A VIAGEM DO EMIGRANTE DOS TEMPOS DA VELA AO

Transcrição

A VIAGEM DO EMIGRANTE DOS TEMPOS DA VELA AO
A VIAGEM DO EMIGRANTE DOS TEMPOS DA VELA AO SEGUNDO
PÓS-GUERRA COM PARTICULAR ATENÇÃO À PARTIDA DO PORTO DE
TRIESTE
de Francesco Fait
Para nós observadores
do século XXI a viagem do emigrante possui uma
importância particular, de tudo, já perfeitamente presente às milhões de pessoas que
nas décadas e séculos passados foram protagonistas ou testemunhas e aos
observadores que lhe precederam. Não a caso, no período que ficou conhecido como
“grande emigração transatlântica”, entre 1871 e 1914, existia o costume de esticar
um fio do convés do navio à terra firme, o qual se arrebentava no momento em que o
navio se distanciava do cais para levar a sua carga de emigrantes ao oceano. Era uma
simbologia forte e evidente, apesar de, na realidade, não totalmente representativa,
seja porque amiúde os emigrantes eram viajantes experientes e sagazes que
arrebentavam e emendavam o fio várias vezes (basta pensar a Golondrinas e Birds of
Passage, que se movevam sazonalmente entre a Europa e as Américas), seja porque
frequentemente o embarque acontecia em portos estrangeiros, em terras nas quais o
viajante não haviam nenhum vínculo, e então nestes casos o fio já havia sido
arrebentado centenas e milhares de quilômetros atrás, talvez em qualquer estação
ferroviária rumorosa e cheia de gente. Sem contar que a viagem pelo mar, a travessia
transoceânica, era só um segmento da viagem do emigrante, que teve e teria tido
outras fases igualmente importantes no percurso de casa ao porto de embarque, na
permanência no próprio porto e então, no desembarque acontecido, no mesmo modo,
de novo em porto e finalmente ainda em viagem até o destino final. Porém, continua
de qualquer forma inegável que a travessia oceânica seja embebida de um peso
simbólico tendendo a caracterizar-la como o ápice e o emblema da experiência
emigratória.
As viagens, viagens por mar para fins emigratórios, em fundo se assimilham todas
nos paradigmas que as compõem, ao ponto que poderiam ser fatas análises
diacrônicas a partir do período da vela ao segundo pós-guerra fazendo um confronto e
comparando-os, por exemplo, a gênese da decisão de partir ao invés da alimentação,
ou o pernoitamento a bordo, ou então o alojamento uma vez alcançado o porto de
desembarque.
A presente contribuição tentará recontar tais paradigmas sobretudo com respeito ao
período mítico da viagem do emigrante, incluindo as últimas décadas de 1800 e os
primeiros anos de 1900, com particular atenção a situação do porto de Trieste, que na
primeira década do século XX teve um papel muito significante para o tráfego
emigratório europeu às Américas (e que foi notável também no período entre as duas
guerras com respeito às partidas dos hebreus para a Palestina e de um certo interesse
particular para a emigração italiana assistir do segundo pós-guerra).
Foram utilizadas fontes diversas, que se referem à bibliografia científica, à
documentação arquivada, à análise de prosas de escritores, às recordações
autobiográficas daqueles que haviam atravessado o oceano como emigrante. Não é
este o lugar para uma reflexão historiográfica sobre as fontes mas um elemento
chama atenção já à primeira vista: a viagem com fins emigratórios era interpretada
em modo muito diverso de quem o analisava com respeito a quem o vivia, e não era
só uma questão de diferença de padrão cultural. Assim sendo, por exemplo, Georges
Guyan comentava em 1898 a visão de frotas de emigrantes italianos em movimento:
“Os emigrantes são mandados tão distante, em terras incultas, para preparar-las, de
maneira que depois, em um segundo momento, sejam trabalhadas e as regiões nas
quais terminam aglomerados, são ainda mais inóspitas, poderíamos dizer, ainda mais
selvagens que as partes remotas da Itália que foram as suas demoras anteriores; e,
entre o ponto de partida e aquele de chegada, essa gente atravessou a civilização
contemporânea como o viajante apressado atravessa um oásis, vindo das regiões do
deserto mais distante. È gente destinada a não usufruir da civilização intra vista per
um momento; os emigrantes não são iniciados a ela, não participam, senão
completamente em modo passivo, isto é, na medida em que são vítimas.” 1
O escritor francês no parágrafo apenas citado descrevia pelo menos dois tòpoi
emigratórios: o emigrante visto como vítima e a antinomia civilização/nãocivilização, tòpoi sobre os quais se
poderia discutir. No primeiro caso se pode observar como não é tão óbvio dar ao
imigrante o estereótipo do despreparado 2. No segundo emerge com certa prevenção e
pressa no subdividir o mundo em zonas geográficas, incluindo-as ao grupo da
civilização ou àquele contrário e no negligenciar que até nas zonas identificadas
como civis existiam espaços, outrossim vastos, de marginalidade, também sendo
aceita a observação que o emigrante entrava em contato com uma civilização
somente “vislumbrada”, com a qual haveriam contato a distância, permanecendo
fatalmente confinados nos vagões ferroviários de terça e quarta classe somente para
serem
transferidos em pousadas ínfimas, dispersas nas periferias das grandes
cidades, ou naquelas estruturas frequentemente perigosas e imundas que eram a casa
do imigrante.
Porém podem parecer muito diferente da imagem apenas descrita as valutações de
alguns que a experiência emigratória tinham vivido realmente, obtendo uma visão
mais astuta e desencantada, que pode derivar ao mesmo tempo da proximidade e
distância aos eventos narrados (proximidade por terem sido protagonistas e distância
pelo tempo decorrido entre o evento da imigração e o momento da recordação), mas
também, provavelmente, da luz refletida do sucesso substancial da experiência
emigratória, quando o sucesso aconteceu. Em fundo, a vida a bordo através do
oceano não era nada mais do que uma fotografia do que acontecia em terra firme. Se
nascia , se adoentava, se morria:
“Muitas mulheres eram... quase no fim e partivam igualmente, talvez convencidas de
economizar na viagem ou economizar no parto, porque não custava nada; a verdade
era que as crianças pequenas menores de 6 meses ou menores de um ano não
pagavam nada, estavam com a mãe. Em cada viagem nascia um, dois; um ou dois...
bem, sempre bem, sempre bem. Nenhuma criança jamais morreu. Em vez disso, em
cada viagem morriam um ou dois homens, talvez idosos, talvez tristes, não sei que
coisa tinham.” 3
1. A citação é transcrita de Giuseppe D'Angelo, Il viaggio, il sogno, la realtà. Per
uma storia dell'emigrazione italiana in Venezuela (1945 – 1990), Edizione del
Paguro, Salerno, 1995, p. 10.
2. A este propósito foi observado como a escolha inicial dos emigrantes era muito
frequentemente mais estratégica do que geralmente se possa pensar: “Os
acontecimentos depois de chegar ao novo mundo valiam quase sempre para provar
que, juntamente a uma parte 'irreflexiva' e alcançado definitivamente o seu destino, a
maior parte dos emigrantes, era residente in pectore que naquele passo não era
desprovida de um próprio projeto e colocava em prática, antes e depois da partida da
Europa , uma série de movimentos estratégicos, de maneira alguma ingênua, mirados
a realização, através da valorização de poucos recursos (solidariedade familiar e
parental, instituições mutualísticas étnicas, redes de relações interpessoais, etc.), de
resultados satisfatórios.” Fonte: E. Franzina, Traversate, Le grandi migrazioni
transatlantiche e i racconti italiani del viaggio per mare, Editoriale umbra, Foligno,
2003, p. 27.
3. Texto retirado das memórias de Lucia Nebbiolo Gonella, piemontese, que em 1901
emigrou em Argentina recém-nascida, atravessando várias vezes o oceano até 1960,
ano no qual reentrou na Itália para residir definitivamente em Gênova. Fonte: C.
Lupi, “Trenta giorni di macchina a vapore”. Appunti sul viaggio delgi emigranti
transoceanici, “Movimento operaio e socialista”, N.3, setembro-dezembro 1983, p.
479
A decisão de partir
A decisão de partir, de deixar a própria casa, de iniciar a viagem, possui razões que
remontam a situações de necessidade ou de desconforto: miséria, desemprego,
exploração, impostos excessivos, usura, conjuntura do clima ou do mercado.
Situações profundas, enraizadas, insolúveis em breve tempo, que em um certo ponto
porém parecem ser resolvidas jogando a carta da emigração. Sobre a escolha de
emigrar e sobre a meta decidida, pelo menos na primeira fase da “grande emigração”,
os intermediários, os mediadores, os funcionários da emigração, os representantes das
companhias de navegação possuem um papel fundamental e se tornam imediatamente
os destinatários da polêmica anti-emigratória, imediatamente dedicada a descreverlos como perturbadores sutis e desonestos e, de reflexo, a descrever o futuro
emigrante como autômatos privados de discernimento:
“Por toda a parte estão espalhados personagens que sentem o cheiro da miséria e da
insatisfação e oferecem o bilhete de embarque àqueles desgraçados que querem
abandonar a pátria, ou lhe instigam a vender a casa, ou as propriedades rurais e a
terra, para obter o dinheiro da viagem. Os médicos que estudam o poder da sugestão
poderiam fazer observações certeiras sobre os emigrantes, para ver como uma idéia
introduzida no cérebro pode agir quase sem uma participação da consciência sobre a
vontade do homem. A fome, a fraqueza, o abatimento exaltam a manipulabilidade e
tornam mais fácil a sugestão. O vetor estende a mão a estes miseráveis para levantarlos e emprega toda a arte do seu trabalho para impressioná-los, para interessar-los,
para jogar nos seus cérebros a idéia da redenção. Uma vez obtida a promessa ele faz
com que ela seja mantida: sustentando-os se titubeantes, conduzindo-os em frente
mesmo quando davam um passo para trás.”4
A propaganda, o advertising emigratório, foi em cada caso um fenômeno vasto,
complexo e estruturado, bem além do clichè do recrutador turvo e enganador, da qual
a figura em todos os casos foi somente a ponta do iceberg, ou seja, o elo da corrente
mais perceptível e percebido pelo emigrante, e próprio por isso submetido
frequentemente a recriminações e represarias dos descontentes e delusos. 5
4. A. Martellini, Il commercio dell'emigrazione: intermediari e agenti, em P.
Bevilacqua, A. De Clementi, E. Franzina (coordenado por), Storia dell'emigrazione
italiana. Partenze, Donzelli, Roma, 2001. p.293. Algumas vezes, aqueles que
induziam a emigração eram pessoas insuspeitáveis, como aconteceu em Cavenzano
(Campolongo al Torre, Udine) onde a falar foi o padre durante uma homilia dominical
em 3 de novembro de 1878, na qual, “tendo como pretexto o argumento da homilia
'sobre os Faraós' disse que aqui também existiam faraós que davam a entender ao
povo que nas Américas deveriam lutar contra serpentes e contra a febre amarela.
As serpentes, disse ele, são elas que se alimentam do pobre povo para sustentar o seu
lobo; e a febre amarela é aqui, onde eu desde quando sou pároco enterrei entre 7 e
800 indivíduos dos quais pelo menos 600 mortos de pelagra, como posso comprovar
dom os meus registros. …
Não creditem, disse, que eu estou aconselhando vocês a emigrarem; mas ao invés de
morrer de pelagra será sempre melhor tentar a América; a menos que os seus patrões
não mudem o sistema, para não chegar ao ponto de conduzir os bois sozinhos e
arrastar o arado.”
