Separatismo Político: o caso da Catalunha
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Separatismo Político: o caso da Catalunha
Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 Separatismo Político: o caso da Catalunha O objetivo deste artigo é dissipar a visão de separatismo condenável. Para tanto, estuda o direito de autodeterminação, o separatismo político e o direito de decisão a partir do processo catalão de realização do referendo, consulta popular ou participação cidadã nos anos 2013-2014. A nação política catalã pretende a legitimação, livre e democrática, da maioria sobre o desejo de sua comunidade enquanto o Estado espanhol opõe-se a qualquer forma de participação cidadã sobre o contorno de suas fronteiras. A solução ainda está longe de qualquer via possível. Maria Amparo dos Santos Rosello22 Inter-Relações / Ano 15 - Nº 41 / 1º semestre 2015 / p. 40-55 Palavras-chave: Catalunha; autodeterminação; direito de decisão; separatismo político. Introdução Este artigo versa sobre o movimento separatista catalão; especificamente, sobre o processo de realização do referendo, consulta popular ou participação cidadã em defesa do direito de decisão nos anos 2013-2014. A Catalunha deseja o direito de autodeterminação a partir da legitimação, livre e democrática, da maioria; porém, o Estado espanhol opõe-se a qualquer forma de participação 22 Graduanda em Sociologia e Política pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Graduada em Magistério pela Escola Americana e Colégio Mackenzie e professora particular de Língua e Literatura Inglesa. Possui extensões universitárias em Psicologia pela Universidade Paulista (UNIP) e Universitat de Barcelona (UB) e História pelo Centro Universitário Claretiano (CEUCLAR). Possui experiência na área de Representação e Processamento da Linguagem, com ênfase em Alfabetização. P á g i n a | 40 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 cidadã sobre o assunto alegando (1) a soberania do Estado espanhol referir-se ao todo, (2) a Catalunha, sendo parte do todo, não ser sujeito político soberano e (3) a territorialidade do Estado espanhol estar reafirmada na constituição a partir do vocábulo 'indivisível'. Com a formação e o endurecimento dos Estados modernos, o contorno das fronteiras sobrepôs-se aos desejos das comunidades. Com a territorialização progressiva do poder, o território passou a ser a propriedade mais absolutamente inalienável; a fronteira, o bem mais incondicional; e o Estado, o valor moral mais absoluto. Mesmo havendo o predomínio da democracia na Espanha, e apesar dos resultados da participação cidadã no dia 9 de Novembro de 2014, a possibilidade de criação de um referendo condutor de uma eventual secessão e cooperação ainda está longe de qualquer via possível. Como, no presente, qualquer movimento independentista é visto como separatismo, condenável a priori, o objetivo deste artigo é dissipar esta visão. O catalão, por exemplo, busca reabilitar um direito, e não criar um. O separatismo pode aproximar-nos de uma comunidade internacional plural ou, pelo menos, mais minimamente plural. O direito de autodeterminação De acordo com a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (EUA), os Quatorze Pontos de Woodrow Wilson, a Carta da Organização das Nações Unidas (ONU) e a Resolução A/RES/545 (VI) da Assembleia Geral, o direito de autodeterminação é aplicável à entidade coletiva povo (em inglês: people). Contudo, no momento de uma possível aplicação, qual a delimitação desta categoria? Segundo Mira (2005), há duas vias essenciais para esta delimitação: a via anglo-francesa e a via alemã. Na anglo-francesa, o vocábulo povo somou diferentes significados durante a história: conjunto de cidadãos, gentes, nação (a partir dos séculos XVI e XVII), comunidade nacional e Estado (a partir do século XVIII). Já na alemã, o vocábulo povo ainda permanece ligado à terra, costumes e origens: pela teoria extraída de Rousseau, e mais ou menos aplicada na Revolução, a identidade é clara, e se mantém até a atualidade: a nação é “pessoa jurídica constituída em assembleia P á g i n a | 41 