Sócrates no banco dos réus

Transcrição

Sócrates no banco dos réus
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Sócrates no banco dos réus (ou as várias versões de Sócrates)
O passado jurídico sempre traz à baila a reflexão sobre as relações entre
direito, história e filosofia. As narrativas sobre o julgamento de Sócrates são
menores do que realmente teria acontecido e, muitas vezes, o narrador sofreu
influências não somente do meio social em que viveu, mas, sobretudo, do
relativismo epistemológico.
Pois o leitor, com os olhos de hoje, ousa fazer a leitura do mundo antigo e não
está livre de sua época, conforme já advertiu Adam Schaff. A filosofia da
história permite questionamentos e persegue o passado, enquanto a ação se
perdeu no tempo. E o historiador, envolto em seu estilo próprio, transita por
entre diversas interpretações, seguindo a narrativa os caminhos da
imaginação.
Entender o outro, a alteridade e a objetividade dos fatos são desafios até hoje
enfrentados. Percebemos que o tempo presente inventa o passado
justificando-se. E na miragem helênica identificamos contradições no
julgamento de Sócrates (que antes de ser condenado pelos homens de seu
tempo, fora condenado pela sua própria crença em sua consciência).
Ao enfocar a biografia de Sócrates, mergulhamos em contradições. Como
homem, Sócrates fora reverenciado como um não conformista que se rebelara
contra a sociedade aberta, sendo admirador de sociedades fechadas. Como
ateniense, 1 desprezava a democracia e elogiava Esparta.
Sócrates era filho do escultor Sofroniscos e da parteira Fenereta. Era cidadão
diligente, combateu na guerra, tendo salvado a vida de Alcibíades. Casou-se
com Xantipa, 2 a quem se apontava uma reputação de rabugenta e mal1
A Atenas contemporânea de Sócrates representava um importante centro de debates, sendo visitada por todos os
grandes pensadores da época. Um desses grupos de pensadores itinerantes eram os sofistas (que negavam a
realidade do mundo exterior e tentavam arrancar a semelhança exterior dos casos, fora de sua conexão com os
acontecimentos).
2
Com quem teve três filhos. Podemos afirmar que Sócrates não teve, certamente, uma mulher ideal na quérula
Xantipa. Mas, igualmente, ela não tece um marido ideal no filósofo, sempre tão ocupado com outros cuidados que
não os domésticos. Xantipa ou Xântipe era a mulher de Sócrates e, possivelmente, mãe dos três filhos: Lamprocles,
Sophroniscus e Menexenus. Seu nome significa cavalo loiro em grego. O pai de Xântipe foi batizado com o
nome de Lamprocles. Visto que era até mais bem estabelecido na aristocracia de Atenas do que o pai de Sócrates,
o nome teria sido preferido na escolha para seu filho primogênito. Sócrates teve duas esposas. A primeira foi
Xântipe ou Xantipa e a segunda foi Myrto.
2
humorada e, por conta das intempéries da esposa, passava muitas horas na
rua. Proseava, perguntava e desconcertava.
O método dialético 3 de Sócrates era a maiêutica ou “parto de ideias”, em que o
interlocutor descobre a verdade parindo o conhecimento. Uma das
características pessoais era o fato de ser irreverente, tendo suscitado ódios e
invejas que culminaram na acusação de impiedade.
A morte de Sócrates, por ter sido condenado a ingerir cicuta, 4 é um traço
definidor na história da filosofia, provocando inúmeras reações eloquentes.
Sócrates vivia descalço e sem camisa, destituído de bens e de categoria social,
retratando um professor inconformado, cujo principal problema resumia-se em
delimitar o próprio objeto ensinado.
A própria didática da maiêutica5 nos remete não somente ao
autoconhecimento, mas, sobretudo, à construção da aprendizagem instigada
por perguntas e respostas sucessivas.
Del Vecchio aduziu: “Discutia Sócrates de modo peculiar, multiplicando as
perguntas e a elas dando respostas de maravilhosa e contundente
simplicidade. Ao contrário dos sofistas, que tudo afirmavam saber, declarava
ele nada saber. Molestava-os com a sua ironia, e confundia-os, interrogando-os
3
A dialética de Sócrates está ligada à descoberta da essência do homem como alma (psyché) e tendo o modo
consciente a despojar a alma da ilusão do saber. Como sistema de ensino, usava o diálogo em sintonia com a razão
para conduzir o interlocutor ao encontro de sua alma, fundamentalmente de natureza ética e educativa.
4
Cicuta também é chamada, em Portugal, de abioto. É um gênero de plantas apiáceas (compreende quatro tipos
muito venenosos) nativas das regiões temperadas do Hemisfério Norte. Sua alta toxicidade se deve pela presença
da substância cicutoxina. Além do seu uso para a ponta de flechas, ficou conhecida como veneno de Sócrates, pois
fora condenado ao um processo de autoenvenenamento por ter sido acusado de ateísmo e de corromper a
juventude ateniense.
5
Maiêutica é dar à luz intelectual. É um parto intelectual, da procura da verdade no interior do ser humano.
Sócrates conduzia esse parto em dois momentos. Primeiro, a duvidar de seu próprio conhecimento a respeito de
certo assunto; no segundo, Sócrates levava a conceber, de si mesmo, uma nova ideia, uma nova opinião sobre o
assunto em questão. Por meio de questões simples, inseridas dentro de certo contexto, a maiêutica dá à luz ideias
complexas. Portanto, a maiêutica baseia-se na ideia de que o conhecimento é latente na mente de todo ser
humano, podendo ser encontrado pelas respostas a perguntas propostas de forma perspicaz. A autorreflexão
expressou-se no nosce te ipsum – conhece-te a ti mesmo. Coloca o homem na procura das verdades universais que
são o caminho para a prática do bem e da virtude. Seu nome fora inspirado na profissão da mãe de Sócrates, que
era parteira. E o mestre esclareceu tal origem no famoso diálogo Teeteto. Vige certa divergência historiográfica
sobre a utilização de tal método por Sócrates. Historiadores afirmam que a denominação e a associação de tal
método decorrem da narração, não sendo mesmo fiel à vida de Sócrates narrada por Platão. Portanto, deveria
chamar-se de instrumentação argumentativa de Sócrates.
