ii seminário fluminense de sociologia - PPGS

Transcrição

ii seminário fluminense de sociologia - PPGS
II SEMINÁRIO FLUMINENSE
DE SOCIOLOGIA
Caderno de Anais Niterói Outubro de 2013
Olhares sociológicos sobre
os movimentos sociais na
atualidade.
Universidade Federal Fluminense - Programa de pós Graduação em Sociologia
PPGS
S471
Seminário Fluminense de Sociologia : olhares sociológicos na atualidade (2. : 2013 : Niterói, RJ).
II Seminário Fluminense de Sociologia: olhares sociológicos na atualidade, 8 a 10 de Outubro
de 2013 [recurso eletrônico]. — Niterói, RJ : Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal Fluminense, 2013. 1000 p.
Seminário realizado pelos alunos do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da
Universidade Federal Fluminense, 2013, Campus Gragoatá, Niterói, RJ.
ISSN: 0000000
1. Sociologia. 2. Movimentos Sociais. I. Pós-Graduação em Sociologia. II. Título.
CDD 316.485.22
REALIZAÇÃO
Alunos do Programa de Pós Graduação em Sociologia PPGS-UFF
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
Reitor: Roberto Salles
Vice-Reitor: Sidney Luiz de Matos Mello
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
Diretor: Théo Lobarinhas Piñeiro
Vice-Diretor: Napoleão Miranda
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SOCIOLOGIA
Coordenador: Jair de Souza Ramos
Vice-Coordenadora: Lígia Maria de Souza Dabul
COMISSÃO ORGANIZADORA
Docentes:
Jair de Souza Ramos – Gestor
Sidnei Clemente Peres – Coordenador
Discentes:
Ana Carolina Radd Lima
Anderson Santos Silva
Carla Silva Canuto
Clarissa Moreira Quelhas
Claudia Mariane Ribeiro de Souza
Frederico Uhl Jardim
Gessiane Ambrósio Nazario
Isla Antonello Terrana de Melo Bezerra Brito
Jorge Marcos Avelar Silva
Jorge Pinto Medeiros Neto
Keila Meireles dos Santos
Leila Maribondo Barboza
Mariana Passos Dutra
Marla Granados Belarmino
Mira Lini Marcosin Caetano
Simone Pontes dos Santos
PROGRAMAÇÃO
Dia 08/10/2013 – Terça-feira:
15h – credenciamento
16h – Conferencia de abertura
19h – Mesa de abertura: “Mobilização Popular e criminalização dos movimentos
sociais”
Mediadora: Profa. Marília Medeiros
22h – TERMINO DAS ATIVIDADES
Dia 09/10/2013 – Quarta-feira
13h – Apresentação de trabalhos simultâneas. (duração 2h)
GT1- A questão da Identidade: Gênero, raça e etnicidade na América Latina.
Prof. debatedor: Sidnei Peres
GT2 – As relações de trabalho na contemporaneidade.
Profa. Debatedora: Marília Mardeiros
15h – coffee- break
16h – Apresentação de trabalhos simultâneas.
GT3 – Sociologia da Educação e o profissional em Ciências Sociais no ensino de
Sociologia na educação básica.
Prof. Debatedor: Profa Alessandra Barreto Siqueira e Profº Luiz Cláudio Lourenço.
GT4 – Sociologia Urbana
Prof. Debatedor. Felipe Berocan
GT5 – Novos meios de organização política: ciber espaço e ciberativismo. Prof.
Debatedor: Jair Ramos
19h – Mesa de debate: O oficio do/da cientista social em perspectiva.
Prof. Mediador: Sidnei Peres
22h – TÉRMINO DAS ATIVIDADES
Dia 10/10/2013 – quinta feira
GTs: 14h as 18h
14h – Apresentação de trabalhos simultâneas.
GT6 –Arte e sociedade: pesquisas recentes
Profa. Debatedora Ligia Dabul
GT7 – O rural e o ambiental no Brasil contemporâneo
Prof. Debatedor Walter Lúcio de Oliveira
19h – Mesa de Encerramento: O desenvolvimento como chave interpretativa do
Brasil”
Mediador: Alessandro Andre Leme
21:00 – Agradecimentos Finais
Grupos de Trabalho
GT1: Gênero, Raça e Etnicidades Diversas
Os cientistas sociais vêm descrevendo e analisando as novas modalidades de dominação e emancipação sociais, baseadas em projetos de intervenção sobre as motivações éticas da conduta, ou seja,
sobre valores e significados. As condições institucionais de controle e contestação colocam em
evidência as lutas simbólicas pela classificação do mundo social, mesmo quando estão em jogo
demandas e interesses materiais inerentes aos princípios hegemônicos de distribuição de recursos,
bens e serviços. Entram em cena novos atores políticos que conferem visibilidade na esfera pública
a percepções diversas das privações e das necessidades, traduzidas na linguagem dos direitos humanos e da justiça social. As disputas no campo da produção e circulação de novos consensos assumem relevo nos esforços de intervenção em circuitos de decisão e formulação de políticas públicas,
nos quais são negociados e concorrem os objetivos estratégicos de agentes e agencias do Estado, do
mercado e da sociedade civil. Surgem novas formas de ativismo no bojo de movimentos e políticas
de identidade. Neste sentido, este GT remete a estudos graduados e pós-graduados sobre as lutas e
processos identitários que envolvem demandas e políticas de reconhecimento ligadas a experiências
de degradação do Self e inversão de estigmas de gênero (mulheres, gays, lésbicas bissexuais e
transexuais), de raça e de etnicidades diversas (indígenas, quilombolas, etc.).
Prof. Dr. Sidnei Peres
Discentes PPGS: Mariana Passos; Gessiane Ambrosio.
GT2: Mudanças nas Relações de Trabalho e Desenvolvimento no Brasil Contemporâneo
O tema central deste GT são as mudanças nas relações entre capital e trabalho no contexto da crise
global do sistema e do processo de desenvolvimento do país. Transformações significativas estão
sendo operadas na estrutura produtiva, tendo implicações para os trabalhadores considerados em
sua heterogeneidade. Neste cenário torna-se importante também analisar as mudanças que estão
ocorrendo na classe trabalhadora com o surgimento do “novo precariado”, como resultado do processo de flexibilização da economia brasileira.
Profa. Dra. Marília Medeiros
Discentes PPGS: Clarissa Quelhas e Mira Caetano
GT3: Sociologia da Educação e o profissional em Ciências Sociais no ensino de
Sociologia no ensino médio.
Neste grupo de trabalhos, visamos discutir de maneira ampla e diversificada trabalhos que mostrem
a relevância (e atualidade) dos seguintes campos de trabalhos sociológicos: a Sociologia da Educação e questões relativas à atuação do profissional em Ciências Sociais no ensino da educação básica.
Desse modo, estaremos aceitando trabalhos de pesquisadores/estudantes universitários e trabalhos
de profissionais/pesquisadores atuantes nas redes escolares da Educação básica. Priorizaremos, sobretudo, trabalhos com densidade: seja teórica, empírica ou prática.
Profa. Dra.: Alessandra Barreto Siqueira.
Prof. Dr.: Luiz Cláudio Lourenço
Discentes PPGS: Anderson Silva, Simone Pontes e Fred Jardim.
GT4: Sociologia Urbana
O GT de Sociologia Urbana tem como objetivo congregar, numa interlocução profícua, jovens
pesquisadores e pesquisadoras que vem se dedicando à investigação sociológica nos contextos urbanos e, em especial, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro, formada por 19 municípios e
considerada a 6a.maior metrópole das Américas em número de habitantes. Nesse sentido, o GT se
propõe a reunir e discutir pesquisas de caráter empírico e abordagens sociológicas sobre o espaço
urbano, no espaço urbano e voltadas para o espaço urbano. O GT tem como horizonte a complexidade dos temas evocados pela obra notável do sociólogo francês Henri Lefebvre, em temas como a
urbanidade, a vida cotidiana na modernidade, os modos de habitar, o espaço público, as mobilizações e os conflitos urbanos, a expansão territorial, a relação centro e periferia e suas manifestações
socioculturais, as reformas e intervenções urbanísticas e o acesso aos lugares, configurando, enfim,
o que autor chamou de “o direito à cidade”.
Prof. Dr.: Felipe Berocan
Discente PPGS: Keila Meireles e Isla Antonello Terrana de Melo Bezerra Brito
GT5: Novos meios de organização política: ciberespaço e ciberativismo
O crescimento exponencial das tecnologias digitais de comunicação e informação neste século tornou possível a constituição de um espaço de comunicação, a internet, no qual tem proliferado de
forma intensa, espaços sociais e formas de sociabilidade, com impactos importantes nas lutas políticas e na produção de novas formas de subjetivação. Esse GT é dedicado à apresentação de pesquisas cujo campo de observação seja constituído na internet, ou mesmo que tomem por objeto de
reflexão a agência das tecnologias digitais de comunicação.
Prof. Dr.: Jair Ramos
Discente PPGS: Ana Carolina Radd
GT6: Arte e sociedade: pesquisas recentesDebatedora:Sabrina Marques Parracho
Sant´Anna
A arte há muito se impôs como área de interesse das ciências sociais em torno de suas tantas modalidades e configurações. Por meio do estudo da arte o aparato conceitual das ciências sociais vem
sendo acionado e renovado, assim como as dimensões importantes da vida social e suas pesquisas
sondadas – como a mudança onde encontramos permanências, a extensividade do fenômeno artístico ao lado das especificidades das experiências dos atores sociais envolvidos, e a impossibilidade de
recorte exclusivo ou definitivo dos nossos objetos de reflexão. Nesse GT pretendemos agregar
resultados e desafios colocados em pesquisas sobre arte conduzidas por estudantes de graduação e
pós-graduação.
Prof Dra. Lígia Maria de Souza Dabul
Ms. Bianca S. Pires
Discente PPGS: Leila Maribondo Barboza
GT7: O rural e o ambiental no Brasil contemporâneo
Visamos com este GT proporcionar um espaço de discussão acadêmica acerca de pesquisas relacionadas ao rural, ao ambiental ou que estejam na intersecção dessas duas temáticas. É notório que os
processos sociais subjacentes ao rural e ao ambiental possuem significativas interfaces que remontam, inclusive, à própria origem da sociologia ambiental que esteve fortemente influenciada pelos
sociólogos rurais. Desde as consagradas pesquisas acerca da modernização da agricultura e a forte
alteração do ambiente rural produzidas especialmente a partir da década de 1950 até as atuais pesquisas acerca das biotecnologias, agrocombustíveis, agroecologia, etc, o rural e o ambiental são
temáticas que se apresentam intrinsecamente imbricadas. Nesse sentido, uma vez contemplados
nesse amplo leque temático, iremos acolher proposições que apresentem resultados conclusivos ou
preliminares de pesquisas ao redor das quais possamos estabelecer profícuos debates.
Prof. Dr. Valter Lúcio de Oliveira
Discente PPGS: Leila Maribondo Barboza e Jorge Marcos Avelar
GT1: GÊNERO, RAÇA E
ETNICIDADES DIVERSAS
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DESACREDITADOS E DESACREDITÁVEIS
Habitus e desvios em praias gays do Rio de Janeiro
Alexandre Gaspari
Jornalista pela Universidade Federal Fluminense (UFF),
mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS) da
Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
[email protected]
Resumo
Este artigo traz as primeiras observações da pesquisa cujo campo de estudo são trechos de praias da cidade
do Rio de Janeiro considerados “amigáveis” aos gays. A partir do trabalho de campo, com observação
participante e a obtenção de histórias orais e histórias de vida de homossexuais do sexo masculino que
frequentam essas praias, a pesquisa pretende apontar a multiplicidade identitária que se esconde sob a categoria
“homossexual” e as tensões que se estabelecem entre essas identidades, onde o que está em jogo é o capital
simbólico do que é ser gay.
Palavras-chave: Homossexualidade, Corporalidade, Identidade, Subjetividade, Territorialidade
INTRODUÇÃO
A praia é uma das marcas identitárias mais pronunciadas e difundidas da cidade do Rio de Janeiro.
Segundo o site da Empresa de Turismo do Município do Rio de Janeiro – Riotur (2009), a cidade
dispõe de 246,22 km de litoral, banhado pelas baías de Guanabara e de Sepetiba e pelo Oceano
Atlântico. Ainda que Ventura (1994) tenha exposto as mazelas de uma “cidade partida”, um Rio
desigual social e economicamente, as praias cariocas são, no imaginário não apenas da cidade, como
do Brasil e do mundo, tidas como um espaço “democrático” “por natureza”, espaço relacional e de
socialização de todas as classes.
De modo geral, a praia iguala todos os indivíduos numa experiência única: é o locus público da
exposição corporal em seu grau máximo e de todos os aspectos relacionais ligados a essa exposição.
Esse aspecto marca o caráter único da experiência da praia, já que essa é uma
espécie de sociabilidade que se traduz em corpos em situação de extrema intimidade
entre amigos, parentes e desconhecidos. A praia, dessa forma, é uma experiência
coletiva que une o máximo de descontração com o máximo de estranheza, realizandose num espaço aberto, público, gratuito (FARIAS, 2002, p. 264).
Conforme Farias (2002, p. 263), “parece que há um ‘consenso sensível’ sobre o tipo de experiência
que é ir à praia no Rio de Janeiro (grifo meu)”. Este imaginário é reforçado sistematicamente por
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ações midiáticas, estimuladas por variadas esferas do poder político como uma das formas de promover
a cidade.
Tal construção transforma as praias em uma espécie de “Rio ideal”, unificado. No entanto, este
“espaço de socialização” expõe constantemente suas clivagens. As territorialidades das praias cariocas
se formam de diversas maneiras. Elas são ditadas tanto por proximidade – frequentar a praia mais
próxima de casa e/ou do hotel no qual se está hospedado – quanto por fatores socioeconômicos e de
infraestrutura urbana – frequentar praias não servidas por transporte coletivo, como Reserva, Prainha
e Grumari, na Zona Oeste da cidade, costuma ser um “status”, diferenciando o “nós-que-podemos”
dos “outros-que-não-podem”, enquanto frequentar determinados trechos de praias próximos de
estações de metrô ou de paradas finais de ônibus, como ocorre em áreas de Copacabana e Ipanema,
na Zona Sul, é evitado por quem desqualifica os “não-locais” como “suburbanos”, “favelados”,
“farofeiros” e outros termos depreciativos. Tanto por padrões estéticos e culturais – a “galera”
bonita e “descolada” do Posto 9, em Ipanema, é um exemplo “clássico” –, por pertencimento a
regiões muitas vezes localizadas a dezenas de quilômetros de distância da praia – o “point’ da “galera”
da comunidade X, ou da comunidade Y – e mesmo por orientação sexual – os “points” gays da
Bolsa, em Copacabana, da Farme, em Ipanema, da Reserva, na Barra da Tijuca, e em Abricó, praia
de nudismo próxima a Grumari.
Assim, se num aspecto macrossocial as praias cariocas são a “experiência do corpo” – de qualquer
corpo –, essa experiência é determinada por fragmentações, que se refletem como um “dever ser”
desses corpos, tanto em nível físico quanto comportamental. Se por um lado são espaços públicos,
as praias cariocas, por outro lado, são o palco comum das múltiplas identidades que trafegam na
“cidade partida”. Dessa forma, conforme Bourdieu (2008), nelas se formam campos diversos, os
quais criam habitus – ou são criados por estes.
O habitus é esse princípio gerador e unificador que retraduz as características
intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em
um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas. Assim como as
posições das quais são o produto, os habitus são diferenciados, mas também são
diferenciadores. Distintos, distinguidos, eles são também operadores de distinções:
põem em prática princípios de diferenciação diferentes ou utilizam diferenciadamente
os princípios de diferenciação comuns (BOURDIEU, 2008, pp. 21-22)
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E dentro desses campos ainda é possível encontrar novas clivagens, que geram novos campos e
novos habitus. Um exemplo disso pode ser obtido nas praias gays da cidade, foco deste artigo, que
vai tratar de duas delas: a Bolsa, em Copacabana, e a Farme, em Ipanema. Se esses locais já são uma
espécie de “concessão” ao desvio – afinal, são “enclaves” homossexuais em praias que, por oposição
identitária, são por convenção heterossexuais –, dentro desses “enclaves” verificam-se novas
territorialidades, marcadas por variadas identidades, estabelecendo-se assim, na definição de Becker
(2012), novos “outsiders” entre “outsiders”, e com eles novas relações de hierarquia e poder. Da
mesma forma, tomando a noção de estigma de Goffman (2004), se os gays são “uma discrepância
específica entre a identidade social virtual e a identidade social real” (GOFFMAN, 2004, p. 6),
considerando que a identidade social virtual é heterossexual, entre os gays do sexo masculino que
frequentam essas praias criam-se novos estigmas.
DO RELAPSO À ESPÉCIE: O INDIVÍDUO CRIA O COLETIVO
Antes de analisar os “estabelecidos” e os “outsiders”, tomando a antítese usada por Elias e Scotson
(2000) em seu estudo sobre a fictícia cidade inglesa de Winston Parva, e seus habitus na Bolsa e na
Farme, é necessário situar o momento histórico em que a homossexualidade surge como “categoria”.
Isso se dá a partir da identificação do indivíduo como um homossexual. Ou seja, foi a partir do
individual que se formou uma categoria coletiva.
No século XVIII, segundo Foucault, três grandes códigos explícitos regiam as práticas sexuais:
direito canônico, pastoral cristã e lei civil. E todos estavam centrados nas relações matrimoniais.
Assim, “quebrar as leis do casamento ou procurar prazeres estranhos equivalia de qualquer maneira
a uma condenação” (FOUCAULT, 1994, p. 42). Nesse sentido, os tribunais “podiam condenar
igualmente a homossexualidade e a infidelidade, o casamento sem consentimento dos pais ou a
bestialidade” (Ibid, 1994, p. 42).
Contudo, a partir do século XIX, inicia-se uma nova “caça às sexualidades periféricas”, que “acarreta
uma incorporação nas perversões e uma especificação nova dos indivíduos” (FOUCAULT, 1994,
p. 46). Dessa forma
O homossexual do século XIX tornou-se um personagem: um passado, uma história
e uma infância, um caráter, uma forma de vida; e uma morfologia também, com
uma anatomia indiscreta e talvez uma fisiologia misteriosa. Nada do que ele é
totalmente escapa à sua sexualidade. [...] Não se deve esquecer que a categoria
psicológica, psiquiátrica, médica, da homossexualidade se constituiu desde o
momento em que a caracterizaram – o famoso artigo de Westphal, em 1870, sobre
as ‘sensações sexuais contrárias’ pode valer como data de nascimento, menos por
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um tipo de relações sexuais do que por uma certa qualidade de sensibilidade sexual,
uma certa maneira de inverter em si mesmo o masculino e o feminino. [...] O
sodomita era um relapso, o homossexual agora é uma espécie (FOUCAULT, 1994,
pp. 46-47)
Assim, ressaltam Simões e Facchini:
A emergente sexologia do século XIX devotou atenção especial ao desejo orientado
para pessoas do mesmo sexo, contribuindo assim para definir o homossexual como
um tipo específico de pessoa, dotado de constituição corporal e disposições
psicológicas singulares (SIMÕES e FACCHINI, 2009, p. 38).
Da “biologização” e “psicologização” do indivíduo homossexual, iniciadas no século XIX e motivadas
pela vontade de saber e de poder sobre a “categoria” homossexualidade, segundo Foucault (1994),
parte-se, nas décadas de 10 e 20 do século XX, para a homossexualidade como “movimento social”,
de grupo: “o movimento por reforma sexual alcançou o máximo de repercussão na Europa” (SIMÕES
E FACCHINI, 2008, p. 40). A partir dos anos 30, porém, com a ascensão do nazifacismo, esse
ativismo perdeu fôlego. Alemanha e Rússia perseguem homossexuais, com punições legais e, no
caso alemão, envio aos campos de concentração.
No fim dos anos 40, contudo, surge uma nova onda de lutas, nos Estados Unidos:
Em 1948, Alfred Kinsey publicava o primeiro de seus famosos ‘relatórios’ sobre
comportamento sexual, no qual demonstrava que as experiências homossexuais
tinham incidência muito mais frequente e não estavam restritas a um segmento
bem definido da população2. Nesse mesmo ano, articulou-se um núcleo de ativistas
que viria a fundar em Los Angeles, em 1951, a Mattachine Society, um grupo de
homens e mulheres homossexuais com características de sociedade secreta [...]
Agrupamentos similares foram organizados no período pós-guerra na Europa [...]
Ainda voltados à luta pela descriminalização das relações homossexuais, esses
grupos tendiam a adota uma linha de atuação moderada e cautelosa (SIMÕES e
FACCHINI, 2009, p. 43)
Os anos 50 e 60 trazem uma feição mais radical do movimento homossexual, em meio a um clima de
politização crescente da liberdade sexual. A revolta de homossexuais contra a repressão policial no
bar Stonewall Inn, em Nova York, em 28 de junho de 1969, tornou-se o principal marco dessa virada
radical. “Os protestos de Stonewall passaram a assinalar simbolicamente a emergência de um Poder
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Gay, e a data passou a ser posteriormente consagrada como o ‘Dia do Orgulho Gay e Lésbico’”
(SIMÕES E FACCHINI, 2008, p. 45).
A partir dos anos 1970, contudo, simultaneamente à ampliação do ativismo do movimento gay e
lésbico em busca de direitos políticos, aumentaram também as tensões dentro do próprio movimento.
A “valorização de uma sexualidade viril, agressiva, materialista e juvenil levou à estigmatização dos
afeminados, maduros e velhos, e também tensionou as conexões existenciais e políticas dos gays
com as lésbicas e transgêneros” (SIMÕES E FACCHINI, 2008, pp. 47-48). Embora o movimento
LGBT3 contemporâneo, considerando-o um movimento político, tente abarcar essas múltiplas
identidades em um discurso único de reconhecimento, ele “se defronta ainda com o desafio de
renovar as conexões entre os diversos mundos no interior do próprio universo LGBT” (Ibid, 2008,
p. 158).
Assim, o que se vê é o que Hall (2007) chama de “jogo de identidades”, característica própria da
identidade na pós-modernidade, em contraposição ao sujeito do Iluminismo dos séculos XVII e
XVIII e ao sujeito sociológico do século XIX e primeira metade do século XX. Tomando como
objeto de análise homossexuais do sexo masculino, esse jogo pode ser observado empiricamente
nos processos relacionais nas praias gays do Rio de Janeiro. A “identidade gay” se fragmenta – ou
se “descentra”, conforme Hall –, criando assim multi-identidades, ou diferenças.
Uma vez que a identidade muda de acordo com a forma como o sujeito é interpelado
ou representado, a identificação não é automática, mas pode ser ganhada ou perdida.
[...] Esse processo é, às vezes, descrito como constituindo uma mudança de uma
política de identidade (de classe) para uma política de diferença (HALL, 2007, p.
21).
BOLSA E FARME: OS CAMPOS E SEUS HABITUS
A Bolsa de Valores, ou apenas Bolsa, é um trecho da praia de Copacabana com cerca de 250 metros
de extensão situado nas imediações do hotel Copacabana Palace, um dos mais antigos e tradicionais
do Rio de Janeiro. Sabe-se que se trata de uma praia gay porque uma das barracas de comidas e
bebidas instaladas no local exibe a bandeira do arco-íris, marca simbólica característica do movimento
LGBT.
Segundo Figari (2007), a Bolsa surgiu nos anos 50 do século XX. Na época, este era o “point”
principal para reunião dos grupos gays de praia, um dos “espaços transicionais, entre o público/
privado e o moral/devasso (FIGARI, 2007, p. 394)”. E há uma explicação para o seu nome: “Era
denominada ‘Bolsa de Valores’ pois constituía o ponto privilegiado para ver e ser visto, de algum
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modo “cotar-se” no “mercado” dos corpos varonis que se exibiam nessa parte da praia de Copacabana
(Ibid, 2007, p. 550, nota de rodapé 11)”.
O site “Praias do Rio de Janeiro” acrescenta mais detalhes sobre a Bolsa.
Esse espaço existe desde meados da década de 50 e é local de encontros e, quem
sabe, namoro, frequentado principalmente por gays, travestis e transexuais.
Conhecido como a Bolsa de Valores, ou simplesmente a Bolsa. O lugar foi apelidado
assim, desde os anos 50, pois, na época, era local dos encontros e flertes dos gays,
travestis e michês. Estes mostravam seus corpos para os turistas hospedados no
tradicionalíssimo e elegante Copacabana Palace. (PRAIA DA BOLSA, s.d., s.p.)
A Bolsa, então, seria um dos primeiros campos gays, considerando a noção de campo de Bourdieu
(2008), estabelecidos em praias cariocas – ou seja, um espaço social que se converte em espaço
simbólico. E este espaço simbólico, relacional, é o local dos habitus.
Em um primeiro nível de análise, a Bolsa é o campo do habitus homossexual. Contudo, a partir
deste são encontrados outros habitus, diferenciados e também diferenciadores: os habitus dos gays,
dos travestis e dos michês, nos anos 50; e os habitus dos gays, dos travestis e dos transexuais, na
atualidade4.
Sessenta anos após seu surgimento, a Bolsa apresenta hoje novas configurações. Em pesquisas de
campo constata-se que a Bolsa já não tem como característica o “ver e ser visto” em nível de status,
de importância social, como descrito por Figari (2007) quando de seu surgimento como “point” gay.
Uma possível explicação para isso pode ser o fato de Copacabana ter deixado de ser um bairro “de
elite” e se transformado num bairro “classe média” e “popular”, tendo esse habitus de elite se
transferido para Ipanema e Leblon.
Atualmente, a frequência habitual observável na Bolsa é majoritariamente de “ursos”, e em menor
grau, de travestis e transexuais.
O termo “urso” é a metáfora de um homem gay muitas vezes grande ou gordo e
sempre peludo. Entretanto, na autodefinição que os gays fazem no Brasil, o termo
urso está ressignificado como uma forma de vida na qual cada um pode e tem que
ser como quer e se sente bem em sê-lo (FIGARI, 2007, p. 464)
Vê-se muitos homens mais “velhos”, com idade aparente de 50 anos ou mais, cuja aparência não se
assemelha ao que convencionalmente é chamado de “boa forma”, conforme Goldenberg e Ramos
(2002). Não são homens musculosos, nem depilados, nem com muitas tatuagens aparentes,
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características comuns no padrão estético vigente. As barrigas são proeminentes. O traje de banho
geralmente utilizado é o sungão, com poucas ou nenhuma estampa. Contudo, alguns destes “ursos”
estão acompanhados de homens mais “jovens” – aparentando 30 anos ou menos – e cujos corpos
estão em “boa forma”.
Embora frequentem a Bolsa, “ursos”, travestis e transexuais não costumam partilhar de um mesmo
espaço, tanto físico quanto simbólico, fragmentando-o em territorialidades distintas. Travestis e
transexuais costumam ser encontrados no espaço de uma das cinco ou seis barracas de comidas e
bebidas que são montadas na Bolsa – justamente na única que hasteia a bandeira do arco-íris. Já os
“ursos” se concentram entre duas ou três barracas que há algum tempo exibiam a “bandeira dos
ursos”: idêntica à bandeira do arco-íris, mas com cores diferentes: de cima para baixo, marrom
escuro, marrom claro, amarelo-ovo, creme, branco, cinza claro e preto. No canto esquerdo superior,
a sombra de uma pata de um urso.
Questionado sobre a ausência da bandeira dos “ursos” em um dos dias da pesquisa, um barraqueiro
explicou que ela tinha rasgado e até aquele momento não tinha sido reposta. Ele disse, inclusive, que
não iria repô-la, pois os “ursos” “quebravam suas cadeiras de praia” porque eram “pesados”.
Esse mesmo barraqueiro afirmou que a Bolsa estaria acabando. Narrou que perdera dez clientes no
ano anterior, que morreram, e que até os garotos de programa (os “michês”) que costumavam
frequentar o local em busca de clientes estavam frequentando agora um outro “point” gay: a Farme,
também identificável por barracas (cinco ou seis) que hasteiam a bandeira do arco-íris e por se
localizar na altura da rua Farme de Amoedo, em Ipanema.
A transformação da noção de “ver e ser visto” – e todos os habitus envolvidos nessa mudança – pela
qual passou a Bolsa parece agora estar ocorrendo na Farme. O “point” gay de Ipanema começou a
aparecer como tal nos anos 90, como um espaço frequentado por “barbies”. Figari (2007) e Gontijo
(2004) usam o termo “barbie”5 para identificar um padrão corporal que se tornou “marca registrada”
dessa praia. “No universo gay brasileiro, ‘barbie’ é ressignificada para a beleza masculina, mas
conservando sua rigidez, sua normatividade corporal e um determinado cânone estético” (FIGARI,
2007, p. 460). Gontijo (2004), ao falar de um “modelo Ipanema”, também cita tal padrão corporal
como uma característica de homogeneização verificável na Farme.
O habitus da Farme, portanto, formou-se a partir de um corpo diferenciado, padronizado em uma
linha estética. Associado a esse corpo surgiram outras marcas simbólicas: sungões estampados e
bem coloridos, preferencialmente de grifes internacionais, um indicativo de poder econômico mais
abastado; tatuagens, a maior parte delas com motivos “tribais” (ou o que se convencionou chamar
“motivo tribal”), de tamanho suficiente para serem vistas à certa distância, desenhadas sobre braços
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musculosos, panturrilhas trabalhadas em academia e peitos pronunciados; piercings no peito, no
umbigo, na orelha; ausência quase total de pelos nas partes visíveis do corpo.
Contudo, as pesquisas de campo atuais mostram que a Farme vem sendo “repovoada”, descentrando
a identidade que marcou seu surgimento. Nos cerca de 200 metros de extensão da praia as “barbies”
já não são a frequência concentrada e homogênea apontada por Gontijo (2004). Os gays que não
conseguiram “ser” uma “barbie” ressignificaram esse desejo para “ter” uma “barbie”, ainda que
apenas no campo visual. Passa-se do “ver e ser visto” para um “mais ‘ver’ do que ‘ser visto’”. Assim,
homossexuais do sexo masculino que não adotam o padrão de “boa forma” corporal, das mais
variadas idades, passaram a frequentar com mais assiduidade a badalada praia gay.
Essa multiplicação de identidades e habitus observável na Farme, contudo, não se dá sem conflitos
e reações. Afinal, “uma prática inicialmente nobre pode ser abandonada pelos nobres – e isso ocorre
com frequência – tão logo seja adotada por uma fração crescente da burguesia e da pequena burguesia,
e logo das classes populares” (BOURDIEU, 2008, p. 17).
Uma reportagem de Ramiro Costa (s./d.) no site “Time Out”, apontava que uma nova praia gay
estaria surgindo no Rio: o Coqueirão, também em Ipanema.
“A Farme saiu de moda”. A frase é de um advogado ao se referir ao trecho da Praia
de Ipanema, próximo da animada rua Farme de Amoedo, tradicional reduto gay. O
jovem de 23 anos dispara: “Na Farme, agora só tem garoto de programa e turista
estrangeiro. O resto migrou para o Posto 9 e mais para Aníbal de Mendonça”.
Pois é. Há muito tempo a famosa Farme de Amoedo já não reina mais absoluta na
cotação do público gay no Rio de Janeiro. A explicação é simples: fugir da confusão
deste ponto, que ficou muito popular com o passar dos anos, principalmente no
verão (COSTA, s.d., s.p.).
O novo trecho de praia, segundo a matéria, estaria reunindo os gays mais “bonitos” e “refinados” –
e também economicamente mais “abastados” – que frequentavam a “Farme”, mas que, pelo aumento
de uma frequência mais “popular” naquela, “migraram” para um outro trecho de praia.
Ao contrário da Bolsa e da Farme, o Coqueirão, trecho da praia entre as ruas Joana Angélica e
Maria Quitéria, segundo a matéria de Costa (s.d.), ainda não apresenta qualquer barraca com a
marca simbólica LGBT, a bandeira do arco-íris. O fato de ser um “point” gay somente é perceptível
em trabalho de campo. E o que se observa nesse trecho é a frequência majoritária do padrão “barbie”
que criou a identidade primeira da Farme, mas que agora busca outro local como forma de
diferenciação em relação aos outros padrões gays – e de manutenção do poder simbólico apontado
por Bourdieu (2001).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 18
DESVIO, ESTIGMA E IDENTIDADE
Como citado na introdução deste artigo, as praias gays do Rio de Janeiro são uma espécie de local
de concessão ao “desvio”, um espaço para “outsiders”. Conforme Becker (2012), “outsider” é a
pessoa que infringiu uma regra imposta por um grupo social. Contudo, ele frisa que “aquele que
infringe a regra pode pensar que seus juízes são outsiders” (BECKER, 2012, p. 15)
Mas o que é “desvio”? Becker explica que há definições baseadas em estatística – o desvio seria,
então, o que comumente chamamos “ponto fora da curva” – e em medicina – o desvio é uma
patologia biológica ou psíquica. A concepção sociológica de desvio como “falha em obedecer a
regras do grupo” (BECKER, 2012, p. 21) parece apropriada. Contudo, Becker a aponta como uma
definição simplista. Afinal,
Uma sociedade tem muitos grupos, cada qual com seu próprio conjunto de regras,
e as pessoas pertencem a muitos grupos ao mesmo tempo. Uma pessoa pode infringir
as regras de um grupo pelo próprio fato de ater-se às regras de outro. Nesse caso,
ela é desviante? (BECKER, 2012, p. 21)
O desvio, portanto, é uma caracterização social sobre uma prática ou ato individual, entendendo
este “social” não como uma categoria homogênea: há vários “sociais” que se apresentam na vida de
um indivíduo, e o comportamento ou ação que podem ser considerados desviantes em um deles não
necessariamente serão vistos da mesma forma em outro. O habitus do desvio, portanto, varia conforme
a estrutura (ou campo) na qual ele se apresenta.
As praias ou “point” gays são assim denominadas não por apresentarem como marca simbólica a
bandeira do arco íris. Elas são o locus do desvio da homossexualidade na praia socialmente considerada
heterossexual. Não significa, obviamente, que homossexuais não sejam encontrados em qualquer
outro trecho do litoral, tanto aqueles que abrigam praias gays quanto em qualquer outra praia.
Contudo, a “geografia da identidade homossexual” deve estar circunscrita aos “points” gays:
manifestações de carinho e afeto entre pessoas do mesmo sexo podem ser explicitadas em qualquer
local, mas somente nas áreas gays elas não serão vistas com estranheza e não vão despertar reações
contrárias – ao menos teoricamente, já que algum incauto que não associe à bandeira do arco-íris à
homossexualidade pode ir a esses locais, públicos e abertos, e não entender o que está se passando.
Essa é a definição do desvio na contraposição entre os grupos (e porque não entre as identidades)
heterossexual e homossexual. Contudo, como os desvios variam conforme os grupos, as praias gays
se desdobram em desvios dentro do desvio – os “outsiders” dentro dos “outsiders”.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 19
Na Bolsa, a concentração de travestis e transexuais em um local e de “ursos” em outro são prova de
que, se de longe todos são gays, de perto se forma a política da diferença citada por Hall (2007),
diferença esta que aponta como desviantes ou “outsiders” as travestis e transexuais, que são em
menor número. Na Farme, o apontamento do desvio pelo grupo “estabelecido” – as “barbies” –
extrapola-se na construção de uma nova geografia: em não podendo deslocar os “outsiders” daquele
que consideravam o seu espaço, os “estabelecidos” se deslocam para outro trecho da praia. A violência
simbólica (BORDIEU, 2001) é, assim, mantida.
Abordagem semelhante é possível a partir da noção de estigma, de Goffman (2004). Ser homossexual
– ou melhor, expor publicamente a homossexualidade e as relações nela inscritas – pode ser
considerado um estigma, uma discrepância, fora da Bolsa, da Farme ou de qualquer outra praia ou
“point” gay, mas não o é nesses locais. Contudo, ser uma travesti na Farme pode ser um estigma
nesse “point”, embora ele seja um “enclave” gay. Talvez não por acaso, nas pesquisas de campo
feitas até o momento não se observou a presença de nenhuma travesti nessa praia gay.
O estigmatizado pode, porém, escamotear essa situação, para evitar ser enquadrado nessa condição.
Entre os homossexuais do sexo masculino – e tal observação extrapola os limites geográficos das
praias gays – há quem adote padrões e comportamentos (habitus) heteronormativos, conforme
Butler (2007), a fim de evitar não se encaixar na identidade social virtual – e heterossexual – projetada
para ele.
Se essa ação livra um homossexual de um possível estigma por parte de heterossexuais, por outro
lado cria estigma entre ele e outros homossexuais que fogem do habitus heteronormativo. Goffman
(2004) cita um exemplo no depoimento de um homossexual:
“Encontrei um homem que havia sido meu colega de escola... Ele, é claro, era
homossexual e tomou como certo que eu o era também. Eu estava surpreso e
bastante impressionado. Ele não se parecia nem um pouco com a imagem popular
de um homossexual, pois era de boa compleição, viril e estava sobriamente vestido.
[...] Embora eu estivesse perfeitamente preparado para admitir que poderia haver
amor entre homens, sempre senti uma repulsa pelos homossexuais declarados que
havia encontrado, devido à sua futilidade, sua maneira afetada e sua tagarelice
sem fim. Compreendi, então, que esses (grifo meu) formavam somente uma pequena
(grifo meu) parte do mundo homossexual (grifo meu), embora a mais fácil de ser
percebida...” (GOFFMAN, 2004, p. 36)
Os grifos no parágrafo acima nas expressões “esses”, “pequena” e “mundo homossexual” foram
feitos para detalhar uma outra condição que gira em torno do estigma: os desacreditáveis e os
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 20
desacreditados. “Esses” e “pequena” deixam claro a referência na fala acima aos desacreditados,
aqueles que, de acordo com Goffman (2004) são completamente identificáveis como sujeitos
estigmatizados. Ao se referir ao “mundo homossexual”, porém, o interlocutor deixa claro que este é
formado por outras categorias. Usando seu exemplo, ele se enquadraria no grupo desacreditável –
aquele sobre o qual não se tem certeza se há estigma.
Nas praias gays, a travesti seria o exemplo mais extremo do que seria o desacreditado, ao lado de
homossexuais com comportamento (o que inclui fala, gestos, modo de andar) “afeminado”, segundo
padrões heteronormativos. As “barbies” que adotam comportamento mais “masculino” ocupariam,
assim, a outra ponta da escala, o desacreditável. Entre esses extremos vão se estabelecendo outros
estigmas, construídos a partir dessas identidades e seu habitus.
Assim, conforme Zago:
A masculinidade gay hegemônica será cúmplice da masculinidade heterossexual
porque faz desta a sua norma, ao mesmo tempo em que produz masculinidades
gays marginalizadas e subordinadas. O modelo paradigmático que está em disputa
dá a possibilidade de habitar a norma em seu conforto, usando seus lucros culturais
e políticos, garantidos pela sincronicidade heteronormativa (ZAGO, 2010, pp. 389390)
CONCLUSÃO
A praia é umas principais marcas identitárias da cidade do Rio de Janeiro. É neste espaço social que
se constrói o espaço simbólico de uma cidade não partida, espaço no qual todas as diferenças, sejam
elas de qual tipo for, desaparecem num ato comum: a exposição pública do corpo, locus primeiro do
indivíduo e de apresentação de sua(s) identidade(s).
Contudo, este espaço é formado por relações, que constroem clivagens e derrubam em definitivo o
mito de uma praia não partida. Esse aspecto relacional entre os frequentadores das praias cariocas
se dá em diversos níveis, e um deles é a sexualidade, exacerbada pela exposição corporal.
Neste sentido, criam-se campos: “praias gays” e, por oposição, “praias não gays”. Nas praias gays,
o habitus homossexual é o fator diferenciador. No entanto, este habitus se desdobra em diversos
outros habitus, conforme a praia na qual se está, estabelecendo novos campos dentro de um mesmo
campo, novas identidades dentro de uma “macro” identidade, novos desvios e estigmas dentro de
“macro” desvios e estigmas.
Os habitus e os seus corpos criam geografias de identidade. Na Bolsa, em Copacabana, e na Farme/
Coqueirão, em Ipanema, não basta ser homossexual: as marcas simbólicas estabelecidas por diferentes
grupos criam regras que determinam a inclusão em ou a exclusão desses grupos.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 21
Como espaços públicos, as praias gays recebem qualquer pessoa, inclusive não-homossexuais. Não
é proibido uma “barbie” ir à Bolsa, ou um “urso” ir à Farme/Coqueirão. Entretanto, ao fazerem isso,
ambos estarão fora de seus campos e poderão ter de ressignificar seus habitus.
Por seu capital simbólico, a “barbie” provavelmente será aceita sem restrições na Bolsa – “ver” e
“ter” o ideal simbólico de homossexualidade fala mais alto do que qualquer diferença de identidade
– e não terá dificuldades em estabelecer relações, inclusive afetivas e sexuais. Se isso acontecer, o
“privilegiado” que “pegou” a “barbie” talvez ganhe status nesse campo. Para o “urso”, porém, por
sua condição de “outsider” e seu grau de desacreditado na Farme/Coqueirão, relacionar-se
publicamente nesse ambiente com grande grau de intimidade afetiva e/ou sexual será tarefa mais
difícil. Tal relação poderia criar para a “barbie” que a aceitou uma discrepância entre o que os seus
“iguais” esperam dela – publicamente, “barbies” “pegam” “barbies” – e sua identidade social real.
Enfim, um estigma.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Jorge Zahar Editor, 2012. 231 p.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001. 322 p.
______. Razões práticas sobre a teoria da ação. 9. ed. Campinas: Papirus Editora, 2008. 226 p.
BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira
Lopes (org.). O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2007,
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ELIAS, Norbert & SCOTSON, John L.. Os estabelecidos e os outsiders. Rio de Janeiro: Jorge
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www.rio.rj.gov.br/web/riotur/exibeconteudo?id=106717>. Acesso em 07 de agosto de 2013.
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FIGARI, Carlos. @s outr@s cariocas: interpelações, experiências e identidades homoeróticas
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2007. 588 p.
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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: a vontade de saber. Lisboa: Relógio D’Água
Editores, 1994. 170 p.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Edição
digital. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2004. 124 p.
GOLDENBERG, Mirian e RAMOS, Marcelo Silva. A civilização das formas: o corpo como valor.
In: GOLDENBERG, Mirian (org.). Nu & vestido: dez antropólogos revelam a cultura do corpo
carioca. Rio de Janeiro: Record, 2002, pp. 19-40.
GONTIJO, Fabiano. Imagens identitárias homossexuais, carnaval e cidadania. In: RIOS, Luís Felipe
et al (Orgs.). Homossexualidade: produção cultural, cidadania e saúde. Rio de Janeiro: ABIA,
2004, pp. 63-68.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2007. 102 p.
PRAIA da Bolsa. Disponível em: <http://www.praiasdoriodejaneiro.com.br/tag/praias-gls-norio-de-janeiro/>. Acesso em 22 de março de 2013.
SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual
ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009. 194 p.
VENTURA, Zuenir. Cidade partida. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. 280 p.
ZAGO, Luiz Felipe. Homens, Homens Gays. In: COSTA, Horácio et al (Orgs.). Retratos do Brasil
homossexual: fronteiras, subjetividades e desejos. São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, Imprensa Oficial, 2010, pp. 381-390.
NOTAS
2
É importante observar que o relatório Kinsey (apud Simões e Facchini) apresenta uma tentativa de tirar da
homossexualidade a classificação de uma “categoria coletiva” e fazê-la retornar a uma “característica individual”.
Essa “característica”, porém, ganha uma roupagem muito mais genérica: a da prática homossexual, que, segundo o
relatório, varia em maior ou menor grau, com escalas intermediárias entre o sujeito 100% heterossexual e o sujeito
100% homossexual.
3
Lésbicas, Gays, Bissexuais e Transgêneros. Atualmente verificam-se novas apresentações desta sigla, que tem sido
ampliada para inclusão de mais categorias envolvendo a homossexualidade, como forma de aumentar sua visibilidade.
Uma das mais recentes representações é LGBTTTI – Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros, Travestis, Transex
e Intersex.
4
Tanto Figari (2007) quanto o site “Praias do Rio de Janeiro” não citam, pelo menos nesses textos específicos,
homossexuais do sexo feminino, embora seja possível constatar sua presença tanto nesta quanto em outras praias
gays do Rio, embora em número aparentemente bem menor. As possíveis explicações para a ausência dessa enção,
porém, não serão tratadas neste artigo.
5
A apropriação desse termo pelos gays do sexo masculino em “boa forma” está associada à boneca americana
Barbie. A publicidade da boneca nos anos 80 e 90 usava como slogan a expressão “Barbie, tudo o que você sempre
quis ser”. Assim, na ressignificação dada ao termo pelos homens gays, o padrão “barbie” se tornou o padrão corporal
desejado por homossexuais do sexo masculino.
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ESCOLHA PELO PARTO DOMICILIAR:
Um estudo sobre gênero e poder na forma de parir.
Camila Manni Dias do Amaral
Antropóloga formada em Ciências Sociais pela UERJ
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo levantar brevemente questões relativas à escolha da mulher pelo
parto domiciliar. A partir do levantamento bibliográfico que foi feito, questões de gênero e disputas de poder
de diversas naturezas começam a se desvelar, mostrando algumas faces do parto que pretendo discutir.
Palavras-Chave: Parto domiciliar; poder; gênero; medicalização do corpo
INTRODUÇÃO
Esse trabalho está dividido, para fins didáticos, em duas partes: a primeira consiste na revisão
bibliográfica das temáticas do parto, poder e medicalização do corpo feminino; a segunda consiste
em uma discussão acerca das relações de gênero e das disputas do poder no contexto do parto
domiciliar, utilizando o referencial bibliográfico e uma breve análise de entrevistas previamente
coletadas na ocasião da elaboração da minha monografia.
PODER E MEDICALIZAÇÃO DO CORPO FEMININO
A pergunta inicial que considero necessária é: O que é poder? A dica já está dada, a concepção que
utilizarei largamente é a de Foucault (1997), que trabalha com o conceito de relações de poder, que
é capilarizado e circula entre os membros da sociedade. A participação do poder se dá de forma
desigual, seria falacioso supor que pessoas e instituições diversas tem participação equitativa nessas
relações, mas também é falacioso supor que o poder se exerce unicamente como uma força coercitiva
e centralizada, de cima para baixo.
A ideia de que o poder é algo que um agente possui e o outro não, também não é útil para uma
discussão sobre parto. Primeiramente, porque a gestação e o parto se dão no corpo da mulher, logo,
se ela não é levada à força para o hospital durante o trabalho de parto é porque ela fez uma escolha,
então ela está participando do jogo do poder. E por fim porque poderíamos cair na armadilha de
classificar os hospitais e médicos como detentores de um poder máximo sobre o corpo feminino,
exercido sempre a revelia da parturiente e a mulher como uma vítima dessa conjuntura.
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Em Microfísica do Poder, Foucault (1997) traz a concepção de que o poder age sobre o corpo, que
é a dimensão prática e material do indivíduo, além da ideia de que há disputa onde há poder, já que
este não seria algo que se possui, mas algo que se exerce mediante disputas. Já em Vigiar e Punir
(1977), o autor trabalha com o poder disciplinar e especificamente com o sistema penal, mas alguns
conceitos trazidos por ele nessa obra são caros para discutir a forma como o poder atua sobre o
corpo.
Nos dois livros citados, o autor demonstra que foi durante a época clássica que o corpo foi descoberto
como objeto e alvo do poder e enfatiza a biomedicina no exercício desse poder e do controle social.
Foucault trabalha com a ideia de que não se deve analisar o poder como algo que reprime, aparta e
oprime, mas como algo produtivo, e um dos seus produtos é a disciplinarização, que resulta em
corpos dóceis e fáceis de manobrar como se deseja. Nesse sentido surge a medicalização do corpo.
Em um contexto em que o discurso médico ganha um espaço maior e passa a produzir o que é
verdade, a medicina se incumbe de transformar comportamentos, preferências e práticas em patologias,
e com isso contribui para o controle e a gestão sobre todos eles.
A questão de gênero fica clara na medicalização do corpo. Tomarei aqui um caso como exemplo
dessa afirmação, que é o caso das explicações hormonais para eventos e comportamentos diversos
que ocorrem no corpo feminino. Rohden (2008) comenta que é crescente a existência de publicações
e programas televisivos dedicados a tratar da importância dos hormônios no bem estar dos indivíduos
e na determinação de certos comportamentos, sendo o corpo feminino o alvo preferencial dessas
explicações pautadas nos hormônios. Desde a puberdade, passando pela gravidez, amamentação e
chegando finalmente à menopausa, os eventos ocorridos no corpo feminino e o comportamento das
mulheres são analisados e explicados a partir dos hormônios, o que de certa forma transforma o que
seria desordem em algo ordenado e possível de explicar. A autora destaca ainda que o corpo feminino
ter se tornado o mais explorado pelo discurso médico-científico se deve, dentre outros fatores, a
uma tensão de gênero. Uma das explicações para essa preferência pelo corpo feminino como alvo da
medicalização pode ser oferecida por Foucault, que, como citado anteriormente, afirma que a
medicalização do corpo é uma forma de exercer controle sobre o indivíduo, nesse caso a mulher.
O que torna o uso dessa bibliografia interessante para pensar a questão proposta é a percepção de
que o corpo é a dimensão material do individuo, sendo por isso o objeto do poder. Parte da bibliografia
que será trabalhada posteriormente mostra as disputas de poder que ocorrem no corpo da mulher
grávida. De um lado o saber médico reivindica o conhecimento e o monopólio do poder sobre o
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corpo grávido, contando com o auxílio dos discursos que transformam a gravidez em uma patologia
e promovem a medicalização da mesma, e do outro lado, como onde há poder há resistência, temos
as mulheres, lutando pela retomada dos seus corpos.
OS MOMENTOS DA ASSISTÊNCIA AO PARTO
Utilizarei uma divisão feita pela por Diniz (1996) de quatro momentos históricos pelos quais passaram
a assistência ao parto. O motivo de trazer esse panorama histórico é deixar um pouco mais visível o
processo de medicalização do corpo feminino e a renegociação de papéis e de espaços no jogo de
poder.
O primeiro momento seria a antiguidade, em que havia o culto de divindades genitais e em que o
parto era visto como um fenômeno positivo e natural, cabendo ao médico apenas a função de
auxiliar o processo no caso de haver alguma complicação. O segundo momento acontece com a
cristianização do Império Romano, em que as divindades outrora cultuadas são demonizadas e o
parto passa a ser um assunto da religião. Nesse contexto a culpa essencial das mulheres somada à
visão de que o parto é uma punição às mulheres, abre espaço para o surgimento do médico como
aquele que é responsável por garantir o sofrimento feminino.
O terceiro momento passa a ser observado no século XVIII, em que a medicina começa a se interessar
mais pelo parto e a analisá-lo como um mecanismo. A assistência que anteriormente era prestada por
mulheres – até porque os homens eram proibidos de entrar nas salas de parto – passa a ser prestada
por médicos, homens, que exerciam a obstetrícia através do modelo médico cirúrgico. Aqui se
tornam mais comuns dois tipos de intervenção: o arrancamento, em que eram utilizados instrumentos
como o fórceps, o cranioclastos e ganchos e a extração, que era a cesariana. A diferença essencial
que Diniz faz entre a assistência prestada pelas parteiras mulheres e a prestada por médicos homens
nessa época é que o primeiro tipo de assistência não utilizava os instrumentos cirúrgicos que eram
utilizados pelo segundo tipo.
Por último, o quarto momento é o atual, em que emerge a preocupação com o risco sexual envolvido
no parto e em que o médico é o agente que preveniria a catástrofe do corpo feminino. Nas palavras
de Diniz (1996), esse risco sexual de que se fala é o da perda da função sexual da mulher e a
impossibilidade dela conter o pênis do parceiro após um parto vaginal, uma vez que um bebê - visto
como um falo desproporcional à vagina da mulher – teria passado pelo canal que ficaria alargado. A
prevenção disso se dá através do controle do parto, com intervenções para manter esse controle,e
em ultima instância, é o medico quem “faz” o parto e não a parturiente. É nesse momento que
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surgem os movimentos de emancipação da mulher, e na década de 1960 a “parturiente” emerge
como sujeito social.
Essa breve passagem por esses momentos que marcam a assistência ao parto permite observar que
há uma gradual tomada do corpo da mulher por instituições e agentes, e que o ato de parir, que era
visto inicialmente como sendo natural e fisiológico, passa a ser visto como algo potencialmente
perigoso e intrinsecamente doloroso. Fica visível também a sistemática exclusão das mulheres da
cena da assistência ao parto e a expropriação do seu conhecimento.
Parafraseando a colocação de Foucault em Microfísica do Poder (1977), é no momento em que as
instituições exercem maior poder sobre o corpo – nesse caso o feminino-, que a mulher busca a
retomada do deste contra o poder. E é no momento atual, descrito por Diniz, que surgem os
movimentos pela humanização do parto e o que Tânia Salem (2007) chama de “Ideário do parto sem
dor”, entre as décadas de 1950 e 1960.
NEGAÇÃO DA MATERNIDADE E MATERNIDADE COMO VOCAÇÃO
Existe um imaginário na nossa sociedade de que a gestação, o parto e o amor materno são “naturais”
e “instintivos”. Este imaginário costuma explicar esse tipo de fenômeno através da existência de
certos hormônios. Já falamos anteriormente sobre esses elementos biológicos, e eles reaparecem
nessa seção para nos ajudar a pensar como eles fazem parte da construção de um tipo de maternidade.
Para problematizar essa questão, recorrerei, ao livro Um amor conquistado: O mito do amor materno
(1985), de Elisabeth Badinter. O título desse livro é sugestivo, ele conta como, no passar dos séculos,
o papel da mãe na vida da criança foi sendo desenhado, mostrando que o amor de uma mulher pelo
seu filho não se origina de um instinto, mas de uma série de fatores sociais que mudam no curso da
história. Na primeira parte desse livro ela fala sobre a forma como as mães viviam a maternidade até
o século XVIII, quando era recorrente que as mulheres entregassem seus filhos para amas que
cuidavam deles durante sua infância, muitas vezes não havendo um reencontro posterior entre mãe
e filho. Além disso, ela comenta a recusa da mulher em amamentar, devido a um pudor existente na
sociedade da época, sendo o ato de amamentar considerado sujo. Ora, se o amor materno e o ato de
amamentar, por exemplo, fossem naturais, haveria uma continuidade desses sentimentos e desse
comportamento ao longo da história, algo que, como Badinter mostra, não acontece. Na segunda
parte, ela fala do surgimento do amor materno como valor a partir do último terço do século XVIII,
mostrando ainda que, mesmo com a nova valoração atribuída ao cuidado com os filhos, foi lento o
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processo de mudança dos comportamentos observados até então. Sobre esse momento Badinter
escreve:
“Após 1760, abundam as publicações que recomendam às mães cuidar pessoalmente
dos filhos e lhes “ordenam” amamentá-los. Elas impõem, à mulher, a obrigação de
ser mãe antes de tudo, e engendram o mito que continuará bem vivo duzentos anos
mais tarde: o do instinto materno, ou do amor espontâneo de toda mãe pelo filho.”.
(1985, p. 145)
Foram necessárias décadas até que essas novas obrigações fossem assimiladas e aceitas pelas mães
como parte da maternidade e para que esta fosse reconhecida como parte constitutiva da identidade
feminina. Após a transição da maternidade como um papel social que não era valorizado para a
maternidade como vocação, se dá um movimento, esse já mais atual, de renegociação de seus sentidos
e sua importância. Scavone (2001) situa esse movimento como tendo início com os métodos
contraceptivos e a possibilidade do controle da fecundidade por parte da mulher, embora houvesse
lutas feministas no sentido de modificar e resignificar o papel da mulher na sociedade anteriores a
isso. Os modernos métodos contraceptivos realocam o espaço da maternidade, que deixa de ser o
único caminho possível e se torna uma escolha, com isso, ter um filho pode fazer parte de um
projeto da mulher, em que ela tem a possibilidade de escolher. Sobre isso, Scavone afirma que ser
mãe ou não passa a ter uma dimensão reflexiva, que nos termos tomados de Giddens, “consiste no
fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e revisadas à luz de novas informações
sobre estas próprias práticas, alterando constitutivamente seu caráter”.
Scavone (2001) articula diversas dimensões que estão relacionadas à maternidade, dentre elas, gostaria
de destacar a dimensão das relações de gênero. A maternidade, nesse processo de desnatuzalização,
foi tida por uma corrente feminista como um dos fatores da “opressão das mulheres” e por outra
como algo único e especial, que é exclusivo das mulheres e que é um poder insubstituível e não uma
fonte de opressão. Essas concepções da maternidade colaboraram para um outro momento, em que
o feminismo passou a estudar a maternidade a partir das relações de gênero, discutindo o lugar
ocupado pelo pai, cuja relação com a mãe/mulher e o filho torna-se foco de análise.
PARTO DOMICILIAR E RELAÇÕES DE GÊNERO E PODER
Entramos agora no tema mais específico desse trabalho, que é a relação entre o parto domiciliar e as
questões de gênero e poder. Para começar, transcrevo um trecho da página virtual do Ministério da
Saúde dedicada à maternidade:
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“O parto natural pode ser realizado em maternidades, Centros de Parto Normal e
em casa, mas é preciso contar com o acompanhamento de uma equipe especializada,
liderada por enfermeiros-obstetras ou obstetrizes.”
Começo essa seção com essa citação por um motivo simples: se o Ministério da Saúde considera
legítimo o parto domiciliar, a ideia de que o parto é um evento iminentemente perigoso e que por
isso só pode ser realizado no ambiente hospitalar e por médicos se mostra falsa. Considerando isso,
não me aterei aqui à discussão sobre a segurança de um parto domiciliar - tendo sido feito um
acompanhamento pré-natal - e sobre quem deve assistir a esse tipo de parto, se médicos, enfermeiros
ou obstetrizes, parto do princípio de que os três estão aptos a fazê-lo. Dessa forma, passo pela
tangente desses dois temas, que apesar de serem temas quentes atualmente não são o foco desse
trabalho.
O objeto desse trabalho é a escolha pelo parto domiciliar e como essa escolha se situa no contexto
das relações de gênero e de poder. Atento para o fato de que as disputas de poder não se dão apenas
entre gestantes e médicos, ela se dá também entre gestantes que optam por modalidades diferentes
de parto e entre o saber médico e o saber familiar e tentarei, à medida do possível, dar conta dessas
relações também.
A escolha pelo parto domiciliar aparece muitas vezes como um retorno a uma natureza idealizada,
ao tempo em que se paria em casa, com a assistência de outras mulheres, antes do saber médico se
apropriar da gestação e do nascimento. Nessa linha, Martin (2006) trabalha com o parto domiciliar
como aquele em que há maior resistência da mulher contra a medicalização da gravidez.
Essa resistência aparece a todo leitor atento que busque fóruns e listas de discussão na internet sobre
formas de parir e parto em casa. Em seu trabalho analisando uma lista de discussão sobre parto
domiciliar, Gusmão (2010) traz trechos de depoimentos e colocações feitas por mulheres que optaram
por essa modalidade de parto e a oposição a qualquer tipo de intervenção é constante. As intervenções
são a antítese da experiência do parto, que essas mulheres buscam conquistar para poder dizer que
pariram de verdade. Parir para essas mulheres está ligado à autonomia que tiveram no parto e ao
protagonismo delas nesse momento, em uma cesariana, por exemplo, quem realiza o parto é a
equipe médica e não a mulher, sendo assim a mulher que teve seu filho por uma cirurgia não poderia
dizer que pariu.
Nesse momento cabe trazer uma relação de poder que ainda não explorei, entre as mulheres que tem
parto domiciliar e as que têm qualquer tipo de parto hospitalar. No trabalho de Gusmão, os termos
“Nós” e “Eles” são empregados na lista de discussão para operar uma divisão clara entre as gestantes
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 29
que tem um parto em casa, sem intervenção e assim conquistam a verdadeira experiência de “Parir”
e aquelas que deixam o seu momento único nas mãos de terceiros, perdendo a experiência de parir
a cada intervenção sofrida. Ao mesmo tempo, essas mulheres também relatam que as mulheres que
tem parto hospitalar se referem a elas como excessivamente radicais, irresponsáveis e loucas, por
colocar a vida do bebê em risco em um parto domiciliar.
Talvez esse seja um dos motivos pelos quais a recomendação geral às mulheres que querem ter parto
domiciliar é: empodere-se, cerque-se de mulheres empoderadas, informe-se e não seja passada para
trás. Em um país em que 80% dos nascimentos acontecem através de uma cesariana, o apelo à
medicalização do parto é grande. As gestantes falam da cesariana como “o suprassumo da
modernidade” (AMARAL, 2013), os médicos falam como se fosse a salvação da sexualidade da
mulher (DINIZ, 1996) e da vida do bebê. A informação é vista então como a arma da mulher contra
o médico cesarista, contra as pessoas que acham perigoso parir em casa e contra o próprio medo
que elas sentem ou sentirão em algum momento da gestação.
Em meu trabalho monográfico de graduação escrevi também sobre isso, tendo realizado entrevistas
com mulheres que haviam tido seus filhos em um parto domiciliar. Nessa ocasião, a busca pela
informação foi colocada nos seguintes termos por uma das entrevistadas “Informação é poder”. A
explicação para essa afirmação era simples, ao sentar frente a frente com um obstetra, a gestante se
veria diante de uma pessoa com um arsenal de termos técnicos indecifráveis, com nomes grandes e
patologias as mais diversas, se a mulher não estiver informada, as entrevistadas acreditam que será
fácil para o médico passá-las para trás. A visão corrente entre pessoas da lista analisada por Gusmão
(2010) e as entrevistadas por mim é similar, o caminho até o parto domiciliar não é fácil e é marcado
por disputas de poder, estando o médico constantemente tentando converter partos vaginais e
cesarianas. É preciso lembrar também que o poder sobre si não é algo que é dado à mulher por
outrem, deve ser conquistado por ela e é objeto de luta.
Outra disputa de poder que ainda não trabalhei é entre o saber médico e o familiar. Durante séculos
os partos eram realizados em casa, por mulheres, os cuidados com o recém-nascido eram ensinados
pelas mulheres mais velhas e assim o nascimento era um evento doméstico. A partir do terceiro
momento de assistência ao parto descrito por Diniz (1996), o parto foi se tornando um assunto
masculino. O conhecimento feminino sobre o parto tornou-se obsoleto e foi ultrapassado pelos
estudos da medicina de forma que no momento atual de assistência ao parto a recomendação feita às
mulheres é que elas confiem no médico, e apenas nele. Em seu estudo sobre a Revista da Gestante,
Rezende (2011) observa que as matérias apresentam o médico como o elo seguro das relações que
a gestante estabelece com o mundo, e demonstra esse estímulo ao afastamento do saber familiar e
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 30
aproximação do saber científico, que é o verdadeiro. Nas revistas especializadas voltadas para as
gestantes é constante a referência ao saber familiar como crendice e por vezes ressalta-se o perigo
de tomar decisões baseadas no saber popular e de ouvir o que a avó diz sobre a gestação e os
cuidados com a criança.
Havia falado anteriormente da perspectiva do parto domiciliar como uma busca de retornar ao
natural, e volto agora a esse assunto. É possível pensar que essa busca visa retomar o protagonismo
do momento do parto e obter uma experiência mais prazerosa ao parir, além disso, retoma a ideia da
mulher como fêmea, conhecedora dos processos fisiológicos ligados a esse momento. Falar do
parto como um processo natural e fisiológico, que tem peculiaridades de acordo com cada mulher
e que tem um tempo e um ritmo ditado pela natureza é também uma forma de ir na contramão do
“modelo tecnocrático” de assistência ao parto modelo em que a medicalização do corpo se dá
através das tecnologias empregadas para normalizar o comportamento da mulher e normatizar a
forma de parir (TORNQUIST, 2002).
Apesar de buscar a visão das mulheres sobre o parto domiciliar, é preciso problematizar alguns
pontos, pois nos fóruns de internet que visitei para entender a concepção feminina do parto domiciliar
a busca pelo retorno ao natural é muito presente. Não me aterei muito tempo nesse ponto, mas
penso ser interessante trazer aqui algumas considerações sobre a “natureza” do parto domiciliar.
Mauss tem um trabalho clássico sobre esse tema, intitulado As técnicas corporais (1974), em que
ele traz o corpo para o campo de discussão das ciências sociais. Nessa obra, o autor trata de técnica
corporal, que são as maneiras como as pessoas se servem do seu corpo, essas formas são variadas
e cada sociedade tem a sua, de acordo com os hábitos e com o que é valorizado em cada uma delas.
Mauss trabalha com o indivíduo como um ser total, e para compreendê-lo seria necessário analisar
as três dimensões que o compõem, a saber a biológica, a psicológica e a sociológica, o que nega a
natureza puramente biológica das técnicas do corpo. Em um dos capítulos deste livro, Mauss traz a
enumeração biográfica das técnicas corporais, uma delas, é a técnica do nascimento e da obstetrícia,
é desta parte que extraí o fragmento a seguir:
“As formas da obstetrícia são muito variáveis. Buda nasceu estando sua mãe,
Mâya, agarrada, reta, a um ramo de árvore. Ela deu a luz em pé. Boa parte das
mulheres da Índia ainda dão a luz desse modo. Coisas que acreditamos normais,
isto é, o parto na posição deitada sobre as costas, não são mais normais do que as
demais; por exemplo, as posições de quatro. Há técnicas de parto tanto para a
mãe, como para seus auxiliares; para a retirada da criança, ligadura e secção do
cordão; para os cuidados com a mãe e com a criança (...).”(MAUSS, 1974, p.
223)
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 31
Sendo assim devemos atentar para o fato de que o parto domiciliar ainda é uma forma de parir que
é culturalmente construída, não devendo ser tomada como mais ou menos natural do que o parto em
pé agarrada a uma árvore ou realizado em uma casa de parto.
Para finalizar essa seção, cabe ressaltar que é constante que a mulher seja apontada como a única
que detém o poder sobre o seu corpo, a única que pode fazer escolhas por si, estando o marido e
todos os membros da equipe de saúde em uma posição de coadjuvantes no processo. Acredito que
isso deve ser tomado como um aspecto da relação de gênero relacionada ao parto domiciliar, pois
quando a mulher assume que a escolha final está em suas mãos, ela exerce um protagonismo que é
feminino. Esse é um dos motivos recorrentes da escolha por parir em casa, em um ambiente em que
as mulheres acreditam que suas escolhas serão respeitadas e não serão realizados procedimentos
sem seu conhecimento e aprovação.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nas sociedades ocidentais modernas, como mostra Foucault (1977), o regime de verdade escolhe o
discurso científico como aquele que produz enunciados verdadeiros, o que se reflete diretamente no
objeto desse trabalho. Nessa corrente, a medicalização da gestação e do parto - por intermédio dos
discursos “patologizantes” da medicina e das tecnologias por ela criadas para sanar essas patologias
– são aceitas como necessárias e constituem o momento atual de assistência ao parto. É possível
observar ainda que nesse modelo o parto torna-se um fenômeno que deve ocorrer no ambiente
hospitalar, onde os riscos seriam mais bem controlados e as intervenções seriam chamadas a conter
a catástrofe do corpo feminino, alegadamente iminente no ato do nascimento via canal vaginal. Mas
a medicalização da gravidez é um mecanismo do jogo de poder. E como onde há poder há resistência,
na contramão desse movimento de institucionalização surgem os movimentos que buscam a
humanização do parto. Esses movimentos são contrários às práticas invasivas e que restringem a
autonomia da mulher, ligados ao desejo de parir com mais prazer e menos dor.
A resistência, principalmente em relação à medicalização do nascimento, se mostra com clareza nas
mulheres que optam pelo parto domiciliar. Essa resistência é demonstrada através da bibliografia e
das palavras das mulheres que optaram por essa modalidade de parto.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AMARAL, Camila Manni Dias. “Eu queria um parto igual aquele”: Perspectivas e discursos sobre
o parto domiciliar. 2013. Monografia. Departamento de Ciências Sociais, UERJ, Rio de Janeiro.
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Nova Fronteira.
BOURDIEU, Pierre.(2003) A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil
DINIZ, Carmen Simone Grillo. (1996) Assistência ao parto e relações de gênero: elementos para
uma releitura médico-social. Dissertação de mestrado, Faculdade de Medicina, Universidade de
São Paulo, SP
FOUCAULT, Michel.(1977) Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes
FOUCAULT, Michel.(1997) Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal.
GUSMÃO, Tássia Raquel Marques.Movimento de Humanização do Parto e Nascimento: um estudo
de caso através de uma lista de discussão. 2010. Monografia. Departamento de Ciências Sociais,
UERJ, Rio de Janeiro
MARTIN, Emily.(2006) A mulher no corpo: Uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro:
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MAUSS, Marcel.(1974) “As técnicas corporais”. In: Sociologia e Antropologia vol.II. São Paulo:
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FOUCAULT, Michel.(1977) Vigiar e Punir. Petrópolis: Vozes
REZENDE, Claudia Barcellos. (2011) “Um estado emotivo: representação da gravidez na
mídia.” Cad. Pagu, Campinas, n. 36, pp. 315-344
ROHDEN, Fabíola.(2008) “O império dos hormônios e a construção da diferença entre os sexos.”
Hist. cienc. saude-Manguinhos, Rio de Janeiro, v. 15, suppl, pp. 133-152
SALEM, Tania. (2007) O casal grávido: disposições e dilemas da parceria igualitária. Rio de
Janeiro: Editora FGV.
SCAVONE, Lucila.(2001) “Maternidade: transformações na família e nas relações de gênero.”
Interface (Botucatu), v. 5, n. 8, pp. 47-59
TORNQUIST, Carmen Suzana. (2002) “Armadilhas da Nova Era: Natureza e maternidade no ideal
de humanização do parto.” Revista Estudos Feministas,ano 10, n. 484, pp. 483-492
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SISTEMA DE COTAS RACIAIS EM UNIVERSIDADES NUMA PERSPECTIVA SÓCIO
HISTÓRICA : Um breve comparativo entre o sistema americano e brasileiro
Luiza Mandela Silva Soares
Mestranda do curso de Relações Etnicorraciais PPRER;2013/3 no CEFET/RJ Centro Federal de Educação Tecnológica Celso Suckow da Fonseca;
[email protected]
RESUMO
Este artigo tem como objetivos apresentar o histórico da implementação do sistema de cotas raciais no
Brasil; analisar brevemente o sistema de cotas raciais dos Estados Unidos; fazer um comparativo entre o
sistema de cotas brasileiro e americano, além de apresentar as perspectivas após a implementação do sistema
de cotas raciais em universidades brasileiras. A metodologia utilizada será a revisão bibliográfica. Os
movimentos sociais, que conscientizam e denunciam contra o racismo, contribuem muito para que haja uma
diminuição das desigualdades entre brancos e negros, mas ainda não é suficiente para haver uma situação de
igualdade em nossa sociedade. No entanto, a política de cotas raciais terá cumprido com sua finalidade
quando houver melhora efetiva na educação básica de qualidade e o espaço universitário transformar-se em
um espaço não só de formação acadêmica, mas também de formação de líderes que representem a diversidade
de grupos sociais e sejam sensíveis aos benefícios para a sociedade advindos do pluralismo de ideias.
Palavras - chave: Cotas Raciais; Ações Afirmativas;População Negra; Cotas nos Estados Unidos; Mercado
de trabalho para a população negra.
Introdução
A Constituição Federal Brasileira de 1988, em seu artigo 5º,estabelece:
[...] todos são iguais perante a lei,sem distinção de qualquer natureza, garantindose aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito
à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade( BRASIL, 1988)’’.
Entretanto, no ano de 2010, foi instituído o Estatuto da Igualdade Racial -Lei nº 12.888, de 20 de
julho de 2010, que tem por objetivo assegurar à população negra a efetivação da igualdade de
oportunidades, a defesa dos direitos étnicos e individuais, coletivos e difusos e o combate à
discriminação e às demais formas inaceitáveis de intolerância étnica, demonstrando o quanto essa
determinação constitucional ainda não se constitui uma realidade em nosso país.
Para se avançar rumo a esse preceito constitucional, o Estado vem formulando e implementando
políticas de inclusão social visando minimizar desigualdades sociais que, ao longo dos séculos
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 34
acompanham a história do Brasil. Neste contexto, são inseridas ações afirmativas, que são iniciativas
para promover a igualdade e também reduzir as injustiças sociais. Porém, nos Estados Unidos, o
sistema de ações afirmativas iniciou-se na década de 60 pelo presidente Jonh Kennedy, e é utilizado
até os dias atuais.
Este tema tem gerado inúmeras discussões, e posicionamentos contrários ações de aplicação de
políticas afirmativas. Porém, após anos de luta dos movimentos sociais em prol da igualdade racial,
o sistema de cotas foi julgado constitucional pelo Supremo Tribunal Federal, em 26 de abril de 2012
Este artigo tem como objetivo geral analisar o sistema de cotas raciais em Universidades, uma
perspectiva sócio histórica entendendo que trata-se de um assunto relevante e atual, referentes a
questão etnicorracial na sociedade brasileira. Seguindo esse objetivo, fazendo uso da bibliografia
pertinente, debateremos assuntos como: o histórico da implementação do sistema de cotas raciais
no Brasil; o sistema de cotas raciais dos Estados Unidos; fazer um comparativo entre o sistema de
cotas brasileiro e americano, além de apresentar as perspectivas após a implementação do sistema
de cotas raciais em universidades brasileiras.
Histórico do Sistema de Cotas Brasileiro
A primeira tentativa encontrada em torno do que hoje poderíamos chamar de ações afirmativas, foi
em 1968, quando técnicos do Ministério do Trabalho e do Tribunal Superior do Trabalho foram
favoráveis à criação de uma lei que obrigasse as empresas privadas a manter uma percentagemmínima
de ‘’empregados de cor’’ (20%, 15% ou 10%, de acordo com o ramo deatividade e a demanda),
como única solução para o problema da discriminaçãoracial no mercado de trabalho (Santos, 1999,
p.222). Porém, a lei não chega a ser elaborada.
Somente nos anos de 1980 haverá a primeira formulação de um projeto delei nesse sentido. O
deputado federal Abdias Nascimento, elaborou a Lei n. 1.332, de 1983, que propõe uma ação
compensatória, que estabeleceria mecanismos de compensação para o afro-descendente após séculos
de discriminação. No projeto continha as seguintes propostas: reserva de 20% de vagas para mulheres
negras e 20% para homens negros na seleção de candidatos ao serviço público; bolsas de
estudos;incentivos às empresas do setor privado para a eliminação da prática da discriminação racial;
incorporação da imagem positiva da família afro-brasileira ao sistema de ensino e à literatura didática
e paradidática, bem como introdução da história das civilizações africanas e do africano no Brasil.
Porém, o projeto não é aprovado pelo Congresso Nacional, mas as reivindicações continuam
(MOEHLECKE,2004).
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O Movimento Negro foi fundamental para as conquistas que a população negra foi adquirindo ao
longo do tempo, através de muitas reivindicações. Nos anos 80, denunciou o mito da democracia
racial, e passou a pressionar o Poder Público a responder aos problemas decorrentes do racismo no
Brasil.
Em 1984, foi criado em São Paulo, o Conselho da Participação e Desenvolvimento da Comunidade
Negra do Estado de São Paulo, que tinha por objetivo monitorar a legislação que defendia os interesses
da população negra, além de sugerir projetos para a Assembleia Legislativa e setores do executivo e
investigar as denúncias de discriminação e violência policial. A experiência de São Paulo, que contribuiu
para o avanço da valorização da imagem do negro brasileiro através de seus efeitos no sistema
educacional e publicitário, foi modelo para conselhos semelhantes em outros estados brasileiros,
como a Bahia, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro ( TELLES, 2003).
No ano de 1985, após o encontro com líderes afro- brasileiros, o Presidente José Sarney, apesar do
seu apoio a democracia racial, propôs, mas nunca implementou, o Conselho Negro de Ação
Compensatória. Entretanto, no ano de 1988, no dia 13 de maio, centenário da Abolição da Escravatura,
José Sarney anunciou a criação do Instituto Fundação Cultural Palmares. No mesmo ano é promulgada
a nova Constituição, que vem com artigoscomo a proteção ao mercado de trabalho da mulher,
dosdireitos sociais, e a reserva percentual de cargos e empregos públicos para deficientes.
Apesar de não terem sido implementadas, esse conjunto de iniciativas no âmbito do Poder Público
indica um parcialreconhecimento da existência de um problema de discriminação racial, étnica,
degênero e de restrições em relação aos portadores de deficiência física no país, sinalizadopor meio
de algumas ações. Os anos de 1990 trouxeram algumas mudanças.
Entre os anos de 1995 a 1999, setores da sociedade brasileira começaram a desenvolver um conjunto
restrito de políticas de ação afirmativa. Esse conjunto de iniciativas no âmbito do Poder Público
indica um parcial reconhecimento da existência do problema de discriminação racial, étnica, de
gênero e de restrições em relação aos portadores de deficiência física no país, sinalizado por meio de
algumas ações, porém, são muito circunstanciais. Em 1995, o Presidente da República e institui,
por decreto, o Grupo de Trabalho Interministerial (GTI) para desenvolver políticas de valorização e
promoção da população negra ( Telles, Idem).
No âmbito do movimento negro, a Marcha Zumbi contra o Racismo, pela Cidadania e pela Vida, em
1995, representou um momento de maior aproximação e pressão em relação ao Poder Público. O
esforço no sentido de pensar propostas de políticas públicas para a população negra pode ser observado
no Programa de Superação do Racismo e da Desigualdade Racial, apresentado pelo movimento ao
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governo federal, e que inclui dentre suas sugestões: incorporar o quesito cor em diversos sistemas
de informação; estabelecer incentivos fiscais às empresas que adotaremprogramas de promoção da
igualdade racial; instalar, no âmbito do Ministério do Trabalho, a Câmara Permanente de Promoção
da Igualdade, que deverá se ocuparde diagnósticos e proposição de políticas de promoção da igualdade
no trabalho; regulamentar o artigo da Constituição Federal que prevê a proteção do mercado de
trabalho (GODINHO, 1996).
No dia 13 de maio de 1996, é lançado o Programa Nacional dos Direitos Humanos (PNDH) pela
recém-criada Secretaria de Direitos Humanos, que estabelece como objetivo, dentre outros,
desenvolver ações afirmativas para o acesso dos negros aos cursos profissionalizantes, à universidade
e às áreas de tecnologia de ponta, além de formular políticas compensatórias que promovam social
e economicamente a comunidade negra. e apoiar as ações da iniciativa privada que realizem
discriminação positiva (Brasil, 1996, p.30).
Porém, a política de ação afirmativa teve seu início, de forma mais abrangente somente em 2001,
ano da Conferência I Conferência Mundial contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia
e as Formas Conexas de Intolerância em Durban, na África do Sul. O Brasil se comprometeu a
implantar ações afirmativas para reverter o quadro de desigualdades raciais entre brancos e negros.
Esta política busca prevenir a discriminação e inclui uma série de mecanismos criados para
proporcionar iguais oportunidades e reduzir o racismo em termos gerais, acabando por vezes promover
as vítimas de discriminação.
Em 2003 foi criada a SEPPIR (Secretaria Especial de Promoção da Igualdade Racial). Estainiciativa
desencadeou emuma série de outras medidas que estão no centro do debate nacional, sendo a luta
pela aprovação do Estatuto da Igualdade Racial o mais recente motivo de debates em torno das
ações afirmativas. O principalpapel desta secretaria éestabelecer iniciativas contra as desigualdades
raciais no país, promovendo a igualdade e a proteção dos direitos de indivíduos e gruposraciais e
étnicos afetados pela discriminação e demais formas de intolerância, enfatizando à população negra.2
A forma de atuação dessa Secretaria pressupõe a coordenação, promoção, articulação e
acompanhamento entre os diferentes Ministérios, e outros órgãos do governo, para a implementação
de políticas de promoção da igualdade racial. Além de promover eacompanhar o cumprimento de
acordos e Convenções Internacionaisassinados pelo Brasil, que digam respeito à promoção da
igualdade ecombate à discriminação racial ou étnica. Outro objetivo da Secretariaé auxiliar o Ministério
das Relações Exteriores nas políticasinternacionais, no que se refere à aproximação de nações do
Continente Africano. A principal referência para o inicio da atuação da Secretaria foio programa’’
Brasil sem Racismo’’ que abrange a criação de políticaspúblicas em diversas áreas. Outros instrumentos
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legais que dão suportea atuação dessa secretaria são a Política Nacional de Promoção da Igualdade
Racial - PNPIR e as resoluções da Conferência Nacional dePromoção da Igualdade Racial –
CONAPIR.3
Entretanto, mesmo com todas as lutas dos movimentos sociais no Brasil, no entanto, a aceitação do
outro, do diferente nas relações raciais, regionais, lingüísticas, sexuais, religiosas e outras, dependerá
do avanço de uma sociedade no sentido de educar o conhecimento dos indivíduos sobre a identidade,
a cultura, a religião desconhecida a fim de diminuir o preconceito. A ampla movimentação social,
partidária, sindical e cultural em defesa do direito de todos os excluídos é também modo de educação
política e informal de uma sociedade. A mudança de postura da população é de fundamental
importância para que haja uma mudança significativa no panorama atual, em que o racismo ainda se
faz presente.
Para Silva (2002) o principal objetivo da ação afirmativa para a população negra é combater o
racismo e suas conseqüências, além de introduzir mudanças de ordem cultural e de convivência
entre os ‘’diferentes’’. O debate sobre as ações afirmativas começou pelas cotas numéricas, ao invés
de seguir o caminho adequado da discussão da necessidade de políticasdestinadas ao combate ao
racismo e corrigir seus efeitos. Os setores dos movimentos sociais que lutam pela redução das
desigualdades raciais, e que apóiam a implementação de cotas, as entendem como estratégia política
de abertura de um processo de negociação de longo prazo no combate as desigualdades raciais.
Para que um programa de ações afirmativas seja efetivo, oferecer oportunidades é apenas o começo.
É fundamental garantir as condições materiais para que as dificuldades ou desníveis sejam superados
e as escolhas possam ser feitas de maneira conseqüente, a médio e longo prazos. Mas além das
iniciativas desenvolvidas no âmbito do ensino superior, faz- se necessário investir no preparo escolar
daquelas pessoas que concorrerão á Universidade, ainda no ensino médio; combater, através da
formação dos educadores e educadoras, as manifestações de racismo e da discriminação racial, que
são produzidas e reproduzidas no ambiente escolar. No entanto, há a necessidade de pensar nas
condições de acesso, permanência e sucesso para jovens negros e outros setores excluídos da
universidade e do mercado de trabalho (SILVA, Idem).
O sistema de cotas americano
Nos Estados Unidos, a instituição do sistema de cotas se deu em meados os anos 60, época em que
a população norte- americana lutava por direitos civis, forma de promover a igualdade entre negros
e brancos norte – americanos, pois o contexto era de um país com segregação racial.Com isso, os
programas afirmativos surgem com o objetivo de tentar reverter os efeitos negativos da segregação
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institucionalizada que teve início, posteriormente, à abolição da escravatura. Essa realidade de
segregação passa a ter fundamentação legal a partir de decisões da Suprema Corte, que considerava
constitucionais acomodações separadaspara brancos e negros em transportes públicos, desde que
fossem equiparáveis. A filosofia do “igual, mas separado” construiu uma barreira, negando aos
negros o livre acesso à moradia, restaurantes e à maioria dos serviços públicos. Até a década de
1970, leis impediam o casamento de negros com brancos, e aos negros não era permitido votar
(ANDREWS, 1997).
O Ato de Direitos Civis de 1964 foi alterado a fim de proibir toda e qualquer discriminação por raça,
cor, religião, origem nacional e sexo em instituições educacionais. Nos termos desta lei, um acadêmico
poderia ingressar em uma universidade pública ou privada. Para além da recompensa para o indivíduo,
o tribunal poderia ordenar à instituição educacional a ter ações afirmativas para evitar futuras práticas
discriminatórias Em quarto lugar, América beneficiou-se do aumento súbito da legislação dos direitos
civis na década de 1960, que proibiu a discriminação na educação, mas também nas acomodações
públicas e no emprego. Isto criou sinergias dentro das instituições, organizações e nos órgãos
jurisdicionais que, em geral, avançou a agenda dos direitos civis. (SOMERS; JONES ,2009).
A expressão ações afirmativas foi utilizadaem 1961,durante o governo de Jonh Kennedy. O então
Presidente criou um comitê para avaliar a questão das oportunidades no mercado de trabalho
americano. Em 1965, o presidente Lyndon Johnson passa a exigir das empresas que recebiam contratos
do governo federal um tratamento não discriminatório no emprego e um programa de ações afirmativas
que visassem combater os efeitos da discriminação passada. Em 1967a categoria sexo passou a ser
usada como critério para ações afirmativas e, em 1972, as mesmas exigências passaram a valer
também para as instituições educacionais. O esforço do governo federal para implementar uma
política que fosse além de uma postura de antidiscriminação passiva, fez com que o poder público
trabalhasse em benefício de vítimas de discriminação social. No entanto, os programas de ação
afirmativa deveriam apresentar objetivos e procedimentos claros, que traduzissem um esforço no
sentido de igualar as oportunidades de emprego. Com isso a elaboração de planos de ação afirmativa
passa a ser solicitadas para empresas e instituições educacionais, e passam a ser estabelecidas punições
para caso as exigências não fossem cumpridas (WASHINGTON; HARVEY, 1989).
Oliven (2007) afirma que a partir do momento em que os negros passaram a ganhar mais benefícios
políticos, outros grupos passam a identificar-se como discriminados e com isso passam a se organizar
para alcançar as mesmas conquistas. Entretanto, surgem quatro grandes grupos que passam a se
beneficiar das ações afirmativas:african-americans, negros nascidos nos Estados Unidos;nativeamericans, descendentes de índios que pertencem a váriosgrupos, grande parte deles vivendo nos
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territórios indígenasdemarcados;asian-americans, descendentes de asiáticos que formam umgrupo
muito heterogêneo e hispanics, mexicanos, porto-riquenhos, cubanos e demaismigrantes de outros
países da América Central e do Sul e seus descendentes, que podem ser brancos, indígenas ou
negros.
Essa diversidade de grupos beneficiados pelo sistema de ações afirmativas acabou por dar margem
a uma vulnerabilidade do programa. Entretanto, a presença de grupos que até então eram excluídos
das universidades passa a ser vista como uma expressão do multiculturalismo.
Comparações entre os sistemas de cotas brasileiro e americano
Nos Estados Unidos houve uma política de Estado afavor da adoção de ações afirmativas, que
iniciou-se, nos anos 60, primeiramente no mercado de trabalho, e depois nas instituições educacionais.
A implementação do sistema de cotas e medidas preferenciais que favorecessem a inclusão e
permanência de grupos étnicos socialmente discriminados nas universidades, permaneceu durante
várias décadas e atualmente está enfrentando alguns impasses e sofrendo modificações. O movimento
negro e o movimento pelos direitos civis nos Estados Unidos foram influenciados pelas lutas de
libertação das colônias africanas e asiáticas do jugo europeu. O discurso era baseado na construção
da cidadania, da libertação e constituição de novas nações independentes.
No Brasil, a implementação do sistema de cotas raciais em universidades é mais recente, apesar do
Movimento Negro ter lutado para sua implantação desde meados dos anos 70. Nesse mesmo período,
a ideologia da democracia racial no Brasil não tinha sido fortemente questionada por dados de
pesquisas, que passaram a mostrar, de forma mais contundente, a desigualdade entre brancos e
negros e o preconceito racial na sociedade brasileira.
A sociedade americana teve que reconhecer que leis igualitárias universais ou antidiscriminatórias a
favor das minorias raciais não eram suficientes para torná-las iguais. Era necessária a intervenção do
Estado para combater a exclusão racial e social dos afro- descendentes. Com isso, as ações afirmativas
foram sendo implementadas em diversas áreas, com o objetivo de promover a igualdade estrutural
das minorias raciais (CÉSAR, 2005).
A experiência brasileira, neste sentido não apresenta muitas diferenças, apesar de ter começado
tardiamente, e com isso encontrando impedimentos estruturais. A Constituição de 1988 se apresenta
como uma regulamentação da ‘’solução’’ dos problemas dos grupos minoritários, porém após muita
pressão dos movimentos sociais para maior inserção dos negros no mercado de trabalho e
universidades é que o Estado passou a pensar em aplicar programas de ações afirmativas (CÉSAR,
Idem).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 40
Perspectivas após a implementação do sistema de cotas raciais no Brasil
Segundo Lewandowski, embora no plano biológico não mais sereconheça a subdivisão de raças,
destaca que “o racismo persiste como fenômeno social, o que significa que a existência das diversas
raças decorre da mera concepção histórica, política e social, e é ela que deve ser considerada na
aplicação do direito” (LEWANDOWSKI, 2012, p. 23). O autor acrescenta, ainda, que Constituição
de 1988 ao considerar o crime de racismo como inafiançável, considerouo conceito de raça não na
perspectiva biológica, mas na categoria histórico-social, realidade que autoriza o Estado a implementar
políticas positivasequalizadoras da discriminação com o objetivo de viabilizar a inclusão social
degrupos tradicionalmente desfavorecidos.
Durante o julgamento da constitucionalidade da adoção do sistema de cotas raciais
no Supremo Tribunal Federal, Boaventura de Sousa Santos argumenta:
“(...) temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e
e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí
a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença
que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades (SANTOS , 2003)”.
O sistema de cotas em universidades representa um avanço para a sociedade brasileira, pois com isso
a sociedade acaba por reconhecer que o racismo existe, e persiste em nosso país. As estatísticas
ainda comprovam que a maioria da população pobre brasileira é composta por negros,
consequentemente são os que têm menos acesso a uma educação de qualidade. A inserção dos
negros em um espaço até então ocupado por uma elite branca, faz com que a população
afrodescendente tenha mais chances de competir com igualdade de oportunidades no mercado de
trabalho.
A implementação de políticas dirigidas às populações negras permitiu aberturas para introdução das
demandas colocadas pelos movimentos sociais. Nunca foi dada tanta visibilidade a questão negra no
país. No entanto, se faz necessário que haja uma verdadeira preocupação com os problemas enfrentados
por essa população, além de uma maior valorização das contribuições culturais que os negros
trouxeram ao nosso país.
Considerações Finais
Apesar do grande debate em torno no sistema de cotas raciais para universidades, a ação foi baseada
em preceitos constitucionais e defendida por muitos intelectuais que vêem nas políticas de ação
afirmativa uma ‘’solução’’ temporária para minimizar as desigualdades existentes.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 41
O sistema de cotas raciais no Brasil foi implantando após anos de luta dos movimentos sociais, em
especial o Movimento Negro, que denunciou o mito da democracia racial e pressionou o governo a
criar programas de inclusão de afro descendentes nas universidades.
O histórico da implementação do sistema de cotas raciais americano mostra que a política de ação
afirmativa iniciou-se antes do sistema brasileiro, com o objetivo de incluir os negros norte americanos
no ensino superior, pois os negros norte americanos eram vetados ao acesso a condições dignas de
saúde, educação, moradia, e isso acaba por recair sobre o mercado de trabalho.
Ao comparar os históricos de criação do sistema de ações afirmativas brasileiro e americano, são
notadas poucas diferenças, porém nos Estados Unidos tem menos variações raciais do que o Brasil,
com isso facilitando a seleção dos afro americanos para ingressar no nível superior.
A política de cotas terá cumprido com sua finalidade quando houver melhora efetiva na educação
básica de qualidade e o espaço universitário transformar-se em um espaço não só de formação
acadêmica, mas também de formação de líderes que representem a diversidade de grupos sociais e
sejam sensíveis aos benefícios para a sociedade advindos do pluralismo de ideias.
É fundamental conscientizarmos a população para os prejuízos que não apenas o preconceito racial,
mas qualquer tipo de preconceito causa a sociedade brasileira, pois se houver a união rumo a conquista
da plena cidadania, haverá a oportunidade de transformar o Brasil em uma nação mais justa, plena e
democrática.
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NOTAS
2
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Gestão 2003-2006.p.17 Brasília: SEPPIR. Disponível em: <www.presidencia.gov/seppir> Acesso em
25.mar.2013.Disponivel em : <www.presidencia.gov/seppir> Acesso em 25.mar.20133BRASIL, Presidência da
República. Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial. Relatório de Gestão 2003-2006.p.9
Brasília: SEPPIR. Disponível em: <www.presidencia.gov/seppir> Acesso em 25.mar.2013
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 43
RESULTADOS ETNOGRÁFICOS DA PROSTITUIÇÃO DE TRAVESTIS E GAROTOS
DE PROGRAMA DO RECIFE
Eder da Silva Deodato
Sociólogo pela Universidade Federal Rural de Pernambuco – UFRPE. Mestrando em
Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco.
Maria Cecilia Patrício
Doutora em Antropologia pela Universidade Federal de Pernambuco. Professora da Faculdade
Joaquim Nabuco, Recife e Paulista. Pesquisadora do NUPEGE, UFRPE.
Resumo
É visível que tanto a prostituição de travestis quanto a prostituição masculina cresce no Recife, principalmente
em ambientes homossexuais. O objetivo central desse estudo é analisar e debater alguns dados etnográficos
desses tipos de prostituição obtidos em pesquisas de campo realizadas em alguns lugares destinados ao
público LGBTs onde ocorre a prática da venda do sexo, como por exemplo: Cinemas eróticos, saunas
masculinas, avenidas especificas e boates. Esses dados foram obtidos por meio de um olhar antropológico,
que teve a finalidade de descrever como e onde ocorre a prostituição e a circulação dos profissionais do sexo
na cidade na capital pernambucana. Sendo assim, fica clara a intenção de preservar e compreender o caso
em seu todo e sua unicidade, como indica a metodologia de um estudo de caso numa etnografia multisituada,
que se caracteriza como uma averiguação em que o investigador não se fixa a uma única zona geográfica e
contexto Dessa maneira, os resultados a serem alcançados almejam trazer à luz a compreensão do universo
no qual vivem e transitam os sujeitos envolvidos em uma esfera social marginalizada e obscura para a
compreensão da sociedade como um todo.
Palavras-chave: garotos de programa; trans; prostituição; homossexualidade; Recife, .
ALGUNS DADOS ETNOGRÁFICOS DA PROSTITUIÇÃO DE GAROTOS DE
PROGRAMA E TRANS NO RECIFE
1. Um olhar etnográfico da prostituição masculina no Recife.
Na contemporaneidade, a rotatividade de michês que tentam ganhar a vida3 na Veneza4 brasileira
vem aumentando de uma maneira significativa de acordo com observações e estudos que estão
sendo realizados com a temática. Pesquisas iniciadas em 2010 constatam o crescimento dos
profissionais do sexo atuantes em saunas, cinemas pornôs, boates e avenidas na capital pernambucana,
juntamente com as percepções dos próprios garotos de programa que se prostituem em Recife.
Antes, a mais ou menos uns cinco anos atrás, não tinham tantos caras [garotos de
programa] na pista, eu fazia ponto aqui sozinho, hoje divido com mais dois caras
o meu ponto, ai não é nada fácil pra mim, não é? (J. J. 26 anos).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 44
Tanto a narrativa dos informantes quanto os dados de análises de estudos feitos sobre o assunto
(DEODATO, 2010) evidenciam esse crescimento, porém a sociedade como um todo, não toma
conhecimento desse fato, deixando assim, o exercício da prostituição ocultada e excluída da esfera
do campo social. Mas o porquê esse abandono social ocorre? Quais os motivos da falta de debate e
esclarecimento em torno da prostituição masculita tende a ficar cada vez mais oculta perante a
sociedade? Por que o baixo número de políticas púbicas voltadas os profissionais do sexo masculino?
Por que a sociedade insiste em excluir esses profissionais do âmbito cultural? O porquê da falta de
visibilidade com o assunto? Existem várias respostas para essas perguntas, porém a resposta mais
evidente está diretamente interligada com a homofobia e com a não aceitação das práticas
homoeróticas ocorrentes entre os garotos de programa e seus clientes. A homossexualidade ainda é
vista de forma não-aceitável e condenada por parte da sociedade brasileira, onde a cada dois dias,
um homossexual é assassinado. Esse lamentável número deixa o Brasil com o título do país mais
homofóbico do mundo, ficando na frente do México e dos EUA que ocupam a segunda e terceira
posições respectivamente5.
Então, como a prostituição masculina está emaranhada com a homossexualidade, os michês e trans
no Recife acabam sofrendo o preconceito e a exclusão pelos seus atos homoeróticos. Refere-se aqui
á “atos homoeróticos” porque não se cabe afirmar que todo garoto de programa seja obrigatoriamente
homossexual ou bissexual. Alguns se auto-reconhecem como heterossexuais e mesmo fazendo sexo
com outros homens, sua percepção de si próprio é no contexto da heterossexualidade. Assim como
as trans, travestis e transexuais6
Estou nessa vida porque não tive alternativa. Desempregado, sem experiência em
trabalho, o que eu podia fazer? Um dia eu tava aqui de noite, parou um carro
bacana e o coroa que tava dentro me perguntou se eu queria dar uma volta com ele.
Quase bati nele, gritei que não era veado, mas quando ele mostrou a carteira,
aceitei e comi ele por 50 reais. Estou nessa vida desse dia até hoje. Mas sou homem
mesmo, nem sou veado nem gillette7, sou hetero mesmo. (P. S. S, 29 anos)
Este garoto faz ponto8 no Recife desde 2006, e, mesmo tendo mantido relações sexuais com um
significativo número de homens, ele afirmou que é heterossexual, que tem duas filhas, é casado, mas
a esposa nada sabe desse seu lado profissional sempre assegurando que não fazia sexo anal na
posição de passividade, pois “dar abunda é coisa de bicha”, completa.
Para esse e outros informantes, que foram entrevistados na construção desse estudo preliminar, os
papéis sexuais é o que define a orientação sexual, ressaltando a “superioridade” do ativo9. De acordo
com Fry (1985) na mentalidade das pessoas com exercícios homossexuais, o ativo é “superior” e
essa “superioridade” é expressa em palavras como “comer” ou “dar”, ou seja, “mesmo que o homem
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 45
mantenha relação sexual com outro homem, o seu status de homem não é arranhado socialmente
porque as identidades sexuais estão baseadas na atividade e passividade” (LIMA, 2006, p.23).
No Recife é possível encontrar determinados lugares onde esses profissionais atuam e se
propagandeiam. Em cada local, os michês tem características peculiares diferentes, assim como as
trans – travestis e transexuais – que se inserem na atividade de prostituição, isso que dizer, que o
comportamento, a performance, os valores, os atos sexuais, a aparência física e a abordagem são
diferenciadas e caracterizadas de acordo com a localidade onde eles trabalham.
Na região metropolitana do Recife podemos encontrar quatro10 saunas masculinas onde a prostituição
de homens se faz presente, e que os garotos de programa se autodenominam “boys”. Esses lugares
são frequentados exclusivamente por homens a procura da socialização homossexual. Ocorre certa
diferenciação entre esses quatro estabelecimentos e ao mesmo tempo algumas particularidades em
comum.
Logo quando um cliente chega na sauna, ele faz seu cadastro como visitante, recebe uma toalha e
um par de chinelos juntamente com uma chave contendo um número que indica o armário em que
ele pode guardar seus pertences pessoais. Em frente a esse armário, o visitante tira sua roupa e fica
usando uma toalha e as sandálias, alguns usam sunga de banho.
Os ambientes das saunas geralmente são os mesmos: bares, sala de estar com TV e cadeiras ou sofá,
banheiros coletivos, cabines contendo um colchão em cima de uma pseudocama com a finalidade de
atos sexuais, sala de vídeo com exibição de filmes pornográficos, tanto heterossexual quanto
homossexual, e, por fim, a sauna propriamente dita, podendo ser a vapor ou não.
Um ponto em comum com todas as saunas recifenses é a discrição do local onde ela se localiza. Em
todas elas, não se encontra anúncio, placas ou qualquer indicação que ali se localiza uma sauna
masculina. Em conversas informais com um frequentado, o motivo que ele alega dessa discrição é a
privacidade dos clientes e a não exposição do mesmo, já que a grande deles parte possui uma vida
sexual dupla entre os desejos homossexuais e a vida social nos padrões da heterossexualidade, com
esposas e filhos.
Eles não colocam propaganda para não espantar os clientes, por conta do ramo
que é destinado a eles sabem se colocar uma coisa mais explicita , vai inibir as
pessoas de frequentar o local, e os clientes querem uma certa privacidade e descrição,
já que existe uma timidez e constrangimento em admitir as coisas que fazem. As
pessoas que vão, não querem ser vistas frequentando aquele lugar, então quanto
mais discreto, melhor. São geralmente os caras casados que não querem ser
descobertos que preferem essa privacidade toda. (F.H 28 anos, que frequenta saunas
gays desde seus 22 anos).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 46
Na Sauna um, a mais conhecida do Recife, localizada no bairro da Boa Vista, próximo à Universidade
Católica, funciona todos os dias da semana das 15 horas até às 23 horas, exceto nas sextas, sábados
e véspera de feriados em que o cliente pode pernoitar, pois o funcionamento vai até às 5 horas com
direito a café da manha para os frequentadores. Nessa local em particular, além de todos os ambientes
citados a cima comum em todas as saunas, ela tem alguns diferencias que atraem ainda mais
frequentadores de saunas masculinas: Serviços de salão de beleza (com corte de cabelo, tintura e
depilação), manobrista e internet gratuita.
Diariamente encontra-se em média de 15 profissionais do sexo podendo variar de acordo com o dia
da semana. É comum também nos fins de semana e véspera de feriados, acontecer apresentações de
Drag Queens11 e Streeps12. O valor para entrar nesse ambiente varia entre R$ 25 a R$ 30, dependendo
do dia e da hora de chegada. Por ser considerada uma sauna de alto nível entre os frequentadores do
lugar, e com um número maior de serviços à disposição dos clientes, os garotos de programa dessa
sauna cobram um valor mais elevado do que a média das outras saunas (variando entre R$ 100 e R$
150).
Outra sauna pernambucana com um elevado número de visitantes e uma das preferidas do público é
a Sauna dois, localizada no bairro de Boa Viagem próximo ao Mar Hotel, que funciona todos os dias
da semana, com a entrada no valor de 25 reais, Nessa sauna atuam uma quantidade menor de
rapazes (em média 10 por dia), porém, devido a sua localidade, o ambiente é frequentado por um
elevado número de turistas, e os garotos de programa desse lugar aproveitam desse fato para faturarem
mais financeiramente. Percebendo pelo sotaque ou outra característica física que indique que o
cliente não é reside em Pernambuco, os boys de programa dobram ou até triplicam o valor de seus
serviços.
Quando percebo que o cliente não é daqui, gringo ou tipo assim, aumento. Esse
povo que vem de fora tem mais dinheiro, então eu aplico né? ! (N.A.K.C. 29 anos)
A cidade possui mais duas saunas conhecidas: A Sauna três e a sauna quatro, ambas localizadas no
bairro da Boa Vista. Nesses lugares, o custo de frequentar é bem inferior comparado com a s duas
primeiras, já que uma característica que as diferenciam das outras é valor, tanto das entradas, bebidas
e aperitivos, quanto do valor cobrado pelos michês. Sendo assim, o valor é do programa fica em
média de R$ 40.
Mesmo com diferentes características entre as saunas, há um ponto em comum entre os garotos de
programa que trabalham nesses locais: O público alvo do michês. Geralmente os garotos de programa
procuram pessoas com a idade mais elevada para oferecer seus serviços, já que de acordo com suas
narrativas, para os mais jovens é mais fácil encontrar outra pessoa para fazer sexo, bem diferente dos
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 47
mais velhos, que lhes garante o programa, como narra S. P. T. A. de 23 anos, que trabalha como
garoto de programa desde os 17 anos:
Os velhinhos não ficam com ninguém, é raro isso acontecer porque ninguém quer
eles, então fica mais fácil pra mim, sacou?
Os atos sexuais entre garotos de programa e clientes nas saunas ocorrem em cabines de tamanho
pouco comum para a realização de atos sexuais entre duas pessoas, (cerca de dois metros quadrados),
que geralmente possuem uma mine cama. Além disso, alguns clientes preferem outros locais, como
motéis, para a realização dos serviços sexuais com os garotos de programa escolhidos, como afirma
S.P.T.A.:
Tem cliente que nos pega e leva pra o motel pra fica a noite todinha com eles.
Adoro quando isso acontece, porque eu ganho mais dinheiro.
O entrevistado, nesta fala, deixa claro que quanto mais tempo passa com o cliente, mais ele se sente
satisfeito, já que a remuneração aumenta de acordo com a quantidade de horas que os michês
permanecem no programa.
Neste sentido, se apresenta aqui um adendo sobre as trans, pois estas não realizam programas nas
saunas do Recife, nem sequer costumam frequentar estes ambientes. Ainda, quando algumas delas
se deslocam até estes espaços é para socialização sexual – ou seja, para se relacionarem com os
michês como parceira, pois a situação representa um momento heterossexual dos garotos para
atrair clientes.
A prostituição de homens que ocorre nos cinemas pornôs recifenses tem aspectos bastante
diferenciados da de michês que trabalham em saunas. Nesses locais, os garotos de programa cobram
de acordo com o ato sexual que o cliente deseja, como demonstra o informante K. F. de 21 anos,
garoto de programa há um ano:
Pra chupar ou ser chupado [sexo oral] eu cobro dez, pra comer [ser ativo na relação
sexual] cobro trinta, agora pra ser comido [ser passivo no sexo anal] cobro 40
reais e tem que ser rápido, não pode demorar, senão aumenta.
Outra particularidade desses locais em relação a os outros ambientes de prostituição masculina está
vinculada a propaganda quem nesse caso, pode ser observadas nas entradas desses espaços. Diferente
das saunas, logo em frente aos cinemas, podemos ver cartazes de filmes pornográficos em exibição
no ambiente. Porém, os anúncios são de filmes de cunho heterossexual, e sendo assim, o frequentador
não fica com o seu status social prejudicado frequentando os cinemas, já que o pressuposto do local
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é um ambiente de homens viris, embora o recinto seja repleto de homossexuais assumidos que estão
à procura de sexo.
Nos cinemas eróticos do Recife, dois deles investigados para este estudo, se encontram travestis em
número maior do que garotos de programa fazendo ponto. Neles, é possível visualizar muito bem a
diferença para com as saunas, na medida em que o ambiente se destina a projeção de filmes
heterossexuais e homossexuais, com presença forte de homens na plateia, em sua maioria de idade
avançada13, se apresentando como clientes em potencial.
O cinema onde se pode observar o maior número de michês está localizado na Rua do Imperador, no
bairro de Santo Antônio. Esse local possui duas salas de projeção de filmes eróticos (uma expondo
filmes heterossexuais sexuais e outra filmes homossexuais), um bar com duas mesas largas, uma
érea de fumantes, e dez cabines de relax, contendo nos seus interiores uma cama e um mine banheiro.
Outro cinema em que se pode visualizar garotos trabalhando como michês está localizado na Av.
Dantas Barreto. Embora com uma média de cinco garotos por dia (DEODATO, 201014), quantidade
pequena em relação a de travestis nestes ambientes, os michês atuam por causa do elevado número
de homens – identificados como homossexuais ou não – que frequentam esses locais. É comum nos
cinemas o ato sexual ocorrer na dependência dos banheiros, já que o número de cabines não supre o
número de clientes, quando há.
O caso do primeiro cinema observado, em seu segundo piso de localizam 10 quartos, chamados
“reservados”, de entre 4 a 6m² cada. Para se ter acesso a estes reservados é preciso desembolsar
entre R$ 10 e R$ 12, dependendo do tamanho destes. No primeiro piso se encontra bar e dois WC,
com mais uma unidade no segundo piso15. Na dependência do bar se pode ter direito, com devido
pagamento, a chave do reservado, um sabonete e dois preservativos masculinos. Como dito
anteriormente, com publico maior de travestis, entre os que vão fazer programa, e homens em sua
plateia, como clientes tanto de trans como de michês.
A exibição corporal é a maneira mais tradicional que os michês e trans que trabalham em vias
públicas, encontram para seduzir clientes. Sempre durante a madrugada e exposta a qualquer pessoa
que porventura esteja frequentando o local, (diferentemente dos cinemas e saunas que a prostituição
ocorre também durante o dia) os garotos de programa atraem os clientes através da exposição do
corpo pelo meio de calças apertadas e camisetas regatas e sempre levando sua mão ao pênis, em
demonstração de sua intenção em comercializar o ato sexual. Quando um carro estaciona próximo
a eles, o garoto de programa se aproxima, e poucos minutos depois ele entra no carro e segue
acompanhado de um provável cliente.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 49
Durante as narrativas dos garotos que prestam serviços em vias públicas, o discurso da violência e
perseguição é muito latente e mais elevado em relação às narrativas dos garotos que trabalham em
ambientes fechados.
Uma vez um cliente que parecia ser gente boa me pegou e disse que agente ia pra
um motel. Acertei o valor e logo depois entrei no carro, mas logo depois me levou
pra uma casa e quando entrei tinha mais quatro homens que me bateram, me
estupraram sem camisinha, e logo depois me jogaram no meio de uma rua deserta.
Eu nem sabia onde estava. Foi horrível. (A. P. F. de 19 anos)
A violência nas ruas se torna mais frequente, também, porque o ato sexual dos garotos que realizam
o trottoir pode acontecer em ruas desertas, terrenos afastados, praias ou dentro dos carros dos
próprios clientes, assim como outros personagens que vivenciam a prostituição de rua, como as
travestis. As duas principais avenidas onde ocorre a prostituição são as Avenidas Boa Viagem e
Conde da Boa vista, onde recentemente houve uma diáspora dos garotos de programa para ruas
paralelas, devido à instalação de câmeras filmadoras da Prefeitura para acompanhar o movimento da
via com intuito de aumentar a segurança na região central da cidade. No caso das travestis, as
avenidas mais frequentadas por elas são a Conselheiro Aguiar, no bairro de Boa Viagem, Mascarenhas
de Morais, no bairro da Imbiribeira e Mário Melo, no bairro da Boa Vista. Todas com destaque para
o trottoir a partir das 19:30h, horário diferenciado em relação ao tempo em que os garotos de
programa de deslocam para os espaços públicos.
Uma análise sobre o discurso de garotos de programa e trans no Recife
Para compor este artigo foi preciso realizar alguns recortes de relatos extraídos de entrevistas feitas
com os informantes durante a pesquisa de campo desde 2006. Foi verificado que “a maioria dos
clientes quando vão procurar o sexo pago querem homens com características masculinas e de boa
aparência”, segundo Deodato (2010).
Sendo assim, os garotos de programa, geralmente, têm uma performance masculina e estão sempre
vestidos com roupas de grife, perfumados, com cabelos bem cortados e com gel, a fim de agradarem
seus clientes. Essa boa aparência se refere a um modelo de beleza masculino e virilizado, quebrando
a ideia da imagem do homossexual sempre “afeminado” (op.cit.:44). Em relação a figura feminina
da travesti, o modelo do casal estabelecido entre cliente e profissional do sexo, mais estabelece uma
parceria heterossexual, pois a travesti se confunde com mulher, o que pode tornar invisível a possível
relação homossexual entre as duas pessoas envolvidas no ato, segundo Patricio (2002).
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Com relação à representação da performance do garoto de programa, fica em total acordo com
Suplicy (2000: 271) quando ela afirma que
por ir de encontro ao comportamento dos prostitutos (...) não coube a comprovação
do estereótipo ‘afeminado’ que é destinado ao homossexual masculino, inclusive é
falsa a imagem que se faz do homossexual sempre afeminado.
De acordo com os rapazes entrevistados, raramente jovens e de boa aparência procuram seus serviços
sexuais. Geralmente são homens mais velhos (acima dos 35 anos) que mais os procuram para sexo.
E, quando perguntados sobre o estado civil dos clientes, todos (independente do local onde trabalham)
responderam que “a maioria dos nossos clientes são homens casados e pais de famílias”. E como já
foi comentando antes, o motivo dos pontos de prostituição serem relativamente, e estrategicamente,
em lugares afastados e discretos, é a intenção de manter a privacidade dos clientes. O mesmo ocorre
entre o discurso das travestis.
Eu já saí com advogado, juiz, médico, político, tudo gente importante e casado. E
não pergunto se eles são casados ou não, pra mim o importante é o dinheiro na
minha mão, mas eu vejo aliança, fotos de crianças que devem ser filhos deles. Às
vezes as mulheres deles ligam pra eles na hora que está acontecendo o programa,
aí eles inventam uma desculpa. Teve uma vez que eu me encontrei com um cliente
no shopping, tava lá ele e a esposa com duas menininhas, ele me olhou, fingiu que
não me conhecia. Na mesma noite me ligou pra marcar um programa. Eu fui, tava
precisando do dinheiro. (M. B. S. 21 anos. In: DEODATO, 2010, 45).
Nas entrevistas, os garotos de programa sempre comentam sobre suas vidas pessoais, e percebe-se
que isso causa certo constrangimento, principalmente naqueles que são casados ou possuem algum
tipo de relacionamento estável, tanto homossexual quanto heterossexual. A maioria afirmou que
suas respectivas esposas, parceiras ou parceiros não sabem do estilo de vida que levam.
A partir da pesquisa realizada, sente-se a necessidade de estudar as identidades sociais de gênero
dos garotos de programa por meio da construção de suas performances, já que estudos desta natureza
já vem sendo feito há algum tempo em relação a travestis16. Essa necessidade se estabeleceu quando
foi perceptível o afastamento de ambientes destinado à prática da prostituição de lugares
movimentados, onde esse distanciamento colabora com a privacidade dos clientes.
Outra característica da prostituição masculina é o número significativo de homens que só atendem
mulheres, embora as observações empíricas mostrassem que há existência de um número maior de
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garotos que atendem qualquer cliente: homens, mulheres ou casais. Essa diversificação no atendimento
dos garotos de programa condiz com a variação comportamental descrita por Bruckner e Finkielkrant
(1981, p.83):
(o) a prostituto (a) não é um corpo que goza, se comove, ri, chora, se dilacera, se
extasia, sofre, é um corpo que trabalha, que representa um personagem particular
numa peça escrita pelos clientes, é um corpo que encarna o teatro de um estranho.
Outra maneira da prática da prostituição constatada durante o trabalho etnográfico e depoimentos
dos informantes, foi o crescimento de garotos de programa e travestis que utilizam da internet para
exercer seu trabalho. Através de sites de relacionamento pessoal e chats virtuais, pode-se constatar
que a internet está ajudando os profissionais do sexo a exercer seu trabalho no Recife, e isso se torna
uma vantagem para os garotos de programa e travestis, porque através de fotos ou webcam, eles
também podem exibir o corpo, o órgão sexual, facilitando assim, a negociação entre eles e os clientes.
Nesse ambiente virtual, podemos, facilmente, encontrar perfis com fotos de muitos michês nas
comunidades específicas para esse fim. Podemos também verificar no relato abaixo, uma mudança
de postura e, consequentemente, de identidade social, no qual o entrevistado afirma que se sente
mais seguro com o uso das redes sociais ao invés de se expor nas ruas.
Hoje estou ganhando mais dinheiro porque agora só atendo pela net. Eu entro nas
comunidades G.L.S., me ofereço, mostro meu pau, e as bichas velhas ficam loucas
e me chamam. Aí vou na casa delas ou pra motéis, faço o que tenho que fazer e
volto pra casa pra procurar outro cliente. (risos). E o melhor que eu não trabalho
mais em ruas, que é muito perigoso trabalhar na rua à noite. (T.N. de 26 anos, In:
DEODATO, 2010)
De modo específico, o relato acima condiz com o que afirma Hall (2002:48) ao identificar que a
identidade não é algo inato, mas formado e transformado no interior da representação, ou seja, pelo
modo como podemos identificar uma cultura local por meio de elementos simbólicos expressos por
essa cultura.
Assim, a identidade social de gênero do garoto de programa emerge e se constitui nas redes sociais
a partir das interações com as comunidades virtuais e os procedimentos de diferenciação das
performances construídas discursivamente nos grifos do exemplo acima, reforçado na frase “(...) Eu
entro nas comunidades G.L.S., me ofereço, mostro meu pau, e as bichas velhas ficam loucas e me
chamam (...)”.A performance construída por T.N. para si, a saber, daquele que é desejado, cobiçado
por sua virilidade ao ostentar uma visão falocêntrica, cria uma identidade social de gênero para si, a
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partir da diferenciação que ele faz dele e de seus clientes ao serem denominados pejorativamente de
“bichas velhas” e “ loucas”.
Esta análise condiz com o modo como Hall entende o conceito de identidade a partir da diferenciação.
