O consumo contemporâneo no território brasileiro versão castillo

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O consumo contemporâneo no território brasileiro versão castillo
O consumo contemporâneo no território brasileiro.
In: DOWBOR, L.; SILVA, H. E ANTAS JR., R.M. (Orgs),
Desafios do Consumo. Petrópolis, Vozes, 2007 (pp. 91 - 114).
Ricardo Mendes Antas Jr.1
A partir dos conceitos de circuitos inferior e superior da economia, consumidor
mais-que-perfeito e aceleração contemporânea, todos elaborados por Milton
Santos, busca-se analisar algumas características importantes do consumo no
período atual, com ênfase no território brasileiro.
Uma abordagem geográfica busca sempre partir ou chegar às materialidades que
compõem o espaço, para explicar os processos atinentes à sociedade. Esta análise não será
diferente e, ainda que o título seja ambicioso, apenas nos avizinharemos do que podemos
chamar de lineamentos do consumo contemporâneo no território brasileiro.
Posto que é um dado da realidade planetária atual, o consumo capitalista pode ser
analisado sob diferentes óticas, mesmo quando nos restringimos ao ângulo de uma disciplina
científica, como é o caso desta proposição. Aqui, a partir do consumo de determinados
objetos técnicos que compõem a atual materialidade social do espaço geográfico,
analisaremos alguns dos aspectos fulcrais do consumo contemporâneo.
Para adentrar uma reflexão sobre o consumo num país como o Brasil, partiremos do
seguinte fato material: dos 27 estados da federação, 14 têm, no total de seus domicílios, mais
televisores do que geladeiras − quatro estados do norte, oito do nordeste, um do sudeste (MG)
e o Distrito Federal. Do total de 51,8 Unidade da
A
B
A-B
milhões de domicílios no Brasil em 2004, Federação
televisão geladeira
46,7 milhões tinham televisores e 45,3
46 733 120 45 230 360
1 502 760
milhões tinham geladeiras. Não tinham Brasil
televisores em casa 3,5 milhões de Bahia
2 881 989
2 466 624
415 365
domicílios, e 4,6 milhões não tinham Ceará
1 742 525
1 442 974
299 551
geladeira. É interessante observar como
1 888 919
1 663 284
225 635
esses dados dividem o país em dois, com Pernambuco
826 804
677 624
149 180
uma linha quase contínua entre os estados Paraíba
do centro-sul (denominada região Pará
1 300 280
1 163 843
136 437
concentrada) e o norte/nordeste mais o Minas Gerais
5 011 575
4 899 595
111 980
norte de Minas Gerais.
614 727
519 771
94 956
Poder-se-ia alegar que há famílias Alagoas
1 020 983
947 658
73 325
com dois ou mais televisores em casa e Maranhão
que, portanto, esses números não revelam Piauí
551 197
501 563
49 634
a existência de domicílios que ao mesmo
475 115
433 968
41 147
Sergipe
tempo têm televisores e não têm
625 475
595 985
29 490
geladeiras, a não ser como exceções, pois, Amazonas
107 599
94 995
12 604
como hoje a geladeira é um bem de Amapá
primeira necessidade, toda família daria Distrito Federal
620 392
614 221
6 171
prioridade à sua compra, postergando a
248 899
245 853
3 046
Tocantins
do televisor.
Entretanto, quando se analisam os fonte: IBGE, Pnad, 2004
dados nas faixas de 1 a 3 salários
1
Mestre e doutor em Geografia Humana, integra o grupo de Economia Mundial na PUC-SP desde 1999 e é autor
de Território e Regulação: espaço geográfico fonte material e não formal do direito, publicado pela editora
Humanitas.
1
mínimos, tanto para o país quanto para as 14 unidades federativas citadas, confirma-se que o
televisor é comprado por mais domicílios, convertendo-se num bem de necessidade
fundamental: “as necessidades humanas existem apenas em função do bem-estar. Só
poderemos, então, averiguar quais são essas necessidades, se investigarmos o que o homem
entende por seu bem-estar.” (ORTEGA y GASSET, 1991: 17)
Assim, nas áreas urbanas com renda familiar mensal de até R$ 1.050,00, há mais
domicílios sem geladeiras do que sem televisores, isto é, dos 19 milhões de domicílios
compreendidos nessa renda (43% do total urbano brasileiro), 2.032.565 não tinham TV e
2.941.426 não tinham geladeira. Já na área rural, na mesma faixa de renda, que representa
72% dos domicílios, aproximadamente um terço não tinha TV, enquanto metade não tinha
geladeira. No conjunto da população, urbana e rural, quase a metade dos domicílios (48%)
têm renda entre 1 e 3 salários mínimos, dos quais 83% têm TV e 77,5% têm geladeira. Acima
dessa faixa de renda, a situação se equilibra − na maioria dos casos, a diferença ou é
insignificante, ou se inverte: há mais geladeiras do que televisores.
