Revista do 66. aniversário do JF

Transcrição

Revista do 66. aniversário do JF
66º Aniversário
Coisas
memoráveis
António Quadros
Índice
4 – “Oito páginas”, de Nuno Francisco.
6 – O dia em que Juscelino mudou a opinião
sobre Salazar. Fernando Paulouro Neves.
8 – Espíritos à solta. Texto de António Paulouro.
9 – “A arte não é uma Maçonaria”. Arnaldo
Saraiva entrevista Almada Negreiros.
10 – Uma reportagem do outro mundo, de Fernando Vasconcelos.
12 – Uma experiência de prospecção folclórica
de Fernando Lopes Graça.
14 – Crónicas da vida simples, de Manuel de
Carvalho.
16 – A guerra do 104 e do 65. A primeira crónica
de José Saramago.
17 – Pré-aviso para uma carta expresso. Crónica
de Joaquim Letria.
18 – Biscoitos do Fundão, de H. Correia Pardal.
20 – O século de Camões. Texto de Eduardo
Lourenço.
22 – Contos sem estrutura. A primeira crónica
de Carlos Drummond de Andrade.
24 – Um esqueleto na redacção. Crónica de
Fernando Paulouro Neves.
26 – Um cavaleiros de esperanças. Artigo de
Fernando Namora.
A capa é uma pintura do poeta
e pintor António Quadros para
o número de aniversário do JF,
em 1958.
Ficha Técnica
Director-Geral: Vasco Pinto Leite
Director: Fernando Paulouro Neves
Coordenador de Redacção: Luís Nave
Grafismo: Jornal do Fundão
Paginação: Benvinda Martins
Jorge Chorão
Publicidade
Coordenadora: Teresa Godinho
Anunciação Salvado, Ana Matias
e Luísa Pereira Nina
Liberdade,
inquietação
de sempre
Fernando Paulouro Neves
Quando se olha para os grossos volumes que arquivam os 66 anos
de história do “Jornal do Fundão”, e depois percorremos o tempo das
palavras que esses dias consubstanciam, percebemos a importância do
jornal como memória e consciência cívica e cultural de uma terra, de
uma região, de um país. Há, no seu respirar de palavras, tudo aquilo
que define a aventura humana, nas pequenas e grandes coisas, nos momentos exaltantes de glória, nas angústias do quotidiano, nas ousadias
do sonho corporizadas em batalhas sem fim.
Nas páginas amarelecidas pelo tempo, encontramos um repositório
de factos e acontecimentos com dimensão para a micro e a macro
história, porque neles está contido o q.b. de expressão colectiva e,
também, a dimensão individual da cidadania que, tantas vezes, pela
sua natureza exemplar, se projecta sobre a sociedade. Um jornal, este
jornal, na diversidade do seu caminhar, é tudo isso. E, no fio temporal
que marca a sua história, há, desde o primeiro número, uma inquietação de base que haveria de marcar a sua matriz futura: a cultura e a
sua imposição como fenómeno inseparável da libertação do homem.
O olhar que hoje lançamos sobre o tempo passado é uma forma
de perceber quanto, nesse espaço avulso de palavras e de gestos, está
presente o tempo futuro. É uma memória breve de coisas memoráveis,
com destaque para a “odisseia” que foi a visita de Juscelino Kubitschek
ou a presença de Érico Veríssimo ou a primeira crónica de José Saramago ou de Carlos Drummond de Andrade. Mas também memória de
outras presenças assinaláveis, como a entrevista que Almada Negreiros concedeu a Arnaldo Saraiva, os textos de Fernando Lopes Graça,
Fernando Vasconcelos, Fernando Namora ou Manuel Carvalho, para
citar apenas alguns, que enriqueceram o património desta casa com o
seu génio criador.
Tudo junto, nesta breve memória de coisas memoráveis – o “Jornal
do Fundão” é uma grande antologia – que esperamos faça reencontrar
o leitor com o prazer da escrita porque a prosa de jornal, como se verá,
é menos efémera do que se diz.
