Espiritualidade Religiosidade - Fator de Proteção na Prevenção de

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Espiritualidade Religiosidade - Fator de Proteção na Prevenção de
ESPIRITUALIDADE/RELIGIOSIDADE:FATOR DE PROTEÇÃO NA PREVENÇÃO DE RECAÍDA
1
Fábia Armelini
“Quanto mais avança a evolução espiritual da humanidade, mais certo me parece que
o caminho para a genuína religiosidade não repousa no medo da vida e no medo da
morte, ou na fé cega, mas no esforço em busca do conhecimento racional”
Albert Einstein (1875-1955)
____________________________
¹Graduada em Psicologia FCH-FUMEC/BH- 1998.
Especialista em Psicologia da Saúde e Hospitalar/UNIP/GO-2009
E-mail: [email protected]
Para a melhor compreensão dos resultados acerca da importância da espiritualidade/religiosidade como
fator protetor, faz-se necessária a conceituação dos termos religiosidade e espiritualidade e
posteriormente de prevenção de recaída. Apesar de muitas vezes utilizados como sinônimos, são
multidimensionais e apresentam características específicas. A espiritualidade é um conceito mais amplo
e abrangente do que religiosidade. É considerada algo que as pessoas definem por si mesmas, de
maneira individual e pessoal. Tal conceito pode ser livre de regras religiosas e reflete, em geral, a busca
por explicações. Conforme proposto por Sullivan (1993), a espiritualidade é uma característica única e
individual que pode ou não incluir a crença em um "deus", sendo responsável pela ligação do eu com o
universo e com os outros. Engloba a necessidade de busca do bem-estar e crescimento, além da
percepção do significado do mundo e daquilo que realmente valeria à pena. Para Galanter (2008) a
espiritualidade é definida por crenças sentidas profundamente pelas pessoas e que dão sentido a sua
vida. Para ele, embora possa ser incorporada em uma orientação religiosa, a espiritualidade também
pode ser compreendida como um compromisso dos seres com ideais amplos e nobres ou com o bemestar dos demais. A religiosidade, segundo Miller (1998), é definida como a prática de conceitos de uma
religião, ou o nível de envolvimento com uma religião específica. A religião envolve crenças, práticas e
rituais relacionados com o “transcendente” ou sobrenatural, na maior parte das vezes definido como
Deus ou outras divindades. Ela é concebida como uma organização de crenças e práticas destinadas a
mediar uma relação do indivíduo com esse transcendente. As religiões em geral têm crenças definidas
sobre o pós-morte e sobre a razão da ocorrência dos eventos da vida, além de instituírem regras claras
de conduta.
A literatura médica atual utiliza o construto religiosidade/espiritualidade como fator agregado ao
estudo e associado a melhores índices de saúde e recuperação, uma vez que os conceitos religiosidade e
espiritualidade se sobrepõem.
Segundo Marlatt e Gordon (1993), a prevenção de recaída é um programa de técnicas e estratégias de
enfretamento, cujo objetivo fundamental é ensinar o indivíduo a fazer o próprio gerenciamento de suas
situações de risco, dos estados emocionais e do estresse, os quais podem levá-lo ao retorno do uso de
substâncias psicoativas, interrompendo a abstinência. O método foi desenvolvido com a finalidade de
manter a mudança alcançada no curso do tratamento.
RECAÍDA: ENTENDENDO O PROCESSO...
Silva e Serra (2004) afirmam que a recaída não é um fato isolado, mas um processo encadeado por uma
sucessão de eventos, atitudes e pensamentos e sentimentos aparentemente irrelevantes que
antecedem o retorno ao consumo.
