Capa e projeto gráfiCo

Transcrição

Capa e projeto gráfiCo
Andrea Silveira
Wonta na ra :
estamos juntos?
1a Edição
São Paulo
2014
O trabalho “Wontanara: estamos juntos?” de Andrea Silveira está licenciado com uma
Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - CompartilhaIgual 3.0 Brasil.
Baseado no trabalho disponível em: http://www.wontanara.com.br.
Capa e projeto gráfico
Wedologos
Fotografias
Fabio Biolchini
Letícia Passowski
Lysanne Lafetière
Andrea Silveira
Juliane Raoul
Jessica de Menezes
freepik.com
Revisão
Guilherme Valle
Luciene Xavier de Siqueira
Oficina de Literatura Cairo Trindade
Tradução para o francês
Maria Luisa Dominici Cunha
Alexis Gourdol
Editoração Eletrônica
Wedologos
Ende re ço para contato
www.wontanara.com.br
[email protected]
SUMÁRIO
Prefácio ...........................................................................................................10
Antes mesmo de começar
..................................................................14
1. Quando eu crescer... ................................................................................17
2. Encontrando minha vocação
3. O salto quântico
..............................................................21
.........................................................................................25
4. We plan as we go
......................................................................................29
5. O mundo em guerra e a proposta de salvá-lo
6. Sonhos que se realizam
........................33
.........................................................................37
7. Meu sobrenome? Metamorfose! .......................................................41
8. Pequeno país, grandes desafios ........................................................45
9. Desembarcando no campo
10. Bem-vindos a Conakry
.................................................................50
........................................................................56
11. O tabu do HIV/AIDS na Guiné .......................................................61
12. Wontanara
..................................................................................................66
13. Desafios e oportunidades
..................................................................70
14. Humanitarismo ou dominação maquiada? ............................76
15. Uma babel sem fronteiras .................................................................81
SUMÁRIO
16. Lá se foram quatro meses
.................................................................86
17. Enquanto isso, a vida acontece lá fora ......................................90
18. Nem tudo é resistência ........................................................................94
19. Um jardim para a esperança
20. A cor da África
..........................................................98
......................................................................................104
21. A peculiaridade do Marché Madina .........................................108
22. Mulheres, mães e as Amazonas da Guiné ...........................112
23. Tambores mágicos ...............................................................................119
24. De volta ao dilema da cultura .......................................................123
25. A pedra no lago ....................................................................................128
26. Sobre morrer, já que a morte não existe ................................133
27. Reclusão compulsória ........................................................................138
28. Quase a quarta esposa, eu?! .......................................................142
29. Ils sont où les noirs? ...........................................................................147
30. Paralisada pelo paradoxo ...............................................................151
31. Finalizando, à sombra do idealismo ........................................156
Agradecimentos ........................................................................................160
Wontanara: estamos juntos?
7
Aos meus queridos amigos da Guiné,
tambores que continuam tocando meu coração.
Wontanara: estamos juntos?
8
C’est une vérité évidente que personne ne viendra
développer notre cher pays à notre place. Il faut
compter sur chaque guinéen avant d’appeler les pays
voisins, la communauté internationale avec sa
cohorte d’organisation et d’ONG. Jeune de Guinée,
si ce n’est pas nous, alors ce qui? Si ce n’est pas
maintenant, alors ce quand? 1
Ibrahim Sowh
(um dos tambores que tocam a Guiné)
1. É uma verdade evidente que ninguém virá desenvolver nosso
querido país em nosso lugar. Devemos contar com cada guineense
antes de chamar os países vizinhos e a comunidade internacional
com sua corte de organizações e ONGs. Jovens da Guiné, se não
formos nós, então será quem? Se não for agora, então será quando?
Wontanara: estamos juntos?
9
PREFÁCIO
Wontanara - estamos juntos? É o relato de uma vivência, é perspectiva,
é comprometimento! É uma viagem pela África, uma crítica social e
ao mesmo tempo uma proposta de ação, de amor ao próximo, unindo
emoção e razão, vivência e conhecimento técnico. Este livro é um olhar
para além do acadêmico, uma visão Humanista e Espiritualista da nossa
corresponsabilidade na construção de um mundo mais justo, de uma
vida mais digna para todos.
Antes de prosseguir, quero expressar a minha gratidão pelo convite, num
primeiro momento, para revisar este manuscrito, não em seus aspectos
teóricos ou linguísticos, mas naquilo com que eu podia colaborar: oferecer
o feedback de um leitor que, apesar de nunca ter ido à África, comunga
muitas ideias com a autora, minha amiga Andrea Silveira. Depois, num
segundo momento, pelo convite para escrever o prefácio, o que muito
me honrou, pois sei de seu afeto por esta obra.
De maneira imprevista e por mim não esperada, num reencontro com
a autora, depois de quase um ano de sumiço do Brasil e após a sua
aventura pela África, ela me deu a oportunidade de contribuir, com o meu
olhar, para o registro da sua experiência em um projeto social naquele
continente. Processo marcado também pelo seu desejo de sintetizar o
momento de Vida, a história pessoal e a trajetória profissional, numa
espécie de balanço sobre um trecho da sua caminhada – que, desde já,
desejo que seja longa, pelo muito que ela tem a contribuir.
Wontanara – estamos juntos? Sim! Talvez eu seja a primeira feliz “vítima”
dessa obra. Na realidade ninguém é vítima; todos nós, de alguma forma,
somos os artífices de nossa vida, através das nossas escolhas! E espero
que você, leitor, ao final se sinta também uma feliz vítima do encontro
com este livro e possa responder SIM à pergunta inicial do seu título.
Certamente, este livro, que antevejo como um projeto, terá
desdobramentos, pois possui um potencial para auxiliar a quem deseja
participar de projetos sociais de uma maneira consequente! Sem dúvida,
Wontanara: estamos juntos?
10
irá emocionar as almas sensíveis, já que foi construído com muito
carinho. Fruto de um momento especial na vida de sua autora, dos seus
sonhos, ideais, encontros, desencontros, realizações e fracassos, o que só
o enriquece. É um livro com alma!
Sua obra é fruto de uma sólida formação acadêmica, de um rígido senso
crítico e ético, de uma visão humanista e busca espiritual. Pelo menos é
assim que vejo a autora, desde quando os nossos caminhos se cruzaram,
intercalados de momentos distantes e outros mais próximos.
A emoção e a sensibilidade que relato no meu envolvimento com este
seu projeto estão presentes ao longo de todo o livro, que fala de um
certo modus operandis da autora e da sua proposta de ação social, baseada
em afeto, na valorização do outro, no estímulo aos potenciais de cada
pessoa, no engajamento pela construção de um mundo melhor para
todos.
Neste início de século XXI a Humanidade e o planeta Terra se encontram
em um momento crítico e de perigo. Aquele momento onde é real e
muito próxima a possibilidade de autodestruição da Humanidade.
Momento em que os valores dominantes se esgotam em si mesmo.
Ponto onde o outrora remédio, vira veneno! Só a mudança de paradigma
e a adoção verdadeira de novos valores poderão proporcionar uma
saída! É real a possibilidade de destruição, mas o otimismo presente na
visão Humanista aponta para a esperança e fé no potencial humano. O
livro “Wontanara” toca nestas questões, ao relatar a experiência de uma
psicóloga social num ponto da África, na Guiné, através do trabalho
humanitário de uma ONG internacional.
A autora faz uma ponte entre culturas, comunidades e pessoas, como
ela gosta de dizer: “construir pontes entre o abandono e o aconchego,
entre o injusto e a igualdade de direitos, entre a miséria e a possibilidade
de realizar sonhos”. Ponte entre culturas e visões de mundo é bem
mais difícil do que construir uma ponte física entre dois pontos fixos
e distantes, desafio para os engenheiros. Ponte entre as diversidades
culturais, entre as diferenças sociais, econômicas ou educacionais, e entre
as comunidades ou as pessoas que compõem a grande família Humana,
é um desafio bem maior! Pois exige sensibilidade, escuta, empatia,
compaixão, tolerância comprometimento, solidariedade. Não se tem
fórmulas ou cálculo preciso na sua construção, muitas vezes precisa
mais do que suor: demanda lágrimas, afeto, sorriso, gentileza, alegria.
Wontanara: estamos juntos?
11
Fiquei feliz que a autora, após conseguir transformar em um belo texto
a rica experiência vivida, elaborou, em paralelo, o Caderno Técnico,
propondo caminhos para uma ação social, a partir de sua visão de
“intervenção” social, coerente com princípios éticos, com uma visão
humanista, espiritualista e critica. Aos que se interessarem para além das
crônicas e quiserem estar juntos em algum projeto de ação social, os
dois livros são plenamente complementares: emoção e razão, ciência e
espiritualidade, crítica e engajamento, noite e dia, sol e lua. Com os dois
juntos a vivência não fica sem fundamentação e referências técnicas. O
teórico não fica frio e vazio, ganha emoção, espiritualidade e valores.
Convido o leitor para saborear os capítulos deste livro e acompanhar,
passo a passo, a história que levou a autora à África: suas expectativas,
descobertas, frustrações e questionamentos. Mas, fiquem atentos
às frases especiais e de efeito, ao longo do relato! Há muito material
para reflexão nos momentos poéticos e belos, como um por de sol, e
em outros, com críticas de tirar o fôlego, como um soco na boca do
estômago dado por um pugilista profissional. Pelo menos, foi como eu
senti! Diferentes leitores poderão experimentar diferentes emoções e
chegar a outras conclusões. Eu sei que a mim emocionou! Me fez refletir!
E sei que todos os que fazem parte da mesma tribo, a dos que anseiam
por um mundo melhor e mais humano, irão se encantar.
WONTANARA!!
Guilherme Azevedo do Valle
Brasil, Curitiba, fevereiro de 2014.
Wontanara: estamos juntos?
12
Wontanara: estamos juntos?
13
A ntes
mesmo de
c o me ç ar
Wontanara2
é uma expressão africana que significa
“estamos juntos”. Termo soussou, uma das etnias na Guiné3
, amplamente utilizado pelas demais descendências do país.
Palavra simples, carregando um universo de possibilidades
para as relações fraternas entre povos de um mesmo país e
diferentes continentes.
2. A pronúncia correta
da palavra é: uontanará
3. A Guiné é também
conhecida como
Guiné-Conakry, para
diferenciá-la da Guiné
Bissau.
É difícil pronunciar essa palavra sem que o som não tenha
como origem um lugar especial: o fundo do coração. Ela sai
da nossa boca, explodindo dentro dos ouvidos do mundo,
como fogos de artifício feitos de alegria e amor. “Estamos
juntos” quer dizer “navegar no mesmo barco e coordenar
os remos, de mãos dadas”. Implica nos reconhecermos em
idêntico nível e posição, em sintonia e pé de igualdade.
Mais do que isso, Wontanara expressa o desejo genuíno de dois
serem um só, buscando o elo comum. Traduz o testemunho
partilhado e a cumplicidade no processo de ser e fazer. Revela
o acolhimento da diversidade de todas as etnias, todos os
credos. É a unidade incorruptível.
Wontanara: estamos juntos?
14
Assim, ao tentar descrever minha experiência na África,
em apenas algumas páginas, não poderia encontrar palavra
melhor para contemplar, com tanta qualidade e emoção, o
que foi o meu cotidiano. Durante onze meses, não existiu
dificuldade ou contratempo capaz de despertar em mim
qualquer arrependimento por estar ali. Mesmo com todas
as ressalvas e críticas sobre a intervenção institucional e as
adversidades impostas pela realidade física do lugar, me sentia
remando com os guineenses.
Esta é uma história de amor, não apenas pela equipe
maravilhosa com quem convivi. Amor que nasceu há muito
tempo, sem eu perceber, e foi cultivado, por uma parte de
mim, desde então. Me dei conta de que ele pulsava quando
eu já estava instalada em Conakry, durante um seminário
organizado com grupos de diferentes associações de apoio
às pessoas vivendo com o HIV/AIDS. Após me apresentar,
alguns deles perguntaram por que eu havia escolhido a África
e, imediatamente, respondi: “Por amor. Um amor que me
conquistou aos dez anos de idade!”
Ao voltar para o Brasil, vários amigos sugeriram que eu
escrevesse sobre minha vivência. Inicialmente relutei. Havia
divergido do modelo de intervenção da ONG em que
trabalhei, tinha passado por situações delicadas no campo
e não queria tornar públicos determinados “absurdos”.
Somente depois de muito conversar e refletir sobre o assunto,
entendi que não haveria mal algum em compartilhar minha
jornada na Guiné.
Afinal, todas as vivências são permeadas de desafios e
oportunidades. De coisas que inicialmente nos fazem mal,
mas que depois, com o tempo, se tornam lições importantes
para o nosso caminho. O que experimentei foi de uma
riqueza ímpar e eu tive muito mais insights sobre a vida do que
decepções. As ressalvas se referiam apenas a dois aspectos:
a metodologia de intervenção e algumas contradições no
campo da ética. Mas isso tem a ver com a minha forma
de conceber o mundo e nossas ações sobre ele. Muitos
voluntários viveram e continuam enfrentando as mesmas
contingências que eu e reagiram e reagem de outras formas.
Wontanara: estamos juntos?
15
Portanto, as páginas que se seguem refletem um estado de
alma (da minha!) muito mais do que uma verdade absoluta.
Uma perspectiva (a minha!), muito mais que uma razão.
Houve momentos de magia (de todas as cores!) e outros de
puro descontentamento (organizacional). Alguns momentos
de clareza e outros em que a realidade ficava turva demais
para encontrar a porta de saída. Mas, em todos eles, eu não
estava sozinha.
Minha crença espiritual me permitia reconhecer uma
força sagrada acompanhando meus passos e estimulando
o encontro com outras almas. Eu percebia as energias se
convergindo, o que me possibilitou superar os desencantos e
viver um grande amor pela África. Verdadeiras alianças, que
me fizeram persistir no ideal humanitário.
Alguns podem tecer críticas, afirmando que estou
supervalorizando uma experiência na Guiné, como se ela
fosse representativa de um continente com muitos países.
Seria um argumento legítimo, não fosse a intensidade do
meu sentimento. Identifico-me não apenas com os soussous,
malinkés, poulars, forestiers. Trata-se de um tipo de amor sem
bandeiras.
Só tenho a agradecer por tudo e a todos. E esclarecer que estas
linhas, mesmo que deixem escapar certo tom de contestação,
representam minha maneira de honrar este coração africano.
Wontanara: estamos juntos?
16
Capítulo 1
Wontanara: estamos juntos?
17
1
Qua ndo e u
Cre sc e r
...
Caminhava rua abaixo, em direção ao centro da cidade.
Sem compromisso, sem destino certo. O plano era passar
aleatoriamente pelas lojas para encontrar o que eu precisava.
Mas nem lembro me exatamente o que era. Nessa altura do
campeonato, isto não tem a menor relevância, pois esse dia
mudaria a direção da minha vida, muitos anos mais tarde.
“No meio do caminho tinha uma pedra. / Tinha uma pedra
no meio do caminho”. Uma pedra social. Do tipo que a
sociedade tem costume de esconder ou ignorar. Mas o que
fazia uma pedra no caminho do centro da cidade?
Alguns quarteirões antes de chegar no calçadão do comércio,
passei em frente a uma casa e minha atenção foi capturada
imediatamente. Havia uma espécie de orfanato instalado ali e
várias crianças corriam pelo alpendre. Até aquele momento,
não fazia ideia de que as crianças “podiam” ser abandonadas
de verdade. Já tinha ouvido falar de instituições como aquela,
mas nunca havia colocado meus olhos sobre uma.
Igual a todas as crianças de classe média, numa cidade do
Wontanara: estamos juntos?
18
interior, minha infância aconteceu na rua. Não porque meus
pais me abandonaram ou fossem negligentes. A rua era o lugar
onde a vida desabrochava, longe do controle dos adultos.
O contato com a realidade social era mediado pelas brincadeiras.
Eu sabia da pobreza, da violência, da problemática social,
do caos que poderia ser um lar desequilibrado. Isso fazia
parte do meu contexto e relações de vizinhança. Era tudo
“normal”. Simplesmente eu não tinha um olhar crítico para
esses fenômenos. Por isto, como dizia Drummond, “Nunca
me esquecerei desse acontecimento, / na vida de minhas
retinas tão fatigadas. / Nunca me esquecerei que no meio do
caminho tinha uma pedra.”
Mas eu era uma criança saudável e minhas retinas estavam,
no máximo, condicionadas a ver o mundo colorido. Pelo
menos, até eu tropeçar naquela pedra. Devia estar beirando
os dez anos de idade. Entrei no orfanato como voluntária e
ali resolvi: quando eu crescer, quero construir pontes entre
o abandono e o aconchego, entre o injusto e a igualdade de
direitos, entre a miséria e a possibilidade de realizar sonhos.
No meio do caminho, meus olhos se abriram diante do
mundo e aprendi que a vida era muito mais complexa do
que jogar taco na rua e mais desafiadora do que brincar
de esconde-esconde. Embora eu já ensaiasse os primeiros
confrontos com a realidade, por meio das minhas redações
da escola, foi ali que o meu senso de humanismo adolesceu.
Os anos se passaram e aquela experiência social com as
crianças do orfanato ocupou um lugar na minha memória
remota. Por razões que ainda desconheço, minha vida de
voluntária durou pouco. Tudo o que consigo recuperar desse
arquivo é a imagem daquela casa azul e o registro das crianças
em meio a uma gestão institucional questionável. Nos anos
seguintes, minha vida foi tomada pelas tradicionais questões
de uma adolescência rebelde e nunca mais voltei a enxergar a
realidade com as mesmas lentes ingênuas.
A revolta se instalou no cotidiano, mas a preocupação maior
era me adaptar ao meio ao invés de contestá-lo. Embora,
dizem, meu poder de argumentação fosse aguçado, era mais
Wontanara: estamos juntos?
19
fácil agir por conta própria do que lutar para ter razão. Naquela
época, eu já deduzia: ser feliz e ter razão são, frequentemente,
incompatíveis.
Olhando para aquele período, acho que o mais engraçado
foi me deparar com o desejo de ser freira. Claro, minha
motivação não era legítima e recebi orientações para canalizar
meu potencial de solidariedade de outras formas. Foi quando
a juventude chegou e debutou, intensamente, no curso de
comunicação social. De repente percebi as janelas se abrindo
no horizonte e a infinidade de coisas que precisariam mudar
para que a nossa sociedade fosse, de fato, um espelho da
centelha divina que existe dentro de nós.
A transformação tinha que começar dentro de mim. Por
sorte, ou por destino, as contingências da vida se tornaram,
gradativamente, grandes lições de amor e desamor. Elas
retiraram, pouco a pouco, o véu de proteção que cobria meu
ideal de sociedade. Ainda assim, eu passava a maior parte do
tempo trabalhando no projeto de ser uma pessoa melhor e
sobrava pouca energia para investir no projeto de salvar o
mundo das injustiças humanas. Eu continuava procurando
uma vocação para quando crescesse.
Wontanara: estamos juntos?
20
Capítulo 2
Wontanara: estamos juntos?
21
2
Encontrando
m in h a
VO C AÇÃO
Com o meu histórico de vida, eu poderia ter sido a própria
contradição ambulante. Andar descalça na praça, com o
cabelo trançado, vestindo roupa de algodão cru e as orelhas
enfeitadas com falsas penas de aves; colocar no pé um salto
número dez, combinando com a bolsa e o jeans de marca,
da última coleção para ir ao clube social. Desde a primeira
vez que subi as escadas daquela casa azul para brincar
com os “órfãos” até reconhecer a minha vocação, oscilei
exageradamente pelos prováveis extremos. Sem nenhum
arrependimento! Eu seria injusta se dissesse “pouco importa
tudo o que eu fiz, afinal acabei me encontrando”, pois foi
justamente esta ondulação existencial que me trouxe até
aqui. A experimentação de todas as possibilidades permitiu
o amadurecimento da minha vocação e também a lapidação
de quem sou. Cada história vivida, todas as tentativas, erros
e acertos. Detalhes pequenos, na ocasião, tornaram-se
referência decisiva para as minhas escolhas, anos mais tarde.
Eu me lembro da regra defendida pelos meus pais para nos
ajudar a colocar ordem no devaneio: “Nunca abandone as
coisas pela metade. Defina sua meta e trabalhe por ela do
Wontanara: estamos juntos?
22
começo ao fim!” Éramos incentivados a buscar a estabilidade
como forma de manter o juízo e a normalidade. Mas eu
queria e fazia qualquer outra coisa, exceto isto. Afinal, me
encontrava em plena juventude, no desabrochar da identidade
social. Queria arriscar e me tornei uma espécie de ovelha
desgarrada.
Analisando minha trajetória, tenho uma coleção invejável
de coisas deixadas para trás. Contradizendo o estabelecido,
comecei e parei, sem concluir, diferentes atividades, cursos
de música e esportes. Alimentava um enorme interesse pelo
mundo e explorava suas fronteiras. Inclusive a primeira
faculdade, de comunicação social, eu interrompi pela metade.
Minha curiosidade era um dom precioso e, forjando exceções
à regra, fui acreditando na intuição de que o cosmo tinha
muito mais a oferecer. Era uma cidadã do mundo e isto
constituiu um princípio fundamental: minha nacionalidade
humana.
A abundância de experiências foi responsável por construir
uma base sólida de valores pessoais e ajudou a esclarecer que
a minha vocação, de fato, era ser engenheira: construir pontes
para ligar a teoria à prática e unir caminhos; edificar portas
de entrada para soluções factíveis de enfrentamento dos
problemas; abrir janelas para expandir o potencial humano.
Isto demandaria postura inovadora; flexibilidade para acolher
o novo e me desapegar de paradigmas; determinação para
transformar a realidade.
Foi assim que, em “idade mais avançada”, resolvi ser psicóloga
e voltei para a Universidade. Porém, com o conhecimento já
adquirido quando morei na França, não poderia escolher ser
psicóloga e ponto. Observando vários trabalhos da psiquiatria
cultural, realizados por alguns franceses, eu estava decidida a
enriquecer a minha prática.
Queria agregar a perspectiva de que somos seres conectados
por uma força de atração muito além das tramas psíquicas.
