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Índice
A “decoreba” é ruim para o aprendizado? ......................................................................................... 5
A promessa de premiação motiva o aprendizado? ......................................................................... 10
O aprendizado é capaz de causar mudanças estruturais (morfológicas) no córtex cerebral? ....... 22
Os neurônios são insignificantes em termos numéricos no nosso cérebro? .................................. 37
Esquecer é fundamental para o aprendizado? ............................................................................... 41
Para uma memorização efetiva é melhor passar a noite estudando do que dormir? ..................... 45
O envelhecimento dificulta o aprendizado devido a perda de neurônios? ...................................... 56
Existem coisas mais fáceis de lembrar do que outras? .................................................................. 65
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Material de apoio da atividade
A “decoreba” é ruim para o
aprendizado?
Textos extraídos do livro A arte de esquecer, de Iván Izquierdo Editora Vieira e Lent (2004)
Dependência de estado
As memórias são adquiridas sob a influência de um determinado
"tônus" cerebral dopaminérgico, noradrenérgico, serotonérgico ou
betaendorfínico, e de um "tônus" hormonal paralelo. Esses moduladores
e hormônios geralmente facilitam a formação de memórias agindo sobre
mecanismos específicos nas áreas do cérebro que as fazem e, de certa
maneira, incorporam informação às mesmas. Um momento assustador
consiste tanto do estímulo que provoca o susto, como da ação dos
neuromoduladores e hormônios liberados no organismo durante esse
momento; muitas vezes a ação dessas substâncias fazem com que o
momento seja realmente assustador.
As memórias são melhor evocadas quando o "tônus" neuro-humoral
e hormonal vigente no momento de sua aquisição se repete. Assim, em
momentos de ansiedade elevada, em que se libera muita dopamina e
noradrenalina cerebral, e muita adrenalina e corticóides na periferia,
teremos não só tendência a gravar melhor o que está acontecendo nessa
ocasião, como também facilidade para evocar outras experiências
igualmente assustadoras ou aversivas. Isto é, sem dúvida útil para ter em
mente, disponível para a utilização imediata, por meio de estratégias de
ação apropriadas para a circunstância: devemos fugir, pular, nos esconder
ou lutar?
O mesmo acontece com as memórias prazenteiras: quando uma
situação determinada se apresenta, por exemplo os prelúdios do ato sexual
ou de um bom almoço, haverá uma constelação de processos neurohumorais e hormonais semelhante àquelas que experimentamos em outros
momentos da mesma índole, a nossa resposta se adequará melhor às
circunstâncias. Assim, secretaremos hormônios sexuais na iminência do
ato sexual, e hormônios gástricos e ácido clorídrico no estômago antes de
um almoço. De nada nos serviria fazer o contrário; seria contraproducente.
É obviamente bom executar as coisas que sabemos nas condições
orgânicas mais favoráveis para isso.
Este fenômeno se denomina dependência de estado: a evocação
das memórias de certo conteúdo emocional depende do estado hormonal
e neuro-humoral em que a mesma esteja ocorrendo. Quanto mais esse
estado se pareça com aquele em que memórias de índole similar foram
adquiridas, melhor será a evocação.
Assim, muitas memórias ficam num estado que poderíamos chamar
latente, só despertado por determinadas conjunções de fenômenos neurohumorais e hormonais próprios de cada estado: as que causam medo, as
que chamam ao sexo etc. Mas isto não quer dizer que o fato dessas
memórias importantes ficarem latentes signifique que foram esquecidas,
sequer temporariamente. Quer dizer que essas memórias dependentes
de um determinado estado neuro-humoral e hormonal, para serem
reativadas, requerem certos estímulos que compreendam pelo menos parte
da reprodução do estado em que foram originalmente adquiridas. As
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memórias dependentes de um estado emocional determinado ficam, por
assim dizer, "a espreita" de que uma certa constelação de fenômenos
bioquímicos apareça novamente. Um estímulo apropriado pode trazê-las
à tona com bastante rapidez. Um "surto" de acidez gástrica pode nos dar
vontade de comer. Um "surto" de hormônios sexuais no sangue pode nos
causar desejo sexual.
A dependência de estado permite que a vida possa se processar
corriqueiramente com respostas adequadas a cada caso. Por exemplo,
não viver num estado de excitação sexual impróprio para as circunstâncias:
uma ereção do violinista durante a execução de um quarteto de Beethoven,
no palco de um teatro lotado. Ou viver num estado de agressividade fora
de contexto: no mesmo concerto, minutos depois, uma vez acalmado o
público, o da viola chuta o violoncelista só porque este errou uma nota
qualquer. É bom se excitar sexualmente quando for conveniente, e pode
ser até necessário algum grau de agressividade no momento certo. Mas é
antiadaptativo é contraproducente fazê-lo fora de contexto.
Na imprecisão aparente que faz com que as diferenças emocionais
entre um momento e outro de nossa vida sejam tão sutis como são, os
estados psicológicos, hormonais e neuro-humorais determinam, com
notável precisão, qual é a reação apropriada em cada caso.
Nosso corpo em geral, e nosso cérebro em particular, sabem mais
do que nós; ainda bem, senão seríamos inadaptáveis à realidade, e
viveríamos pouco e mal.
Dois exemplos famosos de dependência de
estado
As memórias podem depender não só de estados neuro-humorais
ou hormonais internos do indivíduo, mas também de estados causados
pela ingestão de substâncias externas, como o álcool e outras.
Os melhores exemplos destes casos pertencem, o primeiro à
história da literatura, e o outro à história do cinema.
O da literatura é o protagonista do célebre romance de Robert
Louis Stevenson (1850-1894), O Médico e o Monstro. Um médico conhecido
dedicou-se, nas horas vagas, a elaborar um líquido que, quando ingerido,
podia transformá-lo em outra pessoa. A substância teve o efeito,
inesperado, de transformá-lo num ser de características monstruosas, cruel
e selvagem: o aterrorizante Mr. Hyde. Uma vez passado o efeito da droga,
o protagonista readquiria as formas, o aspecto e o temperamento do cortês
e pacato Dr. Jekyll. O fenômeno se repete várias vezes ao longo do
romance, que foi vertido a várias versões cinematográficas, inclusive uma
com participação do coelho Pernalonga, que talvez seja a melhor.
O mais engraçado e talvez mais sutil caso de dependência de
estado, é apresentado por Charlie Chaplin (Carlitos) num filme de 1931,
Luzes da Cidade, um dos grandes clássicos da história do cinema. Nele,
um milionário amante da vida noturna desenvolve, estando bêbedo, uma
enorme simpatia pelo vagabundo interpretado por Chaplin. Ele o convida
a sua casa, leva-o a festas etc. Mas quando acorda da bebedeira, o
milionário nem sequer reconhece Carlitos, e o expulsa energicamente de
onde estiver. Os episódios se repetem várias vezes, para desorientação
do vagabundo, que nunca compreende por que o ricaço às vezes é seu
amigo e às vezes não. A amizade do milionário pelo vagabundo dependia
do estado causado pelo álcool e não era recordada por ele no estado de
sobriedade.
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A aquisição de memórias
É evidente que, se a consolidação das memórias de longa duração
baseia-se em alterações sinápticas, a aquisição das mesmas deve
depender do uso dessas mesmas sinapses. Aliás, isto é intrínseco ao
postulado de Ramón e Cajal, que hoje se sustenta nos achados de
Greenough, Geinisman, Katarina Braun e seus colaboradores, entre outros.
Por outro lado, é também evidente que as regiões do cérebro e as
sinapses que participam na formação das memórias de curta e de longa
duração devem ser em boa parte as mesmas; já que todos nós recordamos
em essência a mesma informação uma hora ou um mês depois de adquiríla. Isto, apesar de que uma hora depois da aquisição nossa memória de
longa duração está apenas começando a ser formada e a memória que
nos permite responder é só a de curta duração.
Que partes do cérebro participam na aquisição das memórias?
Muitas. Em primeiro lugar, as regiões responsáveis pela percepção e
análise dos diversos estímulos sensoriais que conformam cada experiência,
e/ou do conjunto de pensamentos e memórias prévias em que se baseiam
os insights. É claro que na aquisição das memórias visuais deve participar
o córtex visual, na memória olfativa o córtex olfatório, nas memórias verbais
as áreas corticais responsáveis pela linguagem, e assim por diante. Nas
memórias com um componente motor (tocar certa música ao piano), deve
intervir o córtex motor correspondente aos dedos em questão. É também
evidente que, sendo impossível adquirir memórias sem um estado mínimo
de alerta (inclusive durante o sono), as regiões do cérebro responsáveis
por manter esse estado devem estar também ativadas quando aprendemos
algo novo. Por outro lado, é praticamente inimaginável a aquisição de
alguma memória fora de algum estado emocional determinado: nós e os
demais animais estamos sempre em algum estado emocional: mais ou
menos contentes, satisfeitos, insatisfeitos, ansiosos, cansados etc. Os
diversos estados de ânimo e as emoções mobilizam, como vimos, em
maior ou menor grau, vias neuro-humorais específicas: a dopaminérgica,
a noradrenérgica, a serotonérgica, as colinérgicas. Assim como temos no
sangue sempre algum nível de adrenalina, corticóides e hormônios sexuais;
esses níveis só atingem o zero quando morremos.
Além dos mecanismos acima, é também claro que nas memórias
de forte conteúdo aversivo ou emocional intervêm a região da amígdala
basolateral, nas memórias com um forte conteúdo espacial participa o
hipocampo etc.
Porém, participar não equivale a fazê-lo de uma forma sempre
imprescindível ou protagônica. É possível, sem dúvida, adquirir muitas
memórias apesar de lesões de todas as estruturas mencionadas, mas
nem sempre muito bem. Outras estruturas a elas ligadas assumem seu
papel; nisso, o cérebro é mestre. Sem dúvida, as memórias com pouco
conteúdo emocional são adquiríveis em sujeitos com lesão bilateral da
amígdala, ou memórias declarativas importantes podem ser formadas em
pessoas idosas com bastante perda celular no hipocampo e no córtex
entorrinal. Por outro lado, é em relação com a modulação hormonal das
funções nervosas, memórias com conteúdo sexual podem ser adquiridas
na presença de níveis muito baixos de testosterona ou estrogênios, e
memórias de medo podem ser adquiridas com pouca adrenalina circulante.
Além das regiões corticais correspondentes a cada sentido (visão,
audição, olfato, tato, gosto) ou ato motor, e/ou daquelas a partir das quais
é possível evocar outras memórias ou pensamentos (nos insights, por
exemplo), há certas estruturas nervosas que provavelmente participam
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na aquisição de todas ou quase todas as memórias declarativas: o
hipocampo, o córtex entorrinal e as áreas a elas associadas. O hipocampo
intervém também na aquisição de muitas memórias de habilidades manuais
ou sensoriais (nadar, andar de bicicleta, usar um teclado). É provável que
na aquisição destas últimas intervenham sempre ou quase sempre o núcleo
caudado e o cerebelo.
Não existe a menor dúvida de que na aquisição e na evocação de
todas as memórias de curta e de longa duração, declarativas e procedurais,
participa ativamente e de maneira essencial a memória de trabalho. Sem
ela, não haveria a meta-análise das informações procedentes dos sistemas
sensoriais e/ou dos sistemas de armazenamento de memórias que é função
da memória de trabalho. Confundiríamos, tanto do ponto de vista sensorial
como cognitivo, o joio e o trigo de maneira permanente. Lembremos aqui
como a simples falha (não a falta) de memória de trabalho perturba a vida
cognitiva dos esquizofrênicos.
Vemos, assim, que a procura das sinapses que se alteram
morfológica e funcionalmente para sustentar memórias é difícil. São muitas
as variáveis participantes, são muitas as regiões cerebrais envolvidas, e a
busca de algumas poucas sinapses responsáveis pela conservação de
uma ou outra memória é parecida a procura de uma agulha num palheiro.
Mais difícil é, evidentemente, a busca de quais dessas sinapses
mudam como conseqüência de um esquecimento, ou, como veremos a
seguir, de uma extinção.
A arte de esquecer: a habituação
A repetição de um estímulo ou grupo de estímulos inofensivos
geralmente causa a diminuição gradual das respostas a esse estímulo.
Assim, a primeira vez que ouvimos o som de uma campainha, ou que nos
encontramos num determinado ambiente novo, giramos a cabeça em redor,
para localizar a fonte do estímulo novo, ou para registrar que o espaço
que nos rodeia é novo para nós. Esta reação natural a estímulo(s) novo(s)
foi denominada por Pavlov reação de orientação ou reflexo de "onde está?".
Observa-se que em todas as espécies animais, e no rato, no gato
ou no cachorro é acompanhada de intensa atividade olfativa. Os humanos
somos mais propensos a investigar nosso entorno por meio da atividade
visual ou tátil. Se a coleção de estímulos novos for muito intensa, pode se
acompanhar de alguma reação defensiva também: nos funcionários dos
aeroportos, por exemplo, a reação a partida de um avião a poucos metros
de distância é seguida de movimentos tendentes a proteger seus ouvidos.
A repetição do(s) estímulo(s) leva a diminuição da resposta de orientação;
já aprendemos que aquele não é tão importante como pensávamos no
início, e nos habituamos a ele. Acostumamos, por assim dizer. Um
trabalhador veterano das pistas dos aeroportos já nem responde ao
estrépito da partida dos aviões. No primeiro dia de aula, os alunos olham
em volta para entender ou conhecer melhor a nova sala, os novos bancos,
onde está a porta etc. Na segunda semana de aula, entram na sala sem
prestar mais muita atenção ao ambiente; já se acostumaram a ele.
Pavlov costumava habituar seus cachorros a campainha, antes de
associá-la com um pedaço de carne. Queria garantir que, no momento de
iniciar o processo associativo do condicionamento, a campainha fosse
realmente um estímulo neutro, incapaz de gerar respostas importantes
por si próprio.
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A habituação é nosso aprendizado mais simples e um dos mais
importantes. Sem ele, viveríamos na surpresa constante, no sobressalto
permanente. H. M. vive um pouco assim, já que esquece muitas das suas
habituações. A habituação se deve a atividade do hipocampo e tem uma
base bioquímica relativamente complexa, embora diferente daquela das
memórias associativas.
É também uma arte, a habituação. Podemos aplicar ou não nossa
vontade a ela, podemos desejar fazê la ou não. Nem sempre a habituação
é involuntária; pode ser muito seletiva. A criança que é levada diariamente
a uma creche pode decidir se quer ou não quer se habituar a ela. O
funcionário do aeroporto, por mais desagradável que tenha sido sua
primeira experiência estrepitosa na pista, geralmente quer conservar seu
emprego e procura intensamente se acostumar (habituar) a isso. Às vezes
já meio surdo, reage daí em diante como se nada estivesse acontecendo
em volta, mantêm animadas conversas com seus colegas em meio ao
ruído dos aviões que ligam seus motores na sua frente.
Os casos mais ilustrativos da seletividade da evocação são as
inúmeras histórias de mães que dormem, exaustas pela guerra, em meio
a um bombardeio; mas acordam ao ouvir o leve choro de suas crianças.
Isto demonstra que, intrinsecamente, o ser humano é mais sensível aos
estímulos que Ihes tocam fundo do que àqueles sobre os quais não pode
fazer nada e acabam se tornando indiferentes talvez por isso mesmo. As
emoções determinam em grande parte o desenvolvimento da atenção
seletiva e da memória seletiva.
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Material de apoio da atividade
A promessa de premiação motiva o
aprendizado?
Textos retirados do livro Sexo, Drogas, Rock in Roll e Chocolate,
de Suzana Herculano-Houzel. Editora: Vieira e Lent.
Um pouquinho mais de eletricidade, por favor,
que eu tô gostando...
A descoberta acidental do sistema de recompensa do cérebro
De tudo o que é bom a gente quer mais. Mas o que é "bom" para
o cérebro? O que faz o cérebro lembrar e pedir mais? Curiosamente, a
primeira demonstração de que existe uma região do cérebro que faz o
animal "querer mais" resultou de um experimento com a intensão contrária:
determinar se a estimulação elétrica de um certo ponto do cérebro era
aversiva.. Um experimento que, nesse sentido, deu errado.
O experimento aconteceu em 1953, numa época em que as funções
recém descobertas de uma estrutura bem no meio do cérebro conhecida
como formação reticular mesencefálica causavam alvoroço entre os
cientistas que buscavam entender os mecanismos da consciência. A dupla
ítalo-americana Giuseppe Moruzzi e Horace Magoun havia demonstrado,
em 1949, que a estimulação elétrica dessa estrutura faz animais
adormecidos despertarem, e coloca o cérebro de animais já acordados
em estado de alerta. Seria um tipo de "centro da consciência"? A história
mostraria que não, mas enquanto isso a descoberta provocou uma onda
de experimentos semelhantes em busca de outras estruturas que
influenciassem o grau de alerta dos animais e a1guns levantavam a
suspeita de que, em certos locais do cérebro, a estimulação poderia ser
aversiva.
Era justamente o que o americano James Olds estava tentando
determinar, antes de prosseguir com seus experimentos no laboratório
do psicólogo canadense Donald Hebb, imortalizado por sua proposta de
que o aprendizado tem por base a modificação das conexões entre os
neurônios. Olds implantara eletrodos supostamente na tal formação
reticular mesencefálica de um rato que ele então soltava sobre uma mesa.
Sempre que o rato vinha a um determinado canto da mesa, Olds aplicava
uma corrente elétrica aos eletrodos, para estimular a estrutura. Era uma
forma de condicionamento, como fez Pavlov com seus cachorros. Se a
estimulação fosse aversiva, o rato deveria passar a evitar aquele canto
da mesa; se não, continuaria circulando normalmente pela mesa toda,
como fazem os ratos em um ambiente novo.
Para a surpresa de Olds, o animal gostou e muito. Deu uma
saidinha... e logo voltou àquele canto onde Olds aplicara a estimulação
elétrica. O rato saiu de novo, continuou a exploração da mesa... e voltou,
ainda mais rápido do que da primeira vez, para uma nova estimulação. E
de novo. E de novo. Olds pediu a um colega que escolhesse outro lugar
da mesa para associar ao estímulo e o rato logo passou a visitar o novo
lugar assiduamente. Depois, em um laboratório em forma de T, o mesmo
rato rapidamente aprendeu a correr para o canto em que recebesse a
estimulação elétrica no cérebro.
Ao examinar o cérebro do animal, Olds descobriu que seus
eletrodos tinham sido mal posicionados e foram parar perto do hipotálamo.
Tentou, então, repetir o erro, implantando eletrodos em outros animais.
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Não deu muito certo: alguns animais tinham reações ambíguas, e outros
mostravam aversão ao lugar da mesa onde recebiam o estímulo elétrico.
Parecia que a posição exata dos eletrodos fazia uma diferença enorme.
Olds abandonou então seu projeto de pesquisa original e, junto com o
também doutorando Peter Milner (que veio a se tornar um grande nome
da Psicologia nos EUA), desenvolveu um experimento para testar mais
rapidamente o efeito da estimulação elétrica em locais diferentes dessa
região do cérebro.
Era uma modificação da "caixa de Skinner", uma pequena caixa
com uma alavanca que, ao ser apertada pelo animal, faz aparecer um
grão de comida em uma janelinha. Na versão de Olds e Milner, o grão de
comida foi substituído pela aplicação do estímulo elétrico, disparado
quando o animal pressionava um grande pedal. Como a caixa era pequena
e o pedal ficava numa posição estratégica, onde era apertado cada vez
que o animal tentava olhar pela única abertura da caixa, por onde
passavam os cabos ligados ao eletrodo, sem qualquer tipo de estimulação
elétrica do cérebro o animal já apertava o pedal umas 60 vezes em dez
minutos. Era uma situação ideal para deixar evidente qualquer efeito
aversivo, que faria o bichinho parar de apertar o pedal. O risco seria deixar
escapar alguns casos de efeitos positivos. Mas não houve dúvida: quando
funcionava, o animal apertava o pedal até mil vezes nos dez minutos de
teste!
Testando assim a posição dos eletrodos, Olds pôde determinar
que a estrutura cerebral que ele acertara por engano e cuja estimulação
fazia o animal "querer mais" é o feixe prosencefálico medial, que contém
fibras nervosas que terminam principalmente no hipotálamo, e uma grande
quantidade de fibras repletas de noradrenalina, serotonina e dopamina
que terminam no córtex pré-frontal. Nos anos seguintes, ficou claro que
esse feixe leva e traz fibras do que passou a ser conhecido como o sistema
de recompensa do cérebro, que inclui o assoalho dos núcleos mais internos
da parte frontal do cérebro, chamado de corpo estriado ventral, e cujo
astro é uma estrutura chamada núcleo acumbente. A estimulação do feixe
ativa tanto as entradas quanto as saídas desse sistema, algumas
estrategicamente ligadas ao sistema motor e evidentemente o sistema é
poderoso o suficiente para fazer um ratinho apertar um pedal até cem
vezes por minuto.
Imagine o prazer em apertar um botão necessário para fazer você
repetir a ação a cada batida do seu coração. A estimulação devia provocar
o maior "barato" nos animais e ciente disso, Olds pronta e adequadamente
chamou sua versão da caixa de Skinner de "Caixa do Prazer". A tal da
caixa se mostrou um modelo tão poderoso que esse tipo de experimento,
chamado de "auto-estimulação", foi logo adaptado para testar a autoaplicação de drogas em ratinhos, e tornou se um padrão: hoje em dia,
basta que uma substância, ou uma situação, seja suficiente para levar a
auto-estimulação para que se levante a suspeita de que ela age
diretamente sobre o sistema de recompensa do cérebro como é o caso
de todas as drogas psicotrópicas.
Tudo no cérebro é uma questão de quem fala com quem. Se a
mente é produto do sistema nervoso e o cérebro não é muito mais do
que neurônios conectados entre si e com o corpo, a riqueza de funções
e pensamentos do ser humano só pode ser o resultado de uma coisa:
o padrão diferente de conexões de cada região do cérebro. Algumas
recebem sinais dos sentidos, outras emitem sinais para os músculos,
monitoram os movimentos, articulam neurônios em outras regiões,
comparam, antecipam, regulam. Quando se trata de prazer, as regiões
envolvidas são aquelas que representam estados internos do corpo
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(como a insula); antecipam ou detectam uma recompensa (como o
núcleo acumbente e restante do corpo estriado ventral); representam o
valor relativo da recompensa (como o córtex orbitofrontal); e codificam
se já se atingiu a saciedade ou não (como o córtex cingulado e o
orbitofrontal). Simples assim. Talvez...
Você conhece várias dessas situações e substâncias, e se submete
a esse teste voluntariamente em casa, talvez com mais freqüência do
que imagina. Por que você achava que comer, fumar, beber, fazer sexo,
música ou exercício são hábitos que se mantêm ao longo dos séculos? O
que é "bom" para o cérebro e faz a gente querer mais são comportamentos
e substâncias que levam a ativação desse sistema de recompensa, e
fazem o cérebro passar a associar a causa da ativação à sensação de
bem estar e prazer criada em seguida no corpo. Mas, será a ativação do
sistema que é prazerosa em si, ou serão as mudanças no corpo às quais
ela está associada, a verdadeira fonte de prazer?
Isso ainda vai dar pano para manga e trabalho para muitos ratinhos
e cientistas. E para você, também. Pensa que você não é, à sua maneira,
mais um ratinho de laboratório, como os de Olds, experimentando novas
músicas, novos drinques, novas marcas de cigarro ou namorados? Quem
diria, ser animal de testes nem sempre é ruim...
Dezembro de 2002
Fontes:
Olds. J., Milner, P. Positive reinforcement produced by electrical stimulation of septal area and
other regions of rat brain. Journal of Comparative Physiology and Psychology, v. 47, p. 419-427,
1954.
Olds J. Self stimulation of the brain. Science, v. 127, p. 315-324, 1958.
Esquema do interior do cérebro humano, visto de lado
(olhos a esquerda, nuca à direita),
indicando as estruturas integrantes do sistema de
recompensa ou associadas a ele.
A cenoura na ponta da varinha
É só uma questão de encontrar o estímulo
Esqueça a gotinha de suco ou o floco de ração para premiar o
ratinho que você tenta arduamente treinar para subir a escada ou
atravessar um labirinto. A equipe do americano John Chapin, na
Universidade do Estado de Nova York, encontrou um modo muito mais
eficiente de conseguir que os bichos façam o que os pesquisadores
querem e por controle remoto.
