consiste na remoção exclusiva do clitóris. Na Guiné, 96% das mulheres sofrem excisão parcial ou total e essa estatística é similar em outros países africanos e da península árabe. As consequências são inúmeras: episódios de infecção fatal e/ou contaminação do HIV por falta de higiene durante o procedimento; cólicas extremas por falta de eliminação do sangue durante a menstruação (no caso da infibulação); violência sexual, pois no primeiro coito o homem desfaz a “costura” com uma faca antes da penetração; casos de morte durante o parto por falta de dilatação da musculatura vaginal fibrosada. Por essas razões, me perguntava: “Como podemos nos submeter a tais práticas? Por que não reagimos? Por que convivemos com esse tipo de sofrimento e violência total contra a nossa natureza física e espiritual? O que leva uma mãe que sofreu com isso impor tal violência à sua filha? Wontanara: estamos juntos? 125 Que “coisa” é essa que leva as pessoas a reproduzirem comportamentos, valores e crenças tão questionáveis?” Conversando com a minha equipe, eles comentavam que as mulheres acabam se submetendo a isto devido ao medo da discriminação social. Os pais perpetuam a prática para garantir que suas filhas arrumem um “bom casamento”. A excisão é pré-requisito, e encarada como questão de honra. Outro exemplo? Vamos pensar numa situação menos agressiva ao corpo. Resumidamente apresento os fatos: após um divórcio, mesmo que a decisão seja tomada pelo marido, a família do homem tem o direito de exigir a guarda das crianças. Um homem que contamina sua esposa com o HIV (e o mais comum é que isso aconteça em decorrência da infidelidade do marido), além de abandoná-la sem nenhum recurso ainda leva consigo os filhos do casal. A mulher é devolvida para a sua família de origem, mesmo sem condições materiais para recebê-la. Esposa traída, infectada e abandonada, ela se torna, também, uma mãe rejeitada. Isto reforçava meu questionamento: “Por que não nos opomos? Por que legitimamos esses hábitos?” Que existam diferentes níveis de consciência e evolução espiritual, eu consigo entender e aceitar. Porém, a lógica da “homeostase emocional” precisa ser revista. Isto é: naturalmente buscamos o conforto emocional e, para isto, acomodamos os conflitos tentando amenizar o sofrimento. Mesmo que estejamos perenizando hábitos e paradigmas sem nenhum questionamento. Em nome da cultura, “simplesmente” ligamos o pilotoautomático do sofrimento humano e seguimos em frente. As implicações do apego a valores e crenças me parecem proporcionalmente complexas. Quanto mais radical e maior o grau de apego a determinadas verdades, mais complicado de trabalhar e de propor outras perspectivas. Certo dia, discutindo com a minha equipe sobre os indicadores de controle do projeto, solicitei que eles registrassem o número de entrevistas com mulheres grávidas. Imediatamente me Wontanara: estamos juntos? 126 disseram que seria impossível, pois faltavam meios para saber se a mulher estava grávida. “Mas é simples. Basta perguntar a ela”, insisti. Foi quando eles explicaram que, na cultura guineense, jamais fazem isso. Só depois que a barriga começa a aparecer é que se anuncia a gravidez. No panorama geral, não se trata apenas de questionar a cultura, como função dos hábitos de uma sociedade ou da sua produção de signos e significados. A convivência passiva com determinadas práticas “criminosas”, legitimadas por um grupo social, pode ser tão perversa quanto a prática em si mesma. Em meio a esse dilema, tentava resgatar o modelo teórico do pesquisador zimbabuano erradicado nos Estados Unidos, Airhihenbuwa. Ele defende a presença de uma “dimensão existencial” associada à cultura, como variável interveniente em nosso comportamento. Afirma que, numa ação, crenças e valores que não ameaçam a gestão da saúde, podem ser isoladas. Mas e a gestão da dignidade humana se enquadra como? Em nome da defesa dos direitos humanos universais, muitas nações se intrometem na vida de outras nações e cometem atrocidades tão grandes ou maiores. O processo de dominação pode ser mascarado de muitas formas, é verdade. Mas até que ponto devemos confortar uma mulher que chora suas perdas essenciais, dizendo que a cultura está aí para orientá-la? Wontanara: estamos juntos? 127 Capítulo 25 Wontanara: estamos juntos? 128 25 A PEDRA NO L AGO Era uma quarta-feira pela manhã do mês de novembro de 2010, um ano antes da minha chegada ao projeto, quando uma entrevista no rádio chamou a atenção de um pai, preocupado com a saúde de seu filho. Fazia tempo que o homem tentava abordar o assunto com o menino, mas não encontrava uma porta de entrada. Por vários meses, ele viu seu filho perder cada vez mais o sentido da vida e se afastar de suas atividades. Inquieto, naquele dia, ele se encheu de coragem e disse: “Meu filho, você precisa escutar o que essa moça do rádio está falando: o assunto é muito importante!” Procurando não desapontar seu pai, o filho deteve-se diante do rádio e, atentamente, ouviu cada palavra e orientação. O “assunto importante” era o HIV/AIDS. A entrevistada em questão era uma “ativista” e seu objetivo foi alcançado: alguém, do outro lado da cidade de Conakry, se identificava com seu depoimento. Naquele exato momento, nascia mais uma história de amor pela luta contra a discriminação de pessoas infectadas pelo HIV. Wontanara: estamos juntos? 