Rosalia Sandoval (1918) - Através da infancia.

Transcrição

Rosalia Sandoval (1918) - Através da infancia.
Rosália Sandoval:
Através da Infancia
IMPRENSA INDUSTRIAL
I. Nery da Fonseca
78 e 82 – Rua Visconde de Itaparica – 78 e 92
RECIFE – 1918
...il fant jamais s’acoommoder aux enfants par un langage enfantin, ni par dos manières
pueriles: on doit au contraire les élever à soi em leur parlant toujours raisonnablement; il
faut accoutemer lez enfants à La raison dès qu’ils peuvent entendre et parler ...
MME. DE MAINTENON.
Queridas Colleguinhas:
Amae o estudo. A instrucção é um sol que illumina todos os
destinos.
Como vos tenho dito, muitas vezes, não assumo a responsabilidade que só aos Mestres
compete.
Sou apenas uma collega vossa, adiantada em idade, e tendo, portanto, mais do que vós,
um pouco de conhecimentos que me deram o estudo e a experiência.
Nosso mestre é o livro.
Juntas, procuramos illustrar o espírito, desenvolvendo as faculdades intellectuaes e
cultivando as qualidades nobres da alma.
Fostes vós a fonte de inspiração do que ides ler.
Estas paginas não fazem um livro didactico (nem a tanto chegaria a minha afouteza de
humilde representante do ensino particular): são lições que estudamos juntas; são factos da
vida infantil que se relacionaram
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comnosco; são, finalmente, uma braçada de flores colhidas Veiga outomnal do Pensamento,
para adorner a banca de estudo das minhas pequenas amiguinhas.
E, como sois de idades differentes, escolhei a “rosa” ou a “verbena” que mais vos
agradar, neste humilde ramalhete.
Não é a preceptora que fala aqui ás allunas: é a collega mais adiantada que se dirige ás
companheiras; é a amiga que offerta ás suas amiguinhas um entretenimento para as horas de
lazer.
Todos os que trabalham, precisam de recrear-se.
Quando o espírito de recreio, está em férias.
O que nos offerto neste livro, nada mais é do que um passatempo que deveis reservar
para esse período de férias.
Nestas paginas modestíssimas que são a roupagem das minhas idéias, não encontrareis
as vibrantes palavras do mestre que, na cáthedra, vos explicasse a lição; encontrareis
unicamente a recordação dessa encantadora phase da eristencia, passada na escola e no lar, e
alguns sons da minha lyra merencoria preenchendo os intercalhos da esteril.
Nas vossas pequeninas mãos deixo o livro que vos dedico. Acceitae-o como a fita que
a mamãe colloca nos vossos graciosos vestidinhos, como a boneca que vos offerta o papae.
Maceió – 1918.
Rosalia Sandoval
Após a leitura
O dr. Accioly Braga é pae de três intelligentes reanças: Nini, Jorge e Angelina.
No seu gabinete havia uma estante de livros novos, que despertava a curiosidade dos
meninos quando ali penetravam.
Um dia, o dr. perguntou-lhes se desejavam ler aquelles livros. Todos responderam em
côro: Sim! Sim! Sim!
O dr. Accioly offereceu-lhes a leitura dos livros desejados, sob esta condição:-quinze
dias depois, cada um haveria de transmittir-lhe as impressões mais agradáveis que lhes
deixasse a leitura.
Os meninos acceitaram, a proposta, e o dr. Accioly disse-lhes que somente no dia
seguinte os livros lhes ficariam á disposição.
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É que elle pensára em subistituir alguns livros por outros que estivessem ao alcance da
intelligencia dos pequenos.
A‟ hora aprazada, lá se foram os três, muito em ordem, para o gabinete do papae,
como literatos a caminho de alguma Academia de Letras.
A Nini que vai attingindo os 14 annos, foi a primeira a fazer a escolha; seguiu-se
depois o Jorge, um anno mais moço que a Nini; e em seguida, a Angelina, de 11 annos de
idade.
No decimo quinto dia, depois da merenda, o dr. Accioly interpellou os meninos,
conforme o contracto feito.
Nini falou primeiro:
As terras do Céo
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Papae:
A leitura que mais agradável impressão me deixou, foi a de umas paginas de
Flammarion, sobre a Astronomia.
Não avalia o papae como fiquei surprehendida ao ler esta epigraphe: AS TERRAS DO
CÉO.
Pareceu-me, a principio, que me havia enganado; e repetia admirada: As terras do
céo?!...
Depois da leitura, comprehendi então o que são aquellas terras e o que é aquelle céo.
O céo nada mais do que essa atmosphera que nos cerca por toda parte, essa abobada
azul, essa immensidade sem limites, insondavel, onde os mundos fluctuam, inclusive o nosso
globo. A terra que habitamos é um astro do céo. O sol é um astro do céo, uma estrella como
os lindos pontos brilhantes que illuminam as nossas lindas noutes brasileiras.
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A terra não está materialmente presa à cousa alguma: está solta no espaço, como os
aeroplanos que navegam nesse immenso oceano de ar. O que a mantem em equilíbrio na vida
etherea, é uma força immaterial chamada gravitação.
A terra gyra no espaço, e brilha para os outros mundos, como qualquer desses pontos
luminosos que vemos à noute espalhados pelo céo, como as flores no campo.
E os planetas que são da mesma constituição physica da terra, isto é, formados de
materias iguaes às do nosso globo terráqueo, são os que o Astronomo denominou “As terras
do céo”.
Venus, por exemplo, a linda Estrella da Tarde que a vovó chama Papa-ceia (talvez
porque apparece à hora da ceia dos pequenitos), Venus, a Estrella do Pastor, a rainha dos
astros, tão querida e decantada pelos poetas, é terra igual á nossa, e, quase, poderíamos
chamal-a sua irmã gêmea.
De todas as curiosidades celestes a que mais me agradou, papae, foi a que vou ler.
Copiei para lel-a sempre e não esquecel-a nunca.
Veja como é linda e curiosa esta pagina!
E Nini, com a sua voz sonora e mansa, leu emocionada:
“Entre as mais bellas e interessantes curiosidades da vida sideral, os habitantes de
Marte admiram em certas epocas do anno, ora á tarde, quando o sol mergulha no horizonte,
ora pela manhã, um pouco antes da
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aurora, uma magnífica estrella de primeira grandeza, não muito longe do sol.
Esse astro resplendente que tem recebido, sem duvida, os mais doces epithetos dos
seus contempladores, essa estrella radiante, colorida de um lindo matiz verde-azulado, paira
no espaço acompanhada de uma pequena estrella, e seintilla como um diamante esplendido,
depois do occaso do sol, no puro céo de Marte.
Essa astro brilhante é a Terra, a terra que habitamos; e a pequena estrella que a
acompanha, é a Lua.
Nosso planeta é, portanto, para os habitantes de Marte, uma estrella da tarde e da
manhã.
Quantos votos, quantas esperanças, não se têm evolado para Ella!
E, provavelmente, mais de um coração infeliz tem deixado vogar algum sonho
irrealisavel pelo nosso planeta, como numa estância de felicidade, onde desejariam viver
aquelles que soffrem no seu mundo natal.
No emtanto, o nosso planeta não é tão perfeito como pensam!”
Então, papae, não é tão linda e interessante essa página?
Quero estudar Astronomia. Diz Flammarion que, antigamente, houve mulheres
astrônomas que se distinguiram admiravelmente; e accrescenta que não obstante ser a
Astronomia a mais antiga sciencias, é a que mais campos novos offerece ás investigações dos
sábios; e, demais, é uma sciencia encantadora, poética, que muito deve agradar ás senhoras.
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Quero estudar a Astronomia; desejo contemplar o céo, conhecendo os astros.
O firmamento com suas flores de luz, á noute, assemelha-se á terra com seus prados
em flor.
E qual a moça que não gosta das flores e das estrellas?
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O dr. Accioly Braga levantou-se enthusiasmado e abraçou a filha, promettendo-lhe o
curso de Astronomia pedido.
Jorge e Angelina ergueram-se tambem e foram abraçar Nini, por ordem do papae.
Todos regosijaram-se com o triumpho que Nini alcançou.
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A utilidade das plantas
Levantou-se o Jorge, felicitou á irmã pela brilhante exposição que fez, e pediu licença
ao pae para fazer o resumo da sua leitura.
Mettido num fato novo de brim, tomou attitudes de orador, e começou:
Papae:
Os quinzes dias do praso, occupei-os a ler a bella Historia Natural que na vossa estante
se destaca pela encadernação luxuosa e bonita.
Sympathiso com o estudo da Natureza, e por isso não escolhi outro livro.
Dentre tudo o que li e aprendi, o que mais me prendeu a attenção, foi o papel que os
vegetaes representam na vida humana.
Elles dam-nos o tecto, a roupa...Alimentam-nos, vestem-nos, curam-nos e... podem
matar-nos tambem!
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Que enorme influencia têm as plantas na vida da humanidade!
Entre as suas numerosissimas famílias, encontram-se as arvores robustas, de
elevadíssima estatura, cuja madeira se emprega com vantagem na Architectura, na
Marcenaria, etc.
Aos vegetaes devemos os bonitos moveis que adoram nossas casas, e as lindas
embarcações que se balouçam em nossos portos.
Entre os typos dessas arvores, lembro-me do jacarandá, de linda cor negra, muito
empregado em moveis de luxo.
Recordo-me do jatobá que é uma bella arvore de lenho cor de vinho, e exereta uma
resina que serve de optimo verniz; do pau-brasil, muito conhecido na historia de nossa patria,
porque dessa arvore é que se originou o nome do nosso territorio.
São esses os typos de vegetaes empregados na construcção, na industria, etc.
Na família das plantas alimentares, sem incluir as fructiferas, temos: a mandioca que
nos dá a farinha (o principal alimento do brasileiro), a macaxeira, os legumes e todas as
plantas hortenses, das quaes a que mais me appetece é a alface. (Ah! as boas saladas que
mamãe prepara!...) Temos o amendoim, cujas sementes torradas fazem a delícia da meninada
em noutes de novena; o feijão, a batata, o arroz e outras, muitas outras, que nos deleitam em
saborosos manjares.
As plantas que dão fructo, são as que mais aprecio.
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Gôsto muito das fructas! Alem de appetitosas são lindas! Agradam ao paladar e aos
olhos.
E o caju que eu julgava ser uma fructa!... Não é tal! A fructa é a castanha. O caju, o
figo, o morango não são fructas: são pistillos da flor.
Apósto que os maninhos ignoravam isso; e eu tambem, antes de ler a Historia Natural.
Entre as plantas alimentares salientam-se o café e a canna de assucar – principaes
fontes de riqueza, no Brasil.
Vejamos agora como nos vestem as plantas.
Não se trata aqui da tanga de folhagem do homem primitivo, e sim da roupa bem
talhada pelos alfaiates e modistas desses tecidos de mil cores onde a intelligencia dos
fabricantes deixa os mais apreciados desenhos fornecidos pelo kaleidoscopio.
O cánhamo, o algodão de grandes flores amarellas e vistosas e o linho de flores azues
com uns tons vermelhos, são as principaes plantas que nos fornecem o vestuário. São ricas da
matéria textil exigida para a fabricação dos tecidos.
A essas plantas, frageis arbustos que vicejam nos campos cultivados, é que devemos
os bellos tecidos que nos deleitam a vista nos mostruários das lojas, e ess‟outros alvissimos,
sem estampa alguma, que usamos na rouparia de verão.
E‟ bello estudar a historia desses vegetaes, desde a sementeira até á sua retirada das
fabricas, em bonitos fardos para o commercio.
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A‟s plantas medicinaes, tão conhecidos entre nós, cabe honroso lugar na vida do
homem. A ellas devemos a conservação da saude, a recuperação da cor e das forças perdidas
no decurso das molestias que nos atacam.
Das plantas toxicas, cito apenas a cicuta, porque foi a que mais me preoccupou por ter
dado a morte ao grande Socrates.
E‟ a cienta um veneno tão violento, que os antigos preferiam dar a beber cicuta aos
condemnados á morte, a fazel-os subir ao patibulo.
E‟ bom cicuta, porque essa perfida planta costuma nascer nas hortas, e facilmente se
confunde com a salsa, da qual só se distingue pelas flores que são brancas na cicuta e de um
amarello-esverdeado na salsa.
Entretanto, essa terrivel planta é empregada com proveito em algumas molestias
nervosas.
Deixemos essa planta que nos causa tristeza, e passemos ás plantas de ornamentação.
Alem dos grandes serviços que nos prestam os vegetaes, devemos-lhes ainda a graça
de ornarem o nosso lar, os nossos jardins... Com elles enfeitamos as salas, collocando-os em
lindos vasos aos quaes, muitas vezes, a Arte dá valor.
De suas flores escolhemos as mais lindas para trazermos na botoeira; e as senhoritas
pousam-nas, com graça, no regaço, em bellos ramalhetes, ou isoladas como jóia perdida entre
rendas.
Gósto immenso das palmeiras que o nosso apreciado Gonçalves Dias tanto exalçou;
e das orchideas de
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flores roxas a que erroneamente chamam parasytas. São tão bellas e é tamanho o apreço que
lhe deram na Grã-Bretanha, que servem de distinctivo à fidalguia ingleza.
Penso que todos gostam, como eu, das avencas mimosas de folhagem delicada quasi
transparente, movendo-se ao mais brando sopro da aragem; das hortencias de belissimas
flores azues; da violeta modesta e pequenina, mas de aroma penetrante, do lirio, convalle
(muguet) de flores alvíssimas, a sahir em forma de torre, de um tópe de folhas elegantes; das
gramíneas que formam os revedos e emmolduram os alegretes...
E assim não satisfeitos de ser-mos úteis, as plantas quizeram ainda servir-mos de
ornamentação.
Todos nós lhes somos devedores de alegrias, conforto e saúde.
As ultimas palavras de Jorge foram cobertas de palmas.
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O Vidro
Felizmente chegou a minha vez! –disse Angelina sorrindo. Estava anciosa para
transmittir-lhes as minhas impressões.
Bem. Vou falar a respeito do vidro.
Sabem todos quanto gosto dos vidros. Mamãe ralha sempre commigo, quando vou
lavar os copos, porque emprego um tempo enorme nesse trabalho. E‟ que fico a miral-os, a
miral-os muito, gostando de vel-os filtrar a luz na delicadeza de sua transparência. E, quando
estão perfeitamente límpidos, entretenho-me enehendo-os d‟agua, e vendo-os reflectir a
claridade que entra pela janella, ou um raio de sol que se vem esbater nelles, formando
arabescos de variados matizes.
Gósto dos espelhos; das vidraças lavoradas; dos centros de mesa coloridos; das
claraboias; dos cálices; dos candelabros artísticos ... de tudo, emfim, onde o vidro se mostra
na excelsitude de sua transparencia.
Amo-o tanto, que, se fosse possível, habitaria uma casinha de vidro. Mas o que eu
ignorava, era a sua utilidade tão vasta e tão variada, e a sua contextura.