Para este autor, não existe a representação da identidade unificada, mas como um construto de
diferenças. Em outras palavras, a identidade social de gênero de T.N., neste instante, se constrói e
reconstrói num processo dinâmico e inacabado, ao se diferenciar discursivamente de seu interlocutor,
por meio da construção da performance dele próprio e de seu interlocutor, tendo como meio de
atuação e constatação o âmbito da internet.
Outras informações importantes
Os principais motivos que levaram os rapazes entrevistados a se prostituírem, segundo os discursos
dos mesmos em Recife foram: Falta de oportunidade de emprego; aumento de sua renda mensal,
satisfação do desejo sexual e não aceitação da família sobre sua sexualidade. Nesse último motivo,
a homofobia que um homossexual sofre dentro do seio familiar, acaba conduzindo um jovem a
entrar na dita “vida fácil”, já que muitos homossexuais são expulsos de casa e sem alternativa, eles
começam a se prostituir, concordando com a afirmação de Bruckner e Finkielkrant (1981), quando
o jovem e encontra um homossexual “generoso” que lhe [dá] um pouco de dinheiro para tirá-los do
embaraço, depois, a preguiça, ajudada pelo vício se faz o hábito da vida fácil, e é difícil em seguida
é voltar atrás (BRUCKNER; FINKIELKRANT, 1981, p.128).
Meu pai descobriu não sei como, que eu estava saindo com um vizinho, e acabou
me expulsando de casa, ai fui pra casa de uma tia minha que também não me quis
lá por muito tempo. Ai fiquei sem chão e acabei aceitando um convite de um colega
meu que me chamou pra irmos num cinema pornô, tentar ganhar um dinheiro das
mariconas17 ¹ lá. Faz tempo isso, eu era novo, tinha uns 17 anos eu acho”. (No dia
da entrevista, o informante estava com 24 anos).
Outro fato relevante que vale a pena ser mencionado nessa pesquisa está relacionado com a saúde e
a proteção nos atos sexuais. O velho estigma de que os profissionais fazem parte do “grupo de
risco” em contaminação de doenças sexualmente transmissíveis e AIDS ainda é muito presente em
suas narrativas. Mesmo com mudança da ideia de “grupo de risco” e sim “comportamento de risco”,
alguns profissionais do sexo, alega sofrem com esse preconceito. Porém, quando questionados a
respeito do sexo seguro, os entrevistados afirmaram que sempre usam preservativos em todas as
relações sexuais no trabalho, independente do cliente oferecer uma quantia elevada de dinheiro para
ter relações sem o preservativo que constantemente acontece.
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Tem uns caras que pedem pra agente fazer sem camisinha, dizem que pagam mais
pra isso, mas eu nunca aceitei, pois tenho muito medo de pegar uma doença qualquer
e morrer por causa disso. (D. S. S, 18 anos).
A última parte das entrevistas realizadas para esse estudo direciona-se a uma questão da expectativa
do futuro dos garotos de programa, É nesse momento que eles reagem de maneira bastante insegura,
pois a maioria só possui no máximo o ensino médio sem nenhuma qualificação profissional, e tendo
consciência disso, eles demonstram um interesse excessivo pelo presente, deixando de lado o futuro
possivelmente incerto, como narra J. P. S. de 16 anos, garoto de programa desde os 14 anos:
Não adianta eu pensar no meu amanhã, que eu posso morrer daqui a dez minutos,
isso ninguém sabe. O importante e viver o agora e ser feliz e deixar o futuro nas
mãos de Deus.
Já outros, embora demonstrem também certa dúvida sobre as possíveis possibilidades de trabalho,
planejam mudar de ramo profissional e buscam no retorno financeiro da prostituição, um investimento
nos estudos, que de acordo com suas ideologias, podem garantir a saída do mundo do sexo-dinheiro
que eles convivem na vida profissional.
Estou juntando dinheiro pra sair daqui. Pago minha faculdade, pretendo arrumar
um emprego bom quando eu terminar e não ter que fazer mais programas e quem
sabe, esquecer que um dia eu já fiz isso. (P.P.Q de 27 anos)
Referências
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Garamond Universitária, 2005.
BRUCKNER, Pascau e FINKIELKRANT, Alain.1981, A nova desordem amorosa. São Paulo.
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Recife. Monografia (graduação em sociologia). Recife: UFRPE. 2010.
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São Paulo.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
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centro de João Pessoa.Dissertação de mestrado.João Pessoa.
OLIVEIRA, Neuza Maria de. Damas de Paus – o Jogo aberto dos travestis no espelho da mulher.
Salvador: Centro Editorial e Didático, 1994.
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PATRÍCIO, Maria Cecília. Travestismo. Mobilidade e Construção de Identidades em Campina
Grande. Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da
Universidade Federal de Pernambuco. Recife, mimeo, 2002.
___________. No truque: transnacionalidade e distinção entre travestis brasileiras. Tese de
Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Antropologia da Universidade Federal
de Pernambuco. Recife, mimeo, 2008.
PELÚCIO SILVA, Larissa Maués. Travestis, a (re) construção do feminino - gênero, corpo e
sexualidade em um espaço ambíguo. In: Revista Anthropológicas. Universidade Federal de
Pernambuco. CFCH. Programa de Pós Graduação em Antropologia (PPGA). Recife: Editora da
UFPE. ano 8, volume 15 (1): P. 123-154. 2004.
_______ Tudo de Bom para as travestis: uma breve discussão sobre o modelo preventivo em
HIV/aids entre um grupo de trabalhadoras do sexo. Trabalho apresentado no III Enchuman.
Campinas, Out. 2004a.
_______ Na noite, nem todos os gatos são pardos. Notas sobre a prostituição travesti. In:
Revista Cadernos Pagu. Revista semestral do Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu. Universidade
Estadual de Campinas. São Paulo: n. 25, p. 217 a 248, Jul./Dez., 2005.
________ “No salto” – trilhas e percalços de uma etnografia entre travestis que se prostituem.
2006. (mimeo)
________ Nos nervos, na carne, na pele. Uma etnografia sobre prostituição travesti e o modelo
preventivo de Aids. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós Graduação em Ciências
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SILVA, Hélio. Travesti: A invenção do feminino. Etnografia. Rio deJaneiro: Relume/Dumará/
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Janeiro: Relume/Dumará, Prefeitura, 1996.
_________ Travestis. Entre o espelho e a rua. Rio de Janeiro: Rocco, 2007.
SUPLICY,MARTA.2000.Conversando sobre sexo. 21. São Paulo.
NOTAS
3
“Ganhar a vida” é uma expressão usada para trabalho entre os profissionais do sexo.
4
Como é popularmente e poeticamente conhecida a cidade do Recife, devido a sua geografia entrecortada por rios,
assim como Veneza, cidade italiana.
5
Disponível em www.gazetaweb.gazetaweb.globo.com/noticia.php?c=198846. Acesso em março de 2013.
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6
Outro termo encontrado entre este coletivo no qual diminui a carga de discriminação que tem o conceito travesti.
Sobre isso ver Patricio, 2008.
7
Termo usado de maneira pejorativa para distinguir o bissexual.
8
Denominação usual entre as pessoas que se prostituem para designar locais reconhecidos como pontos de prostituição
9
Nos guetos homossexuais, o ativo é o persona que exerce o papel masculino na relação homossexual, e
consequentemente realiza sexo anal penetrando o parceiro.
10
Os nomes das respectivas saunas não serão dispostos aqui por uma questão de privacidade das mesmas e das
informações adquiridas nos seus interiores. Porém a diferenciação delas se dará em termos de numeração, como
Sauna Um, Sauna Dois, Sauna três e Sauna Quatro.
11
Artista travestido de mulher se apresentando com formas e trejeitos exagerados.
12
Homem que, especificamente na sauna, dança e na performance vai tirando a roupa conforme o ritmo da música.
13
Maiores de 50 anos de idade.
14
Monografia de Fim de Curso defendida em dezembro de 2010. Universidade Federal Rural de Pernambuco, no
curso de Ciências Sociais intitulada “sexualidade e identidade: prostituição masculina na cidade do Recife
15
Referente ao primeiro andar do prédio.
16
Sobre isso ver PELUCIO, 2004, 2005, 2006; PATRICIO, 2002, 2008; BENEDETTI, 2005; OLIVEIRA, 1994;
SILVA, 1993, 1996, 2007.
17
Termo usado de maneira pejorativa para distinguir o homossexual com mais idade.
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GT2 – AS RELAÇÕES DE TRABALHO
NA CONTEMPORANEIDADE.
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ASSISTÊNCIA DOMICILIAR NO MUNDO DO TRABALHO
uma reflexão sobre a prática dos ‘’novos’’ cuidados paliativos em saúde
Camila de Carvalho Pacheco
Assistente Social formada pela Universidade Federal Fluminense
RESUMO
O presente artigo aborda o tema da assistência domiciliar, identificando-a como uma modalidade de atenção
em saúde vinculada a ações racionalizadoras e humanizadas, cuja prática de inserção no mundo/mercado de
trabalho se torna cada vez mais notória e significativa. Por meio de uma breve contextualização histórica da
saúde no Brasil e da categoria trabalho, se analisa o desenvolvimento histórico da prática domiciliar, sua
emergência, características e definição a partir da relação conflituosa entre o lucro a humanização do
atendimento. Há também a questão do cuidador, que na maioria dos casos são os próprios familiares e são os
que assumem a maior parte da responsabilidade pelo cuidado.
Palavras - chave: assistência domiciliar, humanização, trabalho, família, cuidado.
Introdução
Entendendo que a modalidade de atenção domiciliar a saúde suplementar está circunscrita na dualidade
entre humanização e lucratividade, o estudo aqui presente tem o propósito de compreender melhor
essa modalidade de assistência, a relação entre esses dois elementos, o crescimento deste ramo no
mercado e seus rebatimentos para os principais cuidadores (a família).
A motivação para tal escolha baseia-se no meu trabalho de conclusão de curso de graduação em
Serviço Social (2013). A intensa lógica lucrativa nas empresas de assistência domiciliar leva-nos a
indagar sobre seus limites e como esta interfere na prestação da atenção humanizada e na dinâmica
familiar, posto que um dos objetivos da atenção domiciliar remete à racionalização dos custos
hospitalares, cada vez mais crescentes.
O ‘’home care’’1 vem se tornando uma alternativa/estratégia de desospitalização no Brasil, mas a
literatura sobre essa temática ainda é mínima no país, apesar de existir uma farta bibliografia no
exterior, principalmente nos Estados Unidos.
O objetivo do trabalho é, assim, realizar a discussão de forma crítica sobre a temática, analisando os
fatores que impulsionam a expansão da assistência domiciliar pelas empresas de saúde suplementar,
buscando examinar de que forma essa assistência é prestada, notadamente no que diz respeito à
transferência de responsabilidade/cuidados para a família.
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Trabalho e privatização da saúde no Brasil
Conforme Antunes (1997), o trabalho é uma categoria fundante, que estrutura as demais relações
sociais. Portanto, ele é um intercâmbio, uma relação do homem com a natureza, que a transforma a
fim de obter uma forma de se ganhar a vida, de se conseguir a sobrevivência e de atender a
necessidades. O autor, de acordo com a tradição marxista, explica essa categoria dizendo que o
trabalho seria o gasto, o dispêndio da força humana voltado para um objetivo.
Essa relação homem-natureza se dá com a finalidade de se produzir coisas que são necessárias para
as pessoas que vivem em sociedade, coisas socialmente úteis. Por este sentido ontológico, o trabalho
é fundamental, pois ele contribui para a reprodução e subsistência dos seres humanos, sendo possível
afirmar que não pode haver existência de uma sociedade sem trabalho.
O trabalho enquanto gênese inicia a formação do ser social, pois é através dele que se tem inicio no
processo de sociabilidade humana, da construção das relações sociais. O processo de trabalho traz
como conseqüência mudança da realidade e do próprio homem. (ANTUNES, 1997).
Através do trabalho, os homens se desenvolvem, adquirem conhecimento, geram novos produtos
para satisfazerem as necessidades humanas, gera-se desenvolvimento pessoal e econômico. Pode-se
dizer que ele é o ponto que estrutura econômica, política e socialmente uma comunidade.
Os anos de 1970 foram de profundas crises para o capital, gerando transformações na organização
do trabalho. Uma das estratégias de superação destas foi à instauração das políticas neoliberais,
vivida mais intensamente no Brasil a partir dos anos 1990.
As diversas mudanças no mundo trabalho também caracterizaram a diminuição da função do Estado,
uma instituição que deveria ampliar direitos sociais, se torna mínimo para os direitos relacionados
ao trabalho e máximo para os interesses do capitalismo. Com isso, empresas e serviços que estavam
sob o comando do Estado passam para o controle capitalista, reduzindo e flexibilizando direitos.
(NETTO E BRAZ, 2006). Essas metamorfoses se traduzem na diminuição da classe operária, na
redução de trabalhadores ativos, crescimentos do trabalho precário, temporário, subcontratado e
terceirizado.
E ao longo das duas últimas décadas, o Brasil vive um grande processo de desmonte das políticas
sociais públicas, principalmente aquelas que são destinadas à classe trabalhadora. (BEHRING, 2003).
A mercantilização dessas políticas mostra uma nova fase de reconfiguração do capital, que se apropria
da vida social dos sujeitos, privatizando a proteção social e apresentando novas condições para
implementá-la.
O projeto neoliberal é um forte colaborador para esse desmonte, pregando a ideia de livre mercado
e da crise fiscal do Estado, sendo necessário, segundo os princípios dessa corrente político – ideológica
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diminuir os gastos sociais para superar a crise. Mas, na realidade as políticas sociais regrediram
substancialmente, seguindo na ótica da restrição, seletividade e focalização. Elas se transformaram
em campo lucrativo e de pesado investimento do sistema capitalista. (SILVA, 2011).
A área da saúde é claro exemplo dessa financeirização, com o gradativo crescimento da rede privada
em todo mundo, principalmente via planos de saúde e empresas prestadoras deste tipo de serviço.
O desenvolvimento industrial brasileiro e a migração para o meio urbano a partir dos anos 1950
exerceram fortes influências sobre o sistema organizacional da assistência a saúde no país àquela
época, os serviços eram prestados por empresas terceirizadas aos trabalhadores com vínculo formal
e financiados pelo empresariado e pelo governo, contribuindo, assim, para a expansão de um forte
mercado da saúde, principalmente da medicina de grupo e das cooperativas médicas. Décadas mais
tarde também ocorreu a ampliação dos planos individuais.
Até essa década os serviços médicos prestados em ambiente hospitalar na área privada eram
direcionados para pacientes com doenças crônicas, focando a atenção para a saúde curativa e
individual. A precariedade dos serviços na área pública, cada vez mais ajudou o desenvolvimento
privado, principalmente no final da década de 1960 com as novas políticas econômicas do país.
(ALBUQUERQUE e COLABORADORES, 2007).
A atenção à saúde era ofertada por instituições de diferentes vinculações: previdência social, ministério
da saúde e empresas privadas, estas últimas, gradativamente se ampliam e vêm sendo incentivadas,
inclusive pelo Estado, em detrimento do setor público. A justificativa da precarização de um e
consequentemente crescimento do outro é a falta de planejamento e verba governamental. Deste
modo, a área privada se torna complementar ao atendimento em saúde. O intenso processo de
urbanização da época associado ao projeto desenvolvimentista alargou a massa de trabalhadores,
ampliando o potencial de consumo dos mesmos no mercado.
A tendência de fortalecimento do setor privado encontra solo fértil durante os anos da ditadura
militar (décadas de 1960/1970). Teixeira e Oliveira (1989), ao analisarem o desenvolvimento da
assistência médica no âmbito da previdência social brasileira nos anos do regime militar apontam
que a política de assistência médica previdenciária já indicava a relação do Estado com os interesses
do capital.
Os autores pontuam que neste período há grande priorização da contratação de serviços terceirizados
em detrimento dos serviços oferecidos pela previdência social. O Estado regula o mercado de serviços
de saúde, capitalizando a medicina e privilegiado o setor privado.
Teixeira e Oliveira (1989) resumem os princípios do modelo de política da assistência médica
previdenciária neste momento como:
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‘’ Financiada pelos trabalhadores, gerida pelo Estado e fomentando a consolidação de uma área
privada de acumulação do capital. ’’ (TEIXEIRA e OLIVEIRA, 1989).
Tal tendência será questionada a partir dos anos de 1980, no bojo do movimento de redemocratização
do Brasil, momento em que temas como a universalidade da saúde e a responsabilização do Estado
por esta foram algumas das principais reivindicações. Impulsionadas em grande medida pelas lutas
democráticas, esses temas foram incorporados ao debate da Assembleia Nacional Constituinte,
encarregada de elaborar o novo texto constitucional.2
O conteúdo da Constituição Federal de 1988 instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) enquanto
elemento da seguridade social, que também se compõe pela assistência social e previdência social. A
assistência em saúde passa a ser concebida como direito universal e como dever do Estado. Ao
mesmo tempo, prioriza-se o caráter preventivo das ações de saúde sem negar a integralidade dessas
ações. O setor privado e o filantrópico são estabelecidos como complementares ao sistema público.
Ao longo da década de 1990, momento em que ocorre o fortalecimento do neoliberalismo no Brasil,
a legislação não se cumprirá plenamente. Desde o governo do presidente Fernando Collor até os
atuais vive-se um aprofundamento dessa lógica, isto é, uma forte desresponsabilização do Estado na
área social, seguida da privatização dos serviços públicos, período muito conhecido como contra
reforma do Estado. (BEHRING, 2003).
Segundo a autora, a contra reforma significa racionalizar custos sociais por parte do Estado, ampliando
a intervenção do setor privado neste âmbito. Há uma grande soma de recursos nesta área,
principalmente na saúde, em que o capital tem muito interesse em administrar, seja no mercado
consumidor ou no interior de uma política pública.
A emergência da assistência domiciliar no tratamento da saúde e seu desenvolvimento histórico
Na Europa, o hospital surgiu no século XVIII com um caráter curativo sistemático. O intuito desta
criação era centralizar o atendimento médico, onde os mesmos pudessem visitar vários pacientes em
um único local.
Já no fim deste período a ideia de internação a domicílio irá ganhar força, como analisa Foulcault
(1979). Esta medida tem finalidade econômica e o doente, em alguns casos, pode ser mais bem
assistido pela família. Essa tendência se intensificou ao longo do tempo e os hospitais começaram a
dar prioridade aos pacientes de alta complexidade que necessitam de cuidados intensivos.
A prática médica domiciliar antecede a esta época (o atendimento era individualizado e pagamento
era realizado direto pelo usuário, apesar deste ainda não caracterizar um assalariamento, que se
constitui apenas no século XIX), pois não existiam hospitais. Esta instituição será criada como meio
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de centralização dos atendimentos, como exposto acima, mas também com o objetivo de manter os
pobres com doenças infectocontagiosas isolados do restante da sociedade. (FOCAULT, 1979).
Na verdade, o ‘’home care’’ é uma ‘’nova’’ tendência que remonta a práticas antigas desde a Bíblia
Sagrada. O Antigo e Novo Testamentos já indicavam o auxílio aos cuidados a doentes e idosos em
seus lares. Líderes religiosos indígenas e sacerdotes ministravam os cuidados em domicílio. (DUARTE,
2000).
Contudo, a primeira assistência domiciliar a ser registrada foi nos Estados Unidos no Estado da
Carolina do Norte por volta do século XX. O atendimento consistia no trabalho filantrópico de
mulheres (Sociedade Beneficente de Charleston) para cuidar de doentes pauperizados em domicílio
e os doentes de classe média/alta pagavam esses profissionais para ter assistência em casa. Em
meados do mesmo século, na Europa, a saúde pública passa a enviar enfermeiras visitadoras às
residências com o propósito de promover educação, reabilitação e prevenção em saúde. O acesso
aos hospitais nesse período era restrito, pois eles estavam sendo bombardeados, devido a Segunda
Guerra Mundial. O apoio do Estado, inclusive financeiro, foi importantíssimo para o desenvolvimento
efetivo desta modalidade. (MENDES, 2001).
Tratando-se de Brasil, não há registro formal do atendimento domiciliar, porém estima-se que ele foi
efetivamente implementado a partir de 1949 com a criação do Serviço de Assistência Médica
Domiciliar e de Urgência (SAMDU), no Rio de Janeiro, que era vinculado ao Ministério do Trabalho,
pois os sindicatos dos trabalhadores, principalmente a categoria dos marítimos e dos transportes,
estavam insatisfeitos com os serviços prestados na época.
A década de 1960 foi uma época de consolidação para o ‘’home care’’ no Brasil, mas na área pública
ele funciona de modo precário devido à falta de recursos humanos e materiais, falta de interesse
governamental, falta de hospitais especializados, que ao invés de investirem nos serviços domiciliares
conveniaram clínicas privadas para atender pacientes crônicos, beneficiando assim essa rede.
As características da atenção domiciliar a saúde
Essa espécie de assistência se desenvolve mais no espaço privado através de empresas de ‘’home
care’’, cooperativas de trabalho, planos de saúde e hospitais que disponibilizam suas equipes para
esta. No Brasil, o processo de internação domiciliar privada geralmente se inicia ainda no hospital
quando o médico que acompanha o paciente considera que ele já está apto para receber alta, porém
necessitando dar continuidade ao tratamento. O médico assistente orienta a família sobre assistência
domiciliar e a entrega o laudo/relatório da prescrição, indicando que o plano de saúde do assistido
seja consultado.
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No caso brasileiro, quando a operadora de saúde autoriza o atendimento domiciliar, geralmente,
três empresas de ‘’home care’’ vão avaliar o paciente e depois enviam suas propostas de orçamentos
para a mesma, para que uma dessas seja selecionada e se inicie a assistência domiciliar, providenciando
assim, a remoção hospitalar, a equipe de monitoramento e os equipamentos necessários.
O mesmo procedimento é valido para o SUS, sendo que a responsabilidade é do hospital onde o
doente se encontra internado, mas na maioria dos casos essa medida não se efetiva, exceto em casos
de liminares judiciais. A assistência domiciliar é uma opção muito rentável as seguradoras de saúde,
porém, ao mesmo tempo em que ela reduz custos, a modalidade também é onerosa, principalmente
para o setor público. O ‘’home care’’ despende de aluguel de equipamentos de alta tecnologia,
compra de variados medicamentos e pagamentos de diversos tipos de serviços, por isso que na
maioria das vezes nesta área essa assistência não se concretiza.
No nosso país não há padrões pré-estabelecidos para a inserção no sistema de ‘’home care’’, mas em
sua maioria o que prevalece é a indicação médica. Em alguns hospitais existe a avaliação conjuntamente
com os assistentes sociais e enfermeiros.
Já nos Estados Unidos a inserção é feita quando o cliente/paciente (essa nomenclatura ‘’cliente’’ é
muito utilizada no país, demonstrando a lógica de mercado) ou família procura diretamente esses
serviços, quando há o planejamento de alta antecipada do hospital e pela solicitação dos profissionais
de saúde.
Na Europa a questão da lucratividade é ainda mais transparente, pois o critério para eleger o paciente
é baseado na forma de financiamento (impostos, dotação orçamentária e seguros sociais de saúde),
a partir disto, em alguns países a inserção ocorre independente do encaminhamento médico.
Conforme Mendes (2001) os Estados Unidos gastam 3% do total das despesas em saúde com o
‘’home care’’. Em termos monetários isso representa aproximadamente 30 bilhões de dólares. Essa
modalidade é utilizada para diminuir as despesas e reduzir custos com a atenção à saúde, e o elemento
econômico é um dos principais responsáveis pelo crescimento da assistência domiciliar no mundo.
Algumas pesquisas realizadas pelo mesmo autor demonstram que o ‘’home care’’ reduz os gastos
em pouco mais de 50% quando comparados à internação hospitalar, logo que este último necessita
de uma ampla rede de locação para funcionar e o sistema domiciliar transfere parte dos custos para
a família.
Analisando que no Brasil necessita-se de uma reforma do padrão de atenção à saúde3, a assistência
domiciliar também pode ser vista como um meio de reordenar os serviços em saúde e auxiliar a
definir novos papéis nessa área, abrangendo essa assistência para todos os setores da população. No
viés dessa perspectiva da reforma, há possibilidades de construções de novas redes, fortalecimento
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da autonomia individual e coletiva e promoção da atenção humanizada com a participação dos
usuários na produção dos cuidados, ainda que os princípios que regem a chamada saúde suplementar
sejam fortemente condicionados pelos objetivos da lucratividade. (PACHECO, 2012).
Definição
De acordo com o Programa de Assistência Domiciliar (PAD)4 esse modelo consiste em serviços
relacionados para o suporte terapêutico que auxiliam nas atividades da vida diária (AVD), que são:
atendimento domiciliar e internação domiciliar.
O atendimento domiciliar (AD) tem caráter preventivo/assistencial de pacientes de baixa e/ou média
complexidade, impossibilitados de fazer o tratamento em alguma unidade de saúde, englobando o
trabalho da equipe multidisciplinar (médico, enfermeiro, assistente social, fisioterapeuta, psicólogo,
nutricionista, fonoaudiólogo, técnicos de enfermagens, entre outros). Em alguns casos o objetivo é
realizar o treinamento do cuidador, seja ele formal (contratado) ou informal (familiar).
A internação domiciliar (ID) é o tratamento permanente de pacientes clinicamente graves que
necessitam de diversos equipamentos e materiais/medicamentos (MAT/MED) de alta tecnologia
que se aproximem ao máximo ao ambiente hospitalar, sendo relevante frisar que esse segmento não
substitui a hospitalização quando realmente necessária.
Há uma unificação entre as subáreas da assistência domiciliar (atendimento domiciliar e internação
domiciliar), apesar de cada uma ter sua especificidade, juntas elas operacionalizam os serviços
prestados de forma mais clara e objetiva.
Pode se dizer, que o profissional que atua nessa modalidade desenvolve um trabalho assistencial e
educativo com as famílias e pacientes e das definições pode-se pensar o ‘’home care’’ como um
sistema transformador, seja em espaço público ou privado, que auxilia na habilitação/reabilitação de
doentes e suas respectivas famílias, indo além da mera assistência a saúde.
Por atenção domiciliar ser um atendimento mais individualizado e privativo isso não significa que
não seja possível construir um planejamento de ações coletivas e sistematizadas em saúde que perdura
por todo o processo, envolvendo família, paciente e comunidade.
Humanização e Lucro
A assistência domiciliar é considerada uma modalidade de atenção à saúde vinculada a ações
humanitárias e racionalizadoras. Esta vem ganhando grande visibilidade devido à alta redução dos
custos e dos questionamentos que o tratamento hospitalar está recebendo por ter um caráter tecnicista
e curativo de forma distanciada da realidade de vida dos pacientes.
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Rosa (2010) sinaliza que quando a discussão é humanização do atendimento em saúde é impreterível
conceituá-la e analisar sua implantação nos serviços de ‘’home care’’. Essa autora afirma:
‘’A prática da humanização deve ser observada ininterruptamente. Consideramos
que humanizar a assistência significa agregar à eficiência técnica e científica, valores
éticos, além de respeito e solidariedade ao ser humano. O planejamento da assistência
deve sempre valorizar a vida humana e a cidadania, considerando, assim, as
circunstâncias sociais, étnicas, educacionais e psíquicas que envolvem cada
indivíduo. Deve ser pautada no contato humano, de forma acolhedora e sem juízo
de valores e contemplar a integralidade do ser humano. Entende-se por humanização
a valorização dos diferentes sujeitos implicados no processo de produção de saúde
e enfatiza a autonomia e o protagonismo desses sujeitos, a co-responsabilidade
entre eles, o estabelecimento de vínculos solidários e a participação coletiva no
processo de gestão’’. (ROSA, 2010, p. 1).
Floriani (2004) questiona se na perspectiva da moral é legitimo criar estratégias para disseminar a
assistência em domicílio quando a mesma se vincula somente ao interesse de reduzir custos, almejando
lucratividade máxima, prejudicando em muitos casos o paciente, família e profissionais. Ele ressalta
a atenção que se deve ter para o domicílio não se tornar mero ‘’quartos de hospitais’’ sem concretizar
de fato a humanização proposta por esta modalidade.
A humanização não acontece somente pelo fato de o paciente estar em casa e por ter um
monitoramento de uma equipe especializada através de visitas periódicas. Esta se vincula também
ao tipo de trabalho que a empresa/profissional se propõe a realizar.
Nessa relação conflituosa entre humanização e lucratividade, Floriani faz uma observação
contundente:
‘’Acreditamos que é preciso nos perguntarmos com que objetivo estamos entrando
no domicílio de alguém que precisa de nossa ajuda, sendo que devemos voltar
nosso olhar para o entendimento das reais necessidades do idoso e daquela família
envolvidos, numa época em que as diretrizes econômicas parecem ocupar papel
preponderante nas tomadas de decisão, muitas vezes desconsiderando a própria
vocação histórica da economia, a qual, como diz a filologia, significa “a norma
(moral) que (deve) guiar o ambiente (onde vivemos)”. Por isso, aquilo que irá
vigorar vai depender, fundamentalmente, das intenções e atitudes dos “agentes
morais” que somos ou que deveríamos ser para “pôr ordem” em nossas interrelações entre “agentes” e “pacientes” morais, isto é, entre quem tem por vocação
proteger e quem deve ser protegido. ’’ (FLORIANI, 2004, p. 92).
Para além de um atendimento padronizado, a assistência domiciliar pode ‘’reativar’’ as funcionalidades
do paciente buscando sua autonomia ou o retorno dela dentro de seu próprio ambiente. Reforçando
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 65
a parceria entre profissionais e familiares, visando à prevenção, promoção e manutenção em saúde,
tentando evitar ao máximo o isolamento do paciente.
Conclusão
O ‘’home care’’ apresenta-se como experiência pioneira e desenvolve cada vez mais em todo mundo.
Contudo, crescem também os questionamentos sob sua recente valorização, suas reais intenções, se
ele se constitui como ‘’novo’’ modelo de saúde ou mais como uma transferência de responsabilidade
para as famílias, responsabilidade tão discutida por nós e que deveria ser do Sistema Único de
Saúde.
Após a implantação do projeto neoliberal houve um comprometimento do princípio da equidade
proposto no SUS, às transferências de recursos estatais estão cada vez mais sendo ofertadas para os
setores secundários e terciários. O Estado não está investindo na área pública como deveria e como
o surgimento da demanda crescente e constante vem pedindo. Parece que a política de saúde brasileira
não consegue romper a dependência com o setor privado prestador de serviços, pois investem
fortemente neste segmento como meio de garantir acesso integral a saúde.
Com o crescimento do mercado e a abertura da economia capitalista até as empresas no ramo da
saúde estão se adaptando ao mundo dos negócios para se manterem diante as constantes
transformações que ocorrem no mundo do trabalho. Os profissionais dessa área estão se especializando
para além do conhecimento clínico, também tendo que estudar e operar sobre os custos, racionalizar
e otimizar os recursos financeiros e resultados.
O uso da alta tecnologia no âmbito da saúde não está vinculado somente à inovação da intervenção
para melhorar os procedimentos, mas também com meio de competição no mercado, buscando
novos caminhos para a lucratividade.
O avanço da assistência domiciliar também está vinculado às mudanças sociais e trabalhistas que
estão ocorrendo na sociedade capitalista e no sistema de saúde, principalmente em relação aos
profissionais que estão ampliando sua atuação nesse ramo, sendo necessário repensar novos meios
de promover a saúde e a capacitação/formação para área. (LACERDA E COLABORADORES,
2006).
A atenção domiciliar propõe (ou deveria propor) uma atuação voltada para o cuidado de modo
organizado para diagnosticar e intervir de acordo com as necessidades, numa relação que envolve
paciente, família e equipe onde favoreça a criação de um ambiente saudável, em que não se perca a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 66
identidade, referências sociais e estímulos à autonomia tão comuns ficarem perdidos em hospitalizações
prolongadas.
Apesar dos gradativos questionamentos às práticas hospitalares desde os anos 1960, com a valorização
do âmbito familiar e comunitário como atendimento a saúde e as inovações trazidas pela
implementação do SUS, o Brasil ainda adota muito os modelos centrados na doença e no imediatismo,
só se pensa em saúde quando a doença já se manifestou. Porém, a precária realidade mostra a
necessidade de se romper com esses modelos transformando os atendimentos em saúde mais
humanizados focados na promoção e no cuidado, políticas que garantam a assistência em sua plenitude,
indo além de uma simples consulta médica. (ALBUQUERQUE E COLABORADORE, 2007).
O atendimento domiciliar traz essa proximidade com a humanização porque desenvolvemos
conhecimentos em espaço privado e aprendemos constantemente com novos valores, costumes e
regras. A reconstrução da doença é um fenômeno complexo que envolve diversos processos,
principalmente o que concerne à família, pois ela é considerada como espaço micro - social de
pertencimento e sociabilidade onde se constrói novas formas e lugares no cotidiano domiciliar.
(ALMEIDA, 2009).
Acredito que não é o espaço físico do domicilio que humaniza as relações e o tratamento, mas sim
o trabalho que o profissional desenvolve com o paciente e com a aproximação familiar, as relações
em saúde são interpessoais onde tudo está conectado. A assistência domiciliar pode trazer significativos
benefícios para seus usuários. A fragilidade que a doença causa nas pessoas ao seu entorno pode ser
utilizada de modo positivo, como ponto de partida para criação de uma nova história nas relações de
cuidado.
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NOTAS
1
Palavra inglesa que se traduz em cuidados em casa.
2
Neste mesmo período tivemos no ano de 1986 o marco do movimento sanitarista na VIII Conferência Nacional de
Saúde em Brasília.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 68
3
Nos últimos anos vivenciamos a gradativa precarização do sistema público de saúde, com a falta de Profissionais
que são desvalorizados e de recursos físicos e materiais.
4
No Brasil o PAD é um programa que desenvolve ações preventivas e promoção em saúde através de uma equipe
multidisciplinar, objetivando estimular o auto – cuidado, estabilização e reabilitação clínica do paciente em espaço
domiciliar.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 69
O CARÁTER FICTÍCIO DA MERCADORIA TRABALHO:
Caminhos para compreender a sua precarização.
Everton Werneck de Almeida.
Graduado em CIÊNCIAS SOCIAIS pela Universidade Federal Fluminense e mestre em
SERVIÇO SOCIAL pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (2012).
Palavras-chaves: mercantilização-trabalho-precarização-fictício-neoliberalismo.
Apresentação
Interessa-nos, aqui, compreender as diferenças existentes entre as genuínas mercadorias e a,
supostamente, também mercadoria mão de obra humana, lembrando que esta última foi chamada
por Polanyi (1980) de “mercadoria fictícia”, uma vez que se trata de seres humanos e estes não são
mercadorias em sentido literal, tal quais as referidas genuínas mercadorias. Em nosso entender,
haveria uma discriminação negativa da força de trabalho quando esta é comparada com outras
mercadorias em uma sociedade tipicamente capitalista.
As origens do mercado de trabalho capitalista
Polanyi (1980) será contundente mostrando, no decorrer de sua obra, a natureza histórica das
relações de produção capitalistas. Para esse autor, antes do advento do capitalismo, muitas e muitas
sociedades produziram sua subsistência material sob outras condições sociais ou, mais precisamente,
produziam sem que esta produção estivesse voltada única e exclusivamente para a troca no mercado
objetivando o lucro (apesar de admitir, para algumas sociedades, a existência do mercado, ainda
que ocupando posição secundária ou acessória em suas respectivas sociedades), predominando em
seu lugar outras relações de troca, movidas por interesses outros que não a lucratividade burguesa.
Logo, a leitura de Polanyi (1980) permite concluir que o modo dc produção capitalista e sua respectiva
“sociedade de mercado” não passam de construções sociais, políticas e ideológicas, feita, logicamente,
no interesse um sujeito histórico que podemos chamar burguesia, uma classe social que, entre os
séculos XVI, XVII e XVIII, poderíamos adjetivar de revolucionária. Singer (1999) sublinha que,
nesses referidos séculos, ao menos no velho continente, o capitalismo ocupava um lugar secundário
na estrutura social, aquilo que o mesmo Singer (1999) chamou de “modo de produção subordinado”,
coexistindo lado a lado com um modo de produção então hegemônico, naquela época a produção
simples de mercadorias. Ainda de acordo com Paul Singer, o capitalismo permaneceu atuando nos
interstícios do modo de produção hegemônico por um bom tempo, nutrindo-se e crescendo
progressivamente, ganhando espaço na sociedade, promovendo uma verdadeira revolução social
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 70
antes de desferir o golpe final contra a aristocracia por intermédio de uma derradeira revolução
política e, consequentemente, galgar ao lugar de modo de produção hegemônico.
Neste ponto, há de se analisar mais detidamente a análise histórica de Singer (l999). Naquela época,
sob a hegemonia da produção simples de mercadorias, havia um Estado absoluto que mantinha por
ele regulada a maioria dos ofícios e atividades econômicas, sustentando monopólios e impedindo a
livre-iniciativa na maioria dos ofícios. Por um bom tempo, isso informa-nos Oliveira (2009), esse
então modo de produção - subordinado se valeu das proteções e regulações daquela ordem para
robustecer-se e, é claro, acumular capital. Contudo, o capitalismo e sua congênita burguesia, já bem
disseminada as relações de produção burguesas e sua correspondente acumulação de capital, entra
em contradição com a superestrutura política, jurídica e ideológica do absolutismo e aí entram em
cena as revoluções burguesas, com destaque especial para a revolução francesa, muito bem narrada
por Hobsbawn (2005).
O que desejava a burguesia com a tomada do poder político, tal qual na França de 1789? Segundo
Trindade (2006) e Hobsbawn (2005), a burguesia, então classe dominada, liderou as demais classes
oprimidas (camponeses, artesãos, pequenos proprietários e um proletariado ainda incipiente) em
sua luta pela transformação social e pelo ûm daquilo que os pensadores liberais chamavam de Estado
absolutista e sua excessiva intervenção e regulação da sociedade com um todo. Neste processo
revolucionário, burguesia e aliados conseguiram por ûm a uma sociedade hierarquizada por motivações
tais como o nascimento, o que garantia privilégios à minoria pertencente às classes dominantes
(nobreza, coroa e clero), à exploração das massas populares e etc. Além disso, o que seria mais
importante para os propósitos desta seção, essas revoluções conseguiram reduzir os poderes estatais
e por abaixo o sistema de regulações e monopólios por ele sustentado, ensejando o passo fundamental
para o completo estabelecimento do protagonismo do mercado livre, a “sociedade de mercado” da
qual nos fala Polanyi (1980).
A constituição da hegemonia das relações sociais mercantis dependia, em última instância, da
liberalização, principalmente, dos fatores capital e trabalho, antes tolhidos pela ordem monopólica e
regulada do mundo absolutista.
Marx (1982, 1982b, 1985, 1975) afirma e demonstra a impossibilidade de sobrevivência do capital
sem ter, à sua disposição, enormes contingentes de força de trabalho humana pronto para ser
explorado, levando à frente o processo de valorização do capital. Sendo assim, não bastava às
revoluções burguesas a quebra de monopólios e regulações estatais, conferindo ampla liberdade
para os negócios da burguesia, mas era necessária, igualmente, “liberdade” para os trabalhadores.
Marshall (1968) relata a importância dos chamados direitos civis ou individuais para o desenvolvimento
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 71
do capitalismo, à exemplo da liberdade de exercer qualquer tipo de atividade profissional (desde que
treinado para tanto), possibilidade outrora vedada pelas regulações e monopólios estatais; esta e
outras “liberdades” foram efetivadas pelas revoluções liberais e seus “direitos de 1ª geração”. Além
disso, Marx (2001) ressalta que as revoluções burguesas livraram as grandes massas dos laços de
servidão e dependência pessoais, tradicionais ou religiosas, que os prendiam aos seus antigos senhores,
adquirindo estas pessoas, a partir das revoluções burguesas, o estatuto de “formalmente livres”.
Todavia, não bastava, para a construção de um mercado de trabalho livre, pronto para fornecer
mais-valia aos capitalistas, essa liberdade formal-legal. O sistema necessitava que tais indivíduos,
agora “1ivres”, não obtivessem outros meios de sobrevivência próprios, caindo na dependência do
trabalho assalariado para garantir a sua subsistência e de seus familiares; Braverman (1977) e Singer
(1999) mostram que tal intento foi alcançado a partir do momento em que a livre-concorrência, uma
vez instituída, fez sucumbir os pequenos produtores e todos aqueles que porventura ainda detinham
os meios de produção, empurrando esses a se somarem aos outros milhares em direção ao proletariado,
pobres e livres o suûciente para gerar sobretrabalho para o capital, eis aí o hoje famoso “mercado de
trabalho”.
O Trabalho sob a hegemonia liberal
Após as revoluções burguesas, no decorrer do século XIX, as relações de produção capitalistas vão
se consolidando progressivamente. Destarte, o processo de separação do operário dos meios e
tecnologias indispensáveis à produção continua: desde a revolução industrial e suas novas máquinas
e fábricas introduzidas na atividade produtiva, toma-se cada vez mais difícil a sobrevivência da
pequena manufatura, visto que, sob as novas condições da livre-concorrência, a produtividade das
novas plantas industriais permite que os grandes capitalistas pratiquem preços impossíveis para as
pequenas manufaturas, à estes restando a única alternativa da submissão às requisições e exploração
do trabalho engendrada pelo capital fabril.
Entretanto, a leitura de Braverman (1977) adverte-nos que o processo de expropriação dos meios
de produção prossegue através das sucessivas transformações nas tecnologias e maquinários
indispensáveis para a produção. Essas referidas mudanças no interior do processo produtivo
caminham, quase que unicamente, em direção do aumento da produtividade1 ou, além disso, no
sentido da expropriação dos saberes técnicos do operário em favor do controle absoluto do processo
produtivo pelo capital e seus representantes. O resultado mais importante de tudo isso vem a ser o
aumento da subordinação do operário frente ao capital, visto que, a cada dia o trabalhador se vê
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 72
mais impossibilitado de exercer seu ofício autonomamente, dependendo dos meios de produção do
burguês e, portanto, sendo empurrado para o assalariamento2.
Sem embargo, o século XIX exibe então a implementação, na prática, do projeto liberal de sociedade,
assentada na proeminência do livre-mercado, já “livres” os fatores de produção capital e trabalho, os
dois prontos para entrarem em “harmonioso” acordo mediante negociações de compra e venda
entre indivíduos juridicamente livres e iguais3. Todavia, a utopia liberal que prometia melhores dias
para todos baseando-se em uma suposta natureza eficiente, justa e equilibrada do mercado, começava
a soçobrar nos mais variados problemas sociais, tal qual nos relata Quintaneiro (2002) e Engels
(1975): pobreza, fome, miséria, exploração, desemprego, e violência, conflitos de todos os matizes
e outros mais. O edifício da utopia do livre-mercado apresentava rachaduras e o proletariado se
fazia presente, através de suas organizações classistas, para aponta-lo, revelando para todos a famosa
“questão social”.
A tradição teórico-metodológica marxista não duvida do fato de ser a dita questão social oriunda da
exploração do trabalho pelo capital em seu processo de valorização4. Frente a isto, o proletariado dá
início à sua auto-organização visando uma luta embrionária por melhores salários e condições de
trabalho, aquilo a que Lênin (1979) se referia quando emprega os termos “luta econômica” ou “luta
trade - unionista”. Esse mesmo impulso “natural do operariado que se inclina a luta sindical é discutido
por Marx (1980), onde afirma a importância dessas lutas, porém advertindo que ela, por si só, não
“resolve” o problema da questão social e da completa emancipação do trabalho em relação ao
capital.
Podemos inferir, a partir dos parágrafos anteriores, que a utopia liberal do livre-mercado, conforme
já descrita aqui, esteve longe de se realizar por completo na prática.
O Trabalho sob o regime fordista-keynesiano
No decorrer de todo o século XIX, e nas primeiras décadas do século XX, o cenário político,
sobretudo dos países capitalistas centrais, ficou marcado pela luta de classes, opondo burguesia e
proletariado, com os últimos lutando por direitos de cidadania, sejam eles políticos ou sociais, enquanto
a burguesia e o Estado capitalista relutavam em conceder-lhes a maioria de suas reivindicações
(BEHRING, 2007).
Ainda nessa mesma época citada, Behring (2007) aponta a hegemonia do liberalismo e a subjacente
crença na capacidade do livre-mercado como um dos principais fatores contrários à efetivação dos
direitos sociais por parte das classes dominantes, sobretudo porque, nessas condições, a acumulação
capitalista prosseguia, embora com um ou outro sobressalto5. Ainda de acordo com Behring (2007),
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por este momento da história, eram as políticas sociais ainda relativamente incipientes e a resposta
à questão social oferecida pelas elites baseava-se, sobretudo, nas iniciativas filantrópicas e
assistencialistas, nas associações de auxílio-mútuo ensejadas pelos próprios trabalhadores6 ou
simplesmente a repressão policial militar. Da parte do Estado capitalista, este se limitava a ações
pontuais, fruto das reivindicações proletárias, ou a fornecer aquilo que Oliveira (2009) conceituou
como bens públicos.
Todo esse quadro será alterado a partir da crise econômica de 1929. O campo teórico metodológico
marxista tem neste histórico episódio o exemplo prático mais acabado das crises de superprodução
inerentes ao modo de produção capitalista apontada como tendência irremediável por Marx (1985).
Em resumo, tais crises cíclicas do capitalismo seriam a consequência ultima da contraditória
combinação entre a relativa expansão da produção, por conta da busca incessante por produtividade,
e a igualmente relativa compressão salarial da grande maioria da população assalariada, de forma
que os produtos capitalistas terminam não encontrando demanda, travando o processo de valorização
do capital.
A crise acima descrita trouxe, dentre suas primeiras consequências, a descrença na ideologia liberal
e as críticas à sua utopia mercadológica. Juntando-se a isto, a formidável ascensão verificada pelos
movimentos operários e socialistas em escala mundial (a revolução russa já havia ocorrido em 1917)
criou-se o ambiente político, econômico e ideológico propício para a substituição do liberalismo por
uma política keynesiana, a partir dali hegemônica.
Oliveira (2009) informa-nos que a adoção das políticas keynesianas significou mudanças nas formas
e no alcance da intervenção estatal. A partir de então, o Estado passou a desempenhar aquelas
funções já levadas a cabo pelos governos sob a inspiração liberal (garantia de propriedade, do
cumprimento dos contratos e o fornecimento dos chamados bens públicos) mais as novas funções
distributivas e estabilizadoras. J. M. Keynes, rompendo com a ortodoxia liberal, conseguiu enxergar
que o mercado, por si só, nas condições impostas pelo capitalismo monopolista do século XX7,
exibiria importantes distorções que poderiam leva-lo a novas crises; portanto, admitia Keynes, haveria
de ter uma maior intervenção do Estado para corrigir tais “defeitos” a fim de salvaguardar o regime
de propriedade privada e economia de mercado. Para fugir de novas crises, destaca Keynes, o
Estado deve atuar fomentando a demanda agregada, mediante investimentos estatais diretos (gerando
empregos) ou fazendo uma redistribuição, ainda que mínima, dos ganhos de produtividade através
das políticas sociais universalistas (HARVEY, 1996).
As inovações trazidas pelo Estado keynesiano cumpriam uma função, a um só tempo, econômica (a
política anticíclica do parágrafo anterior) e política, pois as novas funções assumidas pelo Estado
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 74
burguês iam de encontro as reivindicações mais imediatas da classe operária, fornecendo legitimidade
ao sistema, o que, em meio a guerra fria e ao avanço do socialismo, não era pouca coisa. A partir dai,
faz sentido falar em “Estado ampliado”, na concepção exposta em Coutinho (1985), visto que a
dominação burguesa já não pode mais prosseguir sem que o Estado e as classes dominantes conquistem
a hegemonia e o consenso das massas populares (e, para isso, conforme se viu, teve de fazer concessões
sob a forma dos famosos “direitos sociais”).
Já o fordismo, por seu turno, pode ser tomado enquanto a contrapartida necessária das políticas
estatais keynesianas no interior do processo produtivo propriamente dito. O fordismo caracterizou
as grandes plantas industriais, empregando um relativamente grande contingente de trabalhadores e,
o que é mais importante para os propósitos deste trabalho, a produção em massa de produtos
padronizados. Tal produção em massa, no contexto do keynesianismo e da socialdemocracia, casavase com o objetivo do consumo em massa também proposto pelo fordismo no sentido de garantir o
êxito das políticas anticíclicas de origem keynesiana.
Uma breve digressão: o conceito de mercadoria para Karl Marx e a especificidade da
“mercadoria” mão de obra.
Em Marx (2002) consta que a mercadoria, sob as relações de produção capitalistas, é fruto do
trabalho humano, cuja ação principal consiste na transformação da natureza em produtos de alguma
utilidade para os homens, constituindo aquilo que ele batizou de “valor de uso”; por outro lado, tal
produto da atividade humana, ainda nos marcos de uma sociedade capitalista, possui também “valor
de troca”, ou seja, um determinado quantum desta mercadoria que equivale, na troca, a uma quantidade
x de outra mercadoria.
Considerando que vivemos numa sociedade de mercado, onde a grande maioria dos indivíduos
produz coisas para serem trocadas no mercado, seguindo a divisão do trabalho ensejada pelo capital,
estes, sendo produtos diferentes, acabam necessitando de uma unidade de medida que permita
comparar o valor de uma infinita diversidade de produtos e isto é dado, ainda segundo Marx (2002),
pelo “tempo de trabalho socialmente necessário” para a confecção desta ou daquela mercadoria. De
acordo com o nível de desenvolvimento das forças produtivas observado em certa sociedade, levase uma quantidade x de tempo para produzir algum objeto ou ser vigo de interesse social e, quanto
maior for tal tempo, maior será o valor de troca de certa mercadoria.
A partir do ponto de vista do operário, já no interior do processo produtivo, Marx (1985) e Marx
(1977) explicam que, uma vez destituídos da posse dos meios de produção, a classe trabalhadora é
compelida a vender sua força de trabalho para o capitalista, proprietário dos meios de produzi-lo e,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 75
por conseguinte, carente de mão de obra suficiente para colocá-los em movimento, produzindo,
enfim, mercadorias.
Ainda de acordo com Karl Marx, a exploração do fator trabalho pelo capital, gerando assim trabalho
excedente ou mais-valia, fonte alimentadora do processo de valorização do capital, se daria através
de um quantum de trabalho efetuado ao longo da jornada de um trabalhador que não é pago pelo
burguês ou, em outras palavras: o operário recebe certa quantia em salário, porém o capitalista faz
com que sua jornada diária renda a ele um valor bem maior em termos de mercadorias produzidas8.
E quanto à especificidade da mercadoria força de trabalho? Offe (1995) parece ter a resposta para
tal indagação em seu trabalho intitulado “A economia política do mercado de trabalho”. Neste
estudo, Klaus Offe compara o mercado de trabalho com os demais mercados, revelando a essência
desigual desse mercado em comparação com os outros. Para Offe (1995), nos quadros de um
hipotético enfrentamento entre oferta e demanda no mercado, ambos os lados em confronto possuiriam
a sua disposição uma variada gama de estratégias cujo objetivo principal seria fazer com que um
lado leve vantagem sobre o outro numa relação de compra e venda (sejam elas estratégias individuais
ou coletivas), com os vendedores (oferta) tentando negociar a maior quantidade possível ao maior
prego possível, enquanto os compradores visam exatamente o contrário, ou seja, comprar com o
menor dispêndio financeiro possível, Dessa forma, os dois lados da contenda objetivam reduzir a
concorrência entre em si e/ou elevar a concorrência do lado oposto, para isto lançando mão das mais
diversas ações, quais sejam:
“(...) Isto ocorre principalmente através da formação de coalizões e do engajamento
em outros tipos de ação coletiva. Por exemplo, os trabalhadores chegam a um
entendimento mutuo para formação de uma coalizão com o objetivo de estabelecer
limites máximos de oferta de serviços ou limites mínimos para as reivindicações
concernentes a pregos e salários... O mesmo acontece do lado da demanda. Os
compradores de força de trabalho podem formar uma aliança para atenuar suas
relações internas de concorrência e/ou para penalizar compradores “mais atraentes”
(por exemplo, através da exclusão desses últimos das associações patronais)...”
(Offe, 1995; p.25).
Entretanto, ainda de acordo com Offe (1995), apesar da transcrição acima, o que vai marcar a
especificidade do mercado de trabalho em relação aos demais mercados é a dificuldade da oferta
lançar mão desta ou daquela estratégia visando melhorar sua posição nas relações de troca. Segundo
o autor citado, ha uma desigualdade estrutural entre vendedores e compradores de força de trabalho
que, por seu turno, seria insuperável nos limites da hegemonia do capital.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 76
Em primeiro lugar, diferentemente das outras mercadorias, os vendedores de força de trabalho
quase não possuem a opção de escolher o melhor momento, lugar, quantidade e qualidade para por
a venda sua “mercadoria”: é obrigado a vendê-la, pois, conforme vimos na primeira seção deste
estudo, a sociedade capitalista, de pouco em pouco, oblitera formas alternativas de subsistência que
não o mercado. Offe (1995) advoga a tese de que somente um ente de fora do mercado, no caso o
poder político encamado na figura do Estado, teria a possibilidade de, por intermédio sobretudo das
políticas sociais e outras regulações, originar mecanismos que provesse a subsistência daqueles
indivíduos que, porventura, se encontrassem, ainda que temporariamente fora do mercado de trabalho,
atenuando um pouco dessa desvantagem dos vendedores de força de trabalho.
Se, em virtude de fatores como o crescimento demográfico e as razões levantadas no parágrafo
anterior, o controle da oferta de força de trabalho escapa aos próprios trabalhadores, por outro lado
(esta seria a Segunda desvantagem), os compradores de mão de obra possuem o poder de influenciar
a quantidade de braços disponíveis no mercado através da adoção de técnicas e tecnologias poupadoras
de mão de obra, a exemplo do processo relatado em Marx (1985).
Em terceiro lugar, ainda Segundo Offe (1995), o capital possui uma flexibilidade bem maior do que
o fator trabalho no referente às possibilidades reais de variar o “produto” ofertado, ou seja, o capital
passa, em seu ciclo de reprodução, necessariamente, pelo formato de dinheiro9, o que dá ao empresário
a opção de reinvestir naquele mesmo ramo ou não; em contrapartida, a divisão do trabalho orientada
pelos ditames do capital (e este assunto já foi abordado por Marx), de certa maneira reduz a mobilidade
do operário na medida em que este se especializa numa dada função, fato que, mais uma vez, só com
a atuação do Estado na oferta de treinamento e qualificação profissional poderia ser atenuado.
No mais, outros diferenciais de poder entre compradores e vendedores de força de trabalho pode
haver; contudo, o que importa destacar aqui é a necessidade de regulação e intervenção política,
extra econômica, a fim de atenuar o diferencial de poder existente entre demandantes e ofertantes no
mercado de trabalho, algo a todo o momento destacado por Offe (1995). Ainda com relação a isto,
vale a pena destacar as seguintes passagens de Offe (1995):
“Ao contrário de todas as outras mercadorias, a oferta da força de trabalho tende a crescer quando
a demanda (e os salários) cai, porque nessas condições a possibilidade de não participação no mercado
de trabalho toma-se crescentemente impraticável por razões econômicas” (p.42).
“(...) a possibilidade de sobrevivência fora do mercado de trabalho com meios de subsistência
viabilizados pelo orçamento publico ou privado é influenciada pela distribuição social da propriedade
e pelos processos que se dão nos mercados de trabalho ou de mercadorias...” (p.43).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 77
Mais algumas palavras sobre os períodos liberal e keynesiano.
Com efeito, a hipótese aventada aqui entende que, em presença de uma incipiente “rede de proteções
sociais” (Castel, 2005), como no período de hegemonia liberal, o diferencial de poder entre
compradores e vendedores de força de trabalho tende a avultar-se, dando inestimável contribuição
ao agravamento da questão social. Ausentes uma eficaz regulamentação do processo produtivo e
alternativas de subsistência fora do mercado de trabalho, caso da época em analise, a oferta de mão
de obra tende a crescer exponencialmente, aviltando os salários e, por conseguinte, diminuindo o
consumo e levando até a recessão.
Já sob a égide do Keynesianismo, presente uma rede de proteções sociais, consubstanciada em
políticas sociais universalistas (saúde, educação, previdência, assistência social e outras), o diferencial
de poder verificado entre compradores e vendedores de força de trabalho é atenuado: as políticas
sociais e a legislação trabalhista contribuem para que se enxerga certo controle sobre a oferta de
mão de obra, seja possibilitando que certos contingentes populacionais encontrem sua subsistência
em relações extra-mercantis (idosos, mulheres, estudantes...), seja impedindo legalmente que, por
exemplo, crianças acorram ao mercado através de legislação que regulem o trabalho juvenil10.
A conclusão alcançada, analisando esses dois períodos históricos do modo de produção capitalista,
pelo prisma das interações ocorridas em um hipotético mercado de trabalho, contrapondo ofertantes
e demandantes de força de trabalho, semelhante a aquilo que pensa o ideário liberal, mostra o
liberalismo aprofundando a desigualdade oriunda do diferencial de poder existente entre capital e
trabalho no mercado de mão de obra, enquanto o período keynesiano, com sua “rede de proteções
sociais” e a política do pleno-emprego, atuou no sentido de reduzir a desvantagem dos “vendedores”
de força de trabalho nas relações mercantis. Com efeito, tal conclusão nos conduz a outra, qual seja:
a hegemonia liberal atuou no sentido de alargar a distância entre o mercado de força de trabalho e os
demais mercados, visto que aprofundou desigualdades e diferenciais de poder específicos do mercado
de mão de obra, contribuindo para reforçar o caráter fictício, tal qual chamou Polanyi (1980), do
mercado de trabalho; enquanto isto, a hegemonia keynesiana fez o inverso, intervindo neste mercado
na direção da atenuação do estrutural diferencial de poder entre compradores e vendedores de mão
de obra.
Conclusões. A proposta neoliberal de desregulamentação do mercado de trabalho e a
precarização das relações de trabalho.
Se baixos índices de crescimento econômico, altas taxas de inflação, desemprego e crise fiscal do
Estado caracterizaram a crise econômica dos 70, o entendimento neoliberal responsabilizou a política
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 78
keynesiana e seu “excesso” de intervenção Estatal no mercado: o crescimento era travado pelo
excesso de regulações estatais, que encarecia e burocratizava os investimentos capitalistas, inibindoos; a presença ostensiva do Estado como agente econômico no mercado ocupava espaços de atuação
de investidores privados, configurando situações de concorrência desigual, quando não situações de
monopólio, desembocando na oferta de bens e serviços ruins e caros; as altas taxas de inflação
advinham do excesso de gastos Estatais, mesmo porque estes exorbitavam de suas funções “naturais”;
sindicatos e outras organizações da sociedade civil, ainda que indiretamente, igualmente eram
responsabilizados, uma vez que exerciam pressão política sobre os agentes governamentais no sentido
da expansão dos gastos Estatais e etc. (Friedman; l977).
Anderson (1996) assinala as propostas básicas do neoliberalismo, a saber: romper o poder dos
sindicatos, responsáveis pela pressão reivindicativa sobre salários e aumento dos gastos Estatais
com serviços públicos, o que, por sua vez, corroia as bases da acumulação capitalista; e,
consequentemente, redução dos gastos sociais e menos intervenções econômicas, diminuição dos
impostos sobre o capital (as reformas fiscais); austeridade na emissão de moeda. Estas e todas as
outras proposições neoliberais são voltadas para a construção de um mercado de trocas plenamente
livre, o “mercado perfeito”, sem qualquer intervenção a impedir a “livre-troca entre cidadãos iguais”.
Sendo assim, a clássica “mão invisível” do livre-mercado trataria de levar o “bem-estar social” para
todos, dispensando ações e regulações Estatais para tanto. O raciocínio é claro: quanto maior a
acumulação do excedente em mãos capitalistas, mais recursos serão destinados aos investimentos, o
que, por sua vez, seria sinônimo de mais empregos gerados, menos desemprego, menos pobreza...
Por outro lado, a livre-concorrência teria por efeito imediato a oferta de mercadorias cada vez
melhores e mais baratas, disseminando o “progresso” por toda a sociedade.
Em se tratando de mercado de trabalho, a proposta neoliberal, incluso ai a chamada “flexibilização
das leis trabalhistas”, serviria apenas para potencializar as estruturais desigualdades do mercado de
trabalho, elevando sobremaneira a subordinação dos vendedores em relação aos compradores de
forca de trabalho.
Behring (2007) e Behring (2003) apontam para uma situação de progressiva retirada do estado da
oferta de políticas sociais em favor de sua ascensão pelo setor privado da economia (saúde, educação,
previdência e outros) promovida pelo neoliberalismo, o que, nos quadros teóricos propostos por
este estudo, significaria um sério encolhimento das alternativas de sobrevivência fora do mercado de
trabalho e, consequentemente, o afluxo bem maior de vendedores de força de trabalho ao mercado.
Aliado a isso, a conhecida reestruturação produtiva reconfigurou a demanda por mão de obra, seja
reduzindo a quantidade relativa de postos de trabalho nas empresas, seja modificando o tipo e o
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 79
nível de qualificações exigidas; Em terceiro lugar o neoliberalismo desferiu duro golpe contra os
sindicatos e movimento operário em geral dificultando possíveis ações coletivas no intuito de negociar
melhores condições para os vendedores de forca de trabalho; Desregulamentou o controle do fluxo
de capitais, Dando a este a maior liberdade possível (mas não garantindo a mesma mobilidade para
o fator trabalho); Abandonou as políticas de pleno emprego, optando pelos objetivos de controle da
inflação através da adoção de políticas econômicas recessivas e etc.
Essas foram algumas das muitas iniciativas neoliberais em direção a uma suposta “reativação” do
mercado que, Segundo seus porta-vozes, teve seu potencial adormecido, esquecido, sob a vigência
do pacto social democrático. Conforme já colocado linhas atrás, a proposta neoliberal idealiza um
mercado justo, igual e harmônico, no qual os cidadãos poderiam livremente estabelecer contratos e
trocas de acordo com as potencialidades e vontades de cada um. Porém, se esta sublinhando neste
estudo que, não apenas, mas principalmente no mercado de trabalho, as coisas não ocorrem dessa
forma: há uma enorme desigualdade estrutural que coloca os “vendedores de forca de trabalho” em
franca desvantagem em relação aos “compradores” (fato já observado e explicado nas seções 5 e 6).
O neoliberalismo, em virtude de sua posição de classe, não consegue enxergar tais contradições na
estrutura social capitalista e permanece apostando nos ideais de livre-mercado como a saída para
todos os males sociais. A principal consequência desta “miopia” (neo) liberal consiste na retirada de
boa parte das intervenções políticas e/ou estatais que visavam contrabalançar essa referida desvantagem
da classe trabalhadora nas interações de mercado (Offe, l995), intervenções estas duramente obtidas
pelas classes subalternas após décadas de lutas e mobilizações.
A conclusão permitida por este estudo permite-nos fazer o seguinte apontamento: As políticas de
livre mercado, na qual se insere a proposta da “flexibilização” das leis trabalhistas acabam aprofundando
os desníveis existentes entre trabalho e capital no seio das relações de mercado, desigualdades estas
oriundas da especificidade da “mercadoria” forca de trabalho, o que nada mais explica além do fato
de ser ela uma mercadoria fictícia, conforme bem afirmou Polanyi (l980), uma mercadoria artificial,
bem distinta das demais mercadorias, feita “mercadoria” pelas necessidades postas pelo processo de
acumulação capitalista. Logo, não Sendo a forca de trabalho uma genuína mercadoria, a aplicação
do raciocínio que defende o livre-mercado também no caso do mercado de trabalho implica em um
retumbante engano que conseguirá, no máximo, exponenciar as disparidades entre capital e trabalho,
aviltando cada vez mais a condição do ultimo (ALVES, 2000), fato que se revela nos contornos
dramáticos já alcançados pela questão social neste começo de século XXI.
Ademais, deve-se ressaltar a oportuna possibilidade de uma problematização da ideia que acusa o
(neo) liberalismo de intentar “mercantilizar” a forca de trabalho. Na realidade, as políticas neoliberais
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 80
mais a reestruturação produtiva aprofundam o caráter fictício da mercadoria forca de trabalho,
distinguindo-a e não a aproximando dos genuínos mercados. Portanto, deve-se relativizar a ideia da
“mercantilização” da forca de trabalho, uma vez que esta se encontra em um patamar aquém das
outras mercadorias, conforme as especificidades dela vista em Offe (1995). Caso houvesse uma real
mercantilização do trabalho, no sentido de equipará-la às condições de negociação das genuínas
mercadorias, o processo de valorização do capital estaria ameaçado A posição de Iamamoto (2005)
sobre isto é clara, pois, calcada no marxismo, adverte ser impossível a existência de “preço justo”
para o trabalho em uma formação social capitalista, dada as necessidades de extração de sobretrabalho,
de trabalho não pago, pelo capital e sua valorização. Logo, capital e trabalho não estão e não podem
estar em pé de igualdade nas interações de mercado, desmentindo, na pratica, o idealismo (neo)
liberal acerca do “livre mercado”.
Tudo que foi escrito até agora no presente estudo constituiu uma tentativa de compreender as atuais
condições precarizadas de trabalho que acometem os profissionais do serviço social e outras categorias
que exigem formação em nível superior. Serra (2001) e outros pesquisadores na área do serviço
social relatam a precarização do trabalho do assistente social. Se, antigamente, principalmente na
periferia do sistema capitalista mundial, o trabalho precarizado estava ligado a questão da qualificação
da mão de obra, aumentando sua incidência conforme a redução do grau de escolaridade, hoje, após
a reestruturação produtiva e as políticas neoliberais, a precarização atinge cada vez maior parcela de
assalariados, sejam eles produtivos ou improdutivos, com pouca ou alta escolarização (caso dos
assistentes sociais). Causa estranheza no senso comum, sobretudo a questão salarial desses
profissionais, uma vez que comumente se associa nível de escolarização com melhores condições de
trabalho. Ora, esse raciocínio, muito difundido em meio à população, até certo ponto se alimenta da
fábula (neo) liberal da “mercadoria” trabalho, pelo seguinte motivo: entende que, quanto maior a
“qualidade” da mercadoria, maior seria seu valor de troca. Isto estaria correto caso se tratasse de
outra mercadoria qualquer, produto do capital; Entretanto, as condições impostas pelo caráter artificial
da mercadoria força de trabalho impedem que assim seja constituindo a atual situação precarizada
dos profissionais do ser vigo social e muitas outras categorias, ensejadas pela reestruturação capitalista,
constituem prova viva dessa artificialidade da mercadoria trabalho.
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II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 82
NOTAS
1
Marx (1985) expõe a tendência, inerente à dinâmica da acumulação, à progressiva incorporação de capital fixo em
detrimento do capital variável na busca por maior extração da mais-valia relativa, ou seja, aumento dos ganhos de
produtividade pela via da incorporação de novas máquinas e tecnologias.
2
Isto sem falar na questão da divisão do trabalho, que, sob as ordens do capital, é aprofundada com vistas ao
aumento da produtividade. Mas, em contrapartida, faz repetitivo e bem simpliûcado a função de cada operário, de
modo que um passa a se colocar na dependência do outro para a realização do trabalho.
3
A crença nesse suposto mercado-livre volta a tona com o neoliberalismo, mais especificamente em Friedman
(1977).
4
Netto (2009) assinala que: “A ‘questão social’ é constitutiva do desenvolvimento do capitalismo. Não se suprime a
primeira conservando-se o segundo” (p. 157).
5
O capitalismo sempre se moveu em ciclos, alternando momentos de expansão econômica e momentos de depressão
e crise. Hobsbawn (2005), por exemplo, abordou a crise capitalista dos anos 1870, caracterizando-a como uma crise
de superprodução que, como sempre, promove um processo de centralização e concentração de capitais, com a
aquisição dos capitais menores pelos maiores, incorrendo numa certa monopolização dos mercados.
6
Santos (1987) relata que, no caso do Brasil, antes do Estado imiscuir-se mais ativamente na questão social, existiam
as caixas de aposentadorias e pensões e outros tipos de sociedades de auxílio-mútuo, organizadas pelas empresas ou
pelos trabalhadores.
7
Diferente das crises anteriores, ocorridas sob as condicionantes do capitalismo concorrencial, a de 1929 acontece
em meio a crescente monopolização da economia. Singer (1999) ensina que, em tais condições, toda aquela conhecida
dinâmica da superprodução, falência dos capitais menores, sua aquisição pelos grandes grupos e retomada da taxa
de lucros fica bem mais difícil de ocorrer em meio a uma economia já concentrada.
8
Marx (1985) afirma que este objetivo pode ser atingido através da simples extensão da duração da jornada de
trabalho (mais-valia absoluta) ou mediante investimentos em tecnologias que aumentem a produtividade do trabalho
(mais-valia relativa).
9
10
Relembrando aqueia antiga formula marxiana: D-M-D’.
Offe (1995). Quintaneiro (2002) também relata a enorme quantidade de mulheres e crianças incorporadas ao
trabalho industrial durante o século XIX, bem como Marx (1985) igualmente aponta a tendência a substituição do
homem adulto por mulheres e crianças no decorrer do processo de acumulação.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 83
A FORMAÇÃO DE TRABALHADORES DE NOVO TIPO NO BRASIL:
Uma análise dos ideiais do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego
(PRONATEC)
Moacyr Salles Ramos
Mestrando em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Suíze Gomes Martinez
Mestrando em Educação pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Após o período de abertura política, nosso país foi direcionado efetivamente pelo viés neoliberal,
sendo assim incluso no processo de mundialização do capital, já como reflexo de sua crise estrutural
iniciada nos anos 1970. Essa inserção do Brasil recebeu, no mandato dos Presidentes Fernando
Collor de Melo e Itamar Franco, nos anos 1990, um grande impulso que continuou posteriormente
no de Fernando Henrique Cardoso.
Com muita propriedade, Antunes resume o governo Collor (2005, pág. 16), “Collor elegeu-se com
base em um projeto de “modernização” do país. Em seus contornos mais gerais, esse projeto
contempla uma integração subordinada do Brasil nos marcos do mundo capitalista avançado”
(grifo do autor). Mas a forma política em ação no governo em questão trouxe inúmeros prejuízos
para a classe trabalhadora e até para uma fração significativa da burguesia, que começou a perceber
a situação catastrófica que resultou de sua escolha: “crise econômica, recessão intensificada, crise
social brutal, corrupção compulsiva, tensão militar, desequilíbrio e instabilidade política, com
possibilidade de fratura institucional” (ANTUNES, 2005, pag. 18).
O legado de Collor foi o condutor da política do governo de Itamar Franco, pois mesmo reconhecendo
os problemas sociais e econômicos, seu governo não deixou de realizar o Plano de Modernização
do Brasil iniciado por Collor. No campo dos discursos, Itamar trazia esperanças para a classe
trabalhadora, mas no campo das ações, era o capital quem se beneficiava. Segundo Antunes (2005,
pag. 22)
O plano Itamar-Elizeu é a pífia consubstanciação do que anteriormente se disse:
propõe crescimento da economia- como se ela fosse o antídoto essencial contra a
miséria- mas intensifica a privatização; fala em combate à fome através de um
assistencialismo estatal minguado, ma nem longinquamente toca no padrão de
acumulação que gera uma sociabilidade atravessada pela pauperização absoluta.
Nada sobre uma reorganização no sistema de produção e de consumo, para começar
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 84
a erradicar na raiz da miséria; nada sobre a implementação de uma política salarial
que coibisse a superexploração daqueles assalariados que estão empregados;nada
sobre transformações estruturais no mundo agrário; nada sobre tributação efetiva
sobre os ganho de capital; nada sobre uma mudança de curso, com um mínimo de
ousadia, na questão da dívida externa; nada sobre preservação e fortalecimento do
capital produtivo estatal, imprescindível para que um país de Terceiro Mundo
industrializado e intermediário, como o nosso, não desapareça de vez do mapa
econômico.
Após a experiência de Collor e Itamar Franco, o Brasil passou por dois mandatos de Fernando
Henrique Cardoso, uma eramarcada pela violência contra os sindicatos e contra os movimentos
sociais, pelo benefícioà iniciativa privada, pelo desmantelamentodas instituições públicas, pelo
arrochoaos salários dos servidores públicos e pela submissão efetiva aos ditames do FMI. Em análise
a esse governo, Antunes afirma que:
O governo FHC tem sido exemplar em exercitar sua dupla face: a primeira. Da
manutenção de uma política econômica destrutiva, em conformidade com o que
interessa aos capitais globais. A segunda, a de resgatar, com plumagem nova, seu
solene traço repressivo.
Convém lembrar que aimplementação do receituário neoliberal já havia se iniciado internacionalmente
com a política reacionária de Ronald Reagan nos EUA e de Margareth Thatcher na Inglaterra,
pressionando e influenciandotodo o mundo, inclusive o Brasil. Esse processo é tratado por Souza
(2002, pag. 77), o qual sinaliza que:
Governos como os chamados euro-socialistas, do sul do continente europeu, que
se apresentavam como uma alternativa progressista, baseada em movimentos
operários ou populares, contrastando com a linha reacionária dos governos Thatcher
e Reagan e outros do norte da Europa, vêem-se forçados pelos mercados financeiros
internacionais a mudar seu curso dramaticamente e reorientar-se para fazer uma
política muito próxima à ortodoxia neoliberal, com prioridade para a estabilidade
monetária, a contenção do orçamento, concessões fiscais aos detentores de capital
e o abandono da política do pleno emprego.
Para analisarmos as reais transformações dos modelos de produção da vida material, partimos do
pressuposto que a organização do trabalho não é um fim em si mesmo, mas um meio para toda a
organização social. Assim o trabalho é categoria central na configuração de qualquer sociedade.
Temos respaldo em Marx, (2008, pág. 26 e 27), para quem, “a burguesia só pode existir com a
condição de revolucionar incessantemente os instrumentos de produção, por conseguinte, as relações
de produção e com isso, todas as relações sociais”.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 85
Em relação aos modelos de produção, podemos afirmar que o fordismo foi um modo de produção
implementado por Henry Ford (1863-1947), dentro de um complexo sistema que unia mudanças na
produção e reprodução de valores por meio do WelfareState. O objetivo de realizar a produção em
série para consumo em larga escala se alinhava à necessidade de um trabalhador mais adestrado. Ao
estudar o industrial americano, Gramsci (2008, pág. 71), identificou que o modelo fordista,
Se preocupa em manter a continuidade da eficiência física do trabalhador, da sua
eficiência muscular e nervosa. É seu interesse ter uma competência estável, um
complexo harmonizado permanentemente, porque até o complexo humano- o
coletivo trabalhador-de uma empresa é uma máquina que não deve ser desmontada
com grande freqüência, nem ver renovados os seus pedaços individuais sem grandes
perdas.[...]
O perfil de operário empreendido pelo modelo fordista refletia o modo de vida e de pensar necessários
para a real dominação de classe na sociedade norte-americana e o Estado passou a atuar como
garantidor desse tipo de trabalhador. Assim, “a luta contra o álcool, o agente mais perigoso de
destruição das forças de trabalho, se torna função do Estado” (GRAMSCI 2008, pág. 71). Ainda
segundo o autor, (p. 63 a 75) a luta contra a animalidade, as lutas puritanas e a crise da moralidade
foram outros aspectos da invasão e do controle sobre a vida dos trabalhadores.
Fazendo uso dos princípios do fordismo, só que com maior racionalização do processo produtivo, o
taylorismo se propõe a controlar o trabalhador durante sua jornada de trabalho. Para Gramsci (2008,
pág. 69), Frederick Taylor (1865-1915)
Exprime com cinismo brutal a finalidade da sociedade americana, de desenvolver
no trabalhador posturas maquinais mínimas e automáticas, eliminar o antigo senso
psicofísico do trabalho profissional qualificado, que demandava uma participação
ativa da inteligência, da fantasia, da iniciativa do trabalhador, e reduzir as operações
produtivas ao aspecto físico maquinal somente.
A esse controle somava-se a divisão das tarefas e a fragmentação da ação na linha de montagem,
além de mecanismos de compensação e de punição para os trabalhadores de acordo com seu
desempenho. Nesse modelo, a competência do trabalhador era constantemente testada por
supervisores e administradores. A fusão entre o modelo fordista e o taylorista representou uma
estratégia do capital para melhor dominar a classe trabalhadora. Essa configuração era cuidadosamente
planejada a fim de capturar com exatidão a força de trabalho na linha de montagem, não permitindo
desperdícios com distrações, emoções ou mesmo opiniões dos trabalhadores. Não havia espaço
para reflexão, pois a repetição de movimentos devia-se antecipar ao próprio pensamento e manter
uma cadência produtiva.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 86
Mesmo com o modelo fordista-taylorista vigorando em várias instituições, atualmente experimentamos
os reflexos de um momento chamado por Harvey (2012) de pós- fordista. Esse momento teve início
a partir da segunda metade do século XX, quando o mundo capitalista avançado caiu em recessão
enovos modelos de produção passaram a ser repensados, com base na necessidade de flexibilização
do trabalho e do mercado. Segundo alguns estudiosos, como Souza (2012), o modelo taylorista/
fordista experimentou o início de crise, a partir dos anos 1960/70. Assim,
Quando o mundo capitalista caiu em recessão, combinando, pela primeira vez,
baixas taxas de crescimento com altas taxas de inflação, configurando-se, assim, o
esgotamento das possibilidades de acumulação do capital. Esse esgotamento,
somado ao acúmulo de inovações tecnológicas no campo da microeletrônica e da
informática, e ao avanço das conquistas políticas da própria classe assalariada,
constituíram as condições objetivas dessa crise de acumulação do capital (SOUZA,
2002,pag. 75).
Com o esgotamento do modelo fordista/taylorista, o capital foi impulsionado na busca da
recomposição de suas bases de acumulação, por meio da flexibilização do trabalho e da disputa da
hegemonia na esfera do Estado. Com base no pensamento gramsciano, Rummert (2000, pag. 26)
mostra-nos que:
O processo de conquista e de manutenção da hegemonia pressupõe a difusão de
uma determinada concepção de mundo e a conseqüente influência em todos os
aspectos da vida e do pensamento dos diferentes grupos que interagem na sociedade.
Na dinâmica que dá vida a esse processo evidenciam-se confrontos entre modos de
conceber tanto a realidade quanto as formas de atuar sobre ela.
A extensão das estratégias de recomposição das bases de acumulação capitalista passa a dominar
tanto o campo da estrutura e da superestrutura, com a flexibilização do trabalho, do mercado e em
termos gramscianos, na educação do consenso dos governados para melhor inserção alienada nas
relações de produção e na vida social.
O processo de flexibilização do trabalho se deu à medida que os avanços tecnológicos foram inseridos
no cotidiano dos trabalhadores, pois “o capital não pode subsistir sem revolucionar de modo constante
os meios de produção” (ALVES, 200:20). Na mesma linha teórica, Souza (2011, pag. 26) corrobora:
Essa flexibilização acarreta uma maior capacidade de adaptação do capital às
demandas do mercado, graças à introdução da microeletrônica e da informática no
processo de trabalho e de produção. Estas transformações na organização do
trabalho carregam em seu bojo uma nova cultura organizacional para dar suporte
ideológico à redefinição da forma de organização e da gestão da força de trabalhoa administração capitalista.
Não por acaso, esse conjunto de transformações ocorridas no mundo do trabalho trouxe também
diversas reformas no mundo da educação. Se é que podemos falar em mundos (no plural) ou apenas
em “mundo” do trabalho e da educação. Um dos fatores motivadores foi a revolução com base na
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 87
automação, que passou a exigir cada vez mais o trabalhadornão-especializado, mas que tenha
competências para desenvolver novas aprendizagens de acordo com as demandas produtivas. O
trabalhador flexível seria aquele que se adaptaria com maior facilidade e docilidade a qualquer função
na empresa. Para formação desse trabalhador, a fábrica não seria o espaço suficiente e caberia ao
Estado, por meio dos Sistemas de Educação, essa tarefa.
O atual complexo de reestruturação produtiva organiza a gestão da produção pelo modelo toyotista,
contudo este não representa apenas um modelo de gestão da produção, mas, sim, uma estratégia de
hegemonia para a subsunção do trabalho ao capital. Nesse modelo não há afastamento total e, sim,
dialético da forma taylorista-fordista, cumprindo um papel de articulação entre a subsunção formal
e a subsunção real do trabalhador.
O modelo taylorista-fordista capturava apenas a força de trabalho física, já o toyotismo supre a
necessidade do capital de captar a subjetividade do trabalhador. Segundo Alves (2000, pag. 32),
Apesar de o toyotismo pertencer à mesma lógica de racionalização do trabalho, o
que implica considerá-lo uma continuidade com respeito ao taylorismo-fordismo,
ele tenderia, nesse caso, a surgir como controle do elemento subjetivo da produção
capitalista que estaria posto no interior de uma nova subsunção real do trabalho ao
capital.
Sobre isso, Souza (2011, pag. 18) considera que:
A formação de um trabalhador coletivo de novo tipo é imprescindível. O avanço
científico e tecnológico, principal instrumento de obtenção da disciplina e da
incorporação ativa, do trabalho vivo ao trabalho morto, constitui, ele mesmo, a
materialidade do novo tipo de subordinação do trabalho ao capital, conseguindo
por meio de ações educativas desenvolvidas no ambiente de trabalho e no cotidiano
da vida em sociedade.
No toyotismo, as emoções e a pró-atividade do trabalhador são caminhos para melhor envolvê-lo/
comprometê-lo com o trabalho. Assim, ele se sente responsável direto pelo sucesso ou insucesso da
empresa em que trabalha, além de participar no processo de aperfeiçoamento da produção e da
resolução de problemas. A polivalência é uma competência necessária aos trabalhadores que são
estimulados ao trabalho em equipe e desespecializado. Alves (2000, pag. 51), ainda aponta que nos
mercados internos das empresas, a esperança de promoção dentro dos moldes de qualificação impostos
pela empresa, é um elemento de captura da subjetividade dos trabalhadores
A perspectiva de promoção claramente estabelecida, de linhas de carreira abertas e
conhecidas por todos, uma organização “qualificadora” do trabalho, é um
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 88
mecanismo poderoso de captura real do consentimento operário, de desenvolvimento
do engajamento dos trabalhadores assalariados.
No aspecto da superestrutura, a redefinição do papel do Estado é o pano de fundo para o
desenvolvimento do neoliberalismo contemporâneo. O desmantelamento da aparelhagem estatal e
sua mínima intervenção é um dos fatores preponderantes. Assim o fundo público passa a ser um
espaço de realização coesa entre os interesses do capital e as demandas sociais, tendo ambos espaço
na proposta neoliberal e neoconservadora, pois
Estão convencidas da necessidade de restaurar a disciplina social a qualquer preço,
para garantir as condições necessárias para a acumulação de lucros, não apenas no
sentido econômico restrito, mas também reorganizando instituições fundamentais
como a família e a escola, isto é, promover uma ampla redefinição das relações
sociais de produção tanto no nível estrutural quanto no nível superestrutural
(SOUZA, 2002, pag. 93).
Nessa perspectiva, o papel do Sistema Educacional ganha “novo sentido”, passando a atender
diretamente as demandas do mercado a fim de garantir a acumulação capitalista e a conformação da
classe trabalhadora, pois “enquanto a internalização conseguir fazer o seu bom trabalho, assegurando
os parâmetros produtivos gerais do sistema capital, a brutalidade e a violência podem ser relegadas
ao segundo plano” (MÉSZÁROS, 2005, pág. 44). Esse “novo sentido” não significa alteração em
seus princípios, pois estes continuam sendo a apropriação privada da produção social, a extração de
mais-valia, a alienação do trabalho, dentre outros (SOUZA, 2011, pag. 21). A forma como Marx
(2001, pág. 111) definiu o trabalho alienado continua valendo. Assim, ainda nos dias de hoje,
O trabalhador torna-se tanto mais pobre quanto mais riqueza produz, quanto mais
a sua produção aumenta em poder e extensão. O trabalhador torna-se uma
mercadoria tanto mais barata, quanto maior número de bens produz. Com a
valorização do mundo das coisas, aumenta em proporção direta a desvalorização
do mundo dos homens (grifo do autor).
Para atingir esses objetivos, o sistema neoliberal gere as políticas públicas na lógica da qualidade
total, da produtividade, da meritocracia, da competitividade e do empreendedorismo, incorporando
essas categorias nas propostas pedagógicas.
Dentro da reforma educacional brasileira, fator importante foram as transformações ocorridas na
Educação Profissional (EP), que passou a ser a responsável pela solução do problema do desemprego
em nosso país, pois, seguindo a Teoria do Capital Humano, acreditava-se que as desigualdades
sociais poderiam ser superadas dentro do próprio sistema capitalista, à medida que a população
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 89
fosse se qualificando. Ou seja, o problema não estava na estrutura do sistema, mas, sim, na capacidade
dos sujeitos.
A partir do governo do presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC), tendo continuidade no de
Luiz Inácio Lula da Silva, diversas políticas de formação e qualificação profissional entraram em
cena a fim de preparar a classe trabalhadora para a inserção no setor produtivo, para o
empreendedorismo e, ainda, para a construção de uma produção econômica por meio de arranjos
locais. Estes são, por exemplo, os objetivos de planos do governo federal, como o Programa Nacional
de Inclusão de Jovens (PROJOVEM) e o Programa Nacional de Integração da Educação Básica
com a Educação Profissional na Modalidade de Educação de Jovens e Adultos (PROEJA), sobre
estes programas falaremos mais adiante. Outraação relevante para a Educação Profissional foi a
criação dos Institutos Federais de Educação Ciência e Tecnologia (doravante, denominados
simplesmente de “Institutos Federais”), já em 2008, no segundo mandato do governo Lula da Silva.
Dentro desta linha de expansão da educação profissional e tecnológica,foi criado em 26 de outubro
de 2011, pelo Ministério da Educação, o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego
(PRONATEC), sancionado pela Lei Federal 12.513/2011(BRASIL, 2011), com o principal objetivo de
“expandir, interiorizar e democratizar a oferta de cursos de Educação Profissional e Tecnológica
(EPT) para a população brasileira”.
O PRONATEC engloba um conjunto de iniciativas diretamente interligadas e voltadas para o
desenvolvimento da educação profissional no Brasil: a) à expansão da Rede Federal de Educação
Profissional, Científica e Tecnológica, que antecede o próprio Programa; b) à ampliação da oferta da
educação profissional integrada ao ensino médio nas redes estaduais; c) o fortalecimento da Rede de
Educação Profissional e Tecnológica a Distância (Rede e-TecBrasil) em sua oferta de cursos de
formação inicial e continuada, em parceria com o “Sistema S”.3Mesmo reconhecendo a necessidade
de investigação científica sobre todas essas iniciativas, nossa pesquisa se limitará apenas sobre a que
está ligada diretamente à Rede Federal de Educação Profissional Científica e Tecnológica, pois a
mesma engloba o Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro.
No entanto, a fim de compreendermos a perspectiva de execução do Programa, vale atentar para as
parcerias entre o sistema público e o privado para efetivação do mesmo, em que o SESI, SENAC,
SESC e SENAI foram incluídos no Acordo de Gratuidade que, por meio de subsídios governamentais,
amplia o número de vagas gratuitas em cursos de formação inicial e continuada para estudantes e
trabalhadores de baixa renda. Esse acordo se efetiva por meio do Fundo de Financiamento Estudantil
Técnico (FIES-Técnico). Mas o FIES Técnico não se restringe apenas ao “Sistema S”, ele também
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 90
pode estabelecer parcerias com escolas técnicas e empresas privadas que desejem participar do
Programa.
Pensando no trabalhador que já está empregado, o PRONATEC cria também o FIES Empresa, no qual
trabalhadores poderão cursar a formação inicial ou complementar seus estudos no próprio local de
trabalho.
Evidenciamos que o PRONATEC não apresenta uma proposta de investimentos significativos para as
Redes Estaduais de Ensino, que tem a responsabilidade de oferecer prioritariamente o Ensino Médio,
de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação de 20 de dezembro de 1996 (BRASIL,
1996). Entretanto o Programa prevê um conjunto de investimentos na rede privada de ensino e
parcerias com empresas. Sobre isso, podemos entender que ao prometer formação profissional de
qualidade em instituições privadas, o governo está admitindo a incapacidade da escola pública de
realizar esse trabalho e ainda demonstra o descompasso em relação à política de integração.
No projeto educativo da classe dominante, que obviamente organiza a educação sob a ótica do
capital, a formação profissional tem sido cuidadosamente planejada com objetivo constituir uma
cidadania de novo tipo. Por meio de seus estudos Souza (2002, p. 57) observa que:
A educação profissional baseia-se na distinção entre formação para o trabalho
manual para a grande massa de trabalhadores e formação para o trabalho intelectual
para uma elite privilegiada. No entanto, para ambas parcelas da força de trabalho,
a formação profissional tem como objetivo a constituição de um novo tipo de
cidadão, voltado para o mercado, quer como sujeito empreendedor, quer
simplesmente como sujeito de consumo.
A finalidade da classe dominante é claramente apontada por Souza (2002, p. 54) ao afirmar que o
real objetivo não é o de emancipar a classe trabalhadora, nem o de proporcionar uma formação sob
a ótica do trabalho, mas sim, o de “criar aptidões para o trabalho na sociedade urbano-industrial, por
meio da permanente atualização técnico-produtiva da força de trabalho escolarizada”.
O programa cria dois benefícios financeiros chamados de bolsa, que são: a Bolsa Formação Estudante
e a Bolsa Formação Trabalhador. A primeira, cuja duração mínima é de um ano, tem como alvo os
jovens matriculados no Ensino Médio regular e seu objetivo é oferecer cursos de qualificação
profissional em turnos diferenciados da jornada escolar. Já a segunda oferece formação inicial e
continuada ou qualificação profissional a trabalhadores que estão fora do mercado de trabalho.
De acordo com o Decreto 5.154 de 23 de julho de 2004, a Educação Profissional deve ser desenvolvida
em articulação com o Ensino Médio. Essa articulação deve acontecer de forma concomitante,
integrada ou subseqüente (BRASIL, 2004). Sendo o PRONATEC um programa que se configura em
relação ao Ensino Médio na forma concomitante, propondo a formação profissional dos estudantes
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 91
desse nível de ensino, por meio da Rede Federal, dentre outras instituições, procuraremos analisar
se a ampliação feita no âmbito do Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia do Rio de
Janeiro (IFRJ) resulta em ganhos reais para os jovens filhos da classe trabalhadora ou se consiste em
mais um mecanismo de subalternização e conformação social.
O programa se configura em amplas dimensões de modo que demandará grandes investimentos
públicos inclusive em instituições privadas. Essa proposta é questionada por Ramos (2011, p. 16) ao
apontar que “existe outro caminho político para se garantir o acesso do jovem à educação profissional:
o fortalecimento de políticas voltadas para a implantação do ensino médio integrado nos sistemas
estaduais de ensino”. Outro aspecto, não menos importante, é a possibilidade de o PRONATEC vir a
representar para a juventude pobre brasileira a perspectiva de inserção no setor produtivo, funcionando
para ela, talvez como possibilidade de ascensão social. Tal contradição é evidenciada por Souza
(2002, p. 51), ao afirmar que:
A educação, por sua vez, enquanto política social do Estado capitalista tem
respondido de modo específico às necessidades de valorização do capital, ao mesmo
tempo em que tem se constituído num instrumento de emancipação da classe
trabalhadora, através do efetivo acesso ao saber socialmente produzido.
Concluímos que o PRONATEC engloba um conjunto de ações articuladas para formação de
trabalhadores de novo tipo, pois não traz em seu bojo os princípios de politecnia, mas sim, uma
formação fragmentada, dual e simples para conformação dos sujeitos para o trabalho precário.
Referências
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do sindicalismo. São Paulo: Boitempo, 2010.
ANTUNES, Ricardo. Os sentidos do trabalho: ensaio sobre a afirmação e a negação do trabalho.
São Paulo: Boitempo, 2007.
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Associados, 2005.
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_ato2011-2014/2011/lei/l12513.htm. Acesso em 03 de abril de 2012.
GRAMSCI, A. Americanismo e Fordismo. São Paulo: Hedra, 2008.
HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.
15ª edição. São Paulo: Edições Loyola, 2012.
Marx, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Martin Claret, 2001.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 92
Marx e Engenls. Karl e Friedrich. Manifesto do Partido Comunista. Belo Horizonte: Frente
Revolucionária de Defesa dos Direitos do Povo, 2008.
MÉSZÁROS, István. A Educação Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2005.
RAMOS, Marise. PRONATEC: Público e Privado na Educação Profissional: entrevista Ano
III – Número 17, p 16, Mai/Jun 2011. Fio Cruz: Revista Poli. Entrevista concedida a Cátia Guimarães
e Raquel Júnia.
RUMMERT, Sonia Maria. Educação e Identidade dos Trabalhadores. Rio de Janeiro: Xamã,
2000.
SOUZA, José dos Santos. Trabalho, educação e sindicalismo no Brasil. Campinas (SPx): Autores
Associados, 2002.
SOUZA, José dos Santos(Org.) Trabalho, Qualificação e Políticas Públicas. Rio de Janeiro:7
Letras. 2011.
NOTAS
3
O que denominamos “Sistema S”, segundo a definição do próprio governo federal são “organizações criadas pelos
setores produtivos (indústria, comércio, agricultura, transportes e cooperativas) que têm por finalidade qualificar e
promover o bem-estar social e disponibilizar uma boa educação profissional” (BRASIL, 2012). O “Sistema S” é
composto pelas seguintes instituições: a) Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial do Estado do Rio de Janeiro
(SENAI); b) Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC); c) Serviço Nacional de Aprendizagem do
Transporte (SENAT); d) Serviço Social da Indústria (SESI), e) Serviço Social do Transporte (SEST), f) Serviço
Social do Comércio (SESC), g) Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR); h) Instituto EuvaldoLodi (IEL)
i) Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo (SESCOOP). Disponível em BRASIL. Sistema S. Fonte:
http://www.brasil.gov.br/empreendedor/capacitacao/sistema-s. Acesso em 26 de dezembro de 2012.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 93
A FLEXIBILIZAÇÃO DAS RELAÇÕES DE TRABALHO NA ATUALIDADE
Mira Lini Marconsin Caetano
Bacharel em Ciências Sociais pela UERJ
Mestranda em Sociologia pelo PPGS-UFF
[email protected]
Resumo
O presente trabalho pretende analisar as relações de trabalho, na atualidade, numa conjuntura de acumulação
flexível, articulada à flexibilização do trabalho, sob a égide de uma perspectiva societal neoliberal,
marcadamente mundializada pela internacionalização financeira do capital. Assim, pautar essa reflexão a
partir dos processos, após a queda do compromisso fordista, que levaram a mudanças nas relações entre
capital e trabalho, notadamente, perceber a processo de reestruturação produtiva e flexibilização dos direitos
trabalhistas e nas relações sociais de produção, de um ponto de vista da totalidade do capitalismo atual. As
categorias principais do pensamento de Marx (1983, 1988) são a base para as análises teóricas e sóciohistóricas do desenvolvimento do capitalismo e da centralidade do trabalho na acumulação capitalista e
autores como Chesnais (1996, 2001), Antunes (2001), Harvey (1993), entre outros igualmente importantes,
são fundamentais para a atualização e consolidação das análises, notadamente, numa conjuntura de crise
desse modo de produção. O processo de extração do sobre-trabalho e a crise estrutural do capital são partes
fundamentais nesta reflexão. O objetivo desse trabalho é fazer um compilamento das teorias acerca desse
processo, apontando para uma reflexão sobre as mudanças no mundo trabalho, na atualidade. Assim, através
do levantamento de bibliografia, utilizando o materialismo histórico dialético como método de análise, perceber
a reestruturação produtiva como um processo que se pauta num regime de acumulação que pretende aumentar
a intensidade da força de trabalho na jornada, reduzindo ao máximo as “perdas” do capital em todo o
processo de trabalho, aumentando assim a taxa de lucro das mega-corporações.
Palavra-Chave: Acumulação Flexível, Trabalho, Capitalismo.
Introdução
A lógica da produção em massa para consumo massificado, essência da produção fordista, gerou
uma enorme crise de superacumulação1 que, ao cabo de vinte anos, pôs fim aos “anos gloriosos do
pós-guerra”. Em outros termos, a acumulação se intensificou com o advento da gerência científica
e da parcelarização do trabalho levando o capitalismo a uma queda da taxa de lucro, tendo como
expressão fenomênica a superprodução. A acelerada queda na taxa de lucro articulada com a
emergência de movimentos operários radicalizados, de novos movimentos de massas e outros
acontecimentos de âmbito internacional, levaram, paulatinamente, ao desmoronamento do
compromisso fordista. Vale dizer que a estagnação econômica articulada com o acirramento das
lutas de classes tornaram-se elementos centrais da crise “latente” (BIHR, 1991) pela qual passava o
capitalismo ocidental no final dos anos de 1960 e início de 1970.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 94
Essa crise é estrutural do atual modo de produção e tem como essência mudanças na sua composição
orgânica, já que, na busca pelo aumento constante da produtividade, a burguesia reduz o capital
variável e aumenta o capital constante. Ou seja, ao reduzir trabalho, investindo cada vez mais em
técnica e maquinário, embora ampliando a mais-valia relativa no que se refere à produção de
mercadorias, reduz-se também o lucro. Porque é o acréscimo do capital constante em relação ao
capital variável que acarreta uma queda tendencial da taxa de lucro2. Ou seja, à medida que se reduz
o número de trabalhadores com investimentos maiores em tecnologia e maquinário, diminui a
capacidade de consumo geral na sociedade, pare e passo reduz-se também velocidade da realização
de mais-valia, criando-se ciclos de redução da taxa de lucro. Assim, a contradição insolúvel do
capitalismo se refaz permanentemente.
A acumulação flexível na era neoliberal
Para sair da crise, neste sentido, tornou-se necessário, para a burguesia, construir um novo sistema
de acumulação capaz de acabar com a queda da taxa de lucro e, portanto, um novo regime de
sociedade que conferisse suporte político à acumulação. É a reestruturação produtiva posta pelo
capital, que coloca em xeque a predominância do binômio taylorismo-fordismo trazendo, dentre
diversificados elementos, a flexibilização da produção e das relações de trabalho no processo
denominado por Harvey (1993) de acumulação flexível.3 Mas as soluções buscadas pelo capital
impõem, também, a liberalização e a desregulamentação do capitalismo sob o ideário neoliberal,
implementado primeiramente pelos governos de Thatcher, na Inglaterra, e de Reagan, nos EUA,
rapidamente seguidos pela maioria dos governos do mundo capitalista.
O neoliberalismo é uma forma burguesa de dominação num momento em que há a acumulação
flexível. Os princípios do neoliberalismo, aplicados por governos em variados países, são: - Estado
mínimo para a regulamentação financeira e para os direitos e garantias sociais, mas forte para repressão
e criminalização dos sindicatos; - disciplina orçamentária e reformas fiscais para redistribuição de
rendas em favor dos mais ricos; - deflação para recuperação dos lucros; - crescimento da taxa de
desemprego como mecanismo “natural e necessário de qualquer economia de mercado eficiente”
(ANDERSON, 1995:15); - aumento do grau de desigualdade social e econômica. A ideologia
neoliberal, paulatinamente, tornou-se majoritária, sendo parte do programa de governos de direita
ou mesmo de esquerda e até socialistas, notadamente na Europa.
Então, o novo padrão de acumulação pauta-se na flexibilização da produção, do mercado de trabalho
e do regime de trabalho. O ideário de empresa enxuta tem como principal resultado o aumento do
desemprego estrutural na sociedade. Por outro lado, segundo Antunes (2001), a acumulação flexível
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 95
promove novas formas de intensificação do trabalho. Essas novas formas padronizadas pelas
tecnologias atuais, resultantes da informatização da produção e do setor terciário expandem-se
fundamentadas numa produção flexível, descentralizada e terceirizada.
Do ponto de vista do mundo do trabalho, a polivalência, o trabalho em equipe, multifuncional e
qualificado tem como escopo a compressão do tempo de ócio, a “redução do tempo de trabalho”
(ANTUNES, 2001: 52-53). Na verdade, é um regime de acumulação que pretende aumentar a
intensidade da força de trabalho na jornada, reduzindo ao máximo as “perdas” em todo o processo,
desde o controle de qualidade até a estocagem, que passam a ser responsabilidade dos trabalhadores.
Se no apogeu do taylorismo/fordismo a pujança de uma empresa mensurava-se
pelo número de operários que nela exerciam sua atividade de trabalho, pode-se
dizer que na era da acumulação flexível e da “empresa enxuta” merecem destaque,
e são citadas como exemplos a ser seguidos, aquelas empresas que dispõem de
menos contingentes de força de trabalho e que apesar disso têm maiores índices de
produtividade (ANTUNES, 2001:53).
O aumento do desemprego e os ataques neoliberais limitam a atuação e a força dos sindicatos,
reduzindo, sensivelmente, a possibilidade de reação dos trabalhadores. Aumentam, proporcionalmente,
a precarização dos contratos de trabalho e das relações de trabalho, acrescendo os subcontratos, os
subempregos e os serviços temporários que passam a ser peças centrais do sistema e não mais
acidentes ocasionais ou “desviantes”. Essa situação amplia ainda mais a desmobilização dos
trabalhadores que se sentem ameaçados pelo desemprego estrutural e se tornam maleáveis, aceitando
melhor modificações nas relações de trabalho.
Nesse contexto, o aparente fôlego vivido pelo capitalismo até o início dos anos 2000 mostra-se
consequência principal dessa nova forma de acumulação que traz a redução do tempo de giro na
produção.4 A modalidade just in time facilita uma produção mais dinâmica, gerada pelas novas
tecnologias e formas organizacionais, recuperando rapidamente os investimentos. Historicamente,
quando se introduz uma nova forma de organização na produção se retoma o lucro de um ponto de
vista geral, as grandes corporações voltam a realizar mais-valia satisfatoriamente, contornando a
redução; entretanto, as pequenas e médias não suportam a crise e sucumbem. As outras se adaptam
e, paulatinamente, ocorre a generalização da nova organização produtiva. O problema é que, ao se
generalizar, o modelo degenera, levando o capitalismo novamente à crise.5 As fusões e incorporações,
a diversificação dos investimentos, a especulação financeira são tentativas de fugir do inevitável.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 96
A articulação: mundialização, flexibilização e precarização do trabalho
Ao lado dessas transformações no mundo do trabalho aquele período, teve início um processo de
internacionalização do capital a que Chesnais (1996) denominou de mundialização6 do capital.
A tendência à criação de um mercado mundial é constitutiva da essência capitalista, um é parte do
surgimento do outro, e ambos desenvolvem-se articuladamente. É uma tendência que se torna
imperativa a partir da transição do século XIX para o XX, quando os investimentos externos tornaramse parte fundamental da constituição das empresas. No entanto, de acordo com Chesnais (1996), a
mundialização do capital não é um momento deste processo de internacionalização do capitalismo,
e sim, constitui-se um processo singular de internacionalização do capital e de sua valoração, de um
ponto de vista global e local. Isto porque ao mesmo tempo em que é sistêmico e geral abrange
localidades, regiões, continentes, em que haja recursos ou mercado apenas. A mundialização do
capital é, portanto, a exclusão daqueles que não possuem nem recursos, nem mercados, processo
esse dirigido pelos países da tríade7, obrigando os demais a aderirem à sua lógica. Aquele que não
adere sucumbe, ou pela força do mercado dos outros ou pela insolvência acarretada pela ausência
de investimentos internacionais.
O marco que define a mundialização do capital é a internacionalização do capitalismo que ultrapassa
os mercados nacionais. Em outros termos, é quando o capital “produtivo”, aquele gerador de valor
e mais-valia, torna-se internacionalizado, na composição orgânica das corporações, ou seja, quando
as indústrias fundamentais na produção de valor geral tornam-se o centro do processo de
internacionalização. Num mesmo movimento, ao se tornar o ponto de inflexão, o capital industrial
arrasta para a internacionalização os capitais mercantil e monetário. Assim, a mundialização do
capital é a generalização para todo o sistema da junção internacionalizada dos capitais industrial,
mercantil e monetário.
De um ponto de vista da relação desse processo com o capital produtor de valor e mais-valia, a
adaptação às novas formas de organização do trabalho e produção é imperativa. Aliado a esse fato,
a desregulamentação articulada às vantagens das tecnologias virtuais e de informática multiplicaram
em muito a capacidade de investimento e mobilidade do capital “produtivo”. Essa mobilidade faz
com que ele possa “por em concorrência as diferenças no preço da força de trabalho entre um país
– e se for o caso, uma parte do mundo – e outro” (CHESNAIS,1996:28), utilizando-se, para tal, de
investimento externo direto ou mesmo a terceirização.
A implantação de fábricas ou unidades de produção em países diferentes tem por
objetivo aproveitar os diferenciais de níveis salariais, mas também economizar na
especialização. A decomposição técnica dos processos de produção permite, em
determinadas condições, obter ganhos de especialização, bem como maior
homogeneidade de cada segmento produtivo. As atividades podem também ser
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 97
espalhadas no espaço e localizadas livremente, seja em nível das filiais, no caso da
integração completa, seja por subfornecimento internacional e suprimento no exterior
(CHESNAIS, 1996:131).
A automação, advinda da informatização da produção, é a principal aliada da flexibilização dos
direitos e dos contratos de trabalho, na era da mundialização. Rapidamente, os grandes grupos
adaptaram-se às novas formas de produzir, de um ponto de vista da organização do trabalho e da
produção. Mesmo com o ideário de empresa enxuta, os grandes grupos ainda se interessam por
locais onde é baixo o valor da mão de obra. A combinação dos fatores acima citados fez com que as
grandes corporações aliadas aos Estados estabelecessem “zonas de baixos salários e de reduzida
proteção social”, em localidades geograficamente próximas aos polos triádicos (CHESNAIS,
1996:35).
De tudo o que se percebe do ponto de vista do capital, os grupos industriais transnacionais têm tudo
para dominar política e socialmente o capitalismo atual. No entanto, a forma de acumulação na era
da mundialização é comandada pelo capital financeiro, notadamente o capital rentista, de investimentos
institucionais tais como fundos de pensão, financeiras de investimento coletivo, os chamados Mutual
Funds (administradoras de ativos de clientes dispersados), sempre ligados aos grandes bancos e/ou
companhias de seguros. Nos dias atuais, a ponta de lança do processo de mundialização são as
transações financeiras, isto porque, inscritos nesse diagrama estão os volumes maiores de capital,
cuja mobilidade é maior e, “aparentemente, os interesses privados recuperaram mais completamente
a iniciativa, em relação ao Estado” (CHESNAIS, 1999:11).
A primeira consequência desse processo foi a derrubada das barreiras que fechavam os mercados
financeiros nacionais, criando um espaço mundial para este tipo de transação econômica. Porém,
isso não significou a extinção dos mercados financeiros nacionais, e sim sua integração numa totalidade
que, segundo Chesnais (1999), caracteriza-se por três peculiaridades: hierarquização,
desregulamentação e unificação. Uma forte hierarquização, pois os mercados são dominados pelo
sistema dos EUA em decorrência do papel central do dólar e pelo volume do seu mercado de bônus
e ações. Não há nenhum mecanismo de regulação ou controle na totalidade do mercado financeiro
mundializado. A unificação se dá pela realização da unidade do mercado pelos operadores financeiros
e não somente as telecomunicações que garantem a ligação entre as praças financeiras em tempo
real.
Com efeito, a costumeira personificação do mercado feita pela mídia não é fora de contexto. Os
gestores de carteira tomam decisões e integram os mercados de forma efetiva. Ainda de acordo com
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 98
Chesnais (1999), essa antropomorfização do mercado financeiro revela três dimensões do caráter
da ascensão desse setor.
A primeira refere-se ao movimento de relativa autonomização da esfera financeira
em relação à produção e, sobretudo, em relação à capacidade de intervenção das
autoridades monetárias. A segunda tem a ver com o “fetichismo” (ressaltado por
Marx e também por Keynes) das formas de valorização do capital de natureza
especificamente financeira. A terceira remete ao fato de que são os operadores que
delimitam os traços da mundialização financeira e que decidem quais os agentes
econômicos, de quais países e para quais tipos de transação, participarão desta
(CHESNAIS, 1999:13; grifos nossos).
A mundialização financeira realiza um estímulo radical de fetichização do capital rentista, colocando
o mercado como a atividade mais relevante da sociedade humana, acima de tudo e de todos. Essa
postura arrogante dos operadores financeiros decorre certamente da posição privilegiada atingida
pelo setor nas últimas décadas. No entanto, em um mundo dominado pelo capital financeiro todos
os aspectos da vida social acabam por padecer com a forma mais cruel de fetichismo, o dinheiro
produzindo dinheiro.
A lógica que impera no ideário daqueles que comandam o mercado financeiro é de que um valor
valoriza a si mesmo, e que os rendimentos advindos da ciranda financeira serão tão regulares quanto
o ciclo de uma árvore frutífera. Esse processo acrescentou enormemente a fetichização das
mercadorias e a ampliação dos espaços do capital, em nível mundial, amplificou esse fato ainda
mais, objetificando de forma extrema a vida social e as relações de trabalho. A ampliação do fetiche
do capital rentista para o trabalhador significa uma depreciação ainda maior da sua própria vida.
Posto que ao passo que o dinheiro como sombra de capital torna-se dominante nas relações sociais,
a “mercadoria trabalho” paulatinamente é reduzida em seu valor de troca. Esse processo precariza
ainda mais as relações de trabalho, flexibilizando as leis para atender a um rebaixamento geral de
salários.
Todavia, embora essa lógica tenha recuperado, em alguma medida, a taxa de lucro, empurrou o
mundo para uma estagnação cumulativa; o capital parece ignorar as condições em que se dá a
produção e a extração de mais-valia.
Em primeiro lugar, porque não se pode realizar de forma satisfatória mais-valia enquanto milhões de
trabalhadores em diversas partes do mundo não têm suas necessidades básicas individuais e coletivas
atendidas. Essa concentração radical faz com que as mercadorias produzidas escoem sempre para
os mesmos mercados que paulatinamente saturam-se. Em segundo lugar, e não menos importante,
porque o limite da financeirização é a produção real de valor que tende a ser reduzida pelo investimento
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 99
em especulação. Além disso, o grau elevado de cegueira dos investidores, causado pelas consecutivas
altas e pelos grandes ganhos em termos de volume de dinheiro, os torna presas fáceis de
comportamentos baseados no pânico; qualquer variação de conjuntura, por mínima que seja, pode
servir de combustível para uma grave crise no mercado financeiro, destacando o caráter subjetivo
dos investimentos financeiros e os riscos de uma crise de grandes proporções.
Conclusão: A crise atual e as questões que se tornam imperativas
Ao passo em que se analisam os debates sobre a realidade atual, diversas interrogações tornam-se
fundamentais. Será possível resolver essa crise sem um conflito armado, entre as nações, em termos
globais? Será preciso uma crise econômica de proporções catastróficas para que haja um
reordenamento das relações capital-trabalho? Que tipo de relação se estabelecerá entre China e
EUA em função da crise? Será que os trabalhadores terão condições de reverter a correlação de
forças e propor uma saída para a sociedade capaz de superar o capitalismo?
De fato, ainda é cedo para responder a essas questões. Contudo, uma velha lição deve ser mais uma
vez aprendida: quando o capital busca superar seus limites inerentes acaba sendo, mais uma vez,
presa de si próprio. Ou seja, as tentativas de solucionar as crises do capital esbarram na contradição
fundamental entre a produção coletiva e a apropriação individual dos meios de produção e das
mercadorias. Esse limite apenas a superação das relações sociais de produção capitalistas poderá
romper.
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NOTAS
1
A crise de super acumulação dá-se quando o capital prioriza setores da produção que realizam mais lucro num
determinado momento, esvaziando outros. Ocasiona, com esse procedimento, uma queda nos preços das mercadorias
dos setores priorizados, porque se produz mais do que o socialmente necessário, o estoque não escoa e o capitalista
não recupera o que gastou, não realiza a mais valia extraída na produção.
2
Tx de mais-valia= M/CV; Tx de lucro=TxMV/CV+CC. Logo, reduzir CV pode aumentar a mais-valia relativa, no
entanto, ao incrementar CC, a taxa de lucro tende a se reduzir.
3
“A acumulação flexível, como vou chamá-la, é marcada por um confronto direto com a rigidez do fordismo. Ela
se apoia na flexibilidade dos processos de trabalho, dos produtos e padrões de consumo. Caracteriza-se pelo surgimento
de setores de produção inteiramente novos, novas maneiras de fornecimento de serviços financeiros, novos mercados
e, sobretudo, taxas altamente intensificadas de inovação comercial, tecnológica e organizacional. A acumulação
flexível envolve rápidas mudanças dos padrões do desenvolvimento desigual, tanto entre setores como entre regiões
geográficas, criando, por exemplo, um vasto movimento no emprego no chamado “setor de serviços”, bem como
conjuntos industriais completamente novos em regiões até então subdesenvolvidas (tais como a “Terceira Itália”,
Flandres, os vários vales e gargantas do silício, para não falar da vasta profusão de atividades dos países recémindustrializados). Ela também envolve um novo movimento que chamarei de “compressão do espaço-tempo” [ver
Parte III] no mundo capitalista – os horizontes temporais da tomada de decisões privada e pública se estreitaram
enquanto a comunicação via satélite e a queda dos custos de transporte possibilitaram cada vez mais a difusão
imediata dessas decisões num espaço cada vez mais amplo e variado.” (HARVEY, 1993:140).
4 O tempo de giro do capital consiste no período de tempo em que a roda produtiva move a acumulação capitalista.
O capital dinheiro compra a força de trabalho, a maquinaria e a matéria-prima. A relação de produção que reúne o
trabalho, a máquina e os insumos, resulta no capital-mercadoria que, ao ser vendido, retorna como capital-dinheiro,
realizando a mais-valia. O tempo que leva para fechar esse ciclo produtivo é o tempo de giro do capital. O que a
acumulação flexível conseguiu foi diminuir esse período, aumentando a rapidez desse ciclo. Vale dizer que o
capital conseguiu aumentar a mais valia em um nível global ao reduzir investimentos e incrementar o ciclo de
realização, girando o ciclo de realização da mais-valia rapidamente.
5 Ao tentarem ampliar o lucro, investem em tecnologia, não conseguindo realizar proporcionalmente a mais-valia
e, dessa forma, entra em cena, novamente, a tendência à queda da taxa de lucro.
6 Chesnais (1996) utiliza-se da categoria mundialização, buscando desmistificar a categoria globalização. Para o
autor, a categoria globalização passou a ser apresentada com uma aparente neutralidade, defendendo que o conceito
de mundialização mostra a verdadeira face desse processo: miséria material, desemprego massivo e estrutural, alta
concentração de riquezas e privilégios, recessão mundial.
7
Países da Tríade: EUA, EU e Japão.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 101
AUTONOMIA FEMININA:
Interferência do Programa Bolsa-Família na vida das mulheres
Ana Carolina Radd Lima
Mestranda em Sociologia pela Universidade Federal Fluminense
Resumo
Essa pesquisa faz uma reflexão sobre a trajetória de vida das mulheres que recebem Bolsa Família em
favelas1 na cidade do RJ. É nossa intenção ainda, analisar a influência desse tipo de Políticas Públicas no
fortalecimento da autonomia e liberdade feminina. Durante muitos anos as mulheres estiveram em situação
de exclusão socioeconômica e inferioridade na escala de prestígio social. Após anos de repressão social as
mulheres tornaram-se protagonistas e hoje são as atrizes principais da nova recomposição do mundo, conforme
descrito por Touraine, em O mundo das mulheres. Nesse sentido, o fortalecimento das condições de vida das
mulheres é crucial para o desenvolvimento do país. Ao se falar em desigualdade social, pobreza e políticas
públicas há necessariamente que se falar em desigualdade de gênero. “O não tratamento das questões de
gênero nos estudos sobre pobreza impede a observação das relações sociais que explicam a real dimensão
e dinâmica da pobreza” (Sabóia e Soares, 2004). As mulheres se tornaram protagonistas dos projetos
assistenciais brasileiros, tal como está ocorrendo no Programa Bolsa Família. Sendo assim, este trabalho se
apresenta como uma pesquisa fundamentalmente qualitativa, tendo como objetivo traçar o perfil de mulheres
beneficiárias do Programa, analisando seus papéis sociais e quais os efeitos das condicionalidades do programa
na vida dessas mulheres e na construção de uma “nova” identidade. Temos como hipótese, que o fortalecimento
da autonomia individual das mulheres, se dá através do recebimento dos recursos do Programa que vai
interferir na ampliação dos níveis de participação feminina no mercado de trabalho. Desta forma os recursos
recebidos se tornarão determinantes na diminuição da dependência econômica das mulheres, se pensarmos
em sua relação com os homens, gerando uma possível independência social e um possível rompimento com
o ciclo da pobreza extrema.