129 Wontanara: estamos juntos? 130 Esse jovem mal podia acreditar que a experiência dolorosa vivida por ele, desde que recebeu o resultado da sua sorologia, era também compartilhada por milhares de outros jovens guineenses. Um tanto incrédulo, mas motivado pelo pai atencioso a procurar a moça e a confiar-lhe suas angústias, ele se direcionou ao serviço médico mencionado no rádio, a fim de obter mais informações. O caminho até o hospital foi longo e as perguntas que ele faria começaram a se organizar na sua cabeça. Vários pontos de interrogação. Mas principalmente um, fazia seu coração bater mais forte: “O que será da minha vida a partir daqui?” Chegou ao hospital e entrou no Centro Médico sem muita esperança. Primeiro observou curioso o movimento de tanta gente. A sala de espera lotada! Reparou nos rostos presentes e disse a si mesmo: “São pessoas comuns!” Assim, decidiu ir em frente e perguntou na recepção onde encontrar a moça que falara na rádio, no dia anterior. Naquele dia, ela deveria realizar um trabalho em outro local da cidade. O grupo de ativistas tinha programado uma série de sensibilizações nas unidades de saúde dos bairros. Mas, por uma dessas razões que só o plano divino consegue orquestrar, uma alteração de escala a levou para o hospital. Lá estava ela, sensibilizando os pacientes que aguardavam suas consultas. O tema do dia: vida positiva. Era como se estivesse à espera do jovem incrédulo. Ao encontrá-la, ele acabou por compreender que a vida de uma pessoa infectada pelo HIV circula para além do sangue que corre nas veias. Os meses que se seguiram depois deste encontro trouxeram para o jovem uma nova perspectiva de vida. Motivado por essa moça, ele passou a frequentar ativamente sua associação e a participar das atividades de sensibilização. Aos poucos, foi recuperando, inclusive, sua saúde. Fortalecido pelo ideal da luta contra a discriminação que se impunha contra ele, o jovem finalmente decidiu tornar-se, ele mesmo, um ativista. E foi com muita determinação que este “protagonista” se inscreveu no processo de seleção para a equipe do nosso projeto, em Conakry. Do total de vinte e sete candidatos, Wontanara: estamos juntos? 131 ele foi selecionado. Treze meses após ouvir a entrevista no rádio, o jovem se apresentou para o primeiro dia de trabalho como ativista, ao lado da sua “heroína”. A partir de então, eles continuaram batalhando juntos com o objetivo de levar outros jovens a encontrarem o sentido de suas vidas. Para ele, foi engajamento à primeira visita. Para ela, foi o fruto de um trabalho semeado com muito amor. Para os dois, foi um encontro que fortaleceu a luta pela vida. Mutuamente eles se diziam: “Inouwali ikhamalira!” 14 14. Equivalente a “agradeço seu apoio”. Para mim, foi uma honra testemunhar esse reencontro em minha sala. Tudo começou antes da minha chegada ao projeto, mas eu pude participar do desfecho e interpretei isto como sendo mais um presente divino. E, também, como prova de que sempre há uma razão por trás das mudanças inesperadas. Se não pudermos compreendê-la, devemos apenas aceitá-la como obra de um “projeto maior”. A história deles me fazia acreditar ainda mais em nossa capacidade de superar momentos difíceis. Olhar para o lado e nos reconhecermos na dor alheia pode nos fazer sair do próprio casulo para nos solidarizarmos mais com o mundo. E o que aconteceu com esse rapaz depois foi consequência da união de um grupo de pessoas: os ativistas da nossa equipe. Eles agem como verdadeiros “guerreiros”, visitando outros lugares e instituições, com a tarefa de semear informações e cultivar o compromisso coletivo. Com muita dedicação, investem no seu país. Lutam para que a população seja esclarecida, para motivar, entre os pacientes, a adesão total ao tratamento do HIV e para levar suas reivindicações às autoridades competentes. Algumas pessoas da ONG não gostavam que eles fossem chamados de “ativistas”. Talvez numa tentativa de proteger o “princípio de imparcialidade” da instituição. Houve um certo boicote interno e tivemos que mudar a terminologia. Entretanto, na prática, sabíamos que era impossível isolar do seu papel o componente político, com P maiúsculo. Eles são uma espécie de “pedra” que, se atirada no lago com força, propaga ondas transformadoras. Wontanara: estamos juntos? 132 Capítulo 26 Wontanara: estamos juntos? 133 26 SOBRE MORRER , J Á QU E A MORTE N ÃO E X ISTE Quase duas e meia da tarde. Cheguei ao hospital e passei pelo consultório médico para cumprimentar a equipe. Fui logo envolvida numa discussão para definir se os assistentes sociais deveriam ou não correr atrás de uma bolsa de sangue para enviar a um paciente hospitalizado em outro local. Minutos antes, um telefonema da minha equipe já havia solicitado a autorização para fazer um deslocamento extra no programa do dia, a fim de acompanhar uma criança ao hospital central. Autorizações concedidas. Vidas que seriam salvas. Mas quis o sopro do destino abafar o último suspiro. Duas vezes, naquele mesmo dia. *** Eram quase três da tarde e uma mãe interrompeu, desesperada, nossa discussão para alertar que estavam demorando e que sua criança passava muito mal. O médico tomou aquele corpo pequeno nos braços e o colocou sobre a maca, solicitando à mãe que se retirasse. Imediatamente nos vimos trancados no seu consultório e fui logo compreendendo que dali eu não sairia da mesma forma que entrei. Wontanara: estamos juntos? 