Por isso, tinha que acrescentar um qualitativo no meu papel:
psicóloga social foi a alternativa que mais me aproximou
daquela casa azul.
Wontanara: estamos juntos?
23
E toda vez que penso sobre como a minha vocação de
engenheira ressignificou o meu trabalho como psicóloga,
fico agradecida profundamente por ter quebrado a regra
e assumido o compromisso com a mudança, com o “desenvolvimento” da minha alma humana. Nem imaginava,
quando subi as escadas daquele orfanato, a repercussão que
ele teria na construção do meu Ser.
No campo profissional, depois de ter me formado, dei início
a vários projetos, mas raros foram aqueles que eu mesma
concluí. Não por falta de instrumentos ou de conhecimento.
Apenas porque fazia parte da caminhada. Eu era somente
coadjuvante do processo.
Acabei me especializando em construir pontes e em ajudar
a travessia entre as margens. O resto, cada um fazia por si
mesmo. Minha vocação se definiu assim: simplesmente criar
ferramentas e condições para que as pessoas assumam o
leme e posicionem as velas de maneira favorável ao sopro do
universo sagrado.
Wontanara: estamos juntos?
24
Capítulo 3
Wontanara: estamos juntos?
25
3
O SALTO
Q U Â NTI CO
Dizem que tatuamos nossos ideais na alma, mas que o
cotidiano se encarrega de esconder as pistas que nos levam a
reencontrá-los. Assim, passamos uma vida inteira a percorrer
atalhos na busca da realização pessoal. Estrada afora, vamos
espalhando as migalhas de pão e marcando o caminho de
volta. Contudo, depois de vagar em círculos, constatamos
que alguns episódios apenas nos distanciam do ponto de
partida: a morada interior. Aprendemos que é desnecessário
ir tão longe para chegar tão perto. Nem precisamos de tanto
tempo.
Às vezes, um único raio de luz é capaz de nos fazer enxergar
nosso caminho. Os contornos da estrada se tornam
perceptíveis quando recebemos uma sacudida da vida.
Daquelas que nos fazem perder o prumo, num primeiro
instante, e em seguida recuperar a lucidez cósmica.
Momentos mágicos que nos reconectam com a realidade da
alma. É quando, enfim, conseguimos colocar nossa vocação a
serviço da profissão para a qual nos preparamos e integramos
tudo isto com o compromisso da transformação. O resultado
Wontanara: estamos juntos?
26
é incontestável: engajamentotal!
No meu caso, o turning point 4 veio mascarado de perda. Foi
preciso experimentar, de fato, minha capacidade de amor
incondicional para recolocar o trem no trilho. Sempre achei
a maternidade uma forma de desenvolvermos este potencial
dentro de nós. Porém, acabamos transferindo nossas
expectativas para os filhos, o que nos impede de amar sem
barganha.
4. Momento em que
ocorre uma mudança de
paradigma significativa,
impulsionando
novos movimentos
e configurações na
vida, conforme explica
Fritjof Capra.
Já acompanhar alguém no seu leito de morte é, invariavelmente,
um teste para a solidariedade e incondicionalidade do amor.
Amálgama necessária no caminho. Ao exercitar a doação
daquilo que tinha de melhor em mim, “des-cobri” o que
tinha de melhor em mim e pude enxergar o quanto queria
me entregar por completo à minha vocação.
Ainda encontro alguns resquícios de dúvida sobre o que faria
se não tivesse passado por um luto. Porém, cada vez com
menos frequência, questiono as estratégias do plano espiritual
para me impulsionar até o começo do resto da minha vida.
Aquele foi o raio de luz necessário na configuração do
agoraqui.
Estar nesta situação, repassando minhas memórias e emoções,
compilando os registros de uma vida inteira, representa a
“cereja em cima do bolo”. Não tenho certeza do que vem
pela frente. Abandonei essa preocupação no auge da minha
equação africana. Aprendi a lidar mais com as possibilidades
e a evitar expectativas.
Hoje, quando defendem a evolução da vida íntima em saltos
quânticos, entendo bem o que isto significa. Compreendo por
que muitas pessoas levam anos a fio para mudar de estágio,
enquanto outras nem realizam mutações profundas. A tarefa
é complexa, pois nossa existência transcende o tempo e o
espaço. Semelhante àquelas tatuagens que gravamos na alma
do infinito. É preciso morrer, a cada dia, para nascer na
eternidade.
Encontrar um ponto de equilíbrio que viabilize a coexistência
de todas as nossas descobertas e consiga harmonizar os ideais
Wontanara: estamos juntos?
27
e os dados de realidade com atos transformadores é o grande
desafio de quem deu o salto e está prestes a aterrissar em um
novo ciclo de vida.
Após despertar para o universo, foi fundamental juntar as
peças do quebra-cabeça e processar a noção do todo nas suas
várias partes. Ao fazer isso, constatei que a minha vida de
“engenheira-psicóloga-social” carecia de rumos concretos e
que, por fim, eu deveria me desapegar da rotina para ousar
novos atalhos.
Naquele ano, a vida virou do avesso e eu comecei a entender
minha vocação. Finalmente, estava pronta para abandonar o
porto seguro e colocar meu barquinho em alto-mar!
Wontanara: estamos juntos?
28
Capítulo 4
Wontanara: estamos juntos?
29
4
WE PLAN A S
WE GO
Planejamos conforme o andar da carruagem ou, como
ensinava Paulo Freire, educador brasileiro, o “caminho se faz
caminhando”. Se pudéssemos integrar esta máxima em nossa
prática, evitaríamos uma série de atropelos. Mas ainda que eu
tivesse dado o salto quântico transformador, demorei alguns
anos para incorporar este registro.
Depois do ano da reviravolta, fiz um retiro espiritual e
um curso de introdução ao Budismo Tibetano na Índia e,
na sequência, mergulhei no pragmatismo científico com o
doutorado nos Estados Unidos. Esses dois eventos aceleraram
meu movimento de sair da zona de conforto. O primeiro,
porque reafirmou minha base de valores e consolidou a
crença de que era crucial trazer para o campo profissional a
vivência espiritual. O segundo, porque reforçou a necessidade
de buscar outras estratégias de intervenção profissional que
honrassem minha visão de homem e de mundo.
Voltei para o Brasil entusiasmada para sair do Brasil! Tinha
clareza de que o meu lugar era não ter um lugar comum.
Considerando as novas perspectivas de trabalho comunitário,
Wontanara: estamos juntos?
30
estabeleci o prazo de cinco anos para redirecionar meu
caminho.
Comecei a pesquisar várias instituições, a analisar diferentes
possibilidades, e revigorei esse processo, me envolvendo
com alguns projetos interessantes no cenário nacional.
Minha experiência anterior com comunidades em situação de
vulnerabilidade, o senso de organização e gestão de recursos
e a capacidade tecnometodológica se tornaram cúmplices da
minha vocação. Pela primeira vez, eu estava arquitetando um
trabalho de corpo, alma e conhecimento. E sabia: em cinco
anos me mudaria para sempre da minha casa e trabalharia
como “engenheira”, num mundo sem fronteiras.
Mas planejamento não é uma camisa-de-força. Os cinco anos
viraram três. E antes de abrir meu plano de voo para revisar a
rota, o destino tomou as rédeas da carruagem em suas mãos,
mudando discretamente seu curso. Desfiz o meu lar e tomei
outros rumos, mesmo achando que estava me distanciando
do plano original.
Mais uma lição e oportunidade de resignação com a proposta
do universo. Sinal de que podemos planejar nossas ações para
asseguramos alguns procedimentos. Porém, no final do dia,
o resultado será, impreterivelmente, derivado dos pequenos
passos e decisões que tomamos enquanto caminhávamos.
Foi então que decidi: daquele momento em diante, viveria a
vida num tabuleiro de xadrez. Guardaria no pano de fundo a
noção do todo e a função de cada peça. No mais, só escolheria
o próximo passo quando a vida já tivesse feito sua jogada.
E, com isto instituído, me aquietei.
Até o dia em que recebi um artigo sobre o trabalho de outra
psicóloga numa ONG humanitária, de atuação no âmbito
internacional. Nem me lembro qual era o projeto em questão,
mas me recordo perfeitamente do sentimento avassalador
me provocando: “Está na tua hora. Vai lá. Faz a inscrição e
deixa acontecer!”.
Reuni meus documentos, revisei o currículo, escrevi a carta
de motivação, preenchi todos os formulários solicitados e
Wontanara: estamos juntos?
31
me propus realmente a desligar a cabeça desse fato. Aquela
tradicional versão do efeito dominó é a melhor imagem
para ilustrar o que aconteceu comigo depois que eu cliquei
“enviar”.
Aliás, abrindo um parênteses, o encadeamento de eventos é
uma constante na vida de todos nós, e não especialmente
na minha. Assim como outras pessoas, eu também passei a
prestar mais atenção no cotidiano e a perceber melhor o fluxo,
quando inaugurei a minha “jornada do herói”. Não há nada
de extraordinário nisso quando, humildemente, aceitamos o
comum: o ordinário do ser, o natural e espontâneo da vida,
a comunhão cósmica. As coisas fluem naturalmente, quando
nos permitimos a entrega com o coração.
Duas semanas mais tarde, recebi o e-mail da ONG me
convidando para participar do processo seletivo no Rio
de Janeiro. Acontece que eu já estava até com a passagem
comprada para visitar uma amiga carioca, exatamente no
período em questão. Coincidência ou sincronicidade?
Wontanara: estamos juntos?
32
Capítulo 5
Wontanara: estamos juntos?
33
5
O MUNDO E M GUE RRA
E A PROPOSTA DE
SALVÁ-LO
Somávamos apenas três participantes no encontro que eu
acreditava ser uma dinâmica de seleção. Ao contrário do
tradicional modelo utilizado pelos recrutadores, não havia
concorrentes entre si. Cada profissional representava uma
área: médica, paramédica (meu caso) e não-médica.
Apresentações feitas, falamos sobre nossas intenções e
passamos a nos concentrar, essencialmente, sobre as muitas
informações a respeito da instituição e do seu trabalho. Uma
explanação bem aprofundada. Recebemos muito mais do
que fornecemos. Se aquela reunião era para nos conhecerem
melhor e analisar nosso potencial de colaborarmos com a
Organização, então alguma coisa não estava muito clara. Mas,
enfim, eles tinham nossos formulários em mãos, e talvez
aquilo fosse suficiente.
Na medida em que a Organização era promovida, uma espécie
de encantamento foi tomando conta de mim. Realmente, é
muito animador você pensar que tem uma “liga de superheróis” em vigília, pronta para combater o mal e salvar o
mundo de si mesmo. Principalmente quando você já sabe que
Wontanara: estamos juntos?
34
o mundo lá fora está em guerra e a miséria vem aniquilando
populações inteiras.
O discurso do “estamos fazendo alguma coisa” pode ser
bastante convincente. E, na prática, se analisarmos os
números, os resultados contabilizam a ajuda: com um real
por dia, no final do mês, você consegue atender cem pessoas
com água potável ou tratar uma criança desnutrida. Pode não
ser um valor significativo, mas o mundo precisa deles, desde
sempre.
E para sempre, muito provavelmente.
Participar de ações que podem fazer a diferença para
milhares de pessoas é dignificante. A mínima possibilidade
de contribuir para um bem maior já é, por si só, uma variável
motivadora. Quem se inscreve num trabalho dessa natureza
tem uma postura de solidariedade como base. Ninguém
entra num projeto de salvar o mundo, pensando em ganhar
dinheiro, status ou poder. Certo?
Errado! Pesquisas já demonstraram que as pessoas se
dedicam a trabalhos solidários por razões diversas. Não
necessariamente elas têm um projeto de sociedade justa e
igualitária. É uma ilusão acreditar que todos os praticantes
do voluntariado comungam da mesma Ética e têm a mesma
perspectiva de ação.
Se eu pensava que a realidade seria diferente, por ser uma
ONG internacional conhecida e sólida, fui logo mudando
de ideia quando entrei na sala do recrutamento. A primeira
pessoa que encontrei foi uma das participantes que chegou
mais cedo. Procurando ser cordial com ela, tomei a iniciativa
da conversa. Mas senti uma indiferença vindo do lado de lá, e
pensei: “Nossa! Que destoante com este contexto!”
Imediatamente me corrigi, autopoliciando meus estereótipos.
Porém, ao longo da apresentação sobre a instituição, essa
pessoa fez colocações tão bizarras que provocaram uma
desconfiança maior ainda: “Ah! Deve ser uma atriz contratada
para o role play, tentando desestabilizar nossas crenças
humanitárias. É parte do processo de seleção.”
Wontanara: estamos juntos?
35
Claro, eu estava enganada! Tratava-se de uma candidata ao
trabalho humanitário. Quando saí do escritório, me sentia
feliz pela chance de ter participado daquele encontro e
conhecido melhor a Organização, mas cheia de dúvidas a
respeito da minha escolha. Repetia para mim mesma: “Se
eles contratarem alguém com o perfil daquela pessoa, vai ser
difícil acreditar na seriedade da ONG!”.
Devemos ser críticos sobre o propósito do voluntariado, mas
é necessário aplicar a mesma lógica para analisarmos como as
organizações sociais e humanitárias desempenham seu papel
e suas funções. Em geral, somos seduzidos pelo próprio
imaginário e passamos a acreditar que a resposta para a fome
e flagelos das guerras está nessas doações e projetos. Isso
representa um grande perigo. É fundamental usarmos um
crivo menos ingênuo ao olharmos para essas instituições.
Muitas delas operam como fachada para diferentes interesses
minoritários. São as ONGs que “pelo menos, estão fazendo
alguma coisa”. Numa outra categoria, encontram-se aquelas
que, efetivamente, estão interessadas no bem comum e
atuam com Ética, no sentido mais amplo do termo. Como
preconiza o ditado popular: “É preciso comer um saco de sal
juntos para realmente conhecermos nosso parceiro”. Enfim,
só enxergamos a realidade institucional quando nos tornamos
parte dos bastidores.
Assim como nos deparamos com uma variedade de
voluntários, também podemos encontrar todo tipo de
instituição no terceiro setor. Acredito que tudo depende dos
valores fundamentais da organização e da pessoa em questão.
É perfeitamente compreensível que um voluntário selecionado
se mostre inadequado para executar a tarefa, ao longo do
tempo. E o inverso também é verdadeiro. Uma coisa é o
que vemos ou queremos ver na propaganda, outra é o que
descobrimos na realidade do trabalho de campo. Às vezes,
o voluntário corresponde ao perfil desejado, mas o projeto
foge dos seus parâmetros éticos.
Wontanara: estamos juntos?
36
Capítulo 6
Wontanara: estamos juntos?
37
6
SONHOS QUE SE
REALIZAM
Alguns dias depois do encontro na sede da Organização,
recebi um telefonema informando que eu havia sido
selecionada e passaria para o banco de profissionais reservas.
Isto significava que, tão logo eles tivessem necessidade de
um profissional com o meu perfil, eu seria convidada para a
missão.
Num cadastro composto por centenas de pessoas de
diferentes nacionalidades e perfis correlatos, isso poderia
levar alguns meses. Não me importei com esta perspectiva.
Sempre repetia, para mim mesma, que não importava o que
fosse acontecer. Alguma coisa aconteceria, como sempre
acontece, do jeito que deve acontecer.
Enquanto esperava, comecei a ter aulas particulares para
desenferrujar o francês. Achava que poderia ser enviada para
um país de língua francesa. Recebi materiais adicionais sobre
o trabalho da e na ONG e me dediquei a estudá-los com
bastante atenção. Comecei a providenciar os documentos
complementares solicitados e preparei uma espécie de
arquivo impresso para enviar ao Escritório.
Wontanara: estamos juntos?
38
Havia passado um mês, aproximadamente, e eu estava com
outra viagem agendada para o Rio. Assim, resolvi fazer
contato com os responsáveis do recrutamento, para combinar
a entrega da pasta pessoalmente, numa segunda-feira.
Cheguei à cidade no final da semana e, domingo à noite, tive
um sonho: eu entrava no escritório da Organização, sendo
recebida por um dos responsáveis, que me dizia: “Muito bem,
temos uma surpresa para você. Encontramos uma missão
que precisa de profissional com o seu perfil. Mas é num país
da África, e você precisa partir dia 15 de novembro!”.
Acordei com o coração batendo mais forte do que os tambores
de Angola! O sonho parecia extremamente real, daqueles
em que você sente até o cheiro das coisas. Os detalhes da
sala eram vivos demais. Entretanto, como psicóloga, eu não
podia ignorar as reminiscências do dia anterior. Afinal, eu
estava no Rio, com a minha pastinha de documentos na mala
e a entrega agendada. Esperava ser chamada. Era natural que
meu sonho expressasse o desejo de partir em missão.
Quanto à sala, eu já havia estado ali antes e guardava as
informações na minha memória. Sobre o país, quando
fiz minha inscrição no processo seletivo, registrei como
preferência projetos na África, Oriente Médio, Ásia e
América Latina. Exatamente nesta ordem de interesse. Por
isto, um país da África não era nenhuma surpresa, já que o
inconsciente é porta-voz de nossos anseios mais íntimos.
Levei pouco tempo para recuperar o fôlego e colocar os pés
no chão. Precisei pular da cama rapidamente para atender o
telefone. Do outro lado da linha, uma das pessoas da ONG
perguntava se eu já havia chegado no Rio e quando passaria
por lá, pois precisavam conversar comigo.
Meu corpo arrepiou todo e corri para o Escritório, a quatro
estações de metrô. Mas àquela altura, já sabia o que estava
para acontecer. Era só uma questão de chegar lá.
Entrando na sala, dessa vez foi minha alma que arrepiou.
Tudo parecia exatamente do jeito que sonhei, inclusive os
Wontanara: estamos juntos?
39
móveis. Na época do recrutamento, a disposição era outra, o
que tornava meu sonho ainda mais significativo.
Emocionada com minhas constatações, recebi a notícia de
que havia um projeto disponível para o meu perfil. O país de
destino era de língua francesa, ficava na África ocidental e, se
eu aceitasse o trabalho, teria que partir no início de novembro.
Se eu aceitei? Sequer cogitei recusar. Estava pronta para partir.
Tudo aquilo fazia sentido na minha história e representava
apenas mais uma peça do dominó se movendo. Eu só
precisava me entregar, no fluxo dos acontecimentos.
E foi o que eu fiz. Em menos de um mês, solucionei todas as
minhas pendências e ainda fui para Machu Picchu, com meu
filho. Uma dessas viagens eternizadas na memória da alma,
pela qualidade do afeto e do reencontro com o sagrado. Três
dias caminhando na trilha dos Incas foi a medida certa, antes
de partir para a África. Mas isto é uma outra história.
Wontanara: estamos juntos?
40
Capítulo 7
Wontanara: estamos juntos?
41
7
MEU SO BRENOME ?
METAMORFOSE
Estava prestes a fazer uma mudança importante, de país e
de trabalho. Morar nove meses em Conakry, na República
da Guiné, e trabalhar numa ONG que eu desconhecia. Os
amigos que acompanham meus passos sabem: mudança é
palavra-chave, minha força motriz. Em constante movimento,
tenho experimentado a vida nas suas diferentes perspectivas
e aproveitado as oportunidades para alargar meus horizontes.
Nem sempre consigo mudar, dentro e fora de mim, o que
penso ser necessário. Mas pelo menos me lanço na roda do
mundo e procuro girar com a energia transformadora.
Mudança, com o objetivo de aprimorar aquilo que somos, é
sempre muito saudável. Levanta nosso astral, sacode a poeira
e nos faz enxergar melhor a nós mesmos e ao mundo onde
vivemos. Mudança, quando aproveitada na sua essência, nos
tira da zona de conforto e impulsiona a novos aprendizados.
Mudança é experimentar a si mesmo e o fluxo da vida em
si mesmo. Às vezes, provocada por fatores externos; outras,
por motivações internas; e, em algumas situações, pela
combinação destas variáveis. Difícil definir o meu caso.
Wontanara: estamos juntos?
42
Quando contava para as pessoas sobre as coisas que ainda
estava para viver, algumas me diziam: “Espero que você
encontre aquilo que busca”. Outras se solidarizavam:
“Tomara que você se encontre” ou “que você se realize”, ou
mesmo “que você encontre a felicidade que procura”.
Embora eu entendesse o sentido positivo que as pessoas
atribuíam às suas falas e percebesse a torcida delas pelo
“sucesso” das minhas empreitadas, me inquietava com o eco
que essas colocações provocavam dentro de mim. Ficava
me perguntando: “Seria possível uma pessoa ainda transitar
neste planeta sem estar buscando alguma coisa? O que o fato
de já me sentir realizada com a vida faz de mim: uma pessoa
que não sabe reconhecer seus vazios e se coloca na busca
permanente do Todo ou uma pessoa em paz com os vazios
que a definem e que se coloca à disposição do Todo?”
Lembro-me de um período de noites escuras e provações,
numa época em que eu estava sempre correndo atrás da
felicidade, mas não a encontrava. Fazia muitas coisas,
e nada. Experimentava várias coisas, e nada. Atribuía a
responsabilidade pela minha realização e felicidade a tudo e a
todos que estavam ao meu redor e, óbvio, nada. A felicidade
nunca estava presente e sempre parecia algo a ser alcançado
num futuro qualquer.
Custou muito (em vários sentidos!) para que eu, finalmente,
entendesse o significado de Felicidade. E quando compreendi
realmente o seu lugar, passei a Ser Feliz, permanentemente.
Sem dúvida, fico triste com os antagonismos e desequilíbrios
que permeiam nossas sociedades. As adversidades da vida me
mobilizam profundamente. Mas me sinto feliz mesmo assim.
Seria a felicidade plena, ou qualquer outra plenitude, apenas
uma ilusão? Ou simplesmente podemos defini-la como
“o estado da alma que encontrou, dentro de si, o amor
incondicional e tenta romper com as fronteiras geofísicas da
sua condição material”?
Entendo que nenhuma doença, nenhum problema material
ou dificuldade profissional, nenhum desentendimento pessoal
ou desencontro afetivo, podem tirar de alguém a condição
de Ser Feliz. Chamo isto de “felicidade sem fronteiras”. E
Wontanara: estamos juntos?