A Prevenção de Recaída foi elaborada por Allan Marlatt durante a década de 1980. Pode se definida
como um programa de autogestão, que busca estimular o estágio da manutenção no processo de
mudança (MARLATT, 1999). No modelo de prevenção de recaídas, os comportamentos aditivos são
maus hábitos adquiridos, que podem ser modificados. Considera-se que esses pacientes aprenderam
esses comportamentos e pensamentos, que são disfuncionais e que, apesar de gerarem problemas para
os mesmos, são utilizados quando o paciente tem que lidar com situações difíceis. Parte-se do
pressuposto que o paciente não desenvolveu ou aprendeu comportamentos mais adaptativos, que lhe
gerem gratificação ou lhes possibilitem resolver os problemas de outra forma. O uso da substância, além
de uma gratificação imediata, pode ser percebido como uma forma de resolver problemas como, por
exemplo, um sentimento elevado de ansiedade.
A Prevenção de Recaída busca mudar um hábito autodestrutivo e manter a mudança, por meio da
aprendizagem de comportamentos mais adaptativos e da identificação de cognições disfuncionais.
Marlatt (1999) descreveu dois níveis de intervenção: as intervenções específicas e as intervenções
globais. As intervenções específicas consistem tanto na identificação de situações de alto risco para o
uso de substâncias para um determinado indivíduo, como no desenvolvimento de estratégias para lidar,
efetivamente, com essas situações e em mudanças nas reações cognitivas e emocionais associadas.
Considera-se que o paciente tem um papel ativo na identificação das situações de alto risco, que podem
envolver fatores intrapessoais (como estados emocionais negativos ou mesmo positivos) e/ou fatores
interpessoais (como conflitos e pressões sociais). Uma vez identificadas tais situações, o paciente
precisa aprender mecanismos de manejo mais efetivos, incluindo estratégias cognitivas, atividades
substitutivas para lidar com as situações. Estas podem ser planejadas individualmente e visam tanto à
resolução de problemas como a obtenção de gratificação/lazer. As estratégias envolvem aprender a
evitar riscos desnecessários e a lidar de forma positiva quando os riscos são inevitáveis. As intervenções
globais, por sua vez, focam o desenvolvimento de comportamentos positivos e saudáveis para substituir
aqueles associados com o abuso de substâncias e reforçam o não uso da substância (MARLATT, 1999).
Dessa forma, o foco primário da Prevenção de Recaídas é manter a mudança de hábito, antecipando as
situações de risco e procurando lidar com elas. Essa forma de tratamento promove o aumento da
consciência e escolha do paciente frente ao problema, desenvolvendo habilidades de enfrentamento e
maior confiança, controle e autoeficácia em suas vidas. O objetivo é duplo: prevenir a ocorrência de
lapsos iniciais quando a pessoa entra no tratamento e/ou prevenir uma recaída total. Aqui cabe realizar
uma distinção importante sobre a diferença entre lapso e recaída:
O lapso é um retorno momentâneo ao hábito anterior como uma encruzilhada: um caminho retorna definitivamente ao nível do
problema (recaída total) e o outro vai em direção da mudança positiva, como veremos no modelo cognitivo-comportamental da
recaída. A recaída é um lapso mais demorado, mas também considerada transitória: uma série de eventos que pode ou não ser
seguida de um retorno à abstinência (JUNGERMAN, 2007, p. 191).
Na Prevenção de Recaídas, o terapeuta auxilia o paciente a se responsabilizar por seus atos. O terapeuta
é um guia que oferece instrumentos para que o paciente possa, num curto espaço de tempo, se
autogerenciar.
Os principais alicerces da Prevenção de Recaídas são:
1.
Conscientização do Problema: para mudar a pessoa precisar reconhecer que o comportamento
aditivo representa um problema para sua vida. A Prevenção de Recaída visa a estimular o paciente a
perceber como o uso pode afetar negativamente seus relacionamentos e suas atividades. Geralmente,
utiliza-se a atividade da Balança Decisional, na qual o terapeuta auxilia o paciente a pesar as vantagens e
desvantagens de usar a substância.
2.
Treinamento de Habilidades: uma vez reconhecido o problema, a Prevenção de Recaída
trabalha com estratégias para lidar com as situações de risco frente à substância. Faz-se uma avaliação
das capacidades do indivíduo e, aquelas que necessitam ser melhoradas, são então trabalhadas. “No
espaço da sessão, a pessoa pensa em alternativas para lidar com as situações de risco e treina, muitas
vezes até mediante dramatização como será na prática” (JUNGERMAN, 2007, p.192).