Chapin já tinha experiência sobrando com a implantação de
eletrodos; foi em seu laboratório que o brasileiro Miguel Nicolelis
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desenvolveu a técnica para que ratinhos usassem a atividade registrada
pelos eletrodos em seu cérebro para mover alavancas sem fazer força.
Mas, até então, os eletrodos implantados no cérebro de ratos eram usados
apenas para que os animais comandassem aparelhos eletrônicos. E se
eles tentassem o contrário, usando os eletrodos desta vez para fazer
aparelhos eletrônicos comandarem os ratos?
O truque foi dar um objetivo prático a uma técnica até então
emprestada apenas para fins de exploração do cérebro: a
microestimulação elétrica, que "força" a ativação de regiões específicas
do cérebro através de curtíssimos choques elétricos aplicados por
eletrodos implantados nas regiões desejadas.
Para conseguir que um animal de laboratório ou uma pessoa, na
verdade, faça o que você quer que ele faça, são necessárias em última
análise apenas duas coisas: que ele entenda o que você quer; e que
tenha vontade de fazê lo. E se o que você quer que o animal faça é ir
aonde você manda, noções básicas de equitação dão a dica. Basta poder
indicar "Vire à esquerda", "Vire à direita", "Ande em frente" e "Pare".
Um cavalo sabe que deve virar à esquerda quando você puxa as
rédeas para a esquerda. Como fazer o mesmo em um rato, sem colocarlhe rédeas? Uma alternativa é usar eletrodos para estimular a
representação dos bigodes no córtex somatossensorial, a região na
superfície do cérebro que cuida das sensações do corpo. Para o animal,
um estímulo elétrico que "ligue" a representação dos bigodes do lado
esquerdo não deveria ser muito diferente de um verdadeiro toque nesses
bigodes. Portanto, bastam alguns eletrodos para dar um "toque virtual"
nos bigodes direitos, e outros tantos para os bigodes esquerdos.
E como fazer o bicho seguir em frente? Aqui um pouco de incentivo
é necessário, e quando se trata de incentivo, a opção natural é estimular
o sistema de recompensa do cérebro. Então, implantam-se alguns
eletrodos no feixe prosencefálico medial, parte do sistema de recompensa
do cérebro do rato, coloca-se uma mochilinha as suas costas, contendo
um microestimulador e seu processador teleguiado, e voilà: tem-se um
rato pronto para... coisa nenhuma.
Pensou que já ia poder fazer o bichinho seguir suas ordens? Não,
não, não. Primeiro é preciso ensiná-lo como responder ao controle remoto.
Afinal, um toque virtual nos bigodes direitos não é necessariamente
sinônimo de "vire à direita". É preciso que eles aprendam o significado de
cada "toque" e queiram fazer alguma coisa com a informação. Ou seja: é
preciso treiná-los.
E o treino mais comprovado pela prática é a velha associação de
estímulos premiada por um afago na cabeça ou pedaço de comida na
boca. Se seus ratos precisam aprender a fazer curvas, então que eles
façam exatamente isso: andem em curvas. Treinando seus ratos em um
labirinto em forma de 8, onde os animais não tinham muitas alternativas
de movimento, Chapin e sua equipe os ensinaram a associar um "toque"
do lado direito a uma curva para a direita, e um "toque" do lado esquerdo
a uma curva para o outro lado, tudo em troca de um pouquinho de
estimulação do sistema de recompensa do cérebro após cada associação
correta. Após dez sessões de treino, o teste: será que o condicionamento
já teria sido suficiente para guiar os ratinhos num campo aberto, sem as
escolhas forçadas de um labirinto?
Sem problemas: os bichinhos corriam em disparada, viravam à
esquerda ou à direita sempre que comandados e até subiam escadas,
desciam degraus, passavam por baixo de arcos e por dentro de túneis.
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Tudo isso guiados pelo pesquisador que operava o controle remoto pelo
computador a uma distância de até 500 metros, apenas garantindo lhes
de vez em quando algumas estimulações elétricas do sistema de
recompensa. Até pilhas de concreto demolido os bichinhos subiam
teleguiados, o que certamente encorajou os pesquisadores na hora de
afirmar que o seu "invento" poderia em breve ser utilizado em buscas em
áreas de destruição urbana.
Não parece nem mesmo haver risco de os bichos resolverem parar
no meio. Os ratos corriam pra valer, a 1 km/h (se você acha pouco, lembrese de que, com suas pernas vinte vezes maiores, você anda a uns 5km/
h), e sem parar, durante até uma hora o máximo testado nos experimentos.
Ambientes abertos e iluminados, normalmente evitados pelos ratos,
também não eram problema.
Pelo jeito, a ativação do feixe prosencefálico medial era
recompensa mais que suficiente para manter os bichinhos andando. Na
verdade, era até mais que recompensa era incentivo: quanto mais difícil
era o obstáculo à frente, mais estimulações do feixe prosencefálico medial
eram necessárias para fazer o ratinho seguir adiante. Confirmando
suspeitas antigas, levantadas por experimentos na década de 50, Chapin
e sua equipe demonstraram, portanto, que a estimulação do sistema de
recompensa também serve como um estímulo para ir em frente como
uma verdadeira motivação, mesmo.
É uma idéia estimulante essa de a recompensa, em geral associada
ao "depois", ao prazer do objetivo alcançado, também funcionar como
motivação. Se for assim, o botão "avance" dos ratos teleguiados e pelo
jeito também o nosso funciona dando uma amostra do prazer que está
por vir, se somente os bichinhos se mexerem. Igualzinho àquela lendária
cenoura pendurada defronte dos olhos da mula empacada. Vai, muliiiinha...
vai, muliiiinha...
Maio de 2002
Fonte: Talwar, S. K., Xu, S., Hawley, E. S., Weiss, S. A., Moxon, K. A., Chapin, J. K. Rat navigation
guided by remote control. Nature, v. 417, p. 37 38, 2002.
Mas eu só usei uma vez
Estresse, genética, cidadania e a suscetibilidade ao vício
Seu amigo usou uma vez, duas, e largou quando quis. Você quer
experimentar, e tenta fazer o mesmo mas não consegue, repetindo para
si mesmo que cada nova dose é a última. Por que logo você? Castigo
divino? Dívidas não pagas da última encarnação? Ou biologia pura?
Não são necessários experimentos com animais para constatar
que indivíduos diferentes têm suscetibilidades diferentes ao vício, mas
foram esses experimentos que primeiro indicaram de onde vêm as
diferenças. Ao tentarem deixar ratos de laboratório viciados em cocaína
ou anfetamina para estudar os efeitos da droga, os cientistas ficaram
intrigados com a heterogeneidade dos animais, já que alguns tornavamse adeptos da auto-administração, o que indicava que eles ficavam
prontamente viciados, mas os demais não. A diferença entre animais
responsivos e não responsivos logo se tornou evidente quando o
comportamento dos animais foi analisado em mais detalhe: os animais
responsivos, predispostos ao vício, eram aqueles que reagiam a um novo
ambiente com agitação e locomoção constantes, e buscavam novidade,
variedade e estimulação emocional. Ao contrário, os não responsivos,
que não se viciam, ficavam tranqüilos num canto. Até exploravam o novo
ambiente, mas sem ficar para lá e para cá feito os outros.
14
Esses animais também diferem uns dos outros na química cerebral,
como mostrou um estudo francês de 1996. Os ratos responsivos,
predispostos ao vício, exibem uma hiper ativação dopaminérgica
generalizada do sistema de recompensa: o número de receptores para
dopamina no núcleo acumbente é reduzido, provavelmente numa resposta
de tolerância aos níveis cronicamente elevados da substância tanto em
condições "normais" quanto em resposta à cocaína ou ao estresse de um
apertão no rabo. A resposta ao estresse dos animais responsivos, aliás, é
elevada como um todo: eles reagem de forma exagerada, e se colocados
em um ambiente estranho, por exemplo, produzem mais corticosterona
um dos hormônios do estresse e por mais tempo que os animais não
responsivos.
Está certo que um sistema dopaminérgico hiperativo por natureza
dos animais responsivos deve contribuir para a propensão ao vício, mas
a resposta exagerada ao estresse parece ser a chave aqui. Se a ação da
corticosterona for bloqueada, os animais previamente caracterizados como
responsivos ou não responsivos não mais diferem na quantidade de
dopamina liberada no núcleo acumbente em resposta ao estresse. E sem
a ação da corticosterona, bloqueada quimicamente ou eliminada pela
remoção cirúrgica das glândulas adrenais, os animais mesmo os antes
"responsivos" resistem impávidos à atração da cocaína, e não ficam se
auto-administrando a droga. E não é porque fiquem burrinhos, ou algo do
tipo: eles continuam perfeitamente capazes de apertar horas a fio a mesma
alavanca da gaiola se o resultado, em vez de injeção de cocaína, for
aparecer um pedaço de ração.
Esses e outros experimentos nos quais o animal era exposto a
diferentes níveis de estresse antes da auto-administração de cocaína
indicaram ao neurocientista Nick Goeders, da Universidade do Estado da
Louisiana, nos EUA, que a auto-administração de cocaína só acontece
se a corticosterona circulante no sangue ultrapassar um certo valor limite.
Ou seja: sem estresse não há formação de vício por alguma razão, o
cérebro usa a presença dos hormônios do estresse como condição sine
qua non para se deixar viciar.
E não, você não estará seguro se deixar para usar a droga quando
estiver se sentido calminho e desestressado. Como se a danada
antecipasse essa possibilidade, a própria cocaína se encarrega de ativar
o eixo hipotálamo pituitário adrenal, disparando a produção de hormônios
de estresse, dentre eles a corticosterona que, além de ser necessária à
formação do vício, ainda aumenta os efeitos da droga.
Além do mais, o estresse social também tem influência importante.
Em 1995, um estudo francês demonstrou que ratos submetidos à agressão
de outros ratos e derrotados apenas quatro vezes ao longo de uma semana
buscavam se auto-injetar quantidades maiores de cocaína do que animais
não expostos, machos ou fêmeas.
E recentemente, em 2002, um estudo da Universidade Wake
Forest, nos EUA, demonstrou que a interação social é suficiente para
modificar a disponibilidade de receptores de dopamina no sistema de
recompensa do cérebro de macacos, ao mesmo tempo em que uns se
tornam mais propensos ao vício, e outros, menos. Enquanto eram
hospedados individualmente, 20 macacos tinham quantidades
semelhantes do receptor D2 para dopamina no sistema de recompensa,
avaliadas pela ligação de uma substância radioativa no cérebro detectada
por tomografia de emissão de pósitrons.
Três meses após serem redistribuídos em grupos de quatro por
jaula, o comportamento dos macacos havia mudado visivelmente. Em
15
cada grupo, um dos animais havia se tornado claramente dominante,
agredindo e submetendo os demais, e recebendo privilégios como ser
penteado com uma freqüência três vezes maior que os outros. O animal
dominante passou a gozar de 20% mais receptores para dopamina no
sistema de recompensa do cérebro do que antes, e também mais do que
os outros três subordinados.
E mais: os animais dominantes pareciam ter se tornado resistentes
à atração da cocaína. Num teste de auto-estimulação, em que os animais
tinham o controle de injeções de cocaína diretamente na veia, aqueles
que se subordinaram ao dominante se auto-aplicavam cocaína repetidas
vezes mas o dominante não se injetava mais vezes do que quando a
injeção continha apenas soro fisiológico.
Como nos ratos, os macacos que se tornaram subordinados e
propensos a usar cocaína eram aqueles responsivos, que anteriormente
exibiam agitação locomotora em suas jaulas individuais. Ao contrário dos
ratos, no entanto, os animais que iriam se tornar dominantes
posteriormente, embora distinguíveis pelo baixo grau de locomoção na
jaula individual, não diferiam então dos demais quanto ao número de
receptores de dopamina disponíveis. Na opinião dos pesquisadores,
baseados em evidências de estudos anteriores, foi o alojamento individual
que colocou todos no mesmo barco de hiperatividade dopaminérgica,
apesar das diferenças locomotoras permanecerem evidentes. Por trás
dessa sugestão está também o fato de que, quando primatas são
encarcerados individualmente, praticamente todos se tornam dependentes
de cocaína se tiverem a oportunidade, um dos resultados de um sistema
dopaminérgico hiperativo.
A diferença que a interação social faz, por conseguinte, seria
permitir aos macacos que se tornam dominantes que seu sistema
dopaminérgico volte ao normal, presumivelmente à medida que o animal
assume o controle do seu ambiente, do seu direito de ir e vir, de suas
fontes de comida e sexo. E assumindo o controle, o "prêmio" por tabela é
tornar-se também menos propenso ao vício. Pena foi os pesquisadores
não terem contado o que acontecia com os hormônios do estresse nos
macacos em sociedade. Seria de se esperar que os que se tornaram
dominantes, e resistentes ao vício, também tivessem uma resposta
reduzida ao estresse.
Taí. Assegura-se ao indivíduo o controle da sua própria vida, o
direito de não ser agredido ou estressado de outras maneiras, comida a
vontade, diversão, e de quebra ele ainda se tornará menos propenso ao
vício. Olha que coisa mais linda: restaurar a cidadania funciona até para
ratos e macacos...
Janeiro de 2003
Fontes:
Dellu, F., Piazza, P. V., Mayo, W., Le Moal, M., Simon, H. Novelty seeking in rats biobehavioral
characteristics and possible relationship with the sensation seeking trait in man. Neuropsychobiology,
v. 34, p. 136-145, 1996.
Goeders, N. E. Stress and cocaine addiction. Journal of Phármacology and Experimental
Therapeutics, v. 301, p. 785 789, 2002.
Haney, M., Maccari, S., Le Moal, M., Simon, H., Piazza, P. V. Social stress increases the acquisition
of cocaine self administration in male and female rats. Brain Research, v. 698, p. 46-52, 1995.
Rouge Pont, F., Deroche, V., Le Moal, M., Piazza, P. V. Individual differences in stress induced
dopamine release in the nucleus accumbens are influenced by corticosterone. European Journal of
Neuroscience, v. 10, p. 3903-3907, 1998.
16
O quinto elemento: o gosto do cérebro
O injustiçado glutamato já está na sua comida, e muito mais do
que você pensa!
Essa história de existirem apenas quatro gostos básicos sempre
foi contra a impressão de que sentimos mais sabores do que isso. De
fato, os japoneses bem que sabiam, há quase cem anos, que existe um
quinto gosto, além dos tradicionais doce, salgado, azedo e amargo. Um
gosto tão especial que o nome em japonês, de difícil tradução, acabou
vingando também em outras línguas: é o gosto "umami", que pode
significar tanto "delicioso" como "pungente", "saboroso", "essencial" ou
"de carne".
Mas existe uma tradução mais simples. Trata se do gosto do
glutamato, um sal encontrado nas prateleiras dos supermercados e nas
mesas dos restaurantes orientais, vendido como Aji no moto ou Sazon, e
adicionado ao tempero de macarrão instantâneo e a salgadinhos em geral.
E presente naturalmente, também, no molho de soja e em vários alimentos
como queijo parmesão, tomate, leite, atum, frutos do mar e... cérebro.
Sim, o cérebro não só é comestível (as versões bovina e ovina
são encontradas no seu açougue favorito sob o nome pouco convidativo
de "miolos", iguaria aliás muito apreciada pelos franceses), como também
é um dos alimentos que mais contêm glutamato. Por uma razão muito
simples: o glutamato o mesmo glutamato do Aji-no moto é o principal
neurotransmissor do cérebro, a moeda mais usada na troca de sinais
entre neurônios.
Confira na tabela a
quantidade de glutamato livre e
conjugado em proteínas por
100g de alimento. O glutamato
livre produz na boca a sensação
instantânea do sabor umami,
mas o glutamato preso em
proteínas somente é liberado no
intestino, durante a digestão.
(Valores referentes a glutamato
acrescentado artificialmente ao
alimento estão indicados com*.)
Alimento
Caldo de carne
Sopa de pacote
Glutamato livre (mg)
Glutamato em proteínas (mg)
8.700*
3.780*
?
?
Alga marinha Kelp
2.240
?
Molhos prontos
Queijo parmesão
2.060*
1.200
?
9.800
Batata-frita de pacote
910
?
Hambúrguer pronto
560*
?
Cogumelos em lata
240*
?
Ervilha
Cérebro (miolos)
200
200
5.600
?
Tomate
Milho
140
130
240
1.800
Batata
100
270
Espinafre
40
290
Galinha
45
3.300
Cenoura
Bife
35
35
200
2.800
Porco
25
2.300
Ovo
Leite humano
25
22
1.600
?
Cebola
20
210
Cordeiro
20
2.700
Salmão
20
2.200
Bacalhau
Leite de vaca
10
2
2.100
?
17
Com tanto glutamato nas proteínas, dá para imaginar que
comer glutamato adicionado não deve fazer mal. De fato, o que
entra livre ou é extraído das proteínas é metabolizado em substâncias
ainda menores. Não entra glutamato direto no cérebro, por exemplo.
Nem precisa: assim como o resto do corpo, ele sabe fazer o seu
próprio. Aliás, há tanto glutamato entrando normalmente que o corpo
excreta 16g por dia pelas fezes, pela urina, e com a perda de pele.
Na verdade, muito mais grave que o glutamato é o sódio que o
acompanha nas versões do supermercado, esse sim problemático
para quem tem hipertensão, por exemplo. E não pense que a
"síndrome do restaurante chinês" é culpa do glutamato!
Foi o japonês Kikunae Ikeda, da Universidade Imperial de Tóquio,
quem no início do século 20 caracterizou o gosto umami como um sabor
inimitável por qualquer combinação dos quatro sabores básicos. Ikeda
observou que o tofu, uma coalhada de feijão de soja muito sem graça
para os ocidentais mas apreciada pelos japoneses, ficava mais saboroso
quando ingerido ao mesmo tempo com uma colher de caldo de kelp, uma
alga marinha comum na culinária oriental. A partir da análise bioquímica
do caldo de Kelp e de outros alimentos ricos neste sabor, como o atum e
o caldo de carne, Ikeda determinou que o elemento responsável pelo
sabor umami é o glutamato, o mais comum dos vinte aminoácidos, os
bloquinhos que compõem as proteínas essenciais a vida humana.
Segundo a lógica de sinalizar a presença na boca de nutrientes
necessários (açúcar, sais minerais e ácidos) ou substâncias tóxicas e
indesejáveis (em geral amargas), faz sentido existir um gosto básico
sensível ao componente mais comum das proteínas. O glutamato inserido
nas proteínas, no entanto, não provoca o sabor umami. Mas com o calor
do cozimento, as proteínas se partem em pedaços menores, liberando-o
e com ele o sabor "rico" do caldo de carne, por exemplo, carregado de
glutamato livre.
Testes de percepção já tinham mais do que comprovado que o
glutamato provoca um gosto específico no paladar de seres humanos e
aliás, no de ratos também, mas para reconhecer definitivamente o status
do umami como o quinto gosto básico faltava encontrar um receptor
exclusivamente seu: uma proteína na superfície de células da língua que
servisse de "encaixe" para o glutamato, para que em seguida uma
mensagem acusando sua presença fosse enviada ao cérebro. Por ironia,
foi justamente o "receptor umami" o último gosto reconhecido, o primeiro
dos receptores gustativos a ter seu gene descoberto: até o ano de 2000,
os outros gostos, considerados básicos por unanimidade, ainda não tinham
receptores identificados.
O fato de o glutamato também ser usado como neurotransmissor
sugeria que talvez um dos próprios receptores de glutamato do cérebro
fosse usado também na língua. No entanto, o que poderia tornar a vida
dos pesquisadores mais fácil, considerando que a seqüência dos genes
para esses receptores cerebrais já era conhecida, levantava dois novos
problemas. Primeiro, os receptores de glutamato conhecidos são
extremamente sensíveis, de modo que se eles agissem também na
superfície da língua, qualquer grãozinho de Aji no moto provocaria um
sabor fortíssimo o que não é o caso. E, segundo, o glutamato também é
usado dentro da língua como um neurotransmissor; portanto, já existem
receptores no local dedicados a transmissão de sinais para o cérebro, e
não diretamente a detecção de glutamato na comida. Como diferenciar
qual é o receptor do glutamato dos neurônios e qual o do glutamato da
comida?
18
A natureza ajudou. O receptor umami é semelhante a um daqueles
receptores de glutamato do cérebro, sim. Mas falta-lhe um pedaço, e isso
o torna ao mesmo tempo imprestável para a transmissão de sinais para o
cérebro, mas simplesmente perfeito para detectar as altas concentrações
de glutamato livre que passam pela boca. Ou seja: é inconfundível.
A equipe do americano Stephen Roper, da Escola de Medicina da
Universidade de Miami, já tinha indicações de que um determinado tipo
de receptor para glutamato do cérebro estaria envolvido na gustação do
umami. Testes em seu laboratório para detectar vários tipos de receptores
de glutamato na língua de ratos haviam mostrado a presença de uma
versão do receptor chamada mGluR4 (Glu de Glutamato, R de Receptor,
4 de Quarta versão identificada, e m de... metabotrópico, maneira curta
de dizer "receptor que requer o metabolismo de alguns intermediários
dentro da célula para surtir seu efeito", ao contrário dos outros receptores
de glutamato, que modificam diretamente a carga elétrica da célula). Além
disso, drogas que ativam especificamente o mGluR4 também têm "gosto
de glutamato", enquanto outras drogas que ativam outros tipos de
receptores para glutamato não têm gosto.
No entanto, continuava a incompatibilidade da concentração
necessária para "ligar" o receptor. Para resolver a questão, Nirupa
Chaudhari e Ana Marie Landin, no laboratório de Roper, fizeram um
preparado de línguas de rato (parece até receita de bruxaria!) e aplicaram
técnicas de biologia molecular para extrair dali seqüências de DNA
semelhantes a do mGluR4. O seqüenciamento completo, publicado na
revista Nature Neuroscience, em fevereiro de 2000, mostrou que a versão
gustativa do receptor é truncada: falta justamente parte da região que fica
exposta na boca, pescando glutamatos livres na comida. E o que é melhor:
embora truncada, essa versão ainda gruda glutamato em concentrações
compatíveis com a sensibilidade tanto de ratos como de humanos.
Falando em ratos, eles não são os únicos privilegiados, além do
homem, a sentir o gosto do glutamato. Até as bactérias possuem um
receptor parecido, que gruda aminoácidos em geral o que dá uma idéia
da importância do receptor, presente desde nesses serezinhos
microscópicos até no todo poderoso homem, e também sugere de onde
surgiu, ao longo da evolução, a família de receptores de glutamato.
A identificação do receptor umami confirma de vez seu status de quinto
gosto básico. Mas outro mistério permanece. Embora o glutamato sozinho
confira a comida o sabor umami, seu efeito é potencializado pela presença
de nucleotídeos parecidos com os que compõem o material genético (Você
já parou para pensar que come DNA todos os dias? E, leite, carnes e vegetais,
como tudo o que é vivo e cheio de células, vêm cheios de DNA, além dos
tradicionais açúcares, proteínas e sais minerais. Só que ninguém lembra!).
Quem conferir a embalagem dos salgadinhos ou Miojo verá: lá na lista dos
ingredientes estão o inositol monofosfato e a guanosina monofosfato. Talvez
esses nucleotídeos interajam com outros receptores, que mais tarde tem
seus sinais para o cérebro combinados aos do receptor umami; ou talvez
eles se grudem ao mesmo tempo no mesmo receptor, ou até antes, facilitando
a deteção do glutamato. Agora que o receptor umami foi identificado, todas
essas possibilidades poderão ser testadas diretamente.
Fica faltando apenas conferir se o cérebro, com todo seu glutamato
livre, tem mesmo sabor umami. Eu confesso que nunca tive coragem de
encarar um ensopadinho de miolos, e mesmo em nome da ciência o prato
me parece um tanto nojento, para não dizer fedido. Mas gosto não se
discute. Alguém se habilita?
Outubro de 2001
19
Receita para ver o DNA que você come
Você pode brincar de bioquímico em sua própria cozinha a "ver" o
DNA que você come disfarçado na cebola. É só seguir a receita. Cientistas
em seus laboratórios também seguem receitas, com uma única diferença:
para parecer mais sério, suas receitas são chamadas de "protocolo"...
Vamos lá:
Você vai precisar de:
• uma cebola média
• uma faca de cozinha
• dois copos pequenos (de geléia, por exemplo)
• uma panela com três dedos de água
• água filtrada
• sal de cozinha
• álcool etílico a 95%, gelado (o álcool comum, saído do seu freezer)
• um bastão de vidro, daqueles de mexer bebidas, ou um pauzinho
de madeira
• um coador de papel (daqueles de passar café)
• uma tigela cheia de gelo moído
• detergente de cozinha
Procedimento:
1. Pique a cebola em pedaços tão pequenos quanto seus dotes
com uma faca e sua paciência permitirem. Não vale passar no liquidificador!