Fonte: F. Cecotti, D. Mattiussi, Un'altra terra, un'altra vita. L'emigrazione isontina in
Sud America tra stroria e memoria (1878 – 1970), Centro de Pesquisa e
Documentação Histórica e Social “Leopoldo Gasparini”, Gorizia, 2003, pp.18-19.
5. Se vede por exemplo nas linhas que seguem, nas quais Francesco Sartori, um
agricultor vêneto, fala sobre as boas-vindas reservadas aos intermediários em
Marselha, em novembro de 1877, que haviam prometido um embarque em um navio
a vapor que se revelou no fim das contas um navio a vela:
“Chegaram os traidores de Marselha. De P..., C... e T... E nós em cerca de 100 pessoas
os encurralamos e queríamos matar todos os três. Uma confusão, extraordinário
assim.”
Fonte: E. Franzina, Merica! Merica! Emigrazione e colonizzazione nelle lettere dei
contadini veneti e friulani in America Latina (1876 – 1902), Cierre Edizione, Verona,
1984, p.79.
A partir do terço quarto do século XIX foram os países de imigração a criar canais de
comunicação com a Europa, frequentemente mandando seus agentes além do oceano.
Brasil e Argentina ofereciam condições atraentes (respectivamente passagem gratuita,
aquisição imediata dos direitos civis, repatriação gratuita para viúvas, órfãos e
trabalhadores inválidos e alojamento gratuito em hotel para emigrantes por alguns
dias com viagem gratuita em direção ao interior do país) predominantemente na Itália
e na Europa Meridional. No caso dos Estados Unidos, a propaganda e a venda de
terras para produção e cultivo, que se endereçou principalmente a Grã Bretanha e
Europa Setentrional, foi organizada por vários estados como Texas, Virginia ou
Califórnia, mas também por companhias ferroviárias como a Illinois Central, a
Kansas Pacific, a Missouri Pacific, a Union Pacific. Foram utilizadas técnicas
publicitárias avanzatas e persuasivas, sobretudo feita pelas companhias ferroviárias
que invadiram estações, hotéispara emigrantes e pontos e portos de embarque e de
desembarque com material de todos os tipos e em alguns casos mais além com
exposições itinerantes, organizaram pequenos albergues nos lugares de destinação
como primeira assistência, incentivaram os recém-chegados a escrever para casa
esperando assim obter novas adesões.6
Na Itália, a controlar o recrutamento dos emigrantes, foram, antes da lei de 1901, as
grandes agências, geralmente localizadas em cidades litorâneas, como as genovesas
Colajanni, Laurens, Gondrand ou as napolitanas Ciamberini, Rocco Piaggio e
Raggio, as quais foram obrigadas porém pela mesma lei a transferir esta gestão às
companhias de navegação. A estrutura das agências antes e das companhias depois
era pulverizada em uma rede verdadeiramente maciça, que obviamente cresceu junto
com o desenvolvimento quantitativo do tráfego emigratório: em 1892 os mediadores
eram cerca 5.000, em 1895 7.000, em 1901 10.000 e em 1911 13.000.7 Sobre o tipo
de pessoa que se dedicava a tal atividade não havia diferença substancial entre a
situação precedente e aquela sucessiva à lei de 1901, que tinha abolido a figura da
agência de emigração para confiar também a fase do recrutamento ao vetor, ou seja, à
companhia de navegação. Se tratava em todos os casos de pessoas que tinham um
certo prestígio ou credibilidade social, uma certa cultura, além de um discreto grupo
de ocasiões nas quais podiam mostrar tais dotes: prefeitos, secretários municipais,
párocos, professores primários, autoridades municipais, marechais da polícia
aposentados, barbeiros, comerciantes. 8
Avaliar o impacto e o sucesso da propaganda sobre a decisão de emigrar é nos dias
atuais muito difícil. A grande quantidade de material que restou para a posteridade
(anúncios em jornais, panfletos, brochuras, folhetos) poderiam induzir a superestimar
o peso e o papel, enquanto que parece realmente que, passada a fase inicial na qual as
únicas informações sobre o mundo ao qual se aspirava eram aquelas fornecidas por
quem tinha interesse em alistar mão-de-obra e passageiros, fossem mais credíveis as
notícias que chegavam de parentes e conhecidos que a emigração haviam já vivido ou
estavam vivendo. E frequentemente os canais da comunicação se tornavam então as
cartas, documentos caracterizados de uma evidência comunicativa que a publicidade
– frequentemente e notoriamente abusiva ou mesmo enganadora – de certo não
possuía. Quem as escrevia conhecia a situação, seja em pátria que no novo mundo, e
não devendo vender nenhuma passagem podia ser considerado sincero e honesto nas
valutações.9
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6. P. Taylor, The Distant Magnet. European Migration to the USA, Eyre &
Spottiswoode, Lodon, 1971, pp 76 – 79.
7. A. Martinelli, Il commercio dell'emigrazione …, cit., p. 297
8. Op. Cit., p. 301.
9. É sempre necessário, porém levar em conta que existem também cartas por assim
dizer inspiradas, seja no senso emigracionista que no senso anti-emigracionista, nos
quais eventos desconfortáveis eram ocultados o deformados por várias razões; no
primeiro caso, por exemplo, para receber o dinheiro pela intermediação e no segundo
para favorecer os ambientes próximos aos proprietários de terras que temiam o êxodo
dos agricultores das suas terras.
A viagem antes da viagem, a escolha do porto, o pernoite e o embarque no navio
Muito frequentemente o emigrante, logo após ter deixado a terra dos antepassados,
alcançava o porto de embarque em trem, provando no “vapor terrestre” aquelas
condições de imundice, super lotação e promiscuidade que caracterizariam as fases
sucessivas da viagem. Teodorico Rosati, um especialista em saúde marítima, em 1908
lançava acusas contra a sociedade ferroviária italiana que “concedendo aos
emigrantes o desconto de 50% na tarifa ordinária, ensacava aqueles desgraçados em
vagões de quarta classe, fazendo-os viajar mais lentamente que os trens de carga, e
dando até a preferência de trânsito aos trens com gado.” 10 Acontecia sempre que os
emigrantes na sua viagem de trem devessem trocar de vagão em estações em países
dos quais não conheciam a língua, e hoje se encontram nos arquivos históricos, em
maio a documentos seqüestrados das autoridades policiais, mapas manuscritos nos
quais estão marcados os nomes das localidades onde efetuar as trocas de trem para
chegar ao porto de embarque.
11
Informações que poderiam ser dadas também por
representantes das diversas companhias de navegação localizadas nos pontos mais
freqüentados, os quais faziam notar a sua afiliação com distintivos ou peças de
vestuário decoradas com as cores sociais das respectivas sociedades. Para o
emigrante era já iniciada a aventura em um território desconhecido, para decifrá-lo
era forçado ás vezes a confiar nos conselhos e nas experiências de gente nunca antes
vista, que não raramente se revelava fanfarrão, trapaceiro o ainda pior, e podiam
realmente terminar muito mal por terem acreditado em pessoas erradas. Não era um
caso, de fato, que nos terminals ferroviários das cidades litorâneas estariam como
sentinelas, a ajudar os órgãos competentes, representantes de sociedades
humanitárias, como a San Raffaele, ou – presença documentada na estação de Trieste
nos primeiros anos de 1900 – da Liga Contra o Tráfico das Brancas.
A respeito da escolha do porto de embarque ao qual destinar o emigrante, não se
tratava decerto de uma questão sobre a qual fosse dado um modo ao interessado de
pronunciar-se; muito claro deste ponto de vista um documento não reconhecido (mas
produzido no ambiente da Câmara de Comércio de Trieste, então – somos em 1913 –
cidade do império austro-húngaro), no qual se pleiteava uma norma sobre a
emigração que canalizava integralmente o grandioso movimento nacional no porto de
Trieste:
“Somente na Áustria, onde o respeito da liberdade individual não é muito marcado
em outros campos, se opõem [à fixação por lei da obrigação de servir-se do porto de
Trieste para os emigrantes austríacos]: 1. que não é lícito realizar violência à livre
escolha da via de embarque da parte do emigrante, 2. que a viagem via Trieste há
uma duração maior, 3. que os meios de transporte disponíveis em Trieste não são
suficientes para cobrir todo o movimento migratório do país.
Não será difícil de minar estas objeções. Não é o emigrante a escolher o porto de
embarque, mas as companhias de navegação as mesmas que segundo as indicações
do grupo aumentam ou abaixam os preços de passagem em modo de equalizar o
número de emigrantes transportados por cada sociedade à quota atribuída nos acordos
internacionais; mas a multidão inumerável de agentes, mediadores e intermediários
de todos os gêneros que exploram o emigrante ignorante e analfabeto fazendo-o
viajar cegamente, frequentemente com longos giros viciosos.”12
___________________________________
10. T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, Vallardi, Milão, 1908,
p.69
11. Um mapa muito bonito desse tipo se encontra reproduzido em F. Cecotti, D.
Mattiussi, Un'altra terra, un'altra vita … , cit., p.25
12. Arquivo do Estado de Trieste, Câmera de Comércio, arquivo 155, posição 305-05
Eis então a situação do mercado internacional dos embarques dos emigrantes
delineada com eficácia, esta era dominada por um cartel de empresas que reunia
companhias de navegação inglesas, holandesas, alemãs, francesas e norte americanas,
que de fato determinavam o tráfego emigratório entre a Europa e o Canadá e os EUA.
O cartel subdividia preventivamente entre os participantes zonas de influência e
portos de partida, escalas e destinos. Quanto entre a programação e a realidade se
realizavam descartes se aplicava uma tarifa de compensação em virtude da qual as
sociedades que haviam trabalhado mais do que o devido eram obrigadas a dar uma
parte do próprio lucro àquelas que, ao contrário, haviam sido penalizadas.
13
A
influenciar na fixação dos percentuais confiados às diversas companhias nos vários
portos não era só a força contratual das próprias companhias, sendo frequentemente
determinantes com respeito às decisões, algumas vezes somente anunciadas, dos
governos. É então neste sentido provável que a dar uma quota relevante das
emigrações Westbound para os Estados Unidos à companhia triestina Società
Austriaca di Navigazione (mais conhecida simplesmente como Austro Americana) e
assim com respeito ao porto de Trieste, não haviam sido irrelevantes, as prospectivas
de uma “nacionalização” da emigração austríaca que seria portanto partida toda da
capital do Litoral Austríaco. Trieste soube assim conquistar nos primeiros anos de
1900 a quota de 4% da emigração continental em direção ao Estados Unidos, o que a
permitiu de colocar-se em nono lugar na classificação relativa aos anos 1908 – 1913.
14
A importância da escala triestina teria crescido ainda mais, havendo já sido
previstas para o futuro percentual maior que o dobro (precisamente de 7 % depois de
primeiro de maio de 1915 e de 10 % para o período incluso entre o primeiro de
janeiro de 1919 e 31 de dezembro de 1929), se não se fosse intrometido o início da
primeira guerra mundial a zerar os tráfegos emigratórios.
Uma vez fora do trem, os emigrantes haviam o problema do pernoitamento até o
momento ao qual seriam embarcados, e a situação era diferente de acordo com a
cidade e o país ao qual haviam tido a sorte de terem sido endereçados. Na Itália, já
antes de 1901, a permanência antes do embarque era por lei responsabilidade do
mediador, com o objetivo de eliminar o costume de afluir os emigrantes furtivamente
com larga antecedência com respeito à data de partida para assim fornir a vasta rede
de operadores econômicos que tiravam vantagem das suas permanências na cidade.