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O vidro compõe essencialmente de areia pura (silica) misturada com a potassa e a
soda.
E o crystal, tão estimado e bello, de som argentino, é o producto de uma mistura de
areia e potasso, muito puras com o exydo do chumbo.
Para fabricar o vidro reduzem-se a pó essas materias e depois de mistural-as
cuidadosamente, deitam-nas em fôrmas de argilla refractaria, e submettem-nas á acção do
fogo violento. As materias fundem-se, correm como agua, e formam pasta á qual se dá
facilmente a fôrma que se quer.
Depois de fabricados os objectos, levam-n‟os a fornos particulares, bem fechados,
para evitar as correntes de ar. Essa operação é destinada a tornar o vidro menos frágil.
E‟ assim que se fabrica o vidro tão formoso e tão delicado!
E‟ ao vidro que devemos a existência do thermometro que serve para marcar as
mudanças de temperatura, isto é, os graus do calor e do frio.
E‟ ainda a elle, a esse vidro que aprecio tanto, que devemos o barômetro, um
instrumento que serve para annunciar as mudanças atmosphericas, isto é, o bom ou mau
tempo.
Alem desses préstimos, o vidro tem outros que esqueci, e tem mais um que o autor
do livro não citou, mas eu conheço bem: -é o serviço que elle presta aos olhos cansados dos
que já não podem ler sem óculos.
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Terminei. Eu sou o primeiro a levar o meu abraço a vossês, pois estou muito contente
commigo mesma.
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Depois de abraçar a papae, Angelina abraçou de per si todos os seus irmãos que
sorriam do gênio expansivo da menina.
E assim terminou, com proveito para todos, o contracto que as creanças fizeram com
o Dr. Accioly Braga, um pae de família instruido e exemplar.
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O jardim de Lili
(Paraphase)
Não sabem? Tenho um jardim
Pequeno, florido e lindo.
Meu sonho, se estou dormindo,
é o meu jardinzinho, sim!
Todo elle é um vaso de argila
onde brotaram violetas
escuras... são quase pretas
como u‟a noute intranquila.
No dia dois de janeiro
Natalicio da mamã,
levar-lhe-ei de manhã
o meu jardinzinho inteiro.
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Mas um gato mau, oh! Sim!
emquanto a Lili falava,
o vaso ao chão atirava...
E foi um dia o jardim!
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A promessa
O Luiz estivera doentinho.
E a avô prometera à Virgem das Dores a cabelleira do menino, se Ella o salvasse
daquella terrive febre.
O Luiz, quando bom, trazia toda a casa em dobadoura. Batia no gato, entornava as
loções da mamãe; contava ao pae que a prima Laura errava as lições de piano, e a professora
dizia: Estás ficando preguiçosa Laurinha?
Quando havia vistas em caso, o Luiz, de repente, apparecia com os vidros de tintura
com que D. Hortensia, a avó, remoçava os cabellos, isto quando não lhe encontrava os
postiços.
A‟s primeiras claridades do dia, o Luiz despertava toda a casa com o seu rir argentino
que se harmonisava com os trinos dos passarinhos do viveiro.
Era a alegria da casa, como dizia D. Hortensia.
No entanto, a pobre avó era a mais freqüente victima das travessuras do menino.
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No dia do anniversario da prima Laura, quando a sala já estava quase repleta de
pessoas amigas dos Paes de Luiz, o menino appareceu rindo, com os deulos de D. Hortensia
escarranchados sobre o nariz, um aro já retorcido, e os cabellos postiços da avô dependarados
na extremidade de um cabo de vassoura.
O riso explodiu de todos os lados.
O Luiz, muito vermelhinho e garrido, gritava contentíssimo: -São da vovô! São da
vovô! ...
D. Hortensia, occupada na copa, não deixou de notar aquella explosão de riso.
Lembrou-se das travessuras do neto, e correu a ver o que acontecera.
Encontrou ainda o menino com os postiços nas mãos a gritar: São da vovô! São da
vovô!...
D. Hortensia, revoltada, tomou-o pelo braço, levou-o para a sala de jantar, e pela
primeira vez o Luiz experimentou a sensação que sabe deixar um bom puxão de orelha.
Pôz-se a chorar. E a boa senhora, arrependida, tomou-o no regaço e cobriu-o de beijos,
dizendo: -Não farás outra, não é, meu anjinho?
E o Luiz, desprendendo-se-lhe dos braços, lá se foi contar ás orcadas o desespero da
avô.
Era sempre assim o Luiz.
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Que differença agora!
Lá estava o menino, há tantos dias já, na sua caminha de peroba, comfrisos dourados,
os olhos semicerrados e a boquinha vermelha e resequida pela febre.
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A casa, immersa em profunda tristeza.
A vida ali parecia um continuo gemido, um recesso de cemitério onde se deixava ficar
um môcho.
As gelosias cerradas e desguarnecidas, davam á bella chacara o aspecto de um carcere.
A casa toda parecia um jazigo onde houvessem sepultado a alegria.
Do quarto do Luiz sahiam de vez em quando os sons angustiosos de uns soluços. Era
D. Hortensia a chorar diante do sanctuario, de joelhos, olhos erguidos para um lindo vulto da
Madona, e o rosário esquecido entre os dedos rugosos.
Proximo, o Luiz, no seu catrezinho, parecia apagar-se como estrella em noute chuvosa.
Mal se movia. De longe em longe, abria os olhos amortecidos, quando alguém o
chamava.
D. Hortensia, á cabeceira do doentinho, chorava, desenrugava as colchas, e beijava de
continuo a cabecinha da creança.
“Pobre do meu anjinho! Pobre do meu anjinho!” –repetia constantemente. “O filhinho
de minha‟ alma!”... E avassalada pela dor, abriu o sanctuario. Genuflexa pediu á virgem das
Dores que lhe salvasse o neto; como lembrança da mercê concedida, ella deixaria crescer os
cabellos do Luiz, e, quando estes se lhe derramassem fartamente pelos hombros, ellas os
cortaria com as suas próprias mãos e os levaria ao seu altar, na Matriz da Gloria.
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Confiando na promessa, voltou ao seu posto, junto ao leitozinho do neto.
Acariciava-lhe os cabellos (que Ella já antevia crescidos) e beijava-os, dizendo:
“Ficará bom!... Ficará bom o meu filhinho!”
Olhava o menino e olhava a Virgem, num mixto de esperança e dor.
Pallida como um lírio branco a emmurehecer num jarro, D. Hortensia tinha momentos
de completo desengano. Mas não deixava de implorar. Era da caminha para o sanctuario e
vice-versa.
Um dia, afinal, desappareceu a febre, e o medico declarou que o doentinho ia
convalescer.
D. Hortensia exultou:
“Eu não dizia que o Luiz ficaria bom! E ainda vocês não querem crer em promessas!...
No meu tempo, não se procurava medico. Era adoecer uma creatura, fazia-se logo uma
promessa aos Santos, e o doente sarava. Quizera que vossês vissem a quantidade de membros
de cera que enchia a igrejinha lá da roça!
Hoje... por qualquer uma dôrzinha de cabeça chama-se logo o doutor que receita um
nunca acabar de venenos... Quando não, é uma caixinha diabolica, cheia de arames electricos,
que manda logo o doente para a cova.
- Mamãe!... –exclamou a mãe do Luiz- para que diz isto? A senhora não é ignorante
para pensar deste modo! Demais, seu neto ingeriu todos esses vene-
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nos que a senhora maldiz, e ahi... está em vesperas de restabelecer-se.
-Ora! Por que elle vae ficar bom? Por causa da promessa que eu fiz á Virgem das
Dores, e hei de pagar offerecendo-lhe a cabelleira do Luiz que vocês hão de deixar crescer.
O menino entrava em convalescença.
Os cuidados de D. Hortensia duplicavam.
Todos os dias ella lembrava ao menino que seus cabellos iam crescer para adornar a
cabeça da imagem das Dores que foi quem o curou.
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O sol num raio luminoso enteava pelas janellas.
As trepadeiras subiam floridas pelo gradil.
O canario belga do Luiz trinava, saltitando, na gaiolinha de ferro pintando.
Tudo voltara á antiga alegria.
O menino já estava a pôr a casa em reboliço.
Os cabellos começavam a descer-lhes pelos hombros, e elle aborrecia-se, quando,
montado no seu inseparável cabo de vassoura, vinham algumas madeixas bater-lhe nos olhos.
Punha-se a chorar e a pedir que a avó os cortasse. A boa senhora atava-os com uma fita, mas o
Luiz não se contentava: e, a choramigar, dizia: Eu não sou menina! A Marieta que é menina,
traz os cabellos aparados. E eu é que hei de trazer os meus crescidos! Não quero! Não
quero!”
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-São para Nossa Senhora, meu filhinho –dizia D. Hortensia, pacientemente- são para a
Virgem das Dores que poz vocêe bom, meu anjinho.
-E para que essa Nossa Senhora quer se enfeitar com os cabellos dos outros, vovô? –
dizia o Luiz quase consolado.
E os cabellos iam crescendo, derramando-se em cachos louros pelos hombros do
menino. Quando attingiram o crescimento desejado, D. Hortensia cortou-os cuidadosamente,
atou-os com uma fita azul, e depois de beijal-os muito, acondicionou-os numa caixinha de
pelúcia e foi, com o Luiz, á Matriz da Gloria cumprir a promessa.
Ajoelhou-se diante da Santa, e disse ao Luiz que recitasse a prece que ella lhe
ensinára. Ambos pozeram-se a orar.
Depois, sosinha, perante o altar, D. Hortensia agradeceu, concentrada, a saude do
netinho, que a Virgem restituira; e, com a vista descida sobre o manual, muito branca entre as
rendas pretas de sua mantilha, ficou por muito tempo genuflexa sobre as Lages do templo.
E a Virgem das Dores, na sua fixidez de estatua, parecia contemplal-a de dentro do seu
manto roxo semeado de lantejoulas douradas.
A‟ tarde, com que alegre coração a boa avósinha viu o Luiz a correr na praia de
Botafogo, mettido no seu fato novo, á marinheiro, muito contente por não ter mais a
embaraçal-o os cabellos compridos!
D. Hortensia contemplava-o risonha, e de quando em vez ia cobrir-lhe de beijos a
cabecinha e o rosto.
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Hoje que o Luiz é um homem feito, e já iniciou brilhantemente a sua carreira de nobre
marinheiro, sempre que vae á Matriz da Gloria, ajoelha-se diante da Virgem das Dores, no
mesmo lugar onde se ajoelhára no dia em que fôra fazer-lhe a offerenda dos seus cabellos.
E fitando aquellas madeixas louras que descem sob o manto roxo da Santa, aquellas
madeixas que foram suas, a alma volve-lhe á infaneira, na recordação desse trecho feliz de sua
meninice que aquelles cabellos recordam, como um sol que illuminasse o Passado.
E lamenta não ter mais a D. Hortensia, desvelada e boa, santamente boa, para fazer
promessas aos santos de sua devoção, quando elle andar mar em fora, a vida entregue aos
cascos dos navios e ás fúrias do mar.
“A lembrança mais querida e mais pungente que me deixou a idolatrada avósinha, são
aquelles cabellos da Virgem das Dores, que adoro hoje quando adoro a santa!...” –disse-me
tristemente o talentoso Guarda-Marinha, sr. Luiz de Macedo, ao terminar a narração desse
episodio de seu tempo de creança.
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A “Vapor”
(Um typo da rua)
Todos os dias passava pela minha porta uma pobre africana velha, encarquilhada e
preta como papel queimado.
Curvada, cheia de saliências osseas, o taboleiro das fructas sobre a cabeça grisalha, a
pobre africana ia encorajada para o mourejar quotidiano, sem alteração, sem metamorphose,
quer o dia fosse claro e azul, quer nevoento, chumbado e triste como o abandono.
Os garotos appellidaram-na de Vapor.
E não a deixavam passar, sem imitarem o silvo da locomotiva, sem um assovio, sem
uma vaia.
Vapó! Vapó! –gritava a meninada- Piu!... Piu!...
Atrás da pobre creatura, num alarido ensurdecedor, apitavam e gritavam, sem cassar,
pela alcunha que fazia o tormento da pobre velha.
Uma alcunha sempre dóe, por benigna que seja.
E por isso é que a pobre se exasperava, numa fúria de hyena, a ponto de esquecer-se
do taboleiro donde as fructas iam cahindo num abandono de folhas seccas.
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Furiosa, gesticulava, praguejava, numa linguagem baixa, vil mesmo. E nos ímpetos da
cólera apanhava pedras que atirava sobre os garotos.
Os meninos mal educados, porem, não compreendem o que de doloroso vae pela alma
dos apupados, por isso redobravam os apitos, a vaia.
E das janellas, dos tectos, de toda parte, surgiam como por encanto, os piu! piu! Vapô!
Vapô!
A preta rodopiava no meio da rua, louca, furiosa, sem saber para onde voltar-se e sem
poder conter aquella multidão de pequenos que a atormentavam.
Parecia mesmo que dos fios telephonicos, do beiral das casas, do próprio sol, lhe
gritavam: Vapô! Vapô!... Piu! Piu!...
Depois, não sei porque deixaram de chamar-lhe Vapor para chamar-lhe João. Essa
aleunha desagradou-lhe ainda mais do que a outra.
E hoje, quando a pobre martyr passa, mercando as pitombas e os cajás, um ou outro
apito ouve-se; mas toda a rua enche-se dos sons aflautados de João! João!
Ella transtorna-se, blasphema, pragueja, numa fúria infernal.
Mas, se no meio de toda aquella balburdia, escuta uma voz amiga que a defende, que a
acalma... quanta mudança se opera naquella careassa, onde, embora rude, existe uma alma que
sente, pensa e soffre, que sabe distinguir o bem do mal, envolta embora na brutalidade
daquella matéria grosseira, sem lapidação nem polimento algum, onde a aragem perfumosa da
civilisação
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nem de leve passou, impregnando-a desse aroma tonificante que se desprende das fores
idéaes!
Sim! Quando Ella ouve uma voz amiga, volta-se toda para Ella, numa doçura de
resignada. E calma e consolada, levanta do chão o taboleiro das fructas, atira fóra as pedras
que ia jogar sobre os seus perseguidores, e vai-se em retirada pela orla dos passeios,
arrastando a alma,amargura em fóra, pensando naquella tortura que sente agora menos cruel,
depois que ouviu essa voz que a ameigou e encorajou no meio da turba amotinada que não
cessa de gritar-lhe, à distancia: João! João!...
E quem sabe se dentro daquelle involucro repellente, não vive um espírito limpo de
torpezas e de ambições!
Quem sabe também se ao reecolher-se dessa tarefa ingrata de mercadora ambulante,
não a esperam os braços carinhosos de uma filha para quem ella é o abrigo, o arrimo, a
esperança toda? Ou o olhar enevoado de um pretinho velho, seu pae ou seu esposo, sem
forças para trabalhar, na genha frigidissima do inverno da vida, para quem ella é o consolo, o
pão de cada dia, a alma de su‟ alma, e por quem soffre ella todos aquelles oppobrios que na
rua lhe atira a meninada! Quem sabe?