Jornal do Fundão
Rua Jornal do Fundão, nº4
6231 Fundão
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Esta revista faz parte integrante da edição do Jornal
do Fundão do dia 26 de Janeiro de 2012 e não pode
ser vendida separadamente
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
3
O ano
de 1946
3 de Janeiro Greves dos
lanifícios na Covilhã e na
zona da Serra da Estrela.
Envolvidos cerca de dez
mil trabalhadores com intervenção da GNR. Esta
ocorrência é descrita por
Ferreira de Castro em “A
Lã e a Neve”.
1 Fevereiro Chegam a
Lisboa 110 dos detidos no
Tarrafal, em virtude da amnistia de Outubro de 1945.
Permanecem no campo de
Cabo Verde 52 deportados.
23 Fevereiro Discurso de
Salazar sobre o acto eleitoral: a liberdade em Portugal
não se limita nem se disciplina a si própria.
27 de Abril Criação
do MUD Juvenil. Com Mário Soares, Salgado Zenha,
Octávio Pato, José Borrego,
Maria Fernanda Silva, Júlio
Pomar, Mário Sacramento,
Rui Grácio, António Abreu,
Nuno Fidelino Figueiredo.
Participam estudantes e
operários. Têm ligações
com movimentos católicos,
com João Sá da Costa, Fernando Ferreira da Costa,
próximos do padre Alves
Correia. A comissão central
é presa em 1947.
22 de Julho Artigo antisalazarista na “Time”. Publicado artigo violentamente
crítico do salazarismo, intitulado “Portugal: até que
ponto o melhor é mau?”. O
jornalista responsável pelo
artigo é expulso de Portugal
e proibida a venda da revista
por seis anos.
3 de Agosto Governo apresenta pedido de admissão
de Portugal à ONU. Veto
da URSS.
11 de Outubro Revolta da
Mealhada. Revolta organizada por um grupo de
oficiais milicianos a partir
do Porto. A coluna marcha
até à Mealhada onde é detida. Comanda a revolta o
tenente Fernando Queiroga,
participando, entre outros,
Fernando Pacheco de Amorim. O julgamento ocorre
em Março de 1947, sendo
defensores dos revoltosos
Ramada Curto, Vasco da
Gama Fernandes, Adelino
da Palma Carlos e Abranches Ferrão.
29 de Dezembro Funeral de
Abel Salazar, com manifestações contra o regime. Polícia política chega a raptar
o corpo, para o desviar do
percurso esperado. O professor morreu em Lisboa e
foi enterrado no Porto.
4
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
Oito páginas
Nuno Francisco
De súbito, estas folhas escalaram a vertigem do
tempo e abriram indelével caminho, o mesmo que
ainda hoje pisamos. Tudo começou, lá longe, com
oito páginas.
Oito.
No topo da página, um nome: “Jornal do Fundão”.
António Paulouro Júnior iniciava, a 27 de Janeiro
de 1946, a aventura de um jornal naquela pequena vila,
naquela pequena rua, naquela pequena redacção que,
avisava a ficha técnica, era provisória; era logo ali no
Largo Dr. Alfredo da Cunha, número 5. E, humilde,
nos dirá que “Enquanto se mantiverem certas dificuldades da tipografia este jornal publicar-se-á com quatro ou oito páginas, alternadamente”. Este tinha oito.
Oito páginas. Que se multiplicariam por milhares,
tantas e tantas páginas as letras cor de carvão em
fundo alvo consubstanciadas em milhões de palavras,
elas, sim, as fiéis depositárias de aspirações e dores
de toda uma região. Tantas noites em branco; tantos
sobressaltos. E o jornal fez-se grande. Assim. Era do
Fundão, mas já não era só do Fundão.
São 66 anos. Começou com estas oito páginas.
Custavam 50 centavos.
Oito paginas. Ali para o Largo Dr. Alfredo da
Cunha. No número 5. O número de telefone era o 72.