A análise do consumo de televisores num país como o Brasil é um forte elemento
explicativo das características do comportamento de consumo e dos consumidores neste
começo de milênio. Antes de analisar o que esses números podem revelar, é importante notar
também que em 1965 o país contava com 3 milhões de aparelhos e, em 1985, esse número já
atingia os 22 milhões. “Em 1970, mais da metade dos domicílios não dispunham de
eletricidade e 75% não possuíam televisores. As formas de recepção popular foram por longo
tempo coletivas: formavam-se grupos de 13 para cada aparelho nas cidades e pequenas
multidões de 350 para cada receptor na zona rural.” (MATTELARD & MATTELARD, 1989:
42)
Vê-se que hoje a situação está completamente mudada. Há televisores na maioria dos
domicílios brasileiros, e as implicações disso na esfera do consumo são profundas. De fato,
está nesse dado uma das explicações da origem da cisão da economia brasileira em dois pólos
extremos mas complementares: o circuito superior e o circuito inferior da economia, tal como
afirmou Milton Santos já na década de 1970.
Nova estruturação do consumo e a formação dos dois circuitos da economia
Em 1975, Milton Santos publicou O espaço dividido, em que apontava o surgimento
de duas esferas econômicas nos países subdesenvolvidos: o circuito superior e o circuito
inferior.
Fruto das rápidas transformações que o mundo capitalista vinha sofrendo, essa
característica da esfera econômica decorria da profunda e repentina reestruturação que
atravessava a esfera do consumo, relacionada e dependente do papel estruturante que a
informação atingiu no pós-guerra, e especialmente com o colapso do fordismo e do Estado de
bem-estar social no início da década de 1970.
“O período atual diferencia-se nitidamente dos precedentes por sua capacidade nova
de revolucionarização. Pela primeira vez na história dos países subdesenvolvidos, duas
variáveis elaboradas no centro do sistema encontram uma difusão generalizada nos países
periféricos. Trata-se da informação e do consumo — a primeira estando a serviço do segundo
—, cuja generalização constitui um fator fundamental de transformação da economia, da
sociedade e da organização do espaço. No que concerne ao espaço, as repercussões desse
novo período histórico são múltiplas e profundas para os países subdesenvolvidos. A difusão
da informação e a difusão das novas formas de consumo constituem dois dados maiores da
explicação geográfica. Por intermédio das suas diferentes repercussões, elas são ao mesmo
tempo geradoras de forças de concentração e de forças de dispersão, cuja atuação define as
formas de organização do espaço.” (SANTOS, [1975] 2002: 36)
2
Assim, à medida que a informação foi adquirindo mais autonomia frente aos meios de
comunicação, porque foi se dotando de objetos técnicos especializados, sua ação se fez sentir
em todos os níveis, constituindo-se no principal alicerce da difusão dos novos consumos,
“inspirados nos países mais ricos” (ibidem). Desse modo, a TV assume o papel de um dos
meios de difusão da informação banal dirigida ao consumo das grandes produções
corporativas. “A criação de um novo sistema de consumo é acompanhada pela dissolução dos
laços tradicionais e pelo esboçar-se de uma sociedade nova, ainda bastante informe, na qual a
situação do indivíduo é incerta e instável. Esse novo sistema de consumo tem seus
beneficiários e suas vítimas. Não é suficiente para corresponder às necessidades e desejos de
todos que seduziu.” (GEORGE, 1971: 36)
Os dados sobre o consumo de televisores no território brasileiro hoje são, portanto, a
ponta do iceberg. Em primeiro lugar, porque nos remetem às origens da divisão da economia
em dois circuitos e, em segundo lugar, porque são um importante elemento explicativo de
como a ideologia corporativa entra em contato direto com porções crescentes da população,
perpetuando a lógica do pensamento único na cultura, na política e na economia.