Há sempre uma parte da humanidade que infelismente espelha nessas cousas.
___________
A alcunha sempre deprime, por mais inoffensiva que pareça.
39
Piedade Vegetal
De há muito era meu conhecido aquelle perfil bonito de Pau d‟ arco.
O formoso representante da flora brasileira, era o adorno do campinal verde gaio, onde
ás tardes eu ia apreciar o occaso e aquell estrada longa, muito longa e estreitinha que cortava a
grama, em ondulações de serpente, traçando sinuosas imperfeitas, no terreno muito egual, sem
um declive.
Eu via o todo dezembro, coberto de flores cor de ouro novo que, vistas de longe,
semelhavam uma nuvem de canarios belgas, pousados ali.
Quasi que posso dizer que tinha affeição ao bello vegetal. Entretanto, os camponezes
passavam indifferentes pelo formoso Pau d‟ arco!
Teriam razão os camponezes? Devemos occupar-nos somente com o que é
absolutamente positivo?
Lembro-me de um facto extraordinário que li, algures por occasião da morte de MalinTisou.
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Esse bello principe oriental possuía 30 cofres, onde a opulência brilhava em ouro,
prata, marfim, e todo o gênero de pedras preciosas.
Nesses trinta artisticos escrinios, a Arte salientava-se, com admirável perfeição em
arabescos e allegorias traçadas pelos mais celebres artistas.
Ali estavam representados, nesses cofres de ouro, de jaspe, de malachite, as mais
lindas flores, os passaros mais raros e esquisitos, as paizagens mais poeticas. Nessas
paisagens, fingiam lagos os diamantes; estrellas, os topasios; folhagem as esmeraldas; flores,
os coraes e as pedras preciosas de cores mil.
Num cofre de marfim com encrustações de nácar, viam-se em relevo uma flor estranha
de pétalas de beryllo e um cacho de uvas de custosas amethystas.
No flanco de um cofre de prata fosca, scismava numa saphira um Bhuda de olhos
somnolentos, ao lado duma cegonha de opalas.
No chão de onix está sentado um mandarim, erguendo alto duas caçoulas de granada.
Havia um cofre todo de jaspe com estrellas de topasios.
E assim, todos eram riquissimos os 30 cofres de Malin-Tisou.
Um dia, o príncipe oriental previu que a Morte zombava da sua esplendente mocidade.
Mandou sellar os 30 cofres e pôl-os diante do seu leito. Na hora extrema, apontava-os,
dizendo: -Eis tudo o que amei...
41
Depois dos funeraes de Malin-Tison, foram abertos os cofres, e... nada continham!
Vasios, completamente vasios.
O poeta se parece com esse príncipe oriental –pensava eu, diante do formoso Pau d‟
arco e da indifferença dos camponios. Mas... é tão formosa a illusão!
(Deixa-nos um pouco de phantasia, oh! Destino! Porque a illusão é o pó de ouro sobre
as maguas dos desventurados.)
E continuei a admirar o lindo Pau d‟ arco que, nos últimos dias do anno, se vestia de
ouro como um rei opulentissimo, despindo a folhagem toda para vestir-se de flores, somente
de flores.
Uma tarde, encontrei-o ferido no tronco, uma longa ferida–profundo golpe de
machado que deixara a descoberto grande parte do lenho.
Olhei com magua aquella malvadez, pois nada havia que justificasse a necessiadde de
derrubar a formosa sentinella da campina.
Olhei-o bem; parecia-me um desses mendigos jovens, de apparencia sympathica,
tendo, no entanto, a perna carcomida por terrivel chaga. Assim, o lindo Pau d‟ arco.
Balouçava-se florido ás auras passageiras, como se a morte não lhe tivesse começado no
tronco a sua obra destruidora.
Pobre amigo! Ia morrer em breve!
Fui vel-o no dia seguinte. Jazia no chão, tronco decepado, e uma porção de suas flores
esparsas ao pé delle, na campina verde, como estrellas no ceo azul.
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O vento atirava para longe grande numero de flores e de pétalas de ouro que
matizavam todo o campo. E elle, como um verdadeiro doente, um moribundo, lá estava
encolhidinho, murchando, fonecendo, acabando-se.
Retirei-me nessa tarde levando n‟ alma tamanha tristeza, como se voltasse de assistir
aos funeraes de uma pessoa amiga.
Não voltei mais ao campinal onde ficára a extinguir-se o pobre vegetal, e onde tantas
vezes meu espírito encontrou repouso.
Agora, no começo da primavera, fui á cidade sertaneja e tive vontade de ver a bella
campina onde vivera o formoso Pau d‟ arco. Então, apresentou-se-me ensejo de apreciar nas
plantas uma qualidade que eu não conhecia, e da qual não me falou ainda nem um
naturalista:-a piedade.
Conhecia plantas piscivoras que são o terror dos pequeninos habitantes lacustres;
plantas carnívoras que aprisionam insectos nos seus terríveis ascidios e os digerem com o
auxilio de um poderoso succo gastrico; parasitas que vivem de outras plantas; a mimosa
pudica, dotada de tanta sensibilidade, que estremece e une-os fotiotos, apenas o sol é
envolvido um instante por uma nuvem.
Têm-nos ensinado os naturalistas que as plantas se alimentam, digerem, dormem,
respiram e amam; têm nervos, sentem e possuem qualidades affectivas, como a Sensitiva e a
Valisneria, a famosa flor do noivado. Tu-
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do isso nos dizem os naturalistas: mas um só não me falou ainda de plantas piedosas.
Deu-me occasião para conhecel-as, a morte do Pau d‟ arco.
Ao chegar ao local do meu paseio predilecto, em outros dias, vi o tronco decepado do
Pau d‟ arco, sem o mínimo signal de seiva, mas vestido de ramagens delicadas de primaveras
brancas; e o resto do vegetal, o perfil do antigo Pau d‟ arco, coberto de gitiranas azues,
entrelaçadas de modo que o vestiam todo.
O finado Pau d‟ arco repousava, assim, num tumulo verde, originalissimo.
De longe, aquelle montículo parecia mesmo uma tumba engrinaldada de flores.
A estrada argilosa e estreita desenha-se como outr‟ora, avermelhada e sinuosa,
cortando o gramado; os camponezes passam, como d‟ antes, indifferentes, ao sol-pôr; e a
campina verde, extensa, que chega a doer a vista, parecia-me vasta necropole encerrando
apenas um morto.
E no terreno muito egual, sem um declive, nota-se logo o monticulo coberto de
trepadeiras em flor, que é a sepultura do Pau d‟ arco.
Nunca um mausoléo tão mimoso poderão ter os mortaes.
E quem for á cidade sertaneja, onde viveu o meu amigo, procure ver o tumulo verde
do Pau d‟ arco, que a piedade vegetal construiu.
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A água
A água é um dos formosos elementos da Natureza.
Indispensavel á vida dos seres, ella aformoseia grande parte do nosso planeta, dando
fórma aos continentes, penetrando aqui e acolá, em graciosos recortes.
Apreciemol-a.
Sabeis que a fonte é a água que brota da terra, como que espontaneamente, numa aneia
de apparecer.
A fonte é algumas vezes um tenue fio d‟ água que resvala de manso pela encosta de
um monte ou de um outeiro. A maior parte dos rios tem a sua origem nesses riosinhos d‟ água
que parecem não ter importancia.
A água das fontes é quasi sempre potavel, isto é, agradável ao paladar, própria para
beber-se.
Eu disse quasi sempre, minhas charas amiguinhas, porque ha também fontes cujas
aguas são desagradáveis ao paladar, porém uteis á saude, porque se acham misturadas com
metaes e vários saes.
Estas fontes denominam-se fontes de agua mineraes.
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Não desconheceis, por certo, as águas das fontes de Caxambu, Lambary, etc.
Além destas, fomos as fontes de água quente, denominadas fontes thermaes, como as
de Poços de Caldas, no estado de Minas.
E temos ainda os geysers, fontes de água em ebulição verdadeiros vulcões de água
fervendo –que brotam do solo, impefuosamente, com grande ruído, formando colunnas que
attingem ás vezes 30 metros de altura.
Enquanto essas fontes terríveis nos ameaçam com seu ímpeto ostrepituoso, os
ribeirinhos nos deliciam a vista, correndo mansamente entre várzeas matizadas de florinhas
que desatam a corolla na grama verde.
A água fortilisa os campos e alimente um mundo de seres aquáticos, peixes, polypos,
monstros marinhos, infusorios... Submettida á acçãp dos raios solares. A água fôrma as
nuvens que o vento arrastas pelas regiões atmosphericas: a chuva que tamborila nas nossas
vidraças quando, pelo effeito do resfriamento as nuvens se desfazem...
Os mares, os grandes e os pequenos rios, o orvalho, as nevoas, a neblina, a Saraiva e
todos esses phenomenos que tem a denominação de metriros aquosas, não são outra cousa
senão a água nos seus muitiplos aspectos, minhas jovens amiguinhas.
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O fio de lã
(Idéa alheia)
D. Herminia morava num pittoresco arrabaldes e tinha três filhos semi-internos num
collegio da Capital.
Na época das férias, D. Herminia ordenou que as meninas fisessem trabalhos de
agulha para mimosearem ao pae, no dia do Natal.
Ella quisera assim entreter as meninas em alguma cousa útil e conhecer-lhes o
aproveitamento nesse gosero de trabalho.
A escolha de Zulmira recaiu sobre um almofadão bordada á fita e a seda de Argel;
Marinita escolheu um centro de mesa cervado de bainhas; e Alayde, um abafador bordado
sobre um tecido de crochê feito de lã branca.
Os trabalhos de Zulmira e de Marinita iam-se adiantando e estavam sendo
caprichosamente executados. O de Alayde, oh!... O crochê mais parecia uma tarrafa de pescar
a lã... tão suja! Que não parecia branca; enfim como Alayde nada fizera que se pudesse ver.
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Quando D. Hermínia a mandava costurar, Alayde illudia-a e ia para o jardim brincar
com o irmãozinho mais novo e o gato.
A cesta de costura ficava esquecida no parapeito da janella da sala de jantar.
Um dia, o gato fez-se de dono da cesta e começou a brincar com o novello de lã.
Desenrolava-o, entrelaçando-o nas pernas e ao redor do pescoço e da cabeça.
Quando Alayde viu a cesta nesse estado de desordem –a agulha para um lado, o
debuxo espedaçado e o gato coberto de lã- pôz-se a choramigar e a queixar-se do Minet que,
indefferente, pulava embiocado dentro da lã que lhe cobria a cabeça, em frócos, e lhe
embaraçava as pernas.
Estava tão coberto de lã, que parecia um gatinho artificial.
Alayde, enravecida, partiu a lã com os dedos para separar a costura que se ia
desmanchando ás viravoltas do Minet.
Ao partir a lã, a menina ouviu como que um gemido a sair do fio. Escutou
assombrada.
Passado um instante, disse para si: -“Dar-se-á o caso de ter sido a lã que gemeu?!”
-Fui eu, sim, senhora, -respondeu a lã. A menina, além de não querer aprender a fazer
uso do meu delicado fio nem saber dar-me o devido valor, maltrata-me ainda!
-Que diabo és tu? Estás endiabrada ou sois feiticeira? –gritou Alayde.
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-A senhora, -resopndeu a lã- alem de não ser muito cuidadosa, é descortez: Trata-me
por tu, quando eu a chamo senhora, e pronuncia palavras que não ficam bem nos lábios de
uma menina. Demais, parece não conhecer as regras da Grammatica. Veja que construcção
grammatical: tu e vós na mesma phrase!
-Ah! Pelo que vejo, quer que a considere como sabia! Pois, D. Sabia, já que tão bem
sabe fallar, vá-me dizendo quem a autorisou a reprehender-me. A sra. É que uma lã muito
audaciosa. Não admitto que me dê lições.
-Eu é que não devia admittir que a menina me emporcalhasse desse modo, tornandome feia e nojenta. Eu que sahi da fabrica tão alva!... Tendo vergonha de apresentar-me no dia
em que suas irmãs forem entregar promptas as tarefas.
Bem vejo como o almofadão da Zulmirinha está ficando um trabalho bem acabado, e o
centro de mesa da Marinita está bem feito e limpo. Somente eu estou assim suja e maltratada,
cheia de nós... E há lugares ahi no crochet que, parece, me enfregaram no fundo de alguma
cassaróla.
Quanto zombarão de mim quando me virem assim defeituosa e suja!... Eu que sahi da
fabrica, tão bella e tão alva, que podia comparar-me á neve dos Alpes!
-Ah!... e a sra. Conhece os Alpes?! E sabe o que é fabrica?! Já viajou?
-Santo Deus! Como a menina está atrazada!
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E para provar-lhe que não estou falando á toa, ouça-me:
Os Alpes são uma linda cordilheira que separa a Suissa, da França, da Allemanha, da
Áustria e da Itália.
E‟ na cordilheira alpina que se encontram os montes mais altos da Europa: o Branco e
o Rosa.
E‟ nos desfiladeiros dos Alpes que brota aquella flor de neve –Edelweiss- a que se
referia hontem aquella senhora vinda, ha pouco, da Europa.
E‟ também nos Alpes que existe a pia instituição dos monges de S. Bernardo que, com
o auxilio dos seus amestrados cães da Terra Nova, salvam os viajantes perdidos na neve.
O fundador desses famosos mosteiros foi São Bernardo de Menthon. Um, foi edificado
no Grande S. Bernardo, e o outro no Pequeno S. Bernardo, ambos formosas ramificações dos
Alpes.
-V. Exe. Sabe muita cousa, sra. D. Lã! Queira desculpar-me o não tel-a tratado
gentilmente. E‟ que eu nunca havia pensado que um fio de lã podesse falar.
-Mas o que a menina devia ter pensado, é que se deve ter presente, a todo momento, o
dever de urbanidade. Devemos tratar com delicadeza seja quem for.
-V. Exa. É bem instruída, sra. D. Lã!
-Não sou uma sabia, como disse ironicamente a menina, mas posso ensinar-lhe muitas
cousas. Basta dizer-lhe quem sou, para a sra. adquirir muitos conhecimentos úteis. Preste-me
attenção:
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-Eu sou hespanhola.
-Hespanhola?!...
-Sim, sra., sou filha da Hespanha, nasci nessa linda parte da Europa, na pelle de um
bonito carneiro merino que era um dos mais bellos typos dessa preciosa raça.
Felizmente sou muito útil á humanidade. Não é somente como fio para bordados que
eu presto serviços.
No inverno, a menina repare como todos me procuram, porque eu sou um optimo
transmissor do calor: aqueço com facilidade.
Eu sou as colehas de inverno, as meias, os chalés, a casimira, a flanella e tantos outros
tecidos de freqüente uso na estação do frio.
E, para chegar a ser tudo isso, passei por diversos soffrimentos a que os entendidos
dão o nome de “processo”. Passei por diversos processos, na expressão delles.
