Dom Quixote das Crianças: ensinar e representar
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Dom Quixote das Crianças: ensinar e representar
Dom Quixote das Crianças: ensinar e representar Ana Paula Pachega da Silva Albuquerque1 Anderson Hipólito Albuquerque Sousa2 Infância e alfabetização. Comunicações orais: pesquisas concluídas. Resumo: O objetivo deste estudo é desenvolver uma análise do livro Dom Quixote das Crianças de Monteiro Lobato. O artigo irá investigar os aspectos temáticos que perfilam a narrativa – como a importância da literatura, principalmente na sala de aula e a mímesis – e os personagens da obra. Para tanto, o foco do estudo será pautado nos trechos em que houver a participação dos personagens do Sítio do Picapau Amarelo, já que a narrativa conta duas histórias paralelamente – a dos personagens do sítio e as aventuras de Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes. Com base nos aspectos teóricos apresentados pelos textos de autores que compõe a fortuna crítica desse artigo, como Antonio Candido, Marisa Lajolo, Mikhail Bakhtin, Ana Maria Machado, Tzvetan Todorov, entre outros, buscou-se elaborar este trabalho. Palavras-chave: Dom Quixote; Sitio do Picapau Amarelo; leitura. Introdução: A literatura hoje tem uma função muito maior do que apenas divertir o leitor, segundo Antonio Candido: A literatura tem sido um instrumento poderoso de instrução e educação (...). A literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialeticamente os problemas (CANDIDO: 1995, p. 243). Ou seja, a literatura tem também como função criar no leitor o seu senso crítico, por isso a necessidade de formar cidadãos leitores desde crianças. Esse gosto pela leitura pode ser instigado começando pelos grandes autores brasileiros e principalmente pelas grandes adaptações. Para esse artigo iremos propor um estudo do livro Dom Quixote das Crianças, adaptação feita por um dos mais importantes escritores brasileiros, Graduada em Letras (Português/Literatura), Mestre em Literatura, graduanda em Pedagogia – Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). 2 Graduado em Letras (Português/Literatura), graduando em Licenciatura em Computação – Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD). 1 2 José Bento Monteiro Lobato. O autor escreveu vários livros, mas se consagrou com a literatura infantil. Sua obra é conhecida, principalmente entre as crianças e suas histórias do Sítio do Picapau Amarelo até hoje – quase 95 anos depois da sua primeira publicação – ainda são muito lidas. Monteiro Lobato nasceu em 18 de abril de 1882 em Taubaté. Formou-se advogado e exerceu a profissão de promotor público. Comprou a “Revista do Brasil” e posteriormente tornou-se editor. Seu primeiro livro infantil foi A Menina do Narizinho Arrebitado, publicado em 1921, com a inserção de outras histórias é republicado com o nome Reinações de Narizinho, em 1931. Com esse livro, Lobato começa uma literatura em série para crianças criando o sítio do Picapau Amarelo. Em 1936, Lobato publica o livro Dom Quixote das Crianças. Esse é uma adaptação de um dos livros mais lidos em todo o mundo, segundo Moacyr Scliar (2010), Dom Quixote de La Mancha de Miguel de Cervantes, cuja primeira parte foi publicada em 1605 e a segunda parte em 1615, é o primeiro grande romance da modernidade (o livro completou quatrocentos anos em 2005) (...). Livro concebido apenas como uma sátira das novelas de cavalaria, mas que se tornou uma obra-prima da literatura universal (SCLIAR, 2010). Mesmo depois de tantos anos esse livro continua encantando gerações. A obra Dom Quixote das Crianças é uma narrativa que se encaixa em outra narrativa. São duas histórias: A primeira é a de Emília e dos outros personagens do Sitio do