1. Os dois circuitos da economia
A diferença fundamental entre o circuito inferior e o circuito superior está baseada nas
diferenças de tecnologia e organização. O circuito superior apresenta altos índices de capital
intensivo, forte organização burocrática, alianças de capitais nacionais e internacionais, pouco
emprego de força de trabalho em relação à produção, assalariamento, estoques com controles
sofisticados e alocados mundialmente, capacidade de manutenção de preços fixos e
geralmente altos, intensa publicidade, alianças com o Estado, voltado para a exportação, entre
outras características. Já o circuito inferior apresenta trabalho intensivo, organização simples
ou mesmo primitiva, trabalho informal, preços variáveis conforme a conjuntura econômica,
pouca ou nenhuma publicidade, custos fixos desprezíveis, estoques pequenos, artigos ilegais
ou contrabando (para o caso do comércio), relação direta com a clientela, entre outras2.
É interessante observar que essa cisão começa no mesmo momento em que se começa
a difundir de modo crescente, em todo o território nacional, a exibição de novas formas de
consumo pelos meios de comunicação. A exposição de toda sorte de imagens e sons − na
televisão, no rádio, em outdoors, revistas, jornais etc. − dos novos produtos das “recémcriadas” empresas transnacionais3 acabou por inibir o consumo dos produtos domésticos e
mais tradicionais, amparados na indústria autóctone, quebrando um desenvolvimento
progressivo das forças produtivas não-corporativas nacionais com menor dependência
externa.
Como a formação socioespacial brasileira já apresentava uma grande massa de
trabalhadores com baixos salários ou mesmo com atividades informais que lhes
proporcionavam baixos rendimentos, ao lado de uma minoria com renda muito alta4, o que
aconteceu foi a diversificação da demanda sem o crescimento paralelo das rendas. “A
participação num consumo ‘moderno’ tem a tendência de atingir mais e mais indivíduos,
mesmo se essa participação é parcial ou ocasional nas camadas mais desfavorecidas.”
(SANTOS, [1975] 2002: 37)
2
A caracterização dos circuitos feita aqui não corresponde pontualmente às definições de Milton Santos na obra
citada, em função das transformações ocorridas nestes 30 anos, em que as “trocas” entre os dois circuitos se
intensificaram bastante e chegaram a alterar algumas de suas características básicas.
3
Assume-se aqui que só é possível falar de transnacionalização das empresas a partir do momento em que as
tecnologias da informação e comunicação foram postas a serviço do mercado, a partir da década de 1960.
4
Hoje, se tomarmos como exemplo a federação mais rica da União, dos 11,8 milhões de domicílios no Estado de
São Paulo, apenas 260 mil têm renda superior a R$ 7.000,00 mensais.
3
Como se vê, desde a década de 1970, o papel da informação no curso da acumulação
capitalista é central. De fato, setores emergentes dessa nova economia − como a publicidade e
as modernas estratégias de marketing − exercem uma persuasão cada vez maior, à medida que
os objetos técnicos difusores da informação penetram em números cada vez maiores de
domicílios. A sedução pelas imagens de um mundo perfeito − onde somos todos
consumidores de produtos modernos − desde a fralda descartável e cotonetes da Johnson &
Johnson, passando pelos achocolatados e margarinas da Nestlé e Anderson Clayton, até os
automóveis de luxo da GM e Ford − veio substituir de modo irreversível um modelo de
progresso material calcado nos próprios recursos e numa cultura específica como a brasileira,
que, por exemplo, já reciclava seus materiais sucessivas vezes, antes mesmo que isso fosse
uma demanda dos movimentos ambientalistas no “mundo desenvolvido”.
Assim, na nova lógica presidida pela informação, impulsionava-se o consumo de
produtos corporativos com alto valor agregado e que geravam menos empregos que as
indústrias nacionais, que foram em grande medida sendo incorporadas ou submetidas à
lógicas exógenas, por meio de compras ou alianças, pelo poder corporativo5.
É fundamental destacar que o problema não se resume à substituição da compra de
artigos da pequena indústria nacional por produtos das grandes corporações. O consumo dos
objetos técnicos se dá segundo uma lógica sistêmica (BAUDRILLARD, s.d.), e, quanto mais
tecnológico o objeto, mais rígido torna-se o sistema. Por exemplo, consome-se a rede de
energia elétrica, para consumir a televisão, que educa pedagogicamente para o consumo e o
uso de outros objetos técnicos modernos, com suas vantagens pragmáticas e estéticas. Então,
cada vez mais a casa-modelo é aquela com geladeira e todo o conjunto de produtos que nela
se conservam, chuveiros e torneiras com água quente, lâmpadas, garagens automáticas,
computador conectado à rede, programação a cabo da TV... A casa-modelo é um sistema
aberto que não cessa de exigir alimentação, com mais objetos técnicos, mais sofisticados,
mais sedutores, mais caros.