134 Entre idas e vindas de algumas pessoas que insistentemente batiam à porta, uma constatação final: nada mais havia a ser feito, além de esperar o desligamento daquela pequena alma. Enquanto o médico e o enfermeiro discutiam a situação, tomei sua mãozinha em minhas mãos e orei, pedindo aos céus que suas portas se abrissem para acolhê-la. Meu coração se concentrou, buscando sintonizar a paz de espírito e a força do amor universal, numa humilde tentativa de mediar sua passagem. A discussão se aquietou com alguma intercorrência do lado de fora do consultório. Um a um, eles deixaram o cenário. Em poucos minutos, me vi sozinha com a criança. E me concentrei ainda mais: busquei ajuda da minha mentora espiritual e mais uma vez compreendi que dali eu não sairia da mesma forma que entrei. Reforcei minha oração, dessa vez pedindo aos amigos espirituais que facilitassem, eles próprios, a sua passagem. Lentamente, len-ta-men-te, o ritmo da respiração da criança foi se espaçando, es-pa-çan-do, até parar. Um pequeno espasmo fez o corpo silenciar por completo. Não havia nada mais a fazer além de agradecer a honra de acompanhar os últimos passos daquela pequena guerreira. Um misto de alegria e tristeza reacendeu dentro de mim um antigo paradoxo. A contemplação da vida num outro estado e dimensão me fez entender, mais uma vez, que a morte não existe e que morrer é uma simples questão de abandonar o corpo em algum lugar, num determinado momento, por uma razão qualquer. No final, nosso corpo precisa apenas de um motivo para ficar. Ao contrário da alma, que talvez já tenha coletado todos os méritos necessários para transcender... ou ascender, quem sabe. A lição era clara: não existe perda onde há libertação. Nem dor onde há sublimação. Ou sofrimento onde há compreensão. A solidão desaparece quando uma mão se estende sobre a nossa. No conforto da oração, nos entregamos apenas. E assim, creio eu, a dignidade do ser é preservada em sua totalidade e Wontanara: estamos juntos? 135 a alma pode partir segura da sua missão cumprida. *** Eram quase quatro horas da tarde e um pequeno corpo se tornava objeto de disputa entre duas famílias. A mãe, abandonada pelo marido em função da sua soropositividade, reclamava seu direito de velar a morte da pequena. Já o pai, este tentava impor sua tutela e manter a tradição da posse preferencial sobre o luto. Decisões tomadas, todos partiram do hospital. E, como pressentido, aquele que ficou não saiu dali da mesma forma que entrou. Fui imediatamente envolvida na busca de uma solução para o paciente que necessitava de transfusão de sangue. Era uma questão de tempo para que pudéssemos guardar ao menos uma vida. Corre daqui, corre dali. Entre dois ou três telefonemas, outra constatação: o sistema de saúde não permitia milagres. A bolsa de sangue só seria possível no dia seguinte. Naquele momento, passou pela minha cabeça que a realidade em questão acabava forjando, ela mesma, o motivo para o corpo libertar a alma. Fui novamente pega pela contradição de sentimentos. Uma espécie de revolta tomou o lugar da paz interior. A resignação se esvaiu. O choro atrapalhou o raciocínio lógico. A imparcialidade institucional foi aniquilada pela imposição do antagonismo social. *** Seis horas da tarde e o telefone tocou novamente. Dessa vez, para denunciar a segunda ação do destino. Não teve jeito. Nenhuma chance. Um quadro de anemia profunda que, associado a outros fatores, reduziu os esforços da minha equipe a pó. Mais um corpo abandonado, dessa vez literalmente. Sem família para reclamar pelo direito de velálo, foi-se a alma, apenas Deus sabe como. Deixou, porém, outra certeza: a vida é curta demais para virarmos o rosto para o lado contrário das oportunidades que recebemos com o objetivo de melhorarmos a pessoa que Wontanara: estamos juntos? 136 somos. Enquanto debatemos o descaso inconcebível dos governantes para com o sistema de saúde, os laboratórios se enriquecem com as nossas mazelas e o corpo ganha motivos de sobra para falecer. *** Eram onze e meia da noite. O dia contabilizou grandes confrontações. Chorei. Não a dor das perdas, mas a da impotência diante da fragilidade humana. Wontanara: estamos juntos? 137 Capítulo 27 Wontanara: estamos juntos? 138 27 Reclusão co m pulsória Nunca concordei totalmente com os procedimentos de segurança estipulados pela ONG. Encarava as estratégias como uma reação exagerada dentro do contexto. Sendo brasileira e tendo participado de manifestações e greves estudantis, não me assustava com o burburinho da cidade em dia de passeata. Morei em Campinas, frequentei a cidade de São Paulo por muitos anos, trabalhei na Amazônia e viajei mundo afora. Isto assegurava uma boa noção sobre vários tipos de risco e me sentia tranquila diante da perspectiva de revoltas políticas, golpes de estado, doenças fatais. Na minha crença, trilhar o caminho do bem comum e manter a conexão com o sagrado consolidam certa aura de proteção ao nosso redor. Quando desapegados, dificilmente nos apavoramos com a iminência da perda. Sendo assim, o que tem que acontecer, acontece. Nem por isso negligencio as regras. Como diz o provérbio: “Confia em Deus, mas amarra os cavalos”. Por isso, eu seguia o determinado pela nossa coordenação e guardava em segredo minha indignação pela disparidade de tratamento Wontanara: estamos juntos? 