3
(ironia-pergunta, interrogação) sobre questões aparentemente simples, mas no
fundo, muito difíceis. Desse modo, constrangia-os, indiretamente, a darem-lhe
razão” (Del Vecchio, Giorgio, in: Lições de Filosofia do Direito).
Sócrates fora acusado 6 por Meleto, Aniton e Lícon de não reconhecer os
deuses da cidade, introduzir novas divindades e de corromper a juventude.
Ação intentada contra Sócrates era um graphai, asebeias, ação de impiedade.
Qualquer manifestação de dúvida ou indiferença a respeito da religião da
cidade era considerada atentado à unidade da comunidade, sendo passível de
ação pública.
Incumbiu-se Sócrates da própria defesa 7 e finda esta, Anito e Lícon se
apresentaram para ajudar Meleto, cujos argumentos foram refutados por
Sócrates. O quorum do tribunal que julgou Sócrates contava com 501 juízes,
sendo que 280 votaram pela condenação, enquanto somente 221 votaram pela
absolvição.
Mas existem pelo menos três versões de Sócrates, se é que existiu um
Sócrates histórico. A versão de Aristófanes, a de Xenofonte e a de Platão.
Para Aristófanes, Sócrates era uma pessoa cômica, um pensador distante da
realidade. Sendo amante da vida que enfrentou com temperança, Sócrates
A acusação disse: "Sócrates comete crime, investigando indiscretamente as coisas terrenas e as celestes, e
tornando mais forte a razão mais débil, e ensinando aos outros". Mas nada disso tem fundamento, pois não instruo
e nem ganho dinheiro com isso. Talvez pudessem dizer de mim: "Enfim, Sócrates, o que é que você faz? De onde
nasceram essas calúnias? Se suas ocupações não fossem tão diferentes das dos outros, não teria ganhado tal fama e
não teriam nascido acusações".
7
Sócrates respondeu: - Acontece que Xenofonte, uma vez indo a Delfos, ousou interrogar o oráculo e perguntoulhe se havia alguém mais sábio do que eu. Ora, a pitonisa respondeu que não havia ninguém mais sábio. Ao ouvir
isso, pensei: "O que queria dizer o deus e qual é o sentido das suas palavras?”
Sei bem que não sou sábio, nem muito nem pouco. “E fiquei por muito tempo sem saber o verdadeiro sentido de
suas palavras”. Então, resolvi investigar a significação do seguinte modo: Fui a um daqueles detentores da
sabedoria, com a intenção de refutar, por meio deles, o oráculo e, com tais provas, opor-lhe a minha resposta: "Este
é mais sábio do que eu, enquanto você disse que sou eu o mais sábio". Examinando esse homem – não importa o
nome, mas era um dos políticos – e falando com ele, parecia ser um verdadeiro sábio para muitos e,
principalmente, para si mesmo. Procurei demonstrar-lhe que ele parecia sábio sem o ser. Daí veio o ódio dele e de
muitos dos presentes aqui contra mim. Então, pus-me a considerar comigo mesmo, que eu sou mais sábio do que
esse homem, pois que, nenhum de nós sabe nada de belo e de bom, mas aquele homem acredita saber alguma
coisa sem sabê-la, enquanto eu, como não sei nada, também estou certo de não saber.
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pagou com a vida o preço de sua fama. E, pela eternidade, prosseguiu à glória,
embora maculada por Aristófanes que bem o retratou, em sua peça As nuvens.
O comediante também criticou os sofistas, tomando Sócrates por um deles. E
suscitou uma questão ainda recorrente: tem o orador o dever dizer a verdade?
Aristófanes 8 zombou de Sócrates quando narrou: “Quando Sócrates observava
a lua para estudar seu curso e evoluções, no momento em que ele olhava para
o céu, de boca aberta, do alto do teto uma lagartixa noturna, dessas pintadas,
defecou em sua boca” (in: Aristófanes, As nuvens).
Em outra narrativa, Sócrates é visto pendurado numa cesta, observando os
ares e contemplando o Sol. E justificara estar pendurado pela necessidade de
elevar seu espírito e elevar seu pensamento sutil com o ar igualmente sutil.
“Se eu tivesse ficado na Terra para observar de baixo as regiões superiores,
jamais teria descoberto coisa alguma, pois a Terra atrai, inevitavelmente, para
si mesma a seiva do pensamento. É exatamente isso que acontece com o
agrião” (Aristófanes, As nuvens).
Tais diálogos denunciam Sócrates como pedante e alienado, e ainda narra
sobre um incêndio na casa do filósofo (ocasião em que resmungara: “Ai, infeliz
de mim. Ou morrer miseravelmente assado!”).
8
Aristófanes foi um dramaturgo grego e ainda é considerado o maior representante da Comédia Antiga. Sua
biografia é pouco conhecida. Sua obra permite deduzir que teve requintada formação. Viveu o esplendor do século
de Péricles. Foi testemunha do início do fim de Atenas. Vivenciou o início da Guerra de Peloponeso, que arruinou
Hélade. Viu o papel nocivo dos demagogos na destruição econômica, militar e cultural de sua Cidade-Estado. Teve
dois filhos, que também seguiram a carreira do pai. Escreveu 40 peças, das quais apenas 11 são conhecidas. Era
conservador, e hostil às inovações sociais e políticas e aos deuses e homens responsáveis por estas. Seu alvo eram
as personalidades influentes: políticos, poetas, filósofos e cientistas fossem velhos ou jovens, ricos ou pobres.
Aristófanes não poupou em suas críticas nenhuma figura ilustre, nenhuma instituição, nem mesmo os deuses.