Considerando-se que 48% dos domicílios no país têm renda familiar de até 3 salários
mínimos, esse consumo se dá sempre de modo incompleto, o sistema funciona sempre de
modo precário. E, como está muito distante do consumo em voga, hegemônico, relacionado
às tecnologias de ponta — note-se que apenas 3,7% dos lares brasileiros têm renda superior a
R$ 9.000,006 —, a maioria da população busca alimentar e manter seu sistema de consumo
moderno com base apenas no circuito inferior, mesmo para consumo tecnológico. De outro
modo, recorre aos sistemas de crédito das grandes lojas de departamentos do circuito superior,
cujas taxas de juros estão entre as mais altas, o que também impossibilita a alimentação
contínua desse sistema aberto7.
O mercado de produtos que já “saíram de linha” no Brasil é vasto, mantém-se por
longos períodos e move indústrias que são do circuito inferior, ao mesmo tempo em que
fazem reciclagem tecnológica, uma modalidade rara desse circuito nos anos 1970 no Brasil,
mas hoje significativa em número, muito parecido com o que David Harvey analisou no filme
Blade Runner, de Ridley Scott (1982), em que o contexto da trama é a crise do período que
atravessamos − é a crise da acumulação flexível (HARVEY, 1990).
5
Propusemos uma definição de poder corporativo em Território e Regulação: espaço geográfico fonte material
e não formal do direito, São Paulo, Humanitas, 2005.
6
IBGE, Pesquisa Nacional Por Amostra de Domicílios – PNAD, 2005.
7
Essa solução é cada vez mais procurada, tornando-se uma importante forma de acumulação ampliada para o
setor financeiro. As Casas Bahia, por exemplo, são os maiores investidores em propaganda para atrair os
segmentos populares. De todos os anunciantes no Brasil, essa loja lidera o ranking: em 2005, investiu R$ 2,4
bilhões. O segundo lugar em investimento em propaganda é da Unilever Brasil, com R$ 491,8 milhões − cinco
vezes menos.
4
2. A chegada do sistema de informação hegemônico e os novos consumos
A ampliação da oferta de bens eletrodomésticos a partir da década de 1970 contou, por
um bom tempo, com créditos barateados por políticas monetárias apoiadas na “poupança
externa disponível” — na verdade, excesso de moeda sem lastro, presente na Europa ocidental
e nos EUA, decorrentes das crises da paridade ouro-dólar e do petróleo. E esse contexto foi
fundamental para a eficaz penetração da informação no território brasileiro.
De fato, o que mais contava até o início desse período em relação à televisão no
território brasileiro era o consumo do próprio aparelho, o ato de ver TV. O conteúdo em si
ainda não estava concatenado com a acumulação ampliada de capital, pelo menos não da
forma como passou a estar a partir do momento em que o nexo informacional via satélite se
conjugou com a disseminação do consumo de televisores por todo o território nacional.
Desde a década anterior, já vinha se estruturando um forte e inédito sistema de
informação planetária, que aliava a pesquisa científica do complexo industrial militar ao
mercado financeiro transnacional e às ações corporativas. Por meio das ciências, em especial
das aplicadas, preparavam-se novas formas de exercício hegemônico de poder, isto é, estavam
em gestação as tecnologias da informação e da comunicação, que se transformariam nas
principais ferramentas de ações hegemônicas, especialmente das corporações transnacionais.
Ressalve-se, entretanto, essas mesmas tecnologias serviriam também à emancipação social
(como servem ainda hoje, de modo cada vez mais eficaz).
Armand Mattelard (2000: 90-93) assinala que o afluxo de fundos provenientes do
Pentágono exerceu um papel decisivo na invenção do primeiro computador de transistores em
1959 pela IBM que, quase ao mesmo tempo, a pedido da força aérea estadunidense, criou a
primeira transmissão de dados em tempo real, quando se conectavam esses computadores aos
satélites para controlar e registrar as rotas aéreas. A partir de 1960, formaram-se também as
primeiras conexões entre computadores de centros de pesquisa a serviço do Departamento de
Defesa (EUA) e os departamentos de cálculo das universidades, de modo a garantir o fluxo de
dados digitais. Como é sabido, desde então, os usos se diversificaram bastante, culminando na
rede mundial de computadores, a internet.