43
minha alma é Feliz!
Por esta razão, meus movimentos significam para mim
muito mais do que a busca da felicidade. Reconheço-os
como “sonhos que transcendem a esfera do ideal, para se
concretizarem na realidade da minha alma”. Do racional
abstrato para o palpável, com os braços do coração.
E, assim, me deixo abraçar por essas oportunidades, como
uma filha que recebe do Sagrado um presente de proporções
eternas. Entrego todo o meu Ser à certeza da ressonância
espiritual que essas experiências implicam. Acolho a
metamorfose e agradeço.
Deixo crescer dentro de mim um sentimento forte de
responsabilidade por Ser Feliz e de compartilhar isso ao meu
redor, onde quer que eu esteja. E agradeço mais uma vez.
Permito que meu pensamento seja inspirado pelo
conhecimento e vivência de outras pessoas, tomando para
mim suas lições de humildade e determinação. E agradeço
eternamente.
Coloco-me a serviço do que se direciona a mim, confiando
e reconhecendo sua sincronia com o Universo. E então
concluo: não há busca; apenas, realização!
Havia chegado a hora. Para aqueles que compartilhavam o
mesmo caminho ou os seus atalhos, cabia registrar o meu
carinho e apenas solicitar para me manterem em seus radares.
Em breve eu partiria, mas manteria suas lembranças como
uma luz acesa dentro do meu coração, finalmente africano!
Wontanara: estamos juntos?
44
Capítulo 8
Wontanara: estamos juntos?
45
8
Peq ueno pa ís
g r an des
desaf io s
A República da Guiné, quando comparada ao continente
africano, permanece quase despercebida. Embora não seja
muito pequena, é necessária uma boa escala para notarmos
mais facilmente sua localização no mapa. O país faz fronteira
com a Guiné Bissau, Costa do Marfim, Libéria, Serra Leoa,
o Senegal e Mali, além do Oceano Atlântico. Seu território
é configurado em quatro regiões: Alta Guiné, Guiné Média,
Guiné Marítima ou Baixa Guiné e Guiné Florestal.
Do ponto de vista administrativo, essas regiões subdividemse em oito, nas quais constam 33 prefeituras, 38 comunidades
urbanas, mais de 300 subprefeituras e comunidades rurais.
Mesmo depois de viver onze meses na Guiné, não consegui
compreender exatamente como é segmentada sua política.
Só consigo resumir dizendo que o país tem um governo
federativo, com presidente e primeiro ministro, mas ainda não
se estabilizou; já foi palco de golpe militar e conflitos étnicos
importantes; a marcha rumo à democracia ainda é lenta;
a eleição presidencial deveria ter ocorrido no ano em que
cheguei (2011), mas limitou-se à promessa dos governantes.
Wontanara: estamos juntos?
46
No total, são aproximadamente dez milhões de habitantes
dos quais, dois milhões se concentram na capital, Conakry.
Existe mais de trinta dialetos em todo o país, predominando
quatro etnias: soussou, poular, malinké e forestier. A língua oficial,
entretanto, é o francês, em função da sua colonização pela
França. Praticamente 95% dos guineenses são muçulmanos
e 5% professam outras religiões, em especial o catolicismo e
a religião evangélica.
O clima tropical faz a temperatura permanecer quase sempre
elevada (a média varia entre 29°C e 35°C), com muita
umidade. Os meses de novembro a maio são os mais quentes.
No período de junho a outubro chove bastante, e o calor
ameniza um pouco. A falta de estrutura das vias públicas e
as condições precárias de saneamento básico ajudam a piorar
o cenário, na época das chuvas, contribuindo para aumentar
as inundações constantes e provocar surtos de doenças,
principalmente o cólera.
A Guiné é rica em ferro, diamante, ouro, bauxita e urânio.
Entretanto, a taxa de desemprego é alta. O mercado informal,
porém, tenta equilibrar o orçamento doméstico, permitindo
a sobrevivência das famílias. O comércio ambulante é
especialmente difundido na capital, que concentra um dos
maiores mercados na região da África ocidental. Por onde se
passa, encontramos pessoas (principalmente mulheres) com
suas bacias e/ou cestos sobre a cabeça, vendendo comida e
produtos industrializados.
Culturalmente a diversidade é grande, pois em cada região
são adotados costumes particulares em relação a modo de se
vestir, gastronomia, música, artesanato, entre outros hábitos
sociais. Por outro lado, a taxa de analfabetismo é enorme:
apenas 30% dos adultos sabem ler e escrever. O IDH
da Guiné é um dos piores do ranking e mais da metade da
população vive abaixo da linha da pobreza. É uma nação
jovem (42% da população tem menos de 15 anos), com
baixa expectativa de vida (54 anos). Imaginem, eu estava com
quarenta e sete anos quando cheguei na Guiné, ou seja,
muito perto da idade de ser considerada uma “sobrevivente
anciã”.
Wontanara: estamos juntos?
47
Wontanara: estamos juntos?
48
Em média, são registrados cinco filhos por família. O status
social da mulher permanece no limbo. Há uma feminilização
da pobreza e do HIV/AIDS. Neste último caso, a prevalência
não é oficialmente expressiva (1,5% no país, 2,1% na capital) e
ainda não existe um programa nacional inteiramente gratuito
para a população. A dupla estigmatização/discriminação
resiste como forte inimiga dos guineenses infectados pelo
vírus e alguns costumes agravam ainda mais sua propagação:
cerca de 96% das mulheres são excisadas5 ; o regime da
poligamia, permitido entre os muçulmanos, favorece a
contaminação (lembrando que, na Guiné, o homem pode se
casar com até 4 mulheres).
Embora as adversidades sejam rotineiramente significativas,
há uma aura de alegria no cotidiano guineense: o colorido
das roupas, os panos que enfeitam as cabeças das mulheres,
o sorriso sempre estampado no rosto, a movimentação nas
ruas, a comilança desde as primeiras horas do dia. Para além
da visível pobreza e precariedade de recursos materiais,
encontramos a gentileza natural no aperto de mão, que é,
impreterivelmente, acompanhado pelo nosso primeiro
nome. Neste mundo, aparência e essência brigam entre
si nas diferentes horas do dia, mas, no cômputo geral, é o
encantamento pela alma humana que prevalece.
Wontanara: estamos juntos?
5. Excisão feminina
significa cortar e costurar,
total ou parcialmente,
os genitais da mulher.
Também conhecida
como “mutilação genital
feminina”.
49
Capítulo 9
Wontanara: estamos juntos?
50
9
d e se m bA rc a n d o
n o c am p o
“Base para 106... Base para 106!”
“Copiado 106.”
“Estamos saindo do aeroporto, em direção ao escritório
central. Motorista e Andrea estão no carro. Câmbio!”
“Okay 106, bem entendido, Câmbio.”
E assim partimos, o motorista e eu (agora com uma nova
identidade: expatriada6), numa daquelas camionetes brancas
grandonas, inaugurando a temporada de eventos atípicos, para
mim. Independente da distância ou finalidade, a conduta para
todos os deslocamentos feitos com o veículo da Organização
era essa: você chama a Base pelo rádio, informa o número do
veículo, de onde sai, para onde vai e o nome dos passageiros.
Mas se você mudar o destino ou fizer alguma parada, durante
o percurso, também precisa comunicar o operador do rádio.
6. Termo utilizado para
se referir aos estrangeiros
trabalhando num país
diferente de sua origem.
No aeroporto a espera para passar pela imigração havia sido
diferente e longa. Entre tantas filas, acabei ficando por último
Wontanara: estamos juntos?
51
(que novidade!), o que me deu a chance de observar toda a
movimentação. Um vai-e-vem de pessoas acompanhadas por
policiais (aliás, de quem pareciam muito amigas), furando a fila
para se registrar no guichê dos agentes federais. Fiquei com a
impressão de que havia algum favoritismo no procedimento,
mas permaneci tranquila e calorenta. Após ver várias pessoas
sendo maltratadas só porque haviam ultrapassado a linha
vermelha traçada no chão, com a palavra “stop”, concluí que
era mais prudente aceitar a lentidão do processo.
Depois veio o “desembaraço” da bagagem, me lembrando
de alguns aeroportos do Brasil, antigamente. Eles também
tinham fiscais que conferiam seu ticket de bagagem e só então
entregavam seus pertences. Como disse o funcionário do
aeroporto, “assim é mais seguro e ninguém troca ou rouba
sua mala”. Mas tanta precaução favorecia outro propósito,
direcionado firmemente ao nosso bolso: “Pas de cadeau,
madame?” 7 Pronto, também começava a “temporada da
barganha”!
7. Expressão francesa
que significa “sem
presentinho, senhora?”
Recordo de quando fui ao Egito e tudo funcionava
dessa forma. Em Angola, o padrão era o mesmo. Mais
recentemente, no Peru, a experiência se repetiu. A barganha é
quase como um ato obrigatório. Faz parte do código cultural
global e é praticada por todo mundo, nos diversos lugares
e situações. Portanto, espera-se que você também adote
esse comportamento. Ou seja, não existe compra sem uma
negociação acirrada.
Quando se trata de pedir propina, é bom você entrar no
jogo do “Ahn? Não entendi!”, caso contrário sempre vai
desembolsar um bom dinheiro para “presentear” todo
mundo. No caso das compras, sou a favor de não pechinchar.
Mas aprendi a ficar esperta e somar os valores rapidamente,
para diminuir o risco de pagar mais do que o devido.
Voltando ao itinerário inicial, depois de alguns minutos de
congestionamento e buzina ecoando intensamente, chegamos
à sede da ONG, ao lado do alojamento onde eu permaneceria
pelo resto do período. Mochila para lá e para cá, fui instalada
e voltei ao escritório. Por coincidência, a coordenadora do
projeto encerrava sua missão e havia uma festa de despedida.
Wontanara: estamos juntos?
52
Quase todos os expatriados e o staff nacional estavam
presentes, o que foi ótimo para conhecê-los. Senti-me um
pouco perdida com tantas apresentações, mas foi divertida a
interação. Até dancei em ritmo africano!
No dia seguinte, e até mesmo nas semanas seguintes, fui
incapaz de repetir o nome daquelas pessoas. Realmente eram
muitas, a música estava alta e os nomes guineenses são bem
diferentes dos brasileiros. É horrível quando você reencontra
a pessoa e não lembra se já haviam sido apresentados, muito
menos qual o nome dela. Mas o fato é que os cidadãos
guineenses são muito parecidos entre si. Tirando as
mulheres, que dá para distinguir bem por causa das roupas
(maravilhosas, diga-se de passagem!), os homens têm uma
feição muito similar. Primeira dificuldade a ser superada no
decorrer dos nove meses de missão.
Algumas poucas horas depois de chegar à festa, o cansaço
me convidou para bater em retirada. Voltei ao alojamento e,
surpresa... não tinha mais água. Já prevendo essa possibilidade,
havia tomado um “último-belo-banho” em Bruxelas, onde
fiquei por alguns dias lidando com questões administrativas
na sede da ONG. Então, nada que um punhado de lenço
umedecido não desse conta de disfarçar. Tomar banho de
gato é uma lição aprendida nas minhas expedições para a
Amazônia. Essa não era a minha primeira vez. Como dizia
uma amiga apaixonada pelos seus felinos, “os gatos são bem
limpinhos e higiênicos”. Voilà!
O alojamento era bem agradável, com estreita vista para o
mar. Um prédio de estilo árabe e pé direito alto, causando a
sensação de ser amplo. Tinha três andares: um apartamento
em cada piso, destinado a três expatriados cada um, já que
contava com três quartos individuais. Os apartamentos eram
equipados com cozinha, copa, sala de estar e varanda. Parte
do mobiliário era fornecido pelo proprietário e a outra parte
ficava a cargo da ONG.
Wontanara: estamos juntos?
53
Wontanara: estamos juntos?
54
Durante a semana, o almoço era preparado por uma
cozinheira contratada pelo projeto e servido, no refeitório do
nosso escritório, para todos os funcionários que cotizavam
os custos. Cabia aos expatriados providenciarem o café da
manhã, jantar e refeições do final de semana, se organizando
individualmente ou em parceria com os demais colegas do
alojamento.
Como aterrissei em solo guineense no começo da noite de
uma sexta-feira, só comecei a me inteirar do trabalho na
manhã da segunda. Fui logo aprendendo que no final de
semana a maioria dos expatriados aproveitava para descansar.
Ritmo que não consegui respeitar. Mas, ainda assim, eu me
obrigava a fazer algumas brechas refrescantes na piscina para
aplacar o calor.
Para resumir as impressões gerais do primeiro contato: Viva!
Estava tudo certo! Finalmente em solo africano! As pessoas
eram realmente simpáticas e, surpreendentemente, a estrutura
da ONG era excelente! Conakry mais se assemelhava a um
canteiro de obras: “ótimo, o país está em expansão!”, deduzi.
O trânsito caótico e com pouca sinalização (eles se entendiam
com os gestos e, principalmente, as buzinas) fazia a agitação
de São Paulo parecer uma brincadeira de criança. O calor
era intenso (“mas, ufa... tem ar-condicionado no quarto, no
escritório”, conclui esperançosa), com bastante umidade.
Como em toda cidade de praia, gotejávamos!
Wontanara: estamos juntos?
55
Capítulo 10
Wontanara: estamos juntos?
56
10
bem -vind os a
conakry
África de muitos países, com um sincretismo cultural
extraordinário, apesar da grande disputa de governos. Sem
sombra de dúvidas, uma descrição rica sobre este continente
pode ser encontrada no livro “Candongueiro – Viver e viajar
pela África”, escrito pelo jornalista João Fellet. Ele viveu
algum tempo em Angola e durante cinco meses percorreu
pouco mais de dez mil quilômetros, visitando um total de
quase quarenta cidades, em diferentes países da África.
Recomendo! Seus relatos são ricos em detalhes e retratam
muitas situações similares àquelas que eu pude observar na
Guiné.
Em Conakry também a vida parecia acontecer, sobretudo,
no espaço coletivo. Tudo se passa nas calçadas, em frente às
casas. As pessoas cozinham e se agrupam na rua para comer
e conversar, festejam casamentos e batizados, tomam banho
de bacia, lavam a roupa, vendem coisas, cortam cabelo e
amarram suas tranças... na rua! Muitas, inclusive, fazem suas
necessidades fisiológicas em via pública.
Wontanara: estamos juntos?
57
Enquanto o lixo se acumula em determinados terrenos, os
vários campos de futebol (de chão batido) estão quase sempre
bem limpos e ocupados pelos jogadores. Para os guineenses,
Brasil é sinônimo de Ronaldinho, Kaká, Roberto Carlos e,
como não podia faltar, “Ronaldô”. Muitos, inclusive, ficaram
tristes quando eu informei que o Fenômeno havia deixado
o futebol, naquele ano. Os mais antigos ainda evocavam o
nome do Pelé e faziam questão de registrar sua admiração
pelo rei.
Na primeira semana de trabalho, fiz uma visita aos cinco
Centros de Saúde com os quais trabalhávamos no projeto
e tive a oportunidade de passar por diferentes bairros. Quer
dizer, na prática, sua estrutura é similar: as casas são mais ou
menos padronizadas e as ruas, na sua maioria, sem asfalto.
Durante o percurso, muitas feiras, muitas mulheres e crianças
de colo.
Nessas feiras abertas, podíamos encontrar de tudo. Desde
alimentos até roupas e outros produtos industrializados, de
uso pessoal e doméstico. As mulheres, na sua maioria, com
os panos coloridos na cabeça. Dependendo do bairro, víamos
mais ou menos muçulmanas de véu ou de burca. As crianças,
invariavelmente nas costas das mães, sempre dormindo
tranquilas, como se o mundo não existisse para além daquele
corpo. Repetidamente, meus olhos eram capturados por
imagens de crianças pequenas que carregavam, nas suas
Wontanara: estamos juntos?
58
costas, um outro bebê (provavelmente irmão ou irmã). Era
fascinante!
No trânsito, muitas curiosidades. Às vezes, eles param o carro
em fila tripla e ninguém mais passa na rua. Dá-lhe buzinar!
Não existe ônibus municipal. O transporte coletivo é feito
pelas Mabaras, como chamam as vans de lotação. Um dia
vi uma delas cheia de crianças uniformizadas. Eram quase
cinquenta! Nem consegui contar quantas cabecinhas avistava,
tamanha aglomeração. O mesmo se repete para o transporte
de carga. Os táxis, que em geral são veículos velhos, circulam
com os porta-malas tão lotados, que nem podem fechar a
tampa. Os pneus ficam arriados com o sobrepeso. Por mais
surreal que possa parecer, vi um deles transportando um boi
inteiro, amarrado pelas patas e com a cabeça ligeiramente
tombada. Imagino que o boi estivesse morto. Pobre coitado.
Tomara mesmo que tenha sido um boi morto!
Os primeiros quinze dias voaram. O trabalho fluía tão
tranquilamente quanto a interação com o staff nacional e
expatriados. As dificuldades iniciais com a língua e o impacto
do calor logo cederam espaço para contemplar a convivência
com os guineenses. Na maior parte dos dias, eu custava a pegar
no sono, porque o coração não parava de pular de alegria e de
sorrir me dizendo: “Obrigado por essa oportunidade!”
Wontanara: estamos juntos?
59
Wontanara: estamos juntos?
60
Capítulo 11
Wontanara: estamos juntos?
61
11
o ta bu d o
hiv / ai ds
n a guiné
No dia primeiro de dezembro daquele ano realizamos um
grande evento de sensibilização em favor da luta contra a
estigmatização e a discriminação de pessoas vivendo com
HIV/AIDS. Promovemos várias palestras ao longo do mês,
visitando escolas, abrigos de jovens e centros de saúde. A
mensagem, além de combater o preconceito, alertava sobre
os riscos de contaminação e estimulava o diagnóstico precoce
entre mulheres grávidas.
Wontanara: estamos juntos?
62
A população tende a ignorar os cuidados básicos de proteção
e a observância do tratamento quando descobrem sua
soropositividade. As razões para isto compõem uma rede
complexa de fatores culturais, sociais, políticos e econômicos.
O país não conta com uma política de saúde efetiva no caso
HIV/AIDS, embora exista um plano nacional elaborado
de forma abrangente e competente. Na prática, as pessoas
infectadas pelo vírus devem pagar pelo tratamento, o que
representa uma fortuna.
Todo serviço de saúde é pago. Existem centros de saúde
privados, confessionais (de organizações e/ou fundações
da sociedade civil) e estatais, mas mesmo nesses últimos a
assistência é cobrada, pois cada centro deve se autofinanciar
por meio dos serviços prestados. Ou seja, não existe um plano
social subsidiado. Independente da gratuidade oficialmente
declarada, a disponibilização dos medicamentos não é
assegurada: falta importação e distribuição equânime.
Do ponto de vista sociocultural, a coisa se complica ainda
mais. Semelhante ao efeito dominó, uma variável puxa outra e
juntas formam uma bola de neve capaz de propagar o vírus e
comprometer a adesão ao tratamento. Muito resumidamente
(e correndo o risco de não estar percebendo corretamente
o cenário), ali uma pessoa diagnosticada HIV+ tem grandes
dificuldades para anunciar sua condição, inclusive entre
familiares. Motivos... variados! Ponto comum: a discriminação,
a reclusão, o medo.
Quando a família é muçulmana, isso pode significar a
completa exclusão da mulher. Ela é pressionada até o ponto
de perder o direito sobre os filhos. Já o homem, ele teme o
conflito entre suas diferentes esposas. Nos dois casos, não há
sexo seguro, o que leva à contaminação de vários adultos do
mesmo grupo. Sem contar as crianças geradas no anonimato
da soropositividade.
Porém, o problema de esconder a condição de HIV+ não
existe apenas entre os muçulmanos. O mesmo se passa com
famílias de outras religiões e, no geral, há muitos (muitos!)
casos de abandono, divórcio, rejeição e suicídio.
Wontanara: estamos juntos?
63
Ao esconder sua soropositividade, a pessoa vive um pesadelo
ainda maior (o peso do diagnóstico e a reclusão social) e
também tem mais dificuldade para seguir corretamente
seu tratamento. Seja por conta do dinheiro necessário para
comprar a medicação ou porque precisa justificar o fato de
tomar remédio, aos familiares e amigos da sua convivência.
Mesmo no caso do nosso projeto, em que tudo era
gratuito (diagnóstico, consultas médicas, acompanhamento
psicossocial, exames, medicação e internação sempre que
necessário), a adesão ao tratamento representava um dos
pontos mais sensíveis.
Frequentemente, as pessoas relatavam que preferem esconder
a medicação para tomá-la longe dos olhos dos outros. Levem
em conta que a vida por lá é muito coletiva e compreenderão,
de relance, o quanto isso complica a manutenção dos
horários e a frequência com que ingerem corretamente os
comprimidos. Resultado: o tratamento não funciona como
esperado, inclusive podendo elevar a carga viral no organismo.
O problema se estende também para o nível clínico. É
comum o fato de pessoas soropositivas não assumirem isso
frente ao cônjuge também soropositivo e manterem relações
sexuais sem proteção. Resultado: reinfecção, mutação do
vírus, aumento da resistência em relação ao medicamento
anteriormente utilizado.
A dificuldade do sexo protegido tem sua raiz na falta
de informação sobre como utilizar o preservativo (seja
masculino ou feminino), na escassez do produto de qualidade
e, sobretudo, em mitos e verdades associados ao uso da
camisinha: diminui a sensação e o prazer; se usar é porque
está traindo o cônjuge. Para o africano adiciona-se, ainda, uma
dose de machismo, pois isso é encarado como uma afronta
para a sua virilidade. Mesmo algumas africanas sentem sua
honra questionada: “Quem você pensa que eu sou? Não sou
como essas por aí!”. Resultado: HIV 10 X 0 Proteção.
Eram muitas as histórias e as justificativas. Todas denunciavam
o descaso, o descuido, a desvalorização da vida e das relações
humanas. E não podemos pensar que isto ocorre somente
entre as pessoas soropositivas. Estamos todos implicados
Wontanara: estamos juntos?