Picapau Amarelo, e a segunda história é uma releitura de Dom Quixote de La Mancha. Nosso estudo propõe uma análise dessa narrativa que contém os personagens – Emília, Dona Benta, Narizinho, Pedrinho, Tia Nastácia e o Visconde de Sabugosa – de um dos mais importantes escritores brasileiros e os personagens – Dom Quixote e Sancho Pança – de um dos escritores mais importantes da literatura mundial. A história começa com Emília acompanhada de Visconde na biblioteca, tentando pegar o livro Dom Quixote de La Mancha, ela consegue pegar o livro, mas o derruba em cima de Visconde. Dona Benta resolve contar a história do grande cavaleiro errante para as crianças. Emília interrompe várias vezes, comentando, pedindo explicações e encenando a história ouvida. Essa história é a famosa saga de Dom Quixote e Sancho Pança, um fidalgo que se diz 3 cavaleiro e seu fiel escudeiro que andam pelo mundo tentando ajudar as pessoas, mas sempre são derrotados e na maioria das vezes são chamados de doidos. Embora na obra existam duas histórias, elas não são divididas como primeira ou segunda história, Emília faz suas travessuras ao mesmo tempo em que Dona Benta conta a história de Dom Quixote. O objetivo desse estudo é apontar a literatura como formadora de opinião e mostrar a estrutura dessa narrativa e como Lobato caracteriza a mímesis nos seus personagens. 1- A Literatura e o Livro O livro, sem dúvida, educa e salienta a sua visão crítica do mundo. Como Ivete Walty, Maria Nazareth Fonseca e Maria Zilda Cury dizem: O livro manuseado por nós é um espaço que convida à descoberta, ao desafio da produção do conhecimento. Enquanto registramos, de inúmeras maneiras, as ideias que nele circulam (...) (WALTY, FONSECA E CURY: 2001, p. 32). Mas isso não é possível exclusivamente com livros técnicos, a literatura de ficção também é um meio de informar e promover a educação, principalmente, na sala de aula. Segundo Célia Regina Delácio Fernandes, levando-se em consideração a importância que a formação do leitor e a utilização da literatura infanto-juvenil têm assumido a partir das últimas décadas (...), tornou-se fundamental a inclusão da leitura e da literatura (...) [no] ensino (FERNANDES: 2007, p. 251252). Deste modo, o livro infanto-juvenil, não é uma literatura para trabalhar apenas com alunos de pouca idade. O livro Dom Quixote das Crianças é uma ótima adaptação, traz referências históricas que prendem o leitor ao texto e ainda dialoga com outros textos. Neste livro, os personagens fazem menção a outros livros como: Orlando Furioso, de Ariosto, histórias de Carlos Magno e os Doze Pares de França. Segundo Ana Maria Machado (2005), a literatura em toda a sua essência sempre fez referências a outras obras, mesmo antes de se falar em intertextualidade. Monteiro Lobato é uma comprovação evidentíssima desse fenômeno (MACHADO: 2005, p. 127). Lobato nunca negou e nunca deixou de 4 deglutir histórias de outras obras ou histórias do imaginário popular. Assim, em toda a sua coleção do Sítio do Picapau Amarelo, ele não deixou de fazer alusão a uma infinidade de manifestos culturais e históricos. E sempre podemos ver personagens de outros autores em sua obra, além de Dom Quixote, encontramos em outras obras Peter Pan, Alice (de no País das Maravilhas), Hércules e outros seres da mitologia grega e dos contos de fadas. Emília, por exemplo, pode ter sido inspirada pela boneca norte-americana “Raggedy Ann” e o pó de pirlimpimpim no pó-das-fadas das histórias de Peter Pan (MACHADO: 2005, p. 127-128). Assim Bakhtin diz que não existe um adão mítico, aquele sujeito desprovido de fundamentos culturais, todo enunciado é pensado através do contexto de um enunciado completo que as faz participar da comunicação verbal (BAKTIN: 1997, p. 319), ou seja, todo homem e, principalmente, todo escritor traz em sua obras resquícios ou vestígios de outras obras ou de outros autores. 