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Índice A “decoreba” é ruim para o aprendizado? ......................................................................................... 5 A promessa de premiação motiva o aprendizado? ......................................................................... 10 O aprendizado é capaz de causar mudanças estruturais (morfológicas) no córtex cerebral? ....... 22 Os neurônios são insignificantes em termos numéricos no nosso cérebro? .................................. 37 Esquecer é fundamental para o aprendizado? ............................................................................... 41 Para uma memorização efetiva é melhor passar a noite estudando do que dormir? ..................... 45 O envelhecimento dificulta o aprendizado devido a perda de neurônios? ...................................... 56 Existem coisas mais fáceis de lembrar do que outras? .................................................................. 65 3 Material de apoio da atividade A “decoreba” é ruim para o aprendizado? Textos extraídos do livro A arte de esquecer, de Iván Izquierdo Editora Vieira e Lent (2004) Dependência de estado As memórias são adquiridas sob a influência de um determinado "tônus" cerebral dopaminérgico, noradrenérgico, serotonérgico ou betaendorfínico, e de um "tônus" hormonal paralelo. Esses moduladores e hormônios geralmente facilitam a formação de memórias agindo sobre mecanismos específicos nas áreas do cérebro que as fazem e, de certa maneira, incorporam informação às mesmas. Um momento assustador consiste tanto do estímulo que provoca o susto, como da ação dos neuromoduladores e hormônios liberados no organismo durante esse momento; muitas vezes a ação dessas substâncias fazem com que o momento seja realmente assustador. As memórias são melhor evocadas quando o "tônus" neuro-humoral e hormonal vigente no momento de sua aquisição se repete. Assim, em momentos de ansiedade elevada, em que se libera muita dopamina e noradrenalina cerebral, e muita adrenalina e corticóides na periferia, teremos não só tendência a gravar melhor o que está acontecendo nessa ocasião, como também facilidade para evocar outras experiências igualmente assustadoras ou aversivas. Isto é, sem dúvida útil para ter em mente, disponível para a utilização imediata, por meio de estratégias de ação apropriadas para a circunstância: devemos fugir, pular, nos esconder ou lutar? O mesmo acontece com as memórias prazenteiras: quando uma situação determinada se apresenta, por exemplo os prelúdios do ato sexual ou de um bom almoço, haverá uma constelação de processos neurohumorais e hormonais semelhante àquelas que experimentamos em outros momentos da mesma índole, a nossa resposta se adequará melhor às circunstâncias. Assim, secretaremos hormônios sexuais na iminência do ato sexual, e hormônios gástricos e ácido clorídrico no estômago antes de um almoço. De nada nos serviria fazer o contrário; seria contraproducente. É obviamente bom executar as coisas que sabemos nas condições orgânicas mais favoráveis para isso. Este fenômeno se denomina dependência de estado: a evocação das memórias de certo conteúdo emocional depende do estado hormonal e neuro-humoral em que a mesma esteja ocorrendo. Quanto mais esse estado se pareça com aquele em que memórias de índole similar foram adquiridas, melhor será a evocação. Assim, muitas memórias ficam num estado que poderíamos chamar latente, só despertado por determinadas conjunções de fenômenos neurohumorais e hormonais próprios de cada estado: as que causam medo, as que chamam ao sexo etc. Mas isto não quer dizer que o fato dessas memórias importantes ficarem latentes signifique que foram esquecidas, sequer temporariamente. Quer dizer que essas memórias dependentes de um determinado estado neuro-humoral e hormonal, para serem reativadas, requerem certos estímulos que compreendam pelo menos parte da reprodução do estado em que foram originalmente adquiridas. As 5 memórias dependentes de um estado emocional determinado ficam, por assim dizer, "a espreita" de que uma certa constelação de fenômenos bioquímicos apareça novamente. Um estímulo apropriado pode trazê-las à tona com bastante rapidez. Um "surto" de acidez gástrica pode nos dar vontade de comer. Um "surto" de hormônios sexuais no sangue pode nos causar desejo sexual. A dependência de estado permite que a vida possa se processar corriqueiramente com respostas adequadas a cada caso. Por exemplo, não viver num estado de excitação sexual impróprio para as circunstâncias: uma ereção do violinista durante a execução de um quarteto de Beethoven, no palco de um teatro lotado. Ou viver num estado de agressividade fora de contexto: no mesmo concerto, minutos depois, uma vez acalmado o público, o da viola chuta o violoncelista só porque este errou uma nota qualquer. É bom se excitar sexualmente quando for conveniente, e pode ser até necessário algum grau de agressividade no momento certo. Mas é antiadaptativo é contraproducente fazê-lo fora de contexto. Na imprecisão aparente que faz com que as diferenças emocionais entre um momento e outro de nossa vida sejam tão sutis como são, os estados psicológicos, hormonais e neuro-humorais determinam, com notável precisão, qual é a reação apropriada em cada caso. Nosso corpo em geral, e nosso cérebro em particular, sabem mais do que nós; ainda bem, senão seríamos inadaptáveis à realidade, e viveríamos pouco e mal. Dois exemplos famosos de dependência de estado As memórias podem depender não só de estados neuro-humorais ou hormonais internos do indivíduo, mas também de estados causados pela ingestão de substâncias externas, como o álcool e outras. Os melhores exemplos destes casos pertencem, o primeiro à história da literatura, e o outro à história do cinema. O da literatura é o protagonista do célebre romance de Robert Louis Stevenson (1850-1894), O Médico e o Monstro. Um médico conhecido dedicou-se, nas horas vagas, a elaborar um líquido que, quando ingerido, podia transformá-lo em outra pessoa. A substância teve o efeito, inesperado, de transformá-lo num ser de características monstruosas, cruel e selvagem: o aterrorizante Mr. Hyde. Uma vez passado o efeito da droga, o protagonista readquiria as formas, o aspecto e o temperamento do cortês e pacato Dr. Jekyll. O fenômeno se repete várias vezes ao longo do romance, que foi vertido a várias versões cinematográficas, inclusive uma com participação do coelho Pernalonga, que talvez seja a melhor. O mais engraçado e talvez mais sutil caso de dependência de estado, é apresentado por Charlie Chaplin (Carlitos) num filme de 1931, Luzes da Cidade, um dos grandes clássicos da história do cinema. Nele, um milionário amante da vida noturna desenvolve, estando bêbedo, uma enorme simpatia pelo vagabundo interpretado por Chaplin. Ele o convida a sua casa, leva-o a festas etc. Mas quando acorda da bebedeira, o milionário nem sequer reconhece Carlitos, e o expulsa energicamente de onde estiver. Os episódios se repetem várias vezes, para desorientação do vagabundo, que nunca compreende por que o ricaço às vezes é seu amigo e às vezes não. A amizade do milionário pelo vagabundo dependia do estado causado pelo álcool e não era recordada por ele no estado de sobriedade. 6 A aquisição de memórias É evidente que, se a consolidação das memórias de longa duração baseia-se em alterações sinápticas, a aquisição das mesmas deve depender do uso dessas mesmas sinapses. Aliás, isto é intrínseco ao postulado de Ramón e Cajal, que hoje se sustenta nos achados de Greenough, Geinisman, Katarina Braun e seus colaboradores, entre outros. Por outro lado, é também evidente que as regiões do cérebro e as sinapses que participam na formação das memórias de curta e de longa duração devem ser em boa parte as mesmas; já que todos nós recordamos em essência a mesma informação uma hora ou um mês depois de adquiríla. Isto, apesar de que uma hora depois da aquisição nossa memória de longa duração está apenas começando a ser formada e a memória que nos permite responder é só a de curta duração. Que partes do cérebro participam na aquisição das memórias? Muitas. Em primeiro lugar, as regiões responsáveis pela percepção e análise dos diversos estímulos sensoriais que conformam cada experiência, e/ou do conjunto de pensamentos e memórias prévias em que se baseiam os insights. É claro que na aquisição das memórias visuais deve participar o córtex visual, na memória olfativa o córtex olfatório, nas memórias verbais as áreas corticais responsáveis pela linguagem, e assim por diante. Nas memórias com um componente motor (tocar certa música ao piano), deve intervir o córtex motor correspondente aos dedos em questão. É também evidente que, sendo impossível adquirir memórias sem um estado mínimo de alerta (inclusive durante o sono), as regiões do cérebro responsáveis por manter esse estado devem estar também ativadas quando aprendemos algo novo. Por outro lado, é praticamente inimaginável a aquisição de alguma memória fora de algum estado emocional determinado: nós e os demais animais estamos sempre em algum estado emocional: mais ou menos contentes, satisfeitos, insatisfeitos, ansiosos, cansados etc. Os diversos estados de ânimo e as emoções mobilizam, como vimos, em maior ou menor grau, vias neuro-humorais específicas: a dopaminérgica, a noradrenérgica, a serotonérgica, as colinérgicas. Assim como temos no sangue sempre algum nível de adrenalina, corticóides e hormônios sexuais; esses níveis só atingem o zero quando morremos. Além dos mecanismos acima, é também claro que nas memórias de forte conteúdo aversivo ou emocional intervêm a região da amígdala basolateral, nas memórias com um forte conteúdo espacial participa o hipocampo etc. Porém, participar não equivale a fazê-lo de uma forma sempre imprescindível ou protagônica. É possível, sem dúvida, adquirir muitas memórias apesar de lesões de todas as estruturas mencionadas, mas nem sempre muito bem. Outras estruturas a elas ligadas assumem seu papel; nisso, o cérebro é mestre. Sem dúvida, as memórias com pouco conteúdo emocional são adquiríveis em sujeitos com lesão bilateral da amígdala, ou memórias declarativas importantes podem ser formadas em pessoas idosas com bastante perda celular no hipocampo e no córtex entorrinal. Por outro lado, é em relação com a modulação hormonal das funções nervosas, memórias com conteúdo sexual podem ser adquiridas na presença de níveis muito baixos de testosterona ou estrogênios, e memórias de medo podem ser adquiridas com pouca adrenalina circulante. Além das regiões corticais correspondentes a cada sentido (visão, audição, olfato, tato, gosto) ou ato motor, e/ou daquelas a partir das quais é possível evocar outras memórias ou pensamentos (nos insights, por exemplo), há certas estruturas nervosas que provavelmente participam 7 na aquisição de todas ou quase todas as memórias declarativas: o hipocampo, o córtex entorrinal e as áreas a elas associadas. O hipocampo intervém também na aquisição de muitas memórias de habilidades manuais ou sensoriais (nadar, andar de bicicleta, usar um teclado). É provável que na aquisição destas últimas intervenham sempre ou quase sempre o núcleo caudado e o cerebelo. Não existe a menor dúvida de que na aquisição e na evocação de todas as memórias de curta e de longa duração, declarativas e procedurais, participa ativamente e de maneira essencial a memória de trabalho. Sem ela, não haveria a meta-análise das informações procedentes dos sistemas sensoriais e/ou dos sistemas de armazenamento de memórias que é função da memória de trabalho. Confundiríamos, tanto do ponto de vista sensorial como cognitivo, o joio e o trigo de maneira permanente. Lembremos aqui como a simples falha (não a falta) de memória de trabalho perturba a vida cognitiva dos esquizofrênicos. Vemos, assim, que a procura das sinapses que se alteram morfológica e funcionalmente para sustentar memórias é difícil. São muitas as variáveis participantes, são muitas as regiões cerebrais envolvidas, e a busca de algumas poucas sinapses responsáveis pela conservação de uma ou outra memória é parecida a procura de uma agulha num palheiro. Mais difícil é, evidentemente, a busca de quais dessas sinapses mudam como conseqüência de um esquecimento, ou, como veremos a seguir, de uma extinção. A arte de esquecer: a habituação A repetição de um estímulo ou grupo de estímulos inofensivos geralmente causa a diminuição gradual das respostas a esse estímulo. Assim, a primeira vez que ouvimos o som de uma campainha, ou que nos encontramos num determinado ambiente novo, giramos a cabeça em redor, para localizar a fonte do estímulo novo, ou para registrar que o espaço que nos rodeia é novo para nós. Esta reação natural a estímulo(s) novo(s) foi denominada por Pavlov reação de orientação ou reflexo de "onde está?". Observa-se que em todas as espécies animais, e no rato, no gato ou no cachorro é acompanhada de intensa atividade olfativa. Os humanos somos mais propensos a investigar nosso entorno por meio da atividade visual ou tátil. Se a coleção de estímulos novos for muito intensa, pode se acompanhar de alguma reação defensiva também: nos funcionários dos aeroportos, por exemplo, a reação a partida de um avião a poucos metros de distância é seguida de movimentos tendentes a proteger seus ouvidos. A repetição do(s) estímulo(s) leva a diminuição da resposta de orientação; já aprendemos que aquele não é tão importante como pensávamos no início, e nos habituamos a ele. Acostumamos, por assim dizer. Um trabalhador veterano das pistas dos aeroportos já nem responde ao estrépito da partida dos aviões. No primeiro dia de aula, os alunos olham em volta para entender ou conhecer melhor a nova sala, os novos bancos, onde está a porta etc. Na segunda semana de aula, entram na sala sem prestar mais muita atenção ao ambiente; já se acostumaram a ele. Pavlov costumava habituar seus cachorros a campainha, antes de associá-la com um pedaço de carne. Queria garantir que, no momento de iniciar o processo associativo do condicionamento, a campainha fosse realmente um estímulo neutro, incapaz de gerar respostas importantes por si próprio. 8 A habituação é nosso aprendizado mais simples e um dos mais importantes. Sem ele, viveríamos na surpresa constante, no sobressalto permanente. H. M. vive um pouco assim, já que esquece muitas das suas habituações. A habituação se deve a atividade do hipocampo e tem uma base bioquímica relativamente complexa, embora diferente daquela das memórias associativas. É também uma arte, a habituação. Podemos aplicar ou não nossa vontade a ela, podemos desejar fazê la ou não. Nem sempre a habituação é involuntária; pode ser muito seletiva. A criança que é levada diariamente a uma creche pode decidir se quer ou não quer se habituar a ela. O funcionário do aeroporto, por mais desagradável que tenha sido sua primeira experiência estrepitosa na pista, geralmente quer conservar seu emprego e procura intensamente se acostumar (habituar) a isso. Às vezes já meio surdo, reage daí em diante como se nada estivesse acontecendo em volta, mantêm animadas conversas com seus colegas em meio ao ruído dos aviões que ligam seus motores na sua frente. Os casos mais ilustrativos da seletividade da evocação são as inúmeras histórias de mães que dormem, exaustas pela guerra, em meio a um bombardeio; mas acordam ao ouvir o leve choro de suas crianças. Isto demonstra que, intrinsecamente, o ser humano é mais sensível aos estímulos que Ihes tocam fundo do que àqueles sobre os quais não pode fazer nada e acabam se tornando indiferentes talvez por isso mesmo. As emoções determinam em grande parte o desenvolvimento da atenção seletiva e da memória seletiva. 9 Material de apoio da atividade A promessa de premiação motiva o aprendizado? Textos retirados do livro Sexo, Drogas, Rock in Roll e Chocolate, de Suzana Herculano-Houzel. Editora: Vieira e Lent. Um pouquinho mais de eletricidade, por favor, que eu tô gostando... A descoberta acidental do sistema de recompensa do cérebro De tudo o que é bom a gente quer mais. Mas o que é "bom" para o cérebro? O que faz o cérebro lembrar e pedir mais? Curiosamente, a primeira demonstração de que existe uma região do cérebro que faz o animal "querer mais" resultou de um experimento com a intensão contrária: determinar se a estimulação elétrica de um certo ponto do cérebro era aversiva.. Um experimento que, nesse sentido, deu errado. O experimento aconteceu em 1953, numa época em que as funções recém descobertas de uma estrutura bem no meio do cérebro conhecida como formação reticular mesencefálica causavam alvoroço entre os cientistas que buscavam entender os mecanismos da consciência. A dupla ítalo-americana Giuseppe Moruzzi e Horace Magoun havia demonstrado, em 1949, que a estimulação elétrica dessa estrutura faz animais adormecidos despertarem, e coloca o cérebro de animais já acordados em estado de alerta. Seria um tipo de "centro da consciência"? A história mostraria que não, mas enquanto isso a descoberta provocou uma onda de experimentos semelhantes em busca de outras estruturas que influenciassem o grau de alerta dos animais e a1guns levantavam a suspeita de que, em certos locais do cérebro, a estimulação poderia ser aversiva. Era justamente o que o americano James Olds estava tentando determinar, antes de prosseguir com seus experimentos no laboratório do psicólogo canadense Donald Hebb, imortalizado por sua proposta de que o aprendizado tem por base a modificação das conexões entre os neurônios. Olds implantara eletrodos supostamente na tal formação reticular mesencefálica de um rato que ele então soltava sobre uma mesa. Sempre que o rato vinha a um determinado canto da mesa, Olds aplicava uma corrente elétrica aos eletrodos, para estimular a estrutura. Era uma forma de condicionamento, como fez Pavlov com seus cachorros. Se a estimulação fosse aversiva, o rato deveria passar a evitar aquele canto da mesa; se não, continuaria circulando normalmente pela mesa toda, como fazem os ratos em um ambiente novo. Para a surpresa de Olds, o animal gostou e muito. Deu uma saidinha... e logo voltou àquele canto onde Olds aplicara a estimulação elétrica. O rato saiu de novo, continuou a exploração da mesa... e voltou, ainda mais rápido do que da primeira vez, para uma nova estimulação. E de novo. E de novo. Olds pediu a um colega que escolhesse outro lugar da mesa para associar ao estímulo e o rato logo passou a visitar o novo lugar assiduamente. Depois, em um laboratório em forma de T, o mesmo rato rapidamente aprendeu a correr para o canto em que recebesse a estimulação elétrica no cérebro. Ao examinar o cérebro do animal, Olds descobriu que seus eletrodos tinham sido mal posicionados e foram parar perto do hipotálamo. Tentou, então, repetir o erro, implantando eletrodos em outros animais. 10 Não deu muito certo: alguns animais tinham reações ambíguas, e outros mostravam aversão ao lugar da mesa onde recebiam o estímulo elétrico. Parecia que a posição exata dos eletrodos fazia uma diferença enorme. Olds abandonou então seu projeto de pesquisa original e, junto com o também doutorando Peter Milner (que veio a se tornar um grande nome da Psicologia nos EUA), desenvolveu um experimento para testar mais rapidamente o efeito da estimulação elétrica em locais diferentes dessa região do cérebro. Era uma modificação da "caixa de Skinner", uma pequena caixa com uma alavanca que, ao ser apertada pelo animal, faz aparecer um grão de comida em uma janelinha. Na versão de Olds e Milner, o grão de comida foi substituído pela aplicação do estímulo elétrico, disparado quando o animal pressionava um grande pedal. Como a caixa era pequena e o pedal ficava numa posição estratégica, onde era apertado cada vez que o animal tentava olhar pela única abertura da caixa, por onde passavam os cabos ligados ao eletrodo, sem qualquer tipo de estimulação elétrica do cérebro o animal já apertava o pedal umas 60 vezes em dez minutos. Era uma situação ideal para deixar evidente qualquer efeito aversivo, que faria o bichinho parar de apertar o pedal. O risco seria deixar escapar alguns casos de efeitos positivos. Mas não houve dúvida: quando funcionava, o animal apertava o pedal até mil vezes nos dez minutos de teste! Testando assim a posição dos eletrodos, Olds pôde determinar que a estrutura cerebral que ele acertara por engano e cuja estimulação fazia o animal "querer mais" é o feixe prosencefálico medial, que contém fibras nervosas que terminam principalmente no hipotálamo, e uma grande quantidade de fibras repletas de noradrenalina, serotonina e dopamina que terminam no córtex pré-frontal. Nos anos seguintes, ficou claro que esse feixe leva e traz fibras do que passou a ser conhecido como o sistema de recompensa do cérebro, que inclui o assoalho dos núcleos mais internos da parte frontal do cérebro, chamado de corpo estriado ventral, e cujo astro é uma estrutura chamada núcleo acumbente. A estimulação do feixe ativa tanto as entradas quanto as saídas desse sistema, algumas estrategicamente ligadas ao sistema motor e evidentemente o sistema é poderoso o suficiente para fazer um ratinho apertar um pedal até cem vezes por minuto. Imagine o prazer em apertar um botão necessário para fazer você repetir a ação a cada batida do seu coração. A estimulação devia provocar o maior "barato" nos animais e ciente disso, Olds pronta e adequadamente chamou sua versão da caixa de Skinner de "Caixa do Prazer". A tal da caixa se mostrou um modelo tão poderoso que esse tipo de experimento, chamado de "auto-estimulação", foi logo adaptado para testar a autoaplicação de drogas em ratinhos, e tornou se um padrão: hoje em dia, basta que uma substância, ou uma situação, seja suficiente para levar a auto-estimulação para que se levante a suspeita de que ela age diretamente sobre o sistema de recompensa do cérebro como é o caso de todas as drogas psicotrópicas. Tudo no cérebro é uma questão de quem fala com quem. Se a mente é produto do sistema nervoso e o cérebro não é muito mais do que neurônios conectados entre si e com o corpo, a riqueza de funções e pensamentos do ser humano só pode ser o resultado de uma coisa: o padrão diferente de conexões de cada região do cérebro. Algumas recebem sinais dos sentidos, outras emitem sinais para os músculos, monitoram os movimentos, articulam neurônios em outras regiões, comparam, antecipam, regulam. Quando se trata de prazer, as regiões envolvidas são aquelas que representam estados internos do corpo 11 (como a insula); antecipam ou detectam uma recompensa (como o núcleo acumbente e restante do corpo estriado ventral); representam o valor relativo da recompensa (como o córtex orbitofrontal); e codificam se já se atingiu a saciedade ou não (como o córtex cingulado e o orbitofrontal). Simples assim. Talvez... Você conhece várias dessas situações e substâncias, e se submete a esse teste voluntariamente em casa, talvez com mais freqüência do que imagina. Por que você achava que comer, fumar, beber, fazer sexo, música ou exercício são hábitos que se mantêm ao longo dos séculos? O que é "bom" para o cérebro e faz a gente querer mais são comportamentos e substâncias que levam a ativação desse sistema de recompensa, e fazem o cérebro passar a associar a causa da ativação à sensação de bem estar e prazer criada em seguida no corpo. Mas, será a ativação do sistema que é prazerosa em si, ou serão as mudanças no corpo às quais ela está associada, a verdadeira fonte de prazer? Isso ainda vai dar pano para manga e trabalho para muitos ratinhos e cientistas. E para você, também. Pensa que você não é, à sua maneira, mais um ratinho de laboratório, como os de Olds, experimentando novas músicas, novos drinques, novas marcas de cigarro ou namorados? Quem diria, ser animal de testes nem sempre é ruim... Dezembro de 2002 Fontes: Olds. J., Milner, P. Positive reinforcement produced by electrical stimulation of septal area and other regions of rat brain. Journal of Comparative Physiology and Psychology, v. 47, p. 419-427, 1954. Olds J. Self stimulation of the brain. Science, v. 127, p. 315-324, 1958. Esquema do interior do cérebro humano, visto de lado (olhos a esquerda, nuca à direita), indicando as estruturas integrantes do sistema de recompensa ou associadas a ele. A cenoura na ponta da varinha É só uma questão de encontrar o estímulo Esqueça a gotinha de suco ou o floco de ração para premiar o ratinho que você tenta arduamente treinar para subir a escada ou atravessar um labirinto. A equipe do americano John Chapin, na Universidade do Estado de Nova York, encontrou um modo muito mais eficiente de conseguir que os bichos façam o que os pesquisadores querem e por controle remoto. Chapin já tinha experiência sobrando com a implantação de eletrodos; foi em seu laboratório que o brasileiro Miguel Nicolelis 12 desenvolveu a técnica para que ratinhos usassem a atividade registrada pelos eletrodos em seu cérebro para mover alavancas sem fazer força. Mas, até então, os eletrodos implantados no cérebro de ratos eram usados apenas para que os animais comandassem aparelhos eletrônicos. E se eles tentassem o contrário, usando os eletrodos desta vez para fazer aparelhos eletrônicos comandarem os ratos? O truque foi dar um objetivo prático a uma técnica até então emprestada apenas para fins de exploração do cérebro: a microestimulação elétrica, que "força" a ativação de regiões específicas do cérebro através de curtíssimos choques elétricos aplicados por eletrodos implantados nas regiões desejadas. Para conseguir que um animal de laboratório ou uma pessoa, na verdade, faça o que você quer que ele faça, são necessárias em última análise apenas duas coisas: que ele entenda o que você quer; e que tenha vontade de fazê lo. E se o que você quer que o animal faça é ir aonde você manda, noções básicas de equitação dão a dica. Basta poder indicar "Vire à esquerda", "Vire à direita", "Ande em frente" e "Pare". Um cavalo sabe que deve virar à esquerda quando você puxa as rédeas para a esquerda. Como fazer o mesmo em um rato, sem colocarlhe rédeas? Uma alternativa é usar eletrodos para estimular a representação dos bigodes no córtex somatossensorial, a região na superfície do cérebro que cuida das sensações do corpo. Para o animal, um estímulo elétrico que "ligue" a representação dos bigodes do lado esquerdo não deveria ser muito diferente de um verdadeiro toque nesses bigodes. Portanto, bastam alguns eletrodos para dar um "toque virtual" nos bigodes direitos, e outros tantos para os bigodes esquerdos. E como fazer o bicho seguir em frente? Aqui um pouco de incentivo é necessário, e quando se trata de incentivo, a opção natural é estimular o sistema de recompensa do cérebro. Então, implantam-se alguns eletrodos no feixe prosencefálico medial, parte do sistema de recompensa do cérebro do rato, coloca-se uma mochilinha as suas costas, contendo um microestimulador e seu processador teleguiado, e voilà: tem-se um rato pronto para... coisa nenhuma. Pensou que já ia poder fazer o bichinho seguir suas ordens? Não, não, não. Primeiro é preciso ensiná-lo como responder ao controle remoto. Afinal, um toque virtual nos bigodes direitos não é necessariamente sinônimo de "vire à direita". É preciso que eles aprendam o significado de cada "toque" e queiram fazer alguma coisa com a informação. Ou seja: é preciso treiná-los. E o treino mais comprovado pela prática é a velha associação de estímulos premiada por um afago na cabeça ou pedaço de comida na boca. Se seus ratos precisam aprender a fazer curvas, então que eles façam exatamente isso: andem em curvas. Treinando seus ratos em um labirinto em forma de 8, onde os animais não tinham muitas alternativas de movimento, Chapin e sua equipe os ensinaram a associar um "toque" do lado direito a uma curva para a direita, e um "toque" do lado esquerdo a uma curva para o outro lado, tudo em troca de um pouquinho de estimulação do sistema de recompensa do cérebro após cada associação correta. Após dez sessões de treino, o teste: será que o condicionamento já teria sido suficiente para guiar os ratinhos num campo aberto, sem as escolhas forçadas de um labirinto? Sem problemas: os bichinhos corriam em disparada, viravam à esquerda ou à direita sempre que comandados e até subiam escadas, desciam degraus, passavam por baixo de arcos e por dentro de túneis. 