64
nessa teia. Como eu nunca havia trabalhado diretamente
com pessoas que lidam com o HIV no seu dia a dia, não
saberia dizer, mesmo hoje, como as coisas acontecem em
outros países. Porém, imagino que tudo isto não seja uma
prerrogativa da Guiné. Reforçando o coro, o maior problema
não é o vírus em si. Ele pode ser controlado e representa
apenas a ponta do iceberg!
Wontanara: estamos juntos?
65
Capítulo 12
Wontanara: estamos juntos?
66
W ON TA NAR A
12
Ikhéna
Bom dia
Wonouwali Wotobarafa
Agradeço a presença de vocês
MBaraGnakhalin
Estou feliz por estar aqui
Wontanara
Estamos juntos
Assim comecei minha primeira reunião com o staff
psicossocial do projeto, provocando um burburinho entre
os presentes. No início da temporada encontrava dificuldade
para discernir quando eles falavam em francês ou no dialeto
local, pois misturavam as línguas numa mesma frase. Naquele
dia, a equipe também reagiu como se não entendesse
muito bem que eu tentava falar no dialeto soussou. Quando
compreenderam aqueles sons, mesmo carregados de um
sotaque desconhecido, todos demonstraram entusiasmo. Foi
muito divertido.
Desejava agradecê-los por estarem todos ali, acolhendo
mais um expatriado chamado a colaborar com o projeto.
Queria sinalizar meu esforço para apreender sua realidade e
compartilhar minha intenção de abrir nossos horizontes para
o trabalho da equipe. A mensagem deveria sublinhar também
minha posição de aprendiz.
Wontanara: estamos juntos?
67
Em meio à emoção de começar o trabalho, após quase vinte
dias de passassion8 , mal podia acreditar que estava ali, naquela
sala de reuniões, misturando soussou com francês para falar de
temas tão familiares dentro da minha experiência profissional.
As perspectivas se mostravam realmente positivas e
estimulantes. Minha equipe era composta por quinze
guineenses, sendo dois assistentes sociais; uma enfermeira
responsável pela testagem de novos casos; cinco pacientes
cuja função era sensibilizar outros pacientes e a comunidade,
através do testemunho; seis conselheiros, a maioria com
formação em sociologia; e um assistente de coordenação.
Formavam um grupo forte, dinâmico, interessado e motivado.
Muitos deles já participavam do projeto algum tempo e
conheciam bem as necessidades dos pacientes.
8. Expressão usada no
projeto para definir
o período de repasse
de informações e
orientações entre o
expatriado em fim
de missão e o recémchegado.
Quando cheguei, as atividades ainda eram desenvolvidas
isoladamente. Faltava interação com os outros componentes
do projeto (enfermeiros, médicos, parteiras) e a dimensão
interdisciplinar do trabalho ainda carecia de reforço.
A descentralização dos serviços oferecidos no Centro
Comunitário de Saúde para as unidades de saúde, em
diferentes bairros, começava a exigir mais atenção. Havia
muito trabalho pela frente.
Depois de ir e vir em todos os serviços e trocar ideias com
os demais profissionais do projeto, também apresentei duas
propostas para o período da minha missão. A primeira,
nacionalizar a minha função, significava fazer um coaching
com o meu assistente. Devidamente preparado, ele poderia
assumir a gestão do nosso departamento, dispensando a
contratação de outro expatriado para o cargo. Tratava-se de
um sociólogo guineense supercompetente e sensível. Uma
daquelas almas íntegras que Deus coloca no mundo para
fazer diferença ao seu redor.
A segunda, organizar o departamento psicossocial de forma
integrada e articulada com os demais setores, representava
um desafio maior. Havia pouco compromisso dos parceiros e
a política local na área de saúde dificultava bastante. Por outro
lado, o potencial da equipe psicossocial ajudaria a superar as
barreiras externas.
Wontanara: estamos juntos?
68
Para quem conhece um pouco o meu jeito de trabalhar,
facilmente imagina como eu me sentia em casa. Esse projeto
era a minha cara. Wontanara! Assim eu me reconhecia por lá:
junto com o grupo, compartilhando o ideal do trabalho, em
solo africano. Eu fazia parte daquele mundo.
Durante todo o período da minha missão, consegui realizar
várias coisas com a equipe. Entre reuniões de trabalho
e encontros sociais, fomos encurtando a distância e nos
tornando mais íntimos. Com cada um, sem exceção, tive
encontros fraternos. Não tenho nenhuma dúvida sobre a
benção que eles representam na minha trajetória.
A tendência de aconchegar as pessoas com alguma palavra de
conforto, sem perder a oportunidade para tocar seu coração
e motivá-las para a vida, logo me rendeu fama. Em pouco
tempo, ganhei o apelido de mamie9 entre os membros da
minha equipe. Este jeito carinhoso foi rapidamente adotado
pelos colaboradores guineenses dos outros departamentos e,
sem que eu percebesse, até alguns expatriados passaram a
utilizá-lo.
9. Expressão francesa que
significa “vovozinha”.
Sentia um respeito profundo pelo staff nacional e sabia que a
recíproca era verdadeira. Estabelecemos um laço de amizade
que permanece forte até o momento. Eles fizeram uma
enorme diferença em meu ser e, quanto mais eu entendia
a preciosidade daquelas pessoas, mais eu me sentia honrada
por aquela oportunidade.
Wontanara: estamos juntos?
69
Capítulo 13
Wontanara: estamos juntos?
70
13
d e safios e
oportunidades
Quando fui para a Guiné, a ONG executava dois projetos
no país, ambos voltados para pessoas vivendo com HIV/
AIDS. Um deles era desenvolvido numa cidade do interior e
o outro, do qual eu fazia parte, acontecia na capital. A sede
da coordenação geral também ficava em Conakry, onde se
concentravam as atividades administrativas e estratégicas de
âmbito nacional.
Nosso projeto tinha sede e equipe de coordenação
próprias. Cada departamento contava com um escritório
e compartilhávamos a sala de reuniões, utilizada ainda
como refeitório, já que almoçávamos nela todos os dias.
Nossas atividades de campo aconteciam no Centro Médico
Comunitário e em cinco unidades de saúde. Fazíamos
deslocamentos todos os dias para trabalhar nesses locais.
O Centro Médico equivale a um hospital de pequeno porte e
oferece os seguintes serviços: pronto socorro, hospitalização,
centro cirúrgico para intervenções menos complexas,
maternidade, pediatria, nutrição, vacinação, ambulatório
de tuberculose (CAT), ambulatório de HIV/AIDS (CTA),
Wontanara: estamos juntos?
71
laboratório de análises, farmácia e centro de testagem
voluntária (CDV). Estrutura similar a uma combinação
dos postos de saúde com os centros especializados e os
ambulatórios médicos dos hospitais gerais.
As unidades de saúde seguem mais ou menos esse padrão,
exceto pelo centro cirúrgico, o laboratório de análises e o
CAT. Por estarem localizadas no interior dos bairros, parecem
com as unidades de saúde brasileiras.
Por outro lado, a maternidade é uma realidade à parte.
Funciona da mesma forma em todas as estruturas, seja de
grande, médio ou pequeno porte. Raramente fazem cesariana.
Os partos são auxiliados por parteiras e os obstetras atuam
somente em casos de complicação. Nas unidades de saúde,
quando necessária a intervenção cirúrgica, a mulher é
imediatamente transferida para um centro médico maior.
Se o parto é normal, a mãe e a criança recebem alta no mesmo
dia, dependendo da hora em que ocorre. Fiquei impressionada
com a movimentação da maternidade nos serviços de saúde.
Só perdia mesmo para a quantidade de atendimentos da ala
pediátrica, esta sim, surreal.
No projeto da ONG, desenvolvíamos atividades com as
parteiras responsáveis pelo acompanhamento das gestantes. O
teste para identificar a sorologia não fazia parte do protocolo
de pré-natal e, por razões culturais e políticas, um número
muito reduzido de grávidas se dispunham a fazê-lo. Nosso
trabalho, então, consistia em estimular a realização do teste
e, em caso de HIV positivo, as mulheres eram encaminhadas
para consulta médica especializada, visando ao tratamento
medicamentoso e psicossocial necessário. Quando ela entrava
em trabalho de parto, aplicavam-se os cuidados diferenciados
e a criança ingressava no programa de monitoramento, até o
diagnóstico conclusivo da sua sorologia.
Para todos os pacientes (mulheres grávidas, demais adultos,
jovens e crianças), o protocolo incluía diferentes atividades
psicossociais, mas nem todas estavam devidamente
implantadas nos serviços de saúde parceiros. Essa era uma
das metas da minha missão.
Wontanara: estamos juntos?
72
No momento em que assumi, apenas o Centro Médico
Comunitário contava com o pacote completo e as atividades se
concentravam no CAT e no CTA. No primeiro ambulatório,
fazíamos uma sensibilização10 na sala de espera, incentivando
os pacientes com tuberculose a procurarem o CDV. Da mesma
forma, se o resultado fosse positivo, a enfermeira da equipe
encaminhava a pessoa para o CTA. E era nesse ambulatório
que passávamos a maior parte do tempo. Ali realizávamos
as consultas médicas, os atendimentos psicossociais e, numa
sala anexa, as reuniões de grupo terapêutico.
10. Conversa/palestra
curta sobre determinado
assunto, com o objetivo
de informar e/ou
despertar a reflexão dos
participantes.
Já nas unidades de saúde dos bairros, dispúnhamos de
consultórios pequenos, o que restringia um pouco nossa
ação. Na época, realizávamos somente as sessões individuais
de aconselhamento e as palestras em sala de espera, mas
caminhávamos firmes no propósito de ampliar o espaço com
as atividades grupais.
Basicamente o departamento psicossocial se responsabilizava
pelas seguintes tarefas: realização do pré-teste, teste do
HIV (em parceria com a enfermagem) e pós-teste; sessões
de aconselhamento para início do tratamento com os
antirretrovirais; sessões de aconselhamento para reforçar
a adesão ao tratamento; sessões de escuta-ativa; grupos
de educação terapêutica com crianças, jovens e adultos;
sensibilização na sala de espera; assistência social (benefícios
e acompanhamento hospitalar).
No Centro Médico Comunitário contávamos com um grupo
especialmente formado para essas práticas, mas nas unidades
de saúde ainda precisávamos desenvolver mais as habilidades
das equipes locais. Todas as atividades eram realizadas por
“Mediadores” com formação escolar bastante limitada.
Alguns deles já trabalhavam na unidade e foram designados
para o atendimento psicossocial. Em outros casos, membros
de alguma associação de pessoas vivendo com HIV/AIDS
passaram a colaborar com o projeto, desempenhando esse
papel.
As condições de trabalho em cada serviço variavam pouco.
Mesmo sendo instituição de saúde, em geral, os serviços
Wontanara: estamos juntos?
73
parceiros não dispunham da estrutura sanitária adequada.
Faltava água e higiene básica. Nosso staff responsável pelo
controle de infecção ficava em estado de polvorosa, pois
realizavam inúmeras formações com os higienistas e, ainda
assim, não conseguiam obter o resultado pretendido. Várias
unidades de saúde sem eletricidade e sem esgoto adequado,
tornavam um pouco mais complicado o processo de melhoria
do atendimento.
A presença do comércio ambulante de comida na frente
dos estabelecimentos e/ou dentro do pátio aumentava,
significativamente, a sujeira. Ao longo do dia, o lixo se
acumulava, pois as pessoas costumavam jogar papel e
embalagens no chão. Infelizmente, até mesmo os profissionais
de saúde se comportavam desta maneira.
Entre as unidades de saúde parceiras, havia duas que eu
apreciava mais. Talvez porque as Autoridades Sanitárias
fossem profissionais com uma visão verdadeiramente
comunitária e estivessem realmente engajadas na proposta.
Numa delas, por exemplo, conseguimos incluir autoridades
de várias mesquitas, os Ulemás, nas atividades de sensibilização
da população local. O objetivo era motivá-los a repassarem
as informações nas mesquitas e influenciar a mudança de
comportamento entre os seguidores.
A comunidade do Wanindara me atraía bastante: arquitetura
simples, ruas superlimpas e vizinhança tranquila. Mesmo
sem asfalto, tudo parecia mais bem organizado. As casas
compartilhavam um grande quintal e, geralmente, víamos
as pessoas reunidas em baixo das mangueiras. Comumente,
encontrávamos as famílias realizando suas atividades
domésticas. Havia expressão de fraternidade nas relações de
vizinhança.
O trabalho em algumas unidades de saúde continuava
marcado pela falta de engajamento profissional. Sofríamos
forte pressão para decidir sobre a nossa permanência
naqueles locais. Nossa missão avançava pouco e lentamente,
desmotivando bastante nosso grupo. As Autoridades
Sanitárias menos envolvidas tornavam a gestão das equipes
mais complicada.
Wontanara: estamos juntos?
74
De alguma forma, o projeto me lembrava daquela historinha
da vaca jogada no precipício. Para quem nunca ouviu falar
desta metáfora, tudo começa quando o Mestre e seu discípulo
passam por uma pequena vila onde as casas inacabadas
abrigavam, precariamente, pessoas muito desnutridas e sem
nenhuma educação. Todas, no entanto, faziam fila para tirar
leite da única vaca existente no lugarejo. O discípulo pede
para o Mestre ajudá-los. Então, ele simplesmente joga a
vaca no precipício. Inconformado com a atitude do Mestre,
o discípulo partiu sozinho. Retornando alguns anos mais
tarde, encontrou uma cidade completamente transformada:
as crianças brincavam alegres no pátio da escola, o pomar
florescia e a horta estava repleta de verduras; os moradores,
com uma feição saudável, celebravam a conclusão das obras
habitacionais. Tudo muito limpo e florido. Perguntando a um
deles o que havia acontecido, o discípulo tomou conhecimento
de que, ao perderem sua única fonte de alimento (a vaquinha),
a comunidade resolveu se organizar e agir coletivamente.
Estava apenas no início do meu contrato com aquele projeto,
mas já reconhecia sinais de problemas. O sentimento de
deslocamento começava a ameaçar as fronteiras da minha
zona de conforto. Certas horas eu pensava: “Essa ONG é a
vaquinha que deveria ser jogada no despenhadeiro”.
Wontanara: estamos juntos?
75
Capítulo 14
Wontanara: estamos juntos?
76
14
HUMAN I TAR ISMO
OU DOM I NAÇÃ O
MAQUIADA?
Para aumentar o desconforto, me deparei com um artigo
a respeito do movimento humanitário nos dias de hoje,
que questiona o papel das organizações internacionais.
A preocupação de fundo é se, de fato, as tantas agências
que se dizem humanitárias trabalham realmente a favor
do humanismo ou se, simplesmente, mascaram ações de
dominação. A serviço de quem e do quê elas existem?
Numa análise global da situação do planeta, o texto ressalta
as inúmeras guerras e conflitos civis que dizimam, cada vez
mais, a dignidade humana e reduzem, paulatinamente, as
condições de vida de milhões de pessoas. No seu conjunto,
as ideias revelam um mundo antagônico, que amedronta a
solidariedade e coloca vários pontos de interrogação sobre a
sobrevivência e a função do terceiro setor. O texto começa
perguntando: “Estaria o espaço humanitário em perigo?”
Meus olhos percorriam os parágrafos, mas meu coração
se prendia à pergunta inicial. Para a qual eu gostaria de
responder simplesmente: “Não”. Preferia continuar
acreditando que as populações vulneráveis não correm o
Wontanara: estamos juntos?
77
risco de serem abandonadas. Um “salvador qualquer” estará
permanentemente alerta para socorrer os “necessitados”.
Tentava me convencer de que as organizações internacionais
apenas lutam contra a pobreza e a falta de acesso às condições
mínimas de vida. Eu repetia em voz alta: “Não tardará o dia
em que nos tornaremos um mundo equânime.”
Entretanto, a polarização do bem e do mal, do certo e errado,
do culpado e inocente, dos aliados e inimigos, dos ricos e
pobres, da teoria e prática, dos desenvolvidos e “em vias de
desenvolvimento”, dos radicais e democráticos, dos violentos
e pacíficos, não permitia formular uma resposta contundente.
Ao contrário, sua constatação preenchia as lacunas do
pensamento com pontos de interrogação e ameaçava minha
crença num mundo convergente, impondo-me certo grau de
desesperança.
Ainda hoje, encontro dúvidas em relação ao caráter e à
legitimidade das organizações que disputam o cenário
mundial com suas bandeiras de altruísmo e salários
competitivos. Afinal, que jogo de interesses está por trás
das suas intervenções? Que ideologias movem os recursos
colocados à disposição dos fragilizados, vitimados, excluídos?
Qual sentimento delimita suas estratégias? Estariam elas, de
fato, desprovidas do maniqueísmo?
São muitos os agentes que operam tais ações. Pessoas com
diferentes perfis e interesses. Profissionais de diferentes áreas,
funções e experiências. Todos engajados em projetos com o
objetivo maior da realização humana. Com o objetivo maior
da realização humana? Realização humana?
Eu me pergunto qual lógica define seus perfis operacionais.
Afinal, quando entramos no campo dito humanitário, o que
realmente nos motiva? Olhando de fora, percebo rostos
que se confundem com contratos de trabalho. Num mundo
ocidental em crise, atuar em zonas de conflito como um
soldado humanitário é uma grande oportunidade de emprego.
Em nome do ideal humano, porém. Reconheço projetos
equivocados na construção de uma nova ordem continental
(ou mesmo mundial). Em nome do ideal humano, porém.
Wontanara: estamos juntos?
78
A desesperança surgia exatamente dessa constatação. Num
momento da vida em que acreditava já ter visto um pouco
de tudo, a oportunidade me trazia para um continente
empobrecido e me fazia perguntar por onde caminha o
humanitarismo.
Certamente aquele texto provocava meus questionamentos.
Mas assistir, rotineiramente, o ir e vir dos “veículos
humanitários” com seus logos inconfundíveis e repletos de
brancos, num país de negros, me deixava incrédula.
Bem intencionados, parecíamos todos. Apenas a bandeira
variava entre uma causa e outra, entre uma agência humanitária
e outra. Por isso minha consciência tentava me alertar: “Não
estamos, todos, tentando promover uma reorganização do
mundo?”
De perto, ninguém é perfeito. E o humanitário pode
representar um mero pretexto para impor o modus operandi
de quem propõe a intervenção. Quem detém a tecnologia e
os padrões de excelência é, talvez, aquele que será ouvido e
pensa que deve ser ouvido. Aquele que acredita conhecer o
caminho para tirar o mundo da sua condição miserável.
De perto, ninguém é perfeito. E a comunidade internacional
se organiza rapidamente para agir contra “o mal”: denuncia
a precariedade do sistema alheio, testemunha o descaso
com a vida humana. No entanto, há décadas as guerras
matam inocentes e a fome reina nas estatísticas de certos
países. De perto, o mundo se rende perplexo diante de
algumas atrocidades. Mas, no dia seguinte, continuamos
tirando nossos carros da garagem para ir ao supermercado.
Prosseguimos com as nossas vidas medíocres, acreditando
estar “fazendo alguma coisa para salvar o mundo, por
termos doado algo para alguém realizar um projeto”.
Em que pese o dilema da cultura, eu não consigo digerir,
por outro lado, o fato de que as agências internacionais se
instalam ali e em qualquer outro lugar, com seu “pacote de
salvação”. Talvez, um dia, eu morra de congestão, pois não dá
para simplesmente engolir a arrogância humana mascarada
Wontanara: estamos juntos?
79
de advocacy ou de “é pelo bem da humanidade”. Sejamos
claros. No mínimo, honestos sobre os nossos propósitos.
Wontanara: estamos juntos?
80
Capítulo 15
Wontanara: estamos juntos?
81
15
Um a bab el
se m f r o nt eir a s
O termo Babel logo nos remete à história da construção da
torre que pretendia igualar os homens a Deus. Mas, tomando
isto como uma ousadia, Ele castigou a todos, fazendo-os
falar diferentes idiomas, dificultando assim sua comunicação
e entendimento.
Talvez seja por isso que, quando o caos está estabelecido
e nos encontramos em alguma situação confusa, dizemos
estar vivendo numa babel. E diante da diversidade também
recorremos a essa figura emblemática.
Vou tomá-la emprestada para ilustrar minha experiência.
Além da interferência simultânea de diferentes canais
de informação e línguas, eu ainda constatava uma
heterogeneidade de culturas e olhares para a realidade em
que vivia. Em muitos momentos, me sentia imersa em uma
confusão sem precedentes na minha trajetória profissional.
Não por falta de familiaridade com contextos de diversidade
e divergência. Afinal, trabalhar na área social, transitar por
diferentes instituições do terceiro setor e estabelecer parcerias
com o setor público, representaram uma grande escola.
Wontanara: estamos juntos?
82
Num país com mais de trinta dialetos e uma língua oficial
(francês) imposta por colonizadores, a complexidade da
comunicação fugia, frequentemente, à nossa compreensão. A
cada dia que passava em Conakry, eu observava outras nuances
sobre a maneira de as pessoas interagirem. E não creio que
a comunicação fosse um desafio apenas para os poliglotas
guineenses. Entre nós, expatriados, também existiam códigos
e sinais que precisavam ser decifrados cuidadosamente.
Éramos profissionais com nacionalidades, culturas e
experiências de vida diversas. No período da epidemia do
cólera, por exemplo, chegamos a mais de vinte expatriados em
Conakry. Um dia em que almoçávamos quase todos juntos, o
cenário nos remetia à torre de babel: além dos guineenses que
falam diferentes dialetos, representávamos outros dezessete
países. Portanto, era compreensível que algumas dificuldades
surgissem nas relações interpessoais. À luz da subjetividade,
tínhamos que levar em conta a maneira como cada um se
expressava, em função das suas características individuais e
do idioma. A linguagem desempenhava um papel intrigante
na forma como as relações eram estabelecidas dentro e fora
do trabalho, e com os objetivos do projeto.