2- A Narrativa No livro Dom Quixote das Crianças, de Monteiro Lobato, distinguimos uma narrativa de encaixe. Primeiramente, o que é uma narrativa? Porque esse livro se caracteriza como uma narrativa? De acordo com Gérard Genette, a narrativa é a representação de um acontecimento ou de uma série de acontecimentos, reais ou fictícios, por meio da linguagem, e mais particularmente da linguagem escrita (GENETTE, 1972: p. 255). Ou seja, a narrativa é a arte de contar histórias: — Viva! Viva! — berrou a diabinha. — É alavanca, sim, Visconde, e das legítimas! Desta vez eu tiro a prosa deste peso. E tirou mesmo. Tanto fez que o livrão se foi deslocando para a beirada da estante, agora dois dedos, agora mais dois dedos, até que. . . Brolorotachabum! — despencou lá de cima, arrastando em sua queda a escada, a Emília e o cabo de vassoura, tudo bem em cima do pobre Visconde (LOBATO: s.d., p. 7-8). 5 A narrativa, de acordo com Victor Manuel Aguiar e Silva (1973), representa o mundo, a totalidade dos objetos. Ela tende a criar um mundo particular, povoado de personagens e com histórias com clímaces surpreendentes, ou seja, os momentos decisivos, tanto para o personagem principal, quanto para os personagens secundários. Dom Quixote das Crianças é uma narrativa, pois conta a história de Dona Benta narrando a história do livro Dom Quixote de La Mancha. E se caracteriza, segundo Silva (1973), como um tempo longo, arrastado: Dona Benta parou nesse ponto porque já era tarde — nove horas, hora de cama. (...) Nesse momento entrou Dona Benta, que vinha continuar a história. Sentou-se e disse: — Muito bem. Onde ficamos ontem? (LOBATO, p. 35-36). De acordo com Tzvetan Todorov (1970), a personagem nem sempre é quem determina a ação, e nem toda narrativa é a “descrição de caracteres”, ou seja, nem toda narrativa é um símbolo convencional empregado na escrita: a personagem é uma história virtual que é a história de sua vida. Toda nova personagem significa uma nova intriga. Estamos no reino dos homensnarrativas (TODOROV, 1970: p. 123). Todorov (1970) fala que certos traços de caráter provocam uma ação que podem ser de duas causalidades: a imediata e a mediatista. A primeira é aquela em que acontece a ação e imediatamente o efeito: — São gigantes, sim — insistiu o herói; — vou combatê-los. (...). Ajoelha-te, Sancho, e reza enquanto dou cabo dos monstros — e, sem esperar resposta, cravou as rosetas nos ossos de Rocinante, partindo aos berros (...) (LOBATO, p. 37). Nesse trecho observamos que Dom Quixote vê os moinhos e acredita que são monstros, e imediatamente parte para lutar contra eles. Assim observamos que Dom Quixote é corajoso porque desafiou os monstros sem medo. A segunda causalidade é a mediatista, é aquela em que ocorre a ação, mas o efeito aparece no decorrer da narrativa: — Eu não disse? — exclamou Emília vitoriosa. — Eu não disse que o caldinho era de ciência pura? Bastou pingar neste sabugo bobo o conteúdo do vidrinho para ele ficar tão científico (...). Todos se assombraram com o prodígio (LOBATO, p. 55). No começo, quando Visconde foi achatado pelo livro do Dom Quixote, Emília colheu o caldo que saiu do sabugo e disse que era o caldinho da ciência. E finalmente, nesse 6 trecho é reconhecida a astúcia e inteligência da boneca, que estava certa quanto ao fato do caldinho da ciência ser o que devolveria a vida ao sabugo. Logo, Emília é esperta, mas isso só fica claro quase na metade do livro, depois dela muito insistir. Ainda de acordo com Todorov (1970), causa e efeito estão ligados intimamente: Um traço de caráter não é simplesmente a causa de uma ação nem