Palavras-chave: pobreza; desigualdade de gênero; autonomia feminina; bolsa-família
Introdução
A partir da década de 80, a questão da desigualdade entre os sexos e a luta pelo direito das mulheres,
que durante muitos anos foram pautas de discussões específicas dos movimentos feministas, passaram
a fazer parte dos objetos de estudos nas universidades de todo o mundo. O gênero, enquanto
categoria de análise, como relação de poder histórico e culturamente estabelecida entre os sexos,
passa a ser peça central nas pesquisas sociais.
As mulheres hoje são a maioria da população brasileira, segundo dados do IBGE, e nas faixas com
mais de 11 anos de estudos, são a maioria da população economicamente ativa. No entanto, também
representam as famílias mais pobres do país, configurando o fenômeno conhecido como feminização
da pobreza2. Nesse sentindo, “O não tratamento das questões de gênero nos estudos sobre pobreza
impede a observação das relações sociais que explicam a real dimensão e dinâmica da pobreza”,
como afirmam Sabóia e Soares (2004).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 102
Grande parte dos estudos realizados, tanto pelas feministas quanto pesquisadoras sociais, até 1990
não tratavam das condições de vida das mulheres na periferia (GHON, 2007). Nos estudos sobre
pobreza de um modo geral não havia um recorte de gênero. Foi a partir desta década que as mulheres
passaram a ocupar novas arenas não mais como movimento social de mulheres, mas como movimento
feminista, afirma Maria da Glória Ghon. Como muitas das feministas se encontram também no
campo acadêmico, deu-se um rumo diferente as pesquisas, e essas passam a interferir de alguma
forma nas políticas públicas.
A partir desse recorte, de gênero e pobreza, as mulheres se tornaram protagonistas dos projetos
assistenciais brasileiros, como ocorre no Programa Bolsa Família. Atualmente, tem sido realizadas
muitas pesquisas que buscam trabalhar com a questão da pobreza e a interferência do Programa
Bolsa Família nas regiões mais pobres do pais, como nordeste e Vale do Jequitinhonha, devido a
essas regiões terem uma grande quantidade de pessoas abaixo no nível da pobreza . Nestes lugares,
a assistência do governo se torna algo fundamental para a sobrevivência dessas famílias pois, são
marcadas pela precariedade extrema. Neste sentido, a pobreza ultrapassa a carência somente
econômica, são locais com dificuldade de acesso a determinados serviços, o que vem dificultar a
estabilidade destas famílias, mesmo com o ganho da bolsa família.
Escolhemos como sujeitos desta pesquisa, mulheres moradoras de favelas, que embora também se
encontrem em situação de escassez econômica e de prestação de serviços, não estão em localidades
de completo afastamento social como ocorre com algumas regiões do sertão brasileiro, que em sua
maioria possuem dificuldade de acesso a qualquer centro urbano. Sendo assim, utilizaremos as
pesquisas e entrevistas realizadas nessas regiões de completo afastamento, como caso controle,
com a finalidade de comparação, já que queremos saber de que forma o Programa de transferência
de renda interfere na vida das mulheres inserindo-as na sociedade.
Atualmente, nas pesquisas relacionadas à pobreza e gênero se faz um debate que possibilita a utilização
da responsabilidade feminina domiciliar como indicador de maior pobreza das mulheres. Nesse trabalho
procuraremos então, dialogar com o fenômeno da feminização da pobreza nos grandes centros
urbanos e o recebimento de políticas públicas que buscam suprir as necessidade básicas das famílias
geridas por essas mulheres. Busca-se refletir como o cartão3 do Programa Bolsa Família, estando
em nome dessas mulheres, interfere na autonomia individual e na noção de direito e cidadania. Dessa
forma podemos investigar os efeitos políticos e morais deste programa do governo sobre as mulheres
beneficiárias. Partimos da hipótese que o surgimento da autonomia feminina é possível ser pensada
tendo e vista a personalização do Cartão, que está em seu nome, em sua responsabilidade nominal.
É esta situação que vai possibilitar sua autonomia econômica relação ao homem, gerando
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 103
consequentemente uma independência social, que vai interferir na ampliação dos níveis de participação
da mulher no mercado de trabalho.
Neste momento, não utilizaremos dados quantitativos, gráficos e estatísticos, pois o nosso objetivo
imediato é ouvir a voz das beneficiárias do programa, daquelas que muitas vezes se encontram
invisíveis perante a sociedade. Entretanto, este artigo não compreende o trabalho total, mas apenas
parte da pesquisa, tendo em vista que para a conclusão do estudo será necessário uma pesquisa de
campo e etnografia detalhada, com aplicação de questionário, o que demanda um tempo maior de
estudo. Atentaremos-nos então, neste momento, em fazer um levantamento bibliográfico de estudos
já realizado sobre pobreza dando um enfoque especial ao recorte de gênero, e sobre o Programa
Bolsa Família, suas condicionalidades e as mudanças sociais em decorrência dos seus dez anos de
existência.
Desenvolvimento Configurações das favelas
As favelas passaram a ser vistas como objetos de estudo das universidades a partir da década de 60,
antes disso, segundo Licia do Prado Valladares,
quando a pobreza urbana se transforma em preocupação das elites, tanto lá como
cá4 , são os profissionais ligados à imprensa, literatura, engenharia, medicina, ao
direito e à filantropia que passam a descrever e propor medidas de combate à
pobreza e à miséria. (2000, p. 6)
As atenções para o estudo da pobreza urbana e de seus personagens estavam voltadas para o cortiço,
considerado no século XIX como o local da pobreza, e se concentrava grande número da chamada
classe perigosa (2000). Pesquisadores desta área acreditam, ser ele a semente das favelas. Com um
discurso higienista, pois devido a falta de saneamento básico e políticas públicas neste local havia
grande concentração de epidemias e uso de drogas, a administração pública do Rio de Janeiro
começam uma limpeza urbana, primeiro proibindo a construção de novos cortiços, depois destruindo
o maior de todos O cabeça de Porco e por ultimo realizando uma reforma urbana com objetivo de
sanear e limpar a cidade. Junto com o processo de renovação urbana ocorre um processo de
aburguesamento.
Nesse sentindo, alguns estudiosos estabelecem uma relação entre a derrubada do Cabeça e Porco e
o surgimento do Morro da Previdência, conhecido posteriormente como Morro da Favella no
início do século XX. Ou seja, com a nova reorganização do centro da cidade iniciam-se as construções
irregulares nos morros. E o Morro da Favella passa a emprestar seu nome aos aglomerados urbanos
de casebres construídos de formas desordenada, de ocupação ilegal, com falta de acesso aos serviços
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 104
públicos, que começam a se multiplicar no centro e nas zonas sul e norte da cidade do Rio de
Janeiro. A partir da segunda década do século XX a imprensa passa a usar o termo favela de forma
substantiva.
Nos anos 90 as pesquisas sobre favelas multiplicaram-se tanto no âmbito das universidades como
das instituições governamentais e não-governamentais. Segundo Valladares, no seu livro A invenção
da favela (2005), a representação da favela é construída no seu conjunto, como um território da
violência, como lugar de todas as ilegalidades, como bolsão da pobreza e da exclusão social,
reforçando a imagem de cidade partida.
O termo favela passa a designar não só pobreza mas toda uma imagem de segregação urbana, é um
território no qual está presente diversas formas de ilegalidades e os estigmas em torno deste conceito
vão se configurando de múltiplas maneiras consequentemente relacionado a pobreza. A favela passa
a ser símbolo da segregação socioespacial o que segundo Valladares está associado a pobreza e
privações múltiplas, violência e tráfico de drogas. É possível encontrar uma certa similaridade nessas
privações sociais evidenciadas nas favelas com os sertões brasileiros, no qual a escassez econômica
não é o único fator determinante da miséria no qual seus habitantes vivem. De acordo com Fernandes
e Gama (2010)
A cidade “legal” assistiu ao crescimento das favelas, com um misto de tolerância e
indiferença, permanecendo seus moradores como invisíveis e anônimos, sendo
tratados pelo Estado de forma superficial e distante de suas necessidades, acirrando
a segregação e a marginalização entre estes espaços.
Houve por muitos anos um descaso do poder público e invisibilidades das outras classes sociais com
essa parte menos privilegiada da população. A desigualdade de oportunidades e falta de acesso aos
serviços públicos no qual vivem essas pessoas é notória, sendo assim necessária a intervenção com
políticas públicas para diminuir, mesmo que minimamente a discrepância das condições
socioeconômicas na qual vivem essas pessoas, carentes de comida, de acesso a escola, de trabalho,
de lazer e de dignidade. Nesse sentindo, a construção histórica da favela se articula com uma
ampla gama de questões, onde as políticas públicas se configuram como ponto fundamental (2010).
O século XX foi marcado por políticas baseadas em ações tanto de remoção como de urbanização.
Na década de 70 e 80 avança o sistema de proteção social, na década de 90 programas de redistribuição
de renda passam a integrar a agenda pública no país. E em 2003, com o governo Lula, ocorre a
unificação dos diversos programas nacionais de transferência de renda, no Programa Bolsa Família,
que é oficializado através da Lei Nº 10.836 de 9 de janeiro de 2004 , se tornando o carro chefe da
política social brasileira. E além das mudanças quantitativas abordadas pelos programas anteriores,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 105
mudanças qualitativas, passam a ser vislumbradas, tendo em vista as condicionalidades estabelecidas
pelo Programa. Como será apresentado pelo na sessão sobre o Programa Bolsa Família.
Em 2011, através do MDS, o governo federal amplia os recursos do PBF, criando o programa de
busca ativa5, com o objetivo de conceder o benefício a famílias extremamente pobres que não foram
ainda cadastradas. E assim, vão se criando diversas estratégias paralelas ao programa para que seus
beneficiários sejam incluídos de forma efetiva na sociedade. Nesse sentido, é extremamente importante
a participação dos estados e municípios na gestão do Programa tendo em vista que entre outras
atribuições, cabe aos municípios inserir as famílias no cadastro único (CadÚnico) para programas
sociais. Sabe-se que nem sempre isso ocorre da maneira esperada, no entanto não é objetivo desta
pesquisa questionar a gestão e a fiscalização do Programa. Buscaremos apenas refletir sobre a
forma como o recebimento do benefício intervém, seja objetiva ou subjetivamente, na vida das
mulheres em situação de pobreza e extrema pobreza, dialogando com as condicionalidades.
Papéis sociais e a divisão sexual do trabalho
Durante muitos anos as mulheres estiveram em situação de exclusão socioeconômica e inferioridade
na escala de prestígio social. Papéis sociais foram definidos e ainda de alguma forma são reproduzido
nos dias atuais. Por muito tempo o espaço público foi exclusivamente um campo de atuação masculina,
onde as mulheres não desfrutavam dos mesmos direitos que os homens e, por isso, foram desprovidas
de certos privilégios, tendo suas vidas condicionadas à vida doméstica e aos cuidados da família, o
que acredita-se ser determinante na definição dos estereótipos de cada gênero e nos papéis feminino
e masculino. Segundo Goffman (1975).
A sociedade estabelece os meios de categorizar as pessoas e o total de atributos
considerados como comuns e naturais para os membros de cada uma dessas
categorias: Os ambientes sociais estabelecem as categorias de pessoas que têm
probabilidade de serem neles encontradas.
Neste sentindo para ser aceito na sociedade deve-se cumprir com os papéis estabelecido por esta
para a categoria ao qual pertence bem como os atributos de cada grupo. Ou seja, é determinado um
padrão social externo ao indivíduo que o modela e enquadra na sociedade. À mulher, cabe o espaço
privado, o cuidado, a família, o homem pertence ao mundo público, os negócios, a razão, a força. O
que deu origem ao que as feministas vieram chamar de divisão sexual do trabalho, sendo essa
divisão o que defino o que é trabalho de homem do que é trabalho de mulher.
Segundo Maria da Glória Gohn (2007), mesmo após a tomada de consciência de uma opressão
específica, pelo movimento feminista francês, no início da década de 70, que tinha como um de seus
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 106
objetivos repensar o trabalho sua divisão sexual inclusive da invisibilidade do trabalho doméstico
que era, e ainda é muitas vezes, considerado como natural à mulher, ou seja, visto como atribuição
especificamente feminina e após anos de emancipação feminina, as mulheres ainda encontram restrições
no que se refere à forma de se colocar na sociedade. Entende-se que os resquícios dessa desigualdade
se reflete de forma muito clara tomando-se como análise o mercado de trabalho, na sua divisão
sexual e na autonomia econômica feminina. Trata-se de uma situação crônica, devido à persistência
da vulnerabilidade das mulheres expressa em quase todos os indicadores sociais. Socorro (2010)
afirma que as mulheres ao sairem para mundo público, precisam carregar seus filhos, diferentemente
dos homens, uma vez que a injusta divisão sexual do trabalho e as ideologias que perpassam a
cultura patriarcal designam às mulheres a responsabilidade quase absoluta de cuidado dos seus
filhos.
Nesse sentindo é importante considerar os papéis sociais atribuídos aos sexos, e a responsabilidade
das mulheres para com o cuidado com os filhos e a casa ser maior do que aquela atribuída aos
homens, o que contribui com o quadro de muitas famílias que possui a mulher como pessoa de
referencia não ter a presença do cônjuge. O aumento desse perfil de famílias foi um dado marcante
na última década (Comunicado do IPEA, 2009). E com a entrada cada vez mais massiva da mulher
no mercado de trabalho, elas assumem obrigações para além das funções de mães e esposas
sobrecarregando a função da mulher, sobretudo economicamente, já que muitas vezes a mulher é a
única responsável pelo sustento da família, o que associado à maior vulnerabilidade econômica
feminina leva à afirmação de alta probabilidade das famílias que possuem como pessoa de referência
a mulher, se encontrarem em situações de grande precariedade.
A partir dos papéis sociais apresentados, e da na divisão sexual do trabalho discutiremos na próxima
sessão as condicionalidades exigidas para o recebimento do Programa Bolsa Família como reafirmação
desses estigmas.
O Programa Bolsa Família
O Bolsa Família é atualmente o maior programa de transferência de renda condicionada da América
Latina em número de beneficiários. São aproximadamente 13,3 milhões de famílias recebendo o
benefício, equivalente a 52 milhões de pessoas (Ministério de Desenvolvimento Social e Comte a
Fome MDS, 2012). Criado em 2003, hoje está entre os principais programas de políticas públicas do
Governo brasileiro e tem sido usado como modelo para muitos países. Segundo o Ministério do
Desenvolvimento Social e Combate a Fome (MDS), órgão do Governo Federal responsável pela
criação do programa, o Bolsa Família trata de uma medida governamental que possui como objetivo
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 107
a transferência direta de renda promovendo o alivio imediato da pobreza e o reforço do exercício
dos direitos sociais básicos nas áreas da saúde e da educação.
São beneficiadas as famílias categorizadas como pobre, segundo o Governo Federal, entendendo
estas como as que possuem renda per capita entre setenta e cento e quarenta reais e extremamente
pobres as que possuem renda per capita inferior a setenta reais. Sendo que as famílias pobres só
podem ingressar no PBF se possuir dependentes com até 17 anos de idade. As classificadas como
extremamente pobres não necessitam de nenhuma especificidade para participar do programa além
da renda.
Reconhecendo que a situação de desigualdade social vai alem das questões referentes â renda, e que
para essas famílias que se encontram em situação de pobreza e extrema pobreza melhorem sua
condição de vida. É necessário mais que o auxilio econômico para o recebimento do beneficio, é
necessário o cumprimento das condicionalidades, ou seja condição que as famílias devem cumprir,
para receberem o benefício. Destaca-se a frequência escolar mínima de 85% para crianças e adolescente
entre 6 e 15 anos, de 75% para crianças e adolescentes entre 16 e 17 anos estar em dia com o
calendário de vacinação e assistência à saúde para crianças além dos menores de 7 anos. É também
necessário a realização regular de pré-natal no caso das gestantes, acompanhamento de mães que
possuem entre 14 e 44 anos de idade em fase de amamentação, frequência mínima de 85% da carga
horária dos serviços de assistência social exigidos para crianças e adolescentes em situação de risco.
Em função da dificuldade das mulheres em ingressarem no mercado de trabalho e ocuparem posições
de menor status social e menor remuneração, acredita-se que as famílias pobres e extremamente
pobres chefiadas por mulheres, têm um risco maior de transmissão integracional de pobreza, de que
as condições de melhoria de vida sejam restritas e impossibilitem a mobilização social dos filhos.
Assim, dá-se o inicio a um ciclo de empobrecimento das famílias e dos filhos. Devido ao fato de
muitas das famílias chefiadas por mulheres pertencerem as classes sociais mais baixas, os programas
de assistência a família tem sido, mesmo que indiretamente, voltados para elas. Como o caso do
Programa Bolsa Família que realiza o pagamento do benefício preferencialmente à mulher, conforme
determina a Lei 10.836/2004.
Segundo Bila Sorj e Adriana Fontes (2010) esses programas de combate a pobreza, que surgiram
tanto no Brasil como em outros países da América Latina na década de 90, tendem a priorizar as
mulheres como beneficiárias, devido a evidencias, concluídas por estudos que indicam a preferência
delas em investir os recursos da família no bem estar das crianças, ao passo que os homens tendem
a reservar parte destes recursos a benefício de si próprios.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 108
No entanto, apesar do protagonismo feminino neste programa contribuindo para o empoderamento
feminino domiciliar, fortalecendo sua responsabilidade com relação a manutenção da família, de
acordo com Sorj e Fontes (2007), o programa não influencia fortemente na tomada de decisão das
mulheres na participação ou não no mercado de trabalho, uma vez que as taxas de participação das
beneficiárias e das não beneficiarias são muitos próximas.
Se pensarmos nas duas regiões mais importantes em termos populacionais no Brasil, Nordeste e
Sudeste, levando-se em conta que o Sudeste possui renda domiciliar per capita mais de duas vezes
maior que a do Nordeste, que por sua vez possui mais da metade da sua população considerada
pobre. Nota-se, segundo Sorj e Fontes (2010), que no Nordeste o impacto do Bolsa Família pode
estar desencorajando a busca por trabalho de melhor qualidade.
o efeito negativo do Bolsa Família na quantidade e na qualidade do trabalho das
mulheres é maior no Nordeste do que no Sudeste, podendo estar relacionado ao
fato de a Bolsa, que é sempre a mesma, valer menos no Sudeste que no Nordeste,
uma vez que o custo de vida dessa região é mais baixo. (Sorj e Fontes, 2010)
Outro fator relevante é com relação as condicionalidades do Programa que impondo as condições
na área de saúde e educação reforça as obrigações femininas com o espaço privado, o cuidado com
a casa e com a família não contribuindo com a divisão do trabalho.
Esses argumentos nos faz sustentar que embora o Programa seja eficiente no que tange a eliminação
da pobreza e as mulheres tem protagonizado isso de forma efetiva, ele não favorece a integração das
mulheres no mercado de trabalho e na melhoria de qualidade laborativa, de maneira relevante, já que
ele acaba por reforçar a maior responsabilidade feminina com as atividades domésticas.
No entanto, esse empoderamento feminino domiciliar é incrementado pelo seu poder de compra e
consumo, tornando as mulheres mais independentes, destacando uma mudança na percepção das
beneficiarias sobre si mesma como cidadãs. Destaca-se ainda sua responsabilidade para cumprir a
obrigação da retirada de documentos de identidade para se cadastrarem no programa.
Autonomia Feminina
Embora o Programa Bolsa Família não seja voltado deliberadamente para a integração das mulheres
no mercado de trabalho, é possível analisar o seu comprometimento com a melhoria da qualidade de
vida das mulheres no sentido de encorajar essa integração, conforme avalia Bila Sorj e Adriana
Fontes (2010). Segundo as autoras, há uma correlação positiva entre participação no mercado de
trabalho e autonomia uma vez que o aumento, sob condições favoráveis, do nível de emprego das
mulheres, permite diminuir a dependência econômica destas em face dos homens. No mesmo sentido,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 109
afirma Socorro (2013) que sendo as mulheres as principais representantes legais para recebimento
do benefício pode tanto fortalecer a autonomia financeira das mesmas como reforçar o lugar tradicional
das mulheres na divisão sexual do trabalho doméstico.
Entretanto as mulheres beneficiárias passaram a ter mais poder de decisão no domicílio e que elas
têm cada vez mais força para tomar decisões sobre a vida afetiva e reprodutiva. Ou seja, o programa
mesmo que contribua pouco para a entrada das mulheres no mercado de trabalho ele contribui
significativamente com para a autonomia individual feminina. Além de um rompimento com o ciclo
da pobreza, já que o beneficio interfere de forma positiva na taxa evasão escolar. Na pesquisa
realizada por Socorro (2010), no Morro da Vitória em Fortaleza, nas respostas dadas pelas mulheres
entrevistadas era visível a satisfação em ter uma renda mínima, um ‘dinheiro certo’ como elas
mesmas diziam, com que pudessem contar todos os meses.
Ou seja, pode-se notar por meio de pesquisas que foram realizadas com esse objetivo, de ouvir as
mulheres beneficiárias que o programa cumpre uma função subjetiva. A partir da renda mensal é
possível que haja uma mínima organização das famílias que delas dependem, e mesmo o valor sendo
pouco e não permitindo que elas saiam efetivamente da condição de pobreza, permitem o direito de
escolha, como afirma Walquíria Leão Rego (2013) permitem que a existência ou mera possibilidade
de as mulheres entrevistadas exercerem alguma soberania sobre a própria vida e tomarem decisões
que lhe dizem respeito.
Conclusão
Sendo assim, é possível concluir que embora se reconheça importância do programa Bolsa Família
com relação a erradicação da pobreza, recompensar as famílias tendo como contrapartida a
especialização funcional das mulheres na dedicação ao cuidado dos filhos, reforça a divisão do
sexual do trabalho (Sorj e Fontes, 2010), o que acaba por enfraquecer o vinculo da mulher com o
mercado de trabalho.
Entretanto, se pode perceber que além do reconhecimento de cidadania, o benefício estando em
nome da mulher, pode-se observar o desencadeamento de um processo de libertação feminina da
situação de dependência. Segundo Rego e Pinzani (2013) o Programa Bolsa Família está além da
sustentação das necessidades imediatas, ele fornece base material para que os indivíduos desenvolvam
uma maior autonomia.
Desta forma, entendemos que o principal desafio das Políticas Públicas brasileiras de combate a
pobreza, será a conciliação com outras ações que visem a promoção da autonomia feminina,
juntamente com a melhoria da qualidade de vida das mulheres. Deverá se criar incentivos para a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 110
participação delas no mercado de trabalho, juntamente com distribuição das responsabilidades
domésticas entre homens e mulheres.
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Sociais – Vol. 15. Nº 44, 2000.
NOTAS
1
Ainda não foi possível definir em qual favela, especificamente, serão feitas as entrevistas devido a dificuldade de
acesso ao campo por diversos motivos. Contatos estão sendo realizado mas não foi possível determinado dentro do
prazo do envio do trabalho.
2
Em geral as mulheres assumem a posição de responsáveis pela família em situações menos favoráveis ou seja, de
um modo geral, quando os homens estão impossibilitados de assumir, seja por abandono, doença, alcoolismo ou
desemprego. As mulheres em geral assumem a família em condição de mais precariedade social e econômica.
3
“O cartão do Bolsa Família é utilizado unicamente para realizar o saque do benefício do programa. Nele está
contido o número do NIS, bem como o nome do Responsável Familiar” (http://www.mds.gov.br). Segundo dados do
Ministério do Desenvolvimento agrário (MDS) 93% dos cadastros têm mulheres como titulares para o recebimento.
4
5
A autora se refere ao Brasil e a Europa.
Medida do Governo Federal que se divide em três objetividades: 1-localizar as famílias extremamente pobres e
incluí-las no CadÚnico. 2-buscar garantir o acesso a benefícios paralelos ao PBF de acordo com os critérios de
elegibilidade. 3- buscar garantir acesso de serviços básicos de saúde, educação, saneamento, assistência social,
trabalho entre outros. Mais informações em <http:// www.brasilsemmiseria.gov.br/busca-ativa.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 112
GT3 – SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO E
O PROFISSIONAL EM CIÊNCIAS SOCIAIS NO ENSINO DE SOCIOLOGIA
NA EDUCAÇÃO BÁSICA
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 113
EXPOSIÇÃO, EXPERIÊNCIAS E TRAJETÓRIAS: olhares sobre as estratégias de ensino
na Sociologia com a Educação de Jovens e Adultos
João Pedro Barros de Lima,
licenciando do curso de Ciências Sociais da UFF.
[email protected]
Resumo
Pretende-se analisar o processo de inserção e participação de um bolsista do PIBID de Sociologia no ambiente
escolar. Procuraremos dar destaque ao exame do questionamento, do exercício do diálogo, da construção dos
saberes no ensino de Sociologia e o aprendizado recíproco que se adquire pela relação com alunos da Educação
de Jovens e Adultos (EJA), imbuídos de uma gama de experiências articuladas no mundo do trabalho, com
processos de exclusão social e de intermitência com a educação pública. O foco da reflexão se dará, nesse
sentido, nas relações de ensino e aprendizagem, isto é, nas estratégias que o professor de Sociologia se
apropria para construir junto aos alunos a disciplina Sociologia, através de seus conteúdos, atividades e
formas de avaliação. As tendências pedagógicas dão eco a este olhar e possibilitarão, junto à questão da
transposição didática e aos relatos de experiência, uma discussão interessante sobre tal perspectiva. Com
diferentes subsídios sociológicos e didáticos, buscou-se aprofundar algumas indagações sobre a importância
da trajetória de vida dos alunos da EJA e suas representações sociais dentro da sala de aula. De que maneira
o professor de Sociologia atua em sala de aula? Quais são as estratégias que cativam mais o interesse dos
alunos pelos temas da disciplina? E quais são aquelas que não motivam estes mesmos alunos? De que
maneira essas estratégias interferem na construção da imaginação sociológica? O professor procura refletir
sobre estas estratégias adotadas? O licenciando, enquanto neófito no espaço da sala de aula, pode de alguma
forma contribuir na compreensão destas estratégias junto ao professor?
Palavras-chave: Sociologia – ensino – aprendizagem – EJA – estágio
Introdução
O presente trabalho visa retratar algumas observações durante o desenvolvimento do Programa
Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID), realizado com turmas da Educação de
Jovens e Adultos (EJA) no Colégio Estadual Joaquim Távora (CEJOTA), localizado no município
de Niterói.
Apesar do termo “Educação de Jovens e Adultos” ser relativamente recente, as iniciativas para a
educação desta parcela da população são longínquas no Brasil (Jardim, 2012). Durante a década de
1940, o desenvolvimento industrial e urbano no país impulsionava medidas na área educacional,
principalmente com a finalidade de qualificar minimamente a mão de obra destinada a este mercado
(Ventura, 2011). Já no período da ditadura militar, as ações voltadas para a alfabetização de jovens
e adultos foram aparelhadas no sentido político ideológico da classe política que conduzia o poder
naquele momento. Os projetos, dessa forma, foram integrados ao Movimento Brasileiro de
Alfabetização (MOBRAL), que possuía um cunho assistencialista em sua essência, e não fomentavam
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 114
visões críticas e reflexivas sobre o modelo de desenvolvimento nacionalista em voga na ocasião
(Jardim, 2012). Com o fim da ditadura militar, a elaboração da Constituição de 1988 e a elaboração
da nova Lei de Diretrizes e Bases (LDB 9394/96) houve uma ampliação do número de vagas e da
qualidade de ensino da EJA. Estas e outras questões agora são discutidas em fóruns que tratam das
diretrizes curriculares para a modalidade de ensino (Soares apud Jardim, 2012).
O PIBID, projeto de fomento à inserção de alunos dos diversos cursos de licenciatura no ambiente
escolar, propõe atividades de participação coletiva, situações de regência e momentos de observação
mais apurada sobre a dinâmica relação entre alunos e professores. Em sua ramificação na disciplina
de Sociologia da Universidade Federal Fluminense, teve os cursos de Prática de Ensino como grandes
aliados na tentativa de compreender a relação entre teoria e prática de maneira mais propositiva,
condição esta que tem pautado as ações educativas no campo do Ensino de Sociologia. Quando
articulados, os momentos de estágio nas escolas – seja através da carga horária das disciplinas, seja
por meio da carga horária do Projeto – se entrelaçam e se enriquecem mutuamente, na medida em
que dão subsídios e aumentam as possibilidades de compreensão do ambiente escolar por parte dos
bolsistas e licenciandos que dele fazem parte.
Essa perspectiva de análise indica uma aproximação diferenciada do bolsista do PIBID com a realidade
da escola, seus problemas e desafios. Decifrá-los, de certo modo, resulta da compreensão dos dois
espaços de discussão que proporcionam uma reflexão sobre a mesma escola, segundo princípios e
finalidades que se complementam. A pluralidade de objetos, conteúdos e metodologias que
encontramos nas disciplinas para a formação de professores, onde reaprendemos a pensar
sociologicamente com elementos propriamente didáticos e pedagógicos que servem como base para
construirmos a nossa disciplina, indica também um campo ambíguo de motivações e percepções da
realidade escolar. O PIBID, no bojo desta lógica, também compõe este quadro de diversas percepções.
Sobre este processo de formação do professor, Handfas & Teixeira (2007) fazem uma abordagem
antropológica que trata da Prática de Ensino como rito de passagem, lembrando que o licenciando
vive uma fase de trânsito que é ambígua e, por isso, multifacetada1. Articulando essa abordagem
teórica com o contexto em que são introduzidos os graduandos da Prática de Ensino ou do PIBID,
veremos que o contexto de inserção na escola indica uma condição liminar aos alunos, na medida em
que estes iniciam um afastamento da sua vivência acadêmica e adquirem novas percepções dentro
da realidade escolar, incorporando novos significados e colocando em conflito sua bagagem teórica
conquistada na universidade com esse novo universo de relações sociais e profissionais. Esse
distanciamento, inclusive, corresponde à uma importante estratégia na contrução da identidade
docente.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 115
A partir dessa ideia, iremos procurar dar conta de relatar como o estágio pode ser o lócus de
análise da atuação do professor da disciplina de Sociologia em sala de aula. As estratégias adotadas
pela docente no trabalho com a Educação de Jovens e Adultos2 servem como elementos que
contribuem no processo de formação do professor, pois evidenciam na prática, como o docente se
comporta no dia a dia com os alunos, ao mesmo tempo em que se apropria das representações dos
mesmos na construção do saber da disciplina.
Além disso, ajudam o licenciando a pensar na sua futura atuação enquanto professor que precisará
dar conta das demandas que o trabalho constante com os alunos requer, demanda esta que deve ser
pautada com a construção de uma didática fundamental, que articula as dimensões técnica, humana
e política no processo de ensino e aprendizagem (Candau, 2008).
É importante que o graduando reflita sobre a atuação do professor no que diz respeito à sua prática
educativa na relação dele com os alunos. Nesse sentido, daremos ênfase para uma análise preliminar
das observações do estagiário. Os relatos, somados às observações sobre as ações, reações e o
comportamento dos alunos podem ser pensados de acordo com uma perspectiva de pesquisaparticipante (Brandão, 1984), onde o graduando interage com os seus pesquisados “a partir de um
trabalho social e político de classe que, constituindo a razão da prática, constitui igualmente a
razão da pesquisa”. (Brandão, 1984, p. 13).
Teremos, a seguir, duas descrições de formas de atuação do professor de Sociologia em sala de
aula. Uma delas discorre sobre a relação entre professor e alunos durante uma aula expositiva,
enquanto a outra se debruça sobre uma experiência vivenciada em aulas onde ocorrem discussões
coletivas dirigidas por textos. A visão destes modelos é referenciada pelo olhar do graduando,
imerso no ambiente da sala de aula, dentro também de uma pesquisa etnográfica para a construção
de um saber didático (André, 1995).
As relações de ensino e aprendizagem nas aulas expositivas segundo as observações do
estagiário
O horário de início do turno da noite está marcado para começar às 18h30min; contudo, ao passarmos
pelas salas de aula neste horário veremos uma quantidade de alunos que mal completa a contagem
dos dedos dos pés e das mãos. Como a dirigente de turno gosta de argumentar, os alunos chegam
atrasados “porque trabalham, não é meu filho? Ficam presos no engarrafamento ou então saem
tarde do trabalho”. Pois é, a realidade da escola é uma e a realidade dos alunos, pelo visto, é outra.
A partir das 18h50min a professora de Sociologia toma seu lugar na sala de aula. A contagem de
alunos não chega à casa das dezenas. No caminho entre a sala dos professores e o seu destino,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 116
lances de escadas e corredores ainda quase vazios, ocupados por um ou outro aluno que conseguiu
chegar cedo à escola, mas que nem por isso se vê motivado para ficar dentro da sala de aula. Para
eles, por enquanto, é melhor ficarem no corredor, conversando e ouvindo música, geralmente um
funk recente que toca no alto falante dos celulares. Celulares estes que geralmente têm acesso à
internet e às redes sociais, como forma dos alunos se manterem conectados àquilo que acontece fora
da escola.
Quando chega à sala, a professora dificilmente se depara com uma turma composta por mais de dez
alunos. Os poucos que estão presentes se dividem em grupos: enquanto alguns se agrupam em
duplas ou trios, outros ficam mais destacados sozinhos. Depois de cumprimentá-los, a professora se
senta em sua cadeira, retira da bolsa o seu material de trabalho e começa a folhear seus livros e
cadernos, a fim de achar o conteúdo a ser apresentado na aula. Faz isso sem pressa e a intenção
indica ser esta mesmo, pois parece ainda esperar a chegada de mais alguns alunos para não ter que
repetir mais de uma vez tudo aquilo que pretende ensinar.
Enquanto revisava suas anotações, foi abordada por uma aluna de outra turma. Esta pediu para a
professora reunir a sua turma – a outra turma de primeira série da Nova EJA no turno – com a que
ela estava dando aula, pois o professor de Matemática não pôde comparecer naquele dia. Após
confirmar com a dirigente de turno este pequeno problema, a professora de Sociologia não viu
empecilhos em reunir as turmas. Na verdade, esta ação até vai ao encontro da vontade da docente,
que era a de ter mais alunos em sala para começar de fato sua aula.
Quando as turmas se reuniram o número de alunos em sala subiu um pouco. Número suficiente para
que a professora se motivasse a começar de fato a aula. O tema faz parte da unidade que inicia o
segundo bimestre e tem como nome “Trabalho, produção e Sociologia”.
Esta aula deveria ser realizada com o auxílio do livro didático elaborado especificamente para Nova
EJA, que oferece uma apostila corresponde a cada bimestre. Entretanto, tendo em vista que a direção
ainda não havia repassado o material para os alunos, preferiu-se usar o recurso da aula expositiva
para apresentar os conteúdos da referida unidade.
As anotações no quadro foram simples e podem ser observadas a seguir:
. Relações de trabalho
. Revolução Industrial => lucro, independência e individualismo } LIBERDADE
·
O que o surgimento da Sociologia tem a ver com isso?
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 117
Após colocar estas informações no quadro, a professora explicou durante cerca de 10 minutos os
desdobramentos da ascensão do capitalismo e a sua consolidação com a Revolução Industrial, que
proporcionou um grande desenvolvimento tecnológico e uma drástica transformação nas relações
de trabalho. Enquanto explanava oralmente estas questões, era possível perceber uma mescla de
termos propriamente sociológicos com alguns poucos termos mais sensíveis aos ouvidos dos alunos.
Quando falava coisas do tipo “o capitalismo precarizou o mundo do trabalho”, via-se no rosto dos
alunos certa expressão de dúvida ou de falta de entendimento, ao passo que quando expressava
frases como “a revolução industrial mudou bastante as relações dos homens com o trabalho: trouxe
a máquina para as fábricas e indústrias, empurrou muita gente que vivia no campo para as cidades e
colocou crianças fazendo o trabalho de adultos”, trazia a sensação de compreensão por parte dos
alunos, que faziam anotações sobre o que acabara de ser pronunciado.
Após uma breve apresentação oral dos conteúdos, a professora pediu para que os alunos terminassem
de copiar as anotações no quadro, principalmente os alunos que chegaram atrasados durante a
exposição. Um destes alunos, inclusive, chegou a pedir durante esta pausa para que a professora
dissesse sua “média” (sua nota final no bimestre anterior); tal pedido foi negado de forma bem
humorada (uma característica particular da professora) que argumentou não poder dizer a nota para
aluno que chega atrasado e que muito menos copiou a matéria resumida no quadro.
Enquanto parte dos atrasados terminava de copiar a matéria, a professora começou a conversar com
os demais alunos sobre um passeio que havia feito à Ilha de Paquetá. Contou sobre os locais que
revisitou e alguns outros que conheceu pela primeira vez e perguntou se algum aluno já tinha realizado
tal passeio. Comentou também o quanto é prazeroso passear de bicicleta pela ilha, por ser um ótimo
exercício físico. Alguns alunos se animaram com a história contada e propuseram um passeio até lá,
mas tal ideia não foi vista com bons olhos pela professora. Ela, contudo, disse que uma visitação a
um museu ou a um teatro, no município do Rio ou mesmo em Niterói era mais provável de ser
realizada, principalmente se fosse aos sábados. Parte dos alunos reclamou, já que trabalham no
sábado e dificilmente poderiam ir ao hipotético passeio. No fim das contas toda essa conversa serviu
para, além de mostrar alguns passeios possíveis de se realizarem, entreter os alunos e passar um
pouco do tempo da aula. Também foi uma forma de chamar a atenção dos alunos para dar continuidade
à segunda etapa da aula.
A segunda parte da aula foi realizada com a exposição sobre o surgimento da Sociologia. A Revolução
Industrial e as transformações nas relações de trabalho trouxeram a necessidade de uma reflexão
crítica sobre seus desdobramentos. Nessa conjuntura é que surgem alguns autores que são
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 118
compreendidos como os fundadores da Sociologia e que procuram dar conta de explicar de maneira
sistemática e científica toda essa gama de mudanças na sociedade.
No meio desta explicação, fica clara a reclamação de alguns alunos sobre a aula. Conversam
paralelamente, usam os celulares, falam palavrões e bocejam de maneira que a professora e os
demais alunos possam ouvir. A professora pede encarecidamente para que as conversas se encerrem
e que os alunos prestem a atenção no que está sendo dito. Ainda assim, boa parte dos alunos faz de
tudo para não assistir à aula: perguntam sobre a média da disciplina e sobre a data da próxima prova;
reclamam dos alunos que foram embora no meio da aula e enaltecem os alunos que ficam até o fim;
ficam perguntando a hora para os colegas a fim de saber se a aula está acabando. Essa dificuldade
em aceitar a autoridade do professor nos remete a uma lógica de resistência dos alunos, que não
estão “naturalmente dispostos a fazer o papel de aluno” (Dubet, 1997, p.223).
Uma aluna se indispõe com seus colegas e começa a reclamar, dizendo que eles estão atrapalhando
e que se continuarem falando não irão deixar a professora terminar a aula. Após os alunos chiarem
e fazerem uma pequena bagunça antes de se calarem, a mesma aluna diz para a professora:
“Na próxima aula a senhora vai voltar a falar fácil? Não to entendendo nada do
que a senhora está falando! Além da bagunça, eu to com dificuldades pra entender
essa porção de palavras difícil que a senhora diz aí. A aula tá chata! Eu prefiro
quando tem trabalho em grupo, porque aí a gente pode conversar e entender melhor
a matéria.” (Aluna da turma 1001, durante aula da Nova EJA).
Um tanto quanto surpresa com a reação da aluna, a professora menciona que este tipo de aula é
necessária para que os alunos tenham uma compreensão mais profunda do conteúdo da disciplina.
Logo depois, termina de comentar sobre a formação da Sociologia enquanto Ciência e menciona
nomes de autores como Augusto Comte e Émile Durkheim como aqueles que ajudaram a fundar a
Sociologia, se debruçando sobre os problemas e sobre as necessidades oriundas das transformações
que ocorreram com o desenrolar da Revolução Industrial.
Por fim, a fim de dinamizar mais a aula, a professora pediu para que dois alunos descrevessem os
seus respectivos trabalhos, para que pudessem relatar um pouco das relações de trabalho que
vivenciavam.
O primeiro aluno disse trabalhar com serviços gerais, em um estaleiro naval. Durante a sua fala,
ficava muito clara a preocupação com o tempo. Citou o horário em que acorda, o horário que sai de
casa, que chega ao trabalho, em que toma café e almoça e o horário de saída do expediente. Além da
preocupação com o horário, ele se mostrou um tanto quanto insatisfeito com o seu trabalho, pois
segundo ele precisa executar funções que vão além das dele, tendo as vezes que trabalhar de maneira
sobrecarregada por isso.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 119
A segunda descrição ficou por conta de uma aluna. Ela disse ser governanta de uma casa de idosos.
Fez questão de citar sua importância na casa, pois é ela quem basicamente administra o lar. É a
primeira a acordar na casa para colocar o café da manhã à mesa, faz e atende ligações para os
moradores, paga as contas da casa e faz pequenas compras imediatas, além de cuidar da agenda de
compromisso dos moradores. Fez questão de reclamar das várias funções em que se prende ao
mesmo tempo em que disse sobre a dificuldade de encontrar empregos com a escolaridade que
possui. Por fim disse que, apesar dos pesares, possui um emprego confortável que proporciona, em
partes, uma sensação de bem estar.
Encerrado este segundo relato, a professora fez a chamada e chamou a atenção para que os alunos
não faltassem à próxima aula, pois haveria um trabalho em grupo que valeria pontos.
A contagem de alunos no final da aula indicou trinta alunos presentes, sem contarmos os que saíram
com o decorrer da aula.
Ao analisarmos mais atentamente a relação de ensino e aprendizagem veremos que aula expositiva
não deixa de ser uma explanação oral sobre um determinado conteúdo. Dependendo da forma como
se faz essa explanação, poderemos ter ideia da apreensão ou não do que foi dito. Com a disciplina de
Sociologia, que é composta por uma série de conceitos que procuram sistematizar e dar conta das
relações sociais com as quais no deparamos, precisamos “mastigar”, “peneirar” e procurar caminhos
menos turbulentos e distantes dos alunos quando formos planejar uma aula expositiva, pois o discurso
que o sociólogo propaga – principalmente o sociólogo que faz pesquisa – apesar de ser geralmente
feito sobre uma realidade ou um contexto de desigualdade, exclusão e violência social, raramente é
feito no sentido de contemplar o prejudicado na desigualdade, o excluído e o violentado socialmente.
Os alunos da EJA, em grande parte, são estes desiguais, excluídos e violentados. Embora façam
parte da escola pública hoje, em algum momento de suas trajetórias escolares foram “convidados” a
se retirar do ensino regular. O retorno à instituição escolar, no turno da noite e em uma modalidade
de ensino que se diferencia substancialmente do ensino regular, corresponde a um processo de
“democratização” do ensino que distingue os “bem nascidos” dos desprovidos (Bourdieu, 1992).
Compreendendo que o discurso realizado pela professora variou, neste caso, mais ao discurso do
pesquisador do que o de professor, vemos que esta lógica pouco atribui sentido e significado para os
alunos durante as aulas em que é posta em prática. É preciso que afastemos os conceitos sociológicos
da sua matriz científica de origem para trazermos o ensino de Sociologia para uma problemática
tangível com a realidade dos alunos, sem necessariamente perdemos o teor crítico que é próprio das
Ciências Sociais.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 120
A transposição didática (CHEVALLARD, 1997b apud LEITE, 2007), nesse sentido, aparece como
uma questão a ser discutida no âmbito do ensino de nossa disciplina. Para Chevallard, a transposição
vem para corrigir a secundarização dos saberes escolares, sendo uma mediação entre o conhecimento,
os objetos de estudo e as condições de irradiação desse conhecimento. É ela quem vai configurar e
conformar, a partir da noosfera, os saberes através de recortes específicos, possibilitando uma
transformação adaptativa do conhecimento. De certa forma, procura ser a síntese entre o saber
sábio – o saber de origem científica – e o saber ensinado – as várias formas de apreensão, publicidade
e construção do saber -, dando subsídios substanciais ao processo de construção do trabalho docente3.
José Carlos Libâneo (1996), ao discutir as tendências pedagógicas na prática educativa, trata da
Tendência liberal tradicional. Presente ainda hoje nos sistemas de ensino, este tipo de pedagogia
preza pela “autoridade do professor que exige atitude receptiva dos alunos e impede qualquer
comunicação entre eles no decorrer da aula” (LIBÂNEO, 1996, p. 24). Outra tendência pedagógica,
a “liberal tecnicista” 4, pensa a relação entre professor-aluno de maneira objetiva, onde o professor
administra as condições de transmissão da matéria e o aluno fixa as informações obtidas, não
participando sequer da organização do programa educacional. Paulo Freire pensando uma prática
educativa libertadora, afirma que “ensinar não é transferir conhecimento, mas criar as possibilidades
para sua própria produção ou a sua construção” (FREIRE, 1999, p. 52). Também considera que
esse tipo de educação se aproxima muito da ideia de educação “bancária”, onde a educação “é o ato
de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos [...] refletindo a sociedade opressora,
sendo dimensão da cultura do silêncio” 5·. Nesse caso, o educador escolhe o conteúdo programático
e os alunos se acomodam com relação a ele. Levando em consideração que estas e outras tendências
pedagógicas se misturam na prática educativa cotidiana, sendo utilizadas de acordo com as
necessidades e os objetivos traçados principalmente pelo professor, é possível aproximar o exemplo
da prática da professora de Sociologia a alguns de seus aspectos.
Reflexões sobre discussões coletivas dirigidas por textos
Outra estratégia adotada em sala diz respeito à leitura de textos coletivamente, seguidos de uma
discussão aberta em que podem participar professor, alunos e estagiários. Para melhor
compreendermos a relação professor-aluno neste caso, farei a síntese de atividades observadas também
com turmas de primeiro ano, na tentativa de exemplificar o modelo de aula pensado pela professora,
estabelecendo algumas considerações sobre as consequências da escolha desse tipo de prática.
O tema da aula era “Cultura: diferentes maneiras de construir, viver e perceber a realidade social”,
primeira seção do livro didático disponível para os alunos da Nova EJA6. Sua concepção girava em
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 121
torno da leitura de um pequeno trecho da carta em que os índios americanos respondem a Benjamin
Franklin sobre o envio de jovens índios para as escolas dos brancos. Além da carta, algumas definições
de cultura também se encontravam nesta unidade. A intenção da professora era a de que parte dos
alunos pudesse ler em voz alta trechos da carta e dos conceitos, a fim de exercitar a leitura e ajudar
na apreensão dos conceitos para aqueles alunos que pudessem possuir maior grau de dificuldade.
Durante as leituras dos parágrafos, era possível perceber uma considerável dificuldade com o domínio
de certas palavras ou expressões por parte de alguns alunos, embora os textos fossem pequenos e
com uma linguagem acessível. Esse momento serviu, pois, para fazer um diagnóstico da dificuldade
que alguns alunos encontravam no trato com a leitura, o que certamente indicava também empecilhos
no que concerne à escrita, na medida em que leitura e escrita se retroalimentam. O exercício da
leitura coletiva em sala, mesmo com as dificuldades, impulsionava um contato dos alunos com a
leitura, e nesse contato tantos os estagiários, como a professora e os demais alunos davam suas
contribuições na superação das dificuldades de leitura ajudando no entendimento das palavras difíceis
de serem compreendidas.
Entre o fim da leitura da carta e o início da leitura dos conceitos foi realizada uma pausa para que os
alunos pudessem dizer suas impressões sobre o que acabara de ser lido. Alguns fizeram piada, dando
a entender que aquela carta não tinha muita importância para se entender a cultura do Brasil; uma
aluna disse, em contra partida, que os índios estavam errados por não quererem que seus jovens
fossem estudar nas escolas dos brancos. Para ela, que inclusive já havia morado há algum tempo no
Estado do Amazonas e pôde ouvir notícias e especulações mais de perto sobre o modo de vida dos
índios brasileiros, eles deveriam ter aceitado o convite de Benjamin Franklin, pois dessa forma os
índios estariam aprendendo os modos “corretos” de vida, isto é, a forma como os brancos vivem.
Em seguida, foi replicada por um aluno que disse que a escola dos brancos não é necessariamente a
melhor de todas. Para ele, como a própria carta dizia, os índios deveriam aprender aquilo que para
eles é o mais importante: a caça, a corrida e a construção de moradias. Ao irem para a escola do
branco, eles estariam deixando de cuidar do seu próprio provo, segundo o aluno.
Essa discussão serviu como gatilho para a sequência da aula. Aproveitando a deixa, a professora
pediu para que os alunos lessem o conceito de cultura que se encontrava algumas páginas depois de
onde estava a carta dos índios. Havia três sínteses sobre o conceito de cultura, que estavam resumidos
da seguinte maneira:
“Cultura não é simplesmente a arte ou evento, [mas] criação individual e coletiva
das obras de arte, do pensamento, dos valores, dos comportamentos e do
imaginário.” (CHAUÍ, 1992, p.41).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 122
“Conjunto de traços característicos do modo de vida de uma sociedade, de
uma comunidade ou de um grupo, aí compreendidos os aspectos que se podem
considerar como os mais cotidianos, os mais triviais ou os mais inconfessáveis”
(FORQUIN, 1993, p. 11).
“Um conjunto de experiências humanas construídas pelo contato social e
acumuladas pelos povos, ao longo do tempo. Assim, ela corresponde, na prática,
à expressiva variedade de processos e modos de convivência pelos quais os
povos constroem suas identidades.” (definição dos próprios autores do livro).
Tais definições ajudaram a professora a explicar porque os índios dos Estados Unidos recusaram o
convite feito pelos brancos. Segundo ela, os índios não aceitaram a oferta dos brancos principalmente
pelo fato de que, ao deixarem seus jovens irem para as escolas dos brancos, fariam com que perdessem
os costumes e o aprendizado já adquirido com tanto esforço na aldeia. Dessa forma, os índios
estavam tentando proteger todo o seu modo de viver, para que seus jovens não se tornassem inúteis
na aldeia. A professora, desse modo, procurou fazer uma mediação entre as três opiniões expostas,
mostrando que a carta tem sua pertinência ainda nos dias de hoje, principalmente se formos discutir
a relação do estado brasileiro com os povos indígenas.
A explicação sobre o conceito de cultura e sua aproximação com o exemplo trazido pela carta
trouxe uma sensação de compreensão por parte dos alunos. Enquanto a professora comentava o que
acabara de ser lido, os alunos atentamente prestavam a atenção e alguns procuravam até fazer
anotações sobre o que estava sendo explicado.
Após essa discussão coletiva, onde os alunos puderam expressar sua opinião sobre como
compreendiam o modo de vida dos índios e também conhecer um pouco mais sobre o conceito de
cultura, a professora propôs a seguinte atividade, também incluída no livro didático:
Você já conheceu uma pessoa ou um grupo de pessoas que vivem de maneira bastante
diferente da sua? Descreva quais são as diferenças.
Com base em sua vivência, por que dizemos que cada grupo humano possui uma forma
própria de viver?7
A turma deveria se dividir em grupos para poder discutir sobre essas diferenças, mas a descrição
deveria ser individual. A ideia desse formato de atividade era de que os alunos pudessem conversar
entre si sobre práticas e costumes que consideravam realmente diferentes ou “fora do normal” e que
isso pudesse ajudar na elaboração da descrição individual a ser realizada.
Nesta tarefa, os estagiários presentes puderam se aproximar dos grupos para ajudar na troca de
ideias. Geralmente, eles procuravam trazer o conteúdo até então apresentado na aula como base
para a descrição dos alunos. Dessa forma, ajudavam os alunos indicando que eles deveriam descrever
sobre os costumes, as experiências e as práticas que eles achavam mais incomuns.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 123
Dentre as descrições apresentadas, chamou-nos a atenção a de uma aluna. Segundo ela, um exemplo
de pessoa que vivia completamente diferente dela era sua própria vizinha. A moradora possuía
vários filhos pequenos e nem por isso trabalhava. Preferia viver sustentada pelo Bolsa Família,
programa de assistência social e de distribuição de renda do Governo Federal. Gastava o pouco
dinheiro que recebia indo pra festa e bares, enquanto os filhos passavam por sérias necessidades.
Para a aluna, essa forma de viver era completamente o oposto da forma como ela viveu e criou os
filhos, sempre trabalhando para ter o que dar de comer às suas crianças, que hoje por essa razão
possuem trabalho e uma vida mais ou menos encaminhada.
Este exemplo bem próximo da realidade da aluna explicita como o conceito de cultura pode ter
níveis variados de compreensão, seja no âmbito dos povos, seja em uma perspectiva de compreensão
de costumes daqueles que estão ao nosso lado. Além de ser surpreendente, o exemplo da aluna
mostrou as diferenças existentes entre indivíduos tão próximos, capazes de se relacionar com as
pessoas e com o mundo de maneiras tão distintas.
O material didático, nesse sentido, induziu uma discussão fundamentada nas representações e nas
experiências próprias dos alunos, que respaldavam seus argumentos com exemplos vividos durante
sua trajetória social. O papel da professora durante este momento foi de interlocução, apontando os
pontos dos relatos que se aproximavam e que se afastavam da realidade dos alunos, sempre
relacionados com o conteúdo do livro. Com isso, procurava desnaturalizar as percepções dos alunos,
dando um tom de estranhamento ao dizeres dos mesmos (Brasil, 2004). O intuito com isso era
mostrar a possibilidade de existirem distintas formas de compreender o mundo em relações próximas,
assim como de haver maneiras próximas de interagir socialmente em relações interpessoais
inimagináveis. Perceber os elementos tanto em comum quanto distintivos, naquele momento em
especial, demonstrava o reconhecimento de que opiniões diferentes podem também estar relacionadas
à existência de formas de ser e de estar no mundo também plurais.
Novamente Libâneo (1996), quando se refere à tendência progressista “crítico-social dos conteúdos”,
acredita que “a condição para que a escola sirva aos interesses populares é garantir a todos um bom
ensino, isto é, a apropriação dos conteúdos escolares básicos que tenham ressonância da vida dos
alunos” (LIBÂNERO, 1996, p. 39). A partir de conteúdos universais, o professor tem o papel de
introduzir novas interpretações sobre estes conhecimentos, possibilitando uma reavaliação crítica
dos mesmos. Dessa forma, o docente liga os conteúdos à realidade dos alunos ao mesmo tempo em
que proporciona a eles uma análise crítica, que vai além do conhecimento inicial. Ao pensar essa
tendência pedagógica voltada para a relação de ensino e aprendizagem com alunos novos, crianças
e adolescentes do ensino regular, Libâneo afirma que a relação professor-aluno é desigual, na medida
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 124
em que o adulto possui mais experiências de vida do que os alunos. No caso da EJA essa relação não
se constitui neste sentido, tendo em vista que os jovens-adultos têm uma trajetória de vida significativa.
O papel do professor, contudo não perde seu valor nesta circunstância, pois ele orienta as discussões
e abre novas perspectivas de conhecimento, confronto-as8. A atuação da professora de Sociologia
durante esta estratégia de ensino, assim, pode ser associada em parte a esta concepção de prática
pedagógica.
Retomando os exemplos da atividade realizada pela professora, vemos que as intervenções feitas
pelos alunos indicam uma perspectiva maior de motivação e de atuação dos alunos nas aulas quando
estas se baseiam no diálogo, na participação coletiva e na apresentação das suas representações
sociais, quer dizer, suas respectivas formas de enxergar o universo social em que estão inseridos
(Bittencourt, 2004). O direito a voz e a impressão de construção coletiva da aula, onde as falas dos
alunos e suas experiências podem ser comparadas no mesmo grau da fala do professor, influenciam
no andamento da aula de maneira positiva e mostram caminhos possíveis de serem trilhados para a
consolidação do ensino de Sociologia na Educação de Jovens e Adultos.
Conclusão
O acompanhamento da relação entre professores e alunos serve, em certa medida, como primeira
orientação para o licenciando no que se refere ao “como fazer” uma aula funcionar; quer dizer,
contribui na apreensão de saberes que são próprios da prática docente e que, por mais que sejam
abordados nas disciplinas do curso de graduação, só são encontrados em sua materialidade nas salas
de aula da escola básica. O estágio presta o papel de demonstrar que a relação de ensino e
aprendizagem passa pela construção das dimensões técnica, política e humanas, que quando são
constantemente trabalhadas impulsionam uma transformação da realidade social (Candau, 2009).
Observar e compreender a chegada do professor à escola e à sala de aula, a forma como ele planeja
e executa seu cronograma e, principalmente, como ele estabelece vínculos e contatos com os alunos,
são caminhos e estratégias com grande potencialidade de pesquisa para o graduando prestes a passar
para o lado das trincheiras do professorado.
O auxílio e o retorno que podem ser dados ao professor supervisor do estágio com relação às essas
observações também demonstra ser de suma importância. Devido à dificuldade de lecionar e ao
mesmo tempo prestar atenção a si mesmo enquanto rege uma turma (Dubet, 1997), o professor/
supervisor pode encontrar barreiras para uma reflexão mais ampla sobre a sua atuação. O estagiário
pode trabalhar a fim de avaliar e questionar pontos e situações que lhe chamem a atenção, levando
essas considerações ao professor. De maneira dialógica e construtiva, essas ponderações tanto podem
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 125
servir para que o professor esclareça certas dúvidas ao estagiário, como também podem indicar ao
docente uma possibilidade de alteração, revisão ou mudanças das suas escolhas e estratégias com
relação aos alunos.
Por fim, ao destrincharmos as duas situações de ensino, vemos que em ambas existem quesitos que
interagem em maior grau com os alunos, da mesma forma que outros elementos repelem, desanimam
e desmotivam a participação dos jovens-adultos.
De todo modo, os desafios e objetivos das aulas são alcançados quando auxiliados por uma didática
que experimente a interação e a proximidade com os alunos, trazendo suas representações para o
cenário da sala de aula e da escola.
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conteúdos. São Paulo: Edições Loyola. 1985.
NOTAS
1
Op cit.
2
. Sobre a necessidade de não generalizar o perfil dos jovens-adultos, Arroyo (2005apud Jardim, 2012) menciona a
importância do reconhecimento dos sujeitos que desta categoria fazem parte. Para isso é preciso uma Compreensão
da trajetória social, étnica e racial do alunado, que será construída através de uma prática pedagógica voltada para
as histórias de vida e às vivências concretas dos jovens e adultos.
3
Op. cit.4 Ibid., p. 30.
5
Ibid., p. 59.
6
CABRAL, Alexandre (et al.). Ciências Humanas e suas tecnologias. Módulo 1. Ciências humanas. Rio de Janeiro:
Fundação CECIERJ, 2012
7
CABRAL, Alexandre (et al.). Ciências Humanas e suas tecnologias. Módulo 1. Ciências humanas. Rio de Janeiro:
Fundação CECIERJ, 2012
8
Ibid., p. 41.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 127
PERCEPÇÃO DISCENTE A CERCA DA HIERARQUIZAÇÃO / DESVALORIZAÇÃO
NO CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UERJ.
Antonio Nelson Chaves Araujo
Especialista em educação pelo programa de Pós-Graduação Lato Senso.
Curso de Especialização Saberes e Práticas da Educação Básica
CESPEB/Sociologia da FE/UFRJ
Sociólogo e professor de sociologia da SEEDUC-RJ.
[email protected] / [email protected].
Resumo
O trabalho objetiva possibilitar uma reflexão sobre a percepção discente acerca desvalorização do curso de
Ciências Sociais, modalidade licenciatura da UERJ em relação ao bacharelado na percepção dos estudantes
do curso em questão; refletir sobre a percepção discente a acerca da relação ensino e pesquisa no referido
curso. A pesquisa se propõe a responder algumas questões iniciais: Por que no curso de Ciências Sociais a
formação docente é secundarizada em detrimento da formação do pesquisador? E se o Departamento de
Ciências Sociais querem tanto as cadeiras das disciplinas pedagógicas1, por que na maioria das vezes essas
disciplinas são ministradas por contratados? Este trabalho faz parte da pesquisa monográfica de conclusão
do Curso de Especialização Saberes e Prática da Educação Básica – CESPEB, e foi realizado a partir de
levantamento bibliográfico e documental sobre as o curso de Ciências Sociais da UERJ, ementas e resoluções
da própria universidade que regula o curso de licenciatura em ciências sociais. O referencial teórico apoia-se
nos conceitos de habitus e campo de Bourdieu, nas discussões acerca da desvalorização das licenciaturas
desenvolvida por Tardif, Dias da Silva e Lüdke. Na tentativa de entender de que maneira a desvalorização é
percebida pelos alunos do curso em questão. Concluímos que os estudantes não reconhecem o campo acadêmico
com espaço de lutas concorrências e que o lugar da licenciatura na Universidade, no Instituto de filosofia e
Ciências Humanas é resultado de disputas travado entre os diferentes agentes sociais no interior dos dois
subcampos (pesquisa e formação de professore) que compõem acadêmico.
Palavras-Chave: Licenciatura, Sociologia, Percepção Discente, Hierarquização.
Introdução.
Atualmente, as discussões sobre a Sociologia no ensino médio têm ganhado visibilidade. Muitos
trabalhos estão focados na prática docente, nas percepções discentes sobre a sociologia no ensino
médio, no currículo ou nos livros didáticos e pouco se fala na formação do professor de Sociologia,
por isso o foco de deste trabalho é o Curso de Licenciatura em Ciências Sociais da UERJ. Entender
de que maneira estão estruturadas as relações de poder nos cursos Bacharelado e Licenciatura de
Ciências Sociais e como os estudantes do curso de licenciatura percebem essas relações.
De acordo com Lükde (2009) a formação de professor ocupa um lugar bastante reduzido e secundário
na Universidade brasileira. Nelas as atenções se voltam para as pesquisas produção do conhecimento
cientifico, cabendo a as atividades de ensino e formação de professores reduzido espaço no meio
acadêmico. Nas Ciências Sociais essa diferenciação entre bacharelado e licenciatura somada ao
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 128
problema da intermitência da sociologia na grade curricular do ensino médio pode provoca um
desinteresse, ainda maior, tanto entre professores, quanto entre estudantes dos cursos de licenciaturas
em ciências sociais.
O presente trabalho, objetiva possibilitar uma reflexão acerca da formação do professor de sociologia
é de que maneira está é atingido pelas disputas de poderes entre dois Campos (Bacharelado e
Licenciatura), na distribuição da carga horária entre Departamento de Ciências Sociais e Faculdade
de Educação, partindo da percepção dos aspirantes a professor do curso de ciências sociais. A
preocupação é abranger uma discussão dos problemas básicos sobre a formação do professor de
sociologia, partindo da percepção do corpo discente.
Inicialmente faremos uma breve reflexão dos conceitos de campo e habitus de Bourdieu. Em seguida,
a apropriação desses conceitos pelos estudiosos do campo academia, especialmente estudiosos que
se dedicam a estudar a problemática da desvalorização das licenciaturas. E finalmente analisarei dos
dados coletados em entrevistas e nas considerações finais das pesquisas documentais e de campo.
Breve apontamento dos conceitos de habitus e de campo.
O objetivo deste trabalho é fazer uma análise das discussões em torno das concepções de “campo e
habitus” desenvolvida pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu e através dos quais ele estabelece
uma reciprocidade entre indivíduo e sociedade.
A problemática central na teoria de Bourdieu (1983) repousa basicamente sobre a questão da mediação
entre indivíduo e sociedade, rompendo, assim, como as perspectivas já mencionadas. Buscando
criar uma aproximação, um elo entre os o subjetivismo de Weber (foco de interesse nos indivíduos
e suas ações) e o objetivismo de Durkheim (foco de interesse nas instituições sociais ou estruturas
sociais) e com isso romper a dicotomia presente nas ciências sociais desde sua criação, Bourdieu
encontra no habitus uma possibilidade de articulação. De acordo com Ortiz (1983, p. 14), para
estabelecer tal mediação, Bourdieu recupera a noção de habitus presente na tradição escolástica,
que “enfatiza a dimensão de um aprendizado passado”.
O conceito de habitus se refere, assim, à capacidade de uma estrutura ser incorporada pelos indivíduos
como formas de sentir, pensar e agir. Neste sentido, através do conceito de habitus Bourdieu produz
um ponto de encontro entre a ideia de agência (a capacidade de ação do indivíduo) e a estrutura, que
forneceria padrões e perspectivas, normas comuns que seriam incorporadas pelos indivíduos. O
habitus poderia ser compreendido como uma “disposição prática”, rotineira e constante, padrão de
conduta que o indivíduo adquire ao longo da vida, tão internalizados que se tornam automáticos, e
que passam frequentemente despercebidos pelos próprios agentes. Assim, o habitus seria um:
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 129
[...] sistema de disposições adquiridas pela aprendizagem implícita ou explícita
que funciona como um sistema de esquemas geradores é gerador de estratégias que
podem estar objetivamente em conformidade com os interesses objetivos dos seus
autores sem terem expressamente concebido para este fim. (BOURDIEU 1983, p.
125).
Nessa perspectiva, o habitus seria sistema de disposições duradouras adquiridas pelo indivíduo no
decorrer do processo de socialização. As disposições apresentam-se como atitudes, inclinações para
perceber, sentir, fazer e pensar, interiorizadas pelos indivíduos em razão de suas condições objetivas
de existência, e que funcionam como princípios inconscientes de ação, percepção e reflexão.
(Bonnewitz 2003) Nessa direção, o conceito de habitus poder ser compreendido como sendo uma
matriz que orienta as práticas do sujeito, guiando-o em suas ações, gostos e escolhas Nessa perspectiva,
as escolhas dos agentes são feitas tendo por base esquemas prévios de pensamento e ação – o
habitus, que é, ao mesmo tempo, matriz de leitura do mundo, pela qual percebemos e julgamos a
realidade e produtor de nossa ação, de nossa prática, de nossas escolhas (Nascimento, 2006).
Baseando-se em Silva (1998) e Martins (1990), Nascimento (2006, p. 17) assinala que “o habitus é
ainda produto da posição e da trajetória social dos indivíduos, o que nos remete para o conceito de
campo, visto como um espaço social relativamente autônomo o qual obedece a regras e a princípios
de regulação que lhe são próprios e que podem variar segundo sua natureza” e que se caracteriza
por ser um espaço de lutas e disputas por posições que se baseiam em certas formas de prestígio ou
de poder. Portanto, devemos pensar os conceitos de habitus e campo, como categorias relacionais.
Os campos sociais seriam um micro cosmo de leis relativamente autônomas, leis essas que regem a
sociedade como um todo e seriam “processadas” pelo campo específico, que formularia suas próprias
normas de conduta.
Na perspectiva bourdiesina, o campo é:
Um espaço estruturado de posições (postos) que podem ser analisados, como no
estruturalismo em geral, independentemente das características dos seus ocupantes.
Mas, ao contrário do estruturalismo de Saussure e Lévi-Strauss, as posições na
estrutura do campo são, em parte, determinadas pelos seus ocupantes e
correspondem a um estado não permanente de relações de força. (BOURDIEU,
1983, p. 113).
O campo seria um espaço no qual os sujeitos estariam inseridos nas diversas posições disputando
por poder em seu interior. Para Bonnewitz (2003), um campo pode ser pensando como um mercado,
com mercadores e consumidores de bens. Os produtores, indivíduos dotados de capital especifico
disputam, disputas essas motivadas pela acumulação da forma de capital que assegure sua dominação
no campo.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 130
Segundo Bourdieu (2004, p. 21), o campo cientifico “é um mundo social e, como tal, faz imposições,
solicitações etc., que são, no entanto, relativamente independentes das pressões do mundo social
global que o envolve”.
O campo cientifico é um espaço onde os agentes sociais competem pelo monopólio da competência
cientifica, ou seja:
É o lugar e o espaço de jogo de uma luta concorrencial. O que está em luta são os
monopólios da autoridade científica (capacidade técnica e poder social) e da
competência científica (capacidade de falar e de agir legitimamente, isto é, de
maneira autorizada e com autoridade), que é socialmente outorgada a um agente
determinado. (BOURDIEU, 2003, p. 112.)
Com essa categoria do “campo Cientifico” Bourdieu, pretende construir um instrumento que possibilite
pensar o objeto da pesquisa sociologia não como um objeto isolado, que retiraria suas características
de suas propriedades internas, mas como algo que estaria inserido num conjunto de relações, e que
só poderia ser compreendido nesta inserção. Com o conceito de campo, Bourdieu pretende que se
aborde o mundo social de forma relacional.
Compreende o campo como espaços ou parte da estrutura social onde os indivíduos interagem e
competem entre si para conquistar novos postos sociais ou manter a posição conquistada em disputas
anteriores e nessa busca de novas posições ou manutenção das posições já conquistadas.
A Problemática da desvalorização dos Cursos de Licenciatura.
Proponho aqui, uma reflexão sobre alguns dos autores que discutem o tema de uma suposta
desvalorização ou uma hierarquização entre os profissionais da educação “professores” e
pesquisadores, e os fatores que de alguma forma contribuíram para tal.
Tardif (2002, p. 34) assinala que:
Nas sociedades contemporâneas, a pesquisa científica e erudita, enquanto sistema
socialmente organizado de produção de conhecimento está inter-relacionado com o
sistema de formação e de educação em vigor. Essa inter-relação se expressa
concretamente pela existência de instituições que, como as Universidades, assumem
tradicional e conjuntamente as missões de pesquisa, de produção de conhecimento
e de formação com base nesses conhecimentos. [...] Os processos de produção dos
saberes sociais e os processos sociais de formação podem, então, ser considerados
como dois fenômenos complementares no âmbito da cultura moderna e
contemporânea.
Nessa perspectiva as duas atividades – pesquisar e ensinar – são consideradas como complementares.
Porém, como destaca o autor, na atualidade “a produção de novos conhecimentos tende a se impor
como um fim em si mesmo e imperativo social indiscutível” (TARDIF, 2002, p. 34), sendo as atividades
de formação e educação, pouco a pouco, relegadas a segundo plano.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 131
Uma das explicações encontradas pelo autor reside no fato de que no século XX, “as ciências e as
técnicas, enquanto núcleo fundamental da cultura erudita contemporânea foram transformadas em
força produtivas e integradas à economia” (TARDIF, 2002, p. 43), o que provocou uma divisão na
chamada comunidade científica em grupos e subgrupos dedicados a tarefas especializadas na produção
restrita de conhecimento.
De acordo com Tardif (2002) a hierarquização das atividades ligadas à academia (pesquisa e formação)
se dá principalmente pela chegada aos campos acadêmicos de uma visão utilitária e produtiva que
ele chama de “visão fabril dos saberes”, onde os agentes são classificados como produtivos –
pesquisadores – aqueles que apresentam um “produto” no final de seu trabalho; e os profissionais
improdutivos – professores – aqueles que apenas transmitem um saber produzido por outro.
Criam-se assim duas categorias de profissionais: de um lado os pesquisadores, chamados de
profissionais produtivos, pois ao final apresentam um produto como resultado do trabalho e os
profissionais ligados à formação de professores considerados como improdutivos, pois não produzem
um conhecimento, só o reproduzem e por isso mesmo, menos valorizado.
Analisando esse contexto de desvalorização dos profissionais da educação, Lüdke (2009, p. 98)
assinala que a formação de professores: “Não é uma atividade valorizada, não recebe incentivos
nem estímulos e, até, pode acarretar para os que a ela se dedicam, certa reputação um pouco
inconveniente, à medida que os afasta, no julgamento de boa parte dos colegas, das atividades
nobres ligadas usualmente à pesquisa”.
Em recente pesquisa, LÜDKE (2009, p. 98) constatam a decorrente hierarquização que se apresenta
na academia:
No primeiro escalão, se situam os professores cujas atividades predominantes são
de cunho cientifico e de pesquisa; no segundo, estão os que desempenham tanto
atividades de pesquisa, como atividade de ensino; no terceiro, finalmente estão
confinados aqueles professores cujas atividades se concentram no ensino e na
formação de professores. Os dados colhidos pela pesquisa permitem constatar não
apenas uma separação entre escalões, mas realmente uma superposição hierárquica,
de forma que o poder vai claramente decrescendo à medida que se troca a atividade
de pesquisa pela de ensino, ou de qualquer coisa relacionada com a educação.
A questão da hierarquização no campo acadêmico, com uma hiper valorização das atividades de
pesquisa em detrimento das atividades de formação, mais uma vez fica evidente.
Para Dias da Silva (2005, p. 386), “nossa cultura universitária historicamente delegou reduzido
prestígio à área de Educação nos embates pela hegemonia acadêmica no campo da ciência brasileira”.
Formar professores é tido como uma tarefa “pouco nobre”, já que no interior do campo universitário
as relações de poderes e de dominação são “fruto de lutas concorrenciais em momentos anteriores,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 132
hierarquizando assim, no seu interior, seus objetos legítimos, dignos de serem estudados, dignos de
interesse e de investimento intelectual”. (Dias da Silva 2008, p. 132).
Tratando da hierarquização dos campos científicos e/ou disciplinares, Bourdieu (1983, p. 128) afirma
que existe, a cada momento histórico, “uma hierarquia social... que orienta fortemente as práticas e,
particularmente, as ‘escolhas’ de ‘vocação’”. Para o autor, tal hierarquização tem origem no debate
que sempre ocupou o centro da reflexão epistemológica e que se dá em torno de dois princípios
básicos: “um que confere primazia à observação e à experimentação e outro que privilegia a teoria
e os ‘interesses’ científicos” (BOURDIEU, 1983, p. 128).
O resultado desse embate é que se estabelece uma diferenciação social, onde o bacharelado se firma
enquanto autoridade cientifica, em detrimento da licenciatura, que é desvalorizada e pouco prestigiada
no campo acadêmico.
Para Nascimento (2006, p. 137) “essa dicotomia entre produção de saberes e educação se explicita
no distanciamento entre os professores e a comunidade científica, entre o ensino e a pesquisa, bem
como na evidente precarização da profissão docente”.
De acordo com Catani apud Dias da silva (2008, p. 131) essa desvalorização/ hierarquização no
interior do campo acadêmico teria aumentado com:
[...] influências exercidas pelo tecnicismo na educação nos cursos de licenciaturas,
sobretudo durante os anos de ditadura militar, que também agravou a desvalorização
dos conhecimentos pedagógicos, rotulados como politicamente alienados no clássico
seminário sobre a formação de professores realizados há vinte anos no USP.
A partir dessa visão de que os conhecimentos pedagógicos são politicamente alienados, as chamadas
disciplinas de conteúdos ganham prestígio e reconhecimento social, enquanto conhecimento cientifico
legítimo, em oposição as disciplinas pedagógicas, consideradas nessa perspectiva “um saber de
segunda categoria, têm ficado relegadas sob o título de saberes pedagógicos, sem conteúdo cientifico
legitimo”. (DIAS da SILVA, 2008, p.132).
Percepção discente acerca aas disputas concorrenciais na formação de professores de ciências
sociais da UERJ.
Para analisar dos dados coletados apropriei-me do conceito de “campo científico” de Pierre Bourdieu.
Campo científico, nada mais é que um espaço onde os agentes sociais competem pelo monopólio da
competência científica. Procurando mostrar que o lugar da Licenciatura hoje na UERJ e no IFCH é
resultado de lutas concorrenciais entre os agentes sociais pela conquista de novos espaço ou a
manutenção de espaços conquistados anteriormente.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 133
Antes de começar analisar as falas dos entrevistados creio que é necessário fazer algumas ponderações.
O curso de licenciatura em ciências sociais da UERJ tem suas ou disciplinas ministrada pelas FE,
com aula no 12º andar; pelo IFCH, como aulas teóricas no 9º andar e pelo CAP, como aulas práticas
e estágios supervisionados no Instituto de Aplicação, no bairro do Rio Comprido.
Quando perguntado sobre o lugar destinado as aulas das disciplinas da licenciatura na UERJ. De
com uma das entrevistadas (as)
Lucrécia2: “[...] A sensação que dá é de que a licenciatura não existe aqui no 9º
andar, que a gente faz o bacharelado e que a licenciatura não existe, por que o
espaço dela de congregar é o CAP-UERJ. (Grifo nosso).”.
“[...] E a sensação que tenho é que para constar que estamos formando em
licenciatura fazemos essas disciplinas aqui tal hora, tal da manhã, tal hora de
sábado, que não existe, [...]. (Grifo nosso).”
Vanderlei “[...] A licenciatura aqui são matérias esporádicas, ou seja, uma vez por
semana, às vezes não vêm, entendeu não sei se por displicência dos professores,
[...], mas eu sei que, para toda eletiva tal das áreas do bacharel tem uma sala
certinha, tudo confirmando e na área de licenciatura não tem fica a deus nos dará
entendeu [...]”. (Grifo nosso).
A partir das falas dos entrevistados podemos perceber o quanto o curso de licenciatura é desvalorizado
no IFCH nas falas “a licenciatura não existe aqui no nono andar” e “a licenciatura aqui são matérias
esporádicas, ou seja, uma vez por semana” de Lucrécia e Wagner (respectivamente). De acordo com
o versão 4, do fluxograma do curso licenciatura apresentado pela deliberação nº 065/2010, as
disciplinas do curso de licenciatura em ciências sociais estão presente na grade curricular do segundo
semestre ao décimo período, todavia as disciplinas teórica sob responsabilidade do IFCH totalizam
quatro disciplinas de 60 (sessenta) h/a semestral e 04 (quatro) h/a semana com 2 (dois) créditos cada
uma.
Outro ponto que devemos levar em consideração quando falamos de relações entre “Saber e Poder”
na Universidade, e que em todas as disciplinas do bacharelado tem carga horária de 60 (sessenta) h/
a semestral e 4 (quatro) créditos3, enquanto a maioria das disciplinas da licenciatura tem 30 (trinta)
h/a semestral e 2 (dois) créditos ou com 30 (trinta) h/a semestral e apenas 1 (um) crédito, outras tem
60 (sessenta) h/a semestral e apenas 2 créditos, são portanto disciplinas com a mesma carga horária
e créditos diferentes.
De acordo com:
Fernando: “pois é isso a gente percebe pelo credito que agentes faz uma disciplina
aqui IFCH ela fale 4 (quatro) crédito, lá Faculdade de Educação ela vale 2 (dois)
e no instituto (CAP-UERJ) ela vale 1(um), aí talvez deva haver, um certo de descaso
com a licenciatura né, é que basicamente eu disponho meu tempo para vir para cá
e o próprio Departamento creditar a essa disciplina 2 (dois) ou 1(um) credito né,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 134
ela vale simbolicamente o próprio Departamento já coloca ela com descrédito então
simbolicamente ela seria inferior”. (Grifo nosso).
No caso das disciplinas do bacharelado as disciplinas tem carga horária de 60 (sessenta) h/a e 4
(quatro) créditos e as disciplinas da licenciatura ministrada no IFCH, elas tem 60 (sessenta) h/a e 2
(dois) créditos. Além da diferença se credito estabelecido às disciplinas da licenciatura, outro
mecanismo de desvalorização da licenciatura em relação ao bacharelado é o horário em que as
disciplinas da licenciatura são alocadas no quadro de horário.
De acordo com o Parecer nº 261/2006, a relação é de 1 (um) para 15 (quinze), ou seja, 1 (um)
crédito para cada 15 (quinze) horas aula semestral, cada 15 horas equivale a 1 (um) crédito, no
entanto essa relação não é simples assim:
[...] uma atividade escolar distinta da preleção – aula prática de laboratório,
seminário, elaboração de projeto, estágio supervisionado, etc. – pode implicar uma
quantidade diferente de créditos. Afinal, tudo dependerá da relação (subjetiva) que
se faça entre as duas energias, a aplicada para seguir a aula e a empregada em
realizar a prática. Para Raymundo Aragão, o estabelecimento dessa relação subjetiva
deveria ser feito em cada caso, pelo Colegiado de curso, no caso de Universidade
ou Federação de Escolas, e pelo Conselho Departamental, tratando-se de
estabelecimento isolado. (PARECER CNE/CES Nº 261/2006, p. 10).
Essa relação diferenciada, no caso da UERJ, no curso de Ciências Sociais se aplica também as
disciplinas da licenciatura, uma vez que, estás não apresentam a relação de 1 (um) crédito para 15
(quinze) horas aulas semestral, pois as disciplinas com 60 h/a apresentam apenas 2 (dois) créditos.
Todos os dados indicam a existências de uma desvalorização da licenciatura na UERJ, mais
especificamente no IFCH e no curso de ciências sociais, e isso ficou evidente no discurso de um dos
entrevistados:
De acordo outra entrevistada:
Lucrécia “[...] eu acho que a gente deveria ter um espaço maior de socialização
dessa parte educativa que aqui, por centrar vários cursos, a gente fica disputando
vagas, disputando horárias, tem aula 7 (sete) da manhã tem aula acabando 11
(onze) da noite então é sempre jogado pra os horários mais extremos aquele que
comporta mais gente”. (Grifo nosso).
As disciplinas da licenciatura sob responsabilidade da FE são ofertada para os estudantes de todos
os cursos da UERJ e isso provoca dificuldade em conseguir vagas em algumas disciplinas e é muito
comum haver turmas em horários extremos e com salas superlotadas.
De acordo com Nascimento (2006):
Nos últimos anos, o campo da formação de professores no Brasil se converteu em
palco de intensas disputas político-ideológica entre as políticas oficiais de educação
e de formação de profissionais da educação e a posição construída no seio do
movimento dos educadores. [...] esse embate remete a um confronto de maior
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 135
amplitude, ou seja, a disputa entre dois modelos de sociedade que, no campo da
educação traduz-se da seguinte forma: a ideia como um serviço (a ser ofertado e a
ser contratado, de acordo com a lógica do mercado) e a ideia da educação como
um direito e um dever do Estado. (NASCIMENTO apud Silva 2006, p. 26).
Com todos esses relatos e citações procurei mostrar como as relações entre saber e poder é percebido
pelos alunos e alunas do curso de Licenciatura em Ciências Sociais e como e essa mesma relação
está presente nas deliberações que regula o curso e no desenho curricular da Licenciatura. De acordo
com o relato dos entrevistados as disciplinas da licenciatura as aulas não acontece regulamente
como ocorre com as disciplinas do bacharelado de acordo com Karen “normalmente agente só tem
uma aula na primeira semana e depois não tem aula e só se encontra no final para entregar trabalho”.
Não contam com salas próprias para as aulas como relatou Vanderlei “para toda eletiva tal das áreas
do bacharel tem uma sala certinha, tudo confirmando e na área de licenciatura não tem, fica a deus
nos dará entendeu”, tudo isso revela certo desdenho com relação aos saberes pedagógico uma vez
que, como mostram os relatos há uma desvalorização da licenciatura na UERJ, seja pelo espaço
destinado a licenciatura, sejam pelos horários destinados as disciplinas da licenciatura, pelos pouco
caso dos professores ou até mesmo pelos alunos.
No que diz respeito à valorização das licenciaturas no Brasil, constatei que, entre os alunos do curso
de ciências sociais da universidade em questão, se há alguma política ela não é percebida pela a
maioria deles.
De acordo com a entrevistada Lucrécia “A valorização é a valorização, dada ao profissional, essa é
a valorização dada ao curso então e as pessoas procuram sua formação de acordo com a rentabilidade
que elas terão depois do diploma”. De com a lógica de Lucrécia se no mercado de trabalho os
profissionais forem valorizados com bons salários a demanda pelo curso que habilita o profissional,
a procura pelo curso também aumentará. Já para Cristina a licenciatura passa pelas questões salariais
e também:
[...] pelas condições de trabalho, enfim acho pouco valorizado, é uma profissão
superimportante, em todos os cursos, enfim sem professores, sem professoras, os
salários, assim principalmente na educação básica o salário são muito baixo as
condições de trabalho são precárias acho que tem que melhorar muito nem acho
que não tem uma valorização.
A valorização da profissão docente deve estar pautada em três eixos básicos para que possa ter o
desfecho esperado, são elas a formação, as condições de trabalho e a mais importante de todas as
questões salariais.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 136
No que diz respeito às políticas e ações voltadas para a valorização das licenciaturas da Universidade
Pública do Rio de Janeiro e o Instituto de Filosofia e Ciências Humana – IFCH e como essas políticas
e ações são percebidas pelos estudantes do curso de licenciatura em ciências sociais.
De todos os entrevistados, 8,33% (em números absolutos 1) declaram não saber responder essa
pergunta; 25% (em números absolutos 3) declaram que a licenciatura é valorizada e que os problemas
de desvalorização dos profissionais da educação é resultados de fatores externos a universidade;
33,33% (em números absolutos 4) dos entrevistados declaram desconhecer qualquer ação da
instituição visando a melhora ou valorizar as licenciaturas; os outros 33,33% (em números absolutos
4) declaram que as medidas tomadas pela Universidade Pública do Rio de Janeiro para valorizar ou
melhorar a formação dos professores acabou surtindo efeito inverso de acordo com Patrícia “parece
que é valorizado, mas na verdade, mas acabou ficando com um tempo, muito extenso para formação,
muita gente abandona ai provoca um efeito inverso [...] gente vai várias vezes ao CAP tem a falsa
ilusão de que é valorizado”. De acordo com outra entrevistada:
Lucrécia: É eu acho que institucionalmente elas (as licenciatura) são valorizadas,
diante dessa correlação, nesse contexto social, nessa correlação de forças que é a
disputas das profissões, da relação mercadológica e da valorização do professor
no processo educativo que pleita é valorização da educação para sociedade. Do
papel do professor, do professor do ensino fundamenta e do professor de ensino
médio não só o professor universitário tem valor nem e na UERJ eu acho tem uma
relação dessa mesma de disputas com outros cursos os cursos de engenharia os
cursos de medicina os de direito não é por que a UERJ valoriza esses cursos é por
que nossa contextualização é essa de valorização desses profissionais.
De todos os entrevistados Lucrécia é a única percebe o campo acadêmico como um espaço de lutas
concorrências e que o lugar ocupado pelas licenciaturas no interior do campo acadêmico é resultado
das luta travada pelos agentes sociais no interior do campo em questão.
Um ponto presente nos discursos de vários entrevistados foi a questão da extensão do curso de
Licenciatura de acordo Patrícia “que nosso currículo é muito extenso do Brasil nem do Brasil”. Já
para Fernando “o problema passa pela extensão que é o currículo”. Para Jacinto problema estar na
quantidade “de estagio que é absurdo e o número de horas, alguns até gostaria de fazer a licenciatura
e acabam fazendo só o bacharelado”.
Jefferson: “A gente ter uma grade e desnecessária, muito extensa fato que até
prejudica nossa formação [...] eles estende demais alguns estágios que acabam
prendendo agente por que são obrigatórios somente em determinado lugar. Por
exemplo, o CAP então a gente fica preso ali, então, quem trabalha não tem como
fazer esses estágios por que tem que ser necessariamente lá. Eu acho que nesse
sentido a nossa licenciatura aqui é muito prejudicial e até desnecessária até mesmo
em função da carga horária que tem”.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 137
Realmente após a reforma de curricular do curso de ciências sociais promovida pela Deliberação nº
03/2007 o quantidade de estágios supervisionados aumentaram muito e foram criadas as disciplinas
práticas pedagógicas com isso a quantidade de disciplinas ligadas as prática pedagógicas e estágios
supervisionados aumentaram muito com carga horária reduzida.
As reclamações dos estudantes sobre a Reforma do Curricular do Curso de Licenciatura em Ciências
Sociais em 2007, promovidas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro visando melhorar a
formação de professor e adequar-se as Diretrizes Curriculares Nacional para Formação de Professores
da Educação Básica, para as licenciaturas, acabaram resultando em grande desestímulo para os
alunos da licenciatura e a partir dos dados e relatos também. E ainda, é possível entender alguns
comentários a respeitos do comprometimento dos professores das disciplinas de licenciatura. Mas
também não devemos esquecer que os alunos também demostraram desdenho e descaso com o
curso de licenciatura, sendo a licenciatura pouco valorizada tanto pelos alunos, quanto pela
Universidade.
Outro ponto a chamo atenção é para fato de que o campo acadêmico é composto basicamente por
dois outros subcampos que podemos chamar de Campo de pesquisa (bacharelado) e campo de
formação de professores (licenciatura) e que qualquer mudança ou reforma no currículo seja para
aumentar ou diminuir conteúdo, carga horária gera lutas internas e entre os campos e como nessas
disputas e lutas concorrenciais e como a licenciatura ocupa nessa hierarquia posição inferior acaba
ficando sempre em segundo plano. De acordo com Silva apud Mendes:
“Apesar de oferecerem a licenciatura como habilitação a ser adquirida, os cursos
de graduação nunca organizaram concretamente seus currículos com esse objetivo.
Os cursos de ciências sociais são preparados para formar pesquisadores em ciências
sociais, ou seja, bacharéis. Ao optar pela educação básica, muitas vezes não há a
preocupação com a formação teórica e para a pesquisa deste docente. [...] as
universidades dão pouca atenção no desenvolvimento dos cursos de licenciatura.
(SILVA apud MENDES, 2012, p.6-7).
Desinteresse pela licenciatura, não é exclusividade da Universidade, está presente também entre,
alunos. Para Silva4 e Pain (2012, p. 7), isso “se percebe o pouco interesse dos alunos da graduação
em Ciências Sociais com as cadeiras oferecidas pela Licenciatura na área”.
Considerações Finais.
Conclui-se que, de maneira geral que os estudantes do curso de licenciatura em ciências sociais de
uma Universidade Estadual do Rio de Janeiro, não percebem que as transformações pelo qual vem
passando o curso nos últimos anos é resultado de tentativa da universidade em se adequar as novas
Diretrizes Curriculares Nacionais para Formação de Professores estabelecida pelas Resoluções CNE/
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 138
CP 01/2002 e CNE/CP 02/2002. Quando falamos de políticas e ações da instituição (UERJ) para
valorizar ou melhorar a formação de professor, a percepção do corpo discente é de que há um
esforço nesse sentido, porém essas ações são percebidas de maneira negativa por eles. Nesse sentido,
os estudantes da licenciatura não veem a organização das disciplinas, da carga horária com sendo
resultado de intensas disputas e lutas concorrenciais entre os campos de pesquisas (bacharelado) e o
campo de formação de professor (licenciatura).
Logo nas primeiras entrevistas duas questões surgiram. Os entrevistados referiram licenciatura como
sendo coisa das classes subalternas, “fazer licenciatura e coisa de pobre” e a segunda questão,
refere-se aos turnos: manhã e noite5. A primeira entrevistada “Kátia” disse, “vem à noite que a noite
quase todos os alunos fazem a licenciatura”. As primeiras imagens de hierarquizações vieram em
minha mente, se “licenciatura é coisa de pobre” e por isso menos valorizado em oposição ao
bacharelado. E com isso, constatei também que os próprios alunos demonstram desdenho e
desinteresse pelo curso de licenciatura e uma vez, que a grande maioria dos entrevistados declarou
não fazer parte de seus planos seguir a carreira de professor. O desinteresse dos alunos pelas disciplinas
da licenciatura é mencionado por SILVA e PAIN (2012, p. 7) “se percebe o pouco interesse dos
alunos da graduação em Ciências Sociais pelas cadeiras oferecidas pela Licenciatura na área”. E
ainda por Freitas (2007, p. 4):
[...] de longa data a licenciatura tem sido relegada a um segundo plano nos cursos
de Ciências Sociais. [...] valorizar a prática na formação docente implica em romper
com preconceitos e juízos de valor disseminados na longa duração e que estabelecem
uma diferenciação [...] entre o bacharelado – considerado um curso “nobre”, voltado
à atividade teórica e à pesquisa – e a licenciatura – considerado um curso “plebeu”,
voltado à atividade docente, próprio para os alunos menos aptos, sem maiores
capacidades de reflexão e que, portanto, devem se ocupar de tarefas “menores”,
como o exercício da atividade docente no ensino médio.
No que diz respeito, ao lugar que a licenciatura ocupa, seja no quadro de horários, seja na distribuição
da carga horária. Vários entrevistados relataram que a aula das disciplinas da licenciatura é meio
largada pelos professores que a ministram. Para Kátia “normalmente agente só tem uma aula na
primeira semana e depois não tem aula e só se encontra no final para entregar trabalho” outros
relataram que não há na maioria das vezes salas próprias para as aulas ocorram cada semana a aula
corre em sala diferente. A maioria dos entrevistados não percebe que o lugar que a licenciatura
ocupa na estrutura academia é resultados de lutas e disputas concorrências no interior dos campos
de pesquisa e formação de professor. Assim como também não associaram as modificações pelo
qual vem passando o curso de licenciatura a uma política mais ampla, por exemplo, uma resposta da
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 139
universidade as Resoluções CNE/CP 01/2002 e CNE/CP 02/2002, que regula a distribuição da
carga horária e estabelece regras para os cursos de licenciatura no Brasil.
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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO. Deliberação nº 054//1980. Regula o Currículo pleno do
Curso de Ciências Sociais.
______________. Deliberação nº 209/89. Regula o Currículo Pleno do Curso de Ciências Sociais.
______________. Deliberação nº 031/95. Altera o Art. 5º da Deliberação nº 209/85 que regula o Currículo Pleno do
Curso de Ciências Sociais.
_______________. Deliberação nº 003/2007. Reformula o Currículo pleno da licenciatura em Ciências Sociais.
_______________. Deliberação nº065/2010. Altera o caput do 2º Artigo da Deliberação 03/2007.
NOTAS
1
Na minha graduação todas as disciplinas ligadas à licenciatura sob a responsabilidade do departamento de Ciências
sociais (Prática de ensino em ciências sociais II e III) eram ministradas por professores contratados. Nos disciplinas
de responsabilidade da Faculdade de Educação a situação era a mesma, a grande maiorias das disciplinas eram
ministradas por professores contratos.
2
Os nomes citados aqui são todos fictícios, o nome verdade foi omitido para preserva a identidade dos entrevistados.
3
O conselheiro Raymundo Aragão [...] definiu crédito como sendo o trabalho de acompanhar uma aula (preleçã
o oral) de uma hora, o que enfim colocou em discussão um elemento de que, até então, não havíamos cuidado: a
duração da aula. [...] a introdução desse elemento – duração da aula – era indispensável porque se trata de unidade
de trabalho, e o trabalho é, em si mesmo, o produto de dois fatores: a energia empregada e o tempo de seu emprego.
O último fator é preciso e diretamente mensurável, mas o primeiro, energia aplicada na realização do trabalho
escolar, só pode ser avaliado aproximadamente (comum valor médio e por forma subjetiva). (PARECER CNE/CES
Nº 261/2006, p.09 e 10).
4
Professor de Sociologia do Colégio Pedro II, Supervisor do Programa de Pós-Graduação Residência Docente do
Colégio Pedro II e Doutorando em Ciências Sociais pelo CPDA/UFRRJ.
5
No turno da manhã eu tive muitas dificuldades em realizar entrevistas. A grande maioria das pessoas que eu
abordava não fazia licenciatura. Esteve por várias vezes e só conseguir realizar três entrevistas já no turno da noite
eu fui duas vezes e entrevistei várias pessoas.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 141
“MIREM-SE NO EXEMPLO” DAQUELES SOCIÓLOGOS DA FRANÇA:
segregação escolar francesa como referência de um projeto PIBID/UFS-Ciências Sociais
Tâmara de Oliveira
Professora Adjunto IV do Departamento de Ciências Sociais da UFS e
bolsista do PIBID/Sociologia-CAPES
Resumo
Este trabalho tem quatro fontes: um relatório de pesquisa pós-doutoral realizada na França em 2008,
tematizando as representações de estudantes do ensino médio sobre cidadania, desigualdades e diversidade;
um artigo apresentado no XV Congresso Brasileiro de Sociologia em 2011, referente à análise de uma
política educacional francesa de ação afirmativa; um artigo no prelo na Revista Estudos de Sociologia
(PPGS-UFPE) em 2012, condensando uma reflexão sobre a presença da sociologia acadêmica na evolução
do sistema público de ensino básico francês; e, finalmente, um subprojeto elaborado para o Edital Nº 061/
2013 do Programa Institucional De Bolsa De Iniciação À Docência (CAPES). Em primeiro lugar, será
descrito o processo paradoxal de articulação entre democratização da educação básica do sistema de ensino
público francês e consolidação de uma crescente segregação escolar, atingindo negativamente as escolas
públicas dos bairros periféricos franceses e jovens que acumulam uma baixa condição socioeconômica e
uma ascendência nas ex-colônias francesas. Este objetivo descritivo será realizado a partir da evolução do
olhar da sociologia francesa sobre seu sistema republicano de educação pública. Em seguida, considerar-seá as mudanças societais aceleradas e em escala global como componentes construtivos da paradoxal articulação
entre democratização do ensino e novas formas de segregação social contemporânea, para justificar a utilização
do caso francês como parâmetro comparativo potencialmente criativo para a atuação profissional de cientistas
sociais no ensino básico brasieiro. Finalmente, serão apresentadas as linhas mestras do projeto PIBID/UFSCiências Sociais para 2014.
Palavras-Chave: Ensino básico francês. Sociologia da educação. Segregação social e escolar. Ensino básico
brasileiro. PIBID-Ciências Sociais.
Sistema de ensino básico francês e olhar sociológico
As relações entre a implementação do sistema público de ensino na França e a consolidação da
Sociologia como disciplina científica, na virada para o século XX, são muito significativas. Um dos
grandes especialistas de Durkheim, Jean-Claude Filloux (1993-2000, p. 2), afirmou em discurso à
ONU que aquele considerado o “pai” da sociologia francesa, ou seja, Émile Durkheim, foi também
o primeiro sociólogo da educação, no mesmo momento em que a chamada Troisième République
estabelecia os alicerces de um sistema de ensino público, laico, obrigatório e igualitário.
Embora contendo as particularidades acima colocadas, a ambição francesa foi a mesma que animou
a de todos os países democráticos (SCHNAPPER, apud SACHOT, 2002), qual seja a de formar
seus alunos enquanto cidadãos de uma nação.
Assim, as funções ideais do sistema de ensino francês se ampararam em dois
princípios de integração social duplamente ligados à noção moderna de cidadania
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 142
(OLIVEIRA, 2011). Em primeiro lugar, enquanto instrumento público de instrução
para a integração diferenciada na divisão do trabalho (VAN ZANTEN, 2001),
a escolarização aparece como meio para a aquisição das competências e recursos
necessários ao exercício dos direitos e deveres cidadãos. Em segundo lugar, enquanto
instrumento público de transmissão das normas gerais da sociedade às novas
gerações, a escolarização aparece como meio para o compartilhamento dos valores
comuns da cidadania, ou seja, como meio de integração normativa (VAN
ZANTEN, 2001): a liberdade, a igualdade e a fraternidade (ou solidariedade)
de indivíduos que na condição de membros autônomos, participativos e críticos
de uma mesma sociedade, seriam os sujeitos legítimos do estabelecimento do bem
comum e da condução democrática do Estado-nação (OLIVEIRA, 2011, p.1).
Deixando os princípios ideiais de regulação em favor de sua história concreta, entendo que a evolução
do olhar sociológico francês sobre seu sistema público de ensino foi inicialmente uma fonte importante
da construção da Escola como lugar de abstração das desigualdades sociais. Nas décadas de 1960/
1970, entretanto, a sociologia aparece pessimista sobre as possibilidades de que seu sistema de
ensino conseguisse sair do reino das abstrações igualitárias.Um olhar sociológico crítico consolidouse então e foi atravessado por uma oposição radical entre duas abordagens importantíssimas da
sociologia francesa da época: Pierre Bourdieu com Jean-Claude Passeron (1964/1970) de um lado
e Raymond Boudon (1984) de outro.
Suas teses, teórico-metodologicamente opostas, constataram igualmente que a escola republicana
não consegue combater as desigualdades de origem social dos alunos. De um ponto de vista sistêmico
(BOURDIEU/PASSERON, 1964 ; 1970) ou do ponto de vista do individualismo metodológico
(BOUDON, 1984), ou seja como instrumento estruturado e estruturante de reprodução social ou
como espaço abstratamente igualitário invadido concretamente pelas estratégias desiguais dos atores
sociais, pode-se dizer que, naquele momento, a sociologia acadêmica realizava dois mecanismos
críticos, o estranhamento e a desnaturalização das representações do senso comum francês sobre o
seu sistema público de ensino (OLIVEIRA, 2011, p.5), enquanto a sociologia durkheimiana marcara
um momento de relações mais positivas entre a disciplina e a Éducation Nationale.
Há um terceiro componente do sistema de ensino francês que é necesário mencionar, qual seja o seu
paradoxal passado elitista (MAURIN, 2007). As crianças das classes populares só concluiam de fato
o ensino primário e/ou um curso profissionalizante. A democratização escolar só começa nos anos
1960, com a criação da carte scolaire (determinação da matrícula dos alunos segundo suas regiões
residenciais, delimitadas para promover a heterogeneidade do público escolar). Depois, nos anos
1970, estabelece-se a obrigação de um mesmo tipo de escolaridade até o final do fundamental.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 143
Finalmente, nos anos 1980 chega-se ao acesso das classes populares ao ensino médio e ao superior
(DUBET, 2007; 2011).
Pode-se dizer que a concidência temporal entre a crítica sociológica do sistema Público de Ensino
francês e as políticas de democratização sinaliza para a manutenção de uma influência construtiva
junto à Éducation Nationale(2). Mas a evolução posterior do contexto foi marcada pela coincidência
histórica entre democratização da educação formal e início do esgotamento do Estado do BemEstar Social e de seu compromisso de redistribuição das riquezas (LAUTMAN, 2008). Um processo
de segregação urbana se instala, isolando negativamente as categorias sociais desfavorecidas e aqueles
que, além de socioeconomicamente desfavorecidos, têm ascendência nas ex-colônias da França
(OLIVEIRA, 2011). Fato que vai se refletir na Carte Scolaire, pois as regiões escolares oficialmente
delimitadas tornam-se pouco a pouco socialmente homogêneas.
Quando François Miterrand assume a presidência da República pela primeira vez, em 1981, o Estado
busca enfrentar essa realidade de segregação urbana e cria as ZEPs (Zonas de Educação Prioritária),
pensadas para territórios selecionados pela presença de estabelecimentos escolares com alto índice
de fracasso escolar e agindo não apenas sobre a escolaridade, mas também sobre carências
socieconômicas, urbanísticas e culturais de seu público-alvo. (OLIVEIRA, 2011).
Uma análise diacrônica da Educação Prioritária na França revela três períodos bem distintos. No
primeiro, 1981-1995, as ZEPs funcionam sob parceria regular entre o Ministério da Educação Nacional
e outros serviços públicos estatais ou civis e assiste a um crescimento importante do número de
estabelecimentos escolares sob sua alçada. No segundo período, inciado em 2005, as ZEPs são
acusadas de inflação e por isso numericamente reduzidas, além de serem reformuladas sob o foco
estrito dos “saberes escolares”. Seu planejamento, execução e acompanhamento submetem-se a
uma lógica econométrica de excelência e de resultados performáticos e em 2006 as ZEPs vão dando
lugar às RAS (Redes Ambição de Sucesso), “cada uma das quais devendo formalizar seus próprios
objetivos de sucesso escolar através de um contrato a ser ou não renovado, a depender da avaliação
de seus resultados” (OLIVEIRA, 2011, p. 7). A partir de 2007 são evidentes os sinais de um
terceiro período da Educação Prioritária. Tendo como presidente um ex-ministro do interior (Nicolas
Sarkozy), febril em reformas, redução de custos e (in)segurança pública, a França e seu sistema
público de ensino assistem a diretrizes incessantes e atordoantes de mudanças.
No domínio das ZEPs e RARs, tais mudanças têm um eixo claro: o tema da violência escolar, no
discurso e nas políticas públicas, assume a hegemonia em detrimento do tema das desigualdades
sócio-econômicas e escolares. Relançada sob o nome ÉCLAIR (relâmpago na língua francesa, neste
caso, sigla de Écoles, Collèges et Lycées pour l’Ambition, l’Innovation et la Réussite), a Educação
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 144
Prioritária à francesa conclui, em 2010, uma série de deslocamentos: as RARs já tinham deslocado
a prioridade teritorial integral pela prioridade da performance escolar; com os ÉCLAIRs desloca-se
da prioridade escolar performática para uma ação voltada ao controle de alunos “perigosos”,
oficializando assim uma abordagem securitária para as políticas do ensino e da juventude francesas.
Nesse momento, para muitos a Educação Prioritária exprime que o sistema de ensino não é apenas
criticável por não conseguir combater uma segregação social (da qual ele não é causa) ou por ser um
reprodutor simbólico das desigualdades sociais e escolares. Os ÉCLAIRs possuem uma lógica
voluntária de construção oficial de segregação escolar, sob um princípio securitário e econométrico
de governança (OLIVEIRA, 2011, p.9). Por outro lado, a Carte Scolaire começa a ser oficialmente
relaxada, ampliando os efeitos da segregação urbana sobre a escolar ao permitir que pais de alunos
socioeconômica e culturalmente favorecidos consigam mais facilmente evitar estabelecimentos mal
reputados – mesmo quando localizam-se em sua região residencial. Considerando-se sua lógica e o
fato de que os ÉCLAIRs foram implantados num contexto de degradação dos resultados escolares
franceses(3) como sua sociologia da educação reagiu a esse relançamento?
Como sugerido antes, pode-se afirmar que as políticas públicas de Educação Prioritária exprimiam
inicialmente uma influência direta ou indireta da crítica sociológica dos anos 1960/1970, mas que
sua evolução foi configurando um processo de divórcio entre sociologia e políticas públicas de
ensino. A influência sociológica foi pouco a pouco substituída pela de uma ciência econométrica
como critério de avaliação escolar e pela de uma perspectiva securitária de regulação social. Se é
verdade que a sociologia perdeu influência junto aos decidores das políticas públicas, isso tem
relação com o fato de que a França passou a ser governada por uma coabitação direita/ esquerda ou
por uma direita que se auto-intitulava “direita descomplexada”, todas marcadas por inflexões de
sentido nas políticas públicas mais do que menos adaptadas ao “espírito do tempo”(OLIVEIRA,
2011).
Não obstante, a sociologia francesa manteve a educação escolar como tema e subdisciplina importantes
e continuou a influenciar vários tipos de atores do sistema público de ensino francês(4). No final dos
anos 1980 uma nova geração de sociólogos dedicados inteiramente às relações entre educação e
sociedade aparece. Seus maiores nomes não se agrupam numa corrente homogênea, mas escapam
das oposições radicais da época de Bourdieu e Boudon, podendo inclusive acionar contribuições de
um e de outro em suas pesquisas. Para os fins deste texto, ao invés de descrever as diferenças entre
os autores dessa nova geração, trarei um ponto pacífico que demonstra a pertinência do olhar
sociológico francês sobre a evolução de seu sistema de ensino. Nomes célebres como François
Dubet (2004), Stéphane Beaud (2002/2003), Pierre Merle (2002) e Agnès van Zanten (2001; 2006II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 145
2009) permitem entender que a Éducation Nationale contemporânea marca um processo de
continuidade perversa entre um passado elitista e um presente democratizado que vai além das teses
de Bourdieu e Boudon: se estes identificaram a Escola como um espaço de reprodução das
desigualdades sociais, as pesquisas da nova geração apontam que a Escola é também, em sua dinâmica
interna, produtora de desigualdades.
Reprodutora das desigualdades, tendo em vista que sua democratização consolidou um sistema de
ensino médio fundamentado em três vias hierarquizadas: via geral, ocupada majoritariamente por
alunos cujas famílias têm as melhores condições socioeconômicas; tecnológica, ocupada
majoritariamente por alunos com condições socioeconômicas médias; e via profissional, ocupada
majoritariamente por filhos de famílias desfavorecidas que conseguiram sobreviver ao último nível
do ensino fundamental (marcado por índices importantes de abandono ou fracasso escolar). Além
dessas vias, o ensino médio francês hirarquiza-se por tipos de formações: as científicas no topo, as
literárias e socioeconômicas no meio e as tecnológicas na base. Finalmente, tendo em vista que a
carte scolaire produziu efeito relativamente contrário ao de sua idealização (já que a crescente
segregação urbana tende a tornar a distribuição de alunos por regiões residenciais em fonte de
segregação escolar; efeito este completado pela existência de mecanismos institucionalizados
permitindo às famílias com mais capital social e cultural uma fuga de estabelecimentos mal
classificados), o sistema de ensino francês hierarquizou-se também entre école du centre e école de
la périphérie (VAN ZANTEN, 2001; VAN ZANTEN, 2006/2009).
Tal hierarquização projeta-se sobre o ensino superior francês, caracterizado pelos seguintes tipos de
formação: Grandes Écoles, formadoras das elites; Instituts Universitaires de Technologie-IUTs,
criados idealmente para jovens das classes populares mas concretamente ocupados “por alunos das
classes médias provenientes de formações e de estabelecimentos bem colocados na hierarquia”
(OLIVEIRA, 2012, p. 12); e finalmente as Universités, cujas graduações não seletivas absorvem os
mais diversos tipos de alunos não inseridos nas outras formações e cuja evolução tem sido marcada
também por altos índices de fracasso e de abandono escolar (OLIVEIRA, 2011).
No que diz respeito à Escola francesa enquanto espaço produtor de desigualdades, François Dubet
(2008) é um pesquisador que, distante de pesquisas centradas no fenômeno da segregação escolar,
reflete sobre a democratização ou massificação do sistema de ensino a partir do vínculo entre
meritocracia e competição escolares, acionando a teoria da justiça de J. Rawls. Para Dubet, a
democratização teria trazido para dentro do processo de escolarização as desigualdades de
oportunidades : se antes os alunos socialmente mais desfavorecidos nem tinham acesso à fonte do
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 146
prolongamento dos estudos, hoje em dia eles podem aceder a níveis altos mas têm pouquíssimas
chances de sucesso na foz da escolarização:
(...)realizei uma reflexão um pouco geral (os britânicos realizaram-na há muito
tempo) sobre os princípios de justiça na escola. Cheguei a duas conclusões. A
primeira é que, numa sociedade não aristocrática, a igualdade de chances é o único
princípio de justiça sobre o qual a escola pode se apoiar: é de fato necessário que
os indivíduos hierarquizem-se segundo seu mérito. (…) A segunda é que este
princípio é extremamente difícil de ser aplicado. Por um lado, os alunos não têm as
mesmas chances inicialmente, em razão de sua origem social, de seu capital cultural;
por outro lado, é um princípio muito cruel que diz aos bons “vocês têm direito a
tudo” e aos ruins “pior para vocês” (DUBET, 2008, http://
www.scienceshumaines.com/descolariser-la-societe_fr_23000)
Entendendo que as desigualdades de origem e de capital cultural dentro da escola meritocrática
desencadeam um processo interno e contínuo de fracasso escolar dos “menos iguais”, François
Dubet orienta sua reflexão crítica para o próprio princípio meritocrático enquanto mecanismo de
equalização das oportunidades de integração social pela divisão do trabalho nas sociedades modernas,
princípio este que fez da Escola um espaço hipercompetitivo e quase monopólico de aquisição dos
recursos para uma inserção social positiva:
[a] massificação transformou a escola republicana em escola meritocrática, dizendo
aos alunos : vocês serão o que terão feito na escola. Isso muda completamente a
regra do jogo, tornando-o tenso e muito mais cruel. Porque o fracasso escolar não
significa mais apenas « eu não sou feito para a escola », mas « eu vou fracassar na
vida ». Daí esses comportamentos utilitaristas dos alunos que passam seu tempo a
calcular o que é rentável ou não fazer : eles não estudam a física pelo amor do
saber mas para conseguirem entrar na formação científica” ((DUBET, 2008, http:/
/www.scienceshumaines.com/descolariser-la-societe_fr_23000)
Mudanças sociais aceleradas, lógica competitiva e segregação escolar
Opositor tão severo da centralidade da Escola como meio de configuração das expectativas de vida
futura que chega a prescrever uma décolarisation da sociedade francesa como necessidade, Dubet
já foi criticado por falta de rigor metodológico, considerando-se a existência de indicadores que, em
dimensão microssociológica, mostram que a prolongação da escolaridade continua aumentando as
chances individuais de inserção no mercado de trabalho (COULANGEON, 2011) Mas, quando
pensamos em termos macrossociológicos, ou seja, nas condições sistêmicas de uma competição
escolar profundamente desigual, as pesquisas e reflexões de François Dubet articulam-se a certos
componentes das mudanças societais do final do século XX que contribuem para a compreensão de
um fenômeno concreto, paradoxal e funcionando em escala global ou globalizável: apesar do
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 147
prolongamento da escolaridade das novas gerações, os jovens têm sido vítimas privilegiadas de
desemprego ou de trabalho precário – principlamente os de origem socioeconômica e cultural modesta
ou francamente desfavorável.
Neste sentido, o caso francês aparece como um parâmetro para estudos comparativos de sistemas
de ensino democratizados em crise, bem como para a reflexão sobre políticas públicas que enfrentem
eficazmente os paradoxos entre a centralidade ideal da Escola como meio de inserção meritocrática
na divisão do trabalho e as condições sistêmicas de aumento das desigualdades e de segregação
social. Essas transformações societais, quer sejam entendidas como resultantes da hegemonia
ideológica do chamado neoliberalismo, da consolidação da globalização ou da pós-modernidade ou,
da cultura do “novo capitalismo” (SENNET, 2006), relacionam-se ao enfraquecimento do Estado
do Bem-Estar Social enquanto modelo de compromisso social para uma redistribuição de riquezas
(LAUTMAN, 2006), sendo um pano-de-fundo sobre o qual se revela um paradoxo potencialmente
estruturante de sistemas de ensino democratizados: entre seu ideal de dupla integração social (ao
mundo do trabalho e às normas cidadãs) e um contexto sócio-histórico marcado pela “degradação
da sociedade salarial e seu compromisso de redistribuição das riquezas via Estado do Bem-Estar
Social, de complexificação das desigualdades e, da hegemonia da competição e da performance
enquanto princípios da [regulação] social” (OLIVEIRA, 2011, p. 14). Princípios estes (competição
e performance) que, articulados diretamente à lógica do mercado, impregnam inclusive as políticas
públicas educacionais.
Essas mudanças societais revelam também uma coincidência histórica entre a democratização escolar
e tendências contemporâneas à duplicação da segregação sócio-urbana em segregação escolar. No
campo da Sociologia ou das Ciências da Educação na França, uma abordagem relacional (MAURIN,
2007/2011; Van ZANTEN, 2006/2009) permite articular dois tipos extremos de segregação e sua
dinâmica configurada pela lógica competitiva e performática que impregna muitas políticas
educacionais : a sofrida pelas classes populares e a escolhida pelas classes médias em ascensão e
pelas classes altas. Fazendo-se uma leitura dialógica entre pesquisadores concentrados na segregação
escolar (VAN ZANTEN, 2006/2009; FASSIN/FASSIN, 2006/2009; FELOUZIS/LIOT/PERROTON,
2005;) e as teses de F. Dubet sobre meritocracia e competição escolares, pode-se compreender da
forma seguinte a importância da lógica competitiva/performática na interpenetração entre segregação
urbana e segregação escolar(5), via práticas e representações dos atores sociais:
[a] maioria das pesquisas recentes aponta para o que Max Weber chamaria de
afinidades eletivas entre o funcionamento institucional do sistema de ensino (posto
que a competição entre vias, formações e sobretudo opções desse sistema hieráquico
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 148
seja o que mova concretamente a administração dos estabelecimentos, à qual
diretores e professores são constrangidos, se eles decidem lutar contra o estigma
da Educação Prioritária ou da condição periférica de seu estabelecimento, porque
isso causa uma fuga endêmica dos « bons alunos ») e, as práticas e representações
sociais das famílias de alunos socialmente favorecidos (que, munidas de capital
cultural e capital social, desenvolvem mecanismos ditos de dérrogation, ou seja,
de solicitação de mudança de setor de matrícula de seus filhos, sob a justificativa
de que o setor solicitado possui opções raras de ensino – língua rara, música, artes
plásticas, etc. Assim, enquanto as administrações dos estabelecimentos lutam entre
si por essas opções raras (sem nada a dever à lógica performática e quantitativa de
nossos editais de pesquisa), as famílias dos alunos usam-nas como argumento para
escaparem de estabelecimentos periféricos e/ou francamente prioritários, tendo o
conhecimento de que o Ministério da Educação Nacional proíbe a rejeição de pedidos
de derrogação do setor, quando justificadas pelo interesse por essas opções raras.
(OLIVEIRA, 2011, pp. 15-16)
Percebe-se assim que a sociologia francesa, malgrado sua perda de infuência junto aos decididores
de políticas públicas educacionais, mantém sua pertinência teórica e empírica sobre a problemática
contemporânea de seu sistema de ensino. Em que os resultados de suas pesquisas e reflexões, entre
os quais a lógica da competição performática/avaliação econométrica e o da segregação escolar são
centrais, poderiam inspirar projetos de intervenção sociológica no ensino médio brasileiro?