3.
Mudança nos hábitos de vida: o paciente é convidado a pensar na sua rotina de vida quando
fazia uso frequente da substância e imaginar o dia ideal, sem o uso. A proposta é que, uma vez a pessoa
parando de usar drogas ou álcool, ela tenha um tempo livre no dia e possa ocupá-lo de forma
balanceada, entre querer (hobbies) e dever (uma profissão, por exemplo). A pessoa pode pensar em
substituir as “adições” negativas pelas positivas (por exemplo, esporte, espitirualidade/religiosidade).
Para a teoria da prevenção da recaída, o indivíduo em abstinência experimenta uma sensação de
autoeficácia, ou seja, sente-se no controle da situação, livre das pressões internas e externas para
consumir uma substância psicoativa. Essa sensação de controle e bem-estar sofre abalos na presença de
situações relacionadas ao consumo, denominadas situações de alto risco, definidas como qualquer
experiência, emoção, local, pensamento, lembrança ou circunstância que aumente o perigo de o
indivíduo se engajar em algum ato ou comportamento que precipite o uso da substância depois de um
tempo de abstinência. Os estados emocionais negativos, as pressões sociais, os conflitos interpessoais,
tais como sentimentos de raiva, frustração, contrariedade, tristeza, euforia são considerados as
situações de risco mais comumente relacionadas à recaída.
RELIGIOSIDADE E EPIDEMIOLOGIA DO CONSUMO DE DROGAS
No que tange ao consumo das drogas psicotrópicas, a religião vem sendo claramente identificada como
um fator protetor ao uso de drogas, tanto no Brasil quanto no exterior. Entre os estudos que se referem
à relação existente entre a religião e as drogas, um dos mais antigos foi realizado na Irlanda e teve como
amostra 458 estudantes universitários daquele país.
Notou-se maior consumo de álcool entre os estudantes com menor crença em Deus e menor freqüência
aos cultos religiosos (Parfrey, 1976).
Optamos pela apresentação cronológica dos principais estudos científicos sobre o tema. Como será visto
adiante, todos têm característica quantitativa e utilizam meios estatísticos para avaliar correlação entre
a religiosidade e o consumo de drogas, sem, contudo, enfocar os mecanismos estruturais do fenômeno.
Em um estudo realizado com 2.066 adolescentes canadenses, Adlaf e Smart (1985) examinaram a
relação entre o uso de drogas e diversas formas de mensuração da religião, como a afiliação religiosa, a
religiosidade e a freqüência à igreja. A afiliação religiosa não diferiu entre os usuários de drogas, quer
eles fossem católicos, protestantes e sem religião. Por outro lado, os índices de religiosidade e a
freqüência à igreja diferiram entre os usuários e os não-usuários de drogas de forma significativa.
Aqueles que pouco frequentavam a igreja ou que, de alguma forma, não praticavam a sua religião eram
os mais propensos a serem usuários de álcool e de outras drogas.
No estudo de Lorch e Hughes (1985), realizado com 13.878 estudantes, a importância dada à religião foi
o fator protetor fundamental para o não consumo de drogas, pois, quanto maior era a importância dada
à religião, menor era o envolvimento com as drogas.
Cochran et al. (1988) estudaram a relação entre a religiosidade, o uso de álcool e a percepção do uso
irracional deste, tendo para isso utilizado os dados obtidos no General Social Survey de 1972 e 1984,
com 7.581 pessoas maiores de 18 anos. Os autores verificaram que as pessoas sem religião eram mais
propensas a utilizar o álcool e que os batistas eram os menores consumidores desta substância.
Posteriormente, Midanik e Clark (1995), seguindo a mesma metodologia para os levantamentos dos
anos de 1984 a 1990, corroboraram esses achados, apontando para a evidência de que as pessoas com
maior índice de religiosidade apresentam menos problemas relativos ao consumo de álcool.