simplesmente seu efeito: é as duas coisas ao mesmo tempo, assim como a ação (TODOROV, 1970: p. 122). Emília é “espevitada” porque recebe muita atenção; ou recebe muita atenção porque é espevitada? Ambas estão certas. Emília é espevitada e também recebe muita atenção. A causa não é mais importante que o efeito e nem vice-versa: A análise causal da narrativa não remete a uma origem, primeira e imutável, que seria o sentido e a lei das imagens ulteriores; por outras palavras, em estado puro, é preciso poder perceber essa causalidade fora da imagem do tempo linear. A causa não é um antes primordial, ela é apenas um dos elementos da dupla “causa-efeito” sem que um seja por isso mesmo superior ao outro (TODOROV, 1970: p. 122). Assim o efeito pode reforçar a ação, o que não significa que o efeito seja superior à ação. As ações se provocam e Todorov (1970) chama a atenção para a coerência psicológica que podem formar ou não um sistema. No caso de Dom Quixote das Crianças, Emília derrubou o livro em cima do Visconde e o esmagou. Com isso a boneca acabou matando o sabugo – posteriormente Tia Nastácia conserta o Visconde, mas mesmo assim ele fica sem vida –, e é Emília quem fica sendo a salvadora do Visconde, despejando nele o caldo da ciência do antigo sabugo. Com isso o triunfo de Emília causa maior efeito do que a ressurreição do Visconde. A narrativa é caracterizada como narrativa de encaixe, segundo Todorov (1970), o encaixe acontece quando a história que está sendo contada é interrompida para que se apresente o novo personagem, ou seja, uma segunda história é encaixada na primeira. A primeira história que está sendo contada é as aventuras de Emília na biblioteca, procurando um livro. Emília estava na sala de Dona Benta, mexendo nos livros. Seu gosto era descobrir novidades – 7 livros de figura. Mas como fosse pequenina, só alcançava os da prateleira de baixo (LOBATO, p. 6). A partir do momento em que Emília descobre o livro Dom Quixote de La Mancha, esse novo personagem precisa ser apresentado aos leitores. Dona Benta, na noite desse mesmo dia, começou a ler para os meninos a história do engenhoso fidalgo da Mancha (LOBATO, p. 11). Outra característica do encaixe se sucede pela transformação dos personagens, na primeira história ocorre a transformação por causa da segunda narrativa. Quando Dona Benta conta o episódio em que Dom Quixote pensa salvar um garoto, de apanhar de seu patrão, as crianças ficam tão indignadas com a atitude desse patrão que Emília sonha castigando o malfeitor que chega no sítio: — Ah, vocês nem calculam a sova que eu dei no tal malvado patrão de André! Ele apareceu por aqui, com aquela cara lavada de sem-vergonha. (LOBATO, p. 35). Mas já a segunda história é inalterada pelos personagens do sítio. Neste ponto, como diz Todorov (1970) o ato de contar não é transparente, é ele que faz com que aconteça a ação dos personagens, assim, o ato que Dona Benta faz de contar a história de Dom Quixote, provoca a ação nas crianças – Narizinho, Pedrinho e Emília –, tanto de imitar o fidalgo quanto de se comover com sua história. — E o menino foi? — indagou Narizinho, danada com a brutalidade do homem. (...) — Coitado! — exclamou Narizinho nesse ponto. — Cada vez fico mais penalizada da loucura do pobre Dom Quixote. Um homem tão bom, de tão nobre sentimento, a servir de peteca a esses bobos todos. (...) — Coitado de Dom Quixote! — exclamou Narizinho. — Esse tal Cavaleiro da Branca Lua não passava dum grande malvado. E o duque e todos os seus amigos não passavam duns perversos sem coração (LOBATO: s.d, p. 26, 97 e 162). Deste modo, a narrativa se apresenta como criadora de opiniões e faz surgir nas crianças um sentimento de que existem pessoas más e pessoas muito boas no mundo. Já