Cortando a cebola você está destruindo milhões de células, e abrindo
caminho para que a mistura de detergente que você vai usar chegue até
o núcleo delas, onde está o DNA (a mastigação, e depois os ácidos do
estômago, fazem isso por você com a cebola que você come).
2. Coloque um dedo de água em um copo, acrescente 2 colheres
(de sopa) de detergente, e uma pitada de sal. Mexa bem até dissolver
completamente.
3. A esta mistura acrescente a cebola picada, leve copo e tudo ao
banho maria por cerca de 15 minutos. O detergente "come" a membrana
que envolve as células e seus núcleos, liberando o DNA e um mundo de
proteínas e outras guloseimas no caldo. O calor ajuda o processo, e
também inativa proteínas da própria cebola que destroem o DNA (e só
não o fazem naturalmente porque, na ausência do seu detergente de
cozinha, o DNA fica bem protegido no núcleo, a salvo dessas proteínas).
4. Retire a gororoba do banho maria e resfrie tudo rapidamente,
colocando o copo numa tigela de gelo moído por uns 5 minutos. Na falta
de calor para segurar aquela proteína que vai tentar picar seu DNA em
pedacinhos, o frio resolve. Sim, em caso de preguiça, cubos de gelo
também servem, mas moer o gelo pode ser uma atividade mais divertida
do que você pensa: junte cubos num pano de prato, torça o pano para
ficar bem fechadinho, a bata com força no chão da cozinha. Boa
oportunidade para botar a raiva para fora!
5. Passe a mistura no coador de café e recolha o líquido filtrado
em um copo limpo. O detergente fica para trás, agarrado em proteínas e
outras substâncias que estavam dentro da cebola, enquanto na solução
que atravessa o filtro estão o DNA e o sal de cozinha, mesmo que você
ainda não o veja (grande parte da biologia molecular acontece assim,
20
com soluções contendo coisas interessantíssimas que ninguém vê. Como
você pode imaginar, pode ser frustrante...).
6. Adicione ao filtrado um dedo do seu álcool estupidamente gelado,
deixando-o escorrer devagar pela borda como se você estivesse servindo
uma cerveja sem colarinho. O álcool ficará pousado sobre a água, sem
se misturar.
7. O que você vai fazer agora é pescar o DNA. Mergulhe o bastão
no fundo do copo e, com movimentos circulares lentos, vá misturando o
álcool com a água. Claro que você não vai conseguir, mas ao colocar a
solução aquosa em contato com o álcool, no qual o DNA não se dissolve,
você verá fios esbranquiçados acumularem-se ao redor do seu bastão:
são longos fios de DNA de cebola, prontos para você fazer deles o que
quiser. Só não é recomendável comê los, por causa do detergente. Mas a
cebola, com todo o seu DNA, é perfeitamente segura...
Fontes:
Chaudad, N., Landin, A. M., Roper, S. D. A metabotropic glutamate receptor variant functions as a
taste receptor. Nature Neuroscience, v. 3, p. 113 119, 2000.
Chaudari, N., Yang, H., Lamp, C., Delay, E., Cantford, C., Than, T., Roper, S. The taste of monosodium
glutamate: membrane receptors in taste buds. Joumal of Neuroscience, v. 16, p. 3817-3826, 1996.
Ikeda, K. On a new seasoning (em japones). Journal of the Tokyo Chemical Society, v. 30, p. 820836, 1909.
Emsley, J., Fell, P. Foi alguma coisa que você comeu? Intolerância alimentar: causas e prevenções.
Rio de Janeiro: Campus, 2001.
21
Material de apoio da atividade
O aprendizado é capaz de causar
mudanças estruturais (morfológicas)
no córtex cerebral?
Seu cérebro é plástico?
As interações organismo-ambiente vivenciadas por um indivíduo
determinam fundamentalmente a topografia e a função de suas respostas.
As relações entre os eventos ambientais e as respostas do organismo
podem estabelecer contingências, ou seja, relações condicionais entre
classes de comportamento e as classes de estímulos que lhes são
antecedentes ou conseqüentes.
Em cada espécie, os indivíduos têm um repertório comportamental
que, de um lado, resulta da interação entre as contingências filogenéticas
e ontogenéticas. As contingências filogenéticas atuaram durante a evolução
e selecionaram classes de comportamento favoráveis à sobrevivência
dessa espécie; as contingências ontogenéticas foram estabelecidas pelas
interações particulares desse organismo com o seu ambiente, desde o
início do seu desenvolvimento e selecionaram as classes de respostas
eficazes para a adaptação a um ambiente que muda constantemente.
Neste sentido, pode-se afirmar que o comportamento de um indivíduo é
produto de sua história filogenética, ontogenética e cultural (Bussab, 2000;
Catania, 1999; Skinner, 1981).
As mesmas pressões evolutivas que determinaram as mudanças
na topografia e na função das reações do indivíduo ao ambiente também
determinaram alterações na forma, no tamanho e nas funções do sistema
nervoso. O processo evolutivo resultou em cérebros com uma abundância
de circuitos neurais que podem ser modificados pela experiência (Carlson,
2000). Assim, a interação sistema nervoso-ambiente resulta na organização
de comportamentos simples ou complexos que modificam tanto o ambiente
como o próprio sistema nervoso. Essa capacidade denota a plasticidade
do sistema nervoso, ou seja, a plasticidade neural que está presente em
todas as etapas da ontogenia, inclusive na fase adulta e durante o
envelhecimento. A capacidade de modificação do sistema nervoso em
função de suas experiências, tanto em indivíduos jovens como em adultos,
foi reconhecida apenas nas últimas décadas (Rosenzweig, 1996).
• Comportamento e Plasticidade Neural
• Plasticidade Neural: Abordagens Experimentais
• Alterações no Sistema Nervoso e experiência
• Implicações dos Estudos de Plasticidade Neural
• Referências
• Material complementar: Sei onde coçar, texto do livro Fantasmas
no Cérebro, de Vilayanur Ramachandran.
Comportamento e Plasticidade Neural
No estudo do comportamento, um dos princípios básicos afirma
que as propriedades funcionais do comportamento são determinadas pelas
relações, simples ou complexas, entre os estímulos e as respostas de um
organismo (Skinner, 1981). São essas relações que definem as
22
contingências de reforço que alteram a freqüência de classes de respostas.
Os objetivos primordiais da análise do comportamento relacionam-se com
a identificação, a descrição e a programação de relações condicionais
que estabelecem e controlam a probabilidade de classes de comportamento
(Baum, 1999; Catania, 1999).
As pesquisas orientadas por tais objetivos permitiram o acúmulo
de um conjunto de dados e procedimentos com sólida fundamentação
experimental e conceitual (Catania, 1999), cuja importância abrange não
apenas as questões investigadas pela Psicologia, mas também questões
de outras disciplinas científicas. Para citarmos um exemplo, a metodologia
e os conceitos derivados da análise do comportamento têm fornecido a
possibilidade de linhas de base comportamentais adequadas para as
investigações dos mecanismos biológicos subjacentes ao comportamento.
Assim, a validade do conhecimento científico sobre o comportamento
transcende os limites da Psicologia como disciplina científica específica e
integra-se a áreas de conhecimento com caráter multidisciplinar. Nesse
sentido é que se desenvolveram as disciplinas denominadas
Psicofarmacologia, Psicobiologia e Psicofisiologia
Mais recentemente, o desenvolvimento científico dessas e de outras
áreas propiciaram o surgimento de uma nova disciplina científica
integradora de metodologias e conceitos neurofisiológicos, psicológicos,
farmacológicos, bioquímicos, anatômicos e genéticos: a neurociência. O
seu princípio básico é que o ambiente físico e social determina a atividade
de células neurais, cuja função, por sua vez, determina o comportamento
(Kandel, Schwartz & Jessell, 1995; Strumwasser, 1994). O ambiente
fornece estímulos/informações que são captados por receptores sensoriais
e convertidos em impulsos elétricos, que são analisados e utilizados pelo
sistema nervoso central para o controle de respostas vegetativas, motoras
e cognitivas. Essas respostas constituem os padrões comportamentais
que atuam sobre e modificam esse ambiente.
Do mesmo modo que o comportamento altera a probabilidade de
outros comportamentos (Catania, 1999), a atividade neural altera a
probabilidade das funções neurais. Uma das evidências para este fato é
que tanto as situações de mera exposição à estimulação ambiental quanto
às situações de treinamento sistemático em aprendizagem resultam em
alterações no comportamento e nos circuitos neurais (Rosenzweig, 1996).
Ou seja, subjacentes aos processos comportamentais de aprendizagem
e de memória encontram-se as alterações funcionais e morfológicas que
ocorrem no sistema nervoso e que caracterizam a plasticidade neural
(Cuello, 1997). Desse modo, verifica-se que os processos comportamentais
e os processos de plasticidade neural possuem relações mais estreitas e
complexas do que se supôs durante muito tempo.
Em resumo, considera-se que tal como o ambiente diferencia e
modela a forma e função das respostas de um organismo, a interação
organismo-ambiente também diferencia e molda circuitos e redes neurais.
Cada indivíduo tem um padrão comportamental característico, resultante
de sua história pessoal de reforço, assim como tem um sistema nervoso
com características próprias, resultantes também de sua história de
interação com o ambiente externo. Essas características do sistema
nervoso atribuem uma individualidade neural ao indivíduo que se relaciona,
conseqüentemente, com a sua individualidade comportamental (Kandel &
Hawkins, 1992).
23
Plasticidade Neural: Abordagens Experimentais
Numa forma abrangente, plasticidade neural pode ser definida como
uma mudança adaptativa na estrutura e nas funções do sistema nervoso,
que ocorre em qualquer estágio da ontogenia, como função de interações
com o ambiente interno ou externo ou, ainda, como resultado de injúrias, de
traumatismos ou de lesões que afetam o ambiente neural (Phelps, 1990).
De acordo com Pia (1985), o termo plasticidade foi introduzido por
volta de 1930 por Albrecht Bethe, um fisiologista alemão. Plasticidade seria
a capacidade do organismo em adaptar-se às mudanças ambientais
externas e internas, graças à ação sinérgica de diferentes órgãos,
coordenados pelo sistema nervoso central (SNC). Os trabalhos pioneiros
de Santiago Ramón y Cajal e Eugênio Tanzi (citados por Rosenzweig,
1996) sobre regeneração neural apresentam relações mais diretas entre
plasticidade e o sistema nervoso. Como assinala Rosenzweig (1996), Tanzi,
propôs a hipótese de que durante a aprendizagem ocorreriam mudanças
plásticas em junções neuronais enquanto que Cajal aventou a possibilidade
de que o exercício mental poderia causar maior crescimento de
ramificações neurais.
Na literatura recente, os estudos sobre a plasticidade do sistema
nervoso podem ser classificados como pertencentes à categoria daqueles
que manipulam o ambiente e analisam as mudanças morfológicas e/ou
funcionais em circuitos neurais, denominados de estudos de plasticidade
neural ou à categoria de estudos que enfatizam as mudanças
comportamentais após traumatismos ou lesão do sistema nervoso,
denominados de recuperação de função (Kolb & Whishaw, 1989). Nestes
casos, agudamente, ocorrem mudanças no tecido nervoso que têm como
função a manutenção da homeostasia do organismo, além de promover a
cicatrização e o reparo tecidual (Finger & Almli, 1982; Kolb & Whishaw,
1989). Ao mesmo tempo, pode haver um período em que se observa uma
ausência ou diminuição na freqüência de uma ou mais classes de
comportamentos. Assim, o termo recuperação de função refere-se à
situação em que se observa aumento na freqüência ou magnitude de um
comportamento após um período de freqüência ou magnitude zero, como
conseqüência de trauma, intervenção cirúrgica ou lesão do sistema
nervoso.
As questões relativas à plasticidade neural têm sido analisadas
tanto ao nível molecular, focalizando mecanismos e processos celulares,
como também ao nível de sistemas neurais e comportamentais. Dentre
essas questões, destacam-se as referentes ao desenvolvimento neural, à
recuperação de função e à reorganização morfofuncional de circuitos
neurais correlacionados com a aprendizagem, consolidação de memória
ou com lesões neurais (Morris, Kandel & Squire, 1988; Weinberger &
Diamond, 1987). Na investigação das relações entre plasticidade neural e
comportamento, verificam-se diferentes níveis de análise comportamental,
incluindo desde a análise de respostas específicas que são aprendidas e
memorizadas, até a avaliação de padrões comportamentais mais
complexos, envolvidos na recuperação de função (Phelps, 1990;
Rosenzweig, 1996; Silva, Giese, Federov, Frankland & Kogan, 1998).
Alterações no Sistema Nervoso e experiência
O interesse pelos efeitos da experiência, do treino e do exercício
sobre o cérebro já aparece em relatos do século XVIII. Experimentos de
Bonnet e Malacarne (Bonnet 1779-1783; conforme citado por Rosenzweig,
1996) indicaram que os cérebros de animais que recebiam treinamento
24
sistemático durante anos tinham um cerebelo mais desenvolvido, com
maior número de circunvoluções. Contudo, os conceitos e proposições
relacionando plasticidade do SNC e comportamento, somente foram
provados experimentalmente a partir da década de 1960. Isso se deve a
um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley,
que iniciou uma profícua linha de investigações cujos procedimentos e
questões experimentais, embora sem que soubessem na época, como
afirma Rosenzweig (1996), eram similares àqueles de seus desconhecidos
predecessores.
O procedimento básico de Rosenzweig e colaboradores
(Rosenzweig, Krech, Bennett & Diamond, 1962) utilizou o arranjo de
gaiolas-viveiro diferentes daquelas comumente encontradas em biotérios,
contendo animais em conjunto ou alojados individualmente. No arranjo
ambiental utilizado as gaiolas-viveiro eram maiores e ofereciam uma grande
quantidade e variedade de estímulos, tais como objetos de formas
diferentes, espelhos, rodas de atividade, escadas, além de diferentes
possibilidades para conseguir alimento. Observou-se, consistentemente,
que, em diferentes idades, a interação com esses ambientes ricos em
estimulação resulta em alterações específicas do SNC. Entre essas
alterações estavam incluídos o aumento na espessura das camadas do
córtex visual, no tamanho de corpos neuronais e de núcleos dos corpos
neuronais, no número de sinapses e na área das zonas de contato sináptico,
no número de dendritos e de espinas dendríticas, no volume e no peso
cerebral, além de alterações em níveis de neurotransmissores. Em resumo,
todas as características morfológicas e funcionais de áreas corticais
sofreram alterações importantes em função da mera exposição e da
interação com ambientes que fornecem diversidade de estímulos
(Rosenzweig, 1996).
A manipulação das condições de estímulo, restringindo-as, como
nos estudos de privação sensorial (Hubel & Wiesel, 1965), ou otimizandoas, como nos estudos de exposição a ambientes considerados ricos em
estimulação (Krech, Rosenzweig & Bennett, 1960; Rosenzweig, 1996)
constitui uma das abordagens clássicas no estudo da plasticidade neural.
Esses estudos mostraram novas e interessantes perspectivas para a
análise dos efeitos da experiência sobre o sistema nervoso.
Implicações dos Estudos de Plasticidade Neural
De um modo geral, pode-se afirmar que a análise da plasticidade
neural e de recuperação de função, em suas diferentes abordagens, tem
sido realizada por meio de investigações que utilizam métodos de análise
do comportamento aprendido associados à metodologia neurobiológica,
principalmente à de lesão e/ou estimulação neural. O desenvolvimento
histórico desse conhecimento biomédico tem sido claramente ligado ao
uso de animais, principalmente mamíferos e aves, na pesquisa básica
sobre aspectos plásticos do SNC e processos biológicos relacionados com
os comportamentos, aprendizagem e memória.
As últimas quatro décadas do século XX culminaram com a
chamada década do cérebro nos anos 1990 e constituem um período
fascinante no que concerne à identificação de processos de plasticidade
neural, à busca de mecanismos subjacentes a esses processos e às
interrelações com as mudanças comportamentais (Rosenzweig, 1996;
Strumwasser, 1994). Os avanços recentes no conhecimento da biologia
molecular têm levado a novas perspectivas em termos de controle de
mecanismos de plasticidade neural. O próprio conceito de sinapse sofreu
uma modificação na medida em que passou a ser considerado como um
25
processo de comunicação neuronal, bidirecional e automodificável (Jessell
& Kandel, 1993). As interações sinápticas entre neurônios envolvem
interação elétrica e química complexas, que dependem do meio extracelular
e de sistemas especiais de receptores celulares (Izquierdo, 1992; Izquierdo
& cols, 1999). A ativação desses mecanismos receptores desencadeiam
sistemas de sinalização intracelular, envolvendo segundo-mensageiros que
podem regular canais iônicos, coordenar mecanismos de ativação e de
fosforilação de proteínas e, ainda, modificar proteínas regulatórias da
transcrição gênica. A ativação de mecanismos de transcrição gênica e de
regulação de síntese protéica vão resultar em maior disponibilidade de
proteínas que serão utilizadas como o material básico da célula. Assim,
maior síntese proteica pode garantir mudanças estruturais de longa duração
nas sinapses, contribuindo tanto para a função e comunicação sináptica,
quanto para a organização funcional de circuitos locais. Sem dúvida
alguma, as aplicações e implicações de todo esse conhecimento constituem
desafios para todos aqueles interessados em comportamento e sistema
nervoso.
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Material complementar
Sei onde coçar
Texto do livro Fantasmas no Cérebro, de Vilayanur Ramachandran.
Tom Sorenson se lembra nitidamente das horripilantes
circunstâncias que levaram à perda de seu braço. Depois de jogar futebol,
estava dirigindo de volta para casa, cansado e faminto, quando um carro
na faixa oposta deu uma guinada na frente dele. Os freios guincharam, o
carro de Tom rodopiou fora de controle e ele foi ejetado do assento e
lançado contra a fábrica de gelo à margem da rodovia. Enquanto era
arremessado pelo ar, Tom olhou para trás e viu que sua mão ainda estava
no carro, segurando a almofada do assento separada de seu corpo como
um adereço num filme de terror de Freddy Krueger. Em conseqüência
desse terrível acidente, Tom perdeu a parte do braço esquerdo logo abaixo
do cotovelo. Tinha 17 anos, faltando apenas três meses para terminar o
Ensino Médio.
Nas semanas seguintes, embora sabendo ter perdido o braço, Tom
ainda podia sentir sua presença espectral abaixo do cotovelo. Podia mexer
cada "dedo", "estender o braço" e "pegar" objetos que estavam ao alcance
da mão. Realmente, seu braço fantasma parecia capaz de fazer tudo que
o braço real tinha feito automaticamente, como aparar golpes, evitar quedas
ou dar tapinhas carinhosos nas costas do irmãozinho. Como Tom era
canhoto, seu fantasma sempre queria pegar o telefone quando este tocava.
Tom estava louco. A impressão de que o braço perdido ainda estava
ali é um exemplo clássico de membro fantasma, um braço ou perna que
27
subsiste indefinidamente nas mentes de pacientes muito tempo depois de
ter sido perdido, num acidente ou amputado por um cirurgião. Alguns
despertam da anestesia e se mostram incrédulos quando lhe dizem que
seu braço teve de ser sacrificado, porque ainda sentem nitidamente sua
presença. Só quando olham por baixo dos lençóis é que chegam a chocante
constatação de que o membro realmente se foi. Além disso, alguns desses
pacientes experimentam dores terríveis no braço, mão ou dedo fantasma,
a ponto de pensar em suicídio. A dor não somente é implacável como
também intratável; ninguém tem a menor idéia de como surge ou de como
enfrentá-la.
Como médico, eu sabia que a dor em membro fantasma representa
um problema: clínico sério. A dor crônica num membro real, como a causada
por artrite nas articulações ou a dor nas costas, já é de tratamento difícil,
mas como tratar a dor num membro que não existe? Como cientista, eu
também tinha curiosidade para saber, em primeiro lugar, por que o
fenômeno ocorre: por que um braço, persiste na mente do paciente muito
tempo depois de ser removido? Por que a mente simplesmente não aceita
a perda e "remodela" a imagem do corpo? Sem dúvida, isto acontece em
alguns pacientes, mas geralmente leva anos ou décadas. Por que décadas,
por que não apenas uma semana ou um dia? Percebi que um estudo
deste fenômeno poderia não só nos ajudar a compreender a questão de
como o cérebro enfrenta uma perda repentina e importante, mas também
contribuir para abordar o debate mais fundamental sobre natureza versus
criação até que ponto a imagem do nosso corpo, assim como outros
aspectos de nossas mentes, é determinada pelos genes e até que ponto
é modificada pela experiência.
A persistência de sensação em membros muito tempo depois da
amputação já fora observada no século XVI pelo cirurgião francês Ambroise
Paré, e não é surpresa que exista um minucioso folclore em torno deste
fenômeno. Depois que perdeu o braço direito num malogrado ataque a
Santa Cruz de Tenerife, Lord Nelson sofreu dores terríveis no membro
fantasma, inclusive a inconfundível sensação de dedos se fincando na
palma da mão inexistente. O surgimento dessas sensações
fantasmagóricas no membro perdido levou o Senhor dos Mares a proclamar
que este fantasma era "uma prova direta da existência da alma". Pois se
um braço pode existir depois de retirado, por que a pessoa inteira não
pode sobreviver à aniquilação física do corpo? É uma prova, afirmava
Lord Nelson, de que o espírito continuava existindo muito tempo depois
de ter se livrado de sua carcaça.
O eminente médico da Filadélfia Silas Weir Mitchell cunhou a
expressão "membro fantasma" depois da Guerra Civil. Naquela época,
anterior aos antibióticos, a gangrena era um resultado comum de ferimentos
e os cirurgiões serravam membros infectados de milhares de soldados
feridos. Estes voltavam para casa com fantasmas, provocando muitas
especulações sobre o que poderia causá-los. O próprio Weir Mitchell ficou
tão surpreso com o fenômeno que, usando um pseudônimo, publicou o
primeiro artigo sobre o assunto numa revista popular chamada Lippincotts
journal, para não se arriscar a ser ridicularizado pelos colegas se o
divulgasse numa publicação médica profissional. Pensando bem,
fantasmas são um fenômeno mal assombrado.
Desde o tempo de Weir Mitchell tem havido todo tipo de
especulações sobre fantasmas, que vão do extraordinário ao ridículo.
Recentemente, há 15 anos, um trabalho publicado no Canadian Journal
of Psychiatry declarou que membros fantasmas são meramente o resultado
da racionalização do desejo. Os autores argumentavam que o paciente
quer desesperadamente seu braço de volta e portanto sente um fantasma
28
da mesma forma que uma pessoa pode ter sonhos recorrentes ou até ver
"espíritos" de um pai falecido recentemente. Este argumento, como
veremos, é um completo absurdo.
Uma segunda e mais popular explicação para os fantasmas é que
as extremidades esgarçadas e enroscadas dos nervos no coto (neuromas)
que originalmente alimentavam a mão tendem a ficar inflamadas e irritadas,
induzindo assim os centros superiores do cérebro a pensar que o membro
perdido ainda está ali. Embora haja muitíssimos problemas com esta teoria
da irritação dos nervos, é uma explicação simples e conveniente e por
essa razão a maioria dos médicos ainda se apega a ela.
Os neurologistas do século XIX e início do XX eram astutos
observadores clínicos, e pode-se aprender muitas lições valiosas com a
leitura desses relatos. Estranhamente, porém, eles não deram o óbvio
passo seguinte de fazer experiências para descobrir o que poderia estar
acontecendo nos cérebros desses pacientes; sua ciência era mais
aristotélica do que galileana. Dado o imenso sucesso que se tem obtido
com o método experimental em quase todas as outras ciências, não está
na hora de o importarmos para a neurologia?
Como a maioria dos médicos, fiquei intrigado com os fantasmas
desde a primeira vez que os encontrei e assim continuo desde então.
Além de braços e pernas fantasmas - que são comuns entre amputados também tenho encontrado mulheres com seios fantasmas após
mastectomia radical e até um paciente com um apêndice fantasma: a
característica espasmódica da apendicite não diminuiu depois da remoção
cirúrgica, de tal modo que o paciente se recusava a acreditar que o cirurgião
o tinha retirado! Quando estudante de medicina, eu ficava tão frustrado
quanto os próprios pacientes, e os livros que consultava apenas
aprofundavam o mistério. Li sobre um paciente que sentia ereções
fantasmas depois de seu pênis ter sido amputado, uma mulher com cãibras
menstruais após uma histerectomia e um senhor que tinha nariz e rosto
fantasmas depois que o nervo trigêmeo que enerva sua face fora avariado
num acidente.