13 Tudo isso guiados pelo pesquisador que operava o controle remoto pelo computador a uma distância de até 500 metros, apenas garantindo lhes de vez em quando algumas estimulações elétricas do sistema de recompensa. Até pilhas de concreto demolido os bichinhos subiam teleguiados, o que certamente encorajou os pesquisadores na hora de afirmar que o seu "invento" poderia em breve ser utilizado em buscas em áreas de destruição urbana. Não parece nem mesmo haver risco de os bichos resolverem parar no meio. Os ratos corriam pra valer, a 1 km/h (se você acha pouco, lembrese de que, com suas pernas vinte vezes maiores, você anda a uns 5km/ h), e sem parar, durante até uma hora o máximo testado nos experimentos. Ambientes abertos e iluminados, normalmente evitados pelos ratos, também não eram problema. Pelo jeito, a ativação do feixe prosencefálico medial era recompensa mais que suficiente para manter os bichinhos andando. Na verdade, era até mais que recompensa era incentivo: quanto mais difícil era o obstáculo à frente, mais estimulações do feixe prosencefálico medial eram necessárias para fazer o ratinho seguir adiante. Confirmando suspeitas antigas, levantadas por experimentos na década de 50, Chapin e sua equipe demonstraram, portanto, que a estimulação do sistema de recompensa também serve como um estímulo para ir em frente como uma verdadeira motivação, mesmo. É uma idéia estimulante essa de a recompensa, em geral associada ao "depois", ao prazer do objetivo alcançado, também funcionar como motivação. Se for assim, o botão "avance" dos ratos teleguiados e pelo jeito também o nosso funciona dando uma amostra do prazer que está por vir, se somente os bichinhos se mexerem. Igualzinho àquela lendária cenoura pendurada defronte dos olhos da mula empacada. Vai, muliiiinha... vai, muliiiinha... Maio de 2002 Fonte: Talwar, S. K., Xu, S., Hawley, E. S., Weiss, S. A., Moxon, K. A., Chapin, J. K. Rat navigation guided by remote control. Nature, v. 417, p. 37 38, 2002. Mas eu só usei uma vez Estresse, genética, cidadania e a suscetibilidade ao vício Seu amigo usou uma vez, duas, e largou quando quis. Você quer experimentar, e tenta fazer o mesmo mas não consegue, repetindo para si mesmo que cada nova dose é a última. Por que logo você? Castigo divino? Dívidas não pagas da última encarnação? Ou biologia pura? Não são necessários experimentos com animais para constatar que indivíduos diferentes têm suscetibilidades diferentes ao vício, mas foram esses experimentos que primeiro indicaram de onde vêm as diferenças. Ao tentarem deixar ratos de laboratório viciados em cocaína ou anfetamina para estudar os efeitos da droga, os cientistas ficaram intrigados com a heterogeneidade dos animais, já que alguns tornavamse adeptos da auto-administração, o que indicava que eles ficavam prontamente viciados, mas os demais não. A diferença entre animais responsivos e não responsivos logo se tornou evidente quando o comportamento dos animais foi analisado em mais detalhe: os animais responsivos, predispostos ao vício, eram aqueles que reagiam a um novo ambiente com agitação e locomoção constantes, e buscavam novidade, variedade e estimulação emocional. Ao contrário, os não responsivos, que não se viciam, ficavam tranqüilos num canto. Até exploravam o novo ambiente, mas sem ficar para lá e para cá feito os outros. 14 Esses animais também diferem uns dos outros na química cerebral, como mostrou um estudo francês de 1996. Os ratos responsivos, predispostos ao vício, exibem uma hiper ativação dopaminérgica generalizada do sistema de recompensa: o número de receptores para dopamina no núcleo acumbente é reduzido, provavelmente numa resposta de tolerância aos níveis cronicamente elevados da substância tanto em condições "normais" quanto em resposta à cocaína ou ao estresse de um apertão no rabo. A resposta ao estresse dos animais responsivos, aliás, é elevada como um todo: eles reagem de forma exagerada, e se colocados em um ambiente estranho, por exemplo, produzem mais corticosterona um dos hormônios do estresse e por mais tempo que os animais não responsivos. Está certo que um sistema dopaminérgico hiperativo por natureza dos animais responsivos deve contribuir para a propensão ao vício, mas a resposta exagerada ao estresse parece ser a chave aqui. Se a ação da corticosterona for bloqueada, os animais previamente caracterizados como responsivos ou não responsivos não mais diferem na quantidade de dopamina liberada no núcleo acumbente em resposta ao estresse. E sem a ação da corticosterona, bloqueada quimicamente ou eliminada pela remoção cirúrgica das glândulas adrenais, os animais mesmo os antes "responsivos" resistem impávidos à atração da cocaína, e não ficam se auto-administrando a droga. E não é porque fiquem burrinhos, ou algo do tipo: eles continuam perfeitamente capazes de apertar horas a fio a mesma alavanca da gaiola se o resultado, em vez de injeção de cocaína, for aparecer um pedaço de ração. Esses e outros experimentos nos quais o animal era exposto a diferentes níveis de estresse antes da auto-administração de cocaína indicaram ao neurocientista Nick Goeders, da Universidade do Estado da Louisiana, nos EUA, que a auto-administração de cocaína só acontece se a corticosterona circulante no sangue ultrapassar um certo valor limite. Ou seja: sem estresse não há formação de vício por alguma razão, o cérebro usa a presença dos hormônios do estresse como condição sine qua non para se deixar viciar. E não, você não estará seguro se deixar para usar a droga quando estiver se sentido calminho e desestressado. Como se a danada antecipasse essa possibilidade, a própria cocaína se encarrega de ativar o eixo hipotálamo pituitário adrenal, disparando a produção de hormônios de estresse, dentre eles a corticosterona que, além de ser necessária à formação do vício, ainda aumenta os efeitos da droga. Além do mais, o estresse social também tem influência importante. Em 1995, um estudo francês demonstrou que ratos submetidos à agressão de outros ratos e derrotados apenas quatro vezes ao longo de uma semana buscavam se auto-injetar quantidades maiores de cocaína do que animais não expostos, machos ou fêmeas. E recentemente, em 2002, um estudo da Universidade Wake Forest, nos EUA, demonstrou que a interação social é suficiente para modificar a disponibilidade de receptores de dopamina no sistema de recompensa do cérebro de macacos, ao mesmo tempo em que uns se tornam mais propensos ao vício, e outros, menos. Enquanto eram hospedados individualmente, 20 macacos tinham quantidades semelhantes do receptor D2 para dopamina no sistema de recompensa, avaliadas pela ligação de uma substância radioativa no cérebro detectada por tomografia de emissão de pósitrons. Três meses após serem redistribuídos em grupos de quatro por jaula, o comportamento dos macacos havia mudado visivelmente. Em 15 cada grupo, um dos animais havia se tornado claramente dominante, agredindo e submetendo os demais, e recebendo privilégios como ser penteado com uma freqüência três vezes maior que os outros. O animal dominante passou a gozar de 20% mais receptores para dopamina no sistema de recompensa do cérebro do que antes, e também mais do que os outros três subordinados. E mais: os animais dominantes pareciam ter se tornado resistentes à atração da cocaína. Num teste de auto-estimulação, em que os animais tinham o controle de injeções de cocaína diretamente na veia, aqueles que se subordinaram ao dominante se auto-aplicavam cocaína repetidas vezes mas o dominante não se injetava mais vezes do que quando a injeção continha apenas soro fisiológico. Como nos ratos, os macacos que se tornaram subordinados e propensos a usar cocaína eram aqueles responsivos, que anteriormente exibiam agitação locomotora em suas jaulas individuais. Ao contrário dos ratos, no entanto, os animais que iriam se tornar dominantes posteriormente, embora distinguíveis pelo baixo grau de locomoção na jaula individual, não diferiam então dos demais quanto ao número de receptores de dopamina disponíveis. Na opinião dos pesquisadores, baseados em evidências de estudos anteriores, foi o alojamento individual que colocou todos no mesmo barco de hiperatividade dopaminérgica, apesar das diferenças locomotoras permanecerem evidentes. Por trás dessa sugestão está também o fato de que, quando primatas são encarcerados individualmente, praticamente todos se tornam dependentes de cocaína se tiverem a oportunidade, um dos resultados de um sistema dopaminérgico hiperativo. A diferença que a interação social faz, por conseguinte, seria permitir aos macacos que se tornam dominantes que seu sistema dopaminérgico volte ao normal, presumivelmente à medida que o animal assume o controle do seu ambiente, do seu direito de ir e vir, de suas fontes de comida e sexo. E assumindo o controle, o "prêmio" por tabela é tornar-se também menos propenso ao vício. Pena foi os pesquisadores não terem contado o que acontecia com os hormônios do estresse nos macacos em sociedade. Seria de se esperar que os que se tornaram dominantes, e resistentes ao vício, também tivessem uma resposta reduzida ao estresse. Taí. Assegura-se ao indivíduo o controle da sua própria vida, o direito de não ser agredido ou estressado de outras maneiras, comida a vontade, diversão, e de quebra ele ainda se tornará menos propenso ao vício. Olha que coisa mais linda: restaurar a cidadania funciona até para ratos e macacos... Janeiro de 2003 Fontes: Dellu, F., Piazza, P. V., Mayo, W., Le Moal, M., Simon, H. Novelty seeking in rats biobehavioral characteristics and possible relationship with the sensation seeking trait in man. Neuropsychobiology, v. 34, p. 136-145, 1996. Goeders, N. E. Stress and cocaine addiction. Journal of Phármacology and Experimental Therapeutics, v. 301, p. 785 789, 2002. Haney, M., Maccari, S., Le Moal, M., Simon, H., Piazza, P. V. Social stress increases the acquisition of cocaine self administration in male and female rats. Brain Research, v. 698, p. 46-52, 1995. Rouge Pont, F., Deroche, V., Le Moal, M., Piazza, P. V. Individual differences in stress induced dopamine release in the nucleus accumbens are influenced by corticosterone. European Journal of Neuroscience, v. 10, p. 3903-3907, 1998. 16 O quinto elemento: o gosto do cérebro O injustiçado glutamato já está na sua comida, e muito mais do que você pensa! Essa história de existirem apenas quatro gostos básicos sempre foi contra a impressão de que sentimos mais sabores do que isso. De fato, os japoneses bem que sabiam, há quase cem anos, que existe um quinto gosto, além dos tradicionais doce, salgado, azedo e amargo. Um gosto tão especial que o nome em japonês, de difícil tradução, acabou vingando também em outras línguas: é o gosto "umami", que pode significar tanto "delicioso" como "pungente", "saboroso", "essencial" ou "de carne". Mas existe uma tradução mais simples. Trata se do gosto do glutamato, um sal encontrado nas prateleiras dos supermercados e nas mesas dos restaurantes orientais, vendido como Aji no moto ou Sazon, e adicionado ao tempero de macarrão instantâneo e a salgadinhos em geral. E presente naturalmente, também, no molho de soja e em vários alimentos como queijo parmesão, tomate, leite, atum, frutos do mar e... cérebro. Sim, o cérebro não só é comestível (as versões bovina e ovina são encontradas no seu açougue favorito sob o nome pouco convidativo de "miolos", iguaria aliás muito apreciada pelos franceses), como também é um dos alimentos que mais contêm glutamato. Por uma razão muito simples: o glutamato o mesmo glutamato do Aji-no moto é o principal neurotransmissor do cérebro, a moeda mais usada na troca de sinais entre neurônios. Confira na tabela a quantidade de glutamato livre e conjugado em proteínas por 100g de alimento. O glutamato livre produz na boca a sensação instantânea do sabor umami, mas o glutamato preso em proteínas somente é liberado no intestino, durante a digestão. (Valores referentes a glutamato acrescentado artificialmente ao alimento estão indicados com*.) Alimento Caldo de carne Sopa de pacote Glutamato livre (mg) Glutamato em proteínas (mg) 8.700* 3.780* ? ? Alga marinha Kelp 2.240 ? Molhos prontos Queijo parmesão 2.060* 1.200 ? 9.800 Batata-frita de pacote 910 ? Hambúrguer pronto 560* ? Cogumelos em lata 240* ? Ervilha Cérebro (miolos) 200 200 5.600 ? Tomate Milho 140 130 240 1.800 Batata 100 270 Espinafre 40 290 Galinha 45 3.300 Cenoura Bife 35 35 200 2.800 Porco 25 2.300 Ovo Leite humano 25 22 1.600 ? Cebola 20 210 Cordeiro 20 2.700 Salmão 20 2.200 Bacalhau Leite de vaca 10 2 2.100 ? 17 Com tanto glutamato nas proteínas, dá para imaginar que comer glutamato adicionado não deve fazer mal. De fato, o que entra livre ou é extraído das proteínas é metabolizado em substâncias ainda menores. Não entra glutamato direto no cérebro, por exemplo. Nem precisa: assim como o resto do corpo, ele sabe fazer o seu próprio. Aliás, há tanto glutamato entrando normalmente que o corpo excreta 16g por dia pelas fezes, pela urina, e com a perda de pele. Na verdade, muito mais grave que o glutamato é o sódio que o acompanha nas versões do supermercado, esse sim problemático para quem tem hipertensão, por exemplo. E não pense que a "síndrome do restaurante chinês" é culpa do glutamato! Foi o japonês Kikunae Ikeda, da Universidade Imperial de Tóquio, quem no início do século 20 caracterizou o gosto umami como um sabor inimitável por qualquer combinação dos quatro sabores básicos. Ikeda observou que o tofu, uma coalhada de feijão de soja muito sem graça para os ocidentais mas apreciada pelos japoneses, ficava mais saboroso quando ingerido ao mesmo tempo com uma colher de caldo de kelp, uma alga marinha comum na culinária oriental. A partir da análise bioquímica do caldo de Kelp e de outros alimentos ricos neste sabor, como o atum e o caldo de carne, Ikeda determinou que o elemento responsável pelo sabor umami é o glutamato, o mais comum dos vinte aminoácidos, os bloquinhos que compõem as proteínas essenciais a vida humana. Segundo a lógica de sinalizar a presença na boca de nutrientes necessários (açúcar, sais minerais e ácidos) ou substâncias tóxicas e indesejáveis (em geral amargas), faz sentido existir um gosto básico sensível ao componente mais comum das proteínas. O glutamato inserido nas proteínas, no entanto, não provoca o sabor umami. Mas com o calor do cozimento, as proteínas se partem em pedaços menores, liberando-o e com ele o sabor "rico" do caldo de carne, por exemplo, carregado de glutamato livre. Testes de percepção já tinham mais do que comprovado que o glutamato provoca um gosto específico no paladar de seres humanos e aliás, no de ratos também, mas para reconhecer definitivamente o status do umami como o quinto gosto básico faltava encontrar um receptor exclusivamente seu: uma proteína na superfície de células da língua que servisse de "encaixe" para o glutamato, para que em seguida uma mensagem acusando sua presença fosse enviada ao cérebro. Por ironia, foi justamente o "receptor umami" o último gosto reconhecido, o primeiro dos receptores gustativos a ter seu gene descoberto: até o ano de 2000, os outros gostos, considerados básicos por unanimidade, ainda não tinham receptores identificados. O fato de o glutamato também ser usado como neurotransmissor sugeria que talvez um dos próprios receptores de glutamato do cérebro fosse usado também na língua. No entanto, o que poderia tornar a vida dos pesquisadores mais fácil, considerando que a seqüência dos genes para esses receptores cerebrais já era conhecida, levantava dois novos problemas. Primeiro, os receptores de glutamato conhecidos são extremamente sensíveis, de modo que se eles agissem também na superfície da língua, qualquer grãozinho de Aji no moto provocaria um sabor fortíssimo o que não é o caso. E, segundo, o glutamato também é usado dentro da língua como um neurotransmissor; portanto, já existem receptores no local dedicados a transmissão de sinais para o cérebro, e não diretamente a detecção de glutamato na comida. Como diferenciar qual é o receptor do glutamato dos neurônios e qual o do glutamato da comida? 18 A natureza ajudou. O receptor umami é semelhante a um daqueles receptores de glutamato do cérebro, sim. Mas falta-lhe um pedaço, e isso o torna ao mesmo tempo imprestável para a transmissão de sinais para o cérebro, mas simplesmente perfeito para detectar as altas concentrações de glutamato livre que passam pela boca. Ou seja: é inconfundível. A equipe do americano Stephen Roper, da Escola de Medicina da Universidade de Miami, já tinha indicações de que um determinado tipo de receptor para glutamato do cérebro estaria envolvido na gustação do umami. Testes em seu laboratório para detectar vários tipos de receptores de glutamato na língua de ratos haviam mostrado a presença de uma versão do receptor chamada mGluR4 (Glu de Glutamato, R de Receptor, 4 de Quarta versão identificada, e m de... metabotrópico, maneira curta de dizer "receptor que requer o metabolismo de alguns intermediários dentro da célula para surtir seu efeito", ao contrário dos outros receptores de glutamato, que modificam diretamente a carga elétrica da célula). Além disso, drogas que ativam especificamente o mGluR4 também têm "gosto de glutamato", enquanto outras drogas que ativam outros tipos de receptores para glutamato não têm gosto. No entanto, continuava a incompatibilidade da concentração necessária para "ligar" o receptor. Para resolver a questão, Nirupa Chaudhari e Ana Marie Landin, no laboratório de Roper, fizeram um preparado de línguas de rato (parece até receita de bruxaria!) e aplicaram técnicas de biologia molecular para extrair dali seqüências de DNA semelhantes a do mGluR4. O seqüenciamento completo, publicado na revista Nature Neuroscience, em fevereiro de 2000, mostrou que a versão gustativa do receptor é truncada: falta justamente parte da região que fica exposta na boca, pescando glutamatos livres na comida. E o que é melhor: embora truncada, essa versão ainda gruda glutamato em concentrações compatíveis com a sensibilidade tanto de ratos como de humanos. Falando em ratos, eles não são os únicos privilegiados, além do homem, a sentir o gosto do glutamato. Até as bactérias possuem um receptor parecido, que gruda aminoácidos em geral o que dá uma idéia da importância do receptor, presente desde nesses serezinhos microscópicos até no todo poderoso homem, e também sugere de onde surgiu, ao longo da evolução, a família de receptores de glutamato. A identificação do receptor umami confirma de vez seu status de quinto gosto básico. Mas outro mistério permanece. Embora o glutamato sozinho confira a comida o sabor umami, seu efeito é potencializado pela presença de nucleotídeos parecidos com os que compõem o material genético (Você já parou para pensar que come DNA todos os dias? E, leite, carnes e vegetais, como tudo o que é vivo e cheio de células, vêm cheios de DNA, além dos tradicionais açúcares, proteínas e sais minerais. Só que ninguém lembra!). Quem conferir a embalagem dos salgadinhos ou Miojo verá: lá na lista dos ingredientes estão o inositol monofosfato e a guanosina monofosfato. Talvez esses nucleotídeos interajam com outros receptores, que mais tarde tem seus sinais para o cérebro combinados aos do receptor umami; ou talvez eles se grudem ao mesmo tempo no mesmo receptor, ou até antes, facilitando a deteção do glutamato. Agora que o receptor umami foi identificado, todas essas possibilidades poderão ser testadas diretamente. Fica faltando apenas conferir se o cérebro, com todo seu glutamato livre, tem mesmo sabor umami. Eu confesso que nunca tive coragem de encarar um ensopadinho de miolos, e mesmo em nome da ciência o prato me parece um tanto nojento, para não dizer fedido. Mas gosto não se discute. Alguém se habilita? Outubro de 2001 19 Receita para ver o DNA que você come Você pode brincar de bioquímico em sua própria cozinha a "ver" o DNA que você come disfarçado na cebola. É só seguir a receita. Cientistas em seus laboratórios também seguem receitas, com uma única diferença: para parecer mais sério, suas receitas são chamadas de "protocolo"... Vamos lá: Você vai precisar de: • uma cebola média • uma faca de cozinha • dois copos pequenos (de geléia, por exemplo) • uma panela com três dedos de água • água filtrada • sal de cozinha • álcool etílico a 95%, gelado (o álcool comum, saído do seu freezer) • um bastão de vidro, daqueles de mexer bebidas, ou um pauzinho de madeira • um coador de papel (daqueles de passar café) • uma tigela cheia de gelo moído • detergente de cozinha Procedimento: 1. Pique a cebola em pedaços tão pequenos quanto seus dotes com uma faca e sua paciência permitirem. Não vale passar no liquidificador! Cortando a cebola você está destruindo milhões de células, e abrindo caminho para que a mistura de detergente que você vai usar chegue até o núcleo delas, onde está o DNA (a mastigação, e depois os ácidos do estômago, fazem isso por você com a cebola que você come). 