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 por indivíduos que compõem o Estado” (Dicionário Robert). (…) Para Hegel, por exemplo – e é o máximo exemplo –, uma “nação” e um [povo] Volk são mais ou menos a mesma coisa, enquanto um estado (Staat) é um conceito totalmente diferente: em Filosofia da História, afirma bem claramente que “os povos podem ter levado uma longa vida sem estado...”, e também que “sabemos que, das nações..., poucas formam um estado” (MIRA, 2005, p. 86-87, trad. do autor). Até a década de 1990, compreendia-se o direito de autodeterminação como direito de descolonização e direito dos Estados. Por exemplo, na leitura de Fábio Comparato sobre o Pacto internacional sobre direitos civis e políticos (1966): [o] direito à autodeterminação dos povos, consagrado logo na abertura do Pacto, diz respeito, em primeiro lugar, à independência dos povos coloniais. Refere-se, também, em segundo lugar, à soberania de cada Estado independente sobre as riquezas e recursos naturais que se encontram em seu território (COMPARATO, 2013, p. 298). Depois da década de 1990, entende-se por autodeterminação “o direito de grupos nacionais coesos ('povos') de escolher a sua forma de organização política e a sua relação com outros grupos” (BROWNLIE, 2008, p. 580 apud BORGEN, 2010, p. 1004, trad. do autor) e se assume a aspiração ao direito de ser como grupo de gente; porém, não como grupo sobre um território. Um exemplo de aplicação ineficaz do direito de autodeterminação foi o caso de Biafra, em 1967, no qual a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a Grã-Bretanha apoiaram a Nigéria, os EUA, mesmo apoiando Biafra, alinharam-se com a Grã-Bretanha, e a França apoiou Biafra. A ONU não se posicionou e a Organização da Unidade Africana condenou a independência, qualificando-a como tentativa de balcanização. Não obstante, como reflete Chukwerneka Ojukwu, antigo governador militar do leste da Nigéria: [d]urante um tempo, houve guerras intermináveis na Europa, incessantes conflitos, até os velhos impérios europeus serem desmantelados, até os Bálcãs, serem Balcanizados – depois, chegou a paz... A Europa encontrou a paz a partir da Balcanização, por que não a África a partir da Biafranização? (apud OKORONKWO, 2002, p. 115, trad. do autor). Assim, na atualidade, o direito de autodeterminação fica dividido em: (1) direito de autodeterminação das colônias, ou o direito de uma colônia tornar-se um Estado soberano; (2) direito de autodeterminação dos Estados, ou o direito de um Estado exercer externamente a sua P á g i n a | 42 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 soberania; e (3) direito de autodeterminação das comunidades, ou o direito de uma comunidade buscar direitos minoritários dentro de um Estado (CRAWFORD, 2006 apud BORGEN, 2010) – por exemplo, direito de falar uma língua, de praticar uma cultura e de participar na política comunitária. Segundo Borgen (2010), “[o] diabo mora nos detalhes” (BORGEN, 2010, p. 1033, trad. do autor): desde o fim do contexto das descolonizações, a discussão deslocou-se da retórica do direito de autodeterminação para a linguagem técnica da organização/implementação dos direitos de autodeterminação pelas comunidades (ex. “qual o alcance dos direitos linguísticos dentro da UE (Ibid., p. 1032, trad. do autor)” ou “como as práticas culturais podem ser reguladas” (Ibid., loc. cit., trad. do autor)). No dicionário de Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino, no verbete autodeterminação, “a capacidade que populações suficientemente definidas etnica [sic] e culturalmente têm para dispor de si próprias e o direito que um povo dentro de um Estado tem para escolher a forma de Governo” (AUTODETERMINAÇÃO, 2009, p. 70), dois aspectos são considerados: um de ordem externa, referente ao “direito de um povo não ser submetido à soberania de outro Estado contra sua vontade e de se separar de um Estado ao qual não quer estar sujeito (Ibid., loc. cit.)”; e outro de ordem interna, referente ao “direito de cada povo escolher a forma de Governo de sua preferência” (Ibid., loc. cit.). No mesmo dicionário, povo refere-se, no início do verbete, ao latim