Todas estas experiências clínicas permaneceram guardadas no
meu cérebro, adormecidas, até cerca de seis anos atrás, quando meu
interesse foi reaceso por um trabalho científico publicado em 1991 pelo
Dr. Tim Pons, do Instituto Nacional de Saúde, trabalho que me impeliu a
um rumo inteiramente novo de pesquisa e que posteriormente trouxe Tom
a meu laboratório. Mas, antes de continuar com esta parte da história,
precisamos examinar atentamente a anatomia do cérebro particularmente
como várias partes do corpo, como os membros, estão mapeadas no córtex
cerebral, o grande revestimento convoluto da superfície externa do cérebro.
Isto nos ajudará compreender o que Pons descobriu e, por sua vez, como
os membros fantasmas aparecem.
Durante as décadas de 1940 a 1950, o brilhante neurocirurgião
canadense Wilder Penfield realizou amplas cirurgias de cérebro em pacientes
sob anestesia local (não há receptores de dor no cérebro, embora esta seja
uma massa de tecido nervoso). Muitas vezes, grande parte do cérebro ficava
exposta durante a operação e Penfield aproveitava esta oportunidade para
fazer experiências como nunca tinham sido tentadas antes. Estimulava regiões
específicas dos cérebros de pacientes com um eletrodo e simplesmente lhes
perguntava o que sentiam. Todos os tipos de sensações, imagens e até
lembranças, eram trazidos à tona pelo eletrodo, e as áreas do cérebro que
eram responsáveis puderam ser mapeadas.
Entre outras coisas, Penfield descobriu uma estreita faixa que vai
de alto a baixo em ambos os lados do cérebro onde seu eletrodo produzia
29
sensações localizadas em várias partes do corpo. Na parte de cima do
cérebro, na fenda que separa os dois hemisférios, a estimulação elétrica
provocava sensações nos órgãos genitais. Estímulos ali perto despertavam
sensações nos pés. Seguindo esta faixa do cérebro de cima para baixo,
Penfield descobriu áreas que recebem sensações das pernas e do tronco,
da mão (uma grande região com uma representação bem destacada do
polegar), da face, dos lábios e finalmente do tórax e da laringe. Este
"homúnculo sensorial", como agora é chamado, forma uma representação
exageradamente distorcida do corpo na superfície do cérebro, com as
partes que são especialmente importantes ocupando áreas
desproporcionalmente grandes. Por exemplo, a área envolvida com os
lábios ou com os dedos ocupa tanto espaço quanto à área envolvida com
todo o tronco do corpo. Presumivelmente é assim porque os lábios e dedos
são altamente sensíveis ao toque e capazes de discriminação muito
apurada, enquanto o tronco é consideravelmente menos sensível, exigindo
menos espaço cortical. Na maior parte, o mapa é bem ordenado, embora
esteja de cabeça para baixo: o pé é representado no alto e os braços
estendidos são na base. Contudo, depois de um cuidadoso exame, você
verá que o mapa não é inteiramente contínuo. O rosto não está perto do
pescoço, onde deveria, mas abaixo da mão. Os órgãos genitais, em vez
de estarem entre as coxas, se localizam abaixo do pé.
Pontos da superfície do corpo que produziam
sensações retardadas na mão fantasma (o braço
esquerdo do paciente tinha sido amputado dez anos
antes do nosso teste). Observem o mapa completo de
todos os dedos (etiquetados da 1 a 5) na face e um
segundo mapa na parte superior do braço. A
informação sensorial destas duas nesgas de pele
agora está aparentemente ativando o território da
mão no cérebro (ou no tálamo ou no córtex). Assim,
quanto antes tais pontos são tocados, as sensações
são experimentadas como originadas da mão perdida.
30
Estas áreas podem ser mapeadas ainda com maior precisão em
outros animais, particularmente macacos. O pesquisador introduz uma
comprida e fina agulha de aço ou tungstênio no córtex somatossensório
do macaco - a faixa de tecido cerebral descrita antes. Se a ponta da agulha
chegar a ficar bem próxima do corpo celular de um neurônio e se esse
neurônio está ativo, gerará minúsculas correntes elétricas, que são
captadas pelo eletrodo da agulha e amplificadas. O sinal pode ser exibido
num osciloscópio, possibilitando monitorar a atividade desse neurônio.
Por exemplo, se você introduzir um eletrodo no córtex somatossensório
do macaco e tocar numa parte específica do seu corpo, a célula se excitará.
Cada célula tem seu território na superfície do corpo, sua pequena nesga de
pele, por assim dizer a qual ela responde. Chamamos isso de campo receptivo
da célula. Existe no cérebro um mapa do corpo inteiro, com cada metade do
corpo mapeada no lado oposto do cérebro.
Embora sejam pacientes experimentais lógicos para se examinar
a estrutura e a função detalhadas das regiões sensoriais do cérebro, os
animais têm um problema óbvio: macacos não sabem falar. Portanto, não
podem dizer ao experimentador, como faziam os pacientes do Penfield, o
que estão sentindo. Assim, perde-se uma importante dimensão quando
se usam animais nessas experiências
Mas, apesar dessas óbvias limitações, pode-se aprender muito,
fazendo o tipo certo de experimento. Por exemplo, como já observamos,
uma importante pergunta se refere ao problema natureza versus criação:
será que estes mapas do corpo na superfície do cérebro são fixos, ou
podem mudar com a experiência à medida que evoluímos de recémnascidos para a infância, para a adolescência e para a idade adulta? E
mesmo que os mapas já estejam lá ao nascermos, até que ponto podem
ser modificados no adulto?
Foram estas questões que levaram Tim Pons e seus colegas a
embarcar na pesquisa. Sua estratégia foi registrar sinais dos cérebros de
macacos que tinham sido submetidos a uma rizotomia dorsal um
procedimento em que todas as fibras nervosas que transportam
informações sensoriais de um braço para a medula espinhal são
completamente cortadas. Onze anos depois da cirurgia, eles anestesiaram
os animais, abriram seus crânios e fizeram registros a partir do mapa
somatossensório. Como o braço paralisado do macaco não estava
enviando mensagens ao cérebro, não se esperava registrar quaisquer
sinais quando você tocasse na mão inútil do macaco e registrasse a partir
da "área da mão" no cérebro. Deveria haver uma grande nesga de córtex
silenciosa correspondente à área afetada.
De fato, quando os pesquisadores bateram na mão inútil, não houve
nenhuma atividade nesta região. Mas, para sua surpresa, eles descobriram
que, quando tocavam no rosto do macaco, as células cerebrais
correspondentes à mão "morta" começam a se excitar vigorosamente (o
mesmo aconteceu com as células correspondentes à face, mas isso já
era esperado.) Aparentemente, a informação sensorial da face do macaco
não somente ia para a área da face no córtex, como aconteceria num
animal normal, mas também tinha invadido o território da mão paralisada!
As implicações dessas descobertas são espantosas: significam que
você pode mudar o mapa; que você pode alterar o conjunto de circuitos
cerebrais de um animal adulto, e que as conexões podem ser modificadas
em distâncias que abrangem um centímetro ou mais.
Depois de ler o trabalho de Pons, pensei: "Meu Deus! Será que
esta pode ser uma explicação para os membros fantasmas?" O que o
31
macaco "sentiu" realmente quando sua face estava sendo tocada? Já que
o córtex de sua "mão" também estava sendo excitado, será que percebia
sensações originando-se da mão inútil como também da face? Ou usaria
centros superiores do cérebro para reinterpretar as sensações
corretamente como procedentes apenas do rosto? É claro que o macaco
manteve silêncio sobre o assunto.
São necessários anos para treinar um macaco para executar até
tarefas muito simples, quanto mais sinalizar que parte do seu corpo estava
sendo tocada. Então me ocorreu a idéia de que você não tem de usar um
macaco. Por que não responder a mesma pergunta tocando o rosto de
um paciente humano que perdeu um braço? Telefonei aos meus colegas
Dr. Mark Johnson a Dra. Rica Finkelstein, da área de cirurgia ortopédica,
e perguntei: "Vocês têm por aí algum paciente que tenha perdido um braço
recentemente?".
Foi assim que cheguei a conhecer Tom. Visitei-o imediatamente e
perguntei se gostaria de participar de um estudo. Embora inicialmente
tímido e reticente, como é do seu estilo, Tom logo se mostrou ansioso em
participar de nossa experiência. Tive o cuidado de não lhe dizer o que
esperávamos descobrir, para não interferir em suas respostas. Embora
extenuado pelas "comichões" e sensações dolorosas em seus dedos
fantasmas, estava alegre, aparentemente satisfeito por ter sobrevivido ao
acidente.
Com Tom sentado confortavelmente em meu laboratório no subsolo,
coloquei uma venda sobre seus olhos, porque não queria que visse onde
eu o estava tocando. Em seguida peguei um cotonete comum e comecei
a tocar de leve várias partes da superfície do seu corpo, pedindo-lhe que
me dissesse onde experimentava as sensações. Meu aluno, que observava
tudo, pensou que eu estava louco.
Esfreguei seu queixo.
- O que esta sentindo?
- Você está tocando meu queixo.
- Outra coisa mais?
- Hei, é engraçado disse Tom. Você está tocando meu polegar
desaparecido, meu polegar fantasma.
Movimentei o cotonete para seu lábio superior.
- Que tal aqui?
- Está tocando meu dedo indicador. E meu lábio superior.
- É mesmo? Tem certeza?
- Sim. Estou sentindo nos dois lugares.
- E aqui? Passei o cotonete em seu maxilar inferior.
- É meu dedo mínimo desaparecido.
Logo descobri um mapa completo da mão de Tom - em seu rosto!
Compreendi que o que eu estava vendo era talvez um correlato perceptivo
direto do remapeamento que Tim Pons tinha visto em seus macacos. Pois
não há outra maneira de explicar por que o toque numa área tão distante do
tronco isto é, o rosto gerasse sensações na mão fantasma; o segredo está
no mapeamento peculiar das partes do corpo no cérebro, com o rosto se
localizando logo abaixo da mão.
Continuei este procedimento até ter explorado toda a superfície do
corpo do Tom. Quando tocava seu tórax, o ombro direito, a perna direita
ou a parte inferior das costas, ele tinha sensações apenas nesses lugares
e não no fantasma. Mas também descobri um segundo e bem traçado
"mapa" de sua mão desaparecida guardado na parte superior do braço
32
esquerdo, poucos centímetros acima da linha da amputação. O toque na
superfície da pele desse segundo mapa também provocava sensações
localizadas precisamente em cada dedo: um toque aqui e ele diz: "Oh,
esse é o meu polegar", e assim por diante.
Por que havia dois mapas em vez de apenas um? Se você olhar
novamente o mapa de Penfield, verá que a área da mão no cérebro é
flanqueada embaixo pela área do rosto e acima pela área da parte superior
do braço e do ombro. A informação procedente da área da mão de Tom foi
perdida depois da amputação, e, conseqüentemente, as fibras sensoriais
que se originavam na face de Tom que normalmente ativam apenas a
área da face em seu córtex agora invadiam o território desocupado da
mão e começavam a movimentar as células ali. Assim, quando eu tocava
o rosto de Tom, ele também experimentava sensações na mão fantasma.
Mas, se a invasão do córtex da mão também resulta em fibras sensoriais
que normalmente inervam a região cerebral acima do córtex da mão (isto
é, fibras que se originam na parte superior do braço e no ombro), então o
toque em pontos na parte superior do braço devia também provocar
sensações na mão fantasma. E de fato consegui mapear estes pontos no
braço acima do coto de Tom. Assim, este tipo de arranjo é precisamente o
que se esperaria: um feixe de pontos na face que despertam sensações
no fantasma e um segundo feixe na parte superior do braço,
correspondendo as duas partes do corpo que são representadas em cada
lado (acima e abaixo) da representação do cérebro.
Não é freqüente no campo da ciência (especialmente na neurologia)
que se possa fazer uma previsão simples como esta e confirmá-la em
alguns minutos de exploração, usando um cotonete. A existência de dois
feixes de pontos sugere firmemente que o remapeamento do tipo visto
nos macacos de Pons também ocorre no cérebro humano. Mas ainda
havia uma dúvida incômoda: como podemos ter certeza de que essas
mudanças estão realmente se realizando - de que o mapa realmente muda
em pessoas como Tom? Para obter uma prova mais direta, tiramos
vantagem de uma moderna técnica de neuroimagiamento chamada
magnetoencefalografia (MEG), que se baseia no princípio de que, se você
tocar diferentes partes do corpo, a atividade elétrica localizada despertada
no mapa de Penfield pode ser medida como mudanças em campos
magnéticos do couro cabeludo. A grande vantagem da técnica é que não
é invasiva; não é preciso abrir o couro cabeludo do paciente para olhar o
cérebro.
Usando a MEG, é relativamente fácil numa sessão de apenas duas
horas, mapear a superfície de todo o corpo na superfície do cérebro de
qualquer pessoa disposta a ficar sentada ali durante esse tempo. Sem
causar surpresa, o mapa resultante é bem semelhante ao mapa original
do homúnculo de Penfield, e há pouca variação de pessoa a pessoa na
disposição geral do mapa. Quando aplicamos MEGs em quatro pessoas
de braço amputado, porém, descobrimos que os mapas tinham mudado
em grandes distâncias, exatamente como tínhamos previsto.
As implicações são impressionantes. Antes de tudo, sugerem que
mapas do cérebro podem mudar, às vezes com espantosa rapidez. Esta
descoberta contradiz flagrantemente um dos dogmas mais
generalizadamente aceitos em neurologia: a natureza estável das conexões
no cérebro humano adulto. Sempre se supôs que, uma vez que este
sistema de circuitos, inclusive o mapa de Penfield, tenha sido montado na
vida fetal ou na mais tenra infância, muito pouco se pode fazer para
modificá-lo na idade adulta. Realmente, esta suposta ausência de
plasticidade no cérebro adulto é freqüentemente invocada para explicar
por que há tão pouca recuperação de funções após uma lesão cerebral e
33
por que doenças neurológicas são tão difíceis de tratar. Mas a prova de
Tom mostra ao contrário do que é ensinado nos livros que novos caminhos,
altamente precisos e funcionalmente eficientes, podem aparecer no cérebro
adulto quatro semanas depois de uma lesão. Não se conclui
necessariamente que desta descoberta surgirão imediatamente novos
tratamentos revolucionários para as síndromes neurológicas, mas ela
proporciona realmente alguns motivos para otimismo.
Em segundo lugar, as descobertas podem ajudar a explicar a própria
existência de membros fantasmas. A explicação médica mais popular,
mencionada antes, e que nervos que anteriormente alimentavam a mão
começam a enervar o coto. Além disso, estas extremidades nervosas
esgarçadas formam pequenos blocos de tecido cicatrizado chamados
neuromas, que podem ser muito dolorosos. Quando os neuromas irritados,
diz a teoria, enviam impulsos de volta à área original da mão no cérebro,
de forma que o cérebro é induzido a pensar que a mão ainda existe: daí o
membro fantasma e a idéia de que a dor associada surge porque os
neuromas estão doloridos.
Com base neste frágil raciocínio, os cirurgiões têm idealizado vários
tratamentos para dor em um membro fantasma, em que cortam e removem
neuromas. Alguns pacientes experimentam um alivio temporário, mas,
surpreendentemente, tanto o fantasma quanto a dor associada geralmente
voltam violentamente. Para aliviar este problema, às vezes os cirurgiões
realizam uma segunda ou mesmo uma terceira amputação (tornando o
coto cada vez mais curto), mas, quando se pensa sobre isto, vê-se que é
logicamente absurdo. Por que uma segunda amputação iria ajudar? Seria
de esperar um segundo fantasma, e de fato é o que geralmente acontece;
é um problema de regressão interminável.
Alguns cirurgiões chegam a fazer rizotomias dorsais para tratar de
dor em membro fantasma, cortando os nervos sensoriais que vão para a
medula espinhal. Às vezes, funciona; às vezes, não. Outros tentam até o
procedimento mais drástico de cortar a parte traseira da própria medula
espinhal uma cordotomia para impedir que os impulsos atinjam o cérebro,
mas isso, também, é muitas vezes ineficaz. Ou vão até o tálamo, uma
estação de retransmissão do cérebro que processa os sinais antes que
sejam enviados ao córtex, e novamente verificam que não ajudaram o
paciente. Podem caçar o fantasma cada vez mais profundamente no
cérebro, mas realmente nunca vão encontrá-lo.
Por quê? Um dos motivos, seguramente, é que o fantasma não
existe em nenhuma destas áreas; existe em partes mais centrais do
cérebro, onde tem ocorrido remapeameto. Para falar francamente, o
fantasma surge não do coto mas do rosto e da maxila, porque toda vez
que Tom sorri ou movimenta o rosto e os lábios, o impulso ativa a área da
"mão" em seu córtex, criando a ilusão de que sua mão ainda está ali.
Estimulado por todos estes sinais falsos, o cérebro de Tom literalmente
tem a alucinação de seu braço e talvez esta seja a essência de um membro
fantasma. Se for este o caso, a única forma de se livrar de um fantasma
será remover sua maxila. E, pensando bem, isso também não ajudaria.
Ele provavelmente terminaria com uma maxila fantasma. E, novamente
aquele problema de regressado interminável.
Mas o remapeamento não pode ser toda a história. Primeiro, não
explica por que Tom ou outros pacientes experimentam a sensação de serem
capazes de movimentar seus fantasmas voluntariamente ou por que o
fantasma pode mudar sua postura. Onde se originam estas sensações de
movimento? Segundo, o remapeamento não é responsável pelo que mais
seriamente preocupa médico e paciente a gênese da dor fantasma.
34
Quando pensamos em sensações originárias da pele, geralmente
pensamos apenas em toque, tato. Mas, na verdade, vias neurais que
medeiam sensações de calor, frio e dor também se originam na superfície
da pele. Estas sensações têm suas próprias áreas alvo ou mapas no
cérebro, mas os caminhos usados por elas podem estar entrelaçados uns
com os outros em formas complicadas. Se é este o caso, será que tal
remapeamento também poderia ocorrer nestas vias evolutivamente mais
velhas, independentemente do remapeamento que ocorre para o toque?
Em outras palavras, o remapeamento visto em Tom e nos macacos de
Pons é peculiar ao toque, ou aponta para um princípio bem geral onde
ocorreriam sensações de calor, frio, dor ou vibração? E se esse
remapeamento ocorresse, haveria casos de "cruzamento de linhas"
acidental, de forma que uma sensação de toque evocasse calor ou dor?
Ou elas permaneceriam separadas? A questão de como milhões de
ligações neurais no cérebro são conectadas tão precisamente durante o
desenvolvimento e até que ponto esta precisão é preservada quando elas
são reconhecidas após uma lesão é de grande interesse para os cientistas
que estão tentando compreender o desenvolvimento das vias cerebrais.
Para investigar isso, coloquei uma gota de água morna no rosto de
Tom. Ele a sentiu ali imediatamente, mas também disse que sua mão
fantasma sentia o calor de outra forma. Certa vez, quando a água
acidentalmente escorreu pelo rosto, ele exclamou com visível surpresa
que podia realmente sentir a água quente escorrendo pelo braço fantasma.
Demonstrou isto usando sua mão normal para traçar o caminho da água
descendo pelo braço. Em todos os meus anos de clínica neurológica, nunca
tinha visto algo tão impressionante localizando mal uma sensação complexa
como uma "gota d´água" escorrendo do rosto para sua mão fantasma.
Essas experiências sugerem que novas conexões altamente
precisas e organizadas podem ser formadas no cérebro adulto em poucos
dias. Mas não nos dizem como estes novos caminhos surgem realmente,
que mecanismos subjacentes se encontram ao nível celular.
Vejo duas possibilidades. Primeiro, a reorganização pode envolver
o brotamento o crescimento real de novas ramificações a partir das fibras
nervosas que normalmente inervam a área da face em direção as células
da área da mão no córtex. Se essa hipótese fosse verdadeira, seria
realmente impressionante, já que é difícil ver como brotamentos altamente
organizados poderiam se efetuar em distâncias relativamente longas (no
cérebro, alguns milímetros podem muito bem equivaler a mais de um
quilômetro) e num período tão curto. Além disso, mesmo que ocorra o
brotamento, como as novas fibras "saberiam" para onde se dirigir? Pode
se imaginar uma mistura altamente amontoada de conexões, mas não
vias organizadas com precisão.
A segunda possibilidade é que há de fato uma tremenda
redundância de conexões, no cérebro adulto normal, mas que a maioria
delas não funciona ou não tem uma função óbvia. Como tropas da reserva,
podem ser convocadas para entrar em ação apenas quando necessário.
Assim, mesmo em cérebros adultos normais saudáveis poderia haver
informações sensoriais da face para o mapa da face no cérebro e também
para a área do mapa correspondente à mão. Se for assim, devemos supor
que esta energia oculta ou escondida é ordinariamente inibida pelas fibras
sensoriais procedentes da mão real. Mas, quando a mão é extirpada, esta
informação silenciosa procedente da pele do rosto é desmascarada e
autorizada a se expressar, de forma que um toque na face agora ativa a
área da mão e leva a sensações na mão fantasma. Assim, a cada vez que
assobia, Tom pode sentir um formigamento na mão fantasma.
35
Não temos no presente nenhuma forma de fazer facilmente uma
distinção entre estas duas teorias, embora meu palpite seja que ambos os
mecanismos estão em atividade. Afinal de contas, tínhamos visto o efeito
em Tom em menos de quatro semanas e este parece um tempo curto
demais para o brotamento se efetuar. Meu colega do Hospital Geral de
Massachusetts, Dr. David Borsook, viu efeitos semelhantes num paciente,
apenas 24 horas depois da amputação, e não há possibilidade de
ocorrência de brotamento num período tão curto. A resposta final virá do
rastreamento simultâneo de mudanças perceptivas e mudanças cerebrais
usando a técnica de imageamento num paciente, durante um período de
vários dias. Se Borsook e eu estivermos certos, a imagem completamente
estática que se obtém olhando os diagramas de livros é altamente
enganadora e precisamos repensar inteiramente o significado dos mapas
do cérebro. Longe de indicar uma localização especifica na pele, cada
neurônio no mapa se encontra num estado de equilíbrio dinâmico com
outros neurônios adjacentes; sua significação depende acentuadamente
do que outros neurônios da vizinhança estão (ou não) fazendo.
Essas descobertas levantam uma pergunta óbvia: e se for perdida
alguma parte do corpo que não a mão? Ocorrerá o mesmo tipo de
remapeamento? Quando meus estudos sobre Tom foram publicados,
recebi muitas cartas e telefonemas de amputados querendo saber mais.
Alguns tinham sido informados do que sensações fantasmas são
imaginárias e ficaram aliviados ao, saber que isso não é verdade. Os
pacientes sempre acham reconfortante saber que há uma explicação lógica
para seus sintomas aparentemente inexplicáveis; nada é mais insultuoso
para um paciente do que ser informado de que sua dor está "toda na
mente".
Os estudos de membros fantasmas oferecem fascinantes
vislumbres da arquitetura do cérebro, de sua espantosa capacidade de
crescimento e renovação. A dor real, como a dor de câncer, é bem difícil
de tratar; imaginem o desafio de tratar a dor num membro que não existe!
No momento, pode se fazer muito pouco para aliviar tal dor, mas talvez o
remapeamento que observamos em Tom possa ajudar a explicar por que
acontece. Sabemos, por exemplo, que a dor fantasma intratável pode se
desenvolver semanas ou meses depois que o membro é amputado. Talvez,
enquanto o cérebro se adapta e as células lentamente fazem novas
conexões, haja um leve erro no remapeamento, de forma que a informação
sensorial vinda dos receptores de toque seja acidentalmente conectada
às áreas de dor no cérebro. Se isso acontecesse, então, a cada vez que o
paciente sorrisse ou roçasse acidentalmente a bochecha, as sensações
de toque seriam sentidas como dor torturante. Esta, quase certamente,
não é toda explicação para a dor fantasma, mas é um bom começo.
Um dia, quando Tom saía do meu consultório, não pude resistir a
lhe fazer uma pergunta óbvia. Durante as últimas quatro semanas, tinha
percebido alguma vez em sua mão fantasma algumas dessas peculiares
sensações mencionadas, quando seu rosto era tocado por exemplo,
quando fazia a barba toda manhã?