Hawks e Bahr (1992) sugeriram que a religiosidade, expressa pela prática de uma religião, retarda o
primeiro uso do álcool, também influenciando a menor freqüên-cia posterior do seu consumo. As suas
observações confirmaram que a freqüência a igrejas e sinagogas estaria inversamente relacionada com
o uso de álcool e de outras drogas. No mesmo ano, na Espanha, Luna et al. (1992) verificaram, em uma
investigação entre 955 estudantes universitários, que aqueles que consideravam a religião algo
importante nas suas vidas eram os mesmos que relatavam menor consumo de álcool e outras drogas,
assim como consideravam perigoso o consumo dessas substâncias.
Koenig et al. (1994), ao examinarem a relação entre o alcoolismo e as diversas atividades religiosas,
constataram que as pessoas que freqüentavam a igreja regularmente e eram engajadas em preces e
leituras da Bíblia apresentavam índices significativamente menores de alcoolismo.
Em Trinidad e Tobago, Singh e Mustapha (1994), em um estudo com 1.603 estudantes secundaristas,
identificaram quatro variáveis religiosas claramente relacionadas com menor envolvimento do consumo
de drogas, que foram as seguintes: aderir e participar de programas religiosos para jovens; valorizar os
ensinamentos religiosos; considerar importante crer em Deus e considerar importante orar quando se
está diante de alguma dificuldade.
No ano seguinte, na Alemanha, seguindo a idéia de Luna et al. (1992), Cronin (1995), em um estudo com
216 estudantes, verificou que o consumo de drogas foi significativamente maior nos do ensino médio
que davam pouca importância para a religião e para a espiritualidade.
Dois levantamentos, realizados entre estudantes universitários nigerianos, apontaram para a
constatação de que a ausência de uma religião se relacionava a uso maior do álcool, do tabaco e da
maconha (Ndom e Adelakan, 1996). Dez anos depois, seguindo os mesmos padrões metodológicos, esse
fato também se verificou em um estudo realizado entre adolescentes que viviam nos Estados Unidos
(Sinha et al., 2006).
Em um estudo com 1.902 irmãs de famílias religiosas ou não-religiosas, pôde-se constatar que a
religiosidade da família foi um dos fatores determinantes do ambiente doméstico saudável e não
conflituoso, pois diminuiu consideravelmente o risco do abuso de drogas por elas (Kendler et al., 1997).
De acordo com o gênero, alguns estudos apontam para uma diferença no que diz respeito à postura
diante da religiosidade e do consumo de drogas. Em um levantamento americano realizado entre 210
estudantes universitários, notou-se que, especialmente nas mulheres, a crença religiosa estava
relacionada à cautela em relação ao consumo do álcool e das drogas, assim como aos padrões de
comportamento sexual. Já para os homens, a religiosidade só foi identificada como protetora do
consumo de outras drogas, que não o álcool e o tabaco (Poulson et al., 1998). Na Escócia, essa relação
também foi verificada entre os estudantes universitários dos cursos das áreas de saúde e educação,
verificando-se que, apesar de tanto os homens como as mulheres praticantes de uma religião
consumirem menos drogas dos que os não pertencentes a nenhum grupo religioso, eles sempre faziam
um consumo mais intenso do que elas, sendo eles também mais tolerantes em relação ao consumo de
drogas lícitas e ilícitas (Engs e Mullen, 1999).
A devoção pessoal, expressa essencialmente pelas orações dirigidas a Deus, mostrou-se inversamente
associada ao abuso e à dependência das drogas psicotrópicas, com a exceção do tabaco, entre os
adolescentes entrevistados pelo Nacional Comorbidity Survey nos EUA (Miller et al., 2000).
Sutherland e Shepherd (2001), comparando aspectos sociais da vida dos usuários e dos não-usuários de
drogas em Gales, sugeriram que a falta de uma crença religiosa atuaria como um fator de risco para o
consumo de drogas, e a relação negativa entre a crença em Deus e o consumo de drogas ilícitas se torna
mais forte conforme a idade aumenta. Já para Hodge et al. (2001), maior atividade religiosa, expressa
pela prática de preceitos e pela freqüência a uma igreja, aumentaria a possibilidade de os adolescentes
rurais americanos nunca experimentarem álcool.