Entre França e Brasil – justificativa e linhas mestras de um projeto para o PIBID/UFSCIÊNCIAS SOCIAIS(6)
Inicio este terceiro tópico inspirando-me numa aparente contradição nas teses do próprio François
Dubet: se por um lado ele sustenta a necessidade de uma décolarisation da sociedade, sendo muito
criticado por isso, por outro lado defende firmemente que se continue a intervir no espaço escolar,
nos seguintes termos:
[a] única maneira de evitar que a escola transforme-se completamente num mercado
seria fixar objetivos educativos para a escola : todo aluno que sai da escola deve
por exemplo ter o sentimento de ter valor ou ser capaz de se exprimir em público
sem ter vergonha…(DUBET, 2008. Em: http://www.scienceshumaines.com/
descolariser-la-societe_fr_23000.html).
E ainda:
(...) Eu lembro apenas que um mundo globalizado, onde nossas capacidades de
ação política são antes de tudo frágeis, possui um domínio onde temos uma
capacidade de ação total: a educação (…)Todo mundo diz por exemplo que é preciso
desenvolver o ensino superior. Isso é discutível : não seria melhor desenvolver a
qualidade do ensino básico? Isso não seria melhor para a sociedade
? Minha
convicção é a de que é preciso descolarizar a sociedade, quer dizer, abandonar a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 149
ideia de que a escola deva fabricar uma “boa” sociedade. A escola deve fabricar
uma boa escola. Se queremos reduzir as desigualdades, reduzamos as desigualdades
entre executivos e operários. Isso seria mais eficaz do que permitir que filhos de
http://
operários tornem-se executivos
!…(DUBET,
2008.
Em:
www.scienceshumaines.com/descolariser-la-societe_fr_23000.html
Considerei que utilizar o caso francês contribui para a elaboração de um referencial pertinente e
operacional para que a sociologia acadêmica atue nas escolas em outro contexto nacional, sob o
princípio da indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Antes de tudo porque a
complexificação das desigualdades e a hegemonia da competição e da performance como princípios
invasivos de políticas públicas são fenômenos globalizados ou globalizáveis. Em segundo lugar
porque, tanto na França quanto no Brasil, é uma parte dos jovens cuja escolaridade fundamental se
passa em estabelecimentos degradados, segregados em espaços educativos incapazes de ruptura
para com as difíceis condições de vida de seus espaços residenciais, que se contrói socialmente
como subjetividades resistentes à cultura escolar, atraídos à sociabilidade das ruas e à formação de
grupos ou bandos de jovens infratores na França (MOIGNARD, 2007; MILLET/THIN, 2007/2011;
VAN ZANTEN, 2001) ou recrutados pelo crime organizado no Brasil (MOIGNARD, 2007).
Finalmente, porque enquanto na França a sociologia perdeu força junto aos decididores de políticas
públicas, no Brasil vivemos um momento de volta da sociologia ao ensino básico e contamos com
um programa institucional de bolsas de inciação à docência (PIBID/CAPES) permitindo que tenhamos
um espaço de intervenção profissional no qual o olhar sociológico sobre o ensino médio seja ativo.
Entendendo que o que F. Dubet pretende dizer com “capacidade de ação total” não significa
“capacidade de ação livre”, posto que isso significaria negar um ensinamento sociológico básico,
qual seja o de que a nossa capacidade de ação é inevitavelmente mediada por limitações de nosso
contexto social, pode-se compreender que o sociólogo francês, talvez inspirando-se no “fato social
total” de Marcel Mauss (1985), refere-se ao caráter multidimensional e ativo do saber sociológico.
Em outros termos, ao potencial da sociologia para (re)socializar jovens nas mais diversas dimensões
de suas relações com os atores e as instituições sociais – culturais, políticas, religiosas, econômicas,
etc. De fato, o olhar sociológico, orientado para o estranhamento e a desnaturalização das
representações explicativas e valorativas que os indivíduos adquirem sobre os fenômenos sociais ao
longo de sua experiência social, introduz um tipo de cultura nos saberes escolares capaz de habilitar
os jovens à reflexividade, a uma análise crítica e empiricamente fundamentada das relações e
instituições sociais nas quais eles estão inseridos. Como afirma Cynthia Hamlim a respeito da noção
de espírito sociológico de Bernard Lahire(2007):
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 150
[a]credito, entretanto, que, menos do que determinar o estudo de temas específicos,
importa que os currículos consigam estabelecer aquilo que Bernard Lahire, ao
propor a introdução da sociologia no ensino fundamental na França, chama de
uma terceira cultura entre uma cultura literária e uma cultura científica. Esta terceira
cultura busca desenvolver nos estudantes um conjunto de competências e disposições
características das ciências sociais que tornará possível aos estudantes questionar
a realidade na qual estão inseridos e desenvolver posicionamentos mais solidamente
embasados. Longe de almejar a construção de um conhecimento enciclopédico,
tais competências e disposições visam simplesmente a incorporação de alguns
hábitos intelectuais das ciências sociais à cultura escolar (HAMLIM, 2009. http:/
/www.quecazzo.bolg.spot,com.br/2009_09_01archive.html)
Neste sentido, como a sociedade mudou e vivemos cada vez mais centrados num princípio de
autonomia identificado como sucesso individual via competitividade, os jovens têm um processo de
socialização cada vez mais plural e fragmentário (ROCHA/PEREIRA, 2009). Se antes era fácil para
a escola separar o aluno da criança e do adolescente (que, por sua vez, eram hegemonicamente
socializados pela família), atualmente deve-se considerar de maneira central a socialização pelas
relações de amizade, de amor, de redes de informação e comunicação, bem como pelas recomposições
familiares (DUBET, 1991). A integração normativa não pode mais ser imaginada como interiorização
passiva dos alunos a normas e valores comuns abstratamente universalistas, num mundo em que
modelos de socialização sob autoridade repressiva são empiricamente menos eficazes dos que os
fundados sob autoridade cooperativa (FELOUZIS, 2009).
Por outro lado, se a volta da sociologia ao ensino básico e programas institucionais como o PIBID
sinalizam espaços de intervenção direta das ciências sociais no sistema de ensino brasileiro, não
podemos esquecer que o Brasil também não é poupado do contexto sócio-histórico das mudanças
societais no sentido da competição como princípio da regulação social e da performance econométrica
como modelo de avaliação dos sistemas de ensino, impregnando as políticas educacionais com
procedimentos, objetivos e até articulações diretas com empresas, ou seja com as necessidades da
sociedade de mercado (SENNET, 2006; LENOIR, 2006). Neste sentido, ocupar esses espaços
abertos de intervenção das ciências sociais demanda atenção teórico-metodológica a esse contexto.
Em nosso caso tal atenção esteve na raiz da configuração temática de nosso novo projeto PIBIDUFS-Ciências Sociais, de tal sorte que nosso plano de atuação permita a utilização de recursos aptos
ao exercício da Imaginação Sociológica (MILLS, 2006), ou seja a um aprendizado das relações
entre vida pessoal e estruturas sociais.
Desenvolvemos então um projeto de atuação do PIBID/UFS-Ciências Sociais a partir de um par
temático diretamente vinculado à experiência social dos dois tipos de estudantes visados pelo Programa
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 151
(estudantes de licenciatura; estudantes do ensino médio): juventude e consumo que, enquanto
fenômenos intimamente vinculados às orientações práticas e simbólicas hegemônicas das sociedades
contemporâneas, permitem o desenvolvimento de uma reflexividade sobre a própria experiência
social dos bolsistas do PIBID e dos alunos do ensino básico envolvidos com esse Programa.
A partir de um processo de interação entre teoria, exercício empírico e reflexão dialógica sobre um
tema diretamente vinculado à experiência social dos dois principais públicos-alvo do Programa,
buscaremos aplicar recursos das ciências sociais que possibilitem a incorporação de alguns hábitos
intelectuais das ciências sociais à cultura escolar, a partir de uma abordagem processual da
aprendizagem. Para isto, num primeiro momento realizaremos uma atividade de levantamento de
dados empíricos sobre o fenômeno a ser estudado – as representações sociais dos alunos sobre a
juventude, seus problemas, suas perspectivas, sua relação com o consumo – através da proposição
de entrevista semi-estruturada aos alunos do ensino médio, onde estes exprimirão sua Realidade
Social Subjetiva (BERGER/LUCKMANN, 1990).
Num segundo momento, nós proporemos que eles realizem o mesmo roteiro com jovens de outros
meios sociais (em shopping center, por exemplo). Um primeiro objetivo é que os secundaristas
apreendam uma condição sociológica fundamental: a diversidade da realidade social subjetiva dos
indivíduos e sua relação com as condições sociais destes. Um segundo objetivo é que tanto eles
quanto nossos licenciandos incorporem hábitos intelectuais das ciências sociais, através do recurso
à entrevista sociológica. Num terceiro momento, nossos bolsistas executarão três ou quatro aulas
explanativas, seguindo o processo de transição do conhecimento de senso comum dos alunos sobre
a juventude, até a reconstrução desse conhecimento pela aprendizagem do olhar sociológico, sua
diversidade e sua evolução, sobre o mesmo tema. Num quarto momento, teremos mais aulas para
completar a construção sociológica da juventude e consumo, nas quais os conteúdos do material
produzido pelos alunos nos primeiros momentos (entrevistas, textos e discussão coletiva), servirão
de guia para a transmissão dos seguintes princípios: estranhamento, desnaturalização e imaginação
sociológica. Num momento de encerramento do processo, solicitaremos aos alunos envolvidos que
produzam um texto em que eles comparem o que sabiam sobre a juventude antes e o que estão
sabendo depois do processo de aprendizagem. Esses textos serão a base do Seminário de
Encerramento das atividades PIBID/UFS-Ciências Sociais a ser realizado na Universidade Federal
de Sergipe – Campus de São Cristóvão.
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NOTAS
2- “De fato, tanto Bourdieu e Passeron quanto Boudon não se limitaram à análise crítica, mas exerceram a dimensão
prescritiva da tradição sociológica francesa. E, embora tenham produzido principalmente obras acadêmicas, sua
influência entre os atores institucionais da Éducation Nationale é até hoje marca indelével que atravessa, positiva
ou negativamente, as políticas públicas de educação. Todavia, é importante frisar que a meu ver, a influência da
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 154
sociologia da educação bourdivina sobre os atores da Education Nationale é muito mais forte do que a de Raymond
Boudon” (Oliveira, 2011).
3- Segundo os relatórios PISA/OCDE, a França não só perdeu seis lugares no ranking mundial das competências
escolares dos jovens até 15 anos, como é, entre os países centrais da Europa, aquele onde as desigualdades sociais
mais influenciam os resultados escolares).
4- “A Éducation Nationale possui todo um arsenal de avaliação permanente do sistema educacional formal, no
âmbito do qual relatórios de inspetores podem ser tão críticos a ponto de alguns deles terem sido mantidos secretos
pelo governo Sarkozy. Nesses relatórios, os conteúdos têm visivelmente uma interação com a produção sociológica
acadêmica. Além disso, observatórios universitários da educação, bem como associações de professores e pedagogos
são instrumentos de diálogo constante (nem sempre pacífico) entre a sociologia, as ciências da educação e os atores
concretos do sistema educacional formal francês”. (Oliveira, 2012, p. 10)
5- “Em minha pesquisa de pós-doutoramento realizada em 2008 em Marselha, eu confirmei a heterogeneidade de
alguns setores e a influência da lógica competitiva na produção da segregação escolar: o Lycée público mais prestigiado
da cidade, aquele que abre as maiores possibilidades de seleção para as Grandes Écoles, está num setor socialmente
heterogêneo da carte scolaire, mas sua média de alunos das classes média-alta e alta é bastante superior à média da
Academia Aix-Marseille (correspondente a uma secretaria estadual de educação). Esse fenômeno explica-se pelos
resultados do que os sociólogos chamam de estratégias de evitamento (ou fuga) dos estabelecimentos mal reputados
da Academia” (Oliveira, 2012, p. 15).
6-Boa parte deste tópico foi apresentado no III ENESEB - (Encontro Nacional sobre o ensino da Sociologia na
Educação Básica, 31 de maio a 03 de junho – Fortaleza(CE).
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O ensino de Sociologia pensado por três vias correlacionadas: a do Professor de Prática de
Ensino na faculdade, do Professor-orientador do estágio no colégio e a do Professor de
Sociologia no Ensino Básico
Walace Ferreira
Professor de Sociologia no CAp-UERJ
Doutorando em Sociologia no IESP/UERJ
[email protected]
Resumo:
Esta análise se constrói a partir de três experiências correlacionadas do autor: Como Professor das disciplinas
de Prática de Ensino em Ciências Sociais, na UERJ (2009 e 2010); como orientador de alunos de Licenciatura
em Sociologia nos anos em que lecionei Sociologia no Colégio Pedro II (2011 e 2012) e atualmente no CAPUERJ (2013); e a terceira refere-se a minha experiência docente nas diferentes redes de ensino. Procurarei
analisar as diferentes características de cada uma dessas funções assim como traçar uma linha relacional
entre elas. A Prática de Ensino é o momento no qual o educando encontrará a realidade da escola, apontando
para questões essenciais do estágio, tais como a observação, a relação entre teoria e prática e a liminaridade
entre as posições professor/aluno. Caberá, aqui, portanto, a contribuição sui generis e decisiva de dois
profissionais formadores: O Professor da Prática de Ensino, que atua na Faculdade e manuseia um precioso
arcabouço teórico; e o Professor-Orientador, que atua no colégio recebendo e trabalhando a realidade do
ensino com seus estagiários. Por fim, a minha experiência como docente do Ensino Básico sempre foi de
suma importância na maneira como me envolvi com as outras duas funções, permitindo profunda reflexão
acerca de acertos, erros e desafios futuros, os quais também devem ser abordados neste estudo em que o
ponto de partida será as minhas análises acumuladas durante esse processo de três vias.
Palavras-chave: Professor de Sociologia; Orientação de estágio; Prática de Ensino
Considerações Iniciais
Esta análise se constrói a partir de três experiências correlacionadas do autor, as quais se imbricam
e se complementam em seus objetivos. As três estão voltadas para o papel de se trabalhar uma
educação mais eficiente no que tange ao Ensino da Sociologia e todas as repercussões que isso terá
para os futuros docentes e para os alunos que terão contato com uma disciplina que se pretende
crítica e abrangente.
A primeira diz respeito ao trabalho que desempenhei por dois anos (2009 e 2010) como Professor
das disciplinas de Prática de Ensino Específicas em Ciências Sociais, na UERJ. Na UERJ têm-se
dois currículos em vigor, os quais envolvem a licenciatura específica das Ciências Sociais. No currículo
antigo, em vigor até 2005, a licenciatura tinha uma carga horária mais reduzida, e as disciplinas
práticas especificas eram três: Prática de Ensino Zero, oferecida pelo Instituto de Educação, onde
os alunos deveriam apenas conhecer o universo escolar e sua estrutura física, com carga horária de
estágio de 30 horas; e as Práticas de Ensino I e II, ambas com carga horária no colégio de 60 horas.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 156
Na Prática de Ensino I os alunos devem ir ao colégio e conhecer a estrutura da sala de aula, assistindo
disciplinas como Sociologia, História, Geografia e Filosofia; além disso devem treinar a prática
docente durante nossos encontros na própria UERJ. Na Prática II, repete-se o processo da Prática
I, contudo o aluno deve praticar uma aula teste de Sociologia na escola onde faz o estágio. Já no
currículo novo, em vigor desde 2006, a licenciatura ganhou enorme relevância, com várias disciplinas
de estágio exigidas aos alunos, muitas delas obrigatoriamente no CAp-Uerj. Compete ao Instituto
do qual fazia parte – o Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) – três Estágios
Supervisionados – que lecionava, cuja montagem de programa encontrava-se, à época, ainda em
fase de experiência, com resultados iniciais muito animadores (FERREIRA, 2010).
A segunda experiência, por sua vez, diz respeito ao meu trabalho de orientador de estudantes de
Licenciatura da Faculdade de Ciências Sociais da UFRJ, enquanto estive como Professor de Sociologia
do Colégio Pedro II, durante o ano de 2012 e atualmente (2013) como Professor do CAp-UERJ,
orientando estagiários de Estágio Supervisionado da Faculdade de Ciências Sociais da UERJ.
Por sua vez, a terceira experiência relatada envolve as experiências que tenho tido na docência de
Sociologia no Ensino Básico, a saber, por dois anos (2010 e 2011) no Ensino Médio de um tradicional
colégio particular do Rio de Janeiro, o Santa Mônica Centro Educacional (SMCE); outros dois anos
no Colégio Pedro II, Campus Tijuca II (2011 e 2012); e atualmente no Colégio de Aplicação da
UERJ (O CAp-UERJ), desde o início de 2013. O foco, no entanto, se dará no trabalho desenvolvido
tanto no Colégio Pedro II como no CAp-UERJ, situações em que vivenciei a formação de estagiários
de licenciatura, e cuja análise entrelaça-se com as duas outras experiências analisadas neste artigo.
Algumas características da Prática de Ensino
Como salienta Handfas e Teixeira (2007) a Prática de Ensino aponta para questões essenciais do
estágio, tais como a observação, a relação entre teoria e prática e como o estagiário fica numa
condição de liminaridade entre as posições professor/aluno. É uma transição ambígua em que se
opera uma transformação. Nesse processo, várias questões devem ser atentamente destacadas:
“(...) a formação do professor deve contemplar o processo escolar como uma
totalidade complexa e repleta de contradições. Rejeita-se aqui tanto a idéia de que
a formação inicial do professor seja meramente técnica quanto a idéia de que
constitui-se em um ato espontâneo ou improvisado. Ao contrário, reafirma-se a
concepção de que a formação e a prática pedagógica devem englobar a dimensão
do trabalho educacional e científico do professor, o que implica refletir sobre as
questões referentes ao ensino da Sociologia no ensino médio, tendo como foco a
escola – ambiente complexo e multifacetado – e a interação entre seus agentes em
seus variados matizes” (HANDFAS; TEIXEIRA, 2007, p. 132).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 157
Seguindo essa referência, normalmente boa parte dos estagiários que recebemos nos colégios ou
que enviamos a alguma escola enquanto Professores na Licenciatura de Prática de Ensino relata
suas dúvidas e angústias anteriores ao estágio. Falam da curiosidade de saber como se realiza uma
aula no Ensino Básico1, do receio de não saber o que dizer aos alunos quando algo lhe for perguntado,
das dúvidas acerca de como se comportar dentro de sala, da roupa adequada a se vestir, dentre
outros aspectos que suscitam indagações sobre um processo complexo que envolverá teoria e prática.
Sabendo, ainda, como no caso da Sociologia, que se terá um teste de aula, ritual de avaliação pelo
qual todos estagiários têm que passar para obter a nota de aprovação da disciplina, o drama só
costuma aumentar. Relatam sobre o desafio de se fazer algo que simultaneamente envolva
a linguagem da disciplina - reconhecidamente rebuscada - e que os alunos possam compreender
com facilidade. Aprender a ser didático, portanto, é um desafio bastante inquietante.
O momento da Prática de Ensino, em complementaridade ao currículo da Licenciatura, constitui-se
na parte decisiva da formação do futuro professor, independente de qual seja a área do conhecimento.
É nesta disciplina que o educando vivenciará o complexo mundo da escola. Caberá, aqui, portanto,
a contribuição sui generis e decisiva de dois profissionais formadores: O Professor da Prática de
Ensino, que atua na Faculdade e manuseia um precioso arcabouço teórico; e o Professor-Orientador,
que atua no colégio recebendo e trabalhando a realidade do ensino com o seu estagiário.
Na formação da Prática de Ensino, aspecto fundamental a ser ensinado consiste na importância do
planejamento, seja na preparação de um plano de curso, seja na elaboração de um bom plano de
aula. O planejamento é o caminho para se fazer o melhor possível, exigindo organização,
sistematização, previsão, decisão e outros aspectos na pretensão de garantir a eficiência e eficácia
de uma ação. Como salienta LEAL (2005):
“O planejamento de ensino tem características que lhes são próprias, já que lida
com os sujeitos aprendentes, em processo de formação humana. Para tal
empreendimento, o professor realiza passos que se complementam e se interpenetram
na ação didático-pedagógica. Decidir, prever, selecionar, escolher, organizar, refazer,
redimensionar, refletir sobre o processo antes, durante e depois da ação concluída.
O pensar, a longo prazo, está presente na ação do professor reflexivo. Planejar,
então, seria a previsão sobre o que irá acontecer, um processo de reflexão sobre a
prática docente, sobre seus objetivos, sobre o que está acontecendo, sobre o que
aconteceu. Nesse sentido, planejar requer uma atitude científica do fazer didáticopedagógico” (LEAL, 2005, p. 02).
No dia em que o Professor deixar de replanejar uma aula ou o que será feito durante um ano letivo,
pode estar se aproximando o perigo da estagnação profissional-intelectual. É quando pode estar
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 158
acabando a inspiração, elemento fundamental que foi destacado por Weber na “Ciência como Vocação”
(2006); e junto se vai todo um conjunto de atualizações ao qual o professor de Sociologia - e
também de outras disciplinas - deve estar constantemente submetido com risco de ficar defasado.
Questões acerca do ensino da Sociologia no Ensino Básico
Dentre inúmeras questões relevantes, uma primeira problematização trata-se do fato de estarmos,
na maioria das vezes, nos preparando para lidar com adolescentes. Vamos lidar com pessoas inseridas
numa difícil fase de transição entre a infância e a juventude, o que significa encararmos indivíduos
cujos desejos podem ser vários outros que não o de estar em uma sala de aula. Envolvemo-nos com
adolescentes que trazem para o universo escolar suas angústias, dúvidas e problemas familiares, os
quais estão atrelados às condições socioeconômicas e/ou emocionais que lhes envolvem. Mais uma
vez, saber o que falar com cada um deles pode ser decisivo na escolha que farão frente às suas
inúmeras (ou talvez escassas) oportunidades de vida.
Nesse sentido, seria pertinente indagarmos o que tem um professor de Sociologia a ver com questões
de ordem pessoal dos estudantes? Lembro-me de um aluno da UERJ que estagiava no Colégio
Estadual João Alfredo (localizado na Boulevard 28 de Setembro – Vila Isabel), em novembro de
2008, período em que houve um grave confronto entre policiais e traficantes no Morro dos Macacos2,
neste mesmo bairro. Segundo esse estagiário, a aula a que observava havia sido programada para
um determinado tema, mas o interesse dos alunos moradores da comunidade era falar das questões
que envolviam diretamente o que estava ocorrendo em sua vizinhança. Como o tema da violência
urbana é sociológico, este acabou sendo o tema da aula, numa situação em que a professora deixou
de lado o que havia programado e enfrentou o testemunho de jovens que estavam vivendo na pele a
realidade muitas vezes tratada apenas nos livros. Portanto, fica a questão: Sociologia é para se
passar “verdades prontas”, ou para se construir “interpretações” de mundo, inclusive dando voz a
nossos alunos? (FERREIRA, 2010).
Em relação ao trato dos alunos e como desenvolver a Sociologia de modo a fazer as melhores
escolhas pertinentes a cada momento, não podemos deixar de mencionar a contribuição teórica de
Bourdieu, pensador que competentemente tratou das desigualdades escolares ao relacioná-las com
tipos de “capitais” que fundamentam o sujeito no mundo escolar.
Segundo Bourdieu (1998), influenciam diretamente no desenvolvimento escolar: o capital econômico,
relacionado aos bens e posses pertencentes ao indivíduo e sua família, uma vez que, no capitalismo,
o dinheiro costuma ser decisivo na ultrapassagem de fronteiras de oportunidades; o capital social,
definido como o conjunto de relacionamentos sociais influentes, que definem, por exemplo, o colégio
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 159
onde o sujeito vai estudar, assim como as oportunidades de estágio e conhecimento acerca de diferentes
profissões, apreendidas a partir da rede de contatos que cercam esse sujeito; e por fim, o capital
cultural, que se refere aos conhecimentos de idiomas, cinema, teatro, viagens, enfim, aspectos que
facilitam o aprendizado escolar na medida em que funcionariam como uma ponte entre o mundo
familiar e a cultura escolar.
A partir de Bourdieu, procuro, muitas vezes, tanto nas aulas elaboradas durante a experiência docente
da Prática de Ensino, como na relação com os estagiários, tratar desses aspectos. Afinal, a Prática de
Ensino também deve servir para conversas entre o Professor-orientador e o seu Estagiário, de modo
que procurem observar na prática algumas das teorias estudadas, contribuindo para que Estagiário
e Professor tenham uma percepção mais crítica sobre o papel que desempenham na educação, e,
sobretudo, que cresçam juntos nos labirintos da profissão.
O ensino da Sociologia na lei e na teoria
As Orientações Curriculares para o Ensino Médio (2006), no seu volume 3 (Ciências Humanas e
suas Tecnologias), na parte específica de Sociologia, nos chama a atenção para o fato de que a
Sociologia não chegou a um conjunto mínimo de conteúdos sobre os quais haja unanimidade. Há, ao
contrário, uma série de divergências sobre seus tópicos, perspectivas, ou ainda, se ela deveria ou
não estar inserida no contexto do Ensino Médio. Essa última questão, no entanto, foi superada do
ponto de vista legal com a obrigatoriedade da Sociologia, assim como a Filosofia, em todas as séries
do ensino médio, tanto nas escolas da rede pública como da rede privada, seguindo determinação da
Lei Federal nº 11.684 sancionada em 02/06/08, a qual alterou a Lei Federal 9.394/96, que estabelece
as diretrizes e bases para a educação nacional.
Essa aparente desvantagem da Sociologia em relação a outras disciplinas escolares pode, no entanto,
se revelar uma vantagem. Afinal, como nos diz as Orientações Curriculares:
“É certo que pode trazer um questionamento da parte de outros professores e
mesmo alunos, ferindo sua legitimidade já tão precária diante do currículo, mas
também é certo que, pelas mãos das recentes e predominantes concepções
pedagógicas – os construtivismos, por exemplo -, há um questionamento e uma
revisão da organização curricular de todas as outras disciplinas” (2006, p. 116).
Isso significa dizer, de alguma maneira, que a Sociologia fica “à vontade”, favorecendo a liberalidade
da escola e/ou do professor no sentido de uma liberdade na definição do que será abordado em sala
de aula. Ou, ao contrário, tamanha liberdade pode vir a nos angustiar diante de possíveis arbitrariedades
nas escolhas realizadas. As próprias Orientações Curriculares propõem uma articulação de três
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 160
rotas de abordagem para a Sociologia no Ensino Médio, as quais até podem nos iluminar a estrada,
mas não o bastante para fixar o que efetivamente deveremos fazer. Propõe-se, assim, uma articulação
entre conceitos, teorias e temas.
Os conceitos são aqueles elementos do discurso científico que se referem à realidade concreta,
porém pensados do ponto de vista abstrato, e que devem ser tratados com cuidado em sala de aula
na medida em que o discurso sociológico merece um tratamento especial diante dos alunos. Ou seja,
não se está falando de qualquer coisa tal como o discurso jornalístico ou o senso comum fazem.
Trabalhar com conceitos implica em articulá-los com os temas a partir dos quais autores clássicos os
criaram. Ou seja, “solidariedade mecânica e orgânica” em Durkheim, “alienação” em Marx, ou
“ação social” em Weber, surgiram de um contexto histórico específico, e é preciso contextualizar o
conceito para que sua história e seu sentido próprio possam ser entendidos pelos alunos não como
uma palavra mágica, mas como um elemento do conhecimento racional que permite melhor
entendimento da realidade social.
Já o trato de teorias, como uma análise dialética (Marx), funcionalista (Durkheim) e compreensiva
(Weber), que costumam aparecer em programas de Secretarias Estaduais de Educação, impõem a
difícil necessidade de dominá-las bem, além do que o professor deve enxergá-las como certos “modelos
explicativos” da realidade, o que, a meu ver, dificulta o trabalho sociológico no Ensino Médio. Vejo
que meus alunos secundaristas têm muita dificuldade na compreensão tanto das teorias como dos
conceitos. É a parte mais defeituosa no momento das provas. Essa é uma realidade a qual, nós,
professores de Sociologia, devemos estar atentos durante nossa formação e no momento em que
pretendermos levar teorias e conceitos aos nossos alunos.
Por fim, as Orientações Curriculares sugerem o trato dos temas como sendo uma das formas de
melhor atrair os alunos para a aula de Sociologia, além do que representam o objeto de estudo mais
visível aos nossos olhos, já que se encontram na sociedade da qual fazemos parte. Afinal, lidamos
com a própria realidade e seus mais variados espectros (violência urbana, ações afirmativas, sistemas
eleitorais, cultura brasileira, globalização, dentre inúmeros outros). Apesar de atraentes, os temas
podem nos levar à perigosa armadilha de reduzirmos a Sociologia ao que chamamos informalmente
de “conversa de botequim”. É um cuidado a ser tomado.
Ora, a formação dos nossos professores de Ensino Médio deve trazer consigo a observação dessas
indicações das Orientações Curriculares, mas nenhuma é mais importante que a necessidade de
procurarmos articular temas, teorias e conceitos. Particularmente, recomendo que os alunos que
oriento escolham, para suas aulas testes, um determinado tema de relevância social e o trabalhe
articulando-o com os conceitos e teorias que lhe dão sentido e densidade sociológica.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 161
Mas devo chamar atenção que tanto o Colégio Pedro II como o CAp-UERJ possuem alunos
consideravelmente intelectualizados, de modo que esse trabalho mais denso e articulado da Sociologia
se fez e se faz possível nas minhas experiências.
A importância dos recursos didáticos – o exemplo de um estagiário no Colégio Pedro II
Ao longo do segundo ano de docência no Colégio Pedro II (2012), tive um estagiário, Rodrigo
Rocha Otoni Guedes3, com quem desenvolvi um trabalho bastante frutífero, de modo a usá-lo como
referência neste artigo. Desde o início, Rodrigo percebeu algo que defendo como importante técnica
no ensino da Sociologia, que trata de recursos didáticos variados4, tornando as aulas expositivas
mais atraentes. Ele evidenciou como isso surtiu bom efeito para todas as séries, mas sobretudo no
caso do Oitavo Ano do Ensino Fundamental e do PROEJA em que não existe livro e os recursos
didáticos usados foram constantemente recriados. Essa percepção foi decisiva na sua escolha de
preparar vários desses materiais para a sua aula teste, inclusive.
Sua regência avaliativa aconteceu numa turma de Primeira Série do Ensino Médio, na presença da
sua Professora de Prática de Ensino em Ciências Sociais da UFRJ, tendo merecidamente recebido
grau 10. O tema da sua aula teste, decidida e trabalhada em várias reuniões comigo, no papel de
professor-orientador, foi “Desigualdade e Mobilidade Social - a ascensão da classe C”. Para a
aula, o Estagiário preparou um pequeno vídeo disponível no Youtube, referente a uma propaganda
do governo a respeito da ascensão da Nova Classe Média5, uma tabela com algumas informações
sobre o perfil socioeconômico da nova classe média – mostrada no data show – distribuiu aos alunos
o depoimento crítico de um estudante que não se identifica como fazendo parte da Classe “C”6,
apesar de sua renda encaixá-lo nessa classe segundo o governo, e, por fim, utilizou um texto didático
que resumia toda a sua aula, cujo título era “Desigualdade e mobilidade social – a ascensão da
‘Classe C’ no Brasil atual”. Sua conclusão era crítica e contestadora em relação à propaganda oficial
do governo, mostrando que existem outras maneiras mais complexas de se classificar as classes
sociais segundo a Sociologia e de incluir alguém na denominação de “classe média”.
Ainda sobre a metodologia didática nas aulas, defendo que exercícios com acompanhamento do
Professor em sala de aula muitas vezes contribui para o entrosamento dos alunos junto à reflexão
proposta pelo ensino de Sociologia, que não se baseia apenas na transmissão de conteúdos, mas na
preparação do aluno para que ele aprenda a pensar, interpretar, criticar e compreender as questões
sociais. Não se trata de o Professor entregar a atividade aos alunos tão-somente, mas, sobretudo, de
acompanhar o trabalho que está sendo elaborado, contribuindo para que todos os alunos construam
o conhecimento em comum. Se este acompanhamento e participação do Professor não ocorrerem,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 162
perde-se o sentido pedagógico da atividade. O Estagiário teve algumas oportunidades em trabalhar
nesse auxílio aos alunos nas vezes em que desenvolvemos atividades em sala de aula.
Rodrigo ainda me relatou ter observado com atenção a metodologia usada nos instrumentos de
avaliação. Houve uma afinidade na opinião de que as provas não deveriam ser elaboradas com o
intuito de reprodução de conhecimento previamente decorado, numa tendência que já existe no
Departamento de Sociologia do CPII. Apoiamos uma didática em que a prova se transforma num
momento criativo de construção do saber com vista à temática trabalhada naquele período, procurando
apresentar questões que exigiam as mesmas competências estimuladas no trabalho em sala de aula,
em geral trazendo fragmentos de textos, reportagens, contos, imagens, charges, tiras e dados
estatísticos, para serem relacionadas aos conteúdos abordados.
Propõem-se, nesse sentido, interpretações, análises críticas, articulação de dados e fenômenos que
envolvam conceitos, teorias e temas importantes das Ciências Sociais. Um exemplo que elucida o
que estamos falando foi uma prova de Oitavo Ano, cuja questão abordava a temática da publicidade
usada pela Sociedade de Consumo, e foi pedido que os alunos criassem uma propaganda - desenhada
ou escrita -, identificando-a segundo os recursos publicitários estudados (uso de antíteses, estereótipos,
linguagem testemunhal, criação de ideias ou situações idealizadas).
Dizia aos meus alunos de Prática de Ensino da Uerj e aos estagiários que acompanhei no CPII, e
agora no CAp-UERJ, que o jovem do Ensino Médio apresenta facilidade com o aprendizado receptivo,
aquele formado pela recepção visual, auditiva ou de leitura fácil e curiosa, até mesmo pela proximidade
que têm com os meios tecnológicos que estão à nossa volta. Daí a relevância das escolhas dos
recursos didáticos. No entanto, o material didático não pode ser a aula em si nem algo incompreensível.
Ele tem que ser apenas um (bom) instrumento de atração da aula, ajudando os estudantes a terem
fixados os conteúdos propostos. Precisamos aprender a lidar com as tecnologias que nos são dispostas,
principalmente quando a escola oferecer esses recursos.
Considerações finais
Refletindo, o enfrentamento da prática docente pode ser equiparado aos dois tipos de ética
mencionados por Weber na sua “Política como Vocação”. A ética da convicção, pensada como os
sonhos do professor, seus planos e perspectivas acerca do melhor a se fazer; e a ética da
responsabilidade, voltada para a realidade enfrentada em cada situação específica – a qual muitas
vezes, no Brasil, envolve uma série de desafios decorrentes das limitações financeiras e infra-estruturais
vividas por diversas escolas em toda parte do país, independente de região ou estado.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 163
A saída, contudo, deve ser a doação e o empenho para que o abatimento não tome conta de um
trabalho que precisa ser vocacionado e freqüentemente reconfigurado, sobretudo quando temos que
acompanhar as novas tecnologias que se fazem presente no universo dos estudantes e também na
educação moderna; ou a atemporal necessidade da criatividade na formulação de aulas, preparação
de atividades lúdicas e recursos didáticos, tal como assisti na experiência de um colega que ensinou
ideologia em Marx tomando como referência um bolo e sua cobertura, bolo esse levado para a sala
de aula.
Dessa maneira, permitir ao aluno a sensação de que o professor está empenhado na sua atividade e
que a interpretação dos conteúdos trabalhados deve ser reconstruída na prática docente, pode
colaborar para romper muitas desconfianças em relação à Sociologia e torná-la atraente e importante
na formação educacional dos estudantes – seja os da sala de aula, seja os nossos futuros docentes.
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NOTAS
1 A expressão Educação Básica, no Brasil, é usada para se referir ao conjunto de segmentos que abrange a Educação
Infantil, o Ensino Fundamental e o Ensino Médio. A Sociologia aparece como disciplina obrigatória no Ensino
Médio, assim como a Filosofia, seguindo determinação da Lei Federal nº 11.684 sancionada em 02/06/08, a qual
alterou a Lei Federal 9.394/96, que estabelece as diretrizes e bases para a educação nacional, determinando a
obrigatoriedade destas disciplinas em todas as séries do ensino médio, tanto nas escolas da rede pública como da
rede privada. Acontece que no Pedro II – colégio onde ocorreu a experiência aqui analisada - a Sociologia não está
apenas no Ensino Médio, mas também no sétimo ano do Ensino Fundamental com o nome de Cidadania e no Oitavo
e Nono ano do Ensino Fundamental com o nome de Ciências Sociais. Já no CAp-UERJ a Sociologia aparece inserida
apenas no currículo do Ensino Médio.
2 O Morro dos Macacos foi pacificado pela Polícia de Unidade Pacificadora (UPP) em 2010.
3 Este processo de estágio durou todo o ano de 2012 e início de 2013 - já que o ano letivo foi prorrogado devido a
greve que ocorreu em meados do ano passado. O estagiário me acompanhou na na Oitava Série do Ensino
Fundamental, no Primeiro Ano do Ensino Médio e no Terceiro Ano do Ensino Médio (Modalidade PROEJA).
Presenciou e ajudou na elaboração de aulas, na elaboração de textos didáticos, compartilhou a proposta de recursos
pedagógicos, auxiliou alunos em suas dúvidas, lecionou algumas vezes, mesmo antes de sua aula teste. Agradeço
imensamente ao Rodrigo, que gentilmente me autorizou a usar nossa experiência de estágio supervisionado nas
análises desenvolvidas neste artigo.
4 Ministrando Sociologia no Colégio Pedro II, trabalha-se, no Ensino Médio, com o livro didático adotado pelo
Departamento de Sociologia, Sociologia para o Ensino Médio (2010), de Nelson Dacio Tomazi, estimulando a
leitura de seus capítulos pelos alunos e propondo debates em sala de aula. Além do livro didático, muitas vezes
entendido como incompleto no sentido de aulas mais aprofundadas, recorre-se à textos complementares preparados
pelos próprios professores ou retirados de alguma fonte de qualidade (revistas acadêmicas, por exemplo). Outros
elementos bastante explorados como recursos didáticos consistem na utilização de filmes, artigos de revistas e
jornais, músicas, textos literários, etc. Tais elementos, além de dinamizar as aulas, tornando-as mais atrativas,
ajudam a aproximação dos conteúdos ao cotidiano vivido e às diferentes manifestações culturais e artísticas que
fazem parte do universo dos estudantes. O mesmo tenho feito no CAp-UERJ, onde o livro didático adotado é o
mesmo.
5 O vídeo pode ser encontrado no Youtube sob o título A Nova Classe Média (Vozes da Classe Média). Disponível
em: <http://www.youtube.com/watch?v=u2H8H1ruD5U>. Acesso em: 29 abr. 2013.6 Este texto pode ser encontrado
na internet, sob o título “De repente, Classe C”. Disponível em: <http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/54594de-repente-classe-c.shtml>. Acesso em: 29 abr. 2013.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 165
Perfil dos professores de Sociologia na região metropolitana de Goiânia-Goiás: aspectos
pedagógicos
Marco Aurélio Pedrosa de Melo
Mestre em Sociologia (UFG)
Docente na Universidade Estadual de Goiás –
Unidade Universitária de Goiás.
[email protected]
Resumo
O perfil do professor de Sociologia na educação básica é uma variável que altera conforme períodos de
mudanças da prática pedagógica, assim continuando as discussões realizadas desde 2010, atualizamos as
informações em janeiro de 2013 quando coletamos dados sobre a condição da disciplina e a situação da
educação pública goiana de modo geral puderam ser coletadas de forma direta e com maior confiabilidade.
No intuito de discutir sobre a relação da formação do professor de Sociologia e precariedade na sua atuação
em sala de aula no ensino da disciplina são focos onde podemos aprofundar na série de levantamentos
qualitativos-quantitativos para entendermos os aspectos pedagógicos da disciplina no ensino médio em GoiâniaGoiás.
Palavra-chave: precariedade do trabalho; sociologia; professor do ensino médio
Introdução
A Sociologia caminha nos estudos sobre Educação ou relativos ao universo do trabalho educacional,
especificamente dos professores da educação básica e superior na área das Ciências Socais
(HADNFAS e OLIVEIRA, 2009). Ao mesmo tempo em que se tenta determinar quais as práticas
pedagógicas que estão sofrendo mudanças ou permanecem sem alterações, existe um movimento
de transformação das ações dos professores.
Neste trabalho iremos observar algumas considerações que temos sobre a posição pedagógica dos
docentes da disciplina de Sociologia na região metropolitana de Goiânia-Goiás, além de abordamos
o perfil das profissionais e sua precarização na jornada de trabalho e serviço prestado.
Este trabalho é uma continuação de outras discussões levantadas em pesquisa realizada desde 2010
e atualizamos as informações em janeiro de 2013 na “I Formação dos professores da Subsecretaria
Regional de Educação de Goiás de Goiânia”, onde foi discutido a implantação do currículo de
Sociologia para o Ensino Médio para toda rede pública estadual. Na oportunidade pude ter conversas
com profissionais que foram colegas de graduação, pós-graduação e colegas de profissão, assim as
informações sobre a condição da disciplina e a situação da educação pública goiana de modo geral
puderam ser coletadas de forma direta e com maior confiabilidade.
Neste intuito de discutir sobre a relação da formação do professor de Sociologia e precariedade na
sua atuação em sala de aula no ensino da disciplina são focos onde podemos aprofundar na série de
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 166
levantamentos qualitativos-quantitativos. A técnica utilizada como instrumento foi o questionário
conforme Babbie (1997) e Severino (2007) tem por finalidade apresentar aqueles pontos que melhor
delineiam o objeto de estudo, é bom lembrar que o questionário pode passar por ampliações, revisões
ou mudanças na forma de perguntar, porém o objetivo do questionário pode permanecer estático a
fim de descobrimos se o item e as variáveis apresentadas como hipóteses de explicação são realmente
verdadeiras para o grupo. Tal tarefa foi possível por se ter metropolitana de Goiânia-Goiás um
número considerável de professoras da área formados em Ciências Sociais ou Sociologia que
participam de eventos específicos para este público, outro fator foi a base do questionário, que
trouxe questionamentos sistematicamente averiguados de forma continua no tempo e espaço. Ao
procurarmos saber sobre o perfil do professor que ministra a disciplina Sociologia, a ferramenta que
utilizamos para foi um questionário que de acordo com Severino (2007), as questões sistematizadas
e articuladas levantam informações sobre os sujeitos, e nesta orientação buscamos respostas em
situações predefinidas quanto em respostas com as próprias palavras do professor, a partir de sua
elaboração pessoal.
Os professores do Grupo
No grupo em que foi feito o levantamento temo três intervalos de classe com a variável idade, temos
um terço para cada seguimento na faixa de 20, 30 e 40 anos, interessante é a presença de 83,3% de
mulheres e 16,7% de homens. Alguns aspectos sobre o gênero nesta categoria que estudo foram
visto em trabalho apresentado no IV Seminário de Trabalho e Gênero (MELO, 2012)e agora foram
ampliados com novos dados sobre a importância da interdisciplinaridade para as aulas em sala e a
considerando uma parte do entendimento sobre um referencial teórico pedagógico de apoio à instrução
de conteúdos na perspectiva sociologia de maneiras diversificas. Assim, preocupa saber se existe
um trabalho continuo que aponta indicativos neste artigo para manusear os levantamentos que
quando observados e contextualizados expressam possibilidades de um melhor aprendizado para os
estudantes da educação básica e orientam/chocam com o preparo acadêmico e prático por parte dos
professores.
Ainda sobre o perfil dos professores observados no grupo temos 18 indivíduos que em sua maioria
se declaram pardos (44,4%); brancos (38,9%) e pretos (16,7%), sendo que o estado civil no grupo
apresentam união estável com 61,1% de casados, 27,8% solteiros e 11,1% separados. Estas duas
variáveis somada a variável religião , quando cruzadas com informações sobre atividades e práticas
pedagógicas na disciplina Sociologia, não se apresentam com fator de interferências ou inspiração
para o trabalho docente, ou seja, o que apontaremos adiante será concentrado nas perspectivas de
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 167
um desenvolvimento centrados em técnicas e preocupações na regência dos conteúdos na área das
ciências sociais conforme o Currículo Referência da Rede Estadual de Educação de Goiás de 2013,
a diferença para as Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da área de Sociologia produzido
em 2010, além da seleção de conteúdos a bimestralização são fatores de controle do trabalho e
desenvolvimento e aplicação dos conteúdos listados.
Ao analisarmos os professores em relação a sua lotação a maioria conforme atua em unidades
educacionais públicas (83,3%), o que destacamos aqui é a profissionalização da docência, pois com
o tempo tanto as instituições públicas e particulares tem em suas estruturas docentes formados na
área. Assim a caracterização do tempo é domínio da área de conhecimento dão à divisão social do
trabalho sua importância na educação (ANGELIN, 2010).
Destacamos que 83,33% dos entrevistados não tem outra atividade remunerada, além do magistério,
assim a residência e a locomoção do trabalho são próximas do local de serviço conforme.
A maioria dos professores recebem uma remuneração na faixa de R$2.000,00 (conforme Tabela 1),
o que demonstra uma carga horária de 30 horas-semanais com professores pós-graduados e de
carreira no magistério. A faixa inferior são de professores sem licenciatura ou com graduação sem
aperfeiçoamento, e a faixa superior de acima de R$3.000,00 de remuneração além de serem pós
graduados, possuem outra função na unidade educacional, além de atuarem em mais de uma lotação,
entre estes encontramos um docente com 5e 7 locais de trabalho (ver Tabela 2).
Tabela 1
Faixa de Remuneração do docente
Renda/remuneração bruta em R$
%
800-1.800
23,53
2.017-2.700
47,06
3.000-4.000
29,41
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Tabela 2
Unidades Educacionais onde Trabalha
Quantidade de escolas em que trabalha
1
2
5
7
Total
%
61,11
27,78
5,56
5,56
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 168
Fazemos parênteses para explicar algumas situações sobre a remuneração do docente em Goiás,
com um reforma aprovada na Assembleia Legislativa no final de 2012, sem aprovação da categoria
e sindicatos o governo do partido do PSDB incorporou gratificações para forçar o pagamento do
piso da lei federal. Outra situação que é vantagem em
Goiás é o cumprimento da LDB com o pagamento do planejamento de 1/3 da carga horária, assim
30h/s 40h/s e 60h/s, são em sala de aulas respectivamente 21, 28 e 42 horas em sala de aula (ver
Tabela 3 e 4).
Tabela 3
Carga-horária Semanal do Docente
Carga horária de trabalho semanal em sala de aula %
14-20
16,67
21-25
22,22
28-40
33,33
43-60
27,78
Total
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Tabela 4
Turma com 01 hora-aula corresponde
Quantidade de turmas em que leciona %
6 a 16
47,06
20 a 26
11,76
28 a 35
35,3
42
5,88
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
No Gráfico 1 que temos na mensuração é o desdobramento do professor formado ou atuante na
regência, está situação é reconte em todas as vezes que foi feito o levantamento, porém ressaltamos
a profissionalização como sendo um caminho presente no decorrer do tempo. Outra situação que
contribui para esta situação no levantamento é que a maioria (55,56%) tem bacharel em Ciências
Sociais e no total 66,67% tem licenciatura em Ciências Sociais, o restante possui licenciatura em
Sociologia, Pedagogia e História.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 169
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Nos levantamentos feitos anteriormente (MELO, 2011a, 2001b, 2011c) quando analisados a pósgraduação dos professores poucos tem formação específica na área de Sociologia, diferente dos
dados atuais. Porém alguns questionamentos que apareceram antes ainda permanecem preocupantes
e se expressam nos dados atuais quanto a dificuldade dos professores em ministrarem e produzirem
um discurso na perspectiva sociológica para os estudantes da educação básica. Ou seja os problemas
de domínio de conteúdos, temas e conceitos básicos não são o único empecilho para o professor de
Sociologia, mas o tratamento e a forma pela qual se deve tratar a informação e os conteúdos que são
trabalhados na sala de aula necessitam de atualização e variedade de dinâmicas para atividades e
avaliação do que foi aprendido.
Preparativos de inserção do professor de Sociologia e a prática pedagógica
Ao falarmos das práticas e do professor de Sociologia, podemos fazer um levantamento sobre a
formação anterior deste docente. Assim, ao perguntamos sobre a Licenciatura temos as indagações
que ficam registradas, pois a maioria respondeu que não foi suficiente para preparar para o exercício
da docência (833,3%). Ao mesmo tempo os entrevistados foram capazes de indicar o que contribui
para uma melhor preparação na Licenciatura (ver Tabela 5).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 170
Tabela 5
Contribuições da Licenciatura
Maior contribuição da Licenciatura para a prática docente
Referencial teórico
Estágio
Didática
Plano de aula
Papel da educação e da escola
Carreira Docente
Total
%
35,29
23,53
11,76
11,76
11,76
5,88
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Verificamos que a carga teórica é algo que contribui na formação porém será uma reclamação
quando cruzado com outras informações, como excesso de literatura apontado na Tabela 6. O que
é perceptível é que as categorias classificadas acima mostram a preocupação em elencarem aquilo
que contribui para prática do trabalho docente, assim estágio, didática e plano de aula são um peso
para os docente. Porém a importância da educação e da escola na sociedade e a carreira docente não
são coisas que foram inspiração maior para os docentes aturarem no mercado.
Tabela 6
Contradições da Licenciatura
Falha na Licenciatura no preparo à prática docente
Vivência prática em sala de aula
Didática e metodologias
Docência limitada
Planejamento de aulas
Excesso de literatura
Burocracia
Total
%
58,82
11,76
11,76
5,88
5,88
5,88
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Se o lado bom é a se pensar, quando é explicito o pensamento sobre o que a Licenciatura falha
na formação destes docentes se tem na Tabela 8 a preocupação com o preparo para profissão no dia
a dia, ou seja, a prática. Porém algumas coisas que são elogiadas não pesam negativamente como a
burocracia e planejamento ao fazer os planos de aula, ou o estudo literário maior (ver Tabela 7). O
que é interessante é que para 55,56% dos entrevistados que possuem Pós-graduação entendem que
o Aprofundamento Teórico contribuiu para prática docente.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 171
Tabela 7
Contribuições para a docência
Que tipos de eventos contribuem para o seu trabalho?
Palestras
Trocar experiências de projetos realizado com alunos
Workshop/oficinas com TICs (S,I,V)
Oficina
Estudos dirigidos com conteúdos e temas de Sociologia
Evento com Interdisciplinaridade
Total
%
40
26,67
13,33
6,67
6,67
6,67
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Professor de Sociologia e a prática pedagógica
Antes de mais nada, vamos elencar a forma que os professores pesquisados conduzem sua regência
em sala de aula conforme a Tabela 8.
Tabela 8
Formas de condução da aula
Como a disciplina é ministrada?
Teoria e Práticas Diversificadas
Teoria
Pesquisa, dados e cotidiano
NTICs, apresentações e textos
Práticas Diversificadas
Total
%
56,25
12,5
12,5
12,5
6,25
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Nas informações sempre temos uma mistura de aspectos teóricos inseridos em práticas diversificadas
ou simplesmente em textos reflexivos, porém o leque de escolha ou mix de atividades é variado e de
certa forma dinâmico, porém, saber se estas atividades já não estão superadas ou defasadas depende
de uma observação in loco tanto no planejamento do professor quanto na própria sala de aula.
Lembramos que a partir do novo secretário da educação em Goiás, foi implantado um reforma
estrutural, pedagógica e administrativa onde princípios neoliberais e com consultoria privada
esquematizaram a reforma intitulada “Pacto pela educação”, um pacote de medidas onde de acordo
com o artigo “A educação fabril de Goiás” tem todos os traços de uma gestão centrada na meritocracia
e cobrança por meio burocrático das atividades pedagógicas. Tais pontuações indicam o que os
professores responderam conforme as próximas tabelas que mostram as dificuldades e precariedades
na profissão.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 172
As informações coletadas ao compararmos com outros levantamentos expostos em outros trabalhos
sobre esta pesquisa, ainda se encontra a continuidade de algumas situações sobre a regência e o
trabalho na sala de aula. Pois, percebemos que os professores encontram dificuldade no acesso a
metodologias diversificadas para o ensino-aprendizagem da disciplina; a necessidade de mais
informações para os docentes sobre assuntos da área; a procura por troca de experiências bem
sucedidas na transmissão dos conhecimentos na perspectiva sociológica; as adversidades do trabalho
como desinteresse do aluno; a falta de estrutura das unidades escolares e desmotivação do professor;
e a falta de um livro didático que dê subsídios para o estudante e promova uma interação com o
professor de maneira prática entre outras informações. (Ver Tabelas 9. 10 e 11)
Os professores entrevistados em suas respostas sobre as dificuldades e empecilhos para o ensino da
disciplina, traz um desvendamento apresentado por Fraga e Bastos (2009) que diz
Pensar o ensino de sociologia de maneira mais abrangente é pensar na infraestura,
nos recursos disponíveis, nos investimentos direcionados à educação por parte do
Estado, no salário pago aos professores e na consequente necessidade trabalhar
em diferentes escolas, podendo dar menos atenção a cada uma delas em separado.
Mas é também e talvez principalmente, pensar na natureza didático-pedagógica da
questão. (FRAGA, BASTOS, 2009, p. 178)
Tabela 9
Obstáculos a docência
Qual o maior obstáculo para seu planejamento pedagógico?
Tempo
Falta de Material
Estrutura física
Total
%
62,5
31,25
6,25
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Estas situações foram presentes nos levantamentos e entendemos que a precarização do trabalho na
educação passa pelo desdobramento do quantitativo de escolas, aulas e turmas que as professoras
devem cumprir para adquirir um salário satisfatório, porém tanto sua posição profissional como o
papel docente que desempenha dependem do domínio do referencial teórico e de diversificação na
forma de ministrar os conteúdos em sala para os estudantes, como é apontado adiante.
Fraga e Bastos (2009) questionam a importância da Sociologia para o estudante, e uma das conclusões
é que o papel da disciplina é “[...] formar alunos que reflitam sobre a realidade social valendo-se do
instrumental sociológico e que sejam capazes de analisar objetivamente a sociedade na qual estão
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 173
inseridos” (p.181), além disto “[...] o professor deve fazer uma reflexão constante sobre sua
metodologia de ensino e seu material didático” (idem). Este posicionamento se afasta das visões
levantadas entre as professoras, que ao perceberem que a burocracia do diário de classe e do registro
do planejamento, e a falta de material adequado e diversificado à disciplina lecionada, além da
cobrança pela melhoria do aprendizado dos estudantes não garantem a emancipação do cidadão.
Tabela 10
Contribuições para o planejamento
O que facilitaria seu planejamento pedagógico na disciplina de Sociologia? %
Tempo
50
Recursos Didáticas (data-show, xerox)
25
Material didático / Sociologia - E.M.
12,5
Burocracia (planejamento)
6,25
Interdisciplinaridade
6,25
Total
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Tabela 11
Facilitação e motivação na sala de aula
O que facilitaria/motivaria sua regência em sala de aula?
Interesse do aluno
Valorização profissional
Material didático específico para Sociologia no E.M.
Suporte técnico na área
Estrutura da escola
Tempo
Total
%
21,43
14,29
14,29
7,14
7,14
35,71
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
A correlação das informações apontam que o fator tempo e a necessidade de diversificação
potencializam o sucesso e o fracasso nas ações de ensino-aprendizagem planejadas e executadas
tanto dentro, como for da sala de aula, em espaços ou em atividades que dinamizam o trabalho
docente e a rotina escolar. Porém, lidar com a comunidade escolar (estudantes, professores e
administrativos) depende de ações interdisciplinares.
A interdisciplinaridade mostrada na pesquisa revela que a intenção de parceiros e ações que vão
além do campo das ciências sociais é algo presente nos discursos dos professores. Ao apontar a
interdisciplinaridade como forma de prática pedagógica no ensino de Sociologia entre as professoras
esta de acordo com Silva (2009) que orienta para que as aulas incorporem interdisciplinaridade e a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 174
contextualização como métodos para organização dos currículos e dos conteúdos para que os jovens
não tenham uma disciplina como coleção de conceito e temas deslocados da realidade.
Para Silva (2009)
[...] a interdisciplinaridade pressupõe a existência das disciplinas escolares; as
disciplinas são construtos históricos, produto da maneira pela qual o conhecimento
é produzido; as disciplinas constituem-se como campos do conhecimento – científico,
artístico e filosófico. E, por isso, ela busca a integração entre os saberes a partir de
novas maneiras de se trabalhar os conteúdos curriculares; quer a aproximação
das disciplinas e seus referenciais conceituais para a explicação de um determinando
conteúdo; quer ampliar o conhecimento do aluno sobre aquele conteúdo e lança um
olhar político sobre a sociedade, sobre a educação, sobre o currículo e sobre as
disciplinas. (idem, p.75-76)
Todas estas informações devem ser confrontadas com a realidade do cotidiano escolar da disciplina
de Sociologia. No levantamento sondamos quais eram as estratégias de sucesso usadas para uso em
sala de aulas, as práticas do docente na disciplina de Sociologia, além das metodologias usadas para
a transmissão e o manuseio de conteúdos. Na tabela 16 as tecnologias da informação aparecem em
suo, porém materiais diversificados para leitura, análise e reflexão, como HQ (histórias em quadrinhos)
são inovações que ampliam o uso das charges. Outras ações que precisam de ação em grupo como
seminários e pesquisas trazem uma possibilidade próxima da Sociologia para reflexão dos problemas
em diferentes temáticas (ver Tabela 14).
Tabela 14
Sucesso na aula de Sociologia
Sucesso de estratégias/práticas/metodologias na aula de Sociologia?
Ligação entre aluno e cotidiano (filmes, música, HQ)
Pesquisa e Relatório de Coleta de Dados
Reflexão dos alunos
Leitura diversificada
Seminários
Interdisciplinaridade com atividades de professores de outras áreas
Apresentação teatral
%
40
13,33
13,33
6,67
6,67
6,67
6,67
Estrutura pedagógica e administrativa
6,67
Total
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 175
A preocupação do docente em Goiânia sobre a produção e a transmissão de uma visão do mundo
numa perspectiva sociológica é apontando em trabalhos sobre o tema apresentamos as seguintes
constatações:
Vários dos professores entrevistados adotam a opção por trabalhar temas da
atualidade em sala de aula, em geral aqueles com destaque na mídia, sem relacionálos aos conhecimentos das ciências sociais. Outros trabalham com conceitos da
área, todavia sem contextualizá-los e articulá-los à realidade social na qual vivem
os educandos. Essas escolhas muitas vezes estão relacionadas com a dificuldade
de se trabalhar com as teorias sociológicas em sala de aula, especialmente para os
professores não formados na área. Mas as dificuldades e desafios do trabalho
docente com a sociologia nas escolas têm relação, provavelmente com a pouca
tradição pedagógica da disciplina, e em cima das evidências colocadas, com as
precárias condições de trabalho do professor. (ROSA, 2009, p.204)
Na Tabela 15 a demanda por acesso a metodologias diversificadas para o ensino-aprendizagem da
disciplina, é algo que deve ir além da discussão e focar na educação como um todo passando pela
argumentação do papel da escola para os jovens estudantes, fato presente em discursos de
levantamentos prévios e ainda presentes.
Tabela 15
Necessidades do docente de Sociologia
Trabalho docente em Sociologia necessita de
Práticas diversificadas
Trabalho intelectual e práticas diversificadas
Total
%
12,5
87,5
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
Os dados da Tabela 16 mostram que os professores fizeram um discurso pedindo a satisfação de
algumas necessidades, dentre elas faremos destaque a de maior presença nas falas, as quais entendemos
que o professor tinha dificuldade de buscar ou de ser fornecida ou ofertada pela Secretaria de
Educação ou outra instituição que oferecesse aperfeiçoamento, principalmente para área de
Sociologia.
Tabela 16
Observações dos docentes de Sociologia
Observações
%
Maior quantidade de formações
33,33
Currículo
33,33
Burocracia – diários e planejamentos 33,33
Total
100
Fonte: Marco Aurélio Pedrosa de Melo, 2013.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 176
Um dos problemas da formação do docente e da própria rotina do profissional do professor pode
estar na falta de diálogo e/ou tempo para ouvir críticas, sugestões ao seu trabalho e trocar impressões
ou reciclar seus conhecimentos (MAÇARIA e Cordeiro, 2009). Mesmo que o professor de Sociologia
tenha conhecimento para desenvolver o plano da disciplina, Fraga e Bastos (2009) apontam cuidados
no ensino de Sociologia destacando o perigo da valorização excessiva das abstrações e das relações
contratas para compreensão da vida social indo além dos fatos do cotidiano; e a motivação do
professor experimentar novos métodos, diversificar seus materiais, propor novas atividades, para
fazer o aluno se interessar mais pela disciplina.
Estas duas situações postas por Fraga e Bastos (2009) mostram que deve existir uma sintonia entre
o meio social e as realidades analisadas pelos estudantes e a necessidade de promoção de estudos e
pesquisas por parte do professor para torna mais interessante a aula de Sociologia. As mudanças que
existem nas relações sociais e no cotidiano do estudante e da própria escola fazem o professor
perceber que simultaneamente deve-se ter uma transformação em suas práticas.
Dadas as características do sistema educacional hoje, em particular do ensino médio,
com a concentração de jovens das camadas populares nas escolas públicas, cabe,
portanto, uma profunda reflexão sobre o papel e as necessárias mudanças nessas
escolas. Para tanto, torna-se necessário compreender como vivem, pensam e se
expressam os jovens brasileiros. (LIMA, p.95)
No trecho acima a autora entende que em nossa realidade educacional não devemos ficar pensando
separadamente o mundo do docente e do discente, ambos estão na escola que é reflexo da própria
sociedade a qual todos estão inseridos. E viável então que o professor queira saber de maneira mais
precisa como chegar na essência do conteúdo de maneira integrada com os princípios da realidade
social e de acordo com os universos que são próximos aos jovens estudantes.
Aqui podemos ressaltar princípios que facilitariam o planejamento do professor para ensinar e aprender
Sociologia.
Um dos objetivos do ensino da Sociologia consiste em possibilitar a apreensão e a
interpretação das transformações sociais, políticas, econômicas e culturais, das
questões e problemáticas da presente realidade social. Isso ocorre por meio das
teorias sociológicas que interrogam essa realidade e a fazem falar.
Para estudar e interpretar os fenômenos sociais é preciso contextualizar e apreender
os conceito e as categorias analíticas centrais da Sociologia. Os conceitos são
representações mentais da realidade, possuem atributos essenciais e são designados,
em cada cultura, por um signo, por palavras que concentram uma ideia. Para a
aprendizagem da Sociologia é necessária a apropriação de conceitos específicos e
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 177
o estabelecimento de relações entre eles, resultando na formação de uma rede
explicativa. (BRIDI, ARAÚJO e MOTIM, 2009, p. 137)
No final as autoras colocam como prerrogativa a necessidade formação do professor para dominar
os conceitos e a possibilidade de contextualização dos conteúdos para facilitar a aprendizagem do
estudante.
O que ressaltamos é a necessidade de haver adequações da matriz em períodos que ocorram diálogos
com a própria rede pública de ensino do estado, para que os professores estejam preparados para
enfrentar um grande problema, que é fazer o aluno aprender não somente as respostas exigidas em
avaliações explícitas sobre os conteúdos dos currículos, mas sim, fazer entender que existem
expectativas implícitas da unidade escolar, do professor e da própria sociedade, para consolidar uma
formação um cidadão autônomo (SPÓSITO, 2004; BRIDI, ARAÚJO e MOTIM, 2009).
Referências
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BABBIE, Earl. Métodos de pesquisas de Survey. Belo Horizonte; Ed. UFMG, 1999.
BRIDI, Maria Aparecida e ARAÚJO, Silvia Maria e MOTIM, Benilde Lenzi. Ensinar e aprender
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FRAGA, Alexandre Barbosa e BASTOS, Nadia Maria Moura. O ensino de sociologia na educação
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Adélia Maria M. (orga.). A Sociologia vai à escola: história, ensino e docência. Rio de Janeiro:
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Médio. Goiânia-Goiás, 2013. p. 284-297 (Material Digital)
HANDFAS, Anita e OLIVEIRA, Luiz Fernandes de (Orgs.). A sociologia vai à escola – história,
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II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 179
PLEBISCITO VALENDO NOTA
Uma experiência pedagógica em turmas da 3ª série do Ensino Médio no Colégio Pedro II
Marcello de Moura Coutinho e Marcelo da Silva Araujo
Respectivamente, professor-pesquisador da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio
(FIOCRUZ) e professor de Sociologia do Colégio Pedro II.
RESUMO
Trabalhando o tema “Política e Poder no Brasil” no ano letivo de 2011, constante da grade curricular da 3ª
série do Ensino Médio do Colégio Pedro II, foi proposto às turmas que realizassem uma experiência de
plebiscito ou referendo junto aos estudantes de todas as séries do Ensino Médio. Nestes, seriam abordados
temas polêmicos como a legalização da maconha, a união estável homoafetiva, a regulamentação da pena de
morte e a questão do aborto. A consulta, porém, ultrapassou o formato de um plebiscito ou de um referendo,
transformando-se numa pesquisa de opinião sobre tais temas. As conclusões giram em torno do fato de que
a atividade, além de viável, é produtiva em razão de refletir sobre temas contemporâneos e de mostrar, ainda
que de modo incipiente, as contradições da vida social – e, em nosso caso, especialmente do segmento jovem
– que oscilam entre posturas vanguardistas e posturas reacionárias em relação a temas de contundência
social evidente.
Palavras-chave: Pesquisa na escola básica; Temas polêmicos; Protagonismo estudantil; Contradições da
vida social; atividade escolar interdisciplinar.
Introdução
Sabemos que os mecanismos do plebiscito, do referendo e da consulta popular instituídos pela
Constituição Federal de 1988 são uma ferramenta importante e que serve de radar democrático para
perceber o pensamento da coletividade acerca de temas candentes1. Estes temas são, via de regra,
delicados no que se refere à sua implementação através de legislações e políticas públicas vinda de
cima: assim foi, em amplitude nacional, nos plebiscitos de 1963 (sobre o sistema de governo a ser
adotado) e 1993 (sobre o sistema, mas também quanto ao regime de governo, a vigorar), atendendo,
no segundo caso, à determinação constitucional. O mesmo se viu no referendo de 2005, acerca da
proibição da comercialização de armas de fogo e munições. O que ainda é novo é sua utilização para
fins didáticos, como experiência pedagógica, no cenário escolar brasileiro.
O universo escolar é, no sentido positivo do termo, um excelente laboratório para medir opiniões e
entendimentos através de práticas pedagógicas de consulta sobre temas delicados ao alunado. Longe,
naturalmente, de reproduzir com fidelidade os mecanismos típicos e adequados de uma consulta da
amplitude de um plebiscito ou de um referendo, a experiência é instigante, em razão das ricas
possibilidades de análise dos dados obtidos. Considerando os sujeitos em formação em que se
constituem nossos jovens estudantes, verificar suas opiniões sobre temas “espinhosos” (em termos
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 180
morais, religiosos ou da própria lei) ou que ferem suscetibilidades, como a questão da legalização do
aborto ou da legalização da maconha pode ser um esclarecedor exercício de interpretação que
envolve classe social, gênero, cor de pele, credo religioso etc.
Assim, como professores de Sociologia do tradicional Colégio Pedro II, os autores propuseram, no
ano letivo de 2011, aos alunos da 3ª série do Ensino Médio, cujo tema constante da grade curricular
envolvia política e poder no Brasil, que realizassem uma experiência de plebiscito junto aos estudantes
de todas as séries do Ensino Médio. Isto porque, dada à amplitude do tema (que engloba, para citar
lados diametralmente opostos, questões partidárias e parlamentares e questões de foro íntimo e
relacionado às relações privadas), optou-se, em razão das exigências do programa para o trimestre,
por um ensaio de pesquisa dentro da própria unidade escolar.
Deste modo, temas polêmicos como o da legalização do aborto, da legalização da maconha, além da
união estável homoafetiva e da legalização da pena de morte, ultrapassaram, no processo, o formato
de perguntas diretas e objetivas, características dos mecanismos de consulta em questão,
transformando-se numa pesquisa de opinião. O resultado foi instigar interessantes conclusões e
interpretações sobre como pensavam os jovens de então acerca de problemas concretos que mobilizam
setores da sociedade, criando tensões, reivindicações e uma ausência de consensos que tem efeitos
sociais por vezes temerosos para a convivência social.
Este relato de experiência não objetiva deixar de lado as dificuldades e insucessos da atividade. Ao
contrário, na intenção de ser uma contribuição para outros professores no que se refere às ações
didático-pedagógicas, argumenta de saída que a principal dificuldade se deveu às inúmeras demandas
dos alunos em relação a trabalhos, testes e provas, o que prejudicou a dedicação à organização das
atividades de organização e realização do plebiscito. O fato de a atividade ter sido proposta com
cerca de um mês de antecedência (para que os alunos pudessem realizá-la a contento), prevendo a
formação de grupos ou comissões com cinco alunos cada (responsáveis pelas 2 campanhas contra
ou a favor, pela coleta e análise dos dados) e, por fim, pela apresentação dos resultados, revelou-se
insuficiente para alcançar o objetivo. Ou mesmo, e isso nunca pode ser esquecido, a percepção clara
de que alguns alunos simplesmente adotaram em grande parte do tempo a postura de “caronas”,
eximindo-se de sua parcela de responsabilidade sobre o sucesso do trabalho: esse é, no tocante à
avaliação, sem dúvida, um dos grandes problemas em atividades pedagógicas que envolvam grupos
grandes e cuja nota a ser conseguida vale por igual para toda a turma...
Apesar disso, das 4 pesquisas que tiveram lugar, duas ousaram ampliar o universo consultado e
incluíram os segmentos docente, dos servidores técnicos e de apoio da comunidade escolar - este
compreendido como funcionários de empresas contratadas pela conservação, entre outras funções.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 181
Desejamos chamar a atenção aqui, como mencionamos acima, para a demonstração da habilidade,
competência e autonomia intelectual e técnica dos alunos, além da organização para levar a cabo as
etapas da atividade. No processo de apuração dos resultados, contamos com o valioso auxílio de
alguns colegas professores de Matemática no tratamento dos dados, instrumentalizando os alunos a
operarem adequados programas de computador nas análises e interpretações do que foi recolhido.
É interessante constatar que alunos com uma decidida inclinação por áreas inegavelmente distantes
da Sociologia (como a Física ou a Química) engajaram-se não somente no trabalho mais, digamos,
“braçal”, como também na utilização dos termos e formas inequívocas de interpretação sociológica
de dados de pesquisa.
Do plebiscito à pesquisa de opinião: o embasamento teórico-conceitual
A fundamentação da proposta pedagógica aqui relatada, bem como a do texto como um todo,
repousa na obra A cidadania ativa (2000), da cientista política e professora Maria Victoria de
Mesquita Benevides. O livro, inspirado na gradativa consolidação da Constituição Cidadã, foi
originalmente escrito ainda nos anos 1990. A autora objetiva mostrar que o “sistema representativo
exclusivo” não traduz as aspirações do povo, apontando, como solução, o caminho da democracia
semidireta para “recuperar a soberania popular”, que segundo ela, é a associação entre a democracia
representativa – eleições – e os mecanismos de democracia direta. Assim, deixaríamos de ser “meros
espectadores do jogo político para nos tornarmos cidadãos realmente ativos”. Deste modo, o que
pretende a autora é apresentar os percursos possíveis do exercício mais verdadeiro da cidadania, da
educação política do povo e do aprimoramento do tão desgastado processo democrático brasileiro.
Benevides (2000:34) explica as origens etimológicas dos termos “plebiscito” e “referendo”, a seguir:
“Plebiscito vem do latim (plebis + scitum) e originalmente designava, na Roma
Antiga, a decisão soberana da plebe, expressa em votos. Mais tarde, o plebiscito
tornar-se-ia uma simples formalidade para ‘legitimar’ os cônsules investidos de
poder supremo, como Pompeu e César, vindo daí a expressão ‘cesarismo
plebiscitário’. Referendo vem de ad referendum e origina-se da prática, em certas
localidades suíças, desde o século XV – como os cantões de Vallais e Grisons –, de
consultas à população para que tornassem válidas as votações nas assembleias
cantonais. Com a difusão da prática, ‘referendo’ passou a ser sinônimo de consulta
popular. No sentido moderno, a ideia de referendo permanece associada à Revolução
Francesa e aos debates entre os defensores da soberania popular, inspirada em
Rousseau, e os partidários da soberania nacional – entendida como soberania
parlamentar – segundo a fórmula de Sieyès.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 182
Hoje, apesar da indefinição, tanto referendo quanto plebiscito são entendidos como modos de
expressão da opinião ou da vontade dos cidadãos, em votação livre e secreta, sobre uma medida
que foi ou poderá vir a ser adotada pelos poderes constituídos, no plano nacional ou local. Para a
autora, a equivalência semântica dos referidos termos extrapola o meio político, não existindo nem
mesmo um razoável consenso sobre a distinção entre os dois conceitos. Não obstante, as experiências
brasileiras com suas respectivas distinções e aplicações estão como afirmamos, definidas
constitucionalmente. Assim, no plebiscito a população decide pelo voto uma determinada questão,
sendo apenas o Congresso Nacional que pode convocá-lo. Em última instância, o Executivo tem a
prerrogativa de enviar uma mensagem ao Legislativo propondo a convocação deste mecanismo.
Como afirmamos acima, o Brasil experimentou dois plebiscitos de âmbito nacional. O primeiro,
realizado em 6 de janeiro de 1963, no governo do presidente da República João Goulart, definiu um
impasse constitucional. Isto porque o parlamentarismo havia sido adotado após a assunção de Jango,
em 7 de setembro de 1961, porém os eleitores preferiram retornar ao sistema presidencialista, já
conhecido da população e tido, por isso, como mais seguro institucionalmente.
A outra experiência ocorreu em 1993. A 21 de abril de 1993, a consulta foi para decidir que regime
(monarquia ou república) e que sistema de governo adotaríamos (parlamentarismo ou
presidencialismo). Optou-se, mais uma vez, pela manutenção do regime republicano e do sistema
presidencialista. Uma terceira experiência, de relevância regional e não nacional, deu-se em dezembro
de 2011. Nela, a população do estado do Pará foi convocada a votar pela divisão do estado em três
– Pará, Carajás e Tapajós, originalmente regiões que constituem o território da unidade da federação
–, votando contrariamente à divisão.
O referendo, por sua vez, diz respeito exclusivamente a atos normativos, de nível legislativo ou de
ordem constitucional, devendo ser convocado após a edição destes atos para conformar ou rejeitar
normas legais ou constitucionais vigentes. O único referendo no caso brasileiro foi realizado em 23
de outubro de 2005, tendo como tema central, a proibição ou não da comercialização das armas de
fogo e munições. Com efeito, estava em questão, o Artigo 35 da Lei Federal nº 10.826, de 23 de
dezembro de 2003, mais conhecido como “Estatuto do Desarmamento”. O resultado final foi contra
a proibição, proibição esta amplamente defendida pelo próprio governo como medida de frear o
contrabando destes equipamentos que, entre outros prejuízos, lesavam os cofres públicos pela não
retenção de impostos. Cabe destacar, que houve um intenso debate levado a cabo por entidades da
sociedade civil organizada e pela grande mídia, contra e a favor da proibição. Os argumentos giraram
em torno, principalmente, da liberdade individual em relação ao Estado e ao aumento potencial dos
casos de violência com utilização de armas de fogo.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 183
Os alunos leram os textos adaptados da autora em questão e tiveram acesso, no processo de escolha
do tema a ser abordado, aos debates que mencionamos acima, quer fossem informados pelos
professores, quer por conta própria.
Proposta e etapas da pesquisa: o plebiscito valendo nota!!!
Como dissemos, objetivando promover uma atividade prática de consulta e análise, os professores
de Sociologia do Colégio Pedro II, campus Niterói, orientaram a realização de plebiscitos ou
referendos, enquanto simulações do exercício de soberania popular, junto à comunidade escolar, na
esteira do conteúdo curricular “Poder e Política no Brasil”, referente ao 2º trimestre, da 3ª série do
Ensino Médio. Para tanto, solicitou-se aos alunos que escolhessem um único tema de relevância
nacional a ser trabalho pelo conjunto de sua respectiva turma, tangenciando questões acerca do
sistema legal, da utilização de substâncias químicas qualificadas como ilícitas, da sexualidade e da
maternidade indesejada. Como ferramenta de viabilização, solicitou-se que definissem seu públicoalvo para a realização das enquetes que serviram para subsidiar as campanhas “a favor” e “contra”
o tema escolhido. A atividade foi o trabalho do trimestre e teve valor máximo de 3,0 pontos para o
conjunto de alunos de cada turma. Assim, as turmas se dividiram internamente em comissões para
dar conta da tabulação das enquetes, da realização e análise do resultado final das campanhas
plebiscitárias ou dos referendos.
Este relato vale-se do resultado, construído em parceria com os docentes de Matemática da mesma
comunidade escolar para a tabulação dos dados, tendo aliado teoria e prática. Esta parceria tornou
a atividade interdisciplinar, fazendo com que os conhecimentos sociológicos e matemáticos pudessem
dialogar, contribuindo na produção de conhecimento de alunos e professores. Assim, valemo-nos
de Frigotto (2008:43), que ao defender a perspectiva pedagógica da interdisciplinaridade, postula
que:
“O caráter necessário do trabalho interdisciplinar na produção e na socialização
do conhecimento no campo das Ciências Sociais e no campo educativo que
desenvolve no seu bojo, não decorre de uma arbitrariedade racional e abstrata.”
Em outras palavras, decorrendo da própria forma de o homem produzir-se enquanto ser social e
enquanto sujeito e objeto do conhecimento social, a interdisciplinaridade pode então, nesse caso,
propiciar uma maior compreensão do homem enquanto ser social, pois caminha na contramão da
progressiva fragmentação do conhecimento científico.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 184
Caminhos metodológicos da experiência pedagógica
Para fins estritamente pedagógicos, considerou-se, de forma simples e objetiva, o referendo como o
processo pelo qual a população aprova ou rejeita um projeto que já tenha sido aprovado pelo
Legislativo (isto é, em nosso caso, alguma determinação já instituída pelas instâncias competentes)
e o plebiscito como o processo em que a população nacional ou uma local decide pelo voto uma
determinada questão. Porém, como já informamos, o que vimos foi uma ultrapassagem qualitativa
da técnica plebiscitária, uma vez que os alunos levantaram informações sobre a família (grau de
instrução dos pais ou renda total), sexo do respondente, local de residência, crença religiosa etc.
Vale enfatizar que os alunos elaboraram, sob a supervisão dos docentes, todas as etapas e
procedimentos da experiência pedagógica, a saber:
ü Escolha do tema, do mecanismo de consulta e do universo a ser consultado;
ü Formação de comissão para gerir o processo em sua totalidade;
ü Discussão e criação das variáveis de análise dos dados;
ü Divulgação escrita e oral da consulta e de seus objetivos junto ao público a ser consultado;
ü Elaboração de listas e confecção de materiais de coleta de votos (listas de votantes, cédulas,
urnas, cabine de votação etc.), além de questionários para aferir maiores informações, tal como
informado acima;
ü Tabulação, análise e interpretação dos dados; e,
ü Publicização e apresentação dos resultados à comunidade escolar (esta fase foi prejudicada
pelas demandas de atividades que citamos anteriormente).
A escolha dos temas, dos mecanismos de consulta e dos “universos de pesquisa” a serem consultados
se deu de forma autônoma nas quatro turmas, tendo sido exigida a não repetição temática ou
semelhança dos objetivos mais gerais. No tocante à escolha, houve a indicação de serem trabalhados
enquanto objeto de votação e pesquisa, os temas de relevância nacional como a regulamentação da
pena de morte, a legalização da maconha, a união estável homoafetiva e a questão do aborto.
Com os temas devidamente escolhidos, partiu-se para a definição do universo de pesquisa e das
comissões (defensores de cada campanha política por tema, apresentadores das perspectivas históricoconceituais dos processos plebiscitários e de referendo, organizadores/analistas dos instrumentos de
pesquisa e resultados finais das enquetes), assim como dos responsáveis gerais por turma. Definiuse ainda que o produto final fosse apresentado na forma de cartazes contendo gráficos e tabelas
analíticas, banners ou suportes semelhantes, além da facultativa apresentação “especial” visando
informar os resultados ao conjunto da comunidade escolar.
Para que os alunos pudessem “botar na rua” suas campanhas políticas, houve um prévio preparo
metodológico pelos professores, sendo trabalhados aspectos relativos à elaboração de questionário
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 185
para as enquetes pretendidas e aos critérios para a definição de uma amostra de pesquisa, a partir de
um dado universo.
No tocante à tabulação dos dados, os professores de Matemática contribuíram sobremaneira,
principalmente no que diz respeito ao trato estatístico. Essa integração conferiu uma dimensão
interdisciplinar à proposta pedagógica, o que agregou positivamente em todo o processo ensinoaprendizagem. E, com relação à Matemática, conforme Moraes et al. (2006:114),
“a Sociologia tem-se valido enormemente dela nas suas pesquisas quantitativas e,
em boa medida, da Estatística. Esse ramo da Matemática tem tido papel decisivo
em pesquisas de campo das Ciências Políticas, por exemplo, no que se refere ao
comportamento eleitoral. De modo que um possível tópico de um programa de
Sociologia no Ensino Médio é trabalhar com tabelas e gráficos, sem o que parte
relevante dos conhecimentos sociológicos e políticos ficaria ignorada.”
As campanhas políticas foram o ápice da atividade, tendo contado com grande entusiasmo discente,
tanto na elaboração dos materiais de divulgação, quanto nas defesas de posições. Os estudantes
levantaram material midiático e acadêmico, chegando a realizar debates em sala de aula e no pátio
escolar sobre os temas, municiados por materiais de divulgação das suas respectivas “bandeiras de
luta”.
Por fim, dadas as limitações de tamanho deste relato, trataremos especificamente de dois dos quatro
temas citados, a fim de nos debruçarmos mais longamente. Para a finalidade deste relato, como
dissemos, esperamos ser suficiente apresentar os respectivos resultados e assim contribuir para que
outras bem sucedidas experiências possam florescer.
A legalização da maconha – a experiência da turma 1305
A turma contava com 30 alunos que foram distribuídos nas comissões mencionadas. Alguns
temas de grande discussão naquele momento foram sugeridos: a divisão do estado do Pará, o Novo
Código Florestal e a legalização da maconha. Em regime de votação, os alunos da turma decidiramse pelo último tema, a legalização da maconha. A partir daí, decidiu-se que as demais turmas da 3ª
série constituiriam o universo a investigar. Definiu-se coletivamente que o período da campanha
seria a última semana de abril e que a mesma se daria mediante cartazes afixados nos muros do
colégio, assim como a confecção e a distribuição interna de folhetos.
Com a orientação docente, as equipes das campanhas e de campo se reuniram duas vezes por
semana durante um mês para tratarem especificamente das questões do plebiscito. Nesse sentido, a
dúvida consistia em fazer um trabalho que não fosse tendencioso, isto é, não se posicionando nem a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 186
favor e nem contra a legalização da maconha. Achar o tom adequado para evitar criar suscetibilidades
na comunidade escolar passou a ser uma importante preocupação.
Diversas foram as versões de questionários e folhetos elaborados para tentar reduzir a resistência da
direção da Unidade, que era temerosa quanto à prudência da reprodução do brasão e do nome do
Colégio Pedro II no material de divulgação (ver abaixo), o mesmo se devendo à propriedade do
apoio da equipe docente de Sociologia e do Setor de Informática, que ajudou na confecção dos
folhetos. Foram necessárias rodadas de diálogo entre as partes para sanar tais desencontros, sendo,
por fim, autorizada a reprodução do material e subsequente campanha. O processo de pesquisa
transcorreu em clima de tranquilidade institucional.
Frente e verso do folheto de divulgação a favor da legalização da maconha
Frente e verso do folheto de divulgação contra a legalização da maconha
Quanto aos dados da pesquisa de campo, o questionário continha questões relativas aos seguintes
aspectos: município domiciliar; classe socioeconômica; título de eleitor; religião; meio de comunicação
utilizado para ter acesso à informação; definição de cor/raça e posicionamento quanto à legalização
da maconha.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 187
O primeiro aspecto – “município domiciliar” foi contemplado em duas perguntas. A primeira referente
ao domicílio e, a segunda à identificação de problemas de prestação serviços e políticas públicas.
Niterói possui o maior número de alunos do universo pesquisado – 40%, sendo acompanhado por
São Gonçalo com 33,5%. E, em 3º e 4º lugares, respectivamente ficaram Maricá – 33,7% e Itaboraí
– 25,6%. Pode-se inferir que esta situação reflete o fato da Unidade está sediada em Niterói que
seria uma espécie de “município polo”, tendo a única escola pública federal de nível médio na região
Leste Fluminense. Estes fatores são de grande atratividade, não só pela sua reconhecida qualidade
do ensino, mas também em razão das famílias demonstrarem preocupação com trajetórias de ascensão
socioeconômica, o que em grande medida é garantida ainda pela formação escolar.
O segundo aspecto indicou que o maior problema é a Saúde por 29,2% dos entrevistados, seguido
por Educação – 22,8%, Violência – 15,3%, Transporte – 13,0% e Emprego – 10,0%. Os problemas
com menor expressão foram Meio Ambiente – 5,0%, Economia – 4,3% e Cultura – 1,4%. Vale
ressaltar, que o binômio Saúde – Educação representa o maior conjunto de problemas identificados
pelos entrevistados.
Com efeito, ficam evidenciadas as maiores demandas populares não só no Leste Fluminense como
em todo o Brasil. Isto porque, os serviços públicos e privados de Saúde e Educação apresentam
frequentemente baixa qualidade de atendimento e se encontram em número insuficiente frente à
crescente demanda. O grupo – Violência, Transporte e Emprego apresenta percentuais muito
próximos, o que pode estar associado às questões de (in)segurança pública, alto custo do transporte
coletivo e, no fato de que, estes municípios muitas vezes servem como “dormitório”, já que a grande
oferta de vagas está no município do Rio de Janeiro. O Meio Ambiente ocupa junto com Economia
e Cultura os menores percentuais, muito em função da baixa compreensão da importância dos mesmos
para a melhoria da qualidade de vida. O caso da Economia é o mais curioso, pois tem íntima relação
com o Emprego.
Com a pergunta sobre classe socioeconômica procurava-se identificar a condição de vida da família
do respondente. A composição se deu da seguinte forma: 79% identificaram-se como pertencentes
à classe média (2 a 5 salários mínimos), 13% à classe baixa (1 a 2 salários mínimos) e apenas 8% à
classe alta (mais de 5 salários mínimos). E, em relação ao título de eleitor, a maioria esmagadora não
possui – 83,4%, sendo que 0,5% tem menos de 16 anos. A composição mais expressiva é a da classe
média, conforme declaração dos entrevistados, o que pode ser explicado, parcialmente, pelo fato de
um grande contingente de alunos serem filhos de servidores públicos e, também em razão de ser
nesta classe socioeconômica que, a expectativa de ascensão socioeconômica tem maiores chances
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 188
de se concretizar. Para a classe alta, a escolaridade é apenas mais um fator neste processo e para o
mais pobres, muitas vezes é a “tábua da salvação”.
Os resultados relativos à religião são bastante expressivos, indicando quase um “empate técnico”
entre as maiores forças do cristianismo: o catolicismo e o evangelismo pentecostal. O segmento
evangelismo não pentecostal também apresentou uma marca considerável. Fora desse eixo, a religião
com maior destaque foi o kardecismo. Os dados, em ordem decrescente, são católicos 37%;
evangélicos pentecostais, 31,5%; evangélicos não pentecostais, 20,2%; Kardecistas, 7,66%;
umbandistas, 2,1%; candomblecistas, 1,2%; testemunhas de Jeová, 0,3%; judeus, 0,02%; os
adventistas do Sétimo Dia e os sem religião, ambos com 0,01%. Um segundo conjunto de respostas
sobre religião apontou que 45,8% costumam frequentar seu espaço religioso uma vez por semana,
mas que 17%, o fazem mais de uma vez por semana e 37,2% o fazem raramente.
Com base neste cenário, cabe destacar que os números relacionados à religião apontam um fenômeno
social que está disseminado na sociedade brasileira, o crescimento contínuo de fiéis das Igrejas
Evangélicas Neopentecostais. Em contrapartida, a Igreja Católica vem sofrendo uma perda constante
de fiéis, mesmo tendo adotado uma “nova liturgia” – Renovação Carismática. O que pode ser explicado
particularmente, pela posição contrária ao sexo antes do casamento, métodos contraceptivos não
naturais e uso do preservativo.
Quanto ao meio de comunicação utilizado para ter acesso à informação, destacaram-se, como o
esperado nessa faixa etária, a TV por assinatura e a internet com 39% e 37%, respectivamente. A TV
aberta é utilizada por 14%, ficando a mídia impressa com 9,89% e a radiodifusão com 0,11% do
acesso. Tal situação pode ser compreendida em função desta geração ser considerada “nativa digital”,
tendo maior interesse nas informações veiculadas de forma mais direta – on line.
A classificação étnicorracial seguiu os parâmetros do Instituto Brasileiro de Geografia Estatística
(IBGE) por ser o de âmbito nacional. Assim, 40% dos alunos entrevistados se declararam brancos,
30% como pardos, 15% como pretos (negros), 10% como indígenas e 5% como amarelos (de
origem asiática). Reflete-se neste quadro de acesso à Educação, o contexto histórico do que chamou
Florestan Fernandes de “dilema racial brasileiro”, no qual, a integração do negro na “sociedade dos
brancos”, assim como das demais minorias étnicas se dá de forma precária.
Por fim, no que diz respeito ao posicionamento em relação à legalização da maconha, 73,8% afirmaram
ser a favor e 26,2% contra. Este resultado traduz uma maior capacidade de persuasão do “grupo
pró”, que além de ter o material de campanha mais claro e informativo contou com retóricas mais
bem trabalhadas. Vale ressaltar, que esta questão no âmbito da sociedade provavelmente, não teria
o mesmo resultado em função de polêmica e controversa.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 189
A regulamentação da união estável homoafetiva no Brasil – a experiência da turma 1307
Naturalmente, as mesmas orientações de encaminhamento foram dadas, em linhas gerais, a esta
turma, que contava com 32 alunos. Nela, em nenhum momento houve discordância quanto ao tema
a ser abordado em razão do poder de persuasão de alguns destacados alunos, cuja postura era de
costumeira liderança. Outra diferença com as particularidades anteriormente mencionadas da turma
1305 é que não houve uma campanha oficial (documetal) de sensibilização para o tema. Aliás, esta
campanha era feita estritamente no boca a boca dos corredores e do pátio, nos pontos de ônibus e
até, como me foi informado e para o caso das demais turmas de 3ª série, nas aulas de aprofundamento
da unidade escolar, que são como aulas de preparação para os exames do ENEM e dos vestibulares.
Apesar de a consulta ter sido equivocadamente qualificada como um referendo (fato que não foi
censurado pelo docente, mas corrigido para que os estudantes não incorressem na crença de ser este
um genuíno exemplo de consulta), aqui também as variáveis sexo/gênero, posicionamento de classe
social e religião foram o carro-chefe das interpretações acerca da sempre controversa questão da
união estável entre homossexuais em nosso país. Mas, vamos aos dados.
Como vimos na figura acima, a turma 1307 optou por pesquisar apenas as turmas do 1º turno letivo
(excluindo, naturalmente, a si mesmos), além dos funcionários (servidores e terceirizados) que nele
trabalham. Mas antes cabe mencionar os percentuais totais e posteriormente detalhar as especificidades
da pesquisa. São eles
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 190
Vê-se nos resultados para ambos os segmentos um número relativamente equilibrado de respondentes
favoráveis à união estável homoafetiva: apenas 1,1% de diferença. Surpreende, porém, o número
dos “sem opinião”: os alunos se posicionam mais que os adultos. Por um certo prisma, isso pode ser
explicado pela reduzida importância atribuída pelos adultos à compreensão, na altura de suas vidas,
da questão (informalmente questionados pelos pesquisadores, apenas um entrevistado declarou-se
homossexual...), já que, em sua maioria, não transitam por espaços e eventos com concentração de
pessoas homossexuais, menos ainda relacionam-se quantitativa e qualitativamente com elas. Por
outro prisma, como complementação do argumento anterior, os jovens estudantes convivem mais
diretamente com a diversidade nos seus espaços de sociabilidade, conferindo maior importância ao
trato com a questão.
Por fim, os contrários apresentam índices bem díspares: 38% a 25%. Tal quadro poderia ser explicado,
de maneira simples e direta, pela maturidade dos adultos que lhes confere maior capacidade de
aceitação da possibilidade de união estável entre homossexuais. Considerando o grau de rejeição
entre os alunos da união entre homossexuais, surge uma instigante questão pedagógica. Estes alunos
contam com conteúdos programáticos das disciplinas das ciências humanas (Filosofia, Geografia,
História, Sociologia e até a Literatura) de temas e discussões que abordam de maneira relacional e
construtivista a questão do comportamento sexual. Deste modo, é suficiente afirmar que os dados
coletados apresentam um desafio aos professores - e não somente das disciplinas que constituem as
humanidades – de discutirem mais a questão da sexualidade, de modo, repetimos, contextual e mais
isenta possível, a fim de operar uma transformação positiva nesta rejeição. O motivo é simples: tal
índice de rejeição pode acarretar, e por vezes acarreta, em discriminação aberta e negativada, no
limite, com atos de violência verbal e física direcionada à comunidade ou aos indivíduos homossexuais.
Mas vamos detalhar os dados coletados.
Na distribuição dos respondentes, 58,9% era de mulheres e 41,1 % homens, reforçando uma tendência
que vem ocorrendo com cada vez maior evidência: pessoas do sexo feminino são, por um lado, as
que mais ascendem via concurso público, que é o caso do Colégio Pedro II na modalidade Ensino
Médio, e, por outro, é também majoritário entre as pessoas que trabalham com educação ou
conservação e manutenção de espaços (setor de serviços gerais, por exemplo). Nos setores SESOP,
Secretaria e Biblioteca, onde as trabalhadoras são, em sua maioria, servidoras públicas, e que são
espaços complementares e de assessoramento ao processo pedagógico, essa evidência é ainda mais
marcada.
Quanto ao pertencimento de classe social, confirma-se também uma tendência que é ao mesmo
tempo inerente à comunidade escolar e galopante, no que tange à população brasileira, em relação
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 191
aos índices mais diversos que emanam dos centros e instrumento de pesquisa para o tema: 2%
pertenceriam à classe alta, 8% à classe baixa e 90% à classe média. No questionário aplicado pela
turma, os valores caracterizadores de cada estrato baseavam-se no valor fixado para o salário mínimo
de então: R$ 510,00. Assim, mais de R$ 5.100,00 (dez salários mínimos de renda familiar) classificava
o pesquisado como de “classe alta”, entre R$ 1.530,00 e R$ 2.550,00 (respectivamente, três e cinco
salários mínimos de renda familiar) classificava o pesquisado como de “classe média” e, por fim,
entre menos de R$ 510,00 e R$ 1.530,00 (respectivamente, abaixo de um a três salários mínimos de
renda familiar) classificava o pesquisado como de “classe baixa”.
Uma interpretação possível destes dados (que coincide mas ultrapassa os feitos pelos próprios alunos,
no ato da apresentação destes resultados) é a já anunciada inserção da população na classe média, de
acordo com diversos institutos de pesquisas e do discurso oficial do governo brasileiro. Apesar de o
estudo não ter realizado os devidos cruzamentos entre as variáveis consideradas, podemos supor
serem do sexo feminino a maioria dos alunos classificados como de classe média e afirmar – aí já
com base na apresentação oral dos alunos da turma 1307 – haver um capital cultural e social acumulado
por estas alunas que pesam, em alguma medida, sobre sua opinião de maior aceitação a respeito do
tema, além do fato de que elas relacionam-se mais amistosamente com pessoas homossexuais.
Quanto ao aspecto religioso, não chega a surpreender os dados colhidos: 40,1% declaram-se católicos,
seguidos 34,4% de protestantes, 18,2% sem religião, 4,7% espíritas (dentre estes há muitos
kardecistas), 1,6% pertencentes às religiões de matriz africana e 1% declarando-se como outros –
neste particular, há uma falha de pesquisa, uma vez que tal categoria não foi explorada pelos
pesquisadores.
O que é instigante nesta dimensão é o que segue nos gráficos abaixo.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 192
75% dos entrevistados (alunos e não alunos) responderam não haver influência do pertencimento
religioso sobre suas opiniões quanto à questão da união entre homossexuais. Esse fato é, no mínimo,
discutível, dados os percentuais favoráveis à união estável homoafetiva expressos nos resultados
parciais. Não parece inexistir relação entre opção religiosa e postura quanto ao tema da pesquisa,
uma vez os 38 contra 25 percentuais de rejeição sugerem um diálogo com os percentuais de
distribuição das filiações às crenças, já que, na realidade mais ampla, a reflexão religiosa aponta para
uma desaprovação da situação em questão e, nesse sentido, os estudantes espelham essa forma de
posicionar-se.
O que desejamos argumentar é que, assim como em qualquer pesquisa cujo objeto seja um fator
controverso da realidade social, nesta pequena experiência as contradições parecem governar o
posicionamento sobre um tema potencialmente mobilizador de suscetibilidades morais, religiosas e
de visões de mundo. Isto é, percebe-se nessa desconexão de sentido entre o “não achar que a
religião influencia” na leitura a respeito da união estável homoafetiva e os dados visivelmente
reprovadores do gráfico com os resultados parciais. Disso se pode concluir, ainda que de forma
insuficiente, que o protagonismo destes alunos em questões político-pedagógicas, os conteúdos
programáticos progressistas da grade curricular e o próprio alto nível de competências e habilidades
mencionado linhas atrás não exclui, repetimos, fatores repetitivos da vida social mais ampla quanto
à sua imprevisibilidade e aos imponderáveis a isso associados.
O último item antes das conclusões é o que apresenta o resultado final da pesquisa, onde queremos
tão somente argumentar que apesar da aludida imprevisibilidade da vida social, quando a “medimos”
através de pesquisas de opinião como esta, mostra-se, de forma patente, como, por vezes, há uma
tendência dos espaços de educação formal – e aí não cabe julgar sua pertinência de forma valorativa
– de se alinharem de maneira favorável e positiva às grandes questões do dia-a-dia, ainda que isto
expresse, como tentamos mostrar, as incoerências apuradas pela interpretação dos dados.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 193
Conclusões
Nessa comunicação, procuramos demonstrar os resultados uma atividade pedagógica realizada com
alunos da 3ª série de Ensino Médio. Esta envolveu conteúdos programáticos (mas os ultrapassou
qualitativamente) direcionados ao momento da trajetória escolar para a disciplina Sociologia nessa
modalidade do ensino. Não é demais lembrar que tal atividade ocorreu em 2011 e, assim, padece de
imprecisões e lacunas na forma de sua publicização em razão, especialmente, de não ter sido
originalmente pensada para ser comunicada num fórum acadêmico, menos ainda em qualquer outro
espaço para além do espaço de construção de ensino-aprendizagem em que se constitui a escola
básica.
De igual maneira, como mencionamos páginas atrás, optamos por não nos utilizarmos de formas
mais científicas de análise, o que significa dizer que abordamos os resultados tais como eles foram
produzimos. Na prática, teorias e interpretações mais profissionais de análise passaram ao largo, em
função de nossos objetivos, apesar de poderem ser mobilizadas para futuras e mais refinadas atividades
envolvendo o ou os mesmos objetos de preocupação escolar. Ademais, importa lembrar que um
relato de experiência funciona, concretamente, como uma forma de se comunicar com os pares
daquele nível de ensino, a fim de instigar, receber críticas e sugestões ou somente para plantar uma
ideia possível de trabalho pedagógico.
Por falar em trabalho pedagógico, nossa avaliação quanto à atividade é extremamente positiva,
resultando valiosa em razão da discussão de importantes questões sobre a organização social de
nosso tempo e do uso de ferramentas (matemáticas e sociológicas) para a análise de questões políticas.
Pontos como o fato de o universo de análise serem os próprios jovens que comungam com os
pesquisadores o fato de serem estudantes de Ensino Médio, a autonomia dos alunos e a aliança da
teoria à prática e, mais do que isso, a mobilização não exclusivamente dos alunos da 3ª série, mas de
parte considerável da comunidade escolar, delineia ricamente a proposta e sua consecução. Deste
modo, o conteúdo estudado se tornou mais vivo, o que pavimentou proveitosamente a reflexão
acerca do tema “Poder e Política no Brasil”.
Hoje, passados dois anos, temos a enervante e magnética discussão a respeito da atuação do deputado
federal e pastor evangélico Marco Feliciano, relator do projeto alcunhado de “Cura Gay”. Isso
denota, e por isso nossa marcação tão enfática, o peso da religião, não desmerecendo as demais
variáveis (posição de classe, capital cultural acumulado etc.), na forma de interpretações questões
do mundo.
Por fim, para não nos alongarmos, acreditamos que experiências como essas são produtivos
“termômetros” sobre como pensam nossos jovens estudantes. A despeito das limitações de escopo
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 194
e análise, atividades como esta movimentam os alunos, além de permitir uma tentativa de integração
e interdisciplinaridade entre disciplinas tradicionalmente não alinhadas no que tange ao cotidiano
escolar, o que por si só já confere uma riqueza inestimável de conteúdo.
Referências bibliográficas
BENEVIDES, Maria Victoria de Mesquita. A cidadania ativa – referendo, plebiscito e iniciativa
popular, 3ª edição, 2ª impressão, SP: Ática, 2000.
FRIGOTTO, Gaudêncio. “A interdisciplinaridade como necessidade e como problema nas Ciências
Sociais”. Revista do Centro de Educação e Letras, v. 10, nº 1, 2008, pp. 41-62.
MORAES, Amaury Cesar; GUMARÃES, Elisabeth Fonseca; TOMAZI, Nelson Dacio. Orientações
Curriculares para o Ensino Médio. Conhecimentos de Sociologia, v. 3, Brasília: Ministério da
Educação, 2006, pp. 101-133.
SOARES, Jefferson da Costa. O ensino de sociologia no Colégio Pedro II (1925-1941). Dissertação
de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação, Rio de Janeiro: UFRJ, 2009, 139f.
NOTAS
1
No seu artigo 14, a Constituição Federal de 1988, atendendo às diversas reivindicações populares, estabeleceu
alguns mecanismos de participação política, tais como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular, para garantir,
ao menos no âmbito formal, a democracia participativa.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 195
APRENDIZAGEM ATRAVÉS DA PESQUISA EM SOCIOLOGIA NA EDUCAÇÃO DE
JOVENS E ADULTOS
Simone Pontes dos Santos
Mestranda PPGS-UFF
Introdução
O presente trabalho visa apresentar uma proposta de pesquisa escolar destinada aos alunos da 3ª fase
do Ensino Médio, modalidade Ensino de Jovens e Adultos (EJA) do Colégio Estadual Raymundo
Corrêa, situado no bairro de Campo Grande, na Zona Oeste do Rio de Janeiro. A proposta de
pesquisa em questão consiste em investigar a memória do bairro de Campo Grande como um exercício
de imaginação sociológica ao permitir a identificação dos reflexos de questões estruturais da sociedade
sobre as perturbações na vida individual do aluno, uma vez que se torna passível de se ver, com
maior nitidez, as influências do mundo social sobre sua a trajetória pessoal. Além disso, o estudo
sobre a memória do bairro estimularia uma conscientização das demandas locais, bem como a
valorização de sua identidade.
A atividade está relacionada ainda à problemática envolvendo a metodologia de ensino da Educação
de Jovens e Adultos (EJA) na disciplina Sociologia, por isso pretende-se realizar um trabalho em que
se combine a transmissão de conhecimentos dominados com a construção de novos saberes e com a
possibilidade de utilização dessas informações na comunidade. A aprendizagem por meio da pesquisa
coloca o aluno no papel de pesquisador e produtor de novos conhecimentos proporcionando uma
aprendizagem dotada de finalidade e significado.
Neste trabalho, pretendo situar historicamente o bairro de Campo Grande, no contexto mais amplo
da cidade do Rio de Janeiro e o seu crescimento urbano.
A memória social
Segundo Halbwachs, a memória, como fenômeno social, é coletivamente construída e reproduzida
ao longo do tempo. Assim como o patrimônio cultural (ou como um patrimônio cultural), a memória
social é dinâmica, mutável e seletiva, pois nem tudo o que é importante para o grupo fica registrado
na memória e, portanto, não é repassado às gerações seguintes. (HALBWACHS, 2004) Para o
autor, a memória individual é construída a partir e no interior de um grupo, logo, sendo construída
de uma memória coletiva e de uma memória histórica. Esta é entendida como o “passado vivido”,
constituído pela sucessão de acontecimentos marcantes na vida do grupo, da nação, do país, e que
possibilita a construção de uma narrativa sobre o passado.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 196
A identidade, por sua vez, reflete todo o investimento que um grupo faz, ao longo do tempo, na
construção da memória. Portanto, a memória coletiva está na base da construção da identidade.
Esta reforça o sentimento de pertencimento e, de certa forma, prescreve unidade e a continuidade
histórica do grupo. A relação entre memória e identidade social se refere, neste caso, ao conjunto de
elementos que podem nos permitir compreender diferentes situações.
Mello e Vogel (1984) afirmam em sua proposta de Arqueologia Urbana, que
“o caminho para definir a identidade, o caráter de certos bairros, regiões e
centros urbanos depende, portanto, em maior ou menor escala, de se reconstituir
a história dos seus espaços e da maneira de praticá-los. Isso envolve a ideia da
recorrência quotidiana; do que é comum dentro de determinados quadros de
referência sócio-espaciais.(...) A cidade surge, neste sentido, como o theatrum
da sociedade. Ela é o lugar da representação e da expressão. Os lugares urbanos
são palcos onde se representam os papéis mais significativos para os diferentes
grupos sociais que habitam a cidade. Como são estes os responsáveis pelo aspecto
e conformação desses lugares, podemos acrescentar que, através deles (lugares)
se expressam os valores afeiçoados na sociedade. O espaço construído é, portanto,
um elemento constitutivo da própria cultura e confere ao modo de vida vigente o
seu caráter peculiar.” (MELLO E VOGEL, 1984, p. 4)
Essa diversidade de realidades contribui efetivamente para a construção de diferentes memórias
sobre a região e seus moradores, quase sempre relacionadas à pobreza, à violência e ao abandono.
Existe uma limitação em relação ao acesso dos moradores a alternativas de lazer e espaços culturais
e de transmissão cultural. Uma possível identidade social é muitas vezes negada, principalmente
pelos meios que formam opinião. A tentativa de construção de uma memória oficial da região está
associada à descaracterização dos diferentes elementos culturais e sociais construídos nos bairros e
que pode refletir uma possível identidade. A partir dessas considerações, a escolha do campo de
pesquisa sendo o bairro de Campo Grande deve-se à necessidade de resgatar a memória do mesmo,
que sendo meu próprio local de origem, portanto, constitui-se uma memória pessoal que se entrelaça
à memória coletiva.
O bairro e a questão espacial
Um bairro pode ser compreendido como o espaço físico e afetivo no qual ocorrem as relações
sociais cotidianas do sujeito. Halbwachs (2004) explica que as imagens espaciais desempenham um
importante papel na memória coletiva.
Todas as ações do grupo podem ser traduzidas em termos espaciais, o lugar por ele ocupado é
apenas a reunião de todos os termos. Cada aspecto, cada detalhe desse lugar tem um sentido que só
é inteligível para os membros do grupo, porque todas as partes do espaço que ele ocupou
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 197
correspondem a outros tantos aspectos diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade, pelo
menos o que nela havia de mais estável.
A primeira concepção que podemos utilizar para bairro está relacionada aos critérios de delimitação
da área pela administração pública, podendo ser compreendida como a menor porção da unidade
administrativa. Porém, a percepção dos moradores e usuários pode se confrontar a ela.
Kevin Lynch (1982) considera um bairro um fragmento de cidade, apresentando características
particulares que o diferenciam de outros bairros na cidade. A partir da percepção da disposição
física de um dentro do outro, esse autor considera que tais disposições se justificam no cotidiano
coletivo quando são representativas ou dotadas de significado para a população. Assim, ele propõe
que a subjetividade seja uma categoria central de análise de concepções de um bairro. Ele enumera
fatores que influenciam a imagem de uma cidade e de seus bairros: o significado social de uma área,
sua função, sua história e o seu nome. Para esse autor, os limites geográficos podem funcionar como
“referências secundárias’’, tendo as relações pessoais e grupais como demarcadores de territórios
e papéis (LYNCH, 1982, p. 37).
Para os pesquisadores da Escola de Chicago, a unidade básica de pesquisa é o bairro. Para eles, a
cidade, mais do que uma simples coleção de prédios isolados, lugares e pessoas, envolvia um modo
de vida, o urbanismo, definido como um estado de espírito, um conjunto de costumes, tradições
atitudes e sentimentos ligados especificamente à residência na cidade.
A Escola de Chicago inaugura uma reflexão inédita ao tomar a cidade como seu objeto privilegiado
de investigação, tratando-a como variável isolada, o que em si não constituiria um mérito, mas o que
renderia à Escola os créditos da criação da Sociologia Urbana como disciplina especializada. Seus
membros se distinguiram nos anos 1910 a 1930 por suas descrições e análises vívidas e particularizadas
da vida urbana, amparadas por cuidadosas entrevistas em profundidade, levantamentos sociais e
mapas mostrando a distribuição das várias características da paisagem social.
Segundo Coulon (1995), o empirismo que marca a abordagem da Escola - que transforma a cidade
de Chicago em um “laboratório social”- resulta do interesse de buscar soluções concretas para uma
cidade caótica marcada por intenso processo de industrialização e de urbanização, que ocorre na
virada do século XIX para o XX. Seu crescimento demográfico espantoso, seu imenso contingente
imigratório, seus guetos de diferentes nacionalidades geradores de segregação urbana, sua
concentração populacional excessiva e suas condições de vida e de infraestrutura precaríssimas,
favorecem a formulação pela Escola da ideia da cidade como problema, que dificulta a articulação
de um pensamento com maior grau de abstração acerca da cidade.
De acordo com Petonnet, não é possível entender um aspecto do bairro separado do todo:
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 198
“A cidade é conhecida desde suas origens por conter, ou deter, a autoridade –
civil, militar, religiosa –, o comércio e a indústria, e por se alimentar dos campos.
Ela é desde sempre o lugar de todas as misturas, do movimento incessante, da
circulação incontrolável dos homens e das coisas, da pluralidade, em suma. Como
abordá-la? É provavelmente tão falacioso encará-la como uma unidade social
quanto acreditar que um bairro é uma parte separada do todo. As cidades estão
em relação umas com as outras, e quem estuda o comércio se verá imediatamente
projetado fora das fronteiras nacionais.” (PETONNET, 2008, p. 100)
Foco da pesquisa: o bairro de Campo Grande
A Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro corresponde a cerca de 60% da área do município e
abriga mais de 2 milhões de habitantes, abrangendo bairros populosos como Campo Grande, com
mais de 250 mil moradores e que apresenta atualmente um crescimento populacional significativo.
Presente na história da cidade desde a sua ocupação no século XVI a região se destacou pelo seu
papel associado à produção agrária e abastecimento da região central. A ocupação ocorreu de forma
desordenada, como em quase toda a cidade. Até a primeira metade do século passado predominava
na região um cenário rural, vale lembra que a Zona Oeste já foi chamada de sertão carioca, zona
rural até ganhar a nomenclatura de Zona Oeste.
A urbanização e ocupação desordenadas da região contribuíram de forma decisiva para o seu
crescimento, adquirindo ao mesmo tempo uma série de mazelas e preconceitos. O desenvolvimento
diferenciado entre os bairros pode ser percebido para além da questão geográfica, histórica e até
cultural. Essa diversidade de realidades contribui efetivamente para a construção de diferentes
memórias sobre a região e seus moradores, quase sempre relacionadas à pobreza, à violência e ao
abandono. Existe uma limitação em relação ao acesso dos moradores a alternativas de lazer e espaços
culturais e de transmissão cultural. Uma possível identidade social é muitas vezes negada,
principalmente pelos meios que formam opinião. A tentativa de construção de uma memória oficial
da região está associada à descaracterização dos diferentes elementos culturais e sociais construídos
nos bairros e que pode refletir uma possível identidade. O A relação entre memória e identidade
social se refere, neste caso, ao conjunto de elementos que podem nos permitir compreender diferentes
situações.
A pesquisa sobre a memória, portanto, seria uma contribuição para efetivas transformações,
principalmente para aqueles grupos sociais que não têm sua cultura e história consideradas como
tal. A partir dessas considerações, a escolha do objeto norteador de pesquisa sendo o bairro de
Campo Grande deve-se à necessidade de valorizar a memória do bairro. Há um grande
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 199
desconhecimento sobre diversos aspectos relacionados ao bairro, portanto, acredito que o resgate
da memória leve os alunos a se posicionarem criticamente sobre suas demandas, estimule a participação
política e a preservação do patrimônio.
A Educação de Jovens e Adultos no Ensino Médio
Pensar a Sociologia no currículo de Ensino Médio do Ensino de Jovens e Adultos pressupõe refletir
sobre a educação brasileira. O crescimento do número de matrículas nos últimos anos na rede pública
estadual e em cursos noturnos (EJA) mostra que o Ensino Médio tem incorporado grupos sociais
que se encontravam excluídos desse nível de ensino, que almejam o prosseguimento de estudos por
meio de uma formação geral sólida e preparação básica para o trabalho (DOMINGUES, TOSCHI
& OLIVEIRA, 2000).
A educação de jovens e adultos é um direito assegurado pela lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDBEN), é garantida gratuitamente aos que não tiveram acesso na idade própria.
A história da Educação de jovens e adultos é muito recente. No começo do século XX, com o
desenvolvimento industrial no Brasil, é possível perceber uma lenta valorização da EJA, pois gerou
a necessidade de uma força de trabalho especializada e isso contribuiu para a criação destas escolas
para adultos e adolescentes.
O ensino supletivo foi implantado com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação, LDB 5692/71.
Nesta lei um capitulo foi dedicado especificamente para o EJA. Em 1974 o MEC propôs a implantação
dos CES (Centros de Estudos Supletivos), tais centros tinham influências tecnicistas devido à situação
política do país naquele momento.
Na década de 90 emergiram iniciativas em favor da Educação de jovens e adultos, o governo incumbiu
também os municípios a se engajarem nesta política. Foram criadas parcerias entre ONGs, municípios,
universidades, grupos informais, populares e através dos Fóruns estaduais, nacionais, a partir de
1997, a história da EJA começa a ser registrada no “Boletim da Ação Educativa”.
Atualmente, o governo do Estado do Rio de Janeiro criou uma nova política de Educação de Jovens
e Adultos (EJA) denominada NOVA EJA. Ela foi elaborada pela Secretaria de Estado de Educação,
em parceira com a Fundação Centro de Ciências e Educação Superior à Distância do Estado do Rio
de Janeiro (Cecierj), e será implantada a partir de 2013 em todas as escolas que ofertam EJA no
Ensino Médio para alunos que tenham 18 anos ou mais e queiram concluir o Ensino Médio.
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Perfil do aluno da EJA
A EJA é uma modalidade de ensino que concentra uma classe de especificidade sociocultural, ou
seja, onde a maioria dos estudantes pertence a uma classe economicamente baixa. É conveniente
lembrar que é um grupo de alunos amadurecidos que vivenciam problemas extraescolares, que
ficaram bastante tempo sem estudar e buscam programas de elevação de escolaridade com a finalidade
de melhorar suas chances de inserção no mercado de trabalho. A ampliação de escolaridade e
aprendizagem é também uma busca do reconhecimento social e da afirmação da autoestima. Por
isso, a aprendizagem na EJA é cercada pelas dificuldades do ensino dos professores à limitação de
condições materiais e a falta de materiais instrucionais construídos especificamente para esse segmento.
Esses fatores contribuem direta ou indiretamente para a evasão, principalmente por se sentirem
excluídos da dinâmica de ensino-aprendizagem. Nesse processo de exclusão, o insucesso motiva a
frequente atitude de distanciamento, temor e rejeição em relação às disciplinas do currículo, que
parecem aos alunos inacessíveis e sem sentido. (BRASIL, 2002b, p. 13).
A educação de Jovens e Adultos traz muitos desafios tanto para professores quanto para alunos.