Do ponto de vista infra-estrutural, não existiam os hotéis ou casa dos emigrantes, mas
somente as pousadas autorizadas, que em 1905 eram a Nápoles 87 (com 2400 camas),
em Gênova 33 (720 camas), em Palermo 25 (770 camas), em Messina 18 (341
camas). 15
___________________________________
13. E. Franzina, Traversate..., cit., p. 40.
A prática dos cartéis, que era permitida do direito internacional e se realizava à luz do
dia: servia para evitar formas de concorrência, ditas “a faca”, que haviam no passado
causado danos enormes às companhias. A Hamburg-Amerika Linie avia iniciado em
1885 fazendo um acordo com as companhias britânicas para reduzir o volume dos
tráfegos destas últimas companhias a Hamburgo em troca de um abandono alemão de
Gutemburgo. Depois, em 1888, foi feito um acordo entre as companhias alemãs e a
Red Star Line da Antuérpia. Em 1892, estas companhias, juntamente com a HollandAmerika Linie, fundaram o assim chamado “grupo do atlântico norte” - North Atlantic
Steamship Association – com o intuito de fixa algumas regras para a publicidade
comparativa e as quotas dos tráfegos futuras em proporção às divisórias de 1880. Em
1908 foi a Cunard Line a promover um cartel com as outras companhias com a idéia
de fixar as tarifas e repartir os fluxos emigratórios.
Fonte: P. Taylor, The Distant Magnet, …, cit., p. 95.
14. G. Russo, Emigrazione transoceanica e trasporti marittimi dal porto di Trieste,
“Bollettino dell'emigrazione”, N.2, 1919, p.4. A classificação é a seguinte: Nápoles
156.125 passageiros em média ao ano; Brema 150.249; Gênova 126.897; Hamburgo
115.676; Havre 73.752 (a média se refere porém ao período 1908 – 1912); Antuérpia
69.697; Roterdã 47.229, Fiume (atualmente Rijeka) 25.616, Trieste 25.391.
Parece evidente portanto que, à luz do tráfego de dimensões colossais que se deu nos
anos precedentes à primeira guerra mundial
16
– anos nos quais a liderança nas
partidas para as Américas foi concedida dos portos da Europa setentrional àqueles
italianos – grande parte dos emigrantes se dispersavam nas cidades portuárias
confiando-se à estalajadeiros abusivos. Estes terminavam por formar um verdadeiro e
próprio lobby, capaz de obter em 1907 em Nápoles o fechamento de uma casa do
emigrante que poderia ter hospedado 900 emigrantes,17 de induzir a cidade a uma
greve geral quando, quatro anos depois, para enfrentar uma epidemia de cólera, as
autoridades sanitárias preparam um posto de saúde para emigrantes.18 Os portos
italianos eram deficitários também de outras infra-estruturas necessárias às operações
de embarque: basta citar o caso de Gênova que por grande parte de 1800 se serviu de
um atracadouro, Ponte Calvi, privo de construções ou barracas, e apenas entre os
anos 1877 e 1890, no âmbito de ampliar as estruturas portuárias, um atracadouro
propositalmente construído (Ponto Federico Guglielmo) foi destinado somente ao
tráfego de passageiros e foi erguida a Estação Marítima, dotada de dois edifícios
utilizados para controles e serviços (alfândega, consultas médicas, lojas, latrinas)
separados por um barracão capaz de proteger do sol e das intempéries os passageiros
em espera. 19
Muito diversa a situação nos portos alemães, como Hamburgo, onde existiam
adicionalmente um condomínio para os emigrantes que se estendia “sobre uma área
de 25.000 metros quadrados concedido gratuitamente pelo Estado por 25 anos à
Hamburg-Amerika Linie”, com tantas lojas, locais de culto e de entretenimento, ou
como Brema, onde haviam preferido evitar a centralização e logo utilizar as
pousadas, “50 pousadas para 3.775 emigrantes, e se necessário também para mais de
5.000”, cada uma das quais constituía um “alojamento bom sob qualquer aspecto e
funcionando em modo impecável”.20
Em Trieste, a sociedade líder do mercado local da emigração, a Austro Americana,21
ao contrário
______________________________________
15. A. Molinari, Porti, trasporti e companie, em P. Bevilacqua, A. De Clementi, E.
Franzina (editado por), Storia dell'emigrazione italiana. Partenze, cit., p. 251
16. Em 1913, ano no qual o tráfego atingiu o seu ápice, os volumes de tráfego foram:
Nápoles:209.835; Gênova: 138.166; Palermo: 62.745; Messina: 6.367.
Fonte: A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, ci., p. 247.
17. G. Rossoli, L'assistenza sanitaira all'emigrazione di massa verso le Americhe
(1880-1915), em “Sanità, scienza e storia”, N. 2, 1986, p. 187.
18. A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, cit., p.252
19. A. Gibelli, Emigranti, bastimenti, transatlantici. Genova e la grande ondata
migratoria, in P. Campodonico, M. Fochessati, P. Piccione (editado por),
Transatlantici, Scenari e sogni di mare, Skira, Milão, 2004, p. 200.
20. T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e dei marinai, cit., pp. 47-48.
21. De 1903, ano em qual foi ativado o serviço de transporte além do oceano de
emigrantes pela Cunard Line no porto de Trieste, até 1914, ano em que tal serviço foi
interrompido por conta da explosão do conflito, a Austro Americana, embarcou 83%
dos emigrantes e as concorrentes Cunard Line e Canadian Pacific Railway
respectivamente embarcaram 14,7 e 2,3% dos 220.312 passageiros de terça classe
que tiveram como destino: 73,5% em direção ao Estados Unidos, 22.1% para
América do Sul e 4,4% para o Canadá.
Fonte: A. Kalc, Prekooceansko izseljevanje skozi Trst 1903 – 1914, em “Zgodovinski
časopis”, ano 46, 1992, n.4, pp. 484 e 489.
das concorrentes na praça, escolheu seguir o modelo do porto de Hamburgo,
munindo-se de uma casa do emigrante,22 que foi várias vezes visitada por
autoridades, sanitárias e de segurança pública, que produziram continuamente
documentos preocupantes e alarmantes.
Em março de 1905 interveio uma guarda sanitária da Prefeitura de Trieste que iniciou
o seu relatório notando que para os mil e duzentos viajantes em partida com o
piróscafo Gerty, faltavam colchões, sendo disponíveis “600 colchões novos e 300
colchões em uso sobre piróscafos”. Assim prosseguia o elenco das irregularidades: “
Uma parte dos emigrantes não recebe nem ao menos uma coberta para a noite [..] Os
emigrantes se cortam os cabelos [assim no original Nota do autor] ou se raspavam a
barba nos dormitórios [..] Nos dormitórios por causa da massa de pessoas, por causa
de muito lixo acumulado, pelo barro que existe em todos os ambientes, sem que
ninguém se preocupe em deixar aberta pelo menos uma parte das janelas há um fedor
insuportável [..] São unidos 2 ou 3 assim chamados leitos e sobre eles fazem dormir 5
– 6 pessoas [..] Os banheiros são mantidos pessimamente”.23
Em abril de 1906 foi registrado um caso de varíola, que foi pretexto para o relatório
de um médico do Hospital civil, que escreveu entre outras coisas:
“... o espaço disponível é somente para no máximo 700 emigrantes e os irmão
Cosulich colocam lá mais de 1.000. As macas são muito próximas umas das outras; e
estão presentes até nos corredores. Até os refeitórios deixam muito a desejar, não
existem lixeiras estáveis, o lixo é simplesmente empilhado no quintal onde
permanece por muitos dias e no fim são entregues aos agricultores (!).
Sendo assim, um local onde se considera um fluxo extraordinário de emigrantes (100
recém-chegados por dia) constitui um permanente perigo. E a prova foi obtida
precisamente com este caso de varíola – que pode infectar sabe-se lá quantos
indivíduos, aglomerados como senão naqueles ambientes. A casa de boas-vindas não
é dotada de nenhum aparato de desinfecção a vapor; em certas cidades onde fluem
tantos emigrantes tudo é melhor organizado; cito Marselha, Gênova, Nápoles e etc.!”.
24
____________________________________________
22. Para tal fim adquiriu um edifício que foi projetado em 1980 e materializado logo
depois. Se encontrava no distrito periférico de Servola, de frente para o mar, e era
uma bela construção localizada no centro de uma área verde. As dimensões em planta
eram 38 x 50 metros e era constituído de um porão, dois andares superiores mais um
terceiro andar no sótão. O proprietário era a Sociedade dos Amigos da Infância e
servia para dar alojamento a colônias de crianças, frequentemente com doenças
pulmonares, fazendo-as gozar dos benefícios dos banhos de mar. Em 1893 em todo o
edifício haviam quatro salões destinadas a dormitórios, dois deles capazes de
hospedar “15 meninos” e duas capazes de hospedar “15 pagantes”. Em agosto de
1894 os técnicos da Sociedade projetaram a preparação de outros dois grandes
quartos no sótão. Em 1913 a Casa do emigrante sofreu enormes mudanças: aumento
do edifício, ao qual foi adicionado 3 andares, e a usa destinação exclusiva a
dormitórios, capazes de dar descanso a 3000 emigrantes, e adicionando outros dois
edifícios destacados, os quais combinados como pavilhões de isolamento e outro de
refeitório. A nova Casa do emigrante não pôde quitar as suas tarefas por alguns
meses, em um primeiro momento por causa da explosão da guerra e da conseqüente
cessação dos fluxos emigratórios e em um segundo momento, a partir de outubro de
1916, sendo destinada a um hospital auxiliar. O edifício em questão existe ainda hoje,
embora reestruturado recentemente. Se encontra na Via Italo Svevo 15 e hospeda uma
escola.
Fontes: Prefeitura de Trieste, Área de Planejamento Urbano, Arquivo de desenho
técnico, desenho 6536 e Arquivo Geral da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil,
Seção IV, 566/13.
23. Arquivo Geral da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil, exibição 22.502/1905,
1/9-2/1905.
24. Arquivo Geral da Prefeitura de Trieste, Magistrado Civil, exibição 25.129/1906,
4/4-1/1906. Outros casos de varíola na Casa do emigrante da Austro Americana se
deram em 1913.
O problema sanitário foi levantado ainda, continuamente, tanto até forçar a Austro
Americana a substituir a prática de lotar além da medida a Casa do emigrante e a
procurar locais suplementares, utilizando “também próprias embarcações que serviam
de albergues provisórios em mar: um albergue flutuante, que não permite que os
emigrantes proliferem na cidade e sejam hospedados no centro da cidade, trazendo
tanto perigo para a nossa saúde pública”.25
Resta o fato que a questão sanitária ligada a passagem na cidade de milhares de
emigrantes por ano era de extrema urgência, sobretudo para uma cidade que, como
Trieste, revelava em matéria de saúde e higiene um sofrimento surpreendente. A
cidade havia crescido em modo desproporcional naquela década entre os
recenseamentos de 1900 e 1910, dando vida a um aumento demográfico de mais de
50.000 habitantes, mensurável na ordem de 28,5%, enquanto o sistema de esgoto e
aquele fornecimento de água restavam totalmente inadequados. A situação habitativa
era desastrosa, somente em parte aliviada pelo programa de edificação de casas
populares confiado ao Instituto Municipal de Habitações Mínimas. Entre as classes
populares imperava a tuberculose, o alcoolismo, a pobreza e a decadência. E se
difundiam as epidemias, como o tifo e a varíola, que em 1913 registrou 15 casos
mortais.26
Portanto parece hoje que fosse freqüente o medo que entre os passageiros de terceira
classe existissem portadores de infecções capazes de funcionar como estopim e
infectar alojamentos populares, “aluga-leito” ou mesmo a Casa do emigrante.