No que diz respeito à educação religiosa, Miller et al. (2001), estudando, em Nova York, os filhos dos
consumidores de heroína vinculados a programas de substituição desta pela metadona, afirmaram que
as crianças do grupo experimental com algum tipo de educação religiosa, em geral oferecida pelos
adultos não dependentes de drogas, tiveram menor propensão ao envolvimento com drogas do que as
que nunca se submeteram a uma formação religiosa.
Também entre as crianças e os jovens caribenhos, dos 10 aos 18 anos, aqueles que estavam envolvidos
com algum grupo
religioso,
freqüentando
as atividades religiosas,
apresentavam menos
comportamentos de risco, inclusive em relação ao consumo de álcool e de drogas, o que evidencia o
papel protetor da religiosidade do domínio público (participação em grupos religiosos) (Blum et al.,
2003). No entanto, para Nonnemaker et al. (2003), parece que a religião se apresenta protetora do uso
experimental de drogas apenas entre os adolescentes que obtiveram pontuações elevadas nos quesitos
relativos ao domínio privado (prece individual) da sua religiosidade, expresso pelo número de orações
semanais e pela importância dada à religião. A religiosidade privada parece ser a responsável por reduzir
o impacto dos eventos estressantes na vida, que é determinante para o início do consumo de
substâncias psicotrópicas (Wills et al., 2003).
Quando se buscou a existência da influência da religiosidade no consumo de drogas, relacionada com a
questão da raça, Wallace et al. (2003) verificaram que, apesar de maior número de jovens negros norteamericanos se declararem religiosos, a relação entre a religiosidade e a abstinência do álcool e da
maconha foi mais intensa entre os brancos. Tal evidência já havia sido identificada em uma pesquisa
baseada em dados de um levantamento nacional, realizada neste mesmo país (Amey et al., 1996).
Também na Hungria, um estudo com 1.240 adolescentes se evidenciou a relação inversa entre o
consumo de tabaco, de álcool e de maconha, e a prática religiosa (Piko e Fitzpatrick, 2004).
Nos sete países da América Central, também foi possível identificar a religiosidade como um fator
protetor. Um estudo epidemiológico com cerca de 13 mil estudantes dessa região identificou que a
prática religiosa, expressa pela freqüência à Igreja Católica ou Protestante, estava inversamente
relacionada com os consumos prematuros do cigarro e da maconha, além de também diminuir as
chances de exposição ao álcool (Chen et al., 2004).
Em um estudo aleatório com os pacientes que deram entrada em três pronto-socorros na cidade de Los
Angeles, nos Estados Unidos, verificou-se que a participação regular em uma igreja teve significativo
impacto positivo diante do consumo de álcool nas seis horas anteriores à entrada na sala de emergência
(Bazargan et al., 2004).
No intuito de compreender o mecanismo pelo qual a religiosidade poderia ser considerada protetora do
consumo de drogas, Stylianou (2004), por meio de questionários enviados por e-mail, investigou
padrões de consumo e conceitos de religiosidade em 276 estudantes universitários do Chipre. Os
resultados sustentaram a hipótese de que a religiosidade controla indiretamente as atitudes perante o
consumo de drogas pela percepção da imoralidade que o ato representa em si próprio.
No ano de 2006, dois estudos que trataram do consumo de drogas, especificamente entre mulheres de
risco, apontaram para o papel protetor da religiosidade como sendo algo que as influenciou, levando-as
a menor consumo de drogas (Klein et al., 2006), assim como favoreceu sua diminuição quando este já
era praticado (Brown, 2006).