O primeiro processo por que passei, foi a tosquia. Duas tosquiadeiras mecânicas, de
dentes afiados, cortaram-me da pella do carneiro.
Deram-me ainda um banho de água e sabão, e por ultimo levaram-me a uns cylindros
quentes que me secaram e alisaram.
Terminada essa operação tornei-me o fio branco que a menina, há tantos dias! Suja e
maltrata.
Depois de todos esses soffrimentos por que passei, não julgava que ainda me restasse a
tortura de ver-me encaracolada na cabeça e nas pernas de um gato!
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-Ah! D. lã!... Basta. Não continue. Estou envergonhada do meu desleixo e do mau
tratamento que lhe dei! Sou uma desastrada. Prometto-lhe, porem, que de hoje em diante serei
activa e cuidadosa; e farei um trabalho que honrará a V. Exca. Verá.
Com effeito, Alayde cumpriu a promessa.
Na véspera do Natal apresentou seu lindo abafador branco, bem acabado, salientandose ao lado do almofadão e do centro de mesa de suas irmãs.
O pae disse, contente, olhando as boas-festas que lhe deram as filhas: “Realça, entres
todos, o trabalho da minha Alaydesinha.”
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Minha casa
A minha casa é pobre, mas tão linda!
Pela manhã, diversos passarinhos
ledos vêm cantar,
dentro do meu jardim, nos canteirinhos,
e dentro do pomar.
Vejo palácios de belleza immensa,
cuja deslumbrante architectura
a mente abrasa...
comtudo os não prefiro á sã ventura
que sinto quando estou na minha casa.
A‟ tarde, quando o pae vem do trabalho,
-da luta nobre que nos dá o pão,
quotidianamente,mamãe o abraça, e eu beijo-lhe a mão...
Como é feliz a gente!
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A‟ mesa do jantar, todos reunidos...
A louça limpa, os vidros crystallinos,
a comida cheirosa...
A Ventura nos vendo assim unidos,
atira sobre nós petalas de rosa.
E, quando um dia a contigencia humana
obrigar-me essa casa que amo tanto,
a abandonar,
será com a alma toda immersa em pranto
que deixarei o meu querido lar!
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O Vigario
Os filhos do illustre commerciante Teixeira Neto, reunidos na sala de jantar, faziam a
escolha de phantasias para o próximo carnaval.
O Juca dizia enfatuado: quero phantasiar-me de General. E, se alguém perguntar:
“quem é você?” Responderei muito altivamente: “Sou um grande representante do exercito
brasileiro.”
O Edgar: “Eu... não sei mesmo que escolher! Tenho tanta cousa na cachóla....”
E o Paulo interrompeu com emphase:”Pois, meus irmãos, eu já escolhi há muitos dias
a minha phantasia; vocês não adivinham qual seja.”
E ninguem adivinhou mesmo o que Paulo tinha em idéa.
O menino, satisfeito, declarou: “Eu vou phantasiar-me de vigário –o Padre José.”
Os irmãos riram-se muito da lembrança do Paulinho.
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Pois não duvidem –continuou elle –vou representar o Padre José, com todos os ff e rr.
Cada um modificava sua opinião todos os dias; o Paulo, entretanto, não mudava.
Foi a casa da Madrinha que era louca por elle, expoz o seu desejo que os Paes não
estavam dispostos a satisfazer, e a madrinha prometteu-lhe a phantasia do cônego.
O Paulo sonhava com afigura que havia de fazer, quando sahisse –a rua. Estudava os
gestos do vigário, o andar pausado, a maneira de collocar os óculos, de tomar o rapé, de levar
ao nariz o lenço de seda japoneza, etc.
Na vespera do carnaval, foi logo para a casa da madrinha; não queria que os irmãos o
vissem senão depois de padre.
Os outros pequenos zombavam delle pela escolha que fizera; mas estava o Paulinho
tão satisfeito, que não se alterava.
A‟ tarde do domingo, logo após o jantar, o Paulo vestiu a batina de setim preto
debruada de arminho branco, que lhe descia até os pés. Collocou um pouco para a frente o
chapéo de pello, com a linda borla de seda cahindo para os hombros. Poz os óculos sobre a
caricatura de carmim, e, com o lenço japonez na mão e a caixa de prata para o rapé, saiu
satisfeito, com o creado da madrinha.
Mal pozera os pés na rua, os meninos visinhos gritaram: “Lá vem um padre pequeno!
Um padre meudinho! Venha ver!”
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E, quando o padre se approximava, os meninos rindo: “Ah! que é o Paulo! Mas, como
está velho o Paulinho!... Já tomando rapé?!...”
E o Paulo, fazendo-se indifferente: -“Não sou Paulo: sou o vigário da freguezia, o
padre José.”
A gargalhada explodiu.
Os meninos continuavam:
“Paulo, é você mesmo? Como está velho!
Ora, o Paulo que hontem era uma creança que brincava comnosco na Praça, correndo
em seu bello velocípede!...
Essas e outras pilherias iam desnorteando o Paulo, de modo que já se lhe viam as
lagrimas por detrás dos oculos brancos.
Ao chegar a casa dos Paes, o menino soluçava, envergonhado.
Os irmãos e os collegas phantasiados com elegancia, representando caçadores da
edade media, príncipes, etc., ficaram espantados ao ver a figura do Paulinho, disfarçado em
vigário, e a chorar por detrás dos óculos que lhe escorregavam pelo nariz.
Os irmãos do padre e os meninos da visinhança formaram um grupo alegre e sahiram
risonhos a tomar parte nos festejos do carnaval.
E o Paulo, em soluços, atirou para um canto a batina de setim preto debruada de
arminho branco...
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Flores e saudades
No morno silencio dessa manhã de domingo, eu vi passar para o cemitério, um grupo
de creanças vestidas de luto e acompanhadas por dois moços que vestiam tambem de preto.
As meninas, interessantes na singeleza de seus vestidinhos negros, levavam, umas,
ramalhetes de flores diversas; outras, apenas orchideas roxas, bellissimas, que ainda mais
bellas pareciam nas mãos innocentes daquellas creanças.
Uma visita matinal ao campo-santo!... Que poetica lembrança!
Fiquei a contemplar o grupo por algum tempo, sentido emoções que tinha algo da
tristeza que inspirava a cor maguada das orchideas.
As creanças iam conversando com tanta sisudez, que pareciam tratar de assumpto
muito grave.
Os meninos diziam qualquer cousa e apontavam para o céo; as meninas conversavam
olhando as flores que levavam. Os dois moços, tristonhos, acompanha-
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vam o grupo na sua piedosa tarefa de levar ao tumulo querido aquella homenagem floral.
Quanta poesia nesse conjuncto de flores, de creanças e de tristezas!
Essa romaria matinal ao campo-santo, a visitar a morte á hora em que nasce o dia, a
contrastar o que termina com o que começa, despertou-me impressões affectivas que
dormitavam; e maguas complacentes começaram a suspirar dentro em minh‟alma, e toda ella
–a minh‟alma- foi em companhia do saudoso grupo, e com elle penetrou a Necropole, ficando
eu á janelia, como se fosse uma estatua que olha o caminho...
Entraram pelo grande portão de ferro; lá se foram pelas ruas dos túmulos, as creanças,
as flores e a minha‟alma.
A Necropole, a essa hora, parece uma grande tristeza vestida de luz matinal.
A manhã tinha aromas e encantos que pareciam querer resuscitar naquelles túmulos o
affecto que os mortos levaram no coração, para abraçar a saudade que os vivos tinham n‟alma
e nos olhos.
As creanças e os dois moços, ajoelharam-se diante de um mausoléo; as meninas
depozeram ali os ramalhetes e as orchideas roxas, como as suas saudades. O tumulo, assim
ataviado, pareceu á minha‟alma um escrínio de velludo onde se tivesse guandado um affecto,
e não o receptáculo de despojos humanos.
Tristes dos que morrem sem deixar na terra quem lhes leve uma flor!
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(Quando eu também dormir ali, não quero lagrimas, porque não as mereço; mas peço a
caridade de uma flor, porque eu amo as flores da cor das violetas roxas, das roxas orchideas).
Terei na lembrança, por muito tempo, esse formoso domingo de março, em que, ao
despertar, minh‟alma recebeu tão enternecedora emoção!
Quanta poesia nessa melancolia romaria da saudade!
Como o affecto consóla, mesmo quando nos não pertence!
Bemdita manhã! e bemditas creanças que eu vi a levar flores para um tumulo querido!
Que os sentimentos affectivos nunca vos abandonem os corações, no futuro, creanças
que eu não tenho a dita de conhecer.
Amae sempre os vossos mortos.
Dae-lhes flores, como symbolo do affecto que já não pode ser retribuido e por isso
mais valioso.
Bemdita manhã! Bemditos romeiros da Saudade!
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Presente de anniversario
PERSONAGENS:
Dr. Gentil e d. Nininha –Paes das creanças.
Innah –a filha mais velha (14 annos).
Lucy, Renato e Genaro –irmãos de Innah.
Diva –a creadinha (10 annos de idade).
Irene –amiguinha de Innah (13 annos).
ACTO I
A seena representa uma sala commum
SCENA 1.ª
(Innah, sosinha, passeia ao redor da sala)
INNAH – Como estou hoje atarefada!
Mamãe doente, desde hontem, e eu que sou a mais velhita, é que tenho de substituil-a
e de me haver com os pequenos.
Irra! que trabalheira! Mas... (ólha para os vestidos e os sapatos) é preciso pôr um
vestido comprido para impor respeito á creançada. Uma dona de casa
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com o vestido pelos joelhos!...Não! mudemos a toilette. (Sae).
DIVA – (Entra com o espanador na mão, revista toda a sala, com o olhar, tendo uma
das mãosinhas dentro do bolso do avental.) Não me lembro das ordens que me deu a menina
Innah! Esta cabecinha (toca ligeiramente na cabeça) está tão cheia de ordens!... (Começa a
espanar os moveis vagarosamente até que Innah entre.)
INNAH –(Entra com o vestido comprido, chega ao espelho, mira-se e diz muito cheia
de si): Agora, sim! Estou uma verdadeira senhora: E‟ preciso ser uma senhora em tudo.
(Dirige-se a Diva): Olha, pequena, vae ver se mamã necessita de alguma cousa, sim? (Diva
sae)
INNAH –(Olha para um montão de roupas dobradas): Cá está a roupa que trouxe a
lavadeira. Já conferi o rol. Agora temos de serzir as meias... substituir os botões
arrebentados...
(Senta-se e começa a concordar as meias)
DIVA-(entrando assustada): Minha senhora! Minha senhora! O arroz está a queimar,
e o Sultão desprendeu-se da corrente e anda a ladrar a todos que passam.
INNAH- (deixando a costura): Meu Deus! Meu Deus! (Sae).
...Lucy e Genaro, voltam do collegio, com as pastas a tiracollo. Entram
precipitadamente, Lucy derruba toda a roupa e a caixa de costura, ficando tesoura, linha,
dedal, tudo espalhado pelo chão, e vão passando para o interior da casa.
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GENARO- (Pára e exclama com emphase): Bonito! Bonito! Esses manos são muito
ajuizados! E me enchem de beliscões, dizendo que eu não me porto como um homem. Sim,
senhor! (Curva-se muito ao dizer as ultimas palavras).
GENARO- (Sosinho, tira da pasta uma cabelleira branca e mostra ao publico,
dizendo): Amanhã é o carnaval, e vou fazer uma surpreza aos manos. (Sae, pulando).
INNAH- (Volta e ólha com espanto a roupa espalhada pelo chão): Endiabrados
pequenos! Tanto que recommendei entrassem muito socegados para não encommodar
mamãe! Pobre mamãe! Agora é que vae melhorando, coitada!
(Apanha a roupa, arranja tudo e póe-se a costurar. De repente olha o tecto,
pensativa): Mamã sempre diz: -“Quem canta seus males espanta”. Vamos, portanto cantar.
(Continúa a costurar, cantando despreoccupada):
Eu sou a flor do arrebol,
a mais formosa do galho.
Nasci dum raio de sol
E duma gotta de orvalho.
Se a brisa passa ligeira,
ao meu ouvido, me diz:
dás-me aroma, feiticeira,
mas não me dás o matiz.
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(Interrompe a canção): Como o trabalho é mais leve, quando se trabalha cantando!
(Continúa)
Eu sou a flor do arrebol
e escondo do alvo luar
as minhas pet‟las de sol...
Ouve-se do lado de fora alguém dizer: “Dá lincença?”
INNAH- (levantando-se, atrapalha-se no vestido comprido, e faz cair a cesta de
costura): Quem será meu Deus?!
GENARO- (entrando phantasiado de velho): Oh! Minha sra. que linda voz tem V.
Exc.ª! (Estende a mão para cumprimentar Innah e esta, receiosa, parece recusal-a).
GENARO- Não me quer apertar a mão porque sou velho? Não sabe V. Exc.ª que o
inverno tambem se enfeita de flores? Eu cá por ser velho não me julgo rapé mofado. Não!
não! Gósto muito de meninas bonitas.
(Acompanha essas palavras, apertando os olhos por trás dos óculos e passando o
lenço pelo nariz).
INNAH- (Reconhece Genaro e meio risonha): Ah!... conheço estes olhos! Já os vi
numa pessoa... Queira sentar-se, illustre sr. V. Exc.ª que titulo carrega?
GENARO- (Rindo) Ah! Ah! (Passeia pela sala) Eu carrego um titulo muito pesado!
Sou o ex-ministro do futuro presidente da Republica da China.
INNAH- Bem me estava parecendo... Olhe, sr. Ministro, uma formiga subindo pelo
seu nariz.
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GENARO- (indifferente) E‟ assim, quando lidamos com as flores: estamos sujeitos ás
decepções desses animaculos, V. Exc.ª permite que lhe offereça uma flor?
(Tira da lapella uma grande flor e dirigindo-se a Innah): Queira acceitar o seu retrato,
minha flor. (Aperta a mão de Innah, despedindo-se)
DIVA- (Por traz da porta, deixa apparecer o busto, e diz alto): Jesus! Que velho mais
feio!...
SCENA 2.ª
(Diva entra vestida modestamente, mas com um aventalzinho novo e um espanador na
mão)
DIVA- E‟ bem triste a vida dos servos! Ora, se eu não fosse uma pobre creadinha,
estaria hoje na minha cadeira a brincar com as bonecas. Eu gosto immenso de bonecas! Mas...
não tenho rasão de queixar-me. Meus patrões são os melhores deste mundo, e as meninas me
querem tanto...
(Innah chega á porta da sala, com um ramo de flores na mão. Ao ouvir as palavras de
Diva, detem-se um pouco, depois entra).
INNAH- Vamos arranjar a sala que hoje é o dia do meu anniversario. (Depõe as flores
numa cadeira).
Não há festa porque mamã ainda não está de toda restabelecida; é apenas um
jantarzinho em familia.