No mesmo passo em que a informação estratégica, militar, foi se estruturando segundo
as novas possibilidades da técnica, os grandes agentes de mercado partiam agressivamente
para o controle da tecnologia de ponta, em franco desenvolvimento. “Em 1962, o satélite
Telstar faz a ligação entre Europa e Estados Unidos. Em 1965, o Early Bird é posto em órbita.
É o primeiro satélite geoestacionário de telecomunicações comerciais da rede internacional de
satélites Intelsat ou International Telecomunications Satellite Consortium”, que já no início do
projeto, além da NASA/Pentágono, tinha a participação da sociedade privada, a Comsat,
formada, entre outras empresas, por quatro gigantes: ATT, ITT, RCA e GTE (General
Telephone & Eletronics), que detinham 45% das ações. (MATTELARD, 2000: 91)
Assim, os sistemas de transmissão de dados, imagens e sons se estruturaram, na sua
origem, por meio dos grandes monopólios que em breve atingiriam o mundo todo. Foi a
primeira vez que a difusão da modernidade de ponta, encabeçada pela informação, atingiu
quase todo o planeta simultaneamente, mas com diferentes impactos em cada território. Em
grande medida, esse processo implicou a estruturação de novas regiões econômicas e o
enfraquecimento ou esfacelamento de algumas outras; surgiram também novos recortes
político-econômicos, resultantes das integrações regionais como a União Européia e o
Mercosul. Os territórios passaram a ser constituídos pelos espaços contíguos e pelos espaços
reticulares das redes. (DIAS: 1995)
5
Desde fins de 1970, a televisão é o instrumento mais eficaz para a popularização da
informação, e por muito tempo será o principal terminal das redes globais8. E é a partir das
possibilidades desse objeto técnico que se desenvolvem conteúdos que alavancam a
acumulação ampliada dos grandes capitais no centro e periferia do sistema. Foi dentro desse
novo paradigma tecnológico, aliado ao mercado, que em 1972 ocorreu a primeira transmissão
em cores para todo o país; em 1974, o Brasil se tornou o quarto usuário dos canais de
telecomunicações do sistema Intelsat; a partir de 1985, o país contava com seu próprio satélite
de telecomunicações e, já com o Brasilsat II, em 1986, se ofereciam 24 canais para a
transmissão para até 12.000 chamadas telefônicas simultâneas ou 24 emissões de TV.
(MATTELARD & MATTELARD, 1989: 37 e 38)
Paralelamente a esse desenvolvimento, crescia a importância da indústria televisiva
(telenovelas, futebol, jornais falados, programas de variedades e filmes estrangeiros, entre
outros), que passou a integrar de modo crescente o cotidiano da maioria dos brasileiros. Isso
atraiu as empresas de publicidade e marketing, que em pouco tempo teriam peso cada vez
maior nas receitas das empresas de televisão. Em 1962, “ela captava apenas 24% dos
investimentos publicitários, em 1965, 33%; em 1976, 52%; no início dos anos 1980, mais de
60%”, algo em torno, na época, de U$ 1,8 bilhões. (ibidem: 42) Em 2005, do total de
investimentos publicitários em todo o país (R$ 34,4 bilhões), 48%, isto é, R$ 16,5 bilhões
foram investidos na mídia televisiva (IBOPE MONITOR). No mundo, investiram-se U$ 183
bilhões em publicidade para TV em 2004 (segundo o Global Entertainment and Media
Outlook: 2004-2008, realizado pela PricewaterhouseCoopers - PwC).
O papel da televisão no consumo contemporâneo é central, especialmente num país
como o Brasil, que apresenta os maiores percentuais de investimento publicitário nesse
veículo, o que parece estar particularmente relacionado à integração eletrônica do território
(CASTILLO, 2000), que possibilita, numa vasta extensão continental, que os 83% de
domicílios com TV tenham boa recepção dos sinais. Isso permite que as famílias tenham
conhecimento dos consumos modernos e mais recentes, suscitando-lhes o desejo de serem
também consumidores daquelas mercadorias que, mais cedo ou mais tarde, poderão adquirir.
