O Estado social de direito e a propriedade

Transcrição

O Estado social de direito e a propriedade
Ano I – vol. I – n º. 4 – julho de 2001 – Salvador – Bahia – Brasil
O ESTADO SOCIAL DE DIREITO, A PROIBIÇÃO DE
RETROCESSO E A GARANTIA FUNDAMENTAL DA
PROPRIEDADE
Prof. Ingo Wolfgang Sarlet
Doutor em Direito pela Universidade de Munique, Alemanha. Juiz
de Direito no RS. Professor de Direito Constitucional na Escola
Superior da Magistratura (AJURIS) e na Faculdade de Direito da
PUC/RS, onde também leciona no Mestrado em Direito.
1 - Considerações introdutórias: a crise do Estado social de Direito
e a problemática da proteção dos níveis vigentes de segurança social
Hoje, mais do que nunca, constata-se que a problemática da
sobrevivência do assim denominado Estado social de Direito constitui um dos
temas centrais da nossa época. A já corriqueira afirmativa de que o “Welfare
State” ou Estado-Providência se encontra gravemente enfermo1, além de
constantemente submetido à prova, não perdeu, portanto, sua atualidade. Que
as discussões de longe já não se restringem mais à esfera da análise política,
sócio-econômica e jurídica, mas se transformaram na preocupação de larga
parcela da humanidade pela manutenção de seu padrão de vida e até mesmo
pela sua sobrevivência, verifica-se não apenas a partir da especial atenção
dedicada ao tema nos meios de comunicação, mas pelo fato de que cada ser
humano, em maior ou menor grau, acaba sendo atingido pela crise. Cada
elevação de tributos, cada redução nos níveis prestacionais do Estado e cada
perda de um emprego e local de trabalho acaba por influenciar diretamente o
cotidiano da vida humana, de tal sorte que se pode partir da premissa de que a
crise do Estado Social é, ao mesmo tempo, uma crise de toda a sociedade.
1
Neste sentido, entre outros, P. Rosanvallon, A Crise do Estado-Providência, 1997, analisando
o problema especialmente com base na experiência francesa.
Oportunamente denominado de filho da moderna sociedade industrial, o
Estado social de Direito não poderá jamais permanecer imune às suas
transformações e desenvolvimento.2 Limitando-nos, por exemplo, a uma das
manifestações da atuação do Estado Social e analisando a problemática dos
sistemas de segurança social, verifica-se que é particularmente nesta esfera
que o dilema representado pela simultânea necessidade de proteção e, por
outro lado, de uma constante adequação dos níveis de segurança social
vigentes à realidade sócio-econômica se manifesta com particular agudeza. Se,
por um lado, a necessidade de uma adaptação dos sistemas de prestações
sociais às exigências de um mundo em constante transformação não pode ser
desconsiderada, simultaneamente o clamor elementar da humanidade por
segurança e justiça sociais continua a ser um dos principais desafios e tarefas
do Estado.3
De outra parte, a crescente insegurança no âmbito da seguridade social
decorre, neste contexto, de uma demanda cada vez maior por prestações
sociais e de um paralelo decréscimo da capacidade prestacional do Estado e
da sociedade.4 O quadro delineado remete-nos, por outro lado, ao angustiante
questionamento de o quanto as conquistas sociais podem e devem ser
preservadas. Em que pese o entendimento dominante de que uma supressão
pura e simples dos sistemas de seguridade social, sem qualquer tipo de
compensação, não é, em princípio, admissível e sequer tem sido seriamente
defendida, a problemática relativa à proteção constitucional das posições
sociais existentes permanece no centro das atenções.5 Em outras palavras,
cuida-se de investigar se, como e em que medida os sistemas prestacionais
existentes, concretizadores do princípio fundamental do Estado Social, podem
ser assegurados contra uma supressão e/ou restrições.
Neste particular, é preciso ressaltar que, de acordo com a doutrina
majoritária, uma proibição absoluta de retrocesso social tem sido excluída de
plano, mormente em face da dinâmica do processo social e da indispensável
flexibilidade das normas vigentes, de modo especial, com vistas à manutenção
da capacidade de reação às mudanças na esfera social e econômica.6 Por
outro lado, constata-se que a Lei Fundamental da Alemanha (no que não se
encontra isolada no âmbito europeu) não contém nenhum preceito que direta e
expressamente ofereça qualquer tipo de proteção ao nível constitucional do
sistema de segurança social e dos níveis prestacionais vigentes, advogando2
Cf. K.H. Friauf, in: Sozialstaat - Idee und Entwicklung, Reformzwänge und Reformziele, p. 67.
3
A este respeito v. B. Schulte, in: ZIAS 1988, pp. 208 e ss.
4
Cf., entre outros, B. Schulte, in: B. Riedmüller/M. Rodenstein (Org), Wie Sicher ist die soziale
Sicherheit? (O quanto é segura a seguridade social?), pp. 323-4. Sobre as causas da crise v.
também P. Rosanvallon, A Crise do Estado-Providência, pp. 13 e ss.
5
A este respeito v. E. Eichenhofer, in: ZIAS 1988, pp. 239 e ss. e, mais recentemente, O.
Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 417 e ss. Na literatura em língua portuguesa
encontramos, posicionando-se favoravelmente a uma vedação ao menos relativa de retrocesso
na esfera social, especialmente J.J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da
Constituição, , pp. 320 e ss.
6
Neste sentido, a lição de R.-U. Schlenker, Soziales Rückschrittsverbot und Grundgesetz, p.
239.
2
se, além disso, o entendimento de que tal garantia não pode ser direta e
exclusivamente deduzida do princípio geral (fundamental) do Estado social de
Direito (arts. 20, inc. I e 28, inc. I, da LF) ou mesmo das diversas normas de
competência.7 Mesmo assim, no âmbito de uma proibição relativa de
retrocesso, a doutrina e a jurisprudência alemãs, confrontadas com o problema,
lograram desenvolver, a partir do direito constitucional positivo, algumas
alternativas destinadas a ensejar um certo grau de proteção às prestações
sociais e ao sistema global de seguridade social. Particular relevância assumiu,
neste contexto, o direito e garantia fundamental da propriedade (art. 14 da LF),
razão pela qual esta será priorizada neste breve estudo sobre a proibição de
retrocesso social na Alemanha. As demais alternativas referidas na doutrina
serão, por ora, objeto de mera apresentação, tanto pelas limitações deste
artigo, quanto pelo fato de que não lograram atingir a mesma importância.
Antes de iniciarmos a análise propriamente dita da função da garantia da
propriedade para a proteção do sistema de seguridade social na Alemanha,
convém lembrar o leitor de que, ao mesmo tempo em que a discussão em
torno da redução (e até mesmo do desmonte completo) do Estado social de
Direito apresenta proporções mundiais, não há como desconsiderar que as
dimensões da crise e as respostas reclamadas em cada Estado
individualmente considerado são inexoravelmente diversas, ainda que se
possam constatar pontos comuns. Diferenciadas são, por outro lado, as
soluções encontradas por cada ordem jurídica para enfrentar o problema,
diferenças que não se limitam à esfera da natureza dos instrumentos, mas que
abrangem, de modo especial, a intensidade da proteção outorgada por estes
aos sistemas de seguridade social.
O estudo do modelo germânico, no âmbito do direito comparado,
assume particular interesse por várias razões, destacando-se o fato de que a
Alemanha foi não apenas o berço do socialismo científico de Karl Marx e
Friedrich Engels, mas também da social-democracia (com Lassale), bem como
da própria noção de um Estado social e democrático de Direito, bastando aqui
a referência à Constituição de Weimar (1919), vertente do constitucionalismo
social deste século. Por outro lado, pela posição de destaque que a Alemanha
(juntamente com a França e a Itália, por exemplo) ocupa na União Européia, o
estudo do exemplo germânico, além de expressar de modo geral e
paradigmático - ressalvadas as especifidades de cada país - a realidade do
Estado social de Direito na Europa ocidental, serve como importante fonte de
referência para uma análise comparativa.