Olha, Diva, (põe-le a mão no hombro) sabes de uma cousa? Papae disse que tu irás
para um collegio, assim que elle possa. E‟s muito hábil, e elle quer te dar alguma educação,
em recompensa dos teus bons serviços
65
e da tua bondade. Mas, olha, caluda!... Deixemos de conversa, temos tanto que fazer! Fica
arranjando os moveis, que eu vou buscar um jarro para collocar as flores. (Sae).
(Diva, sosinha, começa a pular de contente.)
DIVA- Ah! como hei de ser feliz! Vou aprender a ler e a fazer bordados. E‟ tão bom
ser instruído! Quando eu souber ler... hão de chamar-me D. Diva (Cantarolando: ta ra lá lá...
ta ra lá lá... ta ra lá lá...) E essas pretenciosas que apparecem aqui muito cheias de si já não
me olharão com desdem. (Cantarola: ta ra lá lá... ta ra lá lá...)
INNAH- (entra com o jarro e colloca as flores). Ouve-se uma voz do lado de fora:
Correio!...
INNAH- Vae, Diva... E‟ o carteiro.
(Diva sae, e Innah fica arranjando as flores. Depois volta com uns postaes na mão e
os entrega a Innah)
INNAH- (Olha ligeiramente os postaes, sem os ler; beija-os e entrega –os a Diva): Toma, vae leval-os á mamãe.
ACTO II
(A scena representa uma mesa de jantar bem arranjadinha, a mesa forrada, e Diva
pondo em ordem os pratos. Um pouco afastada da mesa acha-se uma cadeira de braços)
SCENA 1.ª
Dr. GENTIL- (Entra, tira do bolso uma caixa de velludo com um collar, tira-o, olha-o
sorridente, põe-o
66
novamente no bolso e diz para Diva): Olha, Diva, vae dizer a Nininha que venha com as
creanças.
(Diva sae e Gentil senta-se á mesa. Depois entram as creanças, e por ultimo D.
Nininha, apoiada no braço de Innah, com o semblante abatido, e a cabeça envolta numa
echarpe de seda que lhe desce pelos hombros. O marido levanta-se e vae ajudal-a a sentar-se
na cadeira de braços. As creanças, de pé, esparam que os Paes tomem seus lugares á mesa.
D. Nininha e o Dr. Gentil sentam-se, as creanças imitam-n’os).
IRENE- (Entrando com um pacotesinho na mão): Que bella occasião!
INNAH- (Corre a abraçar a amiga): Sejas bem vinda, amiguinha. Não avalias o
prazer que me dás! (Beijam-se).
IRENE- (Entregando o pacote): Não é um presente, minha querida, é apenas uma
lembrança do dia de hoje.
INNAH- Tudo o que me vem da tua affeição, tem, para mim, grande valor.
DIVA- (entra com o semblante contristado e dirige-se a Gentil): Doutor, ahi está uma
senhora doente, maltrapilha, com uma creancinha bonita!... bonita!... Ella pede uma consulta.
Dr. GENTIL- Diz-lhe que vou immediatamente. (Diva sae).
(Gentil levanta-se, entrega o collar a Innah): Minha filha, esse collar é uma lembrança
de teu pae, pelo teu anniversario. Vou ver a cliente. E‟ preciso attender aos pobres, mas
depressa, coitados! (Sae).
67
GENARO- (dirigindo-se aos irmãos): Vamos ver a pequena? (Levantam-se os
meninos e sae).
SCENA 2.ª
A mesma sala de jantar, sem ornato
Nininha já restabelecida costura. Lucy, Renato e Genaro jogam dominó na mesa de
jantar. Lucy destrae-se e erra o jogo; os irmãos zangam-se. Lucy levanta-se e vae para junto
de Nininha.
Lucy- Desde hontem, mamãe, estou a pensar naquella creancinha da cliente de papae.
E‟ tão formosa! Tem os olhos tão bonitos, que parecem duas estrellinhas!
Papae disse que a mãesinha della não se pode curar!... Se me permittisses, eu lhe
offereceria um dos meus vestidinhos para a creança. Sympathisei tanto com a pequena!...
(Genaro e Renato jogam mais um instante, depois retiram-se).
NININHA- Minha filha, muito folgo de conhecer os teus sentimentos de piedade; mas,
quando quizeres praticar um acto de caridade, não sigas, sem reflectir, os impulsos do teu
coração. Procura saber se esta mulher é realmente pobre, se merece a tua esmola. Muitas
vezes a maldade veste-se com os andrajos da pobresa.
LUCY- Mas a creancinha, mamãe, não pode ter maldade. E‟ um anjinho que parece
descido do ceo ha poucas horas.
(Dr. Gentil entra satisfeito, depõe o chapeo e a bengala, senta-se junto do grupo e
dirige-se a Nininha):
68
Deus lembrou-se de nós, Nininha. O meu ordenado teve hoje um augmento de 100$, e
tenho uma promessa que, a realisar-se, serão 500$ mais que, mensalmente, entrarão em casa.
Se assim acontecer, trataremos logo da educação da pequena Diva.
NININHA- Oh! meu querido! Quanto me animam estas palavras! Fazer bem a quem o
necessita, é a maior alegria que sinto nesta vida. E a menina Diva, alem de merecer essa
attenção, é bem intelligente!...
GENTIL- Vou tratar dos negocios, minha querida, vim apenas trazer-te a boa noticia.
(Pega do chapeo e da bengala, beija a esposa e sae).
ACTO III
A sala de visitas como no 1.º acto
SCENA
Innah e Irene, sentadas, conversam com intimidade, Irene folheia distrahidamente um
album.
INNAH- Minha querida Irene, mamãe completa annos, daqui a cinco dias, e eu não sei
que presente lhe faça. Ah!... visite o lindo collar que papae me deu?
IRENE- Não o vi bem...
INNAH- Vou buscal-o. (Sae).
LUCY- (entrando por outra porta): Que é da Maninha?
IRENE- Volta já, Lucy. (Lucy sae).
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INNAH- (Entra com a caixinha, tira o collar mostra-o a Irena): Não gosto de joias
ricas. Quando penso que com o dinheiro dessas joias se podia matar a fome a tantas
creaturas... Gosto mais de uma flor. As flores, alem de formosas, têm a vantagem de se poder
mudar á vontade. Cada dia podemos usar uma flor differente.
IRENE- Como és boa, Innah!... E que bello exemplo me deste! Effectivamente, as
flores devem ser as joias das moças pobres.
INNAH- De que serve ao pobre o esforço que faz para comprar uma joia que, muitas
vezes, em caso de necessidade, não encontra o preço de seu valor?
LUCY- (entrando) Olha, Maninha, pedi á mamãe que nos deixasse visitar aquella
meninasinha pobre, da cliente de papae; vamos?
INNAH- Oh! que bella Idéa!... Encontrei o presente que hei de dar á mamãe, no dia do
seu natalício.
LUCY- Qual, Maninha?
INNAH- Não comprehendeste? Será essa formosa e misera creancinha... Papae está
ganhando 500$ mais, pode muito bem accrescentar á família essa filhinha. Caluda, Lucy! Não
se diz nada á mamãe.
LUCY- Muito bem! Muito bem! (Abraçam-se) Lucy retira-se, Innah senta-se ao pé de
Irene.
INNAH- Que achas, amiguinha? não é boa a minha idéa?
IRENE- Magnífica! Mas... que farás para pôl-a em pratica?
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INNAH- Não é tão difficil...
LUCY- (entrando assustada): Maninha! Maninha! Morreu a cliente de papae, a mãe
da nossa menina.
INNAH- (Levantando os olhos ao ceo): Meu Deus! como dispões as cousas?...
IRENE- Conta commigo, amiguinha. Desejo tambem auxiliar-te.
INNAH- Não imaginas o prazer que sinto quando posso ser útil a alguem. Não ha
alegria que se compare a de enxugar as lagrimas alheias.
IRENE- Tu me ensinas a ser caridosa de um modo que faz lembrar Jesus nas suas
parabolas.
INNAH- Cuidemos da nossa empreza. Mamãe terá o seu presente de anniversario.
ACTO IV
A scena representa uma sala de visitas artisticamente mobiliada, demonstrando a
differença que a fortuna exerceu na casa do Dr. Gentil.
SCENA 1.ª
DIVA- (volta do collegio, com a pasta a tira-collo e a sombrinha na mão): Como está
mudada esta sala! (Olha para todos os lados). Tudo novinho em folha!
Ah! o dinheiro tem o poder de embellezar tudo, mas... quando vae cair em boas mãos.
(Assim disse, hoje a professora, explicando o valor do dinheiro).
Como está mudada esta sala!... (Senta-se em diversas cadeiras, como a experimentalas se são commo-
71
das... Alisa-os com as mãos...) Que boas cadeiras! (Passeia o olhar pela sala) E como tudo
está bonito aqui! Ah!... amanhã é o dia do anniversário de D. Nininha. Vou mostrar logo as
minhas notas... (Volta-se para o publico): Todas optimas. E depois cuidar da minha toilette
para recepção de amanhã. (Senta-se commodamente numa cadeira de balanço). Como sou
feliz, meu Deus! Trocar a vassoura pelo livro... que linda troca!... E haver creanças que não
querem estudar!...
LUCCY e INNAH- (entrando) –Oh!...
INNAH- Já de volta, Diva? Felizmente vieste cedo. Precisamos tanto de ti!... Amanhã
é o dia do presente da mamãe.
DIVA- Pretendes mesmo realisar aquelle projecto?
INNAH- Sim, minha querida. Tudo já está arranjado; até a roupinha da creança.
DIVA- Quem fez a roupinha?
INNAH- Irene.
DIVA- Ah! Irene...Tua amiguinha Irene.
INNAH- Tu hás tambem de gostar da nossa futura irmãsinha; não é verdade?
DIVA- Oh! muito! muito! Que bonitas camisinhas havemos de fazer para ella!... E
agora que estou aprendendo, no collegio, a fazer umas toucas mimosas... lindas...
INNAH- Vamos dispor tudo para amanhã.
RENATO- (entrando). Que fazem vocês? E‟ alguma conspiração?
INNAH- Uma conspiração benigna; e desejo que tomes parte nella.
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RENATO- De que se trata?
(Emquanto Renato e Innahconversam, Diva examina os moveis com ares de
admirada).
INNAH- Como sabes, morreu aquella cliente de papá... aquella que era mãe da
interessante creancinha que todos nós ficamos querendo bem...
RENATO- Sim; e que mais?
INNAH- E
que nós, os teus irmãos, vamos em commissão buscar a pobre menina
que está orphã e desamparada, para ficar entre nós, como se fosse uma irmãsinha que Deus
nos enviasse. E, como amanhã é o dia do anniversario de mamãe, nós a traremos e a
offereceremos á mamãe, como presente de anniversario.
RENATO- Muito bem, minha irmã. Estou ao teu dispor.
DIVA- Eu tambem, Renato, faço parte da comissão.
Dr. GENTIL- (entrando): Pequenos, Nininha os está chamando. (Saem todos fiacndo
Gentil e Renato).
Dr. GENTIL- (dirigindo-se a Renato): Preciso falárte, Renato. Senta-te ao pé de mim.
(Sentam-se).
SCENA 2.ª
Renato passeia pela sala, sosinho, os braços cruzados para traz, mostrando-se
apprehensivo. Ouve-se Innah cantando no interior da casa.
RENATO- Papae quer que eu vá para os Estados Unidos estudar engenharia. Muito
me agrada essa re-
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solução; mas... que saudades do meu lar! de meus Paes! de irmãos! Aqui ficará tudo o
que amo. Partirei sosinho. Quanta tristeza a bordo, quando recolher-me e ouvir o bater das
ondas e a voz dos marinheiros! Ah! tudo o que eu amo, ficará!... (Senta-se).
O meu cãosinho... o meu canario... tudo... tudo vae-me fazer uma grande saudade!
Como soffre meu coração!... (Escuta a canção de Innah) Minha irmã está cantando. Não sabe
que eu vou partir. Como é triste essa canção que outr‟ora me alegrava!...
Innah convidou-me para fazer parte da piedosa commissão que vae buscar o
encantador presente da mamãe. Irei, sim e com que saudade já!
Será a ultima vez que tomarei parte em commissões desse gênero. Quando voltar,
daqui a três annos, talvez, já não serei creança, e os manos me tratarão de modo differente,
bem differente da intimidade infantil de hoje.
Vou me tornar um homem serio, como diz a tia Laura; vou preparar o meu futuro,
como diz o papae; formar o meu carcter, como diz a mamãe. Tudo isso exige a Vida, eu sei.
Exigencia cruel! (Levanta-se, agitado) Meu Deus! Quanto custa a vida!... Por que nos não
fizestes como os passarinhos? Elles não têm responsabilidades! Ah! tudo é doloroso para os
que têm entendimento, os que sabe distinguir a alegria, da magua! Que triste cousa é um
adeus! Um escriptor francez disse que “partir é morrer um pouco”. E eu já estou sentindo a
agonia desse momento. Oh!... (Estorce as mãos e
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sae). A sala fica vazia dois minutos. Dr. Gentil entra de braço com a esposa. Voltam da rua,
carregados de pacotesinhos. Sentam-se com ares fatigados.
Dr. GENTIL- Como estão alegres as creanças, hoje! Reparaste, Nininha?
NININHA- Não sabem, coitadinhas, como está dolorido meu coração! A partida de
Renato é para mim uma separação cruel.
Dr. GENTIL- Coragem, minha filha! O bem estar é sempre difficil de obeter-se.
NININHA- Mas o meu sacrifício é dos mais crueis. E fingir que não estou triste para
não desanimal-o! Contra-fazer o sentimento... como é doloroso e difficil! Quanto me custa
cobrir com sorrisos esse turbilhão de lagrimas que ficam em meio do caminho, no coração...
Dr. GENTIL- E a mim o quanto custa tambem!... Quando Renato partir, quem o
substituirá á mesa?
NININHA- A nossa saudade.
Dr. GENTIL- Sim, a nossa grande saudade. Mas lembra-te do prazer que nos espera,
quando o virmos homem feito, com um futuro encantador...
NININHA- Sei e não me opponho á sua partida; mas... não vês como fica a roseira
quando lhe abalam as raízes? E‟ assim o coração de mãe quando o fere a auzencia de um
filho.
Dr. GENTIL- Esqueçamos isto, Nininha, cuidemos de preparar a casa, que hoje é o dia
do teu natalício.
(Entram Renato, Lucy, Innah, diva, Genaro e Irene, conduzindo a pequena Aline.
Entram gritando: Viva Aline! Viva Mamãe!...)
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RENATO e INNAH- (depõem a creança no collo de Nininha.)
RENATO- Mamãe, eis o presente de anniversario que te offerecem hoje os teus filhos
queridos! E‟ uma filhinha mais que te trazemos e uma irmãzinha que todos abraçamos com
effusão. Acceitas, mamãe?
NININHA- (commovida) Acceito, de coração, meus filhos. A benção dos ceos caia
sobre as vossas cabeças.
Os MENINOS, em côro: Obrigado! Obrigado! Viva mamãe! Viva mamãe!