Atacou, às vezes injuriosamente, as inovações artísticas, morais, políticas e sociais da Atenas de seu tempo, muito
diferente da de Péricles. Preocupou-se, acima de tudo, em defender a paz e advertir a população, sobretudo a rural,
dos abusos urbanos. Em Lisístrata ou A greve do sexo (411 a.C.), as mulheres fazem greve de sexo para forçar
atenienses e espartanos a estabelecerem a paz. Em As vespas (422 a.C.), discute a importância da verdade e seus
benefícios, revelando sua preocupação com a ética. Na peça As nuvens (423 a.C.), compara Sócrates aos sofistas,
mestres da retórica, e acusa o filósofo grego de exercer uma influência nefasta sobre a sociedade. Na comédia Os
acarnianos ou Acarnenses, representada no ano 425 a.C., ele ridiculariza os partidários da guerra com Esparta. Suas
outras obras são Os cavaleiros (424 a.C.), A paz (421 a.C.), As aves (414 a.C.), As tesmoforiantes ou As mulheres que
celebram as Tesmofórias (411 a.C.), As rãs (405 a.C.), As mulheres na assembleia ou Assembleia de mulheres (392
a.C.) e Pluto ou Um deus chamado dinheiro (388 a.C.).
5
Metaforicamente, o fogo na residência socrática sugere a miséria da filosofia
que deve ser queimada. O pensamento socrático incomoda e provoca.
Aristófanes conclui, portanto, que o pensador era perigoso para a cidade.
A versão de Sócrates criada por Xenofonte o concebeu de forma mais
simpática, tendo defendido seu mestre que sempre viveu à luz pública, relatou
que de manhã saía a passeio e aos ginásios (...) mostrava-se na ágora à hora
em que regurgitava de gente e passava o resto do dia nos locais de maior
concorrência, o mais das vezes falava, podendo ouvi-lo quem quisesse.
“Viram-no algum ‘ver-fazer’ ou dizer algo contrário à moral, ou à religião” (in:
Xenofonte, Memoráveis).
Xenofonte não poupou em defender Sócrates revelando-se estar admirado que
os atenienses tivessem acreditado nas acusações contra seu mestre,
justamente por não ter praticado nenhum ato pecaminoso e por ter adotado
discurso e ser reputado como o mais pio dos humanos.
A inocência de Sócrates é verdadeiramente o axioma 9 de Xenofonte. Axiomar
um sistema é mostrar que suas inferências podem ser derivadas a partir de um
pequeno, mas bem definido conjunto de sentenças. Na engenharia, os axiomas
são aceitos sem provas formais e suas escolhas são negociadas a partir do
ponto de vista utilitário e do ponto de vista econômico.
Passagem interessante narrada por Sócrates: “Quando seus amigos iam cear
em sua casa e uns levavam pouco, outros muito, Sócrates mandava o criado
pôr em comum num prato menor ou reparti-lo fraternalmente entre os convivas.
Os que levavam mais teriam vergonha de não servir-se do que era posto em
comum e em comum pôr também o próprio prato, sendo assim, constrangidos
a fazê-lo”.
9
Na lógica tradicional, axioma ou postulado é sentença ou proposição que não é provocada ou demonstrada e é
considerada como óbvia ou como um consenso inicial necessário para a construção ou aceitação de uma teoria. É
aceito como verdade e serve de ponto inicial para dedução e inferências de outras verdades. Em matemática,
axioma é hipótese inicial da qual outros enunciados são logicamente derivados. Não é uma verdade autoevidente,
mas apenas expressão lógica formal em uma dedução visando obter, mais facilmente, resultados.
6
Segundo Xenofonte, o filósofo Sócrates10 era compreendido por todos, o que
configura antinomia com a descrição feita por Aristófanes, para quem era
incompreendido e afetado. As referências de Xenofonte invocam o sábio
calmo, conduzindo seus interlocutores à compreensão da existência humana,
calibrada pelo belo, justo e útil.
Sócrates procurava incutir nos discípulos as ideias sábias concernentes aos
deuses. Xenofonte se esforçou muito pela defesa de Sócrates mostrando-o
como temente aos deuses, patriota e amigo da juventude. Os textos de
Xenofonte vislumbram a realização da justiça nos atos e palavras do filósofo e
mestre que fora injustiçado pelas opiniões e pelos olhares de ciúme, cobiça e
emulação. Em verdade, o que foi letal à vida de Sócrates não fora a ingestão
de veneno, mas sim a inveja. 11
A maiêutica socrática funcionava a partir de dois momentos essenciais: um
primeiro em que Sócrates levava os seus interlocutores a pôr em causa as
suas concepções e teorias sobre um assunto; e um segundo momento em que
conduzia os interlocutores a uma perspectiva sobre o tema.
Daí ser a maiêutica um autêntico parto de ideias. Sócrates procurou dar maior
ênfase àquilo que não se sabe a transmitir o que julgava saber privilegiado a
instigação permanente.
Nos diálogos de Platão há o relato de que Sócrates tinha servido ao exército
em várias batalhas e, Estrabão contou que, após uma derrota ateniense em
que Sócrates e Xenofonte haviam perdido seus cavalos.
Nessa ocasião então Sócrates encontrou Xenofonte caído no chão e carregouo por vários estágios até que a batalha final. (Estrabão, Geografia, Livro IX,
Capítulos 2 e 7).
10
Filósofo ateniense (469 a.C. – 399 a.C.) do período clássico da Grécia Antiga. Reconhecido como um dos
fundadores da filosofia ocidental, sendo até hoje figura enigmática e conhecida, principalmente, pelas narrativas de
Platão e Xenofonte, e pelas peças teatrais de Aristófanes. Alguns defendem que os diálogos de Platão seriam relatos
mais abrangentes do filósofo e têm perdurado até os dias de hoje. O método socrático, ou seja, maiêutica é usado
até hoje pela pedagogia, sendo utilizado para obter respostas não específicas, mas compreensão clara e
fundamental do tema discutido.
11
Sócrates não aceitava pagamento, por isso tampouco aceitou cargos públicos. Assim, opôs-se aos sofistas. O
conhecimento é possível e seu objeto primordial é a própria alma. Sócrates se inspirou no adágio do oráculo de
Delfos: "conhece-te a ti mesmo", frase escrita no templo de Apolo.
7
Os paradoxos socráticos são posições éticas defendidas que vão contra (para)
a opinião (doxia) comum. Os principais paradoxos são: 1. a virtude é
conhecimento; 2. Ninguém faz o mal voluntariamente; 3. As virtudes se
constituem em uma unidade; 4. É preferível sofrer uma injustiça a cometê-la.