"Não, não senti", respondeu, "mas como o senhor sabe, minha
mão fantasma às vezes tem umas comichões malucas e nunca sabia o
que fazer. Mas agora", disse ele, batendo de leve na bochecha a piscando
o olho para mim, "sei exatamente onde coçar!"
36
Material de apoio da atividade
Os neurônios são insignificantes em
termos numéricos no nosso cérebro?
Textos extraídos do livro O cérebro nosso de cada dia, de Suzana
Herculano-Houzel, Editora Vieira e Lent
O cérebro nosso de cada dia
O mito dos 10% do cérebro
Quanto do seu cérebro você usa? E da sua capacidade? E do seu
potencial?
Quem já não ouviu essa frase "Usamos apenas 10% do cérebro"?
Em 1999, quando passei a trabalhar em divulgação científica, quis começar
investigando o que o público conhecia e pensava sobre o cérebro. Numa
pesquisa chamada "Você conhece seu cérebro?", perguntei a 2 mil
cariocas, entre outras coisas, se eles concordavam com a célebre frase. A
metade concordou. Fiz a mesma pergunta a 35 neurocientistas, e a frase
foi prontamente recusada. A razão? Essa história de usar 10% do cérebro
nada mais é do que um mito.
Vamos deixar claro logo do começo: não há qualquer razão científica
para supor que usamos 10% do nosso cérebro. Nem 10% dos nossos
neurônios. Nem 10% da nossa capacidade. Todas as evidências sugerem
o contrário: usamos nosso cérebro inteiro. Os 10% ficam por conta da
imaginação de quem conseguiu convencer quase metade da população
do Rio de Janeiro a aceitar esse mito.
É verdade que, a primeira vista, a idéia de usar somente 10% do
cérebro parece muito convidativa. Usando apenas 10% do cérebro,
teríamos 90% de reserva, e se conseguíssemos aprender a usar esse
"potencial" poderíamos ficar dez vezes mais inteligentes, memorizar dez
vezes mais fatos, fazer contas dez vezes mais rápido... Só que não é
assim.
O pior é que as conseqüências são graves. Quem acredita que
90% do seu cérebro são dispensáveis não tem por que evitar choques na
cabeça, usando capacete na motocicleta ou cinto de segurança no carro.
Quem não sabe que usa seu cérebro inteiro a todo momento ainda não
faz idéia da maravilha que tem dentro da cabeça. E de quebra fica
susceptível ao assédio de livros e cursos que se autodenominam
"científicos" e pretendem ensinar "como usar os outros 90%". Espalhar o
mito de que usamos 10% do cérebro ou da sua capacidade é um dos
grandes desfavores que a mídia já fez ao homem e à ciência.
É difícil definir como surgiu esse mito, mas há uma possibilidade
interessante. No começo do século XX, quando a ciência tentava identificar
a localização das funções mentais no cérebro, um influente psicólogo
americano, Karl Lashley (1890 1958), tinha uma opinião diferente. Lashley
acreditava que o importante era haver uma massa suficiente de neurônios
distribuída pelo cérebro, e não sua posição específica dentro dele. Um de
seus principais argumentos era o de que a maior parte do córtex cerebral
de ratos de laboratório, quase 90%, podia ser removida, e mesmo assim
os animais ainda eram capazes de encontrar a saída de um labirinto.
O que Lashley esqueceu de considerar foi que os animais operados
poderiam, por exemplo, usar os sentidos restantes para compensar um
sentido lesado e ainda conseguir deixar o labirinto. Mesmo assim, os
37
números eram impressionantes, e para alguém - não foi Lashley concluir
que bastavam 10% do cérebro para a memória funcionar era só um pulinho.
E daí basta inverter a lógica para "deduzir" que apenas 10% do cérebro
são usados.
Essa é apenas uma origem possível para o mito dos 10%. Em
princípio, há várias maneiras de usar só 10% do cérebro: usando 10% da
massa cerebral, 10% dos neurônios, ou 10% do potencial... Mas não
importa: em qualquer um dos três casos, toda a ciência aponta para o
contrário. Se são 10% da massa cerebral, 90% do que temos dentro da
cabeça deveriam então ser dispensáveis. E, no entanto, lesões do cérebro
humano, mesmo pequenas, podem ter conseqüências graves para o
intelecto e o comportamento. Se são 10% dos neurônios, os outros 90%
deveriam ser silenciosos, ou então redundantes, servindo só como
"reservas". Mas é possível "escutar" as células nervosas em atividade, e
em sua grande maioria elas estão ativas e respondem por algum aspecto
do mundo ou do comportamento. E se são 10% da capacidade de
desenvolvimento intelectual... será que alguém sabe o que seriam os
100%?
Uma dificuldade para aceitar que usamos 100% do cérebro pode
ser a pergunta inevitável de quem estava convencido do contrário: se tudo
é usado, como então é possível desenvolver nossas habilidades? A
resposta está na mais maravilhosa e característica propriedade do sistema
nervoso: a capacidade de fazer novas combinações entre seus elementos,
e de mudar a eficiência das conexões das sinapses já existentes. Quando
a eficiência aumenta, a conexão entre dois neurônios fica "fortalecida";
quando diminui, a conexão fica "enfraquecida". Além do mais, nenhuma
conexão é fixa; uma conexão enfraquecida demais pode ser eliminada, e
uma nova pode ser feita em outro lugar, com outro neurônio. Fortalecer
essas novas conexões, estabilizando-as, é uma maneira de criar novas
associações. Os neurocientistas hoje estão convencidos de que é essa a
base do aprendizado. Como sempre se pode tirar uma conexão daqui e
criar outra ali, será sempre possível fazer mais uma combinação, mais
uma associação entre neurônios, e aprender mais alguma coisa.
Talvez nem sempre fique tudo na lembrança talvez seja mesmo
necessário esquecer algumas coisas para poder lembrar de outras. Não
importa. Aprender, a mais nobre função do cérebro, não funciona a 10%,
nem a 100%, nem a 1% da sua capacidade. Não há limite. Simplesmente
funciona.
Outubro de 2000
Fonte: Herculano Houzel, S. "Do you know your brain?: a survey on public neuroscience literacy at
the closing of the decade of the brain": The Neuroscientist, no prelo, 2002.
Os 90% do cérebro
Conheça as células que ajudam os neurônios
De que é feito o cérebro? Essencialmente de neurônios, certo?
Errado. Neurônios são minoria quase insignificante em termos numéricos:
apenas 2% a 10% do total de células cerebrais. Os outros 90% a 98% são
células gliais, ou glia, para os íntimos. A glia é tradicionalmente considerada
um conjunto de células silenciosas, cumprindo funções secundárias, como
suporte, "preenchimento de espaço", eliminação de detritos, isolamento
elétrico e fornecimento de nutrientes para os neurônios.
Mas isso vai mudar. Um artigo publicado em janeiro de 2001 na
prestigiosa revista Science mostra que a glia não é tão subserviente assim.
Neurônios, tremei: a formação e a sobrevivência de suas tão queridas
sinapses dependem das insuspeitas células gliais ao seu redor.
38
É natural, de fato, pensar que somente os neurônios possam
transmitir sinais no sistema nervoso. Neurônios tem ramos de "entrada" e
de "saída" distintos, enquanto a glia tem forma geralmente estrelada. Além
do mais, células gliais são menores do que os neurônios, e ficam
aglomeradas ao seu redor. Daí o nome "glia", que em grego significa "cola".
O panorama começou a mudar em 1994, com a descoberta de
que as células gliais, até então consideradas "inexcitáveis", silenciosas,
respondem ao glutamato, um importante sinal químico de comunicação
entre neurônios. Mais do que isso, a glia também "libera" glutamato,
igualzinho aos neurônios, e esse glutamato é reconhecido pelos neurônios
como um sinal igual a outro qualquer. Ou seja: elas têm o potencial de se
comunicar com os neurônios, ou ao menos de influenciar a comunicação
entre eles.
A glia também envolve as sinapses, as pontes de comunicação
entre neurônios, onde eles emitem e reconhecem substâncias como o
glutamato. Nesses locais, a função da glia é absorver rapidamente todo
excesso de glutamato que "transborda" da sinapse. Se não fizesse isso, o
banho de glutamato rapidamente se tornaria tóxico, excitando os neurônios
até a epilepsia e depois à morte.
Além de "ajudar" os neurônios a se comunicar, a glia também os
mantém vivos: sem ela, os neurônios morrem. Mas parece que a glia faz
mais do que passar nutrientes e fatores de crescimento aos neurônios. A
equipe de Ben Barres, da Universidade de Stanford, nos EUA, acaba de
demonstrar que, sem a glia por perto, os neurônios em desenvolvimento
não sabem montar sinapses, sua estrutura mais importante e característica.
O artigo publicado na revista Science é um verdadeiro tour de force
científico. O doutorando Erik Ullian e seus colegas no laboratório de Barres
fizeram nada menos que uma série de 15 experimentos para cercar o
fenômeno.
Tudo começou com um detalhe de sorte: a descoberta por Barres,
em 1997, de que, quando cultivados num pratinho de vidro, banhados em
nutrientes, os neurônios da retina não precisam de glia para sobreviver,
mas em sua presença tem sinapses dez vezes mais ativas. É como se
trocassem dez vezes mais palavras por segundo do que quando criados
sem glia por perto.
Se a diferença na atividade das sinapses é tão grande, por que
esse efeito da glia não foi descoberto antes? Acontece que as chamadas
"culturas de neurônios" usadas rotineiramente nos laboratórios são, na
verdade, culturas mistas de neurônios e glia retirados de um pedacinho
do cérebro. Para estudar o efeito, Ullian precisou fazer uma cultura 99,5%
pura de neurônios. Isso só foi possível cultivando neurônios da retina de
embriões de rato, tomando o cuidado de primeiro passar todas as células
por um pratinho forrado com anticorpos que serviam de "cola para
neurônios". Sem ser reconhecida pelos anticorpos, a glia ficava flutuando,
e era facilmente levada embora quando o pratinho era lavado com
suavidade.
Com a cultura pura de neurônios em mãos, Ullian e seus colegas
começaram a série de 15 experimentos. Comparando cultural com ou
sem glia, eles mediram a atividade espontânea das sinapses, provocaram
os neurônios com glutamato para calcular a eletricidade produzida em
resposta, encheram as sinapses com corante fluorescente para determinar
seu conteúdo, verificaram a produção de proteínas necessárias nas
sinapses, e usaram até microscopia eletrônica para contar sinapses nos
neurônios.
39
Todos os resultados foram semelhantes: sem glia por perto, poucas
sinapses se formam nos neurônios e as poucas que se formam são
imaturas, pouco eficazes, como se somente soubessem sussurrar. Com
glia, seis vezes mais sinapses se formam e são sinapses dez vezes mais
fortes, que "gritam" para valer. A diferença parece estar na organização
do material necessário para fabricar as sinapses. Mesmo sem glia, tudo o
que é necessário é fabricado pelos neurônios, mas é só com a glia por
perto que eles conseguem organizar tudo e montar as sinapses.
Depois de a glia ensinar os neurônios a montar sinapses, será que
eles conseguem mantê-las sozinhos? Não. Tirando a glia da cultura (o
que eles podiam realizar facilmente, usando o truque de fazer a cultura
em pratinhos de "dois andares", o de baixo com neurônios, e o de cima
com glia), os neurônios perderam suas sinapses em uma semana.
E, agora, ao 15° experimento. Tudo é muito bonitinho no pratinho
de cultura. E no cérebro, mesmo, também é a glia que manda os neurônios
fazerem sinapses? No rato, os terminais desses neurônios da retina
chegam ao cérebro no 16° dia de gestação, mas o grosso das sinapses
só aparece dez dias depois. A equipe de Barres investigou se essa data
correspondia ao aparecimento da glia. Não deu outra: células gliais em
forma de estrela aparecem exatamente no momento da formação das
sinapses no local.
Tudo isso lembra muito o desenvolvimento do cérebro humano.
Nos primeiros anos de vida, o tamanho do cérebro aumenta radicalmente
com a multiplicação das células gliais enquanto os neurônios são os
mesmos cem bilhões desde o nascimento. E é justamente na fase em que
a glia está se formando, nos meses após o nascimento, que o número de
sinapses no cérebro aumenta enormemente. Olhando agora, é fácil
imaginar que a glia participe da formação das sinapses, mas, para cientistas
que aprenderam desde a faculdade que a glia cumpre funções apenas
acessórias, é fácil deixar a evidência passar despercebida.
Acessória ou fundamental, o fato é que a glia constitui pelo menos
90% do cérebro. Só que nem assim dá para dizer que usamos 10% do
cérebro. Não, caro leitor, ainda assim a história dos 10% é um mito. Suas
células gliais são usadas, sim, obrigada. Se a glia deixasse de funcionar
ou de existir, haveria um excesso constante de glutamato derramado, e a
atividade neuronal no cérebro se transformaria numa enorme crise
epiléptica, que depois iria desaparecendo a medida que as sinapses fossem
se desmanchando.
Pois é. Afinal, sem a glia, os grandes neurônios não são grande
coisa. Elas cuidam deles, elas os ensinam a construir sua estrutura mais
importante, e podem até se comunicar com eles. Se continuar assim, quem
sabe ainda vamos viver para ver o dia em que os cientistas discutirão o
papel da glia na produção da consciência?
Fonte: Ullian, E.M., Sapperstein, S.K., Christophersón, K.S. a Barres, B.A. "Control of synapse number
by glia". Science291, pp. 657-661, 2001.
40
Material de apoio da atividade
Esquecer é fundamental para o
aprendizado?
Textos extraídos do livro A arte de esquecer, de Iván Izquierdo Editora Vieira e Lent (2004)
A arte de esquecer
Por que e para que esquecemos?
Como toda a evidência disponível indica que a maioria das
memórias se perde, surgem várias perguntas.
A primeira é, sem dúvida, por que esquecemos? Esquecemos
talvez, em parte, porque os mecanismos que formam e evocam memórias
são saturáveis. Não podemos fazê-los funcionar constantemente de
maneira simultânea para todas as memórias possíveis, as existentes e as
que adquirimos a cada minuto. Isso obriga naturalmente a perder memórias
preexistentes, por falta de uso, para dar lugar a outras novas. (Mais adiante
explicaremos este mecanismo que é fundamental para o esquecimento.)
Não sabemos se os mecanismos por meio dos quais se guardam
no cérebro os elementos principais de cada memória são ou não são
saturáveis. É até possível que não o sejam, já que há tantos neurônios e
tantas interconexões entre eles. Temos no cérebro humano muitos bilhões
de neurônios. Destes, os do córtex cerebral recebem entre 1.000 a 10.000
conexões (sinapses) procedentes de outras células nervosas, e emitem
prolongamentos que fazem conexão com outros dez a 1.000 neurônios.
Como se vê, as possibilidades de intercomunicação entre as células do
cérebro são imensas, e de cada uma destas conexões ou sinapses podem
surgir memórias; sem contar o fato de que cada conexão pode participar
de muitas memórias diferentes. Acredita-se que as memórias dependem
de alterações na conformação das sinapses. É, portanto, altamente
provável que a capacidade de armazenamento seja gigantesca.
Mas há inúmeras evidências recentes de que, na hora de sua
formação e na hora de sua evocação, os sistemas cerebrais que se
encarregam das memórias de longa duração, que envolvem
fundamentalmente uma estrutura do lobo temporal chamada hipocampo,
são altamente saturáveis. O mesmo ocorre com os sistemas encarregados
de analisar on line as informações correspondentes à aquisição e à
evocação das memórias, que analisaremos a seguir. O hipocampo é a
principal estrutura do sistema nervoso dos mamíferos envolvida tanto na
formação como na evocação das memórias.
A segunda grande pergunta que surge do que vimos até agora é:
para que precisamos esquecer? A resposta a essa pergunta abrange muitos
aspectos diferentes e será respondida ao longo das próximas páginas.
Como veremos, em boa parte esquecemos para poder pensar, e
esquecemos para não ficar loucos; esquecemos para poder conviver e
para poder sobreviver.
Formas de esquecimento
Basicamente há quatro formas de esquecimento. Duas delas
consistem em tornar as memórias menos acessíveis, mas em geral sem
perdê-las por completo: a extinção, e a repressão. As outras duas consistem
em perdas reais de informação; uma delas por bloqueio de sua aquisição,
e a outra por deterioração e perda de informação, o esquecimento
41
propriamente dito. O esquecimento real não é uma arte: é uma pena.
Talvez necessária (ver referência a "Funes, o Memorioso", na pág. 91),
mas uma pena enfim; um acontecimento em geral não voluntário. A arte
de esquecer se concentra na extinção (e seus parentes próximos, a
habituação e a discriminação) e na repressão. E também, como veremos,
num truque voluntário que é a falsificação.
As perdas da memória de trabalho são inerentes à sua natureza
Há vários tipos de memória. Em primeiro lugar, existe a memória
de trabalho, que usamos para entender a realidade que nos rodeia e poder
efetivamente formar ou evocar outras formas de memória: a que
denominamos de curta duração e que dura umas poucas horas, o suficiente
para que possa se formar a memória de longa duração (também chamada
memória remota), que dura dias, anos ou décadas. Para mim, que tenho
muitos anos, a memória da minha infancia é remota; a lembrança do que
aconteceu ontem ou na semana retrasada é simplesmente memória de
longa duração. A lembrança do que eu estava fazendo duas ou três horas
antes de me sentar para escrever este texto, a memória de curta duração.
Enquanto escrevia, a memória da terceira palavra da frase anterior (que
já perdi) foi parte da minha memória de trabalho. O mesmo aconteceu
com você, leitor, ao ler essa frase: você compreendeu a terceira palavra
de minha frase, há poucos segundos, mas já não a recorda mais. Outro
exemplo típico de memória de trabalho é a do número telefônico que
solicitamos ao nosso vizinho, que dura só o tempo suficiente para discálo. Logo depois de fazer a chamada, a lembrança do número desaparece,
e se queremos aprendê-lo, devemos perguntá-lo novamente ou registrálo em algum lugar. A memória de trabalho não forma arquivos duradouros:
desaparece em segundos ou, no máximo, minutos. Está feita para ser
assim, de maneira que nenhuma informação que esteja sendo processada
venha a interferir ou se confunda com as que ocorreram logo antes ou as
que virão logo a seguir. Se a terceira palavra da minha frase anterior
persistisse além de alguns segundos, nem eu seria capaz de continuar
escrevendo, nem você seria capaz de continuar lendo; viraríamos
prisioneiros dela, repetindo-a mentalmente fora de contexto.
A memória de trabalho depende da atividade elétrica de neurônios
do córtex pré-frontal, localizado na frente da área motora, e não persiste
além disso. Quando cessa a ativação dos neurônios pré-frontais, a memória
de trabalho também cessa.
Como veremos mais adiante, os neurônios são ativados por
substâncias químicas, mas emitem suas mensagens por meio de atividade
elétrica. Os neurônios do córtex pré-frontal se ativam em resposta às
experiências de cada momento, a sua estimulação dura enquanto dura a
experiência; somente às vezes persiste um pouco mais. Voltemos ao
exemplo da terceira palavra de minha frase anterior, que persistiu só o
suficiente para que eu conseguisse continuar escrevendo e você lendo.
Enquanto o mecanismo da memória de trabalho é posto em jogo
em cada experiência, a informação processada pelo córtex pré-frontal se
comunica a outras regiões do cérebro e faz um intercâmbio de informações
com elas. As outras regiões do cérebro incluem aquelas que analisam
rapidamente a informação sensorial e as que armazenam memórias de
maior duração. Assim, nosso cérebro toma aquela famosa terceira palavra
da frase anterior e a insere num contexto maior: o da compreensão de um
texto mais longo. A análise rápida de informação é feita on line pela memória
de trabalho, e comparada com outras informações que possam ocorrer
simultaneamente ou que já estejam guardadas no cérebro. Assim,
distinguimos o homem apoiado na parede da calçada em frente da própria
42
parede e das pessoas que passam; distinguimos o carro que avança pela
rua das árvores que permanecem fixas (e com isso entendemos que o
carro avança e estimamos sua velocidade), distinguimos o que há de novo
e importante naquilo que está acontecendo no momento e precisa ser
guardado na memória, e que informação já temos e não precisa ser
guardada porque seria redundante.
No caso da memória de trabalho, sua própria função e formação
exigem que seja fugaz. Esta baseada em mecanismos muito rápidos e,
por definição tanto psicológica como anatômica, é necessariamente
evanescente. Foi feita para ser assim. Sua feitura é uma arte, uma arte de
delicadeza e precisão sem par, mas uma arte que compartilhamos com
todos os seres humanos e todos os vertebrados. Há evidências que
sugerem que a memória de trabalho de alguns primatas superiores seja
melhor do que a nossa. A perda de informação da memória de trabalho
não pode ser considerada um esquecimento real, já que é própria de sua
natureza.
O que acontece quando a memória de trabalho fracassa? Uma
informação se confunde com a anterior ou com a seguinte, ou com a que
está ao lado ou acima; confundem-se entre si as informações simultâneas
e não conseguem ser distinguidas das informações sucessivas ou isoladas.
Não conseguimos distinguir muito bem o homem da parede na qual se
apóia, ou o carro que avança, das árvores que o rodeiam. Ambas cenas
constituem uma massa uniforme, onde homem e tijolos, carros e árvores
se confundem. O professor enxerga seus alunos como uma massa informe
de rostos, e a pergunta que um deles lhe fez confunde-se com a resposta
que deu a pergunta de um aluno anterior. Confundem-se cheiros, objetos
e sons. A memória de trabalho serve para discriminar informações e
selecionar quais correspondem ou não a memórias preexistentes. Quando
ela falha, a realidade vira incompreensível ou alucinatória porque seus
componentes se confundem entre si. Isto pode acontecer quando estamos
exaustos, sem dormir há muitas horas, quando somos submetidos a um
excesso de informação e/ou quando estamos profundamente estressados.
Quando falha a memória de trabalho pode acontecer que a
realidade apareça como ameaçadora, como algo que estabelece uma
situação de paranóia. A esquizofrenia se caracteriza por falhas grosseiras
na memória de trabalho, devidas a lesões congênitas no córtex pré-frontal.
Por isso os esquizofrênicos percebem a realidade como algo alucinatório.
Confundem objetos ou pessoas sonhados com objetos ou pessoas reais,
confundem o sonhado ontem com o que estão vendo agora, confundem,
às vezes, cheiros com sons... (Um amigo meu, esquizofrênico, dizia que
gostava de cheirar a música de Beethoven; outro conhecido meu, também
esquizofrênico, afirmava que esse exército de anões que nos rodeava
constantemente era inofensivo, não fosse o mau cheiro.) Além disso, os
esquizofrênicos padecem de transtornos na formação das memórias de
curta a longa duração, devidos a alterações morfológicas nos lobos
temporais, principalmente no hipocampo e no córtex que o rodeia, que
são os encarregados de processar as memórias de curta e longa duração,
assim como sua evocação. A memória de longa duração das realidades
alucinatórias sistematizam as visões em delírios, muitos dos quais
acompanham o esquizofrênico por toda sua vida. Ocasionalmente, por
meio de lenta e cuidadosa psicoterapia, os esquizofrênicos podem
discriminar entre o mundo do delírio, que lhe é profundamente individual,
e a realidade efetiva, que compartilha com os demais seres humanos. Um
grande exemplo disso se vê no filme Uma Mente Brilhante, onde o ator
Russell Crowe desempenha o papel de John Nash, um esquizofrênico de
grande talento que, muito bem tratado com remédios antipsicóticos e
43
psicoterapia, conseguiu levar uma vida pessoal relativamente equilibrada
(porém difícil) e obter um Prêmio Nobel. Nash realizou suas pesquisas e
tirou delas as conclusões que o levaram ao Prêmio Nobel enquanto sua
mente estava dividida entre a atenção dispensada ao mundo real e a
atenção dedicada ao mundo fictício de suas alucinações fortes e
recorrentes.
44
Material de apoio da atividade
Para uma memorização efetiva é
melhor passar a noite estudando do
que dormir?
Texto extraído da revista Scientific American, edição especial nº 4,
2001, de Jonathan Winson
JONATHAN WINSON começou sua carreira como engenheiro aeronáutico, graduando-se em 1946
pelo California Institute of Technology. Ele obteve o seu Ph.D. em matemática na Columbia University
e, durante 15 anos, dedicou-se às atividades empresariais. Por causa de seu duradouro interesse
pela neurociência, Winson começou a pesquisar o processamento da memória na Rockefeller
University. Em 1979, tornou-se professor associado e prosseguiu sua pesquisa como professor emérito.