2. Coloque um dedo de água em um copo, acrescente 2 colheres (de sopa) de detergente, e uma pitada de sal. Mexa bem até dissolver completamente. 3. A esta mistura acrescente a cebola picada, leve copo e tudo ao banho maria por cerca de 15 minutos. O detergente "come" a membrana que envolve as células e seus núcleos, liberando o DNA e um mundo de proteínas e outras guloseimas no caldo. O calor ajuda o processo, e também inativa proteínas da própria cebola que destroem o DNA (e só não o fazem naturalmente porque, na ausência do seu detergente de cozinha, o DNA fica bem protegido no núcleo, a salvo dessas proteínas). 4. Retire a gororoba do banho maria e resfrie tudo rapidamente, colocando o copo numa tigela de gelo moído por uns 5 minutos. Na falta de calor para segurar aquela proteína que vai tentar picar seu DNA em pedacinhos, o frio resolve. Sim, em caso de preguiça, cubos de gelo também servem, mas moer o gelo pode ser uma atividade mais divertida do que você pensa: junte cubos num pano de prato, torça o pano para ficar bem fechadinho, a bata com força no chão da cozinha. Boa oportunidade para botar a raiva para fora! 5. Passe a mistura no coador de café e recolha o líquido filtrado em um copo limpo. O detergente fica para trás, agarrado em proteínas e outras substâncias que estavam dentro da cebola, enquanto na solução que atravessa o filtro estão o DNA e o sal de cozinha, mesmo que você ainda não o veja (grande parte da biologia molecular acontece assim, 20 com soluções contendo coisas interessantíssimas que ninguém vê. Como você pode imaginar, pode ser frustrante...). 6. Adicione ao filtrado um dedo do seu álcool estupidamente gelado, deixando-o escorrer devagar pela borda como se você estivesse servindo uma cerveja sem colarinho. O álcool ficará pousado sobre a água, sem se misturar. 7. O que você vai fazer agora é pescar o DNA. Mergulhe o bastão no fundo do copo e, com movimentos circulares lentos, vá misturando o álcool com a água. Claro que você não vai conseguir, mas ao colocar a solução aquosa em contato com o álcool, no qual o DNA não se dissolve, você verá fios esbranquiçados acumularem-se ao redor do seu bastão: são longos fios de DNA de cebola, prontos para você fazer deles o que quiser. Só não é recomendável comê los, por causa do detergente. Mas a cebola, com todo o seu DNA, é perfeitamente segura... Fontes: Chaudad, N., Landin, A. M., Roper, S. D. A metabotropic glutamate receptor variant functions as a taste receptor. Nature Neuroscience, v. 3, p. 113 119, 2000. Chaudari, N., Yang, H., Lamp, C., Delay, E., Cantford, C., Than, T., Roper, S. The taste of monosodium glutamate: membrane receptors in taste buds. Joumal of Neuroscience, v. 16, p. 3817-3826, 1996. Ikeda, K. On a new seasoning (em japones). Journal of the Tokyo Chemical Society, v. 30, p. 820836, 1909. Emsley, J., Fell, P. Foi alguma coisa que você comeu? Intolerância alimentar: causas e prevenções. Rio de Janeiro: Campus, 2001. 21 Material de apoio da atividade O aprendizado é capaz de causar mudanças estruturais (morfológicas) no córtex cerebral? Seu cérebro é plástico? As interações organismo-ambiente vivenciadas por um indivíduo determinam fundamentalmente a topografia e a função de suas respostas. As relações entre os eventos ambientais e as respostas do organismo podem estabelecer contingências, ou seja, relações condicionais entre classes de comportamento e as classes de estímulos que lhes são antecedentes ou conseqüentes. Em cada espécie, os indivíduos têm um repertório comportamental que, de um lado, resulta da interação entre as contingências filogenéticas e ontogenéticas. As contingências filogenéticas atuaram durante a evolução e selecionaram classes de comportamento favoráveis à sobrevivência dessa espécie; as contingências ontogenéticas foram estabelecidas pelas interações particulares desse organismo com o seu ambiente, desde o início do seu desenvolvimento e selecionaram as classes de respostas eficazes para a adaptação a um ambiente que muda constantemente. Neste sentido, pode-se afirmar que o comportamento de um indivíduo é produto de sua história filogenética, ontogenética e cultural (Bussab, 2000; Catania, 1999; Skinner, 1981). As mesmas pressões evolutivas que determinaram as mudanças na topografia e na função das reações do indivíduo ao ambiente também determinaram alterações na forma, no tamanho e nas funções do sistema nervoso. O processo evolutivo resultou em cérebros com uma abundância de circuitos neurais que podem ser modificados pela experiência (Carlson, 2000). Assim, a interação sistema nervoso-ambiente resulta na organização de comportamentos simples ou complexos que modificam tanto o ambiente como o próprio sistema nervoso. Essa capacidade denota a plasticidade do sistema nervoso, ou seja, a plasticidade neural que está presente em todas as etapas da ontogenia, inclusive na fase adulta e durante o envelhecimento. A capacidade de modificação do sistema nervoso em função de suas experiências, tanto em indivíduos jovens como em adultos, foi reconhecida apenas nas últimas décadas (Rosenzweig, 1996). • Comportamento e Plasticidade Neural • Plasticidade Neural: Abordagens Experimentais • Alterações no Sistema Nervoso e experiência • Implicações dos Estudos de Plasticidade Neural • Referências • Material complementar: Sei onde coçar, texto do livro Fantasmas no Cérebro, de Vilayanur Ramachandran. Comportamento e Plasticidade Neural No estudo do comportamento, um dos princípios básicos afirma que as propriedades funcionais do comportamento são determinadas pelas relações, simples ou complexas, entre os estímulos e as respostas de um organismo (Skinner, 1981). São essas relações que definem as 22 contingências de reforço que alteram a freqüência de classes de respostas. Os objetivos primordiais da análise do comportamento relacionam-se com a identificação, a descrição e a programação de relações condicionais que estabelecem e controlam a probabilidade de classes de comportamento (Baum, 1999; Catania, 1999). As pesquisas orientadas por tais objetivos permitiram o acúmulo de um conjunto de dados e procedimentos com sólida fundamentação experimental e conceitual (Catania, 1999), cuja importância abrange não apenas as questões investigadas pela Psicologia, mas também questões de outras disciplinas científicas. Para citarmos um exemplo, a metodologia e os conceitos derivados da análise do comportamento têm fornecido a possibilidade de linhas de base comportamentais adequadas para as investigações dos mecanismos biológicos subjacentes ao comportamento. Assim, a validade do conhecimento científico sobre o comportamento transcende os limites da Psicologia como disciplina científica específica e integra-se a áreas de conhecimento com caráter multidisciplinar. Nesse sentido é que se desenvolveram as disciplinas denominadas Psicofarmacologia, Psicobiologia e Psicofisiologia Mais recentemente, o desenvolvimento científico dessas e de outras áreas propiciaram o surgimento de uma nova disciplina científica integradora de metodologias e conceitos neurofisiológicos, psicológicos, farmacológicos, bioquímicos, anatômicos e genéticos: a neurociência. O seu princípio básico é que o ambiente físico e social determina a atividade de células neurais, cuja função, por sua vez, determina o comportamento (Kandel, Schwartz & Jessell, 1995; Strumwasser, 1994). O ambiente fornece estímulos/informações que são captados por receptores sensoriais e convertidos em impulsos elétricos, que são analisados e utilizados pelo sistema nervoso central para o controle de respostas vegetativas, motoras e cognitivas. Essas respostas constituem os padrões comportamentais que atuam sobre e modificam esse ambiente. Do mesmo modo que o comportamento altera a probabilidade de outros comportamentos (Catania, 1999), a atividade neural altera a probabilidade das funções neurais. Uma das evidências para este fato é que tanto as situações de mera exposição à estimulação ambiental quanto às situações de treinamento sistemático em aprendizagem resultam em alterações no comportamento e nos circuitos neurais (Rosenzweig, 1996). Ou seja, subjacentes aos processos comportamentais de aprendizagem e de memória encontram-se as alterações funcionais e morfológicas que ocorrem no sistema nervoso e que caracterizam a plasticidade neural (Cuello, 1997). Desse modo, verifica-se que os processos comportamentais e os processos de plasticidade neural possuem relações mais estreitas e complexas do que se supôs durante muito tempo. Em resumo, considera-se que tal como o ambiente diferencia e modela a forma e função das respostas de um organismo, a interação organismo-ambiente também diferencia e molda circuitos e redes neurais. Cada indivíduo tem um padrão comportamental característico, resultante de sua história pessoal de reforço, assim como tem um sistema nervoso com características próprias, resultantes também de sua história de interação com o ambiente externo. Essas características do sistema nervoso atribuem uma individualidade neural ao indivíduo que se relaciona, conseqüentemente, com a sua individualidade comportamental (Kandel & Hawkins, 1992). 23 Plasticidade Neural: Abordagens Experimentais Numa forma abrangente, plasticidade neural pode ser definida como uma mudança adaptativa na estrutura e nas funções do sistema nervoso, que ocorre em qualquer estágio da ontogenia, como função de interações com o ambiente interno ou externo ou, ainda, como resultado de injúrias, de traumatismos ou de lesões que afetam o ambiente neural (Phelps, 1990). De acordo com Pia (1985), o termo plasticidade foi introduzido por volta de 1930 por Albrecht Bethe, um fisiologista alemão. Plasticidade seria a capacidade do organismo em adaptar-se às mudanças ambientais externas e internas, graças à ação sinérgica de diferentes órgãos, coordenados pelo sistema nervoso central (SNC). Os trabalhos pioneiros de Santiago Ramón y Cajal e Eugênio Tanzi (citados por Rosenzweig, 1996) sobre regeneração neural apresentam relações mais diretas entre plasticidade e o sistema nervoso. Como assinala Rosenzweig (1996), Tanzi, propôs a hipótese de que durante a aprendizagem ocorreriam mudanças plásticas em junções neuronais enquanto que Cajal aventou a possibilidade de que o exercício mental poderia causar maior crescimento de ramificações neurais. Na literatura recente, os estudos sobre a plasticidade do sistema nervoso podem ser classificados como pertencentes à categoria daqueles que manipulam o ambiente e analisam as mudanças morfológicas e/ou funcionais em circuitos neurais, denominados de estudos de plasticidade neural ou à categoria de estudos que enfatizam as mudanças comportamentais após traumatismos ou lesão do sistema nervoso, denominados de recuperação de função (Kolb & Whishaw, 1989). Nestes casos, agudamente, ocorrem mudanças no tecido nervoso que têm como função a manutenção da homeostasia do organismo, além de promover a cicatrização e o reparo tecidual (Finger & Almli, 1982; Kolb & Whishaw, 1989). Ao mesmo tempo, pode haver um período em que se observa uma ausência ou diminuição na freqüência de uma ou mais classes de comportamentos. Assim, o termo recuperação de função refere-se à situação em que se observa aumento na freqüência ou magnitude de um comportamento após um período de freqüência ou magnitude zero, como conseqüência de trauma, intervenção cirúrgica ou lesão do sistema nervoso. As questões relativas à plasticidade neural têm sido analisadas tanto ao nível molecular, focalizando mecanismos e processos celulares, como também ao nível de sistemas neurais e comportamentais. Dentre essas questões, destacam-se as referentes ao desenvolvimento neural, à recuperação de função e à reorganização morfofuncional de circuitos neurais correlacionados com a aprendizagem, consolidação de memória ou com lesões neurais (Morris, Kandel & Squire, 1988; Weinberger & Diamond, 1987). Na investigação das relações entre plasticidade neural e comportamento, verificam-se diferentes níveis de análise comportamental, incluindo desde a análise de respostas específicas que são aprendidas e memorizadas, até a avaliação de padrões comportamentais mais complexos, envolvidos na recuperação de função (Phelps, 1990; Rosenzweig, 1996; Silva, Giese, Federov, Frankland & Kogan, 1998). Alterações no Sistema Nervoso e experiência O interesse pelos efeitos da experiência, do treino e do exercício sobre o cérebro já aparece em relatos do século XVIII. Experimentos de Bonnet e Malacarne (Bonnet 1779-1783; conforme citado por Rosenzweig, 1996) indicaram que os cérebros de animais que recebiam treinamento 24 sistemático durante anos tinham um cerebelo mais desenvolvido, com maior número de circunvoluções. Contudo, os conceitos e proposições relacionando plasticidade do SNC e comportamento, somente foram provados experimentalmente a partir da década de 1960. Isso se deve a um grupo de pesquisadores da Universidade da Califórnia, em Berkeley, que iniciou uma profícua linha de investigações cujos procedimentos e questões experimentais, embora sem que soubessem na época, como afirma Rosenzweig (1996), eram similares àqueles de seus desconhecidos predecessores. O procedimento básico de Rosenzweig e colaboradores (Rosenzweig, Krech, Bennett & Diamond, 1962) utilizou o arranjo de gaiolas-viveiro diferentes daquelas comumente encontradas em biotérios, contendo animais em conjunto ou alojados individualmente. No arranjo ambiental utilizado as gaiolas-viveiro eram maiores e ofereciam uma grande quantidade e variedade de estímulos, tais como objetos de formas diferentes, espelhos, rodas de atividade, escadas, além de diferentes possibilidades para conseguir alimento. Observou-se, consistentemente, que, em diferentes idades, a interação com esses ambientes ricos em estimulação resulta em alterações específicas do SNC. Entre essas alterações estavam incluídos o aumento na espessura das camadas do córtex visual, no tamanho de corpos neuronais e de núcleos dos corpos neuronais, no número de sinapses e na área das zonas de contato sináptico, no número de dendritos e de espinas dendríticas, no volume e no peso cerebral, além de alterações em níveis de neurotransmissores. Em resumo, todas as características morfológicas e funcionais de áreas corticais sofreram alterações importantes em função da mera exposição e da interação com ambientes que fornecem diversidade de estímulos (Rosenzweig, 1996). A manipulação das condições de estímulo, restringindo-as, como nos estudos de privação sensorial (Hubel & Wiesel, 1965), ou otimizandoas, como nos estudos de exposição a ambientes considerados ricos em estimulação (Krech, Rosenzweig & Bennett, 1960; Rosenzweig, 1996) constitui uma das abordagens clássicas no estudo da plasticidade neural. Esses estudos mostraram novas e interessantes perspectivas para a análise dos efeitos da experiência sobre o sistema nervoso. Implicações dos Estudos de Plasticidade Neural De um modo geral, pode-se afirmar que a análise da plasticidade neural e de recuperação de função, em suas diferentes abordagens, tem sido realizada por meio de investigações que utilizam métodos de análise do comportamento aprendido associados à metodologia neurobiológica, principalmente à de lesão e/ou estimulação neural. O desenvolvimento histórico desse conhecimento biomédico tem sido claramente ligado ao uso de animais, principalmente mamíferos e aves, na pesquisa básica sobre aspectos plásticos do SNC e processos biológicos relacionados com os comportamentos, aprendizagem e memória. As últimas quatro décadas do século XX culminaram com a chamada década do cérebro nos anos 1990 e constituem um período fascinante no que concerne à identificação de processos de plasticidade neural, à busca de mecanismos subjacentes a esses processos e às interrelações com as mudanças comportamentais (Rosenzweig, 1996; Strumwasser, 1994). Os avanços recentes no conhecimento da biologia molecular têm levado a novas perspectivas em termos de controle de mecanismos de plasticidade neural. O próprio conceito de sinapse sofreu uma modificação na medida em que passou a ser considerado como um 25 processo de comunicação neuronal, bidirecional e automodificável (Jessell & Kandel, 1993). As interações sinápticas entre neurônios envolvem interação elétrica e química complexas, que dependem do meio extracelular e de sistemas especiais de receptores celulares (Izquierdo, 1992; Izquierdo & cols, 1999). A ativação desses mecanismos receptores desencadeiam sistemas de sinalização intracelular, envolvendo segundo-mensageiros que podem regular canais iônicos, coordenar mecanismos de ativação e de fosforilação de proteínas e, ainda, modificar proteínas regulatórias da transcrição gênica. A ativação de mecanismos de transcrição gênica e de regulação de síntese protéica vão resultar em maior disponibilidade de proteínas que serão utilizadas como o material básico da célula. Assim, maior síntese proteica pode garantir mudanças estruturais de longa duração nas sinapses, contribuindo tanto para a função e comunicação sináptica, quanto para a organização funcional de circuitos locais. Sem dúvida alguma, as aplicações e implicações de todo esse conhecimento constituem desafios para todos aqueles interessados em comportamento e sistema nervoso. Referências Aldskogius, H. & Kozlova, E. (1998). Central neuron-glial and glial-glial interactions following axon injury. Progress in Neurobiology, 55, 1-26. Baum, W.M. (1999). Compreender o behaviorismo: ciência, comportamento e cultura. (M.T.A. Silva, M.A. Matos, G.Y. Tomanari e E.Z. Tourinho, Trads.). Porto Alegre: Editora Artes Médicas, Bignami, A. (1984). The role of astrocytes in CNS Regeneration. Journal of Neurosurgery Science, 28, 127-132. Brabander, J.M., Van Eden, C.G. & De Bruin , J.P.C. (1991). Neuroanatomical correlates of sparing of function after neonatal medial prefrontal cortex lesions in rats. Brain Research, 568, 24-34. Bussab, V.S.R. (2000). Fatores hereditários e ambientais no desenvolvimento: a adoção de uma perspectiva interacionista. Psicologia: Reflexão e Crítica, 13, 233-243. Carlson, N.R. (2000). 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Enquanto era arremessado pelo ar, Tom olhou para trás e viu que sua mão ainda estava no carro, segurando a almofada do assento separada de seu corpo como um adereço num filme de terror de Freddy Krueger. Em conseqüência desse terrível acidente, Tom perdeu a parte do braço esquerdo logo abaixo do cotovelo. Tinha 17 anos, faltando apenas três meses para terminar o Ensino Médio. Nas semanas seguintes, embora sabendo ter perdido o braço, Tom ainda podia sentir sua presença espectral abaixo do cotovelo. Podia mexer cada "dedo", "estender o braço" e "pegar" objetos que estavam ao alcance da mão. Realmente, seu braço fantasma parecia capaz de fazer tudo que o braço real tinha feito automaticamente, como aparar golpes, evitar quedas ou dar tapinhas carinhosos nas costas do irmãozinho. Como Tom era canhoto, seu fantasma sempre queria pegar o telefone quando este tocava. Tom estava louco. A impressão de que o braço perdido ainda estava ali é um exemplo clássico de membro fantasma, um braço ou perna que 27 subsiste indefinidamente nas mentes de pacientes muito tempo depois de ter sido perdido, num acidente ou amputado por um cirurgião. Alguns despertam da anestesia e se mostram incrédulos quando lhe dizem que seu braço teve de ser sacrificado, porque ainda sentem nitidamente sua presença. Só quando olham por baixo dos lençóis é que chegam a chocante constatação de que o membro realmente se foi. Além disso, alguns desses pacientes experimentam dores terríveis no braço, mão ou dedo fantasma, a ponto de pensar em suicídio. A dor não somente é implacável como também intratável; ninguém tem a menor idéia de como surge ou de como enfrentá-la. Como médico, eu sabia que a dor em membro fantasma representa um problema: clínico sério. A dor crônica num membro real, como a causada por artrite nas articulações ou a dor nas costas, já é de tratamento difícil, mas como tratar a dor num membro que não existe? Como cientista, eu também tinha curiosidade para saber, em primeiro lugar, por que o fenômeno ocorre: por que um braço, persiste na mente do paciente muito tempo depois de ser removido? Por que a mente simplesmente não aceita a perda e "remodela" a imagem do corpo? Sem dúvida, isto acontece em alguns pacientes, mas geralmente leva anos ou décadas. Por que décadas, por que não apenas uma semana ou um dia? Percebi que um estudo deste fenômeno poderia não só nos ajudar a compreender a questão de como o cérebro enfrenta uma perda repentina e importante, mas também contribuir para abordar o debate mais fundamental sobre natureza versus criação até que ponto a imagem do nosso corpo, assim como outros aspectos de nossas mentes, é determinada pelos genes e até que ponto é modificada pela experiência. A persistência de sensação em membros muito tempo depois da amputação já fora observada no século XVI pelo cirurgião francês Ambroise Paré, e não é surpresa que exista um minucioso folclore em torno deste fenômeno. Depois que perdeu o braço direito num malogrado ataque a Santa Cruz de Tenerife, Lord Nelson sofreu dores terríveis no membro fantasma, inclusive a inconfundível sensação de dedos se fincando na palma da mão inexistente. O surgimento dessas sensações fantasmagóricas no membro perdido levou o Senhor dos Mares a proclamar que este fantasma era "uma prova direta da existência da alma". Pois se um braço pode existir depois de retirado, por que a pessoa inteira não pode sobreviver à aniquilação física do corpo? É uma prova, afirmava Lord Nelson, de que o espírito continuava existindo muito tempo depois de ter se livrado de sua carcaça. O eminente médico da Filadélfia Silas Weir Mitchell cunhou a expressão "membro fantasma" depois da Guerra Civil. Naquela época, anterior aos antibióticos, a gangrena era um resultado comum de ferimentos e os cirurgiões serravam membros infectados de milhares de soldados feridos. Estes voltavam para casa com fantasmas, provocando muitas especulações sobre o que poderia causá-los. O próprio Weir Mitchell ficou tão surpreso com o fenômeno que, usando um pseudônimo, publicou o primeiro artigo sobre o assunto numa revista popular chamada Lippincotts journal, para não se arriscar a ser ridicularizado pelos colegas se o divulgasse numa publicação médica profissional. Pensando bem, fantasmas são um fenômeno mal assombrado. Desde o tempo de Weir Mitchell tem havido todo tipo de especulações sobre fantasmas, que vão do extraordinário ao ridículo. Recentemente, há 15 anos, um trabalho publicado no Canadian Journal of Psychiatry declarou que membros fantasmas são meramente o resultado da racionalização do desejo. Os autores argumentavam que o paciente quer desesperadamente seu braço de volta e portanto sente um fantasma 28 da mesma forma que uma pessoa pode ter sonhos recorrentes ou até ver "espíritos" de um pai falecido recentemente. Este argumento, como veremos, é um completo absurdo. Uma segunda e mais popular explicação para os fantasmas é que as extremidades esgarçadas e enroscadas dos nervos no coto (neuromas) que originalmente alimentavam a mão tendem a ficar inflamadas e irritadas, induzindo assim os centros superiores do cérebro a pensar que o membro perdido ainda está ali. Embora haja muitíssimos problemas com esta teoria da irritação dos nervos, é uma explicação simples e conveniente e por essa razão a maioria dos médicos ainda se apega a ela. Os neurologistas do século XIX e início do XX eram astutos observadores clínicos, e pode-se aprender muitas lições valiosas com a leitura desses relatos. Estranhamente, porém, eles não deram o óbvio passo seguinte de fazer experiências para descobrir o que poderia estar acontecendo nos cérebros desses pacientes; sua ciência era mais aristotélica do que galileana. Dado o imenso sucesso que se tem obtido com o método experimental em quase todas as outras ciências, não está na hora de o importarmos para a neurologia? Como a maioria dos médicos, fiquei intrigado com os fantasmas desde a primeira vez que os encontrei e assim continuo desde então. Além de braços e pernas fantasmas - que são comuns entre amputados também tenho encontrado mulheres com seios fantasmas após mastectomia radical e até um paciente com um apêndice fantasma: a característica espasmódica da apendicite não diminuiu depois da remoção cirúrgica, de tal modo que o paciente se recusava a acreditar que o cirurgião o tinha retirado! Quando estudante de medicina, eu ficava tão frustrado quanto os próprios pacientes, e os livros que consultava apenas aprofundavam o mistério. Li sobre um paciente que sentia