populus e, no final, à visão política nacional, sinônimo de Estado e nação. O problema em questão neste artigo, de ordem externa, é totalmente diverso ao conceito de etnicidade, pois envolve um território considerado próprio e uma autonomia política formal. Na sociedade moderna, etnicidade é o efeito de uma interação, não a tendência à independência. Ou, como exemplifica e esclarece Joan Mira, em Crítica da nação pura (1984): [o]s porto-riquenhos, em Nova York, supõem um problema étnico, mas em Porto Rico supõem um problema nacional. Suponho que a diferença seja clara. No Reino da Espanha, os ciganos representam conflitos 'étnicos' mas os bascos representam um conflito nacional. No mundo, os judeus podem formar grupos étnicos; em Israel, são uma nação (MIRA, 2005, p. 61-62, trad. do autor). O termo região também não é inapropriado. Apesar de sua generalização, algumas entidades sub-Estatais são nações. O termo apropriado é nação sem Estado. As nações sem Estado com P á g i n a | 43 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 problemas de direitos minoritários baseiam-se no Vienna Convention on State Succession in Respect to Treaties, e há, extraoficialmente, a rede Regions with Legislative power (REGLEG) e a European Free Alliance (EFA) mas nem a convenção nem estas redes pertencem ao recorte deste artigo, por tratarem de direito minoritários – e não majoritários. Como o caso da Catalunha envolve um território considerado próprio e um problema de direitos majoritários, tomaremos o conceito de povo como equivalente ao de nação política; e o conceito de nação política como definido por Kenneth Minogue (1967): o conjunto daqueles quem compartilham a percepção de uma falta de poder; como definido por Mira (2005): grupo possuidor de, ou aspirante ao, poder político suficiente para garantir a própria preservação como grupo; ou como definido por Water Sulzbach (1943): grupo desejoso de soberania e de Estado próprio. Também, partiremos da premissa segundo a qual “toda nação política está separada ou é ‘separatista’” (MIRA, 2005, p. 122). Nem todo separatismo reclama a independência política total, mas todo separatismo percebe-se, e quer ser percebido, como um todo separado; quer ser percebido não pela identidade do outro, mas sim pela sua própria identidade. O Separatismo Político O separatismo político surge com a formação dos Estados modernos (SEPARATISMO, 2010, p. 1145) e toma forma conforme o Estado cresce e endurece; conforme realiza a sua ação hegemônica e a progressiva territorialização do poder sob uma nação sem Estado. O separatismo é um braço de ferro no qual competem duas forças: de um lado, a força da nação sem Estado para afirmar uma identidade básica de pertencimento e, de outro, a força do Estado para afirmar o seu espaço de poder. As aportações de duas correntes teóricas, o liberalismo e a escola austríaca, contêm chaves interpretativas desta luta de braço. A partir de dois paradigmas diferentes, o hobbesiano e o althusiano, manifesta-se a visão negativa ou positiva do separatismo. Com a generalização do paradigma hobbesiano, o direito de autodeterminação do Estado tende a ser percebido como patriotismo admirável, enquanto o desejo de independência política e econômica de uma nação sem P á g i n a | 44 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 Estado tende a ser visto como uma tentativa de quebra do Estado até o ponto de ser tachado de separatismo, condenável a priori. O paradigma hobbesiano regula a visão de Estado como contrato prévio, necessário para estabelecer uma sociedade justa. Antes da integração, a nação sem Estado teria cedido de forma permanente e irrevogável a sua condição de sujeito político soberano ao Estado em questão. Dois conceitos em jogo são o de justiça e democracia constitucional. A justiça seria distributiva e a democracia constitucional justa. O Estado constitucional e democrático, única forma de organização política capaz de garantir e proteger os direitos humanos, seria necessariamente considerado justo, pois cada indivíduo, através do seu véu de ignorância original, teria escolhido participar do mesmo a partir