na perspectiva da estrutura da narrativa, Gérard Genette (1972) diz que não se pode definir a narrativa porque ela não é algo evidente e que contar não é algo natural. Assim ele enumera as três fronteiras da narrativa que são 8 oposições pela qual ela se define. A primeira fronteira é a da diegesis e da mímesis. Diegesis ele define como um modo de imitação poética: — Meus filhos — disse Dona Benta —, esta obra está escrita em alto estilo, rico de todas as perfeições e sutilezas de forma, razão pela qual se tornou clássica. Mas como vocês ainda não têm a necessária cultura para compreender as belezas da forma literária, em vez de ler vou contar a história com palavras minhas (LOBATO: s.d. p. 13). E mímesis é definida como imitação também, mas uma imitação direta dos acontecimentos diante de um público: Dona Benta foi espiar pela janela e de fato viu as estripulias que a Emília del Rabicó estava fazendo no quintal. Vestidinha de cavaleira andante, toda cheia de armaduras pelo corpo e de elmo na cabeça, avançava contra as galinhas e pintos com a lança em riste, fazendo a bicharada fugir num pavor, na maior gritaria. Até o galo, que era um carijó valente, correra a esconder-se dentro dum caixão (LOBATO: s.d., p. 134). No primeiro trecho da obra Dom Quixote das Crianças, identificamos a diegesis no fato de Dona Benta contar a história do Cavaleiro da Mancha, ou seja, ela está narrando um fato, é o que Genette chama de poesia narrativa. Já no segundo trecho, observamos Emília “incorporar” o espírito cavaleiresco e imitar Dom Quixote, ou seja, é a representação da poesia dramática. Mesmo dando essa definição do que é cada elemento, Genette diz que, segundo Platão, mímesis é uma imitação perfeita e diegesis é uma imitação imperfeita, mas a imitação perfeita não é mais uma imitação, é a coisa mesmo, e finalmente a única imitação é a imperfeita. Mímesis é Diegesis (GENETTE: 1972, p. 262). Neste aspecto, mímesis e diegesis significam, segundo Genette, a mesma coisa, representação ou imitação. Outra fronteira que Genette aponta é a da narração e da descrição, segundo o autor, a narração é a representação de ações e de acontecimentos, já a descrição visa representar objetos em sua única existência, mas uma completa a outra, ou seja, a narração tem um status maior, mas ela não sobrevive sem a descrição. 9 (...) a descrição poderia ser concebida independentemente da narração, mas de fato não se encontra por assim dizer nunca em estado livre; a narração, por sua vez, não pode existir sem descrição, mas esta dependência não a impede de representar o primeiro papel. A descrição (...) escrava sempre necessária, mas sempre submissa, jamais emancipada (GENETTE: 1972, p. 263). Por mais que a narração seja a alma da narrativa, a descrição é um elemento fundamental e indispensável. Neste trecho, Dona Benta narra como é Dom Quixote, e ela faz isso o descrevendo. — Morava em companhia duma sobrinha de vinte anos e duma ama de quarenta. Chamava-se Dom Quixote. Era magro, alto, muito madrugador e amigo da caça. E mais amigo de ler. Só lia, porém, uma qualidade de livros — os de cavalaria (LOBATO: s.d., p. 13). Na terceira fronteira, Genette aponta a Narrativa e o Discurso – a narrativa sendo autônoma (não existe autor), ou seja, ela se define pela ausência de toda referência ao narrador: Para dizer a verdade, o narrador não existe mesmo mais. Os acontecimentos são colocados como se produzem à medida que aparecem no horizonte da história (GENETTE: 1972, p. 269). E o discurso sendo dependente (precisamos saber quem fala) – mas como nos outros casos as fronteiras são diluídas, sempre há uma proporção de narrativa no discurso e uma proporção do discurso na narrativa. — Este livro — disse ela — é um dos mais