ereções fantasmas depois de seu pênis ter sido amputado, uma mulher com cãibras menstruais após uma histerectomia e um senhor que tinha nariz e rosto fantasmas depois que o nervo trigêmeo que enerva sua face fora avariado num acidente. Todas estas experiências clínicas permaneceram guardadas no meu cérebro, adormecidas, até cerca de seis anos atrás, quando meu interesse foi reaceso por um trabalho científico publicado em 1991 pelo Dr. Tim Pons, do Instituto Nacional de Saúde, trabalho que me impeliu a um rumo inteiramente novo de pesquisa e que posteriormente trouxe Tom a meu laboratório. Mas, antes de continuar com esta parte da história, precisamos examinar atentamente a anatomia do cérebro particularmente como várias partes do corpo, como os membros, estão mapeadas no córtex cerebral, o grande revestimento convoluto da superfície externa do cérebro. Isto nos ajudará compreender o que Pons descobriu e, por sua vez, como os membros fantasmas aparecem. Durante as décadas de 1940 a 1950, o brilhante neurocirurgião canadense Wilder Penfield realizou amplas cirurgias de cérebro em pacientes sob anestesia local (não há receptores de dor no cérebro, embora esta seja uma massa de tecido nervoso). Muitas vezes, grande parte do cérebro ficava exposta durante a operação e Penfield aproveitava esta oportunidade para fazer experiências como nunca tinham sido tentadas antes. Estimulava regiões específicas dos cérebros de pacientes com um eletrodo e simplesmente lhes perguntava o que sentiam. Todos os tipos de sensações, imagens e até lembranças, eram trazidos à tona pelo eletrodo, e as áreas do cérebro que eram responsáveis puderam ser mapeadas. Entre outras coisas, Penfield descobriu uma estreita faixa que vai de alto a baixo em ambos os lados do cérebro onde seu eletrodo produzia 29 sensações localizadas em várias partes do corpo. Na parte de cima do cérebro, na fenda que separa os dois hemisférios, a estimulação elétrica provocava sensações nos órgãos genitais. Estímulos ali perto despertavam sensações nos pés. Seguindo esta faixa do cérebro de cima para baixo, Penfield descobriu áreas que recebem sensações das pernas e do tronco, da mão (uma grande região com uma representação bem destacada do polegar), da face, dos lábios e finalmente do tórax e da laringe. Este "homúnculo sensorial", como agora é chamado, forma uma representação exageradamente distorcida do corpo na superfície do cérebro, com as partes que são especialmente importantes ocupando áreas desproporcionalmente grandes. Por exemplo, a área envolvida com os lábios ou com os dedos ocupa tanto espaço quanto à área envolvida com todo o tronco do corpo. Presumivelmente é assim porque os lábios e dedos são altamente sensíveis ao toque e capazes de discriminação muito apurada, enquanto o tronco é consideravelmente menos sensível, exigindo menos espaço cortical. Na maior parte, o mapa é bem ordenado, embora esteja de cabeça para baixo: o pé é representado no alto e os braços estendidos são na base. Contudo, depois de um cuidadoso exame, você verá que o mapa não é inteiramente contínuo. O rosto não está perto do pescoço, onde deveria, mas abaixo da mão. Os órgãos genitais, em vez de estarem entre as coxas, se localizam abaixo do pé. Pontos da superfície do corpo que produziam sensações retardadas na mão fantasma (o braço esquerdo do paciente tinha sido amputado dez anos antes do nosso teste). Observem o mapa completo de todos os dedos (etiquetados da 1 a 5) na face e um segundo mapa na parte superior do braço. A informação sensorial destas duas nesgas de pele agora está aparentemente ativando o território da mão no cérebro (ou no tálamo ou no córtex). Assim, quanto antes tais pontos são tocados, as sensações são experimentadas como originadas da mão perdida. 30 Estas áreas podem ser mapeadas ainda com maior precisão em outros animais, particularmente macacos. O pesquisador introduz uma comprida e fina agulha de aço ou tungstênio no córtex somatossensório do macaco - a faixa de tecido cerebral descrita antes. Se a ponta da agulha chegar a ficar bem próxima do corpo celular de um neurônio e se esse neurônio está ativo, gerará minúsculas correntes elétricas, que são captadas pelo eletrodo da agulha e amplificadas. O sinal pode ser exibido num osciloscópio, possibilitando monitorar a atividade desse neurônio. Por exemplo, se você introduzir um eletrodo no córtex somatossensório do macaco e tocar numa parte específica do seu corpo, a célula se excitará. Cada célula tem seu território na superfície do corpo, sua pequena nesga de pele, por assim dizer a qual ela responde. Chamamos isso de campo receptivo da célula. Existe no cérebro um mapa do corpo inteiro, com cada metade do corpo mapeada no lado oposto do cérebro. Embora sejam pacientes experimentais lógicos para se examinar a estrutura e a função detalhadas das regiões sensoriais do cérebro, os animais têm um problema óbvio: macacos não sabem falar. Portanto, não podem dizer ao experimentador, como faziam os pacientes do Penfield, o que estão sentindo. Assim, perde-se uma importante dimensão quando se usam animais nessas experiências Mas, apesar dessas óbvias limitações, pode-se aprender muito, fazendo o tipo certo de experimento. Por exemplo, como já observamos, uma importante pergunta se refere ao problema natureza versus criação: será que estes mapas do corpo na superfície do cérebro são fixos, ou podem mudar com a experiência à medida que evoluímos de recémnascidos para a infância, para a adolescência e para a idade adulta? E mesmo que os mapas já estejam lá ao nascermos, até que ponto podem ser modificados no adulto? Foram estas questões que levaram Tim Pons e seus colegas a embarcar na pesquisa. Sua estratégia foi registrar sinais dos cérebros de macacos que tinham sido submetidos a uma rizotomia dorsal um procedimento em que todas as fibras nervosas que transportam informações sensoriais de um braço para a medula espinhal são completamente cortadas. Onze anos depois da cirurgia, eles anestesiaram os animais, abriram seus crânios e fizeram registros a partir do mapa somatossensório. Como o braço paralisado do macaco não estava enviando mensagens ao cérebro, não se esperava registrar quaisquer sinais quando você tocasse na mão inútil do macaco e registrasse a partir da "área da mão" no cérebro. Deveria haver uma grande nesga de córtex silenciosa correspondente à área afetada. De fato, quando os pesquisadores bateram na mão inútil, não houve nenhuma atividade nesta região. Mas, para sua surpresa, eles descobriram que, quando tocavam no rosto do macaco, as células cerebrais correspondentes à mão "morta" começam a se excitar vigorosamente (o mesmo aconteceu com as células correspondentes à face, mas isso já era esperado.) Aparentemente, a informação sensorial da face do macaco não somente ia para a área da face no córtex, como aconteceria num animal normal, mas também tinha invadido o território da mão paralisada! As implicações dessas descobertas são espantosas: significam que você pode mudar o mapa; que você pode alterar o conjunto de circuitos cerebrais de um animal adulto, e que as conexões podem ser modificadas em distâncias que abrangem um centímetro ou mais. Depois de ler o trabalho de Pons, pensei: "Meu Deus! Será que esta pode ser uma explicação para os membros fantasmas?" O que o 31 macaco "sentiu" realmente quando sua face estava sendo tocada? Já que o córtex de sua "mão" também estava sendo excitado, será que percebia sensações originando-se da mão inútil como também da face? Ou usaria centros superiores do cérebro para reinterpretar as sensações corretamente como procedentes apenas do rosto? É claro que o macaco manteve silêncio sobre o assunto. São necessários anos para treinar um macaco para executar até tarefas muito simples, quanto mais sinalizar que parte do seu corpo estava sendo tocada. Então me ocorreu a idéia de que você não tem de usar um macaco. Por que não responder a mesma pergunta tocando o rosto de um paciente humano que perdeu um braço? Telefonei aos meus colegas Dr. Mark Johnson a Dra. Rica Finkelstein, da área de cirurgia ortopédica, e perguntei: "Vocês têm por aí algum paciente que tenha perdido um braço recentemente?". Foi assim que cheguei a conhecer Tom. Visitei-o imediatamente e perguntei se gostaria de participar de um estudo. Embora inicialmente tímido e reticente, como é do seu estilo, Tom logo se mostrou ansioso em participar de nossa experiência. Tive o cuidado de não lhe dizer o que esperávamos descobrir, para não interferir em suas respostas. Embora extenuado pelas "comichões" e sensações dolorosas em seus dedos fantasmas, estava alegre, aparentemente satisfeito por ter sobrevivido ao acidente. Com Tom sentado confortavelmente em meu laboratório no subsolo, coloquei uma venda sobre seus olhos, porque não queria que visse onde eu o estava tocando. Em seguida peguei um cotonete comum e comecei a tocar de leve várias partes da superfície do seu corpo, pedindo-lhe que me dissesse onde experimentava as sensações. Meu aluno, que observava tudo, pensou que eu estava louco. Esfreguei seu queixo. - O que esta sentindo? - Você está tocando meu queixo. - Outra coisa mais? - Hei, é engraçado disse Tom. Você está tocando meu polegar desaparecido, meu polegar fantasma. Movimentei o cotonete para seu lábio superior. - Que tal aqui? - Está tocando meu dedo indicador. E meu lábio superior. - É mesmo? Tem certeza? - Sim. Estou sentindo nos dois lugares. - E aqui? Passei o cotonete em seu maxilar inferior. - É meu dedo mínimo desaparecido. Logo descobri um mapa completo da mão de Tom - em seu rosto! Compreendi que o que eu estava vendo era talvez um correlato perceptivo direto do remapeamento que Tim Pons tinha visto em seus macacos. Pois não há outra maneira de explicar por que o toque numa área tão distante do tronco isto é, o rosto gerasse sensações na mão fantasma; o segredo está no mapeamento peculiar das partes do corpo no cérebro, com o rosto se localizando logo abaixo da mão. Continuei este procedimento até ter explorado toda a superfície do corpo do Tom. Quando tocava seu tórax, o ombro direito, a perna direita ou a parte inferior das costas, ele tinha sensações apenas nesses lugares e não no fantasma. Mas também descobri um segundo e bem traçado "mapa" de sua mão desaparecida guardado na parte superior do braço 32 esquerdo, poucos centímetros acima da linha da amputação. O toque na superfície da pele desse segundo mapa também provocava sensações localizadas precisamente em cada dedo: um toque aqui e ele diz: "Oh, esse é o meu polegar", e assim por diante. Por que havia dois mapas em vez de apenas um? Se você olhar novamente o mapa de Penfield, verá que a área da mão no cérebro é flanqueada embaixo pela área do rosto e acima pela área da parte superior do braço e do ombro. A informação procedente da área da mão de Tom foi perdida depois da amputação, e, conseqüentemente, as fibras sensoriais que se originavam na face de Tom que normalmente ativam apenas a área da face em seu córtex agora invadiam o território desocupado da mão e começavam a movimentar as células ali. Assim, quando eu tocava o rosto de Tom, ele também experimentava sensações na mão fantasma. Mas, se a invasão do córtex da mão também resulta em fibras sensoriais que normalmente inervam a região cerebral acima do córtex da mão (isto é, fibras que se originam na parte superior do braço e no ombro), então o toque em pontos na parte superior do braço devia também provocar sensações na mão fantasma. E de fato consegui mapear estes pontos no braço acima do coto de Tom. Assim, este tipo de arranjo é precisamente o que se esperaria: um feixe de pontos na face que despertam sensações no fantasma e um segundo feixe na parte superior do braço, correspondendo as duas partes do corpo que são representadas em cada lado (acima e abaixo) da representação do cérebro. Não é freqüente no campo da ciência (especialmente na neurologia) que se possa fazer uma previsão simples como esta e confirmá-la em alguns minutos de exploração, usando um cotonete. A existência de dois feixes de pontos sugere firmemente que o remapeamento do tipo visto nos macacos de Pons também ocorre no cérebro humano. Mas ainda havia uma dúvida incômoda: como podemos ter certeza de que essas mudanças estão realmente se realizando - de que o mapa realmente muda em pessoas como Tom? Para obter uma prova mais direta, tiramos vantagem de uma moderna técnica de neuroimagiamento chamada magnetoencefalografia (MEG), que se baseia no princípio de que, se você tocar diferentes partes do corpo, a atividade elétrica localizada despertada no mapa de Penfield pode ser medida como mudanças em campos magnéticos do couro cabeludo. A grande vantagem da técnica é que não é invasiva; não é preciso abrir o couro cabeludo do paciente para olhar o cérebro. Usando a MEG, é relativamente fácil numa sessão de apenas duas horas, mapear a superfície de todo o corpo na superfície do cérebro de qualquer pessoa disposta a ficar sentada ali durante esse tempo. Sem causar surpresa, o mapa resultante é bem semelhante ao mapa original do homúnculo de Penfield, e há pouca variação de pessoa a pessoa na disposição geral do mapa. Quando aplicamos MEGs em quatro pessoas de braço amputado, porém, descobrimos que os mapas tinham mudado em grandes distâncias, exatamente como tínhamos previsto. As implicações são impressionantes. Antes de tudo, sugerem que mapas do cérebro podem mudar, às vezes com espantosa rapidez. Esta descoberta contradiz flagrantemente um dos dogmas mais generalizadamente aceitos em neurologia: a natureza estável das conexões no cérebro humano adulto. Sempre se supôs que, uma vez que este sistema de circuitos, inclusive o mapa de Penfield, tenha sido montado na vida fetal ou na mais tenra infância, muito pouco se pode fazer para modificá-lo na idade adulta. Realmente, esta suposta ausência de plasticidade no cérebro adulto é freqüentemente invocada para explicar por que há tão pouca recuperação de funções após uma lesão cerebral e 33 por que doenças neurológicas são tão difíceis de tratar. Mas a prova de Tom mostra ao contrário do que é ensinado nos livros que novos caminhos, altamente precisos e funcionalmente eficientes, podem aparecer no cérebro adulto quatro semanas depois de uma lesão. Não se conclui necessariamente que desta descoberta surgirão imediatamente novos tratamentos revolucionários para as síndromes neurológicas, mas ela proporciona realmente alguns motivos para otimismo. Em segundo lugar, as descobertas podem ajudar a explicar a própria existência de membros fantasmas. A explicação médica mais popular, mencionada antes, e que nervos que anteriormente alimentavam a mão começam a enervar o coto. Além disso, estas extremidades nervosas esgarçadas formam pequenos blocos de tecido cicatrizado chamados neuromas, que podem ser muito dolorosos. Quando os neuromas irritados, diz a teoria, enviam impulsos de volta à área original da mão no cérebro, de forma que o cérebro é induzido a pensar que a mão ainda existe: daí o membro fantasma e a idéia de que a dor associada surge porque os neuromas estão doloridos. Com base neste frágil raciocínio, os cirurgiões têm idealizado vários tratamentos para dor em um membro fantasma, em que cortam e removem neuromas. Alguns pacientes experimentam um alivio temporário, mas, surpreendentemente, tanto o fantasma quanto a dor associada geralmente voltam violentamente. Para aliviar este problema, às vezes os cirurgiões realizam uma segunda ou mesmo uma terceira amputação (tornando o coto cada vez mais curto), mas, quando se pensa sobre isto, vê-se que é logicamente absurdo. Por que uma segunda amputação iria ajudar? Seria de esperar um segundo fantasma, e de fato é o que geralmente acontece; é um problema de regressão interminável. Alguns cirurgiões chegam a fazer rizotomias dorsais para tratar de dor em membro fantasma, cortando os nervos sensoriais que vão para a medula espinhal. Às vezes, funciona; às vezes, não. Outros tentam até o procedimento mais drástico de cortar a parte traseira da própria medula espinhal uma cordotomia para impedir que os impulsos atinjam o cérebro, mas isso, também, é muitas vezes ineficaz. Ou vão até o tálamo, uma estação de retransmissão do cérebro que processa os sinais antes que sejam enviados ao córtex, e novamente verificam que não ajudaram o paciente. Podem caçar o fantasma cada vez mais profundamente no cérebro, mas realmente nunca vão encontrá-lo. Por quê? Um dos motivos, seguramente, é que o fantasma não existe em nenhuma destas áreas; existe em partes mais centrais do cérebro, onde tem ocorrido remapeameto. Para falar francamente, o fantasma surge não do coto mas do rosto e da maxila, porque toda vez que Tom sorri ou movimenta o rosto e os lábios, o impulso ativa a área da "mão" em seu córtex, criando a ilusão de que sua mão ainda está ali. Estimulado por todos estes sinais falsos, o cérebro de Tom literalmente tem a alucinação de seu braço e talvez esta seja a essência de um membro fantasma. Se for este o caso, a única forma de se livrar de um fantasma será remover sua maxila. E, pensando bem, isso também não ajudaria. Ele provavelmente terminaria com uma maxila fantasma. E, novamente aquele problema de regressado interminável. Mas o remapeamento não pode ser toda a história. Primeiro, não explica por que Tom ou outros pacientes experimentam a sensação de serem capazes de movimentar seus fantasmas voluntariamente ou por que o fantasma pode mudar sua postura. Onde se originam estas sensações de movimento? Segundo, o remapeamento não é responsável pelo que mais seriamente preocupa médico e paciente a gênese da dor fantasma. 34 Quando pensamos em sensações originárias da pele, geralmente pensamos apenas em toque, tato. Mas, na verdade, vias neurais que medeiam sensações de calor, frio e dor também se originam na superfície da pele. Estas sensações têm suas próprias áreas alvo ou mapas no cérebro, mas os caminhos usados por elas podem estar entrelaçados uns com os outros em formas complicadas. Se é este o caso, será que tal remapeamento também poderia ocorrer nestas vias evolutivamente mais velhas, independentemente do remapeamento que ocorre para o toque? Em outras palavras, o remapeamento visto em Tom e nos macacos de Pons é peculiar ao toque, ou aponta para um princípio bem geral onde ocorreriam sensações de calor, frio, dor ou vibração? E se esse remapeamento ocorresse, haveria casos de "cruzamento de linhas" acidental, de forma que uma sensação de toque evocasse calor ou dor? Ou elas permaneceriam separadas? A questão de como milhões de ligações neurais no cérebro são conectadas tão precisamente durante o desenvolvimento e até que ponto esta precisão é preservada quando elas são reconhecidas após uma lesão é de grande interesse para os cientistas que estão tentando compreender o desenvolvimento das vias cerebrais. Para investigar isso, coloquei uma gota de água morna no rosto de Tom. Ele a sentiu ali imediatamente, mas também disse que sua mão fantasma sentia o calor de outra forma. Certa vez, quando a água acidentalmente escorreu pelo rosto, ele exclamou com visível surpresa que podia realmente sentir a água quente escorrendo pelo braço fantasma. Demonstrou isto usando sua mão normal para traçar o caminho da água descendo pelo braço. Em todos os meus anos de clínica neurológica, nunca tinha visto algo tão impressionante localizando mal uma sensação complexa como uma "gota d´água" escorrendo do rosto para sua mão fantasma. Essas experiências sugerem que novas conexões altamente precisas e organizadas podem ser formadas no cérebro adulto em poucos dias. Mas não nos dizem como estes novos caminhos surgem realmente, que mecanismos subjacentes se encontram ao nível celular. Vejo duas possibilidades. Primeiro, a reorganização pode envolver o brotamento o crescimento real de novas ramificações a partir das fibras nervosas que normalmente inervam a área da face em direção as células da área da mão no córtex. Se essa hipótese fosse verdadeira, seria realmente impressionante, já que é difícil ver como brotamentos altamente organizados poderiam se efetuar em distâncias relativamente longas (no cérebro, alguns milímetros podem muito bem equivaler a mais de um quilômetro) e num período tão curto. Além disso, mesmo que ocorra o brotamento, como as novas fibras "saberiam" para onde se dirigir? Pode se imaginar uma mistura altamente amontoada de conexões, mas não vias organizadas com precisão. A segunda possibilidade é que há de fato uma tremenda redundância de conexões, no cérebro adulto normal, mas que a maioria delas não funciona ou não tem uma função óbvia. Como tropas da reserva, podem ser convocadas para entrar em ação apenas quando necessário. Assim, mesmo em cérebros adultos normais saudáveis poderia haver informações sensoriais da face para o mapa da face no cérebro e também para a área do mapa correspondente à mão. Se for assim, devemos supor que esta energia oculta ou escondida é ordinariamente inibida pelas fibras sensoriais procedentes da mão real. Mas, quando a mão é extirpada, esta informação silenciosa procedente da pele do rosto é desmascarada e autorizada a se expressar, de forma que um toque na face agora ativa a área da mão e leva a sensações na mão fantasma. Assim, a cada vez que assobia, Tom pode sentir um formigamento na mão fantasma. 35 Não temos no presente nenhuma forma de fazer facilmente uma distinção entre estas duas teorias, embora meu palpite seja que ambos os mecanismos estão em atividade. Afinal de contas, tínhamos visto o efeito em Tom em menos de quatro semanas e este parece um tempo curto demais para o brotamento se efetuar. Meu colega do Hospital Geral de Massachusetts, Dr. David Borsook, viu efeitos semelhantes num paciente, apenas 24 horas depois da amputação, e não há possibilidade de ocorrência de brotamento num período tão curto. A resposta final virá do rastreamento simultâneo de mudanças perceptivas e mudanças cerebrais usando a técnica de imageamento num paciente, durante um período de vários dias. Se Borsook e eu estivermos certos, a imagem completamente estática que se obtém olhando os diagramas de livros é altamente enganadora e precisamos repensar inteiramente o significado dos mapas do cérebro. Longe de indicar uma localização especifica na pele, cada neurônio no mapa se encontra num estado de equilíbrio dinâmico com outros neurônios adjacentes; sua significação depende acentuadamente do que outros neurônios da vizinhança estão (ou não) fazendo. Essas descobertas levantam uma pergunta óbvia: e se for perdida alguma parte do corpo que não a mão? Ocorrerá o mesmo tipo de remapeamento? Quando meus estudos sobre Tom foram publicados, recebi muitas cartas e telefonemas de amputados querendo saber mais. Alguns tinham sido informados do que sensações fantasmas são imaginárias e ficaram aliviados ao, saber que isso não é verdade. Os pacientes sempre acham reconfortante saber que há uma explicação lógica para seus sintomas aparentemente inexplicáveis; nada é mais insultuoso para um paciente do que ser informado de que sua dor está "toda na mente". Os estudos de membros fantasmas oferecem fascinantes vislumbres da arquitetura do cérebro, de sua espantosa capacidade de crescimento e renovação. A dor real, como a dor de câncer, é bem difícil de tratar; imaginem o desafio de tratar a dor num membro que não existe! No momento, pode se fazer muito pouco para aliviar tal dor, mas talvez o remapeamento que observamos em Tom possa ajudar a explicar por que acontece. Sabemos, por exemplo, que a dor fantasma intratável pode se desenvolver semanas ou meses depois que o membro é amputado. Talvez, enquanto o cérebro se adapta e as células lentamente fazem novas conexões, haja um leve erro no remapeamento, de forma que a informação sensorial vinda dos receptores de toque seja acidentalmente conectada às áreas de dor no cérebro. Se isso acontecesse, então, a cada vez que o paciente sorrisse ou roçasse acidentalmente a bochecha, as sensações de toque seriam sentidas como dor torturante. Esta, quase certamente, não é toda explicação para a dor fantasma, mas é um bom começo. Um dia, quando Tom saía do meu consultório, não pude resistir a lhe fazer uma pergunta óbvia. Durante as últimas quatro semanas, tinha percebido alguma vez em sua mão fantasma algumas dessas peculiares sensações mencionadas, quando seu rosto era tocado por exemplo, quando fazia a barba toda manhã? "Não, não senti", respondeu, "mas como o senhor sabe, minha mão fantasma às vezes tem umas comichões malucas e nunca sabia o que fazer. Mas agora", disse ele, batendo de leve na bochecha a piscando o olho para mim, "sei exatamente onde coçar!" 