do hipotético contrato assinado para, desta forma, garantir a igualdade dos direitos político-sociais fundamentais para todos os membros da sociedade e minimizar as desigualdades econômico-sociais resultantes (RAWLS, 1999 apud KREPTUL, 2004). Já no paradigma althusiano, diferentemente do paradigma hobbesiano, a condição de sujeito político soberano é conservada. A ordem política é concebida federativamente e o governo pluralizadamente. A condição de sujeito político soberano é compartilhada pelas múltiplas unidades sociais; inclusive, pela unidade menor, a família (KREPTUL, 2004). Em cada nível desta consociação multinível, as unidades menores constituem as unidades maiores. Em cada nível, o governo está sujeito ao consentimento e à solidariedade social. Desta forma, o termo “consociação” expressa a essência da tentativa de [Johannes] Althusius melhor do que o termo associação pois este pode ser confundido com a noção pluralista, moderna e liberal de associacionismo baseado no pertencimento individualizado e voluntário. Um indivíduo pode associar-se ou se desassociar com facilidade mas uma unidade pertence à comunidade de forma muito mais comprometida (mesmo que exista o direito último de resistência e secessão, como Althusius especialmente enfatiza fazendo referência à Revolta Holandesa (HUEGLIN, 1997, p. 150 apud KREPTUL, 2004, p. 43, trad. do autor). Política (em inglês: politics) é substantivo plural. Assim, na concepção althusiana, como o Estado não é a autoridade última de justiça e democracia constitucional, a opção de secessão é legítima e viável (KREPTUL, 2004). O consentimento é algo “contínuo e passível de ser retirado a qualquer hora. Qualquer das unidades sociais, dispondo de meios para tal, pode legalmente P á g i n a | 45 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 secessionar-se da unidade social maior à qual delegara autoridade” (LIVINGSTON, 1998, p. 39 apud KREPTUL, 2004, p. 43). Enquanto a corrente teórica do liberalismo privilegia a fronteira sobre os habitantes, a corrente teórica da escola austríaca privilegia os habitantes sobre a fronteira. Para o liberalismo, as fronteiras, ou os Estados, são valores morais absolutos, bens incondicionais. Ou, como reflete Mira (2005), sobre a territorialização progressiva do poder: toda fronteira transforma-se logo em sagrada, infinitamente mais sagrada do que as pessoas que nela vivem (pessoas que se supõe tem de se sacrificar sem discussão, morrer se for preciso, para a preservação da linha-fronteira, porque o território é mais “patrimônio nacional” do que as próprias pessoas que compõem a nação, a propriedade mais absolutamente inalienável. Parece que os estados podem suportar a perda de gente, nunca de terra. Nem um palmo. Imaginar o próprio mapa reduzido em um pedacinho por pequenino que seja, provoca brutais descargas de adrenalina. Imaginar a própria comunidade nacional reduzida em milhares ou milhões de cidadãos (pela migração, por exemplo) não provoca nada, ou somente vagas lamentações. Os estados existem para convencer e obrigar as pessoas ao sacrifício extremo pela fronteira. Os exércitos e as fábricas de armamento encontram nela a sua última razão moral (MIRA, 2005, p. 66-67, trad. do autor). Por aproximar-se do paradigma althusiano e por reconhecer a existência de unidades sociais independentes, contrapeso ao poder coercitivo e monopolístico do Estado, a maior parte dos pensadores filiados à escola austríaca está a favor do direito de secessão. Para Ludwig von Mises (1985), prócer do liberalismo econômico total, o Estado ocupa-se apenas do direito de propriedade privada e, portanto, o direito de escolha da forma de governo pertence aos cidadãos e o direito de secessão pertence a uma parte dos cidadãos. Portanto, [s]e uma república democrática acredita que as suas fronteiras atuais... já não correspondem aos desejos políticos do povo, as mesmas devem ser modificadas pacificamente e adequadas aos resultados da vontade do povo expressa em referendo (MISES, 1985, p. 108 apud KREPTUL, 2004, p. 56, trad. do autor). P á g i n a | 46 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 O Desejo