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Abril
Gósto de ver-te assim a encher de flores
meus lindos canteirinhos,
a Veiga, os bosques, as estradas claras,
as marges frescas dos regatosinhos,
fertilisando as séaras,
inspirando aos poetas e aos pintores.
Que lindo ceo de tão bonito azul,
como os olhos gentis de minha irmã!
Invade-me a alma a luz dessa manhã
que nos traz alegria e dá saúde
e robustez ao pegureiro rude,
e faz crescer a leda meninada
que sae da choça
e vae de pés descalços pela estrada
que leva á roça.
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No prado, quantas rosas!
E a minha infância, como as borboletas,
vae passando entre flores odorosas.
Num trecho de campina preferido
eu digo aos passarinhos:
-Oh! quando este pirralho for crescido,
dizei nos vossos cantos, amiguinhos,
que soube respeitar os vossos ninhos!
Adeus, formoso abril risonho e lindo,
que dás flores de neve ás larangeiras,
e encanto infindo
tu guardas para as tardes prasenteiras
quando eu, á flor das aguas crystallinas,
escuto o zangarreiro das marrecas,
e minha irmã enfeita de boninas
as cabecinhas louras das bonecas!
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O Mar
Gósto muito do mar! Dizia o pequeno Julio, passeando com seu pae ao longo da orla
arenosa do oceano.
Gósto muito do mar! –repetia. Quando está sereno, sem um navio siquer, eu penso que
elle dorme, papae, tão calmo e tão liso fica! Tenho vontade até de passear por cima delle!
Mas, quando menos se espera, lá vem uma onda de clinas brancas, e outra, e mais outra, e o
mar fica todo crespo, cochichando de um modo que não entendo.
Como que o mar diz alguma cousa... Haverá quem entenda a linguagem do mar?
A‟s vezes parece que elle está zangado! Ruge, levanta-se muito alto, bate furioso nos
rochedos, muda de cor e fica (como se diz com as pessoas) fulo de raiva! Escurece-se, sacode
as embarcações e parece querer jogar na praia tudo o que contem.
Outras vezes está calmo, azul, magnífico, e murmura uns sons ternos que até parecem
musicaes.
E assim ia o Julio dizendo o que sentia e o que pensava do mar.
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O pae, para instruil-o a respeito do oceano que tanto sabia admirar, disse-lhe:
Essas oscillações da agua do mar, de que ha pouco falaste, são devidas á attracção que
o sol e a lua exercem sobre o mar. Esse movimento periódico de elevação e abaixamento das
aguas, duas vezes por dia, chama-se maré.
Nas proximidades da terra, as marés são mais altas do que no mar livre.
A lua tem mais influencia sobre as marés, do que o sol.
Esse astro apenas eleva as aguas do mar a dous metros de altura, ao passo que a lua as
levanta á altura de cinco metros.
E Julio, cheio de justa curiosidade, fez ainda ao pae esta pergunta:
Por que é que os navios andam dia e noute sem se perderem?
Não posso compreender isto, desde que elles não são dotados de intelligencia para se
dirigirem.
E o pae respondeu satisfeito, á graciosa pergunta do pequeno:
-Em todo navio ha um instrumento composto de uma agulha imamtada, móvel sob um
pivot, cuja ponta se volta somente para o Norte. Essa agulha chama-se bussola. Graças a esse
instrumento tão simples, os navios podem seguir sua derrota, dia e noute, sem se perderem; e
os marinheiros podem sulcar os mares com toda
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a segurança de orientação, como se estivessem em terra firme.
E‟ á bussola que devemos essas relações amistosas com os habitantes dos outros
paizes, a permuta de productos e de idéas, a sympathia entre pessoas que nunca se olharam...
Tudo isso devemos á bussola e ao mar, a esse mar de que tanto gostas.
Elle separa os continentes e uni os povos. Essa união nos faz progredir cada vez mais;
é a linha que vamos traçando devagar... linha que num futuro muito remoto ainda, terminará
na confraternisação da humanidade.
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Maio
Maio desperta. Vem coroado
das lindas nuvens dos arrebóes;
de flores tantas engalanado,
vestindo o brilho de muitos soes.
Na verde relva que o sol redoura,
nas luminosas tardes de aroma,
côlho as amoras que o poente aloura,
dos lírios brancos eu beijo a coma.
Quanta verdura lá pelos montes!
Ha flores tantas nos descampados!...
Quanta alegria na voz das fontes!
E quantas aves pelos silvados!
A trepadeira, muito garrida,
os troncos verdes casquilhas abraça.
Tudo renasce cheio de vida.
E maio é todo cheio de graça!
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As camponezas pelo gramado
passam risonhas e descuidadas.
Vae o tropeiro tangendo o gado,
cantando alegre pelas estradas.
Oh mez das flores! oh mez dos cantos!
Mez dos incensos, mez da oração...
Fostes o lenço de muitos prantos,
quebrando os elos da Escravidão!
83
Jesus
O vulto mais sublime de todos os séculos, o Ser único que perdura e perdurará
inconfundível através das Eras, o excelso Rabbino da Galiléa, teve o mais humilde dos
nascimentos.
Num presépio, entre a gente rude dos campos, nasceu Aquelle que havia de realisar a
mais sublime das missões –regenerar a humanidade.
Logo ao nascer, Elle deu ao mundo a bella demonstração do nenhum valor da
aristocracia do berço.
E assim, desde o nascimento até á morte, sua vida foi um grande e bello ensinamento;
sua palavra –um verbo que todos podiam conjugar; sua doutrina –uma Luz que não se apagará
jamais, conservando intacto o seu brilho.
Jesus plantou a civilisação dos povos ao iniciar a sua Doutrina.
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Os inimigos surgiram, porque todo idéal tem adversários. Esses inimigos nem sempre
são os maus; algumas vezes cerebros obscurecidos, densamente, onde a luz se demora a
penetrar; combatem sem apurar a verdade, ou porque a julgam impossível, ou porque temem
o seu deslumbramento.
Entretanto, os inimigos de qualquer Idéa aventada, são impulsores inconscientes de
seu triumpho.
Jesus deu-nos a exemplo deixando-se crucificar no Calvario.
Quis ensinar-nos que o Golgotha é o caminho do Thabor.
E‟ preciso soffrer para triumphar.
Sem o martyrio e sem a morte, a gloria do Nazareno ficaria reduzida aos âmbitos da
Palestina.
A estrada de sua vida, pontilhada de luz e de sangue, é o traço de união entre o homem
e Deus.
Jesus é o glorioso fundador da religião do bem, cujo symbolo é a Caridade.
Sem religião não ha caridade, e sem caridade não pode existir coração bem formado.
O temor de Deus é a base de todas as virtudes.
Jesus é sempre unico na Verdade e na Lenda; nas agonias do Horto e no trevo da
Judéa; no presepio e nos passaros de barro que voavam; á porta do Judeu Errante e nos braços
da Cruz...
Elle é inconfundível; e é inconfundível porque é divino.
O Nazareno buscava de preferencia a obscuridade.
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Na gleba inculta é que Elle quis plantar a semente de sua Doutrina, num terreno que
Elle próprio adubou.
E a semente brotou prodigiosamente, por entre foices ameaçadoras, e tornou-se a bella
arvore cujos ramos se estendem pelo universo inteiro, com este formoso nome –
CHRISTIANISMO.
86
A princesa Rosa
Se eu não fosse bella –disse a pequena margarida dos campos- teria um grande
desgosto. Sinto enorme alegria quando ouço dizer que sou formosa.
Ah!-suspirou tristemente uma rosa- eu também sou bella, mas isto não me satisfaz,
porque não sou feliz.
Não és feliz!-indagou a fada protectora dos prados que ia passando.
Por que motivo não és feliz!... Bella, adorada perfumosa... Que mais queres!
Então –suplica a rosa- achas que é felicidade viver contemplando somente as auroras
que emrubecem, os crepusculos que desceram e o ceo que se estrella!...
Se eu fosse, ao menos uma aresinha mimosa que faz seu ninho entre as ramagens dos
mimos do ceo... Mas oh! quizera ser uma virgem linda e meiga... possuir um coração que
palpitasse... Como eu seria feliz! Sentir palpitar o coração deve ser delí-
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cioso! mais delicioso que o néctar que tenho na corolla. A caricia de uma phrase velludosa... a
emoção do Bello... deve ser incomparável!...
Pois bem, -respondeu a Fada- eu vou tornar-te humana. Far-te-ei princeza para que te
não falte nada na existência. Serás bella, muito bella, sentirás palpitar o coração á dose ternura
das phrases velludosas, e um dia dir-me-ás se és feliz.
Cumpriu-se a prophecia da Fada: a rosa tornou-se humana.
Um dia, attrahiu a attenção da Fada, a harmonia de ruidosa festa num sumptuoso
palácio.
Ah! já sei! –disse comsigo a Fada.
E uns camponezes que passavam, diziam alegres: “E‟ o baptisado da princesa Rosa, a
mais linda de todas as princesinhas. Deram-lhe esse nome, porque ella se parece com uma
rosa ao desabrochar.”
... com uma rosa ao desabrochar!... repetia desdenhosamente a Fada.
A princesinha crescia, e todos tributavam homenagem á sua belleza.
Aos 16 annos, acceitou o amor de um príncipe que, attrahido pela sua famosa belleza,
veiu das altas regiões da Rússia offerecer-lhe sua mão. Por muito tempo viveu a princeza
enlevada pelas velludosas phrases de Nareiso, o mais volúvel de todos os príncipes.
Um dia, porem, elle escreveu-lhe que ia partir para a Rússia, onde o esperava sua
noiva, a encantadora Aida.
A princesa Rosa quase enlouquece de dor. Suas
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faces tornaram-se pallidas, e ella parecia mais uma camella do que uma rosa do desabrochar.
Uma tarde, no jardim, chorava amargamente sua desdita, porto de uma roseira que
ostentava uma linda rosa entreaberta. Olhando-a, a princeza disse constersada: “Ah! se eu
fosse essa linda rosa de quem só tenho o nome! Como seria ditosa!
Tu, minha flor, é que és feliz, porque a curta duração da tua existência, não permitte
que os desenganos te martyrisem. Ah! infeliz de mim! Eu bem podia ser esta flor de quem só
tenho o nome!...”
Nesse momento appareceu a Fada, protectora dos prados.
A princeza não poude resistir ao seu olhar. Envergonhada, começou a empallidecer até
ficar branca, de neve.
Sentiu que ia voltar ao seu primitivo estado.
Effectivamente transformou-se numa roseira que se desabrochava rosas brancas, tão
brancas como a neve da Rússia.
89
O anel de ferro
Não sei o motivo por que a Maria da Gloria trazia no anullar da mão esquerda, aquelle
anelzinho de ferro, muito delgado, polido e sem ornato.
Sei que ella o estimava porque algumas vezes a surprehendi olhando o muito e
fazendo-o gyrar nos seus dedinhos morenos.
Um dia, no recreio, um grupo de meninas a fez chorar, zombando impiedosamente da
jóia caro, como disseram as travessas.
Maria da Gloria, envergonhada, não teve animo para dizer-me a causa daquelle pranto.
Uma collega que não tomára parte na brincadeira, é que me contou o facto.
Aproveitei o assumpto para uma lição.
Falei-lhes da utilidade do ferro. Lembrei-lhes que foi elle a chave que abriu as portas á
arte, á industria, á civilisação, emfim; que o homem viveu errante, misero, sem conforto, até o
dia em que conseguiu fundir o mais útil dos mineraes; que os pobres de hoje, os que
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vivem em humillimas choupanas são muito mais ricos do que os nossos antepassados –os
habitantes das cavernas.
E o ferro é que os libertou da miséria, da ignorância mesmo, sim, porque foram os
primeiros instrumentos de ferro que fizeram o primeiro artista.
E assim é que os nossos longínquos antepassados, pobres creaturas que nada
encontraram feito na terra, deixaram, para nosso conforto, -casas, roças, falúas e esses
instrumentos vários de que todos nós necessitamos na vida commum.
Portanto, a quem devemos em primeiro lugar, toda essa herança?
-Ao ferro –disseram quase todas a um só tempo.
Então –continuei- a Maria da Gloria, usando o seu anelzinho de ferro, está prestando
justa homenagem a quem a humanidade tanto deve.
Merece respeito o anel da nossa boa colleguinha, pois esquecer o ferro importa uma
ingratidão de que era um dever penitenciar-nos.
A impressão que lhes causaram as minhas palavras, ignoro; o que é facto, porem, é
que mais de uma vez tive occasião de ver o anelzinho da Maria da Gloria em muitos dedinhos
differentes.
91
Natal
Noute. A sala regorgita
da creançada folgazã,
cantando canção bonita,
como aves pela manhã.
Na lapinha illuminada,
que alegria! quanta luz!
Quanta rosa desfolhada
junto ao berço de Jesus!
E o bando da meninada
se fórma em torno á lapinha,
como as nuvens d‟alvorada,
como vôos de andorinha.
Num canto, o avô, tremulante,
murmura terna oração,
ou recorda nesse instante
sua ultima illusão.
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A alegria alli se doura
como arrebol tropical,
aos pés da creancinha loura
-honra e gloria do Natal.
E em meio de tanta luz,
no vasto salão dourado,
eu vejo o mesmo Jesus,
num quadro, crucificado!
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A esperança
No collegio de Nair havia grande contentamento entre a petizada.
Na próxima festa de N. S. das Victorias, algumas alumnas iam representar diversas
figuras allegoricas. Berenice e Nair, duas amigas inseparáveis, iam representar a Fé e a
Esperança.
Tagarellavam alegres, expondo cada uma os motivos de sua preferencia.
Eu quero ser a Esperança –dizia Berenice- porque a esperança vive no coração de
todos. O rico, o pobre, o mendigo... todos alimentam a esperança. Ella veste-se de verde,
como os vegetaes, tem a alegria da relva tenra, quando o sol brinca na Veiga... E eu que tenho
16 annos, sou bem uma esperança.
E a Fé? –disse Nair meio séria. Quero ser a Fé porque a fé é que nos salva e nos
ampara; a fé é a corôa da esperança. Com a fé realisamos as nossas aspirações...
94
A sineta tocou para o recreio, interrompendo a conversa das duas collegiaes.
Estava quase prompto o vestido com que Berenice ia representar a Esperança! uma
túnica roçagante, de optimo setim verde, talhada com esmero. Uma ancora dourada e um
diadema de estrellinhas brilhantes completavam a toilelle.
Nair, quando viu a roupagem da amiga!
-Como ficarás bonita, queridinha! Com esse rosto meigo e rosado a sobresahir d‟entre
as dobras do amplo manto verde, ficarás semelhante áquella rosa...
E Berenice completou a phrase: -Dama entre folhas. Mas não serei a rosa, Nair, quero
mesmo ser a esperança.
A fatalidade, porem, enlutou todos os projectos que as duas amigas adornavam com a
phantasia das suas idéas de adolescentes. Berenice morrera repentinamente na véspera ad
procissão.