36 Material de apoio da atividade Os neurônios são insignificantes em termos numéricos no nosso cérebro? Textos extraídos do livro O cérebro nosso de cada dia, de Suzana Herculano-Houzel, Editora Vieira e Lent O cérebro nosso de cada dia O mito dos 10% do cérebro Quanto do seu cérebro você usa? E da sua capacidade? E do seu potencial? Quem já não ouviu essa frase "Usamos apenas 10% do cérebro"? Em 1999, quando passei a trabalhar em divulgação científica, quis começar investigando o que o público conhecia e pensava sobre o cérebro. Numa pesquisa chamada "Você conhece seu cérebro?", perguntei a 2 mil cariocas, entre outras coisas, se eles concordavam com a célebre frase. A metade concordou. Fiz a mesma pergunta a 35 neurocientistas, e a frase foi prontamente recusada. A razão? Essa história de usar 10% do cérebro nada mais é do que um mito. Vamos deixar claro logo do começo: não há qualquer razão científica para supor que usamos 10% do nosso cérebro. Nem 10% dos nossos neurônios. Nem 10% da nossa capacidade. Todas as evidências sugerem o contrário: usamos nosso cérebro inteiro. Os 10% ficam por conta da imaginação de quem conseguiu convencer quase metade da população do Rio de Janeiro a aceitar esse mito. É verdade que, a primeira vista, a idéia de usar somente 10% do cérebro parece muito convidativa. Usando apenas 10% do cérebro, teríamos 90% de reserva, e se conseguíssemos aprender a usar esse "potencial" poderíamos ficar dez vezes mais inteligentes, memorizar dez vezes mais fatos, fazer contas dez vezes mais rápido... Só que não é assim. O pior é que as conseqüências são graves. Quem acredita que 90% do seu cérebro são dispensáveis não tem por que evitar choques na cabeça, usando capacete na motocicleta ou cinto de segurança no carro. Quem não sabe que usa seu cérebro inteiro a todo momento ainda não faz idéia da maravilha que tem dentro da cabeça. E de quebra fica susceptível ao assédio de livros e cursos que se autodenominam "científicos" e pretendem ensinar "como usar os outros 90%". Espalhar o mito de que usamos 10% do cérebro ou da sua capacidade é um dos grandes desfavores que a mídia já fez ao homem e à ciência. É difícil definir como surgiu esse mito, mas há uma possibilidade interessante. No começo do século XX, quando a ciência tentava identificar a localização das funções mentais no cérebro, um influente psicólogo americano, Karl Lashley (1890 1958), tinha uma opinião diferente. Lashley acreditava que o importante era haver uma massa suficiente de neurônios distribuída pelo cérebro, e não sua posição específica dentro dele. Um de seus principais argumentos era o de que a maior parte do córtex cerebral de ratos de laboratório, quase 90%, podia ser removida, e mesmo assim os animais ainda eram capazes de encontrar a saída de um labirinto. O que Lashley esqueceu de considerar foi que os animais operados poderiam, por exemplo, usar os sentidos restantes para compensar um sentido lesado e ainda conseguir deixar o labirinto. Mesmo assim, os 37 números eram impressionantes, e para alguém - não foi Lashley concluir que bastavam 10% do cérebro para a memória funcionar era só um pulinho. E daí basta inverter a lógica para "deduzir" que apenas 10% do cérebro são usados. Essa é apenas uma origem possível para o mito dos 10%. Em princípio, há várias maneiras de usar só 10% do cérebro: usando 10% da massa cerebral, 10% dos neurônios, ou 10% do potencial... Mas não importa: em qualquer um dos três casos, toda a ciência aponta para o contrário. Se são 10% da massa cerebral, 90% do que temos dentro da cabeça deveriam então ser dispensáveis. E, no entanto, lesões do cérebro humano, mesmo pequenas, podem ter conseqüências graves para o intelecto e o comportamento. Se são 10% dos neurônios, os outros 90% deveriam ser silenciosos, ou então redundantes, servindo só como "reservas". Mas é possível "escutar" as células nervosas em atividade, e em sua grande maioria elas estão ativas e respondem por algum aspecto do mundo ou do comportamento. E se são 10% da capacidade de desenvolvimento intelectual... será que alguém sabe o que seriam os 100%? Uma dificuldade para aceitar que usamos 100% do cérebro pode ser a pergunta inevitável de quem estava convencido do contrário: se tudo é usado, como então é possível desenvolver nossas habilidades? A resposta está na mais maravilhosa e característica propriedade do sistema nervoso: a capacidade de fazer novas combinações entre seus elementos, e de mudar a eficiência das conexões das sinapses já existentes. Quando a eficiência aumenta, a conexão entre dois neurônios fica "fortalecida"; quando diminui, a conexão fica "enfraquecida". Além do mais, nenhuma conexão é fixa; uma conexão enfraquecida demais pode ser eliminada, e uma nova pode ser feita em outro lugar, com outro neurônio. Fortalecer essas novas conexões, estabilizando-as, é uma maneira de criar novas associações. Os neurocientistas hoje estão convencidos de que é essa a base do aprendizado. Como sempre se pode tirar uma conexão daqui e criar outra ali, será sempre possível fazer mais uma combinação, mais uma associação entre neurônios, e aprender mais alguma coisa. Talvez nem sempre fique tudo na lembrança talvez seja mesmo necessário esquecer algumas coisas para poder lembrar de outras. Não importa. Aprender, a mais nobre função do cérebro, não funciona a 10%, nem a 100%, nem a 1% da sua capacidade. Não há limite. Simplesmente funciona. Outubro de 2000 Fonte: Herculano Houzel, S. "Do you know your brain?: a survey on public neuroscience literacy at the closing of the decade of the brain": The Neuroscientist, no prelo, 2002. Os 90% do cérebro Conheça as células que ajudam os neurônios De que é feito o cérebro? Essencialmente de neurônios, certo? Errado. Neurônios são minoria quase insignificante em termos numéricos: apenas 2% a 10% do total de células cerebrais. Os outros 90% a 98% são células gliais, ou glia, para os íntimos. A glia é tradicionalmente considerada um conjunto de células silenciosas, cumprindo funções secundárias, como suporte, "preenchimento de espaço", eliminação de detritos, isolamento elétrico e fornecimento de nutrientes para os neurônios. Mas isso vai mudar. Um artigo publicado em janeiro de 2001 na prestigiosa revista Science mostra que a glia não é tão subserviente assim. Neurônios, tremei: a formação e a sobrevivência de suas tão queridas sinapses dependem das insuspeitas células gliais ao seu redor. 38 É natural, de fato, pensar que somente os neurônios possam transmitir sinais no sistema nervoso. Neurônios tem ramos de "entrada" e de "saída" distintos, enquanto a glia tem forma geralmente estrelada. Além do mais, células gliais são menores do que os neurônios, e ficam aglomeradas ao seu redor. Daí o nome "glia", que em grego significa "cola". O panorama começou a mudar em 1994, com a descoberta de que as células gliais, até então consideradas "inexcitáveis", silenciosas, respondem ao glutamato, um importante sinal químico de comunicação entre neurônios. Mais do que isso, a glia também "libera" glutamato, igualzinho aos neurônios, e esse glutamato é reconhecido pelos neurônios como um sinal igual a outro qualquer. Ou seja: elas têm o potencial de se comunicar com os neurônios, ou ao menos de influenciar a comunicação entre eles. A glia também envolve as sinapses, as pontes de comunicação entre neurônios, onde eles emitem e reconhecem substâncias como o glutamato. Nesses locais, a função da glia é absorver rapidamente todo excesso de glutamato que "transborda" da sinapse. Se não fizesse isso, o banho de glutamato rapidamente se tornaria tóxico, excitando os neurônios até a epilepsia e depois à morte. Além de "ajudar" os neurônios a se comunicar, a glia também os mantém vivos: sem ela, os neurônios morrem. Mas parece que a glia faz mais do que passar nutrientes e fatores de crescimento aos neurônios. A equipe de Ben Barres, da Universidade de Stanford, nos EUA, acaba de demonstrar que, sem a glia por perto, os neurônios em desenvolvimento não sabem montar sinapses, sua estrutura mais importante e característica. O artigo publicado na revista Science é um verdadeiro tour de force científico. O doutorando Erik Ullian e seus colegas no laboratório de Barres fizeram nada menos que uma série de 15 experimentos para cercar o fenômeno. Tudo começou com um detalhe de sorte: a descoberta por Barres, em 1997, de que, quando cultivados num pratinho de vidro, banhados em nutrientes, os neurônios da retina não precisam de glia para sobreviver, mas em sua presença tem sinapses dez vezes mais ativas. É como se trocassem dez vezes mais palavras por segundo do que quando criados sem glia por perto. Se a diferença na atividade das sinapses é tão grande, por que esse efeito da glia não foi descoberto antes? Acontece que as chamadas "culturas de neurônios" usadas rotineiramente nos laboratórios são, na verdade, culturas mistas de neurônios e glia retirados de um pedacinho do cérebro. Para estudar o efeito, Ullian precisou fazer uma cultura 99,5% pura de neurônios. Isso só foi possível cultivando neurônios da retina de embriões de rato, tomando o cuidado de primeiro passar todas as células por um pratinho forrado com anticorpos que serviam de "cola para neurônios". Sem ser reconhecida pelos anticorpos, a glia ficava flutuando, e era facilmente levada embora quando o pratinho era lavado com suavidade. Com a cultura pura de neurônios em mãos, Ullian e seus colegas começaram a série de 15 experimentos. Comparando cultural com ou sem glia, eles mediram a atividade espontânea das sinapses, provocaram os neurônios com glutamato para calcular a eletricidade produzida em resposta, encheram as sinapses com corante fluorescente para determinar seu conteúdo, verificaram a produção de proteínas necessárias nas sinapses, e usaram até microscopia eletrônica para contar sinapses nos neurônios. 39 Todos os resultados foram semelhantes: sem glia por perto, poucas sinapses se formam nos neurônios e as poucas que se formam são imaturas, pouco eficazes, como se somente soubessem sussurrar. Com glia, seis vezes mais sinapses se formam e são sinapses dez vezes mais fortes, que "gritam" para valer. A diferença parece estar na organização do material necessário para fabricar as sinapses. Mesmo sem glia, tudo o que é necessário é fabricado pelos neurônios, mas é só com a glia por perto que eles conseguem organizar tudo e montar as sinapses. Depois de a glia ensinar os neurônios a montar sinapses, será que eles conseguem mantê-las sozinhos? Não. Tirando a glia da cultura (o que eles podiam realizar facilmente, usando o truque de fazer a cultura em pratinhos de "dois andares", o de baixo com neurônios, e o de cima com glia), os neurônios perderam suas sinapses em uma semana. E, agora, ao 15° experimento. Tudo é muito bonitinho no pratinho de cultura. E no cérebro, mesmo, também é a glia que manda os neurônios fazerem sinapses? No rato, os terminais desses neurônios da retina chegam ao cérebro no 16° dia de gestação, mas o grosso das sinapses só aparece dez dias depois. A equipe de Barres investigou se essa data correspondia ao aparecimento da glia. Não deu outra: células gliais em forma de estrela aparecem exatamente no momento da formação das sinapses no local. Tudo isso lembra muito o desenvolvimento do cérebro humano. Nos primeiros anos de vida, o tamanho do cérebro aumenta radicalmente com a multiplicação das células gliais enquanto os neurônios são os mesmos cem bilhões desde o nascimento. E é justamente na fase em que a glia está se formando, nos meses após o nascimento, que o número de sinapses no cérebro aumenta enormemente. Olhando agora, é fácil imaginar que a glia participe da formação das sinapses, mas, para cientistas que aprenderam desde a faculdade que a glia cumpre funções apenas acessórias, é fácil deixar a evidência passar despercebida. Acessória ou fundamental, o fato é que a glia constitui pelo menos 90% do cérebro. Só que nem assim dá para dizer que usamos 10% do cérebro. Não, caro leitor, ainda assim a história dos 10% é um mito. Suas células gliais são usadas, sim, obrigada. Se a glia deixasse de funcionar ou de existir, haveria um excesso constante de glutamato derramado, e a atividade neuronal no cérebro se transformaria numa enorme crise epiléptica, que depois iria desaparecendo a medida que as sinapses fossem se desmanchando. Pois é. Afinal, sem a glia, os grandes neurônios não são grande coisa. Elas cuidam deles, elas os ensinam a construir sua estrutura mais importante, e podem até se comunicar com eles. Se continuar assim, quem sabe ainda vamos viver para ver o dia em que os cientistas discutirão o papel da glia na produção da consciência? Fonte: Ullian, E.M., Sapperstein, S.K., Christophersón, K.S. a Barres, B.A. "Control of synapse number by glia". Science291, pp. 657-661, 2001. 40 Material de apoio da atividade Esquecer é fundamental para o aprendizado? Textos extraídos do livro A arte de esquecer, de Iván Izquierdo Editora Vieira e Lent (2004) A arte de esquecer Por que e para que esquecemos? Como toda a evidência disponível indica que a maioria das memórias se perde, surgem várias perguntas. A primeira é, sem dúvida, por que esquecemos? Esquecemos talvez, em parte, porque os mecanismos que formam e evocam memórias são saturáveis. Não podemos fazê-los funcionar constantemente de maneira simultânea para todas as memórias possíveis, as existentes e as que adquirimos a cada minuto. Isso obriga naturalmente a perder memórias preexistentes, por falta de uso, para dar lugar a outras novas. (Mais adiante explicaremos este mecanismo que é fundamental para o esquecimento.) Não sabemos se os mecanismos por meio dos quais se guardam no cérebro os elementos principais de cada memória são ou não são saturáveis. É até possível que não o sejam, já que há tantos neurônios e tantas interconexões entre eles. Temos no cérebro humano muitos bilhões de neurônios. Destes, os do córtex cerebral recebem entre 1.000 a 10.000 conexões (sinapses) procedentes de outras células nervosas, e emitem prolongamentos que fazem conexão com outros dez a 1.000 neurônios. Como se vê, as possibilidades de intercomunicação entre as células do cérebro são imensas, e de cada uma destas conexões ou sinapses podem surgir memórias; sem contar o fato de que cada conexão pode participar de muitas memórias diferentes. Acredita-se que as memórias dependem de alterações na conformação das sinapses. É, portanto, altamente provável que a capacidade de armazenamento seja gigantesca. Mas há inúmeras evidências recentes de que, na hora de sua formação e na hora de sua evocação, os sistemas cerebrais que se encarregam das memórias de longa duração, que envolvem fundamentalmente uma estrutura do lobo temporal chamada hipocampo, são altamente saturáveis. O mesmo ocorre com os sistemas encarregados de analisar on line as informações correspondentes à aquisição e à evocação das memórias, que analisaremos a seguir. O hipocampo é a principal estrutura do sistema nervoso dos mamíferos envolvida tanto na formação como na evocação das memórias. A segunda grande pergunta que surge do que vimos até agora é: para que precisamos esquecer? A resposta a essa pergunta abrange muitos aspectos diferentes e será respondida ao longo das próximas páginas. Como veremos, em boa parte esquecemos para poder pensar, e esquecemos para não ficar loucos; esquecemos para poder conviver e para poder sobreviver. Formas de esquecimento Basicamente há quatro formas de esquecimento. Duas delas consistem em tornar as memórias menos acessíveis, mas em geral sem perdê-las por completo: a extinção, e a repressão. As outras duas consistem em perdas reais de informação; uma delas por bloqueio de sua aquisição, e a outra por deterioração e perda de informação, o esquecimento 41 propriamente dito. O esquecimento real não é uma arte: é uma pena. Talvez necessária (ver referência a "Funes, o Memorioso", na pág. 91), mas uma pena enfim; um acontecimento em geral não voluntário. A arte de esquecer se concentra na extinção (e seus parentes próximos, a habituação e a discriminação) e na repressão. E também, como veremos, num truque voluntário que é a falsificação. As perdas da memória de trabalho são inerentes à sua natureza Há vários tipos de memória. Em primeiro lugar, existe a memória de trabalho, que usamos para entender a realidade que nos rodeia e poder efetivamente formar ou evocar outras formas de memória: a que denominamos de curta duração e que dura umas poucas horas, o suficiente para que possa se formar a memória de longa duração (também chamada memória remota), que dura dias, anos ou décadas. Para mim, que tenho muitos anos, a memória da minha infancia é remota; a lembrança do que aconteceu ontem ou na semana retrasada é simplesmente memória de longa duração. A lembrança do que eu estava fazendo duas ou três horas antes de me sentar para escrever este texto, a memória de curta duração. Enquanto escrevia, a memória da terceira palavra da frase anterior (que já perdi) foi parte da minha memória de trabalho. O mesmo aconteceu com você, leitor, ao ler essa frase: você compreendeu a terceira palavra de minha frase, há poucos segundos, mas já não a recorda mais. Outro exemplo típico de memória de trabalho é a do número telefônico que solicitamos ao nosso vizinho, que dura só o tempo suficiente para discálo. Logo depois de fazer a chamada, a lembrança do número desaparece, e se queremos aprendê-lo, devemos perguntá-lo novamente ou registrálo em algum lugar. A memória de trabalho não forma arquivos duradouros: desaparece em segundos ou, no máximo, minutos. Está feita para ser assim, de maneira que nenhuma informação que esteja sendo processada venha a interferir ou se confunda com as que ocorreram logo antes ou as que virão logo a seguir. Se a terceira palavra da minha frase anterior persistisse além de alguns segundos, nem eu seria capaz de continuar escrevendo, nem você seria capaz de continuar lendo; viraríamos prisioneiros dela, repetindo-a mentalmente fora de contexto. A memória de trabalho depende da atividade elétrica de neurônios do córtex pré-frontal, localizado na frente da área motora, e não persiste além disso. Quando cessa a ativação dos neurônios pré-frontais, a memória de trabalho também cessa. Como veremos mais adiante, os neurônios são ativados por substâncias químicas, mas emitem suas mensagens por meio de atividade elétrica. Os neurônios do córtex pré-frontal se ativam em resposta às experiências de cada momento, a sua estimulação dura enquanto dura a experiência; somente às vezes persiste um pouco mais. Voltemos ao exemplo da terceira palavra de minha frase anterior, que persistiu só o suficiente para que eu conseguisse continuar escrevendo e você lendo. Enquanto o mecanismo da memória de trabalho é posto em jogo em cada experiência, a informação processada pelo córtex pré-frontal se comunica a outras regiões do cérebro e faz um intercâmbio de informações com elas. As outras regiões do cérebro incluem aquelas que analisam rapidamente a informação sensorial e as que armazenam memórias de maior duração. Assim, nosso cérebro toma aquela famosa terceira palavra da frase anterior e a insere num contexto maior: o da compreensão de um texto mais longo. A análise rápida de informação é feita on line pela memória de trabalho, e comparada com outras informações que possam ocorrer simultaneamente ou que já estejam guardadas no cérebro. Assim, distinguimos o homem apoiado na parede da calçada em frente da própria 42 parede e das pessoas que passam; distinguimos o carro que avança pela rua das árvores que permanecem fixas (e com isso entendemos que o carro avança e estimamos sua velocidade), distinguimos o que há de novo e importante naquilo que está acontecendo no momento e precisa ser guardado na memória, e que informação já temos e não precisa ser guardada porque seria redundante. No caso da memória de trabalho, sua própria função e formação exigem que seja fugaz. Esta baseada em mecanismos muito rápidos e, por definição tanto psicológica como anatômica, é necessariamente evanescente. Foi feita para ser assim. Sua feitura é uma arte, uma arte de delicadeza e precisão sem par, mas uma arte que compartilhamos com todos os seres humanos e todos os vertebrados. Há evidências que sugerem que a memória de trabalho de alguns primatas superiores seja melhor do que a nossa. A perda de informação da memória de trabalho não pode ser considerada um esquecimento real, já que é própria de sua natureza. O que acontece quando a memória de trabalho fracassa? Uma informação se confunde com a anterior ou com a seguinte, ou com a que está ao lado ou acima; confundem-se entre si as informações simultâneas e não conseguem ser distinguidas das informações sucessivas ou isoladas. Não conseguimos distinguir muito bem o homem da parede na qual se apóia, ou o carro que avança, das árvores que o rodeiam. Ambas cenas constituem uma massa uniforme, onde homem e tijolos, carros e árvores se confundem. O professor enxerga seus alunos como uma massa informe de rostos, e a pergunta que um deles lhe fez confunde-se com a resposta que deu a pergunta de um aluno anterior. Confundem-se cheiros, objetos e sons. A memória de trabalho serve para discriminar informações e selecionar quais correspondem ou não a memórias preexistentes. Quando ela falha, a realidade vira incompreensível ou alucinatória porque seus componentes se confundem entre si. Isto pode acontecer quando estamos exaustos, sem dormir há muitas horas, quando somos submetidos a um excesso de informação e/ou quando estamos profundamente estressados. Quando falha a memória de trabalho pode acontecer que a realidade apareça como ameaçadora, como algo que estabelece uma situação de paranóia. A esquizofrenia se caracteriza por falhas grosseiras na memória de trabalho, devidas a lesões congênitas no córtex pré-frontal. Por isso os esquizofrênicos percebem a realidade como algo alucinatório. Confundem objetos ou pessoas sonhados com objetos ou pessoas reais, confundem o sonhado ontem com o que estão vendo agora, confundem, às vezes, cheiros com sons... (Um amigo meu, esquizofrênico, dizia que gostava de cheirar a música de Beethoven; outro conhecido meu, também esquizofrênico, afirmava que esse exército de anões que nos rodeava constantemente era inofensivo, não fosse o mau cheiro.) Além disso, os esquizofrênicos padecem de transtornos na formação das memórias de curta a longa duração, devidos a alterações morfológicas nos lobos temporais, principalmente no hipocampo e no córtex que o rodeia, que são os encarregados de processar as memórias de curta e longa duração, assim como sua evocação. A memória de longa duração das realidades alucinatórias sistematizam as visões em delírios, muitos dos quais acompanham o esquizofrênico por toda sua vida. Ocasionalmente, por meio de lenta e cuidadosa psicoterapia, os esquizofrênicos podem discriminar entre o mundo do delírio, que lhe é profundamente individual, e a realidade efetiva, que compartilha com os demais seres humanos. Um grande exemplo disso se vê no filme Uma Mente Brilhante, onde o ator Russell Crowe desempenha o papel de John Nash, um esquizofrênico de grande talento que, muito bem tratado com remédios antipsicóticos e 43 psicoterapia, conseguiu levar uma vida pessoal relativamente equilibrada (porém difícil) e obter um Prêmio Nobel. Nash realizou suas pesquisas e tirou delas as conclusões que o levaram ao Prêmio Nobel enquanto sua mente estava dividida entre a atenção dispensada ao mundo real e a atenção dedicada ao mundo fictício de suas alucinações fortes e recorrentes. 