do Direito de Decisão A comunidade catalã não possui o direito de autodeterminação dos Estados, mas o busca a partir do desejo do direito de decisão. Um exemplo: as eleições do dia 25 de Novembro de 2012, a partir das quais se formou a presente legislatura do parlamento, de composição independentista: 54,9% de obediência catalã, representando o direito ao Estado próprio, e 9,6% representando o direito ao referendo. Outros exemplos: Manifestações. A manifestação do dia 10 de Julho de 2010, quando 1.500.000 pessoas (segundo estimativa da Òmniun Cultural, organizadora da manifestação) saíram às ruas de Barcelona com o lema “Somos uma nação. Nós decidimos”. A manifestação do dia 11 de Setembro de 2012, quando 2.000.000 de pessoas (segundo estimativa da Assemblea Nacional Catalana, organizadora da manifestação) saíram às ruas de Barcelona com o lema “Catalunha, novo estado da Europa”. O concerto libertário do dia 29 de Julho de 2013, quando 90.000 pessoas (aforo máximo) utilizaram a linguagem musical no estádio Camp Nou do Futbol Club Barcelona para reclamar liberdade com o lema “2014: Nós decidimos”. A cadeia humana do dia 11 de Setembro de 2013, às 17h14, quando aproximadamente 1.600.000 pessoas (segundo estimativa da Assemblea Nacional Catalana) cobriram de braços dados quatrocentos quilômetros de norte a sul da Catalunha com o lema “Rumo à independência”. O mosaico humano do dia 11 de Setembro de 2014, quando aproximadamente 1.800.000 pessoas (segundo estimativa da Guàrdia Urbana, corpo policial municipal) formaram a letra V, de via (de vontade, votar e/ou vitória) em duas avenidas principais de Barcelona. Mais exemplos: A resolução parlamentar do dia 27 de Setembro de 2012, quando ficou reconhecida a necessidade de um referendo para determinar livre e democraticamente o futuro coletivo catalão. A resolução parlamentar do dia 23 de Janeiro de 2013, quando foi declarada a soberania do povo da Catalunha. Um último exemplo, objeto deste artigo: A forma de participação cidadã do dia 9 de Novembro de 2014, quando todos os maiores de dezesseis anos com nacionalidade de qualquer Estado e residência na Catalunha, assim como os catalães residentes no exterior, estavam chamados a votar. Esta participação cidadã, resultado do pacto de governabilidade catalão para garantir a P á g i n a | 47 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 estabilidade parlamentária do governo catalão, foi composta de duas perguntas: “Você quer que a Catalunha seja um Estado?” e “Em caso afirmativo, você quer que este Estado seja independente?”. Considerando os valores fundamentais da União Europeia (UE), a defesa política e social do processo catalão pelo direito de decisão é perfeitamente lícita, pois: (1) o direito de decisão tem amplo apoio social constatável; por exemplo, a partir da composição da atual legislatura no parlamento; (2) a realização do referendo, consulta popular ou outra forma de participação cidadã são propostas como instrumento democrático direto a fim de conhecer a vontade dos cidadãos sobre a possibilidade da Catalunha vir a ser, ou não, um Estado independente; (3) a realização da participação cidadã no dia 9 de Novembro de 2014 foi considerada um êxito pelos observadores internacionais; (4) o processo originou-se em um território com condição de comunidade nacional; (5) não se pretende efeitos próprios do exercício do direito de autodeterminação, ou seja, não se supõe a modificação da Constituição Espanhola (CE) a partir dos resultados da participação cidadã, mas da obrigação política de negociar de boa fé para tentar chegar a um acordo; (6) as instituições impulsoras oferecem acordo com o Estado para a realização do referendo, consulta popular ou participação cidadã e (7) não existe proibição clara, inequívoca e não salvável na CE. Segundo o Tratado da União Europeia (TUE), os valores fundamentais dos Estados membros são: respeito pela dignidade humana, liberdade, democracia, igualdade, Estado de direito e respeito pelos direitos do Homem, incluindo os direitos das pessoas pertencentes a minorias. Todos estes valores fundamentais devem ser respeitados em uma fórmula