Além disso, a peculiaridade das soluções desenvolvidas pela doutrina e
jurisprudência alemã (independentemente de sua eficácia e de suas
vantagens) merece alguma atenção não apenas pelas alternativas oferecidas,
mas também pelo uso de certas categorias que, salvo melhor juízo, poderiam
gerar certo interesse prático também entre nós, notadamente no que diz com a
figura da expectativa de direitos, a proteção da confiança e o uso do princípio
da proporcionalidade. Ademais, assume relevo o uso alternativo do direito e
garantia fundamental da propriedade, sinalizando de forma paradigmática as
7
Cf. R.-U. Schlenker, Soziales Rückschrittsverbot und Grundgesetz, pp. 240-1.
3
diversas funções que podem ser deduzidas dos direitos fundamentais e das
transformações que estes sofreram ao longo dos tempos. Assim, ainda que
venhamos a concluir pela desnecessidade ou inconveniência desta solução no
âmbito do direito pátrio, de modo especial em face dos mecanismos
consagrados em nossa Constituição, temos a convicção de que o presente
estudo não se restringe a um mero capricho pessoal, já que - salvo melhor
juízo - o desmantelamento do Estado social de Direito também entre nós se
encontra na ordem do dia.
Por derradeiro, ainda no que diz com a apresentação do tema e as
limitações deste estudo, cumpre ressaltar que a nossa atenção estará centrada
na apresentação e breve análise do modelo germânico, de modo especial, na
dimensão constitucional, isto é, jurídico-positiva, do problema da proibição de
retrocesso social. Estamos cientes, todavia, de que estaremos nos ocupando
apenas de um dos inúmeros aspectos da problemática global das
possibilidades e limites do Estado de Direito, isto sem falar na relevância
filosófica, sócio-econômica e política do tema.
II - A garantia fundamental da propriedade e a proteção
constitucional de posições jurídicas sociais prestacionais
Consoante já referido, a principal solução desenvolvida na Alemanha
para fundamentação de uma proteção para o sistema de prestações sociais e
das respectivas posições jurídico-subjetivas encontra-se vinculada ao direito e
garantia fundamental da propriedade (art. 14 da LF). A problemática da
estabilidade e flexibilidade das posições jurídicas no âmbito da seguridade
social acabou, por esta via, alcançando uma dimensão genuinamente
constitucional.8 Ainda que este tema continue sendo controverso, o Tribunal
Federal Constitucional da Alemanha (“Bundesverfassungsgericht”), após uma
fase inicial caracterizada por uma certa retração9, acabou por reconhecer em
diversas decisões que a garantia da propriedade alcança também a proteção
de posições jurídico-subjetivas de natureza pública, de tal sorte que,
atualmente, se pode falar da formação de um determinado grau de consenso
nesta esfera.10
Como ponto de partida para este desenvolvimento, costuma referir-se a
doutrina de Martin Wolff, que, relativamente ao art. 153 da Constituição de
Weimar, advogava o ponto de vista de que o conceito de propriedade abrange
toda sorte de direitos subjetivos privados de natureza patrimonial, o que
acabou por levar à afirmação de um conceito funcionalista de propriedade.11
Daí por que a garantia da propriedade não protege apenas a propriedade no
âmbito dos direitos reais, mas alcança uma função conservadora de direitos, no
8
Cf. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 419.
9
Esta a observação, entre outros, de Rittstieg, in: AK I, p. 1098.
10
Cf. H.-J. Papier, in: Maunz/Herzog/Dürig/Scholz, art. 14, p. 77.
11
Esta a lição de O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 421.
4
sentido de que ela igualmente tem por escopo oferecer ao indivíduo segurança
jurídica relativamente aos direitos patrimoniais reconhecidos pela ordem
jurídica, além de proteger a confiança depositada no conteúdo de seus
direitos.12
As posições jurídico-subjetivas patrimoniais de natureza pública
acabaram sendo colocados sob a proteção da garantia fundamental da
propriedade, na medida em que se considerou que o princípio do Estado de
Direito exige um tratamente igualitário relativamente às posições jurídicosubjetivas privadas.13 Para o Tribunal Federal Constitucional, o reconhecimento
desta proteção outorgada às posições subjetivas de direito público por meio da
garantia fundamental da propriedade encontra seu principal alicerce na estreita
vinculação entre o direito de propriedade e a liberdade pessoal, no sentido de
que ao indivíduo deve ser assegurado um espaço de liberdade na esfera
patrimonial, de tal sorte que possa formatar de maneira autônoma sua
existência.14
Ainda no que diz com a proteção de posições jurídico-subjetivas de
natureza pública por meio da garantia fundamental da propriedade, o Tribunal
Federal Constitucional, já em arestos anteriores, entendeu que esta proteção
tem por pressuposto a circunstância de que ao titular do direito é atribuída uma
posição jurídica equivalente à da propriedade privada e que, no caso de uma
supressão sem qualquer compensação, ocorreria uma colisão frontal com o
princípio do Estado de Direito, tal como plasmado na Lei Fundamental.15
Paradigmática é, portanto, a virtual equiparabilidade das posições subjetivas de
direito público com a condição do proprietário.16 Com a inclusão de direitos
subjetivos patrimoniais de natureza pública na esfera da seguridade social no
âmbito de proteção da garantia fundamental da propriedade, verificou-se uma
ampliação do conceito de propriedade vigente no direito privado, do qual o
conceito constitucional de propriedade acabou por se desprender quase que
completamente.17
De acordo com a melhor doutrina e jurisprudência, verifica-se, todavia,
que nem todos os direitos subjetivos patrimoniais de natureza pública
encontram-se abrangidos pela garantia fundamental da propriedade (art. 14 da
LF), mas tão somente os que atendem a determinados requisitos, sendo,
desde logo, descartada uma extensão generalizada.18 A partir de duas
decisões modelares sobre o tema, o Tribunal Federal Constitucional acabou
enunciando alguns critérios essenciais para o reconhecimento da proteção de
12
Cf. a lapidar formulação de P. Badura, in: HbVR, p. 347.
13
Assim também P. Badura, in: HbVR, p. 349.
14
Cf. BVerfGE 53, 257 (290).
15
A este respeito e sobre as diversas etapas da evolução no âmbito da jurisprudência do
Tribunal Federal Constitucional, v. W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1069.
16
Cf. Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 840, e, mais recentemente, R. Wendt, in: M. Sachs (Org),
Grundgesetz, p. 491.
17
Neste sentido a oportuna referência de Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 830.
18
Cf. , dentre outros, H.-J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art, 14, p. 80.
5
posições jurídico-subjetivas de natureza pública pela garantia da propriedade,
quais sejam: a) à posição jurídica individual (isto é, ao direito subjetivo a
prestação social) deve corresponder uma contraprestação pessoal de seu titula
; b) deve tratar-se de uma posição jurídica de natureza patrimonial, que possa
ser tida como de fruição privada para o seu titular; c) ela deve servir à garantia
da existência de seu titular.19 Sobre estes pressupostos passaremos a nos
manifestar em seguida.
No que diz com o primeiro critério, é preciso que se leve em conta se o
direito subjetivo público se encontra exclusivamente fundado em uma
prestação estatal ou se ele pode ser tido como equivalente a uma prestação
própria de seu titular.20 Uma posição jurídico-subjetiva patrimonial embasada
exclusivamente numa prestação unilateral do Estado tem sido rechaçada.21 O
quanto cada titular de um direito público subjetivo deve ter contribuído a título
de prestação própria ainda não foi, contudo, completamente esclarecido.22 No
que tange a este aspecto, é possível partir da premissa de que uma
equivalência absoluta entre a prestação estatal e a contrapartida pessoal não
se revela como indispensável, bastando - de acordo com o Tribunal Federal
Constitucional - uma contribuição “não irrelevante” por parte do titular do
direito.23 Significativo é que, desde sua decisão do dia 16-07-85, o Tribunal tem
sustentado o entendimento de que, para o reconhecimento da proteção da
garantia da propriedade, considera-se suficiente que a pretensão do particular
não se encontre embasada única e exclusivamente numa prestação unilateral
do Estado.24
Para além disso, tem sido tolerado que a contraprestação provenha de
terceiros, em favor do titular do direito, tal como ocorre com as contribuições
sociais dos empregadores.25 Importa referir, neste contexto, o fato de que é a
totalidade da pretensão e não apenas as parcelas equivalentes às
contrapartidas individuais dos particulares que se encontra abrangida pela
proteção da garantia da propriedade.26 Na base do critério da contrapartida
pessoal do particular, encontra-se a concepção de que as posições jurídicas
19
Ainda que o Tribunal tenha, posteriormente, adaptado e aprimorado certos aspectos
específicos, as estruturas fundamentais de sua jurisprudência nesta seara foram preservadas.