A aceleração contemporânea e o consumidor mais-que-perfeito
A informação é um importante instrumento na produção de consenso nas sociedades,
mas é ainda mais potente para a administração do dissenso. E, no dissenso entre duas ou mais
partes, especialmente nas sociedades pautadas pelo mercado, tende-se a compensar melhor
o(s) mais poderoso(s).
Desse modo, vê-se a relevância de um televisor em cada domicílio como um
persuasivo veículo dos interesses hegemônicos. Campanhas de publicidade corporativas,
empresas de comunicação jornalísticas, propaganda estatal, são todos constituídos por
organizações estruturadas para fazer do homem moderno um ser universal, consumidor e
cidadão, senão um cidadão-consumidor, cujos valores são exclusivamente voltados para estar
capacitado e informado sobre os diferentes objetos de consumo, que se sucedem
continuamente em farsas de inovação e em novidades repetitivas. É o comportamento do
consumidor mais-que-perfeito, que reside na aquisição infinita de objetos, serviços e técnicas.
As expressões conceituais consumidor mais-que-perfeito e aceleração contemporânea
foram ambas cunhadas pelo geógrafo Milton Santos. A primeira, elaborada em O espaço do
cidadão (de 1987), revela a percepção teórica do autor, que chama atenção para o paradoxo de
ser-se cidadão e consumidor, usuário e cliente, no período atual. Já então apontava que cada
vez mais é cidadão quem é consumidor; que se é mais ou menos cidadão conforme o lugar
8
A partir do final dos anos 1980 e do início dos 1990, os computadores domésticos conectados cobriram áreas e
número de usuários significativos, mas, ainda assim, bem menos abragentes que o televisor.
6
que se ocupa na divisão social do trabalho e no território. Algo que se tornou evidente em
2006, há 20 anos revelava um processo que ainda conheceria a maturidade com a dominância
planetária do ideário neoliberal.
A definição de aceleração contemporânea foi formulada quase uma década depois,
num contexto de maior inserção do Brasil no processo de globalização. Segundo o autor, em
determinadas épocas, há uma aceleração da história, devido ao surgimento de novas técnicas e
tecnologias, que ensejam a produção de novos eventos e de modo intenso9. Hoje, estaríamos
atravessando um momento de aceleração, desta vez comandada pelas tecnologias da
informação, em que os signos chegam a todos pelas imagens eletrônicas, conformando um
mundo fantástico de homens, mulheres, animais e objetos técnicos maravilhosos, e esse
mundo é acessível a todos pelo consumo, pois tudo isso está à venda, inclusive com fartos
meios de crédito.
Por estar acessível a todos − e ainda nesta vida – esse wonderful world é o motor da
criação das novas religiões, da desigualdade disparada (que não é mais privilégio do Terceiro
Mundo), e da insatisfação crônica que acomete todos os indivíduos com acesso a informação,
especialmente por meio dos televisores, pois as formas perfeitas carregadas de informações
insidiosas (e subliminares) orientam os gostos dos mais precavidos dos seres. Hoje, contra um
indivíduo adulto que assiste descontraidamente à TV, há bilhões de dólares investidos, com
milhares de profissionais, de diferentes organizações, envolvidos na geração de formas
perfeitas, que jamais serão alcançadas plenamente, pois, além de um produto em questão, há
sempre um meio ambiente virtual, livre das contradições que constituem qualquer realidade.
“Ao restringir os trabalhadores à aceitação de certas concepções de estilo de vida, de
hábitos de consumo e de desejos, os capitalistas podem mais facilmente garantir a obediência
no âmbito do processo de trabalho, ao mesmo tempo em que capturam nichos de mercado
distintivos e em proliferação para suas vendas.” (HARVEY, 2004: 154) Eis a capacidade de
produção de consenso em favor dos poderes hegemônicos.
Assim, o corpo se tornou a principal estratégia de acumulação de capital neste período.
(FOUCAULT, 1975; HARVEY, 2004) Se no alvorecer do capitalismo o trabalhador tinha de
ser disciplinado para as jornadas de trabalho na produção, hoje é o consumidor que é
disciplinado em seus gostos e hábitos, de modo a favorecer a acumulação ampliada.