de compromisso a partir da qual nenhum seja excluído. O descumprimento destes valores não pode ser considerado 'assunto interno' dos Estados membros nem justificado a partir da noção de soberania, pois a aplicação destes valores é exigível tanto na relação exterior como na relação interior. A UE deve respeitar as funções dos Estados membros (TUE, Art. 4) – entre elas, a de garantir a própria integridade territorial – mas não deve aceitar a atuação contra os valores fundamentais (TUE, Art. 2), requisito de ingresso e pertencimento (BAYONA, 2014). Contudo, o Estado espanhol utilizou o princípio de constitucionalismo e a justificativa do Estado de direito para obstaculizar o processo catalão; negligenciando os valores de respeito pela liberdade (ex. liberdade de expressão), democracia e os direitos do Homem, incluindo os direitos P á g i n a | 48 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 das pessoas pertencentes a minorias (ex. direito de participação). Vejamos os principais acontecimentos dos anos 2013-2014: a) o parlamento catalão aprovou a declaração de soberania e do direito de decisão do povo. O Tribunal Constitucional (TC) da Espanha recusou-a. b) o presidente do governo catalão anunciou o referendo com duas perguntas. O presidente do governo espanhol afirmou a ilegalidade do referendo, consulta popular ou qualquer outra forma de participação cidadã. c) o parlamento catalão aprovou pedir ao congresso espanhol poderes para convocar o referendo. O congresso espanhol recusou o pedido. d) a Comissão de Assuntos Institucionais do parlamento catalão aprovou a proposta de lei de consultas populares não referendarias e outras formas de participação cidadã. O congresso espanhol recusou-a. e) Esquerra Republicana de Catalunya (ERC), partido de obediência catalã, segunda força parlamentaria catalã, localizada na oposição, defendeu a desobediência civil. f) a cidadania catalã formou o mosaico humano com a letra V. g) o parlamento catalão aprovou o apoio à consulta popular. h) o parlamento catalão aprovou a lei de consultas populares não referendarias e outras formas de participação cidadã. i) o presidente do governo catalão assinou o decreto de convocatória da consulta popular. O presidente do governo espanhol recorreu ante o TC. O TC suspendeu a consulta popular. P á g i n a | 49 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 j) o governo catalão apresentou alegações contra a suspensão. k) o presidente do governo catalão e os presidentes dos partidos de obediência catalã decidiram manter a consulta popular. l) o presidente do governo catalão informou aos partidos de obediência catalã a não possibilidade de realização da consulta popular nos termos do decreto de convocatória. ERC apostou pela declaração unilateral de independência. m) o presidente do governo catalão anunciou a forma de participação cidadã. n) a cidadania (110.000 pessoas segundo estimativa da Guàrdia Urbana) afirmou o seu impulso à participação, mas reclamou eleições plebiscitárias – ou seja, eleições para a constituição de um novo parlamento catalão a partir do voto de confiança em uma lista única – em um prazo de três meses. O governo espanhol pediu parecer sobre uma possível impugnação da participação cidadã ao Conselho de Estado. A Comissão Permanente do Conselho de Estado ditou parecer favorável à impugnação da participação cidadã. O governo espanhol impugnou a participação cidadã ante o TC. O TC suspendeu a participação cidadã. o) o presidente do governo catalão deu instruções aos serviços jurídicos do governo para estudar ações contra o governo espanhol. p) o presidente do governo catalão decidiu apoiar a participação cidadã. O TC manteve a suspensão da participação cidadã. q) o governo catalão manteve a campanha institucional informativa e a lista dos pontos de votação. A delegada do governo espanhol na Catalunha enviou cartas à administração do governo catalão e às administrações locais sobre a suspensão da participação cidadã. P á g i n a | 50 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 r) o presidente do Pacto pelo Direito a Decidir, formado por entidades