A este respeito v. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 423.
20
Cf. BVerfGE 53, 257 (291).
21
Neste sentido, W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, p. 71.
22
Cf. W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1069.
23
Cf. BVerfGE 69, 272 (300).
24
Cf. BVerfGE 69, 272 (301). Na doutrina, v. especialmente H.-J. Papier, in:
Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, pp. 84-5, que oportunamente chama a atenção para o fato
de que com esta decisão, o Tribunal acabou rechaçando a presunção de que a proteção
constitucional das prestações sociais (notadamente das de cunho previdenciário) se limitaria,
em verdade, a uma proteção do montante das contribuições particulares, de tal sorte que
acabou por se aceitar uma proteção generalizada dos direitos previdenciários (pensões e
aposentadorias).
25
Cf. BVerfGE 69, 272 (302).
26
Cf. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 425.
6
patrimoniais de natureza pública radicam no reconhecimento do esforço
pessoal, isto é, do que foi alcançado pelo trabalho e formação profissional de
cada indivíduo,27 correspondendo, além disso, à concepção de que é o próprio
indivíduo que deve, em princípio, zelar pelo seu sustento.28 Ainda que o
reconhecimento da proteção por meio da garantia da propriedade não esteja
condicionado ao montante da contraprestação pessoal (desde que esta exista
e não seja irrelevante), este tem sido considerado decisivo quando se cuida de
avaliar a relação de pertinência pessoal (“der personale Bezug”), no sentido de
que quanto maior a contraprestação do particular, mais robusto o vínculo
pessoal que caracteriza a proteção constitucional baseada no direito-garantia
de propriedade.29 Assim, chega-se à conclusão de que para o Tribunal Federal
Constitucional, o montante da contribuição pessoal é decisivo para o alcance e
a definição da intensidade da proteção constitucional das posições jurídicosubjetivas de natureza pública no âmbito da seguridade social.30
Estreitamente vinculada ao critério da contribuição pessoal do particular,
situa-se a segunda condição exigida pelo Tribunal Federal Constitucional, qual
seja a de que as posições jurídicas patrimonias de direito público protegidas
constitucionalmente correspondam, de certa forma, às posições jurídicosubjetivas particulares, sintonizando, de tal sorte, com a noção de propriedade
particular.31 De acordo com o Tribunal, esta equivalência pode ser reconhecida
quando o titular do direito pode partir da premissa de que se cuida de uma
posição jurídica pessoal, própria e exclusiva,32 caracterizada por uma essencial
disponibilidade por parte de seu titular.33 De outra parte, esta indispensável
relação de similitude com o direito de propriedade, tal como exigida pelo
Tribunal Federal Constitucional, pressupõe que estejamos diante de uma
posição jurídico-subjetiva pessoal consolidada, que não poderá ser
simplesmente suprimida de acordo com o que deflui do princípio do Estado de
Direito.34
Essencial para o reconhecimento da proteção de uma posição jurídicosubjetiva na esfera da segurança social por meio da garantia da propriedade é,
além disso, o fato de que deverá ser destinada à garantia da existência de seu
titular.35 Com este entendimento, o Tribunal Federal Constitucional acabou
aderindo à posição sustentada, no âmbito de decisão anterior, pela Juíza
Rupp-von Brünneck, em seu voto dissidente, de acordo com a qual quando a
garantia da propriedade contém também um certo grau de proteção da
27
Esta a formulação de P. Badura, in: HbVR, p. 350. Neste sentido v. também H.-J. Papier, in:
Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, p. 81.
28
Cf. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 425.
29
Cf. BVerfGE 53, 257 (292) e 58, 81 (112).
30
Esta a constatação de H.-J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, p. 85.
31
Neste sentido v. BVerfGE 69, 272 (300-1).
32
Assim também BVerfGE 69, 272 (300-1).
33
Neste sentido, v. W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, p. 73.
34
Cf. R. Wendt, in:M. Sachs (Org), Grundgesetz, p. 491.
35
Cf. BVerfGE 69, 272 (303).
7
liberdade, na medida em que assegura ao cidadão as condições necessárias
para uma vida autônoma e responsável, assim também esta proteção deverá
abranger as posições jurídico-subjetivas de direito público, já que estas têm
alcançado uma crescente importância para a pessoa no que diz com sua
existência econômica.36
Cumpre observar, todavia, que com este critério adicional, o pressuposto
da contraprestação do particular acabou sendo relativizado,37já que com o
caráter existencial da posição jurídico-subjetiva individual, o Tribunal Federal
Constitucional reconheceu que a maior parte dos cidadãos alcança a sua
segurança existencial econômica (“wirtschaftliche Existenzsicherung”), menos
por meio de patrimônio privado imobiliário e/ou mobiliário, do que pelo
resultado de seu trabalho.38 Para o Tribunal, a garantia da propriedade no
Estado social de Direito sofreria um sério déficit na sua funcionalidade, caso
não abrangesse posições jurídico-subjetivas patrimoniais que cumprem a
função de principal e, por vezes, até mesmo de única fonte para a existência de
maior parte da população.39
No âmbito destes três pressupostos e da ampliação do conteúdo social
do conceito de propriedade a eles vinculada40, a proteção das posições
jurídico-subjetivas patrimoniais de direito público pela garantia da propriedade
foi sensivelmente enrobustecida. Assim ocorre, por exemplo, com a maioria
das prestações que integram o sistema público de seguridade social, de modo
especial, contudo, as aposentorias e pensões.41 Também as expectativas de
direitos (Anwartschaften) foram abrangidas, notadamente aquelas posições
jurídico-subjetivas de direito púiblico que, mediante o implemento de outras
condições (por exemplo um certo prazo de espera e/ou carência), tornam-se
plenamente exigíveis.42 Da mesma forma ocorre com o seguro-desemprego, os
direitos decorrentes do seguro de acidentes, a remuneração pelo trabalho
temporário
(“Kurzarbeitsgeld”),
os
incentivos
para
a
infância
(“Kinderzuschüsse”), bem como com o seguro-saúde dos aposentados contra
doenças, apenas para citar as hipóteses mais habituais.43 Não protegidas pela
garantia de propriedade (art. 14 da LF), são, em contrapartida, as assim
denominadas prestações reabilitatórias (“Rehabiliationsleistungen”) e
secundárias (“Nebenleistungen”) sem a respectiva contraprestação44, tal como
o auxílio para as crianças (“Kindergeld”), o auxílio para a juventude
(“Jugendhilfe”), a assistência social (“Sozialhilfe”), o auxílio moradia
36
Cf. BverfGE 32, 129 (142).
37
Cf. W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1070.
38
Cf. BVerfGE 69, 272 (303).
39
Cf. BVerfGE 53, 257 (294).
40
Cf. a oportuma referência de W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1070.
41
Cf. Bryde, in: von Münch/Kunig, p. 841.
42
Neste sentido v. BVerfGE 53, 257 (289-90).
43
Cf. R. Wendt, in: M. Sachs (Org) Grundgesetz, p. 492, Jarass/Pieroth, p. 322, Rittstieg, in: AK
I, p. 1098 e H.-J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, p. 95.
44
Cf. R. Wendt, in: M. Sachs (Org) Grundgesetz, p. 492.
8
(“Wohngeld”),
os
incentivos
para
a
formação
profissional
(“Ausbildungsförderung”) e a indenização social (“soziale Entschädigung”).45 Já
que não se cuida, aqui, de relacionar todos os possíveis exemplos, analisandoos individualmente, cumpre referir, neste contexto, que, para o reconhecimento
da proteção constitucional ora em exame, é necessário que se trate de
prestações obrigatórias (“Pflichteleistungen”), o que exclui, desde logo,
prestações discricionárias, que não radicam numa posição jurídica similar à
propriedade privada, ao menos, de acordo com o entendimento do Tribunal
Federal Constitucional e de parte da doutrina.46
Os critérios enunciados pelo Tribunal Federal Constitucional e, de regra,
reconhecidos também pela doutrina, não ficaram, contudo, imunes à críticas.