Apresentou-se naquele dia de Janeiro, no Inverno
Érico Veríssimo
da Beira. No editorial “Rumo” disse ao que veio. Os
porquês são muitos, o texto um marco do jornalismo
regional. Fica este trecho, justificativo de quase tudo
o que veio depois: “No nosso posto estaremos ao lado
dos que trabalham e dos que sofrem, em fraterna compreensão que não é de hoje mas de sempre.” Assina o
director António Paulouro Júnior. Prometeu. Cumpriu.
Voltemos as páginas. Na página três, outro dos
componentes do ADN deste jornal: “A Cultura do
Espírito”. Salta-nos ao caminho um poema de António
Navarro e um texto de Salvado Sampaio, discorrendo
sobre o termo cultura. E, nem de propósito, João Miranda escrevia sobre a “Nova ortografia”.
Folheado o tempo ao encontro de uma surpresa: a
página cinco também era de cultura, mas da “física”.
Faça ginástica! Num jornal praticamente sem fotografias, quatro esmerados desenhados descreviam-nos
quatro movimentos precisos para nos mantermos em
boa forma. Depois das culturas do espírito e do corpo,
a página seis com as notícias de todo o concelho: da
Aldeia de Joanes a Valverde. De A a V. O nevão que
cobriu a região a 19 de Janeiro fez quase o pleno em
todas as freguesias. Só na Fatela causou prejuízos
“de 250 contos”. Em Castelo Novo a neve “atingiu a
altura de meio metro; há várias árvores destroçadas e
a temperatura chegou a 5º negativos”.
Satisfeito com o que viu? Quer assinar? É barato. 25
escudos por 52 números ou, se quiser acompanharmonos ao semestre, são 13 escudos. Olhe, já agora no
cinema hoje vamos ter o “Vamos Cantar”, com Bebe
Daniels, Victor Oliver e Ben Lyon. Garantimos que
“é uma engraçada comédia musical”. Isto é hoje.
Amanhã, dia 28 de Janeiro de 1946, pode ver “Texas”
“um filme para quem aprecie acção e movimento”. Na
quinta-feira pode ver “Eram 5 Irmãos”, considerado
“o melhor filme estreado em Portugal durante o ano
de 1945”.
Fechamos com a Beira branca. O nevão. Eis as
primeiras fotos deste jornal. Foram de neve, da neve,
do nevão. Fotos do Dr. João Nabinho Amaral, António
Paulouro Júnior, Fernando Rosel e Carlos S. Ferreira.
A acompanhar, um poema de Fernando Vasconcelos.
“A Sinfonia Branca”. Era a página oito.
A última de oito.
A primeira de muitas.
O escritor brasileiro Érico Veríssimo esteve no Fundão, a
convite do JF, em Maio de 1966, numa intensa jornada cultural com um dos mais brilhantes escritores brasileiros da sua
geração. Mais tarde viriam os escritores Odylo Costa Filho e
João Cabral de Melo Neto. “Se aos 60 anos anos não pudesse
dizer a verdade não valia a pena ter vivido”, disse aquando
da sua passagem. A Censura não perdoava estas e outras
insurgências de pensamento e a sua passagem foi varrida das
páginas do jornal. Mas ficaram os testemunhos impagáveis de
quem lidou com ele.
O dia em que Juscelino
mudou a opinião sobre
Salazar
Fernando Paulouro Neves
1963
Em 1963, o antigo presidente do Brasil Juscelino Kubitschek visitou a
região. Na edição do dia
10 de Janeiro, o JF deu
largo destaque à passagem
do senador no Fundão,
Covilhã, Castelo Branco
e Belmonte. Uma jornada
memorável que está na
história do jornal e da
região. Milhares de pessoas ovacionaram JK, que
discursou na varanda da
sede do jornal, para uma
multidão esfusiante de
entusiasmo e alegria
A visita de Kubitschek de Oliveira ao Fundão (e à
região), em Janeiro de 1963, é um dos acontecimentos
memoráveis da história do “Jornal do Fundão” e do
seu fundador, António Paulouro. Não só pela apoteose
popular que rodeou a presença do antigo Presidente
do Brasil, mas pelas implicações políticas que o acontecimento suscitou. A vinda de Juscelino ao Fundão
desencadeou a fúria do Presidente do Conselho e a
Censura recebeu instruções para suprimir qualquer
referência à presença de Kubitschek no Fundão. Os
protestos colectivos que isso desencadeou (contra
o “muro da Vergonha”) conduziram até à demissão
do presidente da Câmara do Fundão, António Pinto
Castelo Branco, por este ter, também, protestado
veementemente.