(Górgias) ou jamais se deve responder a injustiça pela injustiça, nem fazer mal
a outrem, nem mesmo àquele que nos fez mal (Críton).
A respeito do segundo paradoxo acima citado, Sócrates confirmava por atribuir
o mal à ignorância, pois a sabedoria e a virtude são inseparáveis.
Sócrates fora notório cumpridor das leis, tendo sido o primeiro dos positivistas.
No entanto, observou Xenofonte 12 que o filósofo deixou de acatar as ordens
dos 30 tiranos, como eram conhecidos os governantes de Atenas.
No juízo de Sócrates, o pai da maiêutica, tais ordens eram declaradamente
ilegais. Continha um íntimo juízo de controle de legalidade. Eram ordens
avessas às leis. Assim, quando lhe proibiram o palestrar com os jovens e o
encarregaram juntamente com outros cidadãos de conduzir um homem que
intentavam assassinar, somente ele se recusou obedecer, porque tais ordens
eram ilegais.
Insistiu Xenofonte a apontar que Sócrates induziu à prática do bem. Tinha
sempre presente no espírito os caminhos que conduzem à virtude e não se
cansava de lembrá-los aos que frequentavam suas aulas peripatéticas.
Ao final, Xenofonte convoca os leitores a compararem a grandeza do mestre
em face de outros homens. Também, tal qual Platão, redigiu apologia de
Sócrates. Xenofonte captou realisticamente a adversidade de ânimos.
12
Xenofonte foi soldado, mercenário e discípulo de Sócrates. Era conhecido pelos seus escritos sobre a história do
seu próprio tempo e pelos seus discursos de Sócrates. A maioria dos estudiosos situa seu nascimento em 430 a.C.
ou um pouco depois. Era originário de família rica e influente em Atenas. Participou dos embates finais da Guerra
do Peloponeso incorporado nas fileiras da aristocrática cavalaria ateniense. Sua dissertação histórica foi Anábase,
em que analisou o caráter de um líder pelo viés de um historiador. Tal tipo de análise tornou-se célebre até hoje
como a “Teoria dos Grandes Homens”. Onde descrevera o caráter de Ciro, o Moço, dizendo que de todos os persas
que viveram depois de Ciro, o Grande, este era o que mais se parecia com um rei e o maior merecedor de um
império. Xenofonte fora, posteriormente, exilado de Atenas, provavelmente pelo fato de ter lutado sob o comando
do rei espartano Agesilau contra Atenas em Coroneia (ou por ter participado com Ciro). Seu filho, Grilo, comandou a
cavalaria de Atenas. Diógenes Laércio disse que Xenofonte ficou conhecido como "musa da Ática" pela doçura de
sua dicção.
8
Os últimos dias de Sócrates foram narrados por Platão em quatro diálogos:
Apologia, Fédon, 13 Críton e Eutífero. A apologia de Sócrates o reputou
caluniado. A defesa fora apresentada em estrita obediência à lei.
Sócrates demonstrou plena consciência de sua missão confirmada pelo oráculo
de Delfos como o mais sábio dos homens. Ele admitia que sua sabedoria
residisse na consciência de que nada sabia. As inimizades acirradas e
malignas geraram as principais calúnias que bem nutriram a ação de
impiedade.
Sócrates, segundo Platão (o pai da academia), apontou o seu destemor para
com a morte que o aguardava: “Com efeito, temer a morte é o mesmo que
supor-se sábio quem não o é, porque é supor que sabe o que não sabe.
Ninguém sabe o que é morte, nem se, por ventura, será para o homem o maior
dos bens; todos a temem como se soubessem ser ela o maior dos males. A
ignorância mais condenável não é essa de supor saber o que não sabe”.
Xenofonte e Platão astutamente comprovaram que os atenienses seriam os
maiores perdedores da condenação de Sócrates. Atenas se envenenou
exibindo-se como intolerante, despótica e hábil na censura para a qual a
tradição ocidental insiste em fazer ouvidos moucos.
A historiografia do pensamento jurídico efetivou apressada apreensão do
legado ático, escondendo deficiências estruturais e ampliando os modelos de
otimização conjuntural. A verdade é que a construção da democracia
ateniense é mais mítica do que fática e Sócrates, já envenenado, em seus
derradeiros momentos, preconizou que os derrotados com sua condenação.
Sócrates também apelou em sua defesa para o legado deixado, posto que
julgava-se vítima da incorreta aplicação das leis. Ao se defender, Sócrates
13
O julgamento de Sócrates foi relatado por seu discípulo, Platão, no livro Fédon, e apesar de ter sido realizado há
mais de 2400 anos, aborda essencialmente os fatos que o rodeiam, temas e questionamentos que até hoje
procuramos compreender. O ponto de partida para tentar compreender tal julgamento está na defesa das
acusações que foi feita pelo próprio Sócrates, uma vez que não havia pessoa melhor para demonstrar a veracidade
dos fatos, se não àquele que os praticou/vivenciou. Daí perceber a grandiosidade que esse julgamento tem, não
somente para a história da filosofia, como também para a história da humanidade. O saber, a missão e a morte.
9
apontou que o juiz não jurou favorecer quem bem lhe parecesse, porém
deveria julgar segundo as leis.
A defesa de Sócrates transcende como intransigente apologia da legalidade,
cuja concepção tripartida seria preconizada vinte séculos depois na obra de
Montesquieu. Em sua defesa, Sócrates sugeriu multa que o beneficiaria.
Porém, a dura sentença condenatória se concretizou e ganhou a posteridade.
Platão narra as derradeiras mensagens do mestre: “Bem, é chegada a gira de
partirmos, eu para a morte, vós para a vida. Quem segue melhor rumo, se eu,
se vós, é segredo para todos, menos para a divindade”.
No diálogo intitulado Fédon, 14 Platão narrou o sofrimento e a agonia dos
amigos de Sócrates ao presenciarem a ingestão de cicuta (“As lágrimas me
jorraram em ondas”). Lembrou Sócrates que devia Asclépio um galo.