139 entre expatriados e staff nacional nas situações de emergência. O fato de atuar na África há muitos anos e já ter sofrido ameaças colocava a ONG no “lugar do saber”. Eles tinham a prerrogativa de operar dentro do princípio de “risco zero”. Não cabia a mim questionar. As medidas eram precisas e a cidade havia sido mapeada de acordo com a análise do contexto político do país. A cartografia indicava os possíveis conflitos étnicos e seus respectivos bairros. Com base nisso, tínhamos as fronteiras estabelecidas e, portanto, não podíamos trafegar livremente. Aliás, jamais podíamos utilizar qualquer outro meio de transporte que não fosse o veículo da ONG ou de alguma outra agência parceira autorizada pela coordenação geral. Em nossa rotina, tínhamos horários estabelecidos para frequentar determinados pontos da cidade e normas claras de conduta em situação de vulnerabilidade. Em dias de prováveis manifestações, não podíamos sair do escritório. Nos dias em que elas ocorriam de fato, não podíamos sair de casa. Isso significava uma reclusão de dois ou três dias seguidos, sem trabalho de campo para os expatriados. Ou, pelo menos, para a grande maioria de nós. Passeatas podem causar tumulto e alguma violência. Em terras africanas é muito comum que os conflitos envolvam questões étnicas, além das político-partidárias. As disputas de poder entre governo e oposição acirravam as diferenças raciais. Quando o cidadão de uma etnia era ferido, sem importar qual o motivo, automaticamente suscitava uma resposta agressiva da outra etnia. Assim, numa progressão quase aritmética, no final de um confronto e nos dias subsequentes, muitas pessoas sofriam algum tipo de ataque. As agências e ONGs internacionais em Conakry mantinham uma rede ágil para troca de informações. Tomávamos conhecimento das eventuais ocorrências com antecedência, o que permitia a cada instituição tirar o plano B da gaveta. No nosso caso, a equipe de emergência fazia plantão no hospital, enquanto o restante dos expatriados e do staff nacional permanecia em reclusão. Wontanara: estamos juntos? 140 O que me deixava incomodada era constatar a desproporção dos recursos humanos designados para essa tarefa. Na linha de frente, apenas dois ou três expatriados liderando o grupo, formado por mais de dez guineenses. Mesmo nos bastidores, essa matemática se repetia. Aquele cenário parecia injusto. Em onze meses de missão, ficamos em reclusão um número de vezes suficiente para provocar em mim certa indignação. Reconheço que havia precedentes influenciando as decisões da ONG. E eu não tentava desqualificá-las. Mas confesso que, em vários momentos, me sentia participando de um filme hollywoodiano sobre uma conspiração qualquer. À medida que as pessoas da minha equipe contavam sobre a situação em seus bairros, eu escondia a vergonha por ser uma simples coadjuvante. Percebia o desconforto nas entrelinhas e, por outro lado, observava a excitação de alguns expatriados. Não raro eles pareciam seduzidos pelo caráter de urgência, como se, a qualquer momento, fôssemos obrigados a orquestrar uma evacuação do país. Quando, de fato, o caos me parecia ser de outra natureza. Wontanara: estamos juntos? 141 Capítulo 28 Wontanara: estamos juntos? 142 28 Quase a q ua r ta e spos a , eu? ! Nos últimos meses de trabalho, me concentrei em consolidar o “clube de pacientes”. Essa era uma estratégia utilizada em vários projetos para aumentar a adesão ao tratamento. Ela permite que os pacientes de um mesmo grupo façam um rodízio entre si na hora de buscar o medicamento na clínica. Isso otimiza seus recursos. A equipe já havia tentado implantá-la no passado. Mas sem muito sucesso, em função de uma série de fatores. A realidade local exigia adaptações culturais e sociais e demoramos a ousar propô-las. Quando finalmente decidimos envolver as associações de pessoas vivendo com o HIV/AIDS, tudo pareceu mais viável. Montamos um protocolo bem acessível e agendamos a primeira reunião com alguns associados. Geralmente, nesse tipo de evento, tudo acontece na língua local. Inclusive, são realizadas traduções consecutivas em dois dialetos, buscando contemplar a maioria presente. O encontro deveria acontecer em uma das associações parceiras, na manhã de um sábado. Coincidiria com a assembleia já agendada na mesma data, a fim de facilitar a participação de um número maior de interessados. Wontanara: estamos juntos? 143 Cheguei no local indicado alguns minutos antes do horário fixado, aproveitando para observar um pouco mais a discussão que ocorria naquele momento. Embora sem entender o dialeto deles, eu reconhecia algumas palavras e podia me orientar pelas expressões faciais e tom de voz. Quando considerava necessário, pedia permissão para fazer algum comentário. Naquele dia, o debate era sobre os motivos que levam os pacientes a negligenciarem sua medicação. Alguns alegavam não dispor do dinheiro para o transporte até a clínica. Outros se apoiavam no fato de não poderem revelar à família que são HIV+ e, consequentemente, precisarem se esconder para usar a medicação (o que significava, às vezes, deixar de tomála ou não respeitar os horários corretamente). Vários fatores foram apresentados como justificativa. Mas um deles aqueceu a discussão por mais de meia hora: pacientes muçulmanos