De facto, o Governo de Salazar programou a omissão de que JK viera a convite de António Paulouro e
do “Jornal do Fundão”, mandou cortar na imprensa
qualquer menção ao facto, e ocultou o Fundão da
jornada luso-brasileira.
Juscelino, quando se apercebeu, ficou estupefacto.
Era uma clara situação de ausência de Liberdade, de
censura a repressão que se abatia sobre o país, com
inúmeras prisões, conhecia, então, um ponto lamentavelmente alto. No almoço a JK
realizado no Fundão, depois
de uma visita que culminou
decerto na maior manifestação até hoje aqui realizada, –
o antigo Presidente do Brasil,
que trouxe consigo a Portugal uma numerosa comitiva,
onde pontificava a figura de
Darcy Ribeiro – Juscelino
mostrou a António Paulouro
um discurso para ler em
Belmonte, na inauguração
da estátua a Cabral, onde havia um parágrafo de elogio
a Salazar, que acabou por suprimir integralmente. Esse
dia de Janeiro de 1963, foi o dia em que Juscelino
Kubitschek de Oliveira mudou, definitivamente, a sua
imagem sobre o velho ditador.
Da varanda do “Jornal do Fundão”, JK respondeu
aos que tentaram mistificar a realidade: “Quero em
público agradecer a Paulouro a oportunidade que fez
surgir de trazer-me novamente a Portugal”.
E António Paulouro, na edição do JF, que documenta a visita, escreve um texto, com o título: “APENAS
A VERDADE”. E lá se diz, logo a abrir: “Queríamos
apenas a verdade. A límpida verdade contra a qual
nada podem os muros de silêncio nem as cadeias de
intrigas. E a verdade veio, na voz de quem, nesse
instante decisivo, podia e devia dizê-la.
Desde Maio, quando aqui anunciámos a anuência
de Juscelino Kubitschek ao nosso convite, que se travava uma singular batalha. No espírito reticente dos
que só acreditam em coisas pequeninas e domésticas,
cresceu logo o espinho da dúvida, apesar das provas
irrefutáveis que trazíamos. Depois, admitindo que a
visita era possível, discutiu-se a legitimidade do convite, triste sinal de ignorância das responsabilidades e
direitos da imprensa em todo o Mundo, porta-voz da
opinião pública, e, portanto, qualificada para tomar iniciativas como esta de mostrar a um Brasileiro amigo de
Portugal o lugar onde nasceu o homam que descobriu
a sua terra. Por fim, anunciada a visita, denegriram-se
as intenções porque, ao que parece, já não é costume
alguém tomar compromissos e servir o bem público
sem ter em mira uma paga compensadora. E como se
isto não bastassse, criou-se um muro de silêncio em
volta do Fundão”.
Juscelino Kubitschek esteve, durante a visita à
região, em Castelo Branco, no Fundão, na Covilhã e
em Belmonte, que o JF “descobrira” como centro da
comunidade luso-brasileira.
[Jornal do Fundão 20 Janeiro de 1963]
SANTA CASA DA MISERICÓRDIA DE CASTELO BRANCO
Deseja associar-se às jubilosas comemorações do 66.º Aniversário
do maior baluarte da Imprensa Regional e da mais Insigne
Voz da Comunicação Social da Beira Baixa que é o "Jornal do Fundão"
6
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
O Município do Fundão
felicita o Jornal do Fundão
pelo seu 66º aniversário.
Do arco da velha
Espíritos à solta
António Paulouro
1946
No ano da fundação, o
número 3 do JF saiu apenas com quatro páginas.