Os lugares de recuperação para os emigrantes são sempre descritos, em documentos
históricos, que se ocupam de questões que interessam a burocracia sanitária, e de
quem os escreve a distância de anos em uma prospectiva de reconstrução histórica,
como péssimos e portanto investidos de reprovação. E é certamente possível seguilos em caráter “concentracionais”, basta pensar somente ao fato que vinham
posicionados o mais próximo possível às estações ferroviárias para evitar ou reduzir
ao mínimo relacionamentos e contatos com os residentes até a partida do navio. Mas
ocorre sempre ter presente o fato que foi muito pior aos emigrantes que terminavam
naqueles portos privos de infra-estrutura dedicadas à eles, obrigados a mover-se em
grupos à mercê de contágios e pessoas mal-intencionadas, para depois acamparem
sobre os bancos a esperar o navio compondo aquelas imagens de uma multidão
indefesa e desesperada que foram tantas vezes descritas.
Chegava finalmente o momento do embarque, precedida das fases de preparação do
navio, que decerto deveriam parecer misteriosas a quem as via pela primeira vez: o
vai-e-vem de trabalhadores que efetuavam manutenções e preparação de bordo, dos
“coffinanti” que derrubavam o conteúdo dos seus cestos enormes nos funis para o
carvão. E, finalmente, acontecia o embarque através do passadiço, símbolo e prelúdio
daquela “realidade líquida” que teria sido para todos a base de apoio do navio na fase
de passagem do velho ao novo mundo.27
______________________________________
26. Em dezembro de 1913 a Prefeitura confiou um estudo sobre as causas da difusão
do tifo a um cientista trazido propositalmente de uma outra cidade. O relatório não foi
de maneira alguma tranqüilizante, resultando inexistentes ou insuficientes todas
aquelas “instituições geralmente elencadas no conceito de 'saneamento higiênico'.
Estas são: uma boa canalização, um distanciamento ideal dos lixões e das imundices,
uma provisão irrepreensível de água, o controle do mercado de alimentos, o
melhoramento das más condições de moradias”. Algumas circunstâncias resultavam
particularmente alarmantes, como por exemplo “o fato, que na peixaria, além da água
de Aurisina [ou seja do aqueduto público] foi canalizada a água do porto, depois de
ser feita uma simples depuração. Ora, aquela água marinha foi colhida a somente 150
metros da saída de alguns canais da cidade e é exposta além de tudo a contínua
poluição dependendo do movimento dos navios.”
Fonte: W. Prausnitz, Parere del Prof. Prausnitz sulle condizioni igieniche di Trieste in
nesso all'epidemia di tifo, Graz, 1913, Arquivo General da Prefeitura de Trieste,
Magistrado Civil, Seção V, 1913/2-3697.
A travessia
Antes do advento dos navios a vapor, os emigrantes viajavam a vela. Se tratava de
travessias que frequentemente se transformavam em verdadeiras e próprias odisséias,
e não é a caso que se referiam aos navios a vela, na metade de 1800, chamando-os
Coffin Ships. Eram embarcações que efetuavam transportes mistos, pessoas e
mercadorias (como farão também depois, por décadas, os navios a vapor). Por quanto
diz respeito à direção da Europa à América setentrional, no trajeto Westbound,
transportavam, além de passageiros, também ferro, tecidos, vidro, tijolos e produtos
químicos e ao retorno, no trajeto Eastbound, algodão, tabaco, trigo, gado e porcos.28
Os emigrantes zarpavam da Havre para Nova Orleans, de Brema para Baltimor, de
Liverpool para Nova Iorque, Quebéc e Boston, dividindo a viagem com vacas,
ovelhas, porcos, à mercê dos ventos, das correntes, das geleiras.
Sendo aleatória a duração da viagem, era muito difícil para os passageiros calcular as
provisões e o dinheiro de qual munir-se, o que os deixavam expostos à fome o aos
truques da tripulação que conheciam perfeitamente o mecanismo e os abusam ás
vezes dando conscientemente notícias erradas no momento do embarque.29
Nos tempos da vela não demorou muito para se improvisar vetores para os
emigrantes, bastava ter um veleiro de dimensões médias; o investimento poderia ser
até modesto mas, reciprocamente, o frete era muito elevado: em 1851 o frete por
emigrante era páreo ao custo por tonelada de um veleiro. 30
Muito frequentemente a partir da improvisação nasciam situações críticas. De uma
dessas, que se refere a cidade de Trieste, restaram pistas nos arquivos porque foi de
uma gravidade tal para ter sido objeto de interesse da parte das autoridades judiciárias
e da polícia da cidade, então capital do Litoral Austríaco. Em 1888 dois banqueiros
triestinos, Isacco e Giuseppe Morpurgo, alugaram três navios a vapor do Lloyd
Austriaco, o Helios, o Orion e o Medusa, que zarparam de Trieste respectivamente
em 25 de outubro, 25 de novembro e 27 de dezembro, todos os três diretamente ao
Brasil com as suas cargas de emigrantes do território de Trieste e do Reino da Itália.31
A tentativa dos irmãos Morpurgo de dedicar-se continuamente e definitivamente ao
tráfego de emigrantes teve um fim frustrante por uma série de fatores concomitantes,
primeiro de tudo uma ação penal por seus danos feita pela polícia austríaca e a
proibição de instituir agências de emigração a Trieste emitido da autoridade local do
Litoral Austríaco em janeiro de 1889. Mas foi uma tentativa notável, que na primeira
viagem teve um epílogo muito interessante, com um contingente de cerca duzentos
triestinos que, desembarcando em uma localidade diferente a respeito daquela
acertada, reagiram a delusão produzida pela mudança das promessas e a realidade
com uma série de reivindicações e
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27. G. Carosio, Navi da emigranti, em Lamerica! 1892 – 1914 Da Genova a Ellis
Island: il viaggio per mare negli anni dell'emigrazione italiana, Sagep, Genova,
2008, p.80.
28. P. Taylor, The distant Magnet, cit., p. 107.
29. M. A. Jones, Transatlantic Steerage Conditions. From Sail to Steam, 1819 – 1920,
em B. Flemming Larsen, H. Bender, K. Vein (Editores), On distant shores.
Proceedings of Marcus Lee Hansen Immigration Conference, Aalborg, Denmark,
June29 – July 1, 1992, The Danes Worldwide Archieves, 1993, p. 68.
30. A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, cit., p. 242
31. A reconstrução da história dos triestinos repatriados se encontra no Arquivo do
Estado de Trieste, sede do Litoral, Atos Gerais, b. 481, f. 1.604.
exigências, às quais na subscrição dos contratos, o intervento do cônsul austríaco e
enfim o repatriamento à Trieste, via Gênova em um navio inglês, que os permitiu de
tornar a casa em 14 de janeiro de 1889, dois meses e meio depois da partida. O
comportamento recalcitrante e pouco remissivo tomado no Brasil pelos triestinos
poderiam ser um convite a reflexão sobre o esteriótipo do emigrante como sujeito
passivo, abandonado à uma corrente que era incapaz de controlar.
A passagem entre a era da vela e aquela a vapor poderia ser desempenhado na vida e
na experiência de Andrea Gagliardo, um agricultor genovês que desde 1847 até 1888
embarcou 14 vezes para a América. De algumas das 14 viagens restaram traços
escritos no Arquivo Ligure da Escritura Popular que se encontra na Universidade de
Gênova, o que permite confrontos interessantes. Existem duas notas sobre um seu
manuscrito autobiográfico, separados entre eles por pouco mais de uma década, que
fixam com clareza exemplos de transformações epocais na história das emigrações
internacionais: “1847. Brigantino Bettuglia de Gênova a Nova Iorque. 57 dias. 1861.
Vapor Etna de Liverpool a Nova Iorque. 17 dias.”
32
Se trata de uma verdadeira
revolução, que se investiu sobre as variáveis principais da viagem do emigrante, ou
seja, o porto de embarque, o tipo de embarcação e a duração da viagem.
Não apenas os navios a vapor haviam suplantado os navios a vela,
33
se abriu uma
nova fase que em breve se tornou uma epopéia: havia chegado o tempo dos desafios
tecnológicos e construtivos entre as grandes companhias de navegação (Cunard Line,
White Star Line, Hamburg-Amerika Linie, Norddeutscher Lloyd …, as mesmas que se
colocavam na mesa para repartir as fatias do mercado dos tráfegos emigratórios
criando os cartéis), que se empenharam com todos os seus recursos e energia para
construir o maior, mais veloz e mais luxuoso navio. Foi o período dos gigantes do
mar, dos desafios para rasgar a Fita Azul do concorrente, dos recursos pesados a
serviço do progresso da indústria marítima. Mesmo se, ocorre observar, do ponto de
vista da viagem do emigrante, os grandes transatlânticos representavam a excelência,
o pico, as exceções, enquanto a extra-grande maioria dos circulantes continuou a ser
constituído de navios velhos, lentos e espartanos.
Foi assim que os emigrantes encontraram-se a dividir a viagem com os “passageiros
de classe”, onde na definição é subentendida o cardinal primeira. E é uma
categorização tão forte que permanece ainda hoje no linguajar para definir alguma
coisa refinada, algo que se diz, justamente, de classe. Nascia uma dicotomia perene
que se nutria de oposições: tantíssimos os passageiros na terceira classe, poucos na
primeira; pouquíssimo espaço para o necessário, muito para o desnecessário; atração
pelo destino final, consciência vaga ou nula da sua existência e essência;34 a viagem
como fim ou distração e a viagem como obrigação para a sobrevivência ...
______________________________________________
32. A. Molinari, Porti, trasporti e compagnie, cit., p.237
33. A alternação aconteceu com uma certa cautela: os navios antes foram em ferro
para depois tornar-se nos anos oitenta de 1800 em aço (e diminuir 15% do peso).
Munidos de uma única hélice, mantiveram mastro e vela em caso de avaria, cautela
rendida excessiva após a difusão de cascos com duas hélices. Quase
contemporaneamente se iniciou a utilizar a eletricidade a bordo, que logo permitiu às
embarcações de adotar frigoríferos e eliminar portanto a necessidade de transportar
gado vivo para ser abatido durante a navegação, o que trouxe todos os benefícios do
ponto de vista sanitário.
Fonte: P. Campodonico, Dal Great Eastern al Queen Mary. Nascita di un mito
moderno, in P. Campodonico, M. Fochessati, P. Piccione (editado por),
Transatlantici. Scenari e sogni da mare, cit., pp. 26 e 30.
34. A consciência do destino muitas vezes variava de acordo com a nacionalidade dos
viajantes: “[...] the Germans have maps in their pockets and point out just the place of
their several
O alojamento a bordo dos emigrantes nos navios a vapor podia acontecer, como nos
tempos da vela, em navios que carregavam também mercadorias (e em tal caso as
paradas nos portos eram particularmente trabalhosas porque deviam organizar os
dormitórios em estruturas modulares que vinham várias vezes montadas e
remontadas) ou então, nos transatlânticos, juntamente aos passageiros de segunda e
terça classe. Segundo observadores contemporâneos, a melhor solução não era
nenhuma das duas, mas uma terceira, ou seja a construção de piróscafos dedicados
somente aos emigrantes. De fato, as naves mistas não andavam bem depois de serem
readaptadas sobre a base da “engenhosidade especulativa com regulamento a mão” e
os transatlânticos muito menos pois viciados das circunstâncias que “era muito dar à
eles a comodidade e o luxo das classes, porque todos os cuidados [poderiam]
deveriam ser endereçados à população esfarrapada formada pelos emigrantes.”35
Para reconstruir a vida de bordo no decorrer da viagem são ainda muito úteis os guias
do emigrante, sempre pródigo de conselhos e advertências.