Neste sentido, costuma referir-se, a partir do paradigmático voto dissidente da
Juíza Rupp von Brünneck, que não se revela razoável o entendimento de que a
proteção outorgada pela garantia fundamental da propriedade às posições
jurídico-subjetivas patrimoniais de direito público deva, necessariamente, estar
condicionada a uma contraprestação do titular do direito e, além disso, servir
para garantir a sua existência. Argumenta-se, neste sentido, que estes dois
requisitos não são aplicados no âmbito do direito privado, onde basta a
existência de um direito subjetivo de cunho patrimonial, de tal sorte que os
critérios da contraprestação e do caráter existencial - exigidos em se tratando
de posições jurídico-prestacionais de natureza pública - assumiriam relevância
apenas no que diz com a problemática dos limites à regulamentação
legislativa.47
Aderindo a estas críticas, o Prof. Hans-Jürgen Papier, da Universidade
de Munique, ressalta o fato de que as posições patrimoniais jurídico-privadas
alcançam sua força direta e exclusivamente a partir da norma contida no art. 14
da LF (garantia da propriedade), de tal sorte que, se as posições de direito
público já obtiveram sua especial força jurídica a partir de outras normas
constitucionais, a aplicação supletiva da garantia da propriedade não apenas
se revela desnecessária, mas relativizante, visto que, de acordo com o art. 14,
inc. III, da LF, estaria, em princípio, sujeita a ser desapropriada mediante uma
indenização.
Neste contexto, há, ainda, quem advirta para os riscos de uma ruptura
no clássico e unitário conceito de propriedade, no sentido de que estaria
ocorrendo uma inequívoca evolução de uma propriedade assegurada sem
reservas,
para
uma
propriedade
carente
de
justificação
45
Cf. H-J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, p. 94.
46
Assim também H.-J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, p.95.
47
Assim, aproximadamente, Rittstieg, in: AK I, p. 1099. Neste sentido v. também a crítica de H.J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, p. 81, que, para além da crítica já tecida,
chama a atenção para o fato de que as posições jurídico-patrimoniais privadas alcançam sua
força única e exclusivamente com base no art. 14 da LF, de tal sorte que se as posições de
direito público já obtiveram sua especial força jurídica a partir de outras normas constitucionais,
a aplicação supletiva do art. 14 da LF não se revela apenas desnecessária, mas relativizante,
visto que, de acordo com o disposto no art. 14, inc. III, da LF. estaria sujeita a ser
desapropriada mediante uma indenização. (Entziehbar).
9
(“rechtfertigunsbedürftigten Eigentum)”.48 Para além disso, argumenta-se que o
requisito da garantia existencial (“Existenzsicherung”) acabaria levando a uma
tendencial substituição do conteúdo liberal da garantia da propriedade.49 No
que diz com a exigência da contraprestação do titular do direito, sustenta-se a
opinião de que no âmbito dos direitos patrimonias públicos não se cuida do
direito a uma parcela do patrimônio global da seguridade social equivalente à
soma das contraprestações pessoais do titular, mas sim, da participação na
receita futura da previdência social, de tal sorte que à pretensão do particular
corresponde apenas de forma relativa e em tese uma contrapartida pessoal
equivalente.50
Por derradeiro, aponta-se oportunamente para a circunstância de que,
em decorrência dessa flexibilização e ampliação da noção de propriedade e do
âmbito de proteção da respectiva garantia fundamental, corre-se o risco de
uma crescente relativização desta proteção, visto que em virtude das
exigências da função social da propriedade, boa parte daquilo que foi
concedido poderá acabar sendo retirado.51 Com efeito, no âmbito do já referido
dilema representado pela necessidade constante de adaptação e simultânea
proteção dos níveis prestacionais vigentes, a problemática da cimentização das
posições jurídicas sociais acaba por alcançar dimensões preocupantes, de
modo especial em face da possibilidade de restrições por parte do Legislador,
expressamente autorizadas pelo art. 14, inc. I da Lei Fundamental, bem como
do conseqüente risco de uma flexibilização demasiada da proteção
constitucional da propriedade, já referida. Importa consignar, neste sentido, que
a proteção concreta das posições jurídicas sociais depende, em última análise,
da definição do conteúdo e dos limites da garantia fundamental da propriedade
por parte do legislador.52
A respeito deste tema, cumpre ainda citar o entendimento do Tribunal
Federal Constitucional, para o qual, “na determinação do conteúdo e dos
limites de posições jurídicas previdenciárias, o legislador dispõe de uma ampla
liberdade de conformação. Isto aplica-se principalmente à normas que se
destinam a preservar, aperfeiçoar ou adaptar à realidade econômica em
mutação, em benefício da coletividade, a funcionalidade e capacidade
prestacional do sistema legal de previdência social. Neste sentido, a norma
contida no art. 14, inc. I da Lei Fundamental também abrange a possibilidade
de restringir direitos e expectativas de direitos. Conquanto tal medida sirva ao
interesse comunitário e corresponda ao princípio da proporcionalidade, ao
48
Neste sentido, a pertinente preocupação de O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 428.
49
Cf. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 434.
50
Cf. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 429-31, o qual questiona o critério da
contraprestação pessoal do particular, reconhecendo-lhe - com exceção de sua utilidade como
critério de cálculo (Berechnungsfaktor)- apenas uma reduzida significação.
51
Neste sentido v. também O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 434 e ss. Assim
também W. Leisner, in: HbStR VI, p. 1071, que também fala do perigo de uma diluição do
conceito de propriedade (“Verwässerung des Eigentums”).
52
Cf. W. Boecken, Der Verfassungsrechtliche Schutz, p. 74, em adesão à jurisprudência da
Corte Federal Constitucional (BVerfGE 53, 257 [292]).
10
legislador não estará, em princípio, vedada a redução de prestações, bem
como a alteração da amplitude de pretensões e expectativas, assim como a
sua adequação. Todavia, sua liberdade de atuação encontra-se reduzida, na
mesma proporção em que os direitos e expectativas estão impregnados pelo
vínculo pessoal da contrapartida de seu titular.” 53
A partir destas considerações do Tribunal Federal Constitucional,
constata-se que quanto maior a função social da posição jurídica prestacional
protegida e existindo uma justificativa legitimadora, no caso, o interesse
coletivo, tanto maior é a possibilidade de restrições por parte do legislador. Em
contrapartida, o caráter existencial da posição jurídica e o montante da
participação do titular traçam limites mais ou menos severos a esta atividade
legislativa. De qualquer modo, é preciso considerar sempre a proporcionalidade
da medida restritiva e o respeito ao princípio da proteção da confiança.54 Uma
restrição será constitucionalmente legítima - de acordo com o Tribunal
Constitucional - quando a limitação, adequação ou reformulação das posições
juridicas prestacionais se revela como indispensável para a proteção da
capacidade funcional e prestacional do sistema de seguridade social.55 Além
disso, deverão ser observados os pressupostos específicos do princípio da
proibição de excesso (“Ubermassverbot”), notadamente, que a medida restritiva
seja necessária e adequada ao fim almejado pelo legislador, não podendo,
para além disso, ser excessivamente onerosa (“Belastend”) e inexigível
(“Unzumutbar”). Assim, constata-se a indispensabilidade de uma ponderação
que leve em conta a relação de equilíbrio entre a intensidade da restrição para
o titular do direito e os valores utilizados para legitimar a restrição.56
Ainda no que diz com a legitimidade de eventuais medidas restritivas, há
que considerar que a aferição da proporcionalidade da restrição poderá ser
realizada apenas à luz do caso concreto, já que a resposta depende da
comparação entre o interesse público na restrição e o interesse individual do
titular do direito na sua preservação, não podendo, portanto, ser préestabelecida de foma genérica e abstrata.57 Por outro lado, a restrição
dependerá de especial justificação constitucional quando o legislador invadir o
núcleo essencial da equivalência pessoal, já que neste caso não basta a
existência de qualquer fim coletivo. A restrição deverá servir, portanto, à
proteção de outros direitos fundamentais, ser indispensável à preservação de
bens jurídicos superiores ou mesmo atuar como mecanismo de defesa contra
53
Cf. BVerfGE 53, 257 (293), posteriormente confirmado em BVerfGE 58, 81 (122 e ss.) e
BVerfGE 69, 272 (304).