famosos do mundo inteiro. Foi escrito pelo grande Miguel de Cervantes Saavedra (...). Esta edição foi feita em Portugal há muitos anos. Nela aparece a obra de Cervantes traduzida pelo famoso Visconde de Castilho e pelo Visconde de Azevedo (LOBATO: s.d., p. 11 - 12). Embora para os personagens de Monteiro Lobato não importa tanto saber o autor ou os tradutores da obra, Dona Benta, a adaptadora da história, faz questão de deixar bem claro os sujeitos do discurso, ou seja, quem escreveu e quem traduziu a obra. 10 No próximo item iremos fazer uma análise mais detalhada sobre a mímesis, arte de imitar, que envolve os personagens do Sítio do Picapau Amarelo e, principalmente, a boneca Emília. 3- Dom Quixote das Crianças como representação da realidade Na obra Dom Quixote das Crianças (1936), de Monteiro Lobato, percebemos uma qualidade na arte da representação. A sabedoria de Dom Quixote não é a sabedoria de um doido; (...) fica evidente que há um Dom Quixote sensato e um doido, lado a lado (...) (AUERBACH: 1971, p. 312). Como diz Erich Auerbach, Dom Quixote não é de todo louco, é evidente que ele sabe dosar sua loucura e sua lucidez, talvez essa loucura seja representada em decorrência das muitas leituras sobre cavalaria. Essa representação é o que Aristóteles chama de mímesis, que é a arte de imitar ou de representar. Com efeito, é possível imitar os mesmos objetos nas mesmas situações e numa simples narrativa, seja pela introdução de um terceiro personagem, como faz Homero, seja insinuando-se a própria pessoa sem que intervenha outro personagem, ou ainda apresentando a imitação com a ajuda de personagens que vemos agirem e executarem as ações elas próprias (ARISTÓTELES: 1999, s.p.). Assim podemos observar nos personagens de Lobato uma forte imitação de Dom Quixote: — Ai, ai! — suspirou Emília. — Quem me dera ter um cavaleiro andante que corresse mundo berrando que a mais linda de todas as bonecas era a Senhora Emília dei Rabicó. . . (...) — Exigente! Você já anda bem famosinha no Brasil inteiro, Emília, de tanto o Lobato contar as suas asneiras. Ele é um enjoado muito grande. Parece que gosta mais de você do que de nós — conta tudo de jeito que as crianças acabam gostando mais de você do que de nós. É só Emília pra cá, Emília pra lá, porque a Emília disse, porque a Emília aconteceu. Fedorenta. . . (LOBATO: s.d., p. 44-45). 11 Neste trecho, observamos Emília se encantando por Dom Quixote o cavaleiro andante, em consequência disso, observamos uma característica muito interessante nas obras de Monteiro Lobato, que é o fato dos personagens saberem que suas histórias são contadas para todas as pessoas em livros. Com esse estilo Lobato concede à personagem Emília um status maior do que aos outros personagens. Marisa Lajolo diz que é a Emília quem protagoniza as obras infantis de Monteiro Lobato e incendeia a imaginação de todos os seus leitores (LAJOLO: 2001, p. 119), por causa desta fama Emília desperta ciúmes, principalmente em Narizinho. Por ser, segundo Lajolo, a personagem principal, Emília goza de uma liberdade muito maior do que a dos seres humanos dos quais, afinal, é mero simulacro (LAJOLO: 2001, p. 129), ou seja, a boneca de pano de quarenta centímetros, é a representação simples de fenômenos complexos. Ela faz crítica e defende seu ponto de vista de um jeito muito singelo e desperta no leitor a possibilidade dele entender o mundo e o questionar. Emília pôs-se a pular pela sala, como uma perfeita louca. Voltando-se para Pedrinho, Narizinho disse: — As histórias de Dom Quixote estão virando a cabeça dela. Você vai ver, Pedrinho: o fim de Emília é no hospício. . . — Ganja demais, é isso — explicou o menino. — Aqui quem manda é ela. Tudo quanto ela faz aquele sujeito conta nos