Se a comunicação é uma via de mão dupla, no projeto o
caminho era cheio de bifurcações ou, no mínimo, uma via de
quatro mãos: a da intencionalidade, a que se falava, a que se
entendia e aquela em que as coisas eram feitas de fato. Nada era
muito simples. Nessa estrada, quase tudo tinha que ser dito e
repetido, confirmado e reconfirmado, antes de assimilarmos
a informação. Os ruídos e os interditos causavam um estrago
notável. Nem sempre sabíamos se estávamos fazendo o que
deveríamos fazer. Às vezes, porém, eu estava convencida de
que deveríamos fazer diferente.
Momentos de incertezas foram inúmeros, mas não vale
recontar os “causos acontecidos”. Acredito que a questão
central seja a disparidade entre o discurso e as ações. Tento
ser suave em minhas críticas, mas houve situações de
grande contradição, gerando fortes tensões com os meus
interlocutores, por conta da divergência de paradigmas.
Múltiplas vozes e perspectivas são requisitos mínimos para a
Wontanara: estamos juntos?
83
participação democrática em qualquer processo de decisão.
Quando se trata do estabelecimento de metas e diretrizes
para a vida dos outros, ou até mesmo para uma política
pública, é ainda mais importante trazer os interessados para
a mesa de discussão. O diálogo precisa ser garantido com
transparência. Na teoria, todo mundo parecia entender bem
o que isto significava. Talvez, justamente por isto, a prática
era outra.
Percebia, então, que o custo político da tomada de decisões
sobre algumas diretrizes era muito mais alto do que o
projeto estava disposto a pagar. Provavelmente, os princípios
da neutralidade e da imparcialidade estabelecidos pela
Organização justifiquem o pouco (ou quase inexistente)
diálogo com os fazedores de política locais. Assim,
principalmente durante os meus primeiros meses de projeto,
a política de substituição prevalecia.
Estávamos ali fazendo “no lugar de”, e não “em parceria
com”. E o projeto funcionava, na mesma perspectiva, há
mais de cinco anos. Foi somente depois da visita de alguns
representantes superiores da ONG que nossos objetivos
começaram a ser mais profundamente discutidos. Eles
emitiram pareceres técnicos desfavoráveis à continuidade
do trabalho, tal como estava implantado. Ainda assim, tudo
ocorria a passos muito lentos e conturbados.
A lógica imediatista da Organização, de certo modo, restringe
o desenvolvimento de ações de longo prazo. O objetivo é
salvar vidas em contextos onde elas estejam ameaçadas e os
recursos sejam limitados, obedecendo o caráter de urgência.
Porém, trabalhar com HIV/AIDS não é a mesma coisa que
lidar com desastres intensos, como é o caso de um terremoto,
um tsunami. Nessas ocasiões, uma interferência externa
pontual pode até ser necessária e imprescindível.
Fenômenos como desnutrição, mortalidade infantil, epidemia
de cólera, malária, HIV/AIDS, entre outros, devem ser
considerados como “desastres extensos” e requerem uma
ação compreensível. Isto é, integrada e integradora. A
base do planejamento depende da análise criteriosa sobre
as condições de vulnerabilidade que delimitam o evento
Wontanara: estamos juntos?
84
em questão. Portanto, devemos averiguar a capacidade de
resposta da população e do governo e sua disposição para
compor parcerias.
A política de enfrentamento da fome e da falta de acesso aos
recursos de saúde não pode se limitar à intervenção sobre
um evento disparador (e no caso do HIV/AIDS qual seria o
evento disparador?). É preciso ir além da atrofia social, o que
demanda identificar os pequenos desastres acumulados antes
de chegarmos naquele ponto. É fundamental mapear o maior
número possível de fatores que interferem no contexto, antes
de definir as estratégias de ação. E, sem dúvida, manter a
investigação aberta, permanentemente, para fazer os ajustes
necessários ao longo da implementação das propostas.
Espaços ocupados por agentes externos podem criar a falsa
ideia de que o problema está sendo superado, quando, na
realidade, está apenas sendo contornado. O “metamorfismo
social” é uma característica bem clara de que, na maioria
das vezes, atacamos os sintomas e não as causas. Ou seja,
os problemas mudam de lugar e nós permanecemos com os
extintores na mão, tentando apagar incêndios.
Acredito que a ação transformadora reivindicava uma
convergência de valores, sem a qual estávamos realmente
fadados a viver numa babel, mesmo transfronteiriça. Os
resultados tornavam-se pequenos diante do tamanho
do problema e mesmo que atendêssemos uma minoria,
infelizmente, era o mesmo que dizer: estávamos tentando
tapar o sol com a peneira.
Wontanara: estamos juntos?
85
Capítulo 16
Wontanara: estamos juntos?
86
16
LÁ SE FORAM
QUATRO M ES ES
A sensação de que o tempo se vai com a mesma velocidade da
luz me inquietava. Fim de expediente e agenda pela metade.
No dia seguinte a esperança de vencer a pauta atrasada se
diluía antes de a manhã terminar. Esse movimento se repetia
diariamente e, quando eu abria os olhos, já era o começo de
uma nova semana, um novo mês.
Os físicos afirmam, em algum lugar, que houve uma aceleração
ou redução importante do tempo. Não sei ao certo, mas
podia jurar que faltavam várias horas no nosso dia. Nunca
compreendi muito bem como isso funciona, pois, quando
olhava no relógio, os ponteiros rodavam da mesma forma.
De qualquer maneira, empiricamente, sentia que os cientistas
estão com a razão!
Quando eu me imaginava mudando para uma nova ordem
cronológica quase entrava em pânico: ainda havia muito a
fazer e minha missão era de apenas nove meses. Mais do que
nunca, seria melhor não perder tempo com os desencontros
do cotidiano, que eram muitos. Num projeto com mais de 50
pessoas envolvidas na execução das atividades, imaginem o
Wontanara: estamos juntos?
87
desafio de conciliar necessidades reais com interesses egoicos.
Não era o fato de ser um projeto humanitário que o tornava
um campo isento das disputas de poder.
Meu desassossego também decorria da forma como
priorizávamos nossas ações e estabelecíamos as metas a
cada reunião. Questionava os recursos concentrados em
determinadas atividades, em detrimento de outras que, na
minha avaliação, deveriam ser valorizadas. Afinal, como
estávamos aproveitando o tempo para efetivamente colaborar
com aquela população?
Acreditava ser imprescindível redefinir nossos objetivos e
procedimentos. Estava na hora de reduzir a complexidade das
ações e privilegiar o essencial. Porém, a noção de importância
era relativa e os departamentos continuavam isolados, sem a
perspectiva do todo. O que seria realmente essencial? Como
estabelecer, na prática, quais ações poderiam fazer a diferença,
se não tínhamos um consenso sobre nossa intencionalidade?
Durante todo o período que fiquei na Guiné, trabalhava de
dez a doze horas por dia, reservando apenas o domingo para
as tarefas pessoais. Era a primeira a chegar e a última a sair.
Não porque os outros colegas tivessem menos trabalho ou se
dedicassem menos. Talvez por entender que o investimento
no trabalho deveria ser proporcional ao tamanho do desafio:
preparar uma equipe para caminhar sem a presença de outro
expatriado e, principalmente, ajudá-los a abrir horizontes para
integrar uma visão sistêmica nas atividades psicossociais.
A equipe havia sido formada dentro de parâmetros
preestabelecidos pela ONG para todos os seus projetos.
Mesmo com as adequações culturais do material didático
usado nos atendimentos, faltava uma compreensão mais
ampla sobre aspectos sociopolíticos, no momento de definir
nossas estratégias. Negligenciávamos a gestão participativa do
projeto e as metas eram basicamente definidas pelo modelo
intervencionista. Adotava-se um paradigma “médico-clínicourgentista”. Eu não parava de me perguntar: “O que estou
fazendo aqui? Que espaço restaria para uma psicóloga
social? Seria possível transformar a ação ou eu teria que me
conformar com a adaptação solicitada?”
Wontanara: estamos juntos?
88
Foram muitos os conflitos ocorridos nos bastidores desses
quatro primeiros meses. Fatos éticos (da falta de ética!) e
estratégicos. Situações pessoais e profissionais envolvendo
membros da equipe (nacional e expatriados). Um período
de grandes reviravoltas na equipe do projeto como um todo
e poucas mudanças na condução do trabalho. Da minha
maneira, tentava esculpir uma porta de saída para preservar
minha visão holística e minha ética, sem comprometer a
relação de trabalho com a coordenação.
Simultaneamente, procurava estimular a equipe psicossocial
para a inovação do nosso serviço. Certos dias eu acreditava
estar falando sozinha. Mas, nos seminários organizados
com o grupo, sentia ecoar a demanda: precisamos mobilizar
nosso potencial participativo e social; trabalhar para ampliar
a consciência das pessoas que atendemos e buscar uma
nova abordagem, mesmo que isto signifique algum nível de
confronto metodológico.
Finalmente estávamos, dentro da equipe psicossocial,
entendendo que nossas atividades rotineiras eram
consideradas apenas detalhes. Simples arranjos de uma
melodia orquestrada por agentes externos ao contexto.
Porém, sem elas, o trabalho não tinha o mesmo colorido
e a música não ficava completa. Elas não eram o fim, mas
sabíamos que representavam um caminho importante, o qual
deveríamos percorrer para chegar a um objetivo maior: levar
as pessoas a se apropriarem desse universo que representa
o HIV/AIDS e a transformar a luta individual numa ação
coletiva e pública.
Resumindo a ópera: o véu de idealismo que cobria meus olhos
quando me inscrevi nessa ONG, transformava-se num outro
tecido, chamado “realidade do campo”. Quatro meses de
uma experiência que parecia estar apenas começando haviam
passado e concluí que não poderia me ater às perfumarias.
“O fruto não cai da árvore sem que esteja maduro”, mas era
chegado o momento das primeiras colheitas e eu precisava
dar uma boa chacoalhada no galho para ver o resultado. E,
porque o tempo escapou por entre as mãos, aceitei, então,
prorrogar minha missão de nove para onze meses.
Wontanara: estamos juntos?
89
Capítulo 17
Wontanara: estamos juntos?
90
17
E N Q UANTO ISSO
A VIDA
ACONTECE L Á F ORA
Em meio ao telhado das casas e às copas de algumas árvores,
quatro torres reinam imponentes no horizonte. São as torres
da maior mesquita de Conakry, que ocupa praticamente um
quarteirão inteiro.
As atividades começam cedo. O chamado para o primeiro
horário de oração é por volta das cinco da manhã. De
longe, entoa uma espécie de canto, que percorre as casas,
despertando os adeptos e os não adeptos. Hora de acordar
para agradecer a vida.
Wontanara: estamos juntos?
91
Vida que passa, porém, despercebida do lado de fora da
mesquita. Talvez o melhor termo seja “marginalizada”, pois é
impossível deixar de notar as dezenas de pessoas que moram
na calçada da frente.
Pessoas com, aparentemente, todos os tipos de condições
físicas. De corpos saudáveis a portadores de necessidades
especiais. Pessoas em cadeira de rodas e com muletas;
pessoas que caminham com as mãos, outras que engatinham
com os joelhos. Que não enxergam, mas certamente sentem
a movimentação dos fiéis no entra-e-sai da mesquita. Um
grande número de albinos. Idosos, adultos, jovens, crianças e
bebês. Homens e mulheres. Todos humanos. Expectadores à
espera de alguma caridade ou milagre, talvez.
Naquele lugar eles dormem, comem, fazem suas necessidades
fisiológicas, socializam e formam famílias. Por ali circula uma
boa parte da sociedade, pois fica numa rua movimentada,
paralela ao maior hospital da cidade. Todo mundo já passou
por ali pelo menos uma vez, seja num táxi enferrujado, num
veículo oficial ou mesmo num carro novo, último tipo.
Vidas claramente afetadas pelo descaso da humanidade.
Discriminadas, com certeza. Incompreendidas, talvez. Que
provocavam, em mim, sentimentos antagônicos e intensos,
na maior parte das vezes. Até mesmo certa dúvida existencial
colocava a fé em xeque-mate.
Um pouco adiante, outras torres reinam imponentes sobre
o monte. Antenas de rádio e televisão que conectam as
pessoas ao mundo. Que levam e trazem notícias. Difundem e
confundem. Talvez maquiassem a realidade. Ou, simplesmente,
ignorassem por completo as mazelas encontradas embaixo
das torres vizinhas. Parabólicas diabólicas e distantes da sua
função social.
Entre uma torre e outra, entre o sagrado e o profano, a vida
seguia seu próprio percurso. E eu, dentro do meu próprio
“templo protegido”, procurava a mão de Deus nos bastidores
desse cenário. Tentava assegurar, no meu íntimo, que a lógica
da vida terrena é justa. Repetia a máxima “nada é por acaso”
como um mantra permanente, para me lembrar de que
Wontanara: estamos juntos?
92
nem tudo era o que parecia ser. Nem mesmo aquela miséria
humana, nem mesmo a proposta de salvar o mundo!
Wontanara: estamos juntos?
93
Capítulo 18
Wontanara: estamos juntos?
94
18
Nem TUDO É
RESISTÊN CIA
Ponderando sobre o processo de adaptação, não me surpreendi
com a rapidez com que minha rotina africana passou a fluir
naturalmente. É interessante como nosso corpo colabora,
numa tentativa espontânea de mimetismo. Num instante
minha mente passou a operar um outro “código” e tudo se
tornou familiar. Com menos esforço para ler a “legenda da
vida”, aquela língua estrangeira começou a habitar inclusive
os sonhos.
A convivência com tanta diversidade cultural não era
fácil, mas a interação humana compensava. Cada pessoa
com seus trejeitos, características, gostos, preferências,
referências, porém alimentando um objetivo comum. Nem
sempre compartilhávamos metas, contudo, nossos saberes
convergiam e se completavam. Algumas vezes, até mesmo
as opiniões divergentes se complementavam, nos permitindo
encontrar algum consenso.
O grupo de expatriados habitava três locais diferentes e
distantes, mas nos encontrávamos praticamente todos os dias
no ambiente do trabalho. Alguns estavam ali com suas famílias
Wontanara: estamos juntos?
95
e formávamos uma grande equipe. Num dos finais de semana
de janeiro, por exemplo, promovemos uma festa com todos
os expatriados e staff nacional, na sede da coordenação geral,
reunindo mais de duzentas pessoas. Fiquei impressionada
com o número de participantes e também com a organização
da comida. O cenário me lembrou das festas interioranas em
que os vizinhos se juntam para cozinhar no quintal de casa
e transformam os preparativos numa comemoração à parte.
A rotatividade dos expatriados era relativamente pequena,
pois o tempo de missão na Guiné variava de seis a doze meses.
Mesmo assim, a renovação acontecia sistematicamente, já
que o início e o fim dos contratos não coincidiam e algumas
pessoas prorrogavam ou encurtavam o prazo. Ou seja, sempre
tinha alguém chegando ou partindo. Não necessariamente
nesta ordem.
De qualquer forma, tínhamos a oportunidade de conhecer
um pouco mais as pessoas, e por um período maior. Isto
ajudava a estabelecer uma relação de proximidade... ou não!
Obviamente, sempre havia aqueles que preferiam ficar no
seu canto. Além do que, a formação de “tribos” é natural; faz
parte da natureza humana.
Na missão, o agrupamento variava de acordo com a afinidade
pessoal e cultural. Entretanto, era nítido o resquício de
geração: os “mais jovens” passavam bastante tempo juntos e
os “mais maduros” interagiam com maior frequência entre si.
De minha parte, transitava por todas as “tribos”, embora me
enquadrasse melhor no grupo dos “mais velhos”.
Jovens ou maduros, uma coisa era certa: todos nós gostávamos
de passar uma parte do final de semana no terraço, trocando
ideias e ouvindo música. Geralmente preparávamos alguma
refeição juntos e sentávamos no terraço para saboreá-la.
Durante a semana, quando voltávamos do trabalho, elegíamos
o terraço de um dos andares como ponto de encontro para
colocar a conversa em dia.
Da mesma forma que os expatriados iam e vinham, as
histórias circulavam pela “rádio peão”. Era impossível
evitar o disse-me-disse. Então, rapidamente a vida privada
Wontanara: estamos juntos?
96
se tornava pública. Simples questão de minutos. Era uma
verdadeira comunidade! Nesses momentos de descontração,
muita informação vinha à tona, revelando a outra faceta do
projeto, da ONG, das pessoas.
Além dos “causos de bastidores”, compartilhávamos as
conquistas do dia, nossas frustrações e críticas. Buscávamos
apoio mútuo e, sobretudo, uma compreensão comum a
respeito do nosso papel e da importância daquele projeto
para a Guiné. Muitas interrogações ficavam sem respostas,
mas procurávamos alimentar a esperança de mudar o rumo
das coisas.
Wontanara: estamos juntos?
97
Capítulo 19
Wontanara: estamos juntos?
98
19
UM J ARD I M PARA
A ESPERANÇA
Da mesma maneira que ainda acontece em muitos lugares no
Brasil, o saneamento básico na Guiné é bastante deficiente;
praticamente inexistente. Mesmo na capital, há uma grande
quantidade de bairros sem esgoto e água encanada. Durante
a semana o fornecimento de água e eletricidade respeita um
rodízio entre os bairros.
A precariedade das condições de moradia e a inexistência da
coleta pública de lixo, tornam a circulação em vias públicas
um grande desafio. Existe sempre uma montanha de lixo
nas ruas, o esgoto a céu aberto, uma enorme aglomeração
de coisas na frente das casas e das lojas, muitas barracas de
comércio ambulante na frente e dentro dos estabelecimentos
de grande movimentação de pessoas.
Quando alguma coisa estraga, continua sendo usada até o
limite da possibilidade. A partir de então, é encostada em
algum canto e lá fica. Não existia a cultura de manter os
ambientes limpos e organizados.
No começo, eu atribuía o caos à falta de recursos. Aos poucos,
Wontanara: estamos juntos?
99
fui me lembrando da frequentadora de uma das instituições
onde trabalhei, no Brasil, dizendo: “Quem faz a favela é o
favelado; não é porque a gente mora aqui (na favela) que
precisa ser sujo e desorganizado!”. Era uma senhora nos seus
quarenta e poucos anos e cento e vinte quilos, superengajada
com a comunidade. Costumava participar ativamente das
várias formas de controle social do bairro e toda vez que
voltava de uma reunião importante juntava os vizinhos, subia
num banquinho e repassava as informações.
A imagem dela articulando a vizinhança, defendendo as
reivindicações dos moradores e, ao mesmo tempo, reforçando
seus deveres e o espírito de colaboração, é uma das marcas
mais importantes da minha trajetória comunitária. Com essa
referência, olhava os guineenses e repetia: “Eles também
podem!”
O senso de coletividade entre africanos é mais ou menos
similar ao que, habitualmente, dizemos existir entre os latinos:
um por todos e todos por um. A vida no seio da família não
é compartilhada apenas com o pequeno grupo nuclear. Aliás,
lá não existe nada muito pequeno quando se trata de formar
família. Enfim, o que chama a atenção é o forte laço de
Wontanara: estamos juntos?
100
solidariedade entre as pessoas. Se você “mexe com um, está
mexendo com o grupo”. Todo mundo fica sabendo tudo, o
tempo todo. É uma rede sólida. Então pensei: “Por quê não
aproveitar esse potencial para reverter a desorganização em
nosso ambiente de trabalho?”
Determinada a gerar um impacto positivo no público que
atendíamos, resolvi investir primeiro na minha equipe.
Rapidamente fiquei conhecida como “a dama de ferro dos
recursos”. Fizemos a “revolução 3 Rs”: Reduzir as solicitações
de materiais, Reutilizando o que estava sobrando de forma
criativa e Reciclando tudo que o era possível, para tornar o
ambiente mais agradável e mais aconchegante também para
os pacientes.
Mudamos a disposição dos móveis na sala de espera,
visando privilegiar a interação entre as pessoas e a troca
de informações. Embora essa tenha sido a estratégia mais
controversa, gerando insegurança por causa do contato com
pacientes tuberculosos, aos poucos fomos nos adaptando e
colhendo bons frutos. Em função dessa nova interação entre
pacientes e equipe psicossocial, descobrimos vários casos
que necessitavam da nossa intervenção e pudemos reverter
o quadro.
Nossa proposta, que antes havia sido considerada “apenas
um capricho estético”, logo ganhou adeptos e passou a ser
incorporada pelos profissionais de outros setores e serviços
parceiros. Além do Centro Médico Comunitário, as equipes
das unidades de saúde começaram a proceder dentro da
mesma ótica. Foi bonito de ver!
O ápice do processo foi um mutirão organizado no hospital,
para pintar a sala de trabalho de grupo e preparar um jardim.
Trabalhamos um dia inteiro para transformar uma pequena
parte do nosso espaço. Mas foi muito gratificante, pois nas
semanas seguintes as pessoas admiravam nosso jardim. E se
diziam encantadas!
Wontanara: estamos juntos?
101
Concluímos antes da temporada de chuva, então tudo
começou a germinar em muito pouco tempo. Nas floreiras
suspensas, feitas de garrafas PET, transbordavam os botões
de flor, alegrando a passagem. As pessoas se importavam
com aquilo e constatavam a diferença das plantas de uma
semana para a outra.
Toda vez que eu chegava no hospital, ficava um tempo no
jardim para apreciar a nossa obra coletiva. Um dia, reparei
Wontanara: estamos juntos?
102
que uma das floreiras estava minguadinha, em comparação
com as outras. Comecei a conversar com ela e isto despertou
o interesse de um dos funcionários da recepção, que acabou
se propondo a “adotá-la”. Daquele dia em diante, ele passou
a cuidar dela pessoalmente e não esperou muito para ver o
resultado. Em menos de duas semanas, a planta encorpou e
floresceu.
O jardim tornou-se um símbolo. Uma alusão ao potencial
transformador que existe em cada um de nós, independente
de credo, etnia e estado de saúde. Durante vários meses ele
manteve acesa, dentro do meu coração, a chama da esperança.
Quando concluí minha missão, fizeram uma cerimônia de
despedida e escolheram o jardim como local para a “foto
oficial” da minha passagem por lá.
Wontanara: estamos juntos?
103
Capítulo 20
Wontanara: estamos juntos?