Aposentou-se em 1996. Sua pesquisa foi apoiada pelo National Institute of Mental Health, pela National
Science Foundation e pela Harry F Guggenheim Foundation.
O significado dos sonhos
Eles podem ser fundamentais para o processamento da memória
nos mamíferos. Informações adquiridas durante a vigília podem ser
reprocessadas durante o sono.
Introdução
Os seres humanos sempre tentaram compreender o significado
dos sonhos. Os amigos egípcios acreditavam que eles possuiam poderes
oraculares - na Bíblia, por exemplo, a interpretação que José dá ao sonho
do faraó evita sete anos de fome. Em outras culturas, os sonhos serviam
como inspiração, terapia ou realidade alternativa. Durante o século
passado, os sonhos receberam explicações psicológicas e neurocientíficas
conflitantes dos cientistas.
Em 1900, com a publicação de A Interpretação dos Sonhos,
Sigmund Freud propôs que os sonhos seriam a "via privilegiada" para o
inconsciente: revelariam, de forma disfarçada, os elementos mais
profundos da vida interior do indivíduo. Mais recentemente, porém, os
sonhos foram caracterizados como desprovidos de significado, resultado
aleatório da atividade das células nervosas. Sonhar também foi considerado
como o meio pelo qual o cérebro descarta informações desnecessárias:
um processo de "aprendizado invertido", ou de desaprendizado.
Baseado em descobertas recentes feitas em meu laboratório e por
outros neurocientistas, proponho que os sonhos de fato possuem
significado. Estudos sobre o hipocampo (estrutura cerebral crucial para a
memória), sobre o movimento rápido dos olhos (REM) durante o sono, e
sobre ondas cerebrais denominadas ritmo teta, sugerem que sonhar reflete
um aspecto essencial do processamento da memória. Em particular,
estudos do ritmo teta feitos em animais subprimatas fornecem uma chave
evolutiva para o significado dos sonhos. Parecem ser o registro noturno
de um processo mnemônico básico dos mamíferos: e o meio pelo qual os
animais formam estratégias de sobrevivência e avaliam a experiência atual
à luz dessas estratégias.
45
Estágios do Sono e do Sonho
A fisiologia do sonho foi compreendida pela primeira vez em 1953,
com a análise do ciclo do sono humano. Descobriu-se que, nos humanos,
o sono se inicia pelo estado hipnagógico, período de vários minutos durante
os quais os pensamentos consistem em imagens fragmentadas ou
pequenas cenas. O estado hipnagógico é seguido pelo sono de ondas
lentas, assim chamado porque, durante esse periodo, as ondas cerebrais
do neocórtex (a camada circunvoluta mais externa do cérebro) apresentam
freqüências baixas e de grande amplitude. Esses sinais são medidos como
registros de eletroencefalograma (EEG). Os pesquisadores descobriram
também que o sono noturno é entremeado por períodos em que os registros
do EEG apresentam freqüências irregulares a amplitudes baixas - similares
as observadas em indivíduos acordados. Esses períodos de atividade
mental são chamados de sono REM. Os sonhos ocorrem somente durante
esses períodos. Os neurônios motores são inibidos durante o sono REM,
o que impede o corpo de se mover livremente, embora permita que suas
extremidades permaneçam ligeiramente ativas. Os olhos movem-se
rapidamente em sincronia sob as pálpebras fechadas, a respiração tornase irregular e a freqüência cardíaca aumenta.
O primeiro estágio REM da noite ocorre 90 minutos após o sono
de ondas lentas e dura 10 minutos. O segundo e terceiro períodos REM
ocorrem após breves episódios de sono de ondas lentas, mas tornam-se
progressivamente mais longos. O quarto e último intervalo dura de 20 a
30 minutos e é seguido pelo despertar. Se um sonho for lembrado, tratase, freqüentemente, do sonho que ocorreu durante esta última fase.
Mamíferos exibem características ASSOCIADAS
ao SONO REM observadas nos humanos
Este ciclo do sono - alternando o sono de ondas lentas e o REM parece estar presente em todos os mamíferos placentrios e marsupiais.
Os mamíferos exibem as várias características associadas ao REM
observadas nos humanos, inclusive os registros EEG similares ao do estado
de vigília. Os animais também sonham. Ao destruírem os neurônios no
tronco encefálico que inibem o movimento durante o sono, os
pesquisadores descobriram que gatos dormindo acordavam e atacavam
ou ficavam assustados com objetos invisíveis - claramente imagens de
sonhos.
Os cientistas descobriram ainda, estudando animais não-primatas,
outros aspectos neurofisiológicos do sono REM, e determinaram que o
controle neural desse estágio do ciclo do sono está centrado no tronco
encefálico (a região do cérebro mais próxima da medula espinhal) a que
durante o sono REM os sinais neurais - chamados de ondas ponto-genículo
occipitais (PGO) do córtex - procedem do tronco encefálico para o centro
do processamento visual, o córtex visual. Os neurônios do tronco encefálico
também iniciam uma onda sinusoidal (semelhante à forma de um sino) no
hipocampo. Este sinal cerebral é chamado de ritmo teta.
Pelo menos um animal vivencia o sono de ondas lentas, mas não
o sono REM e, portanto, não apresenta o ritmo teta quando dorme. Tratase do equidna, ou tamanduá espinhoso, um mamífero ovíparo (chamado
de monotremado), que fornece pistas sobre a origem do sonho. A ausência
do sono REM no equidna sugere que este estágio do ciclo do sono
desenvolveu-se há cerca de 140 milhões de anos, quando os marsupiais
e os placentários divergiram da ordem dos monotremados, os primeiros
46
mamiferos a se desenvolver a partir dos répteis. De acordo com todos os
critérios evolutivos, a permanência de um processo cerebral complexo
como o sono REM indica que este desempenha importante função na
sobrevivência das espécies mamíferas. Compreender essa função pode
revelar o significado dos sonhos.
Quando Freud escreveu A Interpretação dos Sonhos, a fisiologia
do sono era desconhecida. À luz da descoberta do sono REM, alguns
elementos de sua teoria psicanalítica foram modificados e abriu-se caminho
para teorias de base neurólogica. O sonho passou a ser entendido como
parte de um ciclo do sono determinado biologicamente. Entretanto, o
conceito central da teoria de Freud - a crença de que os sonhos revelam
uma representação censurada de nossos sentimentos e interesses
inconscientes mais íntimos - continua a ser usado na psicanálise.
Alguns teóricos abandonaram completamente as idéias de Freud
depois das descobertas neurológicas. Em 1977, J. Allan Hobson e Robert
McCarley, da Harvard Medical School, propuseram a hipótese da "sínteseativação": os sonhos seriam associações e memórias suscitadas no
prosencéfalo (o neocórtex e estruturas associadas) em resposta a sinais
aleatórios provenientes do tronco encefálico, tal como as ondas PGO.
Seriam simplesmente a "melhor adaptação" que o prosencéfalo poderia
fornecer. Embora os sonhos possam, ocasionalmente, sugerir um conteúdo
psicológico, seu caráter bizarro seria intrinsecamente desprovido de
significado. Segundo Hobson, o sentido ou enredo dos sonhos resultaria
da ordem imposta ao caos dos sinais neurais. "Esta ordem é uma função
de nossa visão pessoal do mundo, de nossas memórias remotas",
escreveu. Em outras palavras, o vocabulário emocional do indivíduo poderia
ser relevante para os sonhos. Em uma revisão posterior de sua hipótese
original, Hobson sugeriu também que a ativação do tronco encefálico
poderia servir apenas para mudar de um episódio do sonho para outro.
A anatomia do cérebro e a representação transversal do hipocampo mostram algumas regiões
envolvidas no sonho. No hipocampo, a informação que entra é processada de forma seqüencial
no giro dentado e nas CA3 e CA1 (assim chamadas por sua forma triangular). Nas espécies não
primatas, o ritmo teta é gerado no giro dentado e nas células CA1.
47
Aprendizado Invertido
Embora Hobson e Mccarley tivessem oferecido uma explicação do
conteúdo do sonho, a função básica do sono REM continuava
desconhecida. Em 1983, Francis Crick, do Salk Institute for Biological
Studies, em San Diego, e Graeme Mitchison, da University of Cambridge,
propuseram a idéia do aprendizado invertido. Partindo da suposição de
Hobson e McCarley sobre uma descarga neocortical aleatória pelas ondas
PGO e do conhecimento que tinham sobre o comportamento de redes
neurais estimuladas, Crick e Mitchison postularam que o neocórtex, uma
rede neural de associação muito complexa, pode ficar sobrecarregado
com as vastas quantidades de informação que recebe. Com isso
desenvolveria pensamentos falsos, ou "parasíticos", que colocariam em
risco o estoque ordenado e verdadeiro da memória.
O sono REM serviria para apagar, de forma regular, essas
associações espúrias. As ondas aleatórias PGO seriam impingidas ao
neocórtex, resultando no apagamento ou desaprendizado das informações
falsas. Este processo serviria a uma função essencial: o processamento
ordenado da memória. Nos humanos, os sonhos seriam um registro corrido
desses pensamentos parasíticos: um material a ser purgado da memória.
Para Crick e Mitchison, "sonhamos para esquecer". Os dois pesquisadores
propuseram uma revisão em 1986. A eliminação dos pensamentos
parasíticos explicava somente o conteúdo bizarro do sonho e nada dizia
sobre sua narrativa. Sonhar para esquecer poderia ser melhor formulado
da seguinte forma: "Sonhamos para reduzir a fantasia ou a obsessão".
Nenhuma dessas hipóteses parece explicar adequadamente a
função do sonho. Por um lado, a teoria de Freud carecia de evidência
fisiológica. (É certo que Freud tinha, originalmente, tentado descrever a
neurologia do inconsciente e dos sonhos em seu "Projeto para uma
Psicologia Científica", mas a tentativa fora prematura e ele limitou-se à
psicanálise.) Por outro lado, a despeito das revisões para incorporar
elementos da psicologia, a maioria das teorias posteriores negava que os
sonhos tivessem significado.
A exploração dos aspectos neurocientíficos do sono REM e do
processamento da memória pareceu-me conter o maior potencial para a
compreensão do significado e da função dos sonhos. A chave para esta
pesquisa foi o ritmo teta, descoberto em 1954, em animais despertos, por
John D. Green e Arnaldo A. Arduini, da University of California, em Los
Angeles, que observaram um sinal regular sinusoidal de seis ciclos por
segundo no hipocampo de coelhos, quando estes animais estavam
apreensivos por causa de estímulos em seu meio ambiente. Eles
denominaram este sinal ritmo teta, de acordo com um componente do
EEG de mesma freqüência descoberto anteriormente.
O ritmo teta foi posteriormente registrado em toupeiras, ratos a
gatos. Embora tivesse sido observado de forma consistente em animais
despertos, foi correlacionado com comportamentos muito diferentes em
cada espécie. Por exemplo, em contraste acentuado com os coelhos, os
estímulos ambientais não induziram ritmo teta nos ratos. Estes
apresentaram ritmo teta somente quando se movimentavam, tipicamente
quando exploravam. Em 1969, entretanto, Case H. Vanderwolf, da
University of Western Ontario, descobriu que havia um comportamento
durante o qual os animais que ele estudou, entre os quais o rato, revelavam
o ritmo teta: o sono REM.
Em 1972, publiquei que diferentes ocorrências do ritmo teta
poderiam ser entendidas em termos de comportamento animal. Os animais
48
despertos pareciam apresentar o ritmo teta quando desempenhavam
tarefas cruciais para sua sobrevivência. Em outras palavras, o ritmo teta
aparecia quando exibiam comportamento não geneticamente codificado como o são o comportamento sexual ou o orientado para a alimentação mas que é uma resposta a informações variáveis do meio. O
comportamento predatório dos gatos, de presa dos coelhos e exploratório
dos ratos são, respectivamente, os mais importantes para a sobrevivência
de cada um deles. Um rato com fome, por exemplo, ira explorar antes de
comer, mesmo que a comida esteja diante dele.
O Papel de Ritmo Teta
Como o hipocampo está envolvido no processamento da memória,
a presença do ritmo teta durante o sono REM nessa região do cérebro
pode estar relacionada a essa atividade de processamento. Sugeri que o
ritmo teta reflete um processo neural através do qual a informação essencial
é sobrevivência de uma espécie - reunida durante o dia - e reprocessada
na memória durante o sono REM.
Em 1974, ao registrar sinais do hipocampo em ratos a coelhos que
se moviam livremente, descobri a fonte que gerava o ritmo teta no
hipocampo. Acredita-se que, juntamente com o neocórtex, o hipocampo
forneça a base neural para a armazenagem de memória. O hipocampo é
uma estrutura seqüencial composta por três tipos de neurônios. A
informação proveniente de todas as áreas sensoriais e associativas do
neocórtex converge para o córtex entorrinal; a partir daí, é transmitida às
três populações sucessivas de neurônios do hipocampo. Os sinais chegam,
primeiro, às células granulares do giro denteado, depois às células
piramidais do CA3 (assim chamada em razão de sua forma triangular) e,
finalmente, às células piramidais do CAI. Após ser processada a informação
é retransmitida para o córtex entorrinal, retornando depois para o neocórtex.
Mostrei que o ritmo teta é produzido em duas regiões no interior do
hipocampo: o giro denteado e os neurônios do CAI. Os ritmos nessas
duas áreas são síncronos. Posteriormente, James B. Ranck, Jr., da State
University of New York Downstate Medical Center, e sua então colega
Susan Mitchell identificaram um terceiro gerador síncrono no córtex
entorrinal, e Robert Verdes, da Wayne State University, descobriu os
neurônios do tronco encefálico que controlam o ritmo teta. Esses neurônios
transmitem sinais para o septo (estrutura do prosencéfalo), que ativam o
ritmo teta no hipocampo e no córtex entorrinal. Assim, o tronco encefálico
ativa o hipocampo e o neocórtex - o cerne do sistema mnemônico do
cérebro.
Para determinar a relação entre o ritmo teta e a memória, provoquei
uma lesão no septo de um rato. Os ratos que tinham aprendido
anteriormente a localizar, mediante pistas espaciais, uma posição
determinada no labirinto, não foram mais capazes de fazê-lo. Sem o ritmo
teta, a memória espacial foi destruída.
Estudos sobre as alterações celulares que causam a memória
ilustraram o papel do ritmo teta. Em particular, a descoberta, em 1973, da
potencialização a longo prazo (long-term potentiation - LTP) - mudança no
comportamento neural que reflete a atividade pregressa - revelou os meios
pelos quais a memória pode ser codificada. Timothy V P. Bliss e A. R.
Gardner-Medwin, do National Institute of Medical Research, em Londres,
e Terje Lomo, da Universidade de Oslo, descobriram alterações em
neurônios que haviam sofrido estímulos elétricos.
49
Memória de Longo Prazo
Estudos anteriores haviam demonstrado que, ao se estimular a via
que se projeta do córtex entorrinal às células granulares do hipocampo, a
resposta dessas células podia ser medida com um eletrodo de registro.
Bliss e seus colegas mediram a resposta normal a um estímulo elétrico
isolado e depois aplicaram uma longa série de sinais de alta freqüência chamada de estimulação tetânica - a esta via. Após a estimulação tetânica,
um estímulo elétrico isolado provocou disparo maior das células granulares
que o observado anteriormente. O efeito intensificado persistiu por até
três dias. Este fenômeno de LTP era precisamente o tipo de aumento da
força neuronal que poderia ser capaz de manter a memória. A LTP é
considerada agora um modelo para o aprendizado e a memória.
A LTP ocorre pela atividade do receptor NMDA (N-metil-Daspartato). Esta molécula está inserida nos dendritos das células
granulares, das células de CAI do hipocampo e nos neurônios de toda a
extensão do neocórtex. Assim como outros receptores neuronais, o receptor
NMDA é ativado por um neurotransmissor - glutamato, neste caso. O
glutamato abre momentaneamente um canal não-NMDA no dendrito da
célula granular, permitindo um fluxo de sódio do espaço extracelular para
dentro do neurônio. Este influxo causa a despolarização da célula granular.
Se a despolarização for suficiente, a célula granular dispara, transmitindo
informações para outros neurônios.
Diferentemente de outros receptores neuronais, o NMDA possui
uma propriedade adicional. Se uma ativação adicional do glutamato ocorrer
enquanto a célula granular estiver despolarizada, um segundo canal se
abre, permitindo o influxo de cálcio. Acredita-se que o cálcio aja como um
segundo mensageiro, iniciando uma série de eventos intracelulares que
culminam em mudanças sinápticas duradouras - ou LTP. (A descrição
fornecida aqui foi simplificada. A LTP é hoje tema de amplas investigações.)
Como a estimulação tetânica aplicada por Bliss e seus colegas
não ocorria naturalmente no cérebro, restava a questão de saber como a
LTP era obtida em condições normais. Em 1986, John Larson e Gary S.
Lynch, da University of California, em Irvine, e Gregory Rose e Thomas V
Dunwiddie, da University of Colorado, em Denver, sugeriram que a
ocorrência de LTP no hipocampo estava ligada ao ritmo teta. Eles aplicaram
um pequeno número de estímulos elétricos às células de CAI do hipocampo
de um rato e produziram LTP, mas somente quando os estímulos eram
separados pelo lapso de tempo normal entre duas ondas teta aproximadamente 200 milésimos de segundo. O ritmo teta e,
aparentemente, o meio natural pelo qual o receptor NMDA é ativado em
neurônios no hipocampo.
Pesquisas feitas em meu laboratório da Rockefeller University
reproduziram as descobertas de Larson e Lynch, mas desta vez nas células
granulares do hipocampo. Constantine Pavlides, Yoram J. Greenstein e
eu demonstramos que a LTP dependia da presença e da fase do ritmo
teta. Se fossem aplicados estímulos elétricos às células no pico da onda
teta, LTP era induzida. Se o mesmo estímulo fosse aplicado no ponto
mais baixo das ondas - ou na ausência de ritmo teta - não se induzia LTP.
Surgia, assim, um quadro coerente sobre o processamento da
memória. Por exemplo, quando um rato explorando os neurônios do tronco
encefálico ativam o ritmo teta. Os sinais de entrada olfativos (que no rato
estão sincronizados com o ritmo teta, assim como o movimento das
vibrissas) e outras informações sensoriais convergem ao córtex entorrinal
e ao hipocampo. Elas são aí divididas em "bites" de 200 milésimos de
50
segundo pelo ritmo teta. Os receptores NMDA, agindo com o ritmo teta,
permitem a armazenagem de longo prazo dessa informação.
Um processo similar ocorre durante o sono REM. Embora não haja
entrada de informação ou movimento durante o sono REM, a rede natural
do neocórtex e do hipocampo sofre mais uma vez a ação marca-passo do
ritmo teta. O ritmo teta pode produzir mudanças duradouras na memória.
A ativação do receptor NMDA induz a
potencialização a longo prazo (LTP), um
modelo para a memória. A liberação do
neurotransmissor glutamato (quadro à
esquerda) abre um canal associado a um
receptor não-NMDA (N-metil-Daspartato), permitindo o influxo de sódio,
que despolariza o neurônio. Se uma nova
liberação de glutamato ocorrer enquanto
a célula estiver despolarizada (quadro
central), o receptor NMDA abre um
segundo canal, que permite o influxo de
cálcio e leva à LTP. A LTP é resultado do
aumento do influxo de sódio através do
canal associado a um receptor não-NMDA
(quadro à direita) e do subseqüente
aumento da despolarização da célula.
Armazenagem da Memória Espacial
Experimentos posteriores demonstraram que a memória espacial
é de fato armazenada no hipocampo do rato durante o sono. John O'Keefe
e Jonathan O. Dostrovsky, da University College London, haviam
demonstrado que os neurônios de CAI no hipocampo do rato disparavam
quando o animal desperto movia-se para um determinado local,
denominado campo de ação. Esta descoberta implicava que o neurônio
de CAI disparava para mapear o ambiente, associando, assim, a tarefa à
memória.
Em 1989, Pavlides e eu localizamos dois neurônios no hipocampo
do rato que tinham campos de ação diferentes. Após de terminarmos as
freqüências normais de disparos nos animais em vigília e sono, colocamos
um rato no campo de ação de um dos neurônios. O neurônio disparou de
forma intensa, mapeando aquele local. A segunda célula disparou só
esporadicamente, já que não estava mapeando o espaço. Continuamos
fazendo registros dos dois pares de neurônios conforme os ratos se
movimentavam e entravam nos vários ciclos do sono. Seis pares de
neurônios foram estudados dessa maneira. Descobrimos que os neurônios
que haviam mapeado o espaço disparavam a uma freqüência normal
enquanto o animal se movia logo antes de dormir. Durante o sono,
entretanto, passavam a disparar a um ritmo significativamente maior que
durante o período anterior de sono, que serviu como base de comparação.
A freqüência de disparos nos neurônios que não haviam mapeado o espaço
51
não aumentou. Este experimento sugeria que o reprocessamento ou
fortalecimento da informação codificada quando o animal estava acordado
ocorria durante o sono, em nível de neurônios individuais.
Bruce L. McNaughton e colegas da University of Arizona
desenvolveram uma técnica que registra, simultaneamente, um grande
número de neurônios do hipocampo que mapeiam locais, e permite a
identificação de padrões definitivos de disparo. Estudando animais, eles
descobriram que conjuntos de campos de ação de neurônios que mapeiam
o espaço durante a vigília reprocessam a informação durante o sono de
ondas lentas e, depois, durante o sono REM. Portanto o processamento
da memória durante o sono pode ter dois estágios - um preliminar no sono
de ondas lentas e um posterior no sono REM, quando os sonhos ocorrem.
A Evolução do Sono REM
Evidências de que o ritmo teta codifica a memória durante o sono
REM decorrem não somente de pesquisas neurocientíficas, mas também
da evolução. A emergência de um mecanismo neural que processa a
memória durante o sono REM sugere diferenças na anatomia do cérebro
entre mamíferos com esta característica do ciclo do sono e aqueles sem.
De fato, essas diferenças existem claramente entre o equidna e os
marsupiais e placentários.
O equidna tem uma grande extensão de circunvoluções do córtex
pré-frontal, maior em relação ao resto do cérebro quando comparado com
qualquer outro mamífero, inclusive humanos. Acredito que esta grande
extensão de córtex pré-frontal seja necessária para o desempenho de
uma função dupla: reagir a entrada de informação de forma adequada,
baseada na experiência passada; e avaliar e armazenar informações novas
para auxiliar a sobrevivência futura. Sem o ritmo teta durante o sono REM,
o equidna não seria capaz de processar informação enquanto dorme. (O
equidna, entretanto, exibe o ritmo teta quando procura comida.) Para que
habilidades superiores se desenvolvessem, seria preciso que o córtex préfrontal se tornasse cada vez maior - ultrapassando a capacidade da caixa
craniana - a menos que surgisse outro mecanismo cerebral.
O sono REM pode ter fornecido esse novo mecanismo, permitindo
que o processamento da memória ocorra "off-line". Concomitante ao
desenvolvimento aparente do sono REM nos mamíferos marsupiais e
placentários, houve uma notável mudança neuroanatômica: o córtex préfrontal foi dramaticamente reduzido. Menos dele era exigido para processar
a informação. Esta área do cérebro pôde se desenvolver no sentido de
proporcionar habilidades de percepção avançadas em espécies superiores.
A natureza do sono REM apóia este argumento evolutivo. Durante
o dia, os animais colhem informações que envolvem locomoção a
movimentos oculares. O reprocessamento desta informação durante o
sono REM não seria facilmente separado da locomoção relacionada a
experiência - tal dissociação exigiria excessiva revisão do circuito cerebral.
Assim, a locomoção teve de ser suprimida pela inibição dos neurônios
motores. O potencial de movimentos oculares, similarmente às ondas PGO,
acompanha o movimento rápido dos olhos durante a vigília e também
durante o sono REM. A função desses sinais ainda não foi determinada,
mas podem servir para alertar o córtex visual sobre a informação que
chega quando o animal está acordado, assim como refletir o
reprocessamento desta informação durante o sono REM. Seja como for,
as ondas PGO não perturbam o sono e não precisaram ser suprimidas diferentemente dos neurônios motores.