44 Material de apoio da atividade Para uma memorização efetiva é melhor passar a noite estudando do que dormir? Texto extraído da revista Scientific American, edição especial nº 4, 2001, de Jonathan Winson JONATHAN WINSON começou sua carreira como engenheiro aeronáutico, graduando-se em 1946 pelo California Institute of Technology. Ele obteve o seu Ph.D. em matemática na Columbia University e, durante 15 anos, dedicou-se às atividades empresariais. Por causa de seu duradouro interesse pela neurociência, Winson começou a pesquisar o processamento da memória na Rockefeller University. Em 1979, tornou-se professor associado e prosseguiu sua pesquisa como professor emérito. Aposentou-se em 1996. Sua pesquisa foi apoiada pelo National Institute of Mental Health, pela National Science Foundation e pela Harry F Guggenheim Foundation. O significado dos sonhos Eles podem ser fundamentais para o processamento da memória nos mamíferos. Informações adquiridas durante a vigília podem ser reprocessadas durante o sono. Introdução Os seres humanos sempre tentaram compreender o significado dos sonhos. Os amigos egípcios acreditavam que eles possuiam poderes oraculares - na Bíblia, por exemplo, a interpretação que José dá ao sonho do faraó evita sete anos de fome. Em outras culturas, os sonhos serviam como inspiração, terapia ou realidade alternativa. Durante o século passado, os sonhos receberam explicações psicológicas e neurocientíficas conflitantes dos cientistas. Em 1900, com a publicação de A Interpretação dos Sonhos, Sigmund Freud propôs que os sonhos seriam a "via privilegiada" para o inconsciente: revelariam, de forma disfarçada, os elementos mais profundos da vida interior do indivíduo. Mais recentemente, porém, os sonhos foram caracterizados como desprovidos de significado, resultado aleatório da atividade das células nervosas. Sonhar também foi considerado como o meio pelo qual o cérebro descarta informações desnecessárias: um processo de "aprendizado invertido", ou de desaprendizado. Baseado em descobertas recentes feitas em meu laboratório e por outros neurocientistas, proponho que os sonhos de fato possuem significado. Estudos sobre o hipocampo (estrutura cerebral crucial para a memória), sobre o movimento rápido dos olhos (REM) durante o sono, e sobre ondas cerebrais denominadas ritmo teta, sugerem que sonhar reflete um aspecto essencial do processamento da memória. Em particular, estudos do ritmo teta feitos em animais subprimatas fornecem uma chave evolutiva para o significado dos sonhos. Parecem ser o registro noturno de um processo mnemônico básico dos mamíferos: e o meio pelo qual os animais formam estratégias de sobrevivência e avaliam a experiência atual à luz dessas estratégias. 45 Estágios do Sono e do Sonho A fisiologia do sonho foi compreendida pela primeira vez em 1953, com a análise do ciclo do sono humano. Descobriu-se que, nos humanos, o sono se inicia pelo estado hipnagógico, período de vários minutos durante os quais os pensamentos consistem em imagens fragmentadas ou pequenas cenas. O estado hipnagógico é seguido pelo sono de ondas lentas, assim chamado porque, durante esse periodo, as ondas cerebrais do neocórtex (a camada circunvoluta mais externa do cérebro) apresentam freqüências baixas e de grande amplitude. Esses sinais são medidos como registros de eletroencefalograma (EEG). Os pesquisadores descobriram também que o sono noturno é entremeado por períodos em que os registros do EEG apresentam freqüências irregulares a amplitudes baixas - similares as observadas em indivíduos acordados. Esses períodos de atividade mental são chamados de sono REM. Os sonhos ocorrem somente durante esses períodos. Os neurônios motores são inibidos durante o sono REM, o que impede o corpo de se mover livremente, embora permita que suas extremidades permaneçam ligeiramente ativas. Os olhos movem-se rapidamente em sincronia sob as pálpebras fechadas, a respiração tornase irregular e a freqüência cardíaca aumenta. O primeiro estágio REM da noite ocorre 90 minutos após o sono de ondas lentas e dura 10 minutos. O segundo e terceiro períodos REM ocorrem após breves episódios de sono de ondas lentas, mas tornam-se progressivamente mais longos. O quarto e último intervalo dura de 20 a 30 minutos e é seguido pelo despertar. Se um sonho for lembrado, tratase, freqüentemente, do sonho que ocorreu durante esta última fase. Mamíferos exibem características ASSOCIADAS ao SONO REM observadas nos humanos Este ciclo do sono - alternando o sono de ondas lentas e o REM parece estar presente em todos os mamíferos placentrios e marsupiais. Os mamíferos exibem as várias características associadas ao REM observadas nos humanos, inclusive os registros EEG similares ao do estado de vigília. Os animais também sonham. Ao destruírem os neurônios no tronco encefálico que inibem o movimento durante o sono, os pesquisadores descobriram que gatos dormindo acordavam e atacavam ou ficavam assustados com objetos invisíveis - claramente imagens de sonhos. Os cientistas descobriram ainda, estudando animais não-primatas, outros aspectos neurofisiológicos do sono REM, e determinaram que o controle neural desse estágio do ciclo do sono está centrado no tronco encefálico (a região do cérebro mais próxima da medula espinhal) a que durante o sono REM os sinais neurais - chamados de ondas ponto-genículo occipitais (PGO) do córtex - procedem do tronco encefálico para o centro do processamento visual, o córtex visual. Os neurônios do tronco encefálico também iniciam uma onda sinusoidal (semelhante à forma de um sino) no hipocampo. Este sinal cerebral é chamado de ritmo teta. Pelo menos um animal vivencia o sono de ondas lentas, mas não o sono REM e, portanto, não apresenta o ritmo teta quando dorme. Tratase do equidna, ou tamanduá espinhoso, um mamífero ovíparo (chamado de monotremado), que fornece pistas sobre a origem do sonho. A ausência do sono REM no equidna sugere que este estágio do ciclo do sono desenvolveu-se há cerca de 140 milhões de anos, quando os marsupiais e os placentários divergiram da ordem dos monotremados, os primeiros 46 mamiferos a se desenvolver a partir dos répteis. De acordo com todos os critérios evolutivos, a permanência de um processo cerebral complexo como o sono REM indica que este desempenha importante função na sobrevivência das espécies mamíferas. Compreender essa função pode revelar o significado dos sonhos. Quando Freud escreveu A Interpretação dos Sonhos, a fisiologia do sono era desconhecida. À luz da descoberta do sono REM, alguns elementos de sua teoria psicanalítica foram modificados e abriu-se caminho para teorias de base neurólogica. O sonho passou a ser entendido como parte de um ciclo do sono determinado biologicamente. Entretanto, o conceito central da teoria de Freud - a crença de que os sonhos revelam uma representação censurada de nossos sentimentos e interesses inconscientes mais íntimos - continua a ser usado na psicanálise. Alguns teóricos abandonaram completamente as idéias de Freud depois das descobertas neurológicas. Em 1977, J. Allan Hobson e Robert McCarley, da Harvard Medical School, propuseram a hipótese da "sínteseativação": os sonhos seriam associações e memórias suscitadas no prosencéfalo (o neocórtex e estruturas associadas) em resposta a sinais aleatórios provenientes do tronco encefálico, tal como as ondas PGO. Seriam simplesmente a "melhor adaptação" que o prosencéfalo poderia fornecer. Embora os sonhos possam, ocasionalmente, sugerir um conteúdo psicológico, seu caráter bizarro seria intrinsecamente desprovido de significado. Segundo Hobson, o sentido ou enredo dos sonhos resultaria da ordem imposta ao caos dos sinais neurais. "Esta ordem é uma função de nossa visão pessoal do mundo, de nossas memórias remotas", escreveu. Em outras palavras, o vocabulário emocional do indivíduo poderia ser relevante para os sonhos. Em uma revisão posterior de sua hipótese original, Hobson sugeriu também que a ativação do tronco encefálico poderia servir apenas para mudar de um episódio do sonho para outro. A anatomia do cérebro e a representação transversal do hipocampo mostram algumas regiões envolvidas no sonho. No hipocampo, a informação que entra é processada de forma seqüencial no giro dentado e nas CA3 e CA1 (assim chamadas por sua forma triangular). Nas espécies não primatas, o ritmo teta é gerado no giro dentado e nas células CA1. 47 Aprendizado Invertido Embora Hobson e Mccarley tivessem oferecido uma explicação do conteúdo do sonho, a função básica do sono REM continuava desconhecida. Em 1983, Francis Crick, do Salk Institute for Biological Studies, em San Diego, e Graeme Mitchison, da University of Cambridge, propuseram a idéia do aprendizado invertido. Partindo da suposição de Hobson e McCarley sobre uma descarga neocortical aleatória pelas ondas PGO e do conhecimento que tinham sobre o comportamento de redes neurais estimuladas, Crick e Mitchison postularam que o neocórtex, uma rede neural de associação muito complexa, pode ficar sobrecarregado com as vastas quantidades de informação que recebe. Com isso desenvolveria pensamentos falsos, ou "parasíticos", que colocariam em risco o estoque ordenado e verdadeiro da memória. O sono REM serviria para apagar, de forma regular, essas associações espúrias. As ondas aleatórias PGO seriam impingidas ao neocórtex, resultando no apagamento ou desaprendizado das informações falsas. Este processo serviria a uma função essencial: o processamento ordenado da memória. Nos humanos, os sonhos seriam um registro corrido desses pensamentos parasíticos: um material a ser purgado da memória. Para Crick e Mitchison, "sonhamos para esquecer". Os dois pesquisadores propuseram uma revisão em 1986. A eliminação dos pensamentos parasíticos explicava somente o conteúdo bizarro do sonho e nada dizia sobre sua narrativa. Sonhar para esquecer poderia ser melhor formulado da seguinte forma: "Sonhamos para reduzir a fantasia ou a obsessão". Nenhuma dessas hipóteses parece explicar adequadamente a função do sonho. Por um lado, a teoria de Freud carecia de evidência fisiológica. (É certo que Freud tinha, originalmente, tentado descrever a neurologia do inconsciente e dos sonhos em seu "Projeto para uma Psicologia Científica", mas a tentativa fora prematura e ele limitou-se à psicanálise.) Por outro lado, a despeito das revisões para incorporar elementos da psicologia, a maioria das teorias posteriores negava que os sonhos tivessem significado. A exploração dos aspectos neurocientíficos do sono REM e do processamento da memória pareceu-me conter o maior potencial para a compreensão do significado e da função dos sonhos. A chave para esta pesquisa foi o ritmo teta, descoberto em 1954, em animais despertos, por John D. Green e Arnaldo A. Arduini, da University of California, em Los Angeles, que observaram um sinal regular sinusoidal de seis ciclos por segundo no hipocampo de coelhos, quando estes animais estavam apreensivos por causa de estímulos em seu meio ambiente. Eles denominaram este sinal ritmo teta, de acordo com um componente do EEG de mesma freqüência descoberto anteriormente. O ritmo teta foi posteriormente registrado em toupeiras, ratos a gatos. Embora tivesse sido observado de forma consistente em animais despertos, foi correlacionado com comportamentos muito diferentes em cada espécie. Por exemplo, em contraste acentuado com os coelhos, os estímulos ambientais não induziram ritmo teta nos ratos. Estes apresentaram ritmo teta somente quando se movimentavam, tipicamente quando exploravam. Em 1969, entretanto, Case H. Vanderwolf, da University of Western Ontario, descobriu que havia um comportamento durante o qual os animais que ele estudou, entre os quais o rato, revelavam o ritmo teta: o sono REM. Em 1972, publiquei que diferentes ocorrências do ritmo teta poderiam ser entendidas em termos de comportamento animal. Os animais 48 despertos pareciam apresentar o ritmo teta quando desempenhavam tarefas cruciais para sua sobrevivência. Em outras palavras, o ritmo teta aparecia quando exibiam comportamento não geneticamente codificado como o são o comportamento sexual ou o orientado para a alimentação mas que é uma resposta a informações variáveis do meio. O comportamento predatório dos gatos, de presa dos coelhos e exploratório dos ratos são, respectivamente, os mais importantes para a sobrevivência de cada um deles. Um rato com fome, por exemplo, ira explorar antes de comer, mesmo que a comida esteja diante dele. O Papel de Ritmo Teta Como o hipocampo está envolvido no processamento da memória, a presença do ritmo teta durante o sono REM nessa região do cérebro pode estar relacionada a essa atividade de processamento. Sugeri que o ritmo teta reflete um processo neural através do qual a informação essencial é sobrevivência de uma espécie - reunida durante o dia - e reprocessada na memória durante o sono REM. Em 1974, ao registrar sinais do hipocampo em ratos a coelhos que se moviam livremente, descobri a fonte que gerava o ritmo teta no hipocampo. Acredita-se que, juntamente com o neocórtex, o hipocampo forneça a base neural para a armazenagem de memória. O hipocampo é uma estrutura seqüencial composta por três tipos de neurônios. A informação proveniente de todas as áreas sensoriais e associativas do neocórtex converge para o córtex entorrinal; a partir daí, é transmitida às três populações sucessivas de neurônios do hipocampo. Os sinais chegam, primeiro, às células granulares do giro denteado, depois às células piramidais do CA3 (assim chamada em razão de sua forma triangular) e, finalmente, às células piramidais do CAI. Após ser processada a informação é retransmitida para o córtex entorrinal, retornando depois para o neocórtex. Mostrei que o ritmo teta é produzido em duas regiões no interior do hipocampo: o giro denteado e os neurônios do CAI. Os ritmos nessas duas áreas são síncronos. Posteriormente, James B. Ranck, Jr., da State University of New York Downstate Medical Center, e sua então colega Susan Mitchell identificaram um terceiro gerador síncrono no córtex entorrinal, e Robert Verdes, da Wayne State University, descobriu os neurônios do tronco encefálico que controlam o ritmo teta. Esses neurônios transmitem sinais para o septo (estrutura do prosencéfalo), que ativam o ritmo teta no hipocampo e no córtex entorrinal. Assim, o tronco encefálico ativa o hipocampo e o neocórtex - o cerne do sistema mnemônico do cérebro. Para determinar a relação entre o ritmo teta e a memória, provoquei uma lesão no septo de um rato. Os ratos que tinham aprendido anteriormente a localizar, mediante pistas espaciais, uma posição determinada no labirinto, não foram mais capazes de fazê-lo. Sem o ritmo teta, a memória espacial foi destruída. Estudos sobre as alterações celulares que causam a memória ilustraram o papel do ritmo teta. Em particular, a descoberta, em 1973, da potencialização a longo prazo (long-term potentiation - LTP) - mudança no comportamento neural que reflete a atividade pregressa - revelou os meios pelos quais a memória pode ser codificada. Timothy V P. Bliss e A. R. Gardner-Medwin, do National Institute of Medical Research, em Londres, e Terje Lomo, da Universidade de Oslo, descobriram alterações em neurônios que haviam sofrido estímulos elétricos. 49 Memória de Longo Prazo Estudos anteriores haviam demonstrado que, ao se estimular a via que se projeta do córtex entorrinal às células granulares do hipocampo, a resposta dessas células podia ser medida com um eletrodo de registro. Bliss e seus colegas mediram a resposta normal a um estímulo elétrico isolado e depois aplicaram uma longa série de sinais de alta freqüência chamada de estimulação tetânica - a esta via. Após a estimulação tetânica, um estímulo elétrico isolado provocou disparo maior das células granulares que o observado anteriormente. O efeito intensificado persistiu por até três dias. Este fenômeno de LTP era precisamente o tipo de aumento da força neuronal que poderia ser capaz de manter a memória. A LTP é considerada agora um modelo para o aprendizado e a memória. A LTP ocorre pela atividade do receptor NMDA (N-metil-Daspartato). Esta molécula está inserida nos dendritos das células granulares, das células de CAI do hipocampo e nos neurônios de toda a extensão do neocórtex. Assim como outros receptores neuronais, o receptor NMDA é ativado por um neurotransmissor - glutamato, neste caso. O glutamato abre momentaneamente um canal não-NMDA no dendrito da célula granular, permitindo um fluxo de sódio do espaço extracelular para dentro do neurônio. Este influxo causa a despolarização da célula granular. Se a despolarização for suficiente, a célula granular dispara, transmitindo informações para outros neurônios. Diferentemente de outros receptores neuronais, o NMDA possui uma propriedade adicional. Se uma ativação adicional do glutamato ocorrer enquanto a célula granular estiver despolarizada, um segundo canal se abre, permitindo o influxo de cálcio. Acredita-se que o cálcio aja como um segundo mensageiro, iniciando uma série de eventos intracelulares que culminam em mudanças sinápticas duradouras - ou LTP. (A descrição fornecida aqui foi simplificada. A LTP é hoje tema de amplas investigações.) Como a estimulação tetânica aplicada por Bliss e seus colegas não ocorria naturalmente no cérebro, restava a questão de saber como a LTP era obtida em condições normais. Em 1986, John Larson e Gary S. Lynch, da University of California, em Irvine, e Gregory Rose e Thomas V Dunwiddie, da University of Colorado, em Denver, sugeriram que a ocorrência de LTP no hipocampo estava ligada ao ritmo teta. Eles aplicaram um pequeno número de estímulos elétricos às células de CAI do hipocampo de um rato e produziram LTP, mas somente quando os estímulos eram separados pelo lapso de tempo normal entre duas ondas teta aproximadamente 200 milésimos de segundo. O ritmo teta e, aparentemente, o meio natural pelo qual o receptor NMDA é ativado em neurônios no hipocampo. Pesquisas feitas em meu laboratório da Rockefeller University reproduziram as descobertas de Larson e Lynch, mas desta vez nas células granulares do hipocampo. Constantine Pavlides, Yoram J. Greenstein e eu demonstramos que a LTP dependia da presença e da fase do ritmo teta. Se fossem aplicados estímulos elétricos às células no pico da onda teta, LTP era induzida. Se o mesmo estímulo fosse aplicado no ponto mais baixo das ondas - ou na ausência de ritmo teta - não se induzia LTP. Surgia, assim, um quadro coerente sobre o processamento da memória. Por exemplo, quando um rato explorando os neurônios do tronco encefálico ativam o ritmo teta. Os sinais de entrada olfativos (que no rato estão sincronizados com o ritmo teta, assim como o movimento das vibrissas) e outras informações sensoriais convergem ao córtex entorrinal e ao hipocampo. Elas são aí divididas em "bites" de 200 milésimos de 50 segundo pelo ritmo teta. Os receptores NMDA, agindo com o ritmo teta, permitem a armazenagem de longo prazo dessa informação. Um processo similar ocorre durante o sono REM. Embora não haja entrada de informação ou movimento durante o sono REM, a rede natural do neocórtex e do hipocampo sofre mais uma vez a ação marca-passo do ritmo teta. O ritmo teta pode produzir mudanças duradouras na memória. A ativação do receptor NMDA induz a potencialização a longo prazo (LTP), um modelo para a memória. A liberação do neurotransmissor glutamato (quadro à esquerda) abre um canal associado a um receptor não-NMDA (N-metil-Daspartato), permitindo o influxo de sódio, que despolariza o neurônio. Se uma nova liberação de glutamato ocorrer enquanto a célula estiver despolarizada (quadro central), o receptor NMDA abre um segundo canal, que permite o influxo de cálcio e leva à LTP. A LTP é resultado do aumento do influxo de sódio através do canal associado a um receptor não-NMDA (quadro à direita) e do subseqüente aumento da despolarização da célula. Armazenagem da Memória Espacial Experimentos posteriores demonstraram que a memória espacial é de fato armazenada no hipocampo do rato durante o sono. John O'Keefe e Jonathan O. Dostrovsky, da University College London, haviam demonstrado que os neurônios de CAI no hipocampo do rato disparavam quando o animal desperto movia-se para um determinado local, denominado campo de ação. Esta descoberta implicava que o neurônio de CAI disparava para mapear o ambiente, associando, assim, a tarefa à memória. Em 1989, Pavlides e eu localizamos dois neurônios no hipocampo do rato que tinham campos de ação diferentes. Após de terminarmos as freqüências normais de disparos nos animais em vigília e sono, colocamos um rato no campo de ação de um dos neurônios. O neurônio disparou de forma intensa, mapeando aquele local. A segunda célula disparou só esporadicamente, já que não estava mapeando o espaço. Continuamos fazendo registros dos dois pares de neurônios conforme os ratos se movimentavam e entravam nos vários ciclos do sono. Seis pares de neurônios foram estudados dessa maneira. Descobrimos que os neurônios que haviam mapeado o espaço disparavam a uma freqüência normal enquanto o animal se movia logo antes de dormir. Durante o sono, entretanto, passavam a disparar a um ritmo significativamente maior que durante o período anterior de sono, que serviu como base de comparação. A freqüência de disparos nos neurônios que não haviam mapeado o espaço 51 não aumentou. Este experimento sugeria que o reprocessamento ou fortalecimento da informação codificada quando o animal estava acordado ocorria durante o sono, em nível de neurônios individuais. Bruce L. McNaughton e colegas da University of Arizona desenvolveram uma técnica que registra, simultaneamente, um grande número de neurônios do hipocampo que mapeiam locais, e permite a identificação de padrões definitivos de disparo. Estudando animais, eles descobriram que conjuntos de campos de ação de neurônios que mapeiam o espaço durante a vigília reprocessam a informação durante o sono de ondas lentas e, depois, durante o sono REM. Portanto o processamento da memória durante o sono pode ter dois estágios - um preliminar no sono de ondas lentas e um posterior no sono REM, quando os sonhos ocorrem. A Evolução do Sono REM Evidências de que o ritmo teta codifica a memória durante o sono REM decorrem não somente de pesquisas neurocientíficas, mas também da evolução. A emergência de um mecanismo neural que processa a memória durante o sono REM sugere diferenças na anatomia do cérebro entre mamíferos com esta característica do ciclo do sono e aqueles sem. De fato, essas diferenças existem claramente entre o equidna e os marsupiais e placentários. O equidna tem uma grande extensão de circunvoluções do córtex pré-frontal, maior em relação ao resto do cérebro quando comparado com qualquer outro mamífero, inclusive humanos. Acredito que esta grande extensão de córtex pré-frontal seja necessária para o desempenho de uma função dupla: reagir a entrada de informação de forma adequada, baseada na experiência passada; e avaliar e armazenar informações novas para auxiliar a sobrevivência futura. Sem o ritmo teta durante o sono REM, o equidna não seria capaz de processar informação enquanto dorme. (O equidna, entretanto, exibe o ritmo teta quando procura comida.) Para que habilidades superiores se desenvolvessem, seria preciso que o córtex préfrontal se tornasse cada vez maior - ultrapassando a capacidade da caixa craniana - a menos que surgisse outro mecanismo cerebral. O sono REM pode ter fornecido esse novo mecanismo, permitindo que o processamento da memória ocorra "off-line". Concomitante ao desenvolvimento aparente do sono REM nos mamíferos marsupiais e placentários, houve uma notável mudança neuroanatômica: o córtex préfrontal foi dramaticamente reduzido. Menos dele era exigido para processar a informação. Esta área do cérebro pôde se desenvolver no sentido de proporcionar habilidades de percepção avançadas em espécies superiores. A natureza do sono REM apóia este argumento evolutivo. Durante o dia, os animais colhem informações que envolvem locomoção a movimentos oculares. O reprocessamento desta informação durante o sono REM não seria facilmente separado da locomoção relacionada a experiência - tal dissociação exigiria excessiva revisão do circuito cerebral. Assim, a locomoção teve de ser suprimida pela inibição dos neurônios motores. O potencial de movimentos oculares, similarmente às ondas PGO, acompanha o movimento rápido dos olhos durante a vigília e também durante o sono REM. A função desses sinais ainda não foi determinada, mas podem servir para alertar o córtex visual sobre a informação que chega quando o animal está acordado, assim como refletir o reprocessamento desta informação durante o sono REM. Seja como for, as ondas PGO não perturbam o sono e não precisaram ser suprimidas diferentemente dos neurônios motores. 