104
A COR DA
20
ÁFRI CA
Foté, foté!! 11
É como gritavam as crianças quando nós, expatriados
brancos, passávamos na rua. Elas colocavam seus olhos
curiosos sobre nós e, às vezes, até apontavam o dedo em
nossa direção, fazendo rir a todos com a brincadeira. Em
geral, respondíamos acenando com a mão e mandando
beijinhos.
11. Expressão no dialeto
soussou que significa
“branquela, branquela”.
Certa manhã, aprendi que não eram apenas as crianças que
nos chamavam de “branquelos”. Mas, naquela vez, não teve
beijinho de volta, nem aceno de mão!
Estava num mercado aberto, bem pertinho de casa, para
comprar legumes e frutas, e uma das feirantes insistiu em
anunciar a presença de uma foté. Não compreendi muito bem
o restante do que estava sendo dito na língua local, mas pelo
tom da voz imaginei que ela e as outras amigas feirantes
estavam, provavelmente, questionando: “O que faz uma
branquela dessa no nosso mercado?!”
Wontanara: estamos juntos?
105
Tratei de colocar um sorriso no rosto, como quem tem
certeza de que tudo não passa de uma brincadeira, e segui meu
caminho. Confesso, porém, que me senti um peixe fora d’água.
Reconheço que o número de brancos nas ruas de Conakry
era quase nulo. Praticamente só os expatriados contratados
pelas diferentes agências internacionais (UNICEF, ONU,
Cruz Vermelha, e outras ONGs) e que andavam para cima
e para baixo, por conta do trabalho nas comunidades. Fora
isso, os representantes das embaixadas ou consulados e os
funcionários de empresas multinacionais (do Brasil, por
exemplo, conheci pessoas da Vale e da Andrade Gutierrez),
mas que quase não circulavam pelas ruas, em função dos seus
respectivos compromissos. Era mais comum encontrar esse
pessoal no supermercado, no Centro Cultural França-Guiné
e nos passeios de barco para as ilhas.
De acordo com os relatos do jornalista João Fellet, a cor da
pele ainda é uma questão não resolvida em vários países da
África. Podemos incluir a República da Guiné nessa lista.
Como me contou um dos motoristas do nosso projeto, o
“café com leite” (palavras dele) só começou a ser tolerado
entre os guineenses recentemente. Ainda assim, há regiões
(comunidades mais tradicionais) em que os negros não se
misturam com os brancos.
Ao comentar com esse mesmo motorista sobre o hábito
das crianças, ele reforçou a curiosidade delas pelo diferente,
esclarecendo que fazem isto como uma estratégia para se
aproximarem da pessoa. De fato, várias vezes eu fui seguida
por pequenos grupos que vinham pegar na minha mão assim
que eu reagia à brincadeira, sorrindo e acenando.
Para ele, era muito natural que o contrário também acontecesse
nos países onde a maioria é branca. Qual não foi a sua
perplexidade quando expliquei que, hoje, no Brasil, bem como
em outros lugares que conheço, não podemos apontar o dedo
para um negro e brincar dizendo “negro, negro”. Certamente
seríamos enquadrados como politicamente incorretos ou até
mesmo processados, dependendo da situação.
Provavelmente, para além das brincadeiras, existia um
resquício da colonização. Eu me perguntava o que teria para
Wontanara: estamos juntos?
106
além da colonização. A relação de dominação dos brancos
sobre os negros deixou marcas inconfundíveis na história
da humanidade. Portanto, não tenho dúvidas sobre o
sentimento de injustiça que ainda perdura. Eu mesma me
sinto constrangida ao ter que reconhecer nossa história
escravagista.
Ainda vivemos, nos dias de hoje, um nível de estigmatização
e discriminação que extrapola a cor da nossa pele e se
mascara de tantas formas, que talvez seja impossível listálas. O preconceito, o julgamento, o estereótipo e o racismo
se tornaram muito presentes e fortes em nossos discursos,
brincadeiras, piadas e referências cotidianas. Mesmo no âmbito
da economia e da organização política, decisões importantes
são tomadas sem levar em conta o impacto que provocam
na segregação social, retardando nosso desenvolvimento
espiritual como um todo.
O que ainda pesa no coração é justamente isso. Apesar dos
avanços, continuamos incapazes de superar a “natureza
desumana” para alcançarmos níveis de maior tolerância e
solidariedade. Que todos os países pudessem colocar em
prática o que realmente suas bandeiras proclamam; que todas
as nações pudessem transcender suas fronteiras, unindo-se
no ideal comum; que todos os povos, mesmo guardando sua
diversidade, pudessem criar uma unidade harmonizada com
o cosmo... seria desejar demais?
Wontanara: estamos juntos?
107
Capítulo 21
Wontanara: estamos juntos?
108
21
A PECULIaRiDADE DO
mAR C HÉ
m ADINA
Fazer compras pode ser uma necessidade da vida cotidiana.
Mas fazer compra no mercado aberto em Conakry é uma
aventura cultural e social imprescindível. Dessa vez, o
mercado em questão era o Marché Madina; o maior do país.
Isto significa o mais frequentado (inclusive por pessoas dos
países vizinhos, à procura dos baixos preços para revender
em suas cidades) e com maior diversidade de itens para
consumo. É também o mais poluído em sujeira e barulho.
Quem conhece ou já ouviu falar da Rua Vinte e Cinco de
Março, em São Paulo, pode imaginar algo similar: é como
se a região da Ladeira Porto Geral fosse acrescida de cinco
vezes mais pessoas e mais ambulantes, em plena temporada
de compras para o Natal. A concentração de pessoas é
indescritível.
A via pública precária (chão batido ou antipó gasto) abriga
uma infinidade de barraquinhas e panos estendidos no chão,
a céu aberto, com produtos variadíssimos: de legumes à
made in China, de peixe defumado a galinha viva, de sabão
em pedra a inseticida enlatado, de roupa ocidental a tecido
Wontanara: estamos juntos?
109
africano, de cosméticos a material elétrico. O que sobra é um
corredorzinho entre as fileiras de vendedores. No Madina, o
conceito de ambulante é levado ao pé da letra: os vendedores
perambulam pela feira, caotizando ainda mais a circulação.
Decididas a conhecer melhor a localidade, minha colega e
eu dedicamos a manhã para caminhar por lá. Às vezes nem
precisávamos nos preocupar com a direção dos passos.
Literalmente, éramos arrastadas pela multidão que vinha
atrás de nós. Nesses momentos, a única tarefa era desviar
das bacias cheias de produtos que ficavam no meio do
caminho. Saltávamos ali e acolá, até encontrar uma vaga e
fazer um pit stop. Quando avistávamos algo para comprar,
simplesmente provocávamos um congestionamento
temporário. Negociávamos o preço rapidamente, caso
contrário a multidão começava a fazer barulho e empurrar.
O vendedor apressava o ritmo da pechincha, gesticulando e
atendendo três ou quatro ao mesmo tempo, até encontrarmos
um consenso.
A cada esquina, o testemunho de cenas tão excêntricas, que
só pessoalmente para ter a exata dimensão. Numa delas, um
grupo de quase cem mulheres eram penteadas. As cabeleireiras
sentadas em cadeiras mais altas e as clientes, em banquinhos
mais baixos, deitavam a cabeça no colo delas; agilmente o
cabelo da cliente era trabalhado, enquanto tagarelavam com
as vizinhas. Dali saía de tudo: de peruca a trança; de cabelo
curto a megahair. E quando passávamos, logo ouvíamos: “Foté,
foté, quer fazer tranças hoje?”
Num mercado, com milhares de africanos, éramos as duas
Wontanara: estamos juntos?
110
únicas brancas durante a nossa aventura. Mesmo perdidas na
multidão, virávamos alvo fácil. Quando nos distanciávamos
uma da outra, por conta das pessoas que entravam no meio
do caminho, ficávamos esperando paradas e tinha sempre
alguém nos socorrendo, dizendo: “Foté, sua amiga está lá
atrás”.
A noite ia caindo e não havia iluminação na maioria das ruas,
levando as pessoas a se recolherem. Os ambulantes davam um
jeitinho de esticar o horário comercial com suas poderosas
e perigosas luminárias: uma vela acesa dentro de um galão
plástico. Cenas como essas ficam afetivamente registradas,
pois acredito que nem mesmo uma câmera fotográfica (se
elas fossem autorizadas) conseguiria clicar a emoção que
despertam. Tudo era muito intenso e lindo, mesmo que
significasse a carência de infraestrutura.
Wontanara: estamos juntos?
111
Capítulo 22
Wontanara: estamos juntos?
112
22
mu l he re s, m ã es
e a s a m a zonas
da g ui né
Mesmo morando em Conakry por onze meses, jamais
consegui encontrar estatísticas confiáveis sobre o senso na
Guiné. No entanto, quando passava na rua sempre via muito
mais homens do que mulheres. Eles estavam constantemente
agrupados em número de quatro a seis pessoas. Quando se
tratava de alguma atividade profissional, apenas um fazia
o serviço, sob os olhos dispersos dos colegas. Nos bares
e cafés todos eles tagarelavam, sem exceção. Em geral, os
comerciantes passavam a maior parte do tempo sentados na
calçada, na frente da loja ou da oficina, onde atendiam os
clientes.
Logo no começo, me perguntei por onde andavam as
guineenses. Por ser uma sociedade de maioria muçulmana,
talvez elas estivessem em casa. Naquela cultura, o machismo
é propagado e a maternidade, o papel mais importante
para as mulheres. Assim, naturalmente, eu imaginava que
estivessem realizando as atividades domésticas. Mas, sem
demora, seu paradeiro ficou mais claro. Com um pouco mais
de observação, constatei meu erro.
Wontanara: estamos juntos?
113
No comércio ambulante há uma hegemonia declarada. São
elas, as mulheres, que tocam os negócios nas feiras. São elas,
as mulheres, a maioria no mercado de pescadores. Estão na
rua com suas bacias na cabeça, na frente das casas com suas
barraquinhas de comida, e até mesmo na construção civil.
Encontram-se espalhadas nas escolas, nos hospitais, nas
repartições públicas, no serviço militar e em várias empresas.
Wontanara: estamos juntos?
114
Pelo que contavam, são discriminadas e sofrem com a
política salarial que valoriza a mão-de-obra masculina e reduz
a igualdade de direito. Mas elas resistem bravamente. E se
fazem notar com suas cores! Por onde passam, sua presença
marca a harmonia das roupas coloridas e estampas arrojadas.
Nem por isso caotizam. Ao contrário, a mistura de cores
e linhas estabelece um mundo paralelo à miséria. As ruas
empoeiradas ganham outra dimensão com aquelas cabeças
enfeitadas pelos turbantes combinando com os vestidos. Até
mesmo o pano de amarrar a criança nas costas combina com
o “completo”12 do dia.
As guineenses se vestem bem, com modelos sui generis.
A maneira como enrolam o turbante na cabeça varia de
acordo com a ocasião. A quantidade de atelier de costura
(com profissionais-homens inclusive) chama a atenção.
Praticamente um a cada quarteirão, e todos ocupados. O
negócio é próspero.
12. “Completo”
significa um conjunto
de saia comprida e
blusa.
Poucas mulheres usam roupas ocidentais. Raramente repetem
a mesma roupa num espaço curto de tempo. A maioria muda,
de uma semana para outra, o estilo do cabelo. Segunda-feira
é sempre dia de novidade. Ora cabelo trançado e megahair,
ora curtinho e fios desfiados. Peruca chanel, ondulada, lisa,
rastafári... umas mais comportadas e outras bem extravagantes.
Wontanara: estamos juntos?
115
Elas são divertidas e, ao mesmo tempo, maternais, boas
negociadoras, perspicazes. Têm jogo de cintura e um rebolado
de fazer inveja (não para as nossas sambistas, é claro). As que
cantam têm uma voz digna da caixa torácica, marca registrada
entre as africanas.
Um grupo de mulheres militares se destacou aos meus olhos
e ouvidos, conquistando meu coração. Conforme me contou
um dos motoristas do projeto, elas têm mais de sessenta
anos (custei a acreditar) e integram a Orquestra Feminina da
Polícia Militar Nacional. Fazem sucesso em vários países da
África, há anos. Conhecidas como “As Amazonas da Guiné”,
o grupo foi fundado no começo da década de sessenta, com
o objetivo de estimular o espírito de liberdade nas mulheres.
Suas músicas valorizam a condição feminina e convidam
as africanas a questionarem a herança cultural machista e
repressora. Elas cantam em francês e nos diferentes dialetos
da Guiné. Esbanjam uma força fenomenal e nos contagiam
com sua performance.
Todos os papéis sociais femininos, entretanto, dividem espaço
com a maternidade. Faltam palavras para descrever a mulher
nesse protagonismo. A imagem delas levando suas crianças
pequenas nas costas toca o coração. Desde quando podem e
enquanto conseguem, não há uma idade limite para carregar
nem para ser carregado. O critério é o tamanho e o peso da
criança. Há mães jovens, avós com mais idade e até mesmo
crianças que levam seus irmãos nas costas.
A forma de amarrar “os pequenos” é muito simples, mas
requer prática. A mulher curva o tronco ligeiramente para
frente e coloca uma espécie de canga sobre as costas, na
altura do quadril. Com movimentos sincronizados, ela ergue
a criança, embrulhando-a no seu dorso com o pano, de
maneira que os braços e as pernas estejam abertos em torno
Wontanara: estamos juntos?
116
Wontanara: estamos juntos?
117
do corpo. E, voilà! Tudo pronto para que a mãe possa ir e vir,
abaixar e fazer qualquer atividade, sem precisar se preocupar
com aquela figurinha agarradinha nela.
Na Guiné (e em outros países da África também) as crianças
permanecem aos cuidados de suas mães até uma idade mais
avançada. Quase não existe creche, e quando uma mulher
trabalha fora ou precisa fazer compra, ela conta com a
colaboração de outro membro da família ou leva as crianças
junto dela.
É comum a amamentação prolongada e as crianças dormem
na cama do casal até quatro anos, a não ser que eles tenham
outro bebê nesse ínterim. Sem nenhum pudor de expor
os seios, as africanas levantam a blusa e amamentam suas
crianças onde estiverem.
O interessante é que, em função dessa naturalidade, elas
pouco tapam os seios. Sempre víamos mulheres se lavando
na calçada com um pano enrolado da cintura para baixo, mas
com o tronco completamente nu. Vi algumas profissionais de
saúde vestindo aqueles aventais abertos na lateral, diretamente
por cima do sutiã, deixando tudo à mostra. Culturalmente,
os seios de uma mulher são associados à alimentação das
crianças. Nada mais do que mamas!
Observando o comportamento dos guineenses, cheguei
a pensar que esse aconchego da criança com sua mãe seja
uma variável de grande impacto na afetividade deles. Mas,
ao mesmo tempo em que as relações acontecem por esse
campo, a via do carnal é bastante forte. Corporalmente
podemos perceber que a ginga africana é outra. O jeito de
andar e dançar é bem peculiar. Quase não há manifestação
de carinho em público (por exemplo, casais se beijando e
se abraçando), mas a sexualidade é vivida intensamente. A
prática começa cedo, permanecendo em atividade até mais
tarde. A poligamia autorizada e os casamentos arranjados
corroboram esse quadro.
Em contrapartida, a educação sexual em casa e nas escolas
quase inexiste. Com percentual de alfabetização muito
pequeno, o acesso à informação configura um caminho
tortuoso. Em tempos de HIV, não é difícil imaginar o que
isso representa.
Wontanara: estamos juntos?
118
Capítulo 23
Wontanara: estamos juntos?
119
23
TAMBORES
M Á G I COS
Os músicos guineenses (adultos e crianças) me faziam
lembrar do nosso fantástico Olodum. Em qualquer situação,
ao começarem a tocar, arrancavam da cadeira até mesmo
quem não estava ali para dançar!
Com um batuque contagiante e repleto de estímulos, os
tambores eram meus preferidos. Seus instrumentos, bem
diversificados e fabricados de maneira que nunca vi antes.
Tinha tambor de tudo quanto é tamanho e outras espécies
de chocalhos, feitos de cabaça e de madeira, com som bem
peculiar. Tudo me parecia muito interessante e curioso. As
letras (as mais bonitas!) eram cantadas em língua local ou
em francês. O ritmo, sempre misturado e harmoniosamente
arranjado.
Sobretudo dos tambores surgia uma energia especial. Um som
primitivo e enraizado, despertando a alma dormente e criando
um ritmo próprio para cada corpo. Se nos entregássemos à
sua batida, seríamos capazes de deixar crescer dentro nós
diferentes personagens: o guerreiro, o caçador, o capoeirista,
o escravo, os orixás. Todos, vestidos de uma força enorme
Wontanara: estamos juntos?
120
e alinhados por uma frequência musical que vitaliza. Talvez
venham daí os jogos de cintura, de pés e de pernas, que
caracterizam a dança africana.
O gingado podia ser suave, como o vai-e-vem de uma
cadeira de balanço. Ou então apressado, cheio de rebolado
e insinuações corporais. De gente grande a crianças, não
havia quem ficasse de fora. Nem mesmo quem estivesse na
cozinha!
Foi o caso das cozinheiras do restaurante que costumávamos
frequentar. Sobrinhas da proprietária, elas se revezavam
entre a grelha à carvão e as mesas dos clientes, trabalhando
e tagarelando o tempo inteiro. Interagiam com os
frequentadores, tornando o ambiente extremamente alegre
e familiar.
Mas bastavam os primeiros batuques de qualquer música
para que elas começassem uma festa à parte. Depositavam
bandejas e pratos sobre as mesas, formavam uma rodinha e
passavam a dançar e cantar. Entre uma música e outra, elas
voltavam às suas tarefas. No dia em que tinha DJ, eu pensava
sozinha: “Vixi... isso vai longe. Pelo jeito, ficaremos sem
jantar hoje!”
Essa alegria e descontração fazem parte da vida deles. Ao
contrário do que costumamos imaginar, a África é muito
mais do que as mulheres brutalmente circuncisadas, do que
crianças injustamente morrendo de fome, do que as vítimas
sangrentas dos conflitos étnicos.
A beleza do continente é maior do que toda a corrupção
divulgada pela mídia, que gera no senso comum grande
repulsa. Supera o estereótipo da falta de governança e
ética. A África é o colorido negro e a força dos braços que
outrora ergueram vários países do outro lado do oceano.
É o brilho explorado pelas mãos desnutridas para enfeitar
pescoços, dedos e orelhas no ocidente. É a fênix que ressurge
eternamente das cinzas da pobreza. É o tambor que soa a
alegria.
Concordo que não podemos apenas valorizar as riquezas
Wontanara: estamos juntos?
121
naturais e culturais do continente africano. Porém, reduzilo à miséria é uma boa estratégia de marketing para tornar
os projetos humanitários vendáveis, gerando recursos que
mantêm brancos no palco das intervenções.
Nesse caso, tornar a igualdade verdadeira significaria romper
com essa visão ingênua de que é a África que necessita de
nós. Naquela altura da minha missão, esta já era uma reflexão
muito presente, principalmente considerando todos os fatos
ocorridos no “projeto Guiné”. Um misto de decepção/
realização, de basta/está-apenas-começando, de desilusão/
esperança, tomava conta de mim. No ritmo dos tambores,
isso tudo ecoava forte na minha consciência.
Wontanara: estamos juntos?
122
Capítulo 24
Wontanara: estamos juntos?
123
24
d e vo lta ao
dilema da
cu lt ura
Após duas semanas consecutivas de grande agitação no
trabalho, resolvi sossegar um pouco o corpo, para tentar
sintetizar a caminhada da alma. Plagiando os índios norteamericanos: So that my soul can catch up with my body13.
Vários acontecimentos e experiências intensas. Decisões
sobre o rumo do projeto, impactando também a vida das
pessoas. No meio disso tudo, um pequeno balanço me fez
retornar ao dilema da cultura. Um questionamento sobre até
que ponto devemos recuar diante dos hábitos culturais me
“assombrava”, reforçando minha briga interna.
13. Expressão em ingles
que significa “para a
minha alma emparelhar
com o corpo”.
O sofrimento humano associado aos costumes de um povo
me intriga profundamente. Diante dele, do sofrimento, fica
difícil aceitar a cultura. Diante dela, da cultura, atinjo um nível
de compreensão sobre a situação, o que permite entender o
fato. Mas, ainda assim, me recuso a aceitá-lo.
Um exemplo? Vamos pensar sobre a mutilação genital
feminina em seus diferentes graus e consequências. Embora
continue sendo praticada em silêncio, dificilmente conseguem
Wontanara: estamos juntos?
124
mantê-la em segredo. Alguns países proibiram esse ritual,
mas uma grande parte das famílias opta por levar a criança
ou a pré-adolescente (de acordo com a região do país) a uma
mulher de referência na comunidade para fazer a excisão.
Outra parte recorre ao hospital para fazer o que eles chamam
de “simulação”. Segundo me explicaram, são casos em que
o procedimento não chega a ser completo. As famílias mais
conservadoras passaram a antecipar a idade da criança (às
vezes com três ou quatro anos) a fim de desviar a atenção da
comunidade.
Geralmente, é utilizada uma lâmina de gilete ou objetos
cortantes como pequenas facas. No caso da infibulação,
a costura é feita com agulha comum. O mesmo material
é usado no atendimento de todas as clientes do dia, sem
nenhum cuidado de esterilização. Esta mutilação pode ser
feita em diferentes graus e sua escolha depende da crença
familiar. A extirpação total do clitóris e dos pequenos e
grandes lábios e o fechamento parcial, é a mais radical. Neste
caso, é deixado apenas um orifício, do tamanho da cabeça de
um palito de fósforo, para a eliminação da urina e do sangue
menstrual. Na clitoridectomia (grau intermediário) o clitóris
e pequenos lábios são eliminados parcial ou totalmente.
Sunna é considerada a menos drástica e consiste na remoção
exclusiva do clitóris.
Na Guiné, 96% das mulheres sofrem excisão parcial ou total
e essa estatística é similar em outros países africanos e da
península árabe. As consequências são inúmeras: episódios
de infecção fatal e/ou contaminação do HIV por falta de
higiene durante o procedimento; cólicas extremas por falta
de eliminação do sangue durante a menstruação (no caso
da infibulação); violência sexual, pois no primeiro coito o
homem desfaz a “costura” com uma faca antes da penetração;
casos de morte durante o parto por falta de dilatação da
musculatura vaginal fibrosada.