insistiam em praticar o jejum durante o Ramadã. O fato de não se alimentarem entre o nascer do sol e o crepúsculo nem seria tão problemático para os pacientes. Contudo, eles comprometiam o horário da medicação, sendo prejudicial para o tratamento. Para quem nunca ouviu falar do Ramadã, sugiro uma pesquisa mais aprofundada. De qualquer forma, acho importante abrir um parênteses e resumir, mesmo que superficialmente, o que aprendi com os guineenses no Ramadã de 2012. Fiquei impressionada com o efeito do jejum no dia a dia das pessoas. A prática é um dos cinco pilares do Islamismo e marca um período de purificação e renovação da fé. Por vinte e nove ou trinta dias, os seguidores voltam-se para a caridade e reforçam os valores familiares, realizando com mais assiduidade a leitura do Alcorão e a frequência na mesquita. As orações são intensificadas, adicionando uma recitação especial à noite (chamada Taraweeh). Todos são convocados a permanecer concentrados no bem moral, mantendo a disciplina espiritual. O jejum (alimentar e sexual) é obrigatório a todos os muçulmanos, após a puberdade. Mulheres em período menstrual, lactantes, grávidas, idosos em geral e enfermos Wontanara: estamos juntos? 144 podem se abster. Devem, porém, praticá-lo em outro momento possível, para compensar. Ao longo do período, observamos como o ritmo das pessoas vai ficando, gradativamente, mais lento. Acredito que isso ocorra por diferentes razões: o corpo debilitado (há um emagrecimento generalizado) e a mente mais apaziguada. Parece uma combinação implacável para reduzir a movimentação na cidade. As pessoas saem do trabalho mais cedo e, à noite, o silêncio prevalece. Só mesmo o chamado do alto-falante das mesquitas para quebrar o jejum dos ouvidos. Numa população quase inteiramente muçulmana, era complicado sensibilizar os pacientes HIV+ a não aderirem ao jejum. Nossa equipe usava um discurso mais contundente nas salas de espera do hospital e unidades de saúde. Conversava com os pacientes sobre o assunto e defendia a importância de se manter os horários da medicação. Ressaltava que eles poderiam tomar o medicamento e ainda assim jejuar no restante do dia, se preferissem. Mas muitos deles argumentavam que, se interrompessem o jejum despertariam dúvidas nos familiares e arriscariam ter que compartilhar seu segredo. Naquela reunião, esse também era um dos maiores impasses. Colocados todos os argumentos religiosos, de um lado, e clínicos, de outro, a divergência estava longe de ser neutralizada. Até que, em determinado momento, tomei a palavra e comecei a refletir com eles sobre possíveis alternativas para superar o dilema. Eu falava em francês, alguém traduzia em soussou e em seguida em poular. A conversa se estendeu, mas numa altura qualquer, praticamente todos estavam convencidos de jejuar sem desrespeitar os horários do medicamento. Apenas um senhor ainda relutava. Com muito cuidado, fomos evoluindo na discussão, estabelecendo uma conexão entre a religiosidade e a responsabilidade civil e espiritual com o corpo material. Me senti construindo uma ponte! Basicamente, tentei fazê-los pensar no corpo como um Wontanara: estamos juntos? 145 veículo emprestado para abrigar a nossa alma e permitir que ela se desloque nesse espaço material. Entre outras ideias, enfatizei que as descobertas científicas são uma espécie de bênçãos que nos beneficiam com tratamentos adequados. Sendo assim, não poderíamos negar ao nosso corpo o necessário para se manter saudável, principalmente porque ele é apenas uma concessão divina. Já pensava em desistir daquela batalha quando, para minha surpresa e perplexidade dos demais, este senhor levantou emocionado e, num tom de voz forte, declarou: “Madame, madame... agora eu entendi bem o que a senhora disse. Madame, a senhora e meus companheiros têm toda razão. Eu prometo que nunca mais vou deixar de tomar meus medicamentos corretamente!” O gostinho de vitória seria diferente, vindo de outra pessoa. Sendo aquele homem especificamente, a conquista significava mais para o pessoal da associação. Há muito tempo eles trabalhavam sobre a adesão desse senhor ao tratamento, sem sucesso. Sua promessa, em público, era inquestionável. Tudo teria terminado com os calorosos aplausos para ele. Porém, fechamos o encontro com uma gargalhada gostosa. Terminada a salva de palmas, ele ficou de pé na minha frente e continuou, seguro de si: “Madame, madame, e tem mais: se a senhora não for partir para o seu país, se resolver morar aqui na Guiné, quero que seja a minha quarta esposa.” Na contabilidade final, o saldo da reunião foi excelente: além de conseguirmos organizar um novo “clube de pacientes”, conquistamos a adesão de um dos pacientes mais teimosos do grupo, e eu ainda saí de lá com um pedido de casamento! Wontanara: estamos juntos? 146 Capítulo 29 Wontanara: estamos juntos? 