36
Mas existem também
outras fontes, que executavam a mesma função com tons menos paternalistas e com
mais afeto e participação, como as cartas que quem havia já emigrado mandava à
casa, para beneficiar os parentes e amigos que estavam para empreender-se a viagem.
Eis um exemplo, tirado de uma carta de 1902 de Konstanty Butkowski aos pais, na
qual, em referimento à próxima ida para América do irmão Antoni, o jovem escrevia:
“Queridos pais … vos informo que mandei uma passagem para o navio a Antoni …
Esperem de recebe-la logo … E lembre-se, Antoni, não mostre os seus documentos a
ninguém, exceto nos portos em que deve mostra-los … E se receber logo a passagem,
não espera, mas venha imediatamente … E mande-me um telegrama da Castle
Garden. Não pagará muito, e eu irei à estação ferroviária. Porte com você quinze
rublos, bastarão, e troque rapidamente em dinheiro prussiano. E quanto ao vestuário,
traga os piores que tem, mais ou menos 3 camisas velhas, que você possa ter uma
muda sobre a água. E quando atravessar felizmente a água então jogue fora todas
aqueles trapos. Não traga nada com você, exceto aquilo que você veste. E não use
nem ao menos bons sapatos, ma tudo da pior qualidade. Quanto a comida, traga um
pouco de pão seco e muito açúcar, e cerca de um quarto de álcool, e um pouco de
carne seca. Depois, traga algumas cebolas, mas não traga queijo … E seja prudente
com o dinheiro em todos os portos. Não fale com nenhuma garota sobre a água. …
“37
_______________________________________
destination” enquanto “the Polish emigrants […] do not understand where they are
going […] because it is all 'America'.”
Fonte: P. Taylor, The Distant Magnet, cit., p. 66.
35. T. Rosati, Assitenza sanitaria degli emigrati e marinai, cit., p. 72.
36. Eis um exemplo: “[O emigrante] A bordo não faça ruído, tenha um
comportamento sério e respeitoso com todos, especialmente com as mulheres; não
moleste os outros, não suje o pavimento, ao descamar a pele, tenha cura da sua
pessoa, lave-se, penteie-se, troque frequentemente de roupas, não jogar, não compre
alimentos além daqueles disponíveis a bordo; seja respeitoso, educado e leia algum
livro instrutivo e pelo menos, para não ficar no ócio, se sabe ler pouco, se exercite na
leitura para se aperfeiçoar. Nos dias de mar agitado não se exponha no convés, nas
escadas, nas escotilhas, para evitar desgraças. Se possui crianças com você, vigie-as
atentamente, cuide rigorosamente da sua limpeza. Para qualquer reclamação contate o
Real Comissário viajante, que se encontra a bordo do piróscafo, e na sua falta, o
médico de bordo faz a sua vez.”
Fonte: Manuale per l'istruzione degli emigranti, Comissário Geral da Emigração,
Roma, 1925, p.126.
Muito interessantes os temas que vinham tocados na carta em forma de advertências:
não vestir boas roupas (que as condições da viagem renderiam inúteis por serem
usados noite e dia, pela contaminação com líquidos orgânicos – fezes, urina e vomito
próprio e dos companheiros de viagem – e pelo efeito do pó de carvão que envolvia
como uma nuvem os navios em viagem) 38; não vestir sapatos bonitos (que seriam
roubados durante a noite); levar comida calórica e fácil de conservar (que serviria a
integrar a refeição ou a substituí-lo quando o passageiro houvesse sofrido de mal de
mar); ser prudente em cada porto com o dinheiro e não falar com as garotas (para
evitar de cair em engano ou em fraudes, que evidentemente eram ás vezes também
camufladas por intrigas de fundo sentimental).
Nas cartas dos emigrantes se encontrava muito frequentemente a recomendação de ter
cuidado com a própria bagagem de mão.39 Enquanto com os pertences colocados no
bagageiro do navio, restava só esperar que não se realizassem furtos nas várias
passagens de mão dos pacotes, furtos que não eram de fato infrequentes. Eis os
lamentos de um emigrante, confiada a uma carta escrita do Brasil em 1889:
“Não é raro o caso que […] o emigrante resta privo do volume de bagagem que
exportou da Europa, que são raríssimos aqueles que chegavam felizes a Colonia. À
um deles, não há muito tempo, que se lamentava que havia perdido todos os seus
baús, teve a resposta que não devia lamentar-se, que objetos de vestuário existem
também aqui. Duas esposas, casadas pouco antes de vir aqui, tinham guardado as
coisas no criado-mudo e chegando em São Paulo o encontraram cheio de carvão. Os
furtos que eram cometidas impunemente nos portos de Santos e Rio de Janeiro, com
respeito às bagagens dos emigrantes, são inacreditáveis e eu precisaria de um
quaderno inteiro para relatar todos os particulares.” 40
Ao que diz respeito às bagagens de mão, nos papéis arquivados se encontram não
raramente, documentos capazes de ilustrar as suas consistências. Se tratam de verbais
redigidos em forma de inventário do comandante o dos oficiais superiores em caso de
óbito do proprietário. 41
______________________________________
38. O pó de carvão criava um tipo de névoa, motivo pelo qual os projetistas dos
navios da época do vapor escolheram a pintura de cor preta. Eis um outro testemunho
sobre os efeitos do carvão: “Não te digo que névoa de carvão que havia ao redor.
Estávamos todos assim pretos e como fazia calor, porque é uma terra quente, não sei,
todos suados e escorria a gota branca na pele preta.”
Fonte: Trenta giorni di maccina a vapore..., cit., p.477.
39. Também Karl Rossmann, o emigrante kafkiano embarcado em um navio da
Hamburg-Amerika Linie diretamente para Nova Iorque, considerava muito a sua
bagagem, ao ponto que, durante a viagem, no dormitório havia “... por cinco noites
continuamente suspeitado de um pequeno eslovaco que dormia duas beliches além da
sua, à esquerda, temendo que mirasse a sua bagagem. Karl temia que o eslovaco
espera somente que ele no fim, vencido pelo cansaço, se adormecesse para puxar as
malas com um lungo bastão com o qual brincava ou fazia pequenas acrobacias
durante o dia.”
Fonte: Franz Kafka, Il fochista, em Racconti. Descrizione della tragedia dell'uomo
moderno, Biblioteca Universale, Rizzoli, 1991.
40. Carta de Francesco Costantin, Colonia Angelica, São Paulo-Brasil, 8 de junho de
1889, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., p.174.
41. Eis um, redigido ao leprosário de San Bartolomeo nas redondezas de Muggia em
3 de julho de 1911 para se responsabilizar dos efeitos da defunta Maria Soldan,
galega, morta por cólera asiática. A senhora tinha 28 anos, morava em Nova Iorque e
viajava em companhia dos quatro filhos que
foram confiados a uma estrutura assistencial triestina. A sua bagagem de emigrante
continha:
No caso apenas citado na nota de rodapé se entende que a azarada súdita austrohúngara era uma viajante habitual das circunstâncias que era dotada de louças e
talheres para fazer as refeições. Aos emigrados que não eram assim cientes e
previdentes, o necessário vinha alugado no momento da primeira refeição com a
obrigação de restituir na chegada eventuais objetos danejados o perdidos. A refeição
acontecia de maneira diferente dependendo se o navio possuía ou não um refeitório.
Os navios das companhias italianas eram desprovidos de refeitórios (foi introduzida
uma experimentação apenas em 1906, a bordo do piróscafo Roma que fazia a rota
entre Gênova e Buenos Aires, mas iniciaram a difundir-se muito mais tarde e com
notável resistência por causa do espaço que vinha ocupado com a sua presença,
subtraindo-o das beliches),42 e as refeições vinham servidos através da formação de
um grupo de seis pessoas, das quais uma retirava a comida também para os outros e
esta tinha o dever de distribuí-lo segundo critérios de igualdade.43 Eis um exemplo do
funcionamento de tal sistema:
“Bom, somos a bordo, fizemos logo amizade com uma pequeno grupo de homens que
procuravam amigos para fazer um grupo de cinco para comer. Porque não tinham
mesas e cadeiras, as pessoas comiam sentadas no chão. Então dissemos: “Sim, nós
somos em dois”, “Nós somos aqui”, “Se nos aceitam ficamos felizes”. Aqueles lá
beatos e felizes também nos deram o número para comer, que era como uma bacia
para a sopa ou macarrão, uma bacia mais baixa para a comida, um prato de lata fundo
para todos (tudo lata, é?), uma colher e um garfo, faca não. Os homens tinham os
canivetes, e então o usavam, eram eles que cortavam. E beber... o copo naturalmente
de lata com alça, senão queimava... Bom aquele café! Seria porque eu nunca tinha
bebido, enfim... café, nada de leite... leite somente para as crianças até dez anos, para
mim o davam ainda. E para o lanche uma sopinha... passava a enfermeira com... É,
era necessário fazer fila na porta da cozinha. A cozinha era lá no alto, na parte de
dentro. O homem encarregado do vinho, o homem encarregado da sopa e da comida,
faziam um pouco de fila, pegavam as coisas, depois vinham para nós e cada um havia
já encontrado um cantinho. Se tinham encontrado um cantinho nas cordas, sobre um
banco qualquer, muitos traziam as espreguiçadeiras, não muitos mas muitos enfim.”44
Com referência à quantidade de comida que vinha administrada aos emigrantes
devemos retornar a um fenômeno já mencionado, ou seja, sobre o comportamento
muito frequentemente tomado pelos membros da tripulação que chegavam a
administrar doses menores dos alimentos com respeito ao previsto com o objetivo de
complementar o deficit com a venda de porções subtraídas da carga do navio ou
mesmo introduzidas ilegitimamente da terra de maneira premeditada.
________________________________________
“5 colheres comuns; 3 garfos comuns; 1 canivete; 1 prato de lata,1 espelhim; 3
pentes; 9 copos de vidro variados; 1 pacote de chá; 1 escova para roupas; 43 peças de
vestuário para crianças; 23 peças de vestuário feminino; 3 lenços; 4 pedaços de fita
colorida; 1 toalha; 3 toucas para crianças; 5 pedaços de tecido variado; 1 cinto
feminino; 2 pares de sapatos de crianças; 4 pares de sapatos de mulher; 3 pedaços de
sabão; 1 manto pequeno; 38 pedaços de retalhos; 1 baú; 1 mala; 1 saco; 3 cadeados
para a bagagem; 1 porta-moeda contendo 2 passagens para bagagens e 1 passagem
Nova Iorque – Trieste, 2 anéis de ouro, 35 ¼ dólares.”
Fonte: Arquivo do Estado de Trieste, Governo Marítimo, b. 860, fascículo 5.494 de
1913.
42. G. Rosoli, L'assistenza sanitaria all'emigrazione di massa …, cit., p.204
43. Critérios que eram muitas vezes virtuais, sem manifestar-se em comportamentos
efetivos, sendo fatalmente destinados a prevalecer os passageiros fornidos de dinheiro
que aceitavam de corromper os homens da tripulação, as mulheres jovens que
aceitavam de utilizar a sua graciosidade, os homens robustos e prepotentes.