Com uma edição de três
mil exemplares, o jornal
ficou reduzido “por falta de
tipógrafos” escreveu na altura. O segundo centenário
do concelho do Fundão e
questões de economia tratadas num artigo de José
Penha Garcia eram tratados na capa. No desporto,
o Unidos do Tortosendo
ganhou ao Sport Lisboa
e Fundão por 1-0. Curioso também, um concurso
de popularidade entre o
Sporting Clube do Fundão
e o Sport Lisboa e Fundão.
8
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
A senhora Joaquina Cecília, «Juquina Cezilha»
como lhe chamam, sempre foi ruim de assoar.
Em Alcongosta, onde mora e decorre a acção da
tragi-comédia que a seguir se narra, não é, valha a
verdade, pessoa que meta medo a ninguém. Mas
também é certo que se sabe impor. . . Que o diga o
marido, o senhor Luís Pedro, negociante de frutas e
cesteiro nas horas vagas, a quem vale ser prudente e
calado...
Pois a senhora «Cezilha», um dia destes, pôs a
aldeia em alvoroço. Correram gentes de um lado e
doutro. E houve até quem, mais previdente, enchesse
bilhas e cântaros na Fonte da Amoreira, julgando que
de fogo se tratava.
Quando se deslindou o motivo de tamanho alarido
soube-se novidade de estarrecer: a «Cezilha» tinha
no corpo o espírito da sogra, a Ti Inácia, que já morreu há uma data de anos!
Os mais animosos correram a casa da pobre mulher e verificaram que era verdade.
Ela lá estava no chão, contorcendo-se em violentos estrebuxões, a vista, revirada, soltando gritos roucos, medonhos!
De vez em quando o “espírito” falava:
– Ó «Cezilha» diz à tua cunhada Inácia que venha
de rastos pedir-te perdão do mal que te tem “fêto”...
Ó «Cezilha» diz à Marta de “Olvêra” que dê as duas
“dújas” de “linçoge”... E por aqui fora, num desfiar
de questões antigas que não tinha fim.
Dava-se até um fenómeno curioso: a Ti Inácia,
que nunca vira a “Cezilha” com bons olhos, aparecia agora a defender-lhe os direitos, com um carinho
muito enternecedor...
Passado algum tempo a “Cezilha” acalmou-se
um pouco. Mas quando “acordou” e viu tanta gente,
novo vágado a fez tombar no chão e as convulsões
recomeçaram...
Agora já não era só a sogra que falava. Era também a Bárbara do “Ricotaio”
que no outro mundo soubera, pela Ti Inácia, da pouca
vergonha feita à pobre “Cezilha”. E mais gente ainda,
ao todo seis espíritos de mulheres de Alcongosta, todos
coníirmando o descontentamento do Além por certa
divisão de herança, divisão que, por coincidência,
à “Cezilha” também não
agradava...
Entre a assistência estava felizmente a senhora
Elisa “Màrixa” que propôs chamar-se a senhora Ana
do Souto da Casa, ‘”binzelhoa” de renome. Só ela seria capaz de mandar os espíritos embora e deixar em
paz a pobre “Cezilha”, coitadinha, que desde manhã
ainda não tinha provado uma sede de água...
Veio a “binzelhoa”. Deitou, num pires branco, um
fio de azeite, três pedrinhas de sal e disse umas palavras esquisitas, que só ela entendia... Mas os espíritos é que não estavam pelos ajustes e, já que tinham
vindo de propósito e este mundo tratar daquele caso,
queriam levar a resposta ...
Como a senhora Ana continuava as inúteis rezas,
a “Ricotaio” garantiu, em nome de todas, que se não
fossem cumpridas as ordens que davam, Alcongosta
é que pagava as favas...
A salvação estava nas mãos da Maria Inácia,
cunhada da “Cezilha” e sua co-herdeira.. Uma comissão foi pedir-lhe que tivesse dó de toda aquela
gente, que não expusesse Alcongosta aos flagelos
que já se avizinhavam ...
A Maria Inácia, a muito custo, lá se resolveu. E
quando ia a subir as escadas da cunhada, o “espírito”,
pressentindo-a, desatou a berrar:
– Ó “Cezilha”, diz à Maria Inácia que venha de
rastos pedir-te perdão!