147 29 Ils sont où les noirs? Após sete meses no projeto, tínhamos avançado significativamente. Conseguimos reverter resultados que antes estavam comprometendo a qualidade do nosso atendimento e também organizar o departamento psicossocial dentro de um novo paradigma. Com as sessões de formação, minha equipe se sentia mais animada e envolvida com as mudanças do percurso. Nada que afrontasse o padrão preestabelecido pela ONG, mas eles já estavam incorporando tudo aquilo que fazíamos. E isso era o mais importante, pois não tinha como retroceder. Eu esperava, pelo menos, que fossem transformações reais e não apenas uma simples maquiagem. Mas dependeria também do reconhecimento da administração central da ONG. E eu já começava a me resignar com o fato. As atividades que permitiam trabalhar com os pais das crianças e adolescentes diagnosticados com HIV positivo haviam sido reforçadas e os resultados, mais bem monitorados. Isto nos rendeu o convite para compartilhar nossa experiência num workshop na África do Sul, que reuniria projetos africanos da ONG. Wontanara: estamos juntos? 148 Havia enfrentado divergências internas com a coordenação na Guiné e me sentia desanimada com essa viagem. Àquela altura, tinha certeza de que apenas terminaria minha missão e me desligaria dessa instituição. Assim, não via coerência em representar nosso grupo nesse evento. Embora relutante pelo fato de não poder levar comigo um dos membros da minha equipe, embarquei para Cape Town. Durante minha estadia fui tomada por uma mistura estranha de sentimentos. Ao mesmo tempo em que estava à vontade naquela cidade linda, sem a confusão de Conakry, eu não me reconhecia no contexto. O trabalho intenso inviabilizou os passeios turísticos, mas do pouco que vi, muito estranhei. Imagens pela internet e guias de viagem não foram suficientes para me convencer de que Johanesburgo e Cape Town estão há anos-luz da miséria africana encontrada nos países vizinhos. Só mesmo pessoalmente para constatar a marca da sua colonização: trânsito tranquilo, cidade limpa, organizada, refletindo a globalização. Desde a chegada ao aeroporto em Johanesburgo até a minha instalação em Cape Town, tudo se mostrava distante do que vinha experimentando nos últimos meses de Guiné. Era como se estivesse na Europa. A estrutura de Johanesburgo impressionava, quando tomava como referência as cidades de Conakry e Luanda, que eram as únicas capitais africanas que conhecia pessoalmente, até então. Independente de que ideologia e modo de produção social é melhor ou pior, mais ou menos adequado, não podemos ignorar o fato: todo colonizador impõe certo grau de aniquilamento sobre o savoir vivre da sociedade dominada. Embora, é claro, o aculturamento ocorre de acordo com os protagonistas da história. As facilidades que as sociedades ocidentais proporcionam favorecem a qualidade de vida em muitos aspectos. As vantagens são inúmeras e nem precisamos listá-las. Da mesma forma, as desvantagens. Toda moeda tem duas faces. Meus conhecimentos histórico e político são insuficientes Wontanara: estamos juntos? 149 para entrar neste debate. A discussão ecoa há décadas, com períodos intercalados de maior e menor tensão, geradas pelos conflitos civis. Mas as divergências sociais não deixaram de se reproduzir na África do Sul. A ideia de que o fim do apartheid estabeleceu a paz no cotidiano do país me pareceu uma ilusão globalizada que todos nós, ocidentais, gostamos de partilhar. Procurava organizar essa confusão internamente, porém encontrava dificuldades para apaziguar minha consciência: “Onde estavam os africanos? Onde estavam os negros? África do Sul ou Europa do Sul? África ocidentalizada? Fim do apartheid? Quando mesmo? Divisão de classe social econômica ou racismo? Diversidade cultural ou aniquilamento das práticas tradicionais?” Meus colegas tentaram me consolar dizendo que Johanesburgo e Cape Town não eram representativas da África do Sul. Afirmaram que pelo interior do país ainda é possível encontrar hábitos culturais preservados e tambores que soam o ritmo africano. Não era um país apenas “para inglês ver”! Algumas pessoas defendiam a ideia de que a deterioração cultural é insignificante perto da possibilidade de diminuir os índices de mortalidade humana, causada pela fome e falta de acesso à assistência em saúde. Elas argumentavam que a socialização dos recursos garante melhor qualidade de vida, mas, em contrapartida, requer mudanças drásticas no modo de vida de uma sociedade. Concordar com essa lógica era penoso para mim. Pensava na relatividade dos fatos e na lei de causa e efeito. Compreendia a necessidade de mudar a realidade “precária” de várias sociedades. Reconhecia o “avanço” de outras e a possibilidade de compartilhamento. Mas questionava o “preço” dessa troca. Uma parte do nosso planeta permanece em guerra por causa das diferenças políticas, étnicas, religiosas. A disputa de poder é real. Talvez eu estivesse sendo simplista demais. Mas o que vi (e não gostei) foi a ainda presente segregação dos bairros em função da cor da pele. Prerrogativa da África do Sul? Wontanara: estamos juntos? 150 Capítulo 30 Wontanara: estamos juntos? 151 30 PARALISADA P E LO PARADOXO Onze meses se passaram e eu consegui cumprir todas as metas de trabalho. Várias providências foram tomadas para garantir a continuidade da gestão da minha equipe e me restava apenas torcer para que os gestores da ONG apoiassem, de fato, o novo coordenador. Concluí a missão, levando amigos no coração e deixando um pouco de mim em solo africano. Voltei da Guiné com a certeza de que deveria ter ido. Sentindo uma leveza na alma. Mas passei os meses subsequentes tentando digerir aquela realidade em doses homeopáticas. Os ingredientes desse prato exigem consumo lento: realização pessoal e culpa; solidariedade e egoísmo; amor e desamor. Tudo com sabor intenso. Posso afirmar que foi uma das experiências mais significativas na minha vida profissional e pessoal. Conheci pessoas surpreendentes enquanto vivia situações que me tiraram a ilusão de “Alice no país das maravilhas”. Assim, minha consciência continuava sem repouso. Depois do encerramento do meu contrato, tentava diluir as decepções e guardar a gratidão pela oportunidade concedida. Porém, Wontanara: estamos juntos? 