Sua vida terminara como festa que um incidente fizesse acabar no começo... como o
ponto final que o typographo, por descuido, deixa ficar no meio da phrase.
Berenice estava linda no seu esquife branco.
Vestiram n‟a de Esperança.
Os olhos verdes semicerrados, tinham a cor das opalas nivosas; as faces e os lábios,
enrubecidos pelo carmim, não desmentiam a cor que tiveram em vida.
Mãos amigas dispersaram flores ao redor de Berenice, e pozeram na extremidade do
ataúde, em osição obliqua, alinda ancora dourada.
95
Nair, chorosa, ao lado do caixão, olhando a amiga, não se lembrava de comparal-a á
Dama entre folhas; pensava somente que não mais veria Berenice... que a procissão desfilaria
sem a formosa Esperança e sem ella também! E tinha vontade de beijar muito a amiga, de
estreital-a ao seu coração sincero, de insuflar-lhe vida a sua vida, se possível fosse.
As lagrimas de Nair corriam junto ao catafalco em companhia das lagrimas silenciosas
dos cyrios.
A‟ tarde seguiria o foretro para o campo-santo.
Berenice partira para o Jamais, vestida de Esperança. E Nair voltara para casa vestida
de tristeza.
Na sua cabecinha de 18 annos levantavam-se idéas esquisitas, absurdas, grotescas.
“Se eu pudesse matar a Morte!” –diizia mentalmente.
Conversando com a mãesinha, Nair repetia chorando: “Morrer tão formosa
Esperança!...”
-E‟ assim, minha filha, as mais bellas esperanças quase sempre morrem.
-Que injusta é a morte, mamã! Extermina tudo!... Os bons, os maus... reduzindo tudo á
cousa nenhuma.
-Como te enganas minha filha! A morte nada destrói. Há entre a vida e a morte uma
constante permuta. Nada se perde no Universo diz-nos a Sciencia. A morte não destrói;
transforma.
O cemitério é o grande laboratório da Natureza.
A matéria não morre como pensas; ella, como a alma é também immortal... de uma
outra immortalidade.
96
Nós não morremos propriamente; transmutamo-nos.
Mais tarde, quando progredires no estudo, os livros te ensinarão melhor do que eu,
como se effectua esse trabalho sublime da Natureza.
Por ora, contenta-te com o saberes que depois da morte deixamos de ser um corpo,
para sermos diversos corpos; subdividimo-nos.
Nossa matéria continua a existir... na arvore de froude altaneira; nas flores de variado
colorido; no fructo appetecivel; no pássaro que gorgeia; no arroio, na nuvem, no mineral!...
Em mim, em ti, na arvore, no pássaro e na flor, existe a matéria dispersa dos que
morreram.
A Sciencia nos demonstra assim que a morte nada destroe.
Nair quetou-se pensativa, o olhar fixo na visão da Esperança que subia radiosa, a
túnica verde a esvoaçar, e o diadema de estrellinhas douradas rutillando no espaço illuminado
pelo luar.
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Os creados
Tarde luminosa. No amplo jardim da Villa Celeste, sob um
catramanchão de cecilias alvíssimas, conversam duas jovens
da mesma idade mais ou menos -18 annos em flor.
Trouxe agradabilíssimas impressões do dia que passei no teu sitio, minha cara Celeste.
Magnífica a tua casa de campo, e deliciosos os fructos do teu pomar!
Só uma cousa me tem dado tratos á bola...
-Que te desagradou, Luisa?
-Nada me desagradou: o que me tem dado o que pensar, é o modo por que tratas a
criadagem. Acho que dás importância de mais a essa gente.
-Não te comprehendo. Penso que sou rasoavel. Os meus creados me servem bem, e eu
não exijo delles aquillo que a sua ignorância não lhes permitte fazer.
-Pelo que vejo, os teus famulos são umas perolas.
-Não chego a tanto, Luisa.
-Essa gente, minha boa Celeste, não merece nada... Gente humilde de mais...
98
-Oh! Luisa! não fales assim! Que culpas têm esses pobres de sua condição humilde?
Que hão de fazer, se o destino não lhes deu um berço aristocrático?
-Ora, Celeste!... A tua bondade com os fâmulos, te prejudicará, não há duvida.
-Que queres? Se estou satisfeita com elles? Servem-me a contento, respeitam-me e são
até gentis para commigo.
-E‟ a obrigação delles: e para isso que lhes pagamos.
-E achas, Luisa, que é grande cousa o ordenado desses pobres? O que lhes pagamos,
não compensa o trabalho que elles nos poupam. Repara: asseiam a nossa casa; cuidam da
nossa roupa; fazem as compras; preparam as nossas refeições tão saborosas! execultam as
nossas ordens...
-Ora! para isto é que elles nasceram!
-Não fales assim, Luisa! Quantas vezes a sorte desthrona o fausto, e arremessa para o
abysmo fortunas bonitas!
-Não, Celeste, cada um tem o destino que merece. E essa gente desclassificada nasceu
para isso mesmo.
-Olha, Luisa, vou narrar-te um caso que mamãe me contou:
Uma senhora rica, aristocrata, deixára sua primeira filhinha com os avós, e fôra á
Europa em companhia do esposo que desejava consultar uma notabilidade medica, em Paris.
Levára a segunda filhinha, quase recém-nascida.
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De volta da Europa, onde se demoraram perto de um anno naufragaram nas
proximidades de Villa***, pertencente a um dos Estados do nosso Brasil.
Salvaram-se quase todos os passageiros, e entre os poucos desapparecidos contava-se
a pequena Helena, filha desse casal.
Immensa foi a dor dos Paes de Helena.
D. Ambrosina, mãe da creança, não encontrava consolo para sua tristeza.
O tempo, como sempre, encarregou-se de enxugar-lhe o pranto, e annos depois D.
Ambrosina jáolhava sem lagrimas o retrato de Helena, que da Europa ella enviara aos avós da
menina.
Sua filha mais velha, Yvette, já havia completado 13 annos, quando, uma tarde
chuvosa, agitaram a campainha do portão.
Yvette debruçou-se á janella. E viu uma menina maltrapilha e suja. Parecia ter 11
annos de idade.
Através dos farrapos, divisava-se a pelle clara e fina, contrastando com a tez do rosto
que era tostada.
Yvette perguntou-lhe: Que deseja, minha filha?
A voz meiga de Yvette despertou logo sympathia no coração da infeliz creança: mas
as lagrimas não a deixaram falar.
Yvette foi ao portão, e fez entrar a menina que lhe pediu um abrigo. Depois consultu
sua mãe.
D. Ambrosina, com o orgulho que não a deixava, olhou com desdém a pobre menina;
mas, como não as-
100
bia recusar-se aos justos de Yvete, deixou que ficasse a pequena.
-Como te chamas? Perguntou D. Ambrosina, em um rispido.
-Eu me chamo... Maria.
E‟ o nome commum de vossês todas, -resmungou D. Ambrosina. E continuou alto: Vá para a cosinha; lá lhe darão alguma cousa paar comer.
A pobresinha tiritava sob os farrapos encharcados.
Yvete, porem, foi buscar um dos vestidos que já não lhe serviam, e offereceu-o a
Maria, auxiliando-a mesmo a vestir-se. Deu-lhe também umas sandálias e um aventalzinho.
Terminada a toilette, ella mesma fez o prato para Maria, e serviu-a.
D. Ambrosina ao chegar á copa, encontrou ainda Yvete servindo á recemchegada;
carregou os sobr‟olhos, mas silenciou.
Felizmente ella não sabia oppor um dique aos bons sentimentos da filha.
D. Ambrosina era o terror dos creados. Não tinha uma expressão agradável para
aquelles que a serviam. Também não encontrava quem a servisse satisfatoriamente. Mudava
constantemente de creados. Alguns demoravam-se devido á sympathia que Yvete lhes
inspirava.
Em pouco tempo Maria tornou-se a maior victima da descortezia de D. Ambrosina. E,
quando Yvete entercedia pela sua humilde amiguinha, D. Ambrosina di-
101
zia colerica: -Essas creaturas só levadas a ponta-pés. Filhos do povo, nascidos no pó,
conservemol-os no pó. Não convem dar-lhes a mão para se erguerem.
Entretanto, Maria tinha a docilidade das almas delicadas, era intelligente e
trabalhadora.
D. Ambrosina, absorvida pelo seu desmedido orgulho, não podia notar essas
qualidades.
Um dia, no auge de injusta cólera, empurrou Maria de tal modo que o braço da menina
bateu, em cheio, no fogão aceso. Maria soltou um grito lancinante. A chapa quente do fogão
arrancara-lhe quase toda a pelle do braço.
D. Ambrosina, indifferente, seguiu para a sala e sentou-se ao piano.
Yvete correu a ver o que acontecera. Encontrou Maria a gemer desassocegadamente.
Yvete despiu-lhe com cuidado a blusa, e começou a untar as queimaduras com um
óleo vegetal qaulquer. Ella mesma levou Maria para a cama, e poz-se a consolal-a. Cuidando
do braço da doente, Yvete descobriu no hombro de Maria um signal de cor esverdeada que
tinha a forma perfeita de um coração. Achou-o lindo, e demorou-se a olhal-o.
Passada a cólera de D. Ambrosina, Yvete falou-lhe do lindo signal que vira no hombro
de Maria.
D. Ambrosina ficou como assustada; e, tremula, foi examinar o hombro da menina.
Quase tem uma crise nervosa.
Perguntou a Maria quem foram seus Paes.
102
A menina contou-lhe sua pequena e tristissima historia:
Não sabia quem foram seus Paes. Os pescadores que a criaram, diziam que, após um
naufrágio, encontraram á pequena distancia da Villa onde moravam, uma creança dormindo
dentro da tampa de uma grande mala que as ondas dirigiam para a praia. Compadecidos,
recolheram a creança e levaram para a casa.
Ninguem a procurara. E o velho pescador, o chefe da casa, resolveu, mezes depois,
dizer que era sua filina. Esta essa a historia que contavam os seus paes adoptivos –a sua
historia.
Deram-me o nome de Cicera, disse a menina. E, como eu não gostava desse nome,
depois que deixei a Villa*** comecei a dizer que me chamava Maria.
-E por que deixaste os pescadores? Interrogou Yvete.
-Não os deixei. Uma epidemia que assolou a Villa, matando quase todos os habitantes,
levou também para o cemitério os meus pobres Paes.
-Eu tinha oito annos. Desde então, ando assim de casa em casa, de cidade em cidade,
sem encontrar quem me dê o carinho que elles me davam.
Sempre maltratada e maltrapilha...
A primeira pessoa que, depois dos pescadores, me tratou com affeição, foi a menina
Yvete a quem peço que não me abandone. Sou tão infeliz!...
D. Ambrosina soluçava.
103
-Que tens, mamãe? Tanto te compungiu a historia de Maria?
-Maria é Helena, minha filha; é tua irmã Helena que eu julgava ter perecido no
naufrágio.
E‟ essa a historia que mamãe me repete sempre que me ensina os deveres que temos
para aquelles que nos servem.
E sabes quem é essa Helena, Luisa?
-Quem é, Celeste?
-Essa Helena é a minha querida mamãe.
Vês que aprendo numa escola incomparável a maneira pela qual devo tratar os
creados, essas infelizes creaturas que têm a desdita de viver das nossas cosinhas.
Luiza baixou a cabeça numa attitude pensativa...
104
O avô
Clarisse, todas as tardes, depois da lição de piano, gostava de sentar-se á porta, a ler o
Tico-Tico ou a brincar com a boneca mais querida.
Uma tarde, ella não quiz nem a boneca nem o jornal: entretinha-se com a bola de
borracha presa a um cordel de seda. Divertia-se vendo-a fluctuar no espaço á imitação dos
papagaios de papel.
Dahi a pouco, Jerusa a Mario, seus amiguinhos, passaram de mãos dadas com o avô, o
sr. Moreira.
Os meninos iam conversando com o velho que lhes prestava attenção, sorrindo-lhes ás
caricias.
De repente, Clarisse soltou a bola e poz-se muito seria a olhar o grupo que se afastava.
Sua mãe que se approximára, estranhou a attitude de Clarisse e perguntou-lhe o que a
preoccupava.
-Estava a pensar numa cousa muito triste - disse a menina.
Numa cousa muito triste, filhinha?! Na tua idade não se pensa em cousas muito tristes.
-Pois eu pensava, mamã. Pensava... como é tris-
105
te ser velho! Não ter bonecas, não ter brinquedos... Não ter anniversario para ganhar
bonitas caixinhas de confeitos, e brincar com as amiguinhas que nos vêm visitar... Não pular
na corda nem ter férias no fim do anno para ir á fazenda ver os tios, o gado, o rio... e correr
atrás das borboletas pelo campo em fora!...
E a menina interrompeu-se:
-Dize-me uma cousa, mamãe: os velhos já foram creanças, como eu?
-Já, minha filha.
-Tiveram cabellos pretos, olhos vivos e lábios rubros, como eu, mamãe?
-Sim, tiveram tudo isso.
-E como é que o sr. Moreira que foi menino, tem hoje a barba e os cabellos tão
brancos que não se vê um fio preto? E a pelle! tão encolhidinha que parece um papel de seda
que se machucou entre os dedos.
E a mamãe e o papá vão ficar assim como o sr. Moreira?
-Sim, minha filha, e tu também.
-Eu, mamãe?!... Tambem eu?!... Que cousa triste ser velho! Não ter bonecas! não ter
brinquedos!...
-Não é como tu pensas, Clarisse. Os velhos têm bonecas e têm brinquedos. Vivem
alegres, de outras alegrias, embora.
As bonecas e os brinquedos dos velhos são os netinhos que os divertem com as suas
graças, os seus carinhos. As suas alegrias são as alegrias dos filhos e dos netos. Quando um
netinho corre pela casa em fora, rindo alto, muito alegre, o que o avô escuta, é o tropel da
106
sua infância que se foi ha muitos annos pela estrada do Passado: é o echo do seu riso
infantil, o riso que elle escuta.
Os filhos e os netos não lhe são outra cousa, senão a repetição de si mesmo.
Por isso, minha filha, é preciso que as creanças sejam muito boas e carinhosas, saibam
amar e respeitar os velhos, porque elles, juntos á infância e á mocidade, são moços e são
creanças pela recordação viva do que foram. Recordando, elles revivem no presente o passado
que ha muito se apagou. E... é tão doloroso um desrespeito ás recordações queridas!
Os velhos recordam e amam nos moços o que elles foram; e os moços devem respeitar
nos velhos o que fatalmente hão de ser um dia.
-E‟ verdade, mamã! E que bello é o que estás a dizer! Quasi que já estou achando
melhor ser velho do que creança!...
Hei de amar e respeitar os velhos. Sim. Hei de querer muito, muito, ao vovô e á vovó,
quando tiverem a cabeça branca e a pelle encolhidinha como a do sr. Moreira.
Hei de fazer-lhes sempre terem presente o seu passado.