Por fim, o mestre deixou sua derradeira lição: “A morte libera-nos das dores e
permite-nos o repouso eterno”, assim persistiu em seu legado. 15 A questão
socrática não se esgota em sua historicidade. Ainda não se pacificou a questão
de fundo do discurso de Homero: se a Guerra de Troia acontecera realmente.
Segundo o poeta Homero, a guerra foi causada pelo rapto da princesa Helena
de Troia (esposa do lendário rei Menelau), por Páris (filho de Príamo). Isso
ocorreu quando o príncipe troiano foi a Esparta, em missão diplomática, e
14
Fédon ou Fedão é obra filosófica de Platão que, através de diálogos, relata os últimos ensinamentos de Sócrates,
antes de tomar a cicuta a que fora condenado pelo Estado.
Na obra, Equécrates, ao encontrar Fédon, pergunta a este quais foram as últimas palavras do mestre Sócrates e
solicita que sejam relatadas com a maior exatidão possível. Assim, fala sobre morte, ideia, destino da alma, entre
outros assuntos. É um diálogo que não pertence à fase socrática de Platão, divisão usada por alguns filósofos.
Assim, estaria apenas usando a imagem do mestre para divulgar seu próprio projeto filosófico.
Platão recebera influência forte da religião órfica, que acreditava na alma e na reencarnação. É seu primeiro
postulado acerca da alma. A situação dramática é o encontro de Fédon de Élis, discípulo de Sócrates, com o
pitagórico Equécrates. Assim, narra não somente o diálogo, mas a cena e as ações dos protagonistas. Ocorre na
prisão onde Sócrates estava detido aguardando sua execução, em 399 a.C. Fédon é o mais popular dos diálogos de
Platão, o mais lido, citado e comentado, e aquele cujo tema sofreu menos eclipses na inquietude, nos anelos e na
estimativa das gerações.
15
O admirável comportamento de Sócrates perante a morte foi expressão de plácida naturalidade e trouxe a mais
bela lição moral que tem sido ouvida, quase sem interrupção, no decurso dos séculos. A mais impressionante
atitude moral perante a morte foi, de fato, a lucidez com que o mestre discorreu até o último alento de vida, sem
sofismas, nem subterfúgios.
10
acabou apaixonando-se por Helena. Páris havia recebido de Afrodite a
recompensa de ter a mulher mais bonita do mundo, que era Helena. O rapto
deixou Menelau enfurecido, fazendo com que este organizasse um poderoso
exército. O general Agamenon foi designado para comandar o ataque aos
troianos. Através do mar Egeu, mais de mil navios foram enviados para Troia.
O épico Ilíada, escrito por Homero, descreve uma das mais famosas guerras
da Antiguidade. Além de o relato militar, o conflito chama a atenção pelas
motivações deste, as atitudes tomadas por seus mais importantes personagens
e a sua incrível reviravolta. Por conta de sua rica e detalhada narrativa, muitos
historiadores duvidam de sua veracidade. Toda essa dúvida seria capaz de
desmoronar a paixão de Páris, o rapto de Helena, o feito dos heróis
participantes e a engenhosa construção do cavalo que determinou o fim do
combate.
O arqueólogo Heinrich Schilemann, estudando vários textos de Homero para
definir a possível localização de Troia, realizou escavações no monte Hissarlik,
próximo ao famoso Estreito do Dardanelos e terminou por descobrir uma série
de vasos, jarros e apetrechos em ouro e prata. Observando esse material,
Schilemann conclui que os artefatos faziam parte do Tesouro de Príamo, antigo
rei troiano e pai de Páris, o que reforçou significativamente a sustentação da
existência de Troia. As novas pesquisas revelaram a existência de nove Troias,
sendo que as cinco primeiras construídas no início da Idade de Bronze.
Atualmente, vários estudiosos acreditam que Troia funcionava como entreposto
comercial que realizava a interligação entre as cidades gregas encontradas nos
mares Negro e Egeu. Obviamente, estes deduziram que a dependência dos
gregos em relação aos troianos era motivo para a ocorrência de pequenas
divergências que desgastavam as relações política e comercial entre tais
povos. Com isso, os gregos talvez realizassem essa invasão quando os
troianos estivessem fragilizados por alguma contenda ou desastre natural que
poderia ter instigado o desenvolvimento da guerra.
Verdade que a leitura do modelo conceitual e o fundamento da ideologia
podem propiciar errônea apreensão dos fatos, podendo ser manipulados por
inferências presentes.
11
Isidor Stone, um polêmico jornalista norte-americano, afirmara que Sócrates
fora inimigo da democracia e pregava uma sociedade fechada, sob o molde
espartano, e que a democracia ateniense o censurou e produziu uma caça às
bruxas.
Sócrates, de Xenofonte, propõe reis dentro dos limites das leis; enquanto
Sócrates, de Platão, não admitia nenhuma limitação ao rei-filósofo. Isidor Stone
insiste na admiração de Sócrates por Esparta, na fixação da andreia (coragem)
como virtude (areté). E o jornalista observa que os acusadores de Sócrates e
sua condenação comprovam que em Atenas não havia liberdade de expressão
em uma época áurea da democracia.
Platão também comenta que Sócrates ainda conversara com a mulher,
Xantipa, e com o filho antes do fim. Seu fim sugere sucessão de imagens e, ao
proclamar defesa, a apologia pro vita sua consubstancia reputação para a
eternidade.
Críton, um de seus discípulos, sugeriu fuga organizada, porém esta fora
recusada por Sócrates. Patriota, Sócrates nunca deixara a cidade e protestou
por cumprir as leis sem discuti-las, preconizando um positivismo e fetichismo
legal dos séculos vindouros.
Um fato, porém, é inegável: Sócrates fizera muitos inimigos e o contexto do fim
da Guerra do Peloponeso, o império ateniense, estava em ruínas, ensejando
facções e problemas internos.