Moll esclarece muito bem o papel do educador na EJA, ao citar que:
“O papel do educador é pensar formas de intervir e transformar a realidade,
problematizando-a, dialogando com o educando. Em sala de aula o importante
não é “depositar” conteúdos, mas despertar uma nova forma de relação com a
experiência vivida. Portanto, antes de qualquer coisa, é preciso conhecer o aluno:
conhecê-lo como indivíduo num contexto social, com seus problemas, seus medos,
suas necessidades, valorizando seu saber, sua cultura, sua oralidade, seus desejos,
seus sonhos, isto possibilita uma aprendizagem integradora, abrangente, não
compartimentalizada, não fragmentada”. (2004, p.140)
Portanto, é necessário refletir continuamente sobre a metodologia de ensino da Educação de Jovens
e Adultos e elaborar diferentes estratégias de aprendizagem para este público que aproximem o
conteúdo à realidade do aluno e procure inovar sem criar barreiras para afastar esses alunos. É
importante oferecer oportunidades para interpretar problemas, compreender os processos sociais,
utilizar informações e dados estatísticos para estabelecer relações, interpretar resultados e compreender
situações novas e variadas.
Aprendizagem e avaliação através da pesquisa
A educação, para ser completa, deve interferir sobre todas estas dimensões. A técnica, o conhecimento
e os saberes práticos são imprescindíveis para ajudar a humanidade a responder às demandas da vida
cotidiana, a gerar o conhecimento, a produzir e expandir as bases materiais. A complexidade da
realidade exige superar o paradigma reducionista, na busca de um saber complexo, que permita
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 201
distinguir sem desarticular, através da formação de grupos que possam praticar a interdisciplinaridade
e o diálogo de saberes (MORIN, 1988).
Nesse sentido, o conhecimento deve ser proposto a partir de dúvidas, de questionamentos, de busca
de solução para resolver problemas reais. O aluno deve acostumar-se a não se conformar com uma
única resposta, é preciso que ele aprenda a discutir e expressar suas opiniões com clareza. O conteúdo
que transmitimos para se tornar conhecimento tem que ter aplicação na vida prática. A
interdisciplinaridade deve fazer parte também desse processo os temas transversais como, ética,
valores e cidadania são temas que norteiam a construção do conhecimento.
O ensino com pesquisa aponta caminhos para inovar o processo pedagógico. Aqui é possível obter
uma avaliação contínua, processual e participativa de muita qualidade, e, principalmente, diminuindo
o caráter punitivo que a avaliação tradicional costuma apresentar. O erro passa a ser visto como
caminho para a investigação e o aluno, tendo clareza de seu papel e sua função, sente-se responsável
pelo seu desempenho durante todo o processo.
Paulo Freire acreditava que a escola deveria ensinar o aluno a “ler o mundo” para obter transformações,
sendo essencial a conscientização, é preciso fazer com que o aluno se transforme em sujeito pensante,
crítico e consciente do que lhe envolve no dia a dia. Segundo Leal:
“O conhecimento na ação, ou o conhecimento tácito, seria aquele constituído na
prática cotidiana do exercício profissional. Concebemos que esse é um saber que
se constrói com base nos conhecimentos prévios de formação inicial, articulado
com os saberes gerados na prática cotidiana, de forma assistemática e muitas
vezes sem tomada de consciência acerca dos modos de construção. Para um
projeto de formação numa base reflexiva, torna-se fundamental conhecer e
valorizar esses conhecimentos que são constituídos pelos professores, seja através
de uma reflexão teórica, seja através desses processos eminentemente
assistemáticos.” (LEAL, 2005, p.114)
Dubet (2003) afirma que a escola é o agente de uma exclusão singular ao transformar a experiência
dos alunos e abrir uma crise de sentido nos estudos e, por vezes da legitimidade da instituição
escolar. Nesse sentido, a exclusão escolar é o reflexo de uma escola democrática de massa que
afirma a igualdade dos indivíduos e, ao mesmo tempo, a desigualdade de seus desempenhos,
funcionando, então, sob a lógica excludente de mercado. Dessa maneira, quanto mais “ativos” são
os métodos pedagógicos, mais eles mobilizam competências educativas e recursos culturais. Para
desenvolvê-los, o professor deverá assumir seu papel de mediador, de articulador no processo de
construção do conhecimento de seus alunos e o estabelecimento de múltiplas conexões. Cabe a ele
mais uma vez, procurar mostrar que a pesquisa é importante para o seu autoconhecimento. O aluno
ao fazer sua pesquisa, passa a se conhecer melhor, e busca sua própria aprendizagem, estando
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 202
sempre pronto para, muito mais do que responder rapidamente às questões propostas, buscar onde
elas estão.
O aluno deve perceber a relevância do estudo, associado à valorização do seu eu e das necessidades
especiais. O trabalho com pesquisa proporciona exatamente isso, aprender coisas que tem relação
com a vida dos alunos e professores, exigindo do professor uma postura diferenciada, a de orientador
e mediador da aprendizagem.
Proposta de pesquisa
O Colégio Estadual Raymundo Corrêa tradicionalmente realiza, ao final de cada semestre, uma
culminância onde os alunos apresentam projetos de trabalho. A experiência desse trabalho coletivo
me fez repensar acerca da minha atuação como docente e o quanto estaria colaborando paro o
aprendizado efetivo e à autonomia dos alunos. A partir dessas reflexões, articulei uma atividade de
pesquisa que tivesse uma metodologia adequada, a fim de desenvolver a habilidade de relacionar os
conteúdos didáticos ao cotidiano dos estudantes, estimulando a curiosidade sobre o bairro onde
residem. A proposta aqui procura se distanciar da prática comum de pesquisa escolar do “ctrl c +
ctrl v” ou “recorta e cola”, tão rejeitada pela maioria dos professores.
Considerando o caráter transdisciplinar da Memória social, a pesquisa englobaria diversos aspectos
que considero pertinentes no bairro:
·
A História de Campo Grande;
·
A demografia: migração e presença de diferentes grupos étnicos;
·
O espaço geográfico e a biodiversidade: o Parque Municipal da Serra do Mendanha,
que tem presença do vulcão inativo, o Parque Estadual da Pedra Branca e a poluição no
bairro causada pela ação antrópica;
·
As diversas práticas religiosas da população: a história da igreja que marcou a ocupação
territorial da Região, a atividade das congregações cristãs, a história das CEBs, o crescimento
de igrejas neopentecostais, as práticas afrodescendentes e a maçonaria;
·
A diversidade cultural: identificação dos locais destinados à cultura, como a lona cultural,
o teatro Arthur Azevedo, os antigos cinemas de rua, as escolas de samba, a produção artística,
festas típicas, etc;
·
Saúde pública: as condições dos hospitais, postos de saúde e as políticas públicas contra
a dengue, por exemplo;
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 203
·
Educação: as condições das escolas públicas, as faculdades e escolas tradicionais, a
criação da Universidade Estadual da Zona Oeste (UEZO), a demanda por livrarias e biblioteca
pública;
·
Política: as eleições no bairro, o perfil dos vereadores e deputados, a militância de partidos
políticos;
·
As relações de poder e violência: a presença de grupos de traficantes e milicianos que
dominam determinados locais;
·
Economia: o centro industrial (localização estratégica de escoamento para o Porto de
Sepetiba); a zona rural e a produção de alimentos, o comércio popular, a história do Mercado
Popular São Brás (que sofreu um incêndio recentemente), comércio tradicional e os pólos
gastronômicos;
·
O impacto socioambiental do Park Shopping. Este tópico tem relevância pelo fato do
novo shopping, inaugurado em novembro de 2012, estar situado próximo à escola, ter contado
com a força de trabalho de muitos alunos e valorizar a região que até então tinha pouca
visibilidade. A ideia é problematizar a criação empreendimento, que é visto como benéfico
pela maioria dos alunos, e buscar as razões econômicas;
·
O transporte público: problemas do trânsito no bairro e um olhar crítico sobre a criação
da TransOeste, principal via de acesso dos trabalhadores à Barra da Tijuca e Recreio dos
Bandeirantes (utilizada diariamente por muitos alunos);
·
Esporte: a importância do Centro Esportivo Miécimo da Silva, o abandono do estádio
Ítalo Del Cima, a história do time de futebol, os atletas do bairro;
·
Movimentos sociais: Exemplos: mobilizações na década de 80 pela estatização da
Faculdade de Filosofia de Campo Grande (FEUC) e pela emancipação do bairro, nos anos
90 contra a venda do Cine Palácio Campo Grande para a Igreja Universal do Reino de Deus,
a militância política nas CEBs, o Núcleo Socialista de Campo Grande e os movimentos
sociais atuais.
É necessário apresentar aos alunos o roteiro de pesquisa e, de maneira sucinta, levantar alguns
problemas que poderiam surgir durante a pesquisa de campo e a metodologia obrigatória para a
proposta. Os seguintes elementos devem compor o roteiro de pesquisa: título, tema (apresentar o
assunto escolhido), problema (definição e recorte dentro do tema), justificativa (analisar a pertinência
do estudo, o motivo da escolha do problema), objetivo (levantamento da(s) hipótese(s)), metodologia
(o caminho da pesquisa) e referências bibliográficas. Espera-se que os alunos se conscientizem da
necessidade do método para a pesquisa e façam um esboço de um roteiro simples, menos elaborado
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 204
que o de um projeto de pesquisa para a graduação ou pós-graduação, por entender a sua adaptação
à modalidade de ensino em curso.
É importante apresentar diversas fontes possíveis, como as escritas (livros, jornais de bairros, revistas),
as fontes orais (depoimentos), fontes iconográficas (desenhos, propagandas, fotografias, histórias
em quadrinho, cartuns, rótulos, etc) e fontes que permitem desenvolver o estudo da cultura material.
Considero um desafio fazer com que o aluno busque mais e mais respostas para suas dúvidas,
aproveitando ao máximo todas as possibilidades que a pesquisa pode oferecer como um incentivo
ao estudo contínuo, já que não estão acostumados a serem ativos no processo ensino-aprendizagem.
Acredito que com esta experiência os alunos aprenderão muito mais do que apenas o conteúdo
tradicional, como: capacidade de leitura e interpretação, expressão oral e escrita, trabalhar em equipe,
além de estimular o desenvolvimento das múltiplas inteligências. Espero que a pesquisa venha a
cumprir sua função de motivar os alunos a buscar informações para resolver problemas, ao socializar
os estudantes entre eles e fortalecer a identidade e a memória do bairro, que sirva também para
conscientizar acerca dos problemas da região, na medida em que vários conhecimentos de diversos
campos do saber estão presentes na pesquisa sobre a memória do bairro, de fundamental importância
para a construção de uma identidade social. Esta atividade contribuirá ainda para que o aluno
desenvolva a articulação entre teorias e fatos, a capacidade de formular problemas e o questionamento
das ideias preconcebidas.
Conclusão
Considerando a inclusão da Sociologia como obrigatória na educação básica, creio que esta atividade
possa contribuir para pensar o currículo da EJA, atendendo, assim, às especificidades culturais dos
grupos sociais minoritários no sentido de oferecer ao estudante novos modos de pensar, ser capaz
de problematizar, realizar a desnaturalização das concepções ou explicações dos fenômenos sociais,
isto é, promover a imaginação sociológica, tal como propõe os PCNs, e contribuindo para um
ensino de melhor qualidade.
Acredito que o professor deve ter uma postura mais flexível buscando compreender e aceitar os
variados tipos de inteligência de seus alunos, para que novas possibilidades de conhecimento e
aprendizado sejam realizadas e, primordialmente, que as pesquisas escolares deixem de ser meras
cópias e possam tomar seu lugar como fonte de conhecimento. Aprendendo a organizar um projeto
de pesquisa, o aluno aprenderá a se organizar, sendo um importante passo processo para a construção
da sua autonomia. A aprendizagem não pode ser simplesmente transmitida, ela é um processo de
construção onde o professor busca oferecer meios que favoreçam tal construção, a do conhecimento:
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 205
tudo o que já foi vivido pelo aluno serve como base, o professor deve utilizar também a vivência e o
conhecimento prévio do aluno para ajudá-lo na construção do saber.
Acredito que a pesquisa apresenta-se como uma atividade viável de educação em ambiente escolar
para jovens e adultos que cursam o Ensino Médio. Esta proposta de aprendizagem através da pesquisa
em Sociologia mostra como é possível trabalhar também de forma multidisciplinar, articulando com
os conteúdos que julgamos importantes o currículo, contudo abrindo espaço para o que os alunos
possam construir conhecimento.
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II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 208
SOCIOLOGIA E VIOLÊNCIAS:
intersecção entre a prática docente e a desnaturalização dos estereótipos do que é violência.
Lucas Bottino do Amaral
Mestrando em Sociologia PPGS / UFF
Professor de Sociologia da SEEDUC-RJ
[email protected]
Introdução
O presente trabalho visa, principalmente, provocar uma reflexão coletiva sobre as percepções dos
educandos em relação às diferentes conceituações sobre o que é violência e sua realidade social,
tendo em perspectiva o diálogo com a instituição escolar e o currículo trabalhado em sala de aula.
Sendo assim, abre-se a refletir sobre o processo de formação permanente e coletivo de aprendizado
conjunto, construído a partir de indagações, dúvidas, necessidades e expectativas sobre a realidade
e a possibilidade de agir e intervir no cotidiano social.
Durante o processo de construção da pesquisa buscou-se desenvolver, paralelamente ao currículo
de Sociologia, atividades de desconstrução dos estereótipos de violência que existem no senso
comum dos jovens estudantes do ensino médio. Atividades essas, que de forma transversal a temas
como reprodução e efeitos de desigualdade, relações de gênero e raciais, inserção no mundo do
trabalho e relações dentro da escola, buscavam aperfeiçoar a proposta curricular, aprimorando os
critérios avaliativos, atualizando o conhecimento teórico-prático, procurando atingir os objetivos e
metas propostas, sempre com o intuito de evoluir a capacidade do processo de ensino e de
aprendizagem.
Deste modo, considera-se como de suma importância o envolvimento ativo de todos os componentes
da escola no processo, participando de todas as decisões para se chegar ao benefício da educação
para a cidadania. E que as problemáticas apontadas pelos educandos no desenvolvimento do projeto
possibilitem estimular a construção de debates temáticos que contribuam efetivamente para a
multiplicação da experiência em outras localidades, bem como para a reflexão sobre a realidade dos
jovens de classes populares perante a violência.
Referencial Teórico
Especificamente neste trabalho, será utilizada a seguinte abordagem (Bourdieu, Dayrell, Garcia,
Lahire, Sposito): a juventude será encarada e percebida como uma categoria dinâmica, que
transforma-se e modifica-se dentro de contextos e situações históricas.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 209
Sendo influenciada por fatores culturais, inserções de classe, gênero, inclusive sofrendo diferenciações
geográficas. Carrano (2011), aponta a necessidade metodológica de não deduzir quem são esses
sujeitos diretamente de seu local social, sem considerar as variáveis que se apresentam em suas
trajetórias e as possibilidades de escolha que surgem a partir de experiências individuais, pois:
“Hoje, os jovens possuem um campo maior de autonomia frente às instituições do
denominado “mundo adulto” para construir seus próprios acervos e identidades
culturais. Há uma rua de mão dupla entre aquilo que os jovens herdam e a capacidade
de cada um construir seus próprios repertórios culturais.” (CARRANO, 2011:07)
Neste sentido, as relações estabelecidas pelos sujeitos se enquadram dentro de uma lógica que
correlaciona seu contexto social e suas possibilidades de ação. Mas inseridos em campos e universos
sociais diferenciados e com referências que se entrecruzam, sendo conformados, confrontados e
adaptados à medida que buscam construir sua trajetória.
Para isso, dentro da abordagem metodológica deste trabalho, estes sujeitos e suas ações, não serão
encarados e percebidos somente como objetos de pesquisa, pois os jovens são sujeitos que pensam
a respeito de suas próprias condições, de suas experiências de vida. Colocando-se muitas vezes a
partir de uma dimensão simbólica expressiva (Carrano, 2002; Sposito, 2005), onde o mundo da
cultura e suas expressões aparecem como um campo privilegiado de ações e representações, onde a
construção da condição juvenil se efetiva e ganha reconhecimento, pois neste movimento os jovens
se comunicam com si mesmos e com a sociedade.
A partir do momento em que os professores analisam o processo educacional no qual estão inseridos
e, passam a observar as relações de construção identitária de seus alunos, o que se percebe é que os
jovens ao mesmo tempo em que se constituem enquanto alunos, também sofrem influências de
outros fatores alheios e externos a escola1. Isto acarreta em uma relação que em muitos casos é
percebida como antagônica, enquanto deveria ser percebida como uma relação plural, do jovem se
constituir como sujeito e como aluno, e muitas vezes como trabalhador. São práticas sociais distintas,
mas que são vivenciadas concomitantemente e que incorporam significados à medida que são
articuladas durante este percurso.
As pesquisas que versam sobre os fracassos e sucessos escolares2, colocam que somente é possível
aderir completamente a condição de se perceber somente enquanto aluno, e realmente poder se
dedicar somente aos estudos se houver uma boa condição social e incentivo familiar, e ainda, que
haja uma articulação dos seus interesses com o percurso escolar. Mas para a maioria dos estudantes,
articular estes momentos é algo mais complexo, pois se torna difícil conciliar seus interesses com o
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 210
percurso escolar e suas demandas, onde encontram mais obstáculos e resistências para construírem
um sentido comum para esta vivência, juntamente as motivações que estão relacionadas a um projeto
futuro.
Diferentes autores3, percebem em suas pesquisas que durante muito tempo, e ainda hoje, a experiência
juvenil no cotidiano escolar está envolvida em uma série de relações que tornam árdua a inserção do
jovem na condição plena de aluno. Devido a diversidade dos jovens que estão inseridos em sala de
aula, com suas especificidades e demandas, a escola pública com uma cultura escolar que foi
estabelecida em outro contexto, não consegue atrair e se mostrar como referência efetiva e única
para uma parcela significativa dos jovens.
Partindo desta perspectiva e para analisar os aspectos centrais da prática docente dentro de sala de
aula, bem como os objetos centrais da pesquisa, serão utilizados conceitos, teorias e metodologias
de autores que escrevem e trabalham com o cotidiano escolar (suas práticas culturais – sociais –
educacionais), a sociabilidade intra e extramuros escolares e todo o fazer que perpassa e integra os
determinantes da ação que compõem o ambiente escolar. Nesse sentido, haverá um recorte a partir
de pontos centrais dos autores chaves para a compreensão do texto relacionando-os diretamente ao
foco, que é a relação existente na intersecção entre violências – escola – alunos - professores.
Para se proceder uma análise destas correlações, é necessário compreender a experiência de
determinada condição juvenil a partir das colocações dos próprios jovens num diálogo com as
permanências no interior do sistema de ensino. Em suma, é de extrema importância estabelecer
conexões entre os diferentes itinerários, com seus conflitos e obstáculos, e os próprios jovens com
suas respectivas falas e representações, situando-os dentro do processo histórico no qual se inserem
e dentro da estrutura social da qual fazem parte.
Nesse sentido, a discussão metodológica do projeto incorpora-se num ambiente de formação com
a seguinte base de trabalho: tanto os educadores como os educandos, bem como os demais
participantes da instituição escolar, ou seja, toda rede social que atravessa o fazer cotidiano são
trampolins para saltos qualitativos de participação social efetiva, ou seja, são colocados como sujeitos
históricos, e não a-sujeitados da história, mas sim mutáveis localizados no tempo, que se permitem
expor os seus medos, suas aspirações, realizações, experiências, etc. (CHARLOT, 2002).
Mas ao invés de buscar apenas resultantes nas falas extraídas dos educandos, estas foram confrontadas
com conceitos e referenciais teóricos do campo da Educação e das discussões sobre juventude
próprias à Sociologia. A pesquisa procurou estudar a perspectiva que os estudantes têm acerca da
violência em seu cotidiano escolar e a maneira como essa repercutia externamente à escola.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 211
Deste modo, buscou-se durante a pesquisa a compreensão de como os estudantes do Ensino Médio,
oriundos da rede pública e de classes populares, atribuem sentido à vivência da intersecção das
relações existentes entre educação e violência, e como vivem as atuais situações educacionais e
sociais, aliadas a compreensão de como a cultura produzida por esses jovens durante as aulas de
Sociologia, difere da(s) difundidas pelo senso comum.
Pois muitas vezes a cultura dominante não permite um espaço de reflexão crítica dentro do sistema
de ensino. Bourdieu, 1999, faz importantes considerações sobre o conceito da reprodução de uma
cultura dominante, que se caracteriza por violências praticadas aos contingentes tido como
desprivilegiados socialmente, pois:
“[…] as violências mais ou menos importantes que, continuamente, têm tido como
objetivo os estabelecimentos escolares mais deserdados, nada mais são que a
manifestação visível dos efeitos permanentes das contradições da instituição escolar
e da violência de uma espécie absolutamente nova que a escola pratica sobre aqueles
que não são feitos para ela. Como sempre, a Escola exclui: mas a partir de agora,
exclui de maneira contínua (...) e mantém em seu seio aqueles que exclui,
contentando-se em relegá-los para os ramos mais ou menos desvalorizados.”.
Partindo do pressuposto de que não há uma cultura juvenil única, pode-se analisar diferentes práticas
culturais e aspectos diversos das culturas juvenis. Pois as culturas juvenis são geracionais, de classe
e historicamente condicionadas (GARCIA, 2006). Juarez Dayrell, neste sentido, ao caracterizar o
“ser jovem” como um conceito sociológico diz que:
“Ao mesmo tempo, o sujeito é um ser social, com uma determinada origem familiar,
que ocupa um determinado lugar social e se encontra inserido em relações sociais.
Finalmente, o sujeito é um ser singular, que tem uma história, que interpreta o
mundo e dá-lhe sentido, assim como dá sentido à posição que ocupa nele, às suas
relações com os outros, à sua própria história e à sua singularidade.”. (DAYRELL,
2003)
Para o autor, o sujeito é ativo, age no e sobre o mundo, e nessa ação se produz e, ao mesmo tempo,
é produzido no conjunto das relações sociais no qual se insere (DAYRELL, 2003). Assim, ao analisar
o conceito de juventude(s) a partir de critérios históricos e culturais, pretenderemos construir uma
noção de juventude na perspectiva da diversidade.
Buscar-se-á, relacionar o contexto social dos jovens ao referencial teórico, almejando compreender
o jovem como sujeito social, e ver como eles constroem um modo específico de ser jovem,
relacionando as práticas escolares com situações de violência.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 212
No cotidiano das pessoas, a violência assume contornos multifacetados e fluidos, aparecendo como
um fenômeno complexo de múltiplas determinações. Estando diluído no tecido social, esse fenômeno
apresenta-se de diferentes formas, assumindo diversos contornos em função de relações sociais,
políticas e culturais, e assim, podendo associar-se a esquemas de segregação e exclusão social,
convertendo-se em tipos específicos de ações direcionadas a determinados grupos.
Para Miriam Abramovay: “A violência escolar tem numerosas causas e consequências e o papel de
uma análise sociológica é conhecer e se interrogar sobre as categorizações de um dado problema
social”. (ABRAMOVAY, 2002). Já para Alba Zaluar, 2001: “A violência na escola é um fenômeno
complexo, que envolve vários fatores, internos e externos a instituição escolar, por isso é preciso
levar em consideração a peculiaridade de cada local e época.”.
Estes trechos permitem antever e apontam a importância de se pensar a instituição escolar e seu
papel influente na socialização dos educandos em um contexto social e historicamente datados. Para
assim ter-se um método mais apropriado de apreensão da realidade multifacetada que nos é
apresentada. Particularmente sobre as manifestações da violência no âmbito escolar, Bernard Charlot
(2002), caracteriza três formas características de violência que se repetem; são elas:
1.
A violência na escola: como algo: “que se produz dentro do espaço escolar, sem estar
ligada a natureza e às atividades da instituição escolar (a violência de fora, é que entra na
escola);”
2.
A violência à escola: “está ligada à natureza e ás atividades da instituição escolar: quando
os alunos provocam incêndios, batem ou insultam os professores e etc.;”
3.
A violência da escola: “é uma violência institucional, simbólica, que os próprios alunos
suportam através da maneira como a instituição e seus agentes os tratam. Por exemplo: os
modos de composição das classes, de atribuição das notas, da qualidade das aulas, palavras
ofensivas usadas pelos funcionários da escola, injustiças e relativização das regras.” (CHARLOT,
2002).
Atividades
1.
Apresentação do projeto para 2 turmas do 2º ano do Ensino Médio do Colégio Estadual
João Alfredo, seguida de uma atividade inicial levantando as seguintes questões: O que é violência?
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 213
Que tipos de violência já sofreu? Que tipos de violência já praticou?; seguida de uma reflexão
coletiva das respostas apresentadas.
2. Dinâmica reflexiva utilizando o rap “Periferia é periferia” do grupo Racionais Mc´s
relacionando desigualdade social, expectativas de vida e diversas manifestações de violências.
3. Exibição do filme Pro dia nascer feliz (2007) de João Jardim, acompanhado de um
registro dos educandos sobre as questões que permeiam os conceitos do que é violência e as
vivências dentro da instituição escolar, seguido de um debate sobre as impressões coletivas
geradas pelas situações do documentário. Com a realização de uma redação versando sobre
as relações entre violência e as desigualdades existentes no campo da educação pública e da
realidade social brasileira.
Desenvolvimento das atividades
A realização das atividades desenvolvidas com as turmas se deu durante os dois primeiros bimestres
de 2012, de forma intercalada. Buscando sempre conciliar as atividades do projeto com a grade
curricular, atrelando assim o conteúdo sobre as relações do mundo do trabalho e as produções de
efeitos de desigualdades, com outras questões sociais como educação e violência. Desta forma, as
atividades realizadas neste primeiro contato – bem como as outras que a seguiram – tinham a explícita
intenção de abrir um espaço livre para as falas dos educandos sobre suas percepções da realidade
social.
Nesse sentido, a dinâmica da pesquisa se deu da seguinte forma: após a apresentação da temática
sugerida, de seus pontos de partida e objetivos, enfatizou-se que pretendia-se valorizar as percepções
deles próprios sobre as questões que os circundavam, principalmente no que diz respeito à diversas
formas de violência e suas relações com os processos de desigualdade social presentes em nossa
sociedade.
Na primeira atividade realizada foi solicitado que os alunos respondessem a três perguntas
individualmente, e que depois seriam debatidas abertamente com o restante da turma, à luz dos
referenciais em que se baseiam este projeto. As perguntas feitas aos alunos foram “O que você
entende por violência?”, “Quais tipos de violência já praticou?”, e “Quais tipos de violência já sofreu?”.
Ao término desta atividade, a turma tinha reagido de maneira bastante positiva a proposta da atividade:
de se fazer uma reflexão e um debate sobre aspectos presentes na vida social cotidiana – no caso
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 214
específico as situações de violência e quais as possibilidades de ação que se apresentam frente à
estas experiências.
Boa parte da turma pareceu bastante interessada pela questão apresentada, de modo que esta
constituía para eles algo até certo ponto familiar. No decorrer deste debate, os principais pontos
levantados pelos educandos foram: Violência é uma agressão, que pode ser de ordem física, sexual,
psicológica, social, moral ou verbal. / Uma agressão feita a outrem ou a si mesmo. / Imposição de
algo que não é “normal” para a pessoa. / Uma forma de humilhação, discriminação. / Privar o outro
de seus direitos e deveres; e uma forma errada de resolver os problemas. Que se manifesta nas
seguintes formas: agressão, estupro, xingamento, tiroteio / assalto/ roubo, agressão à idosos, ameaças,
discussão. E é causada por: falta de igualdade na sociedade, falta de informação, falta de respeito a
direitos individuais, um impulso (para defesa ou por vontade).
No entanto, tinha-se também a intenção de traçar um paralelo entre o conteúdo da disciplina que
estava sendo passado no bimestre (trabalho e desigualdade social) com a discussão que estava sendo
implementada em sala de aula. Ao passo que se estabeleceu esta relação, a discussão tornou-se ainda
mais interessante e profunda.
Pois havia a intenção de suscitar nos alunos reflexões acerca de outros tipo de violência, como por
exemplo aquelas existentes nas relações de trabalho entre patrão e empregado – e se eles consideravam
uma forma de violência o fato de nestas relações de trabalho e produção o indivíduo ser alienado do
seu do produto final de seu trabalho -, ou então a violência simbólica presente neste tipo de relação
ou em outras relações que envolvem os conceitos de capital, classes sociais e ideologia.
Neste ponto a discussão tornou-se bastante interessante, na medida em que os alunos não só
perceberam (ou já percebiam) estes tipos de violência existentes, como também passaram a elencálos de forma bastante “clara”. Passaram a ser citados e evocados pelos educando, a partir deste
momento, uma série de apontamentos para as relações entre os tipos de violência que se dão nas
relações de trabalho capitalista e as formas de violência citadas por eles num primeiro momento.
Um exemplo disso é a relação feita por um aluno entre a violência sofrida pelo trabalhador no
processo de produção e nas relações de trabalho no qual está inserido e sua prática violenta dentro
do lar. Ou então a relação feita por outro aluno a respeito da conexão existente entre os tipos de
violência que eram aplicados nas relações de trabalho escravo, pré-capitalista, e os tipos de violência
e o tratamento empregado pela polícia em relação as camadas sociais mais pobres, residentes em
favelas ou áreas periféricas.
A atividade feita em seguida, foi a música “Periferia é Periferia”, dos Racionais Mc’s, a título de
exemplificação de diversas formas de violência que um indivíduo pode sofrer ou praticar. A maioria
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 215
das letras deste grupo relata situações de risco e violência, porém esta música especificamente, trata
de superar desafios que recaem sobre as populações periféricas, de classe sociais mais baixas do
ponto de vista econômico, como as próprias dificuldades econômicas e os obstáculos sociais que
decorrem destas dificuldades.
Sobre as questões apontadas pelos educando com relação a esta dinâmica, destacam-se: A
materialização da violência através da pobreza. / A violência que pode ser ocasionada pelo vício em
drogas como o Crack e a cocaína. / A violência nas relações de trabalho e nas relações de produção.
/ A violência verbal. / A violência através da prática de atos criminosos, como assaltar, roubar e
matar. / A violência exercida pelo “sistema manipulador”. / A violência decorrente das relações de
“politicagem”.
Foi realizada posteriormente a exibição do filme “Pro dia nascer feliz”, que aborda diferentes temáticas
pertinentes aos temas chaves do projeto, servindo de elemento desencadeador da discussão. A ideia
aqui era permitir que as percepções dos alunos se articulassem em torno dos temas violência /
sociedade e educação. A partir disso, e pensando a partir de Juarez Dayrell, (2003) os alunos foram
indagados sobre os temas abordados e estimulados a refletir a respeito das situações apresentadas
no filme.
Nesse sentido, houve várias intervenções dos alunos a partir de exemplos do filme dando exemplos
de relações com situações de sua realidade, seja de sua vida cotidiana como jovens, ou de lugares e
situações vivenciadas por pessoas próximas, como amigos ou familiares.
Uma das questões centrais do filme é não se deixar abater pelos desafios, não ter medo de enfrentar
os obstáculos. Mas em especial, o filme retrata relações de poder. Relações estas que muitas vezes
se cristalizam nas suas formas mais contundentes e diretas, que são a manifestação dos vários tipos
de violência que atingem o ambiente escolar. E isto é algo que se afigura muito presente na vida
tanto dos jovens retratados no filme quanto na dos pesquisados.
No que diz respeito à violência, é, mais especificamente, a necessidade de vingança e o “prazer” por
ver o outro pagar pelo que fez (situação que também acaba por se apresentar no filme de forma
circunstancial) que ainda é muito frequente nas falas e colocações dos alunos, pois eles se sentem
muito discriminados nas interações sociais. “Pode-se fazer qualquer coisa contra o jovem, não vai
dar em nada mesmo...”. Os alunos sempre se colocaram e expuseram suas experiências durante o
debate. Falaram também de vezes onde os jovens tinham sido vítimas de preconceito, e de situações
onde os jovens não se sentiam aceitos / reconhecidos. A questão da identificação e do sentimento de
aceitação se torna bem forte quando se trata dos grupos sociais de jovens e adolescentes, seja na rua,
em casa ou na escola.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 216
A reação de todos os alunos foi muito parecida, se agitavam quase que nas mesmas partes do filme.
Assim, ao final de cada exibição houve uma dinâmica para que falassem sobre o que mais tinha
chamado a atenção e o que foi apresentado no filme que também ocorria naquela escola. Surgiram
os seguintes pontos: A desigualdade de classes econômicas no Brasil. / A violência entre os alunos.
/ A relação pobreza - “raça” - violência. / A falta de professores. / A falta de interesse dos alunos. / A
má infraestrutura das escolas. / O desinteresse por parte dos professores. / A desorganização da
escola. / “Quem quer estudar não tem escola, e quem tem escola não quer estudar”. / A desvalorização
do trabalho do aluno (o professor não considera legítimo aquilo que é feito pelo aluno). / A importância
que é dada na vida do jovem para o relacionamento amoroso. / A importância do incentivo das
atividades artísticas para estimular os alunos a participar da escola.
Ao realizar-se uma dinâmica que questionava os alunos a cerca de um tipo de violência mais específico,
a violência institucional, percebia-se que já havia um acúmulo de discussão que propiciava um melhor
apontamento de características da violência e suas manifestações que talvez antes não fossem
percebidas. Pois a utilização do filme, e a associação / reconhecimento dos alunos frente às situações
apresentadas permitiu que ao realizarem as atividades, fossem usadas experiências próprias e relatadas
na primeira pessoa, ou referindo-se a um grupo à que pertenciam. Ou seja, interpretando o mundo e
dando-lhe sentido, assim como à posição que ocupam nele, e às suas relações com os outros estudantes,
à sua própria história e à sua singularidade enquanto sujeito social.
Surgiram os seguintes pontos acerca da violência nas escolas estaduais: Existe uma violência na
relação entre professor e alunos, e na relação entre os alunos e dos alunos em relação à escola. /
Falta de respeito dos professores pelos alunos, e vice-versa. / Os professores são muito agressivos.
/ Os alunos não têm voz ativa nas aulas, e nem nas decisões da escola. / Os alunos são acomodados,
não participam e não dão importância aos instrumentos que lhe dão voz na escola como o grêmio e
as reuniões onde é permitida a participação. / A falta de liberdade. / Os alunos são vândalos e mal
educados (por isso depredam a escola). / Falta diálogo entre a direção e os alunos. / Eles reclamaram
muito que os atos da escola são tomados de cima para baixo, sem nunca levar em consideração a
opinião dos alunos.
Como se pode perceber a violência simbólica aparece assumindo duas faces de um mesmo problema
pedagógico. Pois ao mesmo tempo em que existe uma violência hierárquica que emana da figura
autoritária do professor, existe em contrapartida uma violência por parte dos alunos também. De
certa forma: “A rebeldia consiste na resistência, mais ou menos organizada e mais ou menos violenta,
ao tipo de ensino que é ministrado na escola pública.” (SAES; ALVES; 2006). Esse tipo de conflito
se manifesta por diversas vezes devido à grande quantidade de alunos por turma.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 217
O que gera uma grande concentração de humores diferentes e que são de difícil controle quando
associados ao método tradicional de ensino que não consegue alcançar as inovações tecnológicas
que baseiam um novo modo ser jovem (BITTENCOURT, 2004). No entanto, quando mesmo sem
recursos tecnológicos conseguimos alterar as formas de relação do estudante com o objeto de estudo,
aproximando teoria e prática, conseguimos que todos os envolvidos no processo educacional se
escutem e debatam opiniões que estão muitas vezes reprimidas por falta de local apropriado e de
interlocutores atentos.
A partir das colocações feitas em debate surgiram algumas críticas elaboradas pelos alunos a partir
de indagações sobre o cotidiano escolar e suas ações dentro e fora da instituição escolar: Direção
distante dos alunos / Falta de diálogo / Falta de professores e de aulas. / Falta de compromisso de
alguns professores em relação aos conteúdos das aulas. / Desorganização / Desunião dos alunos /
Pichações e Depredações – falta de consciência dos alunos do que é público. / Poucos funcionários
para limpar e fiscalizar. /Infraestrutura ruim (banheiros sujos, sem água e sempre fechados). / Atos
de grosseria dos funcionários / As regras não são para todos – falta de exemplo por parte dos
professores / fumo dentro da escola. / A direção tem muitos projetos para resolver os macroproblemas
e nenhum para resolver os microproblemas do cotidiano da escola. / A desvalorização do potencial
dos alunos.
Alguns dos caminhos e soluções apontados pelos próprios alunos: Investimento na escola. / Capacitar
os professores. / Melhoras na estrutura. /Aulas de reforço. / Atividade extracurriculares – cursos (de
artes, profissionalizantes, esportes, informática) para ocupar o tempo ocioso dos alunos. / Qualidade
do ensino: voltado para o bom preparo para a entrada no mercado de trabalho. / Professores mais
rigorosos na avaliação. / Mais diálogo. Projetos para a exposição do ponto de vista dos alunos, para
incentivar a união entre os alunos e sua mobilização. / Relação mais próxima, de confiança entre
professores e alunos. / Discussão e conscientização dos problemas.
Conclusões
Mesmo sabendo que ao longo do processo de escolarização no Brasil, o número de matrículas no
sistema de ensino mantém a característica de oscilar frequentemente4, vem ocorrendo uma inserção
mais efetiva dos jovens no sistema de ensino. Muito embora pesquisas apontem que os estudantes
do ensino médio possuem, na realidade, competências de estudantes de ensino fundamental.
Ou seja, mesmo com as políticas públicas direcionadas a educação e aos jovens estudantes, ainda se
percebe um processo de eliminação e desigualdade social que mais excluem do que atraem os jovens.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 218
Mas que dentro de condições sociais que vem ganhando efetividade nos grandes centros urbanos,
possa haver percursos diferenciados que permitam inserções diferenciadas.
O que se percebe nas falas dos jovens e em suas representações, é que a Educação aparece como a
cultura legítima de um grupo, a partir da detenção de um determinado capital cultural. No entanto,
afirmar que dentro da escola pública esta é a cultura dominante é algo que demanda mais análises,
pois não se trata da ação dos integrantes do grupo dominante. Garcia (2006), a partir de suas
pesquisas com jovens, estudantes do ensino médio e trabalhadores, percebeu três elementos centrais
nos dados empíricos:
“(...) o primeiro diz respeito à escola constituir-se, para os jovens, no espaço
primordial de sociabilidade. O segundo refere-se ao pouco tempo disponível para
as atividades que não sejam as do trabalho e as da frequência às aulas. E o terceiro
aspecto aponta para as práticas culturais e para o consumo de bens simbólicos que
se distanciam daqueles que se incluem na esfera da cultura legitimada pelo
conhecimento oficial.” (GARCIA, 2006:1176)
A escola, por mais que se discuta sobre as relações sobre violência intra e extramuros escolar
(Zaluar, 2005; Charlot, 2002; Bourdieu, 2008), ainda representa um local onde se pode conversar e
estabelecer laços de identificação e diferenciação de forma segura e contínua, mesmo com as
contradições inerentes à esta instituição socializadora. Pois, de um modo geral, os locais que são
associados ao lazer, a diversão e a construção da identidade são fundamentais quando se analisa um
certo modo de ser jovem. Principalmente quando se considera que a frequência e permanência dos
jovens na escola, vem associado a um maior tempo de socialização neste espaço.
O que não pode ocorrer é uma idealização das relações, pois existem conflitos e aspectos negativos
que devem ser problematizados quando se trata de analisar determinada condição juvenil
contemporânea, a partir da importância do mundo do trabalho e da relação com a escola. Espaços
nos quais e pelos quais, a categoria “juventude” no Brasil vem sendo construída.
Essas colocações ajudam a perceber que os estudantes tem uma consciência crítica muito grande e
conseguem entrever os problemas e soluções do seu cotidiano de forma prática e objetiva. Muitas
vezes sua fala é reprimida, e ou sente-se que a colocação feita não terá resposta, começando-se
então a “deixar para lá”, pois ao sentirem-se abandonados eles passam a não se reconhecer no
espaço escolar, passando a ter um sentimento de não pertencimento, o que os afasta de atuações
para modificar a realidade, preferindo então, ficar à margem da situação de conflito assumindo uma
postura reativa aos acontecimentos.
Mas ao perceberem um espaço onde teriam sua voz ouvida, e principalmente levada a sério,
percebendo que o que eles falam realmente importa e faz sentido, a atuação pessoal muda e a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 219
participação na aula se desenvolve com menos tensão e de forma mais eficiente. Por mais que as
vezes falem junto e queiram fazer valer seus pontos de vista, os alunos acabam respeitando a vez de
falar do outro, pois sabem que poderão falar também, e muitas vezes se sentem reconhecidos nas
falas do(s) outro(s).
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1
Sposito (2005), Guimarães (2006), Dayrell (2007), Carrano (2011).
2
Hasenbalg, 2003. Valle Silva, 2003.; Zago, 2006.
3
Frigotto, Dayrell, Carrano, Garcia, Guimarães, Pochmann, Camarano, Valle Silva, Cardoso.
4
IPEA, 2012.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 222
GT4: Sociologia Urbana
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 223
A SOCIABILIDADE EM JOGO
Levantamentos para novas questões
Rafael Velasquez
Universidade Federal Fluminense
Todo fim de mês o Edgar faz isso:
se mete nas corridas e lá se vai o aluguel.
Quando ele chega, chega encabulado,
sorri e diz: neguinha, estou arruinado.
Recebi o pagamento e fui até o prado.
Chegando lá, vi o programa e fiz a
acumulada.
A Gloria disse que era uma barbada
e que o cavalo Zoom-Zoom-Zoom não podia
perder.
A saída foi boa com o corpo na frente
Foi bem aplaudido por toda a gente.
Mas, a chegada é que foi de amargar:
fui ver, o meu cavalo estava em último lugar.
Última Barbada – Jorge Veiga
Como o título sugere, o intuito deste trabalho é trazer à baila outras questões que não foram
aprofundadas e debatidas anteriormente (VELASQUEZ, 2012), são elas questões relativas a
sociabilidade em um determinado espaço. Este espaço é o Hipódromo da Gávea. E para tal
empreendimento, me apoiarei aqui muito em descrições etnografias e não tanto em discussões e
debates teóricos. A idéia é justamente apresentar mais a situação “extraída de campo” para que num
outro momento possa ser mais, quiçá, melhor teorizado. O que me faço é me apoiar em textos que
me foram fundamentais para melhor compreensão dos eventos descritos. O questionamento que
carrego ao longo deste trabalho, portanto, é: que tipo de sociabilidade é esta que é delineada nas
apostas nas corridas de cavalos? Arriscarei como resposta muito um ensaio de esforço de compreensão
do que de uma análise completa e fechada.
Localizando num dos bairros mais nobres da cidade carioca, a Gávea, o Jockey Club Brasileiro
recebe a cada novo dia de corrida curiosos, aventureiros e seus habituées aficionados. Todos ávidos
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 224
não apenas por assistirem corridas espetaculares, mas também buscando alguma sorte nas suas
apostas. Ele constitui, poderíamos dizer, perfeitamente bem o que Robert Elza Park qualificou como
“região moral”. Regiões morais são espaços na cidade onde “os impulsos, as paixões e os ideias
vagos e reprimidos se emancipam da ordem moral dominante” (1979: 64). No caso do hipódromo,
é visto, de forma circunstancial, numa região estigmatizada pelo “vício da jogatina” por que está de
fora.
Parte dessa visão é graças ao status que o dinheiro passou a ter em nosso mundo moderno. A idéia
de quem alguém seja um perdulário nos é incomoda. É incomoda justamente porque fere a esfera
sacra que a economia atingiu para nós. O dinheiro tornou-se sagrado. Como marcou George Simmel,
a
segurança e a tranqüilidade que a posso de dinheiro faz sentir, aquela convicção de
possuir com ele o centro de valores, contém, de forma psicologicamente pura [...]
o centro da equação que justifica, de maneira mais profunda [...] de que o dinheiro
seja o Deus da época moderna (grifos meu, 1998:36).
Isto posto, o dispêndio econômico em atividades como esta, apostas em corridas equestres, que
resultam ocasionalmente em mais perdas do que ganhos, sejam moralmente inaceitáveis. Tornando
a, portanto, uma espécie de profanação econômica, em um sacrilégio financeiro.
O ascetismo que Max Weber apresenta em sua obra mais celebre, A ética protestante e o espírito do
capitalismo, nos coloca perante de um comportamento econômico que é moralmente orientado pela
conduta religiosa. O sucesso econômico corresponde acessão religiosa correspondente aos esforços
do trabalho. Que está intimamente ligado a vocação (Beruf) – essa ideia de missão dada por Deus.
Então, logo o gasto com bens como também em atividades de lazer são, como coloca Campbell,
“quase por definição, uma atividade supérflua [...] que não chegara a ser [...] aceita” (2001:43).
Agora, uma atividade que chega a por em risco a perda econômica é, ainda mais, inaceitável. Essa
atitude de “desperdício” (este substantivo tão depreciativo) pertence provavelmente a uma outra
ética.
E é dinheiro dá ao jogo seu caráter de seriedade, e o jogo algo importante. Isto aparece de forma
notável no trabalho “Sociedade de esquina”:
Ele [, o jogo,] tem um papel importante na vida das pessoas de Cornerville. Seja o
que for que joguem, os rapazes da esquina quase sempre apostam no resultado.
Quando não há nada em disputa, o jogo não é considerado uma rivalidade real.
Isso não significa que o elemento financeiro seja mais importante que tudo.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 225
Frequentemente ouvi as pessoas dizerem que a honra de vencer era muito mais
importante que o dinheiro em questão. Os rapazes da esquina consideram jogar
por dinheiro o verdadeiro teste de habilidade, e, a menos que um homem se saia
bem quando há dinheiro na disputa, não será considerado um bom competidor.
Isso ajuda a determinar a posição de indivíduos e grupos uns em relação aos outros
(WHYTE, 2005:156).
O dinheiro entra nessa prática com um caráter diferente. Ele cumpre o papel de fazer o jogo acontecer
e, assim, de distribuição de riquezas. Quem ganha ganha alguma coisa mais o jogo. “Ganha estima,
conquista honrarias” (HUIZINGA, 2010:58). E como havia colocando Marcel Mauss numa nota de
rodapé no seu “Ensaio sobre a dádiva”: “Seria oportuno (...) estudar o jogo que (...) não é considerado
como um contrato, mas como uma situação na qual se compromete a honra e se entregam bens que
poderiam não ser entregues. O jogo é uma forma de potlach e do sistema de dádivas” (2003:238). É
assim uma maneira de disputa que os homens tem entre si. Uma forma “branda” de desafiar todos.
Para citar outra vez Mauss:
É uma disputa de quem será o mais rico e também o mais loucamente perdulário.
O principio do antagonismo e da rivalidade está na base de tudo. O estatuto político
dos indivíduos, nas confrarias e nos clãs, as posições de todo tipo se obtêm pela
“guerra de propriedade” assim como pela guerra, ou pela sorte, ou pela herança,
pela aliança e o casamento. Mas tudo é concebido como se fosse uma “luta de
riqueza”. (2003:238).
Como isto não quero afirmar que alguém em sã consciência se regozija em perder dinheiro. Na
realidade não é nesta prática em que encontramos o valor no dinheiro, mas sim, na honra e no
prestígio que se tem em poder colocá-lo em jogo. Apesar de não ser do interesse aqui entrar no
mérito econômico que questão envolve, vale lembrar Polanyi (2000), pois o sistema econômico que
operamos não é muito das vezes dirigido por motivações não-econômicas. E o ato de ganhar significa
mostra-se superior. E o mais importante do que ganhar o dinheiro e não se perder. Isto é, saber
perder. Ter a honra de poder perder. Que Charles Bukowski aconselhou do seguinte modo:
só aposte quando puder se dar ao luxo de perder. quero dizer, sem depois ter que
dormir num banco de praça ou se privar de 3 ou 4 refeições. o essencial é primeiro
pagar o aluguel. evitar problemas. terá mais sorte. e lembre-se do que dizem os
profissionais: “se tiver que perder, perca com classe”. noutras palavras, desafie os
outros a derrotarem você. se de um jeito ou doutro tiver que perder, então mande
tudo para o inferno, pegue alguém para dançar nos portões de saída, a vitória é tua
enquanto ninguém te derrotar, até que passem por cima do teu cadáver (1972:113)
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 226
A prática de disputa nesse ambiente cria um peculiar modo de sociabilidade. E que modo de
sociabilidade será essa? Andes de apresentar alguns dos elementos que considero fundamentais para
que se possa pensar isso, descrevei a chegada do público e, mais ou menos, quem são.
As corridas hípicas acontecem, faça chuva ou faça sol, de sexta à segunda-feira. E o público chega
aos poucos, um a um. Vão transitando e ocupando os espaços do prado. Uns vem acompanhados de
amigos ou de familiares, muitos, entretanto, chegam solitários, às vezes vindo escondidos da família.
Aqueles que chegam cedo, bem antes das primeiras corridas, aproveitam para almoçar nos restaurantes
do prado ou, então, fazem apenas um rápido lanche enquanto assistem, pelos televisores, o que os
cronistas e os comentaristas têm a dizer a respeitos dos páreos que correram ao longo do dia, seus
palpites, alguns informes e etc.
Uma parte considerável desse público fiel é composta por homens, muitos acima dos cinquenta
anos. Vários deles aposentados. E lá, neste santuário hípico, eles encontram um espaço de lazer e de
sociabilidade longe das horas mortas e das trivialidades corriqueiras do mundo, dos importunos do
familiar e do casamento ou da esposa. Um dos senhores dizia-me que no hipódromo era como sua
segunda casa. Aposentado, solteiro e sem filhos, para ele era ali onde encontrava alguma diversão.
“Vou ficar em casa assistindo aquelas porcarias na televisão? Prefiro vir para cá. Aqui nem sinto as
horas passarem”, dizia.
Praticamente nas conversas que tratava com alguns deles surgiam comparações, que ir para o prado
era como um passeio ao shopping, ir ao um cinema ou ao teatro; levar a mulher ao restaurante ou
motel: estariam desembolsando suas econômicas de qualquer maneira. “Bom, ao menos que você
não seja um mão-de-vaca”, certa vez explicou um dos senhores. “Ao menos que você não seja um
mão-de-vaca, vai querer levar a mulher num bom restaurante. E aí vai gastar. Brincando isso te leva
uns duzentos reais. E é a mesma coisa isto aqui”.
Há isso tudo, evidente, uma ideia de calculabilidade. Gastar duzentos reais num restaurante ou
apostando em cavalos são atividades compreendidas como lazer. Mas as apostas oferecem algo a
mais. Ela tem o caráter absorvente da sua solenidade. E “todo jogo é capaz, a qualquer momento, de
absorver inteiramente o jogador” (HUIZINGA, 2010:11). Isto porque o jogo cria um outro mundo.
Ele “possui uma realidade autônoma” (2010:6). Tudo o que acontece em seu domínio exclui o que
acontece do lado “de fora”, mas ao mesmo tempo reproduz essa realidade e numa escala própria.
Não por acaso escrevia Bukowski – que era um aficionado declarado pelas carreiras hípicas:
E, no hipódromo, você sente as outras pessoas, a escuridão desesperada, e como
jogam e desistem com facilidade. A multidão do hipódromo é o mundo em tamanho
menor, a vida lutando contra a morte e perdendo. No final, ninguém ganha, buscamos
apenas uma prorrogação, um momento sem ser ofuscado (1999:9).
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Quando, pela primeira vez, coloquei os pés dentro do Hipódromo da Gávea o primeiro senhor que
conversei me disse, em um tom conselheiro: “Isso aqui é furada. Aqui só tem filho da puta. Todas
esses aqui são filhos da puta”. E mudando suavemente o modo de falar, como que para fazer uma
autodefesa, disse: “Eu só jogo cinco reais [por páreo], porque isso aqui é uma putaria, você está
entendendo?”. Nada respondi, de fato não havia entendi nada. Por acreditar que com o tempo
entenderia o que ele queria me dizer nada indaguei naquele instante.
Quando comecei, por tanto, a verdadeiramente freqüentar as tribunas do JCB um dos aficionados,
ele ex-jóquei e também ex-treinador, me aconselhava severamente que ao invés de continuar indo ao
hipódromo deveria aproveitar a juventude que me resta, e no meu lugar, levaria as meninas ao motel,
ficar longe do Jockey, porque aquilo ali não passava de um “cemitério de malandro”.
E já não era mais de surpreender que com certa frequência se falava, comentava ou esbravejava que
algum determinado joguei devera sair do prado dentro duma viatura da polícia, de preferência de um
camburão. O caráter deles era sempre duvidoso (e talvez sempre assim será). Histórias sobre suborno
para perda de corrida eu ouvia não com tanta frequência, mas com alguma recorrência. Algumas
eram meio que um tanto que fantasiosas, já outras, nem tanto.
E nem era necessário ao pesquisador que questionasse qualquer coisas a esse respeito. Sempre
algum inconformado o encontrava para desabafar, xingar ou para falar mal de alguém para soltar
seus desafogos. Lembro de que numa tarde um sujeito inconformadíssimo com um jóquei que acabará
de vencer a prova me encontrou no caminho, bufando pelas narinas:
– Esse tal... devia terminar a prova e entrar direto no camburão! Esse aí, meu rapaz, é um
ladrão! Isso mesmo! Um picareta! É isso que ele é! Todos eles são. São tudo uns roubados. Fodidos
de merda! Bate a polícia aqui, não fica um!
Não é exclusividade dos jóqueis e dos profissionais o caráter dubitável, mas de todos dentro do
jogo, isto é, também os próprios turfistas e aficionados. A visão que eles tem de si, como é que cada
um tenta ser mais malandro que o outro, de que é um tentando roubar o outro. Mas como me
explicou Quequé, “ninguém aqui coloca a mão no seu bolso, nós roubamos é ali, na pista”. E se
roubam “na pista”, roubam como “sendo” um cavalo. São eles que correm na pista.
Num outro momento, havia saindo do hipódromo para sacar dinheiro. Havia perdido o pouco que
tinha levado para apostar. E voltava tranqüilamente imerso em vã filosofia. Chegando perto da
entrada da social. Observei um senhor saindo. Ainda havia algumas carreiras para correr. E o porteiro
o indagou:
– Mas já se vai?
– Já. Cansei de ser roubado aí.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 228
Uma das pessoas lhe disse alguma coisa. Que pela distancia que estava não pude compreender. Mas
ele respondeu:
– Amanhã não sei. Mas semana que vem estou de volta.
Agora, refazer a pergunta de que forma de sociabilidade é está que se dá nas apostas hípicas, nos
parece mais natural. Como alguém que culpa (talvez seja melhor o verbo “justificar”) outros por seu
infortúnio pode retornar? A imagem pode nos sugerir uma espécie de sociabilidade masoquista, ao
menos no sentido econômico. Mas acredito que afirmar isto seria demasiado caricato e frívolo.
Como vimos, o clima dentro do hipódromo o clima que reina é o de malandragem: todos ali, sem
exceção, são malandros. E as suspeitas recaem sobre todos. Suspeita-se de proprietários, de jóqueis
e de outros ficionados... Mas ninguém suspeita dos cavalos.
O cavalo do turfe é um animal especial. Não é qualquer cavalo que pode correr, apenas os que são
da raça Puro-Sangue Inglês. No aspecto simbólico estes animais oferecem aos homens o espelho
onde seu reflexo é sua bestialização: a potencia animal e seu caráter viril (VELASQUEZ, 2012). O
equino é o meio pelo qual os homens confrontam o seu igual, como fazem os galos em Bali (GEERTZ,
1989).
Apesar do animal ser montado e guiado por um homem – e neste aspecto o homem é superior a
criatura, pois a controla ao seu bel-prazer – é o cavalo a criatura que está ali acima de qualquer
suspeita. Torna-se, por meio de sua natureza, então, superior aos homens: este seu poder, como uma
espécie de Leviatã bestial, capaz de proteger os homens de destruírem uns aos outros.
As corridas hípicas possuem aquilo que os outros jogos de azar não possuem, que é o seu caráter de
imprevisibilidade. O que faz que nenhuma corrida seja inteiramente igual a outra. Não mudam apenas
os cavalos e as suas idades, seus números de vitórias etc; mudam também a pista, de areia ou de
grama e também sua distância; e o clima também afeta as condições das pistas: pista leve, pesada
etc. Mas a imprevisibilidade não reside nesses aspectos destes detalhes. Mas no fator animal.
Para explicar essa ideia de fator animal será necessário que ela seja apresentada dentro do contexto
em que pela primeira vez apareceu. E fui num dia em que o esforço da pesquisa parecia que não
render absolutamente nada. Já estava cansado de ser ignorado e quando respondiam alguma indagação
as respostas eram quase as mesmas que já havia ouvido anteriormente. E, então, ao acaso, acontece
aquilo que Malinowski uma vez cunhou por imponderáveis da vida real: “uma série de fenômenos
de suma importância que de forma alguma podem ser registrados apenas com o auxílio de questionários
ou documentos estatísticos, mas devem ser observados em plena realidade” (1978:29).
A senhora que estava na fileira de banco atrás de mim conversava com o Bigode, o caixa das
arquibancadas. E ela comentava sobre o jogo do bicho. Pelo que pareceu, ela havia acertado em
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 229
algum bicho naquela semana. E falavam que sempre jogava no mesmo bicho, “cercando” ele. Edu,
que estava sentando perto de mim, também ouviu a conversa e se virou perguntando à senhora qual
o jogo que ela fazia. No que ela o respondeu:
– Eu cerco o bichinho, meu filho, vou bem na cabeça... só cercando. – explicava gesticulando as
tremulas mãos cheia de pulseira e anel como se estivesse cercando um animalzinho imaginário.
Edu se voltou para mim, piscou e riu.
– Essa aí joga na desvantagem.
– Por que na desvantagem?
– No jogo do bicho você já começa perdendo.
– Mas por que?
– Veja bem, no jogo do bicho são vinte cinco números, certo? Cada número é um bicho, você sabe.
No jogo que ela faz você escolhe um número contra os outros vinte e quatro, que o bicheiro tem de
vantagem. A probabilidade do bicheiro é muito maior que a sua.
Com um pedaço de papel e com sua caneta que usava para rabiscar os palpites e resultados das
corridas começou a fazer os cálculos. De fato, quem joga “na cabeça”, provava com a matemática,
joga com 4% contra os outros 96% do bicheiro. Diante disso, não pude me conter e indaguei com
naturalidade:
– Ora, mas aqui [, no hipódromo,] também é assim. É um jogo de azar como o jogo do bicho. Aqui
também tem suas probabilidades.
– AHA! – quase num grito, como quem esperasse por tal raciocínio e continuou – Mas aqui é
diferente. Na corrida tem o fator animal!
O que se poderia acrescentar para tornar mais transparente a ideia é que o fator animal é a
imprevisibilidade, ela dá a profundidade ao jogo. Diferente de um jogador de futebol, uma bailarina
ou um atleta, o cavalo não pode falar sobre as suas condições físicas e mentais antes da corrida. Se
ela está confiante, inseguro, nervoso, triste... não podemos saber. O cavalo não pode nem ao menos
avisar que está com dor de barriga. E mais, é possível comprar a alma de um homem com dinheiro
– “cada homem tem seu preço” diz o ditado – para que corra menos ou para que deixa a bola passar
pelo gol, porém é impossível, mesmo que o pagamento seja em cenouras, fazer um acordo ou
corromper um equino. Certamente desconfiaríamos da sanidade mental de alguém que tentasse tal
coisa. O julgaríamos como um idiota perfeito. É absurdo!
Ao que tenho até agora apresentado, os cavalos exercem o poder de amenizar as suspeitas. Mas
ainda sim, percebemos que o hipódromo é um lugar de sociabilidade. Como disse anteriormente, a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 230
posta hípica é também um sistema de dádivas. Não acontecem apenas “trocas de riquezas”. Outras
coisas também são entram nesse sistema.
A primeira e mais flagrante é a barbada. De maneira sucinta para os propósitos econômicos do
paper diria que a barbada é o termo nativo, par excellence, empregue para afirmar que a vitória de
um determinado cavalo do páreo é dada por garantida frente aos demais adversários. A barbada é
como se fosse um palpite. Mas seu efeito é mais devastador. Graças a áurea que tem de ser uma
informação privilegiada. E não a troco de nada que muitos chegam a mudar, na fila para comprar a
pule, sua aposta por causa de uma barbada que lhe contam ao pé do ouvido.
Mas há algo de enigmático na barbada. Pois quando questionava, para saber o que eles entendiam o
que era barbada, freqüentemente a resposta era que barbada não existia. “Como não?”, questionava.
“Só é barbada quando a corrida termina”, era essa o padrão de resposta recebia. Então como pode
que as pessoas passem barbadas umas as outras? E ainda, por que cargas d’água alguém se submete
a aceitar tal barbada?
Fui desvendando paulatinamente. Não foi fácil obter respostas, tive que ir juntando as peças. Um dia
me deu na cabeça a ideia de pedir para alguns dos camaradas que fiz no Jockey. Eles me diziam
coisas como “Não quero mudar o seu palpite, posso tirar a sua sorte”, “Esquece isso”, “Vai pela sua
convicção” entra outras do gênero. Mas numa dessas um me disse que tinha escuta que a barbada
para o páreo que ia começar era o cavalo tal. Frisava que ele apenas ouviu de uma outra pessoa e
que não tinha certeza. Também tinha paradoxalmente este caráter duvidoso.
Passei a observar que o Edu às vezes parecia invocado, ele que sempre estava de bom humor. E ele
reclamava consigo mesmo: “É isso que dá ir pela cabeça dos outros!”. Abria seu programa, voltava
estudar o páreo seguinte silenciosamente. Depois de um tempo, me explicava que tinha ido numa
“barbada” errada. E dizia sobre as pessoas que passaram a tal barbada apenas: “São os emissários do
Diabo! Como o diabo não pode vir, manda os seus emissários”. Não comentava isso de mau humor.
O aborrecimento parecia temporário.
Dar ou receber uma barbada implicar em certos “riscos”. O primeiro, dar, põe em risco o status do
indivíduo que a deu. Quem passa como frequência barbadas erradas é logo mal visto e não será
levado a sério. Estando seu caráter sempre duvidoso. Tal atitude é compreendida como se a pessoa
estivesse jogando com o dinheiro dos outros. Ou seja, como se estivesse com aposta alheia cobrindo
as possibilidades de acerto. Talvez isso se torne claro quando falar sobre receber.
O dar é por si um ato generoso, “é transferir voluntariamente algo que nos pertence a alguém de
quem pensamos que não pode deixar de aceitar” (GODELIER, 2001:22). No nosso caso, não é
qualquer um que pode dar. Dá quem pode ajudar – e souber de alguma –, e não quem precisa ser
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 231
ajudado. Fica estabelecido uma relação hierárquica de dominação sobre quem recebe. Há, portanto,
um julgamento particular sobre quem sejam essas pessoas que podem ajudar e as que precisam ser
ajudadas. Por exemplo, um sujeito visivelmente ande as trapos ou que se encontre desesperado
jogando é, dentro de um sistema próprio de classificação, alguém que é impensável que se possa
aceitar tal palpite. Isto acontece porque “aceitar um dom é mais que aceitar uma coisa, é aceitar que
aquele que dá exerça direitos sobre aquele que recebe” (2001:70). Ninguém que ser sujeitas a tal
coisa. Porque dar obriga. Mas importante destacar que entre camaradas, às vezes, isso acontece de
maneira menos assimétrica.
E receber também implica em “risco”, no entanto muito menores do que o anterior. Quem recebe
fica “endividado”, isto se a barbada se confirma e se efetivamente a pessoa jogou por ela. Pois dar e
receber implicar num sistema de prestações totais, no sentido de Mauss. Porque essas trocas são de
tipo dádiva, envolvem uma mistura de liberdade e de obrigação (MAUSS, 203:194). “O caráter
primordial da experiência do dom é (...) sua ambigüidade” (BOURDIEU, 1996:7): ao mesmo tempo
em que é generosa, pode não, espera uma retribuição; e, ainda, que não seja generosa, pode não
esperar uma retribuição. Ninguém ignora a lógica da troca, mesmo que ajam como se a ignorasse
(1996:8).
A retribuição pode vir de diversas formas. A forma interesseira pode exigir uma retribuição de 20,
30% da pule ganha. Quem acerta por uma barbada geralmente agradece podendo voluntariamente
querer dar uma porcentagem, ao que me pareceu muitos assim não preferem. Mais a retribuição será
certa: “a obrigação de retribuir é dignamente é imperativa. Perde-se a ‘face’ para se não houver
retribuição” (MAUSS, 2003: 250). E Mauss nos diz mais, “dar é manifestar superioridade, é ser
mais, mais elevado, magister; aceitar sem retribuir, ou sem retribuir mais, é subordinar-se, torna-se
cliente e servidor, ser pequeno, ficar mais baixo (minister)” (2003:305).
Como as pessoas quitam uma barbada? Quem ajuda a pensar tal fenômeno é Pierre Bourdieu ao nos
colocar que “quem dá sabe que seu ato generoso tem todas as chances de ser reconhecido como tal
(...) e de obter o reconhecimento (sob forma de contradom ou de gratidão) de quem foi beneficiado”
(1996:9). Esta gratidão tem um valor mais valioso do que uma porcentagem do prêmio. Ser ou estar
grato a alguém é assumir uma dívida que não pode ser retribuída da mesma maneira, dizendo de
outro modo, é o débito que se deve.
Esta outra forma de retribuição vem na forma de pagamento de uma rodade de bebida, pagando um
lanche e, não menos importante e que não se deve esquecer, por reconhecimento público da moral e
do prestígio desde que deu. “Esse é o cara!”, “Esse entende das coisas!”, “sabe tudo!”, “Conhece
tudo de corrida!” são, entre tanta outras, maneiras de elogiar. E assim este “oráculo do páreo”
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 232
acumula o que acumula o que Bourdieu chama de capital simbólico frente aos demais. “O dom
expressa-se na linguagem da obrigação: obrigatório, ele obriga, produz pessoas obrigadas, ‘cria,
como se costuma dizer, obrigações’; institui uma dominação legítima” (BOURDIEU, 1996:13).
Estas retribuições geram mais do que acumulo de capital simbólico, elas criam laços. Apesar de
Barroca dizer que “no Jockey você não tem amigo, você tem colega”, laços são estabelecidos nele.
Podem não ser laços muito duráveis e que não extrapole os limites dos muros do prado. São laços
que se criam tanto para o jogo como para outras de outras informações.
Estava acompanhado por Edu e Barroca. Foi um dia como todos os outros de corrida, muitas
perdas e poucos ganhos. Um casal jovem estava sentando próximo de nós jogava animadamente,
acertando ou errado. Já os havia notado alguns semanas trás. A jovem perguntou ao Barroca como
era feita um outra determinada modalidade de aposta. Depois de explicar ele comentou que já
tinham notado a presença deles outras vezes ali. E de brincadeira, mas polidamente, perguntou se ele
que estava a arrastando para o Jockey. Ela riu. E contou que na verdade ela é que estava levando ele
para o lá. Que a curiosidade era dela e que o noivo apoiava e acompanhava.
No meio da conversa o casal comentou que sentiam dificuldades na escolha de algum cavalo, que
jogavam mais na sorte, mas que queriam entender mais. E ele lhe diziam que era assim mesmo, às
uma pessoa estuda demais e erra e uma pessoas que acho o cavalo bonitinho às vezes acerta. Foi
então que Barroca contou, como quem queria amenizar os anseios do casal: “Ao poucos você vai
conhecendo os cavalos, daqui uns meses eles voltam a correr. Depois você vai conhecendo as pessoas
aqui dentro com o tempo. Conhece um jogador, que conhece um proprietário, e aí conhece um e
outro. Você acaba conhecendo um treinador, um jóquei... e aí cê está ferrada!”.
Independente da sociabilidade ajudar ou atrapalhar na apostar. Ele aparece como um elemento
indissociável do próprio jogo. Ninguém joga solitário, por mais que queira estar inteiramente sozinho.
A própria olhadela por cima dos ombros dos outros jogadores é uma forma mínima de relação
social. Para a sociabilidade existir basta a presente de um outro, como diria Simmel (2006),
sociabilidade é interação – mesmo que mínima.
E outras coisas que os estes laços criam para além do espetáculo e das apostas, é o desenvolvimento
de um espaço livre. Livre dos compromissos familiares, de poder se soltar, reclamar da mulher.
“Amanhã [domingo] não sei se consigo vir” – respondeu-me um turfista quando perguntei se o
encontraria novamente no dia seguinte – “Tenho um batizando para ir. Onde já seu viu, aos meus 70
anos de idade ainda sou obrigado a ir tipo de coisa. É sacanagem”, comentava irônico. Onde mais
algum homem poderia dizer isso e não ser recebido por repreendas? Apenas numa região moral
como a do prado carioca.
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Trocam-se entre palpites e barbadas, informações de toda sorte: restaurantes de boa qualidade e
preço, dicas de passeios e lugares para conhecer e explorar, sugerem médicos, remédios para saúde
e disfunção erétil, discutem-se e indicam rendez-vous.
O prado é um local de encontro. Onde, sobre tudo homens, encontram para desafiar um ao outro
num jogo de cavalheiros. Um lugar que tem a função pedagógica do controles dos impulsos – o
saber perder, “perder com classe” – e de que dinheiro não é tudo. É necessário saber dominar o
dinheiro e não o contrário. Mas também não arruinar a própria vida apostando tudo. Perdeu, perdeu;
agora, paciência. “Não vou dizer que seja fácil, eu demorei muito a descobrir isso. Já perdi muito
dinheiro nisso aqui”, havia me confessado o camarada turfista que já apostou o salário na tentativa
de recuperar o que já tinha perdido. “Só depois de muito tempo é que vim aprender”.
O Hipódromo é este espaço de lazer e sociabilidade onde seu habitués encontram um momento de
fuga do mundo mergulhando em outro. Ele também preenche as suas existências, confere um sentido.
Ganhando ou perdendo, não há motivos para lamentações. Nem tudo são perdas para quem valoriza
outros ganhos.
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n. 2. Out. 1996.
BUKOWSKI, Charles. Dicas de cocheira sem a menos sujeira. Crônica de um amor louco. Porto
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___________. O capitão saiu para o almoço e os marinheiros tomaram conta do navio. Porto
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GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
GODELIER, Maurice. O enigma do dom. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001.
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aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova Guiné, Melanésia. São Paulo: Abril Cultural, 1978.
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PARK, Robert Ezra. A cidade: sugestões para a investigação do comportamento humano no meio
urbano. In: VELHO, Otávio G (org). O fenômeno urbano. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1970.
Karl Polanyi. A grande transformação: as origens da nossa época. Rio de Janeiro: Campus, 2000.
SIMMEL, Greorg. O dinheiro na cultura moderna. In: SOUZA, Jessé e ÖELZE, Berthold. Simmel
e a modernidade. Brasília: UnB. 1998.
___________. Questões fundamentais da sociologia: indivíduo e sociedade. Rio de Janeiro: Zahar,
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VELASQUEZ, Rafael. Cavalos, Rateios & Barbadas: uma aposta etnográfica nas corridas de
cavalos no Hipódromo da Gávea, Rio de Janeiro. Niterói: Instituto de Ciências Humanas e Filosofia,
Universidade Federal Fluminense, 2012.
WEBER, Max. A ética protestante e o “espírito” do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras,
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WHYTE, William Foote. Sociedade de esquina: a estrutura social de uma área urbana pobre e
degradada. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 235
A CIDADE PARA AS MULHERES
Keila Meireles dos Santos
[email protected]
Resumo
Este artigo trata dos usos da cidade pela mulher e da (não) apropriação por ela dos ambientes públicos. Isso
transcende o debate para questões simbólicas que dizem respeito aos papéis e representações sociais do
feminino enquanto categoria de gênero e raça. Esse tema se justifica pelo tratamento machista e racista dado
à mulher no espaço público, tendo em vista que a ela é reservado o privado. As narrativas teóricas de gênero
e raça e as experiências empíricas da autora são as fontes de consulta para a composição e reflexão deste
estudo. Identifica-se que a história da mulher converge com a procura pelo seu lugar na sociedade. A vida
citadina implica em locomoções diárias, e constata que a liberdade de ir e vir feminina é cerceada pela
operacionalização do machismo e do racismo por parte do poder público, que viabiliza políticas ineficientes
de inclusão de gênero no espaço público, e pela violência física que a mulher sofre ou está sujeita a sofrer ao
transitar pela cidade em razão das ameaças proferidas por palavras e ações de cunho machista e racista que
causam medo, constrangimento e intimidação. Denuncia essas práticas nocivas à mulher e promove reflexões
acerca dos papéis atribuídos ao sujeito feminino nos espaços privado e público.
Palavras-chave: Mulher. Machismo. Racismo. Cidade.
Introdução
Todos os dias ao nascer do sol eu disputava com meus tios e primos o fogão de lenha que esquentavanos do frio da manhã. Meus tios me repreendiam diariamente com ameaças por eu ficar com as
pernas abertas mostrando a calcinha. “Está relampejando”, “fecha as pernas, mala de mascate”,
“vou flechar sua perereca pra você aprender”. Dentre todas as frases repressivas supracitadas, a
última era enfatizada pela minha avó por meio de histórias verídicas. Ela citava os nomes das
crianças que tiveram suas genitálias atingidas com flechas e queimadas com brasas pelos irmãos,
porque se descuidaram e mostraram a calcinha. Muitos desses nomes eram de pessoas conhecidas.
Em nenhum momento era explicado porque nós meninas devíamos fechar as pernas sob pena de
violência física.
Recordei-me dessa história no recente Encontro da Marcha Mundial de Mulheres (MMM)2, sediado
na Cidade de São Paulo, após uma militante feminista explanar a confusão que a violência machista
provoca na nossa cabeça decidindo em que faixa etária a mulher deve fechar e abrir as pernas. Esse
evento reuniu cerca de 1.600 mulheres do Brasil e de mais quarenta e oito países que dividiram suas
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experiências, reflexões e angústias entre os dias 26 e 31 de agosto de 2013. Um dos traços em
comum dentre tantas diferenças destacava a opressão machista, racista, capitalista e do patriarcado.
É no calor dessas discussões que emerge a relevância desse estudo. A observação de campo é fruto
das experimentações da autora no seu corpo e identidade feminina, negra e jovem; de todas as
mulheres que conheço, converso, e observo transitando pelas cidades; das experiências compartilhadas
nos encontros de formação feminista; e das representações sociais de mulheres nos discursos também
midiáticos.
Ciente de que a mulher sofre diversas violações de direitos humanos, aponto incisivamente apenas
algumas ocorrências de assédio no âmbito privado e público. Entretanto, reconheço a existência do
feminicídio (homicídio de mulheres conhecidos como crime/violência passional) e dos elevados
casos de estupros de mulheres sem discriminação de faixa etária em todo o território brasileiro. De
acordo com o “Dossiê Mulher 2013”, publicado pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de
Janeiro, a violência que tem o maior percentual de mulheres vitimizadas é a sexual. Waiselfisz (2012,
p. 8)3 retrata que “entre 1980 e 2010 foram assassinadas no país acima de 92 mil mulheres, 43,7 mil
só na última década”. A maior incidência de violência ocorrem na residência da vítima, 71,8%, nas
faixas etárias de até 10 anos e a partir dos 30 anos da mulher. 15,6% dos incidentes violentos
ocorreram em vias públicas, concentrados em mulheres jovens entre 15 e os 29 anos de idade. A
escola apresenta baixa incidência numérica (966 casos), contudo, diminui a faixa etária que fica
entre os 5 e os 14 anos.
A cada 15 segundos uma brasileira é impedida de sair de casa, também a cada 15
segundos outra é forçada a ter relações sexuais contra sua vontade, a cada 9 segundos
outra é ofendida em sua conduta sexual ou por seu desempenho no trabalho
doméstico ou remunerado. Esses dados evidenciam que a violência contra a mulher
no Brasil, longe de ser um problema que deva estar restrito ao âmbito privado dos
casais, constitui um fenômeno social de grande alcance, a requerer políticas públicas
de ampla difusão e acesso (VENTURI, RECAMÁN, 2004, p.26).
Até os 4 anos de idade da mulher, a agressora é a mãe; o pai é a figura quase exclusiva das agressões
até os 9 anos e nas faixas etárias a partir dos 10 anos são os principais agressores. Esse papel é
substituído pelo namorado, marido ou ex-marido, dos 20 a 59 anos da mulher; e a partir dos 60 anos
são os filhos os principais agressores (WAISELFISZ, 2012). O Brasil figura a 7ª colocação na taxa
de feminicídio, de acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS). A tolerância e naturalização
da violência por meio da culpabilização das vítimas, que são taxadas de vadias que buscaram o
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incidente, justificam esses números. Outra razão é a não aplicação dos dispositivos legais de punição
aos agressores como a Lei nº 11.340, de 2006, conhecida como Lei Maria da Penha.
“O corpo é meu, a cidade é nossa”
Essa é uma das músicas cantadas pelas mulheres participantes da Marcha das Vadias (SlutWalker).
Esse movimento feminista eclodiu pelo mundo depois que um policial que ministrava uma palestra
na Universidade de Toronto, no Canadá, aconselhou às mulheres a evitar se vestirem como vadias
para não serem estupradas. Há outras músicas cantadas por mulheres na MMM que denunciam a
violência sexista: “A nossa luta é por respeito, mulher não é só bunda e peito”; “Se o corpo é da
mulher, ela dá pra quem quiser”; “A nossa luta é todo dia contra o machismo, racismo, homofobia”.
O objetivo dessas mulheres é chamar a atenção da sociedade para as dificuldades enfrentadas por
elas na cidade, pois o uso da cidade pela mulher4 é um tema importante, tendo em vista que é
crescente a discussão acerca dos papéis de gênero na sociedade. A divisão sexual do trabalho
condicionou à mulher extensa jornada de laboro no âmbito da sua participação no mercado de
trabalho somada com as tarefas domésticas. Nesse sentido, a relação da mulher com a cidade é
intrínseca a essa ordem vigente. Esse estudo denuncia as violações de direitos sofridas pela mulher
das cidades nas suas experiências de vivências nos ambientes privado e público.
A cidade transcende os conglomerados residenciais, atividades comerciais, institucionais, industriais
e indivíduos dispostos numa determinada área geográfica. “A cidade é um estado de espírito, um
corpo de costumes e tradições e dos sentimentos e atitudes organizados inerentes a esses costumes
e transmitidos por essa tradição” (PARK, 1916, p.26). Segundo esse autor, “a cidade não é uma
unidade geográfica e ecológica; ao mesmo tempo, é uma unidade econômica” (p. 27). Jacobs (2007)
chama a atenção para os projetos urbanísticos de construção e de revitalização das cidades. Para ela,
os profissionais responsáveis por essas reformas estão mais interessados na funcionalidade de uma
cidade ideal do que da cidade real. Urbanistas e projetistas pensam que solucionando os problemas
no trânsito a maior parte dos problemas da cidade estarão resolvidos. “As cidades apresentam
preocupações econômicas e sociais muito mais complicadas do que o trânsito de automóveis”
(JACOBS, 2007, p.6). De acordo com Park (1943, p. 29) “a cidade está enraizada nos hábitos e
costumes das pessoas que a habitam. A consequência é que a cidade possui uma organização moral
bem como uma organização física, e estas duas interagem mutuamente de modos característicos
para se moldarem e modificarem uma a outra”. Wirth (2005) escreve que a cidade não é apenas a
morada e o ofício do homem [mulher] moderno, mas também um centro de iniciação e controle da
vida econômica, política e cultural que tem atraído em seu interior pessoas e atividades diferentes.
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Para Wirth (2005, p.2), “uma definição de cidade sociologicamente significativa busca selecionar
aqueles elementos do urbanismo que o caracteriza como um modo distintivo da vida humana de
grupo” (tradução minha).
Como as cidades grandes vivem equilíbrios instáveis, a mulher é a mais prejudicada nessa crise
crônica citadina porque precisa constantemente se adaptar a esses processos. A cidade é reservada
ao homem. Essa afirmação explica porque a mulher não encontra seu lugar na cidade. Nesse sentido,
tratarei aqui do lugar ou da falta do lugar para a mulher na cidade, dos nossos desafios diários em
viver nas cidades que não são pensadas para o gênero feminino e que oferecem riscos para nossas
vidas. Reflete como o machismo e o racismo são os responsáveis centrais dessa desigualdade que
infringe os direitos de ir e vir, o direito à cidade e à dignidade humana da mulher. Discorrerei como
essas duas “doenças sociais” agem contra a identidade da mulher, sobretudo das negras que são
objetificadas principalmente em razão de seu fenótipo negro.
A construção social da mulher
A chegada de uma criança ao mundo gera expectativa das pessoas envolvidas, principalmente quanto
ao sexo do bebê. Se for um menino, os comentários acerca da perpetuação do nome da família,
sobretudo do pai, gera diferença em relação à menina. As roupas e o modo de educar são diferenciados
para crianças do sexo biologicamente feminino e masculino. Desde pequena, a menina é ensinada
tanto pela família quanto por outras pessoas que ela deve fechar as pernas ao sentar-se e andar
sempre vestida. No ambiente privado é reservado a ela o refúgio contra qualquer violação, pois a
rua é o perigo. Nem sempre essa afirmação é verdadeira, porque sua sexualidade vigiada desde seu
nascimento pode ser também explorada. Espaços privado e público para a mulher oferecem os
mesmos riscos de violação de seu corpo e sua mente; a diferença desses riscos pode ser pontuada
pela complexidade do machismo e do racismo nesses ambientes.
A ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que tende a ratificar
a dominação masculina sobre a qual se alicerça: é a divisão social do trabalho,
distribuição bastante estrita das atividades atribuídas a cada um dos dois sexos, de
seu local, seu momento, seus instrumentos; é a estrutura do espaço, opondo o lugar
de assembleia ou de mercado, reservados aos homens, e a casa, reservada às
mulheres; ou, no interior desta, entre a parte masculina, com o salão, e a parte
feminina, com o estábulo, a água e os vegetais; é a estrutura do tempo, a jornada,
o ano agrário, ou o ciclo de vida, com momentos de ruptura masculinos, e longos
períodos de gestação, femininos (BOURDIEU, 2012, p.18).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 239
A mulher é uma construção masculina. O que ela é ou faz é definido pelo que o homem entende do
que é ser mulher e qual o papel que ela deve desempenhar na sociedade. As faixas etárias femininas
são importantes para frear ou estimular quais ações elas estão autorizadas ou desautorizadas a
desempenhar. É importante ressaltar que não existe mulher machista, o que existe é a generalização
da violência machista sexista que influencia a mulher a se autovigiar, vigiar e denunciar outra mulher,
reproduzindo a violência que a oprime. Na cultura do machismo, todos são responsáveis pela
construção do modelo da mulher. Familiares, Estado e sociedade são controladores e manipuladores
das identidades femininas. Nesses modelos construídos, a mulher é dividida na categoria tolerável
“santa” e na categoria abominável “puta”, a mulher feita para “casar” e a mulher para “usar”. Essas
identidades são impostas de maneira violenta, obrigando cada uma a enquadrar-se nas categorias
definidas pelo machismo e pelo racismo, independente da identidade que a gente acredita se adequar.
Pode ocorrer de ela acreditar que a identidade imposta é a que ela realmente se apropria.
Ao discorrer sobre a construção social dos corpos, Bourdieu (2012 p.16) analisa que a construção
da sexualidade realiza-se na sua erotização, deixando de perceber a cosmologia sexualizada “que se
enraiza em uma topologia social do corpo socializado, de seus movimentos e deslocamentos
imediatamente revestidos de significação social” associa ao homem a virilidade e superioridade no
ato sexual. A divisão sexual das coisas e das atividades como oposição entre o masculino e o feminino
assume funções objetivas e subjetivas.
A divisão entre os sexos parece estar “na ordem das coisas”, como se diz por vezes
para falar do que é normal, natural, a ponto de ser inevitável: ela está presente, ao
mesmo tempo, em estado objetivado nas coisas (na casa, por exemplo, cujas partes
são todas “sexuadas”), em todo o mundo social e, em estado incorporado, nos
corpos e nos habitus dos agentes, funcionando como sistemas de esquemas de
percepção, de pensamento e de ação (BOURDIEU, 2012, p17).
A divisão sexual dos corpos, para Bourdieu, é a concordância entre as estruturas objetivas e cognitivas
que as conforma como uma divisão natural e evidente, deixando de lembrar as condições sociais de
sua possibilidade, reconhecendo e dando legitimidade a essas divisões arbitrárias. “A força da ordem
masculina se evidencia no fato de que ela dispensa justificação” (BOURDIEU, 2012, p.18). Para
ele, o “mundo constrói o corpo como realidade sexuada” e deposita e impõe todos esses princípios
de visão e divisão sexualizantes, inclusive “ao próprio corpo”. “A diferença biológica entre os
sexos, isto é, entre o corpo masculino e o corpo feminino, e, especificamente, a divisão anatômica
entre os órgãos sexuais, pode assim ser vista como justificativa natural da diferença socialmente
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 240
construída entre os gêneros e, principalmente, da divisão social do trabalho” (BOURDIEU, 2012,
p.20).
A perversidade do machismo e do racismo associados com o capitalismo causam a objetificação e a
desumanização do sujeito feminino transformando-o em “mulheres commodities”5 forjadas pela
comercialização dos seus corpos para fins de exploração pelo homem. A exploração da mulher é
feita da maneira mais sutil (veiculação da sua imagem desnudada em comerciais e programas de
televisão) e também extremamente escancarada (trabalho escravo e tráfico para fins sexuais). Isso
depende do “tipo” de mulher que está sendo comercializado e de como a sociedade apreende esse
comércio. As “cidades globais”6 corroboram para a comercialização feminina em que ela é apenas
mais um produto.
O ambiente público das cidades é inimigo da mulher, sendo a noite o momento mais inóspito. A
mulher olha para os locais abandonados com medo da violência física. As cidades abandonadas são
ameaçadoras para nós em razão de ruínas, lugares descampados, ruas desertas e deficiência de
iluminação pública. Uma violência devastadora física e psicologicamente temida pela mulher é o
estupro. Entretanto, há inúmeras outras violações cotidianas sofridas no espaço público que causam
medo, intimidação e constrangimento na mulher.
A mulher sozinha na rua é considerada uma pessoa sem dono, a ela pode ser desferido qualquer
palavrão e xingamento, pois lhe é merecido pelo fato de estar sozinha. Ela não deve perambular
desacompanhada de um homem e não deve responder às ofensas. O corpo da mulher não é dela, é de
qualquer homem, pois assim o machismo e o racismo operam. Quando a mulher abre mão do princípio
que impõe qual é o seu lugar, ela autoriza o homem assoviá-la, gritá-la, tocá-la e dizer qualquer
coisa, seja em voz alta, em grupo, ou ao pé do ouvido. Essas manifestações são mais frequentes nas
ruas da cidade e nos transportes públicos. A mulher é chamada de “gostosa”, “piriguete”, “delícia”,
por homens que elas jamais viram e ou deram a menor intimidade, mas também são tratadas assim
por familiares, vizinhos e amigos tanto no ambiente privado quanto no público.
Toda mulher é vulnerável a práticas machistas, sejam proferidas por homem, ou por outra mulher.
Todavia, a mulher negra particularmente trava batalhas cotidianas contra o racismo que a objetifica
e a desumaniza pela sua cor, de forma que o machismo se configura apenas como mais um agravante
nessa luta. Se a mulher branca em alguns momentos de sua vida, ainda que na infância, fosse
considerada angelical, a negra jamais foi porque nasceu negra e por isso é destituída de qualquer
inocência. As violações físicas e simbólicas são inerentes à raça segundo a lógica racista. Idade e
classe são apenas outros sintomas. Se no caso da mulher branca, é o machismo quem dita as regras,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 241
a mulher negra é encabrestada pelo racismo que define que ela é objeto de uso destituído de qualquer
direito. Se o machismo na esfera familiar e do Estado constrói modelos de mulher branca que devem
ser aceitos e os que não devem ser tolerados, a mulher negra enfrenta o racismo institucional e social
que emprega nela apenas a segunda alternativa. A mulher é uma categoria histórica e socialmente
estigmatizada pela associação da sua imagem ao demônio devido à sua sexualidade, à menstruação,
entre outros atributos socialmente inferiorizados e depreciativos. Segundo Goffmann (1891, p.8)
Por definição, é claro, acreditamos que alguém com um estigma não seja
completamente humano. Com base nisso, fazemos vários tipos de discriminações,
através das quais efetivamente, e muitas vezes sem pensar, reduzimos suas chances
de vida: Construímos uma teoria do estigma; uma ideologia para explicar a sua
inferioridade e dar conta do perigo que ela representa, racionalizando algumas
vezes uma animosidade baseada em outras diferenças.
É recorrente nas conversas com homens sobre os direitos da mulher sermos questionadas de que
queremos direitos iguais e não conseguimos carregar um saco de cimento. Tais discussões são
pautadas nas diferenças biológicas que tendem a inferiorizar a mulher, que é socialmente construída
como o “sexo frágil” e por isso precisa do homem para protegê-la e realizar tarefas braçais, que são
de difícil realização pelo sexo biologicamente feminino. Para Bourdieu (preâmbulo, 2012)
as aparências biológicas e os efeitos, bem reais, que um longo trabalho coletivo de
socialização do biológico e de biologização do social produziu nos corpos e nas
mentes conjugam-se para inverter a relação entre as causas e os efeitos e fazer ver
uma construção social naturalizada (os “gêneros” como habitus sexuados), como
fundamento in natura da arbitrária divisão que está no princípio não só da realidade
como também da representação da realidade e que se impõe por vezes a própria
pesquisa
Tratarei agora da construção social da mulher negra no contexto social brasileiro considerando sua
particularidade de sujeito histórico e também político por ocasião de sua identidade negra subjulgada
pelo racismo. Ser mulher e negra no Brasil é carregar um duplo fardo de dominação. Antes de falar
do direito e da liberdade de ir e vir e à cidade para a mulher negra, primeiramente é indispensável a
defesa do direito à sua vida. Souza (1985), no livro “Tornar-se Negro”, um estudo de psicanálise
sobre o negro no Brasil, e Munanga (2006), em seu estudo antropológico “Rediscutindo a mestiçagem
no Brasil: identidade nacional versus identidade negra”, chegaram à seguinte conclusão: o sonho do
negro no Brasil é a extinção da sua própria raça.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 242
Carneiro (1993) explicita que a mulher negra não é rainha de nada, que não faz parte do padrão
estético hegemônico de mulher, que é branco. Ela advém de uma experiência histórica de diferença.
À mulher negra é imposta a identidade de objeto que a destituí do direito da sua condição humana.
Refém da história que transformou seus ancestrais em “coisa”, ela carrega o ranço da coisificação de
seu corpo imposta pela dominação racista, machista, capitalista. O corpo sexualizado da mulher
negra é vivido sob o domínio da opressão racista que o distingue da mulher branca. Distante do
modelo feminino socialmente aceito, seu corpo é para o uso, é diabólico, insaciável e incansável
sexualmente.
A “mulata”, associação à mula (fruto da cópula entre jumento e égua), tem seu corpo animalizado
pelo seu formato na relação sexual, no trabalho de parto e braçal. Essa associação perversa é uma
das causas da desumanização da parturiente negra e de seus filhos, que acarreta no alto índice de
morte materna pela negação do atendimento médico adequado, o qual é disponibilizado à mulher
branca nas mesmas condições, e da mutilação de suas trompas de falópio sem seu consentimento
por profissionais de saúde que fazem políticas públicas paralelas.
Alguns estudos publicados indicam que a morte materna por toxemia gravídica (a
primeira causa e morte materna no Brasil) é mais frequente entre as mulheres
negras. Eles revelam que a taxa das mulheres negras é quase seis vezes maior do
que a de mulheres brancas. Em razão de serem, em sua maioria, chefes de família
sem cônjuge, mas com filhos, a mortalidade materna de negras consequentemente
relega à orfandade e à miséria absoluta um número significativo de crianças. As
causas de morte materna estão relacionadas à predisposição biológica das negras
para doenças como a hipertensão arterial, fatores relacionados à dificuldade de
acesso e à baixa qualidade do atendimento recebido e a falta de ações e capacitação
de profissionais de saúde voltadas para os riscos específicos aos quais as mulheres
negras estão expostas (MS, p.10).
Uma de minhas primas há nove anos deu entrada numa maternidade na Bahia para dar a luz a duas
meninas. Após o procedimento, o médico avisou que ela não precisava se preocupar porque não
teria mais filhos. Ele havia feito a laqueadura de trompas durante o parto. Uma outra prima, no
trabalho de parto do primeiro filho, teve a mãe impedida de acompanhá-la no hospital público da
cidade de Barra também na Bahia. Após ficar a noite inteira sozinha no quarto, recebeu a visita de
uma enfermeira pela manhã que percebeu seu pescoço roxo e alertou que ela estava fazendo força
de maneira errada7. Durante o parto, a médica a chamava de égua e falava que ela havia gostado de
fazer o filho, então devia aguentar parir. Uma semana depois, essa prima deu entrada novamente no
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 243
mesmo hospital com hemorragia. Foi diagnosticado que havia ficado com restos de parto. Ao relatar
esses casos em uma roda de conversa com mulheres negras feministas, descobri que era apenas mais
uma história compartilhada com tantas negras mães, irmãs, tias, primas e conhecidas.
Fonte: http://contextolivre.blogspot.com.br/2013/08/tj-sc-condena-jornalistas-por-racismo.html.
O parto para muitas negras é o fechamento de um ciclo de humilhações e horror que é praticado
tanto no seio familiar quanto na sua comunidade. De volta às observações empíricas, meninas
negras de classe baixa que engravidam, muitas ainda na adolescência, são xingadas e não raramente
espancadas por seus pais e mães. A comunidade complementa com frases depreciativas tanto em
relação à mãe quanto à criança: “Bucho na boca”; “Achou o que tava procurando”; “prenha” e
indagações acerca da paternidade incerta da criança, dando a entender que a garota não sabe quem
é o pai do filho. Tais frases pejorativas mudam de acordo com a localização geográfica e a classe
social da menina. Muitas vezes essas humilhações são minimizadas com o nascimento da criança
quando ela é aceita pela família. Vale ressaltar que a maioria das chefes de família no Brasil é negra.
Para chefiar uma família a mulher precisa trabalhar para garantir o seu sustento. Diferente da mulher
branca que lutou nos movimentos feministas pela garantia do direito ao trabalho, a negra sempre
trabalhou. Gilberto Freire, em sua emblemática obra “Casa Grande e Senzala”, reconheceu a
contribuição negra na constituição da sociedade brasileira. Essa obra foi citada pelo senador da
República, hoje com mandato cassado, Demóstenes Torres numa audiência pública sobre cotas
raciais no Supremo Tribunal Federal. Demóstenes Torres afirmou que os movimentos negros afirmam
que as negras foram estupradas no Brasil e que a nossa miscigenação se deu pelo estupro. Entretanto,
o Senador afiançou que Gilberto Freire mostrava que isso aconteceu de uma forma mais consensual
e que felizmente isso levou o Brasil a ter sua miscigenação racial. Finaliza sua amarga fala com o
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 244
pensamento de Joaquim Nabuco acerca da peculiaridade de que no Brasil havia traficantes negros
de escravos.
A insistência de alguns membros da sociedade em culpabilizar o sujeito oprimido pela violência que
ele sofre é uma prática cotidiana contra a mulher chamando-a de machista, no caso da mulher negra
criminaliza-a de racista. Negro não pratica racismo, porque racismo se dá pelo pensamento de
superioridade de uma raça em relação à outra raça. Raça é uma construção social biologicamente
inexistente (SANTOS, 2007). As práticas racistas são disseminadas por agentes integrantes da
sociedade branca e das instituições estatais, ou seja, temos um racismo institucional historicizado
pelo exemplo da política pública do branqueamento. Política de incentivo à importação de europeus,
no caso concreto dos italianos, cujo objetivo era de embranquecer a população brasileira e extinguir
a população negra. O censo de 2010 mostrou que, ao contrário do que previa tal política pública
institucional, a população negra superou a branca em 50,7% da população total brasileira.
A política do branqueamento não ganhou êxito em termos numéricos, mas social e psicologicamente
tornou-se feroz. A Redenção de Cam, obra do pintor Modesto Brocos, retrata em pintura o drama
de ser mulher negra. Na tentativa desesperada de fuga da discriminação, os sujeitos negros buscam
relacionamentos afetivos com pessoas brancas. É comum ouvirmos que pessoas negras não gostam
de casar entre si. Homem negro busca mulher branca e mulher negra procura homem branco.
Infelizmente nessas discussões não é colocado se a mulher negra encontra o homem branco. As
pesquisas apontam que quanto maior a renda do homem negro maior a probabilidade de se relaciona
com mulher branca, já o racismo do homem branco recai sobre a mulher negra.
Finalizo esse debate refletindo sobre o lugar da mulher negra na cidade, que é uma experiência
desafiadora para ambas visto que a cidade é um lugar masculino que emprega fronteiras para o sexo
feminino. Entretanto, a mulher negra enfrenta as “barreiras invisíveis” próprias do racismo. A circulação
dela em alguns espaços públicos, ainda que seja em seu ambiente, em ambiente próximo ou no
horário de trabalho pode despertar constrangimento, desconfiança e ódio em outras pessoas. Ela
não é impedida por nenhuma lei de transitar pela cidade ou em qualquer lugar público, mas a
segregação espacial simbólica é implacável. Sua circulação numa loja desperta, muitas vezes, a
atenção do lojista em vigiá-la, porque sua cor não é confiável. Soma-se a opressão machista à
violência racista, ambas responsáveis pela marginalização da mulher negra da cidade.
Do ponto de vista espacial é sabido que trabalhadoras domésticas, quando não
vivem na casa dos(as) patrões(as), em quartinho de empregada (cada vez mais
minúsculo), moram com suas famílias em bairros populares e/ou favelas com
grandes carências de serviços públicos, onde fazem deslocamentos diários usando
serviços precários de transporte coletivo para os bairros médios e ricos que lhes
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 245
custam recursos e tempo de trabalho não pago. Os problemas decorrentes da
estrutura familiar patriarcal, que lhes exige realização das tarefas domésticas no
lar também gratuito, antes de ir ao trabalho, significam uma jornada de trabalho
bastante extensa. Sob o mesmo sistema patriarcal, as mulheres de outras classes
sociais, que trabalham fora ou não, colocam para as empregadas domésticas este
trabalho essencial para a reprodução social que garante o ciclo vicioso da exploração
e dominação masculina. Assim, a tripla discriminação de gênero, raça e classe a
que estão submetidas as mulheres negras no sistema patriarcal, sistema sexual do
poder comum a todas as mulheres, tece os dramas e paradoxos cotidianos em
processos complexos e contraditórios (GARCIA, 2012, p.150).
A mulher, branca ou negra, enfrenta dois vilões implacáveis em suas vidas que agem de forma tão
perversa que é possível afirmar que é preciso que a mulher usufrua da cidade, mas para isso é preciso
construir outro modelo citadino, porque esse é insalubre para a saúde física e psicológica da mulher.
Aponto ainda que tem sido comum a migração da mulher de um bairro para o outro ou de uma
cidade para outro. Isso se dá por diversos motivos, a procura por trabalho e as políticas de remoções
pelo poder público são alguns exemplos. Quando a mulher migra leva junto a sua casa. A ideia de
casa aqui vai além de um espaço físico, é uma construção simbólica. Os filhos, as obrigações familiares,
as tarefas domésticas e a mulher constituem a casa. Por isso, os direitos das mulheres precisam ser
respeitados.
Considerações finais
Esse estudo teve a intenção de publicizar questões que alteram a vida da mulher na cidade. Traçou
um resumo estatístico breve da violência cotidiana contra a mulher no Brasil, sobretudo o assédio
sexual sofrido por ela ao transitar pela cidade. Refletiu que o machismo e o racismo são duas doenças
sociais estruturais e estruturantes desse problema e de outros, como a comercialização do corpo da
mulher como qualquer outra mercadoria a ser importada e exportada. Indica algumas medidas
paliativas que visa à inclusão feminina na cidade e os usos seguros que pode ser feito dos lugares
citadinos.
Uma forma de inclusão da mulher na cidade são os projetos urbanísticos com creches, escolas, salão
de cabeleireiro, locais para alojamento de brinquedos das crianças, regularização das ocupações,
locação social, ou seja, agregação de políticas de casas acessíveis e financiamentos mais baratos
para as mulheres observando que é a categoria de gênero que têm menor rendimento financeiro
devido à discriminação sofrida por elas no mercado de trabalho. Observa que as bolsas aluguel
distribuídas por governos nos casos de remoções são insuficientes para suas moradias, principalmente
aquelas que têm filhos.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 246
Ao perseguirem sua autonomia, o respeito a sua dignidade e a sua integridade
física; ao tentarem rearticular os espaços privado e público em outros termos,
transformando o primeiro e ampliando sua inserção no outro; em suma, ao
reivindicarem o fim da opressão de gênero, sendo esta tão onipresente, certamente
as mulheres apontam não só para uma sociedade em que elas possam viver melhor,
mas para um Brasil potencialmente menos injusto no conjunto de suas relações
sociais. Quanto aos homens, sobretudo como principais responsáveis pela maioria
das instituições sociais, podem optar pelo status quo ou contribuir para acelerar
essas mudanças (VENTURI, RECAMÁN, 200?, p.26).
Quanto à questão do assédio sexual sofrido pela mulher nos ambientes públicos é extremamente
importante o empenho do Estado no cumprimento de leis que punam os agressores. Entretanto,
cuidar das cidades com infraestrutura que atenda às necessidades da mulher, como iluminação pública,
escolas, paradas de ônibus dentro dos bairros e vagões reservados, representa grande diferencia
para a mulher, principalmente para a gestante. Políticas educativas de respeito à mulher são necessárias,
cujo objetivo é de informar os agressores que suas atitudes são invasivas, nocivas e criminosas,
afetando negativamente a mulher. O combate ao machismo inclui a conscientização dos homens
quanto às suas práticas violentas. Por isso, é indispensável o envolvimento de homens nessa luta
pelo compromisso ético e social de erradicação das manifestações machistas. Para tanto, o Estado
precisa assumir sua parcela de responsabilidade, inclusive que é machista e racista dentro de suas
esferas institucionais, o que corrobora para o insucesso das Delegacias de Atendimento às Mulheres
(DEAM) e a falta de instituições de atenção à mulher em muitas cidades.
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NOTAS
1
Aluna de mestrado do PPGS-UFF. Nota: Esse ensaio contempla minha experiência de mulher negra na cidade, e
algumas familiares e de conhecidas, cujo fim contempla a proposta dessa reflexão, que é a de mostrar a Construção social
da mulher incluindo-me como mais um sujeito feminino fruto dessa construção. Ressalto, desde já, que são necessárias
análises de pesquisas mais aprofundadas para chegar a uma conclusão definitiva e que essa proposta está sendo trabalhada
em minha pesquisa de mestrado em curso.
2
Inspirada em uma manifestação que reuniu 850 mulheres que marcharam 200 quilômetros, pedindo, simbolicamente,
“Pão e Rosas”. Ver: http://marchamulheres.wordpress.com/mmm/.
3
Julio Jacobo Waiselfisz analisou dados do Sistema de Informações de Mortalidade (SIM) da Secretaria de Vigilância em
Saúde (SVS) do Ministério da Saúde (MS) referente ao ano de 2011. Acesso ao Mapa: http://mapadaviolencia.org.br/
pdf2012/MapaViolencia2012_atual_mulheres.pdf
4
Para fins de compreensão: a “mulher“ nesse estudo é a categoria sexual biológica e identitária. “Gênero feminino” é
uma categoria social, a qual a mulher identifica como a categoria sexual biológica conferida ao feminino. Não é minha
intenção discorrer sobre os conceitos de todas as categorias tratadas aqui.
5
Commodities são mercadorias de origem primária comercializadas em estado bruto com baixo grau de industrialização.
6
“Seria, portanto, “global” a cidade que se configurasse como “nó” ou “ponto nodal” entre a economia nacional e o
mercado mundial, congregando em seu território um grande número das principais empresas transnacionais; cujas
atividades econômicas se concentrassem no setor de serviços especializados e de alta tecnologia, em detrimento das
industriais...” (Carvalho, 2000, p.72 apud Ferreira, 2003, p. 49).
7
Lei nº 11.108, de 7 de abril de 2005. Altera a Lei nº 8.080, de 19 de setembro de 1990, para garantir às parturientes o
direito à presença de acompanhante durante o trabalho de parto, parto e pós-parto imediato, no âmbito do Sistema Único
de Saúde - SUS.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 248
CRIMINALIZAÇÃO DA POBREZA:
A relação entre segurança pública e lógica neoliberal no contexto urbano
Kíssila Teixeira Mendes
Bacharela em Ciências Humanas (UFJF);
Graduanda em Psicologia (FMS-JF).
Resumo
A presente pesquisa se baseia na análise bibliográfica a respeito do tema “criminalidade e segurança pública”
e no uso de pesquisas quantitativas que permitam compreender (a partir de uma análise histórico-social) a
lógica neoliberal e sua inserção no contexto urbano brasileiro, bem como a presença desta orientação política
e ideológica nas políticas criminais e penais. O neoliberalismo, que surge como uma nova concepção de
Estado após a crise do Estado de Bem Estar Social, pressupõe em sua lógica que a responsabilização pelos
níveis alarmantes de criminalidade na sociedade seja direcionada para a população pobre (criminalização da
pobreza), detida em instituições sem grandes investimentos reabilitativos. É reproduzida também uma sensação
de insegurança, que contribui para o individualismo e a segmentação entre as classes. No Brasil, o observado
é que não houve um rompimento com a tradição oligárquica pré-ditadura, onde a burguesia exige um Estado
que defenda os seus interesses econômicos e sociais por meio de uma política punitiva.
Palavras Chave: segurança pública; neoliberalismo; violência; Brasil.
Lógica Neoliberal e sua inserção no contexto brasileiro: breve histórico
A fim de melhor contextualizar a temática será apresentado um breve histórico, tanto a nível mundial
quanto no âmbito nacional, partindo do surgimento do Liberalismo enquanto ideologia mundial até
os dias atuais, com a análise do neoliberalismo inserido no contexto brasileiro e, posteriormente, nas
políticas de segurança pública. Reconstituir tal histórico em poucas páginas pode dar margem à
simplificações. Portanto, deve ficar claro ao leitor que a pretensão é realizar uma reconstituição
acessível que visa dar suporte ao tema trabalhado. Macedo (1995) alerta ainda para a dificuldade de
se conceituar o Liberalismo por este ser, além de uma doutrina política, um pensamento sócio
histórico: surge no século XIX no contexto do Renascimento e da Reforma, de cunho humanista, e
traz o individualismo e a liberdade como valores principais, possuindo ainda como traços comuns o
racionalismo, individualismo, universalismo, reformismo e progressismo. No final do século XX se
transforma em ideologia global, partindo do princípio básico de que o Estado se limita a si mesmo
com o objetivo de fazer emergir forças aleatórias e, inclusive, contrárias a ele, sendo que o liberalista
se utiliza da razão e da moral para avaliar quais tradições e costumes são favoráveis ao progresso e,
portanto, devem ou não ser preservados, diferentemente de posições conservadoras ou revolucionárias
radicais. Entre suas características principais estão: distinção entre público e privado; liberdade
religiosa; defesa dos homens como cidadãos; e ser contrário aos excessos do governo. Assim, “por
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liberalismo entende-se uma determinada concepção de Estado, do qual o Estado tem poderes e
funções limitadas, e como qual, se contrapõe tanto ao Estado absoluto, quanto ao Estado que hoje
chamamos de social.” (BOBBIO, 1994, p. 7)
No Brasil, segundo Costa (1999), as ideias liberais foram responsáveis por fundamentarem diversas
revoltas emancipatórias. Porém, sobretudo após a independência, em 1822, quando passa a ter
maior influência, a elite interessada em manter suas propriedades e as economias de importação e de
exportação, sem a discussão de combate aos conflitos e às desigualdade sociais, faz o ideal liberalista
partir para um viés conservador desde sua origem no país.
Com a crise de 1929, caracterizada principalmente pela superprodução capitalista, surgiu nas classes
dominantes um receio de expansão do socialismo, o que levou a um recuo do liberalismo e a
possibilitou a ascensão de regimes totalitários pelo mundo. Foi após a Segunda Guerra Mundial,
porém, que houve a maior crise do capitalismo exploratório “liberal”, e foi onde, segundo Cancian
(2007), surgiu o Estado de Bem Estar Social na busca de um intermédio para os conflitos sociais
propondo a prestação de serviços sociais por parte do Estado que assegurassem os direitos e a
diminuição das desigualdades. Entretanto, tal organização política e econômica se apresentou de
diferentes maneiras nos países no qual foi implementado. No Brasil não houve uma estruturação do
Estado de Bem Estar Social semelhante aos países centrais, mas observa-se uma forte intervenção
do Estado a partir da Era Vargas (1930-1945) até o fim da ditadura militar (1964-1985), embora os
maiores beneficiados com os gastos do setor público tenham sido, historicamente, os empresários e
os estrangeiros.
Foi em meados de 1970, de acordo com Mauriel (2006), que surgiram as maiores críticas (e a
posterior crise) ao Estado de Bem Estar Social (bem como a derrocada do Socialismo), que alegavam
que os gastos do governo em políticas públicas, somado aos efeitos das políticas assistencialistas no
comportamento dos indivíduos, trariam como conseqüência a paralisação da economia. Além disso,
no Estado de Bem Estar Social, de acordo com Negrão (1996), favoreceu um crescimento de
politização da sociedade nas questões econômicas e sociais, o que gerou maior número de exigências
e expectativas que, consequentemente, foram quebradas pela incapacidade do governo de se adequar
e universalizar tais demandas, o que gerou uma crise de governabilidade das democracias (ou o
limite do Estado Social). A saída para tal crise, de acordo com visões teórico políticas conservadoras,
seria impor limites à democracia, diminuindo o papel de Estado como mediador dos anseios populares,
limitando sua função à economia, o que aproxima primordialmente tal visão com a neoliberalismo.
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Sendo assim, segundo Mauriel (2006), surge uma nova concepção de Estado que aponta para
subordinação à globalização financeira, privatizações, centralização no Executivo e para fortes críticas
a elementos de proteção social e de direitos de participação que interfiram no interesse da economia.
Ou seja, busca limitar o poder do Estado e também o de participação política da sociedade civil.
Assim, de acordo com Sader (2013), o neoliberalismo é o marco da passagem de um mundo bilateral
para um unilateral e “representa o projeto de realização máxima do capitalismo, na medida em que
visa a mercantilização de todos os espaços das formações sociais.” (SADER, 2013, p. 135).
Segundo Soares (1999), se nos países centrais a discussão centrava-se em não permitir mecanismos
de gerenciamento do Estado na economia, nos países periféricos, como o Brasil, os esforços se
concentraram em inviabilizar políticas de cunho social. Na América Latina o ajuste neoliberal se
consolidou através do Consenso de Washington (modelo criado pelo Banco Mundial e pelo FMI),
prevendo reformas estruturais, que variaram em ritmo e intensidade de acordo com o país, e podem
ser resumidas em: abertura comercial, liberalização financeira, desregulamentação dos fluxos
financeiros, reforma administrativa, tentativas de estabilização da inflação e em redução de regulações
estatais, sobretudo na área de políticas públicas e patrimônio publico.
No Brasil, segundo Sader (2013), foi possível ao governo militar, em um primeiro momento, fortalecer
economicamente o Estado e expandir a economia, embora mediante ao ingresso do capital estrangeiro.
Segundo Miranda, Miranda e Veríssimo (2008), após o período desenvolvimentista vivenciado nas
décadas de 1960 e 1970, observa-se, mais exatamente a partir de 1990, um ajustamento aos modelos
descritos no Consenso de Washington, com o aprisionamento do Estado voltado para um equilíbrio
econômico, o que levou o país a reduzidos investimentos na área de políticas públicas. Tais
características, somadas ao baixo crescimento interno, gerou a ampliação da desigualdade social. A
Carta Magna de 1988, de fato, caracteriou conquistas sociais e de direitos e igualdade. Porém, como
alega Sader (2013), já no governo Sarney, a Constituição encontrou adversários, sob o argumento
de que tais garantias, se de fato atribuída aos cidadãos, impediriam o avanço econômico e
transformariam o Estado em “ingovernável”.
Dessa forma, com o fracasso do governo Sarney e posterior eleição de Collor, a transição democrática
não foi capaz de democratizar o poder econômico, os meios de comunicação e a propriedade de
terras, por exemplo, consolidando a posição do Brasil como um dos países mais desiguais do mundo.
Com o impeachment de Collor, que atrasou o projeto neoliberal no Brasil, tivemos com Fernando
Henrique Cardoso (no governo Itamar Franco e em seus dois mandatos) dois fenômenos primordiais:
“financeirização da economia” e “precarização das relações de trabalho” (SADER, 2013, p. 138).
Nessa perspectiva, “o Estado se tornou refém do capital” (SADER, 2013, p. 138), ao mesmo tempo
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em que as relações de trabalho foram informalizadas, o que contribuiu para a exclusão social dos
trabalhadores. Entretanto, para Miranda, Miranda e Veríssimo (2008) foi possível, sobretudo com
a instituição da Reforma Gerencial de 1995, melhor observar um caráter de adesão do governo
brasileiro aos ideais liberais, que definiu no contexto brasileiro objetivos globais que visaram aumentar
a eficiência do aparelho do Estado reduzindo as ações deste e transferindo competências regionais
para estados, municípios e agências privadas.
Segundo Fiori (2013), após o fim da Guerra Fria, na década de 1990, a maior parte dos governos sul
americanos alinharam-se ao projeto liberal, o que, posteriormente foi responsável pelas grandes
crises cambiais, sociais e políticas sofridas por esses países (no Brasil, em 2001). Tal fato, para Fiori
(2013), foi decisivo para a chamada “virada à esquerda” nos governos, modificando os projetos
políticos do continente (desenvolvimentistas ou socialistas), que se uniram em grandes blocos
ideológicos e de poder. Porém, “o declínio do projeto conservador não havia cedido lugar a um
novo ‘modelo de desenvolvimento’, no sentido abrangente que essa expressão teve no passado.”
(GARCIA, 2013, p. 56). Tal afirmação, como veremos, se confirma, sobretudo na área de segurança
pública.
Segundo Sader (2013), o governo Lula (e posteriormente o de Dilma) pode ser definido como pósneoliberal por três características principais: implementação de políticas públicas nacionais, integração
regional com países do Sul, e papel interventor do Estado. Porém, embora haja a mudança das
prioridades de resistência à recessão, estas não foram capazes de romper com “os retrocessos impostos
pelo neoliberalismo: a desindustrialização, o protagonismo de exportador primário, uma sociedade
fragmentada, as ideologias consumistas.” (SADER, 2013, p. 141).
A perspectiva neoliberal, segundo Mauriel (2006), desvaloriza questões estruturais e, em contrapartida,
as coloca como individuais e de desvantagem de capacidades de cada membro da sociedade em
particular. Assim, as políticas públicas, se baseadas neste paradigma, servem como meio de possibilitar
capacidades através da “liberdade” desses indivíduos conquistarem bens materiais, e não como
mudanças na estrutura de renda e direitos. Porém, segundo Bobbio (1994) o próprio conceito de
liberdade sofreu alterações com o passar do tempo. Se para os antigos a liberdade se baseava no
direito de poder político para todos, na modernidade tal conceito se transforma na segurança individual
e de direitos estabelecidos pelas instituições, o que já transfigura a inserção do pensamento neoliberal
nas representações sociais da população. Além disso, cria-se um imaginário de que os serviços e as
políticas públicas (como o SUS, por exemplo) têm como alvo somente a população pobre e que a
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classe média e rica devem pagar por serviços privados de melhor qualidade. Tal dicotomia, alimentada
pela população, induz para o fortalecimento do neoliberalismo e precarização do serviço público.
Neoliberalismo e segurança pública: relações e controvérsias nas políticas criminais e penais
É no que tange o campo de políticas criminais que o modelo político e econômico neoliberal se
mostra mais agressivo. Segundo Santos (2007), podemos localizar na criminologia tradicional, que
tem como forte raiz as classificações de biótipos criminosos de Lombroso e Enri Ferri, a origem das
idéias compartilhadas até atualmente de erradicação do crime e identificação precoce de criminosos
a partir de características físicas, visando o indivíduo e não seu ato. De acordo com Dornelles
(2003), a partir de um discurso de promoção de bem estar coletivo, tais políticas acabam por legitimar
ações repressoras e de controle social do próprio Estado. Parte-se então para um modelo de “lei e
ordem”, muito forte nos Estados Unidos da América, onde é criado um estereótipo de inimigo
comum da sociedade, responsabilizado por todos os problemas estruturais da nação. Segundo Miranda
(2009), tal modelo foi iniciado principalmente em combate à rebelião de movimentos negros e levou
a um processo de leis mais severas em todos os países que aplicaram os seus princípios. Porém, na
verdade, conduziu a um processo racista e discriminatório de incapacitação de um grande contingente
de indivíduos. Indivíduos estes que, segundo Dornelles (2003), são os vulneráveis, que são os
principais culpados por sua situação. Tal fato caracteriza ainda a tentativa do Estado de retirar sua
responsabilidade pela situação social, havendo uma transferência de responsabilidades do papel
estatal para o âmbito privado.