livros. Daí a ganja. Emília já não respeita ninguém. Não obedece a ninguém — nem a vovó. (...) — Não há remédio, vovó — disse Pedrinho —, temos de botar Emília numa gaiola, como o cura fez a Dom Quixote. — Estão vendo? — disse Dona Benta. — Bastou que a tratássemos com humanidade para que a loucura se fosse embora. Venha, Emília, sentar-se no meu colo para ouvir o resto da história. Seja boazinha (LOBATO: s.d., p. 112, 134 e 140). Já neste trecho Emília representa a loucura de Dom Quixote. Em um momento antes ela pergunta a Dona Benta se ela é louca, Dona Benta diz que na verdade ela é louquinha, mas ela fica irritada e diz que quer ser louca como Dom Quixote. Com isso ela se fantasia de Dom Quixote e sai pelo sítio derrotando gigantes e malfeitores, ou seja, espetando Tia Nastácia e espantando as galinhas. E mais uma vez observamos o ciúmes que Emília 12 causa, desta vez Pedrinho é quem diz que Lobato dá preferências às travessuras de Emília. Para Aristóteles, a mímesis é a arte de imitar o espírito do ser humano, o homem só aprende a lidar com as coisas da vida se imitar a essências de outros seres humanos. A ação, pois, não se destina a imitar os caracteres, mas, pelos atos, os caracteres são representados. Daí resulta serem os atos (...) (ARISTÓTELES: 1999, s.p.). Ou seja, neste trecho Emília não imitou Dom Quixote ou sua essência que, segundo Donald Schüler, são os ideais de pureza e justiça que incansavelmente revigoram o cavaleiro da triste figura. Dom Quixote não se deixa derrotar pela realidade. Por impiedosa que seja, ele a domina (SCHÜLER: 1989, p. 42). Emília imitou a loucura do velho fidalgo que lia demais livros de cavalaria, e não seu espírito justiceiro. A última parte do livro irrita muito a pequena bonequinha, quando Dona Benta está para terminar o resto da história de Dom Quixote, Emília diz: — Por que não? — objetou Emílía. — Eu, se fosse o Saavedra com dois aa, não o mataria nunca. Deixá-lo-ia como uma espécie de judeu errante — eternamente vivo. Para que matá-lo? Para que deixá-lo morrer? Não acho graça nenhuma nisso. . . — É que todos nós morremos, Emília. Não tinha propósito Cervantes não pôr termo à vida do seu personagem. — Tinha sim — insistiu Emília. — O fato de toda gente morrer não é razão para que ele morresse. Podia ficar para semente, como o judeu errante. Ser uma exceção. A senhora não vive dizendo que todas as regras têm exceção? — Mas as leis da natureza não têm exceções, Emília — e morrer é uma lei da natureza. — Bolas para a natureza! — gritou a boneca. — Para mim Dom Quixote não há de morrer. Não quero ouvir o resto da história. Até logo. Vou brincar com o Quindim e levo Dom Quixote bem vivinho dentro da minha cabeça. Não sou urubu. “Não gosto de carniça. Até logo!” — e saiu da sala correndo. Dona Benta ficou uns instantes pensativa (LOBATO: s.d., p. 162-163). Neste trecho, Emília demonstra toda a sua indignação pela morte de Dom Quixote. Quando pensamos que Dom Quixote é um personagem quase 13 independente, como se ninguém o estivesse escrito, e como se ele fosse mais um herói que viveu no século XV, fica difícil pensar no seu fim. Desse modo, Emília se torna a representante de alguns fãs da história do cavaleiro, que queriam que ele não tivesse morrido. É claro que o que torna a narrativa de Dom Quixote única é justamente o fato de ela romper com o pré-estabelecido, E viveram Felizes para Sempre. Segundo Schüller: O Dom Quixote, de Cervantes, foi o primeiro romance de envergadura, aparecendo numa época em que os ideais cavalheirescos se tornaram inviáveis. A realidade concreta recusou os sonhos da cavalaria andante. A exigência de homens práticos como Sancho repelia Dom Quixote com seus sonhos (SCHÜLER: 1989, p. 6). E mesmo na obra Dom