54
A este respeito v. especialmente H.-J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, p. 85,
bem como W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, pp. 77-8.
55
Cf. BVerfGE 53, 257 (296) e BVerfGE 58, 81 (114).
56
Neste sentido, v. W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, pp. 77-8. Na jurisprudência,
v. BVerfGE 58, 81 (114).
57
A este respeito v. D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, p. 860.
11
graves ameaças, devidamente comprovadas ou pelo menos altamente
prováveis.58
A estes pressupostos soma-se a necessidade de se atentar para o
princípio da proteção da confiança, por sua vez, diretamente vinculado ao
Estado de Direito, o qual, relativamente à garantia fundamental da propriedade
do art. 14 da Lei Fundamental, realiza a função de uma garantia da segurança
jurídica para o cidadão.59 Isto assume relevância especialmente nos casos em
que a medida legislativa restritiva acaba atingindo direitos adquiridos. Ainda
que os titulares não tenham direito a uma determinada posição legislativa
(“Gesetzeslage”), vindo a ser atingidas posições jurídicas já consolidadas, o
interesse individual deverá ser especialmente considerado, exigindo-se uma
cuidadosa ponderação entre os objetivos do legislador e a necessidade de se
proteger a confiança do particular.60 No contexto desta averiguação da
proteção da confiança, a jurisprudência constitucional previu a necessidade de
o legislador estabelecer regras razoáveis de transição, já que os atingidos
pelas medidas restritivas deverão contar com a possibilidade de se adaptar à
sua nova situação jurídica.61
Paralelamente ao princípio da proteção da confiança também tem sido
sustentada a obrigação de continuidade do legislador na esfera social, inerente
ao princípio do Estado de Direito, conjugada com a função substitutiva de
remuneração (“Lohnersatzfunktion”) das aposentadorias. Neste sentido,
advoga-se o ponto de vista de que as prestações na seara da previdência
social devem respeitar o parâmetro representado pelo nível de rendimentos
dos segurados em atividade profissional, o que decorre da obrigação de
continuidade do legislador, que deverá zelar por uma certa continuidade
sistêmica (“Systemkontinuität”) em favor do contribuinte, garantia que não se
limita ao patamar representado pelas condições materiais mínimas para uma
existência digna.62
Ainda no que concerne à proteção das posições jurídicas patrimoniais
de direito público pela garantia da propriedade, cumpre referir o cunho
participativo da norma contida no art. 14 da LF, no sentido de que as
pretensões e expectativas individuais, na verdade, objetivam uma futura e
58
Esta a lição de H.-J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, pp. 85-6.
59
Neste sentido, v. W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, pp. 78 e ss. Assim também
D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, pp. 861 e ss. e BVerfGE 58, 81 (120-1).
60
Assim o entendimento de D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, p. 863 e Rittstieg, in: AK I, p.
1118.
61
V. os votos dissidentes dos Juízes E. Benda e D. Katzenstein em BVerfGE 58, 81 (131 e ss.)
e 72, 9 (23 e ss.), onde a duplicação do prazo de carência no âmbito do seguro desemprego foi
tida como inexigível. Na literatura,v., entre outros, Rittstieg, in: AK I, p. 1118.
62
Cf., de modo especial, H.-J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, pp. 88-9, que,
baseado na lição de Scholz, aponta para o fato de que no âmbito desta obrigação de
continuidade, não se assegura a aposentadoria calculada com bade no parâmetro da
remuneração bruta, assim como não se garante o nível prestacional vigente, já que, no caso de
uma queda na arrecadação, também uma diminuição do valor das prestações sociais se
afigura possivel.
12
relativa participação no resultado financeiro, na proporção das contribuições
pessoais.63 Cuida-se, portanto, de uma garantia (fundamental) da participação
individual no sistema global de seguridade e previdência social na medida das
anteriores contribuições pessoais, de tal sorte que o titular da posição jurídica
não dispõe de uma pretensão a um valor determinado ou determinável da
prestação social que possa ser tido como equivalente às contribuições
pessoais.64
Do exposto, constata-se que a garantia fundamental da propriedade, no
âmbito das prestações sociais, não assegura o nível prestacional vigente,
razão pela qual o valor da prestação se encontra, relativamente às
contribuições pessoais, tão somente numa proporção relativa.65 As
contribuições do titular do direito servem, em última análise, para assegurar a
posição no ranking da comunidade solidária dos assegurados sociais.66 Neste
contexto, a doutrina chegou a referir uma espécie de transmutação
(“Wandelung”) no âmbito da garantia fundamental da propriedade, que, de
acordo com este entendimento, teria transitado de um direito de defesa para a
condição de um direito de participação (quota-parte), o qual, por sua vez, se
caracteriza pela sua dependência da capacidade prestacional do sistema
global de seguridade social, trazendo consigo, todavia, o risco de uma
relativização da proteção outorgada pelo art. 14 da Lei Fundamental (direito e
garantia da propriedade).67
Por derradeiro, poderá concluir-se que, por meio da garantia
fundamental da propriedade, as posições jurídico-prestacionais sociais
acabaram recebendo uma proteção muito relativa e flexível, já que - de acordo
com a precisa e oportuna formulação de Depenheuer - assegurada
constitucionalmente é tão somente a inespecífica pretensão à segurança
existencial por meio de prestações sociais na esfera da seguridade e
previdência social.68 Constata-se, portanto, que, se por um lado, a garantia de
determinadas posições jurídicas sociais de direito público pode ser tida como
segura, por outro, o que e o quanto é assegurado permanece inseguro.
63
Neste sentido, v. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442. Semelhantemente também
P. Badura, in: HbVR, p. 350, que igualmente sustenta a opinião de que as pretensões e
expectativas de direitos podem ser consideradas a partir de uma dimensão participativa da
noção de propriedade (teilhaberechtlich ausgestaltetes Eigentum).
64
Cf. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442.
65
Cf. O Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442, assim como Rittstieg, in: AK I, p. 1099. No
âmbito da jurisprudência constitucional, v. BVerfGE 58, 81 (108 e ss.).
66
Cf. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 442.
67
Neste sentido, principalmente, H.-J. Papier, in: Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, art. 14, p. 80,
secundado por O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), pp. 442-3. Averbe-se, todavia, a
posição crítica de G. Haverkate, in: ZRP 1984, p. 221, que rechaça o cunho prestacional da
garantia da propriedade, sob o argumento de que, em verdade, não é o Estado que fornece as
prestações, mas sim, os contribuintes da seguridade social, de tal sorte que não é
propriamente às prestações estatais que é outorgada a especial dignidade dos direitos
fundamentais, mas sim, à comunidade dos segurados sociais.
68
Cf. O. Depenheuer, in: AÖR nº 120 (1995), p. 444.
13
III - Outras possibilidades de proteção constitucional das posições
jurídicas sociais de direito público: uma visão panorâmica
Além da proteção por meio da garantia fundamental da propriedade,
existem evidentemente outras possibilidades de assegurar constitucionalmente
as posições jurídico-subjetivas prestacionais de direito público no direito
alemão. Isto aplica-se principalmente às posições jurídicas que não preenchem
as condições exigidas para a incidência do art. 14, inc. II, da Lei Fundamental.
É de se atentar, por outro lado, que não se trata de mecanismos assecuratórios
complementares, mas de critérios autônomos constitucionalmente embasados.
A doutrina, assim como a jurisprudência, costumam referir basicamente as
seguintes alternativas: a) o princípio da proteção da confiança, desenvolvido a
partir do postulado do Estado de Direito (art. 20, inc. III, da LF); b) o princípio
fundamental da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I, da LF); c) o
princípio do Estado Social (art. 20, inc. I, da LF); d) o princípio geral de
igualdade (art. 3º, inc. I, da LF). É a respeito de tais alternativas que
passaremos a tecer algumas considerações individualizadas, ainda que de
cunho sumário.