Em entrevista concedida à revista Caros Amigos em agosto de 20031, o advogado Nilo Batista diz
ser “chocante” o fato dos discursos políticos, independente de posições partidárias e ideológicas,
serem exatamente os mesmos quando se trata da questão criminal. Dessa forma, o medo é utilizado
como recurso estratégico, o que leva à criminalização também das relações sociais, em consonância
com uma pauta econômica que favorece uma política genocida em diversas partes do mundo. Raúl
Eugenio Zaffaroni2 reforça a posição de que as políticas criminais e penais da América Latina são
decisões políticas fortemente influenciadas por modelos europeus e norte americanos de crescimento
da repressão pautadas no discurso de “monopólios midiáticos que criam pânico social”. Portanto,
para ele, a prisão não passa de mera reprodutora de comportamentos desviantes.
Desta forma, Karam (1996) atenta que também o interesse da esquerda pela segurança pública, que
se voltou para um pragmatismo político (e eleitoral) no sentido de ampliação de um discurso de
repressão e punição a aproxima da lógica neoliberal. Tal comportamento acaba por perpetuar a
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concentração de julgamento do sistema penal em classes subalternas e deixar intactas situações de
dominação e a divisão social em classes, construindo a imagem de que um bom sistema penal é
aquele que pune severamente, seja a quem for. O clamor contra a impunidade e contra a corrupção
acaba por legitimar ações cada vez mais reacionárias, rompendo tanto com conquistas da própria
esquerda, como com princípios do Estado de Direito. Tal pedido é em vão, pois o verdadeiro papel
da repressão não é o de justiça social, e sim a manutenção das estruturas de poder. Além disso,
“solidifica a autoridade do sistema penal, ocultando as suas próprias contradições.” (MARTINI,
2007, p.1). Assim, desvios pessoais de certas categorias da sociedade são tidos como o problema,
impedindo a população e os governantes de buscarem uma compreensão mais profunda da realidade
e de vêem que a violência e a criminalidade são subprodutos necessários ao capitalismo e que as
penas são “em essência, pura e simples manifestação de poder” (KARAM, 1996, p.81).
Wacquant (2008), autor referência na discussão da criminalização da pobreza, ao escrever sobre o
estado penal norte americano, salienta o aumento de cinco vezes no potencial punitivo, comparando
estatísticas de 1975 e 1999. Tal fato, segundo o autor, ocorre não por conta de uma reestruturação
aos moldes capitalistas, nem tampouco pode ser caracterizado como uma guerra contra o crime em
geral. Se retornarmos à história dos Estados Unidos, veremos que no século XIX, com a expansão
do Novo Mundo, a população prisional era composta de imigrantes e pobres, o que não difere da
função atual das penitenciárias que, segundo Wacquant (2008), é a de administração e de regulação
da pobreza, do gueto e do trabalho desqualificado. O crescimento expressivo da população carcerária
teve como consequência gastos maiores dos que os alocados para políticas sociais e, em 1998, as
cadeias e as penitenciárias eram a terceira maior fonte de empregos no país, sendo proporcional ao
aumento das privatizações deste setor. Além disso, o cárcere em massa contribui para o crescimento
da economia informal, favorecendo empregos temporários e abaixo da linha da pobreza. Para Nilo
Batista3, no capitalismo, o trabalho exploratório dentro das prisões é uma espécie de “sonho”, já que
a exploração da mão de obra é elevada ao máximo de sua potência, e até mesmo porque as próprias
fábricas apresentam configurações muito parecidas com as prisões.
Com origem no século XVIII, segundo Foucault (1977), a prisão foi a invenção capitalista mais
aperfeiçoada para a administração das ditas “classes perigosas” e do controle da mão de obra que
surgem com o grande fluxo migratório para as cidades no fim da Idade Média e início da
industrialização, com o surgimento da polícia e do judiciário para punir crimes contra a propriedade
e para instituir uma moral rígida para as ações do proletariado. Foucault (1977) é quem também nos
alerta que a sentença é mais do que o castigo legal para um ato específico que infringe a alguma lei,
pois o papel de infrator dá lugar ao delinquente que não é julgado pelo seu ato, mas por toda sua
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biografia. E é exatamente essa passagem da tortura à privação que interessa: entre os séculos XVII
e XIX as mudanças econômicas e sociais fizeram cair o poder absoluto do rei, que executava em
praça publica, e deu lugar às repúblicas, onde o jeito de exercer o poder, bem como os valores
compartilhados, passa a ser outro. Do corpo para dimensões mais subjetivas, até a utilização atual
do medo e da prisão como mecanismos reguladores da insatisfação da sociedade produzindo outro
tipo de individualidade, com a disciplina e uma vigilância que visa eliminar um mal que pode vir a se
apresentar no futuro e suspender as liberdades individuais preconizadas pelo liberalismo.
Segundo dados de julho de 20134, os países com maior população, em ordem decrescente, são:
China, Índia, Estados Unidos da América, Indonésia e Brasil. Em contrapartida, quando se trata de
população carcerária, os números não correspondem a essa ordem; o país com maior população
carcerária do mundo é os Estados Unidos da América (2,2 milhões), confirmando a tese de Wacquant,
seguido por China (1,6 milhões), Rússia (700 mil) e Brasil (514.582 mil)5. Porém, não é somente a
lógica de proporção populacional que conduz a tais dados: segundo pesquisa divulgada pela Federation
of American Scientists6, em um período de 30 anos a população carcerária em penitenciárias federais
nos estados norte-americanos teve um aumento de 25 mil para 219 mil pessoas, o que representa
praticamente 780% de aumento. Esses números se devem principalmente às mudanças no sistema
penal federal, que passou a ser mais rígido mesmo com crimes considerados não violentos, além de
um aumento gradual na quantidade de presos menores de 18 anos e maiores de 64 anos. No Brasil,
em um período de 20 anos, a população carcerária cresceu cerca de 350%7.
Para Dornelles (2003), a responsabilização pelos níveis alarmantes de criminalidade é direcionada
para a população pobre, sem acesso aos bens prometidos pela democracia em que vive, punida e
detida em instituições sem grandes investimentos reabilitativos, onde as chances de reprodução do
ciclo de violência se ampliam por mais uma geração. É reproduzida também uma cultura de medo,
que torna privados os bens públicos e contribui para o individualismo e a segmentação, sobretudo
entre as classes. Na visão dominante atual, segundo Silva (2004), a conduta criminosa é explicada
pela anomia da justiça e as análises tendem a cair sobre o aparelho repressivo. Um problema
fundamental de tal análise é o de que, a partir do momento que o crime passa a ser fruto da ineficácia
dos modelos de controle estatais, sua solução é encontrada exatamente na manutenção de tais
mecanismos, sendo subjugadas diversas outras variáveis. Eis o crescimento do eficientismo penal
(DORNELES, 2003), onde a política criminal é apresentada como única forma de estabelecer a
ordem.
Impactos neoliberais na segurança pública brasileira
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Embora no Brasil não seja observada uma condução meramente punitiva em seu Código Penal, “os
objetivos tradicionais das políticas de segurança são manter a lei e a ordem, preservar a vida, a
liberdade e segurança das pessoas” (NETO, 2006, p. 189). Para Souza (2012), diversas são as
fontes que nos dizem que, ainda com os mecanismos de participação estabelecidos no Brasil pela
Constituição de 1988, o passado autoritário da ditadura militar não se rompeu, sobretudo no interior
das instituições policiais. Um exemplo da ampliação do poder punitivo do Estado nos é dado pelo
relatório anual dos direitos humanos elaborado pela Anistia Internacional8 referente ao ano de 2011.
O número de execuções legais em vinte países com pena de morte (exceto a China, que não divulga
os dados) foi de, no total, 676. No Brasil, onde a pena capital não existe legalmente, o número de
mortes em ações policiais, grande parte fruto dos chamados “autos de resistência” (confrontos com
criminosos), nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo foi de 961, 41,16% a mais do que em todo
o planeta.
O país também não rompeu com a tradição oligárquica pré-ditadura, que compactua com o elitismo
e onde a burguesia exige um Estado que “pague contas” a ela. Neder (1996) afirma ainda que a
nossa formação socioeconômica colonial nos levou a um controle social absoluto oriundo da cultura
Ibérica. Além disso, de acordo com Dornelles (2003), desde o primeiro momento de colonização, o
Brasil é submetido a uma cultura de extermínio. Essas chagas do passado não foram vencidas pela
tardia democratização do país e, pelo contrário, segundo Pastana (2009), na nova República,
constituída nos anos 1980, se viu emergir políticas sociais voltadas para o assistencialismo e as
relações com o Estado de forma arbitrária e ilegal, o que também é observado na Justiça Penal, que
trata com descaso a Constituição de 1988. Ou seja, os impactos neoliberais veem aprofundar traços
de exclusão e marginalização dos pobres já existentes em nosso legado histórico que criou uma
espécie de barreira à participação da sociedade civil na política e na organização de movimentos
sociais de fiscalização e na identificação de problemas do Estado e Judiciário. Tais movimentos,
quando existentes, são associados à vadiagem e ao vandalismo mantendo a lógica liberal de “deter a
participação ativa e consciente dos cidadãos” (PASTANA, 2009, p. 122).
Dessa forma, são legitimadas e toleradas no cotidiano da população ações de tortura e de
subordinação, que confirmam a mentalidade autoritária no interior das relações sociais. Segundo
Sudbrack (2004), foram muitos os considerados inimigos da sociedade durante a história do Brasil:
índios, escravos, anarquistas, comunistas, negros, pobres. O fato é que, independente do contexto
histórico, esses inimigos impostos, que são contra um suposto padrão de ordem, sempre foram alvo
de perseguição, repressão e extermínio, seja por agentes do Estado, seja por membros da sociedade
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civil. Isso dá espaço a uma internalização e legitimação do extermínio que, mesmo com a
democratização de 1985, não foi rompida.
Segundo a socióloga Vera Malaguti Batista (2013), em entrevista concedida em julho de 20139,
ações violentas em favelas e periferias demonstram a incapacidade de ação do aparato policial e a
expansão do “Estado Policial”, antagônico ao estado de direito, que credita à polícia e às ações
repressivas o sucesso das políticas de segurança pública. Dessa forma, a polícia brasileira atua com
o objetivo de conquistar territórios inimigos apoiados pela mídia e pela opinião pública que, sem
perceber, legitima ações truculentas do Estado que antes criticavam na ditadura. Chacinas em favelas,
invasão de domicílios, abordagens ostensivas e proibição de ações cotidianas são toleradas e aplaudidas
em nome de uma suposta ordem e é o que ocorre no caso recente da implantação das UPP’s (Unidades
de Polícia Pacificadora) no Rio de Janeiro que, na verdade, promovem uma militarização da vida
dos pobres: “a UPP é uma gestão policial da vida dos pobres. Transforma a polícia como principal
política pública, acima de todas as outras”, afirma a socióloga. Ações semelhantes, se realizadas em
bairros nobres, por exemplo, seriam consideradas como estado de sítio.
Graças a um imaginário social compartilhado de insegurança, segundo Pastana (2009) tem se tornado
comum as críticas ao sistema penal, que cobram deste mais autoridade e mais poder de punição. Tais
anseios populares, entretanto, são um contraponto à recente reforma democrática brasileira e atende
aos ideais liberais. A “democracia tutelada”, caracterizada por um desmanche estatal traz em seu
âmago problemas estruturais como o desemprego e a falta de acesso a bens essenciais. Estes, por
consequência, não são problemas visados pelo Estado e auxiliam no aumento da criminalidade que,
agora sim, vira questão emergencial e espetacularizada, tratada de forma autoritária no Estado
brasileiro.
Tal sentimento de insegurança e transformação da questão da violência em uma indústria se transfigura
em um significante aumento da procura pela segurança privada, o que reflete também a descrença da
eficiência dos serviços estatais pela população. Segundo o Primeiro Estudo SESVSP10, em maio de
2011 o Brasil possuía 1.498 empresas de segurança privada autorizadas, que empregavam cerca de
540 mil vigilantes. Desse total de empresas, 429 atuavam no estado de São Paulo (29%). Também é
observado um aumento vertiginoso no número de empresas do segmento11: no período de janeiro de
2010 a dezembro de 2012, houve um saldo de 495 novas empresas. A análise por região nos indica
que o maior saldo se encontra na região nordeste (132), seguida pelas regiões: sul (115), sudeste
(106), centro-oeste (97) e norte (45). Porém, como alerta Martini (2007), mesmo os mais sofisticados
métodos de segurança e fiscalização ainda cumprem a mesma função de segregação imposta na
Idade Média, que tem como objetivo principal um higienismo social.
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Apesar das diferentes posições governamentais que ocuparam o poder desde a redemocratização
brasileira, os principais investimentos em segurança pública ainda se concentram na repressão, para
construção de penitenciárias e na capacitação de recursos penais12. Dados estatísticos comparados
dos anos de 2008 e 2009 coletados do DEPEN (Departamento de Execução Penal), vinculado ao
Ministério da Justiça, confirmam o avanço no número da população carcerária e de penitenciárias
em todo o Brasil. A análise da população prisional por 100.000 habitantes dos estados nos anos de
2008 e 2009 afirma gradativo aumento em todos os estados (exceto Amapá, Mato Grosso do Sul,
Ceará e Paraíba). A população carcerária que mais cresceu, em totais brutos, foi a do estado de São
Paulo. Ainda no período de um ano, no Brasil, houve um total de 28.407 novos presos nos
estabelecimentos penais. Estes, por sua vez, também tiveram um aumento vertiginoso em breves
períodos de tempo: de acordo com o Ministério da Justiça (2011), no período de 2007 a 2009,
surgiram 105 novos estabelecimentos penais no Brasil.
A pesquisa “Brasil atrás das grades”, divulgada em dezembro de 2012 traça uma série de características
do nosso sistema penal. A titulo de ilustração devemos apresentá-las: o Brasil foi o país que mais
criou vagas no sistema carcerário nos últimos 20 anos, passando de 60 mil vagas para 306 mil vagas.
Ainda assim, há um déficit de 208.085 vagas no sistema prisional. Desses presos, 30% não foram
devidamente condenados, o que corresponde a 173 mil presos provisórios. A maioria dos presos são
condenados a penas de 4 a 8 anos e os crimes responsáveis por grande parte dos aprisionamentos
(94%) são apenas nove, o que indica uma espécie de “processo seletivo” sobre o que deve ser, de
fato, criminalizado. São eles: tráfico de entorpecentes, furto, quadrilha, receptação, porte de armas,
estupro, homicídio, roubo e latrocínio. Além disso, 93,5% dos presos são homens, com mais de
50% com somente o ensino fundamental completo e cerca de 75% entre a faixa etária de 18 a 34
anos.13
O próprio nascimento da norma penal, segundo Martini (2007), já aponta para a defesa dos interesses
de grupos dominantes. Exemplo claro disso é o tratamento distinto entre crimes públicos e crimes
privados, onde o roubo tem punições e penas mais severas do que o crime de sonegação fiscal, que
são muito mais abrangentes em termos de valores e consequências para o restante da população. Tal
fato demonstra não só valores neoliberais e individualistas, como também o interesse público voltado
para determinadas classes, classes essas que “financiam as campanhas eleitorais dos parlamentares,
que fazem lobbys para a aprovação de leis que os beneficiam e que legitimam seus interesses
minoritários através dos meios de comunicação” (MARTINI, 2007, p.2).
Atualmente, segundo Pastana (2009), a grande maioria dos projetos de lei voltados à criminalidade
pelo legislativo brasileiro em um período de 4 anos (cerca de 97%) foram no sentido de tornar a
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legislação mais autoritária. Os crimes de colarinho branco praticamente não são discutidos. Com
isso, temos vivenciado modificações e decretos de leis severas que afrontam a consolidação
democrática. Sendo assim, a Justiça Brasileira, sob um discurso de defesa da democracia, atua em
contradição com os princípios de sua consolidação, pois “nosso discurso penal hegemônico congrega
elementos absolutamente contraditórios, como repressão severa e penas alternativas, leis duras e
garantias processuais, encarceramento em massa e proteção aos direitos humanos” (PASTANA,
2009, p. 127). Embora haja reconhecimento das novas alternativas de cumprimento de penas, ainda
são pouco expressivos seus usos no Brasil.
Considerações Finais
A partir da análise histórico social do Brasil é possível observar a reprodução de um Estado punitivo
que visa o encarceramento e o controle, fundamentalmente das classes excluídas dos meios de
produção, colaborando para a criação de um estereótipo de inimigo comum para a sociedade (que,
de forma contraditória, é também a mais vitimada pela dita violência urbana): pobre, negro, jovem e
do sexo masculino. Tal imaginário compartilhado faz reproduzir na população uma sensação de
insegurança no contexto urbano, o que colabora para a manutenção, legitimação e reprodução não
só do preconceito, da segregação e da própria violência, mas também na busca de meios de segurança
privada e cobrança de aumento punitivo dos mecanismos estatais.
O neoliberalismo não foi capaz de suprir a demanda social nem de satisfazer as necessidades do
nosso país e vem sofrendo profundas crises nos países aonde vigora. Isso porque suas contradições
fizeram crescer a necessidade de um governo que visasse, por exemplo, programas de distribuição
de renda e inclusão social por parte do Estado. Dessa forma, na segurança pública, estão em embate
os discursos que ditam pela manutenção da ordem em contraponto ao paradigma da transformação
social. O Brasil é um país rico e ocupa o quinto maior país industrial do mundo. Em contradição, a
concentração da propriedade de terra é a maior do mundo. Estamos então em um embate onde
entram em jogo os interesses entre minorias e maiorias, onde os vencedores, se é que eles existem,
dependerão, fundamentalmente, da forma de governo desta e das próximas gerações.
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NOTAS
1
Disponível no site: www.pdt-rj.org.br
2
Em entrevista publicada no site: http://www.brasildefato.com.br
3
Em entrevista publicada no site: www.pdt-rj.org.br
4
Dados retirados do site: https://www.cia.gov/
5
Pesquisa disponível no site: http://www.direitodireto.com/
6
Pesquisa retirada do site: https://www.fas.org/
7
Dado retirado do site: http://www.direitodireto.com/
8
Dados retirados do site: http://anistia.org.br/
9
Em entrevista publicada no site: http://www.cartacapital.com.br.
10
11
Dados retirados do site: http://www.sesvesp.com.br/
Dados retirados do site: http://www.fenavist.org.br
12
Dados retirados do site: http://portal.mj.gov.br
13
Dados retirados do site: http://www.direitodireto.com/
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 262
RIO DE JANEIRO GLOBAL: MEGAEVENTOS E MERCADORIA
Daphne Costa Besen
Palavras-chave: Rio de Janeiro – direito à cidade – cidade global – megaeventos – cidade-mercadoria
Introdução
A ambição anunciada é de transformar a cidade do Rio de Janeiro em uma cidade global. De acordo
com o atual prefeito Eduardo Paes, a cidade deve se tornar um centro de tomada de decisão. E para
isso, a cidade deve então melhorar sua rede de comunicação e de transporte, e se tornar um centro
de difusão de conhecimento no Brasil e na América do Sul (Borius, 2010, p.2). A cidade global é um
cenário no qual múltiplos processos globalizadores adotam formas concretas e locais, em que as
formas locais são, em boa parte, a essência da globalização. As grandes cidades de hoje em dia têm
se convertido em uma localização estratégica para toda uma nova classe de operações políticas,
econômicas, culturais e subjetivas (Sassen, 2009, p.60), realidade a qual estamos nos deparando
hoje, no Rio de Janeiro.
As mudanças estimuladas pela globalização não se restringem ao mundo econômico e afetam a
produção do espaço urbano, atingindo diretamente a formulação e legitimação de paradigmas nas
políticas urbanas (Sánchez, 2001, p.31). Dessa forma, uma nova onda internacional de projetos
urbanísticos se propaga e vem sendo apropriada pela aspiração mercantil em cidades globais. As
reformas e revitalizações urbanas ganham contornos especiais em cidades portuárias, e assim, um
novo ciclo se repete no Rio de Janeiro, onde a população de baixa renda já se viu expulsa da região
central da cidade para dar lugar a novos edifícios, recolhendo-se forçosamente às periferias, longe
das vistas de uma classe média e uma elite.
As políticas urbanas vêm sendo formuladas no âmbito de uma economia simbólica que afirma visões
de mundo, as quais acompanham as ações de reestruturação urbana (Sánchez, 2010). As cidades
têm seguido a mesma fórmula, e assim, acabam sendo vendidas da mesma maneira: como o local
ideal para promover grandes eventos internacionais, de acordo com um receituário importado. O
projeto urbano tem sido elitista tanto a nível estético como em relação às prioridades. Cabe, então,
perguntar quem irá colher os frutos dessa maravilha, já que esse não é um processo de reurbanização
preocupado com aqueles que ali vivem, mas sim empenhado em criar boas oportunidades imobiliárias
(Cilente & Tarin, s.d.).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 263
No caso do Rio de Janeiro, a cidade chega ao seu ponto mais alto no tocante ao projeto de cidade
global quando é eleita, em 2009, para ser sede dos megaeventos esportivos Copa do Mundo de 2014
e Olimpíadas de 2016. Esses megaeventos são de grande importância para o projeto da cidade
global devido à ampla coalizão de atores e pelo volume de recursos. A partir de então, o consenso
vem sendo administrado mediante a venda de uma mercadoria difusa, mas, poderosa: a ilusão do
renascimento urbano por meio dos megaeventos (Sánchez, 2010).
O trabalho consiste na elaboração de um debate teórico-analítico a respeito da aspiração do município
do Rio de Janeiro em se tornar uma cidade global. O artigo objetiva ampliar o entendimento sobre a
ideia de cidade global, com base na autora Saskia Sassen (2009) e as consequências que esse status
traz para o município do Rio de Janeiro, a exemplo da mercantilização, explorada à luz de Carlos
Vainer (2000); projetos, propostas, declarações e dados também foram analisados para que se chegasse
às conclusões finais.
O Rio de Janeiro tem se esforçado para se projetar na esfera internacional, competindo com outras
cidades para se tornar uma cidade global. Dentro dessa perspectiva, analisamos esse processo quando
o Rio de Janeiro vai ser palco da Copa do Mundo de 2014 e das Olimpíadas de 2016 e, fazemos a
seguinte pergunta: o projeto do Rio de Janeiro como uma cidade global é interessante para seus
habitantes? E, argumentamos que o Rio de Janeiro, como uma nova cidade global, e a partir de um
modelo que tem sido seguido pela mesma, acaba por se tornar uma cidade-mercadoria, negando
direitos à sua população.
Buscando atingir meus objetivos de pesquisa e analisar a mercantilização do Rio de Janeiro aliada ao
projeto de cidade global, o instrumental teórico a orientar o trabalho se encontra nas ideias
desenvolvidas por David Harvey (2008) a respeito do Direito à Cidade. Direito que se afirma como
um apelo e exigência (Lefebvre, 1969, p.108), no qual a cidade ideal comportaria a obsolescência do
espaço: transformação acelerada das moradias, dos locais, dos espaços preparados, seria a cidade
efêmera, obra perpétua dos habitantes, eles mesmos móveis e mobilizados para e por essa obra
(Lefebvre, 1969, p.123).
Primeiramente vamos apresentar a concepção de Direito à Cidade, perspectiva teórica que irá nos
acompanhar ao longo do trabalho. Em um segundo momento, é introduzido o debate sobre Cidade
Global, em que são apresentados o conceito e a discussão que é feita a partir dessa noção. Em
seguida, são expostas as violações de direitos na cidade do Rio de Janeiro em decorrência dos
megaeventos esportivos. E, finalmente, o Rio de Janeiro é analisado dentro da temática da cidademercadoria.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 264
Nota-se então, que o desenvolvimento econômico se torna o objetivo final, ferindo direitos no
caminho dessa trajetória. É essa a cidade onde queremos viver? Com base nessa e em outras
indagações, este trabalho visa ampliar a discussão a respeito da inserção do município do Rio de
Janeiro como uma cidade de nível global, levantando suas reais consequências, sob a ótica do Direito
à Cidade.
O Direito à Cidade: teoria e prática
A história do Direito à Cidade como um slogan lidando com os problemas das cidades surgiu a partir
dos eventos de maio de 1968 em Paris e seus paralelos pelo mundo, sendo concebido como tal por
Henri Lefebvre em seu livro Le droit à la ville, publicado nessa mesma década (Marcuse, 2009,
p.187). Desde então, o Direito à Cidade começa a ser cada vez mais explorado como campo de
estudo e também como objetivo a ser reproduzido nas cidades.
Henri Lefebvre (1969), ao escrever sobre o Direito à Cidade, tem ciência de que os problemas da
sociedade não podem ser todos reduzidos a questões espaciais e muito menos ao planejamento de
um arquiteto. Assim, Lefebvre (1969) politiza a produção social do espaço assumindo a ótica dos
cidadãos e colocando o Direito à Cidade em sua luta pelo direito de criação e plena fruição do
espaço social. O autor (1969) avança numa concepção de cidadania - trata-se de uma forma de
democracia direta, dada pelo controle das pessoas sobre a forma de habitar a cidade, produzida
como obra humana coletiva em que cada indivíduo e comunidade têm espaço para manifestar sua
diferença. Dessa forma, a realização do Direito à Cidade somente acontece quando, ao confrontar
a lógica de dominação, prevalece a apropriação do espaço pelos cidadãos e, consequentemente, sua
transformação para satisfazer e expandir necessidades e possibilidades da coletividade.
A
s
cidades constituem espaços de produção e acumulação do capital e reprodução da vida social e,
também, locais ocupados pela maior parte da população mundial, tornando o Direito à Cidade uma
questão de grande importância. O processo de reprodução da vida social ocorre de forma desigual,
transformando as cidades em um lugar de especulação financeira e imobiliária, com os bens comuns
sujeitos às regras do mercado. As consequências desse processo estão na precariedade das condições
de moradia, no adensamento das periferias, na apropriação desigual do espaço, no desemprego
estrutural, nas precárias relações de trabalho, na pobreza, na violência urbana e na devastação
ambiental. Ademais, o crescimento das cidades brasileiras tem sido determinado pela intensa
valorização da terra. Com isso, as políticas de higienização como a revitalização de bairros e áreas
da cidade valorizadas pelo capital empurram famílias e grupos sociais para as periferias urbanas,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 265
onde predomina a precarização das condições de moradia e outras situações de risco geradas pela
segregação espacial.
As necessidades urbanas específicas precisam de lugares qualificados, lugares de simultaneidade e
de encontros, lugares onde a troca não seria tomada pelo valor de troca, pelo comércio e pelo lucro
(Lefebvre, 1969, p.97). A cidade formada historicamente não vive mais, não é mais apreendida em
sua prática, e hoje não é mais do que um objeto de consumo cultural para os turistas e para o
estético, ávidos de espetáculos e do pitoresco (Lefebvre, 1969, p.98).
Atualmente, qualidade de vida urbana se tornou uma utilidade para aqueles que podem pagar, já que
o consumismo, turismo e indústrias culturais na cidade se tornaram principais aspectos da economia
política urbana (Harvey, 2008, p.31). Os resultados disso tudo estão ligados às formas espaciais das
nossas cidades, as quais se tornam cidades fragmentadas, de comunidades fechadas e espaços públicos
privatizados sob vigilância (Harvey, 2008, p.32). Esse Direito à Cidade como é agora constituído
está confinado nas mãos de uma pequena elite que está na posição de modelar a cidade gradativamente
na direção dos seus próprios interesses e vontades, além de estar cada vez atrelado aos interesses
privados (Harvey, 2008, p.38).
O Direito à Cidade é uma demanda moral, encontrada em princípios fundamentais de justiça, de
ética, de moralidade, de virtude e do bem. “Direito” não tem a intenção de ser uma demanda legal
plausível de um processo judiciário, ao invés, são múltiplos direitos que estão aqui incorporados:
não somente o direito ao espaço público, ou o direito a informação e transparência do governo, ou
o direito ao acesso ao centro, mas o direito a totalidade, no qual cada parte é parte de um simples
todo o qual o direito é demandado (Marcuse, 2009, p.192).
Assim, a partir dessa reflexão sobre o Direito à Cidade, que vai nos guiar ao longo do trabalho,
partimos para o próxima parte com outra análise: a da Cidade Global. Devemos manter em mente
que o Direito à Cidade é uma importante ferramenta para que se construam cidades democráticas
onde os cidadãos tenham acesso a direitos e, sobretudo, para que se planejem cidades voltadas para
aqueles que nela habitam. E, além disso, o Direito à Cidade se faz necessário para nos guiar a uma
resposta para a pergunta: que tipo de cidade estamos vivendo?
Cidade global, globalização, capital e seus descontentes
O objetivo dessa seção é inaugurar uma discussão a respeito do projeto do Rio de Janeiro de se
tornar uma cidade global. Essa afirmativa é deveras importante uma vez que traz grandes
consequências para a cidade, principalmente no tocante ao seu planejamento urbano e elaboração de
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 266
políticas. Assim, já tendo refletido sobre o Direito à Cidade, trazemos também essa perspectiva a fim
de avaliar o projeto de cidade pelo qual estamos passando.
O Rio de Janeiro, nos últimos anos, tem se mostrado um forte candidato para adquirir o status de
cidade global. Em decorrência desse objetivo, trava-se um debate, trazendo muitas consequências
tanto para os habitantes da capital quanto para os que nela investem. A empresa de consultoria A.T.
Kearney em parceria com a The Chicago Council on Global Affairs elabora, de dois em dois anos,
um ranking com as cidades globais do mundo. O Rio de Janeiro aparece em 47º lugar em 2008, 49º
lugar em 2010 e 53º lugar em 2012. Para se chegar ao resultado mostrado na lista que contém 66
cidades, são levados em consideração: corporações globais no local - negócios que a cidade gera e
fluxo de produtos ao exterior; capital humano; acesso da população a informação por televisão,
rádio e internet; experiência cultural dos moradores - quantidade de museus e galerias e como a
cidade se relaciona com o mundo. O estudo aponta o crescimento do Produto Interno Bruto,
crescimento da classe média, melhora na infraestrutura e melhora na facilidade em se fazer negócios
como pontos altos das cidades globais emergentes, e como vulnerabilidades apresenta o aumento da
poluição, aumento da instabilidade, aumento da corrupção e piora da assistência médica. O estudo
afirma ainda que a previsão para a cidade do Rio de Janeiro é que se mantenha próximo da sua
posição atual nos futuros rankings, não alterando muito o seu status quo (A.T. Kearney, s.d.).
Saskia Sassen, socióloga holandesa que introduz o termo “cidade global”, situa a aparição das
cidades globais nesse contexto de globalização. Estar em uma cidade se tornou sinônimo de estar
em um circuito de informação extremamente intenso e grosso. O crescimento dos mercados globais
para as finanças e os serviços especializados, a necessidade de redes de serviços transnacionais, o
papel cada vez menos decisivo dos governos na regulação da atividade econômica internacional e o
subsequente auge de outros contextos institucionais e em especial os dos mercados globais, apontam
a existência de uma série de redes de cidades transnacionais (Sassen, 2009, p.51-52). Não há dúvida
de que conectar-se a circuitos globais trouxe consigo um nível significativo de expansão das áreas
urbanas e redes metropolitanas dos centros de negócios, assim como um dinamismo econômico, no
entanto, o problema da desigualdade continua intacto (Sassen, 2009, p.59).
Logo, centrar-se nas cidades faz possível reconhecer a ancoragem de múltiplas dinâmicas
transfronteiriças em uma rede de lugares, dentre os quais sobressaem as cidades, e em especial, as
globais e aquelas com funções de cidades globais. Essa maneira de ver a globalização contribui para
identificar uma complexa arquitetura organizativa que não entende de fronteiras, e que está de um
lado, desterritorializada, e de outro, concentrada espacialmente em cidades, constituindo cenários
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 267
de novas demandas por parte do capital global, empregado como recurso organizativo (Sassen,
2009, p.58).
As mudanças estimuladas pela globalização não se restringem ao mundo econômico, mas afetam a
produção do espaço urbano, atingindo diretamente a formulação e legitimação de paradigmas nas
políticas urbanas. As chamadas “cidades-modelo” são marcas construídas pela ação combinada de
governos locais junto a atores hegemônicos com interesses localizados, redes mundiais de cidades e
agências multilaterais. Como instrumento de consolidação dessa agenda urbana, são desenvolvidas
políticas de promoção e legitimação de certos projetos de cidade que são difundidos como emblemas
da época presente, sendo a sua imagem publicitária a “cidade-modelo” (Sánchez, 2001, p.31-32).
Rever a globalização por meio do conceito de cidade global implica centrar-se nos elementos
estratégicos da economia global. Em consequência, temos que nos centrar nas questões de poder e
desigualdade, o que implica prestar atenção nas tarefas de gestão, manter e financiar uma economia
global. Em segundo lugar, um enfoque baseado na cidade na hora de estudar a globalização tende a
colocar de manifesto as crescentes desigualdades entre os que têm muito e os setores da população
e espaços urbanos mais desfavorecidos. Em terceiro lugar, o conceito de cidade global implica dar
prioridade às redes econômicas devido à natureza das indústrias que operam nelas: finanças e serviços
especializados. Em quarto lugar, um enfoque baseado na rede das dinâmicas transfronteiriças entre
cidades globais nos permite entender melhor a crescente presença dessas transações em outros
terrenos como o político, o cultural e o social (Sassen, 2009, p.60).
A nova inspiração encontrada pelo capitalismo na conquista do espaço compreende na compra e
venda do espaço em escala mundial (Sánchez, 2001, p.33). Nessa nova economia, as iniciativas de
produção e uso do espaço urbano são geralmente atribuídas aos agentes privados da atividade
econômica. Fazendo surgir, assim, parcerias entre os setores público e privado, que se somam para
agir de maneira positiva, do ponto de vista econômico (Fridman & Siqueira, 2003, p.33).
O que a globalização evidenciaria, é que agora, são as cidades que se esforçam em atrair e negociar
diretamente com os grandes aglomerados financeiros, industriais e comerciais do mundo. E, os
investimentos que vem para as cidades, se comportam como se estivessem em uma competição
(Fridman & Siqueira, 2003, p.31). Esse processo descrito como de competição entre territórios,
regiões e investimentos é um mecanismo que faz com que as cidades se alinhem à disciplina e à
lógica do desenvolvimento capitalista (Vainer, 2000, p.17).
A cidade global se transformou em um parque temático, ou seja, a produção de entretenimento cria
uma nova forma de turismo urbano, de grande relevância na competição entre cidades por fontes de
recursos (Fridman & Siqueira, 2003, p.29). Esse fenômeno chega ao Brasil como uma tendência
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 268
internacional inevitável, devendo o Rio de Janeiro, na visão de seus prefeitos e governadores, entrar
na competição para vencê-la (Fridman & Siqueira, 2003, p.31). Isto é, o Rio de Janeiro deseja fazer
parte do mercado de cidades, tornando-se cada vez mais global, competindo com outras cidades e
objetivando maior sucesso e visibilidade internacional.
Esse Rio de Janeiro global produz mega obras e mega investimentos, ao mesmo tempo em que
exclui e desloca espacial e socialmente pobres para a periferia metropolitana. Uma nova ordem
urbana está sendo desenhada e inclui uma cidade auto-segregada, com muros, e as novas centralidades,
os mosaicos. Trata-se, portanto, de uma modernização excludente, cujos símbolos mais importantes
são as áreas centrais das grandes metrópoles e a delimitação dos guetos, essas, sim, são as suas
marcas (Fridman & Siqueira, 2003, p.37).
O Rio de Janeiro ao ser considerado uma nova cidade global, traz para sua realidade diversas
consequências no tocante ao planejamento urbano, que, como vimos, é muito explorado pelo capital,
objetivando o lucro. Uma vez que muitas obras são realizadas, que a cidade é vendida, que o fim do
governo é atrair empresas e investimentos e que, de certa forma, os habitantes são colocados em um
segundo plano, percebemos também que violações de direitos ocorrem no âmbito dos megaeventos,
ferindo o Direito à Cidade. Os megaeventos são o ápice do projeto do Rio de Janeiro como cidade
global, transformando-a ainda mais em uma mercadoria para o capital estrangeiro. Na próxima
seção vamos analisar a situação do Rio de Janeiro atualmente, trazendo para o debate, as violações
pelas quais a cidade está passando, em decorrência desse modelo de cidade adotado.
Direitos ameaçados na cidade do Rio de Janeiro
A intenção desta seção é abordar, discutir e refletir sobre as violações de direitos fundamentais na
cidade do Rio de Janeiro, focando no período de preparação da cidade para os megaeventos. A
partir do momento em que consideramos o Rio de Janeiro como uma cidade global, muitas dessas
violações passam a ser observadas sob a ótica do desenvolvimento econômico e, desse modo, ferindo
o Direito à Cidade. O fato de a cidade querer se desenvolver economicamente não deixa de ser um
objetivo, mas que não deveria ser justificativa para que direitos sejam violados. Violações no campo
da moradia, mobilidade, informação e participação estão afetando as vidas de grande parcela da
população. A Cidade do Rio de Janeiro está sendo palco de diversos projetos, obras, empreendimentos
e políticas visando à preparação da cidade para a Copa do Mundo de 2014 e para os Jogos Olímpicos
de 2016. De acordo com a Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (FIRJAN), o Rio
de Janeiro tem recebido no período de 2011 a 2013, investimentos públicos e privados que somam
R$181,4 bilhões. Comparado com a dimensão territorial do estado, de 43,7 mil km2, o volume do
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 269
investimento é de mais de R$4 milhões por quilômetro quadrado, o que faz do Rio de Janeiro o
maior concentrador de investimentos do mundo (FIRJAN, 2011).
No entanto, as ações na direção do projeto de criar uma “Cidade Olímpica” nos permite afirmar que
a cidade avança em sentido contrário ao da integração social e da promoção da dignidade humana,
já que seus impactos são de grandes proporções e envolvem diversos processos de exclusão social.
As remoções ganham destaque nas violações, mas também estão em curso transformações profundas
na dinâmica urbana do Rio de Janeiro que envolvem de um lado, novos processos de elitização e
mercantilização da cidade, e de outro, novos padrões de relação entre o Estado e os agentes
econômicos e sociais, marcados pela negação das esferas públicas democráticas de tomada de decisões
e por intervenções autoritárias (Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, 2013,
p.8).
O Direito à Moradia integra o direito a um padrão de vida adequado, devendo incluir: segurança da
posse; disponibilidade de serviços; infraestrutura e equipamentos públicos; custo acessível;
habitabilidade; não discriminação e priorização de grupos vulneráveis; localização adequada e
adequação cultural (Direito à Moradia, s.d.). Esse tem sido violado dando visibilidade ao desrespeito,
pelas autoridades, do direito dos cidadãos de terem acesso à informação e de participarem dos
processos decisórios. Essa construção registra a subordinação dos interesses públicos aos interesses
privados, o desrespeito sistemático à legislação urbana e aos direitos ambientais, aos direitos
trabalhistas e ao direito ao trabalho, além do desperdício dos recursos públicos, que deveriam estar
sendo destinados às prioridades da população (Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de
Janeiro, 2013, p.8).
Trata-se de uma política de relocalização da população de baixa renda na cidade a serviço de interesses
imobiliários e oportunidades de negócios. A maior parte das remoções está, então, localizada em
áreas de valorização imobiliária, que acaba por se tornar um pretexto para que elas aconteçam
(Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, 2013, p.19). Além disso, as indenizações
das habitações e dos estabelecimentos comerciais, oferecidas pela prefeitura, são muito menores do
que o valor praticado pelo mercado nessa região, o que impossibilita a transferência dos moradores
para outras unidades habitacionais ou a aquisição de estabelecimentos comerciais no mesmo bairro
(Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, 2013, p.32).
No quesito mobilidade, deve-se considerar a oferta de modais diversificados e a possibilidade de
integração intermodal. A rede de transporte e as opções de modais disponíveis influenciam no padrão
de mobilidade urbana que se tem em cada cidade, e também é preciso considerar como o sistema de
transporte pode, ou não, promover a justiça social. No caso do Rio de Janeiro, existe uma forte
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 270
concentração espacial dos investimentos em infraestrutura de transportes quando consideramos a
escala metropolitana, o que coloca em dúvida se as intervenções no campo da mobilidade estariam
de fato provocando transformações na estrutura urbana desigual da cidade (Comitê Popular da
Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro, 2013, p.43).
Ideias para valorizar o espaço urbano da cidade do Rio de Janeiro são bem-vindas, no entanto, é
preciso ressaltar que essas propostas devem ter um embasamento urbanístico e social consistente
para assegurar a sua adequabilidade aos locais onde serão implantadas. Mas, infelizmente, grande
parte dos projetos de intervenção urbana no Rio de Janeiro foi decidida sem que as consequências
negativas fossem avaliadas para o futuro da cidade e seus habitantes (Janot, 2013). O verdadeiro
legado dos megaeventos no Rio de Janeiro tem sido uma cidade mais desigual, com a exclusão de
famílias e a destruição de comunidades, além da apropriação da maior parte dos benefícios por
poucos agentes econômicos e sociais (Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do Rio de Janeiro,
2013, p.8). A qualidade de vida daquele que vive na cidade e seu bem-estar não tem sido prioridade
para o Governo meio a tantas outras oportunidades que vêm atreladas a uma cidade global. O capital
se torna o principal ator e motivador de tais empreendimentos, os quais, certamente darão lucro,
atraindo ainda mais capital para a metrópole. A agenda se torna flexível para atender às demandas,
ajustando-se ao cliente da vez e o foco acaba por se tornar a projeção do Rio de Janeiro como cidade
ideal, valorizando-se áreas pontuais da cidade, e apagando outras.
A cidade-mercadoria dos megaeventos
A realização da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016 constitui o ápice de uma
trajetória pela qual uma nova concepção de cidade e de planejamento urbano se impôs entre nós.
Argumenta-se que as formas de poder na cidade estão sendo redefinidas, conduzindo à instauração
da cidade-mercadoria, que, em outras palavras, seria a cidade da democracia direta do capital, onde
predomina um planejamento competitivo, que se pretende flexível, amigável ao mercado e orientado
pelo e para o mercado (Vainer, 2011, p.3). A presente seção se propõe a discutir a noção de cidademercadoria, levando em conta a influência da globalização nesse processo e o papel desempenhado
por uma cidade global.
Esse urbanismo favorece a importância dos agentes privados – companhias imobiliárias, entidades
financiadoras, proprietários de solo urbano – que agem mais diretamente em uma economia de
mercado em que, em princípio, o poder público não deveria interferir além do nível que garanta a
operação eficiente desse mercado. De acordo com esse urbanismo, são responsáveis pela cidade
todos aqueles que atuam no mercado produtor do espaço urbano. O produto “cidade” é idealizado
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 271
e realizado seguindo os mesmos métodos recomendados pelo marketing: deve ser atraente e mostrado
diretamente em suas características mais desejáveis, sendo a sua venda a mais desimpedida possível,
prometendo um valor de troca mais estimulado que o valor de uso, substituindo o coletivo pelo
individual e a soberania do povo pela soberania do consumidor (Fridman & Siqueira, 2003, p.2526).
Uma nova dinâmica para a reprodução do capitalismo é encontrada nessa estratégia global: a
construção da cidade-mercadoria que, sob a sustentação do poder político dos governos locais, se
alinha por meio dos processos de reestruturação urbana e da construção de imagem para vendê-la e
inseri-la no mercado. Como mercadoria especial, inclui estratégias especiais de promoção, ou seja,
são produzidas representações que obedecem a uma determinada visão de mundo, são construídas
imagens-síntese sobre a cidade e são criados discursos referentes à cidade, encontrando na mídia e
nas políticas de city marketing importantes instrumentos de afirmação e difusão. As representações
do espaço e, baseadas nelas, os discursos sobre as cidades e as imagens-síntese, fazem parte dos
processos de intervenção espacial para renovação urbana (Sánchez, 2001, p.33).
Os projetos urbanos não tem a intenção de intervir na cidade como um todo, preferindo focar em
espaços delimitados por sua capacidade de servirem de exemplos, em decorrência de sua tipologia e
visibilidade (Fridman & Siqueira, 2003, p.27). A própria cidade se transforma em um mosaico, onde
diversos projetos são elaborados e vendidos como o método mais eficiente de intervenção. Nessa
venda, a concepção de esquemas físico-espaciais é precedida de estudos sobre procedimentos
estratégicos para a sua viabilização, implantação e operação. Portanto, os projetos urbanos envolvem
a negociação das parcerias que viabilizariam a sua execução, ou seja, os agentes financeiros e
econômicos serão articulados na coordenação de ações públicas e privadas (Fridman & Siqueira,
2003, p.28).
Trata-se de um urbanismo de correção, no qual os problemas serão corrigidos, mas também, de um
urbanismo que busca se mostrar como gerador do novo, livre de problemas. É, além disso, um
urbanismo temático, com vontade de tornar a cidade um local de criação de oportunidades ou uma
área de interesse, de acordo com a sintonia e com as tendências do mercado. Define-se ainda como
um urbanismo localizado e de contexto, em que cada lugar é exposto como dono de uma identidade
a demandar tratamentos particulares, o que se opõe à abordagem universalista, por recusar obediência
irrestrita a modelos formais (Fridman & Siqueira, 2003, p.28).
Dessa forma, a melhor solução para garantir que a cidade-empresa, planejada e gerida estrategicamente
como uma empresa, atinja a eficácia, a produtividade e a competitividade que se espera de uma
empresa, é então recorrer a quem entende do assunto, ou seja, tratando-se de uma empresa, convocar
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 272
os empresários (Vainer, 2000, p.8). Um novo conceito de planejamento exige novos atores; o market
lead city plannig demanda que os protagonistas das ações e decisões sejam os mesmos que
protagonizam o mercado. A parceria público-privada garantirá que os sinais e interesses do mercado
estarão adequadamente representados no processo de planejamento e de decisão (Vainer, 2000,
p.9).
A analogia cidade-empresa desliza então para uma analogia cidade-empresários, que não se esgota
em uma proposta simplesmente administrativa, gerencial ou operacional, na verdade, é o conjunto
da cidade e do poder local que está sendo redefinido. Essa cidade é obrigada a ser realista, a conformarse com as tendências do mercado e não pode ter o privilégio de elaborar planos utópicos. A cidadeempresa atua no mercado de cidades, devendo ser ágil, competitiva e flexível. Os controles políticos
são estranhos a um espaço social onde o que importa é a competitividade e a produtividade, e onde
os resultados são o objetivo. Estamos vivendo um resgate da antinomia eficácia/eficiência versus
controle político (Vainer, 2000, p.10). Nessa cidade não há lugar para ideologias nem políticas, há
apenas interesses. O empreendedor político deve ser também um empreendedor econômico (Vainer,
2011, p.6).
O projeto para as Olimpíadas 2016 e Copa do Mundo 2014 e a conquista do Rio de Janeiro para
sediar esses jogos foi o desenlace de um longo processo no qual vem se afirmando uma concepção
de cidade e, portanto, de políticas urbanas influenciadas pelo pensamento econômico. As formas
pelas quais se impõe esse projeto, que faz parte ainda do projeto de cidade global, indicam uma nova
articulação entre poder político e econômico local com empresas e instituições extralocais (Sánchez,
2010). Os megaeventos produzem então de maneira plena e intensa, a cidade-mercadoria.
Dessa maneira, ao estimular a reinvenção da cidade e sua nova inserção mundial pela via dos
megaeventos esportivos e dos grandes projetos urbanos, este modelo de cidade e seu urbanismo de
resultados têm contribuído para potencializar a desigualdade. Isto é, ao mesmo tempo em que são
renovados os espaços em ritmo intenso e com um prazo fixo, as receitas públicas e as políticas
sociais ficam comprometidas, favorecendo a multiplicação de conflitos (Sánchez, 2010). Em suma,
o Rio de Janeiro ao se tornar uma cidade global, ser sede dos megaeventos esportivos de 2014 e
2016, se transforma também em uma cidade-mercadoria. Esse novo modelo de cidade tem negado,
até agora, o Direito à Cidade, transformando uma cidade que deveria ser feita para seus habitantes
em uma cidade-mercadoria / city marketing / cidade-empresa para o capital estrangeiro.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 273
Conclusão
O fato de o Rio de Janeiro se tornar uma cidade global, mesmo não estando entre as primeiras do
mundo, traz consigo uma série de consequências. O Rio de Janeiro vem se transformando,
principalmente no tocante ao planejamento urbano, e os reais objetivos dessas transformações, vão
muito além de criar uma cidade melhor planejada para seus cidadãos. Assim, o Rio de Janeiro, tem
negado o Direito à Cidade, se transformando em uma cidade-mercadoria, processo que, durante o
período de preparação para os megaeventos, é experimentado de maneira mais exacerbada. Concluise também, que o Rio de Janeiro como cidade global não é uma alternativa interessante do ponto de
vista do Direito à Cidade para seus habitantes, pelo menos, se formos levar em conta as atitudes do
nosso governo para se alcançar esse status.
A visão de mundo dominante que constrói a ideia de “cidade da virada de século” procura, a partir
da difusão de modelos, normatizar as cidades, configurá-las de acordo com os parâmetros da cidade
competitiva, da cidade-mercadoria e da cidade-empresa, desconsiderando a complexidade sócioespacial e a multiplicidade de projetos políticos em cada território urbano (Sánchez, 2001, p.47). O
que estamos vivendo no Rio de Janeiro é praticamente a implementação de um modelo de cidade
que já foi experimentado em outras localidades, negando as especificidades e necessidades locais.
A eficiência e os objetivos econômicos em geral não devem ser considerados fins em si mesmos, mas
um meio a serviço do aumento da justiça social e da melhoria da qualidade de vida e, somente no
caso de contribuir para esses fins é que poderá ser considerada como moralmente aceitável. Isso
contrasta com a ideologia economicista do desenvolvimento capitalista, em que objetivos econômicos
como crescimento, modernização tecnológica e do espaço urbano e ganhos de eficiência passam a
ser perseguidos, como fins em si mesmos, o que se une com a satisfação dos interesses econômicos
e não-econômicos dos grupos dominantes, mas não do restante da sociedade (Souza, 1999, p.82).
O fim deve estar na construção do espaço da cidade como lugar do diálogo, da liberdade, do
aprimoramento e realização de cada um. E, o governo promotor do bem público não deve ser
substituído pelo governo eficiente na gestão de recursos. O cidadão é figura central da pólis e está
sendo substituído pela figura do consumidor. Se a qualidade de vida só pode ser requerida pelo
consumidor, ela não é comum a todos, mas a apenas um grupo de cidadãos cuja voz é mais forte
quanto maior for sua riqueza. Ao invés de lugar da liberdade, a cidade tem se transformado em lugar
do consumo. O sentimento de perda da liberdade promovida pelo avanço do interesse privado sobre
o domínio do público tem feito com que a cidade seja apenas considerada como valor de troca e
circulação de mercadorias (Brandão, 2009).
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 274
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II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 276
ESPIRITUALIDADE E CIDADANIA PENTECOSTAL CLÁSSICA:
Caso das comunidades gonçalenses.
Sergio P. Gil de Alcantara
Mestrando em Ciências das Religiões (PPG/FUV)
Bacharelando em sociologia (ICHF/UFF)
[email protected]
Resumo
Este estudo inicia uma análise, sob um olhar sociológico, do sentido da espiritualidade e suas influências na
cidadania, nos dias de hoje, praticado por comunidades eclesiásticas de cunho pentecostal clássico, localizadas
na cidade São Gonçalo, região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro. Dentre os autores pesquisados,
destacam-se: Alberto Antoniazzi (1994), Cecília Mariz (1994), Daniéle Hervieu-Lèger (2008), Francisco
Rolim (1987), Georg Simmel (2010), José Bittencourt Filho (2003), Maria Machado (1996), Ricardo Mariano
(2012). A metodologia utilizada neste trabalho é a pesquisa bibliográfica. O pentecostalismo brasileiro clássico,
como fenômeno evangélico de características religiosas prosélitas, movimenta-se ascendentemente seguindo
orientações das mudanças sociais. Este ato expansivo incentiva a inclusão social e a elevação da autoestima,
culminando numa postura de cidadania. O pentecostalismo reproduz os valores vigentes na sociedade em que
está inserido, ao mesmo tempo em que rejeita, de forma simbólica, essa mesma sociedade, enquanto molda
aos seus adeptos.
Palavras-chave: Espiritualidade. Cidadania. Moralidade. Conversão. Identidade.
Introdução
O termo “pentecostal clássico2” é admitido para referência histórica das implantações de igrejas que
seriam oriundas da chamada “primeira onda3” pentecostal, na década de 1910. Este estudo é voltado
para a Assembleia de Deus, por pertencer a este pioneirismo denominacional pentecostal no Brasil,
juntamente com a Congregação Cristã4 - que apesar de sua expansão inicial permaneceu com o
crescimento mais acanhado5, por isso, não será contemplada. Por outro lado, a Assembleia de Deus
vive um grande crescimento agregando doutrinas que não admitiriam influência sincrética e intercursos
simbólicos, mantendo um padrão tradicional6 desde a sua fundação, como por exemplo, a centralidade
no Espírito Santo7. Esta denominação protestante experimentaria um crescimento acentuado na
década de 1950, devido ao êxodo rural ocorrido no Brasil e o crescimento industrial nas cidades,
acompanhando transformações culturais8. O que promoveria uma inovação de pensamento religioso,
proporcionando mais liberdade a partir da década de 19809.
Na cidade de São Gonçalo, região metropolitana do Rio de Janeiro, a população dos que se dizem
evangélicos protestantes monta o percentual de 32,5% (IBGE, 2012). Dentre estes dados, a informação
relevante é que a grande maioria é de cunho pentecostal: 27%10. Levando-se em conta que o
pentecostalismo seria denominado como a “religião dos pobres”, observa-se que muitos adeptos são
pertencentes a camadas intermediárias, da população11. Segundo Frédéric Vandenberghe, que escreve
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 277
no prefácio do livro “Religião. Ensaios” do sociólogo Georg Simmel “o anseio da religiosidade pela
unidade e por superar a fragmentação da realidade é o que permanece de religião numa era secular
e pós-cristã que perdeu a crença em Deus, mas não o anelo por ele12”.
Uma cidade em pleno desenvolvimento econômico, social e político, tal qual São Gonçalo/RJ, passa
agregar polos petroquímicos e refinarias, advindos da exploração de petróleo, da camada de pré-sal
localizada no estado do Rio de Janeiro13. Por esta razão a cidade passaria a ser influenciada, e
também influenciadora, de vários grupos de indivíduos advindos de outras regiões. José Bittencourt
diz que o pentecostalismo passaria a se adaptar mediante a um quadro de desenvolvimento urbano,
integrando “seus adeptos aos percalços da transição da sociedade “tradicional” para a moderna14".
Uma hipótese para a análise de mesma ocorrência, ou não, conquanto às comunidades pentecostais
clássicas gonçalenses.
Torna-se importante perceber as leituras que as comunidades pentecostais clássicas fazem de si
mesmas, no tocante às suas práticas espirituais e a relação com a cidadania, mediante as recentes
transformações, e mudanças sociais15. Neste item, as buscas por condutas morais familiares, e as
conversões dos adeptos, reorientado seus ideários e transformando suas percepções identitárias16.
Espiritualidade e comportamento social nas comunidades pentecostais clássicas
Sob a leitura que a comunidade pentecostal clássica faz de si mesma, a compreensão de que o
indivíduo esteja partilhando de algo espiritual em comum, convertido e apto, portanto, a seguir sua
jornada em santificação é evidenciada pelo batismo no Espírito Santo17. Para Rolim, “o centro do
pentecostalismo é o batismo do Espírito Santo, que não é um rito como o batismo com água, e sim,
uma presença especial do Espírito Santo18”, identificado por ato comunicativo “que tem como sinal
exterior proferir algumas palavras estranhas19”. Na visão comunitária, por ocasião do batismo do
Espírito Santo, um passo importante é dado no sentido de integração e de pertencimento. Isto
significa a adesão e participação do individuo na comunidade pentecostal, o que também funciona
como parte integrante na busca pela salvação, que pode ser entendida como o alvo ou a contemplação
satisfatória para as necessidades da alma20.
“Por salvação21”, Simmel diz “que entendemos a satisfação de todo desejo supremo da alma, e não
só em termos morais, mas também no sentido de seu anseio por bem-aventurança, realização, grandeza
e força22”. Por sua vez, a santificação, seria atingir a situação mais pura moral, sobmaneira em ações,
e não somente em ideal. O que atrai a alma a romper com suas debilidades, em prol a liberdade23. No
entanto, para Rolim, a santificação possuiria caráter complementar, mas não deixaria de possuir um
tom imprescindível para o avanço espiritual, dentro da leitura comunitária de si mesma24.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 278
Divergentemente da matriz empregada pelas comunidades de cunho calvinista, que apregoa a graça
eficaz de forma irresistível, por uma expiação limitada e uma eleição incondicional, doutrinas
idealizadas por João Calvino25, que menciona que Deus escolhe os que haverão de obter a salvação,
o pentecostalismo, segundo Mendonça26, soergueria sobre outra matriz:
o metodismo. Porque, embora ele afirme a proposta da Reforma de justificação
pela fé, preconiza também a progressiva santificação com a salvação, (...), nesta
proposta a santificação é a condição de permanência no processo de salvação. Ou
seja, para o Calvinista, o eleito jamais se perderá, nem que ele queira. Enquanto na
proposta metodista, a pessoa pode perder a sua salvação. Se ela se descuidar,
escorregar, se perde. Há um policiamento ético mais permanente27.
Deste modo, de acordo com Maria Machado28, enquanto o pensamento religioso calvinista garantiria
salvação, observando a graça e a misericórdia divina, no pentecostalismo, o pensamento religioso
pentecostal daria lugar à busca de condutas morais e éticas, estipuladas como santificadas, tornando
a dependência comportamental de cada um, a fim de atingir o alvo de salvação. De modo que, a
conversão no pentecostalismo clássico seria acompanhada por atos que envolvem diferenças de
comportamento em sociedade “cabendo aos convertidos fazerem de suas vidas um testemunho
permanente de santificação29”.
A espiritualidade pentecostal retomaria o entendimento sobre as narrativas bíblicas que se encontram
no livro de Atos, no novo testamento, o qual supõe tratar de uma particularidade libertadora e
incentivadora de coragem e impetuosidade, em modo de viver30. Nesta narrativa bíblica, a visão das
comunidades pentecostais admitiria realizações de promessas do próprio Cristo, crido como o próprio
centro do cristianismo, em relação à outra narrativa descrita no livro bíblico profético de Joel, no
Antigo Testamento. Para Rolim, trata-se de “memória de um passado religioso, social e político de
um povo a uma nova história que começa em Pentecostes31”. Nesta visão, a narrativa de Pentecostes
ofereceria cumprimento de promessas, as quais envolveriam libertação e regozijo. Faria unido em
face da própria história de vida do adepto, ou seja, o que aconteceu no passado, envolvendo um
povo, também poderia acontecer nos dias de hoje, envolvendo todo aquele que passa pela experiência
comunitária do batismo do Espírito Santo, o que o tornaria pertencente à mesma comunidade32.
Espiritualidade, cidadania e moralidade familiar.
Por conta da atuação em meio a uma população de grande maioria, de outra religião, os pentecostais,
desde o momento da conversão, seriam marcados pela moralidade familiar, como base de
comportamento de seus adeptos33.
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“(...) Os grupos minoritários que lutam contra a hostilidade das populações locais
tendem com frequência a uma vigilância severa sobre seus membros, submetendoos a uma disciplina rigorosa para justificar a tolerância que lhes é concedida34”.
A valorização e reconhecimento que os grupos menores conquistam, baseiam-se na forma de vida
rigorosa e exemplar. Além da preocupação com a vigilância disciplinar de comportamento, outro
anseio é levado em conta. O novo convertido aprende a aspirar pelo milênio, que “é um mundo novo
que vai durar mil anos (...)35”.
Um dos entrevistados de Francisco Rolim, diz que neste mundo novo “(...) num vai mais ter sofrimento,
nem doenças, nem pestes, nem guerra36”. Esta aspiração pelo mundo novo traria uma ideia de não
preocupação com a sociedade temporal, isto é, a não importância das causas sociais, consideradas
temporais, em detrimento ao cuidado mais espiritual e pastoral, no que concerne aos problemas
mais íntimos, encontrados no mundo conhecido, e não no que ainda haveria de vir. Tendo uma
promessa e certeza de uma vida melhor individual, então, não haveria importância, outras
preocupações,maiscoletivas,quesãoconsequentemente,deixadasdelado37.
Para Antoniazzi38, o pentecostalismo pareceria mais atraente àquele que precisa satisfazer as
necessidades pessoais, espirituais e familiares. O milênio chegaria, e então, estas causas sociais, no
aspecto coletivo, e do mundo ao nosso derredor, seriam sem proveito, pois tudo seria resolvido com
a contemplação do evento futuro. A espera pela segunda vinda de Cristo remeteria à esperança, e à
utopia do milênio, apregoado como um período reinante de justiça e paz39.
O pentecostalismo no Brasil seria beneficiado, em sua implantação e crescimento, devido ao já
estabelecimento do protestantismo histórico de missão, representado pelas igrejas, congregacionais,
presbiterianas, batistas e metodistas. Estas igrejas já praticavam o proselitismo e, por isso, já detinham
boas frequências em seus cultos40. Desta feita, enquanto as igrejas históricas firmavam seus trabalhos
com as classes média e alta, o pentecostalismo foi se afirmando nas classes menos providas e de
recursos mais limitados. “Assim o pentecostalismo, ao pisar em terras brasileiras, já encontrou um
terreno preparado pelo protestantismo proselitista (...). A Bíblia já não era uma novidade. E as
Igrejas protestantes tinham uma razoável frequência nos cultos41”.
Cecília Mariz42 argumenta em sua pesquisa que a conversão masculina se daria, na maioria das
vezes, através da busca por uma solução aos males da bebida, provocada pelo alcoolismo,
corroborando com a pesquisa realizada por Rolim, quando um de seus entrevistados admitia: “Eu
bebia muito43”. Mariz evidencia que a conversão da mulher viria primeira, na maioria das vezes, por
isso tentaria converter o esposo44. Outra constatação da autora é que “após a conversão e o abandono
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ao álcool nenhum desses deixou de ser pobre, mas todos experimentaram de um certo progresso
material imediatamente após parar de beber45”. Uma dinâmica que enveredaria uma posição mais
confessional, pois se acreditaria com experiência de vida, naquilo em que confessa. O que mobilizaria
uma constante perseverança, permanência e busca das bênçãos divinas, em detrimento aos males
deste mundo46.
Conversão e cidadania nas comunidades pentecostais clássicas.
A conversão ao pentecostalismo, no Brasil, possuiria uma particularidade, a qual não poderia deixar
de ser destacada. No acolhimento fraternal em meio às comunidades pentecostais clássicas, percebese “que 80% dos que entraram para o pentecostalismo tinham sido católicos47”. “Exagerando um
pouco, pode-se chegar a dizer que o pentecostalismo recruta católicos que já estavam “fora” da
igreja (instituição)48". Esta prática proselitista ocorreria enquanto os antigos praticantes do catolicismo,
não mantinham presença às missas, tão somente, rezavam a seus santos, em parte, devido a uma
excessiva preocupação católica com as práticas sociais e políticas, apartando-se de uma ligação com
fiéis, em detrimento a uma atuação mais pastoral e espiritual, mais cuidadosa49. A adesão ao
pentecostalismo seria marcada pelo poder ágil quanto às questões de ordem de necessidades pessoais,
como a falta de saúde, a desorientação espiritual, e desavenças familiares, deixadas de lado pela
Igreja Católica50.
As pessoas, que outrora eram católicas, quando se convertem ao pentecostalismo, variando suas
crenças, construiriam um processo de transformação, através da nova religião51. O ato de conversão
ao pentecostalismo produziria uma ruptura com culturalidade brasileira hegemônica, o qual passaria
a ter um exponencial de conduta confessional, onde seria preciso participar para ser, em oposição às
outras religiões, quando não seria preciso ser para participar52. A participação e atuação na
comunidade, também teria o benefício de proteção frente às forças de espíritos malignos que regem
o mundo53.
Para a socióloga francesa, Daniele Hervieu-Léger54, a participação e atuação religiosa em uma
comunidade teria um caráter confessional, a qual o adepto empregaria verdade de vida naquilo que
confessa. Do contrário, o “peregrino” seria marcado pela sua atitude flutuante e desregulação de
práticas e vivências movidas por uma individualização religiosa espelhando o individualismo
moderno55. Transpor-se-iam de uma religião para outra, e ainda, de uma comunidade para outra,
com a intenção de satisfação de seus próprios interesses individuais, e necessidades de caráter
momentâneo, ou não56. Estes, não seriam confessionais, e não disporiam de suas vidas em prol ao
que confessam. Seriam apenas peregrinos em busca de satisfações de suas próprias necessidades
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espirituais, pois não estariam preocupados com o coletivo, portanto seriam alusivos aos tempos
modernos, racionais e individualizados57.
A autora identifica o convertido de três formas: Aquele que mudaria de uma religião para outra,
prosélito; aquele que não teria religião alguma, mas decidiria aderir a alguma; e aquele que já haveria
praticado a mesma religião, anteriormente, mas por algum motivo a teria deixado, mas agora volta58.
Para evidenciar uma destas posições de conversão, identificada por Hervieu-Léger, traz-se a luz, o
sociólogo Rolim, que destaca em entrevista concedida por um convertido ao pentecostalismo, advindo
de outra matriz religiosa:
Ninguém entende a nossa religião se não entra para a nossa Igreja. Para isso é
preciso aceitar Jesus. Antes eu era católico. (...) Quando uma vez ou outra ia nas
missas de domingo, as pessoas não me conheciam. (...) Na religião, o que eu era
mesmo era devoto dos santos. Era mais para rezar pros santos que de missa. Me
tornei pentecostal escutando um crente pregar no vizinho. (...) Eu bebia muito na
época. Por isso lá em casa tinha sempre briga por causa que eu bebia. (...) Um dia
vi uns crentes cantar na casa do vizinho. Fui lá só por curiosidade, vi um crente,
pedreiro como eu, falando e dizendo que Jesus muda a vida das pessoas. Quando
acabou, ele disse: “Quem quiser aceitar Jesus levante o braço”. Umas pessoas
levantaram o braço e eu levantei o meu59.
De acordo com esta entrevista, o convertido precisaria participar para entender, e por conta disto,
seria possibilitada uma identificação de um convertido que tinha a mesma profissão e participava da
mesma classe social, prometendo uma mudança de vida60. A procura do converso, não seria por uma
mudança de vida financeira ou por melhores condições econômicas, mas por uma vida sem conflitos
e sem vícios61. Talvez um cuidado não recebido na Igreja Católica. Um cuidado mais pastoral com
relação aos problemas cotidianos, recebido no meio pentecostal62.
Espiritualidade e identidade nas comunidades pentecostais clássicas
De acordo com Luis Campos Jr63, sobre a perspectiva definitiva de orientação pentecostal, buscarse-ia restringir contatos realizados antes da conversão, que lembrariam uma vida não apropriada.
Também as práticas consideradas pecaminosas, tais como, “o fumo, a bebida alcoólica e a
prostituição64”. Por este motivo haveria uma preocupação da continuidade na igreja, na participação
e permanência nos cultos e atividades eclesiásticas, no intuito de promoção de intimidade com o
divino. Esta continuidade incentivaria e possibilitaria resoluções de problemas cotidianos. “Assim o
cotidiano é inserido em um contexto voltado para o divino65”.
Devido à evangelização pentecostal se encontrar em um país de maioria católica romana, alguns
valores sociais, mas especificamente, os da família, seriam adaptados com o intento proselitista66. A
referência quanto à verdadeira família, a qual seria a família encontrada em comunidade de fé,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 282
recém-adotada. Quando os conflitos viessem, a família de fé teria a sua situação privilegiada, em
relação à família de laços sanguíneos67. Assumindo esta posição, o novo convertido, ou nova
convertida, deveria enfrentar a incompreensão de familiares sanguíneos, adeptos de outras matrizes
religiosas. E, quando não casados (as) deveriam procurar o casamento realizado em meio à
comunidade68. Os jovens deveriam privilegiar os participantes de comunidades, rapazes e moças,
que partilham a mesma fé69.
O pentecostalismo em sua condição de minoria, entre a população brasileira, tornar-se-ia incentivador
de manutenção das relações entre seus adeptos, conectando os preceitos de salvação com o
comportamento, e modo de vida singular e diferenciada do restante da sociedade, tais como, a
prática de esportes como o futebol, o qual simboliza a paixão pelo mundo, ou pelos prazeres
mundanos70. “O mundo aqui é sempre entendido como um espaço onde o pecado e a falta de Deus
estão presentes71”. De igual modo, a forma de se vestir, não poderia de maneira alguma, lembrar
como a maioria se veste, mas um recato e formalidade seriam precisos para manter a diferenciação72.
O combate aos vícios e a rejeição às festas populares, como o carnaval e juninas homenageando a
“santos”, também é destacado quanto à mudança de comportamento proposto pelo pentecostalismo73.
A conversão ao pentecostalismo definiria uma forma exclusiva, assumindo uma identidade reorientada,
antes orientada por uma antiga matriz religiosa, para uma reorientação centralizada no Espírito
Santo74. A conversão conduziria a um processo de novas estruturas de cognição, onde o convertido
construiria uma nova percepção de vida, mantido por argumentos e funções que promovem interação,
através de suas experiências de cunho inexplicável75. Distanciando do sentido cultural religioso
brasileiro o pentecostalismo definiria uma atitude centrípeta, sendo estabelecido um corte que “não
é mais “isto” e “aquilo” ao mesmo tempo76".
Para Ricardo Mariano77, a distância que seria mantida pelos adeptos do pentecostalismo se faria
para que não houvesse contaminação e corrupção de conduta, pelas paixões e interesses do mundo.
“(...) Desde a conversão, normas e tabus comportamentais, valores morais, usos e costumes de
santificação78”, seriam ensinados a fim de manterem um padrão ascético de rejeição ao mundo79. No
entanto, estes fatores identificados como hábitos ascéticos e estigmatizados e de fácil reconhecimento,
permitido pelo estereótipo, sofreriam algumas mudanças. Até mesmo as questões doutrinárias como
a “velha escatologia pentecostal80”, e outras marcas distintivas e muito tradicionais teriam sido abolidas
em nome de uma acomodação à sociedade. Sendo, em algumas vezes, relaxados alguns costumes e
atitudes afim de maior relacionamento com a sociedade contemporânea81.
A diminuição da rejeição ao mundo teria facilitado a inclusão, em detrimento ao ascetismo ou exclusão
do mundo82. Essas acomodações se dariam em
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 283
processo de institucionalização da religião, ou rotinização do carisma, tão bem
descrito por Weber (1991) e Bourdieu (1974), está ocorrendo, em grande parte, na
Assembleia de Deus, a maior igreja pentecostal do país, que sozinha detém 20%
dos evangélicos brasileiros, e de modo muito menos perceptível na Congregação
Cristã, que permanece sectária, exclusivista (...)83.
Destaca Mariano, que a igreja Assembleia de Deus poderia ser classificada como igreja de mediação
que “opõe religião erudita/dominante (protestantismo histórico) a religião popular/dominados
(pequenas seitas e movimentos de cura divina). A meio caminho dos polos erudito e popular (...)84”.
Por isso, os adeptos das comunidades pentecostais clássicas, nos dias de hoje, seriam influenciados
por uma rotina de hábitos mais inclusivos, e não sectarizados85. Segundo Maria Machado, a construção
de uma identidade religiosa seria bem dinâmica, e sofre uma continuidade a partir do indivíduo, e
também da instituição. No caso do indivíduo, o mesmo poderia exercer a opção de migração religiosa,
adotando em sua vida, diferentes crenças e práticas religiosas86.
O modo de ser, influenciado pela religião, marcaria a identidade pentecostal adquirindo um ethos
militante transformando o sujeito, o diferenciado de outras religiões, como a católica, das africanas,
e até mesmo do protestantismo histórico87. Para os adeptos ao pentecostalismo é identificada a
busca permanente pela santificação, a fim de tornarem de suas vidas, um testemunho permanente
sob a orientação pastoral mais atuante e formadora de opinião e atitudes, conduzindo o ritual de
purificação dos fiéis.88.
Conclusão
O pentecostalismo brasileiro seria marcado pelo rigor do não sincretismo e pela rejeição a intercursos
simbólicos89 estabelecidos por sua tradição religiosa centrípeta90. No entanto, devido ao crescimento
urbano presenciado no Brasil, e consequentemente as transformações sociais, o pentecostalismo
seria despertado a adaptar ações com o intuito de integração de seus adeptos, nesta mesma transição
social91.
Ademais, sabe-se que o crescimento do pentecostalismo tem ocorrido pari passu
com as mudanças sociais, sobremodo na transição do campo para a cidade verificada
no cenário continental como fruto da modernização compulsória92.
À luz desta hipótese, estuda-se a possibilidade de mesma ação decorrer em comunidades de cunho
pentecostal clássico, situadas na cidade de São Gonçalo/RJ, na região metropolitana do estado do
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 284
Rio de Janeiro, admitindo-se o anseio pela religião com a intenção de fragmentação da realidade,
por dias melhores. Esta expectativa não se dá somente em camadas mais pobres da população, mas
também nas camadas consideradas intermediárias93. A relação entre a espiritualidade pentecostal
clássica e a cidadania incide sobre as expectativas mais tradicionais para as mais modernas envolvendo
as mudanças sociais.
Através do evento denominado “batismo de Espírito Santo”, o indivíduo seria reconhecido pelas
comunidades como pertencentes, portanto seria participante de mesma crença, tendo como evidência,
o falar em línguas estranhas, base para este sentimento de pertença94. O adepto passa a construir um
pensamento religioso que o faria deixar de lado as realidades deste mundo para almejar uma vida
plena no mundo porvir, causando assim, o desinteresse pelas causas sociais, ao seu redor95. No
entanto, a conversão deste mesmo adepto promove uma consciência moral e familiar, reorganizando
socialmente a sua parentela, e ainda adicionando a familiaridade a aqueles participantes de mesma
comunidade de fé96. Além de obter respostas quanto às necessidades de cuidado pessoal e de ordem
organizacional mais íntima, como por exemplo, a opção de reação contra o vício alcoólico, produzindo
autoestima e dignidade97.
O adepto ao pentecostalismo clássico assume uma identidade reorientada, baseada na nova matriz
religiosa, agora com exclusividade, procurando se afastar da orientação anterior, quando pertencia
a outra religião98, sendo conduzido por um processo de nova cognição alicerçada nas experiências
centralizadas no Espírito Santo99.
Este estudo é inicial, levando-se em conta a análise, sob um olhar sociológico, da espiritualidade
pentecostal clássica e cidadania envolve muitos outros aspectos, os quais no futuro se espera ter
condições para exposição. Este trabalho inicial tem os seus alvos atingidos, os quais tratam das
primeiras análises sobre a espiritualidade, cidadania, moralidade e conversão do adepto ao
pentecostalismo clássico e sua relação com a cidadania, tornadas como hipótese sobre a realidade
vivida em comunidades pentecostais clássicas gonçalenses.
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Volume 1. São Paulo: Olho d’Água, 2010, p. XII.
NOTAS
1
Sergio P. Gil de Alcantara é pesquisador, mestre em ciências das religiões (em andamento) pelo Programa de Pós-
Graduação da Faculdade Unidade de Vitória (PPG/FUV), especialista em ensino religioso e teologia contemporânea
pela Escola Superior Aberta (ESAB), bacharel em teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) e bacharelando
em sociologia pelo Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense (ICHF/UFF).
2
BITTENCOURT, José Filho. Matriz Religiosa brasileira. Religiosidade e mudança social. Petró
polis: Vozes; Rio de Janeiro; Koinonia, 2003, p. 117.
3
FRESTON, Paul. Breve história do pentecostalismo brasileiro. In: ANTONIAZZI, A. (Org.). Nem anjos nem
demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 70.
4
BITTENCOURT, 2003, p. 117.
5
ANTONIAZZI, 1994, p. 70.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 286
6
BITTENCOURT, 2003, p. 117. ROLIN, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil. Uma interpretação sócio-
religiosa. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 07.
8
BITTENCOURT, 2003, p. 116.
9
ANTONIAZZI, 1994, p. 71.
10
IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/home/presidencia/
noticias/noticia_visualiza.php?id_noticia=2170&id_pagina=1> Visitado em: 30/06/2012.
11
BITTENCOURT, 2003, p. 117.
12
VANDERBERGUE, Frédéric. Misticismo sem Deus. In: SIMMEL, Georg. Religião. Ensaios – Volume 1. São
Paulo: Olho d’Água, 2010, p. XII.
13
Prefeitura
da
Cidade
de
São
Gonçalo.
Disponível
em:
<http://www.saogoncalo.rj.gov.br/
noticiaCompleta.php?cod=4003&tipoNoticia=Prefeito> Visitado em: 30/06/2013.
14
BITTENCOURT, José Filho. Matriz Religiosa brasileira. Religiosidade e mudança social. Petrópolis: Vozes; Rio
de Janeiro; Koinonia, 2003, p. 116.
15
BITTENCOURT, 2003, p. 118.
16
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
Atores Associados; ANPOCS, 1996, p. 83.
17
ROLIN, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil. Uma interpretação sócio-religiosa. Petrópolis: Vozes, 1987,
p. 7.
18
ROLIN, 1987, p. 7.
19
ROLIN, 1987, p. 7.
20
ROLIN, ROLIN, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil. Uma interpretação sócio-religiosa
. Petrópolis: Vozes, 1987, p. 8.
21
SIMMEL. Georg. Religião. Ensaios. Vol. 1 e 2. São Paulo: Olho d’Água, 2010, p. 1.22 SIMMEL 2010, p. 1-2.
23
SIMMEL, 2010, p. 1.
24
ROLIN, 1987, p.14.25 João Calvino, autor de Christianae Religionis Institutio, “As Institutas“ em 1536.
26
MENDONÇA, A. G. & VELASQUES FILHO, P. Introdução ao Pentecostalismo no Brasil. 2ª ed. São Paulo:
Loyola, 2002.
27
MENDONÇA, 2002, p. 75.
28
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
Atores Associados; ANPOCS, 1996.
29
MACHADO, 1996, p. 85.
30
ROLIN, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil. Uma interpretação sócio-religiosa. Petrópolis: Vozes 1987,
p.13.
31
ROLIN, 1987, p. 16.
32
ROLIN, 1987, p. 17.
33
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
Atores Associados; ANPOCS, 1996, p. 80.
34
MACHADO, 1996, p. 80.
35
ROLIN, 1987, p. 14.
36
ROLIN, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil. Uma interpretação sócio-religiosa. Petrópolis: Vozes, 1987,
p. 14.
37
38
ROLIN, 1987, p. 14.
ANTONIAZZI, A. (Org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis:
Vozes, 1994, p. 21.
39
ROLIN, 1987, p. 14.
40
ROLIN, 1987, p. 23.
41
ROLIN, 1987, II
p. Seminário
24.
Fluminense de Sociologia - UFF-
Outubro de 2013 287
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44
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80 – 93 maio 1994.
45
46
47
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HERVIEU-LÈGER, Daniéle. O peregrino e o convertido. Petrópolis: Vozes, 2008.
ROLIN, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil. Uma interpretação sócio-religiosa. Petrópolis: Vozes, 1987,
p. 26
48
ANTONIAZZI, A. (Org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis:
Vozes, 1994, p. 20.
49
ANTONIAZZI, 1994, p. 20.
50
ANTONIAZZI, 1994, p. 21.
51
ANTONIAZZI, 1994, p. 21.
52
SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à “cultura católico-brasileira”. In: ANTONIAZZI, A. (Org.). Nem anjos
nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 47.
53
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
Atores Associados; ANPOCS, 1996, p. 83.
59
54
HERVIEU-LÈGER, Daniéle. O peregrino e o convertido. Petrópolis: Vozes, 2008.
55
HERVIEU-LÈGER, 2008,p. 87.
56
HERVIEU-LÈGER, Daniéle. O peregrino e o convertido. Petrópolis: Vozes, 2008, p. 89.
57
HERVIEU-LÈGER, 2008, p. 87.
58
HERVIEU-LÈGER, 2008, p. 110-111.
ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil. Uma interpretação sócio-religiosa. Petrópolis: Vozes, 1987,
p. 12.
60
ROLIM, Francisco Cartaxo. Pentecostais no Brasil. Uma interpretação sócio-religiosa. Petrópolis: Vozes, 1987,
p. 13.
61
ROLIM, 1987, p. 13-14.
62
ANTONIAZZI, A. (Org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis:
Vozes, 1994, p. 20-21.
63
CAMPOS Jr., Luis de Castro. Pentecostalismo e transformações na sociedade: a igreja avivamento bíblico. São
Paulo: Annablume, 2009.
64
CAMPOS Jr., 2009, p. 136.
65
CAMPOS Jr., 2009, p. 136.
66
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
Atores Associados; ANPOCS, 1996, p. 80.
67
MACHADO, 1996, p. 87.
68
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
Atores Associados; ANPOCS, 1996, p. 80.
69
MACHADO, 1996, p. 80.
70
CAMPOS Jr., 2009, p. 136.
71
CAMPOS Jr., 2009, p. 137.
72
MACHADO, 1996, p. 87.
73
MACHADO, 1996, p. 86.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 288
74
SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à “cultura católico-brasileira”. In: ANTONIAZZI, A. (Org.). Nem anjos
nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 47.
75
MACHADO, 1996, p. 83.
76
ANTONIAZZI, 1994, p. 47.
77
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 4ª
ed. São Paulo: Loyola, 2012.
78
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79
MARIANO, 2012, p. 190.
80
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil. 4ª
ed. São Paulo: Loyola 2012, p. 8.
81
MARIANO, 2012, p. 8.
82
MARIANO, 2012, p. 24.
83
MARIANO, 2012, p. 24.
84
MARIANO, 2012, p. 27.
85
MARIANO, 2012, p. 27.
86
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
Atores Associados; ANPOCS, 1996, p. 83.
87
MACHADO, 1996, p. 83-84.
88
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89
BITTENCOURT, José Filho. Matriz Religiosa brasileira. Religiosidade e mudança social. Petrópolis: Vozes; Rio
de Janeiro; Koinonia, 2003, p. 116-117.
90
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p. 7.
91
BITTENCOURT, 2003, p. 116.
92
BITTENCOURT, 2003, p. 118.
93
BITTENCOURT, 2003, p. 117.
94
ROLIN, 1987, p. 7-8.
95
ANTONIAZZI, A. (Org.). Nem anjos nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis:
Vozes, 1994, p. 21.
96
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
Atores Associados; ANPOCS, 1996, p. 80.
97
MARIZ, Cecília L. “Alcoolismo, gênero e pentecostalismo” Religião e Sociedade. Rio de Janeiro: ISER, 16(3): 80
– 93 maio 1994.
98
SANCHIS, Pierre. O repto pentecostal à “cultura católico-brasileira”. In: ANTONIAZZI, A. (Org.). Nem anjos
nem demônios: interpretações sociológicas do pentecostalismo. Petrópolis: Vozes, 1994, p. 47.
99
MACHADO, Maria das Dores Campos. Carismáticos e pentecostais: adesão religiosa na esfera familiar. Campinas:
Atores Associados; ANPOCS, 1996, p. 83.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 289
A CIDADE COMO EMOÇÃO:
A Relação Afetividade-Racionalidade em uma Torcida Hooligan Londrina
Eric Monné Fraga de Oliveira
Instituto de Estudos Sociais e Políticos da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro – IESP/UERJ
Palavras-chave: Cidade, violência, afetividade, hooliganismo.
Sociologia Urbana: Cidade, Racionalidade e Zonas Morais
A teoria sociológica dominante sobre as grandes cidades tem tido como uma de suas principais
características o enfoque nas questões da racionalidade e da economia como centrais para a vida
urbana. Dentro dessa teoria, o texto “A Metrópole e a Vida Mental”, de Georg Simmel, é não
apenas um dos textos fundadores da pesquisa sobre o fenômeno urbano como também exemplar das
principais diretrizes que segue a pesquisa em Sociologia urbana. Por outro lado, Robert Ezra Park,
em “A Cidade: Sugestões para a Investigação do Comportamento Humano no Meio Urbano”,
começa a sugerir o papel que questões moral-valorativas e sentimentais continuaram a exercer na
vida social urbana. Antes de tratar desses dois textos, é importante introduzir as definições fornecidas
por Louis Wirth em “O Urbanismo como Modo de Vida” para os estudos de Sociologia urbana.
A contribuição de Louis Wirth para a Sociologia urbana é fundamental para iniciar o presente trabalho,
pois ele fornece algumas peças-chave para pensar a cidade. Primeiro, faz-se necessário apresentar
uma definição de cidade com a qual trabalhar: “uma cidade é uma fixação relativamente grande,
densa e permanente de indivíduos heterogêneos” (Wirth, 1979, p.113). Notam-se, assim, as primeiras
características de uma cidade: uma população relativamente numerosa em um espaço relativamente
limitado (se comparado unicamente à quantidade de habitantes que ali vivem, mas que não é, de
forma alguma, um espaço absolutamente pequeno) constituída por indivíduos diferentes. Essa última
característica indica um fato importante: pessoas com a mesma ocupação não são capazes de constituir
uma cidade; a cidade depende de indivíduos que realizam tarefas distintas.
Essa aglomeração se torna predominante na vida social da Modernidade, pois o trabalho é deslocado
do campo para tarefas industriais com a Revolução Industrial, e essas tarefas dependem da
aglomeração de muitos trabalhadores. Além de moradia e de local de trabalho de seus habitantes, a
cidade se torna também o “centro iniciador e controlador da vida econômica, política e cultural”
(p.91) – ou seja, o lugar central para a pesquisa sociológica. Nesse sentido, o objetivo do sociólogo
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 290
que toma o meio urbano como seu objeto é “descobrir as formas de ação e organização social que
emergem em agrupamentos compactos, relativamente permanentes, de grande número de indivíduos
heterogêneos”.
Wirth também destaca que os distintos grupos que coexistem em uma cidade tendem a se agregar de
acordo com “cor, herança étnica, status econômico e social, gostos e preferências” (p.99, itálico do
original), isto é, de acordo com princípios subjetivamente sentidos – antes que objetivamente existentes
– que orientam suas ações e suas noções de pertencimento grupal. Essa separação espacial dos
indivíduos de acordo com categorias que formam e orientam os grupos na cidade gera uma
segmentação das relações sociais, o que, segundo Wirth, explica o “caráter ‘esquizóide’ da
personalidade urbana” (p.100). Esse aspecto da segmentação espacial será relevante quando da
investigação da identidade dos hooligans do West Ham United F.C..
Georg Simmel, um dos primeiros sociólogos a tratar da cidade do ponto de vista das características
mentais de seus habitantes, relaciona a cidade à autonomia do indivíduo, a qual apenas se tornou
possível mediante as transformações econômicas trazidas pelo capitalismo industrial a partir do
século XVIII. Entretanto, ao mesmo tempo em que “o século XVIII conclamou o homem a que se
libertasse de todas as dependências históricas quanto ao Estado e à religião, à moral e à economia”
(Simmel, 1979, p.11), também levou a um aumento do individualismo, mas igualmente da
interdependência entre os homens ao intensificar a especialização funcional do homem e de seu
trabalho. Acompanhando essa intensificação da especialização funcional do homem moderno, a vida
na metrópole cria uma base psicológica para seus habitantes baseada em uma intensificação de
estímulos neurológicos e, dessa forma, os padrões de comportamento encontrados no meio
metropolitano são conseqüência dessa intensificação.
Em virtude dessa intensificação, a vida emocional teria sido realocada para os níveis mais inconscientes
da estrutura mental, enquanto o intelecto se elevaria aos níveis mais conscientes, porque apenas o
intelecto seria capaz de lidar com as rápidas transformações que se sucedem na metrópole. Dessa
maneira, o tipo metropolitano de homem “reage com a cabeça, ao invés de com o coração” (p.13).
Fundamental para essa transformação é a economia monetária, que sempre encontrou seu epicentro
no meio urbano. Quando toma ações tendo como referência a economia monetária, o homem
metropolitano se encontra obrigado a tornar racionalizadas e calculadas suas relações com outros
homens e com as coisas, diminuindo ao mínimo suas relações emocionais íntimas com eles. A mente
urbana torna-se progressivamente calculista, isto é, passa a racionalizar as conseqüências da maioria,
senão de todas, as ações tomadas, particularmente as ações sociais, escolhendo quais são as ações
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 291
mais viáveis e que podem gerar os melhores resultados para que determinadas finalidades possam
ser atingidas.
Enquanto, por um lado, a maneira de lidar com a vida, com os homens e com as coisas torna-se mais
minuciosa e precisamente calculada, por outro, os mesmos fatores que levaram a essa intensificação
da racionalidade em relação a fins geraram também “uma subjetividade altamente pessoal” (p.15).
Esses dois lados caracterizam o indivíduo blasé, típico do meio urbano. A atitude blasé consiste na
perda da capacidade de diferenciar significados e valores das coisas, as quais são vistas pelo indivíduo
como desprovidas de qualidades substantivas. Nesse sentido, o dinheiro funciona como um nivelador:
ele retira todas as qualidades substantivas das coisas e pessoas e as torna comparáveis apenas em
termos monetários. Dessa forma, os “valores” das coisas e pessoas passam a ser medidos
financeiramente. Wirth acompanhou essa linhagem de pensamento na pesquisa urbana: “os contatos
da cidade podem ser face a face, mas são, não obstante, impessoais, superficiais, transitórios e
segmentários” (Wirth, p.101)1. Em seguida, o autor também caracteriza os habitantes urbanos pela
sua reserva, pelo ar blasé e pela indiferença que demonstram habitualmente. Além disso, Wirth liga
a racionalidade dos habitantes da cidade à “sofisticação”, ao anonimato, ao superficialismo e ao
caráter transitório das relações humanas estabelecidas no meio urbano, ou seja, a tudo aquilo que
produz o individualismo que marca as relações modernas.
Por esses motivos, a vida nas grandes cidades, sede da economia moderna, levou à preponderância
da racionalidade com relação a fins e do nível mental do intelecto em detrimento do tradicionalismo,
da racionalidade com relação a valores e do nível mental da afetividade, que permanecem existentes,
mas são relegados a um papel minoritário.
Viu-se, até agora, como a cidade foi construída na Sociologia como o lugar por excelência da
racionalidade com relação a fins, das relações transitórias e superficiais, do indivíduo blasé, indiferente
e reservado. A cidade não aparece, então, como um lugar repleto de noções afetivas e morais para
seus habitantes, cuja vivência é racionalizada, calculada. Os aspectos morais e afetivos das vidas dos
habitantes das metrópoles poucas vezes entram em análise. Robert Ezra Park, todavia, fornece
primeiras indicações para se pensar a questão dos sentimentos morais da vida em grandes cidades –
e é a partir desse sociólogo que se começará a elaborar, aqui, os aspectos afetivos e morais da cidade
para os hooligans do West Ham.
Para Robert E. Park, “a cidade é algo mais do que um amontoado de homens individuais e de
conveniências sociais [...], que uma mera constelação de instituições e dispositivos administrativos”
(Park, 1979, p.26). Isso significa que a cidade é mais do que seus aspectos funcionais, racionalizados
e calculados. “A cidade é um estado de espírito, um corpo de costumes e tradições e dos sentimentos
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 292
e atitudes organizados” (idem). Park, sem menosprezar o papel da racionalidade, do cálculo e da
economia na vida dos habitantes de áreas urbanas, atribui também um papel irredutível a questões
geralmente pouco tratadas, ao menos até então, pela Sociologia urbana: os sentimentos, as tradições
e os costumes presentes nas cidades. Para o presente trabalho, apenas dar-se-á ênfase à arena dos
sentimentos.
Em conseqüência do processo de racionalização da economia e, portanto, do meio urbano, a
competição por melhores condições sociais leva
à quebra ou modificação da antiga organização social e econômica da cidade, que
se baseava em laços familiares, associações locais, na tradição, na casta e status,
e sua substituição por uma organização baseada em interesses ocupacionais e
vocacionais (p.37, itálico do original).
Sendo a cidade, para Park, fragmentada em diversas zonas morais, as vizinhanças, que compõem
essas zonas morais, e os tipos vocacionais, que compõem essas vizinhanças, têm um valor moral –
que, via de regra, pode ser nivelado pelo dinheiro, “o principal artifício pelo qual os valores foram
racionalizados e os sentimentos substituídos pelos interesses” (p.40). Isso abre a possibilidade de
que surja uma identificação entre um bairro ou vizinhança, um tipo vocacional e um determinado
conjunto de valores morais.
A Cidade e as Zonas Morais: o caso do West Ham United
Para exemplificar esses elementos levantados por Park sobre o meio urbano, escolheu-se estudar o
caso paradigmático de uma torcida hooligan de um clube de futebol. Optou-se por escolher uma
torcida hooligan londrina em virtude da existência de diversos clubes na cidade de Londres, sua
identificação profunda com regiões específicas da cidade, a grande rivalidade existente entre eles e
pela cidade ter sido um dos lugares privilegiados do surgimento e do desenvolvimento do
hooliganismo. Dentre esses clubes, o West Ham United foi o que apresentou a melhor combinação
entre raízes profundas na região de origem do clube, reconhecimento de sua torcida hooligan (uma
das mais famosas da Inglaterra e da Europa), o sentimento de comunidade presente em sua torcida
e a facilidade de acesso ao material empírico para a pesquisa.
O West Ham United Football Club é um clube de futebol fundado em Londres, em 1895, originalmente
como Thames Ironworks Football Club, na região leste da cidade, tradicionalmente formada por
maioria operária. Nos seus anos iniciais, os diretores e os membros do conselho viviam na região em
que o clube estava sediado, e a maioria dos primeiros fãs e jogadores provinha da classe operária e
mantinha um sentimento de comunidade com o espírito do clube, que logo começou a ser identificado
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 293
como um clube comunitário da região (Spaaij, 2006). Isso é fundamental para entender a ligação
entre os fãs, o clube e o bairro, pois a “proximidade e contato entre vizinhos são as bases para a mais
simples e elementar forma de associação com que lidamos na organização da vida cotidiana” (Park,
p.31). Acima de tudo, o clube, desde seus princípios, representou sempre a vizinhança do East End
londrino. A identificação com o bairro significa também identificação com seus moradores: isto é, o
West Ham aparece para seus moradores como uma parte deles próprios, assim como eles próprios
são uma parte do clube.
Enquanto a vizinhança existe sem organização formal, o clube é visto como uma organização formal
que, mesmo sem representar diretamente a vizinhança, é identificada com ela, tanto pelos torcedores
quanto pelos outros habitantes da cidade. As vitórias do clube são consideradas vitórias para a
vizinhança, a reputação da vizinhança acompanha a reputação do clube e de seus torcedores. Desde
o século XIX, a região do East End londrino é vista pelos demais habitantes da cidade como uma
zona de baixo valor moral e econômico. Seus habitantes são tomados pela sua “minoria anômica”
(Elias & Scotson, 2000), vistos como sujos, tanto física quanto moralmente, criminosos, perigosos,
parasitários. Se, como argumentou Park, a cidade é dividida em diversas zonas morais, o East End
foi uma das piores zonas da capital inglesa durante muito tempo. Enquanto a maior parte do restante
da cidade de Londres era sentida pelos seus habitantes como próspera e civilizada, essa região da
cidade jamais teve a mesma fama; suas casas pobres, sua cultura de classe operária e a fama que seus
moradores tinham de praticar “ducking and diving”2 sempre fez do East End um lugar mal visto pelo
restante da cidade.
Conforme o cenário urbano de Londres pós-Revolução Industrial era remodelado em função de um
tipo de racionalidade necessário à economia capitalista, a região do East End se consolidou como
um bairro da baixa classe operária. Estigmatizada pelos demais habitantes da zona metropolitana de
Londres, a vizinhança do East End historicamente manteve laços fortes de solidariedade de classe e
uma forte cultura de classe operária. Park já havia dado atenção a que o sentimento de vizinhança se
fundisse a interesses e sentimento de classe, e, no East End, a identidade operária era muito evidente.
Enquanto a pobreza de seus moradores era vista pelos de fora como um sinal de falta de ordem,
miséria e “nastiness” – essa mistura de imundície física e indecência moral –, para seus habitantes ela
veio sempre “acompanhada por um sentido de família, solidariedade de comunidade e de classe (...),
por orgulho em si mesmos, na comunidade e no país” (Young & Willmott, 1992, p.XV)3. Uma das
principais características da cultura compartilhada pelos moradores de East End se encontra na idéia
de “masculinidade dura”, que associa a formação da masculinidade a práticas violentas. Mesmo com
o re-desenvolvimento e com a modernização do East End após a Segunda Guerra Mundial, a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 294
comunidade imaginada (Anderson, 2005) formada pelos moradores da região permanece marcada
pela masculinidade dura; tornar-se homem no East End continuou a depender do envolvimento em
atividades violentas.
Não levou muito tempo até que o West Ham United se tornasse um elemento em torno do qual essas
atividades violentas pudessem girar, dada a sua ligação estreita com os habitantes do bairro. Não
obstante, nem toda violência ligada ao futebol ou ao esporte em geral pode ser tratada como
hooliganismo. Embora a violência relacionada a esportes e ao futebol não seja, de forma alguma, um
fenômeno novo ou particular, hooliganismo é um tipo muito específico e relativamente recente de
prática violenta relacionada ao futebol. No presente trabalho, será utilizada a definição fornecida
por Ramón Spaaij em Understanding Football Hooliganism – A Comparison of Six Western Football
Clubs (2006): o hooliganismo é “a violência competitiva de grupos socialmente organizados de fãs
de futebol, principalmente dirigida contra grupos de fãs opostos” (Spaaij, p.11, itálico do original).
Ocasionalmente, violência contra policiais, jogadores de ambas as equipes, árbitros e civis, além de
danos à propriedade privada – tanto do clube como propriedades individuais, como casas e carros –
também podem ocorrer, e isso acontece com certa freqüência, mas não é o elemento que constitui e
define a prática do hooliganismo. A principal inovação do hooliganismo, e o que o distingue das
demais formas de atividade violenta relacionada ao futebol, se encontra na sua organização, embora
esta não seja tão detalhada e meticulosa quanto os relatos midiáticos e policiais costumam sugerir.
Essa organização só passou a existir a partir da década de 1960.4 Na Inglaterra, Holanda, Escócia,
Bélgica e Alemanha, montaram-se as “firmas” – nesse caso, o próprio nome sugere o grau de
organização presente nesses grupos –; em outros lugares da Europa, surgiram as torcidas “ultras” –
as quais, apesar de hooligans, estão tanto interessadas nas atividades violentas quanto na estética da
torcida no estádio durante os jogos, caracterizada por faixas, cartazes, bandeiras e sinalizadores,
com a missão de apoiar o time –; na América do Sul, surgiram organizações similares, embora
distintas em muitos aspectos, como as torcidas organizadas no Brasil5, as hinchadas e barras bravas
nos países de língua espanhola. Além disso, como explicitado por Spaaij, o alvo central da violência
propriamente hooligan são as outras associações hooligans, constituídas por torcedores das equipes
rivais.
Até 1960, a violência relacionada ao futebol era mais ou menos “espontânea”, isto é, era pouco
organizada e prevista, e em geral funcionava como uma resposta a decisões arbitrais indesejadas ou
a resultados ruins da equipe. Freqüentemente, os alvos das agressões eram os juízes e os jogadores
do time rival ou mesmo da própria equipe, dependendo do caso. Com o hooliganismo, começou a
“guerra” nas arquibancadas: grupos relativamente organizados formados – e definidos – por torcedores
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 295
movidos pelo objetivo de agredir grupos rivais, para defender seu estádio ou “conquistar” o estádio
rival.
Se antes o estádio era o território do clube, a partir de então ele, bem como as regiões próximas a
ele, passa a ser o território da comunidade imaginada das firmas. O Upton Park, estádio do West
Ham United, torna-se o domínio da Inter City Firm – a famosa e temida ICF, uma das firmas mais
importantes da Inglaterra, a maior torcida hooligan do time. Fundada em 1972, seu nome é uma
referência aos trens InterCity, forma de transporte preferida pelos seus membros em dias de jogo,
para dificultar a ação policial na prevenção de suas atividades.
Com a dispersão dos fãs do West Ham pela cidade de Londres e pela região sudeste da Inglaterra no
pós-guerra, era de se esperar que a identificação com o East End decrescesse. Entretanto, isso não
aconteceu – e o estádio Upton Park foi fundamental para isso. O West Ham continuou a ser um
símbolo chave para o East End e o Upton Park era seu epicentro; não era apenas seu estádio, era o
lugar onde fãs do West Ham – que possuíam um intenso sentimento de pertença ao East End, ainda
que não morassem lá e não planejassem morar – se reuniam. O sentimento da ICF era de que
funcionava como uma espécie de organização paramilitar6 (embora estivesse longe de ser tão
organizada quanto se poderia esperar de uma organização paramilitar, mesmo nos seus dias mais
gloriosos) que defendia a honra do West Ham e do East End ao lutar pelo seu território contra
hooligans de outros clubes que iam ao Upton Park em dia de jogo.
O Upton Park é a casa dos torcedores do West Ham, dos moradores do East End e da Inter City
Firm. É seu lugar sagrado, em que são realizados os seus rituais de êxtase e salvação quando o time
vence, de luto quando perde. Sendo sagrado, é necessário ter com ele o contato apropriado (Durkheim,
2003), ou seja, ser torcedor fiel ao West Ham e compartilhar os valores atribuídos ao clube e ao East
End. Com o tempo, os hooligans do West Ham começaram a se agregar na arquibancada norte do
Upton Park para assistir aos jogos, o que a tornou seu território exclusivo. Portanto, era justamente
essa arquibancada que precisava ser mais fortemente defendida; ser obrigado a recuar numa batalha
contra outros hooligans no próprio território seria motivo de desgraça, insultos e escárnio. Todavia,
não era necessário tanto: a simples presença de torcedores rivais poluía o estádio e o clube e, por
isso, era imprescindível que a ICF travasse um combate físico, com o objetivo de defender seu
território, livrá-lo das impurezas trazidas, representadas e incorporadas pelos rivais.
Entretanto, era preciso mais que isso. Não bastava defender o estádio e os arredores. Quando o
West Ham jogasse nos estádios dos times rivais, seria necessário acompanhá-lo – o que, como foi
dito acima, a ICF fazia através dos trens InterCity – e se envolver em atividades violentas com os
hooligans locais com o intuito de fazê-los recuar, o que significava a conquista do território e a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 296
completude de sua masculinidade. Cada batalha ganha – na realidade, nem sempre havia consenso
sobre que batalha fora ou não ganha efetivamente, pois várias “derrotas” eram desprezadas com
frases como “não foram enviados nossos principais pelotões para aquele lugar” ou “nós não recuamos,
apenas nos retiramos temporariamente para realizar um ataque melhor logo em seguida; foi estratégia
da batalha, não uma retirada” – gerava histórias que eram passadas para os demais membros,
retransmitindo-lhes o significado do West Ham, do East End e da InterCity Firm, sua glória conquistada
através da violência coletiva bem-sucedida. Para um hooligan, o estádio de futebol não é muito
diferente de um campo de batalha.
Com o hooliganismo, o estádio de futebol se torna mais que o lugar onde são realizadas as partidas.
Cada estádio torna-se também o lócus da violência e a imagem hipostasiada do território do “wegroup”. “Defender” o estádio e as ruas ao seu redor significa defender todo o bairro, o clube e os
torcedores de uma ofensa imaginada, mas não imaginária, que é a presença de hooligans rivais na
região. Entretanto, nem todos os rivais são iguais. Alguns são considerados piores, mais sujos e
desprezíveis que outros – embora todos fossem repugnados. Historicamente, os maiores rivais dos
hooligans do West Ham United são os hooligans do Millwall Football Club, os Millwall Bushwackers.
Mesmo para os moradores do pobre e violento bairro do East End, a zona sudeste de Londres –
onde se localiza o Millwall F.C. – era considerada uma zona depravada e psicoticamente violenta; e
essa reputação foi transmitida ao clube e, como se era de esperar, a seus torcedores.
Apesar de a rivalidade entre os torcedores do time ao leste e os torcedores do time ao sul do rio
Tamisa ser histórica, o verdadeiro
duelo entre os torcedores dos dois times de futebol começou em maio de 1972,
quando [o jogador] Harry Cripps, favorito da torcida do Millwall, teve sua partida
de homenagem no Old Den contra o West Ham. [...] Hooligans dos dois lados
trataram o jogo como sua própria Final da Copa, porque, à época, ambos alegavam
ser os mandantes de Londres (Pennant, 2003, pp. 280-1).
A disputa entre os torcedores hooligans lhes era tão importante, que um confronto não tinha apenas
o significado de uma luta entre os dois grupos, mas, principalmente, carregava a idéia de que ali se
disputava o respeito, a masculinidade e, sobretudo, a cidade de Londres. O grupo que causasse o
maior dano aos hooligans adversários seria o vencedor da batalha e o conquistador de Londres.
À primeira vista, entretanto, as duas formações hooligans não parecem muito distintas. Ambas estão
relacionadas a regiões da cidade de Londres consideradas desviantes, depravadas, criminosas, sujas
e violentas, ou seja, zonas morais negativas; são formadas predominantemente por homens brancos
ingleses profundamente identificados com a classe operária, à qual a maioria pertence – confirmando
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 297
o que foi sugerido previamente por Park, sobre a ligação entre tipos vocacionais e vizinhança. Seus
valores também são similares: orgulho de pertencer à classe operária inglesa, identificação entre
bairro popular e clube, sentimento de solidariedade da vizinhança, tornar-se “homem” através de
certos tipos de atividade violenta – ou seja, uma noção “dura” de masculinidade. Apesar disso, as
imagens que cada grupo hooligan tem de si e de seu rival são radicalmente diferentes, e a construção
identitária desses grupos depende da percepção de si e do outro. “Enquanto os fãs do West Ham são
percebidos como durões, voláteis e Cockneys de ‘plástico’, os fãs do Millwall se vêm como muito
durões, extremamente voláteis e londrinos autênticos” (Robson, 2000, p.175). Já os fãs do West
Ham normalmente “percebem os fãs do Millwall como ‘retrógrados’ e ‘criminosamente insanos’”
(Spaaij, p.136), e o sudeste londrino – região de onde provêm os fãs rivais – é visto por eles como
um lugar atrasado e sinistro; enquanto, por outro lado, atribuem ao East End, bairro do qual provém,
as qualidades de ser mais amigável, aberto para e adaptado aos padrões da sociedade londrina
dominante – qualidades estas que são, portanto, atribuídas a eles próprios. Isto é, eles percebem o
conjunto dos habitantes do East End a partir de suas melhores características, enquanto os moradores
do sudeste da cidade são todos tomados pelos piores “defeitos” de sua porção “pior”7. Hooligans do
West Ham também alegam que só atacam hooligans rivais e jamais agrediriam rivais não-hooligans,
ao passo que os hooligans do Millwall não seguiriam esse mesmo código, o que diria respeito a
certos valores morais e de masculinidade.
Dessa forma, para o torcedor do West Ham, o East End encontra no Upton Park seu palco de
construção de uma masculinidade e uma moralidade violentas, ao passo que The Den, estádio do
Millwall Football Club, é o palco da de-formação de uma masculinidade exagerada e desregradamente
violenta – exagero que seria produto da incompletude dessa masculinidade8 – e da construção do
desregramento imoral da violência. A partir da década de 1980, entretanto, o papel do estádio e o
lócus da violência mudaram. Começaram a ser tomadas diversas medidas para reduzir a violência
nos estádios; tanto os clubes quanto a polícia passaram a realizar esforços para conter a violência
entre os espectadores. O principal efeito de tais medidas foi deslocar os confrontos entre as torcidas
hooligans para fora do estádio e para mais longe de suas imediações, isto é, para lugares onde o
controle policial era percebido pelos hooligans como mais frouxo e menos eficiente. A intervenção
policial também aumentou a incidência de elementos perfurantes nas brigas, como facas e canivetes,
uma vez que a presença de policiais acaba levando os hooligans a tentar potencializar suas ações,
causando o maior dano possível a seus rivais dentro do menor tempo disponível (Buford, 2010).
Com essas mudanças, os locais que se tornam os “campos de batalha” das torcidas hooligans são,
principalmente, os bares onde os torcedores se reúnem antes e depois dos jogos, as plataformas de
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trem e as estações de metrô que levam os fãs às partidas e seus arredores, mas especialmente nestes
arredores, onde há ainda menor presença policial.
O aumento do policiamento nos estádios em dia de jogo e o incremento de medidas punitivas contra
as atividades hooligans resultaram não apenas no deslocamento para territórios percebidos como
menos policiados, mas também em uma maior organização e um maior planejamento das ações. Em
outras palavras, o caráter ordenado das atividades hooligans foi potencializado pela iniciativa punitiva
do Estado. Ao mesmo tempo, todavia, quanto mais organizada e planejada for a atividade hooligan,
mais previsível ela se torna e, portanto, mais fácil para atrair uma resposta suficientemente eficiente
da polícia londrina. Enquanto o policiamento nos estádios era incipiente, os hooligans tinham liberdade
para tornar as arquibancadas seu campo de batalha. Porém, forçados a deslocar suas práticas para as
ruas da cidade, os hooligans tornam-se mais sujeitos ao monopólio estatal do uso da violência
legítima, representado pela guarda metropolitana.
O risco crescente a que as atividades hooligans acarretavam levou muitos membros antigos da ICF
a diminuírem suas atividades. Entretanto, as transformações nas políticas de segurança dos estádios
de futebol não foram as únicas responsáveis pelas mudanças que ocorreram entre os hooligans do
West Ham. Com o passar do tempo, o East End, assim como outras regiões da Inglaterra, tornou-se
cada vez menos um bairro operário. As transformações produtivas que se aprofundaram a partir da
década de 1970 – isto é, a diminuição da importância econômica do setor industrial e o
desenvolvimento do setor terciário – mudaram a identidade da classe trabalhadora. Além disso, até
mesmo a prática “ducking and diving”, considerada típica do East End foi diminuindo; muitos dos
seus antigos praticantes haviam se tornado proprietários de pequenos negócios. Na realidade, desde
o pós-guerra havia um êxodo dos antigos moradores do bairro para outras regiões da cidade e
também do país, particularmente para o sul da Inglaterra. Ainda assim, o West Ham continuou a
representar a região do East End; os valores da zona leste londrina continuaram a ser identificados
no macrossujeito constituído pelo clube do West Ham e pela InterCity Firm, enquanto o Upton Park
se manteve como o lugar próprio do ritual de construção da masculinidade hooligan.
Elementos para uma comparação com a realidade brasileira: o Clube de Regatas Vasco da
Gama
Escolheu-se para a comparação com a formação hooligan do West Ham United a torcida do Clube
de Regatas Vasco da Gama9. Os motivos para essa escolha ficarão mais claros ao longo do texto.
Fundado como um clube de remo em 1898 no bairro da Saúde, Zona Norte da cidade do Rio de
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Janeiro, o clube se constituiu ao longo da história como um dos principais times da cidade e do país,
o único da Zona Norte a obter sucesso duradouro no nível das competições nacionais. Durante os
primeiros anos das atividades de futebol do clube, as partidas em casa eram mandadas no estádio do
Andaraí, no bairro homônimo, também na Zona Norte. Seu estádio atual, Vasco da Gama, mas
geralmente conhecido pelo nome de São Januário, em virtude de sua localização, foi erguido em
1927. Essas três localizações dos seus anos de origem oferecem uma situação distinta daquela
encontrada na relação do West Ham com o East End. Por um lado, com essas três mudanças de
localização nos anos iniciais, não se desenvolveu uma relação de identificação especial entre o Vasco
e um bairro específico. Por outro lado, isso possibilitou que se criasse uma maior identificação entre
o Vasco e a Zona Norte do Rio de Janeiro.
Ao mesmo tempo em que se criavam laços de identificação entre o Vasco da Gama e a Zona Norte
carioca, três clubes da Zona Sul ganhavam destaque a longo prazo: o Clube de Regatas do Flamengo,
o Fluminense Football Club e o Botafogo de Futebol e Regatas. Desenvolveu-se, então, uma intensa
rivalidade entre esses quatro clubes, na qual o Vasco era o único representante da Zona Norte –
região tradicionalmente mais popular e operária – em oposição a três clubes da região mais “elitizada”
econômica e politicamente da cidade. Essa distinção entre um clube popular da Zona Norte e clubes
de elite da Zona Sul – mantida aproximadamente até a década de 1980, com o vertiginoso aumento
da popularização, já em curso, do Flamengo – foi acentuada pelo Vasco ter sido o primeiro clube da
cidade e um dos primeiros do país a aceitar e estimular a presença de negros e mulatos entre jogadores
e nos cargos administrativos do clube, o que fazia parte de um projeto de profissionalização do
esporte. Não apenas existiu então uma ligação entre o Vasco da Gama e a colônia portuguesa do Rio
de Janeiro, ressaltada pelo público e pelos meios de comunicação, como também entre o Vasco, a
classe operária, a Zona Norte, a população negra do Rio de Janeiro e o combate ao racismo.
O São Januário se tornou, com isso, um lugar privilegiado, o local simbólico da reprodução da
diferença entre o vascaíno, com uma representação de si “democrática” e operária, e os demais
clubes da Zona Sul, considerados racistas mesmo após estes passarem a aceitar negros e mulatos.
Além disso, o estádio constitui fonte do sentimento de valor próprio para o vascaíno, por ter sido
construído, entre outras fontes, a partir de contribuições dos próprios torcedores. O São Januário é
a casa do vascaíno não apenas porque o clube de sua torcida joga lá, mas porque o próprio torcedor
vascaíno, até hoje, sente-se responsável por sua criação – ainda que nem ele e nem mesmo seus pais,
avós ou bisavós tenham contribuído, uma vez que o estádio foi erguido entre 1926 e 1927. Sua
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interdição para clássicos estaduais em 2005, por causa da falta de segurança oferecida pelo clube
dentro e nos arredores do estádio, obteve, portanto, uma reação negativa dos torcedores.
Acho que a torcida do Vasco como um todo prefere São Januário [ao Maracanã].
É menor, mais difícil de chegar, mas é nosso mesmo. É realmente jogar em casa, o
Vasco é muito forte lá. Tem o efeito caldeirão também. O Estádio cheio faz muita
pressão e a torcida fica mais empolgada (entrevista pessoal).
A partir de então, os clássicos estaduais envolvendo o Vasco são disputados preferencialmente no
Maracanã. Para as finalidades deste trabalho, duas conseqüências principais que decorreram disso
se destacam. Em primeiro lugar, houve uma escalada na violência entre as torcidas organizadas do
Vasco da Gama e de outros clubes, como o São Paulo Futebol Clube e o Sport Club Corinthians
Paulista, especialmente nas ruas no entorno do estádio, vielas bastante estreitas, que facilitam as
estratégias de ataque da Força Jovem Vasco, principal torcida organizada do clube, que possui
alguns membros que, por vezes, realizam confrontos violentos com membros de outras torcidas
organizadas. Seu conhecimento das ruas ao redor de São Januário torna possível que se criem
estratégias para encurralem torcedores dos clubes rivais indo em direção ao estádio em dia de jogo.
Assim, tanto o estádio de futebol quanto os arredores são tomados, por esses torcedores, como
lugar de produção e reprodução, através da violência, da diferença por eles sentida entre os vascaínos
e os outros torcedores. Importante adicionar aqui a relação entre os torcedores comuns e a parcela
violenta da Força Jovem Vasco. Embora em geral essa parcela seja criticada pelo uso da força física,
muitos torcedores não violentos sentem que é preferível que, em caso de confronto violento entre
torcedores rivais em dia de jogo, os pertencentes à Força Jovem Vasco consigam se impor, admitindo,
assim, uma ligação de identificação, através do Vasco, entre esses torcedores violentos e os demais
torcedores do clube.