52 Estratégia de sobrevivência Com a evolução do sono REM, cada espécie pôde processar a informação mais importante para sua sobrevivência, como localização de alimentos, meios de capturar presas ou de fugir - atividades durante as quais o ritmo teta está presente. No sono REM, esta informação pode ser acessada novamente e integrada à experiência passada, para proporcionar uma estratégia progressiva de comportamento. Embora o ritmo teta não tenha sido ainda demonstrado nos primatas, incluindo os seres humanos, os sinais cerebrais fornecem uma chave para a compreensão da origem do sonho em seres humanos. Os sonhos podem refletir um mecanismo de processamento da memória herdado de espécies inferiores, no qual a informação importante para a sobrevivência é reprocessada. Essa informação pode constituir o cerne do inconsciente. Como os animais não possuem linguagem, a informação que processam durante o sono REM é necessariamente sensorial. De forma consistente com nossas primitivas origens mamíferas, os sonhos nos humanos são sensoriais, principalmente visuais, não assumindo a forma de narração verbal. Em consonância ainda com o papel desempenhado pelo sono REM no processamento da memória nos animais, não existe necessidade funcional de que este material se torne consciente. A consciência surge mais tarde, com a evolução humana. Mas também não há razão para que o conteúdo dos sonhos não alcance a consciência. Assim, os sonhos podem ser lembrados - mais facilmente se o despertar ocorrer durante ou logo após o sono REM. Minha hipótese é de que os sonhos refletem a estratégia de sobrevivência das pessoas. Os temas dos sonhos são variados e complexos, incluindo auto-imagem, temores, inseguranças, poderes, idéias grandiosas, orientação sexual, desejo, ciúme e amor. Os sonhos tem, claramente, um profundo núcleo psicológico. Esta observação foi feita por psicanalistas desde Freud e admiravelmente ilustrada pela obra de Rosalind Cartwright, do RushPresbyterian-St. Luke's Hospital, de Chicago. Cartwright estudou 90 pessoas que passavam por processos de separação e divórcio conjugal. Todas foram avaliadas clinicamente e submetidas a testes psicológicos para determinar suas atitudes e respostas a crise pela qual passavam. Elas foram também despertadas durante o sono REM para que relatassem seus sonhos por conta própria, sem perguntas que pudessem influenciar suas interpretações. Em 70 dos casos estudados, o conteúdo dos sonhos referiase a pensamentos inconscientes e estava fortemente relacionado ao modo pelo qual a pessoa lidava com a crise quando acordada. Embora não seja possível prever o tema "escolhido" para consideração durante uma noite de sono, algumas das dificuldades da vida - como no caso das pessoas estudadas por Cartwright - vinculam-se de tal forma à sobrevivência psicológica que são selecionadas para processamento durante o sono REM. Em circunstâncias normais, o tema dos sonhos pode ser livre, dependendo da personalidade do indivíduo. Ao se combinar com as intrincadas associações que são parte intrínseca do processamento do sono REM, seus enunciados podem ser bastante obscuros. Todavia, há razão para acreditarmos que o processo cognitivo que ocorreu com as pessoas estudadas por Cartwright ocorra com todos. A interpretação depende dos eventos relevantes ou similares reconhecidos pelo indivíduo; essas associações são muito influenciadas pelas experiências da primeira infância. 53 Minha hipótese permite também explicar a grande quantidade de sono REM observada nos recém-nascidos e nas crianças. Os recémnascidos passam 8 horas por dia em sono REM. O ciclo do sono está, nessa idade, desorganizado; ocorre em ciclos de 50 a 60 minutos, começando pelo sono REM, e não pelo de ondas lentas. Aos dois anos de idade, o sono REM é reduzido para três horas ao dia e diminui gradualmente até chegar a pouco menos de duas horas. O sono REM pode desempenhar uma função especial nos bebês. Uma das teorias dominantes sustenta que estimule o desenvolvimento de neurônios. Sugiro que, por volta de dois anos de idade, quando o hipocampo, que continua a se desenvolver após o nascimento, torna-se funcional, o sono REM assume sua função de memória interpretativa. A informação obtida durante a vigília e a ser integrada neste ponto do desenvolvimento constitui o substrato cognitivo básico da memória - o conceito do mundo real contra o qual as experiências posteriores devem ser comparadas e interpretadas. A organização na memória dessa extensa infra-estrutura exige o tempo adicional de sono REM. Por razões que não podia conhecer, Freud apresentou em sua obra uma verdade profunda. Há um inconsciente e os sonhos são, de fato, a "via privilegiada" para compreendê-los. Entretanto, as características dos processos inconscientes e associados do funcionamento do cérebro são muito diferentes daquelas imaginadas por Freud. Proponho que o inconsciente seja considerado, não como um caldeirão de paixões indomáveis e de desejos destrutivos, mas como uma estrutura mental continuamente ativa e coesa que registra as experiências e reage de acordo com o seu próprio esquema de interpretação. Os sonhos não são dissimulados em razão da repressão. Seu caráter incomum resulta das complexas associações que são selecionadas da memória. A pesquisa sobre o sono REM sugere que há uma razão biologicamente relevante para o sonho. A versão revisada da hipótese de síntese-ativação de Hobson e McCarley reconhece o profundo núcleo psicológico dos sonhos. Em sua formulação truncada atual, a hipótese da ativação aleatória do tronco encefálico tem pouco poder explicativo ou preditivo. A hipótese de Crick Mitchison atribui uma função para o sono REM - o aprendizado invertido - mas não se aplica a narrativa, só aos elementos bizarros do sonho. É preciso definir a implicação disto para o processamento REM nas espécies inferiores antes que a teoria possa ser melhor avaliada. Além disso, a hipótese Crick Mitchison, aplicada ao hipocampo, sugeriria que os neurônios disparam aleatoriamente durante o sono REM, permitindo assim o aprendizado invertido. Meu experimento com os neurônios que mapeiam o espaço sugere, em vez disso, que estes neurônios disparam de forma seletiva, o que implica um processamento ordenado da memória. Avi Karni e seus colegas do Weizmann Institute of Science, em Israel, mostraram que o processamento da memória ocorre, nos humanos, durante o sono REM. No experimento que fizeram, os indivíduos aprenderam a identificar padrões específicos em uma tela. A memória desta habilidade foi aprimorada após uma noite de sono REM. Quando as pessoas foram privadas do mesmo, a memória não se consolidou. Este estudo abre um campo de investigação promissor. Talvez seja de maior importância a evidência, fornecida pela biologia molecular, que confirma o papel desempenhado pelo sono REM no processamento da memória. Sidarta Ribeiro e seus colegas da Rockefeller University relataram que o gene zif-268, associado ao aprendizado, e 54 ativado seletivamente durante o sono REM em ratos expostos a experiência em um período de anterior de vigília. Podemos esperar, dessa área de pesquisa, uma maior compreensão do papel do sono REM. Para conhecer mais Interspecies Differences in the Occurrence of Theta. Jonathan Winson Behavioral Biology, Vol. 7, No. 4, pags. 479-487; 1972. Loss of Hippocampal Theta Rhythm Results in Spatial Memory Deficit in the Rat. Jonathan Winson em Science, Vol. 201, No. 435, pags.160-163;1978. Brain and Psyche: The Biology of the Unconscious. Jonathan Winson Anchor Press, Doubleday, 1985. Long-Term Potentiation in the Dentate Gyros is Induced Preferentially on the Positive Phase of QRhythm. Constantine Pavlides, Yoram J. Greenstein, Mark Grudman e Jonathan Winson em Brain Research,Vol. 439, págs. 383-387; 1988. Influences of Hippocampal Place Cell Firing in the Awake State on the, Activity of These Cells during Subsequent Sleep Episodes. Constantine Pavlides a Jonathan Winson em Journal of Neuroscience, Vol. 9, No. 8, págs. 2907-2918; agosto,1989. Dependence on REM Sleep of Overnight Improvement of a Perceptual Skill. Avi Karni, David Tanne, Barton S. Rubenstein, Jean J. M. Askenasy a Dov Sagi em Science, Vol. 265, pags. 679-682; 29 de julho de 1994. Reactivation of Hippocampal Ensemble Memories during Sleep. Mathew A. Wilson a Bruce L. McNaughton em Science Vol. 265, págs. 676-679; 29 de julho de 1994. Brain Gene Expression during REM Sleep Depends on Prior Wakin Experience. Sidarta Ribeiro, Vikas Goal Claudio V Mello e Constantine Pavlides em Learning and Memory, Vol. 6, págs 500-508; 1999. 55 Material de apoio da atividade O envelhecimento dificulta o aprendizado devido a perda de neurônios? Texto extraído da revista Scientific American, edição especial nº 4, 2001 de Gerd Kempermann e Fred H. Gage Novos neurônios no cérebro adulto Ao contrário do que muitos acreditam, o cérebro humano adulto é capaz de gerar novas células. Essa descoberta levará a tratamentos mais eficazes para as doenças neurológicas? Introdução A cicatrização de um corte na pele ocorre em questão de dias. Uma fratura na perna pode ser resolvida sem maiores problemas se o osso estiver posicionado corretamente. Praticamente todo tecido humano é capaz de se auto-recompor até certo ponto, graças, em grande parte, as versáteis células-tronco, cuja capacidade de se multiplicar e de gerar diversos outros tipos de células, assimila-se àquela de um embrião em desenvolvimento. Um exemplo espetacular são as versões encontradas na medula óssea, capazes de produzir células encontradas no sangue: hemácias, plaquetas e uma variedade de células brancas. Outras célulastronco são responsáveis pela produção dos diversos componentes da pele, do fígado e do revestimento intestinal. O cérebro adulto consegue, ocasionalmente, contrabalancear perdas bastante bem, ao fazer novas conexões entre neurônios sobreviventes. Porém, não é capaz de restaurar a si próprio, já que não possui as células-tronco necessárias. Ou, ao menos, era nisso que se acreditava recentemente. Em novembro de 1998, Peter S. Eriksson, do Hospital Universitário Sahlgrenska, em Gotemburgo, na Suécia, Gage, membro de nossa equipe do Salk Institute for Biological Studies, em San Diego, e diversos outros colegas, publicaram a surpreendente notícia de que o cérebro humano maduro continua a gerar neurônios regularmente em pelo menos um local, o hipocampo, área importante para a memória e a aprendizagem (a memória não fica armazenada no hipocampo, porém ele ajuda a formá-la após receber contribuições de outras partes do cérebro). O número de células novas é baixo em relação ao total do cérebro, mas nossa descoberta traz à tona perspectivas fascinantes para a medicina. Dados atuais sugerem que as células-tronco produzem novos neurônios em uma outra parte do cérebro humano, além de serem encontradas, ainda que dormentes, em locais adicionais. Assim, é possível que nosso cérebro, com capacidade de reparo tão precária, na realidade possua enorme potencial para a regeneração neuronal. Caso se descubra como induzir células-tronco a produzir um volume útil de neurônios funcionais em regiões específicas, diversos distúrbios que envolvem lesões de neurônios e a morte, como as doenças de Alzheimer e Parkinson, além das incapacidades decorrentes de acidentes vasculares cerebrais e traumatismo craniano, possivelmente poderão ser tratados. 56 Há anos estudos com outros mamíferos adultos indicavam que o cérebro humano totalmente desenvolvido seria capaz de produzir neurônios. Em 1965, Joseph Altman e Gopal D. Das, do MIT, descreveram a produção de neurônios (neurogênese) no hipocampo de ratos adultos exatamente na mesma região, conhecida como giro denteado, onde este fenômeno foi recentemente descoberto no homem. Apesar de estudos posteriores confirmarem o relato, a descoberta não foi vista como prova da existência de neurogênese significativa em mamíferos adultos, nem mesmo como indício do potencial regenerativo do cérebro humano. Os métodos disponíveis na época não eram capazes de estimar com precisão o número de neurônios produzidos ou provar que as novas células eram neurônios. Além disso, o conceito de célulastronco cerebrais ainda não havia sido introduzido. Acreditava-se que a criação de novos neurônios dependesse da reprodução de versões já maduras algo extremamente difícil. A relevância das descobertas também foi subestimada, em parte, porque até então não havia sido apresentada prova da neurogênese em macacos ou símios, primatas, e, portanto, genética e fisiologicamente mais próximos do homem que outros mamíferos. A situação permaneceu assim até meados da década de 80, quando Fernando Nottebohm, da Rockefeller University, criou polêmica ao revelar resultados obtidos com canários adultos. Ele descobriu que a neurogênese ocorre nos centros cerebrais que regem a aprendizagem da música e, ainda, que o processo é acelerado durante épocas em que os pássaros adultos assimilam a música. Nottebohm e colegas também mostraram que a formação de neurônios no hipocampo de Chapins norte-americanos aumenta quando crescem as exigências sobre o sistema de memória deles, principalmente quando precisam se lembrar dos locais de armazenamento de alimentos. Os impressionantes resultados de Nottebohm levaram a um ressurgimento do interesse pela neurogênese em mamíferos e pelo potencial regenerativo do cérebro humano adulto. Mas o otimismo não durou muito. Pasko Rakic e colegas da Yale University foram pioneiros em estudar a neurogênese em primatas adultos e o trabalho, muito bem feito para sua época, não encontrou novos 57 neurônios no cérebro de macacos Rhesus. A lógica também ia contra a hipótese. Os biólogos sabiam que, com a evolução e a complexidade cada vez maior do cérebro, a neurogênese havia se tornado cada vez mais restrita. Embora lagartos e outros animais inferiores desfrutem de uma regeneração neuronal grande quando seu cérebro é lesado, em mamíferos essa reação saudável estaria ausente. Parecia razoável supor que a adição de novos neurônios e complexidade de conexões do cérebro humano ameaçaria o fluxo organizado de sinais. Indícios de que esse raciocínio poderia ser falho só surgiram há alguns anos. Em 1997, equipe comandada por Elizabeth Gould e Bruce S. McEwen, do Rockefeller, a Eberhard Fuchs, do Deutsches Primatenzentrum, em Gottingen, Alemanha, revelaram a existência de neurogênese no hipocampo do musaranho, animal próximo do primata. Em 1998, detectaram o mesmo fenômeno no sagüi. Apesar de mais distantes do homem, em termos de evolução, que os macacos Rhesus, os sagüis não deixam de ser primatas. Estudos em humanos Ficou claro que só seria possível provar a capacidade humana para a neurogênese na fase adulta estudando diretamente seres humanos. No entanto, as técnicas utilizadas para comprovar a formação de novos neurônios em animais não pareciam ser aplicáveis em pessoas. Elas variam, mas em geral se baseiam no fato de que as células, antes de se dividirem, duplicam seus cromossomos, permitindo que cada célula filha receba um conjunto completo. Nas experiências realizadas com animais, injeta-se um material rastreável (um "marcador") na cobaia, que se integra somente ao DNA das células que se preparam para divisão. O marcador torna-se então parte do DNA das células filhas e é herdado pelas filhas das filhas, assim como pelos futuros descendentes das células originais. Após um período, algumas das células marcadas se diferenciam ou seja, se especializam em tipos específicos de neurônios ou células gliais (outro tipo principal de células cerebrais). O cérebro da cobaia é então removido e seccionado, e as partes recebem um corante para ajudar a localização das células que têm o marcador (sinal de que derivam das células originais), a que apresentam as características químicas e anatômicas de um neurônio. Obviamente, seres humanos não podem ser testados dessa forma. O obstáculo parecia intransponível até que Eriksson deparou com a solução durante um período sabático com nossa equipe no Salk Institute. Em consulta com um oncologista, Eriksson, que é clínico, descobriu que a substância que utilizávamos como marcador em animais a bromodeoxiuridina (BrdU) coincidentemente estava sendo ministrada a alguns pacientes, em fase terminal de câncer da laringe ou da língua, que participavam de um estudo. Eriksson percebeu que, se conseguisse obter o hipocampo dos que viessem a falecer, poderíamos verificar se algum neurônio exibia o marcador de DNA. Isso significaria que havia sido formado após a substância ser ministrada, ou seja, que havia ocorrido neurogênese, presumivelmente através da proliferação e diferenciação de células-tronco durante a fase adulta do paciente. Eriksson obteve autorização para a pesquisa. Entre o início de 1996 e fevereiro de 1998, recebeu o tecido cerebral de cinco pacientes, entre 57 a 72 anos de idade, falecidos. Conforme as expectativas, os cérebros apresentavam novos neurônios - especificamente aqueles conhecidos como células granulares no giro denteado. Devemos a prova da 58 neurogênese humana adulta à generosidade desses pacientes. Desde então, a equipe de Gage, bem como Steven A. Goldman e colegas da facudade de medicina da Cornell University, têm isolado células cerebrais de autópsias e biópsias do hipocampo de adultos. Essas células conseguem se dividir em meios de cultura e serem induzidas a produzir neurônios, confirmando assim a possibilidade de haver neurogênese no cérebro humano adulto. Novos Neurônios Funcionam? É claro que só demonstrar a neurogênese humana não é suficiente. Se o objetivo final é estimular a regeneração neuronal controlada em doentes, é necessário que se determine a localização das células-tronco capazes de se tornar neurônios, que elas serão funcionais e poderão enviar e receber mensagens de forma correta. Felizmente, já que a neurogênese no hipocampo dos roedores representa um fenômeno que ocorre no cérebro humano, os pesquisadores podem voltar a realizar estudos com ratos e camundongos a procura de pistas. Estudos anteriores com roedores revelaram que algum tipo de neurogênese ocorre durante toda a vida não apenas no hipocampo, mas também no sistema olfativo. As células-tronco também podem ser encontradas em partes do cérebro como o septo (envolvido, em processos de emoção e aprendizagem), o striatum (envolvido na sintonia fina de atividades motoras) e a medula espinhal. Porém, as células que se encontram fora do hipocampo e do sistema olfativo não parecem produzir neurônios em condições normais. Se a parte anterior do cérebro de um animal fosse transparente, a porção do giro denteado do hipocampo seria visualizada como uma camada fina e escura e teria mais ou menos a forma de um V visto de lado. Esse V é composto por corpos celulares de neurônios granulares partes globulares que contém o núcleo. A camada adjacente interna deste V é denominada hilo e é composta principalmente por axônios, projeções longas através das quais células granulares transmitem sinais para uma estação de relé hipocampal conhecida como CA3. Uma célula-tronco totipotente, capaz de produzir qualquer célula do corpo, produz descendentes iniciais que incluem célulastronco, ainda não especializadas, comprometidas com a produção de células cerebrais (1). Essas células comprometidas, posteriormente produzem células "progenitoras", destinadas a criar apenas neurônios (2), ou células gliais, que promovem a sobrevivência dos mesmos. Finalmente as progenitoras neuronais geram células granulares no hipocampo (3) ou outro tipo de neurônio em outras partes do cérebro. Os passos 2 e 3 parecem se repetir durante toda vida no hipocampo humano. 59 As células-tronco que produzem novas células granulares ficam na divisa entre o giro denteado e o hilo e se dividem continuamente. Muitas das descendentes são exatamente iguais as células precursoras, e grande parte delas parece morrer logo após ser produzida. Algumas células migram para regiões mais profundas da camada de células granulares e adquirem a aparência daquelas ao seu redor, incluindo suas múltiplas projeções para recepção e envio de sinais. Além disso, estendem seus axônios pelos mesmos trajetos utilizados por células vizinhas já estabelecidas. As células-tronco que produzem novos neurônios no sistema olfativo alinham-se ao longo das paredes de cavidades cerebrais repletas de líquidos, conhecidas como ventrículos laterais. Arturo Alvarez Buylla e colegas do Rockefeller demonstraram que algumas descendentes destas células-tronco migram uma boa distância para dentro do bulbo olfatório, onde adquirem características dos neurônios dessa área. Considerando que os novos neurônios em ambas as regiões cerebrais se parecem com os nascidos anteriormente, existe uma grande possibilidade de que seu comportamento também seja igual. Mas como provar isso? Estudos que analisam os efeitos do meio ambiente na anatomia cerebral têm nos ensinado muito. No início dos anos 1960, Mark R. Rosenzweig e colegas da University of California, em Berkeley, removeram roedores de suas condições normais no laboratório, bastante espartanas, e os colocaram em um ambiente mais rico, onde desfrutavam do luxo de viver em grandes gaiolas e conviver com outros roedores. Além disso, podiam explorar os arredores (constantemente modificados pelos responsáveis) e usar diversos brinquedos. O grupo de Rosenzweig, e mais tarde o de William T. Greenough, da University of Illinois, descreveram conseqüências admiráveis desse experimento. Em comparação com animais mantidos nas gaiolas padrão, o cérebro daqueles que desfrutaram de uma vida mais rica ficou mais pesado, além de apresentar maior densidade de determinadas estruturas, diferenças nos níveis de alguns neurotransmissores (moléculas que transportam mensagens estimuladoras ou inibidoras de um neurônio para outro), maior número de conexões entre as neurônios e maior ramificação de projeções neuronais. E demonstraram melhor desempenho em testes de aprendizagem. Desde então, neurobiólogos se convenceram de que o enriquecimento do ambiente em que vivem roedores maduros influencia o processo de formação da circuitaria cerebral, aumentando sua capacidade cerebral. Durante anos, porém, a noção de que a produção de novos neurônios no cérebro adulto poderia contribuir para isso foi descartada, mesmo após Altman ter sugerido, já em 1964, que tal processo deveria ser considerado. Outras descobertas confirmaram que modificações ambientais de fato afetam a neurogênese adulta. Através da aplicação de uma tecnologia não disponível na década de 1960, nosso grupo demonstrou, em 1997, que camundongos adultos com condição de vida mais rica produziram 60% mais células granulares novas no giro denteado que um grupo de controle geneticamente idêntico. Também se saíram melhor em um teste de aprendizagem. A melhoria do ambiente aumentou até mesmo a neurogênese e o desempenho de aprendizagem de camundongos com idade bastante avançada, cuja taxa básica de produção neuronal é muito mais baixa que a de adultos jovens. Não estamos afirmando que as melhorias de comportamento tenham ocorrido unicamente graças aos novos neurônios, uma vez que modificações na configuração das ramificações, bem como no microambiente químico das áreas cerebrais envolvidas sem dúvida têm 60 papel importante. Por outro lado, seria surpreendente se um progresso tão dramático na formação de neurônios, assim como a preservação da neurogênese adulta durante a evolução, não servisse a alguma função. Em Busca de Controles Diversos artigos descreveram fatores individuais que, quando manipulados, afetam a neurogênese adulta. Estas manipulações variam desde lesões que simulam traumatismo craniano ou derrames, a modelos experimentais de epilepsia ao emprego de drogas antidepressivas. Apesar dos vários estudos, baseados em diferentes paradigmas experimentais e utilizando diferentes critérios analíticos, ainda não se tem uma idéia clara de como a neurogênese adulta seja regulada. Porém, a variedade de fatores eficazes e as diferenças, aparentemente sutis, em seus efeitos, sugerem que a neurogênese adulta é, de maneira geral, muito sensível a mudanças em diversos sistemas regulatórios do cérebro. Alguns aspectos da neurogênese adulta parecem reagir a estímulos de forma um tanto inespecífica, ao contrário de outros. Foi dada a largada para a busca dos fatores específicos que controlarão a neurogênese adulta. Estamos particularmente interessados em elucidar como a regulação dependente de atividades da neurogênese adulta é mediada em nível de moléculas a genes. A compreensão dos mecanismos de controle da formação de neurônios poderia eventualmente ensinar como estimular a regeneração onde esta for necessária. Além do enriquecimento do ambiente, estudos com animais identificaram diversos outros fatores que influenciam a neurogênese. Para que estes resultados façam mais sentido, é necessário recordar que a neurogênese ocorre em diversos estágios desde a proliferação das células-tronco, passando pela sobrevivência de algumas descendentes, até a migração e diferenciação celular. Fatores que têm influência em um estágio não afetam necessariamente outro. Um aumento na proliferação das células-tronco pode produzir crescimento no número de novos neurônios, se a taxa de sobrevivência e diferenciação das célulasfilhas permanecer constante, mas, se for na direção inversa, é possível que este aumento não ocorra. Da mesma forma, o número de neurônios pode aumentar mesmo se a proliferação for constante, caso a sobrevivência e diferenciação aumentem. Entre as influências regulatórias