A) No que diz com a importância do princípio (fundamental) da proteção
da confiança, diretamente deduzido do princípio do Estado de Direito, este - de
acordo com o entendimento majoritário na doutrina alemã - apenas alcança
significado autônomo para a problemática da proteção das posições jurídicas
sociais, na medida em que estas não se encontram abrangidas pelo âmbito de
proteção da garantia da propriedade.69 Como concretização do princípio da
segurança jurídica, o princípio da proteção da confiança serve como
fundamentação para a limitação de leis retroativas, que agridem situações
fáticas já consolidadas (retroatividade própria), ou que atingem situações
fáticas atuais, acabando, contudo, por restringir posições jurídicas geradas no
passado (retroatividade imprópria), já que a idéia de segurança jurídica
pressupõe a confiança na estabilidade de uma situação legal atual.70 Com base
no princípio da proteção da confiança, eventual intervenção restritiva no âmbito
de posições jurídicas sociais, exige uma ponderação entre a agressão (dano)
provocada pela lei restritiva à confiança individual e a importância do objetivo
almejado pelo legislador para o bem da coletividade.71
B) Vinculado ao princípio da proteção da dignidade da pessoa humana,
tal como plasmado no art. 1º, inc. I, da LF, também pode ser tida como limite ao
retrocesso na esfera da legislação social a preservação de um mínimo
indispensável para uma existência digna, no sentido de que as restrições no
âmbito das prestações sociais não podem, em hipótese alguma, ficar aquém
deste limite, pena de ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Independentemente disto, há que considerar que - de acordo com a doutrina e
69
Neste sentido, entre outros, W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, p. 81 e Bryde, in:
von Münch/Kunig, p. 842.
70
Cf. W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, p. 80.
71
Esta a lição de D. Katzenstein, in: FS für H. Simon, p. 862, com apoio na jurisprudência do
Tribunal Federal Constitucional, de modo especial, BVerfGE 64, 87 (104). Assim também W.
Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, p, 82.
14
a jurisprudência - a própria cláusula geral do Estado Social (art. 20, inc. I, da
LF) já fundamenta uma obrigação do poder público no sentido de promover a
assistência aos necessitados.72 Foi justamente neste contexto que a doutrina e
jurisprudência alemãs desenvolveram, a partir de uma exegese criativa calcada
na interligação entre o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, inc. I),
do direito à vida (art. 2º, inc. I) e do princípio do Estado Social (art. 20, inc. I),
um direito fundamental não escrito à garantia das condições materiais mínimas
para uma existência digna.73
Somente isto já poderia servir de limite para uma legislação restritiva e,
principalmente, demolitória do sistema de prestações sociais vigente, no
sentido de que em qualquer hipótese jamais poderá o legislador agredir o
núcleo essencial deste direito fundamental não escrito (ou implícito). Cumpre
averbar, de outra parte, que a função social da garantia de uma existência
digna já vem sendo concretizada, na Alemanha, há cerca de trinta e sete anos,
no âmbito da legislação social infraconstitucional.74 Todavia, há que levar em
consideração o fato de que na doutrina - muito embora não sem divergências sustenta-se a opinião de que a assistência social prestada para uma garantia
das condições mínimas existenciais não se limita ao mínimo no sentido
econômico, alcançando também um mínimo na acepção sócio-cultural, ainda
que a determinação do valor da prestação assecuratória deste mínimo
existencial não tenha sido consensualmente obtida, não se podendo falar, até o
presente momento, de uma solução uniforme no que diz com este aspecto.75
C) Também o princípio do Estado Social (art. 20, inc. I, da LF) costuma
ser utilizado como fundamento para uma proteção constitucional de posições
jurídicas sociais, ainda que neste contexto não lhe seja outorgada significação
autônoma, já que a partir do princípio do Estado Social não se podem deduzir
direitos subjetivos individuais a prestações legislativas determinadas, de tal
sorte que o princípio apenas (o que não é pouco) fornece, como critério
hermenêutico, diretrizes para a avaliação da constitucionalidade de restrições
legislativas na esfera dos sistemas prestacionais vigentes.76 A importância do
princípio do Estado Social manifesta-se, portanto, principalmente na sua
combinação com outros valores constitucionais essenciais consagrados pela
Lei Fundamental, notadamente com o princípio da isonomia (art. 3º, inc. I), a
garantia das condições existenciais mínimas (aqui, como já referido, em
combinação com os arts. 1º, inc. I e 2º, inc. I), bem como com a concepção já
referida atribuída à garantia fundamental da propriedade, impregnada do
72
Cf., entre outros, o entendimento de H.-F. Zacher, in: HbStR I, pp. 1062 e ss.
73
A este respeito v. meu “A Eficácia dos Direitos Fundamentais, pp. 283 e ss.
74
Basta, neste sentido, referir o Parágrafo 9º da Parte Geral do Código da Previdência e
Seguridade Social (Sozialgesetzbuch - allgemeiner Teil), bem como dos Parágrafos 1º, inc. I,
4º, inc. I e 11, inc. I, da Lei Federal de Assistência Social (Bundessozialhilfegesetz), que, na
sua formulação original, foi editada em 30.06.1961.
75
A respeito desta problemática v., entre outros, J. van Bargen, in: FS für H. Simon, pp. 745 e
ss.(de modo especial, porém, pp. 749 e ss.).
76
Cf. W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, pp. 82-3.
15
conteúdo de justiça social inerente ao princípio do Estado social e democrático
de Direito.
D) Por derradeiro, também ao princípio geral de isonomia (art. 3º, inc. I,
da LF) poderá ser atribuída uma importância relativamente limitada no que diz
com a problemática da proibição de retrocesso social na Alemanha, isto pelo
fato de que o princípio isonômico basicamente é utilizado como parâmetro para
a aferição da constitucionalidade de medidas legislativas que dizem respeito a
outro grupo de pessoas.77 Neste sentido, é necessário que, na hipótese de uma
intervenção legislativa em posições jurídicas vigentes, a restrição resultante
para todos os segurados (considerados individualmente ou em grupos) seja
compatível com as exigências do princípio da igualdade, de tal sorte que este,
atuando como mandado de uma restrição igualitária, cumpre a função de claro
limite para a arbitrária tomada de medidas restritivas ou impositivas de
encargos, de modo especial por parte do legislador.78
IV - Considerações finais, inclusive em nível de direito comparado
Os exemplos referidos, de modo especial, a proteção das posições
jurídicas sociais de direito público pela garantia fundamental da propriedade,
revelam que - para além de uma abolição pura e simples, sem compensação,
de sistemas prestacionais legais, a qual se encontra absolutamente vedada também medidas de cunho restritivo somente podem ser toleradas até certo
ponto, pena de eventual ofensa aos postulados básicos inerentes ao princípio
do Estado social de Direito e aos direitos fundamentais. Neste sentido,
constatou-se que no âmbito do direito germânico é possível sustentar a
existência de uma proteção constitucional dos direitos sociais previstos na
legislação infraconstitucional, proteção cujo alcance não pode ser estabelecido
previamente de forma genérica e abstrata. Isto porque esta proteção depende,
por um lado, de uma cautelosa e criteriosa ponderação das circunstâncias
concretas, devendo, de outra parte, levar em consideração o abismo inevitável
entre a realidade fática e a dimensão normativa.
Para além disso, percebe-se que os critérios e alternativas
desenvolvidos no âmbito do direito constitucional germânico podem ser
trasladados apenas parcialmente para o direito pátrio, carecendo, ademais, de
uma adaptação às especifitudes de nossa ordem jurídica. Por outro lado,
existem aspectos comuns que não podem ser desconsiderados, de modo
especial, o fato de que também entre nós não há como sustentar uma vedação
absoluta de medidas restritivas na esfera dos direitos sociais prestacionais, já
que nem mesmo os direitos fundamentais sociais expressamente consagrados
77
Cf. W. Boecken, Der verfassungsrechtliche Schutz, p. 83.
78
Neste sentido v. a lição de B. Schulte, in: ZIAS 1988, pp. 212-3, que ainda chama a atenção
para o fato de que os efeitos do princípio da igualdade são, neste contexto, essencialmente de
ordem negativa, no sentido de que ela veda determinadas configurações discriminatórias no
âmbito da legislação social. Assim também, inobstante de forma mais tímida, E. Eichenhofer,
in: ZIAS 1988, p. 240.