A segunda conseqüência se refere à relação entre os membros violentos da Força Jovem
Vasco e os das demais torcidas organizadas cariocas. Uma vez que eles deixam de se encontrar nas
imediações do estádio São Januário, área que os membros da Força Jovem Vasco têm como sua –
isto é, que eles defendem por sua ligação afetiva com ela, e que, ao mesmo tempo, eles utilizam na
criação (ainda que muito pouco planejada) de estratégias de ataque às torcidas rivais –, e passam a
se encontrar preferencialmente no entorno do Maracanã quando dos conflitos violentos entre eles,
diminuiu a desigualdade na possibilidade de vitória dos torcedores vascaínos em caso de confronto
violento. Comparando essa mudança com o outro caso aqui apresentado, enquanto os hooligans do
West Ham United sempre tiveram no Upton Park – e em seus arredores – um lugar da produção da
diferença entre eles e os outros e, particularmente, um local privilegiado para produzir e reproduzir
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 301
a hierarquia – fluída, dinâmica, não-consensual e instável – das torcidas hooligans dentro da cidade
de Londres, o São Januário – assim como o seu entorno – começou a se tornar, a partir de 2005,
cada vez menos o lugar da diferenciação entre os torcedores do Vasco e os dos demais times do Rio
de Janeiro, o que aumentou, por um lado, a rivalidade, em alguns casos violenta, com times de fora
do Rio de Janeiro nas idas a São Januário, e, por outro lado, o papel do Maracanã na construção da
diferença entre o vascaíno e o rival carioca, isto é, entre o Vasco da Gama, de um lado, Flamengo,
Fluminense e Botafogo, de outro.
Em resumo, tanto o Upton Park – para os torcedores do West Ham United – quanto o São Januário
– para os fãs do Vasco da Gama – formam parte do sentimento de valor próprio dos seus torcedores,
pois são lugares de uma construção identitária valorada positivamente. Ambos os lugares são
afetivamente carregados de sentimentos identitários, de ligação entre a imagem do “eu” com uma
imagem do “nós”, condensada em torno do clube de futebol para o qual se torce. A ligação emocional
e moral entre os torcedores e o clube é intensa e é construída e reconstruída preferencialmente
através do seu estádio. A região em que está situada o estádio também é carregada de sentimentos e
valores para aqueles torcedores. Enquanto os fãs do West Ham identificam o clube e a si mesmos
com a região do East End londrino, os torcedores do Vasco da Gama tomam o clube e a si mesmos
como símbolos da Zona Norte do Rio de Janeiro. Dada essa identificação com a região, o corte de
classe também se torna presente na construção identitária: ambos se enxergam como clubes operários,
uma vez que foram formados em regiões operárias de suas cidades. Além disso, adiciona-se à
identidade vascaína o anti-racismo e a identificação com a colônia lusitana.
Conclusão: Cidade e Afeto
A cidade de Londres para um hooligan do West Ham está impregnada não apenas por racionalidade,
mas também – e, por vezes, principalmente – pela confluência de sentimentos diversos. The Den, o
estádio do Millwall, era um lugar odiado, considerado depravado, por vezes temido, embora nem
sempre. Era o lugar a ser conquistado a cada jogo, fazendo com que os Millwall Bushwackers
fossem – ao menos na visão dos membros da InterCity Firm – forçados a se retirar. O mesmo
acontecia com as ruas e bares nos arredores do estádio. Por sua vez, o Stamford Bridge, estádio do
Chelsea Football Club, localizado em Fulham, foi sempre considerado um território onde se deve ter
cautela, pois os Chelsea Headhunters sempre contaram com um “exército” bastante numeroso.
Justamente por isso, a conquista recorrente do The Shed – parte das arquibancadas dos estádios
onde se localizavam os Headhunters nos jogos em casa – pelos hooligans da ICF era considerada um
motivo de grande glória para eles, que alegam tê-la usado como ponto de encontro durante anos
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 302
(Pennant, p,174). Essas lutas tinham que ser realizadas em todos os jogos: a violência coletiva, essa
“experiência de absoluta plenitude” (Buford, p.207), era considerada pelos hooligans como parte
integrante do jogo de futebol – apesar de freqüentemente alegarem que só estavam atrás de cerveja,
futebol e diversão (p.48) –; para um hooligan, ir a uma partida e não tomar parte na violência
coletiva que se desenvolve ao seu redor significa pagar por algo e não consumi-lo.
O Upton Park (bem como seus arredores, as ruas e os bares próximos) estava, para os hooligans da
InterCity Firm, acima de todos os outros lugares da Inglaterra e do Mundo. Na sua lista de preferências,
ele e o West Ham estavam no topo, seguidos pelo próprio futebol e pela cerveja que consumiam, que
lhes dava energia simbólica. Na lista de antipatias, o resto do mundo. Quando se tem uma visão tão
forte de nós-versus-eles, é de se esperar que existam apenas dois tipos ideais de elementos: os puros
e/ ou purificadores, cuja pureza deve ser preservada, como o Upton Park e tudo o mais que estiver
relacionado ao West Ham, à ICF e ao East End; e os sujos, que estão empenhados em macular os
elementos puros, e que deveriam ser sujeitados aos agentes purificadores – a própria ICF. O Upton
Park é o supra-sumo do lugar a ser amado em toda a cidade aos olhos de um torcedor do West Ham.
É adorado, idolatrado como se fosse uma entidade própria, deve ser protegido porque é a casa dos
torcedores, o lugar onde sua honra e sua masculinidade são construídas e postas em jogo a cada
partida.
Cada jogo no Upton Park é um ritual em que os hooligans da ICF constroem sua honra e sua
masculinidade, ao mesmo tempo em que demonstram o valor do bairro; eles devem provar seu amor
e sua dedicação às cores do clube, apoiando o time dentro de campo, subjugando os hooligans rivais
fora dele, com o uso da força física necessária. A defesa do território grupal não basta. É necessário
ir às demais regiões da cidade – e da Inglaterra –, provar a todos o “valor” da InterCity Firm, do
West Ham United e do East End, conquistar, em seu nome, os territórios, as zonas morais rivais,
fazendo com que os adversários recuem e partam em retirada. A violência é utilizada para pôr cada
coisa em seu “devido” lugar, na visão dos seus agentes: pôr as vítimas ou os derrotados em sua
posição de inferioridade e demonstrar a própria superioridade. A violência tenta exercer no mundo
físico aquilo que é sentido no plano afetivo-moral. Da mesma maneira, a violência hooligan tenta
expressar no meio urbano aquilo que os hooligans têm como certo na sua representação: sua própria
superioridade frente aos demais. Ou seja, tenta organizar a visão dos habitantes da cidade sobre a
própria cidade, seus bairros e moradores, a partir das derrotas e vitórias na violência coletiva hooligan.
Os hooligans do West Ham apresentam uma forma intensificada e distorcida (Spaaij, 2006) dos
valores compartilhados pela comunidade mais ampla de torcedores do West Ham. Entretanto, não é
necessário um caso tão extremo pra mostrar que, para uma quantidade muito grande de habitantes
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 303
do meio urbano, a cidade está amplamente carregada de significados afetivos e/ou morais. O caso da
torcida do Vasco da Gama foi utilizado em favor deste argumento. A torcida do Vasco se identifica
subjetivamente com uma ampla variedade de valores afetivos – identificação com a classe operária,
com a colônia portuguesa, com o combate ao racismo e com uma postura “democrática”, apesar de
todas as vicissitudes nesses sentimentos identitários – que são refletidos em sua forma particular de
lidar com o espaço da cidade. A relação do torcedor vascaíno com o estádio do São Januário, assim
como com os clubes rivais da cidade, é estruturada pela e, ao mesmo tempo, estrutura a forma desse
torcedor lidar com meio urbano: a Zona Norte da cidade fica, assim, como um lugar marcado pelos
valores supracitados, enquanto a Zona Sul e seus clubes são vistos como elitistas, racistas e
antidemocráticos.
Os casos dos hooligans do West Ham United e da torcida do Vasco da Gama se mostraram como
exemplos paradigmáticos para a elucidação de uma questão central para a compreensão do território
urbano. Mais do que um terreno da racionalidade fragmentado em diversas zonas morais, a cidade
moderna não deixa de ser um lugar em que a afetividade pode existir e ser expressa espacialmente.
Se o torcedor de futebol – hooligan ou não – é capaz de ter uma vivência afetiva no meio urbano, de
identificar não apenas moral, mas também afetivamente (com amor ou ódio, respeito ou medo)
diferentes lugares da cidade, então é perfeitamente possível que os demais indivíduos metropolitanos
o façam, de acordo com os grupos sociais nos quais estiverem envolvidos. O jogo afetivo na cidade
não deve ser esquecido, pois ele indica a vivência afetiva de e as relações sociais entre os habitantes
do meio urbano.
Referências Bibliográficas
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Nacionalismo. Lisboa: 70, 2005.
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Meio Urbano” in VELHO, Guilherme Otávio (Org.). O Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar,
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SPAAIJ, Ramón. Understanding Football Hooliganism – A Comparison of Six Western European
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of California Press, 1992.
WIRTH, Louis. “O Urbanismo como Modo de Vida” in VELHO, Guilherme Otávio (Org.). O
Fenômeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1979.
NOTAS
1
Com o desenvolvimento das tecnologias de telecomunicação, o contato face a face deixa de ser uma necessidade
irrevogável, pois novas formas se tornam possíveis e, em certos casos, até mesmo mais úteis e produtivas.
2
“Ducking and diving”, prática que se diz comum no East End, é um tipo de atividade empreendedora que mistura
legalidade e ilegalidade. A atividade toda gira em torno dos limites e da ambigüidade da legalidade.
3
A tradução desse trecho, assim como todas as traduções ao longo do texto, foi realizada pessoalmente.
4
Uma outra característica fundamental que transformou a violência entre torcedores de futebol nesse período foi a
separação entre os torcedores mais velhos e os mais novos. Essa demarcação etária é fundamental para compreender
porque a atividade hooligan é associada a grupos de homens mais novos. Até então, os torcedores de um mesmo time
permaneciam juntos, independentemente da faixa etária. Com a organização das atividades violentas a partir de
1960, criou-se uma barreira simbólica entre os espectadores, q
ue refletia a separação organizacional e etária existente entre eles. Todavia, o aspecto etário não parece primordial
para os objetivos do presente trabalho, que não é fornecer uma ampla explicação sobre o hooliganismo, mas mostrar,
a partir dos hooligans, a arena afetiva e moral presente na vida urbana cotidiana.
5
A torcida do Clube de Regatas Vasco da Gama será brevemente abordada em caráter comparativo mais adiante.
6
Analogias bélicas são constantes no tratamento da violência hooligan, tanto pela mídia, quanto pelos próprios
hooligans.
7
Ou seja, também se propõe entre eles uma figuração de poder do tipo estabelecidos-outsiders.
8
Um ponto importante que não coube destacar no corpo principal do trabalho é que a violência hooligan é
profundamente marcada por cantos insultuosos, que geralmente ofendem a proveniência dos rivais e também,
principalmente, atentam contra sua honra masculina, com alusões a “incompletudes” e “desvios” sexuais.
9
A maior parte das informações sobre o clube e os torcedores foi conseguida através de entrevistas semi-estruturadas
com torcedores do clube.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 305
A APREENSÃO, O JULGAMENTO E A INTERNAÇÃO NA CASA – CENTRO DE
ATENDIMENTO SOCIOEDUCATIVO AO ADOLESCENTE DO ESTADO DE SÃO
PAULO – FUNDAÇÃO CASA: A gestão biopolítica dos corpos.
Rosângela Gonçalves Teixeira
Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho -UNESP – Campus de Marília. Mestranda
em Ciências Sociais - Pensamento Social e Políticas Públicas.
[email protected].
Resumo
O presente trabalho traz a análise de prontuários de jovens egressos do Centro de Atendimento Socioeducativo
ao Adolescente – Fundação CASA. Os prontuários são referentes à medida de internação e a medida de
liberdade assistida e contemplam desde a fase da apreensão policial, ao julgamento e as avalições sociais e
psicológicas acerca dos jovens autores de atos infracionais no período em que permaneceram internados na
instituição. As análises têm como objetivo mapear as práticas de agentes da lei como policiais, juízes,
advogados, defensores públicos, além do corpo técnico responsável pela efetivação das medidas de privação
de liberdade e em meio aberto e os discursos que as diferentes instituições produzem acerca dos jovens em
questão. Como conclusões tem-se que o judiciário legitima as práticas de internação e punição para com a
juventude pobre, reforçando o ideal de punição para aqueles que estejam fora da instituição escolar, advindos
de famílias categorizadas como “desestruturadas”, levando assim ao esquadrinhamento da vida do individuo,
por que a informação dada ao juiz, diz muito mais respeito ao contexto da existência, de vida e disciplina do
indivíduo, do que o próprio crime que ele cometeu. Além disso, comportamentos tidos como normais de
pessoas privadas de sua liberdade, passam a ser considerados como patológicos por psicólogos e assistentes
sociais, e ainda, agentes policiais, agem com discricionariedade na apreensão de adolescentes, exames de
corpo de delito são realizados semanas após a apreensão e a brevidade na transferência de jovens apreendidos
pela polícia para instituições especiais, não vem ocorrendo de forma efetiva, havendo casos de a transferência
ocorrer semanas depois da apreensão. Desse modo à justiça infanto-juvenil vêm flagrantemente desrespeitando
o Estatuto da Criança e do Adolescente em suas práticas e ações, realizando assim a gestão biopolítica dos
corpos.
Palavras - Chave: Juventude. Medida Socioeducativa. Fundação CASA. Estatuto da Criança e do
Adolescente. Justiça Infanto-Juvenil.
A biopolítica em Foucault
Michel Foucault em “defesa da sociedade” aponta que um dos fenômenos fundamentais do século
XIX, foi à estatização do biológico. No período monárquico, Foucault (2005) aponta que o soberano
tinha o direito de fazer morrer e deixar viver, portanto a vida e a morte não eram fenômenos naturais.
Passado o período monárquico, novas técnicas de poder emergem no século XVII e XVIII centradas
essencialmente no corpo individual. Procedimentos que asseguravam a distribuição espacial dos
corpos dos indivíduos, sua separação, seu alinhamento, sua colocação em série, sua vigilância e sua
organização que acabavam por possibilitar um campo de visibilidade. Mediante um sistema de
vigilância, hierarquias e inspeção exercia-se sobre os corpos dos indivíduos o que foi denominado
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 306
de tecnologia disciplinar do trabalho. As técnicas utilizadas viabilizavam disciplinar e aumentar a
força útil desses corpos através do exercício e do treinamento.
Durante a segunda metade do século XVIII, Foucault (2005) aponta que nasce uma nova tecnologia
de poder, que não exclui a disciplinar, mais que a complementa e a modifica. No entanto, essa nova
técnica disciplinar não se aplica ao corpo do homem, mais ao homem enquanto espécie. A nova
tecnologia de poder se aplica a multiplicidade dos homens, na medida em que formam uma massa
global que é afetada por processos próprios da vida, como o nascimento, a morte, a doença, dentre
outros fenômenos. Posteriormente a tomada de poder sobre o corpo que é individualizante e que se
dá através da disciplina, tem-se outra, que não é individualizante, mais massificante e se dá em
direção ao homem enquanto espécie, que vai ser intitulada de “biopolítica” da espécie humana.
De acordo com Michel Foucault (2005) a biopolítica trata-se de um conjunto de processos como a
proporção de nascimentos e dos óbitos, a taxa de reprodução, a fecundidade de uma população, a
natalidade, a mortalidade e a longevidade, que a partir da segunda metade do século XVII
conjuntamente com problemas econômicos e políticos passam a constituir os primeiros alvos de
controle da biopolítica. A partir do século XVIII a estatística e a demografia emergem a fim de
tipificar e mapear os fenômenos da população como a taxa de natalidade e mortalidade, dentre
outros fenômenos.
A partir do final do século XVIII, com base na estatística, passa-se a introduzir uma medicina que
tem por função a higiene pública, com organismos que possibilitam a centralização da informação, a
normalização do saber e que buscam introduzir no seio da população campanhas de aprendizado de
higiene. A partir desses fenômenos Foucault (2005) aponta que a biopolítica irá introduzir não só
instituições assistenciais, mais mecanismos sutis e mais racionais que a grande assistência, como os
seguros, as poupanças individuais e coletivas, dentre outros. A biopolítica irá extrair seu saber e
definir seu campo de intervenção a partir das taxas de natalidade, de morbidade, das incapacidades
biológicas e dos efeitos do meio, lidando com a população como problema político e como problema
de poder.
A biopolítica irá se dirigir aos acontecimentos aleatórios que ocorrem em uma população em um
considerável período de tempo, ocupando-se dos fenômenos coletivos, que só se tornam pertinentes
no nível de massa, utilizando-se de medidores globais, como a estatística.
Portanto, a partir desse período busca-se agir de tal modo que se obtenham estados de equilíbrio e
regularidade, assegurando uma regulamentação nos fenômenos da população, como exemplo,
encompridando a vida, estimulando a natalidade, baixando a morbidade.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 307
De acordo com Foucault (2005) a soberania fazia morrer e deixava viver, o novo poder consiste em
“fazer viver e deixar morrer”. No entanto, esse poder não terá o domínio direto sobre a morte, mais
sim sobre a mortalidade, “o poder só terá domínio de modo global, estatístico” (FOUCAULT, 2005,
p.296). A nova tecnologia de poder trata-se de uma tecnologia na qual os corpos são realocados em
conjunto, a fim de analisar as variabilidades dos fenômenos biológicos.
Portanto, passa-se a exercer poder sobre os corpos em duas séries: o disciplinamento e a
institucionalização que recaí diretamente sobre o corpo do indivíduo e o poder que recaí sobre os
corpos em massa, na forma da população, dos processos biológicos e mecanismos regulamentadores.
No entanto Foucault (2005) se pergunta como esse novo poder que tem por objetivo fazer viver
pode deixar morrer? Como exercer o poder de morte, num sistema político centrado no biopoder?
Como este poder pode matar, quando se trata essencialmente de aumentar a vida, de multiplicar suas
possibilidades ou compensar suas deficiências? Como nessas condições é possível para um poder
político matar seus cidadãos?
Foucault (2005) responde a essas questões afirmando que com o nascimento do biopoder o racismo
é inserido no mecanismo de Estado, incutindo o corte entre o que deve viver e o que deve morrer. A
partir da distinção e hierarquização das raças, o biológico é fragmentado, subdividindo a espécie em
grupos, fragmentando as raças. A partir do corte estabelecido pelo racismo “quanto mais você
matar, mais você fará morrer, mais por isso mesmo você viverá” (FOUCAULT, 2005, p.305). O
racismo moderno, de estado, não está ligado somente a ideologias, mais está ligado a técnica do
poder, a tecnologia do poder.
O racismo vai estabelecer uma relação do tipo biológico: quanto mais as espécies
inferiores tendem a desaparecer, quanto mais os indivíduos anormais forem
eliminados, menos degenerados haverá em relação à espécie, mais eu, não enquanto
individuo mais enquanto espécie viverei, serei mais forte, mais vigoroso serei,
mais poderei me proliferar. A morte do outro não é simplesmente a minha vida, na
medida em que seria minha segurança pessoal, a morte do outro, da raça ruim, da
raça inferior, é o que vai deixar a vida em geral mais sadia, mais pura (FOUCAULT,
2005, p.305).
Portanto o racismo e a raça tornam-se a condição de aceitabilidade de tirar a vida em uma sociedade
de normalização. No entanto, a função assassina do Estado só pode ser assegurada desde que este
funcione nos moldes do biopoder, através do racismo. A morte é compreendida por Foucault (2005),
não simplesmente como o assassinato direto, mais tudo aquilo que pode ser um assassinato indireto,
como o fato de expor à morte, de multiplicar para algum risco de morte, ou pura e simplesmente a
morte política, a expulsão, a rejeição.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 308
O racismo assegura a morte na economia do biopoder, seguindo o princípio de que a morte dos
outros é o fortalecimento biológico da própria pessoa. Portanto Foucault (2005) aponta que o
racismo ligado ao funcionamento do Estado é obrigado a utilizar a raça, a eliminar a raças e a
purificar a raça para exercer seu poder soberano.
A biopolítica na contemporaneidade
De acordo com o Mapa da Violência 20131 – Homicídios e Juventude no Brasil, produzido pelo
Instituto Sangari sob coordenação de Júlio Jacobo Waiselfisz, o número de jovens no Brasil entre 15
e 24 anos, foi de 34, 5 milhões para o ano de 2011, o que representa 18,0% do total dos 192,3
milhões de habitantes do país.
O Mapa da Violência 2013 aponta que a porcentagem de mortes referentes a causas naturais entre a
população jovem é de 26,8%, enquanto entre a população não jovem2 é de 90,1%. Já a proporção de
mortes referentes a causas externas entre a população jovem é de 73,2% e entre a população não
jovem de 9,9%. Desse percentual, 20,4% são vítimas de acidentes de transporte, enquanto entre os
adultos essa porcentagem é de apenas 3,1%. Os suicídios fizeram nesse período 3,7% de mortos
entre a população jovem, enquanto entre a população não jovem esse percentual foi de 0,7%. Entre
a população jovem os homicídios representaram 39,3% das mortes e 3,0% entre a população não
jovem.
Em relação à etnia de 2002 a 2010 tem-se uma queda de 37,9% na participação da população jovem
branca no número de homicídios e em contra partida tem-se um aumento de 22,1% na participação
da população jovem.
O presente estudo ainda aponta que a vitimização homicida no país é notadamente masculina. A
feminina representa 8% do total de homicídios. No entanto, mesmo sendo inferior à masculina, no
ano de 2011, 4,5 mil mulheres foram vítimas de homicídios.
De acordo com Waiselfisz (2011) a mortalidade evitável não é somente aqueles óbitos que não
deveriam ocorrer se o tratamento dado ao acidentado fosse adequado e correto, mas também aqueles
que são passíveis de serem evitados nas atuais condições da infraestrutura social brasileira, mas que
não são evitadas pela aceitação ou tolerância de determinados níveis de violência dirigidos a grupos
ou setores vulneráveis da sociedade, o que de acordo com Foucault (2005) configura-se como o
controle biopolítico da população.
Outra face do controle biopolítico da população jovem no Brasil pode ser verificada a partir do
número de Unidades socioeducativas de internação no país, pois, a biopolítica não se ocupa somente
da morte, mais também da exclusão dos “degenerados”, como a condenação a morte de um criminoso
ou o seu isolamento, ou ainda o confinamento dos loucos ou doentes portadores de anomalias.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 309
A Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – SDH/PR 3 e a Secretaria Nacional
de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente – SNPDCA4, responsáveis pelo Levantamento
Nacional do Atendimento Socioecucativo ao Adolescente em Conflito com a Lei, divulgaram que
em 2010, o número total de internos no sistema socioeducativo de meio fechado no Brasil
correspondeu a 17.703 adolescentes, sendo 12.041 na internação; 3.934 na internação provisória e
1.728 em medida de semiliberdade. Dos adolescentes privados de liberdade, 94,94% são do sexo
masculino e 5,06% do sexo feminino (BRASIL, 2011). No ano de 2006, o número de adolescentes
privados de liberdade foi de 15.426 adolescentes, comparado ao ano de 2007, total de 16.535
adolescentes, o aumento foi de 7,18%. Comparando o ano de 2007 com o ano de 2010, que teve o
total de 17.703 adolescentes privados de liberdade, temos um aumento de 6,94% do número de
internações.
O estado de São Paulo possui 3.984.130 adolescentes entre 12 e 17 anos incompletos, sendo que
desses 7.074 estão em restrição e privação de liberdade, o que representa o índice de 17,8% para
grupo de 100.000 adolescentes. (BRASIL, 2011). Para atender aos jovens que cumprem medidas
socioeducativas, o Estado conta com 112 Unidades de internação para adolescentes em conflito
com a lei, sendo o Estado com o maior número de unidades socioeducativas de privação de liberdade,
o segundo Estado com o maior número de unidades é Minas Gerais e Santa Catarina ambos com 19
Unidades, seguido pelo Paraná com 18 Unidades e por Rondônia com 15 Unidades5.
De acordo com os dados, é possível apontar para um crescente aumento do número de Unidades de
internação no estado de São Paulo o que leva a uma disparidade quando comparado com os outros
Estados do Brasil. Ao adotar a política de ampliação de Unidades, as vagas também são expandidas,
acarretando no crescente número de adolescentes em medida socioeducativa de privação de liberdade,
mesmo diante das normativas do ECA (1990) e do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
- SINASE (2006)6, que apontam para a internação somente em último caso.
Diante do expressivo número de internações, o Estatuto da Criança e do Adolescente - ECA vêm
sendo alvo de críticas no que tange a apuração do ato infracional e a aplicação das medidas
socioeducativas por parte do judiciário. Minahin (2010), afirma que o ECA necessita ser aprimorado,
devido as lacunas existentes na legislação que vêm dando margem a arbitrariedades, a utilização de
argumentos extrajurídicos na solução de casos e consequentemente na desqualificação do instrumento
legal junto ao debate público. De acordo com a autora, a fragilidade da doutrina jurídico-penal na
área de infração juvenil é uma das razões para a informalidade dos procedimentos que acabam
resultando nas medidas privativas de liberdade e na discricionariedade do poder judiciário. Nicodemos
(2006) aponta que o ECA necessita de um aprimoramento não só normativo, mais acima de tudo
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 310
político, visando a criação de mecanismos que possam impedir a criminalização centenária da infância
no Brasil. Afirma ainda, que se faz necessário a criação de novas normas que possam regulamentar
as lacunas principiológicas deixadas pelo ECA, especialmente nas bases do sistema de controle
social do ato infracional, no que tange a políticas públicas e as políticas protetivas além da devida
execução das medidas socioeducativas, o que daria um impulso considerável à condição de sujeito
de direitos e deveres do jovem autor de ato infracional.
Mediante o expressivo número de Unidades de internação no estado de São Paulo e as críticas
atribuídas a Lei Federal n° 8069/1990 do ECA no que tange as medidas socioeducativas, o presente
artigo traz a análise de dez prontuários referentes a jovens egressos da Fundação CASA, no período
de 2005 a 2012, que posteriormente cumpriram medida socioeducativa de Liberdade Assistida - LA.
A análise teve como objetivo mapear as práticas do sistema de justiça juvenil no estado de São Paulo
além de verificar a eficácia e o cumprimento das diretrizes do ECA no que tange a apuração do ato
infracional e a execução das medidas socioeducativas no estado de São Paulo.
A justiça infanto-juvenil: a apreensão e o julgamento
O conjunto de normas jurídicas vigentes no Código de Menores de 1927 e de 1979 era aplicável a
crianças e jovens vítimas de violações de seus direitos fundamentais sejam por parte de seus familiares,
do Estado ou da sociedade. No paradigma menorista não se reconheciam os sujeitos como titulares
de direitos, não existindo assim garantias processuais, como a inércia da jurisdição, o contraditório,
a ampla defesa (MACHADO, 2002). Portanto o juiz possuía amplos poderes de decisão sobre a
vida e o destino daqueles considerados em situação irregular.
Com a promulgação do ECA, passam a ser garantidos os direitos ao devido processo legal, a ampla
defesa, ao contraditório, a apelação, ao habeas corpus, antes inexistentes aos suspeitos de cometimento
de ato infracional.
A fim de mapear as práticas do sistema de justiça juvenil no estado de São Paulo e verificar a eficácia
e o cumprimento às diretrizes do ECA no que tange a apuração do ato infracional e a execução das
medidas socioeducativas foi realizada a consulta e a análise de dez prontuários referentes a jovens
egressos da Fundação CASA, no período de 2005 a 2012, que posteriormente cumpriram medida
socioeducativa de Liberdade Assistida - LA.
Dos dez prontuários analisados, cinco são referentes á jovens do sexo masculino e cinco referentes
á jovens do sexo feminino. Dos jovens internos nas diferentes Unidades da Fundação CASA um
possuíam 15 anos na data da apreensão, seis possuíam 16 anos e três, estavam com 17 anos. Com
relação à etnia, sete jovens são considerados brancos e três negros. Todos os jovens apreendidos
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 311
eram moradores de bairros periféricos. Com relação ao ato infracional que levou a internação, sete
jovens foram acusados de ato infracional equiparado ao tráfico de drogas e três deles foram acusados
de ato infracional contra o patrimônio, sete eram primários e três reincidentes.
Em relação aos prontuários analisados, oito continham anexo o boletim de ocorrência, o termo de
declarações prestadas no ato da apreensão e os autos do processo e dois continham apenas os autos
do processo, sem o boletim de ocorrência. Todos os jovens foram apreendidos por autoridades
policiais em flagrante delito.
Nos boletins de ocorrência dos jovens apreendidos, apenas dois faziam menção a presença de um
familiar no primeiro depoimento prestado, ainda na delegacia. A jovem Mel7 de 17 anos, apreendida
por tráfico de drogas, teve o depoimento acompanhado por uma tia. A jovem Sol de 16 anos,
também apreendida por tráfico de drogas, teve o depoimento acompanhado pela mãe, que denunciou
a filha para a polícia e vai na condição de testemunha de acusação. O jovem João de 17 anos,
reincidente, foi apreendido sozinho, acusado de ter jogado em uma casa 73 papelotes de cocaína e
uma balança de precisão, o jovem em seu depoimento as autoridades policiais, afirma que tem o
direito de ter seus pais avisados de sua apreensão e que deseja sua presença na delegacia, no entanto
no documento não há menção sobre a comunicação dos responsáveis. Já a jovem Vitória de 17 anos,
apreendida em outra Comarca, acusada de tráfico de entorpecentes, teve o acompanhamento de
uma conselheira tutelar. Com relação aos demais, não há menção do acompanhamento de qualquer
familiar no depoimento prestado, nem o registro de contato feito pelas autoridades policiais com os
familiares dos jovens. Desse modo, pode-se presumir que as autoridades encarregadas de realizar o
inquérito policial vêm desrespeitando as normativas do ECA, que no artigo 107 aponta que “ a
apreensão de qualquer adolescente e o local onde se encontra recolhido serão incontinente
comunicados à autoridade judiciária competente e à família do apreendido ou à pessoa por ele
indicada”.
Em três, das dez audiências de apresentação ao juiz8, os jovens mencionaram abuso de poder por
parte da autoridade policial, como agressões, espancamentos e a implantação de drogas ilícitas. Em
apenas dois casos encontram-se nos autos do processo, cópia dos exames de corpo de delito, no
entanto, sua realização se deu após terem se passado em média 15 dias a apreensão policial.
Em 9 dos casos analisados foi aplicada a medida de internação provisória aos jovens acusados de
cometerem atos infracionais, mesmo nos casos em que um responsável se fez presente na delegacia,
mediante a pretensa alegação por parte da promotoria do resguardo da ordem pública e da credibilidade
das instituições judiciárias9. De acordo com Saraiva (2000) existe uma incompreensão acerca do
sistema de garantia de direitos presentes no ECA e um desconhecimento da carga retributiva
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 312
provisoriamente imposta. De acordo com o jurista, há no Brasil, por parte de alguns setores da
Justiça Juvenil “afeição” demasiada pela imposição da medida de internação provisória em casos
nos quais não se aplicaria a prisão preventiva a um adulto, o que revela a ideia de uma subcidadania
da juventude. A internação provisória, assim como a prisão preventiva, somente se justifica nos
estreitos limites do garantirismo penal, ao menos que se estabeleça o critério de prender o suspeito
para protegê-lo, a consagrar a hipocrisia do Estado. Dos jovens que tiveram a internação provisória
decretada, todos ficaram inicialmente custodiados em cadeias públicas da região, sendo possível
constatar uma visível lentidão na realização da transferência para instituições especiais. De 2 a 7 dias
foi o tempo de permanência provisória desses jovens em cadeias comuns até a transferência para
Unidades especiais de internação provisória.
Dos dez casos analisados, 9 contaram com defensor público e apenas 1 com advogado constituído.
Do montante, apenas 1 recorre da sentença de internação, sendo esse caso defendido por advogado
constituído. O supremo Tribunal de Justiça - STJ acaba por deferir o pedido de extinção da medida,
no entanto, ao término dos tramites a jovem em questão havia cumprido medida de internação por
8 meses em Unidade da Fundação CASA.
A fim de verificar quais são os pressupostos que embasam as decisões do judiciário para
institucionalizar os jovens em questão, foram analisadas as fundamentações que versam sobre as
medidas de privação de liberdade. Nos 7 casos analisados de ato infracional equiparado ao tráfico de
drogas o judiciário fundamenta a medida de internação a partir de uma violência presumida contra
toda a sociedade na qual é possível justificar e legitimar a prática da imposição da medida restritiva
de liberdade, tendo como base a grave ameaça (MINAHIM, 2010), mesmo diante da publicação da
súmula 492 pelo Supremo Tribunal de Justiça - STJ10. O judiciário parte ainda para o enfrentamento
do problema lançando a repressão ao indivíduo, sem considerar a prevenção e o tratamento. Tem-se
ainda a criação de uma categoria com fundo moral, tendo como base um suposto desvio de
personalidade e por fim a medida de internação é justificada a partir do viés protetivo dos próprios
indivíduos submetidos a elas, negando seu caráter penal e sancionatório.
Nos casos de atos infracionais contra o patrimônio, a justificativa encontrada repetidas vezes foi
novamente embasada em categorias com fundamento moral tendo como pressuposto um possível
desvio de conduta e uma suposta ausência de moralidade, fator esse que segundo o judiciário poderia
vir a resultar na formação de uma personalidade criminosa. De acordo com Foucault (2005), julgamse os objetos jurídicos definidos pelo Código, mas julgam-se também as paixões, os instintos, as
anomalias, as inadaptações, os feitos, a hereditariedade. Punem-se as agressões, mas punem-se também
as agressividades, as violações, as perversões, os desejos e os impulsos. Não apenas o crime é alvo
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 313
de julgamento, como o passado e o futuro daquele que o cometeu. Desse modo, o judiciário
utiliza-se de pressupostos sem base real a fim de legitimar a segregação do indivíduo da sociedade.
Com base nas análises realizadas foi possível verificar que todos os elementos que tem como
objetivo legitimar a prática da medida socioeducativa de privação de liberdade configuram um
“neomenorismo”, fundado na pretensa proteção da sociedade e do indivíduo, justificando-se a
partir de uma violência em abstrato, o que acaba incorrendo na ausência de limites para a intervenção
socioeducativa.
A internação na CASA
Todos os 10 prontuários referentes aos jovens em questão contam com uma cópia da pasta referente
à medida socioeducativa de internação nas diferentes Unidades socioeducativas femininas e
masculinas do estado de São Paulo. Todos os prontuários seguem um único padrão, sendo a
primeira página destinada aos dados pessoais do jovem, composto posteriormente pelo relatório
inicial e tendo como fim o relatório técnico conclusivo.
O relatório técnico inicial é composto por um parecer social, um parecer psicológico, um parecer
pedagógico, do Plano Individual de Atendimento - PIA e da conclusão. O relatório técnico
conclusivo conta com o parecer da área psicológica, da área social, da área pedagógica, da área
de segurança, da área da saúde e da conclusão da equipe multidisciplinar. De acordo com Foucault
(2005) os juízes não julgam sozinhos. A partir do momento em que as medidas do tribunal não são
determinadas de uma maneira absoluta, a partir do momento em que podem ser modificadas no
meio do caminho, a partir do momento em que se deixa a pessoas que não são os juízes da
infração o cuidado de decidir se o condenado “merece” ser posto em semiliberdade ou em liberdade
condicional, se eles podem pôr um termo à sua tutela penal, são sem dúvida mecanismos de
punição legal que lhes são colocados entre as mãos e deixados à sua apreciação, desse modo,
pequenas justiças e juízes paralelos se multiplicaram em torno do julgamento principal: peritos
psiquiátricos ou psicológicos, magistrados da aplicação das penas, educadores, funcionários da
administração penitenciária fracionam o poder legal de punir.
Os objetivos da análise dos prontuários referentes ao período de internação são: investigar as
práticas institucionais, os discursos produzidos pelo corpo técnico responsável pela efetivação
das medidas de privação de liberdade, os percursos, entraves e dificuldades vivenciados pelos
jovens dentro da CASA e a adequação ou não as normativas do SINASE, em decorrência da
promulgação da Lei nº 12.594/2012.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 314
A média de internação para os casos analisados de ato infracional equiparado a tráfico de drogas e
contra o patrimônio foram de 6 meses a 2 anos e 2 meses. Em todos os prontuários, costa no
relatório técnico inicial que ao adentrar nas diferentes Unidades, os jovens são acolhidos, sendo
expostos seus direitos e deveres de acordo com o regimento interno da Fundação11, prática recorrente
as instituições totais, constituindo a “primeira mortificação do eu”, seguido pelo processo
caracterizado como admissão: despir, dar banho, cortar os cabelos, enumerar bens pessoais para
que sejam guardados, dentre outros (GOFFMAN, 2001).
Mediante a análise dos prontuários foi possível verificar que em foram aplicadas sanções disciplinares
em seis casos sob a justificativa da dificuldade inicial dos jovens em adaptar-se ao processo de
privação de liberdade, tendo em vista a importância das sanções para aqueles que se apresentam
“imaturos e sem limites”. No entanto as sanções aplicadas não são devidamente esclarecidas, desse
modo não se sabe se a sanção consciente em advertência verbal, castigo corporal, prestação de
serviços na Unidade, dentre outras possibilidades. De acordo com Machado (2000), a ausência no
ECA de diretrizes referentes a execução das medidas socioeducativas, especialmente nos pontos
ligados a definição do grau de constrição de liberdade, a definição de faltas disciplinares e das
sanções de natureza administrativa passíveis de imposição pela prática delas; tanto quanto sobre as
consequências de tais faltas na sistemática de regressão/progressão na execução das medidas
socioeducativas, acabam por incorrer na prática discricionária do corpo técnico responsável pelas
medidas.
Ainda em relação à entrada dos jovens as Unidades de internação foi possível verificar que
comportamentos que podem ser característicos de pessoas em situação de privação de liberdade
como ansiedade, tristeza, agressividade, insatisfação e casos extremos de depressão são patologizados
pela equipe técnica. Para Foucault (2005), o regime de poder disciplinar produz saberes que
estrategicamente vão servir de mecanismos para moldar o comportamento dos indivíduos. Desse
modo, extrai-se dos indivíduos um saber, um conhecimento sobre aqueles que já estão submetidos e
controlados por diferentes poderes. De acordo com Foucault (2005), o poder não existe, mas sim
práticas ou relações de poder que se estabelecem na sociedade e emanam dos campos de saber,
desse modo, não há poder, sem saber. A psicologia, a pedagogia, a assistência social, a medicina,
dentre outras disciplinas, acabam por se constituírem em campos de poder, nos quais se exercem a
partir do conhecimento adquirido no campo do saber científico. Para Foucault (2005) o poder
produz saber e não há relação de poder sem a constituição de um campo de saber.
A fim de atentar para as condições que propiciaram a elaboração do relatório técnico conclusivo
encaminhado para o judiciário, tendo em vista o pedido de extinção da medida de internação, foi
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 315
possível verificar em todos os casos que o relatório conclusivo prima pela total adaptação do indivíduo
ao interior da Unidade de internação. De acordo com os prontuários, a partir do momento em que
os jovens em questões passaram a “apresentar maior vinculação com a equipe de referência, a
demonstrar maior assimilação de normas, aceitação e respeito de figuras de autoridade, vinculação
com o processo de escolarização, além de metas pessoais no PIA, que podem variar desde o controle
a ansiedade, a assimilação de regras e normas, a evolução no processo educacional”, passam a ser
considerados aptos pela equipe técnica a “reinserção social”.
Foucault, em Vigiar e Punir (2005) analisa as transformações das práticas penais que culminaram no
surgimento das prisões, que se sustentam até os dias atuais. No século XVIII, as punições davam-se
através dos suplícios, que tinham por objetivo a marcação das vítimas e a manifestação do poder que
pune, dando ao soberano a decisão do poder de morte (FOUCAULT, 1999). Segundo Foucault,
desde a época clássica, tem-se a concepção que o corpo está diretamente relacionado a um campo
político, em que as relações de poder têm alcance imediato sobre ele, elas o marcam, o dirigem,
obrigam-lhes sinais, o tornando dócil, ágil e disciplinado. Cria-se assim uma tecnologia política do
corpo, que através de disposições, manobras, técnicas e táticas, investem poder sob esse. Desse
modo, as disciplinas tornaram-se no decorrer dos séculos XVII e XVIII fórmulas gerais de dominação,
estabelecendo sob o corpo um elo coercitivo de uma aptidão aumentada e de uma dominação
acentuada, fazendo emergir a sociedade disciplinar.
No fim do século XVIII e princípio do século XIX, dá-se o início de uma nova forma de punir, o
surgimento das prisões que através de um trabalho preciso sobre o corpo do condenado, constituise em um aparelho para transformar os indivíduos. Desse modo, pode-se observar através dos
relatórios conclusivos, cujo objetivo é extinguir a medida socioeducativa de privação de liberdade,
que a partir do momento em que o individuo se adapta, tem o corpo moldado, adaptado, submisso,
esse é julgado apto a ser posto em liberdade. De acordo com Foucault (2005), o corpo se torna útil
se ao mesmo tempo é submisso e produtivo, tornando-se alvo dos mecanismos de poder, oferecendose a assim a novas formas de saber.
Ao estudar a Fundação CASA, alguns autores corroboram as análises de Foucault (1988). Lemes e
Santos (2011) observam que o enfoque socioeducativo não se sobrepôs ao correcional-repressivo,
assistencialista, mas que coexistem e se justapõem. Desse modo, o atendimento ainda se caracteriza
pela punição e por concepções patologizantes acerca da adolescência e do ato infracional, tornando
difícil o alcance de resultados positivos esperados pelas medidas.
Nery (2006) e Teixeira (2009) afirmam que, por intermédio da leitura do projeto pedagógico da
Fundação CASA, é possível apontar que a instituição pautada em um discurso científico voltado
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 316
para uma terapêutica sócio-educacional nas prerrogativas consagradas em torno dos direitos das
crianças e dos adolescentes: o direito à educação, à profissionalização, ao lazer, ao esporte, à cultura
e à saúde compõe de maneira perversa as justificativas para a inclusão dos adolescentes na Fundação
CASA.
Conclusões
A partir da análise dos prontuários que trazem dados que vão desde a apreensão, ao julgamento e a
medida de internação, o presente trabalho traz como principais considerações que, apesar do sistema
de garantias de direitos presentes no ECA, a prática judiciária não se embasa nas normativas, sendo
possível constatar que a medida de internação é sistematicamente imposta com baixa fundamentação
legal e em alguns casos sem a devida consideração dos requisitos exigidos pelo ECA. A partir da
observância dos mecanismos do Sistema de Justiça Especializado Juvenil, foi possível constatar que
é necessária uma maior vigilância por parte dos órgãos competentes a fim de se extinguir práticas
discricionárias por parte de agentes da lei. Algumas questões podem vir a ser minimizadas a partir de
um possível aperfeiçoamento do instrumento legal, assim como aponta Minahim (2010), Nicodemos
(2000) e Machado (2000).
Chama a atenção também a ineficácia da defensoria pública a fim de questionar as decisões do
judiciário e recorrer das medidas de internação sem a devida fundamentação legal. A defensoria não
recorreu em nenhum dos casos analisados, nem realizou pedidos de habeas corpus para nenhuma
internação provisória. O único caso em que a sentença é contestada a jovem é representada por um
advogado constituído e devido a morosidade do processo, quando deferido o pedido de liberdade, a
jovem já havia cumprido 8 meses de pena.
Lentas transferências de jovens de cadeias públicas para instituições especiais, exames de corpo de
delito realizados semanas após a apreensão, ausência de investigações de denúncias e a descredibilidade
dada por parte do judiciário aos depoimentos dados acerca do abuso de autoridade policial apontam
para um desrespeito a legislação vigente. A interpretação de medidas de caráter punitivo como
medidas de caráter protetivo e o não reconhecimento da efetividade das medidas em meio aberto,
revelam a crise de interpretação e de implementação do ECA. . O documento normativo sem dúvida
representa um grande avanço, no entanto muito deve ser feito no plano legal para superação da
ideologia da internação protetora e supridora de necessidades não atendidas pelo Estado.
Em relação à medida socioeducativa de internação, a partir dos prontuários elaborados por técnicos
da CASA, foi possível verificar a construção patológica do jovem autor de ato infracional e da
patologização do comportamento do indivíduo dentro das instituições privativas de liberdade, estando
apto a retornar a sociedade depois de introjetar as normas e os valores institucionais. Mesmo diante
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 317
do discurso de adequação aos dispositivos do ECA, das propostas de “ressocialização” e “reintegração
social”, os objetivos das instituições privativas de liberdade para adolescentes, continuam sendo
segregá-los por um determinado período de tempo, tentando introjetar valores e comportamentos
que vigoram do lado de fora dos muros, sem, contudo, propiciar condições concretas para que isso
ocorra.
O elevado número de Unidades socioeducativas de internação no estado de São Paulo, conjuntamente
com o elevado índice de internação aliado as estatísticas de homicídios e mortes violentas entre a
população jovem no Brasil, anualmente denunciados pelos Mapas da Violência, compõe o quadro
de controle biopolítico da população como forma de governo fazendo o corte entre o que se “faz
viver e deixa morrer”. De posse das estatísticas seria possível buscar um enfrentamento da violência
que atinge as camadas vulneráveis ou ainda recorrer do elevado índice de encarceramento juvenil no
estado de São Paulo e da ação discricionária dos agentes da justiça, no entanto a biopolítica servese da estatística e dos medimentos globais a fim de fortalecer a própria raça, eliminando aqueles que
para o Estado podem e devem ser eliminados, realizando assim o controle dos corpos.
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Paulo: Instituto Sangari, 2013. [disponível em http://www.institutosangari.org.br/mapadaviolencia].
NOTAS
1
As informações utilizadas pela elaborar os Mapas da Violência que são publicados anualmente partem do SIM
– Subsistema de Informação sobre a Mortalidade que a partir de 1979, o Ministério da Saúde passou a divulgar. As
declarações de óbito, padronizadas nacionalmente, fornecem dados relativos à idade, sexo, estado civil, profissão e
local de residência da vítima. Também fornecem o local da ocorrência da morte. Com relação à cor/raça/ etnia essa
informação passou a ser obrigatória somente a partir de 1996.
2
O Mapa da Violência classifica como não jovem todos aqueles que ainda não completaram 15 anos e aqueles com
mais de 24 anos.
3
A SDH/PR é responsável pela articulação interministerial e inter-setorial das políticas de promoção e proteção aos
Direitos Humanos no Brasil. Criada em 1997, dentro do Ministério da Justiça, foi alçada ao status de ministério em
2003. Em 2010, recebeu o atual nome, sendo anteriormente intitulada de Secretaria Especial dos Direitos Humanos.
4
A SNPDCA foi aprovada pelo Decreto n° 4.671, de 10 de abril de 2003. Suas atribuições são relativas às políticas
e diretrizes voltadas à promoção dos direitos das crianças e adolescentes.
5
Dados do Conselho Nacional de Justiça - Panorama Nacional. A Execução das medidas socioeducativas de internação
. Programa Justiça ao Jovem 2012. 6 Lei 12.549 de 12 de janeiro de 2012.
7
Todos os nomes são fictícios, a fim de preservar a identidade dos jovens apreendidos.
8
A audiência de apresentação é onde por disposição do artigo 186 do ECA, o adolescente é interrogado pela autoridade
judiciaria.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 319
9
Art. 174 do ECA - Comparecendo qualquer dos pais ou responsável, o adolescente será prontamente liberado pela
autoridade policial, sob termo de compromisso e responsabilidade de sua apresentação ao representante do Ministério
Público, no mesmo dia ou, sendo impossível, no primeiro dia útil imediato, exceto quando, pela gravidade do ato
infracional e sua repercussão social, deva o adolescente permanecer sob internação para garantia de sua segurança
pessoal ou manutenção da ordem pública
10
Em 13 de agosto de 2012, o STJ publica a súmula 492, que determina que o ato infracional análogo ao tráfico de
drogas por si só, não conduz obrigatoriamente a medida de internação e que esta deve acontecer somente quando a
venda das drogas ocorrer mediante violência ou ameaça, se o autor for reincidente ou tiver descumprido medidas
disciplinares anteriores, editada com o intuito de coibir a prática recorrente do judiciário que prima pela internação
nos casos de tráfico.
11
Regimento Interno da Fundação CASA, Portaria Normativa N° 136/2007, Artigo 23, define que “[...] o adolescente,
quando ingresso na unidade, deverá ser cientificado das normas deste Regimento interno e as demais normas desta
unidade e ficará sujeito à: I – revista pessoal e de seus objetos; II - avaliação pela equipe multidisciplinar; III –
higienização corpórea; IV - vestuário padronizado; V – identificação, inclusive fotográfica e datiloscópica; VI –
entrega dos objetos e valores, cuja posse não é permitida dentro das unidades, mediante inventário e recibo [...].”.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 320
A Rodovia Washington Luís e as mudanças no espaço de Duque de Caxias
Artur Costa Lopes
Pós graduando em história do Brasil pela UCP. Formado em licenciatura em música pela UFRJ,
licenciatura em história pela UNIGRANRIO. Professor da rede estadual e municipal do Rio de
Janeiro. Email: [email protected].
RESUMO
Este trabalho visa apresentar algumas transformações surgidas com a construção da Rodovia Washington
Luís (trecho da BR 040), que corta grande parte de bairros de Duque de Caxias, bem como a interação da
população do entorno, com essas mudanças.
Através da análise de reportagens de jornais do ano de 1950 (inauguração da rodovia), baseado nos escritos
de Henri Lefebvre, junto com entrevistas de moradores locais, estão sendo estudados o espaço social e físico
dessa região, bem como a mesma está atualmente.
Palavras-chave: Rodovia Washington Luiz; mídia; espaço; sociologia.
INTRODUÇÃO
Como pode uma via de acesso da importância da rodovia Washington Luiz não possuir um estudo
aprofundado revelando sua trajetória e relevância para o Rio de Janeiro?
O referido trabalho foi realizado a partir de inquietações pessoais a respeito de se expandir estudos
relacionados à Baixada Fluminense no que diz respeito estradas no século XX. Tendo lido e comentado
sobre alguns artigos a respeito da Estrada do Comércio e dos Caminhos do Ouro, perguntei-me
sobre o porquê de não haver nada escrito sobre essa rodovia que se apresenta, estrategicamente –
no sentido de estar localizada numa área altamente industrializada e com uma movimentação
populacional de grande porte.
Como a inauguração da Rodovia Washington Luiz perpassa o período de vigência do Estado Novo,
há uma mudança maior na mentalidade da população. Essa mudança ocorre em várias vertentes,
pois, de qualquer maneira, modificando-se o tipo de governo (não-democrático) muda-se também o
ideário do povo. Contudo, sempre com a influência da mídia, que possuía em meados do século XX,
o rádio e os jornais (periódicos) como suas principais vias de comunicação direta com a população.
Portanto, essa rota faz parte da vida diária de milhares de pessoas, por isso, a relevância principal
dessa pesquisa diz respeito ao retorno que essa discussão pode trazer, principalmente para os
moradores, tanto no sentido de relações de pertencimento e de memória quanto no que podem
contribuir para uma ampliação da noção de como esse espaço foi e está sendo ocupado.
O referencial teórico principal dessa pesquisa se baseia nos escritos de Henri Lefebvre, para discutir
o conceito de espaço e a hipótese da urbanização completa da sociedade substituindo o campo.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 321
Dessa forma, desenvolver as questões: quem produz e para quem? O que é produzir? Como e por
que produzir?
O objetivo do estudo, ainda em andamento, é explorar um tema, que contém pouquíssimo material
disponível para pesquisa, por isso é tão desconhecido da maioria da população caxiense. Sendo
assim, explorar a questão de como foi transmitida, através da mídia impressa, a notícia da inauguração
para a população tal como essas transformações no espaço foram analisadas por moradores do
entorno.
Sua metodologia se baseia na análise do material produzido pela mídia na época da inauguração.
Entretanto, para haver um contraponto às noticias desses diferentes meios de comunicação, estão
sendo realizadas entrevistas com moradores mais antigos que ainda moram em bairros situados nas
margens da rodovia. Para tal utilizamos a história oral retratando experiências vividas por pessoas
que vivenciaram o mesmo momento, porém, possuíam outras visões.
BREVE HISTÓRICO DA RODOVIA
A cidade de Duque de Caxias, mesmo antes de sua emancipação, em 1943, recebe uma leva de
emigrantes, em sua maioria nordestinos, que começam a aumentar demografia da cidade, dessa
forma, a necessidade de meios de transporte de massa se inicia, visto que a substituição do trem
pelos automóveis estava sendo mais intensa, devido, principalmente a chegada de produtos
importados, que tiveram grande impulso com JK e, posteriormente, com os presidentes militares na
década de 70 (GIANBIAGI; VILLELA, 2005).
Nesse contexto nasce uma variante (uma espécie de desvio por um caminho mais reto e largo) da
estrada Rio Petrópolis, essa última que já era conhecida dos moradores da região desde 1928,
quando foi inaugurada pelo então presidente Washington Luís, que tinha como lema principal:
“Governar é abrir estradas” (DEBES, 2001). Entretanto, os anos 40 e 50 trouxeram um maior
dinamismo para as estradas brasileiras, devido ao incentivo dado ao petróleo e ao caráter nacionalista
e centralizador de ligar as cidades do Brasil por Getúlio Vargas, tendo continuidade nos governos
seguintes (GOMES, 1988). Essa variante acaba se tornando o principal meio de ligação entre a
Avenida Brasil e a serra de Petrópolis, além da Rio-Teresópolis, até a década de 90 quando surgem
outros entroncamentos rodoviários como a Rodovia Presidente João Goulart (linha Vermelha).
Um resquício que ainda temos do nome “variante” é a linha de ônibus “periquitos x variante” que
nada mais é do que um coletivo que passava por essa rota, assim como muitos outros que estavam
surgindo, principalmente nos anos posteriores a década de 60, que levavam as pessoas do centro a
localidades periféricas que estavam começando a ser loteadas.
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Porém, essa rodovia, apesar de ser criada com o principal intuito de desviar um caminho e encurtar
o tempo de viajem da capital até a serra, acabou trazendo uma movimentação bastante considerável
para a economia de Duque de Caxias, pois, às suas margens instalaram-se empresas que hoje podem
ser consideradas o principal motor para a economia da Baixada Fluminense.
Dentre elas pode-se citar a REDUC (com diversas unidades ligadas a derivados de petróleo e
produtos químicos), fundada ainda na década de 60 e, posteriormente, o Polo gás- químico. Além
dessas, se instaurou um polo moveleiro, sem contar com os feirões de malhas, transportadoras, o
parque gráfico do jornal O Globo, o Caxias Shopping e três casas de shows de médio porte que
mostraram uma nova visibilidade à rodovia e seu entorno. Contudo, esse “desenvolvimento” também
trouxe consequências prejudiciais para a população do entorno, principalmente no que diz respeito
à questão ambiental, onde não se pode deixar de citar o aterro sanitário de Gramacho. Esse, que foi
desativado no ano de 2012, estava situado entre a baía de Guanabara e a rodovia, fato que facilitou
durante muito tempo para que a cidade recebesse o lixo de quase toda a baixada fluminense e do
município do RJ (SOUZA, 2002).
A MODIFICAÇÃO DO ESPAÇO URBANO
Segundo Febvre existem inúmeros conceitos para a palavra espaço, onde se podem destacar os
espaços físico, mental e social (LEFEBVRE, 2006), portanto, pode ser entendido de várias maneiras,
dependendo do ponto de vista que for analisado. No caso desse trabalho, será recorrente o discurso
de que a produção do espaço não implica numa leitura ortodoxa da produção-circulação-consumo,
ou mesmo da espacialização do valor. O conceito possui um sentido histórico e sócio-cultural por
conter uma dimensão temporal, subsumindo a historicidade do conceito de trabalho e uma dimensão
espacial definida no momento da objetivação do trabalho concreto e do trabalho abstrato (GODOY,
2008).
A partir do estudo de uma rodovia e suas transformações no entorno, esse conceito de produção do
espaço é bastante pertinente, pois destaca a intercessão entre o trabalho concreto e o abstrato, ou
seja, a produção de produtos se torna impessoal enquanto a produção de obras não se compreende
se ela não depende de sujeitos (FEBVERE, 2006).
Portanto, o espaço será aqui entendido, não apenas do ponto de vista puramente geográfico, mas
histórico, cultural e sociológico, visto que a metodologia de análise desse trabalho prioriza abordar
um contexto geral, valorizando o espaço físico e social, mesmo se tratando de um recorte micro.
Pois, de acordo com Hall (1997), a mudança de pensamento do sujeito moderno para o pós-moderno
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 323
começa a destruir as barreiras das classes sociais, no que diz respeito ao sistema de informações,
contudo, a recepção das mesmas, não possui uma contra resposta dos públicos diferentes.
Dessa maneira, o papel do homem na construção do espaço é fundamental, porém, não apenas na
construção, mas na re-construção (transformações). Entretanto, os meios de comunicação (destacando
os da década de 50 de mídia impressa) não deram essa valorização, enaltecendo outros aspectos
como símbolos, grandes personagens e termos puramente técnicos, o que Febvre chama de espaços
matemáticos (FEBVRE, 2006).
Outra questão debatida sobre as décadas de 40 e 50 diz respeito ao conceito de modernidade, pois,
com o fim da Segunda Guerra1, começou a haver um novo tipo de pensamento sobre esse conceito.
Intelectuais do Instituto Superior de Estudos Brasileiros- ISEB- por exemplo, planejam um novo
tipo de projeto desenvolvimentista para o Brasil, onde o industrialismo, o ensino tecnicista, a abertura
gradual para o mercado externo e o rodoviarismo ganhariam um lugar de destaque nos planos do
governo (HOBSBAWM , 2002. Pg259). Sendo que esse último fator se apresenta com bastante
intensidade no Brasil e em muitos países considerados “subdesenvolvidos” por conta, principalmente,
do incentivo a utilização de derivados do petróleo como combustíveis para os novos automóveis
caminhões e ônibus que começavam a fazer parte da rotina dessas sociedades (HOBSBAWM ,
2002. Pg259). Com relação aos projetos rodoviários, observamos uma espécie de elo com o governo
Washington Luiz, pois, apesar de no governo Vargas, terem desenvolvido inúmeras estradas de
rodagem, o impulso foi muito maior nos governos que o precederam, como o de Dutra e,
principalmente, os de Juscelino e dos militares a partir de 1970.
Um exemplo concreto desse incentivo fiscal ao rodoviarismo como elemento de modernidade foi
a instalação da empresa alemã Volkswagen, que construiu fábricas em diversos países da África e
América, nos anos 1960, completando um processo transnacional de manufatura em que vivia o
mundo ocidental em tempos de Guerra Fria (HOBSBAWM, 2002).
A INAUGURAÇÃO E O PAPEL DA MÍDIA
As fontes utilizadas para a inauguração da rodovia são oriundas de periódicos da década citada,
como Jornal do Brasil, A noite, Correio da Manhã e Gazeta de notícias, além da revista do Ministério
dos transportes intitulada Rodovia, que apresentou bastantes detalhes técnicos sobre o tema.
Na década de 1940, grande parte dos acontecimentos importantes no Brasil tinham como pano de
fundo o Estado Novo, assim como sua posterior decadência. Portanto, as notícias aqui relatadas
devem ser observadas de maneira cuidadosa, visto que havia uma forte censura nos meios de
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 324
comunicação independentes, com uma particularidade na revista Rodovia que é fruto do próprio
governo. Esta representa bastante os interesses do Estado Novo, pois é parte do projeto de Vargas.
Mesmo o período que o período analisado seja a década de 50 a revista ainda possuía essas
características e os jornais, pelo que foi analisado seguiram a mesma linha de pensamento, por isso,
em seus escritos, sempre aparece uma forma de enaltecer a figura do “líder do povo”, mesmo que de
forma implícita2.
Precisamente as 9 horas de 6 de janeiro corrente, o general Eurico Gaspar Dutra,
Presidente da República acompanhado pelo ministro José Pereira Lira e Sr. Carlos
Alberto de Aguiar Moreira chegou a ponte sôbre o rio Meriti, interceptada pela fita
simbólica auriverde e antes da qual se encontrava o monólito com a placa alusiva
à inauguração da variante Rio-Petrópolis (Revista Rodovia. Dezembro. 1950, p.
7)
Um dos objetivos da construção dessa nova via de acesso era de tornar mais rápido e curto o trajeto
da então capital da república para Petrópolis, ou, conseqüentemente, para a região de Minas Gerais.
Porém, a intenção do governo de demonstrar sua “magnitude e grandiosidade” para com as obras
públicas, ficou bem clara nos escritos da revista. Por isso ela não deixa de apresentar que a Nova
Rio-Petrópolis possuía uma estrutura totalmente moderna para a época, se relacionarmos com outras
Estradas de Rodagem Brasileiras dos anos 50, pois, no mesmo ano da inauguração dessa rodovia,
outras também surgiram com as mesmas características, onde a mais marcante (ainda desse ano) é a
rodovia Presidente Dutra, que surge em 15 de julho com o trecho inicial de Parada de Lucas no
distrito Federal a Garganta de Viúva da Graça no estado do Rio de Janeiro, compondo, então um
trecho de 46 km, pavimentados e prontos para a utilização (Revista Rodovia Junho/ Julho 1950. p.
desconfigurada).
As extensões territoriais são explicitadas na revista Rodovia como vemos abaixo:
A variante da Rio-Petrópolis (trecho da BR 3, Rio-Belo Horizonte) encontra-se a
direita da Avenida Brasil, a 17 km da Praça Mauá, no Rio de Janeiro. Sua extensão
é de 13 km, entre a Avenida Brasil e Pilar, localidade onde alcança a antiga estrada.
Em relação ao percurso anterior,, que tem 17 km, o encurtamento geométrico é de
4 km, sendo o virtual consideravelmente maior (Revista Rodovia Janeiro. 1950, p.
7.).
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Por conta, principalmente, da velocidade e trânsito menos intenso, essa estrada foi suprimindo a
antiga Rio-Petrópolis. Apesar de ser uma rota interestadual, ela beneficiou demais os moradores de
Duque de Caxias que habitavam regiões periféricas e bairros que começavam a ser loteados e,
portanto, começavam a causar um inchaço na atual Presidente Kennedy.
O jornal correio da manhã destacou, em sua segunda página, a seguinte notícia:
Pelo presidente da República será Hoje às 9 horas inaugurada a variante da estrada
Rio Petrópolis, que partindo da Avenida Brasil, vai até Pilar, no Estado do Rio,
numa extensão de 13 quilômetros, encurtando o caminho para Petrópolis de quatro
quilômetros. A nova variante evitará a passagem por Caxias, sendo grande o seu
afastamento dessa cidade fluminense, onde de agora em diante o tráfego ficará
muito desafogado, e também num trecho de 17 km de estrada velha para Petrópolis,
pois só no fim desse trecho é que vai ter a nova variante (Correio da Manhã, 6 de
Janeiro de 1950 p. 2).
A inauguração Variante da Rio-Petrópolis foi um acontecimento importante a nível estadual e nacional,
pois, fazia parte de uma transformação e renovação, assim como ocorrido em outros locais do país
no que diz respeito à modernidade de construção de estradas de rodagem. Também por estar presente
no então Estado da Guanabara ao lado da capital federal, pois vale lembrar que Brasília só se
constitui como tal nos anos 60.
Por isso sua inauguração foi tão pomposa, tendo, inclusive, a participação do Presidente da República
e de outras figuras importantes da política nacional. Todavia, assim como a transferência da capital
para o Brasil traria sérios rombos nos cofres públicos essa, como outras rodovias criadas na época,
não foram diferentes, como é visto nos escritos abaixo:
Após o hino nacional, o General-Presidente Eurico Dutra descobriu a placa
comemorativa e, descerrando o laço que detinha o tráfego na ponte sobre o rio
Meriti, entregou ao uso público a variante da Rio-Petrópolis, com 13 km de extensão,
cujo custo se elevou a cerca de 60 milhões de cruzeiros (Revista Rodovia dezembro,
1950, número 119, p. 7).
Essa rodovia surgiu no período vigente de Eurico Gaspar Dutra, como mostra as notas dos periódicos.
Esse governo foi caracterizado por uma redução da intervenção do Estado na economia, o
aperfeiçoamento da assistência estatal nos setores de saúde, alimentação, transporte e energia, a
adoção de uma política econômica liberalizante, de forma a facilitar o acúmulo de capital às custas
de baixos salários e a expansão das empresas estrangeiras” (BASTOS, 2001). Essa “oposição”
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 326
ideológica e prática ao Estado Novo de Vargas havia sido adequada à burguesia para uma acumulação
primitiva de capital. Depois disso, já fortalecida, o Estado tornou-se um obstáculo, e a burguesia
passou a querer participar mais de perto nas decisões governamentais (BASTOS, 2001).
Portanto, Abriram-se as portas da economia brasileira a inúmeras importações norte-americana sendo,
conseqüentemente, a moeda de então, o Cruzeiro, desvalorizada, para tentar evitar o crescimento
excessivo das importações. Nesse contexto, a nova Rio-Petrópolis trouxe para a cidade de Duque
de Caxias uma maior visibilidade, que já podia ser observada com a implementação da antiga RioPetrópolis, porém em um grau muito menor. Entretanto, como afirma Febvre, o capitalismo conseguiu
atenuar (sem resolver) durante um século as suas contradições internas, porém, como o mesmo
autor indaga, qual o preço disso? Não há números que exprimam. Por que meios? Isso, sabemo-lo
nós: ocupando o espaço, produzindo um espaço (FEBVRE, 1973).
Dessa forma, a população ainda “paga” o preço de uma ocupação do espaço planejada apenas por
um lado da sociedade, que nesse caso era uma elite política e industrial que observava, nessa área
uma grande alternativa de alojar indústrias e estender bairros através da venda de loteamentos. Fato
que resultou em verdadeiros crimes ambientais e contra a saúde pública, pois, numa parte dessa
rodovia existem indústrias altamente tóxicas que provocam danos lentos, porém significativamente
cruéis, à população do entorno (SOUZA, 2002).
A gazeta de notícias de 7 de janeiro foi o jornal que dedicou mais páginas ao assunto. Já na capa ele
destaca com a chamada “Inaugurada a variante Rio-Petrópolis” e segue com um subtítulo dizendo
que “Trará economia de percurso entre a capital federal e a cidade serrana”. Essas duas frases
resumem muito bem a intenção do jornal em retratar de forma positiva a nova rodovia, principalmente
no que diz respeito à redução do tempo entre os moradores da antiga capital federal (RJ) e a cidade
imperial. O periódico ainda discorre sobre os dados técnicos e inovadores da variante dando ênfase
ao dezafogamento do trânsito que, como diz o jornal, estava pesadíssimo, pois, servia de acesso à
Petrópolis, a atual estrada de Teresópolis, à União Indústria, à Rio-Bahia em futuro
próximo, à nova rodovia Rio-Belo Horizonte, à rodovia Niterói-Campos-VitóriaFeira de Santana, e à nova Teresópolis-Friburgo que deverá ser construída.(Gazeta
de notícias.1950. 7 de janeiro. Pg. 1)
O periódico ainda mostra os gastos empreendidos pela construção da rodovia, entretanto, contrapõe,
apresentando os benefícios econômicos que trarão para o motorista nessa nova rota.
O custo da variante Rio-Petrópolis atingiu cerca de 60 milhões de cruzeiros (...) a
coletividade será beneficiada com uma economia, únicamente em combustível, de
cerca de 4 milhões de cruzeiros por ano, resultante do encurtamento de 4 km sobre
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 327
o ântigo percurso, sem considerar a melhoria das condições técnicas. A economia
em tempo é estimada em 350.000 horas anuais. (Gazeta de notícias. 1950. 7 de
janeiro. Pg.14)
A reportagem do jornal A Noite de 7 de janeiro de 1950 assim como o correio da manhã (pois esse
segundo também noticiou essas palavras) engloba a inauguração dessa rodovia a outros feitos do
governo no resto do brasil, dando ênfase para uma rota muito utilizada atualmente, que é a RioBahia.
A inauguração da nova variante da Rio-Petrópolis não mostra apenas o interesse
do governo pela abertura de novas vias de comunicação, como exige o teor de uma
política rodoviária das mais adiantadas. Mas deve significar que não se restringe
ao Rio e arredores o desejo de abrir estradas. No note e no centro-sul a dinâmica
rodoviária está em plena ebulição. A Rio-Bahia, ainda agora percorrida de automóvel
pelo Sr. Juraci Magalhães, que viajou para Salvador em poucos dias, e também
batida, de Recife ao Rio em pouco mais de 48 horas, por um comerciante de
Pernambuco. A estrada General Dutra, que unirá o Rio a São Paulo em 8 horas; a
ligação com Mato grosso a cargo de batalhões do exército; as estradas que no
norte ligam vários estados; a trans-brasiliana que tornará possível, dentro de algum
tempo a viajem Belém-Rio. Tudo isso está em plena execução e algumas já
concluídas numa síntese de atividades administrativas nesse setor (A Noite. 1950.
7 de janeiro. Pg 4).
A manipulação feita pela mídia foi bastante eficaz em favor do governo, que mesmo se apresentando
democrático, poderia possuir forte influência sobre os meios de comunicação, tendo em vista o
cunho das reportagens, ou, de acordo com outra análise, encarou o fato como mera formalidade
sem querer destacar alguma crítica ao acontecimento.
O jornal do Brasil se antecipa ao fato, realizando uma entrevista com o presidente do D.N.E.R. –
Saturnino Braga – no dia 6 de Janeiro do mesmo ano (dia da inauguração). Nessa reportagem,
Saturnino destaca as melhorias realizadas pelo governo, no que diz respeito às novas malhas
rodoviárias construídas no Brasil, ligando o país de Norte a Sul (Jornal do Brasil, 6 de janeiro de
1950), como visto na reportagem acima do jornal A Noite .
Em suma, os periódicos não apresentaram críticas negativas a construção da rodovia, pelo contrário,
enalteceram bastante a obra e deram bastante significado a ela, fato que, segundo a visão marxista
de Febvre, reforça a diferença de classes e a questão do operário e dos moradores do entorno3 (de
extrema importância) e que, nesse caso não foi valorizada.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 328
Por conta disso esse trabalho visa, em sua fase posterior, apresentar outras visões, (a dos moradores
do entorno), para não se restringir a uma observação elitizada sobre o assunto e para apresentar
questões do cotidiano local, tal como as relações de pertencimento dos moradores com seu entorno
(GINZBURG, 1987). Além disso, as relações espaciais são geradas logicamente, mas tornam-se
dialeticizadas através da atividade humana no espaço e sobre ele (SMITH, 1998). Sendo assim, esse
espaço de dialética e de conflito que produz a reprodução, introduzindo nele suas múltiplas
contradições (SMITH, 1988).
Portanto, de acordo com essa linha de pensamento, não há como analisar um espaço por si só, é
necessário um contexto mais amplo, mesmo que seja local, mas como essa outra fase já foi iniciada,
através da entrevista de Elza Ferreira Portella, que será chamada de Senhora Elza no texto.
De acordo com a Senhora Elza, (moradora do entorno no antes da construção da rodovia) antes
mesmo da inauguração da rodovia já existia um tráfego considerável na pista, essa que era composta
– pré-variante Rio-Petrópolis - apenas pela pista de descida4. Ou seja, se compararmos aos dias de
hoje, teríamos antes dos anos 50, no local da nova Rio-Petrópolis, apenas uma via de mão dupla que
ligava Petrópolis a Avenida Brasil.
Nessa estrada trafegavam tipos diferentes de meios de transporte. Como se tratava de um período
de transição política que mudaria os rumos do país (nos referimos a maior abertura ao capital
externo feito por governos posteriores a Getúlio Vargas), se via nesse local um misto entre lotações5,
carros de tração animal (carroças), gasogênios, eqüinos (muito comuns em Caxias até finais dos
anos 50), automóveis, sem contar com a população que trafegava nas margens da rodovia
caminhando.
No relato da Senhora Elza observa-se a dificuldade de conseguir se locomover nessa época.
Eu estudava no Rio, eu saía de casa 3 horas da manhã pra estudar no Rocha, na
linha da Central, é ali o Méier (..) eu ia de trem até São Francisco Xavier, lá em
soltava em triagem, pegava o bonde e ia pra escola (...) e pra vir pra casa eu
pegava o bonde até o Méier, pegava o ônibus do Méier até a Penha, da Penha
pegava o ônibus até Caxias, de Caxias eu ia a pé até a minha casa (Informação
verbal)6.
Outro fato comum que se via na rodovia Washington Luiz, mesmo antes de sua inauguração (Segundo
Dona Elza), era a mendicância que margeava sua pista. Como Duque de Caxias sempre teve uma
desigualdade social de larga escala, era comum haver pedintes em vários pontos da cidade. De
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 329
acordo com Dona Elza, via-se constantemente na beira da rodovia, em diferentes alturas, crianças
pedindo.
Ao redor dela [da Variante Rio-Petrópolis] era pobreza (...) naquela época as
crianças ficavam beirando aquela Washington Luiz (...) muitos motoristas jogavam
alguma coisa pela janela, nem chegavam a parar (...) você via muita pobreza,
muita tristeza beirando aquela Washington Luiz (Informação verbal)7
Isso ocorria na rodovia pois, nela trafegavam inúmeras pessoas de diferentes classes sociais e,
consequentemente, os que possuíam carros do ano, com um status social elevado, visto que o
automóvel, naquela época, era um artigo de luxo. Portanto, o que ocorria era muito parecido com
o que hoje temos na BR 116 e na BR 101, na altura de Feira de Santana e Teixeira de Freitas, ou
mesmo em outras imediações, onde além da venda de mercadorias – muita das vezes peças indígenas,
frutas e derivados da mesma, como bananadas e goiabadas-, vê-se pessoas pedindo alimentos ou
algumas moedas para as que transitam de passagem nesses locais, fato que apenas reforça o abismo
social existente em diversas extremidades e épocas do território brasileiro, demonstrando assim
como esse país mesmo sendo grande em extensão territorial possui laços que o une, nesse caso a
pobreza e a riqueza convivendo lado a lado.
Esse fato, afirma os escritos a opção de Febvre para escolher uma abordagem de classes para
trabalhar a questão da produção do espaço. Ou seja, diante da pergunta inicial - para quem produzir
e quem produz – observa-se que a intervenção dos diferentes atores nesse contexto podem modificar
o cenário a ponto de servir de referencia para um depoimento que foi recolhido 50 anos após o
acontecido.
Portanto, o que se pode concluir, é um problema social que além de não ter sido resolvido, apenas
mudou seu eixo, saindo de uma região mais observada pela imprensa e aparecendo em localidades
onde o governo não possui uma assistência social que beneficie todos os moradores. Além disso, o
homem atua sobre a natureza para atender as suas necessidades imediatas, modificando a sua própria
relação com a natureza e com a sociedade. Entretanto, essas relações sociais não são uniformes
nem no tempo e muito menos no espaço, depende da realidade contextual. Enfim, o homem reproduz,
mas, também produz, neste aspecto, o espaço envolve as contradições e as particularidades do real,
influenciando os processos sociais subseqüentes. (GODOY, 2008)
Como já dito, um dos principais objetivos dessa obra rodoviária foi a questão do encurtamento do
tempo de trajeto, essa que em dados concretos podia ser avaliada, (para automóveis de época) em
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 330
15 minutos médios por veículos, ou seja, 10 para os carros e 20 para caminhões. E, como o Ministério
dos Transportes visa, assim como a maioria dos órgãos governamentais, obter um apoio popular a
partir de relatórios de censos, ele ainda divulgou que esses minutos poupados correspondiam
anualmente a 350.000 horas anuais em relação ao tráfego atual (Revista Rodovia, janeiro de 1950.
Pg. 2), apresentando ainda a economia realizada no combustível como nos relatos abaixo:
Utilizando unicamente a mesma relação, a economia em combustível, derivada do
encurtamento geométrico de 4 km, e desprezando o encurtamento virtual resultante
das muitas melhorias características técnicas, pode ser avaliado em 4.000.000,00
anuais (Revista Rodovia, janeiro 1950. Pg. 2)
Os acessos da nova via são os pontos que auxiliam que ela foi bastante benéfica para o melhoramento
do tráfego local, visto que abriu mais caminhos para os já existentes.
Vale lembrar que, antes da inauguração, já havia ali um caminho, inclusive utilizado por
moradores, como já visto nos relatos da Senhora Elza. Portanto, observamos que a variante foi
constituída a partir da duplicação de uma estrada existente, ou seja, o local onde foi construída nova
Rio-Petrópolis já era caminho para a passagem (em alguns trechos) de pessoas e mercadorias antes
mesmo de sua inauguração propriamente dita.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Atualmente a rodovia Washington Luís apresenta mudanças significativas desde sua inauguração
(62 anos atrás). Depois de sua privatização para a empresa Concer, que começou a valer em 1996,
ela foi bastante iluminada e o asfalto recebeu melhor tratamento, além das passarelas e canteiros de
cimento e suas pistas foram duplicadas, ou seja, ela possui quatro pistas centrais e duas pistas
laterais em diversos trechos, o que facilita o trânsito8. Porém, sem desafogá-lo totalmente,
principalmente pela manhã e ao final da tarde.
Portanto, o que se pode observar hoje é que apesar das rodovias exercerem um grande papel para o
dinamismo dos transportes ela não consegue sobreviver sozinha, por isso iniciativas como a de
intensificar outros meios como hidroviários e ferroviários podem ser consideradas bastante louváveis,
ainda mais com a quantidade de rios navegáveis que possuímos e com a malha ferroviária que foi
desativada, seja para o turismo, transporte de mercadorias ou de passageiros.
Duque de Caxias é uma cidade em constante transformação no que diz respeito à infra-estrutura e à
economia. No entanto, suas bases social e política mudaram apenas de personagens, mas progrediram
(em favor da população como um todo) a passos bastante largos, como é perceptível nos dias de
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 331
hoje. Portanto, como visto no período analisado e até os dias de hoje, observa-se o retrato atual da
cidade: condições econômicas faraônicas, porém, essas não são bem repartidas entre a sociedade.
Para concretizar essa afirmação existem vários exemplos, como os pólos industriais que temos em
diversas áreas da cidade, o faturamento mensal que geramos com o petróleo (principalmente com a
refinaria), os impostos que a cidade arrecada, devido a sua densidade demográfica ser bastante
intensa, e daí em diante.
Por fim, a relação do espaço com o habitante local, de acordo com o papel da mídia da época, é nula.
Com isso, observa-se uma análise jornalística superficial e pouco investigativa e social, limitando-se
à reescrever e interpretar de maneira pouco argumentativa os escritos da Revista Rodovia. Portanto,
a partir da análise dos jornais citados e do depoimento de Elza, vê-se que a rodovia foi uma melhoria
para a população, visto que além de diminuir o tempo de trajeto, intermunicipal, beneficiou o acesso
a regiões periféricas, valorizando-as, principalmente no que diz respeito à mobilidade urbana, porém,
essa foi se deteriorando no decorrer das décadas por conta do aumento populacional de Duque de
Caxias, que não teve um transporte público que suprisse a necessidade do deslocamento dessas
pessoas.
Será então que a produção desse espaço realmente serviu aos anseios da população em todas assuas
diferentes classes sociais? De que forma um novo trajeto, que trouxe consigo uma enorme especulação
imobiliária, devido à valorização de bairros no entorno, foi benéfico para a população que ali já se
encontrava e para os que foram se instalando?
REFERÊNCIAS
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(RJ) nas Décadas de 30, 40 e 50 do Século XX. Vassouras: USS, 2006Correio da Manhã, 6 de
Janeiro de 1950 p. 2.DEBES, Célio, “Washington Luís: segunda parte (1925-1930)”, Imesp, São
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GIAMBIAGI, F. ; VILLELA, A. et al. Economia Brasileira Contemporânea. Rio de Janeiro: Elsevier,
2005.
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
inquisição. São Paulo. Companhia das Letras 1987.
GODOY, Paulo Roberto Teixeira de. A produção do espaço: uma reaproximação conceitual da
perspectiva Lefebviriana. GEOUSP - Espaço e Tempo, São Paulo, Nº 23, 2008
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GOMES, Angela de Castro. A invenção do trabalhismo. Rio de Janeiro. IUPERJ. 1988
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A,1997.
HOBSBAWM, Eric J. Era Dos Extremos. Companhia das Letras. 2002. Pág 259.
LEFEBVRE, Henri. A produção do espaço. Trad. Doralice Barros Pereira e Sérgio Martins (do
original: La production de l’espace. 4e éd. Paris: Éditions Anthropos, 2000). Primeira versão : início
- fev.2006
______________. A Reprodução das Relações de Produção. Tradução: Antonio Ribeiro e M. do
Amaral. Porto (Portugal): Publicações Escorpião – Cadernos O Homem e a Sociedade, 1973.
SMITH, N. Desenvolvimento Desigual – natureza, capital e a produção do espaço. Tradução: Eduardo
de Almeida Navarro. Rio de Janeiro: Bertrand. Brasil, 1988.
SOUZA, Marlucia Santos de. Escavando o passado da cidade (História política da Cidade de Duque
de Caxias). Dissertação de Mestrado. Niterói: UFF, 2002. .
Periódicos
NOVO, acesso a Petrópolis. Correio da Manhã, 6 de Janeiro de 1950 p. 2.
INAUGURADA, a variante Rio-Petrópolis. Gazeta de notícias 7 de janeiro. Pg 1;
MELHORIA. Gazeta de notícias 7 de janeiro. Pg 14;
ESTRADAS, e ferrovias. A noite de 7 de janeiro de 1950. Pg 4
O ENGENHEIRO, Saturnino Braga. Jornal do Brasil, 6 de janeiro de 1950.
NOTAS
1 Vale lembrar que esse acontecimento culmina, no Brasil, com o término do período de governo de Getulio
Vargas.
2 Com o fim do Estado Novo a face da revista foi se modificando, acompanhando os sucessivos ministros dos
transportes de então, enalteceu uma linguagem culta e de maneira que engrandecesse o governo com suas obras
públicas.
3 Segundo a pesquisa realizada nenhum jornal, mesmo nos 10 dias seguintes apresentam a visão de algum
morador local sobre a rodovia.
4 Depoimento fornecido por Elza Ferreira Portela em 18 de agosto de 2008.
5 Havia em Caxias apenas dois tipos de coletivos que atuavam de maneira irregular. Esses, posteriormente, se
tornariam “as atuais empresas de transporte coletivo da região”. BRAZ. p. 36 – a primeira “linha” de lotações da
cidade pertencia ao Sr. José Cardoso Bessa e servia ao Parque Lafaiete. As mais poderosas empresas de transporte
coletivo União e Reginas, surgiram respectivamente, na linha Centro-Itatiaia (União) e como viação Periquitos
(Reginas), com apenas um veículo onde Odilon Pereira Teixeira, atual proprietário, trabalhava como cobrador, num
velho furgão dirigido pelo pai.
6 Depoimento fornecido por Elza Ferreira Portela em 18 de agosto de 2008.
7 Depoimento fornecido por Elza Ferreira Portela em 18 de agosto de 2008.
8 Disponível em: http://www.concer.com.br/portals/0/RelatorioAnual/2012/pdf/Relatorio%20Anual_Site.pdf
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O DIREITO AO TRABALHO NOS MARCOS DAS CONTRADIÇÕES URBANAS DA
CIDADE CAPITALISTA:
o caso do trabalho dos ambulantes dos trens do Rio de Janeiro
Raphael Magnus Silva Ortiz
Assistente Social graduado pela Faculdade de Serviço Social da UERJ
(Universidade do Estado do Rio de Janeiro).
Palavras-chave: Trabalho ambulante, Trabalho informal, Direito à cidade, Espoliação urbana,
Organização Coletiva.
Este artigo é resultado de uma parte da reflexão empreendida durante o processo de elaboração de
nosso trabalho de conclusão de curso, no qual nos propusemos à reflexão sobre o trabalho ambulante
nos trens do ramal de Santa Cruz, na cidade do Rio de Janeiro1.
Na pesquisa, que teve como objetivo principal traçar o perfil desses trabalhadores constatou-se uma
série de iniquidades que não só diziam respeito à condição precária do trabalho informal desses
sujeitos, mas que passavam por uma série de outras questões resultantes do processo excludente do
capital, em especial a partir da condição urbana na realidade periférica do capitalismo.
Além das questões concernentes ao trabalho, que colocam os trabalhadores ambulantes aparentemente
numa relação fora do capital2, esses mesmos sujeitos estão submetidos a um processo desigual de
acesso e de possibilidade limitada da construção do espaço urbano. Ou seja, sofrem as consequências
da espoliação urbana (Kowarick, 2000). Deste modo, a reprodução das desigualdades, funcionais
ao próprio processo social capitalista repercutem também na construção do espaço urbano. E o
sistema de transporte, espaço de trabalho no qual esses sujeitos estão imersos, é um instrumento
desses dramas sociais.
Deste modo, tais desigualdades, que têm sua origem no mundo do trabalho, não se resumem a elas.
A este fator somam-se uma série de outras dimensões da vida que fazem com que aumente a situação
de desigualdade.
A noção de espoliação está intimamente ligada à acumulação do capital e à expropriação do
trabalhador. No entanto, esta espoliação também decorre de um processo de lutas sociais entre
vários atores sociais pela conquista de suas demandas em relação ao “acesso à terra, habitação e
bens de consumo coletivo” (Kowarick, 2000, p. 23). Daí o papel estratégico do Estado, para o
aumento ou diminuição do “processo de especulação imobiliária e segregação social”. Os
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investimentos públicos ou a falta deles fazem aumentar ou diminuir a valorização da terra em
determinado espaço urbano.
Estes processos diferenciados de valorização do espaço aumentam o elemento contraditório da
espoliação urbana, na medida em que algumas zonas só podem ser ocupadas por segmentos
populacionais de maior poder aquisitivo. Nestas regiões são ricas as estruturas e equipamentos
públicos. Em contrapartida, as regiões menos valorizadas, são as que são ocupadas pelos seguimentos
mais pauperizados, mas que, no entanto, sofrem pela falta de estabelecimentos mais básicos, essenciais
à subsistência (idem, p.27 e 28).
Tais elementos desiguais da ocupação do espaço urbano se manifestam na vida dos atores abordados
nesta pesquisa, os trabalhadores ambulantes. É curioso notar neste sentido que quanto mais distante
do centro - em especial seguindo a direção à zona oeste da cidade do Rio, tomando o caminho dos
subúrbios, nos ramais do trem de Deodoro e Santa Cruz - mais a estratificação social e os elementos
que compõem a segregação social e a espoliação urbana se fazem presentes.
A despeito da rica história dos trens e de seu papel fundamental na formação social e econômica
brasileira nos séculos XIX e XX, houve uma paulatina substituição deste meio de transporte, pela
matriz rodoviária.
Pelo que pudemos apurar na pesquisa, tal fato se explica mais por uma opção econômica do que
uma mera substituição de tecnologia novecentista, pela modernidade do automóvel, própria do
século XX. Com o advento da indústria automobilística, com forte lobby norte americano, o Estado
brasileiro, no seu inicial processo de industrialização, na década de 1940, privilegiou a expansão da
malha rodoviária nacional em detrimento das ferrovias3 (RODRIGUEZ, 2004, p.9).
Tal processo de substituição, embora não explícito, deixou o sistema ferroviário “abandonado à sua
própria sorte”, por longos anos, o que explica em grande medida a sua atual degradação física. No
entanto, contraditoriamente, este processo massivo de deteriorização, foi em parte freado, a partir
da privatização de trechos de ferrovias, empreendidos pelos sucessivos governos neoliberais na
década de 1990, nas esferas federal e estaduais4. Tais concessões se deram especialmente nos trechos
de transporte de passageiros das regiões metropolitanas nacionais, entre as quais a do Rio de Janeiro.
No estado do Rio de Janeiro, no contexto das parcerias público-privado neoliberais, foi vencedora
na concorrência de concessão do transporte ferroviário a empresa SuperVia. No ano de 1998 obteve
a licença para a exploração dos serviços de transporte ferroviário por um período de 50 anos. No
entanto, o acordo de concessão não compreendeu todas as linhas operadas até então pela RFFSA
(Rede Ferroviária Federal S.A.) e pela Flumitrens (Companhia Estadual de Trens Urbanos). Ficaram
de fora os trechos com “pouco valor de retorno financeiro” e, deste modo, o trecho correspondente
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de responsabilidade da nova companhia compreendia os remanescentes urbanos de antigas
companhias: as linhas dos ramais de Deodoro, Santa Cruz e Japeri (da antiga EFCB – Estrada de
Ferro Central do Brasil); o ramal de Belford Roxo (da antiga Companhia Rio D’ Ouro) e o ramal de
Gramacho (da antiga Companhia Estrada de Ferro Lepoldina).
Por outro lado, no âmbito nacional, em 2007 o Governo do, então, Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva (Governo Lula) extinguiu a RFFSA, colocando praticamente um “ponto final” no ideário de
alargamento do sistema ferroviário no Brasil.
Esta realidade contraditória e segregadora do espaço urbano do Rio de Janeiro produz um transporte
pobre para os pobres, manifestado no constante processo de degradação dos trens urbanos do Rio
de Janeiro, lócus de trabalho dos ambulantes sobre trilhos.
O Trabalho ambulante como elemento integrante da sociabilidade nos trens
Nesse contexto de instrumentalidade do veículo ferroviário nas periferias urbanas é que gostaríamos
de tratar, mais especificamente, as condições de trabalho vivenciadas pelos trabalhadores ambulantes.
Particularmente o trabalho ambulante no espaço dos trens do ramal de Santa Cruz, no Rio de Janeiro.
Para um passageiro menos assíduo a experiência de andar no trem pode parecer um tanto quanto
exótica. A primeira impressão mais marcante é a situação degradante da maior parte das composições
e das estações. A superlotação também é um forte realce no retrato do paulatino processo de abandono.
No entanto, é necessário destacar que houve uma sensível melhora nos últimos três anos, em especial
com a reforma de algumas estações e principalmente com a compra de 34 novos trens chineses, que
começaram a operar, paulatinamente, no decorrer do ano de 2012.
Entretanto, não é demais lembrar que tais investimentos têm como foco principal os eventos que a
cidade vem sediando e continuará a sediar nos próximos anos: A Copa das Confederações (2013); A
Jornada Mundial da Juventude (2013), a Copa do Mundo de Futebol (2014) e, por fim, os Jogos
Olímpicos (2016).
Nesse sentido, mais do que uma melhoria para a população trabalhadora usuária cotidiana, tais
benefícios trazidos pelas reformas no sistema de transporte, incluindo o trem, visam primordialmente
à cobertura de tais eventos. No entanto, o discurso oficial costuma justificar o investimento em tais
ações como um “legado” para a cidade, portanto, para sua população.
Tais elementos são bastante elucidativos para evidenciar o modo como as classes dominantes, no
uso de sua influência hegemônica no âmbito do Estado, se apropriam do uso social de um meio de
transporte como o trem em favor de seus interesses econômicos. De modo que o benefício à classe
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subalterna é uma mera consequência, e não um objetivo principal dos negócios, e, via de regra, em
situação de precariedade.
O segundo elemento marcante é a face sofrida dos passageiros, evidenciando os anos de desgaste de
trabalho, que com certeza não é amenizada pelo desconforto da viagem. Não obstante a precariedade
do transporte, muitos dormem “embalados” pelo balançar das composições ao passar pelos velhos
dormentes5 da estrada de ferro.
Muitos desses passageiros, para além da jornada de trabalho normal, despendem em média, 3 horas
e meia de transporte até o centro da cidade, isso se contarmos somente transporte de trem6. Esses
fatores, com certeza, contribuem para a diminuição da qualidade de vida das classes populares
usuárias deste precário sistema de transporte. Se vivo estivesse, certamente o poeta Castro Alves
faria uma releitura de seu “navio negreiro”, que diferente de outrora, não balança sobre as águas do
Atlântico, mas sobre os trilhos dos subúrbios metropolitanos.
Durante a pesquisa tivemos a oportunidade de também experimentar na pele as péssimas condições
destes serviços, como: trens sujos, poucas lixeiras, janelas e portas frequentemente quebradas.
Observamos também a existência de sistemas de alto-falantes (essenciais para a comunicação do
maquinista com os passageiros e a sinalização do lado do respectivo desembarque) constantemente
inoperantes. A superlotação é uma realidade constante nos horários de maior pico de passageiros em
trânsito para o trabalho e para casa. Mas, observamos também as rotineiras avarias dos trens, em
decorrência de depreciação técnica ou falta de manutenção, causando com isso muitos transtornos
para os passageiros, especialmente nesses horários de pico de movimentação. Com certeza as viagens
nos trens urbanos do Rio de Janeiro são um misto de aventura e insegurança social.
Moisés e Martinez-Alier (1978) ao descreverem as revoltas populares ocorridas na década de 1970,
no Rio e em São Paulo, em plena ditadura militar, observaram o descontentamento das massas
suburbanas com essa realidade de péssimos serviços públicos de transporte coletivo, em especial os
trens, materializada nos constantes atrasos, acidentes, descarrilamentos e mortes.
O descontentamento em massa manifesto no fenômeno dos “quebra-quebras”, mas do que um fato
isolado de grupos era uma manifestação coletiva da insatisfação das classes subalternas que sofrem
cotidianamente as agruras destes serviços.
Deste modo, observam aqueles pesquisadores que eram pontuais e simbólicos os “alvos do
vandalismo”: o relógio, o quadro de horários dos trens, as agressões aos agentes da companhia
(representantes da empresa, do Estado), e finalmente os próprios trens avariados (1978, p.33-40).
Diante da incapacidade dos trabalhadores de representar-se e fazerem valer sua reclamação na cena
pública, o “quebra-quebra” aparece como única resposta aos constrangimentos diários na vida dos
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sujeitos que no trabalho, cotidianamente, têm que se desculpar: “patrão, hoje o trem atrasou” (idem,
p.27).
Hoje, estas revoltas mais generalizadas não vêm tendo a mesma expressão, mas o dia-dia do transporte
não é isento de descontentamentos Em um pequeno levantamento dos eventos, fizemos uma busca
na internet utilizando a sentença <Tumulto na SuperVia> da qual encontramos 396 mil registros.
Seguem duas reportagens que descrevem eventos mais recentes de “quebra-quebra”: http://
oglobo.globo.com/rio/atrasos-nos-trens-provocam-tumulto-na-estacao-da-mangueira-6144293.
Acesso em janeiro de 2013.
A despeito de algumas melhorias, a demora dos trens, os atrasos e as avarias dos mesmos ainda são
uma constante. Ao perguntar certo dia do trabalho de campo de pesquisa a um passageiro sobre o
que ele achava do sistema de trem ele disse: “Meu filho, aqui a gente vive como gado em direção ao
abate! Você já viu quando se abrem as portas do trem na estação da Central? É um passando por
cima do outro, disputando meia dúzia de bancos quebrados!”
Outros elementos de precariedade se somam a estes. A maior parte das estações não é provida de
banheiros públicos, o que agudiza a precariedade das longas horas despendidas nos deslocamentos
casa-trabalho.
No entanto, tal quadro precário ao qual é submetida à população acontece à revelia de uma lei
estadual sancionada em 2003 (Lei Nº 4131). Passados todos esses anos, somente em 2011 a SuperVia
começou a implantar os banheiros. Até o presente momento só foram instalados em 6 estações de
um total 98 (103 se contar as 5 do teleférico do Complexo do Alemão, também administrado pela
empresa).
O terceiro elemento característico, que imediatamente chama atenção nos trens é a atividade dos
trabalhadores ambulantes. Primeiramente pelo seu valor numérico, que a depender do horário forma
um verdadeiro “congestionamento” de vendedores no interior dos vagões, depois pelas estratégias
de venda que estes mesmos empreendem, muitas vezes à base do grito, muito semelhante a dos
feirantes de rua8.
Em sua maioria, esses trabalhadores são homens maduros, mas também encontramos mulheres e
jovens. Também, não raro ver a presença de crianças como ambulantes. Algumas vezes verificamos
que tais crianças são uma espécie de auxiliares nas vendas dos pais também ambulantes. Outras
vezes percebemos que o trabalho era realizado unicamente pela criança, sem a supervisão de familiares.
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Essa feição da pobreza é adensada pela mendicância que é uma prática corrente nos vagões. O apelo
emocional é bem marcante na viabilização dos potenciais passageiros colaboradores. É muito comum
ver mães com bebês ao colo, aos prantos pedindo dinheiro para compra do “leite da criança”. Há
também os apelos mais discretos, que utilizam pequenos cartões ou bilhetes distribuídos entre os
passageiros; pedidos silenciosos, mas não menos dramáticos.
No entanto, há também a mendicância que não se utiliza da ajuda infantil. Esta é feita mais
especificamente pelos idosos e deficientes. É possível ver idosas esmolando a fim de comprar o gás
ou o medicamento, deficiente físico (sem as pernas) arrastando-se pelo assoalho dos vagões em
troca de algumas moedas, e cegos batendo intermitentemente sua bengala no chão, quando não no
pé de alguém, conclamando a atenção dos passageiros: “Uma esmolinha para o cego, por favor!”
Ambulantes e mendicantes disputam a atenção dos passageiros. Todo esse universo de realidades
aparentemente concorrentes de trabalho precário e mendicância, na verdade são faces da experiência
comum de subalternidade social da qual também fazem parte os passageiros.
Entre os produtos vendidos por esses sujeitos pudemos constatar uma infinidade de itens, entre os
quais: utensílios em geral (de uso doméstico e pessoal): cortadores de unhas, tesouras, abridores de
lata e garrafa, esponjas, controles remotos universais, presilhas de cabelo, CDs e DVDs (geralmente
piratas), brinquedos, livretos infantis, lanternas pilhas entre outros. Contudo, a maior parte dos
ambulantes comercializa gêneros alimentícios, como: água, refrigerantes, sucos, cerveja, salgados,
biscoitos, doces, entre outros.
Esta multiplicidade de produtos é vendida pelos ambulantes dos trens com muita criatividade, a
ponto de poder causar inveja em qualquer profissional de marketing.
De fato é empreendida uma relação empática entre esses atores sociais, que não obstante o eventual
incômodo causado pelos ambulantes no decorrer dos deslocamentos urbanos, dividem o mesmo
espaço coletivo numa relação mutualista.
A estratégia de marketing ambulante no trem, a construção de uma “autoimagem empreendedora”
e a sociabilidade criada com os “passageiros patrões” é um fato bem marcante nos trens do Rio de
Janeiro. De modo que é impossível desconsiderar o trabalho ambulante na sociabilidade que atravessa
as idas e vindas dos trabalhadores urbanos pela cidade.
“No fio da navalha”: a insegurança do trabalho ambulante e a possibilidade de organização
política.
De maneira geral a atividade dos ambulantes os coloca numa situação limítrofe entre o legal e do
ilegal (TELLES, 2009). Isso não só por conta da origem dos produtos vendidos, embora muitos
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sejam “pirateados”, ou seja, são produzidos e comercializados ilegalmente. Mas, sobretudo, pela
ausência de autorização para exercer esta atividade em um espaço público e de uso coletivo.
De fato, segundo o decreto federal 1.832/1996, que regula a atividade ferroviária no Brasil,
especificamente no seu artigo 40: “É vedada a negociação ou comercialização de produtos e serviços
no interior dos trens, nas estações e instalações, exceto aqueles devidamente autorizados pela
Administração Ferroviária”.
Contrariando esta determinação, os trabalhadores ambulantes que atuam no interior dos trens
administrados pela SuperVia não possuem uma autorização formal para o exercício da atividade de
venda. A história, então, do trabalho ambulante no trem é entrecortada por conflitos com os vigilantes
e por perda de mercadorias, alargando a penosidade deste trabalho.
Neste sentido, o licenciamento da atividade é considerado o ponto forte do horizonte de melhorias
humanitárias na área. Isso tem tamanha expressão que motivou a articulação política dos trabalhadores
ambulantes, fazendo nascer, então, a ideia seminal de um sindicato.
Na etapa de estudo bibliográfico, a pesquisa tomou conhecimento dessa iniciativa prática. A obra de
Pires (2005) mencionava a existência de um Sindicato dos Ambulantes dos Trens da Central do
Brasil (SINDATREM). De imediato, definimos a inclusão dessa iniciativa no campo da nossa pesquisa
de campo visando problematizar essa atividade absolutamente fora das formalidades legais e que
almejava uma organização política legal.
Mas, o que nos chamou atenção foi a mobilização política. Pois o elemento que impulsiona a
organização da categoria de trabalhadores não é a legalização da atividade em si mesma – mesmo
porque este não era um desejo de todos (PIRES, 2005, p. 123)- mas sim a contenção da violência
empreendida pelos agentes de segurança da SuperVia, que arbitrariamente fazem apreensão das
mercadorias dos ambulantes.
Neste sentido a ideia inicial do coletivo de trabalhadores era a constituição de sindicato para a
categoria. A ideia tem origem na aproximação desses trabalhadores do sindicato dos ferroviários do
Rio de Janeiro e da a CUT (Central Única dos Trabalhadores).
Deste modo o SINDATREM (Sindicato dos ambulantes do trem) foi fundado no ano de 2000, mas
logo esta estratégia de organização política foi interrompida, pois o Ministério do Trabalho devolveu
a documentação da entidade por causa da não regulação da atividade ambulante na legislação
trabalhista. A partir daí, até o ano de 2005 a entidade funcionou como um “sindicato informal”.
Visando a continuidade da luta e diante do aferrecimento da repressão da concessionária aos
ambulantes a embrionária entidade sindical foi transformada em associação, a ASTRATERJ
(associação dos trabalhadores ambulantes dos trens do Rio de Janeiro). Com o suporte organizativo
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da CUT, continuou por meio de um diálogo contínuo com a SuperVia, a busca pela legalização da
atividade ambulante nos trens9.
Um dos instrumentos de luta utilizados, além das negociações com a concessionária, foi o jornal
informativo que era distribuído entre os ambulantes. Através dele a Associação atualizava a classe
trabalhadora ambulante sobre as negociações a respeito da legalização, formação política, oferta de
serviços a preços especiais para os ambulantes e orientações acerca do uso do espaço no interior dos
trens.
A respeito especificamente deste último item, cabe um maior esclarecimento, pois afim de quebrar
os argumentos impeditivos da Supervia10 constantemente eram divulgadas, nos informativos, as
chamadas “normas de conduta”, que serviam para a criação de um novo “ethos” profissional dos
ambulantes perante a concessionária, tais como: não jogar lixo na linha férrea; não travar as portas
do trem; não andar pendurado; não andar sem camisa; não trabalhar fumando ou embriagado; não
usar drogas; não falar palavrões; não praticar jogos de azar; não jogar lixo fora da lixeira; respeitar
os nossos amigos e clientes; ajudar a conservar o espaço de trabalho, o trem; não vender mercadorias
vencidas; procurar trabalhar com a nota fiscal.
Nos moldes de um decálogo, as normas de conduta revelam a construção de uma autoimagem da
atividade ambulante na disputa por espaço de atuação e pela legitimidade do trabalho. Demonstrando
também que se trata de uma disputa de significado cognitivo e moral sobre o trabalho ambulante.
Em uma das entrevistas que fizemos a um ferroviário que atuou nos ramais dos subúrbios cariocas,
da década de 1970 até a privatização da ferrovia, coletamos algumas informações que foram somadas
a outros dados já trazidos na entrevista com o presidente da ASTRATERJ. A principal delas é a
confirmação de que a restrição às atividades dos ambulantes no trem ocorria mesmo antes da
concessão, mas que foi agravada com esta. Ainda, segundo este ferroviário, haveria uma forte
tendência para o aumento da repressão ao trabalho ambulante, hoje, nos trens.
Um dado interessante trazido por ele foi à motivação do início das restrições às atividades dos
ambulantes nos trens. Segundo ele com a compra de novos trens para a Rede, na década de 1970, a
empresa (até então a RFFSA) começou a se modernizar, começando as represálias aos ambulantes:
“A Rede comprou um trem elétrico japonês, que era o ultimo tipo aqui no subúrbio e ele começou a
entrar em 1976 e sei que em 1977, eles colocaram no ramal de Santa Cruz” (H.S. 66 anos, ferroviário).
Segundo ele, o motivo da repressão era a sujeira causada pelos ambulantes (mesmo motivo alegado
pela SuperVia, atualmente).
Percebe-se através dessa fala que esta repressão vem sendo realizada desde longa data. Ela não
decorre somente da privatização da ferrovia, constituindo-se como um fenômeno histórico no trem
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e o grande ponto de embates e conflitos entre agentes públicos/privados e a organização política dos
ambulantes.
Todavia, os dados levantados informam que o licenciamento não se tornou uma realidade. Legalmente,
perante a concessionária, somente os serviços prestados pelos ambulantes cadastrados e ligados às
empresas são autorizados a desenvolverem o trabalho nos trens. No entanto, conforme o depoimento
coletado junto ao presidente da entidade representativa dos ambulantes vivencia-se, hoje, um período
de “trégua” por parte da SuperVia, e a abordagem e apreensão do material dos ambulantes soltos,
não ligados às empresas foi consideravelmente diminuída11.
Segundo este informante, esta diminuição da repressão deve-se muito à judicialização do conflito,
pois a própria Associação recomendava aos ambulantes, quando aconteciam as apreensões para
“colocarem no pau”, ou seja, processar judicialmente a SuperVia.
O argumento principal, que levou à vitória judicial de muitos ambulantes, por meio de ações individuais
ou coletivas, teve base no mesmo artigo 40, da já referida lei que regula o transporte ferroviário.
Pois, segundo eles, a lei fala de proibição, mas não autoriza a apreensão de mercadorias dos
ambulantes, muito menos o uso de violência contra os mesmos.
No entanto, ao mesmo tempo em que a SuperVia diminuiu a fiscalização diminuiu também a
participação política e de classe dos ambulantes, inclusive a “contribuição sindical” que servia para
a manutenção da sede da Associação e do boletim informativo. Segundo a própria fala do informante:
“Era uma coisa mínima: R$ 10,00, por mês para ajudar a manter a Associação e o pessoal não
continuou... quando a SuperVia afrouxou, correram” (J.G., ambulante, 25 anos no trem). Hoje a
Associação não tem mais sede, nem boletim informativo.
Interessante notar que o mesmo elemento que motivou o surgimento de uma organização coletiva,
ou seja, a repressão da atividade por parte da concessionária, foi o mesmo que colaborou para o seu
esfriamento, na medida que passou a ser menos frequente.
Conclusão
Neste artigo pudemos observar o quanto que o direito ao livre exercício do trabalho está intimamente
relacionado ao direito à cidade, de modo que as extorsões presentes no mundo do trabalho, não se
resumem a elas, pois as classes subalternas, compostas pela maioria da população trabalhadora, em
suas mais precárias condições, como os nossos trabalhadores ambulantes nos trens, também estão
submetidas a um contínuo processo de espoliação que se manifesta no contexto da cidade. Serviços
públicos de baixa qualidade, longas distâncias de viagem, ocupação do solo urbano nos recantos
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mais longínquos da zona urbana. Todos esses elementos formam um “caldo” de iniquidades que
evidenciam a latente diferenciação de classe no âmbito da sociabilidade burguesa contemporânea.
Bibliografia
KOWARICK, Lúcio. Escritos urbanos. São Paulo: Editora 34, 2000.
MOISÉS, J. A; e MARTINEZ-ALIER, V. A Revolta dos Suburbanos ou “patrão, o trem atrasou”.
In: Contradições Urbanas e Movimentos Sociais. MOISÉS, J. A. et al. Rio de Janeiro: CEDEC e
Paz e Terra, pp.13-43, 1978.
OLIVEIRA, Francisco de. Crítica à razão dualista, o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2003.
PIRES, Lenin. Esculhamba, mas não esculacha! Um relato sobre os usos dos trens urbanos da
Central do Brasil, no Rio de Janeiro, enfatizando as práticas de comerciantes ambulantes e conflitos
existentes entre estes e outros atores, naquele espaço social. 2005. 164 f. Dissertação de Mestrado
(Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.
RODRIGUEZ, Helio Suêvo. A Formação das Estradas de Ferro no Rio de Janeiro: o resgate da
sua memória. Rio de Janeiro: Sociedade de Pesquisa para a Memória do Trem, 2004.
STAMPA, Inez. Nos Trilhos da Privatização: ferrovias e ferroviários do Rio de Janeiro em questão.
São Paulo: Annablume, 2011.
TELLES, V. da Silva. Ilegalismos Urbanos e Cidade. In: Novos Estudos, nº 84. pp. 153-173. São
Paulo, 2009.
NOTAS
1 O Referido trabalho tem por título: “No Balanço do Trem: perfil dos trabalhadores ambulantes dos trens do ramal
de Santa Cruz”. Defendido em Março de 2013, na Faculdade de Serviço Social da UERJ, tendo por orientadora a
Profª. Drª. Rosangela Nair de Carvalho Barbosa. O presente artigo refere-se especificamente às reflexões desenvolvidas
no 2º capítulo do trabalho, que tem como título: “Pensando o trabalho informal nos trens do ramal de Santa Cruz”.
2 Aqui assumimos o entendimento de que as próprias atividades informais não são estranhas àquelas formais, de
modo que não podem ser percebidas sem a sua íntima relação com as formais, uma vez que àquelas, ao contrário do
que parece ser, não estão fora da dinâmica de acumulação capitalista. A informalidade é uma “produção” da extensão
do capitalismo, e funcional para a mesma (OLIVEIRA, 2003, p.33).
3 O tamanho da malha ferroviária brasileira, em 1958, quando alcançou sua extensão máxima, era de 37.967 Km.
Sofre um decréscimo, desde então. Em contrapartida o sistema rodoviário tem um crescimento considerável em
cerca de 40 anos: em 1954, o país apresentava cerca de 1.200 Km de rodovias pavimentadas e em 1989 saltou para
130.000 Km (RODRIGUEZ, 2004 p. 9 e 10).
4 Tal processo foi facilitado em grande medida pelo princípio constitucional da Carta Magna de 1988, que instituiu
a descentralização administrativa do governo federal em favor dos estados. Um princípio, que na verdade visava dar
maior transparência e poder decisório à administração pública, acabou, no caso dos trens, por colaborar para o
aumento do sucateamento e posterior facilitação de sua venda à iniciativa privada. Visando a implantação deste
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processo de descentralização, foi criada em 1994 a CBTU (Companhia Brasileira de Transportes Urbanos), retirando
a administração direta da RFFSA (Rede Ferroviária Fluminense Sociedade Anônima). No caso do Rio, este processo
de estadualização se deu de modo bem acelerado, pois em novembro do mesmo ano foi criada a Flumitrens, que
preparou o sistema para sua concessão privada, quatro anos depois, incluindo um forte “enxugamento” do quadro de
funcionários do meio do programa de demissão voluntária (STAMPA, 2011, p.88-95).
5 Estruturas, em geral de madeira, que servem para fixar os trilhos ao chão.
6 O trem costuma fazer o trajeto de Santa Cruz à estação Central do Brasil em 1h e 45m, quando o trem é parador
e 1h e 30m, quando é direto.http://extra.globo.com/noticias/rio/manha-de-tumulto-em-estacoes-da-superviapassageiros-ocupam-trilhos-andam-pendurados-nos-trens-promovem-quebra-quebra-3922581.html. Acesso em
janeiro de 2013.
8 Não existe um número preciso de quantos ambulantes atuam não só no ramal de Santa Cruz, bem como nos
demais. Mas segundo as informações do presidente da associação que representa os mesmos, estima-se que este
número gira em torno de 1.000. No entanto a sazonalidade é típica desse seguimento de trabalho, podendo aumentar
ou diminuir de acordo com a conjuntura social e institucional.
9 Segundo um dos informantes desta pesquisa e um dos atores principais deste processo, a Associação era chamada
constantemente pela diretoria da Concessionária para reuniões e discussões sobre a regularização. Ainda segundo
ele, o modelo dos ambulantes uniformizados, identificados e registrados (tal qual os ambulantes ligados às empresas),
foi uma ideia da Associação levada à SuperVia. Mas, na implantação a concessionária deixou a associação de fora,
oferecendo o serviço a empresas externas (como a Nestlè, a Agital, a Pepsico entre outras). Deste modo, a própria
concessionária colaborou para o aumento numérico dos ambulantes, sem incluir os que até então já atuavam nos
trens.
10 O argumento impeditivo principal da empresa era que os ambulantes produziam muito lixo no interior dos trens
e também nas linhas férreas. Em nossa pesquisa também descobrimos que o mesmo argumento era usado pelas
antigas administrações da ferrovia, para a repressão à atividade ambulante, conforme aprofundaremos mais adiante.
11 A repressão contra esta população não deve ser vista como algo isolado, pois ela é igualmente perversa em outros
espaços, vide os camelôs de rua, os ambulantes de praias e eventos públicos, ou mesmo os ambulantes de ônibus. Ela
também não é uma particularidade do Rio, visto que em outras metrópoles ela é tão ou mais severa que por aqui. Em
São Paulo, por exemplo, a prefeitura vem abertamente restringindo os direitos dos ambulantes a ocupação do espaço
público: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/05/kassab-revoga-decreto-que-permitia-ambulantes-em-ruas-desao-paulo.html Acesso em 31 de janeiro de 2013. http://ponto.outraspalavras.net/2012/06/05/fim-comercio-ambulanteou-fim-dos-ambulantes/ Acesso: 19 de março de 2012.
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A OCUPAÇÃO DO ESPAÇO ATRAVÉS DO SOM:
Conflitos e presenças sonoras nos diferentes espaços da cidade
Isla Antonello Terrana de Melo Bezerra Brito
Aluna do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da UFF
Palavras-chave: Som, presença, território, interferência
Introdução
Este artigo é resultado de reflexão a respeito da ocupação do espaço através do som. A partir da
noção da diferença e do conflito entre diferentes morais dentro da mesma cidade, juntamente com
as diferentes formas de organização urbana no Rio de Janeiro, vou analisar o papel do barulho
nestes conflitos. Explicarei como é possível essa sensação de ocupação através do barulho, do
incômodo, como é possível “o outro” se fazer presente dentro de um espaço, muitas vezes íntimo,
através do seu ruído e como, também dessa forma ele pode interferir e assim dominar um espaço
tanto em maior ou menor escala.
Para tanto, utilizarei dois casos com os quais tive contato ou direto ou através de entrevistas. O
primeiro em um apartamento na Glória, bairro nos limites da Zona Sul do Rio de Janeiro que fica
posicionado a menos de 50 metros de uma favela, atualmente ocupada pela Força Nacional. Neste
caso a questão é o incômodo causado por uma casa na favela do Morro Santo Amaro que toca
constantemente e a volumes expressivos música tecno brega. Tentarei explicar a razão de isto poder
ser considerado para os moradores do prédio (que é a perspectiva à qual tive acesso) um incômodo,
um problema (sem entrar no mérito de fazer um juízo de valor) levando em consideração essa noção
de presença e domínio da espacialidade, além do conflito moral presente e também responsável por
essa situação se tornar efetivamente um incômodo. Não pretendo, no entanto aprofundar a discussão
a respeito desse caso específico, uma vez que dele me utilizo para tornar claras as ideias, úteis para
a análise do segundo caso.
Este segundo caso se refere à proibição do Baile Funk no Morro Santa Marta após a implantação da
UPP. Analisarei também o aspecto do domínio da territorialidade através do som deste baile, as
interferências na vida dos moradores, a sua proibição não como uma manifestação cultural, mas
como uma espécie de ritual de dominação exercido antigamente pelos traficantes. Já para compreender
a proibição farei o estudo a partir da tentativa tanto de dominação territorial por parte da polícia
quanto da introdução neste território de uma moral “de fora”, “do asfalto”. Juntamente, farei uma
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 345
pequena análise da eficácia dos métodos de introdução desta moral pertencente a uma outra região
da cidade.
A metrópole e a Vida dos Ouvidos
Não há que se discutir: o Rio de Janeiro é uma grande metrópole. Ainda que não seja a mesma que
Simmel pensou no início do século XX (ele não viveu para ver este modelo que temos hoje), pode
ser compreendida sob seu olhar, ainda atual, no que se refere exatamente aos efeitos que produz
sobre o que ele chama de “a vida do espírito” do homem seu habitante. A metrópole é outra, mas a
estrutura da impessoalidade persiste. A pontualidade, calculabilidade e exatidão necessárias, geradoras
e mantenedoras dessa estrutura só tendem a se intensificar, impulsionadas pela própria dinâmica
indispensável para se evitar o caos e possibilitar a convivência em uma grande cidade. Permanece
também e talvez mais do que nunca, (excetuando certos fatos ultra recentes1) a conhecida atitude
blasé.
Ora, com tantas situações constantes de “esticamento e agitação dos nervos” que nos deixam sem
forças para nos recuperarmos e consequentemente produz em nós, habitantes da metrópole, essa
tão particular atitude blasé, eu pergunto: Hoje em dia o que é que nos dá nos nervos? O que, mais
precisamente, nos retira dessa atitude blasé no dia-a-dia? Entre variados fatores, decidi por investigar
a relação entre espaço (ou território: o nosso e o do outro) e o som, a começar pela questão: quando
é que o mero som, ou o ruído se torna “barulho”?