52
Estratégia de sobrevivência
Com a evolução do sono REM, cada espécie pôde processar a
informação mais importante para sua sobrevivência, como localização de
alimentos, meios de capturar presas ou de fugir - atividades durante as
quais o ritmo teta está presente. No sono REM, esta informação pode ser
acessada novamente e integrada à experiência passada, para proporcionar
uma estratégia progressiva de comportamento. Embora o ritmo teta não
tenha sido ainda demonstrado nos primatas, incluindo os seres humanos,
os sinais cerebrais fornecem uma chave para a compreensão da origem
do sonho em seres humanos. Os sonhos podem refletir um mecanismo
de processamento da memória herdado de espécies inferiores, no qual a
informação importante para a sobrevivência é reprocessada. Essa
informação pode constituir o cerne do inconsciente.
Como os animais não possuem linguagem, a informação que
processam durante o sono REM é necessariamente sensorial. De forma
consistente com nossas primitivas origens mamíferas, os sonhos nos
humanos são sensoriais, principalmente visuais, não assumindo a forma
de narração verbal.
Em consonância ainda com o papel desempenhado pelo sono REM
no processamento da memória nos animais, não existe necessidade
funcional de que este material se torne consciente. A consciência surge
mais tarde, com a evolução humana. Mas também não há razão para que
o conteúdo dos sonhos não alcance a consciência. Assim, os sonhos
podem ser lembrados - mais facilmente se o despertar ocorrer durante ou
logo após o sono REM.
Minha hipótese é de que os sonhos refletem a estratégia de
sobrevivência das pessoas. Os temas dos sonhos são variados e
complexos, incluindo auto-imagem, temores, inseguranças, poderes, idéias
grandiosas, orientação sexual, desejo, ciúme e amor.
Os sonhos tem, claramente, um profundo núcleo psicológico. Esta
observação foi feita por psicanalistas desde Freud e admiravelmente
ilustrada pela obra de Rosalind Cartwright, do RushPresbyterian-St. Luke's
Hospital, de Chicago. Cartwright estudou 90 pessoas que passavam por
processos de separação e divórcio conjugal. Todas foram avaliadas
clinicamente e submetidas a testes psicológicos para determinar suas
atitudes e respostas a crise pela qual passavam. Elas foram também
despertadas durante o sono REM para que relatassem seus sonhos por
conta própria, sem perguntas que pudessem influenciar suas
interpretações. Em 70 dos casos estudados, o conteúdo dos sonhos referiase a pensamentos inconscientes e estava fortemente relacionado ao modo
pelo qual a pessoa lidava com a crise quando acordada.
Embora não seja possível prever o tema "escolhido" para consideração
durante uma noite de sono, algumas das dificuldades da vida - como no caso
das pessoas estudadas por Cartwright - vinculam-se de tal forma à
sobrevivência psicológica que são selecionadas para processamento durante
o sono REM. Em circunstâncias normais, o tema dos sonhos pode ser livre,
dependendo da personalidade do indivíduo. Ao se combinar com as intrincadas
associações que são parte intrínseca do processamento do sono REM, seus
enunciados podem ser bastante obscuros.
Todavia, há razão para acreditarmos que o processo cognitivo que
ocorreu com as pessoas estudadas por Cartwright ocorra com todos. A
interpretação depende dos eventos relevantes ou similares reconhecidos
pelo indivíduo; essas associações são muito influenciadas pelas
experiências da primeira infância.
53
Minha hipótese permite também explicar a grande quantidade de
sono REM observada nos recém-nascidos e nas crianças. Os recémnascidos passam 8 horas por dia em sono REM. O ciclo do sono está,
nessa idade, desorganizado; ocorre em ciclos de 50 a 60 minutos,
começando pelo sono REM, e não pelo de ondas lentas. Aos dois anos de
idade, o sono REM é reduzido para três horas ao dia e diminui gradualmente
até chegar a pouco menos de duas horas.
O sono REM pode desempenhar uma função especial nos bebês.
Uma das teorias dominantes sustenta que estimule o desenvolvimento de
neurônios. Sugiro que, por volta de dois anos de idade, quando o
hipocampo, que continua a se desenvolver após o nascimento, torna-se
funcional, o sono REM assume sua função de memória interpretativa. A
informação obtida durante a vigília e a ser integrada neste ponto do
desenvolvimento constitui o substrato cognitivo básico da memória - o
conceito do mundo real contra o qual as experiências posteriores devem
ser comparadas e interpretadas. A organização na memória dessa extensa
infra-estrutura exige o tempo adicional de sono REM.
Por razões que não podia conhecer, Freud apresentou em sua
obra uma verdade profunda. Há um inconsciente e os sonhos são, de
fato, a "via privilegiada" para compreendê-los. Entretanto, as características
dos processos inconscientes e associados do funcionamento do cérebro
são muito diferentes daquelas imaginadas por Freud. Proponho que o
inconsciente seja considerado, não como um caldeirão de paixões
indomáveis e de desejos destrutivos, mas como uma estrutura mental
continuamente ativa e coesa que registra as experiências e reage de acordo
com o seu próprio esquema de interpretação. Os sonhos não são
dissimulados em razão da repressão. Seu caráter incomum resulta das
complexas associações que são selecionadas da memória.
A pesquisa sobre o sono REM sugere que há uma razão
biologicamente relevante para o sonho. A versão revisada da hipótese de
síntese-ativação de Hobson e McCarley reconhece o profundo núcleo
psicológico dos sonhos. Em sua formulação truncada atual, a hipótese da
ativação aleatória do tronco encefálico tem pouco poder explicativo ou
preditivo.
A hipótese de Crick Mitchison atribui uma função para o sono REM
- o aprendizado invertido - mas não se aplica a narrativa, só aos elementos
bizarros do sonho. É preciso definir a implicação disto para o
processamento REM nas espécies inferiores antes que a teoria possa ser
melhor avaliada. Além disso, a hipótese Crick Mitchison, aplicada ao
hipocampo, sugeriria que os neurônios disparam aleatoriamente durante
o sono REM, permitindo assim o aprendizado invertido. Meu experimento
com os neurônios que mapeiam o espaço sugere, em vez disso, que estes
neurônios disparam de forma seletiva, o que implica um processamento
ordenado da memória.
Avi Karni e seus colegas do Weizmann Institute of Science, em
Israel, mostraram que o processamento da memória ocorre, nos humanos,
durante o sono REM. No experimento que fizeram, os indivíduos
aprenderam a identificar padrões específicos em uma tela. A memória
desta habilidade foi aprimorada após uma noite de sono REM. Quando as
pessoas foram privadas do mesmo, a memória não se consolidou. Este
estudo abre um campo de investigação promissor.
Talvez seja de maior importância a evidência, fornecida pela biologia
molecular, que confirma o papel desempenhado pelo sono REM no
processamento da memória. Sidarta Ribeiro e seus colegas da Rockefeller
University relataram que o gene zif-268, associado ao aprendizado, e
54
ativado seletivamente durante o sono REM em ratos expostos a experiência
em um período de anterior de vigília. Podemos esperar, dessa área de
pesquisa, uma maior compreensão do papel do sono REM.
Para conhecer mais
Interspecies Differences in the Occurrence of Theta. Jonathan Winson Behavioral Biology, Vol. 7, No.
4, pags. 479-487; 1972.
Loss of Hippocampal Theta Rhythm Results in Spatial Memory Deficit in the Rat. Jonathan Winson
em Science, Vol. 201, No. 435, pags.160-163;1978.
Brain and Psyche: The Biology of the Unconscious. Jonathan Winson Anchor Press, Doubleday,
1985.
Long-Term Potentiation in the Dentate Gyros is Induced Preferentially on the Positive Phase of QRhythm. Constantine Pavlides, Yoram J. Greenstein, Mark Grudman e Jonathan Winson em Brain
Research,Vol. 439, págs. 383-387; 1988.
Influences of Hippocampal Place Cell Firing in the Awake State on the, Activity of These Cells during
Subsequent Sleep Episodes. Constantine Pavlides a Jonathan Winson em Journal of Neuroscience,
Vol. 9, No. 8, págs. 2907-2918; agosto,1989.
Dependence on REM Sleep of Overnight Improvement of a Perceptual Skill. Avi Karni, David Tanne,
Barton S. Rubenstein, Jean J. M. Askenasy a Dov Sagi em Science, Vol. 265, pags. 679-682; 29 de
julho de 1994.
Reactivation of Hippocampal Ensemble Memories during Sleep. Mathew A. Wilson a Bruce L.
McNaughton em Science Vol. 265, págs. 676-679; 29 de julho de 1994.
Brain Gene Expression during REM Sleep Depends on Prior Wakin Experience. Sidarta Ribeiro,
Vikas Goal Claudio V Mello e Constantine Pavlides em Learning and Memory, Vol. 6, págs 500-508;
1999.
55
Material de apoio da atividade
O envelhecimento dificulta o
aprendizado devido a perda de
neurônios?
Texto extraído da revista Scientific American, edição especial nº 4,
2001 de Gerd Kempermann e Fred H. Gage
Novos neurônios no cérebro adulto
Ao contrário do que muitos acreditam, o cérebro humano adulto é
capaz de gerar novas células. Essa descoberta levará a tratamentos mais
eficazes para as doenças neurológicas?
Introdução
A cicatrização de um corte na pele ocorre em questão de dias.
Uma fratura na perna pode ser resolvida sem maiores problemas se o
osso estiver posicionado corretamente. Praticamente todo tecido humano
é capaz de se auto-recompor até certo ponto, graças, em grande parte, as
versáteis células-tronco, cuja capacidade de se multiplicar e de gerar
diversos outros tipos de células, assimila-se àquela de um embrião em
desenvolvimento. Um exemplo espetacular são as versões encontradas
na medula óssea, capazes de produzir células encontradas no sangue:
hemácias, plaquetas e uma variedade de células brancas. Outras célulastronco são responsáveis pela produção dos diversos componentes da pele,
do fígado e do revestimento intestinal.
O cérebro adulto consegue, ocasionalmente, contrabalancear
perdas bastante bem, ao fazer novas conexões entre neurônios
sobreviventes. Porém, não é capaz de restaurar a si próprio, já que não
possui as células-tronco necessárias. Ou, ao menos, era nisso que se
acreditava recentemente. Em novembro de 1998, Peter S. Eriksson, do
Hospital Universitário Sahlgrenska, em Gotemburgo, na Suécia, Gage,
membro de nossa equipe do Salk Institute for Biological Studies, em San
Diego, e diversos outros colegas, publicaram a surpreendente notícia de
que o cérebro humano maduro continua a gerar neurônios regularmente
em pelo menos um local, o hipocampo, área importante para a memória e
a aprendizagem (a memória não fica armazenada no hipocampo, porém
ele ajuda a formá-la após receber contribuições de outras partes do
cérebro).
O número de células novas é baixo em relação ao total do cérebro,
mas nossa descoberta traz à tona perspectivas fascinantes para a medicina.
Dados atuais sugerem que as células-tronco produzem novos neurônios
em uma outra parte do cérebro humano, além de serem encontradas,
ainda que dormentes, em locais adicionais. Assim, é possível que nosso
cérebro, com capacidade de reparo tão precária, na realidade possua
enorme potencial para a regeneração neuronal. Caso se descubra como
induzir células-tronco a produzir um volume útil de neurônios funcionais
em regiões específicas, diversos distúrbios que envolvem lesões de
neurônios e a morte, como as doenças de Alzheimer e Parkinson, além
das incapacidades decorrentes de acidentes vasculares cerebrais e
traumatismo craniano, possivelmente poderão ser tratados.
56
Há anos estudos com outros mamíferos adultos indicavam que o
cérebro humano totalmente desenvolvido seria capaz de produzir
neurônios. Em 1965, Joseph Altman e Gopal D. Das, do MIT, descreveram
a produção de neurônios (neurogênese) no hipocampo de ratos adultos
exatamente na mesma região, conhecida como giro denteado, onde este
fenômeno foi recentemente descoberto no homem.
Apesar de estudos posteriores confirmarem o relato, a descoberta
não foi vista como prova da existência de neurogênese significativa em
mamíferos adultos, nem mesmo como indício do potencial regenerativo
do cérebro humano. Os métodos disponíveis na época não eram capazes
de estimar com precisão o número de neurônios produzidos ou provar
que as novas células eram neurônios. Além disso, o conceito de célulastronco cerebrais ainda não havia sido introduzido. Acreditava-se que a
criação de novos neurônios dependesse da reprodução de versões já
maduras algo extremamente difícil. A relevância das descobertas também
foi subestimada, em parte, porque até então não havia sido apresentada
prova da neurogênese em macacos ou símios, primatas, e, portanto,
genética e fisiologicamente mais próximos do homem que outros
mamíferos.
A situação permaneceu assim até meados da década de 80, quando
Fernando Nottebohm, da Rockefeller University, criou polêmica ao revelar
resultados obtidos com canários adultos. Ele descobriu que a neurogênese
ocorre nos centros cerebrais que regem a aprendizagem da música e, ainda,
que o processo é acelerado durante épocas em que os pássaros adultos
assimilam a música. Nottebohm e colegas também mostraram que a formação
de neurônios no hipocampo de Chapins norte-americanos aumenta quando
crescem as exigências sobre o sistema de memória deles, principalmente
quando precisam se lembrar dos locais de armazenamento de alimentos. Os
impressionantes resultados de Nottebohm levaram a um ressurgimento do
interesse pela neurogênese em mamíferos e pelo potencial regenerativo do
cérebro humano adulto.
Mas o otimismo não durou muito. Pasko Rakic e colegas da Yale
University foram pioneiros em estudar a neurogênese em primatas adultos
e o trabalho, muito bem feito para sua época, não encontrou novos
57
neurônios no cérebro de macacos Rhesus. A lógica também ia contra a
hipótese. Os biólogos sabiam que, com a evolução e a complexidade cada
vez maior do cérebro, a neurogênese havia se tornado cada vez mais
restrita. Embora lagartos e outros animais inferiores desfrutem de uma
regeneração neuronal grande quando seu cérebro é lesado, em mamíferos
essa reação saudável estaria ausente. Parecia razoável supor que a adição
de novos neurônios e complexidade de conexões do cérebro humano
ameaçaria o fluxo organizado de sinais.
Indícios de que esse raciocínio poderia ser falho só surgiram há
alguns anos. Em 1997, equipe comandada por Elizabeth Gould e Bruce
S. McEwen, do Rockefeller, a Eberhard Fuchs, do Deutsches
Primatenzentrum, em Gottingen, Alemanha, revelaram a existência de
neurogênese no hipocampo do musaranho, animal próximo do primata.
Em 1998, detectaram o mesmo fenômeno no sagüi. Apesar de mais
distantes do homem, em termos de evolução, que os macacos Rhesus,
os sagüis não deixam de ser primatas.
Estudos em humanos
Ficou claro que só seria possível provar a capacidade humana
para a neurogênese na fase adulta estudando diretamente seres humanos.
No entanto, as técnicas utilizadas para comprovar a formação de novos
neurônios em animais não pareciam ser aplicáveis em pessoas. Elas
variam, mas em geral se baseiam no fato de que as células, antes de se
dividirem, duplicam seus cromossomos, permitindo que cada célula filha
receba um conjunto completo. Nas experiências realizadas com animais,
injeta-se um material rastreável (um "marcador") na cobaia, que se integra
somente ao DNA das células que se preparam para divisão. O marcador
torna-se então parte do DNA das células filhas e é herdado pelas filhas
das filhas, assim como pelos futuros descendentes das células originais.
Após um período, algumas das células marcadas se diferenciam
ou seja, se especializam em tipos específicos de neurônios ou células
gliais (outro tipo principal de células cerebrais). O cérebro da cobaia é
então removido e seccionado, e as partes recebem um corante para ajudar
a localização das células que têm o marcador (sinal de que derivam das
células originais), a que apresentam as características químicas e
anatômicas de um neurônio.
Obviamente, seres humanos não podem ser testados dessa forma.
O obstáculo parecia intransponível até que Eriksson deparou com a solução
durante um período sabático com nossa equipe no Salk Institute. Em
consulta com um oncologista, Eriksson, que é clínico, descobriu que a
substância que utilizávamos como marcador em animais a
bromodeoxiuridina (BrdU) coincidentemente estava sendo ministrada a
alguns pacientes, em fase terminal de câncer da laringe ou da língua, que
participavam de um estudo. Eriksson percebeu que, se conseguisse obter
o hipocampo dos que viessem a falecer, poderíamos verificar se algum
neurônio exibia o marcador de DNA. Isso significaria que havia sido formado
após a substância ser ministrada, ou seja, que havia ocorrido neurogênese,
presumivelmente através da proliferação e diferenciação de células-tronco
durante a fase adulta do paciente.
Eriksson obteve autorização para a pesquisa. Entre o início de 1996
e fevereiro de 1998, recebeu o tecido cerebral de cinco pacientes, entre
57 a 72 anos de idade, falecidos. Conforme as expectativas, os cérebros
apresentavam novos neurônios - especificamente aqueles conhecidos
como células granulares no giro denteado. Devemos a prova da
58
neurogênese humana adulta à generosidade desses pacientes. Desde
então, a equipe de Gage, bem como Steven A. Goldman e colegas da
facudade de medicina da Cornell University, têm isolado células cerebrais
de autópsias e biópsias do hipocampo de adultos. Essas células
conseguem se dividir em meios de cultura e serem induzidas a produzir
neurônios, confirmando assim a possibilidade de haver neurogênese no
cérebro humano adulto.
Novos Neurônios Funcionam?
É claro que só demonstrar a neurogênese humana não é suficiente.
Se o objetivo final é estimular a regeneração neuronal controlada em
doentes, é necessário que se determine a localização das células-tronco
capazes de se tornar neurônios, que elas serão funcionais e poderão enviar
e receber mensagens de forma correta. Felizmente, já que a neurogênese
no hipocampo dos roedores representa um fenômeno que ocorre no
cérebro humano, os pesquisadores podem voltar a realizar estudos com
ratos e camundongos a procura de pistas.
Estudos anteriores com roedores revelaram que algum tipo de
neurogênese ocorre durante toda a vida não apenas no hipocampo, mas
também no sistema olfativo. As células-tronco também podem ser
encontradas em partes do cérebro como o septo (envolvido, em processos
de emoção e aprendizagem), o striatum (envolvido na sintonia fina de
atividades motoras) e a medula espinhal. Porém, as células que se
encontram fora do hipocampo e do sistema olfativo não parecem produzir
neurônios em condições normais.
Se a parte anterior do cérebro de um animal fosse transparente, a
porção do giro denteado do hipocampo seria visualizada como uma camada
fina e escura e teria mais ou menos a forma de um V visto de lado. Esse
V é composto por corpos celulares de neurônios granulares partes
globulares que contém o núcleo. A camada adjacente interna deste V é
denominada hilo e é composta principalmente por axônios, projeções
longas através das quais células granulares transmitem sinais para uma
estação de relé hipocampal conhecida como CA3.
Uma célula-tronco totipotente, capaz de
produzir qualquer célula do corpo, produz
descendentes iniciais que incluem célulastronco, ainda não especializadas,
comprometidas com a produção de células
cerebrais (1). Essas células comprometidas,
posteriormente produzem células
"progenitoras", destinadas a criar apenas
neurônios (2), ou células gliais, que promovem
a sobrevivência dos mesmos. Finalmente as
progenitoras neuronais geram células
granulares no hipocampo (3) ou outro tipo de
neurônio em outras partes do cérebro. Os
passos 2 e 3 parecem se repetir durante toda
vida no hipocampo humano.
59
As células-tronco que produzem novas células granulares ficam
na divisa entre o giro denteado e o hilo e se dividem continuamente. Muitas
das descendentes são exatamente iguais as células precursoras, e grande
parte delas parece morrer logo após ser produzida. Algumas células migram
para regiões mais profundas da camada de células granulares e adquirem
a aparência daquelas ao seu redor, incluindo suas múltiplas projeções
para recepção e envio de sinais. Além disso, estendem seus axônios pelos
mesmos trajetos utilizados por células vizinhas já estabelecidas.
As células-tronco que produzem novos neurônios no sistema
olfativo alinham-se ao longo das paredes de cavidades cerebrais repletas
de líquidos, conhecidas como ventrículos laterais. Arturo Alvarez Buylla e
colegas do Rockefeller demonstraram que algumas descendentes destas
células-tronco migram uma boa distância para dentro do bulbo olfatório,
onde adquirem características dos neurônios dessa área.
Considerando que os novos neurônios em ambas as regiões
cerebrais se parecem com os nascidos anteriormente, existe uma grande
possibilidade de que seu comportamento também seja igual. Mas como
provar isso? Estudos que analisam os efeitos do meio ambiente na
anatomia cerebral têm nos ensinado muito. No início dos anos 1960, Mark
R. Rosenzweig e colegas da University of California, em Berkeley,
removeram roedores de suas condições normais no laboratório, bastante
espartanas, e os colocaram em um ambiente mais rico, onde desfrutavam
do luxo de viver em grandes gaiolas e conviver com outros roedores. Além
disso, podiam explorar os arredores (constantemente modificados pelos
responsáveis) e usar diversos brinquedos.
O grupo de Rosenzweig, e mais tarde o de William T. Greenough,
da University of Illinois, descreveram conseqüências admiráveis desse
experimento. Em comparação com animais mantidos nas gaiolas padrão,
o cérebro daqueles que desfrutaram de uma vida mais rica ficou mais
pesado, além de apresentar maior densidade de determinadas estruturas,
diferenças nos níveis de alguns neurotransmissores (moléculas que
transportam mensagens estimuladoras ou inibidoras de um neurônio para
outro), maior número de conexões entre as neurônios e maior ramificação
de projeções neuronais. E demonstraram melhor desempenho em testes
de aprendizagem.
Desde então, neurobiólogos se convenceram de que o enriquecimento
do ambiente em que vivem roedores maduros influencia o processo de
formação da circuitaria cerebral, aumentando sua capacidade cerebral.
Durante anos, porém, a noção de que a produção de novos neurônios no
cérebro adulto poderia contribuir para isso foi descartada, mesmo após Altman
ter sugerido, já em 1964, que tal processo deveria ser considerado.
Outras descobertas confirmaram que modificações ambientais de
fato afetam a neurogênese adulta. Através da aplicação de uma tecnologia
não disponível na década de 1960, nosso grupo demonstrou, em 1997,
que camundongos adultos com condição de vida mais rica produziram
60% mais células granulares novas no giro denteado que um grupo de
controle geneticamente idêntico. Também se saíram melhor em um teste
de aprendizagem. A melhoria do ambiente aumentou até mesmo a
neurogênese e o desempenho de aprendizagem de camundongos com
idade bastante avançada, cuja taxa básica de produção neuronal é muito
mais baixa que a de adultos jovens.
Não estamos afirmando que as melhorias de comportamento
tenham ocorrido unicamente graças aos novos neurônios, uma vez que
modificações na configuração das ramificações, bem como no
microambiente químico das áreas cerebrais envolvidas sem dúvida têm
60
papel importante. Por outro lado, seria surpreendente se um progresso
tão dramático na formação de neurônios, assim como a preservação da
neurogênese adulta durante a evolução, não servisse a alguma função.
Em Busca de Controles
Diversos artigos descreveram fatores individuais que, quando
manipulados, afetam a neurogênese adulta. Estas manipulações variam
desde lesões que simulam traumatismo craniano ou derrames, a modelos
experimentais de epilepsia ao emprego de drogas antidepressivas. Apesar
dos vários estudos, baseados em diferentes paradigmas experimentais e
utilizando diferentes critérios analíticos, ainda não se tem uma idéia clara
de como a neurogênese adulta seja regulada. Porém, a variedade de
fatores eficazes e as diferenças, aparentemente sutis, em seus efeitos,
sugerem que a neurogênese adulta é, de maneira geral, muito sensível a
mudanças em diversos sistemas regulatórios do cérebro.
Alguns aspectos da neurogênese adulta parecem reagir a estímulos
de forma um tanto inespecífica, ao contrário de outros. Foi dada a largada
para a busca dos fatores específicos que controlarão a neurogênese adulta.
Estamos particularmente interessados em elucidar como a regulação
dependente de atividades da neurogênese adulta é mediada em nível de
moléculas a genes. A compreensão dos mecanismos de controle da
formação de neurônios poderia eventualmente ensinar como estimular a
regeneração onde esta for necessária. Além do enriquecimento do
ambiente, estudos com animais identificaram diversos outros fatores que
influenciam a neurogênese.
Para que estes resultados façam mais sentido, é necessário
recordar que a neurogênese ocorre em diversos estágios desde a
proliferação das células-tronco, passando pela sobrevivência de algumas
descendentes, até a migração e diferenciação celular. Fatores que têm
influência em um estágio não afetam necessariamente outro. Um aumento
na proliferação das células-tronco pode produzir crescimento no número
de novos neurônios, se a taxa de sobrevivência e diferenciação das célulasfilhas permanecer constante, mas, se for na direção inversa, é possível
que este aumento não ocorra. Da mesma forma, o número de neurônios
pode aumentar mesmo se a proliferação for constante, caso a sobrevivência
e diferenciação aumentem.