A crise dos velhos princípios gregos exigia um bode expiatório. 16 Embora
dedicado ao Estado, à vida da polys, as suspeitas caíam sobre Sócrates, que
16
O bode expiatório era um animal apartado do rebanho e deixado sozinho na natureza selvagem como parte das
cerimônias hebraicas do Yom Kippur, o Dia da Expiação, na época do Templo de Jerusalém. Tal rito é descrito na
Bíblia, no livro do Levítico. Na Torá, dois bodes eram levados, juntamente com um touro, ao lugar de sacrífico, como
parte dos Korbanot do Templo de Jerusalém. No templo, os sacerdotes sorteavam um dos bodes. Um era queimado
em holocausto no altar de sacrífico com o touro. O segundo tornava-se o bode expiatório, pois o sacerdote punha
suas mãos sobre a cabeça do animal e confessava os pecados do povo de Israel. Posteriormente, o bode era
deixado ao relento na natureza selvagem, levando consigo os pecados de toda a gente, para ser reclamado pelo
anjo caído Azazel. Na doutrina cristã, o bode expiatório no Levítico é interpretado como uma prefiguração simbólica
do autossacrifício de Jesus, que chama a si os pecados da humanidade, tendo sido expulso da cidade por ordem dos
sacerdotes. Tipologicamente então, o bode expiatório é a representação da figura do Messias, que fora enviado ao
deserto para ser tentado pelo diabo. Noutra visão de tom muito popular, o cristianismo compreende que os dois
bodes são símbolos de Cristo e Satanás, vez que a expiação propriamente dita se realiza com a morte do primeiro
12
representava a nova era espiritual, apesar da acusação de ateísmo, de
corrupção da juventude.
Sócrates sacudiu a cidade da letargia e sua maiêutica retirava a pólis do sono
dogmático, e a fazendo precisar do relativismo das crenças e das verdades. À
luz do literal normativismo, os acusadores tinham razão e com a morte de
Sócrates, amigos e seguidores se dissiparam. Platão percorreu Grécia, Egito,
Itália retornando a Atenas 40 anos depois para inaugurar sua academia.
As lágrimas, os suspiros e a tristeza dos amigos e alunos de Sócrates
compunham a trilha sonora da democracia ateniense, que era doente,
decadente e perversa.
A morte de Sócrates configurou que a democracia ateniense não admitia
críticas e, portanto, não era propriamente uma democracia. Essa questão nos
remete à tortuosa dúvida: podemos tolerar quem prega a destruição dos
intolerantes? Matar um intolerante significa eliminar a intolerância? 17
A versão de Sócrates oferecida por Platão não era democrata, tendo sido alvo
eliminado pela democracia ateniense, portanto, o Sócrates histórico era
malvisto e temido pelos poderosos, e com sua execução se confirmou que não
tolerava a liberdade de expressão.
Como Sócrates, verificamos um tom pedagógico na obra de Platão, que é uma
paideia que se revela em ser breve síntese que nos comunica a justiça, uma
verdadeira descoberta do domínio da Ética. Dessa forma, em franca oposição à
tese sofista de Trasímaco, que defendeu a Justiça como poder do mais forte,
Platão não busca o eficaz, o útil, o convincente, mas apenas o verdadeiro.
bode e como não existe expiação sem derramamento de sangue, não há expiação pela morte do segundo bode, que
é apenas levado ao deserto e morre à míngua. Este representa Satanás (ou Azazel, seu braço direito, um demônio
do deserto) que é enviado ao abismo de mil anos, onde refletirá sobre a obra maléfica que realizou contra os seres
humanos.
17
Falácia é argumento logicamente inconsistente, sem fundamento, inválido ou falho na tentativa de provar
eficazmente o que se alega. Os argumentos que se destinam à persuasão podem parecer convincentes para grande
parte do público, apesar de conterem falácias, mas não deixam de ser falsos por causa disso. Como exemplo de
falácia, temos o argumentum ad misericordiam consiste em ganhar a simpatia do adversário apresentando-se como
uma pessoa digna de pena.
13
O Direito e a Justiça, conforme Platão aprendeu com Sócrates, efetivamente
estão a serviço do homem e do bem comum. Possui sentido transcendente,
valor perene que nossa alma deseja e que, por ter vindo do céu, jamais poderá
ser esquecido.
De qualquer maneira, a morte de Sócrates por envenenamento perfaz um traço
recorrente na tradição ocidental confirmando que o pensamento crítico irrita,
agride, gera desconfianças e, portanto, precisa ser extirpado e anulado. Dessa
forma, Sócrates se revela mártir e sua morte não representa o fim de qualquer
simpatia ao legado ático. Confirmou que a democracia possui limitações e
restrições sérias, assim como seu julgamento permite a desconfiança das
desejáveis relações entre direito, 18 história e verdade.
Embora, em geral, Sócrates se opusesse aos sofistas, num ponto ele era
coincidente com Górgias o Protágoras, desde que estes entendessem que a
filosofia deveria se ocupar especialmente do homem. Toda filosofia socrática
fora plenamente caracterizada pela certeza de que o homem é capaz de atingir
a verdade. E tal verdade não é de natureza física, mas de ordem metafísica,
assim como a ideia do bem, as virtudes e os valores em geral.
De acordo com a filosofia socrática, apesar das divergências sobre a moral, a
política e os costumes, existem verdades universais à disposição daqueles que
sincera e humildemente se dispuserem a descobri-las.
A humildade é o básico pressuposto para o acesso à verdade e o método
correspondeu ao diálogo vivo. Sócrates respondia que o homem é a sua alma
(sede da atividade racional, ética e do conhecimento) e, para acessá-la, usava
o método da introspecção estimulada, composto de três momentos: a ironia ou
fase destrutiva (pars destruens), a maiêutica e o diálogo.
18
Platão, em sua obra As Leis, apresenta maior respeito pelos direitos do indivíduo, desde que este não seja
escravo: servus et res sunt idem (não há diferença entre escravo e uma coisa). A família e a propriedade são
preservadas, enquanto em A República o Estado está acima destas. Mesmo assim, se necessário for, a família e a
propriedade poderiam ser desfeitas ou destituídas. Por essa razão, em As Leis, Platão aconselhou a divisão dos
indivíduos por classes e vigilância sobre as famílias. Em verdade, Platão fora crítico implacável, tanto da monarquia
quanto da democracia, e propôs o modelo de Esparta, em que ao lado de dois reis existiam o Senado e os Éforos,
magistrados supremos nas cidades dóricas da Grécia Antiga.