Agora mesmo vou abraçar e cumprimentar ao vovô pelos cabellos alvos que lhe vão
apparecendo, como pontinhas de linha branca que a modista esquecesse num vestido preto.
E Clarisse lá se foi alegre em busca do avô.
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Adeus á infância
Sou quase uma mocinha. Estou crescida.
Já vou deixando a quadra dos brinquedos.
Borboletas, adeus! E‟ outra a vida!
Já não corro comvosco entre arvoredos.
Passarinhos, adeus! „stou vos deixando,
felizes a cantar pelas ramadas.
Ficareis livres, como sempre, voando!
E eu atada ás lições mais complicadas!
Adeus, relvas que eu amo! Adeus gramados!
Adeus, creanças, minhas companheiras!
Adeus, ninhos que foram meus cuidados,
escondidos nos galhos das roseiras!
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Adeus, bonecas louras e rosadas,
sempre risonhas, sempre junto a nós...
Que nas phases da vida, ó camaradas,
eu encontre amiguinhas como vós.
Quantos deveres a mamã me aponta!
Quanta cousa me ensina... que acho graça
caber tanta virtude, já sem conta,
no coração, tão pequenina taça!
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Canção dos astros
VENUS
I
Eu sou a flor dos crepusculos.
Desde a mais remota antiguidade, os poetas me decantam, e Homero chamou-me a
“Bella”.
Já fui adorada pelos filhos da Terra, como u‟a deusa.
Inspiro corações amoraveis, e milhões de olhares dulçurosos e scismadores fixam-se
em mim, tecendo a loura teia do sonho, da esperança ou da saudade.
Por isso me chamam Venus, a deusa da belleza e do amor.
Assisto ao despertar da aurora; envio minha doce claridade ás flores orvalhadas;
illumino o ceo antes de vir o sol; vejo despertar a terra, o trabalho, a vida, sem que
desappareça a minha luz para os filhos da Terra.
Chamam-me por isso Estrella da Manhã ou Estrella d’Alva.
110
Guio nos campos o pastor que a noute surprehendeu pelas estradas; falo-lhe, com
ternura, do lar que o espera; escuto as orações do Angelus, que as virgens mandam ao infinito,
a prece tremula dos velhos, e apraz-me vel-os dobrar os joelhos na campina agreste ou em
frente á ermida, com os olhos fitos em mim.
Escuto com delicia a ultima canção do pegureiro de volta com o rebanho.
Por isso me chamam Estrella do Pastor.
Assisto á agonia do sol.
Apenas elle declina para o Occaso, vê-me como um bello cyrio a illuminar-lhe a
agonia e as primeiras sombras.
Nessas tardes de ceo azul sereno, eu me apresento na magnificencia de minha branca
luz, vendo a sombra derramar-se pelos campos, pelos montes, pelas cidades, vestindo tudo
com esse matiz vespertino que seduz as almas melancolicas.
E eu canto, no ceo, a melodia da Luz, toda a harmonia dos sons crepusculares, todo o
encanto vespertino. Por isso me chamam Vesper.
Eu sou a flor dos crepúsculos.
A LUA
II
Eu sou a flor da melancolia.
A luz que derramo sobre os filhos da Terra, são as lagrimas do brilhante passado que
eu tive.
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Hoje, na minha superfície, só ha destroços. Faço lembrar um coração onde morreram
muitos sonhos.
Por isso me chamam o astro morto.
No entanto, é glorioso o meu passado.
Fui eu o astro que primeiro viram olhos humanos.
Fui eu que ensinei o homem a dividir o tempo.
E‟ a mim que se devem as primeiras observações astronomicas.
E quantas inspirações me não devem os poetas!
Todos, na Terra, me apreciam.
Eu sou a branca Ophelia dos trovadores, a deusa das noutes claras, a confidente dos
amorosos.
Eu amo a canção dos rios que, á minha doce luz, parecem de prata; a maguada canção
dos ribeirinhos que deslisam sobre as pedras alvas e frias; a voz dos creanças que me saúdam
contentes; e os contos de fada que as velhinhas de cabecinhas muito alvas contam á minha
doce claridade.
Mas... mais do que tudo eu amo o mar.
Um dia, olhou-me invejosa a areia da praia, e eu tive inveja da areia do oceano.
Ah!... eu fui visinha do mar!
Vivo da saudade das águas glaucas.
Nada do que a Terra possue, me attrae.
Nem as suas rosas, nem os seus bosques, nem as suas virgens de olhares ternos...
Somente o mar, o grande mar tem attracções para mim... Esse mar que já esteve ao meu lado,
na primeira idade da Terra, mas as evoluções do Kosmo afastaram.
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Debalde elle tenta approximar-se de mim acorrentado ás leis que regem os mundos.
Daqui eu contemplo com saudade tudo o que elle beija amoroso; as suas ondas que eu prateio;
as suas bonanças e as suas coleras.
Eu sou a flor da melancolia.
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O SOL
Minhas romanticas e encantadoras amigas, luminosas flores do infinito, escutae-me:
Eu sou a Vida.
Sem mim que seriam os mundos que eu governo? Que serias tu, formosa Venus? e tu,
melancoliea deusa das montes claras?
Eu sou a Luz, eu sou a Cor, eu sou a Alegria, por que eu sou a Vida.
Sem mim, formosa Vennus, não serias o bello astro que os poetas cantam: nem tu,
pallida Lua, encantarias os olhos dos mortaes.
Como são tristes as regiões onde pouco se demora a minha luz!
Quando eu desappareço, tudo enlanguece de tristeza, como se eu não voltasse mais.
Eu sou o estio, a primavera, o outomno... porque sou a luz e o calor; e o inverno,
porque a minha ausência é a sombra e o frio.
Sou o astro soberano, o rei do systema planetário.
Govérno sabiamente todos os meus súbditos, dando-lhes vida e belleza.
Espalho por toda a parte a riqueza fecundante da minha luz. Dou a Terra toda a belleza
que os mortaes admiram: ao solo-rica vegetação, o reino animal, com
114
a mais apurada variedade, os mineraes úteis e preciosos; ao mar-os corães de attrahente
contextura, os cetáceos de assombrosas dimensões, os protozoários, os zoophitos de
minúscula e admirável estructura, os esquisitos mollucos, toda a immensa e complicada
variedade do mundo aquatico; ao espaço, as flores de luz que sois vós...
Faço germinar e crio os collossos florestaes e o musgozinho débil que orla a margem
dos riachinhos; os animaes gigantes do Equador e o infusorio que vive até na gottasinha
d‟agua; a panthera que assombra e o beija-flor minúsculo que saltita nas ramarias em flor; o
terrível jaguar e a borboleta feiticeira que esvoaça nos alegretes e nos prados...
Produzi a lei da attracção...
Sou douto, sou poeta e sou pintor:
-Dito as leis que governam os mundos; crio os menestreis alados, a flor, o perfume, o
pyrilampo que allumina as moitas... Aquaréllo os arrebóes, as emocionantes paysagens
campestres e marinhas...
Sou a palheta universal...
Inflúo até no progresso dos povos.
Nas desoladas regiões polares onde não chega a minha luz vivificadora, não ha
civilisação, não ha progresso. A Natureza é pobre e triste; o homem, rude e selvagem.
Lá não chega o telegrapho, a imprensa, o radio, a civilisação, emfim, porque lá não se
demora a minha luz, essa luz radiosa e vivificante dos Tropicos.
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Através da infancia
Quando eu era ainda uma menina não muito crescida, tinha por visinhos, ao lado, uma
familia paupérrima, composta de uma senhora idosa e dois filhos.
O rapaz trabalhava numa officina de ferreiro, e a moça costurava para uma loja.
O casebre era um dos mais pobres do bairro onde nasci; mas a boa velhinha
conservava-o num estado de asseio que o tornava aprazivel.
A salinha quadrada, com uma única janella por onde a luz entrava fartamente, era de
uma pobreza que não desolava. Numa banca desengonçada que havia no canto da sala,
diariamente perfumava o ambiente um ramo de flores, dentro de uma lata de azeitonas que
servia de jarro, ao pé de um quadro de Santa Margarida.
Esse retalho de poesia mystica naquella salinha pobre, vinha da moça que venerava a
Santa que lhe emprestára o nome.
A‟ janella, numa gaiola de junco, substituía ao piano fidalgo um gracioso canario cor
de ouro que trinava todos os dias, alegrando a pobresa daquelle ninho.
No quintal extenso o plantado de hortaliças que a
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velha mandava vender ao Mercado, havia uma bonineira que fazia as minhas delicias, com as
suas flores variegadas e cheirosas, quando, á tardinha, eu voltava do collegio.
Apenas entrava em casa, mostrava as notas a meu pae, e corria para a casa da visinha a
ver a bonineira.
Minha amizade naquella casa, era mais estreita coma velha, não só porque ella era
mais carinhosa, como, porque á noute eu adormecia no seu regaço, ouvindo-lhe os contos da
Borralheira e das Princezas encantadas.
Ella estimava muito meu pae a quem chamava seu protector. E penso que eu devia a
isso a affeição que ella me dedicava.
Não raras vezes a vi chorar.
Um dia perguntei-lhe a causa desse pranto, e ella disse-me que eram saudades de seu
filho embarcadiço. E contou-me uma historia de Marinha, muito longa e muito triste, que eu
mal compreendi.
Dahi por diante, sempre que a via chorar, eu perguntava: “E‟ pelo seu filho
embarcadiço, não é, sra. Nannã?
Ella respondia-me com um abraço muito apertado, juntando o meu rosto á sua face
humedecida pelo pranto.
Uma vez em que eu estava de férias, fui passar algumas horas com a velha Nannã,
como a chamavam no bairro.
Levei minhas bonecas na cesta dos livros, e sentei-
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me junto a Margarida, num móvel antigo a que ellas chamavam estrado.
O estrado era a meza das costuras e das refeições.
Eu vestia de anjo uma bonequinha, e tagarellava, contando episódios do collegio. A
velha applaudia-me, rindo, e preparava ao mesmo tempo os condimentos do jantar para o qual
eu já estava convidada.
De subito, ouço a voz de um dos meus irmãos, que me chamavam para “ver uns
officiaes muito bonitos.”
Corri até a porta.
Effectivamente, dois officiaes approximavam-se. Um delles dirigiu-nos a palavra:
-Pequenos, saberão dizer-me onde mora a velha Nannâ?
-E‟ aqui!-apressei-me a responder. E o moço, sem mais esperar, entrou, a chamar:
Minha mãe! Minha mãe! Cá estou!
Eu e meus irmãos entreolhámo-nos surpresos, e eu dizia mentalmente: “Será esse o
filho embarcadiço?”
A velha appareceu assustada: “Que é isto?! Que é isto?!
E‟ seu filho que foi recrutado, e volta Tenente de Marinha, minha mãe. Venha vel-o e
abraçal-o. Não o conheço, é justo. Viu-o sair creança e maltrapilho, e agora o vê mettido
numa farda cheia de botões dourados... e um homenzarrão!
Abraçaram-se.
A velha soluçava nos braços do moço, e o moço orvalhava de lagrimas os cabellos
brancos da minha visinha.
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De pé, a um canto, eu olhava commovida aquelle quadro, sem comprehender porque
choravam os dois.
E‟ que eu ignorava que a alegria tambem tem lagrimas. Abençoadas lagrimas.
Depois, sentaram-se a conversar, e eu tratei de retirar minhas bonecas que iam, quase,
sendo vitimas da expansão.
Estava a reunir o grupo de engonço na cesta dos livros, quando a velha, tomando-me
pelo braço:” – Não prometteu jantar comigo”?
Levou-me até junto do filho e fez-me uma apresentação demasiado honrosa para
minha idade.
O official abraçou-me, e, acariciando-me: “-Então é muito amiguinha de minha mãe?
Seja minha também.”
De quando em vez, o official voltava-se para o companheiro: “É verdade, meu
amigo!... Cá está a felicidade! Afinal, encontrei-a!
Eu olhava para todos os lados, procurando a felicidade que não podiam ver os meus
olhos de creança.
Fui a casa buscar uns copos para o vinho, porque o pobre amiga os não tinha. Trouxeos, lavei-os eu mesma muito satisfeita, e fui auxiliar Margarida no arranjo da mesa, com
verdadeira alegria. Tive ainda de buscar um atoalhado para forrar o estrado, talheres e um
paliteiro.
Eu estava tão contente!...
A alegria da minha velha amiga tocara-me o coração.
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Sentamos-nos todos ao redor de estrado, sobre caixões de kerosono que serviam de
cadeiras, e, alegres, bebemos á saúde dos illustres hospedes.
Por entre toda aquella alegria, o jovem official não cessava de repetir: “E‟ aqui que
está a felicidade! E‟ aqui, meu amigo, que está a verdadeira felicidade!”
Essas palavras intrigavam-me.
Por que semente eu não via a felicidade?-interrogava-me.
Comprehendia que ella estava presente, porque o official dizia: E’ aqui... E por que eu
não a via?
No dia seguinte, tive de acompanhar meu pae que ia para o interior do Estado
commandar um destacamento policial. Embarcamos todos:-eu, meus paes e meus irmãos-; e a
velha Nannã ficou entregue ao seu grande contentamento.
Ao voltarmos, um anno depois, a velha Nannã já não era nossa visinha; e eu não me
lembro para onde partira.
Mas o que não esqueci nunca, foram as palavras do official: “E‟ aqui que está a
felicidade.”
Quando sahi da infancia, e fui pouco a pouco comprehendendo a vida e os seus
revezes, é que me foi dado traduzir as palavras do illustre marinheiro.
A felicidade do jovem official estava ali, naquella casinha pobre, entre caixões de
kerosene e moveis desengonçados, porque ali estavam os affectos mais caros de su‟alma-sua
mãe e seus irmãos.
Não há felicidade maior do que a que nos dá a fa-
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mília. Ella é que enche por completo a alma humana. Sem ella, ha sempre um vacuo no
coração do homem feliz. E Honras, Gloria, Riqueza... perdem muito do seu valor, no intimo
do coração daquelle que as possue, sem as alegrias do lar.
Está perto de nós essa encantadora fada que todos procuram com afá.
E‟ no lar que existe a verdadeira felicidade, o mais sincero encanto desta vida cheia de
relatividades e incertezas. Aquelle que não encontrar a felicidade no regaço da família, não a
procure em parte alguma porque não a encontrará.
Cultivae o affecto no lar, minhas boas amiguinhas, e o sol da Felicidade brilhará,
dourando mesmo as nuvens de tormenta que se apresentarem no horizonte da vida. E ao lado
de cada tristeza encontrareis uma flor das mais perfumosas que tem a primavera.
O amor á familia é um culto do qual a mulher deve ser o mais fiel sacerdote. Onde este
amor for uma religião, o lar será o templo da Felicidade.
Cultivae, com esmero, o amor á familia, minhas jovens queridas, e tende presente em
todas as occasiões que –aquelle que torna o seu lar um paraíso, conduz, com o seu exemplo,
cada membro da familia a manter a felicidade em cada futuro lar.
Dessa felicidade depende também a felicidade da Pátria.

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