civis, cívicas, culturais, econômicas, sindicais, empresariais e partidos políticos assim como governo, cidadania e administrações locais, reafirmou o apoio do governo catalão, mas sublinhou a execução ser apenas voluntária e cidadã. s) o governo catalão apresentou recurso de súplica ante o TC. Os valores fundamentais da UE não são valores abstratos, mas sim centrais para o modelo, plural, da sociedade europeia, e estão sendo postos à prova pelo processo catalão do direito de decisão. Segundo Bayona (2014), as expressões catalãs são democráticas, claras e inequívocas, além de promovidas a partir de um movimento pacífico e reivindicativo, enquanto as expressões do Estado espanhol são negativas e rotundas, argumentadas e fundamentadas em uma interpretação rígida e formal da legalidade constitucional. A partir da ótica da escola austríaca, nada além de um referendo seria necessário; porém, a nação catalã sem Estado encontra-se, hoje, e a partir da ótica do liberalismo, ante a ‘inconstitucionalidade’ de um referendo e a condenação de seu desejo de direito de decisão. Para alguns, se o governo espanhol bloqueou a possibilidade de realização deste referendo, o governo catalão deveria ter avançado. Deveria ter não só desobedecido a lei espanhola, mas aproveitado a oportunidade para obedecer a lei catalã, na qual o referendo, a consulta popular e outras formas de participação cidadã estão amparadas. Como a CE, fundamentada na “indissolúvel unidade da Nação espanhola, pátria comum e indivisível de todos os espanhóis”, não permite a secessão, tem-se submetido a discussão do caso catalão à opinião do TC, quem, lógica e reiteradamente, tem opinado a favor do governo espanhol e contra o governo catalão. Este procedimento serve ao propósito de reafirmar a legalidade ou a ilegalidade das posições: uma sentença judicial de ‘inconstitucionalidade’ é um forte instrumento de controle do poder do governo, mas, da mesma forma, um veredito de ‘constitucionalidade’ é uma arma para promover uma maior aceitação pública do poder do governo (ROTHBARD, 1978 apud KREPTUL, 2004). Com esta ação, de submissão da discussão ao TC, o governo espanhol tem utilizado o poder de opinião do judiciário para legitimar a crença segundo a qual o separatismo político catalão, P á g i n a | 51 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 processo do direito de decisão, inclusive, é inconstitucional, em uma tentativa de angariar, para si, mais suporte nacional e internacional. O valor de respeito ao Estado de direito permite sim questionar a secessão unilateral, mas não a legalidade e legitimidade do início e desenvolvimento deste processo (BAYONA, 2014). Uma minoria pode fazer propostas e se expressar sobre as propostas da maioria, pois a democracia tem importância não somente como resultado, mas como procedimento. Mesmo a Catalunha não tendo direito ao direito de autodeterminação dos Estados, poder-se-ia encontrar caminhos jurídicos para garantir a gestão civilizada e democrática da reivindicação; especialmente, quando a CE prevê tanto a possibilidade de convocação de referendos sobre questões de especial transcendência política como o direito de participação política direta. Considerações Finais Considerando a ilegalidade imposta e a falta de efeitos jurídicos, a participação cidadã no processo do direito de decisão foi um êxito. As dificuldades foram várias além das já citadas (ex. o número de colégios eleitorais, as pressões comunicativas, o orçamento publicitário, etc.), mas, mesmo assim, 2.305.290 cidadãos mobilizaram-se. 1.861.753 dos votos (80,76%) foram SIM/SIM. O conjunto daqueles que compartilham a percepção de uma falta de poder, seja uma falta de poder em relação ao pacto fiscal, à legislação ou à nacionalidade. Os votantes do SIM optaram pela responsabilidade pessoal, assim como 232.182 (10,07%) que votaram SIM/NÃO, 22.466 (0,97%) que votaram SIM/BRANCO e 71.131 (3,09%) que votaram NULO. Contudo, 104.772 (4,54%) optaram pelo NÃO; quando a mensagem de quem era a favor do NÃO foi insistente – é “[p]roibido votar, em nome da democracia” e foi repetida por Mariano Rajoy, presidente do governo espanhol, Soraya