152 assistindo às propagandas de diferentes ONGs na televisão, certo dia, me debulhei em lágrimas com o paradoxo. De um lado, a constatação do ainda inevitável combate nesse mundo: fome, antagonismo, miséria, descaso social e político. Do outro, a promessa de salvar pessoas com apenas um real por dia. Imaginem! Parece a solução, mas não é. À medida em que as lágrimas escorriam, eu pensava: “Eles estão lá, no meio dos conflitos civis, das epidemias, da exclusão total, fazendo alguma coisa para consertar as injustiças das nossas sociedades. E eu, aqui, assistindo sua propaganda na televisão, lutando contra a lembrança dos embates institucionais.” Várias vezes me disseram que organizações perfeitas existem somente no papel e trabalhar num único projeto é insuficiente para conhecermos a instituição. E eu concordo! Deslizes administrativos, brigas internas, disputa de poder, desvio de dinheiro e até problemas éticos, são frequentes. Inclusive fazem parte da realidade de ONGs consideradas referência internacional. Sugeriram que eu passasse a pensar: “Bom, pelo menos eles estão fazendo a diferença para milhares de pessoas.” Eu me esforcei, mas o ideal de humanitarismo que cultivei durante anos desmoronou. Trabalhei em diferentes ONGs aqui no Brasil. Todas pequenas, porém éticas. Com alguma dificuldade administrativa, mas transparentes em seus propósitos. Tive que ir ao outro lado do continente para aprender que, nesse campo humanitário, as ideologias dominantes são muito presentes, também. Embora estrategicamente maquiadas de solidariedade. Chorei muito no retorno à pátria amada porque, afinal, eu queria estar lá, fazendo alguma coisa. Onde quer que fosse esse “lá”. E não na frente daquelas propagandas, remoendo as contradições do terceiro setor. Nesta minha experiência constatei que grande parte das pessoas apenas optam pelo trabalho por ser remunerado. Trata-se de um emprego, um contrato como outro qualquer. Observei que raramente as intervenções são planejadas para Wontanara: estamos juntos? 153 motivar a autonomia da população atendida. E que a gestão dos recursos, muitas vezes, é inadequada. Aprendi que a política de uma organização pode ser cuidadosa em vários aspectos, mas ignorar a Ética em outros. Enfim, nenhuma ONG está imune. Cheguei à conclusão de que é mais viável investirmos naquilo que está próximo de nós. Assim, podemos acompanhar o desenvolvimento das ações e avaliar de perto o resultado do trabalho. Atravessemos a rua e façamos a doação do nosso “um real por dia” àquela instituição que conhecemos pessoalmente. E se ainda não conhecemos nenhuma, podemos visitar a realidade social do nosso entorno para encontrá-las. Vamos nos certificar de que os recursos sejam devidamente aplicados. Não nos iludamos com depoimentos e imagens bem construídas na mídia. Precisamos verificar os fatos, os dados da realidade. Eu sei. Eles estão lá, fazendo alguma coisa. E eu estou aqui de volta, chorando diante das propagandas. Por pouco tempo. O necessário para perceber que devo compartilhar, sem medo nem constrangimento, minha experiência africana. Não para delatar uma situação, mas para testemunhar que a vida lá fora é apenas um reflexo da vida dentro de cada um de nós. E, se queremos mudar o mundo com nossas ações humanitárias, temos que salvar o humano que nos habita, em primeiro lugar. Acreditar ser possível contornar a engrenagem capitalista e selvagem, que determina como o mundo gira, é ingenuidade da nossa parte. Mas tenho certeza de que devemos, todos, agir para resgatar a humanidade do limbo que criamos com as nossas ideologias passageiras. Não tenho fórmulas. Fiquei sem respostas. Guardei somente as esperanças! Wontanara: estamos juntos? 154 Wontanara: estamos juntos? 155 Capítulo 31 Wontanara: estamos juntos? 156 31 FINA LIZANDO, à som b ra d o i d ea l is m o Um planeta em equilíbrio, harmonia familiar, fé inabalável, valores de vida convergentes, crenças respeitadas, hábitos culturais compreendidos, direitos sociais integrados, direitos humanos realmente universais. Um mundo melhor, uma sociedade justa e igualitária, antagonismo econômico inexistente, vida com qualidade, saúde e educação para todos, acesso livre aos serviços, transporte eficiente e suficiente, segurança pública e pessoal. Um país em paz, reserva natural protegida e preservada, economia solidária, desenvolvimento sustentável, oportunidade de trabalho, mão de obra qualificada, estradas boas, pedágio livre, trânsito organizado, cidade limpa, ficha limpa. Um governo transparente, uma política coerente, democracia garantida, direitos civis sempre vigorando, deveres cumpridos, responsabilidade e participação social, imprensa livre e comprometida com a verdade, ativismo coletivo, cooperação internacional. Wontanara: estamos juntos? 