Na passagem de som ou ruído para barulho há a adição de uma carga negativa. Quando o som
começa a ser incômodo o suficiente para se tornar barulho, perturbação? Ora, uma forma que temos
de explicar isso é a ocupação do espaço através do som. Ele se torna barulho, entre outros momentos,
quando passa a significar a ocupação pelo outro ou pelo “de fora” do nosso próprio espaço, desse
espaço que elegemos como o espaço do nosso habitar.
Na cidade vivemos isolados uns dos outros, no Rio principalmente em apartamentos, nesses quadrados
de concreto empilhados, cada um ou cada família isolada em seu espaço determinado, como se as
outras pessoas habitantes dos outros quadrados sequer existissem. De fato elas em geral não existem
para o nosso conjunto de relações importantes diárias, com raras exceções. Mas a vida na metrópole,
especialmente o Rio de janeiro que é caracterizado pela presença de variadíssimas formas regulares
e irregulares2 de ocupação urbana, não é esse mar de reserva silenciosa do espaço, mas sim palco de
conflitos dos mais diversos níveis, muitos dos quais causados pelo choque entre tipos extremamente
contrastantes de organização urbana em um espaço exíguo.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 346
Som, Presença e Espaço
Dentro de nossos quadrados habitacionais, seja em apartamentos, em casas, em barracos situados
em áreas ricas, pobres ou mistas, determinamos o território que nos pertence, que habitamos e cuja
invasão brusca ou não autorizada é para nós uma forma de agressão. Há aqueles sons que não nos
afetam e portanto não os sentimos como uma invasão ou ocupação. Sons de pássaros, ruídos de
conversas que não deciframos, sons característicos e constantes do entorno de nossas habitações,
enfim, sons que não são suficientemente incômodos ou agressivos para serem considerados uma
invasão, sons que FAZEM PARTE daquele espaço. Mas há aqueles ruídos que se transformam em
barulho, ruídos que não consideramos como parte do espaço (e isso é determinado por critérios
subjetivos) ou porque são incomuns, ou porque são altos demais, ou porque não fazem parte do que
se é aceitável ouvir para realizar certo tipo de atividade característica daquele espaço. Ora um som
que torna um espaço inutilizável para a sua atividade definida torna-se um barulho. É nesse momento
em que os latidos incessantes do cachorro do vizinho ou aquela sessão ensurdecedora de música
tecno brega literalmente invadem e ocupam o espaço que é considerado como seu, mas sobre o qual,
a partir deste momento, você já não tem mais controle. Uma sala de meditação ou uma sala de
estudos onde não se pode meditar ou estudar deixam de ser o que são e não podemos negar que o
barulho alto ou incompatível ou insuportável tem o poder de tornar impossíveis essas atividades.
Por meio do som aquele vizinho passa a existir. Seu apartamento não se trata mais apenas de uma
entre tantas outras unidades vazias, insignificantes e virtualmente até inexistentes. E mais: ele não
passa a existir dentro do seu respectivo espaço, mas passa sim a existir e OCUPAR o território do
outro (ou de vários outros). O outro se faz assim, presente e atuante (e frequentemente incômodo)
no território alheio por meio do som. Ele passa a dar a sensação de um “morar junto” se sua voz,
seus ruídos, sua música se fazem presentes no espaço alheio como se em um dos cômodos daquela
mesma habitação. Um caso esdrúxulo, mas ilustrativo é o que observo no meu próprio apartamento,
onde no banheiro, há uma janela voltada para um estreito corredor vertical de circulação de ar.
Como tal, este corredor serve de veículo para os mais variados ruídos alheios e no meu apartamento
(no meu banheiro) especificamente chegam frequentemente as conversas de duas irmãs (imagino eu
que estejam entre 6 e 8 anos) que elegeram seu próprio banheiro como palco das mais variadas
brincadeiras e discussões próprias daquelas idades. Das novidades sobre o desenho animado da
Barbie às razões pelas quais uma delas não gosta da tia chata, tudo chega com clareza impressionante
aos ouvidos de quem quer que por ventura, esteja perto daquela janela. A ponto de nós aqui termos
apelidado as duas (que nunca vimos pessoalmente, nem sabemos se moram acima ou abaixo de nós)
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 347
de “as meninas do banheiro”. Ora, pode parecer uma tolice colocar um exemplo desses, mas ele
expressa maravilhosamente bem a noção do som como parte do habitar, do ocupar, do “estar ali”,
“estar presente”.
Mas nem todas as ocupações pelo som têm esse teor engraçado e mesmo doce que duas crianças
podem proporcionar, tampouco elas se restringem sempre a cômodos específicos. Pelo contrário, a
ocupação pode ser de toda a habitação, como aquela avó surda que liga a TV no último volume: ela
não assiste TV apenas na sala. Para os outros moradores da casa ela assiste TV na casa inteira! E
esta ocupação pelo som vem também de fora: do vizinho, da rua, etc. Lembrando sempre me refiro
aqui aos barulhos que nos fazem sair da inércia diária, que nos arrebatam daquela “surdez blasé”, a
insensibilidade decorrente da repetição, no ambiente a que estamos continuamente expostos.
Por meio desse som inquietante o outro até aquele momento quase ou completamente inexistente,
se torna capaz, ainda que sem o desejar ou sem mesmo o imaginar, de tomar o controle das atividades
realizadas naquele território. Não de trata apenas de um mero incômodo irrisório, alardeado por
alguém que está num nível avançado de aversão ao outro ou individualismo: trata-se de um (o
incomodante) determinar se o outro (o incomodado) vai estudar ou não, se vai dormir e trabalhar
bem ou mal no dia seguinte ou não. Trata-se de uma dominação da própria vida, atividades e até da
saúde (inclusive a mental) daquele cujo território está sujeito à dominação pelo barulho. Não admira
que seja o som alto matéria, inclusive, de lei nas cidades.
O Som e a Moral
Antes mesmo de ser objeto de lei, a vizinhança é regulada há muito mais tempo e muito mais
eficazmente pela moral. O que nos impede de todos simplesmente deixarmos ligados aparelhos de
som a altos volumes o tempo e a hora que quisermos? Ora, sabemos que esse som alcança outros,
sabemos que os outros sabem que nós mesmos sabemos que isso pode os incomodar e atrapalhar. Se
um vizinho vem bater à porta do outro para pedir que diminua o barulho, este (o barulhento) já sabia
que estava sujeito a uma retaliação dessas e isso é uma situação constrangedora. Dá vergonha ser
chamado a atenção por um ou outro vizinho por causa de som alto, por causa de uma coisa que ele
sabe que nós sabemos que é incômoda. Isso porque ele sabe também que entre as condições que
delimitam o ser ou não um bom ente cooperador naquele espaço ou naquele grupo, está a condição
de não incomodar os outros membros com barulho desnecessário. Os sentimentos morais3 ou a
formação de uma consciência moral em geral são suficientes para inibir essa ocupação. O indivíduo
é capaz de projetar em si mesmo o efeito que poderá causar aos outros, avalia e se policia. Quando
não o faz, a manifestação por parte do outro afetado pode ser suficiente para interromper ou inibir
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 348
a prática. Mas isto só é possível porque ambos compartilham (incomodante e incomodado) da
mesma consciência moral, ou melhor, das mesmas noções limitadoras de um bom ente cooperador
no grupo. Mas e quando isso não ocorre?
A vergonha moral diante da indignação ou possível indignação do outro por conta da nossa
incapacidade de nos comportarmos como bons entes cooperadores nos inibe de praticar atos que
nos denunciem como maus entes cooperadores, mas a moral só funciona quando os indivíduos em
conflito se envergonham e se indignam pelos mesmos motivos, se se guiam pelas mesmas noções de
bens e males. No Rio, esta metrópole de muitas faces, as morais são muitas, pois são muitos os
contrastes sociais que coexistem num mesmo espaço. A discrepância no comportamento e nos padrões
de consciência moral dos indivíduos são tão grandes quanto as discrepâncias sociais no que se refere
às formas de habitações, e os conflitos são também tão variados quanto estes.
Conflitos de Som: O Prédio e a Favela na Glória
O Rio como metrópole de urbanização mista (pode-se dizer até caótica) é palco de inúmeros “conflitos
de som” mais ou menos complexos, intensificados por esses contrastes urbanos. Muito diferente de
ter o espaço de sua habitação dominado e ocupado por uma música vindo de um apartamento no
mesmo prédio é tê-lo por uma música vindo de uma forma de organização habitacional altamente
discrepante da sua e muitas vezes (e principalmente)fora do seu alcance de atuação e persuasão.
O caso aqui é especificamente o de um edifício de apartamentos de classe média no Bairro da Glória
que se situa ao lado de um morro onde se estende uma favela, o morro Santo Amaro. Duas formas
de organização de habitações altamente discrepantes entre si, juntas, não necessariamente disputando
permanentemente o espaço, mas em certos momentos o fazendo através deste que é o nosso tema:
o barulho.
Entre gritos esparsos de mães atrás de seus filhos, cantos de pássaros engaiolados e o burburinho de
grupos de crianças animadas voltando da escola, um aparelho de som (com uma potência
admiravelmente alta para as necessidades de qualquer residência) é ligado. Ligado às 11:30h da
manhã de um sábado (e frequentemente também no domingo e dias de semana) e desligado depois
das 2:00h da manhã no outro dia. O resultado pode-se imaginar: os habitantes do prédio (do qual eu
sou um, eventualmente) têm seus apartamentos invadidos por um baile dançante animado pelo som
do que há de mais variado no gênero tecno brega, misturado com muita música nordestina a qual eu
não sei classificar exatamente. Funk não, porque apesar de tão carioca, o Funk na favela (que se
encontra neste momento ocupada pela força nacional), ao menos nessa altura e com esse alcance é
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 349
proibido (sobre esta questão mais precisamente e nos termos mais corretos falarei mais adiante).
Mas isso não é problema! Ao lado do dito prédio e exatamente em frente ao grande barranco (com
obra de contensão) que separa o “morro” do “asfalto” há uma grande área aberta, pertencente à
Beneficência Portuguesa (que fica logo ali, do outro lado da rua). Ali, entre uma serraria, algumas
casas em ruínas e um estacionamento rotativo precário, se posiciona uma van branca também equipada
com alto-falantes desnecessariamente potentes e que supre a demanda pelo funk dos eventuais
presentes e ouvintes. Ali no asfalto, a 20 metros da favela, o funk não é mais tabu. Os dois barulhos
passam então algum tempo disputando o espaço dentro dos pequenos apartamentos onde já não se
lê mais, já não se tira mais uma soneca da tarde e onde, mesmo de janelas fechadas e aparelho de som
ligado, não é possível se ver livre daquela invasão de domicílio. Como costumamos dizer: “dia em
que toca música é dia de assistir filme alto!” A van não permanece muito tempo, mas o tecno brega
segue firme e ininterrupto horas a fio, inclusive com inúmeras repetições do mesmo repertório.
Às 22:02 (para não dizerem que somos tão ranhetas, esperamos 2 minutos) a polícia é acionada
(afinal, onde a moral não consegue controlar, a lei ganha espaço). Ingenuidade: a polícia não vem.
Mas isso não é razão de rancor contra os responsáveis pelo som, é mais a imagem de mais uma entre
tantas frustrações diárias entre seres humanos a que estamos sujeitos, ainda mais numa cidade tão
plural.
A diferença social entre os dois espaços é um dos geradores desse conflito, ou pode intensifica-lo.
Se os ditos moradores dos apartamentos ao menos apreciassem o ritmo contagiante do tecno brega
13 horas a fio nada disso seria problema e este texto nem teria porque estar sendo escrito. O som não
parece ser incômodo nenhum aos moradores da própria favela, muito mais próximos de sua fonte (e
se é para eles também incômodo, assim como nós do prédio, eles nada fazem ou conseguem fazer a
respeito). O problema então não é apenas um barulho incômodo e invasivo, mas QUAL deles é
incômodo e invasivo. O barulho do conflito geográfico, do conflito social, que reflete a própria
organização urbana, social e cultural dessa metrópole.
O som invade, domina e controla. Ele invade sendo um problema justamente porque é o som de uma
outra zona moral, é o som de uma outra face da cidade, tão diferente e ao mesmo tempo tão
fisicamente próxima. Se não o fosse, não haveria estopim para conflito.
Certamente escutar por horas a fio música clássica ou rock também não agradaria aquele específico
morador fã de tecno brega. A questão é que nem o morador do morro tem acesso ao morador do
prédio, nem o do prédio ao do morro. Não porque um seja proibido de se aproximar do território do
outro, mas porque simplesmente isto não acontece. Explico. O barulho vem muito mais frequentemente
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 350
da favela do que do prédio, portanto os moradores da primeira não precisam ir até os do segundo
fazer qualquer reclamação (ao menos até hoje eu não presenciei situação que pudesse levar a isso).
Isso porque apesar de estarem separados por menos de 50 metros de distância um do outro (em
alguns trechos por menos de 20) eles se situam em regiões morais diferentes. Há uma “barreira
invisível” entre os dois territórios, uma barreira moral e social que requer um certo ânimo (que no
caso em questão não é observado) para ser rompida.
Moradores dos apartamentos são muito mais propensos a apresentarem essa atitude blasé característica
da metrópole de Simmel do que moradores de favelas e comunidades, onde os limites entre as
unidades são muito menos definíveis e menores, ou seja, onde há mais espaço para as relações e
reações emocionais entre os indivíduos, onde não é tão fácil assim manter a sua subjetividade e seu
espaço completamente afastados dos do vizinho. O morador de apartamento apresenta o que Simmel
chama de RESERVA com muito mais acento que o morador da favela, ou melhor, ele vive num
ambiente mais propício a apresenta-la. Ele não vê, não conhece e nem quer saber da existência dos
outros ao redor e nem faz muita questão de “existir” mais ativamente para eles. Resultado: ele
incomoda menos porque existe menos (não para si próprio, mas para os outros). Nas suas ações ele
leva em consideração o cálculo moral, baseando este na reserva.
Para o morador da favela essa não existência não é tão simples, os limites são bem menos delimitados,
isso se pode identificar até através da arquitetura da favela: Janelas viradas uma para a outra a
menos de meio metro de distância, casas onde em cada andar mora uma família diferente mas onde
para se chegar no andar de cima é preciso passar por dentro da casa abaixo, até mesmo casos em que
a quina de uma casa ultrapassa as próprias paredes da outra e invade um cômodo (construído
posteriormente a essa quina) esse caso em especial me chamou muito a atenção certa vez. Aqui, se
a pretensão é manter a reserva, a individualidade, mesmo a intimidade um esforço consciente tornase necessário. Não é que não existam pessoas com atitude blasé ou com a reserva nas favelas, mas
sim que essa configuração urbana especificamente não tem condições que privilegiem o surgimento
destas.
Se por um lado os moradores da favela não precisam entrar em contato com os do prédio para
discutir eventuais incômodos sonoros, os moradores do prédio, por outro lado, além de não serem
capazes de identificar de onde exatamente vem o tal som invasor (por inúmeras razões, entre elas o
eco e a aparente indefinibilidade externa dos limites entre as casas), não sabem e não querem chegar
até lá. A favela frequentemente é vista por aqueles que lhe são estranhos como um território à parte,
desconhecido, homogêneamente caótico e por vezes, perigoso onde a entrada precisa ser preparada
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 351
e guiada, além do estigma que ela carrega: “pacificada” ou não, é com frequência vista como território
da violência, do perigo, por aqueles que não a conhecem de perto. Para a entrada em contato, é
necessário um ânimo que os moradores incomodados não conseguem reunir suficientemente. A
esperança de que aquilo (o barulho) se torne algo suportável com o tempo ou de que o “anjo do bom
senso” (ou um raio) toque a cabeça do responsável sem rosto vence o ímpeto à iniciativa da entrada
naquele território (desconhecido e misterioso) que, apesar de tão próximo e parte da mesma cidade,
é moral e socialmente extremamente longínquo.
Mais uma vez o habitante mais metropolitano desta metrópole à brasileira (e que metrópole poderia
ser mais à brasileira que aquela dos grandes contrastes sociais?) se encontra e se reveste com a
atitude blasé (esta que por vezes pode ser também uma das responsáveis pelo aumento contínuo da
desigualdade).
O que aqui parece uma simples desistência por parte dos moradores incomodados, um simples “se
esconder embaixo das cobertas”, na verdade é exatamente o que parece. Não que inexistam saídas
para uma situação dessas, mas nesse caso específico, até o momento ela não foi alcançada. Melhor
dizendo: a impotência venceu o ânimo da iniciativa, bem à maneira da reserva e do impulso do blasé.
A construção de uma saída nos demandaria uma quantidade de páginas muito superior ao razoável
para esta pequena análise, além de ultrapassar os limites do tema que se pretende investigar aqui. No
entanto, afirmo que ela se daria por meio da educação moral. A grande questão de uma situação
dessas é: seria moralmente aprovável uma educação moral? Bem, não quero aqui (nem posso)
discutir essa questão. Mas para uma facilitação de entendimento afirmo que me refiro mais a uma
homogeneização que a uma “correção” propriamente dita. Não uma educação com viés de correção
ou mesmo punição, mas uma educação que permitisse a projeção do sofrimento (ou do incômodo)
do outro em si mesmo, ainda que esse outro seja razoavelmente diferente de si, e a posterior evitação
da provocação desse sofrimento no outro. Para ser mais clara: essa educação não seria unicamente
do habitante da “cidade” em relação ao da favela, mas de ambos em relação a ambos. Em outras
palavras: tornar mais próximas as morais dos indivíduos habitantes dessas tão geograficamente
próximas e tão cultural e socialmente distantes organizações urbanas.
Para isso, as relações e conflitos deixariam o meio pessoal (vizinho x vizinho) e passam a ser
institucionais (instituição X cidadão). Isto quer dizer que esta educação não poderia ocorrer
espontaneamente através das relações entre os indivíduos, mas teria que ser provocada e incentivada
(não imposta) “de fora”, devido às discrepâncias já mencionadas entre as duas organizações urbanas.
Pretendo esclarecer isso melhor no próximo ponto.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 352
Conflitos de Som: A Proibição do Funk no Santa Marta
Já vimos que o som é uma forma de ocupação e dominação do espaço, e trabalhamos este tema num
contexto de conflito entre duas diferentes formas de organização habitacional e social, o conflito
entre duas zonas morais diferentes mas ao mesmo tempo geograficamente muito próximas. Se não
fosse esse choque de organizações num mesmo espaço talvez esse tipo de conflito que foi narrado
acima não existisse, ou não tivesse a intensidade ou o resultado “final” observado.
No primeiro caso a direção da ação ou dos seus efeitos seria partindo do morro (a favela) para o
“asfalto” (o prédio na Glória). Vou agora analisar um outro caso com um direcionamento e um
contexto diferentes: trabalhamos agora dentro de um espaço com uma única forma de organização
social, ou seja: agora não é mais o asfalto em relação à favela, mas a favela em relação a si mesma.
Mais tarde veremos como, dentro do contexto essa relação se desdobra para uma nova relação,
partindo do asfalto em direção à favela. Outra diferença de contexto é que aqui não há um choque
direto entre duas zonas morais, mas ele ocorre dentro de uma única zona moral, a favela, e depois
as instituições do “asfalto”, a polícia militar. Ou seja, trata-se já de uma situação de intervenção e
tentativa de modificação comportamental por parte da polícia em relação aos moradores da favela.
É aquilo a que me referi anteriormente: as relações deixando de ser pessoais para se tornarem
institucionais, como uma forma tentativa de solução de um problema (não exatamente o mesmo
problema do caso anterior, mas ainda assim encarado como uma tentativa de solução de problema).
Pois bem, o caso é o seguinte: Morro Santa Marta, localizado na Zona Sul da Cidade do Rio de
Janeiro, primeira favela a ser “pacificada” (em 2008), entre tantas outras que o foram posteriormente4
nesta mesma cidade. Como foi dito anteriormente, na favela, mais especificamente na favela pacificada,
o funk é proibido, ou melhor: a realização de bailes funk.
Quais os motivos alegados e para se colocar esta imposição e por quem? Com a pacificação, muito
resumidamente, houve um processo de tomada (ou retomada) do território das favelas do controle
dos grupos de tráfico de drogas por parte do poder público, mais especificamente pela polícia militar.
Processo este que continua até hoje em curso, tanto no Santa Marta quanto em outras favelas que
fazem parte desse processo de pacificação. Um território que se entendia anteriormente como sob
o domínio de um grupo, onde o poder público não tinha entrada, agora pretende ser passado ao
domínio desse poder público através da ação da polícia militar. Mas como o poder anterior exercia
esse domínio sobre o território da favela? Como ele se fazia presente para os moradores? Entre
outros meios, através dessa ocupação do território pelo som. O poder público, por sua vez de faz
presente (ou tenta se fazer) através da implantação de serviços básicos (como educação, unidades
de saúde, obras de infraestrutura, saneamento básico, etc), a presença física do corpo policial (a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 353
vigilância constante, a implantação de câmeras5, etc) e, finalmente, pela anulação dos elementos
que trazem à memória dos moradores a anterior dominação territorial exercida pelo tráfico. É neste
ponto que se encaixa a proibição dos bailes funk no âmbito da favela.
Sob a alegação de que tais bailes eram utilizados anteriormente pelos traficantes como instrumento
de delimitação e dominação do território na favela, a polícia militar achou por bem proibir a execução
destes bailes em territórios por ela agora controlados, ainda que essa medida (de proibição) não
tenha nenhuma justificativa legal de ser. No entanto, não pretendo aqui discutir a legalidade ou não
deste tipo de atitude, mas sim as razões, num contexto das relações sociais, de a polícia ter chegado
à conclusão de que essa medida era necessária. O que não necessariamente tornaria esta medida nem
aceitável nem acertada, nem razoável, mas veremos isso mais à frente.
Começando pela ocupação territorial pelo som: ao entrevistar moradores de diferentes localidades
da favela (que, aliás, é muito pequena se levarmos em consideração o tamanho de outras favelas da
cidade) seja do alto do morro, seja da base ou do meio, percebi em seus depoimentos como os bailes
funk promovidos pelos traficantes na comunidade determinavam o ritmo de vida dos indivíduos,
principalmente dos que moram ao redor ou perto da pracinha central da favela, local onde se
concentravam as ditas “paredes de 3 metros de altura de caixas de som”6, que consistiam na parte
principal do baile. Destaco que este local é uma área aberta relativamente grande se comparada ao
tamanho daquela favela, bem próxima da base do morro e é também a praça que se encontra ao subir
a única via onde é possível circular com carros. Ali é, portanto, a área aberta mais acessível para os
que vêm de fora.
De acordo com os entrevistados, esses bailes geralmente se estendiam ao longo de 2 ou até 3 dias
seguidos com curtos intervalos para os seus participantes descansarem (atenção: os participantes,
não necessariamente os MORADORES), geralmente começavam às sextas feiras entre 17 e 18
horas e terminavam de vez às 6 horas da manhã da segunda feira, com intervalos de 6 ou 8 da manhã
às 16 ou 18 horas durante o fim de semana. Estes bailes, no entanto poderiam acontecer em qualquer
dia da semana devido à comemoração de aniversário de um ou outro traficante ou quaisquer outros
motivos por eles arbitrariamente deliberados. Lembrando que eu não presenciei essas situações pois
realizei etnografia no local em 2011, 3 anos após a pacificação e nem poderia ter presenciado, pois
antes de 2008 eu mal havia ingressado na universidade e nada sabia a respeito de etnografias. Estas
informações aqui apresentadas foram obtidas por meio de entrevistas com moradores, inclusive
moradores que fizeram parte do tráfico no passado e entre eles, um que afirmou, inclusive, ter
convocado bailes por ocasião de seu próprio aniversário no meio da semana (este morador em
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 354
especial, é hoje evangélico e abandonou o tráfico antes da chegada da pacificação). Consegui identificar
que o público dos bailes era principalmente composto por jovens ou pessoas que não tinham jornada
de trabalho fixa. Com base nessas informações consegui identificar também que quanto aos bailes,
os traficantes determinavam:
· As suas datas, sem qualquer consulta (ou consideração) á comunidade;
· O horário de início e término dos bailes, sem levar em conta a necessidade de
tempo de descanso daqueles que tinham que encarar longas e cansativas jornadas de
trabalho nos dias de semana;
· O público de tais bailes, que não era necessariamente composto de moradores da
própria favela: eles tinham também o domínio sobre quem circulava na ou frequentava
a favela ao alugar ônibus para trazer público de outras localidades dominadas por
facções aliadas;
· O tema das músicas executadas durante os bailes, que muitas vezes (de acordo
com relatos das entrevistas) abrangiam homenagens ao próprio tráfico e temas
considerados impróprios para crianças7.
Os moradores relataram que se podia ouvir o barulho das caixas de som de qualquer localidade da
favela, fosse na base, fosse no topo do morro. Os mais próximos do centro tinham suas casas
invadidas por um som tão ensurdecedor que fazia as paredes tremerem, o que tornava impossível
dormir, conversar ou fazer qualquer coisa dentro de suas casas, alguns tendo relatado que nas
ocasiões de baile, eram obrigados a se transferir para as casas de parentes em outros morros ou ali
mesmo, em casas mais distantes do centro emissor do som. Levando em consideração que eu mesma
já experimentei, em Niterói, esse tipo de situação de som de baile funk fazer as paredes da casa
tremerem (e até a água nos copos vibrarem, junto com nossos próprios corpos) não considerei
absurdos os relatos dos moradores.
Por meio do som o tráfico se fazia presente em maior ou menor grau, no interior de todas as
residências do Santa Marta, determinando para os habitantes seus horários, suas atividades no interior
e no exterior de suas casas, suas horas de descanso, de estudo, sua permanência ou não naquele
espaço e mesmo o conteúdo do que seria ouvido por adultos e crianças. Não era necessário nenhum
contato direto entre os traficantes propriamente e as outras pessoas para que isso ocorresse, não era
necessário se comunicar uma resolução do comando do tráfico ordenando o que poderia ou não ser
feito em quais horários dentro da favela, o único meio necessário para isso era dar início ao baile,
sem ordens diretas, sem decretos, sem imposição, sem papelada: apenas o incômodo. Não há dúvida
que o baile funk, então era um instrumento de dominação daquele território, mas certamente não
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podemos dizer que era o único e nem temos dados suficientes para dizer se era utilizado dessa forma
conscientemente ou inconscientemente por parte do tráfico. O que se pode dizer é o seu efeito: essa
dominação do território.
Este cenário aparentemente infernal foi traçado por um perfil específico de morador e não é
absolutamente unânime, apesar de majoritário nas entrevistas. Geralmente se tratavam de homens
ou mulheres de idade adulta, com ou sem crianças na família, mas principalmente pessoas que
trabalhavam, dentro ou fora da favela e portanto, pessoas que sentiam falta do descanso à noite que
os bailes lhes extirpava. Moradores da parte mais baixa da favela, esses sim, foram unânimes em
apontar as negatividades dos bailes (isto porque eram os mais próximos e então, mais afetados pelo
som alto). Mulheres solteiras e jovens se posicionavam com certa ambiguidade: por um lado defendiam
os bailes porque participavam deles e gostavam, por outro demonstravam ter consciência de que
eles eram incômodos para quem não participava ou para quem trabalhava, como os seus próprios
pais.
Removido o domínio do tráfico em 2008, a polícia militar e a upp implantadas, foram proibidos os
bailes funk. A pergunta que se faz então é a seguinte: por que não permitir os bailes funk dentro de
limites de horário e de emissão sonora que não invadam as residências e não cause transtornos às
pessoas que deles não participam? Por que proibir absolutamente o baile funk? No Santa Marta há
duas quadras de esportes que podem abrigar festas e mais uma quadra de escola de samba que
continua sendo utilizada exatamente para isso, então por que não permitir bailes nesses locais dentro
dos limites urbanamente aceitáveis?
A resposta da Polícia Militar da upp (mais especificamente da Major Priscila, primeira comandante
de uma upp no Rio de Janeiro: a do Santa Marta) é que o baile funk ainda representa essa dominação
do tráfico, tanto com suas letras, sua temática, quanto pela memória dessa dominação que ele traz à
tona.
Iniciou-se a partir de 2008, ano da implantação da upp, uma competição entre o domínio territorial
da polícia “representando” o poder público e a memória do domínio territorial do tráfico, que apesar
de expulso dali, esteve presente e ativo por décadas, marcando a vida e a memória de quem cresceu
e viveu durante seu domínio.
Ao circular pelo local, conversar e entrevistar todo tipo de moradores. Alguns outros fatores me
pareceram relevantes e que merecem ser aqui mencionados. Observei que havia sim casas com
aparelhos de som ligados tocando os mais variados gêneros musicais, inclusive o funk, nenhum
deles em um volume que pudesse ser realmente nocivo aos vizinhos ou ao menos não parecia ser,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 356
ninguém parecia se incomodar. Destaco aqui uma curiosidade: por não se tratar de duas zonas de
organização urbana em choque, a possibilidade dos gostos musicais serem semelhantes é maior e
portanto diminui a propensão a conflitos. Se as músicas tocadas nas casas do Santa Marta estivessem
alcançando a sala de estar de apartamentos de classe média, seria muito mais propício a gerar algum
tipo de conflito. Não porque um ou outro gênero seja ruim ou bom, mas porque como diz o próprio
Bourdieu, os gostos são semelhantes entre os indivíduos dos mesmos segmentos sociais (e não tão
semelhantes assim entre segmentos diversos).
Numa casa onde tocava funk fui perguntar ao morador que estava na porta com sua filha se esta
música era mesmo proibida na favela. O homem, que apesar de aparentar ser bem mais jovem já
andava pelos seus 50 anos, me respondeu que o baile sim, mas que na casa dele ele poderia escutar
o que quisesse, pois não incomodava ninguém. A resposta veio com grande tranquilidade e de fato,
ninguém ali parecia se incomodar. Em frente à casa algumas crianças dançavam ao som da música,
em meio a correrias e conversas, outros vizinhos, sentados à porta de suas casas, conversavam
tranquilamente e um ou outro jovem que passasse por aquela ruela, eventualmente o fazia dançando
e depois seguia seu caminho. Esta casa ficava na região central da favela pouco acima da praça.
Em outra ocasião, subindo o plano inclinado, ao ser indagado sobre som dentro de casa e funk um
morador, este também lá pelos seus 50 anos, mas por sua vez com aparência bem mais abatida e
desgastada reclamou: “A gente não pode nem dar festa com música dentro de casa!! Dá 10 horas da
noite a polícia já está batendo na nossa porta mandando desligar tudo!!” Ele se dirigia para sua casa,
que ficava na parte superior da favela. Imagino que este homem (como muitos) desconheça (ou
deliberadamente ignore) a lei do silêncio, mas imagino também, que ao aplicá-la na residência, a
polícia talvez não tenha esclarecido suficientemente as razões para tal. Mas estas são apenas
suposições. Encontrei as mais variadas opiniões a respeito da proibição: havia quem dissesse que era
“coisa de traficante” e que era melhor proibir mesmo, quem reclamasse que não podia mais se
divertir, quem já estivesse ganhando dinheiro organizando feijoadas com samba para substituir o
funk.
O quadro geral que observei foi o seguinte: (1) as pessoas podiam escutar o que bem entendessem
dentro de suas casas até às 22:00h, depois desse horário que desligassem, ou diminuíssem o volume
de seus aparelhos. Regras estas, às quais os habitantes do asfalto também estão sujeitos, sob o risco
de também terem a polícia à sua porta; (2) pode-se organizar festas, bailes ou eventos em casa ou
nas quadras, nestes últimos comunicando anteriormente à upp, com quaisquer gêneros musicais ou
artísticos, menos o baile funk. Lembrando que também no asfalto festas e eventos realizados em
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 357
áreas como ruas, praças etc, devem ser comunicados previamente, geralmente à administração regional
a que corresponde o bairro. A diferença é que não há restrição explícita para o baile funk. Uma outra
diferença é que na favela a Polícia Militar faz as vezes dessa administração regional, o que é uma
confusão de competências, não muito aconselhável de se promover, já que policiais militares não
têm “treinamento” adequado para tomar decisões de administradores.
O que pude constatar a respeito da política de pacificação especificamente em relação à proibição
do baile funk é que há aí a tentativa de a polícia dominar moralmente aquele território, anteriormente
ocupado pelo tráfico, através do apagamento de uma memória dessa mesma dominação espacial. O
gênero musical especificamente não é a chave dessa memória, mas a organização à sua volta. Ou
seja, não é o funk em si o objeto de memória, dominação e proibição, mas todo um “ritual” de
organização e execução, com características específicas de volume, alcance e duração desse som,
sua temática e sua determinação (quem especificamente os determinava) que, juntas, formam o
evento “baile funk”. Dentro desse ritual, aí sim, pode-se dizer que a altura do som e suas letras
apológicas (ao tráfico) eram os meios mais marcantes de ocupação do espaço e dominação territorial
e moral.
Não se trata aqui então, de proibir porque é a música da favela, porque é bom ou ruim, educativo ou
não, moral ou imoral em relação à moral dominante. Essa proibição não é uma questão de gosto.
Também não se trata de uma repressão arbitrária com objetivos pura e simplesmente opressivos.
Trata-se do banimento de um ritual. Ritual este intrinsecamente ligado a uma memória que se objetiva
aniquilar: a dominação territorial do tráfico.
Se é correto ou não pretender aniquilar essa memória ou dominar esse território já é questão que
extrapola os limites deste trabalho.
É parte, também, de um trabalho de moralização empreendido pela polícia militar através da política
de pacificação, não em relação à moralidade ou imoralidade do funk como música, mas em relação
à pacificação como um projeto de moralização como explicarei melhor a seguir.
Últimas Conclusões
Outro ponto a se salientar aqui é a tentativa da introdução da moral de uma região da cidade em uma
outra região estruturalmente diferente, dominada por uma outra moral também diferente. Ou seja, é
fazer o que poderia ser a solução para o outro caso anteriormente analisado (o caso do prédio e da
favela): a homogeneização da moral entre as áreas conflitantes da cidade. Por que aquele morador
do Santa Marta anteriormente mencionado estava irritado ao falar da polícia na porta de sua casa às
22:00h querendo impedi-lo de prosseguir com o som alto da festa? Porque ele não considera em sua
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 358
consciência moral que não incomodar os vizinhos com som alto à noite faça parte do que ele entende
como o que é ser um bom ente cooperador naquela comunidade. Ou ele acha que não incomoda, ou
ele sequer pensou nisso, ou ele simplesmente não se importa se está incomodando ou não, não
interessa. Interessa o seguinte: dentro da moral dominante naquela zona moral da cidade, quem faz
barulho depois das 22:00h não é considerado (ou não o é em grande parte dos casos) um mau ente
cooperador. Ele não é capaz de projetar em si o incômodo que pode estar causando a algum vizinho.
Este vizinho não vai se indignar com a atitude do barulhento (porque ele próprio em outra ocasião
faz o mesmo) e o barulhento não sentirá vergonha moral e portanto não deixará de fazer
espontaneamente o tal barulho. Chega então a polícia na porta, trazendo uma moral estranha àquela
comunidade: é preciso cessar o barulho, pois no resto da cidade inteira o barulho depois das 22:00h
é moralmente reprovável. Instaura-se aí o conflito e a incompreensão. Não é óbvio para o morador
que fazer barulho depois das 22:00h é mau e não é óbvio para a polícia que o morador não vai
compreender que é mau. A polícia introduz então a moral externa dominante através da imposição.
Ora, isso gera rejeição por parte de quem está sofrendo a imposição. Essa situação seria equivalente
a tentar converter as pessoas a uma religião obrigando-as e ameaçando-as: como é que o indivíduo
vai passar a realmente acreditar naquilo se ele é obrigado? Uma coisa é se adaptar e adaptar seus
comportamentos, outra é realmente se converter. É o caso da tentativa de introdução de uma moral
diferente através da imposição: as pessoas não vão entender, vão adotar comportamento
superficialmente e instrumentalmente compatíveis, mas não vão necessariamente reproduzi-los
espontaneamente. A relação se torna apenas instrumental: enquanto tem polícia aqui, sou obrigado,
então me comporto de tal maneira, quando não houver, volto a me comportar como antes porque
não vejo vantagem e me comportar espontaneamente como a polícia determina.
Não tenho condições aqui de discutir se deve-se ou não fazer essa tentativa de homogeneização ou
de qual moral é a mais correta. Cabe sim destacar que se isso vai ser feito então não deve ser através
da imposição, mas sim através de uma educação8 para a introjeção nos indivíduos das noções do
que é minimamente necessário para um grupo se manter unido e sem desavenças. A introjeção da
capacidade de poder projetar em si mesmo a sensação do mal que se pode estar causando ao outro
e assim, evitar por conta própria causar esse mal. Isso envolve muito mais do que a simples imposição
de regras e a dura fiscalização de seu cumprimento. Isso envolve a criação de um ambiente favorável
para que os indivíduos possam reconhecer a vantagem de estar nele e desenvolverem um “querer
pertencer”9 a esse ambiente. Envolve a criação de um ambiente com condições mais amenas em que
os indivíduos possam se importar mais com COMO eles vivem do que com SE eles vivem ou não.
Envolve portanto, a criação um ambiente com um mínimo necessário para a manutenção da saúde,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 359
a alimentação entre muitas outras coisas básicas para a sobrevivência e para um “viver bem”10 e
condições mínimas necessárias para se sustentar a ética que se quer introduzir , ou seja, um “mínimo
ético”11.
Um indivíduo que vive em condições precárias de sobrevivência não tem por que querer pertencer a
uma moral que não é a dele, a uma moral imposta por outros indivíduos que estão numa situação
muito melhor e desigual que a dele. Ele não vai desenvolver o mesmo critério de bom ente cooperador
que uma sociedade da qual ele, na verdade, está excluído. Em poucas palavras: para fazer com que
os indivíduos numa favela ajam como os do asfalto (não fazendo aqui um juízo de valor de se isso é
certo ou não) é preciso fazer com que eles sintam que pertencem a essa comunidade, porque na
favela eles têm a moral com a qual eles são capazes de sobreviver ali, na favela. A mera imposição
dessas normas e comportamentos pela força não vai fazer eles deixarem de ser excluídos dessa
mesma sociedade que lhes impõe essas normas.
Bibliografia
MELLO, Marco Antonio da Silva, Luiz Antonio Machado da Silva, Leticia de Luna Freire, e Soraya
Silveira Simões, eds. Favelas cariocas: ontem e hoje. 1 ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2012;
GONÇALVES, Marcus Fabiano e ARRUDA JR., Edmundo L. de. Fundamentação Ética e
Hermenêutica – Alternativas para o Direito. 1 ed. Florianópolis: CESUSC 2002;
SIMMEL, Georg. A Metrópole e a Vida Mental. In: VELHO, Otávio (Org.). O Fenômeno Urbano.
2ª. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1973, pp. 11-25;
SIMMEL, Georg. A Natureza Sociológica do Conflito; A Competição; Conflito e Estrutura do
Grupo. In: MORAES FILHO, Evaristo de (Org.). Simmel. São Paulo: Ática, 1983, pp. 122-164;
SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. 1 ed. São Paulo: Martins Fontes 1999;
TUGENDHAT, Ernst. Lições Sobre Ética. 8 ed. Petrópolis: Editora Vozes 2010;
TUGENDHAT, Ernst. Ser- Verdad- Acción. Barcelona, Gedisa. 1997;
‘
Nota à bibliografia:
Inseri nesta bibliografia, além dos textos do programa da matéria, livros que contêm conceitos,
explicações e conhecimentos necessários para a elaboração deste trabalho, apesar de eu não ter
inserido nenhuma citação direta, apenas notas. Constam aqui, portanto os livros onde pode-se
encontrar o conteúdo indicado nas notas.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 360
NOTAS
1 Refiro-me à recente onda de grandes manifestações que se espalharam no mês de Junho de 2013 tanto pela cidade
do Rio de Janeiro quanto pelo restante do país, que dependem ainda de profunda análise sociológica. Malgrado a
grande movimentação e despertar que causou nos habitantes principalmente das metrópoles do país, isso não anula
completamente grande parte dessa atitude blasé, apenas a abranda em certos aspectos da vida, mais especificamente,
os da vida política.
2 Não me refiro a regularidade ou irregularidade legal, mas sim às noções de constância e inconstância na textura da
organização urbana.
3 Sobre a teoria dos sentimentos morais ver: SMITH, Adam. Teoria dos sentimentos morais. 1 ed. São Paulo:
Martins Fontes 1999. Sobre vergonha moral, formação de uma consciência moral e teoria do Bem ver: TUGENDHAT,
Ernst. Lições Sobre Ética. 8 ed. Petrópolis: Editora Vozes 2010 e também TUGENDHAT, Ernst. Ser- VerdadAcción. Barcelona, Gedisa. 1997. Estes temas não serão aprofundados aqui para preservar o foco na temática do
som e da ocupação do espaço, mas ele serão tratados em capítulos específicos (e , inclusivamente, anteriores a este)
na dissertação.
4 Sobre a favela Santa Marta muitas considerações e controvérsias, a começar pelo seu próprio nome, poderiam ser
aqui enumeradas e discutidas. Também a questão da própria política de pacificação ali iniciada é uma questão
controversa e digna de muitas discussões, mas optei aqui por não me estender sobre estes temas em proveito da
discussão a respeito do som e a ocupação do espaço. Como este texto fará parte da dissertação que estou a escrever,
estes temas serão abordados e esmiuçados adequadamente em outros capítulos, inclusive anteriores a este.
5 Quanto a estas câmeras temos também espaço para uma longa discussão sobre o controle do comportamento dos
indivíduos através de um modelo panóptico, unido à presença ostensiva do braço historicamente reconhecido como
representativo da opressão do Estado sobre esse tipo específico de organização urbana (a favela). A implantação de
várias câmeras de extremo longo alcance em vários pontos da favela levou os moradores a se referirem a elas como
o “Big Brother do Santa Marta”, já que nenhum ponto da favela escapa às suas lentes, nem mesmo os interiores das
casas foram poupados. Mas essa dominação panóptica não é o tema principal de nossa análise e por isso não será
aqui estendida.
6 Esta foi a forma que diferentes moradores encontraram para descrever a disposição das caixas de som na dita
praça, não é uma descrição pessoal minha, sendo proveniente de entrevistas e que foi observada mais de uma vez.
7 Não vou entrar no mérito de o que é ou não é adequado aos ouvidos infantis. A classificação desse conteúdo foi
feita pelos próprios entrevistados.
8 Educação aqui não no sentido de que os indivíduos fossem inicialmente mal educados e precisassem ser “civilizados”,
mas sim uma educação no sentido de mostrar o caminho para se chegar a um ponto específico.
9 Sobre o desenvolvimento desse “querer pertencer“, também chamado “querer ser”, ver TUGENDHAT, Ernst.
Lições Sobre Ética. 8 ed. Petrópolis: Editora Vozes 2010.
10 Sobre o “viver bem” ver SEN, Amartya. A Ideia de Justiça. Trad. Denise Bottmann e Ricardo Doninelli Mendes.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
11 Sobre exclusão social, condições morais mínimas e mínimo ético, ver GONÇALVES, Marcus Fabiano e ARRUDA
JR., Edmundo L. de. Fundamentação Ética e Hermenêutica – Alternativas para o Direito. 1 ed. Florianópolis:
CESUSC 2002.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 361
“OLIMPÍADA NÃO JUSTIFICA REMOÇÃO”:
as experiências de mobilização e luta política pela posse da terra para moradia na Baixada
de Jacarepaguá - Rio de Janeiro 2010-1012
Renato de Souza Dória
Graduando em Ciências Sociais pela UFF e militante-pesquisador do Instituto Histórico da
Baixada de Jacarepaguá – IHBAJA.
Resumo
Temos como objetivo apontar alguns elementos para compreender e discutir as experiências recentes de
mobilização e luta política pela posse da terra para moradia na Baixada de Jacarepaguá a partir de uma
perspectiva de valorização das experiências vividas por famílias de trabalhadores e trabalhadoras que optaram,
dentre os diversos caminhos possíveis em jogo, pelo enfrentamento das ações de despejo e permanecer no
local onde viveram por décadas. Ao mesmo tempo, buscaremos listar alguns processos histórico-sociais mais
amplos, tentando conectar as ações de despejos aos seus múltiplos determinantes, dentre estes: o contexto de
construção de uma infraestrutura mínima para que a cidade sedie eventos esportivos internacionais e,
conseqüentemente, o movimento de valorização de frações do capital na região.
Palavras-chave: Jacarepaguá, Favelas, Resistência, Remoções, Olimpíadas.
Introdução
Este texto requer alguns esclarecimentos quanto ao procedimento metodológico adotado para sua
produção. Como veremos a frente, não contamos com o método de entrevistas para escrevê-lo, pois
uma das situações que compreendi logo nas atividades de campo que resultaram na elaboração deste
material foi uma forte resistência dos moradores de favelas que fazem a luta contra as remoções em
relação a pessoas que se aproximam dizendo estar realizando uma pesquisa acadêmica. Além disso,
quando comecei a atuar no Instituto Histórico da Baixada Jacarepaguá, em 2008, minha intenção
sempre foi atuar como militante com visão de pesquisador e não como pesquisador com visão de
militante. E assim comecei a colaborador como militante de grupo de história local de Jacarepaguá
e apoiador na luta dos moradores de favelas da região.
E sem perceber estava eu, em parte, praticando as recomendações de H. S. Becker (1993) sobre
observação participante e a construção de uma metodologia especifica1 em relação ao sujeito de
pesquisa, pois sempre que possível, tomava notas das situações que achava conveniente em meu
caderno-agenda, mas sem perder de vista o meu propósito principal: colaborar para potencializar as
lutas colocadas pelos moradores de favelas. Este texto é, portanto, produto de esforço e interesse de
compreender como se deram as lutas contra os despejos e a condição da favela na dinâmica social da
região da Baixada de Jacarepaguá no início da década de 2010. O enfoque da abordagem parte da
história de Jacarepaguá e as experiências dos moradores de favelas que protagonizaram estas lutas.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 362
O tema da remoção de favelas tem sido objeto de estudo desde pelo menos a década de 1960 e os
trabalhos que pude consultar deste amplo conjunto, embora poucos, podem ser situados em dois
grandes grupos: o da analise do sentido das políticas de governo de remoção em relação às favelas
(GRABOIS, 1973), (VALLA, 1986) e o da analise das experiências dos moradores das favelas
diante de processos de remoção, considerando também as politicas de governo (VALLADARES,
1978), (SANTOS, 1981). Este texto poderia situar-se no segundo grupo devido à abordagem, porém
com duas ressalvas: a de se tratar de uma tentativa de dar conta de um breve momento do processo
de remoção, o de como foi o processo de luta e resistência dos moradores em uma região ainda não
estudada. A outra ressalva é que com esta abordagem pretendo dar destaque a formas de prática
política em que os moradores de favelas recorrem a meios de ação distintos do paradigma do processo
eleitoral, da “relação de troca entre voto e o favor” obtido com algum candidato ao parlamento. Em
minha opinião, ao discutir neste nível e com este diferencial, acredito poder contribuir para dar
relevo a casos concretos em que se pode, minimamente, inventariar e reconstruir, a partir da observação
participante aliada a fontes de periódicos, o protagonismo nas práticas políticas de grupos que,
levianamente, são classificados como desinteressados por política.
Baixada de Jacarepaguá: um século de conflitos pela posse da terra
Tendo a questão dos conflitos fundiários como um dos determinantes históricos de relevo nas
configurações atuais da região, pouco foi registrado sobre os conflitos pela posse da terra. Além
disso, as analises até agora realizadas diferenciam na abordagem. Assim, enquanto algumas se limitam
apenas aos registros dos fatos2 (CORREA, 1936); outras buscam compreender estes conflitos a
partir de transformações estruturais mais amplas e relacionam-nos à conjuntura das políticas de
governo (MELO & GAFFNEY, 2010); já outras, esforçam-se em compreender a fundo as
mobilizações do conjunto dos sujeitos e famílias envolvidos nos conflitos fundiários, no sentido de
investigar o processo de luta e resistência para garantir a posse da terra (SANTOS, 2005) e (Jornal
Abaixo Assinado de Jacarepaguá, 05 e 06/2011).3
Nas décadas de 1980 e 1990, empreendimentos comerciais e residenciais construídos na Baixada de
Jacarepaguá, como shopping Downtown, o Parque Mello Barreto à margem da avenida Via Parque
e o condomínio Península, foram construídos após a destruição completa de favelas que antes existiam
nos respectivos lugares, como o caso da favela Via Parque e a Vila Canal de Marapendi.4 Na década
de 90, logo após a ECO-92, moradores da Vila Autódromo impediram com barricadas uma das
primeiras investidas de remoção contra a favela.5 Já na década de 2000, durante a conjuntura do
Pan-Americano, Vila Arroio Pavuna, Vila Restinga, Canal do Anil e Canal do Cortado também
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 363
foram alvo de ações de despejo para remoção e tiveram algumas casas destruídas.6 E a Vila
Autódromo, juntamente com diversas favelas da região, em 2009 lançaram o MONJR (Movimento
Olimpíadas não Justifica Remoção).
Ao longo do ano de 2010, depois de divulgado que a cidade do Rio de Janeiro sediaria as próximas
edições de algumas competições esportivas de nível internacional (Jogos Mundiais Militares 2011,
Copa das Confederações 2012, Copa do Mundo 2014 e Olímpiadas 2016) um projeto de preparação
da cidade para receber tais eventos foi iniciado. Governos Federal, Estadual e Municipal, atuando
em parceria com as mais diversas empresas privadas multinacionais (OAS, Odebrecht, Andrade
Gutierrez, Carvalho Hosken e outras) se encontram no planejamento e controle da execução do
referido projeto de transformação urbana.
O objetivo principal da proposta é dinamizar a mobilidade na cidade com obras de grande impacto,
dentre as quais destacamos: os BRTs (Transolímpico, Transoeste, Transcarioca e Transbrasil), Linha
4 do Metrô, obras no Maracanã e entorno do Engenhão, obras urbanísticas na região Central,
Portuária, Norte e Oeste; contando ainda com obras de menores portes, como alargamento das
principais vias de comunicação e no entorno dos bairros com maior número de instalações construídas
para as competições; construção de viadutos e vias expressas.7 Enfim, intervenções para potencializar
o acesso e a circulação de pessoas e mercadorias pela cidade.
Despejos e a mídia
Na zona Oeste, os primeiros passos no sentido de dar início às obras acima, ganhou rapidamente
espaço nas páginas de variados jornais, de diversas orientações políticas, tendo em comum a ênfase
nos despejos ou remoções de famílias de trabalhadores realizados sob o comando de algumas
secretarias da prefeitura do Rio e com o apoio de diversas agencias do poder estatal. Sem pretender
fazer uma analise sobre as representações da mídia acerca das ações de despejo ocorridas na região,
irei, contudo, apenas dar relevo ao tipo de mídia que dá a notícia: se é de pequena, média ou grande
circulação; se afirma ser vinculada a organizações políticas, movimento social ou praticante de
determinado comportamento político. Relacionar estas características com a forma como a notícia
é veiculada é um exercício descritivo e pretendo somente situar o leitor desinformado.
No segmento dos jornais de bairro e de pequena circulação, com forte expressão denuncista dos
“descasos do poder público”, o JAAJ dedicou quase uma página inteira para informar que de um
total de 2.928 famílias moradoras de 40 favelas poderiam ser despejados dos imóveis onde moram
na Baixada de Jacarepaguá, salientando que o “pretexto das Olimpíadas no Rio passa por cima de
direitos constituintes do cidadão”.8
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 364
Ainda no segmento dos jornais de pequena circulação, porém, seguindo uma orientação de crítica e
de formulação de propostas de combate não só aos governos, mas, sobretudo, às relações sociais
capitalistas, a Frente Internacionalista dos Sem Teto (FIST) dedicou em seu informativo duas páginas
inteiras para denunciar o “massacre nas remoções em todo o Brasil”.9 Na mesma edição, informava
também sobre ações de despejos em três favelas localizadas na Baixada de Jacarepaguá: Vila Taboinha,
Vila Recreio Dois e Vila Harmonia. Nesta mesma linha de crítica e combate político, o Jornal A
Nova Democracia (AND), um boletim mensal de orientação marxista-leninista da vertente maoísta,
também denunciou que no dia 9/11/2010 “oficiais de justiça acompanhados da tropa de choque da
PM foram à favela Vila Taboinha”, em Vargem Grande, para despejar “as cerca de 400 famílias que
vivem há cerca de cinco anos no local”.10
No segmento da grande mídia, o jornal O Globo, notório por se posicionar em favor da classe média
alta e patronal, noticiou em setembro do mesmo ano, no Recreio dos Bandeirantes, a existência da
“maior polêmica” que ronda na região: “a demolição de cerca de 157 imóveis da favela da Restinga”,
e que “a subprefeitura da Barra e Jacarepaguá notificou dezenas de moradores” pedindo que “os
imóveis fossem desocupados no prazo de cinco dias.”11 Em seguida, este jornal noticiou que o BRT
Transoeste “1ª obra Olímpica, parava na justiça” e o motivo: “liminares impedem a demolição de
210 casas e lojas em favelas na Avenida das Américas no traçado BRT”.12
Despejos, mídia e valorização do capital imobiliário
Assim como os despejos de famílias moradoras de favelas da Baixada de Jacarepaguá foram
amplamente noticiados por diversos grupos de mídia, tendo como justificativa as obras relacionadas
à preparação da cidade para sediar competições esportivas internacionais, neste momento tentaremos
apresentar outro movimento que acreditamos estar relacionado às ações de despejos: a valorização
de frações do capital na região. Decorridos alguns meses após o inicio das obras citadas acima,
pôde-se ler no Globo a noticia abaixo:
Graças às expectativas geradas pelas obras de infraestrutura viária, grandes
empreendimentos são anunciados na Barra e no entorno da Baixada de
Jacarepaguá. Ali, a Avenida Embaixador Abelardo Bueno desponta com ambições
de se tornar o novo Centro Metropolitano do Rio, como teria imaginado, há 40
anos atrás, o arquiteto e urbanista Lúcio Costa (O Globo, 28/04/2011).
Mais adiante, Caetano Sani, diretor da Brookfields Incorporações, empresa do setor imobiliário que
lançará o empreendimento Barra Business, afirma que o valor do metro quadrado negociado nesta
região já alcançara a cifra de R$14.500,00. No decorrer do texto, veem-se claramente passagens
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 365
que apontam para o mecanismo de funcionamento da valorização de imóveis na região, como o
trecho a seguir:
Para o mercado imobiliário, tem especial importância os investimentos em
infraestrutura viária provocados pelos jogos, que prometem resolver os
engarrafamentos no acesso à Barra e promover novo salto de valorização na
região... (Idem).
Com efeito, percebe-se que a conjuntura 2010-2011 apresentou-se bastante favorável para a
acumulação de capital no setor imobiliário e da construção civil (imóveis e infraestrutura viária) na
região da Baixada de Jacarepaguá e, se por um lado, as obras de infraestrutura produziram este
efeito para alguns grupos sociais, para os moradores de favelas da região, como vimos acima, o
efeito foram ações de despejos, ou seja, as tentativas de tirá-los da posse de suas terras de moradia.
A Resistência dos moradores e as experiências de mobilização e luta política pela posse da
terra para moradia na Baixada de Jacarepaguá
Alguns jornais que noticiaram os despejos, também registraram as lutas de resistência destas mesmas
famílias de trabalhadores moradores de favelas. Vamos ao primeiro relato. Este diz respeito à
resistência dos moradores da favela Vila Taboinhas, situada ao final da Estrada dos Bandeirantes,
próximo à subida da Serra da Grota Funda:
A sentença da juíza da primeira vara cível da Barra da Tijuca, Érica Batista de
Castro, não foi efetivada graças à heroica resistência dos moradores, que por
horas a fio mantiveram um bloqueio humano no único acesso à favela e ergueram
uma imensa barricada no caminho da tropa de choque (AND, 12/2010).
Já na favela da Restinga, situada na Avenida das Américas na altura do Recreio Shopping, a
subprefeitura da região se via frustrada ao final do mês de setembro de 2010, pois apesar de ter
notificado “dezenas de moradores” solicitando a desocupação dos imóveis desde julho, “nenhuma
notificação fora atendida”.13 Do outro lado da mesma avenida, na favela Vila Harmonia, também no
Recreio
Durante oito longos meses, os moradores resistiram, tendo muitos deles sofrido
agressões físicas, prisões, intimidações e outras arbitrariedades de funcionários
da prefeitura com a cobertura de policiais civis e militares (AND, 04/2011).
Como vemos, os registros acima apontam para situações em que os moradores das favelas, de certa
forma, ofereceram resistência duradoura contra as ações de despejos realizadas pelas agencias do
executivo municipal, legitimada pelo judiciário estadual e contando com o apoio de forças policiais
civis e militares. Mas o que lemos nas passagens são relatos de sujeitos que acompanharam as ações
de resistência dos moradores de favelas e não os destes. Além desta questão de método, outra
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 366
pergunta se impõe: o que pensavam e o que argumentavam os moradores que optaram pelo
enfrentamento? Como eles justificavam a sua permanência na moradia por eles ocupados? Quais
elementos de sua vida cotidiana estavam em jogo para que eles optassem pelo enfrentamento? Mesmo
tendo optado por não realizar entrevistas diretas com estes moradores, podemos ter uma noção
aproximada sobre o que eles pensavam, o que argumentavam e o que para eles estava em jogo ao
decidir pela luta contra os despejos, a partir de alguns depoimentos que estes moradores deram a
repórteres.
Selecionamos três depoimentos para apresentar e analisar para compreender e responder em certa
medida as perguntas que levantamos. A moradora da favela Vila Restinga, Francisca Pinho, de 43
anos, ao ser questionada sobre a situação da notificação da sua família, afirmou que só tinha “um
pedaço de terra para a sobrevivência” e ainda “querem tirar a gente daqui”.14 Francisca trabalhava
com parentes na marcenaria que mantinha no andar de cima da casa onde morava com a família e
para ela manter a posse de seu pedaço de terra significava poder continuar trabalhando e ajudando
no sustento da sua família. Uma moradora da Vila Taboinha dá maiores detalhes sobre o emblemático
09/11/2010, quando os moradores, apoiados por movimentos sociais de Jacarepaguá, ofereceram
uma demonstração de luta e resistência popular. Após resistir ao confronto com forças policiais,
Silvana Dutra, de 27 anos, diz que
A Taboinha é uma nova vida que estamos construindo. Imagine só se nós temos
como gastar 400, 500 reais de aluguel por mês tendo filho pra criar. É muito
fácil para essa juíza chegar aqui com um pedaço de papel dizendo que agente
tem que sair em 48 horas. Nós somos trabalhadores e se hoje estamos aqui é por
que trabalhamos muito para construir nossas casas. Ninguém aqui nasceu em
berço de ouro. Nós somos pobres sim, mas queremos dar uma vida digna aos
nossos filhos. Ela não pode,simplesmente, chegar aqui nos tratando como
cachorros, como bandidos. Ela não pode juntar um monte de polícia, BOPE,
tropa de choque, para tirar a gente daqui (AND, 12/2010).
Para Silvana, vemos que o trabalho legitima a sua permanência na sua moradia em Vila Taboinha, e
que, a continuidade desta situação, morar sem ter custo de aluguel, é fundamental para garantir uma
vida melhor para criar seus filhos. Estes são alguns dos argumentos que tornam viável e legitima a
decisão de resistir e lutar para garantir a posse da moradia. Além disso, pelas palavras, vê-se que a
moradora questiona a validade da sentença judicial e o uso da força policial, já que ali ninguém é
bandido, todos são trabalhadores e embora sejam pobres eles reconhecem que merecem uma vida
digna. O último depoimento é da moradora da Vila Harmonia Márcia da Costa, mãe de um filho:
Ontem, eles chegaram aqui, policiais civis e militares, para nos ameaçar e nos
intimidar. Eles se negaram a socorrer minha vizinha, caída no chão, tendo um
AVC. Ela estava com o lado esquerdo do corpo dormente. A minha avó passou a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 367
noite inteira acordada, andando para lá e para cá. Ela nasceu aqui, tem 78 anos. A
gente só aceitou sair, porque temos medo de perder algum morador. Eles não nos
mostram documento nenhum, só xerox. Agora, quando temos que apresentar algum
documento, tem que ser original. Eles chegaram dizendo que iam tirar a gente custe
o que custar (AND, 04/2011).
Considerando as informações do relato, ameaças e intimidações por parte da polícia, o medo de ter
um parente ou vizinho morto, foram os limites suportados por esta moradora até decidir por finalmente
sair. O interessante é destacar a utilização do tempo de moradia do parente como meio de legitimar
a permanência no local. E o questionamento, assim como no caso da moradora de Vila Taboinha,
sobre a validade da ordem de execução de despejo, demonstra que os moradores conheciam as
regras jurídicas que regulam as situações que estavam vivendo. Os moradores de Vila Harmonia
resistiram na luta pela suas moradias durante oito meses e no final do fevereiro de 2011 a maioria das
moradias destas famílias estava destruída (Idem).
A posse da terra, a preservação da família, a valorização do trabalho como meio de garantir tanto a
moradia quanto a sobrevivência da família, ou seja, a manutenção de todo um modo de vida foram
os argumentos utilizados pelas famílias de trabalhadoras para fazer a luta de enfrentamento das
ações de despejo. Partindo desta premissa, avançamos até o objetivo final deste trabalho: perguntar,
por fim, como foi o processo de mobilização destas pessoas para a luta e resistência contra os
despejos.
São as anotações que fiz em minha observação participante15 que constituem a fonte para elaborar
a resposta à pergunta sobre o processo de construção da luta dos moradores de favelas na Baixada
de Jacarepaguá. Sem temer o risco de parecer um ensaísta, buscarei apresentar as informações do
modo mais adequado possível às exigências da academia16. Os espaços mais interessantes que pude
conhecer foram os das reuniões do Conselho Popular de Moradia do Rio de Janeiro. Resumindo, o
espaço é propicio para o encontro e aprendizado entre militantes de movimento social de luta por
moradia, de organizações políticas, diversas categorias profissionais apoiadoras da luta popular
(advogados, professores, estudantes, engenheiros, urbanistas, etc.) e moradores de favela (ou não)
que tiveram pouco ou nenhum contato com lutas políticas e estão nos encontros por força da eminência
de perderem suas casas por conta das ordens de despejos. Além da socialização com pessoas que
viveram situações como as suas, os moradores recém-chegados neste espaço se informam sobre as
questões jurídicas que envolvem situações de despejos e sobre as experiências de resistência contra
os despejos em diversos lugares da cidade, encontrando, assim, apoio de diversas pessoas.
Estas reuniões ocorreram de quinze em quinze dias em encontros intercalados, uma em local fixo, no
bairro da Glória, e a seguinte sempre numa localidade que estava sendo alvo de processo e ação de
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 368
despejo. Em uma delas, pude contar a presença de moradores das seguintes favelas da Baixada de
Jacarepaguá: Vila Harmonia, Vila Restinga, Vila Arroio Pavuna, Vila Autódromo, Vila Azaléia, Outeiro
e Vila Recreio Dois (A. E. Conselho Popular, 24/08/2010). Destas, Vila Harmonia, Vila Restinga e
Vila Taboinhas receberam assembléias do conselho popular de moradia. Nesta última, assembléias
ocorreram durante o mês de novembro devido a ocasião da resistência ocorrida no dia 09/11/2010
(A. E. Vila Taboinhas, 15/11/2010). Neste encontro do dia 15/11, os moradores desta favela decidiram,
em assembléia, por continuar a luta de resistência frente ao interesse da SMH e da subprefeitura
local em despejar centenas de seus moradores.
Um outro momento de socialização e aprendizado que pude notar foram os atos e protestos em
prédios estatais ou em espaços públicos, passeatas e os “mutirões comunitários” (A. E. Vila
Autódromo, 28/10/2011). Estes últimos, ocorridos na Vila Autódromo no final de 2011, foi uma
iniciativa de moradores em conjunto com apoiadores da luta desta favela que militam em diversos
movimentos sociais (Rede Contra Violência, Movimento Nacional de Luta pela Moradia, IHBAJA).
Consistiu em realizar em grupo formada por moradores da favela e apoiadores, uma caminhada indo
de porta em porta, para conversar sobre a situação da remoção (A. E. Vila Autódromo, 20/11/
2011). O “mutirão comunitário” foi uma resposta à intensificação das investidas da SMH, ocorridas
em outubro, em pressionar os moradores a aceitarem a proposta de reassentamento em um terreno
cuja compra, dois dias depois da apresentação do projeto pelo Secretário de Habitação Jorge Bittar,
fora cancelada pelo Prefeito Eduardo Paes devido a denuncias de irregularidades: a empresa contratada
era subsidiária de duas outras empresas maiores do ramo imobiliário que haviam feito doação para
a campanha do Prefeito em 2008.17 Em 17 de janeiro de 2012, os moradores da Vila Autódromo
comemoraram em assembléia a suspensão da licitação da obra do projeto Parque Olímpico, em
decisão proferida pela 5ª vara de fazenda pública, em ação movida pela associação de moradores em
conjunto com o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado.
Conclusão
Considerando a conjuntura de preparação da cidade do Rio de Janeiro para sediar algumas competições
esportivas internacionais que ocorrerão nos próximos anos, percebemos que na Baixada de
Jacarepaguá, região historicamente marcada pelos conflitos fundiários, as ações de despejos noticiadas
estão ligadas à execução das obras que visam dinamizar a circulação pela cidade, facilitando o
deslocamento dos locais de chegada aos locais dos jogos. No bojo destas transformações na
infraestrutura urbana, detectamos de um lado, a valorização do capital imobiliário puxado pela
especulação com terras onde estão sendo construídos novos centros comercias de alto valor no
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 369
mercado; e do outro, a execução de ações de despejos sobre populações moradoras de favelas, onde
se vê dois usos distintos da terra: negócio e moradia. Assim, verifiquei uma possível continuidade do
movimento iniciado na década de 1990 com o momento presente e os conflitos entre executores de
despejos e moradores, embora não seja a forma clássica capital x trabalho, pode ser entendida como
uma derivação desta. Um outro ponto que merece ser retomado aqui como destaque foi o modo
como rastreamos a valorização do capital imobiliário e o relacionamos com o movimento dos despejos
dos moradores de favelas da região. Antes de mim, este procedimento foi realizado por Santos
(2005) ao analisar a luta de posseiros na mesma região há 60 anos atrás, quando a Baixada de
Jacarepaguá ainda era uma zona rural.
A analise comparada das noticias de jornais que acompanharam o processo de execução das ações
de despejos realizados por agencias do executivo municipal, confrontando a forma que foi noticiada
tais ações entre os jornais de grande e pequena circulação e de orientação políticas distintas, serviu
para dar visibilidade à situações em que os próprios moradores estiveram no protagonismo de ações
de prática política: argumentaram, criticaram, organizaram-se, lutaram e resistiram frente às ações
de despejos contra eles voltadas. Este procedimento metodológico no tratamento das fontes periódicas
foi fundamental para realizar a abordagem proposta e dar relevo ao motivo pelo qual os moradores
de favelas lutaram: para garantir a continuidade de um modo de vida alicerçado na posse da terra, na
moradia a baixo custo, no sustento da família e na valorização do trabalho como meio de garantir o
acesso a todos este elementos. Quanto às fontes derivadas das anotações de observação participante,
tiveram importância para reconstruir e revelar um processo de construção de luta bastante complexo:
que contou com diversos sujeitos moradores e não-moradores de favelas (os apoiadores); se passou
em diversos momentos e espaços e pode-se ver que esta construção se desenvolveu coletiva e
gradativamente a partir da troca e acúmulo de experiências de pessoas recém-chegadas e experientes
na luta social. Estes, no meu entendimento, foram procedimentos metodológicos extremamente
adequados para o propósito da abordagem.
Bibliografia
BECKER, Howard Saul. Métodos de Pesquisa em Ciências Sociais. São Paulo: Hucitec, 1993.
CORREA, Armando Magalhães. O Sertão Carioca. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1936.
COSTA, Valdemar. O Vale do Marangá. Rio de Janeiro, 1985.
GAFFNEY, Christopher; MELO, Erick Silva Omena de. Mega-eventos esportivos no Brasil: uma
perspectiva sobre futuras transformações e conflitos urbanos. Rio de Janeiro: Observatório da
Metrópoles, FASE, IPPUR/UFRJ, 2010.
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GRABOIS, Gisélia Potengy. Em busca da integração: analise de remoção de favelas no Rio de
Janeiro. Dissertação de Mestrado: PPGAS/MN/UFRJ, 1973.
RIO DE JANEIRO. Atlas Fundiário do Estado do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Estadual
de Assuntos Fundiários e Assentamentos Humanos, 1992.
SANTOS, Leonardo Soares dos. Um sertão entre muitas certezas: a luta pela terra na zona rural da
cidade do Rio de Janeiro: 1945-1964. Dissertação de Mestrado: Niterói, PPGH/UFF, 2005.
SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. Movimentos Urbanos no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro:
Zahar, 1981.
VALLA, Victor Vincent (org.). Educação e Favela: políticas para as favelas do Rio de Janeiro,
1940-1985. Rio de Janeiro: Vozes co-ed. Abrasco, 1986.
VALLADARES, Lícia do Prado. Passa-se um casa: analise do programa de remoções de favelas do
Rio de Janeiro. 2ª edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
VIANNA, Hélio. Baixada de Jacarepaguá: sertão e zona sul. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal
de Cultura, Turismo e Esporte: 1992.
Fontes Periódicas
·A Nova Democracia
·Abaixo Assinado de Jacarepaguá
·Frente Internacionalista dos Sem Teto
·Pé no Chão - Jornal da FAF-Rio
·Jornal do Brasil
·O Globo
Anotações de etnografia
·Anotações etnográficas do Conselho Popular
·Anotações etnográficas da Vila Autódromo
·Anotações etnográficas da Vila Taboinhas
Sítios eletrônicos:
·http://www.fazendomedia.com/daqui-eu-nao-saio-daqui-ninguem-me-tira-%e2%80%93-vila-autodromo-resite-aremocao/. Acessado em 02/01/2012.
NOTAS
1 Para construção metodológica deste texto, devo muito às leituras que fiz de H. Becker quando comecei a graduação
em Ciências Sociais na Universidade Federal Fluminense, o que me serviu para perceber que havia feito a escolha
certa quanto à construção de um procedimento metodológico adequado ao sujeito que pesquisei, ao invés de tomar
uma metodologia pronta emprestada.
No entanto, só tive conhecimento do autor , de suas contribuições sobre o método da observação participante e sobre
a autoconstrução teórico-metodológica no ano de 2011, ou seja, um ano depois de começar a colaborar nas lutas dos
moradores de favelas da região.
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2 Na literatura, talvez um dos primeiros registros sobre conflitos fundiário no século XX na região é feito na década
de 1930, por Armando Magalhães Correa, na obra seminal O Sertão Carioca. Para uma analise contextualizada
desta esta obra ver: SARMENTO, 1998.
3 Jornal local de pequena circulação, de periodicidade inconstante, com tiragem de aproximadamente 3 mil exemplares
por edição e distribuído na Baixada de Jacarepaguá. No texto, daqui por diante JAAJ.
4 Sobre as remoções das favelas Via Parque e Vila Canal de Marapendi ver: Jornal do Brasil, 15/08/1996; o jornal
da FAF-Rio Pé no Chão, ano II, nº 09, Agosto/94; e Jornal do Brasil de 30/08/1994.
5 Ver a este respeito: Jornal do Brasil, 15/09/1993.6 Citado por: MELO & GAFFNEY, p. 8.
7 Ver O Globo, 27/11/2010.
8 Ver Jornal Abaixo Assinado de Jacarepaguá, 06/2010.
9 Jornal da FIST, 12/2010.
10 Jornal A Nova Democracia, 12/2010.
11 Jornal O Globo, 17/9/2010.
12 Jornal O Globo, 17/12/2010.
13 O Globo, 17/09/2010.
14 Idem.
15 Período de abril de 2010 até outubro de 2011, quando freqüentei reuniões de diversos movimentos sociais de luta
por moradia, assembléias em favelas, atos públicos, eventos, e outros.
16 Daqui pra frente adotarei a seguinte indicação sobre este tipo de fonte: Anotação Etnográfica, Espaço ou Local,
dd/mm/aa. Irei abreviar da seguinte forma, ex.: A. E. Vila Restinga, dd/mm/aaaa. Para esta formulação, me inspirei
no trabalho etnográfico de Santos sobre três favelas do Rio de Janeiro (SANTOS, 1981: 11-27)
17 Para ver a matéria na íntegra sobre este episódio, acesse : http://www.fazendomedia.com/daqui-eu-nao-saiodaqui-ninguem-me-tira-%e2%80%93-vila-autodromo-resiste-a-remocao/
.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 372
LÓGICAS ESTATAIS E DINÂMICAS CRIMINAIS NO INTERIOR PAULISTA
David Esmael Marques da Silva
PPGS/UFSCar1
[email protected]
Resumo
O presente trabalho apresenta os resultados parciais de uma pesquisa de mestrado em andamento. Iniciamos
expondo as intenções do projeto de pesquisa, passamos pelo desenvolvimento da pesquisa de campo e as
narrativas compostas a partir dela, e encerramos com o apontamento de questões suscitadas pelos dados e
com um esboço de interpretação sobre o material empírico coletado. Partindo da bibliografia atual sobre
violência e administração de conflitos que aponta para uma nova organização das dinâmicas criminais – com
o protagonismo da organização criminal PCC (Primeiro Comando da Capital) - sobretudo a partir da virada
para os anos 2000, e apoiado em uma pesquisa empírica composta por visitas a equipamentos da administração
municipal e entrevistas com agentes estatais ligados ao Departamento de Serviço Social e Cidadania de
Climatina, o presente trabalho descreverá algumas formas de administração de situações de conflitos
observadas nas relações entre agentes de instituições estatais e agentes de dinâmicas criminais em um bairro
periférico da cidade.
Palavras chave: administração de conflitos; instituições estatais; dinâmicas criminais; Estado; crime.
Introdução
Esta comunicação tem como objetivo expor os resultados parciais de uma pesquisa de mestrado em
andamento. Trata-se de apresentar alguns resultados empíricos e os primeiros passos no sentido de
formular uma hipótese interpretativa inicial para os mesmos. Iniciaremos com uma exposição das
inquietações e questões iniciais que levaram à construção do projeto de pesquisa, passaremos pelos
objetivos e métodos utilizados no percurso do trabalho de campo para em seguida apresentar as
narrativas coletadas na pesquisa empírica e concluir apresentando algumas questões suscitadas pelas
observações e um esboço de interpretação para os dados coletados.
O projeto de pesquisa do qual este texto é o resultado parcial propôs estudar as relações entre
agentes de dinâmicas criminais e agentes de instituições estatais na cidade de Climatina2, uma
cidade com aproximadamente 200 mil habitantes localizada na região central do estado de São
Paulo.
A pesquisa proposta se desenhou em dois momentos. As primeiras reflexões acerca da temática
surgiram quando presenciei uma situação empírica enquanto estagiava no Departamento de Serviço
Social e Cidadania (DSSC) de Climatina3. Além de alguns setores com atribuições relacionadas às
políticas sociais especiais e uma unidade na região central, o DSSC conta com cinco CRAS (Centro
de Referência em Assistência Social) e um número um pouco maior de Centros Comunitários
distribuídos segundo as regiões da cidade, onde são oferecidos serviços de assistentes sociais,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 373
terapeutas ocupacionais, educadores, além de atividades e oficinas culturais e profissionalizantes
que variam ao longo do ano.
A situação que presenciei, e que será apresentada em maior detalhe adiante, colocava em relação
funcionários do DSSC, isto é, agentes estatais, e um conhecido comerciante de drogas ilícitas da
região, um agente de dinâmicas criminais. Tratava-se de uma negociação referente à duração de
uma festa promovida pela prefeitura para a entrega da reforma do Centro Comunitário e da
revitalização do bairro. A negociação levada adiante por um funcionário da prefeitura que conhecia
o comerciante de drogas teve como desfecho a realização da festa por algumas horas a mais do que
a organização desejava, sob responsabilidade do segundo. Em outras palavras, houve um acordo.
A situação brevemente descrita neste momento suscitou questões relativas às diversas formas de
relacionamento possíveis entre agentes de diferentes instituições estatais e agentes das dinâmicas
criminais. Podemos visualizar um evento no qual uma instituição estatal está presente em uma região
periférica e entra em contato com um agente de dinâmicas criminais. Trata-se de uma instituição
que, em princípio, não deveria se relacionar com as dinâmicas criminais e, no entanto, a encontramos
nesta interface em um território periférico. Nesse sentido, outros questionamentos podem ser
levantados: haveria outras situações nas quais o cotidiano de trabalho dos agentes do DSSC em
regiões periféricas da cidade os colocam em contato com dinâmicas criminais? Ou ainda: quais as
percepções que os agentes estatais que trabalham no DSSC, em diferentes níveis de hierarquia,
elaboram acerca das dinâmicas criminais?
O segundo momento da construção da proposta se deu no contato com a bibliografia de referência
acerca do “crime” ou “mundo do crime”. Estes conceitos são trabalhados por uma geração de
pesquisadores que estudam questões relativas ao mercado ilegal de drogas e roubos, e uma moralidade
presente entre os agentes deste mercado e nos territórios por eles ocupados, sejam áreas urbanas
periféricas ou unidades prisionais. Os principais autores que debatem esses conceitos são Telles
(2010), Feltran (2011), Biondi (2009), Biondi; Marques (2009), Hirata (2010), Dias (2011). Tratase, portanto de uma esfera de ação específica onde se desenvolvem atividades criminais, apesar do
que as nomenclaturas “crime” ou “mundo do crime” possam sugerir.
Pudemos perceber um alinhamento entre estes trabalhos no que tange a questão da reorganização
das dinâmicas criminais que envolvem em especial o tráfico de drogas na virada dos anos 2000,
sendo o surgimento e desenvolvimento do PCC (Primeiro Comando da Capital) em São Paulo,
inicialmente dentro dos presídios e depois transbordando estes, apontado como o principal vetor da
referida reorganização. Tendo esse entendimento em vista, passamos a questionar de que maneira os
agentes das instituições estatais concebem a reorganização das dinâmicas criminais e qual seu modo
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de relacionamento, suas praticas em relação a este “mundo do crime”. Seria o PCC um ator relevante
nas percepções dos agentes de diferentes instituições estatais no interior de São Paulo? Em que
medida o contexto de Climatina se aproxima dos fenômenos observados pelos autores com relação
à cidade de São Paulo?
Desde as inquietações iniciais da pesquisa até o processo de coleta de dados por meio de entrevistas
semiestruturadas e observações realizadas junto a agentes de instituições estatais em seu trabalho
cotidiano os questionamentos principais deste trabalho se diversificaram. O contato com as narrativas
as quais tivemos acesso possibilitaram a construção de um quadro composto por situações de conflito
com diferentes características e administrado de formas distintas em cada contexto pelos mesmos
agentes, isto é, com recurso a diferentes expedientes para fazer sua administração, nem sempre
utilizando os canais institucionais para tanto.
A disposição das narrativas que se seguem tem como objetivo demonstrar a forma como a pesquisa
foi construída e como novos questionamentos foram percebidos. Passamos de um momento onde a
principal problemática era a relação entre agentes de instituições estatais e agentes das dinâmicas
criminais em um bairro periférico em direção a outro momento caracterizado pelo reconhecimento
de um quadro complexo de situações que colocam sob foco agentes estatais e suas percepções
acerca das alternativas para administração de conflitos acessíveis em cada contexto.
Considerações metodológicas
O caminho que percorremos até este momento da pesquisa se aproxima em alguns aspectos ao
modelo apresentado por Cicourel (1980). A primeira situação empírica descrita no início deste trabalho
contribuiu para que os questionamentos centrais fossem construídos no princípio da pesquisa. O
busca dos interlocutores para a realização das entrevistas e os roteiros que as guiaram tinham como
objetivo nos ajudar a conhecer quais as percepções dos agentes estatais sobre as dinâmicas criminais
do bairro onde trabalham cotidianamente, e quais outras relações poderiam se desenvolver entre
agentes estatais e agentes das dinâmicas criminais neste contexto, para além da situação de negociação
descrita.
No decorrer do período de realização das entrevistas, em especial a entrevista com Luma no CCE,
a possibilidade de realizar pesquisa de campo através da observação participante foi construída.
Observar os agentes estatais e seu trabalho mais de perto, suas relações com a população do bairro
e os problemas que enfrentam cotidianamente se mostraram oportunidades importantes para o
conhecimento das informações que pudessem ajudar a responder as questões iniciais da pesquisa. O
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 375
registro de todas as histórias ouvidas foi feito em diário de campo durante e após cada visita
semanal realizada.
Para a sistematização dos dados coletados foi necessário o afastamento da pesquisa de campo. A
revisão e análise do material produzido possibilitou a formulação de novas questões de pesquisa. A
partir de uma resposta, ao menos parcial, às perguntas iniciais da pesquisa. Os dados nos
possibilitaram perceber que os agentes estatais que trabalhavam na região do Jardim Encosta, ou
que conheciam o bairro antes mesmo de assumirem posições no DSSC, por exemplo, identificavam
moradores da região, ligados às dinâmicas criminais do bairro, aos quais poderiam recorrer em
certas situações que precisavam administrar, sobretudo quando se tratava de problemas de
relacionamento com a população, danos e furtos ao patrimônio público. Os dados, no entanto,
compuseram um cenário no qual os mesmos agentes estatais ao se deparar com situações de
conflito com outras características, optavam por se utilizar de outros expedientes para administrálas, podendo mesmo recorrer a instituições ou canais públicos destinados a tanto. Somou-se a este
cenário a identificação de situações de conflito onde diferentes instituições estatais oferecem
respostas por meio de distintos expedientes, legais, extra-legais ou ilegais.
A composição deste cenário complexo nos leva a questionar qual o estado de relações desenvolvidas
nestes contextos permitem que as situações de conflito analisadas sejam administradas de formas
tão diversas. Neste sentido, perguntamos a literatura das ciências sociais: Como foi possível aos
agentes das dinâmicas criminais se tornarem instância de administração de conflitos em regiões
periféricas das cidades? Alguns passos neste sentido foram dados na Introdução deste trabalho, ao
se comentar o processo de consolidação do PCC como grupo hegemônico no sistema prisional
paulista. A título de sequencia no desenvolvimento da pesquisa, devemos conhecer o que a
bibliografia discute acerca da expansão desta dinâmica para além dos presídios.
Deste questionamento, deriva outro, mais específico: quais as relações entre o processo descrito
pela bibliografia e o contexto desta pesquisa? As pistas indicadas pela literatura devem nos ajudar
a refletir sobre nossos dados. Em outro sentido, questiona-se: como é possível a atuação de grupos
de extermínio constituídos no interior de uma instituição estatal?
A utilização de categorias de análise “agentes estatais”, “agentes das dinâmicas criminais” ou “agentes
criminais” representa uma necessidade de nomeação para os agentes em questão que expressa seu
principal posicionamento nas relações sociais do bairro, segundo a observação que pudemos
desenvolver. O que não significa, portanto, que estas categorias não sejam problemáticas quando
nos debruçamos sobre zonas de intersecção entre estes agentes. Neste sentido, na ausência de
melhores definições, seguimos adiante com essa ressalva.
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O CCE e sua dinâmica
O Centro Comunitário do Jardim Encosta, ou CCE, como é mais conhecido, fica na principal
avenida do bairro. Sua construção robusta contrasta bastante com a paisagem do bairro, composto,
sobretudo por habitações muito simples. O CCE possui a cobertura arredondada da quadra e o
reservatório de água em formato de cilindro bastante alto, ambos bastante visíveis a quem passa pela
avenida.
A principal atividade desenvolvida pelo CCE no período em que o visitei é o chamado projeto4 com
crianças de cinco a doze anos. Este projeto é desenvolvido em dois períodos, as crianças que vão
para a escola na parte da manhã frequentam o projeto à tarde, e as crianças que estudam à tarde
frequentam o projeto pela manhã. Há um monitor responsável pelo projeto, que é quem acompanha
as crianças dentro da sala, onde trabalham escrita, leitura, colorem desenhos e brincam. A cada dia
há uma proposta. Na segunda-feira, por exemplo, o dia é de atividade livre e as crianças podem levar
seus próprios brinquedos, ou utilizar os brinquedos do CCE. Podem ainda brincar com bola na
quadra. Tanto na parte da manhã como da tarde há merenda para as crianças.
A equipe que trabalha no CCE é composta por oito pessoas. A supervisora é Luma, Dona Divina é
a merendeira e Cândida é a faxineira. Caruso e Celso são os zeladores. Há também o professor do
projeto, o professor do futebol e a professora do projeto de alfabetização.
Projeto e construção
No local onde hoje existe o CCE antigamente havia apenas um campo de futebol. A construção do
CCE se deu entre 2003 e 2004, no âmbito de um grande projeto de reestruturação urbana financiado
pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento - BID.
O período entre a inauguração do CCE em 2004 e sua reforma em 2011 é marcado pela utilização
deste espaço por agentes das dinâmicas criminais do bairro. Os relatos dos funcionários referem-se
a uma serie de situações envolvendo acertos financeiros, aplicação de punições e espancamentos
relacionados ao comércio de drogas, e o comércio de drogas em si. Após um período trabalhando
em outro equipamento da administração municipal, Dona Divina retornou ao CCE em maio de
2009 sob a supervisão de Edviges, e presenciou a aplicação de muitas punições que frequentemente
a faziam passar mal e necessitar de atendimento médico no postinho. Em várias destas ocasiões
Dona Divina pedia a Edviges para ser substituída, mas esta a convencia a continuar no CCE. Outros
funcionários relatam a realização de debates5, presenciais ou via conferência telefônica, por integrantes
do PCC, no espaço do CCE. Voltaremos a isso adiante.
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Reforma e o acordo pelo zelo
Quando, no início de 2011 a prefeitura decidiu realizar uma reforma e revitalização no CCE, promoveu
uma reunião com a comunidade para informar os novos planos para aquele espaço e também para
estabelecer um acordo com as lideranças da comunidade, mesmo que informal, no sentido da
observância de certo zelo pelo equipamento, isto é, o comprometimento de não permitir que os
equipamentos, como quadra, cozinha e banheiros fossem inutilizados propositalmente ou por má
utilização. Em outras palavras, houve o estabelecimento de uma responsabilidade compartilhada
pela manutenção do CCE, àquela altura considerado degradado e depredado.
Dessa reunião com a população participaram o diretor do Departamento de Obras Públicas, a
diretora do Departamento de Serviço Social e Cidadania (DSSC), um vereador e os funcionários
do CCE. A principal decisão encaminhada foi a de que a comunidade indicaria dois zeladores e uma
faxineira que seriam contratados pela prefeitura como funcionários terceirizados, os quais seriam
responsáveis pela manutenção do CCE, sobretudo frente às crianças do bairro.
Desde então os zeladores se revezam nos dias da semana e passam o dia todo no CCE observando
as crianças e repreendendo-as quando são desobedientes com os outros funcionários ou quando
fazem algo que pode danificar o equipamento. Os dois zeladores são moradores antigos do bairro e
têm o respeito das crianças. Muitas vezes, respeitam suas ordens mais do que respeitam as de outros
funcionários. Se em alguma situação esse respeito e autoridade não forem suficientes para resolver
a questão, acontece de o caso ser levado ao conhecimento dos membros do PPC do bairro, que
podem intervir na administração do conflito.
Caruso é o zelador que trabalha as terças, quintas e sábados. Sua função inicia-se pela manhã e vai
até às 19h. Contudo, como ele mora em frente ao CCE, ele fica vigiando o equipamento da frente de
sua casa até as 22h30, quando fecha o portão. Caruso tem aproximadamente vinte e cinco anos de
idade, é morador do bairro desde que nasceu e conhece todo mundo por ali. Segundo ele, um dos
motivos pelos quais foi escolhido para ser zelador é porque ele é respeitado no bairro por conta de
sua atividade pregressa, como traficante de drogas no bairro. A partir de sua prisão, dois anos e meio
atrás, tornou-se evangélico e deixou sua atividade ilícita anterior.
Celso é o outro zelador do CCE cumprindo as segundas, quartas e sextas-feiras os mesmos horários
que Caruso, mas fechando o portão mais cedo. Também é morador antigo do bairro, aparentando
ser alguns anos mais velho que Caruso. Celso acompanha as atividades do projeto mais de perto,
ajudando o professor dentro da sala de aula e na distribuição da merenda. Caruso acompanha a
movimentação no CCE do pátio, só indo até a sala de aula quando chamado.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 378
Caruso foi chamado para ajudar nos problemas de relacionamento entre a nova equipe de um Centro
Comunitário da região do Jardim Encosta, mas voltado mais especificamente à juventude, e a
população. Os funcionários da nova equipe estavam sendo hostilizados por um grupo de jovens da
região. O ápice do conflito foi uma pedrada desferida por um menino no carro de um dos responsáveis
pelo Centro Comunitário. Caruso então conversou com esse grupo pedindo que parassem de jogar
pedras no equipamento e nos funcionários.
Negociação pela festa
Uma vez reformado e revitalizado o CCE e algumas praças do bairro, a prefeitura decidiu promover
uma festa de reinauguração. Nesta ocasião, eu estagiava no DSSC como entrevistador do Cadastro
Único do Governo Federal e tomei conhecimento da festa na manhã do dia 29 de julho de 2011,
quando os funcionários envolvidos com a organização da festa estavam distribuindo material de
divulgação para que colocássemos nos guichês onde atendíamos a população.
Estavam sendo convidadas para a festa quantas pessoas fosse possível. Nesse tipo de evento da
prefeitura, principalmente quando há algum tipo de solenidade, os chefes de departamentos e seções
sempre convidam seus subordinados a prestigiar e aumentar o número de pessoas presentes. O
número de participantes costuma fazer parte de relatórios de atividades e os registros fotográficos
dos eventos são divulgados nos veículos de comunicação interna e externa.
A festa estava planejada para o dia seguinte, a iniciar pela manhã e encerrar no começo da noite,
contando com comida, brinquedos e atividades para as crianças, música de grupos de rap da região
do Jardim Encosta.
Pelos comentários entre os funcionários, eu soube que os organizadores da festa estavam se
desentendendo com Alfa, um comerciante de drogas ilícitas e conhecido como principal liderança
do PCC no bairro. O problema girava em torno da duração do evento. No planejamento original da
organização a festa terminaria às 20h, mas Alfa queria que a festa fosse até às 23h.
Após a hora do almoço de sexta-feira, fizemos visitas a alguns CRAS com o objetivo de conhecer
suas instalações e também para o técnico em informática da nossa Seção consertar alguns
computadores. Além do técnico e de mim, participaram dessa visita a chefe de nossa Seção e Gama,
outro funcionário.
Depois de duas paradas, chegamos ao CCE, que estava sendo enfeitado e passava pelos últimos
retoques antes da festa do dia seguinte. Enquanto entramos pra visitar o CCE e o técnico foi consertar
mais um computador, Gama atravessou a rua, onde havia dois rapazes sob a sombra de uma árvore.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 379
Eu o vi cumprimentando os rapazes e imaginei que eram apenas amigos dele, já que durante sua
infância havia morado em um bairro próximo.
Dias depois eu soube que um daqueles rapazes era Alfa e que naquele momento Gama fora conversar
sobre a festa com ele. O norte da conversa teria sido a tentativa de Gama para conciliar os interesses
das duas partes, organização da festa e Alfa. No dia seguinte, a festa durou até às 22h, sendo que até
as 20h a organização da festa esteve sob responsabilidade dos funcionários da prefeitura e entre as
20 e 22h sob a responsabilidade de Alfa. Em conversa posterior, Gama me disse que a postura de
Alfa representava a defesa de um período de diversão maior para a comunidade a que pertencia.
CCE como caixa de ressonância do bairro
No cotidiano do CCE podemos observar duas coisas importantes sobre as dinâmicas criminais e sua
relação com instituições estatais: as pessoas vão ao CCE contar suas histórias e é possível acompanhar
o desenvolvimento dessas histórias. Luma, uma de nossas principais interlocutoras na pesquisa de
campo, exemplifica muito bem essa característica do cotidiano do CCE:
Então, aqui é assim. Você chega de manhã e já fica sabendo que a polícia já pegou
alguém, o filho da fulana, é o cicrano, é o tal menino... então aqui também você vê,
tem a visão da polícia ta passando, e a população já agitada, é assim que acontece.
Então você presencia isso, vamos dizer, praticamente dia sim-dia não, ou todo dia.
(Luma, entrevista)
As pessoas do bairro - na maior parte mulheres - procuram Luma para contar as histórias que
ouviram ou ainda para compartilhar as histórias que viveram. Como veremos adiante mais detidamente,
por meio dessas conversas Luma consegue encaminhar as pessoas para outros órgãos estatais, quando
necessário. Veremos também que, muitas vezes, contar sua história a Luma é uma forma de conseguir
que esta funcionária utilize o telefone do CCE para ligar para advogados, presídios ou mesmo para
a Fundação CASA na busca de informações sobre os familiares das pessoas que a procuram. Das
histórias que não se vê acontecer, que em geral se dão à noite, fica-se sabendo na manhã do dia útil
seguinte.
Entre 2000 e 2012 o mesmo partido político governou Climatina. As pessoas que ocuparam os
cargos-chave dentro dos Departamentos constituíam grupos políticos bem específicos. Ao longo
deste período, o Departamento de Serviço Social e Cidadania (DSSC), contou com pessoas que
possuíam uma trajetória de trabalho que às ligava aos bairros mais pobres da cidade. Eram professoras
em escolas ou pessoas que participavam das atividades de uma comunidade religiosa conhecida por
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 380
seu trabalho social na região do Jardim Encosta. De certa forma estas pessoas conheciam previamente
o território e a população com a qual viriam a trabalhar como agentes da administração municipal.
Esse conhecimento foi somado ao conhecimento prático dos agentes que trabalham cotidianamente
no território. No caso da região do Jardim Encosta, isso significa que os agentes estatais que trabalham
ali há mais tempo passam a conhecer as demandas do bairro, as histórias e os principais problemas
das famílias, assim como identificar a importância relativa de outros tantos agentes que participam
das principais dinâmicas criminais do bairro, sobretudo o comércio ilícito de drogas, furtos e roubos.
“Se apresentar” e “se colocar à disposição”
Luma se tornou supervisora do CCE em 2013, antes disso trabalhou por quase vinte anos como
supervisora do CRAS da região do Jardim Encosta, antes mesmo de o CCE ser construído.
Aproximadamente em 2002 ela conheceu as lideranças do PCC da região. Isto se deu porque este
CRAS passou acolher os jovens que frequentavam o local que foi fechado e no qual foi construído
o Centro Comunitário da Juventude - CCJ, anteriormente mencionado. Neste local os profissionais
do DSSC desenvolviam atividades voltadas à juventude e ofereciam refeições aos participantes.
Quando o espaço foi fechado para construção do CCJ, os jovens que lá frequentavam foram
encaminhados para o CRAS para dar continuidade às atividades.
Em uma tarde de muita chuva, o professor da oficina de grafite avisou Luma por telefone que não
haveria atividade, pois não havia possibilidade de saírem para escolher os muros nos quais fariam
grafite. Sua orientação foi a de que deixasse os meninos na sala desenhando até a hora em fosse
servida a merenda, às 15h, e então os liberasse. Luma os deixou na sala, enquanto outros jovens
assistiam televisão e jogavam bola na chuva.
Quando Luma foi buscá-los para a merenda encontrou a sala toda bagunçada e os meninos jogando
papel molhado uns nos outros, o que a deixou muito irritada a ponto de mandá-los embora sem
merenda. Este acontecimento teve uma repercussão maior do que o que de fato ocorreu quando a
notícia chegou até a comunidade do Jardim Encosta.
Na manhã seguinte, um dos líderes levou um dos meninos que havia participado da bagunça para se
desculpar em nome de todos. Esta liderança perguntou ainda se havia ocorrido alguma agressão e se
Luma gostaria que houvesse uma “correção mais drástica” com alguns deles. Luma disse que não
havia necessidade e que já estava tudo resolvido. No começo da tarde, outros garotos que haviam
participado da bagunça foram ao CRAS para as atividades demonstrando bom comportamento e se
desculpando pelo ocorrido. No horário da merenda, a liderança que conversou com Luma na parte
da manhã foi até o CRAS com dois outros líderes para conversar sobre o ocorrido. Luma conhecia
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 381
apenas um deles, que almoçava no CRAS frequentemente. Segundo Luma, foi apenas neste momento
que soube que este rapaz era integrante do PCC. Perguntaram novamente se havia ocorrido alguma
agressão com Luma, pois este era o comentário que correra no Jardim Encosta sobre o acontecido.
Foi esclarecido novamente que não houve agressão, apenas mau comportamento dos garotos. Luma
autorizou o pedido que fizeram para ter uma conversa com os garotos. Nesta, disseram aos garotos
que ali era um bom ambiente, onde eles eram acolhidos e bem servidos e que, portanto, não deveriam
desrespeitar as ordens das funcionárias. Após a conversa, consultaram novamente Luma sobre a
necessidade de um “corretivo”, a qual Luma novamente demonstrou que não seria preciso. Após
este episódio, às vezes estas lideranças visitavam o CRAS para checar o comportamento dos garotos.
Segundo Luma, o comportamento em geral dos meninos melhorou bastante dali em diante.
Como administrar certas situações?
Luma fala sobre algumas situações de furto ao CRAS onde os objetos levados foram recuperados
com a ajuda dos mesmos rapazes que foram ao CRAS conversar com os meninos em ocasião descrita
anteriormente:
Pesquisador: Já aconteceu roubo?
Luma: Já, já. Então, teve uma vez que entraram, quebraram a parede, levaram o
computador, levaram várias coisas. Com a ajuda deles foi encontrado. Porque ali
eu nunca chamei a polícia, depois que eu vi todo esse... que é desse jeito, então eu,
sinceramente, pedi a ajuda deles e sempre teve colaboração. Que eles achavam que
os equipamentos aqui da prefeitura, do trabalho da gente, que... não era pra
acontecer. Principalmente se são pessoas do bairro e ta roubando a creche, o centro
comunitário, isso eles não admitiram.
Pesquisador: Teve mais de uma ocorrência de roubo?
Luma: Ah, teve. Teve várias. Se é algum menino daqui eles faziam devolver o que
foi roubado. Eu chamava e passava o que tinha acontecido. Até hoje fica assim
aqui, até hoje. (Luma, entrevista)
O acionamento destes rapazes como elementos importantes para a resolução do conflito foi feito
por meio de recado ou quando a própria Luma foi conversar pessoalmente e expôs a situação, tendo
em vista que sabia onde moravam. Segundo Luma eles também ofereciam ajuda para situações
como as descritas: “Dona Luma, se precisar de alguma coisa...”. Em sua percepção, conhecer esses
rapazes contribuiu para acabar com as situações de roubos – exceto no caso de dependentes de
crack e inconsequentes - e também situações de vandalismo conforme descritas por Luma:
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 382
Logo que eu entrei você via sujeira, cocô. Ou chegava, que o prédio ainda não era
ali, era um pouco mais pra frente onde é a CEMEI agora, no pátio, a mangueira do
bombeiro ta lá esticada, cheia de água, então vandalismo, né. Quebrava vidraça, o
vidro, então mudou bastante. Não só ali o CRAS, eles olham todos os equipamentos.
Assim, eu acho que eles cuidam, porque o filho ta na creche, ta na escola. Então eu
aprendi isso, de quando eu to aqui, eu recorria com eles, porque é a cara da gente
também que ta aqui, né, dia a dia. Eu vejo por ai, né. E outra, indiferente, o trabalho
deles é deles, e a gente, né... mas precisa ter essa comunicação aqui, eu acho que é
desse jeito, sei lá se to certa, mas eu acho que tem que ter essa comunicação.
Porque aqui a gente ta entrando no território deles, vamos falar assim, porque a
gente ta entrando, né. São pessoas que já moram aqui há muitos anos, e a prefeitura
coloca equipamento aqui, e a gente ta entrando no território deles, né. Mas é bacana,
conversa e não tem confusão não. (Luma, entrevista)
Podemos perceber como situações enfrentadas no trabalho cotidiano dos agentes estatais, neste
caso funcionários da creche e do CRAS, foram minimizadas - como no caso dos roubos - ou
solucionadas – nos casos de vandalismo - por conta de uma aproximação com as lideranças da
região, envolvidas com as dinâmicas criminais.
É interessante notar que Luma se adaptou a uma forma de administração de conflitos que é própria
daquele contexto, isto é, a interferência de agentes das dinâmicas criminais, reconhecendo que os
agentes das instituições estatais que ali trabalham estão em uma localidade que não lhes pertence, no
“território deles”, onde as situações de conflito são resolvidas de uma forma específica. Outro elemento
interessante mobilizado por Luma é a percepção de que seria do interesse dos agentes das dinâmicas
criminais que os serviços prestados pela prefeitura no bairro, creche e CRAS, funcionem bem, pois
seus familiares e conhecidos também são usuários destes serviços.
Entretanto, Luma relata também outra situação em um período tratado como anterior a presença de
agentes do PCC no bairro, no qual Maura, então diretora do DSSC, chamou uma liderança do
bairro ligada às dinâmicas criminais para ajudar na relação com uma pessoa que incomodava muito
o cotidiano do CRAS, brigando com os funcionários e não os respeitando. Atendendo a solicitação
de Maura, este líder teve uma conversa com a pessoa em questão após a qual esta mudou radicalmente
de postura, não mais incomodando os funcionários.
Esta narrativa nos indica que as formas locais de administração de situações de conflito não se
restringem apenas ao período caracterizado pela presença dos agentes das dinâmicas criminais ligados
ao PCC no bairro. Neste período anterior, os agentes das instituições estatais que trabalhavam
cotidianamente no bairro já podiam identificar lideranças locais ligadas as dinâmicas criminais as
quais poderiam recorrer em situações de conflito com a população.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 383
Entretanto, o recurso a expedientes não institucionais, como nos casos descritos anteriormente, não
é a única forma pela qual os agentes estatais buscam canais de administração de situações de conflito.
Em cerca ocasião, quando Luma ainda estava na supervisão do CRAS, um homem armado com uma
faca adentrou o local até a sala onde estava ocorrendo uma oficina de marcenaria e esfaqueou um
dos participantes. Neste momento Luma ligou para o serviço de resgate do Corpo de Bombeiros
socorrer a vítima e também para a Polícia Militar.
Em outro contexto, prevendo certo desfecho trágico para uma situação na qual um jovem do bairro
é injustamente acusado de abuso sexual, o recurso à forma local de administração desse conflito é
evitada. Segundo os relatos dos funcionários, a ocorrência se deu no período em que Luma
supervisionava o CRAS. O professor do projeto levou as crianças para um passeio pelo bairro.
Jonatas, um adolescente afônico do bairro, e algumas meninas permaneceram no CRAS brincando
no balanço, enquanto Luma estava em reunião. Foi então que a mãe de uma das crianças avistou
uma menina sentar no colo de Jonatas no balanço e comentou com outras moradoras do bairro que
o adolescente havia abusado da menina. Este comentário causou grande alvoroço entre a população
da região e Jonatas havia então de ser julgado pelos integrantes do PCC.
Luma fez a defesa de Jonatas desde o início da situação, duvidando que ele fosse capaz de abusar da
menina e alegando que tudo seria um mal entendido. Perguntou para a menina o que de fato havia
acontecido e esta afirmou que não acontecera de fato nenhum problema. Luma então procurou a
mãe de Jonatas e juntas percorreram várias casas de famílias conhecidas do bairro explicando a
situação e esclarecendo que havia sido um mal entendido. O rapaz não foi julgado, mas Luma
aconselhou sua mãe a mantê-lo longe do bairro durante algum tempo. Em decorrência da mesma
situação, o professor do projeto foi acusado de não estar presente e a pressão colocada sobre ele foi
tamanha que pouco tempo depois ele pediu transferência para outro equipamento da prefeitura.
O conhecimento que Luma tinha da forma local de administrar esse tipo de conflito contribuiu para
que desconfiasse do desfecho que esta situação poderia ter, considerando a comoção que as graves
acusações geraram entre a população do bairro. Em um eventual julgamento local, as possibilidades
de defesa do adolescente seriam prejudicadas por sua condição de afonia. Luma age rápido
mobilizando uma rede de relações de modo a frear o processo que provavelmente levaria a morte do
adolescente.
Em outro sentido, há situações nas quais podemos perceber tensões entre diferentes instituições
estatais. Os relatos sobre uma situação envolvendo policiais militares e os funcionários do DSSC no
CRAS são bastante ilustrativos neste particular. Em uma manhã no final de dezembro de 2012, três
adolescentes, entre quinze e dezessete anos de idade, chagaram no CRAS, pediram a bola e um
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 384
pacote de bolachas para Luma. Enquanto esta foi até a dispensa buscar as bolachas, dois policiais
que estavam fazendo ronda entraram no CRAS muito exaltados, alegando que haviam sido ofendidos
pelos garotos. Um dos policiais questionou Luma sobre quem eram os meninos e por que não
estavam na escola e esta respondeu que eram frequentadores do CRAS e participantes do PROJOVEM
- programa do governo federal que objetiva a elevação da escolaridade e qualificação profissional que tinha atividades durante a tarde, e que foram até o CRAS para jogar bola, como comumente
faziam. Neste momento, os policiais alegam que os adolescentes seriam traficantes e acusa Luma de
permitir que “bandidos” frequentem o CRAS. Luma se defende alegando que o CRAS é uma repartição
pública, onde é permitida a entrada de qualquer pessoa. Em meio a essa discussão os policiais teriam
começado a agredir fisicamente os adolescentes, justificando que haviam sido ofendidos. A mãe de
um dos adolescentes chega às pressas depois de ser avisada da situação e começa e discutir com os
policiais sobre a agressão e acaba sendo agredida também.
A situação foi presenciada por várias funcionárias do CRAS, que ligaram para a diretora do DSSC,
que era Catarina, que veio até o CRAS. Esta confrontou os policiais, dizendo que estavam
desrespeitando um organismo público, que era o Centro de Referência em Assistência Social, ao que
um policial respondeu com a seguinte pergunta: “onde tava a assistência social quando o policial foi
morto?”6. O advogado da prefeitura foi chamado e registrou-se um boletim de ocorrência. O
comandante interino da PM também foi até o CRAS e justificou que os policiais estavam muito
nervosos devido à série de mortes de policiais militares que estavam acontecendo naquele período.
Ressaltamos dois aspectos que consideramos importantes nesta situação. Primeiramente, a forma
violenta de ação dos policiais militares naquele bairro, justificado por seu comandante como
reflexo da tensão vivida pelos soldados em meio ao período caracterizado por sucessivas
execuções de policiais militares na capital e em algumas cidades do interior e do litoral do estado.
Em segundo lugar, o acionamento por parte dos funcionários do DSSC de uma instituição estatal,
através do boletim de ocorrência, para intermediar um conflito entre policiais militares e
moradores do bairro.
Apontamentos finais
As diversas narrativas de situações conflitivas apresentadas nos ajudam a compor um quadro com as
alternativas escolhidas pelos agentes estatais envolvidos em cada contexto para a administração do
conflito. As situações, muito distintas entre si, vão desde problemas de relacionamento entre
funcionários do DSSC e os moradores do bairro, passando por danos e furtos de patrimônio público,
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 385
até tentativas de homicídio e execuções. Os meios de se oferecer respostas ao conflito também são
variáveis, indo de resoluções locais, passando por sua canalização por outras instituições estatais até
métodos ilegais ou extra-legais. Nos contextos focalizados, as situações e conflitos parecem ser
geridos através de diferentes expedientes que se encontram dispostos de forma complexa em cada
situação. A escolha de uma alternativa em relação outras parece ser variar segundo as características
do conflito em pauta. Quando trata-se de problemas de relacionamento entre o DSSC e os moradores
do bairro, casos de furto e danos ao patrimônio público, a alternativa a resolução local do conflito
parece ser a preferencial. Nos casos apresentados, esta alternativa ofereceu respostas ágeis, duradouras
e sem mobilização de violência, segundo os agentes estatais envolvidos puderam perceber.
Na acusação de abuso sexual envolvendo Jonatas, a consideração de Luma de que o desfecho
poderia ser violento e injusto, a fez mobilizar uma rede de circulação de informações no bairro de
modo a impedir que os integrantes do PCC do bairro protagonizassem a resposta àquela situação.
Por outro lado, na ocorrência de uma tentativa de homicídio dentro do CRAS protagonizada por
uma pessoa que Luma desconhecia, esta mobilizou uma instituição estatal para administrar a situação.
Entretanto, quando o conflito é protagonizado por esta mesma instituição, a Polícia Militar, em um
caso de agressão a moradores do bairro no mesmo espaço do CRAS, o recurso que se faz é a outras
instituições estatais por meio do boletim de ocorrência.
Em cada uma das situações, nos parece que a alternativa escolhida para a resposta ao conflito não
era a única. Neste sentido, o questionamento à perspectiva dos agentes envolvidos no contexto é
interessante. O CCE tem se mostrado um espaço importante através do qual podemos conhecer
situações nas quais podemos conhecer estas alternativas de gerenciamento e as formas pelas quais
elas são percebidas pelos agentes estatais em seu cotidiano de trabalho no bairro.
As relações entre as percepções acerca da acessibilidade e eficiência da resposta das instituições
estatais aos conflitos enfrentados pelos agentes estatais, de forma semelhante à sugerida pela
bibliografia, e certo repertório social composto pelas alternativas conhecidas de administração de
conflitos, que fazem parte das experiências dos agentes, nos parecem pistas importantes para melhor
compreensão das opções realizadas em cada contexto.
Os ajustamentos complexos na gestão das situações não estão livres de tensões. Estas podem ser
percebidas nas relações com outras instituições estatais, como a direção do DSSC no que tange à
utilização do telefone do CCE; no questionamento do Ministério Público no caso da utilização da
quadra do CCE para o velório de Alfa; entre Polícia Militar e DSSC na situação de agressão ocorridas
no CRAS; e entre DSSC e Alfa, sobre a questão da festa de reinauguração do CCE.
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TELLES, Vera da Silva. A cidade nas fronteiras do legal e do ilegal. Belo Horizonte, Argvmentvm:
2010.
NOTAS
1 Possui graduação em Ciências Sociais pala Universidade Federal de São Carlos (2011). Atualmente é mestrando
do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos, bolsista do Conselho Nacional
de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPQ. Atua nas temáticas relacionadas à nova organização das
dinâmicas criminais paulistas e seus efeitos nas instituições estatais de gestão, prevenção e combate ao crime, com
especial atenção ao interior do estado de São Paulo. Desde 2012 é membro do Grupo de Estudos sobre Violência e
Administração de Conflitos (GEVAC) da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
2 Os nomes de todos os interlocutores da pesquisa, bem como o nome da cidade, das divisões e equipamentos da
administração municipal serão substituídos por nomes fictícios de modo a manter em sigilo a identidade dos mesmos.
3 Setor com a responsabilidade de implementar a política de assistência social do município, voltada ao atendimento
dos interesses sociais e aspirações da população em situação de risco social; realizar as políticas setoriais visando o
combate à pobreza, a garantia dos mínimos sociais e provimento de condições para atender contingências e a
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 387
universalização dos direitos sociais; propiciar a participação da população, por intermédio de organizações
representativas, na formulação das políticas sociais e no controle das ações; coordenar programas de amparo à
família, às mulheres, às pessoas portadoras de deficiência, ao idoso, à população em situação de rua, e a crianças e
adolescentes em situação de risco e coordenar as políticas de promoção da igualdade racial e de gênero, bem como
de combate a todas as formas de discriminação, dentre outras competências adicionais.
4 As palavras grafadas em itálico se referem a termos utilizados por meus colaboradores da pesquisa.
5 Debates são formas de administração de conflitos bastante organizadas e orientadas por regras compartilhadas
entre os agentes criminais, como se verá adiante.
6 Em Climatina, um policial militar foi assassinado em meados de setembro de 2012 como veremos em maior
detalhe adiante.
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 388
ENTRE A REPUTAÇÃO OPERATIVA E A DEFERÊNCIA À ORDEM LOCAL.
Etnografia dos policiais militares do Estado do Rio de Janeiro na comunidade “pacificada”
da Mangueira.
Semirames Khattar
Mestranda do Programa de Sociologia do Instituto Universitário de Pesquisa do Estado do Rio
de Janeiro. IUPERJ/UCAM.
Resumo: O objetivo do presente trabalho é expor o mapeamento das representações e práticas dos Policiais
Militares do Estado do Rio de Janeiro lotados na 18ª Unidade de Polícia Pacificadora (UPP), na Comunidade
“pacificada” da Mangueira circunstanciada pelas narrativas extraídas da política de pacificação instaurada
oficialmente no Rio de janeiro pelo decreto 41.650 de 21 de janeiro de 2009. Trata-se de apresentar os rumos
e etapas da investigação em curso da dissertação, tomando como fio condutor as percepções dos policias
militares do Rio de Janeiro atuantes no Complexo de Favelas da Mangueira, na condução diária de suas
atividades. A pretensão, portanto, se pauta em analisar o sentido atribuído por estes de suas práticas acerca
da gestão dos conflitos e demandas locais, bem como compreender os desafios, meios de atuação concernentes
ao exercício de autoridade da policia militar carioca e a sua busca para a produção de legitimidades, obediência,
e consentimento de atuação junto à referida comunidade.
Palavras Chaves: Gestão da Ordem. “Pacificação”. Policiamento. Segurança Pública. “Comunidade”.
Introdução
O presente trabalho se delineia nos contornos temporais do processo de “pacificação”1. Situa-se, no
tempo presente, após a chamada retomada do território pelas forças do Estado, na tentativa de
controle pelo poder público. Ao descrever a interação, as percepções e sentidos dados ao programa
de pacificação pelos atores sociais no recorte empírico delimitado do Complexo de Favelas da
Mangueira, busca-se compreender de que maneira policiais militares (gestores das UPP´s patrulhas,
etc) reescrevem, em seu cotidiano, a meta-narrativa oficial de “resgate social” das comunidades
populares pela “chegada” do Estado. Importante exaltar que as trajetórias governamentais acerca
da Política de Segurança Pública2 contextualizam as dinâmicas e sentidos da pacificação, já que não
podemos tomar o Estado como uma entidade em abstrato, mas a proposta de pesquisa não se
pautará em se debruçar sobre esses influxos.
Nesse sentido, delimitando a temática de pesquisa, a proposta se fixa em elaborar um mapeamento
e sistematização das percepções e dos sentidos atribuídos pelos atores sociais que atuam na localidade
pesquisada, em especial os policiais militares da Unidade de Policia Pacificadora (UPP-Mangueira),
para refletir sobre a transformação do modus operandi policial e suas implicações no processo de
(re) construção identitária3 da Polícia Militar do Rio de Janeiro.
Constitui-se desta forma uma etapa essencial para lapidar de maneira mais precisa as redes e camadas
de regulação entre os atores sociais em jogo(moradores, lideranças comunitárias), para a sobreposição
de uma ordem que pretende transformar hábitos, comportamentos e dar status a uma específica
II Seminário Fluminense de Sociologia - UFF- Outubro de 2013 389
população que fora historicamente, em certa medida, abandonada pelo poder público. É, portanto,
neste contexto de negociação dos fins e dos meios de se “levar a paz às comunidades” que se mostra
relevante compreender como, ali no Complexo de favelas da Mangueira, é realizado o processo de
“pacificação”, problematizando a (re)construção da autoridade legal e legítima4 em sua interação
com a comunidade policiada.
Etapas preliminares e rumos provisórios da pesquisa de campo. A pesquisadora e a construção
indutiva da problemática.
“O interesse por alguma coisa é a diferença que ela faz para alguém” 5. Essa proposição se torna
relevante para delinear as etapas e as formas de construção dos questionamentos sobre o objeto de
pesquisa. Como ponto de partida, o interesse de pesquisar processo de “pacificação” das comunidades
do Rio de Janeiro, foi extraído especialmente pelo anúncio estatal de transformação do modelo de
atuação em algumas favelas do Rio de Janeiro para a gestão ordem e da mediação da violência e dos
conflitos nesses territórios. A enunciação de “fazer diferente”, de policiar com proximidade, para
“garantir a paz” e a preservação da segurança da população, através do projeto de pacificação das
comunidades dominadas pelos grupos ilícitos armados (traficantes de drogas/milicianos), atraiu a
atenção e o interesse de inúmeros pesquisadores e, inclusive o meu, para desvelar o que está realmente
mudando na prática policial e no próprio cotidiano dos moradores desses territórios.
Quais são os sentidos desta atuação “diferente” do Estado, encarnados nas Unidades de Polícia
Pacificadora? As sequências de perguntas que movimentam e desenvolvem o meu caminho de pes