14
Sócrates assumia o ataque induzindo o interlocutor à contradição. A humildade
em reconhecer a própria ignorância era considerada como indispensável para
rumar em direção da verdade. E afirmava veemente: “só sei que nada sei”.
O segundo momento era a maiêutica (do grego maieúo, ou seja, partejar), pois
uma vez removidos os obstáculos pela ironia, o interlocutor era auxiliado a
descobrir as verdades que jaziam em sua alma.
O diálogo socrático 19 não ensinava verdades prontas, mas ensinava trazer a
lume as concepções latentes no espírito humano, que são inatas. Daí ser o
defensor do direito natural e da universalidade de certas verdades.
Enfim, revelava a maiêutica ser a arte de partejar os espíritos através dos
diálogos induzidos pelo mestre ao discípulo. O derradeiro momento é o
conceito emanado na alma do sujeito pela verdade. Conhecer é recordar. Daí
afirmar: “conhece-te a ti mesmo” (e recorda-te das verdades que possuis).
Entendia a alma como princípio da racionalidade e fonte da moralidade, e
propunha a desvendar as relações com o corpo e a natureza (que, na opinião,
era eminentemente espiritual, daí sua imortalidade).
Afinal, é o pensamento socrático que mais marcou o nascimento da filosofia
clássica tão bem desenvolvida por Platão e Aristóteles. O julgamento e morte
de Sócrates marcaram seus discípulos, amigos e seguidores que proferiram
relatos, testemunhos sobre o episódio, em que o filósofo confronta o Estado.
A motivação das acusações a Sócrates foi marcadamente política, pois as
críticas socráticas apontavam para o desvirtuamento da democracia ateniense.
É verdade que a interpretação do legado de Sócrates até hoje encontra
19
A dialética é a arte do diálogo, a arte de debater. Também é uma maneira de filosofar o conceito. E seu conceito
fora debatido por diversos filósofos, como Sócrates, Platão, Aristóteles, Hegel, Marx, entre outros. É o poder de
argumentação, porém, a palavra pode ser utilizada em sentido pejorativo, com uso exagerado de sutilezas.
15
dificuldades, pois em vida, nada escreveu 20 (bem como Jesus Cristo) e
valorizava, sobretudo, o debate e o ensinamento oral.
Por outro lado, o registro de Platão, 21 seu principal discípulo, nos permitiu
extenso conhecimento das teses socráticas, embora isso nos forneça a própria
visão platônica dos ensinamentos de Sócrates. As outras duas fontes sobre a
biografia de Sócrates são: Xenofonte (que não fora propriamente discípulo),
mas um companheiro de Sócrates (quem o salvara da guerra) e Aristófanes.
Aristófanes, no entanto, traçou um perfil de Sócrates bem distinto do de
Platão 22 e Xenofonte. O mestre fora satirizado e encarado como amoral,
interesseiro e andrajoso. Aristófanes o enfocou apenas como o intelectual
constantemente ridicularizado em suas comédias.
A crítica de Sócrates aos sofistas consiste em manobra que o ensinamento dos
sofistas limita-se a mera técnica ou habilidade argumentativa que visa apenas
convencer o que o oponente diz, não levando ao verdadeiro conhecimento.
A consequência disso era que, devido à forte influência dos sofistas nas
decisões da Assembleia que eram baseadas nas mais hábeis retóricas e
dirigiam apenas à verdade consensual resultante da persuasão.
Enfim, quem valorizou a descoberta do homem pelo homem feita pelos
sofistas, orientando-a para os valores universais, seguindo a real via de
pensamento grego, foi Sócrates.
Quanto à política, fora valoroso soldado e rígido magistrado. Sócrates foi o
fundador da ciência geral mediante a doutrina do conceito, sendo, em particular
20
Sócrates não deixou nada escrito, e as notícias de seus ensinamentos e pensamentos devem-se a Platão e a
Xenofonte, que possuíam feições intelectuais diferentes. Xenofonte foi autor de Anábase, em seus Ditos
Memoráveis, e deu preferência aos aspectos prático e moral da doutrina, sendo um homem mais de ação.
21
Platão foi grande filósofo para pintar o mais nítido retrato de Sócrates e cabe-lhe a glória de ter sido grande
historiador do pensamento socrático, mas nem sempre é fácil discernir o fundo de Sócrates das especulações
acrescentadas por Platão.
22
Platão publicou 36 diálogos, 13 cartas e uma coleção de definições. A única construção racional de Sócrates é a
gnosiologia que se encontrava num método da ciência dialógica.
16
também, o fundador da moral que afirmava que a eticidade significava
racionalidade.
Convém frisar que Sócrates, apesar de sua enorme grandeza intelectual, não
elaborou um sistema filosófico acabado, apenas descobriu o método que
fundou uma grande escola.
Na narrativa de Sócrates restou registrado o que seria o seu último discurso, in
verbis: “Não foi por falta de discursos que fui condenado, mas por falta de
audácia e porque não quis que ouvísseis o que para vós teria sido agradável”.
(...) Sustentou, no entanto, uma certeza: “mais difícil que evitar a morte é evitar
o mal, porque este corre mais depressa do que a morte”. Quando a esta,
apenas pode ser uma destas duas coisas ou aquele que morre é reduzido ao
nada e não tem mais qualquer consciência, ou então, conforme ao que se diz:
“a morte é uma mudança, uma transmigração da alma do lugar onde nos
encontramos para outro lugar”.
A vida de um grande homem, principalmente quando pertenceu a uma época
bem remota conforme E.Taylor advertiu que jamais pode ser o mero registro de
fatos indiscutíveis e a verdadeira tarefa do biógrafo consiste em interpretá-los,
devendo ir além dos eventos e mergulhando nos caracteres que estes revelam,
utilizando-se a imaginação construtiva.
Duas figuras históricas passaram por bárbaros julgamentos e cruéis
condenações: foram Jesus e Sócrates. O primeiro padeceu sob Pôncio Pilatos,
enquanto Sócrates padeceu sob a democracia ateniense, no ano de Laques
(399 a.C.). Ambos nada escreveram e suas atividades e pensamentos vieram
através de seus discípulos e seguidores que podem ter retratado seus mestres
pela óptica da admiração e do afeto.