No Brasil, não há muitos estudos nesta área, no entanto, recentemente, foi publicado um estudo
qualitativo que corrobora os achados internacionais quantitativos, evidenciando que a maior diferença
entre os adolescentes usuários e os não-usuários de drogas psicotrópicas, de classe social baixa, era a
sua religiosidade e a da sua família. Nesse estudo, os autores observaram que 81% dos não-usuários
praticavam a religião professada por vontade própria e admiração, mas apenas 13% dos usuários faziam
o mesmo. Nesse segundo grupo, porém, a prática religiosa estava diretamente relacionada à busca da
reabilitação diante do consumo de drogas, mas essa só começou após o início do consumo abusivo
destas (Sanchez et al., 2004).
Dalgalarrondo et al. (2004), ao avaliarem 2.287 estudantes de escolas públicas e particulares de
Campinas (SP),verificaram que o uso intenso de pelo menos uma droga (álcool, tabaco, medicamentos,
maconha, solventes, cocaína ou êxtase) foi maior entre os que não tiveram educação religiosa na
infância.
Por fim, no ano de 2006, os pesquisadores da Universidade de São Paulo, em um estudo com 926
estudantes universitários paulistanos, publicaram seus achados epidemiológicos afirmando que, aqueles
que possuíam uma renda familiar alta e não professavam alguma religião, eram os que correriam maior
risco de consumir drogas (Silva et al., 2006). Além disso, esse mesmo estudo detectou a ausência de
bebedores excessivos entre os espíritas e os protestantes praticantes.
SUPORTE AO TRATAMENTO: A AÇÃO DIRETA DAS RELIGIÕES
Na recuperação do dependente de drogas, as igrejas brasileiras têm assumido três linhas de ação: 1) via
grupos religiosos de mútua ajuda (que ocorrem nas instalações de igrejas e afins); 2) freqüência a cultos
religiosos; e 3) via desenvolvimento de religiosidade/espiritualidade, oferecida em comunidades
terapêuticas.
Segundo Sanchez e Nappo (2008), os grupos religiosos de mútua ajuda, além de trabalharem a
religiosidade e a fé, aproximam-se dos seguidores oferecendo forte acolhimento e coesão de grupo.
Nessas reuniões, cujos moldes seguem os princípios de Minnesota (apesar de não serem reuniões de
Alcoólicos Anônimos ou Narcóticos Anônimos), o ponto forte é a nova rede social que proporcionam ao
dependente de drogas. Além disso, a reunião de cunho religioso, utiliza-se da Bíblia ou de outros livros
religiosos e acaba agindo como terapia de grupo, permitindo que seus freqüentadores dividam com o
grupo suas angústias e recebam sugestões de como superá-las. Sentem-se apoiados, sem serem
julgados pelos atos errôneos que porventura possam ter cometido durante os anos em que as drogas
definiam os rumos de suas vidas. Contudo, não é apenas a fé que os atrai. Indicações práticas de como
agir no momento da fissura ou, ainda, o ótimo acolhimento que recebem, estabelecendo uma nova rede
social, acabam despertando o interesse pela continuidade no grupo.
Grande parte dos estudos feitos em programas de tratamento realizados por Igrejas de diferentes
denominações e seguimentos, fundamenta-se na corrente protestante, sendo a pioneira na área de
atuação logo após a Segunda Guerra Mundial, formulando programas de recuperação nas igrejas
evangélicas de Chicago e New York (Brown,1973). Em 1960, a igreja católica entra também para a busca
de tratamento para fiéis e não fiéis que necessitavam de ajuda na reabilitação da dependência de
drogas, embora a maior parte dos programas religiosos para o referido tratamento estude de forma
pouco criteriosa a avaliação das suas metodologia e eficácia (Gorsuch, 1995).
Com diversas religiões, não tendo por base a religião professada, tem-se observado um forte impacto da
religiosidade e da espiritualidade no tratamento da dependência de drogas, conotando a ideia de que o
vínculo religioso facilita a recuperação e diminui os índices de recaída dos pacientes submetidos aos
diversos tipos de tratamento, segundo Pullen et al., 1999).