Essa lógica chega a tal ponto que o consumidor mais-que-perfeito busca ter tudo o que
pode dar status superior, inclusive a forma perfeita do seu corpo, seja pelo disciplinamento
das formas corpóreas nas empresas de fitness, seja pela recuperação das formas perdidas no
decorrer do tempo10. Os avanços das ciências e das técnicas têm servido mais ao
conservadorismo das elites egoístas, que buscam a eternização de seus corpos, do que às
revoluções humanísticas e universais. (BAUDRILLARD, 2001)
A aceleração dos signos difundidos planetariamente e de modo intenso e o novo perfil
do indivíduo, moldado para o consumo enquanto estratégia superior de acumulação do
capital, são processos absolutamente complementares, a ponto de hoje termos que admitir
uma realidade material complementada por outra, virtual e fantástica, que não é exclusiva das
ficções holywoodianas ou das telenovelas, mas igualmente de um sistema financeiro que lida
cotidianamente com cifras superiores a um trilhão de dólares fluindo por todo o globo e que
9
“Acelerações são momentos culminantes na História, como se abrigassem forças concentradas, explodindo para
criarem o novo.” As ferrovias e o navio a vapor geraram espanto e adoração no fim do século XIX, por conta das
novas velocidades proporcionadas; o automóvel, o avião, o telégrafo sem fio, o cabo submarino, o telefone e o
rádio promoveram igualmente uma adoração pela velocidade, a ponto de muitos pensadores anunciarem a
“morte” do espaço. (SANTOS, 1994: 29 et passim)
10
Em 2004, das 616 mil cirurgias plásticas realizadas no Brasil, 365 mil eram estéticas e 250 mil, reparadoras.
Nos EUA, fizeram-se 11,5 milhões de procedimentos cosméticos, cirúrgicos e não-cirúrgicos; alguns tipos de
cirurgia como lipoaspiração e tratamento da mama têm crescido em torno de 300% a.a. Os estadunidenses
gastaram aproximadamente U$ 12,4 bilhões em procedimentos cosméticos em 2005.
7
jamais chegam a se materializar, mas é capaz de quebrar bolsas de valores em vários países,
como também interfere nas economias e nas políticas nacionais. (KURTZMAN, 1995)
O consumo torna-se, assim, num complexo processo pelo qual as corporações tem
regulado os comportamentos dos indivíduos. Se de um lado o Estado produz regulação pela
via do indivíduo-cidadão, que constitui a relação formal de poder soberano, de outro as
grandes empresas processam regulação pela via do indivíduo-consumidor. Hoje, essa
regulação privada, que é crescentemente corporativa no Brasil e no mundo, tem interferido
nas relações sociais de modo a condicioná-las para as estratégias de consumo.
E como há uma tendência de relativa homogeneização na elaboração dos objetos
técnicos, dos processos e dos serviços para ampliar as escalas de comércio das empresas,
verifica-se que essa capacidade de condicionamentos tem se expandido em várias regiões do
planeta, como em várias regiões brasileiras.
No entanto é enganoso crer numa homogeneização das relações sociais e nos modos
de suas reproduções. Ao mesmo tempo em que se excita para o consumo, não se controla os
usos e fins a que são destinados, pois estes são atribuídos pela cultura e pela política. O
celular não foi desenvolvido para atacar a ordem pública, mas tem servido bem contra ela
conforme vimos observando nos presídios recentemente.
O televisor, igualmente, é eleito como prioridade na maioria das residências
brasileiras, pois o desejo de universalização é uma pertença do homem moderno, e este objeto
técnico contribui de alguma maneira para este fim. Este tem sido um dado importante da
expansão dos novos consumos: pela expansão das massas que buscam os mesmos consumos paradoxalmente para se diferenciar e pertencer - se dá um embate entre culturas diversas e um
conjunto de produtos relativamente homogêneos. Dessa dinâmica assimétrica entre ações e
objetos estamos construindo nosso cotidiano, permeado (mas não determinado) por uma série
de mecanismos regulatórios.
O quadro brevemente esboçado aqui, numa tentativa de análise crítica sobre os
desafios do consumo contemporâneo, não é muito promissor. Não obstante, cremos que há
possibilidades, e elas residem grandemente no uso diferenciado das novas tecnologias − em
parte responsáveis pela situação descrita − e na consciência da função dos corpos como
estratégia de resistência às vontades hegemônicas. Estas são possibilidades de uma
emancipação social que tenha a solidariedade strictu senso como valor fundamental.
Bibliografia
ANTAS Jr., Ricardo M., Território e Regulação: espaço geográfico fonte material e não
formal do direito. São Paulo, Humanitas, 2005.
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