Entre as influências regulatórias descobertas, algumas parecem
desestimular normalmente a neurogênese. Nos últimos anos, por exemplo,
Gould e McEwen relataram que certas intervenções diárias no giro
denteado podem conter a produção de neurônios. Mais especificamente,
os neurotransmissores que estimulam as células granulares também são
responsáveis pela inibição da proliferação das células-tronco no hipocampo.
Altos níveis de glucocorticóide no sangue também inibem a neurogênese
adulta.
A equipe demonstrou que o estresse reduz a proliferação de célulastronco na mesma região, pois leva à liberação de neurotransmissores
excitativos e à secreção de hormônios glucocorticóides nas supra renais.
Compreender os mecanismos envolvidos na inibição é importante para
aprender a superá-la. A descoberta de que níveis extremos de
transmissores excitatórios e de certos hormônios podem conter a
neurogênese não significa necessariamente que níveis mais baixos sejam
prejudiciais; na realidade, podem até ser úteis.
Quanto aos fatores que estimulam a neurogênese hipocampal, temos
tentado identificar quais elementos de um ambiente mais rico exercem mais
61
efeito. Gould, agora na Princeton University, e colegas demonstraram que a
participação em um teste de aprendizado, mesmo na ausência de condições
mais ricas, favorece a sobrevivência das células geradas através da divisão
das células-tronco, resultando em aumento do número de neurônios. Nossa
equipe comparou a neurogênese em dois grupos de camundongos mantidos
em gaiolas-padrão, uma com roda de exercícios e outra, sem. Os
camundongos com acesso ilimitado a roda utilizaram na freqüentemente e
acabaram por produzir duas vezes mais neurônios que seus companheiros
sedentários, número comparável àquele encontrado nos camundongos que
haviam sido mantidos em ambiente enriquecido. Nos camundongos que se
exercitaram, uma maior taxa de divisão de células-tronco exerceu influência
no efeito final, enquanto este fator não teve influência nos ganhos do grupo
submetido a um ambiente mais rico. Neste último caso (como no estudo de
Gould), as condições estimulantes aparentemente promoveram a
sobrevivência da progênise das células-tronco, para que um maior número
delas sobrevivesse até se tornar neurônio. Os processos que regulam a
neurogênese em adultos são complexos e ocorrem em diversos níveis.
Certas moléculas sabidamente influenciam a neurogênese.
Avaliamos os fatores de crescimento epidérmico e de fibroblastos, que,
apesar de seus nomes, afetam o desenvolvimento de neurônios em culturas
de células. Com H. Georg Kuhn, então no Salk Institute, e Jürgen Winkler,
da University of California, em San Diego, administramos estes compostos
aos ventrículos laterais de ratos adultos, onde desencadearam uma
proliferação acentuada nas células-tronco locais. O fator de crescimento
epidérmico favoreceu a diferenciação das células resultantes em células
gliais no bulbo olfatório, enquanto o fator de crescimento de fibroblastos
promoveu produção neuronal.
É interessante que a indução de determinadas condições
patológicas, como crises epiléticas ou derrames, em animais adultos,
podem despertar divisão intensa de células-tronco e até mesmo
neurogênese. Ainda não se sabe se o cérebro pode utilizar esta resposta
para repor neurônios necessários. No caso de crises epiléticas, talvez as
conexões aberrantes formadas por neurônios recém-nascidos sejam parte
do problema. A divisão de células-tronco e a neurogênese são provas
adicionais de que o cérebro tem potencial para a auto-regeneração. A
questão é: por que esse potencial normalmente não é utilizado?
Nos experimentos discutidos até agora, eventos regulatórios foram
examinados enquanto os genes eram mantidos constantes: observamos
as reações neurológicas de animais geneticamente idênticos a diferentes
intervenções. Pode-se também identificar mecanismos de controle da
neurogênese mantendo-se o ambiente constante e comparando genes
em linhagens de animais cujas taxas de produção de neurônio se
diferenciam de forma inata. Presumivelmente, os genes que variam incluem
aqueles que afetam o desenvolvimento de novos neurônios. Pesquisadores
podem comparar os genes ativos em regiões do cérebro que apresentam
ou não neurogênese.
Os genes agem como mapas para as proteínas, que, por sua vez,
executam grande parte das atividades celulares, como a indução da divisão
celular, migração ou diferenciação. Assim, caso os genes que participam da
geração de neurônios sejam identificados, deve ser possível descobrir seus
produtos proteicos e quais suas contribuições específicas à neurogênese.
62
Regenerando o Cérebro
É possível que os pesquisadores consigam rastrear as cascatas
moleculares que levam de um estímulo específico seja ele uma modificação
ambiental ou um evento interno as alterações específicas na atividade
genética, que provoquem aumento ou diminuição na neurogênese. Estarão,
então, de posse de grande parte das informações necessárias para induzir a
regeneração como queiram. A abordagem terapêutica pode envolver a
administração de moléculas reguladoras essenciais ou de outros agentes
farmacológicos, aplicação de terapia genética para fornecer moléculas,
transplante de células-tronco, modulação de estímulos ambientais ou
cognitivos, alterações na atividade física ou uma combinação destes fatores.
A compilação pode levar décadas. Porém, uma vez coletadas, as
técnicas poderiam ser aplicadas de diversas maneiras. Poderiam fornecer
algum tipo de regeneração, tanto em áreas do cérebro que sabidamente
manifestem alguma neurogênese, quanto em locais onde células-tronco
existam, mas estejam inertes. Talvez seja possível estimular células-tronco
a migrar para áreas onde não costumam ir e amadurecer, tornando-se
tipos específicos de neurônios. Apesar de as novas células não serem
capazes de restituir partes inteiras do cérebro ou recuperar memória
perdida, poderiam, por exemplo, produzir quantidades valiosas de
dopamina (neurotransmissor cuja depleção é responsável pelos sintomas
da doença de Parkinson) ou de outras substâncias.
Pesquisas realizadas em áreas científicas correlatas auxiliam na
busca por terapias avançadas. Por exemplo, diversos laboratórios
aprenderam a cultivar células-tronco de embriões humanos. Altamente
versáteis, elas são capazes de produzir praticamente qualquer tipo de
célula do corpo humano, e um dia talvez possam ser estimuladas a produzir
um tipo específico de neurônio, que seria então transplantado para locais
lesados. Para solucionar a potencial rejeição de transplantes pelo sistema
imunológico, poder-se-ia coletar células-tronco no cérebro do próprio
paciente, em vez de utilizar as de um doador. Já foram desenvolvidas
maneiras relativamente não invasivas de extrair essas células.
Estas aplicações médicas são ainda um objetivo de longo prazo.
Um dos principais desafios é que as análises de fatores que controlam a
neurogênese e das terapias propostas para distúrbios do cérebro terão de
passar, em algum momento, dos roedores para seres humanos. Para
estudar seres humanos sem interferir com sua saúde, será necessário
lançar mão de protocolos extremamente inteligentes, com técnicas não
invasivas, como imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) ou
tomografia por emissão de pósitrons (PET). Além disso, será preciso
desenvolver mecanismos de defesa que garantam que os neurônios
estimulados a se formar no cérebro humano (ou transplantados) executem
exatamente o que desejamos e não interfiram nas funções normais do
cérebro.
O Papel da Neurogênese
A principal questão permanece: qual é a função prática da
neurogênese adulta? A aparente complexidade de sua regulação e sua
reação a estímulos funcionais sugerem que tenha papel importante na
função hipocampal. Gage, Henriette van Praag, do Salk Institute e Alejandro
F. Schinder, agora na University of California, em San Diego, desenvolveram
um novo método para marcar células recém-nascidas e demonstraram
que as propriedades eletrofisiológicas dos novos neurônios hipocampais
63
gerados são idênticas àquelas das células vizinhas mais antigas. Essa
descoberta esclareceu se a neurogênese adulta produz ou não neurônios
funcionais, mas ainda não se sabe o papel que estes exercem no
hipocampo.
As tentativas de ligar a neurogênese à aprendizagem e à memória
são inconclusivas. O hipocampo é considerado o portal da memória:
processa informações antes do armazenamento de longo prazo nas regiões
corticais. Este processo é denominado consolidação da memória, e
acreditamos que a função dos novos neurônios tenha alguma ligação com
ele. Mas as novas células não são adicionadas ao hipocampo como um
"chip de memória", uma vez que seu número seria baixo demais para
armazenar quantidade significativa de informações. Além disso, as
informações são armazenadas na força das conexões em uma rede de
neurônios, e não em células individuais. Nossa hipótese é que os novos
neurônios são adicionados de forma estratégica a rede de processamento
do giro denteado e possivelmente sejam os novos guardiões dos portais
da memória, modificando o processador de acordo com o aumento das
necessidades funcionais.
Uma questão que deve ser esclarecida é se a neurogênese ocorre
em outras partes do cérebro. A neurogênese adulta foi descrita em duas
regiões: o hipocampo e o sistema olfativo, e há grande controvérsia em
torno de sua existência fora delas. Apesar de Gould ter relatado números
surpreendentes de novos neurônios no neocórtex, essa descoberta foi
convincentemente desafiada por David Kornack, da University of Rochester,
e por Pasko Rakic que, após minuciosa análise microscópica, não
conseguiram encontrar novos neurônios corticais.
Sabe-se, com base em estudos de cultura celular realizados com
roedores, que células-tronco neuronais capazes de produzir neurônios
em uma placa de Petri podem ser derivadas de praticamente qualquer
região do cérebro, inclusive do córtex. Porém, sob condições fisiológicas,
nenhum neurônio parece se desenvolver a partir destas células enquanto
se encontram no cérebro e fora das duas regiões neurogênicas clássicas.
Jeffrey D. Macklis e colegas da Harvard University demonstraram que,
sob condições de lesão altamente específicas e circunscritas a neurônios
individuais no córtex de camundongos, essas células podem ser
substituidas por células progenitoras naturais, ou endógenas. A descoberta
não se aplica com facilidade a condições mais gerais, mas mostra que,
em principio, a neurogênese cortical é factível.
Como podemos utilizar o potencial neurogênico das células-tronco
neuronais do cérebro adulto para fins terapeuticos? É possível que um dia
se descubra que a neurogênese direcionada seja, de fato, uma opção
para os distúrbios neurológicos. Diversas perguntas ainda devem ser
respondidas, mas, com o crescente interesse nesta área, é possível que
este potencial se torne realidade antes do esperado.
Para conhecer mais:
More Hippocampal Neurons in Adult Mice Living in an Enriched Environment. Gerd Kempermann, H.
Georg Kuhn a Fred H. Gage em Nature, Vol. 386, págs. 493-495; 3 de abril de 1997.
Neurogenesis in the Adult Human Hippocampus. Peter S. Eriksson et al. em Nature Medicine, Vol. 4,
No. 11, págs.1313-1317; novembro de 1998.
Learning Enhances Adult Neurogenesis in the Hippocampal Formation. Elizabeth Gould et al em
Nature Neuroscience, Vol. 2, No. 3, págs. 260-265; março de 1999.
Running Increases Cell Proliferation and Neurogenesis in the Adult Mouse Dentate Gyrus. Henriette
van Praag et al. em Nature Neuroscience, Vol. 2, No. 3, págs. 266-220; margo de 1999.
Neurogenesis in Adult Primate Neocortex: An Evaluation of Evidence. Pasko Rakic em Nature Reviews:
Neuroscience, Vol. 3, págs. 65-71; janeiro de 2002.
Functional Neurogenesis intheAdult Hippocampus. Henriette van praag, Alejandro F Schinder, Brian
R. Christie, Nicolas Toni, Theo D. Palmer a Fred H. Gage em Nature, Vol. 415, págs.1030-1034; 28
de fevereiro de 2002.
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Material de apoio da atividade
Existem coisas mais fáceis de lembrar
do que outras?
Prestando atenção e lembrando
Uma maneira importante pela qual a percepção se torna consciente
é através da atenção, que, em essência, é a focalização consciente e
específica sobre alguns aspectos ou algumas partes da realidade. Assim
sendo, nossa consciência pode, voluntariamente ou espontaneamente,
privilegiar um determinado conteúdo e determinar a inibição de outros
conteúdos vividos simultaneamente.
Portanto, reconhece-se a Atenção como um fenômeno de tensão,
de esforço, de concentração, de interesse e de focalização da consciência.
Tipos de atenção
Nossos cinco sentidos podem ser ativados conscientemente para
focalizar a Atenção sobre um determinado estímulo. Os condicionamentos,
muitas vezes inconscientes, podem proporcionar uma certa atividade de
espera, mais ou menos orientada, no sentido de confirmar ou não uma
determinada expectativa.
Ao acrescentar mais sal na comida, por exemplo, nosso paladar
espera, com certa expectativa, constatar determinado gosto, assim como
esperamos ver momentos antes, determinada cena de acidente ao
constatar a direção e velocidade de um carro de corridas. Trata-se da
espera pré-perceptiva. Outras vezes, entretanto, quando os resultados
fogem completamente da expectativa perceptiva, acontece uma espécie
de choque sensorial que dá origem a um estado de surpresa.
Ao olhar para um objeto, por exemplo, a pessoa se inclina na direção
desse objeto, e o mecanismo ocular atua de forma que os olhos se dirijam
ao objeto até que este caia na fóvea; os músculos do cristalino se
acomodam de forma que a imagem fique no foco mais claro, etc. Ao ouvir
um som baixo a pessoa estica o pescoço para a frente, coloca sua mão
atrás da orelha, e pode fechar os olhos a fim de eliminar os estímulos
visuais concorrentes na tentativa de selecionar um determinado objeto
(sonoro) como foco de sua Atenção.
Veja-se, por exemplo, a brincadeira de tapa nas mãos. Neste
joguete um dos jogadores, aquele que dará os tapas, fica com as mãos
espalmadas para cima, enquanto o outro coloca suas mãos sobre as mãos
do primeiro. Repentinamente o primeiro tentará retirar suas mãos e
estapear as mãos do segundo. Vence o mais rápido. O segundo deve
retirar suas mãos, tão logo perceba que o primeiro iniciou o movimento de
estapeá-lo.
Afeto e atenção
Um dos fatores individuais de maior influência no processo da
Atenção destacam-se as condições do estado de ânimo ou de interesse,
os quais podem facilitar ou inibir a mobilização da Atenção. Portanto, o
elemento afetivo tem significação determinante no processo da Atenção,
admitindo-se que a pessoa só dirige a Atenção aos estímulos que lhe
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despertam interesse. De fato, ao constarmos que nossa Memória tem
mais afinidade para as coisas que nos despertam maior interesse, estamos
falando antes, que nossa Atenção (indispensável para a Memória) é
mobilizada mais prontamente pela nossa afetividade.
Nossa Atenção sobre algo é tanto mais intensa quanto mais nos
interessa esse algo, quanto mais desejamos conhecê-lo e compreendêlo, quanto mais isto nos proporcione prazer ou satisfação. É por isso que,
durante os episódios depressivos, onde o prazer e o interesse estão
significativamente comprometidos, a Atenção e a Memória estarão também
severamente prejudicadas; por falta de interesse e prazer.
Vamos fazer um teste
Você tem 3 minutos para responder a cada grupo de perguntas
abaixo. Cronometre o tempo gasto para cada uma das duas etapas.
ETAPA 1
• Escreva o nome das cinco pessoas mais ricas do mundo
• Cite o nome dos últimos ganhadores do Prêmio Nobel
• Aproveite e escreva o nome dos(as) cinco últimos(as) prefeitos(as)
do Rio de Janeiro
• Escreva o nome de dez ganhadores de medalha de ouro nas
olimpíadas
• E para terminar lembre e escreva o nome dos 12 últimos
ganhadores do Oscar de melhor ator
ETAPA 2
• Escreva o nome dos professores que você mais gostava
• Lembre de três amigos que ajudaram você em momentos difíceis
e escreva seus nomes
• Cite cinco pessoas que lhe ensinaram coisas valiosas
• Pense nas pessoas que lhe fizeram se sentir amado e especial e
escreva seus nomes
• Escreva o nome de cinco pessoas que você gosta de estar
Despertam mais nossa Atenção as coisas com as quais mantemos
algum laço de interesse, alguma predileção. Passeando num shopping as
pessoas detém-se (prestam Atenção) diante das vitrinas que lhes
despertam maior interesse, que mais lhes mobilizam afetivamente.
Níveis e distribuição da atenção
Ao estudar a extensão do campo de Atenção, julga-se muito mais
importante a captação de uma totalidade ou captação do todo significativo,
que a quantidade de objetos que a serem captados pela Atenção. Para
William Stern, a Atenção é a condição imediata para a produção de uma
realização pessoal e suas características consistem num esclarecimento
consciente, na concentração de uma força psíquica disponível para o
esclarecimento da realidade.
A Atenção da pessoa, num determinado momento pode estar
distribuída de várias maneiras no campo da realidade. Pode estar
concentrada num único objeto, dando-se pouca Atenção ao resto, pode
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estar difusamente espalhada, sem que uma parte específica esteja
predominantemente em foco ou, por fim, pode estar dividida entre vários
objetos, quando então a pessoa procura prestar Atenção, simultaneamente,
a duas ou mais coisas. Quanto maior a divisão da Atenção entre objetos,
maior a perda de qualidade da Atenção dada a cada parte.
Conforme vimos acima, a amplitude limitada da apreensão, e o
fato de que quanto maior a divisão da Atenção menor a sua qualidade,
acentuam a necessidade da organização perceptual. Quando algumas
partes do campo são organizadas em todos maiores, a Atenção necessária
para percebê-las eficientemente será menor do que quando as partes são
simplesmente observadas separadamente.
Através da organização e do agrupamento de objetos a serem
percebidos podemos estender a amplitude da Atenção. Se separarmos
nove grãos de feijão em três grupos de três grãos, podemos vê-los mais
facilmente. Este é um exemplo simples do princípio segundo o qual a
organização tem como função permitir; à pessoa, dirigir a Atenção para
maior quantidade de material.
Podemos ver a mesma coisa, de maneira mais significativa, no
desenvolvimento de habilidades específicas ou do treinamento. Não é
necessário prestar Atenção a uma atividade bem treinada, pela simples
razão de que o todo integrado está tão reunido que pode ser realizado
sem Atenção as suas partes isoladas. A inspeção de qualidade numa
fábrica, por exemplo, é uma atividade tão treinada que o funcionário é
capaz de ater-se rapidamente à qualquer coisa que estiver estranha àquilo
considerado desejável. Este funcionário desenvolve seu trabalho muito
mais rapidamente que outra pessoa não treinada. Assim, é possível
perceber, com um simples olhar, situações complexas.
A organização dos objetos facilita para que os estímulos se
encaixem na expectativa a ser percebida, sem necessidade de Atenção
cuidadosa a cada uma das partes isoladamente. Isso, naturalmente,
permite maior eficiência, embora também possa provocar erros que passam
desapercebidos, quando estes eventualmente se encaixem bem na
organização.
Determinantes da atenção
Falamos comumente da Atenção como voluntária ou involuntária.
A primeira refere-se a casos onde o indivíduo parece ter liberdade na
determinação do foco de sua Atenção, liberdade em escolher
intencionalmente aquilo sobre que prestar Atenção. Entretanto, ao
estudarmos a influência da motivação, do interesse e da afetividade sobre
a Atenção essa simples divisão em voluntária e involuntária ficará mais
complicada. De qualquer forma vamos falar sobre essa divisão.
A Atenção involuntária ou espontânea refere-se a casos em que a
pessoa parece menos o agente de escolha da direção de sua Atenção do
que um joguete nas mãos de forças que a obrigam a atentar para isso ou
aquilo. Numa narração folclórica e acaboclada de um contador de casos
goiano , é cômica a passagem onde diz, diante da censura de sua mulher
por ter olhado demais para outra mulher: "- eu não queria olhar, mas os
olhos queriam...".
Alguns determinantes da Atenção involuntária estão relacionados
ao afeto e sentimento dirigidos para o objeto, como é o caso da pessoa
faminta dirigir sua Atenção, irresistivelmente, para o alimento da vitrina do
restaurante.
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Outros determinantes se ligam a características duradouras dos
objetos estimulantes. Essas características determinantes podem ser tão
solicitantes que acabam atraindo tiranicamente a Atenção, apesar de
parecer que a pessoa atentou voluntariamente. As características dos
estímulos, que exigem Atenção, foram muito estudadas por experimentos
de laboratório e por técnicas de propaganda. Esses fatores determinantes
do estímulo podem ser sumariados da seguinte maneira:
Determinante de
Exemplo
intensidade .......................... o silvo da sirene do carro de bombeiros
repetição .............................. anúncios na televisão
isolamento ........................... uma única palavra, na página da revista
movimento e mudança ........ o pisca-pisca no cruzamento da estrada
novidade .............................. o desenho exagerado do último modelo de carro
incongruência ...................... a mulher fumando um charuto
Tenacidade e vigilância
O ato de perceber consiste na apreensão de uma totalidade e que
essa totalidade não representa uma simples soma do elementos isolados
captados pelos órgãos sensoriais. O todo sensorial caracteriza uma
determinada forma, e esta forma percebida pelos sentidos será
qualitativamente diferente daquilo que representa suas partes isoladas.
Para a Atenção, também, somente uma parte das excitações
sensoriais adquire relevo, dando origem a uma forma sobre a qual se
polariza a Atenção, enquanto as partes restantes representam o fundo,
menos claro, mais difuso e mais fluido. Não existem quaisquer elementos
isolados, mas apenas fins totais e integrado para alguma realização
pessoal, e serão "claras" e "nítidas" as percepções contidas no foco da
Atenção, "vagas" e "difusas" aquelas que se encontram além desse foco.
O nível da Atenção depende de vários fatores. Como vimos acima,
o principal desses fatores é o ânimo ou o interesse (em outras palavras, o
afeto). Quando nos encontramos diante de uma variedade de objetos, a
Atenção está dispersa e os diferentes objetos recebem pequenas
quantidades de energia e alcançam um grau médio de Atenção. Mas, ao
concentrarmos a Atenção num único objeto, toda a energia se orienta
neste sentido e os demais objetos ficam numa zona obscura. No entanto,
no objeto em que se concentrou a Atenção se descobre uma infinidade de
pormenores que haviam passado desapercebidos quando este se achava
imerso nos demais. Neste caso a Atenção foi polarizada no objeto
escolhido.
Isso significa que dentro do campo da Atenção nem todos os
estímulos recebem a mesma conscientização e energia. Vale aqui o alvo
inicialmente exemplificado: em torno de uma zona central especialmente
iluminada e energicamente acentuada, situam-se zonas de fraca
intensidade.
Quando estamos dirigindo o foco principal da Atenção deve estar
na estrada e no trânsito à nossa volta. Em nível menos profundo de Atenção
estão os acostamentos da estrada, o ruído do motor, os instrumentos do
painel do veículo etc. De um modo geral, o campo de visão mais externo,
a visão periférica, utiliza a energia psíquica sem propósito de foco da
Atenção, mas apenas como possibilidade para um eventual foco futuro.
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Usando ainda o exemplo de dirigir, há também a Atenção de espera,
quando então procuramos, espreitamos, espiamos ou exploramos, sem
nenhum objeto específico a se focar a Atenção. Digamos que é uma
Atenção para as possibilidades. Nesses casos, o objeto da Atenção ainda
não se acha presente, tudo é indeterminado, não se conhece o onde, nem
o quando do que vai ser percebido. Pode ser que um cachorro atravesse
em nossa frente. Esta expectância e incerteza exige que a Atenção percorra
continuamente um campo mais amplo para, no caso do objeto aparecer,
não o deixar escapar e colocá-lo imediatamente em foco. Para completar
esse exemplo temos que entender o que é tenacidade e o que é vigilância.
Bleuler destaca duas qualidades na Atenção: a tenacidade e a
vigilância. A tenacidade é a propriedade de manter a Atenção orientada de
modo permanente em determinado sentido. A vigilância é a possibilidade
de desviar a Atenção para um novo objeto, especialmente para um estímulo
do meio exterior. Essas duas qualidades da Atenção se comportam,
geralmente, de maneira antagônica, ou seja, quanto mais tenacidade sobre
um determinado objeto está se dedicando, menos vigilante estamos em
relação à eventuais estímulos a serem apreendidos.
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