descobertas, algumas parecem desestimular normalmente a neurogênese. Nos últimos anos, por exemplo, Gould e McEwen relataram que certas intervenções diárias no giro denteado podem conter a produção de neurônios. Mais especificamente, os neurotransmissores que estimulam as células granulares também são responsáveis pela inibição da proliferação das células-tronco no hipocampo. Altos níveis de glucocorticóide no sangue também inibem a neurogênese adulta. A equipe demonstrou que o estresse reduz a proliferação de célulastronco na mesma região, pois leva à liberação de neurotransmissores excitativos e à secreção de hormônios glucocorticóides nas supra renais. Compreender os mecanismos envolvidos na inibição é importante para aprender a superá-la. A descoberta de que níveis extremos de transmissores excitatórios e de certos hormônios podem conter a neurogênese não significa necessariamente que níveis mais baixos sejam prejudiciais; na realidade, podem até ser úteis. Quanto aos fatores que estimulam a neurogênese hipocampal, temos tentado identificar quais elementos de um ambiente mais rico exercem mais 61 efeito. Gould, agora na Princeton University, e colegas demonstraram que a participação em um teste de aprendizado, mesmo na ausência de condições mais ricas, favorece a sobrevivência das células geradas através da divisão das células-tronco, resultando em aumento do número de neurônios. Nossa equipe comparou a neurogênese em dois grupos de camundongos mantidos em gaiolas-padrão, uma com roda de exercícios e outra, sem. Os camundongos com acesso ilimitado a roda utilizaram na freqüentemente e acabaram por produzir duas vezes mais neurônios que seus companheiros sedentários, número comparável àquele encontrado nos camundongos que haviam sido mantidos em ambiente enriquecido. Nos camundongos que se exercitaram, uma maior taxa de divisão de células-tronco exerceu influência no efeito final, enquanto este fator não teve influência nos ganhos do grupo submetido a um ambiente mais rico. Neste último caso (como no estudo de Gould), as condições estimulantes aparentemente promoveram a sobrevivência da progênise das células-tronco, para que um maior número delas sobrevivesse até se tornar neurônio. Os processos que regulam a neurogênese em adultos são complexos e ocorrem em diversos níveis. Certas moléculas sabidamente influenciam a neurogênese. Avaliamos os fatores de crescimento epidérmico e de fibroblastos, que, apesar de seus nomes, afetam o desenvolvimento de neurônios em culturas de células. Com H. Georg Kuhn, então no Salk Institute, e Jürgen Winkler, da University of California, em San Diego, administramos estes compostos aos ventrículos laterais de ratos adultos, onde desencadearam uma proliferação acentuada nas células-tronco locais. O fator de crescimento epidérmico favoreceu a diferenciação das células resultantes em células gliais no bulbo olfatório, enquanto o fator de crescimento de fibroblastos promoveu produção neuronal. É interessante que a indução de determinadas condições patológicas, como crises epiléticas ou derrames, em animais adultos, podem despertar divisão intensa de células-tronco e até mesmo neurogênese. Ainda não se sabe se o cérebro pode utilizar esta resposta para repor neurônios necessários. No caso de crises epiléticas, talvez as conexões aberrantes formadas por neurônios recém-nascidos sejam parte do problema. A divisão de células-tronco e a neurogênese são provas adicionais de que o cérebro tem potencial para a auto-regeneração. A questão é: por que esse potencial normalmente não é utilizado? Nos experimentos discutidos até agora, eventos regulatórios foram examinados enquanto os genes eram mantidos constantes: observamos as reações neurológicas de animais geneticamente idênticos a diferentes intervenções. Pode-se também identificar mecanismos de controle da neurogênese mantendo-se o ambiente constante e comparando genes em linhagens de animais cujas taxas de produção de neurônio se diferenciam de forma inata. Presumivelmente, os genes que variam incluem aqueles que afetam o desenvolvimento de novos neurônios. Pesquisadores podem comparar os genes ativos em regiões do cérebro que apresentam ou não neurogênese. Os genes agem como mapas para as proteínas, que, por sua vez, executam grande parte das atividades celulares, como a indução da divisão celular, migração ou diferenciação. Assim, caso os genes que participam da geração de neurônios sejam identificados, deve ser possível descobrir seus produtos proteicos e quais suas contribuições específicas à neurogênese. 62 Regenerando o Cérebro É possível que os pesquisadores consigam rastrear as cascatas moleculares que levam de um estímulo específico seja ele uma modificação ambiental ou um evento interno as alterações específicas na atividade genética, que provoquem aumento ou diminuição na neurogênese. Estarão, então, de posse de grande parte das informações necessárias para induzir a regeneração como queiram. A abordagem terapêutica pode envolver a administração de moléculas reguladoras essenciais ou de outros agentes farmacológicos, aplicação de terapia genética para fornecer moléculas, transplante de células-tronco, modulação de estímulos ambientais ou cognitivos, alterações na atividade física ou uma combinação destes fatores. A compilação pode levar décadas. Porém, uma vez coletadas, as técnicas poderiam ser aplicadas de diversas maneiras. Poderiam fornecer algum tipo de regeneração, tanto em áreas do cérebro que sabidamente manifestem alguma neurogênese, quanto em locais onde células-tronco existam, mas estejam inertes. Talvez seja possível estimular células-tronco a migrar para áreas onde não costumam ir e amadurecer, tornando-se tipos específicos de neurônios. Apesar de as novas células não serem capazes de restituir partes inteiras do cérebro ou recuperar memória perdida, poderiam, por exemplo, produzir quantidades valiosas de dopamina (neurotransmissor cuja depleção é responsável pelos sintomas da doença de Parkinson) ou de outras substâncias. Pesquisas realizadas em áreas científicas correlatas auxiliam na busca por terapias avançadas. Por exemplo, diversos laboratórios aprenderam a cultivar células-tronco de embriões humanos. Altamente versáteis, elas são capazes de produzir praticamente qualquer tipo de célula do corpo humano, e um dia talvez possam ser estimuladas a produzir um tipo específico de neurônio, que seria então transplantado para locais lesados. Para solucionar a potencial rejeição de transplantes pelo sistema imunológico, poder-se-ia coletar células-tronco no cérebro do próprio paciente, em vez de utilizar as de um doador. Já foram desenvolvidas maneiras relativamente não invasivas de extrair essas células. Estas aplicações médicas são ainda um objetivo de longo prazo. Um dos principais desafios é que as análises de fatores que controlam a neurogênese e das terapias propostas para distúrbios do cérebro terão de passar, em algum momento, dos roedores para seres humanos. Para estudar seres humanos sem interferir com sua saúde, será necessário lançar mão de protocolos extremamente inteligentes, com técnicas não invasivas, como imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) ou tomografia por emissão de pósitrons (PET). Além disso, será preciso desenvolver mecanismos de defesa que garantam que os neurônios estimulados a se formar no cérebro humano (ou transplantados) executem exatamente o que desejamos e não interfiram nas funções normais do cérebro. O Papel da Neurogênese A principal questão permanece: qual é a função prática da neurogênese adulta? A aparente complexidade de sua regulação e sua reação a estímulos funcionais sugerem que tenha papel importante na função hipocampal. Gage, Henriette van Praag, do Salk Institute e Alejandro F. Schinder, agora na University of California, em San Diego, desenvolveram um novo método para marcar células recém-nascidas e demonstraram que as propriedades eletrofisiológicas dos novos neurônios hipocampais 63 gerados são idênticas àquelas das células vizinhas mais antigas. Essa descoberta esclareceu se a neurogênese adulta produz ou não neurônios funcionais, mas ainda não se sabe o papel que estes exercem no hipocampo. As tentativas de ligar a neurogênese à aprendizagem e à memória são inconclusivas. O hipocampo é considerado o portal da memória: processa informações antes do armazenamento de longo prazo nas regiões corticais. Este processo é denominado consolidação da memória, e acreditamos que a função dos novos neurônios tenha alguma ligação com ele. Mas as novas células não são adicionadas ao hipocampo como um "chip de memória", uma vez que seu número seria baixo demais para armazenar quantidade significativa de informações. Além disso, as informações são armazenadas na força das conexões em uma rede de neurônios, e não em células individuais. Nossa hipótese é que os novos neurônios são adicionados de forma estratégica a rede de processamento do giro denteado e possivelmente sejam os novos guardiões dos portais da memória, modificando o processador de acordo com o aumento das necessidades funcionais. Uma questão que deve ser esclarecida é se a neurogênese ocorre em outras partes do cérebro. A neurogênese adulta foi descrita em duas regiões: o hipocampo e o sistema olfativo, e há grande controvérsia em torno de sua existência fora delas. Apesar de Gould ter relatado números surpreendentes de novos neurônios no neocórtex, essa descoberta foi convincentemente desafiada por David Kornack, da University of Rochester, e por Pasko Rakic que, após minuciosa análise microscópica, não conseguiram encontrar novos neurônios corticais. Sabe-se, com base em estudos de cultura celular realizados com roedores, que células-tronco neuronais capazes de produzir neurônios em uma placa de Petri podem ser derivadas de praticamente qualquer região do cérebro, inclusive do córtex. Porém, sob condições fisiológicas, nenhum neurônio parece se desenvolver a partir destas células enquanto se encontram no cérebro e fora das duas regiões neurogênicas clássicas. Jeffrey D. Macklis e colegas da Harvard University demonstraram que, sob condições de lesão altamente específicas e circunscritas a neurônios individuais no córtex de camundongos, essas células podem ser substituidas por células progenitoras naturais, ou endógenas. A descoberta não se aplica com facilidade a condições mais gerais, mas mostra que, em principio, a neurogênese cortical é factível. Como podemos utilizar o potencial neurogênico das células-tronco neuronais do cérebro adulto para fins terapeuticos? É possível que um dia se descubra que a neurogênese direcionada seja, de fato, uma opção para os distúrbios neurológicos. Diversas perguntas ainda devem ser respondidas, mas, com o crescente interesse nesta área, é possível que este potencial se torne realidade antes do esperado. Para conhecer mais: More Hippocampal Neurons in Adult Mice Living in an Enriched Environment. Gerd Kempermann, H. Georg Kuhn a Fred H. Gage em Nature, Vol. 386, págs. 493-495; 3 de abril de 1997. Neurogenesis in the Adult Human Hippocampus. Peter S. Eriksson et al. em Nature Medicine, Vol. 4, No. 11, págs.1313-1317; novembro de 1998. Learning Enhances Adult Neurogenesis in the Hippocampal Formation. Elizabeth Gould et al em Nature Neuroscience, Vol. 2, No. 3, págs. 260-265; março de 1999. Running Increases Cell Proliferation and Neurogenesis in the Adult Mouse Dentate Gyrus. Henriette van Praag et al. em Nature Neuroscience, Vol. 2, No. 3, págs. 266-220; margo de 1999. Neurogenesis in Adult Primate Neocortex: An Evaluation of Evidence. Pasko Rakic em Nature Reviews: Neuroscience, Vol. 3, págs. 65-71; janeiro de 2002. Functional Neurogenesis intheAdult Hippocampus. Henriette van praag, Alejandro F Schinder, Brian R. Christie, Nicolas Toni, Theo D. Palmer a Fred H. Gage em Nature, Vol. 415, págs.1030-1034; 28 de fevereiro de 2002. 64 Material de apoio da atividade Existem coisas mais fáceis de lembrar do que outras? Prestando atenção e lembrando Uma maneira importante pela qual a percepção se torna consciente é através da atenção, que, em essência, é a focalização consciente e específica sobre alguns aspectos ou algumas partes da realidade. Assim sendo, nossa consciência pode, voluntariamente ou espontaneamente, privilegiar um determinado conteúdo e determinar a inibição de outros conteúdos vividos simultaneamente. Portanto, reconhece-se a Atenção como um fenômeno de tensão, de esforço, de concentração, de interesse e de focalização da consciência. Tipos de atenção Nossos cinco sentidos podem ser ativados conscientemente para focalizar a Atenção sobre um determinado estímulo. Os condicionamentos, muitas vezes inconscientes, podem proporcionar uma certa atividade de espera, mais ou menos orientada, no sentido de confirmar ou não uma determinada expectativa. Ao acrescentar mais sal na comida, por exemplo, nosso paladar espera, com certa expectativa, constatar determinado gosto, assim como esperamos ver momentos antes, determinada cena de acidente ao constatar a direção e velocidade de um carro de corridas. Trata-se da espera pré-perceptiva. Outras vezes, entretanto, quando os resultados fogem completamente da expectativa perceptiva, acontece uma espécie de choque sensorial que dá origem a um estado de surpresa. Ao olhar para um objeto, por exemplo, a pessoa se inclina na direção desse objeto, e o mecanismo ocular atua de forma que os olhos se dirijam ao objeto até que este caia na fóvea; os músculos do cristalino se acomodam de forma que a imagem fique no foco mais claro, etc. Ao ouvir um som baixo a pessoa estica o pescoço para a frente, coloca sua mão atrás da orelha, e pode fechar os olhos a fim de eliminar os estímulos visuais concorrentes na tentativa de selecionar um determinado objeto (sonoro) como foco de sua Atenção. Veja-se, por exemplo, a brincadeira de tapa nas mãos. Neste joguete um dos jogadores, aquele que dará os tapas, fica com as mãos espalmadas para cima, enquanto o outro coloca suas mãos sobre as mãos do primeiro. Repentinamente o primeiro tentará retirar suas mãos e estapear as mãos do segundo. Vence o mais rápido. O segundo deve retirar suas mãos, tão logo perceba que o primeiro iniciou o movimento de estapeá-lo. Afeto e atenção Um dos fatores individuais de maior influência no processo da Atenção destacam-se as condições do estado de ânimo ou de interesse, os quais podem facilitar ou inibir a mobilização da Atenção. Portanto, o elemento afetivo tem significação determinante no processo da Atenção, admitindo-se que a pessoa só dirige a Atenção aos estímulos que lhe 65 despertam interesse. De fato, ao constarmos que nossa Memória tem mais afinidade para as coisas que nos despertam maior interesse, estamos falando antes, que nossa Atenção (indispensável para a Memória) é mobilizada mais prontamente pela nossa afetividade. Nossa Atenção sobre algo é tanto mais intensa quanto mais nos interessa esse algo, quanto mais desejamos conhecê-lo e compreendêlo, quanto mais isto nos proporcione prazer ou satisfação. É por isso que, durante os episódios depressivos, onde o prazer e o interesse estão significativamente comprometidos, a Atenção e a Memória estarão também severamente prejudicadas; por falta de interesse e prazer. Vamos fazer um teste Você tem 3 minutos para responder a cada grupo de perguntas abaixo. Cronometre o tempo gasto para cada uma das duas etapas. ETAPA 1 • Escreva o nome das cinco pessoas mais ricas do mundo • Cite o nome dos últimos ganhadores do Prêmio Nobel • Aproveite e escreva o nome dos(as) cinco últimos(as) prefeitos(as) do Rio de Janeiro • Escreva o nome de dez ganhadores de medalha de ouro nas olimpíadas • E para terminar lembre e escreva o nome dos 12 últimos ganhadores do Oscar de melhor ator ETAPA 2 • Escreva o nome dos professores que você mais gostava • Lembre de três amigos que ajudaram você em momentos difíceis e escreva seus nomes • Cite cinco pessoas que lhe ensinaram coisas valiosas • Pense nas pessoas que lhe fizeram se sentir amado e especial e escreva seus nomes • Escreva o nome de cinco pessoas que você gosta de estar Despertam mais nossa Atenção as coisas com as quais mantemos algum laço de interesse, alguma predileção. Passeando num shopping as pessoas detém-se (prestam Atenção) diante das vitrinas que lhes despertam maior interesse, que mais lhes mobilizam afetivamente. Níveis e distribuição da atenção Ao estudar a extensão do campo de Atenção, julga-se muito mais importante a captação de uma totalidade ou captação do todo significativo, que a quantidade de objetos que a serem captados pela Atenção. Para William Stern, a Atenção é a condição imediata para a produção de uma realização pessoal e suas características consistem num esclarecimento consciente, na concentração de uma força psíquica disponível para o esclarecimento da realidade. A Atenção da pessoa, num determinado momento pode estar distribuída de várias maneiras no campo da realidade. Pode estar concentrada num único objeto, dando-se pouca Atenção ao resto, pode 66 estar difusamente espalhada, sem que uma parte específica esteja predominantemente em foco ou, por fim, pode estar dividida entre vários objetos, quando então a pessoa procura prestar Atenção, simultaneamente, a duas ou mais coisas. Quanto maior a divisão da Atenção entre objetos, maior a perda de qualidade da Atenção dada a cada parte. Conforme vimos acima, a amplitude limitada da apreensão, e o fato de que quanto maior a divisão da Atenção menor a sua qualidade, acentuam a necessidade da organização perceptual. Quando algumas partes do campo são organizadas em todos maiores, a Atenção necessária para percebê-las eficientemente será menor do que quando as partes são simplesmente observadas separadamente. Através da organização e do agrupamento de objetos a serem percebidos podemos estender a amplitude da Atenção. Se separarmos nove grãos de feijão em três grupos de três grãos, podemos vê-los mais facilmente. Este é um exemplo simples do princípio segundo o qual a organização tem como função permitir; à pessoa, dirigir a Atenção para maior quantidade de material. Podemos ver a mesma coisa, de maneira mais significativa, no desenvolvimento de habilidades específicas ou do treinamento. Não é necessário prestar Atenção a uma atividade bem treinada, pela simples razão de que o todo integrado está tão reunido que pode ser realizado sem Atenção as suas partes isoladas. A inspeção de qualidade numa fábrica, por exemplo, é uma atividade tão treinada que o funcionário é capaz de ater-se rapidamente à qualquer coisa que estiver estranha àquilo considerado desejável. Este funcionário desenvolve seu trabalho muito mais rapidamente que outra pessoa não treinada. Assim, é possível perceber, com um simples olhar, situações complexas. A organização dos objetos facilita para que os estímulos se encaixem na expectativa a ser percebida, sem necessidade de Atenção cuidadosa a cada uma das partes isoladamente. Isso, naturalmente, permite maior eficiência, embora também possa provocar erros que passam desapercebidos, quando estes eventualmente se encaixem bem na organização. Determinantes da atenção Falamos comumente da Atenção como voluntária ou involuntária. A primeira refere-se a casos onde o indivíduo parece ter liberdade na determinação do foco de sua Atenção, liberdade em escolher intencionalmente aquilo sobre que prestar Atenção. Entretanto, ao estudarmos a influência da motivação, do interesse e da afetividade sobre a Atenção essa simples divisão em voluntária e involuntária ficará mais complicada. De qualquer forma vamos falar sobre essa divisão. A Atenção involuntária ou espontânea refere-se a casos em que a pessoa parece menos o agente de escolha da direção de sua Atenção do que um joguete nas mãos de forças que a obrigam a atentar para isso ou aquilo. Numa narração folclórica e acaboclada de um contador de casos goiano , é cômica a passagem onde diz, diante da censura de sua mulher por ter olhado demais para outra mulher: "- eu não queria olhar, mas os olhos queriam...". Alguns determinantes da Atenção involuntária estão relacionados ao afeto e sentimento dirigidos para o objeto, como é o caso da pessoa faminta dirigir sua Atenção, irresistivelmente, para o alimento da vitrina do restaurante. 67 Outros determinantes se ligam a características duradouras dos objetos estimulantes. Essas características determinantes podem ser tão solicitantes que acabam atraindo tiranicamente a Atenção, apesar de parecer que a pessoa atentou voluntariamente. As características dos estímulos, que exigem Atenção, foram muito estudadas por experimentos de laboratório e por técnicas de propaganda. Esses fatores determinantes do estímulo podem ser sumariados da seguinte maneira: Determinante de Exemplo intensidade .......................... o silvo da sirene do carro de bombeiros repetição .............................. anúncios na televisão isolamento ........................... uma única palavra, na página da revista movimento e mudança ........ o pisca-pisca no cruzamento da estrada novidade .............................. o desenho exagerado do último modelo de carro incongruência ...................... a mulher fumando um charuto Tenacidade e vigilância O ato de perceber consiste na apreensão de uma totalidade e que essa totalidade não representa uma simples soma do elementos isolados captados pelos órgãos sensoriais. O todo sensorial caracteriza uma determinada forma, e esta forma percebida pelos sentidos será qualitativamente diferente daquilo que representa suas partes isoladas. Para a Atenção, também, somente uma parte das excitações sensoriais adquire relevo, dando origem a uma forma sobre a qual se polariza a Atenção, enquanto as partes restantes representam o fundo, menos claro, mais difuso e mais fluido. Não existem quaisquer elementos isolados, mas apenas fins totais e integrado para alguma realização pessoal, e serão "claras" e "nítidas" as percepções contidas no foco da Atenção, "vagas" e "difusas" aquelas que se encontram além desse foco. O nível da Atenção depende de vários fatores. Como vimos acima, o principal desses fatores é o ânimo ou o interesse (em outras palavras, o afeto). Quando nos encontramos diante de uma variedade de objetos, a Atenção está dispersa e os diferentes objetos recebem pequenas quantidades de energia e alcançam um grau médio de Atenção. Mas, ao concentrarmos a Atenção num único objeto, toda a energia se orienta neste sentido e os demais objetos ficam numa zona obscura. No entanto, no objeto em que se concentrou a Atenção se descobre uma infinidade de pormenores que haviam passado desapercebidos quando este se achava imerso nos demais. Neste caso a Atenção foi polarizada no objeto escolhido. Isso significa que dentro do campo da Atenção nem todos os estímulos recebem a mesma conscientização e energia. Vale aqui o alvo inicialmente exemplificado: em torno de uma zona central especialmente iluminada e energicamente acentuada, situam-se zonas de fraca intensidade. Quando estamos dirigindo o foco principal da Atenção deve estar na estrada e no trânsito à nossa volta. Em nível menos profundo de Atenção estão os acostamentos da estrada, o ruído do motor, os instrumentos do painel do veículo etc. De um modo geral, o campo de visão mais externo, a visão periférica, utiliza a energia psíquica sem propósito de foco da Atenção, mas apenas como possibilidade para um eventual foco futuro. 68 Usando ainda o exemplo de dirigir, há também a Atenção de espera, quando então procuramos, espreitamos, espiamos ou exploramos, sem nenhum objeto específico a se focar a Atenção. Digamos que é uma Atenção para as possibilidades. Nesses casos, o objeto da Atenção ainda não se acha presente, tudo é indeterminado, não se conhece o onde, nem o quando do que vai ser percebido. Pode ser que um cachorro atravesse em nossa frente. Esta expectância e incerteza exige que a Atenção percorra continuamente um campo mais amplo para, no caso do objeto aparecer, não o deixar escapar e colocá-lo imediatamente em foco. Para completar esse exemplo temos que entender o que é tenacidade e o que é vigilância. Bleuler destaca duas qualidades na Atenção: a tenacidade e a vigilância. A tenacidade é a propriedade de manter a Atenção orientada de modo permanente em determinado sentido. A vigilância é a possibilidade de desviar a Atenção para um novo objeto, especialmente para um estímulo do meio exterior. Essas duas qualidades da Atenção se comportam, geralmente, de maneira antagônica, ou seja, quanto mais tenacidade sobre um determinado objeto está se dedicando, menos vigilante estamos em relação à eventuais estímulos a serem apreendidos. 69 70