Fonte: P. Taylor, The Distant Magnet, cit., p.138
44. Trenta giorni di macchina a vapore …, cit., p.476
No que diz respeito à qualidade dos alimentos, essa devia ser geralmente dita como
muito discutível. Nesse propósito ocorre registrar o estupor de alguns observadores
com a visão de que fossem nojentos os emigrantes em termos de gostos alimentares.
Escreveu também Robert Louis Stevenson, que em 1879 tinha viajado a bordo do
Devonia de Glasgow a Nova Iorque, misturando-se frequentemente durante o dia aos
emigrantes (mas dormindo de qualquer maneira em uma cabine de segunda classe):
“Houve alguém que estava assim próximo de morrer de fome na sua casa, que saltou
sobre o navio, digamos, com o diabo nos calcanhares; para eles era tudo maravilhoso,
e o nosso o navio mais esplendoroso. Mas a maior parte era profundamente
descontente. Eu me surpreendi ao ver que possuíam gostos tão delicados, visto que
vinham de um país em condições desastrosas como a Grã Bretanha, e muitos de
Glasgow que, comercialmente falando, era a morte, e eram desocupados a tanto
tempo. Eu também vivia quase exclusivamente, como eles, de pão, mingau e sopa, e
achei o todo, se não de luxo, ao menos decente. Mas estes trabalhadores gritavam
enfaticamente o seu protesto. Não era “comida para seres humanos”, era “bom para
os porcos”, era “uma vergonha”. Muitos viviam quase exclusivamente de biscoitos,
outros das suas provisões pessoais, e alguns pagavam a mais para ter porções
melhores.” 45
O pernoitamento a bordo acontecia nos dormitórios, salões que poderiam conter até
algumas centenas de pessoas, um verdadeiro caos, permanentemente sujas, úmidas,
infestadas de germes, bactérias e parasitas, impregnados de um fedor para o qual os
médicos de bordo cunharam o neologismo “fedor de emigrante”. 46 A área dos salões
era realmente irrespirável por muitos fatores entre eles a temperatura, o ácido
carbônico e o vapor de água causado pela respiração, os produtos tóxicos voláteis
frutos da secreção dos corpos, a presença de fezes e urina e vômito, não retidos pelo
mal de mar, que ninguém se preocupava em remover do pavimento e das vestes.47 Os
dormitórios dos emigrantes eram divididos por sexo: até uma certa idade os meninos
podiam estar com as mãe naquele reservado as mulheres, para passarem
sucessivamente àquele dos homens. Ao pôr-do-sol acontecia a separação e nos diários
de bordo dos piróscafos poderia calhar de ler que algumas vezes uma manobra
causava preocupação à tripulação. De fato, não eram raros os casos nos quais eram os
próprios núcleos familiares a ver com maus olhos a divisão, preferindo se misturar
com os parentes – mesmo que fosse do sexo oposto – que a proximidade com
desconhecidos do mesmo sexo. 48
____________________________________________
45.L. Stevenson, Emigrante per diletto, Einaudi, Turim, 1987, p.15
O motivo do emigrante que se lamenta desproporcionalmente a respeito dos
desconfortos foi sublinhado também por uma colega do escritor escocês, Amy
Allemand Bernardy, autora em 1913 de um livro intitulado L'Italia randagia
attraverso gli Stati Uniti, que dizia: “A bordo não é sempre verdade que o emigrante
seja sempre vítima. Mas pelo quanto se lamentam, setenta e cinco vezes para cada
cem estava pior a sua casa e estará pior na sua casa nova.”
Fonte: E. Franzina, Traversate. Le grandi migrazioni transatlantiche …, cit., p. 64
46. A. Molinari, Le navi di Lazzaro … cit., p. 157.
Do mesmo teor outras vozes, como aquela já ouvida de Teodorico Rosati: “bem quem
não viu um dormitório de emigrantes em ação, digamos, não sabe em que coisa se
transforma depois de alguns dias estes leitos. O emigrante ali se deitava vestido e
calçado, o usa como depósito de sacos e malas; as crianças ali deixam urina e fezes; e
ainda vomitam; todos, de uma maneira ou de outra, o reduzia, depois de alguns dias,
a uma casa de cachorro.”
Fonte: T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, cit., p.91
47. A Molinari, Le navi di Lazzaro …, cit., p. 17-18.
48. M.A. Jones, Transatlantic Steerage Conditions …, cti., p. 67
Era delicadíssima em qualquer caso o posicionamento em bordo das garotas que
viajavam sozinhas, muito frequentemente, assediadas, molestadas o até mesmo
violentadas sexualmente por outros emigrantes, mas sobretudo por membros da
tripulação.49 Não era raro de fato os comandantes dos navios serem obrigados a
intervir contra os seus subalternos, como fez, por exemplo, o comandante do
piróscafo Argentina em viagem em 1925 de Trieste a Nova Iorque, que no diário de
bordo invocou “os procedimentos adequados da parte da Capitania do Porto” da
cidade giuliana contra 5 fogueiros e 4 carvoeiros senhor de ter arrombado noite a
dentro uma porta de comunicação com a idéia de acessar
os dormitórios dos
emigrantes.50
O governo da nave não era de qualquer forma simples da exercitar para o comandante
que detinha a responsabilidade e que devia supervisionar as atividades de centenas, ás
vezes milhares, de emigrantes e ao mesmo tempo ter em mãos as intemperanças dos
membros da tripulação. Não era infrequente o caso que os segundos envolvessem os
primeiros agitando-os com pretextos; assim acontecia, por exemplo, a bordo do
piróscafo Sofia em viagem entre Trieste e o Brasil em 1923, onde membros da
tripulação induziram os emigrantes a um protesto organizado contro a qualidade da
comida, uma macarronada definida “nojenta”.51 Particularmente intratáveis e
ingovernáveis eram os fogueiros, que de propósito mantinham frequentemente baixa
a pressão das caldeiras com o objetivo de diminuir a velocidade e condicionar o
comandante, que se via obrigado a obedecer aos pedidos e reivindicações – podemos
imaginar a contra gosto – para não causar atrasos.
O caso dos membros da tripulação que, apenas tocado o porto de chegada, se
confundiam com a multidão na área de desembarque sem deixar pistas era tão
freqüente que fez surgir a suspeita que não se tratavam de desertores, como vinham
indicados nos diários de bordo dos navios que abandonavam arbitrariamente, mas sim
de emigrantes que tinham escolhido um meio de viajar menos desconfortável e
promíscuo e mais trabalhoso dos seus “colegas”. Não é uma hipótese da excluir que
em princípio existisse
um acordo com o comandante do navio, que podia ser
induzido a fechar os olhos por causa da dificuldade de alistar o pessoal para o
trabalho braçal e também pelo fato que a última parte do pagamento de cada desertor
não era feita, tornando-se uma economia de despesas a disposição das companhias e
talvez até – querendo pensar mal – do próprio comandante. 52
________________________________________
49. O fenômeno era tão difundido ao ponto do Congresso dos Estados Unidos em
1860 votou uma lei que punia com um ano de cárcere e uma substanciosa multa
pecuniária comandantes e oficiais que, como acontecia sempre, circundavam as
passageiras com promessas de matrimônio para depois abandoná-las no porto de
destino.
Ana Herkner, inspetora de uma comissão americana sobre a emigração, em 1908
atravessou por 3 vezes o Atlântico como uma emigrante qualquer e referiu um
contexto de ausência total de legalidade e respeito para com as mulheres. Do
momento da partida as mulheres não acompanhadas perdiam qualquer foma de
privacidade, sendo continuamente molestadas pelos membros da tripulação: quando
se vestiam o se despiam nos dormitórios onde qualquer um podia ter acesso; ao ar
livre, nas pontes, onde stewards, bombeiros, marinheiros, e outros homens da
tripulação endereçavam à elas comentários vulgares e passavam até, não raramente,
às vias de fato.
Fonte: M. A Jones, Transatlantic Steerage Conditions …, cit., pp. 70 e 75-76.
50. Arquivo do Estado de Trieste, Diário de bordo do piróscafo Argentina, livro um,
Diário geral e de contabilidade, N. 1.611, p. 15, 22 de outubro de 1922.
51. Arquivo do Estado de Trieste, Diário de Bordo do piróscafo Sofia, livro um,
Diário Geral e de contabilidade, N 1.361, pp. 69-70, 2 de agosto de 1923.
52. Em certos casos os abandonos arbitrários eram em cada viagem números. Só para
fazer um exemplo, se via o caso do piróscafo Presidente Wilson do qual, durante a
viagem partida da Trieste
Do ponto de vista sanitário, o navio era um lugar patogênico por excelência, como
evidenciado das estatísticas italianas elaboradas pelo Comissariado Geral da
Emigração entre os anos 1903 e 1925. As patologias que se difundiam a bordo
mudavam de freqüência e de intensidade dependendo se a viagem era para a América
setentrional ou meridional e se era a viagem de ida ou de volta. Ao que diz respeito à
América do Sul, nas viagens de ida prevaleciam sarampo, malária e sarna, enquanto
nas viagens de retorno tracoma, tuberculose e sarampo. Com respeito aos Estados
Unidos, nas viagens de ida predominavam sarampo, malária, pneumonia, nas viagens
de retorno, tuberculose, sarampo e alienação mental. As tipologias das doenças
registradas nas viagens de ida são diferentes de acordo com os destinos, também
devido ao sistema de controle dos vários países, que haviam malhas mais ou menos
estreitas de acordo com as diversas legislações. Malhas que eram estreitíssimas no
caso dos Estados Unidos, especialmente depois que foi instituída, com o intuito de
limitar o quanto possível os rejetos por motivos sanitários no porto de desembarque e
os conseqüentes, dolorosos, procedimentos de repatriamento, a figura do médico
americano que examinava os emigrantes nos portos de embarque. 53
As estatísticas do Comissariado Geral da Emigração nos fornecem os dados de
mortalidade durante a travessia entre os anos 1903 e 1935. Também neste caso
devemos distinguir as viagens de ida e de volta e os destinos das proveniências, além
de obviamente o ano de referência. Para as viagens de ida para a América do Norte os
picos se deram em 1918, 1917 e 1922 (com taxas de
1,2, 0,7 e 0,6 por mil,
respectivamente); para a América do Sul os picos se deram em 1920, 1921 e 1922
(com taxas de 0,7, 0,6 e 0,6 por mil). Para a viagem de retorno, os picos,
decididamente em aumento, se deram para a América do Norte em 1918, 1917 e 1916
(com 3,15, 2,9 e 2,1 por mil, respectivamente) e para a América do Sul em 1919,
1921 e 1903 (com taxas de 1,8, 1,8 e 1,7 por mil).
54
Vítimas privilegiadas das
patologias de bordo eram as crianças, que sucumbiam ao sarampo que de todas as
outras doenças, por causa da superlotação, da falta de lugares para quarentena, da
pouca eficácia do serviço sanitário e, no caso dos bebês, do fato que por culpa do
estresse da travessia as mães perdiam o leite.
A agravar os quadros clínicos já comprometidos contribuía muito frequentemente a
naupatia, o mal de mar, condição que é sempre invocada nas histórias dos emigrantes:
“Se o tempo é favorável vai tudo bem, mas é difícil fazer uma viagem tão longa
sempre com bom tempo. Não encontro palavras adequadas para descrever-lhes por
inteiro a perturbação a bordo do piróscafo, os choros, os rosários e as bestemias
daqueles que fizeram a viagem involuntariamente, em tempos de tempestade. As
ondas assustadoras que se erguiam em direção ao céu, e depois formavam vales
profundos, o navio apanhou da poupa a prua, apanhou dos lados. Não lhes
descreverei os espasmos, os vômitos (com reverência) e as contorções dos pobres
passageiros que
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em 22 de dezembro de 1923, nas escalas dos portos de Nápoles, Algéria e Nova
Iorque e Boston “desertaram” em tudo 83 homens da tripulação.