16
na Constituição - os quais integram inequivocamente o rol das “cláusulas
pétreas” do art. 60, par. 4º, da CF de 1988 - são imunes a restrições. Com
efeito, apenas a abolição efetiva ou tendencial destes direitos encontra-se
vedada, uma vez que o que se pretende é a preservação de seu núcleo
essencial, pena de uma indesejável galvanização das normas constitucionais,
que, por seu turno, traz em seu bojo o risco de uma intolerável ruptura da
ordem constitucional, em face do insuperável abismo entre a constituição
formal e a realidade constitucional.79
Sendo comum a ambas as ordens jurídicas (alemã e brasileira) uma
vedação pelo menos relativa de retrocesso na esfera do sistema vigente de
prestações sociais, que, em última análise, representa a concretização no
plano da legislação infraconstitucional do princípio do Estado social de Direito
e/ou dos direitos fundamentais sociais consagrados na Constituição, não há
como negar, de outra parte, a existência de uma série de diferenças a serem
consideradas.
Sem qualquer pretensão de exaurir a problemática, em face dos
estreitos limites deste estudo, cumpre relembrar, num primeiro momento, o fato
de que a Lei Fundamental da Alemanha não consagrou, como regra geral,
direitos fundamentais sociais em seu texto, limitando-se a agasalhar o princípio
fundamental do Estado social e democrático de Direito, a partir do qual foi
desenvolvida uma abrangente e eficiente legislação na esfera da previdência e
da seguridade social. Assim, os direitos a prestações sociais, ainda que
indiretamente fundados na cláusula geral do Estado Social, têm embasamento
legal, ressalvado o desenvolvimento jurisprudencial de direitos fundamentais
sociais não escritos, como, de modo especial, a garantia das condições
mínimas para uma existência digna, o direito à saúde e o direito à educação.
Justamente por este motivo, quando se fala na proibição de retrocesso
social no caso da Alemanha, cuida-se principalmente da problemática da
proteção das posições prestacionais consagradas em nível infraconstitucional.
Para outorgar-lhes uma proteção constitucional, por estar em jogo a
concretização do princípio do Estado Social, o qual também na Alemanha
integra o elenco das “cláusulas pétreas”, assim como em face da inexistência
de normas expressas na Lei Fundamental assegurando uma proteção
constitucional direta, as posições jurídico-prestacionais sociais de direito
público acabaram sendo consideradas como abrangidas pela garantia
fundamental da propriedade.
No sistema pátrio, pelo contrário, no qual a Constituição de 1988 foi
pródiga em direitos fundamentais sociais, a problemática alcança um
significado diverso, na medida em que o próprio “status” constitucional, de
modo especial a fundamentalidade material e formal que caracteriza os direitos
sociais, já assegura aos mesmos um grau diferenciado e evidentemente mais
79
A respeito do significado do abismo entre norma e realidade constitucional e as suas
conseqüências no âmbito da efetividade das normas constitucionals v. especialmente K.
Hesse, A Força Normativa da Constituição. Sobre a amplitude e alcance da proteção
outorgada pelas assim denominadas “cláusulas pétreas”da Constituição v. meu “A Eficácia dos
Direitos Fundamentais”, pp. 359 e ss.
17
elevado de proteção, ainda que lamentavelmente não faltem os que impugnam
não apenas a condição de “cláusula pétrea” dos direitos fundamentais sociais,
mas até mesmo a sua fundamentalidade, ao menos no aspecto material.
Além disso, a existência de dispositivos expressos na nossa
Constituição consagrando, em última análise, o princípio da proteção da
confiança, demonstra que a construção alemã no que diz com a utilização do
direito e garantia da propriedade, é - ao menos entre nós - desnecessária.
Neste sentido, basta apontar para o que dispõe o art. 5º, inc. XXXVI, da nossa
Constituição, estabelecendo o respeito ao direito adquirido, ao ato jurídico
perfeito e à coisa julgada, dispositivos que se aplicam principalmente (mas não
exclusivamente) às posições jurídicas infraconstitucionais.Mesmo assim, temos
a convicção de que algumas lições úteis podem ser extraídas do exemplo
germânico.
Dadas as especifitudes do modelo pátrio, também entre nós há como
sustentar a existência de uma proibição de retrocesso na esfera social,
vedação que, todavia, não poderá jamais assumir feições absolutas. Esta
proibição relativa de retrocesso, tendo em vista a previsão expressa de direitos
sociais na nossa Constituição e a sua proteção por meio das “cláusulas
pétreas” é, pelo menos do ponto de vista jurídico-normativo, mais robusta que
as soluções desenvolvidas à luz da Lei Fundamental da Alemanha, carente de
direitos fundamentais sociais e de norma expressa consagrando o respeito aos
direitos adquiridos.
Outro aspecto que merece ser destacado é o fato de que a amplitude e
intensidade da proteção outorgada pela ordem constitucional às posições
jurídico-subjetivas na esfera social, tanto no plano constitucional, quanto ao
nível da legislação ordinária, dependem de uma análise centrada nas
especifidades do caso concreto, exigindo um procedimento tópico-sistemático,
já que nos parece inviável o estabelecimento de critérios abstratos e genéricos,
a não ser o próprio reconhecimento de uma proibição meramente relativa de
retrocesso.
A importância do princípio da proteção da confiança que, ao menos no
caso da Alemanha, exerce uma função semelhante à atribuída ao direito
adquirido, revela, entre outros aspectos, o grave equívoco no qual incorrem
aqueles que, objetivando fundamentar o livre avanço sobre as conquistas na
esfera social, reportam-se ao argumento de que na maior parte dos países
desenvolvidos inexiste proteção dos direitos adquiridos. Com efeito, impende
considerar que, mesmo em ordens constitucionais em que os direitos
adquiridos não mereceram expressa previsão e proteção pelo Constituinte,
acabaram sendo objetos de proteção constitucional por meio do princípio
(implícito) da proteção da confiança. Parece-nos que só esta constatação
demonstra claramente que a opção pela abordagem do problema proposto
neste estudo não se restringe a um mero capricho pessoal. Pelo contrário,
evidencia de forma escancarada que a figura jurídica dos direitos adquiridos,
respeitadas as especifitudes de cada ordem jurídica, ainda que não
expressamente agasalhada na nossa Constituição, não prescinde de um certo
18
grau de proteção, já que (também entre nós) pelo menos implícita e
indiretamente fundada no princípio do Estado de Direito.
Também pode ser tida como paradigmática a utilização do princípio da
proporcionalidade como critério aferidor da legitimidade de uma restrição na
esfera de uma proibição de retrocesso social, revelando, neste contexto, que a
função do referido princípio, igualmente deduzido do princípio do Estado de
Direito, não se limita a servir de parâmetro para o exame da constitucionalidade
das leis restritivas de direitos fundamentais, incluídos neste rol os assim
denominados direitos sociais. Com efeito, também a ação erosiva do legislador
que tenha por objetivo a implementação de ajustes e cortes no âmbito do
sistema infraconstitucional de prestações sociais deve levar em conta as
exigências do princípio da proporcionalidade, isto é, ser ao mesmo tempo
necessária, adequada e razoável, pena de ofensa aos próprios direitos
fundamentais sociais e ao princípio do Estado social de Direito.80 Em última
análise, não se poderá abdicar jamais da tarefa de realizar uma cuidadosa
ponderação de todas as circunstâncias, de modo especial entre o valor dos
direitos dos particulares a determinado grau de segurança social e os reclamos
do interesse da coletividade.
A sistemática adotada pela doutrina e jurisprudência constitucional
alemãs, notadamente no que diz com o uso do direito e garantia fundamental
da propriedade, revelam, por sua vez, de forma contundente, a
multifuncionalidade característica dos direitos fundamentais em geral, assim
como as transformações pelas quais têm passado. Além de reforçar, ainda que
em outro contexto, a sua função social, a ampliação do âmbito de proteção da
garantia da propriedade, objetivando assegurar, ao menos de forma relativa, o
conteúdo das posições jurídico-subjetivas sociais, especialmente de cunho
prestacional, coloca em destaque a importância de uma hermenêutica
constitucional criativa num mundo em constante transformação.