Quixote das Crianças Dona Benta diz isso aos leitores. Cervantes escreveu este livro para fazer troça da cavalaria andante, querendo demonstrar que tais cavaleiros não passavam duns loucos (LOBATO: s.d., p. 14). De modo que o que Emília faz é representar tudo o que escuta, para Aristóteles (1999), a representação tem que ser resultado da unidade, um objeto. Assim a imitação tem que estar entrosada com o objeto a fim de produzir uma modificação. Depois que Emília “sara” de sua loucura, ela é modificada pelo espírito aventureiro de Dom Quixote, assim como os outros personagens do sítio. Dom Quixote, embora nem sempre consiga se dar bem, luta por justiça e confia em seus ideais. Portanto: Como se trata, não só de imitar uma ação em seu conjunto, mas também de imitar fatos capazes de suscitar o terror e a compaixão, e estas emoções nascem principalmente,... (e mais ainda) quando os fatos se encadeiam contra nossa experiência, pois desse modo provocam maior admiração do que sendo devidos ao acaso e à fortuna (...) (ARISTÓTELES: 1999, s.p.). Assim Emília termina a narrativa dizendo: — Morreu, nada! — dizia ela. — Como morreu, se Dom Quixote é imortal? (LOBATO: s.d., p. 164). E esse é o sentimento de todos que apreciam um bom livro e, claro, um ótimo 14 personagem. A afeição que dispomos a um personagem impossibilita considerarmos o seu fim, quando um personagem ou uma história são importantes é natural manter-se vivos dentro de seus leitores. Considerações Finais Após a análise do livro Dom Quixote das Crianças, de Monteiro Lobato, destacou vários aportes teóricos e também como essa narrativa foi construída. Além desta análise, discutiu-se neste estudo a importância que a literatura traz para quem a lê, mas do que apenas proporcionar prazer ela também forma opinião. No caso das obras infantis de Monteiro Lobato, esse senso crítico que a literatura proporciona é vindo diretamente de um dos seus personagens, a boneca de pano Emília. Segundo Lajolo, Emília deixa uma pulga atrás das orelhas dos leitores, que, com a falante e espevitada boneca, aprendem a perguntar: se o mundo fosse diferente (LAJOLO: 2001, p. 137). Neste contexto a literatura é um objeto de poder que pode possibilitar aos leitores acesso ao mundo fantástico e também ao mundo histórico. Neste contexto, a obra Dom Quixote das Crianças é muito mais do que uma história infantil, pois além de ter uma história que proporciona prazer às crianças, ainda reconta uma das histórias mais importantes da cultura ocidental que é a obra de Cervantes, Dom Quixote de La Mancha. Este livro, Dom Quixote das Crianças, possui uma infinita possibilidade de ser trabalhado dentro da sala de aula, não só com as crianças, mas com público de qualquer idade. Através desta obra o professor consegue abordar a literatura latino-americana, a literatura espanhola, a importância da leitura, a representação em forma de teatro, e especificamente a literatura brasileira. Está nas mãos, principalmente, dos mediadores da leitura fazer com que o Brasil se torne um país de leitores, apresentando e comentando os diversos livros que a literatura brasileira possui. Essa prática inspirará que mais alunos pratiquem a leitura e consequentemente se tornem mais críticos. Precisamos que mais pessoas leiam, imitem, sonhem e que adquiram o gosto pela leitura, pois só assim podemos garantir uma sociedade mais justa e equitativa. 15 Referências ARISTÓTELES. Arte Poética. [Trad. de Paulo Costa Galvão]. Ed. E-books Brasil, 1999. Disponível em: <http:// www.ebooksbrasil.com > Acesso em: 02 de maio de 2010. BAKHTIN, Mikhail Mjkhailovitch. Estética da criação verbal. [tradução feita a partir do francês por Maria Emsantina Galvão G. 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