Fonte: Arquivo do Estado de Trieste, Diário Náutico do piróscafo Presidente Wilson,
livro um, Diário geral e de contabilidade, N. 1.014.
53. O médico americano era um verdadeiro e real pesadelo para os emigrantes: “Em
pé ao lado da passagem de uma porta que dava acesso à ponte de embarque, entre um
guarda da polícia e um outro, mastigando um charuto e qualquer cigarro, este cérebro
da medicina olha, toca, empurra e rejeita os emigrantes que se metem em fila um
atrás do outro e um rigor extremo é reservado às doenças dos olhos, e ele gira as
pálpebras de todos, um à um, alí ao ar livre, no meio da poeira, alternando este
exercício digito-oftálmico com qualquer trago que, de tanto em tanto, dá em seu
charuto que queima com dificuldade.”
Fonte: T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, cit., p. 47
54. Reformulação dos gráficos presentes em A. Molinari, Le navi di Lazzaro …, cit.,
pp. 143-144.
ainda habituados a estes cumprimentos. O dia em que o mar é tempestuoso, poucos
são aqueles que vão pegar comida, o chefe do refeitório podeira deixar de tocar o
sino.”55
A descrição de tempestades e temporais é presente com altíssima freqüência também
nos diários de bordo escritos pelos comandantes, que não economizavam palavras em
descrições detalhadas com particular atenção às condições do mar e às repercussões
sobre a carga do navio. Havia uma razão precisa para tanto interesse pelas condições
climáticas: se tratava de anotações feitas para aliviar a responsabilidade do vetor no
caso em qual a mercadoria sofresse qualquer dano através da demonstração que havia
sido feito de tudo o possível para evitá-los. 56
No curso da navegação havia sempre o risco de acidentes ou mesmo de naufrágios.
Aconteceram naufrágios famosos e alguns mesmo célebres, sobre os quais não seria o
caso de discorrer. Fazemos uma exceção para o mais notório de todos ao ponto de ser
transformado em proverbial, aquele do Titanic, e somente como observação digo que
apesar dos emigrantes terem sido a “extra-grande” maioria dos passageiros, foram
muito poucos os que se salvaram. Na época dos fatos explodiram polêmicas ferozes
em mérito, e alguns disseram que a causa de tantas mortes foram as suas próprias
aversões em abandonar o navio, porque não poderiam acreditar que o navio não era
inafundável, porque não queriam deixar a bordo as malas, porque eram alojados em
posições tais para poder alcançar as pontes superiores somente com muito atraso. 57
A socorrer os náufragos da capitânia do White Star Line foi um piróscafo da
concorrência, o velho e golpeado Carpathia da Cunard Line, que percorria a rota da
Fiume (e Trieste) a Nova Iorque e, encontrando-se a cerca de 40 milhas do local do
desastre com os seus 740 emigrantes a bordo e 325 homens da tripulação, lançou o
S.O.S. para o Titanic. O capitão Rostron não exitou a lançar o navio além dos 17 nós
(velocidade que se dizia ter sido alcançada somente em testes) e depois de 4 horas de
corrida louca no oceano cheio de icebergs alcançou e salvou os sobreviventes, 712,
dos quais um morreu a bordo por hipotermia.58
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55. Carta de Francesco Costanti, Colonia Angélica, São Paulo – Brasil, 8 de junho de
1889, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., p. 174.
56. Eis um exemplo: “Nas tardes o mar piorava muito e imprimia ao piróscafo
fortíssimos movimentos bruscos. Frequentemente o navio era golpeado pelo mar.
Frequentemente a hélice saía fora d'água e a máquina sofria agitações acentuadas
assim como o navio.”
Fonte: Arquivo do Estado de Trieste, Diário Náutico do piróscafo Belvedere, Livro
um, Diário geral e de contabilidade, N. 1.623, p. 75, 26 de setembro de 1922.
57. P. Campodinico, Dal Great Eastern al Queen Mary. Nascita di un mito moderno,
em P. Campodonico, M. Fochessati, P. Piccione (editado por), Transatlantici. Scenari
e sogni di mare, cit., p. 51.
58. Carlo Gerolimich, que foi comandante do Austro Americana confiou às linhas de
um de seus livros a receita de como evitar um desastre como aquele do Titanic:
“Várias propostas foram expostas para defender os navios dos icebergs que desciam à
deriva no caminho de Nova Iorque:mas nenhum deles teve até hoje aplicação prática.
… Mas, entanto, o único modo para proteger-se das geleiras errantes é a atenta e
ininterrupta vigilância: e quando a névoa envolve o navio o melhor é confiar nas
graças de Deus e diminuir o máximo possível a velocidade. Quem não é fatalista
dificilmente se conforma com o primeiro remédio, e quem tem pressa não aceitará
por nada o segundo...”
Fonte: C. Geromolimich, Manuale pratico del capitano e armatore, Ettore Vram,
Trieste, 1915, pp. 395-396.
Mas na travessia oceânica não haviam somente doenças, lutos, tragédias, enganos,
opressões, misérias. Ás vezes se passava o tempo com serenidade se não até mesmo
divertindo-se, graças a passatempos organizados, como os fogos de artifício descritos
por De Amicis,59 ou ao passar pela linha do Equador fazer o batismo dos emigrantes
que pela primeira vez se encontravam no outro hemisfério, ou espontâneos como as
danças ao som de pequenas orquestras improvisadas.
Muito vívidas as recordações de uma emigrante, das quais as histórias de quando era
uma criança já nos foram úteis, sobre o modo no qual, os peixes e os pássaros que
acompanhavam o piróscafo podiam com a sua companhia oferecer um divertimento
aos pequenos passageiros:
“Ah, as gaivotas, quantas gaivotas! Nunca vistos, naturalmente. Voavam aqui e lá
pedacinhos de qualquer coisa, porque lhes davam pouco. Não é como hoje que ela
tira da sala de jantar um cesto de pão. Então o tinham um pouco em contato, é? Mas
em resumo, as crianças... Porque os cozinheiros, os camareiros, jogavam os restos,
não sei, e então aquelas gaivotas! E então os peixes que voavam, para nós
pequeninos! Voavam dos cardumes de pequenos peixinhos que pareciam feitos de
prata, nos seguiam. E depois dos peixinhos... o que eram, aqueles, espertos, são
espertos … os golfinhos. E depois uma vez, foi no Mafalda, que batemos naquela
baleia lunga 14 ou 15 metros, a dividimos em dois. Coitada! Chorávamos todos: era
em pedaços. O comandante poderia ter evitado... mas, não sei.”60
Terra!, o desembarque, hotéis para emigrantes, as viagens depois da travessia
A visão da terra era um momento mágico da vida de bordo, o sinal que alguma coisa
estava para mudar, que a sua sorte havia mudado, e de fato eram comemorados com
gritos de júbilo:
“Quando depois de um longa navegação de 30 dias finalmente o dia 11 de janeiro de
uma bela manhã se iniciou a ver as montanhas do Brasil e naquele momento todos
nós começamos a gritar e viva e viva a América ...”61
Era a América, finalmente, os emigrantes se espremiam nas grades de proteção, as
crianças vinham erguidas sobre os ombros, todos se lavavam, os homens se
barbeavam, as crianças eram vestidas pelas mães com as suas melhores roupas para
encontrar com os pais, a gente se interrogava sobre as perguntas que seriam feitas no
desembarque e quem havia já vivido a experiência emigratória dava
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59.“Quando se acenderam as primeiras tochas, se ouviu um estouro e viva, e foram
vistas mil e seiscentos rostos iluminados, uma vasta multidão de gente paradas nas
escotilhas e nos parapeitos, agachadas no teto das tavernas e das gaiolas, agarrados
aos mastros, pendurados nos cabos, em pé sobre cadeiras, sobre as colunas, sobre
barris, sobre os lavatórios; e como não tinha mais nenhum palmo vazio sobre o
convés, e também os bordos da embarcação eram escondidos por tantas pessoas,
assim toda aquela multidão parecia suspensa no ar, e que voava lenta sobre o mar,
como um enxame de espectros.”
Fonte: E. De Amicis, Sull'Oceano, Oscar Mondatori, Milão, 2004, cit., p.153
60. “Trenta giorni di macchina a vapore.” …, cit., pp. 477
61.Carta de Gio Batta Mizzan ao irmão, Boca do Monte – Santa Maria, Rio Grande
do Sul – Brasil, 17 de março de 1878, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., p. 81
Um outro testemunho, desta vez literária, vem de Oceano de Alessandro Baricco:
“Aquele que primeiro viu a América. Em todas os navios existe um. E não precisa
pensar que sejam coisas que acontecem por acaso, não... e muito menos por uma
questão de dioptrias, é o destino, aquele. Aquela é a gente que sempre teve aquele
instante estampado na vida. E quando eram crianças, você podia olhá-los nos olhos, e
se olhava bem, já lá via, a América, já pronta a exultar, a escorrer pelos nervos e
sangue e sei lá, até o cérebro e de lá à língua, até por fim, dentro do grito
(GRITANDO), América, existia já, naqueles olhos, de menino, toda a América.”
conselhos. Mas a viagem não tinha acabado, outras provas esperavam os emigrantes,
particularmente severas para quem estava para atracar nos Estados Unidos através do
porto de Nova Iorque. Até 1891, os imigrantes apenas chegados a Nova Iorque eram
recebidos e examinados em Castle Garden, mas a partir do ano seguinte entrou em
função Ellis Island, estrutura gigantesca, eficientíssima e perfeita para as suas
funções e dimensões, que peneirava em cada ano, centenas de milhares de imigrantes.
Em 1907, o ano do recorde, foram controlados mais de um milhão de emigrantes, em
só dia daquele ano foram 11.747.62
A estrutura, que se encontrava sobre uma ilha na baia de Nova Iorque, na foz do rio
Hudson, a duas milhas de Manhattan, foi projetada em 1897 e era constituída de
vários edifícios, 36, onde trabalhavam mais de 500 pessoas, ás quais se juntaram em
1901 o General Hospítal Building. Sobre todos dominava o Main Building, com três
andares, divididos respectivamente do baixo ao alto em depósito de bagagens, sala de
registro, consultas médicas , sala de entrevista, e dormitório. Os navios a vapor eram
muito grandes para poder atracar e então os passageiros de terceira classe eram
transferidos a Ellis Island a borde de tender , não raramente depois de uma espera
que podia durar até dias inteiros, mas de qualquer maneira, não antes que um médico
do Immigration Service tivesse acertado através de uma visita médica a bordo que
não existissem epidemias e que as normas do direito marítimo e da navegação fossem
respeitadas. 63
Depois de uma breve entrevista os passageiros de primeira e segunda classe podiam
desembarcar sem outras formalidades, enquanto os emigrantes deviam descer com as
bagagens de mão que deviam entregar com o próprio nome ou se analfabetos, com
um símbolo de reconhecimento. Deviam então submeter-se à Line Inspection que
substituiu, a partir de 1905, o exame médico não mais realizável devido ao grande
tráfego de passageiros. Os imigrantes deviam desfilar de maneira que os médicos que
os observavam pudessem perceber anomalias físicas evidentes. Depois vinha o exame
do Eyeman, que verificava se o recém-chegado não era infectado com o tracoma
utilizando uma ferramenta especial, um tipo de fórcipe que servia para levantar as
pálpebras e era muito incômodo e doloroso. Quem se encontrava em condições
clínicas suspeitas era marcado sobre as vestes com um traço de giz, segundo um
código que a cada letra correspondia uma patologia ou uma parte do corpo, para ser
encaminhado a uma visita suplementar que,64 onde ao final se fosse diagnosticada
uma doença infecciosa ou deficiência mental, teria determinado o repatriamento
forçado às custas da companhia de navegação da qual o rejeitado se era servido para
fazer a viagem de ida.