Fato que existem discrepâncias nos relatos. Ora o relato apareça caricaturado
nas peças teatrais de Aristófanes, ora é visto como admiração e idolatraria por
Platão, que rebate o retrato pintado por Aristófanes, um mero poeta cômico.
17
Fato é que Sócrates noticiado por textos antigos nos aparece com rosto
diversamente refletido por diferentes espelhos, o que nos intriga até hoje
questionar: Onde estará a verdadeira face de Sócrates?
O mestre Sócrates viveu em Atenas na época de Péricles. Época que não foi
marcada pelo desenvolvimento da prosa literária. Fora marcada pela criação de
grandes obras teatrais, particularmente, tragédias.
Platão o tornaria a principal figura de seus Diálogos, enquanto Xenofonte o
exaltava em suas Memoráveis. Ésquines, nas diversas obras que se perderam,
cogitou do mestre de quem fora amigo constante. Mas todos o descreveram
com mais de 45 anos de idade e preocupado em despertar o homem para o
conhecimento de si mesmo.
Sócrates reagiu contra o relativismo sofístico e tudo indica que fora alicerçado
em pressupostos religiosos órfico-pitagóricos, 23 que apenas concebem a
sucessão de impressões sensíveis e fugazes, e intransmissíveis ou a criação
de sinais convencionais que constituiriam a linguagem. Se as palavras tecem
um terreno instável e uma opinião relativa e insegura, isso significa que,
segundo ele, não estariam acompanhadas da consciência de seu significado.
Na verdade, Sócrates criou nova concepção de alma (psique) que passou a
predominar na tradição ocidental. A importância de Sócrates para o Direito
reside, principalmente, na sua justificação racional do nomos (lei)
diferenciando-se dos sofistas quanto ao método.
A verdade socrática não se impõe externamente. Ela brota de dentro, através
do diálogo e de sua fé na virtude extremada que compôs o intelectualismo
ético, rigoroso (o que definiu a moral como o conhecimento do bem).
23
Orfismo deriva de Orfeu, filho de Apolo com a musa Calíope e, segundo alguns, foi o fundador do orfismo. Orfeu
era poeta e músico, e a sua religião representava uma catarse musical capaz de hipnotizar multidões.
Entre as lendas relativas a Orfeu, a mais célebre refere-se à sua união com a ninfa Eurídice. Quando esta morreu, o
músico desceu aos infernos para buscá-la e, emocionando as divindades infernais com o seu canto, obteve
consentimento de trazê-la de volta. Tinha, entretanto, que respeitar uma condição: não poderia olhá-la antes de
atingirem a luz. Mas Orfeu, no retorno do mundo infernal, não mais podendo resistir, voltou-se para olhar sua
amada e então, imediatamente, uma força arrebatou Eurídice, condenando-o a viver sozinho na Terra. O
pitagoricismo foi a religião do filósofo e matemático Pitágoras. A base do pitagoricismo, sendo os números, era mais
ou menos semelhante ao que vamos mostrar na sua essência filosófica: constituía a unidade perfeita e era a origem
de tudo ou a grande Mônada (Deus). Era a fecundidade, a perpetuação do homem.
18
No que tange à filosofia política e à filosofia jurídica, Sócrates supera o
relativismo e individualismo dos sofistas. E se opunha à ideia de que o direito e
a justiça sejam a expressão dos mais fortes. Acrescentou ainda que era melhor
sofrer uma injustiça do que a cometer. Mas se esta for cometida, deverá expiála aceitando a sanção.
A ética socrática visava ao aperfeiçoamento do homem, sendo a missão da
filosofia exatamente encontrar a perfeição na vida e na morte. E defendeu a
cidade e suas leis como necessárias por atenderem às exigências da natureza
humana.
Por essa razão, Sócrates placidamente submeteu-se à condenação e à morte
por envenenamento, ainda que tenha reconhecido a injustiça da qual fora
vítima.
Para Flamarion Tavares Leite não se trata de concepção positivista que separa
direito e justiça, e ainda a distingue, mas o fato de a noção de justiça, bem
como as demais virtudes, incorporarem a sabedoria.
De fato, a justiça para Sócrates consiste no conhecimento e, portanto, na
observância das verdadeiras leis que regem as relações entre os homens, seja
pelas leis da cidade, como das leis não escritas (fundadas na vontade reta da
divindade e que se refletem na consciência).
Para a filosofia do direito, a contribuição socrática é a convicção de que a
obediência às leis tem fundamento do homem e não é algo arbitrário. Assim,
Sócrates concebeu a verdade e o bem como institutos idênticos e universais,
abrindo caminho para a teoria dos conceitos 24 e para a metafísica, 25 cuja
grande síntese é fartamente encontrada na obra de Platão.
24
Sócrates mostrou no conceito o verdadeiro objeto da ciência e Platão aprofundou a teoria, e procurou
determinar a relação, o conceito e a realidade, criando o problema crucial de sua filosofia.
25
O sistema metafísico de Platão centraliza-se e culmina no mundo divino das ideias, e estas se contrapõem à
matéria obscura e incriada. O divino platônico é representado pelo mundo das ideias e, especialmente, pela ideia
do bem que está no vértice. A existência desse mundo ideal seria provada pela necessidade de estabelecer uma
base ontológica, um objeto adequado ao conhecimento conceitual.
19
Assim como o julgamento de Sócrates, que o colocou no banco dos réus,
quem, verdadeiramente, recebeu a fatal condenação foi a democracia
ateniense. Da mesma forma, no escandaloso julgamento do “Mensalão”, a
democracia brasileira foi julgada e condenada. Mas a seriedade do Judiciário
não só condenou, com respeito ao devido processo legal, como também expôs
os culpados à devida execração pública.
Referências
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Cunio, Antonieta Scartabello, Carla Comi, Rodolfo Itari, Silvia Salvi. Trad. e rev.
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MONDOLFO, Rodolfo. Sócrates. Trad. Lycurgo Gomes da Motta. 2. ed. São
Paulo: Mestre Jou,1967.
PADOVANI, Umberto; CASTAGNOLA, Luís. História da Filosofia. 10. ed. São
Paulo: Edições Melhoramentos, 1974.

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