Cabe ressaltar que, independentemente da religião professada, se observa um forte impacto da
religiosidade/espiritualidade no tratamento de dependência de drogas, sugerindo que o vínculo
religioso facilite a recuperação e diminua os índices de recaída de pacientes submetidos a diversos tipos
de tratamento.
O COPING RELIGIOSO / ESPITIRUAL E O PROCESSO DE RECUPERAÇÃO
Coping pode significar enfrentar, manejar ou adapta-se a uma situação. Trata-se de um processo de
interação entre o indivíduo e o ambiente, com a função de reduzir ou suportar uma situação estressora
que, em princípio, exceda os recursos emocionais do indivíduo. Panzini (2005) afirma que coping
religioso e/ou espiritual é o modo como as pessoas utilizam sua crença religiosa em situações de
estresse e dificuldade em suas vidas.
Segundo propostas de diversos autores, esse coping religioso/espiritual oferece recursos para o
enfrentamento de problemas e para a adaptação ao estresse por meio da proposta de novas crenças
para os dependentes químicos que buscam suporte na religião.
Pargament (1997), em compêndio sobre o tema de enfrentamento e da religiosidade, a estrutura de
conceitos que as religiões oferecem a seus adeptos os consola e os tornam menos revoltados com as
dificuldades enfrentadas. Eles tornam-se mais confiantes no futuro, e isso os acalma no presente. Dessa
forma, a religião acaba desenvolvendo a fé do adepto e, de maneira indireta, o faz crer que tudo que
ocorre tem um motivo e é previsto nos planos de Deus, não tendo, assim, razões para temer. Com a
ausência de temores, as taxas de estresse tendem a diminuir, e, consequentemente, também as
recaídas no consumo associadas ao medo.
Ainda dentro de coping religioso/espiritual, Klenck (2004), há a conscientização do perdão como medida
de enfrentamento da dependência. Em geral parte de um processo de confissão, seguido de perdão,
que tem uma característica terapêutica importante. Esses fiéis sentem-se perdoados e deixam de se
consumir pela culpa, acreditando que, se Deus os perdoou, não há mais o que temer ou por que se
cobrar por atos passados.
Há grupos especializando-se no estudo das potencialidades terapêuticas do estímulo do perdão entre os
seres humanos e inclusive entre povos e nações. Segundo evidências científicas, o perdão estaria
associado a uma diminuição de índices de estresse e de raiva de diversos pacientes, permitindo uma
melhora geral no quadro de saúde mental e, inclusive no sistema imune. Webb (2003) tem se dedicado,
na última década, a definir a influência do perdão (autoperdão; perdão aos outros; perdão de Deus) no
consumo de drogas nos Estados Unidos. Está claro que, apesar de o perdão, por si só, não definir
religiosidade, é um componente importante dela e, entre os indivíduos nos quais está mais presente, os
índices de uso abusivo e dependência de drogas é menor.
CONCLUSÃO
A experiência da religiosidade atua como fator protetor ao uso de drogas pelos principais mecanismos
propostos à saber: 1) normas de conduta definida e postura contra o uso de drogas ou a favor de seu
uso controlado (no caso do álcool); 2) famílias mais propensas a dar o exemplo de não uso de drogas ou
abordagens educativas sobre padrões adequados de consumo; 3) suporte social; 4) círculo de amigos
não usuários; 5) pertencimento a um grupo coeso e acolhedor; 6) fé no futuro e crença em um poder
superior que ampara a todos; e 7) oração e êxtase espiritual como fontes alternativas de prazer.
Na medida em que este estudo evidenciou a importância dada pelos indivíduos às crenças no campo
religioso e espiritual, esta questão passa a ser de fundamental importância na prevenção e tratamento
das dependências químicas. A capacitação dos profissionais de saúde acerca destas questões na
abordagem do paciente e a utilização de novos instrumentos de intervenção, como o trabalho
envolvendo a família, a comunidade religiosa, a oração e a reforma íntima, surgem como possíveis
alternativas que permitiriam resultados mais efetivos, que são objetivos comuns entre as “ciências” e as
e as “filiações religiosas”.
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