65
Então, depois da realização dos controles sanitários era o
momento da inspeção legal, que
__________________________________________
62.G. Rocchi, La selezione degli emigranti a Ellis Island, em Lamerica! …, cit.,
p.112
63. Ibidem.
64. Estas eram as correspondências entre as letras e os déficits encontrados: B – dor
nas costas, C – Conjuntivite, CT – tracoma, E – Olhos, F – Rosto, FT – pés, G –
garganta, H – coração, K – hérnia, L – manco, N – pescoço, P – físico e pulmões, PG
– gravidez, SC – couro cabeludo, S – arteriosclerose, X – suspeita de doença mental,
X (cursiva) – doença mental confirmada.
Fonte: N. Di Paolo, Ellis Island. Storia, versi, immagini dello sradicamento, ISLA –
Instituto de Estudos Latinoamericanos Pagnai, Cidade do Sol, Nápoles, 2001.
65.Para obter a diagnose definitiva de doença mental vinham feitas aos candidatos
perguntas de lógica muito simples dentro da Mental Room, do tipo “é manhã ou tarde,
quantas patas tem um cachorro, quantas tem um cachorro e uma vaca juntos” e em
geral era pedido ao examinando de inserir algumas figuras geométricas no lugar certo
dentro de uma moldura. Para levantar suspeitas aos examinadores bastava muito
pouco. Era suficiente dar a impressão de ser excêntrico no modo de vestir,
excessivamente gentil, impaciente, imprudente, nervoso, imperativo, rir e sorrir
muito, ser vulgar, gritar, falar a baixa voz ou trêmula, chorar, ser perplexo...
Fonte: G. Rocchi, La selezione degli emigranti a Ellis Island, em Lamerica! … , cit.,
p.116
se realizava através de perguntas voltadas para verificar que, com base na lei da
imigração de 1907, os candidatos ao ingresso no País não fossem desprovidos de
dinheiro (deveriam ter pelo menos 25 dólares ou, em caso contrário, uma referência e
endereço de um amigo ou parente que garantia assistência em caso de necessidade) e
não fossem e em direção à locais onde, em naquele momento, segundo as autoridades
americanas não havia necessidade de não-de-obra. A permissão vinha também negada
a quem, frequentemente ingenuamente acreditando em tal modo de poder
impressionar favoravelmente os examinadores, declarava de ter já um trabalho que o
esperava ou mais além de ter já estipulado um contrato.66
Para quem emigrava para a América Latina, as verificações no desembarque eram
muito menos meticulosas, e os emigrantes eram acolhidos em estruturas ão muito
diferentes das pousadas ou dos albergues para emigrantes já experimentados nos
portos de embarque, as casas de imigração ou as Hospedarias de Imigrantes. Eis um
judicio de como se apresentava a Hospedaria de Santos, Brasil, nos primeiros anos
do 1900:
“[...] um grande estabelecimento constituído de um complexo de grandes quartos,
separados por quintais e reunidos por passagens cobertas, onde os emigrantes
estavam por três ou quatro dias antes de ir à parte interna. Aqui faziam os contratos
de trabalho com os famosos fazendeiros. Na Hospedaria os emigrantes tem
alojamento e comida gratuitos; mas qual alojamento e qual comida! O leito não é
nada mais do que uma esteira sobre a terra nua, e a comida é pão e sopa. As
condições higiênicas deste local são tão carentes, tanto para ser comentada nas
publicações oficiais do país.”67
Uma vez desembarcado e acomodado de maneira provisória, o emigrante percorria o
último segmento da sua viagem, que chegava assim ao final: a pé, em caroça, em
barcos, em navios de acordo com o destino, do estado das vias de comunicação do
país, da disponibilidade de dinheiro. Em muitos casos se prolongava por dias e dias
uma viagem que devia ser avertida como interminável:
“... antes das 12 antes do dia chegamos ao porto do 'Rio Zanero' nasceram 3
morreram 7 … Depois do 'Rio Zanero' fomos em rumo à 'Santa Caterina' e depois a
Rio Grande e depois fomos à 'Porto Alegro' e depois a Rio Pardo descemos em terra
mas toda a navegação por mar até ali durou 42 dias, aqui em Rio Pardo paramos por
6 dias e depois colocamos nas carroças as bagagens, as mulheres e as crianças e quem
queria entre os homens caminhava mas de Rio Pardo até 'Santa Maria Bocca di
Monti' tínhamos atravessado pradarias selvas e bosques,
fizemos comida no
acampamento sob as tendas mas a nossa 'navegação' nas carroças durou 15 dias, a
comida era suficiente para todos: matávamos um boi por dia sopa e pão eram
suficientes o café abundante, no final chegamos todos em um bosque onde se viam
'ramos e céu' ali todos estávamos desesperados e não sabíamos o que fazer, no fim eu
e outros três amigos de Belluno começamos a caminhar em direção à Santa Maria
que era distante 6 horas para procurar uma colônia o que tivesse terra disponível,
finalmente depois de vários dias de caminhada encontramos diversos pontos onde
segundo nós a terra custava muito, mas rodando e procurando finalmente
encontramos uma boa colônia …” 68
_______________________________________________________________________
66. A. Molinari, Le navi di Lazzaro …, cit., p. 54
67. T. Rosati, Assistenza sanitaria degli emigranti e marinai, cit., p. 154.
68. Carta de Gio Batta Mizzan ao irmão, Boca do Monte – Santa Maria, Rio Grande
do Sul – Brasil, 17 de março de 1878, em E. Franzina, Merica! Merica! …, cit., pp.
81-82.
Partidas dos emigrantes do porto de Trieste entre as duas guerras e no segundo
pós-guerra
O período da “grande emigração” se concluiu em 1914, com a explosão da prima
guerra mundial. Com o conflito terminado, os movimentos emigratórios deram sinal
de melhoramento, e a cidade de Trieste que parecia ter todas as credencias para
tornar a ter um papel em primeiro plano graças à um vetor de antes da guerra, a
Austro Americana, que havia no meio tempo mudado ração social e se chamava
Consulich Socità Triestina di Navigazione. A Consulich parecia favorecida pelos
próprios recursos, entre os quais uma frota de muito respeito e uma ótima rede
comercial capaz de ser facilmente reativada, sem contar outros fatores como a
exclusão do mercado de duas sociedades líderes como a Hamburg-Amerika Linie e
Norddeutscher Lloyd, que tiveram os seus navios requisitados durante a guerra. A
situação era porém muito mudada do ponto de vista internacional por causa da
destruição do império austro-húngaro e o nascimento dos estados sucessores, e
haviam nascidos novos, perigosos concorrentes, como por exemplo Gdansk, que
gozava de uma boa posição geográfica e da proteção do governo polaco que
pressionava, segundo algumas fontes, o próprio consulado de Nova Iorque a negar os
vistos aos emigrantes que declaravam o desejo de repatriação através do porto de
Trieste. 69
Nos anos 20 Trieste se tornou o porto de embarque para os aliyà, termo hebraico que
significa subida e indica a vontade dos hebreus pela diáspora dos emigrantes na
antiga terra de Israel com o propósito de estabelecer-se permanentemente. Tal fluxo
emigratório foi em qualquer forma muito numeroso, da ordem de, segundo alumas
avaliações, 150.00 pessoas. 70 E se desenvolveu substancialmente em duas fases: uma
inicial que teve como protagonistas prevalentemente hebreus sionistas de
nacionalidade polaca, e uma segunda que viu ao invés, prevalecer hebreus alemães ou
de outros países que caíram no domínio nazista.71
As viagens vinham gestidas e organizadas do Lloyd Triestino e em certos casos,
diário de bordo sanitário emergiam situações das quais deviam reinvocar as viagens
dos emigrantes da época da vela o da primeira fase do vapor, antes que fosse
difundido a bordo o uso de sistemas de refrigeração dos alimentos:
“Colocar os animais à bordo é um fato muito deplorável que acontecia
constantemente nos piróscafos desta sociedade, que fazem o serviço nas linhas do
Mar Negro e nas costas da Ásia Menor. […] A sociedade armadora os tirava o
máximo de interesse, porque os animais compensavam pelo frete, o capitão do navio
tinha um percentual sobre cada animal, assim colocavam estes animais em qualquer
espaço disponível, não solo na estiva, mas também nos espaços cobertos.” 72
Até o segundo pós-guerra a cidade giuliana (Trieste) teve um papel de uma certa
importância nas partidas de navios de emigrantes, de um tipo inédito em respeito ao
passado, emigrantes desta vez assistidos, ou seja emigrantes que o Estado incentivava
a partir. As partidas aconteciam na Estação Marítima, praticamente da Piazza Unità,
não mais no anonimato, no desinteresse ou no alívio com os quais haviam
acontecidos antes de 1914 em Servola, mas em meio a uma multidão de parentes e
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69. Arquivo do Estado de Trieste, Governo Marítimo, b.876, f.IV.
70. A. Ancona, S. Bom (editado por), Trieste la porta di Sion. Storia dell'emigrazioe
ebraica verso la terra di Israele (1921-1940), Alinari, Firenze, 1998, p.29.
71. M. Bercich, Il comitato di assistenza agli emigranti ebrei di Trieste (1920-1940):
flussi migratori e normative, in “Qualstoria”, N. 2, dezembro 2006, p.23.
72. Op. Cit., p.50.
Amigos que estavam no atracadouro a dizer adeus, chorar, acenando com lenços.
Agora, era a vez dos triestinos e istrianos partirem, prevalentemente para a Austrália,
mas também para os Estados Unidos e o Canadá. E era a primeira vez. Eis como
Giani Stuparich contou uma destas partidas nas colunas do “Il lavoratore”:
“Tudo o coração da cidade era lá, naqueles despedidas, naquelas recomendações,
naqueles adeus: todo o temperamento do povo triestino se exprimia naquelas
manifestações de um povo que sabe ser espirituoso também entre lágrimas, vivaz na
desgraça. 'I và, i và e noi restemo … sempre alegri e mai passion'(Eles vão, vão e nós
ficamos … sempre alegres e nunca tristes)', dizia um jovem operário com os olhos
lúcidos e a boca amarga. 'Andé fioi, feghe onor a Trieste! (Vão garotos,
façam
honra a Trieste!' , recomendava um outro velho operário. E uma velha senhorinha!
Era lá, escorada pelos parentes, e continuamente perguntava se Rico era a bordo, e
onde estava, e se tinha o seu cachecol vermelho no pescoço, se se despedia, se sorria,
e se a travessia até lá embaixo seria boa; não quis se mover de lá nem quando o
navio partiu e se distanciou ao mar aberto; a gente começou a se dispersar entre
comentários e lamentos; 'nonina, la se movi! (senhorinha, mova-se!)' mas a velha non
se decidia e , com o rosto em lágrimas, continuava a repetir: 'Cossa che me toca
veder! (Que coisa devo ver!)' 73.
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73. Giani Stuparich, Trieste emigra, “il Lavoratore”, 1 de agosto 1955.

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