157 Um projeto humanitário, trabalho voluntário, promoção social, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, conhecimento compartilhado, divisas sem fronteiras, ética na prática profissional, amor e dedicação como ferramentas de trabalho. Quem dera um planeta orientado pela consciência de que somos seres espirituais conectados por um único fio. Talvez nos esforçássemos mais para alinhar nossos diferentes padrões vibratórios, colocando à disposição nossas energias de amor a fim de criar um mundo equilibrado. E que todos os cidadãos compreendessem seu protagonismo espiritual. Quem dera esse mundo pudesse ser cuidado com simplicidade, substituindo os jogos de interesse, o favoritismo, os conflitos ideológicos, a dominação insana. Talvez pudéssemos manter sociedades livres e integradas a uma dinâmica universal. E que todos os cidadãos compreendessem sua função social. Quem dera todos os países tivessem suas fronteiras abertas, o trânsito livre para a troca de experiências. Que o único objetivo fosse compartilhar conhecimentos para aprimorar a coletividade humana. E que todos os cidadãos “falassem a língua dos anjos, e que tivessem amor no coração.” Quem dera um governo que se preocupasse realmente em organizar o processo social à luz dos princípios universais. Talvez tivéssemos indicadores econômicos que pudessem favorecer os índices de desenvolvimento humano. Quem dera fossemos todos regidos por uma política orgânica, representativa e participativa. E que todos os cidadãos fossem, de fato, Cidadãos. Quem dera todo esse idealismo fosse realidade e não precisássemos inventar projetos sociais para “salvar a humanidade”. Mas, quem dera os projetos que vemos implantados ali, aqui, em todos os lugares, fossem administrados realmente com responsabilidade e competência. Não haveria fome, não haveria abandono, não haveria negligência, não haveria ganância, não haveria abuso, não haveria violência, não haveria espectador. E que todos os cidadãos contribuíssem para o aprimoramento planetário. Wontanara: estamos juntos? 158 Quem dera saíssemos da sombra do idealismo, onde repousamos tranquilamente nossas consciências, crentes de que o pouco que fazemos é o máximo que podemos. E que cada um de nós, cidadãos, pudesse acelerar um pouco mais o próprio passo, rumo ao ponto de encontro comum: o sagrado universal. Wontanara! Wontanara: estamos juntos? 159 AGRADECIMENTOS Equipe “Chic Choc”, gratidão eterna. Vocês são pérolas que emblezam a alma e permanecem minha família africana: Tidiane Sekou Toure, Aboubacar Camara, Bella Mamadou Barry, Bountou Kouyate, Djouldé Mariama Baldé, Fanta Diané, Mabinty Toure, Mahawa Sylla, Maimouna Diallo, Marie Sagno, Mohamed Saliou Sylla, Mohamed Taibou Diallo, Oumar Deen Alpha Diallo, Oumar Sowprano, Saliou Amadou Diallo, Saranté Tamba Millimouno. Wontanara, meus queridos! Agradeço também a todos os funcionários do projeto Guiné, sem exceção, mas em especial ao Dr. Bah, pelo exemplo de delicadeza humana. Compartilhar os dias com vocês tornou minha jornada muito mais prazerosa e feliz. Gratíssima aos parceiros nas unidades de saúde em Conakry, em especial à Dra Assiatou Diallo, Dr Soumah Abou Aissata e aos mediadores: Sané Sorel Soriba, Boubacar Alpha Diallo, Sidibé Aissatou, Kadiatou Camara, Fatoumata Binta Baldé, Djouldé Diallo, Fataoumata Tounkara, Fatoumata Binta Sylla, Mme Lawouratou, Fatoumata Dioubaté, M’Balia Soumah, Hawa Baldé, Tiguindanké Touré. Vocês são demais! Alguns amigos marcaram minha jornada africana pelo companheirismo, apoio e afeto: Nathalie Cartier, Frédéric Akpome, Lysanne Lafetière, Seleman Nizeyimana, Aoua Bengaly, Delphine Collin, Ileana Petrini, Fabrizio Andriolo, Caroline de Cramer, Vincent Onclinx, Jean-Sebastien Lerolle, Juliane Raoul, Claude Kiangala. Pablo Ribeiro, obrigada pelo apoio incondicional e por abrir os atalhos do meu ser, inovando meu mundo. Simples assim! Aos amigos da tribo: Guilherme Valle, pelas críticas que tocaram meu coração, sugestões, incentivo e prefácio escrito com a alma; e Luciene Siqueira, pela sugestão do título e pela garimpagem final do manuscrito, feita com carinho e dedicação. Vocês também são família! Wontanara: estamos juntos? 160 Fabio Biolchini, Leticia Passowski, Lysanne Lafetière e Juliane Raoul: obrigada por compartilharem comigo o olhar sobre a Guiné, através das suas belíssimas fotos. Ao Cairo Trindade, pela revisão inicial dos textos e pelos encontros literários em sua oficina abençoada: a varanda mais poética de Copacabana! Equipe da Wedologos: gratíssima pelo acolhimento e pela criatividade na editoração dos livros. Vocês me conquistaram! Maria Luisa e Alexis: A versão em francês cruzará o oceano. Merci beaucoup! Finalmente, mas não menos valioso, gratidão à minha mentora espiritual, Juliana, que sempre zelou por mim, sem nenhum julgamento. Você é luz no meu caminho terreno, esperança para a minha alma! E, ao Irmão Joaquim, por suas orientações e exemplo claro de que o amor transforma. Wontanara: estamos juntos? 161 CRÉDITOS - fOTOGRAFIAS Fabio Biolchini PÁGINAS: Capa, 7 , 13, 20, 25, 45, 48, 58, 80, 90, 91, 93, 100, 107, 110, 111, 114 (foto 1), 123 , 127, 137, 146, 155, 161, 164. Letícia Passowski PÁGINAS: 2, 17, 21, 33, 37, 41, 50, 56, 61, 66, 70, 76, 81, 86, 94, 98, 104, 108, 112, 119, 123, 133, 138, 142, 147, 151, 156. Lysanne Lafetière PÁGINAS: 59, 60, 114 (foto 2). Juliane Raoul PÁGINAS: 122. Jessica de Menezes PÁGINAS: 24, 29. freepik.com PÁGINAS: 128, 155. Wontanara: estamos juntos? 164