Por essas razões, me perguntava: “Como podemos nos
submeter a tais práticas? Por que não reagimos? Por que
convivemos com esse tipo de sofrimento e violência total
contra a nossa natureza física e espiritual? O que leva uma
mãe que sofreu com isso impor tal violência à sua filha?
Wontanara: estamos juntos?
125
Que “coisa” é essa que leva as pessoas a reproduzirem
comportamentos, valores e crenças tão questionáveis?”
Conversando com a minha equipe, eles comentavam que
as mulheres acabam se submetendo a isto devido ao medo
da discriminação social. Os pais perpetuam a prática para
garantir que suas filhas arrumem um “bom casamento”. A
excisão é pré-requisito, e encarada como questão de honra.
Outro exemplo? Vamos pensar numa situação menos
agressiva ao corpo. Resumidamente apresento os fatos: após
um divórcio, mesmo que a decisão seja tomada pelo marido, a
família do homem tem o direito de exigir a guarda das crianças.
Um homem que contamina sua esposa com o HIV (e o mais
comum é que isso aconteça em decorrência da infidelidade
do marido), além de abandoná-la sem nenhum recurso ainda
leva consigo os filhos do casal. A mulher é devolvida para a
sua família de origem, mesmo sem condições materiais para
recebê-la. Esposa traída, infectada e abandonada, ela se torna,
também, uma mãe rejeitada.
Isto reforçava meu questionamento: “Por que não nos
opomos? Por que legitimamos esses hábitos?”
Que existam diferentes níveis de consciência e evolução
espiritual, eu consigo entender e aceitar. Porém, a lógica
da “homeostase emocional” precisa ser revista. Isto é:
naturalmente buscamos o conforto emocional e, para isto,
acomodamos os conflitos tentando amenizar o sofrimento.
Mesmo que estejamos perenizando hábitos e paradigmas
sem nenhum questionamento.
Em nome da cultura, “simplesmente” ligamos o pilotoautomático do sofrimento humano e seguimos em frente.
As implicações do apego a valores e crenças me parecem
proporcionalmente complexas. Quanto mais radical e maior
o grau de apego a determinadas verdades, mais complicado
de trabalhar e de propor outras perspectivas.
Certo dia, discutindo com a minha equipe sobre os indicadores
de controle do projeto, solicitei que eles registrassem o número
de entrevistas com mulheres grávidas. Imediatamente me
Wontanara: estamos juntos?
126
disseram que seria impossível, pois faltavam meios para saber
se a mulher estava grávida. “Mas é simples. Basta perguntar
a ela”, insisti. Foi quando eles explicaram que, na cultura
guineense, jamais fazem isso. Só depois que a barriga começa
a aparecer é que se anuncia a gravidez.
No panorama geral, não se trata apenas de questionar a
cultura, como função dos hábitos de uma sociedade ou da
sua produção de signos e significados. A convivência passiva
com determinadas práticas “criminosas”, legitimadas por um
grupo social, pode ser tão perversa quanto a prática em si
mesma.
Em meio a esse dilema, tentava resgatar o modelo teórico
do pesquisador zimbabuano erradicado nos Estados Unidos,
Airhihenbuwa. Ele defende a presença de uma “dimensão
existencial” associada à cultura, como variável interveniente
em nosso comportamento. Afirma que, numa ação, crenças
e valores que não ameaçam a gestão da saúde, podem ser
isoladas. Mas e a gestão da dignidade humana se enquadra
como?
Em nome da defesa dos direitos humanos universais, muitas
nações se intrometem na vida de outras nações e cometem
atrocidades tão grandes ou maiores. O processo de dominação
pode ser mascarado de muitas formas, é verdade. Mas até que
ponto devemos confortar uma mulher que chora suas perdas
essenciais, dizendo que a cultura está aí para orientá-la?
Wontanara: estamos juntos?
127
Capítulo 25
Wontanara: estamos juntos?
128
25
A PEDRA
NO L AGO
Era uma quarta-feira pela manhã do mês de novembro de
2010, um ano antes da minha chegada ao projeto, quando uma
entrevista no rádio chamou a atenção de um pai, preocupado
com a saúde de seu filho. Fazia tempo que o homem tentava
abordar o assunto com o menino, mas não encontrava uma
porta de entrada.
Por vários meses, ele viu seu filho perder cada vez mais
o sentido da vida e se afastar de suas atividades. Inquieto,
naquele dia, ele se encheu de coragem e disse: “Meu filho,
você precisa escutar o que essa moça do rádio está falando: o
assunto é muito importante!”
Procurando não desapontar seu pai, o filho deteve-se diante
do rádio e, atentamente, ouviu cada palavra e orientação.
O “assunto importante” era o HIV/AIDS. A entrevistada
em questão era uma “ativista” e seu objetivo foi alcançado:
alguém, do outro lado da cidade de Conakry, se identificava
com seu depoimento. Naquele exato momento, nascia mais
uma história de amor pela luta contra a discriminação de
pessoas infectadas pelo HIV.
Wontanara: estamos juntos?
129
Wontanara: estamos juntos?
130
Esse jovem mal podia acreditar que a experiência dolorosa
vivida por ele, desde que recebeu o resultado da sua sorologia,
era também compartilhada por milhares de outros jovens
guineenses. Um tanto incrédulo, mas motivado pelo pai
atencioso a procurar a moça e a confiar-lhe suas angústias,
ele se direcionou ao serviço médico mencionado no rádio, a
fim de obter mais informações.
O caminho até o hospital foi longo e as perguntas que ele
faria começaram a se organizar na sua cabeça. Vários pontos
de interrogação. Mas principalmente um, fazia seu coração
bater mais forte: “O que será da minha vida a partir daqui?”
Chegou ao hospital e entrou no Centro Médico sem muita
esperança. Primeiro observou curioso o movimento de tanta
gente. A sala de espera lotada! Reparou nos rostos presentes
e disse a si mesmo: “São pessoas comuns!” Assim, decidiu ir
em frente e perguntou na recepção onde encontrar a moça
que falara na rádio, no dia anterior.
Naquele dia, ela deveria realizar um trabalho em outro local
da cidade. O grupo de ativistas tinha programado uma série
de sensibilizações nas unidades de saúde dos bairros. Mas,
por uma dessas razões que só o plano divino consegue
orquestrar, uma alteração de escala a levou para o hospital.
Lá estava ela, sensibilizando os pacientes que aguardavam
suas consultas. O tema do dia: vida positiva. Era como se
estivesse à espera do jovem incrédulo. Ao encontrá-la, ele
acabou por compreender que a vida de uma pessoa infectada
pelo HIV circula para além do sangue que corre nas veias.
Os meses que se seguiram depois deste encontro trouxeram
para o jovem uma nova perspectiva de vida. Motivado por
essa moça, ele passou a frequentar ativamente sua associação
e a participar das atividades de sensibilização. Aos poucos,
foi recuperando, inclusive, sua saúde. Fortalecido pelo ideal
da luta contra a discriminação que se impunha contra ele, o
jovem finalmente decidiu tornar-se, ele mesmo, um ativista.
E foi com muita determinação que este “protagonista” se
inscreveu no processo de seleção para a equipe do nosso
projeto, em Conakry. Do total de vinte e sete candidatos,
Wontanara: estamos juntos?
131
ele foi selecionado. Treze meses após ouvir a entrevista no
rádio, o jovem se apresentou para o primeiro dia de trabalho
como ativista, ao lado da sua “heroína”. A partir de então,
eles continuaram batalhando juntos com o objetivo de levar
outros jovens a encontrarem o sentido de suas vidas.
Para ele, foi engajamento à primeira visita. Para ela, foi o
fruto de um trabalho semeado com muito amor. Para os dois,
foi um encontro que fortaleceu a luta pela vida. Mutuamente
eles se diziam: “Inouwali ikhamalira!” 14
14. Equivalente a
“agradeço seu apoio”.
Para mim, foi uma honra testemunhar esse reencontro em
minha sala. Tudo começou antes da minha chegada ao projeto,
mas eu pude participar do desfecho e interpretei isto como
sendo mais um presente divino. E, também, como prova de
que sempre há uma razão por trás das mudanças inesperadas.
Se não pudermos compreendê-la, devemos apenas aceitá-la
como obra de um “projeto maior”.
A história deles me fazia acreditar ainda mais em nossa
capacidade de superar momentos difíceis. Olhar para o lado
e nos reconhecermos na dor alheia pode nos fazer sair do
próprio casulo para nos solidarizarmos mais com o mundo.
E o que aconteceu com esse rapaz depois foi consequência da
união de um grupo de pessoas: os ativistas da nossa equipe.
Eles agem como verdadeiros “guerreiros”, visitando outros
lugares e instituições, com a tarefa de semear informações
e cultivar o compromisso coletivo. Com muita dedicação,
investem no seu país. Lutam para que a população seja
esclarecida, para motivar, entre os pacientes, a adesão total
ao tratamento do HIV e para levar suas reivindicações às
autoridades competentes.
Algumas pessoas da ONG não gostavam que eles fossem
chamados de “ativistas”. Talvez numa tentativa de proteger
o “princípio de imparcialidade” da instituição. Houve um
certo boicote interno e tivemos que mudar a terminologia.
Entretanto, na prática, sabíamos que era impossível isolar do
seu papel o componente político, com P maiúsculo. Eles são
uma espécie de “pedra” que, se atirada no lago com força,
propaga ondas transformadoras.
Wontanara: estamos juntos?
132
Capítulo 26
Wontanara: estamos juntos?
133
26
SOBRE MORRER ,
J Á QU E A MORTE
N ÃO E X ISTE
Quase duas e meia da tarde. Cheguei ao hospital e passei pelo
consultório médico para cumprimentar a equipe. Fui logo
envolvida numa discussão para definir se os assistentes sociais
deveriam ou não correr atrás de uma bolsa de sangue para
enviar a um paciente hospitalizado em outro local. Minutos
antes, um telefonema da minha equipe já havia solicitado a
autorização para fazer um deslocamento extra no programa
do dia, a fim de acompanhar uma criança ao hospital central.
Autorizações concedidas. Vidas que seriam salvas. Mas quis
o sopro do destino abafar o último suspiro. Duas vezes,
naquele mesmo dia.
***
Eram quase três da tarde e uma mãe interrompeu, desesperada,
nossa discussão para alertar que estavam demorando e que
sua criança passava muito mal. O médico tomou aquele corpo
pequeno nos braços e o colocou sobre a maca, solicitando à
mãe que se retirasse. Imediatamente nos vimos trancados no
seu consultório e fui logo compreendendo que dali eu não
sairia da mesma forma que entrei.
Wontanara: estamos juntos?
134
Entre idas e vindas de algumas pessoas que insistentemente
batiam à porta, uma constatação final: nada mais havia a ser
feito, além de esperar o desligamento daquela pequena alma.
Enquanto o médico e o enfermeiro discutiam a situação,
tomei sua mãozinha em minhas mãos e orei, pedindo aos
céus que suas portas se abrissem para acolhê-la. Meu coração
se concentrou, buscando sintonizar a paz de espírito e a força
do amor universal, numa humilde tentativa de mediar sua
passagem.
A discussão se aquietou com alguma intercorrência do lado
de fora do consultório. Um a um, eles deixaram o cenário.
Em poucos minutos, me vi sozinha com a criança. E me
concentrei ainda mais: busquei ajuda da minha mentora
espiritual e mais uma vez compreendi que dali eu não sairia
da mesma forma que entrei.
Reforcei minha oração, dessa vez pedindo aos amigos
espirituais que facilitassem, eles próprios, a sua passagem.
Lentamente, len-ta-men-te, o ritmo da respiração da criança
foi se espaçando, es-pa-çan-do, até parar. Um pequeno
espasmo fez o corpo silenciar por completo. Não havia nada
mais a fazer além de agradecer a honra de acompanhar os
últimos passos daquela pequena guerreira.
Um misto de alegria e tristeza reacendeu dentro de mim um
antigo paradoxo. A contemplação da vida num outro estado
e dimensão me fez entender, mais uma vez, que a morte não
existe e que morrer é uma simples questão de abandonar o
corpo em algum lugar, num determinado momento, por uma
razão qualquer.
No final, nosso corpo precisa apenas de um motivo para ficar.
Ao contrário da alma, que talvez já tenha coletado todos os
méritos necessários para transcender... ou ascender, quem
sabe.
A lição era clara: não existe perda onde há libertação. Nem dor
onde há sublimação. Ou sofrimento onde há compreensão. A
solidão desaparece quando uma mão se estende sobre a nossa.
No conforto da oração, nos entregamos apenas. E assim,
creio eu, a dignidade do ser é preservada em sua totalidade e
Wontanara: estamos juntos?
135
a alma pode partir segura da sua missão cumprida.
***
Eram quase quatro horas da tarde e um pequeno corpo
se tornava objeto de disputa entre duas famílias. A mãe,
abandonada pelo marido em função da sua soropositividade,
reclamava seu direito de velar a morte da pequena. Já o pai,
este tentava impor sua tutela e manter a tradição da posse
preferencial sobre o luto. Decisões tomadas, todos partiram
do hospital. E, como pressentido, aquele que ficou não saiu
dali da mesma forma que entrou.
Fui imediatamente envolvida na busca de uma solução
para o paciente que necessitava de transfusão de sangue.
Era uma questão de tempo para que pudéssemos guardar
ao menos uma vida. Corre daqui, corre dali. Entre dois ou
três telefonemas, outra constatação: o sistema de saúde não
permitia milagres. A bolsa de sangue só seria possível no dia
seguinte.
Naquele momento, passou pela minha cabeça que a realidade
em questão acabava forjando, ela mesma, o motivo para o
corpo libertar a alma. Fui novamente pega pela contradição
de sentimentos. Uma espécie de revolta tomou o lugar da
paz interior. A resignação se esvaiu. O choro atrapalhou o
raciocínio lógico. A imparcialidade institucional foi aniquilada
pela imposição do antagonismo social.
***
Seis horas da tarde e o telefone tocou novamente. Dessa
vez, para denunciar a segunda ação do destino. Não teve
jeito. Nenhuma chance. Um quadro de anemia profunda
que, associado a outros fatores, reduziu os esforços da
minha equipe a pó. Mais um corpo abandonado, dessa vez
literalmente. Sem família para reclamar pelo direito de velálo, foi-se a alma, apenas Deus sabe como.
Deixou, porém, outra certeza: a vida é curta demais para
virarmos o rosto para o lado contrário das oportunidades
que recebemos com o objetivo de melhorarmos a pessoa que
Wontanara: estamos juntos?
136
somos. Enquanto debatemos o descaso inconcebível dos
governantes para com o sistema de saúde, os laboratórios se
enriquecem com as nossas mazelas e o corpo ganha motivos
de sobra para falecer.
***
Eram onze e meia da noite. O dia contabilizou grandes
confrontações. Chorei. Não a dor das perdas, mas a da
impotência diante da fragilidade humana.
Wontanara: estamos juntos?
137
Capítulo 27
Wontanara: estamos juntos?
138
27
Reclusão
co m pulsória
Nunca concordei totalmente com os procedimentos de
segurança estipulados pela ONG. Encarava as estratégias
como uma reação exagerada dentro do contexto. Sendo
brasileira e tendo participado de manifestações e greves
estudantis, não me assustava com o burburinho da cidade em
dia de passeata.
Morei em Campinas, frequentei a cidade de São Paulo por
muitos anos, trabalhei na Amazônia e viajei mundo afora.
Isto assegurava uma boa noção sobre vários tipos de risco e
me sentia tranquila diante da perspectiva de revoltas políticas,
golpes de estado, doenças fatais. Na minha crença, trilhar o
caminho do bem comum e manter a conexão com o sagrado
consolidam certa aura de proteção ao nosso redor. Quando
desapegados, dificilmente nos apavoramos com a iminência
da perda. Sendo assim, o que tem que acontecer, acontece.
Nem por isso negligencio as regras. Como diz o provérbio:
“Confia em Deus, mas amarra os cavalos”. Por isso, eu
seguia o determinado pela nossa coordenação e guardava em
segredo minha indignação pela disparidade de tratamento
Wontanara: estamos juntos?
139
entre expatriados e staff nacional nas situações de emergência.
O fato de atuar na África há muitos anos e já ter sofrido
ameaças colocava a ONG no “lugar do saber”. Eles tinham
a prerrogativa de operar dentro do princípio de “risco zero”.
Não cabia a mim questionar.
As medidas eram precisas e a cidade havia sido mapeada
de acordo com a análise do contexto político do país. A
cartografia indicava os possíveis conflitos étnicos e seus
respectivos bairros. Com base nisso, tínhamos as fronteiras
estabelecidas e, portanto, não podíamos trafegar livremente.
Aliás, jamais podíamos utilizar qualquer outro meio de
transporte que não fosse o veículo da ONG ou de alguma
outra agência parceira autorizada pela coordenação geral.
Em nossa rotina, tínhamos horários estabelecidos para
frequentar determinados pontos da cidade e normas claras
de conduta em situação de vulnerabilidade. Em dias de
prováveis manifestações, não podíamos sair do escritório.
Nos dias em que elas ocorriam de fato, não podíamos sair
de casa. Isso significava uma reclusão de dois ou três dias
seguidos, sem trabalho de campo para os expatriados. Ou,
pelo menos, para a grande maioria de nós.
Passeatas podem causar tumulto e alguma violência. Em terras
africanas é muito comum que os conflitos envolvam questões
étnicas, além das político-partidárias. As disputas de poder
entre governo e oposição acirravam as diferenças raciais.
Quando o cidadão de uma etnia era ferido, sem importar qual
o motivo, automaticamente suscitava uma resposta agressiva
da outra etnia. Assim, numa progressão quase aritmética,
no final de um confronto e nos dias subsequentes, muitas
pessoas sofriam algum tipo de ataque.
As agências e ONGs internacionais em Conakry mantinham
uma rede ágil para troca de informações. Tomávamos
conhecimento das eventuais ocorrências com antecedência,
o que permitia a cada instituição tirar o plano B da gaveta. No
nosso caso, a equipe de emergência fazia plantão no hospital,
enquanto o restante dos expatriados e do staff nacional
permanecia em reclusão.
Wontanara: estamos juntos?
140
O que me deixava incomodada era constatar a desproporção
dos recursos humanos designados para essa tarefa. Na linha
de frente, apenas dois ou três expatriados liderando o grupo,
formado por mais de dez guineenses. Mesmo nos bastidores,
essa matemática se repetia. Aquele cenário parecia injusto.
Em onze meses de missão, ficamos em reclusão um número
de vezes suficiente para provocar em mim certa indignação.
Reconheço que havia precedentes influenciando as decisões
da ONG. E eu não tentava desqualificá-las. Mas confesso
que, em vários momentos, me sentia participando de um
filme hollywoodiano sobre uma conspiração qualquer. À
medida que as pessoas da minha equipe contavam sobre a
situação em seus bairros, eu escondia a vergonha por ser uma
simples coadjuvante.
Percebia o desconforto nas entrelinhas e, por outro lado,
observava a excitação de alguns expatriados. Não raro eles
pareciam seduzidos pelo caráter de urgência, como se, a
qualquer momento, fôssemos obrigados a orquestrar uma
evacuação do país. Quando, de fato, o caos me parecia ser de
outra natureza.
Wontanara: estamos juntos?
141
Capítulo 28
Wontanara: estamos juntos?
142
28
Quase a
q ua r ta e spos a ,
eu? !
Nos últimos meses de trabalho, me concentrei em consolidar
o “clube de pacientes”. Essa era uma estratégia utilizada em
vários projetos para aumentar a adesão ao tratamento. Ela
permite que os pacientes de um mesmo grupo façam um
rodízio entre si na hora de buscar o medicamento na clínica.
Isso otimiza seus recursos.
A equipe já havia tentado implantá-la no passado. Mas sem
muito sucesso, em função de uma série de fatores. A realidade
local exigia adaptações culturais e sociais e demoramos a
ousar propô-las. Quando finalmente decidimos envolver as
associações de pessoas vivendo com o HIV/AIDS, tudo
pareceu mais viável.
Montamos um protocolo bem acessível e agendamos a
primeira reunião com alguns associados. Geralmente, nesse
tipo de evento, tudo acontece na língua local. Inclusive, são
realizadas traduções consecutivas em dois dialetos, buscando
contemplar a maioria presente. O encontro deveria acontecer
em uma das associações parceiras, na manhã de um sábado.
Coincidiria com a assembleia já agendada na mesma data, a fim
de facilitar a participação de um número maior de interessados.
Wontanara: estamos juntos?
143
Cheguei no local indicado alguns minutos antes do horário
fixado, aproveitando para observar um pouco mais a
discussão que ocorria naquele momento. Embora sem
entender o dialeto deles, eu reconhecia algumas palavras
e podia me orientar pelas expressões faciais e tom de voz.
Quando considerava necessário, pedia permissão para fazer
algum comentário.
Naquele dia, o debate era sobre os motivos que levam os
pacientes a negligenciarem sua medicação. Alguns alegavam
não dispor do dinheiro para o transporte até a clínica. Outros
se apoiavam no fato de não poderem revelar à família que
são HIV+ e, consequentemente, precisarem se esconder para
usar a medicação (o que significava, às vezes, deixar de tomála ou não respeitar os horários corretamente).
Vários fatores foram apresentados como justificativa.
Mas um deles aqueceu a discussão por mais de meia hora:
pacientes muçulmanos insistiam em praticar o jejum durante
o Ramadã. O fato de não se alimentarem entre o nascer do sol
e o crepúsculo nem seria tão problemático para os pacientes.
Contudo, eles comprometiam o horário da medicação, sendo
prejudicial para o tratamento.
Para quem nunca ouviu falar do Ramadã, sugiro uma pesquisa
mais aprofundada. De qualquer forma, acho importante abrir
um parênteses e resumir, mesmo que superficialmente, o que
aprendi com os guineenses no Ramadã de 2012.