Pela sua estreita vinculação com a temática abordada, cumpre referir a
circunstância elementar, inobstante habitualmente desconsiderada, de que o
Direito não assegura, por si só, os recursos indispensáveis para a existência
humana, já que meramente pode oferecer critérios para uma distribuição dos
bens materiais. Neste sentido, constata-se que a proteção do conteúdo das
posições jurídicas na esfera social não poderá apenas ser desenvolvida a partir
da ordem jurídica, mas deverá também levar em conta as circunstâncias sócioeconômicas vigentes, dependendo, de modo especial, da receptividade política
relativamente a determinadas medidas por parte do poder público e da
concepção vigente de justiça social.81
80
Sobre o princípio da proporcionalidade, v., entre nós, especialmente P. Bonavides, Curso de
Direito Constitucional, pp. 356 e ss. , assim como as relativamente recentes obras de R. D.
Stumm, O Princípio da Proporcionalidade no Direito Constitucional Brasileiro, 1995, e de S.T.
Barros, O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis
Restritivas de Direitos Fundamentais,1996.
81
Esta, em suma, a lição de B. Schulte, in: ZIAS 1988, pp. 215 e ss.
19
Por derradeiro, mesmo atentando para as diversidades em absoluto
irrelevantes entre o sistema germânico e a nossa ordem constitucional,
esperamos que tenhamos logrado demonstrar que a análise da experiência
germânica já terá valido a pena caso tiver contribuído para colocar em
evidência a necessidade de, também entre nós, zelarmos por uma proteção
dos níveis vigentes de segurança social. Não hesitamos, portanto, em afirmar
que o princípio fundamental da proibição (relativa) de retrocesso na esfera
social, seja ele implementado por meio do reconhecimento de “cláusulas
pétreas”, seja ela desenvolvido implícitamente a partir de outros princípios
constitucionais, constitui-se não apenas em salvaguarda do Estado social de
Direito ou, caso preferirmos, da justiça material, mas principalmente da própria
dignidade da pessoa humana, valor-guia de toda a ordem constitucional e
objetivo permanente de toda ordem jurídica que se pretenda legítima.
V- Referências bibliográficas:
1 - BADURA, Peter. Eigentum, in: E. Benda/W. Maihofer/H.-J. Vogel
(Org). Handbuch des Verfassungsrechts, 2ª ed., Walter de Gruyter, Berlin,
1994, pp. 57 e ss.
2 - BARGEN, Joachim von. Restriktive Tendenzen im Sozialhilferecht Am Beispiel des Regelsatzes, in: W. Brandt/H, Gollwitzer/J,F. Henschel (Org).
Ein Richter, ein Bürger, ein Christ - Festschrift für Helmut Simon, Nomos,
Baden-Baden, 1987, pp. 745 e ss.
3 - BARROS, Suzana de Toledo. O Princípio da Proporcionalidade e o
Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais,
Ed. Brasília Jurídica, Brasília-DF, 1996.
4 - BOECKEN, Winfried. Der verfassungsrechtliche Schutz von
Altersrentenansprüche und Anwartschaften in Italien und in der Bundesrepublik
Deutschland sowie deren Schutz im Rahmen der Europäischen
Menschenrechtskonvention, Duncker & Humblot, Berlin, 1987.
5 - BONAVIDES, Paulo. Curso de Direito Constitucional, 7ª ed.,
Malheiros, São Paulo, 1997.
6 - BRYDE, Brunn-Otto. Anmerkungen zu Art. 14 GG, in: Ingo von
Münch/P. Kunig (Org). Grundgesetz-Kommentar, vol. I, 4ª ed., C.H. Beck,
München, 1992.
7 - CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria
da Constituição, Almedina, Coimbra, 1998.
8 - DEPENHEUER, Otto. Wie sicher ist verfassungsrechtlich die Rente? Vom liberalen zum solidarischen Eigentumsbegriff, in: AÖR nº 120 (1995), pp.
417 e ss.
20
9 - EICHENHOFER, Eberhard. Der verfassungsrechtliche Schutz von
sozialversicherungsrechtlichen Anrechten in der Bundesrepublik Deutschland,
Italien und den USA, in: ZIAS 1988, pp. 231 e ss.
10 - FRIAUF, Karl Heinrich. Der Sozialstaat des Grundgesetzes unter
den Bedingungen der Industriegesellschaft, in: Sozialstaat - Idee und
Entwicklung, Reformzwänge und Reformziele, Wirtschaftsverlag Bachem, Köln,
1996, pp. 63 e ss.
11 - HAVERKATE, Görg. Eigentumsschutz und Weiterentwicklung im
Recht der sozialen Sicherheit, in: ZRP 1984, pp. 217 e ss.
12 - HESSE, Konrad. A Força Normativa da Constituição, Ed. Sérgio A.
Fabris, Porto Alegre, 1991.
13 - JARASS, Hans D. e PIEROTH, Bodo. Grunsgesetz für die
Bundesrepublik Deutschland, 3ª ed., C.H. Beck, München, 1995.
14 - KATZENSTEIN, Dietrich. Die bisherige Rechtssprechung des
Bundesverfassungsgericht zum Eigentumsschutz sozialrechtlicher Positionen,
in: W. Brandt/H. Gollwitzer/J.F. Henschel (Org). Ein Richter, ein Bürger, ein
Christ - Festschrift für Helmut Simon, Nomos, Baden-Baden, 1987, pp. 847 e
ss.
15 - LEISNER, Walter. Eigentum, in: J. Isensee/P. Kirchhof (Org).
Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland, vol. VI, C.F.
Müller, Heidelberg, 1992, pp. 1023 e ss.
16 - PAPIER, Hans-Jürgen. Anmerkungen zu Art. 14 GG, in:
Maunz/Dürig/Herzog/Scholz, Grundgesetz Kommentar, vol. II, C.H. Beck,
München, 1994.
17 - RIETTSTIEG, Helmut. Anmerkungen zu Art. 14-15 GG, in: R.
Wassermann (Org). Kommentar zum Grundgesetz für die Bundesrepublik
Deutschland (Alternativkommentar), vol. I, 2ª ed., Luchterhand, Neuwied, 1989.
18 - ROSANVALLON, Pierre. A Crise do Estado-Providência, Ed. UNB,
Goiânia, 1997.
19- SARLET, Ingo Wolfgang. A Eficácia dos Direitos Fundamentais, Ed.
Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1998.
20 - SCHLENKER, Rolf - Ulrich. Soziales Rückschrittsverbot und
Grundgesetz, Duncker & Humblot, Berlin, 1986.
21 - SCHULTE, Bernd. Bestandschutz sozialer Rechtspositionen - Eine
rechtsvergleichende Betrachtung, in: ZIAS 1988, pp. 205 e ss.
22 - SCHULTE,
Bernd. Wie sicher ist die soziale Sicherung?
International-vergleichende Perspektive, in: B. Riedmüller/M. Rodenstein (Org).
21
Wie sicher ist die soziale Sicherung?, Suhrkamp, Frankfurt a.M., 1989, pp. 321
e ss.
23 - STUMM, Raquel Denise. O Princípio da Proporcionalidade no
Direito Constitucional Brasileiro, Ed. Livraria do Advogado, Porto Alegre, 1995.
24 - WENDT, Rudolf. Anmerkungen zu Art. 14 GG, in: M. Sachs (Org),
Grundgesetz-Kommentar, C.H. Beck, München, 1996.
25 - ZACHER, Hans-Friedrich. Das soziale Staatsziel, in: J. Isensee/P.
Kirchhof (Org.), Handbuch des Staatsrechts der Bundesrepublik Deutschland,
vol. I, C.F. Müller, Heidelberg, 1987, pp. 1045 e ss.
Referência Bibliográfica deste Artigo (ABNT: NBR-6023/2000):
SARLET, Ingo Wolfgang. O Estado Social de Direito, a Proibição de Retrocesso e a
Garantia Fundamental da Propriedade. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, CAJ Centro de Atualização Jurídica, v. I,
nº. 4, julho, 2001. Disponível em:
<http://www.direitopublico.com.br>. Acesso em: xx de xxxxxxxx de xxxx
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