Sáenz de Santamaría, porta-voz do governo espanhol, Pedro Sánchez, secretário geral do Partido Socialista Obrero Español (PSOE), Alícia Sánchez-Camacho, presidente do Partido Popular Català (PPC), Alberto Rivera, presidente de Ciutadans, e outros. É durante a defesa da dignidade como aspecto essencial da vida humana quando se adquire a cultura política da participação e da horizontalidade nas relações de poder (DIEZ, 2013). Na Catalunha, esta defesa vem de longa data. Por exemplo, apesar do feudalismo ter sido profundo, os P á g i n a | 52 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 agricultores puderam comprar a sua liberdade já no séc. XV. Esta revolta, única insurreição agrícola na Idade Média, possibilitou a primeira abolição da servidão no continente europeu, formulada em forma de lei. Passo essencial para a revolução social, para os agricultores começarem a participar do pacto com a autoridade central e poderem tratar a nobreza de igual para igual. No caso catalão, é urgente a atuação da UE como mediadora ou conciliadora externa, pois não há acordo entre as partes. Lembrando o descumprimento de seus valores não poder ser considerado ‘assunto interno’ nem justificado a partir da noção de soberania. Contudo, e apesar de a UE ser a definidora-chave de normas sobre o direito de autodeterminação na Europa, dificilmente, o estabelecimento de tais normas baseia-se em opiniões jurídicas (BORGEN, 2010) e necessita da unanimidade dos Estados membros – estes também com problemas internos de autodeterminação. Veja-se, por exemplo, o caso de Kôsovo, que não tem o reconhecimento da Espanha. A existência política de um Estado é independente do seu reconhecimento pelos demais Estados, mas o reconhecimento da soberania ou o ingresso na UE não pode ser pressuposto por nenhuma comunidade secessionista: a secessão tira a nação sem Estado da mesa de discussão e a reduz a pedinte (Ibid.). Por esta razão, pela vontade de legitimação por parte da maioria – além da própria filosofia política catalã, a Catalunha não pretende, a priori, criar uma nova legalidade declarando a independência unilateralmente, mas, apenas, realizar um referendo dentro da ordem legal. Se o direito de autodeterminação não é reconhecido pela constituição da maioria de Estados e algumas inclusive reafirmam a sua territorialidade utilizando vocábulos como indivisível, inalienável e inviolável (KREPTUL, 2003), em 1500, a Europa contava com quinhentas entidades políticas. Esta é uma das razões pelas quais, para se compreender o desejo de autodeterminação externa, em qualquer instância, é indispensável a compreensão da história local assim como o saber das pessoas e grupo envolvidos (BORGEN, 2010). O único poder alternativo e efetivo no marco de uma democracia constitucional para limitar o poder de um Estado é o direito dos indivíduos ao direito de secessão (ROTHBARD, 1998; HOPPE, 2001 apud KREPTUL, 2010). Mesmo sem referendo, quando mais de 2.000.000 de pessoas optam pela participação, pelo voto como forma de responsabilidade pessoal ou desobediência civil, o reclamo pelo direito de decidir parece ser amplo, relevante e presente. Os P á g i n a | 53 Publicação do Curso de Relações Internacionais da Faculdade Santa Marcelina / Ano 15 – Nº 41 / 1º Semestre 2015 resultados, dependendo do olhar, podem ter sido um 'êxito total' ou um 'simulacro estéril' mas, indubitavelmente, foram uma pretensão simbólica. Pretensão simbólica de resolução de conflito. De diálogo. De aproximação, histórica, da pluralidade. De exercício: “como os estados e outros grupos podem causar o menor dano possível um ao outro?” (HURRELL, 2007, p. 4, trad. do autor). Referências Bibliográficas AUTODERMINAÇÃO. In: BOBBIO, Norberto; MATTEUCCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. 13 ed. Brasília: Universidade de Brasília, 2009. v. 1. BAYONA, Antoni. El “dret a decidir” i els valors fundacionals de la Unió Europea. Revista d'Estudis Autonòmics i Federals, Barcelona, n. 20, p. 132-173, 2014. BORGEN, Christopher. From Kosovo to Catalonia: separatism and integration in Europe. 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