Fiquei impressionada com o efeito do jejum no dia a dia das
pessoas. A prática é um dos cinco pilares do Islamismo e
marca um período de purificação e renovação da fé. Por vinte
e nove ou trinta dias, os seguidores voltam-se para a caridade
e reforçam os valores familiares, realizando com mais
assiduidade a leitura do Alcorão e a frequência na mesquita.
As orações são intensificadas, adicionando uma recitação
especial à noite (chamada Taraweeh). Todos são convocados
a permanecer concentrados no bem moral, mantendo a
disciplina espiritual.
O jejum (alimentar e sexual) é obrigatório a todos os
muçulmanos, após a puberdade. Mulheres em período
menstrual, lactantes, grávidas, idosos em geral e enfermos
Wontanara: estamos juntos?
144
podem se abster. Devem, porém, praticá-lo em outro
momento possível, para compensar.
Ao longo do período, observamos como o ritmo das pessoas
vai ficando, gradativamente, mais lento. Acredito que isso
ocorra por diferentes razões: o corpo debilitado (há um
emagrecimento generalizado) e a mente mais apaziguada.
Parece uma combinação implacável para reduzir a
movimentação na cidade. As pessoas saem do trabalho mais
cedo e, à noite, o silêncio prevalece. Só mesmo o chamado do
alto-falante das mesquitas para quebrar o jejum dos ouvidos.
Numa população quase inteiramente muçulmana, era
complicado sensibilizar os pacientes HIV+ a não aderirem ao
jejum. Nossa equipe usava um discurso mais contundente nas
salas de espera do hospital e unidades de saúde. Conversava
com os pacientes sobre o assunto e defendia a importância
de se manter os horários da medicação. Ressaltava que
eles poderiam tomar o medicamento e ainda assim jejuar
no restante do dia, se preferissem. Mas muitos deles
argumentavam que, se interrompessem o jejum despertariam
dúvidas nos familiares e arriscariam ter que compartilhar seu
segredo.
Naquela reunião, esse também era um dos maiores impasses.
Colocados todos os argumentos religiosos, de um lado, e
clínicos, de outro, a divergência estava longe de ser neutralizada.
Até que, em determinado momento, tomei a palavra e
comecei a refletir com eles sobre possíveis alternativas para
superar o dilema. Eu falava em francês, alguém traduzia em
soussou e em seguida em poular.
A conversa se estendeu, mas numa altura qualquer,
praticamente todos estavam convencidos de jejuar sem
desrespeitar os horários do medicamento. Apenas um senhor
ainda relutava.
Com muito cuidado, fomos evoluindo na discussão,
estabelecendo uma conexão entre a religiosidade e a
responsabilidade civil e espiritual com o corpo material. Me
senti construindo uma ponte!
Basicamente, tentei fazê-los pensar no corpo como um
Wontanara: estamos juntos?
145
veículo emprestado para abrigar a nossa alma e permitir que
ela se desloque nesse espaço material. Entre outras ideias,
enfatizei que as descobertas científicas são uma espécie de
bênçãos que nos beneficiam com tratamentos adequados.
Sendo assim, não poderíamos negar ao nosso corpo o
necessário para se manter saudável, principalmente porque
ele é apenas uma concessão divina.
Já pensava em desistir daquela batalha quando, para minha
surpresa e perplexidade dos demais, este senhor levantou
emocionado e, num tom de voz forte, declarou: “Madame,
madame... agora eu entendi bem o que a senhora disse. Madame,
a senhora e meus companheiros têm toda razão. Eu prometo
que nunca mais vou deixar de tomar meus medicamentos
corretamente!”
O gostinho de vitória seria diferente, vindo de outra pessoa.
Sendo aquele homem especificamente, a conquista significava
mais para o pessoal da associação. Há muito tempo eles
trabalhavam sobre a adesão desse senhor ao tratamento, sem
sucesso. Sua promessa, em público, era inquestionável.
Tudo teria terminado com os calorosos aplausos para ele.
Porém, fechamos o encontro com uma gargalhada gostosa.
Terminada a salva de palmas, ele ficou de pé na minha frente
e continuou, seguro de si: “Madame, madame, e tem mais: se a
senhora não for partir para o seu país, se resolver morar aqui
na Guiné, quero que seja a minha quarta esposa.”
Na contabilidade final, o saldo da reunião foi excelente: além
de conseguirmos organizar um novo “clube de pacientes”,
conquistamos a adesão de um dos pacientes mais teimosos
do grupo, e eu ainda saí de lá com um pedido de casamento!
Wontanara: estamos juntos?
146
Capítulo 29
Wontanara: estamos juntos?
147
29
Ils sont où
les noirs?
Após sete meses no projeto, tínhamos avançado
significativamente. Conseguimos reverter resultados que antes
estavam comprometendo a qualidade do nosso atendimento
e também organizar o departamento psicossocial dentro de
um novo paradigma.
Com as sessões de formação, minha equipe se sentia mais
animada e envolvida com as mudanças do percurso. Nada
que afrontasse o padrão preestabelecido pela ONG, mas eles
já estavam incorporando tudo aquilo que fazíamos. E isso
era o mais importante, pois não tinha como retroceder. Eu
esperava, pelo menos, que fossem transformações reais e não
apenas uma simples maquiagem. Mas dependeria também do
reconhecimento da administração central da ONG. E eu já
começava a me resignar com o fato.
As atividades que permitiam trabalhar com os pais das crianças
e adolescentes diagnosticados com HIV positivo haviam sido
reforçadas e os resultados, mais bem monitorados. Isto nos
rendeu o convite para compartilhar nossa experiência num
workshop na África do Sul, que reuniria projetos africanos da
ONG.
Wontanara: estamos juntos?
148
Havia enfrentado divergências internas com a coordenação
na Guiné e me sentia desanimada com essa viagem. Àquela
altura, tinha certeza de que apenas terminaria minha missão
e me desligaria dessa instituição. Assim, não via coerência
em representar nosso grupo nesse evento. Embora relutante
pelo fato de não poder levar comigo um dos membros da
minha equipe, embarquei para Cape Town.
Durante minha estadia fui tomada por uma mistura estranha
de sentimentos. Ao mesmo tempo em que estava à vontade
naquela cidade linda, sem a confusão de Conakry, eu não me
reconhecia no contexto. O trabalho intenso inviabilizou os
passeios turísticos, mas do pouco que vi, muito estranhei.
Imagens pela internet e guias de viagem não foram suficientes
para me convencer de que Johanesburgo e Cape Town estão
há anos-luz da miséria africana encontrada nos países
vizinhos. Só mesmo pessoalmente para constatar a marca da
sua colonização: trânsito tranquilo, cidade limpa, organizada,
refletindo a globalização.
Desde a chegada ao aeroporto em Johanesburgo até a minha
instalação em Cape Town, tudo se mostrava distante do que
vinha experimentando nos últimos meses de Guiné. Era
como se estivesse na Europa. A estrutura de Johanesburgo
impressionava, quando tomava como referência as cidades
de Conakry e Luanda, que eram as únicas capitais africanas
que conhecia pessoalmente, até então.
Independente de que ideologia e modo de produção social
é melhor ou pior, mais ou menos adequado, não podemos
ignorar o fato: todo colonizador impõe certo grau de
aniquilamento sobre o savoir vivre da sociedade dominada.
Embora, é claro, o aculturamento ocorre de acordo com os
protagonistas da história.
As facilidades que as sociedades ocidentais proporcionam
favorecem a qualidade de vida em muitos aspectos. As
vantagens são inúmeras e nem precisamos listá-las. Da mesma
forma, as desvantagens. Toda moeda tem duas faces.
Meus conhecimentos histórico e político são insuficientes
Wontanara: estamos juntos?
149
para entrar neste debate. A discussão ecoa há décadas, com
períodos intercalados de maior e menor tensão, geradas pelos
conflitos civis. Mas as divergências sociais não deixaram de se
reproduzir na África do Sul. A ideia de que o fim do apartheid
estabeleceu a paz no cotidiano do país me pareceu uma ilusão
globalizada que todos nós, ocidentais, gostamos de partilhar.
Procurava organizar essa confusão internamente, porém
encontrava dificuldades para apaziguar minha consciência:
“Onde estavam os africanos? Onde estavam os negros?
África do Sul ou Europa do Sul? África ocidentalizada?
Fim do apartheid? Quando mesmo? Divisão de classe social
econômica ou racismo? Diversidade cultural ou aniquilamento
das práticas tradicionais?”
Meus colegas tentaram me consolar dizendo que
Johanesburgo e Cape Town não eram representativas da África
do Sul. Afirmaram que pelo interior do país ainda é possível
encontrar hábitos culturais preservados e tambores que soam
o ritmo africano. Não era um país apenas “para inglês ver”!
Algumas pessoas defendiam a ideia de que a deterioração
cultural é insignificante perto da possibilidade de diminuir
os índices de mortalidade humana, causada pela fome e falta
de acesso à assistência em saúde. Elas argumentavam que a
socialização dos recursos garante melhor qualidade de vida,
mas, em contrapartida, requer mudanças drásticas no modo
de vida de uma sociedade.
Concordar com essa lógica era penoso para mim. Pensava na
relatividade dos fatos e na lei de causa e efeito. Compreendia
a necessidade de mudar a realidade “precária” de várias
sociedades. Reconhecia o “avanço” de outras e a possibilidade
de compartilhamento. Mas questionava o “preço” dessa
troca. Uma parte do nosso planeta permanece em guerra por
causa das diferenças políticas, étnicas, religiosas. A disputa de
poder é real.
Talvez eu estivesse sendo simplista demais. Mas o que vi (e
não gostei) foi a ainda presente segregação dos bairros em
função da cor da pele. Prerrogativa da África do Sul?
Wontanara: estamos juntos?
150
Capítulo 30
Wontanara: estamos juntos?
151
30
PARALISADA
P E LO PARADOXO
Onze meses se passaram e eu consegui cumprir todas as metas
de trabalho. Várias providências foram tomadas para garantir
a continuidade da gestão da minha equipe e me restava
apenas torcer para que os gestores da ONG apoiassem, de
fato, o novo coordenador. Concluí a missão, levando amigos
no coração e deixando um pouco de mim em solo africano.
Voltei da Guiné com a certeza de que deveria ter ido. Sentindo
uma leveza na alma. Mas passei os meses subsequentes
tentando digerir aquela realidade em doses homeopáticas. Os
ingredientes desse prato exigem consumo lento: realização
pessoal e culpa; solidariedade e egoísmo; amor e desamor.
Tudo com sabor intenso.
Posso afirmar que foi uma das experiências mais
significativas na minha vida profissional e pessoal. Conheci
pessoas surpreendentes enquanto vivia situações que me
tiraram a ilusão de “Alice no país das maravilhas”. Assim,
minha consciência continuava sem repouso. Depois do
encerramento do meu contrato, tentava diluir as decepções
e guardar a gratidão pela oportunidade concedida. Porém,
Wontanara: estamos juntos?
152
assistindo às propagandas de diferentes ONGs na televisão,
certo dia, me debulhei em lágrimas com o paradoxo.
De um lado, a constatação do ainda inevitável combate nesse
mundo: fome, antagonismo, miséria, descaso social e político.
Do outro, a promessa de salvar pessoas com apenas um real
por dia. Imaginem! Parece a solução, mas não é. À medida
em que as lágrimas escorriam, eu pensava: “Eles estão lá, no
meio dos conflitos civis, das epidemias, da exclusão total,
fazendo alguma coisa para consertar as injustiças das nossas
sociedades. E eu, aqui, assistindo sua propaganda na televisão,
lutando contra a lembrança dos embates institucionais.”
Várias vezes me disseram que organizações perfeitas existem
somente no papel e trabalhar num único projeto é insuficiente
para conhecermos a instituição. E eu concordo! Deslizes
administrativos, brigas internas, disputa de poder, desvio de
dinheiro e até problemas éticos, são frequentes. Inclusive
fazem parte da realidade de ONGs consideradas referência
internacional.
Sugeriram que eu passasse a pensar: “Bom, pelo menos eles
estão fazendo a diferença para milhares de pessoas.” Eu me
esforcei, mas o ideal de humanitarismo que cultivei durante
anos desmoronou.
Trabalhei em diferentes ONGs aqui no Brasil. Todas pequenas,
porém éticas. Com alguma dificuldade administrativa, mas
transparentes em seus propósitos. Tive que ir ao outro lado
do continente para aprender que, nesse campo humanitário,
as ideologias dominantes são muito presentes, também.
Embora estrategicamente maquiadas de solidariedade.
Chorei muito no retorno à pátria amada porque, afinal, eu
queria estar lá, fazendo alguma coisa. Onde quer que fosse
esse “lá”. E não na frente daquelas propagandas, remoendo
as contradições do terceiro setor.
Nesta minha experiência constatei que grande parte das
pessoas apenas optam pelo trabalho por ser remunerado.
Trata-se de um emprego, um contrato como outro qualquer.
Observei que raramente as intervenções são planejadas para
Wontanara: estamos juntos?
153
motivar a autonomia da população atendida. E que a gestão
dos recursos, muitas vezes, é inadequada. Aprendi que a
política de uma organização pode ser cuidadosa em vários
aspectos, mas ignorar a Ética em outros. Enfim, nenhuma
ONG está imune.
Cheguei à conclusão de que é mais viável investirmos naquilo
que está próximo de nós. Assim, podemos acompanhar o
desenvolvimento das ações e avaliar de perto o resultado do
trabalho.
Atravessemos a rua e façamos a doação do nosso “um real
por dia” àquela instituição que conhecemos pessoalmente.
E se ainda não conhecemos nenhuma, podemos visitar
a realidade social do nosso entorno para encontrá-las.
Vamos nos certificar de que os recursos sejam devidamente
aplicados. Não nos iludamos com depoimentos e imagens
bem construídas na mídia. Precisamos verificar os fatos, os
dados da realidade.
Eu sei. Eles estão lá, fazendo alguma coisa. E eu estou aqui de
volta, chorando diante das propagandas. Por pouco tempo. O
necessário para perceber que devo compartilhar, sem medo
nem constrangimento, minha experiência africana. Não para
delatar uma situação, mas para testemunhar que a vida lá fora
é apenas um reflexo da vida dentro de cada um de nós. E, se
queremos mudar o mundo com nossas ações humanitárias,
temos que salvar o humano que nos habita, em primeiro
lugar.
Acreditar ser possível contornar a engrenagem capitalista e
selvagem, que determina como o mundo gira, é ingenuidade
da nossa parte. Mas tenho certeza de que devemos, todos,
agir para resgatar a humanidade do limbo que criamos com
as nossas ideologias passageiras. Não tenho fórmulas. Fiquei
sem respostas. Guardei somente as esperanças!
Wontanara: estamos juntos?
154
Wontanara: estamos juntos?
155
Capítulo 31
Wontanara: estamos juntos?
156
31
FINA LIZANDO,
à som b ra
d o i d ea l is m o
Um planeta em equilíbrio, harmonia familiar, fé inabalável,
valores de vida convergentes, crenças respeitadas, hábitos
culturais compreendidos, direitos sociais integrados, direitos
humanos realmente universais.
Um mundo melhor, uma sociedade justa e igualitária,
antagonismo econômico inexistente, vida com qualidade,
saúde e educação para todos, acesso livre aos serviços,
transporte eficiente e suficiente, segurança pública e pessoal.
Um país em paz, reserva natural protegida e preservada,
economia
solidária,
desenvolvimento
sustentável,
oportunidade de trabalho, mão de obra qualificada, estradas
boas, pedágio livre, trânsito organizado, cidade limpa, ficha
limpa.
Um governo transparente, uma política coerente, democracia
garantida, direitos civis sempre vigorando, deveres cumpridos,
responsabilidade e participação social, imprensa livre e
comprometida com a verdade, ativismo coletivo, cooperação
internacional.
Wontanara: estamos juntos?
157
Um projeto humanitário, trabalho voluntário, promoção
social, interdisciplinaridade, transdisciplinaridade, conhecimento
compartilhado, divisas sem fronteiras, ética na prática
profissional, amor e dedicação como ferramentas de trabalho.
Quem dera um planeta orientado pela consciência de que
somos seres espirituais conectados por um único fio. Talvez
nos esforçássemos mais para alinhar nossos diferentes
padrões vibratórios, colocando à disposição nossas energias
de amor a fim de criar um mundo equilibrado. E que todos
os cidadãos compreendessem seu protagonismo espiritual.
Quem dera esse mundo pudesse ser cuidado com simplicidade,
substituindo os jogos de interesse, o favoritismo, os conflitos
ideológicos, a dominação insana. Talvez pudéssemos manter
sociedades livres e integradas a uma dinâmica universal. E
que todos os cidadãos compreendessem sua função social.
Quem dera todos os países tivessem suas fronteiras abertas,
o trânsito livre para a troca de experiências. Que o único
objetivo fosse compartilhar conhecimentos para aprimorar
a coletividade humana. E que todos os cidadãos “falassem a
língua dos anjos, e que tivessem amor no coração.”
Quem dera um governo que se preocupasse realmente em
organizar o processo social à luz dos princípios universais.
Talvez tivéssemos indicadores econômicos que pudessem
favorecer os índices de desenvolvimento humano. Quem
dera fossemos todos regidos por uma política orgânica,
representativa e participativa. E que todos os cidadãos
fossem, de fato, Cidadãos.
Quem dera todo esse idealismo fosse realidade e não
precisássemos inventar projetos sociais para “salvar a
humanidade”. Mas, quem dera os projetos que vemos
implantados ali, aqui, em todos os lugares, fossem administrados
realmente com responsabilidade e competência. Não haveria
fome, não haveria abandono, não haveria negligência, não
haveria ganância, não haveria abuso, não haveria violência, não
haveria espectador. E que todos os cidadãos contribuíssem
para o aprimoramento planetário.
Wontanara: estamos juntos?
158
Quem dera saíssemos da sombra do idealismo, onde
repousamos tranquilamente nossas consciências, crentes
de que o pouco que fazemos é o máximo que podemos. E
que cada um de nós, cidadãos, pudesse acelerar um pouco
mais o próprio passo, rumo ao ponto de encontro comum: o
sagrado universal.
Wontanara!
Wontanara: estamos juntos?
159
AGRADECIMENTOS
Equipe “Chic Choc”, gratidão eterna. Vocês são pérolas que emblezam
a alma e permanecem minha família africana: Tidiane Sekou Toure,
Aboubacar Camara, Bella Mamadou Barry, Bountou Kouyate, Djouldé
Mariama Baldé, Fanta Diané, Mabinty Toure, Mahawa Sylla, Maimouna
Diallo, Marie Sagno, Mohamed Saliou Sylla, Mohamed Taibou Diallo,
Oumar Deen Alpha Diallo, Oumar Sowprano, Saliou Amadou Diallo,
Saranté Tamba Millimouno. Wontanara, meus queridos!
Agradeço também a todos os funcionários do projeto Guiné, sem
exceção, mas em especial ao Dr. Bah, pelo exemplo de delicadeza
humana. Compartilhar os dias com vocês tornou minha jornada muito
mais prazerosa e feliz.
Gratíssima aos parceiros nas unidades de saúde em Conakry, em especial
à Dra Assiatou Diallo, Dr Soumah Abou Aissata e aos mediadores:
Sané Sorel Soriba, Boubacar Alpha Diallo, Sidibé Aissatou, Kadiatou
Camara, Fatoumata Binta Baldé, Djouldé Diallo, Fataoumata Tounkara,
Fatoumata Binta Sylla, Mme Lawouratou, Fatoumata Dioubaté, M’Balia
Soumah, Hawa Baldé, Tiguindanké Touré. Vocês são demais!
Alguns amigos marcaram minha jornada africana pelo companheirismo,
apoio e afeto: Nathalie Cartier, Frédéric Akpome, Lysanne Lafetière,
Seleman Nizeyimana, Aoua Bengaly, Delphine Collin, Ileana Petrini,
Fabrizio Andriolo, Caroline de Cramer, Vincent Onclinx, Jean-Sebastien
Lerolle, Juliane Raoul, Claude Kiangala.
Pablo Ribeiro, obrigada pelo apoio incondicional e por abrir os atalhos
do meu ser, inovando meu mundo. Simples assim!
Aos amigos da tribo: Guilherme Valle, pelas críticas que tocaram meu
coração, sugestões, incentivo e prefácio escrito com a alma; e Luciene
Siqueira, pela sugestão do título e pela garimpagem final do manuscrito,
feita com carinho e dedicação. Vocês também são família!
Wontanara: estamos juntos?
160
Fabio Biolchini, Leticia Passowski, Lysanne Lafetière e Juliane Raoul:
obrigada por compartilharem comigo o olhar sobre a Guiné, através das
suas belíssimas fotos.
Ao Cairo Trindade, pela revisão inicial dos textos e pelos encontros
literários em sua oficina abençoada: a varanda mais poética de
Copacabana!
Equipe da Wedologos: gratíssima pelo acolhimento e pela criatividade
na editoração dos livros. Vocês me conquistaram!
Maria Luisa e Alexis: A versão em francês cruzará o oceano. Merci
beaucoup!
Finalmente, mas não menos valioso, gratidão à minha mentora espiritual,
Juliana, que sempre zelou por mim, sem nenhum julgamento. Você é luz
no meu caminho terreno, esperança para a minha alma! E, ao Irmão
Joaquim, por suas orientações e exemplo claro de que o amor transforma.
Wontanara: estamos juntos?
161
CRÉDITOS - fOTOGRAFIAS
Fabio Biolchini
PÁGINAS:
Capa, 7 , 13, 20, 25, 45, 48, 58, 80, 90, 91, 93, 100, 107,
110, 111, 114 (foto 1), 123 , 127, 137, 146, 155, 161, 164.
Letícia Passowski
PÁGINAS:
2, 17, 21, 33, 37, 41, 50, 56, 61, 66, 70, 76, 81, 86, 94,
98, 104, 108, 112, 119, 123, 133, 138, 142, 147, 151, 156.
Lysanne Lafetière
PÁGINAS:
59, 60, 114 (foto 2).
Juliane Raoul
PÁGINAS:
122.
Jessica de Menezes
PÁGINAS:
24, 29.
freepik.com
PÁGINAS:
128, 155.
Wontanara: estamos juntos?
164

Documentos relacionados