A Inácia ficou varada. E não se conteve:
– Ai a cadela negra a fazer papéis de comédia! De
rastos há-de ela andar “mai” toda a geração dela! O
que ela queria sei eu!
Foi o pânico. A Inácia não tinha a noção das irresponsabilidades. Se a tivesse, não desafiava a cólera
de seis espíritos, trocando o sossego de Alcongosta
por duas dúzias de lençóis...
Mas ela é que não se convenceu. Que não ia em
fitas. Que fizessem o que lhes apetecesse mas não
contassem com ela para palhaçadas. E virando as
costas aos medos, foi tratar da sua vida.
Ora, vistas bem as coisas, a Inácia tem carradas
de razão. Assim pensa também a gente ajuizada de
Alcongosta, que felizmente é muita.
E parece-nos que se o senhor Pedro, ao menos
uma vez na vida, reclamar os seus direitos, isto acaba.
Porque, para afugentar espíritos como os que a
“Cezilha” tem, ainda não há como a intervenção, a
tempo e horas, de urna varinha de marmeleiro . . .
[“Jornal do Fundão”, 10 de Fevereiro de 1946]
Entrevista com Almada Negreiros
“A arte não é uma Maçonaria”
Arnaldo Saraiva
Almada sem a grande. Com grande. Grande Almada. Tem 75 anos, e desde os 18 que
vem aguentando e fortalecendo a espantosa
personalidade artística que agitou a província
portuguesa de há 50 anos, em exposições,
conferências – happenings, poemas (oh, «a
cena do ódio»), panfletos (oh, o Manifesto
Antï-Dantas).
Poeta, pintor, dramaturgo, romancista, ensaísta, bailarino, etc., Almada pode gabar-se
de muitas coisas. Entre as quais: a de ser um
dos fundadores da revista Orpheu, a maior
revista portuguesa de vanguarda deste e de
outros séculos:
– Já houve quem me perguntasse, qual foi
a sensação que nós sentimos, os do grupo
do Orpheu ao escrevê-lo. A sensação não
foi nenhuma. Sensação foi que das nossas
conversas tenha resultado um movimento.
Se alguma coisa nos unia era o respeito,
que nunca mais se verificou, pela dignidade
humana. De resto, éramos um grupo de rapazes que não sabíamos senão gritar, e que
não podíamos senão gritar.
Do grupo do Orpheu já há só três sobreviventes: o jornalista Alfredo Guisado (que a
ele pertenceu muito acidentalmente), o poeta
Armando Cortes-Rodrigues, que hoje está
fixado na sua ilha dos Açores, e José de Almada Negreiros, que está aqui à minha frente,
nesta sala com livros, quadros, da sua autoria
e de sua mulher (Sara Afonso), e um aparelho
de televisão. Dos três sobreviventes, Almada
é, de longe, o mais «vivo». Aliás, o Orpheu
«foi» ele, Amadeo de Sousa-Cardoso, Mário
de Sá-Carneiro e um tal Fernando António
Nogueira Pessoa. Este último escreveu uma
dedicatória na sua «Passagem das Horas».
Dizia assim: «Almada, você não imagina
como eu lhe agradeço o facto de você existir». Lembra-se dele, Almada?
– Fernando Pessoa era aquele a quem eu
me falava. Não convivíamos muito. Encontrávamo-nos no restaurante Irmãos Unidos
(onde Almada pintou, há anos, o retrato
«oficial» do grande poeta). Ele gostava muito
de ouvir. Não contestava nada, e eu pensava
que não ligava ao que eu dizia. Mas um dia
apareceu-me com um livro inglês para me
informar que estava lá a defesa da minha
concepção de arte, que eu lhe expusera dias
antes: «A arte não é representação de um
pormenor do universo: é sempre a, representação do universo como absoluto!». A última
vez que o vi foi na rua, três ou quatro dias
antes de morrer...
Imagino Almada a regressar do enterro, e
a fazer vários desenhos do rosto de Pessoa.
E de repente vem-me à ideia perguntar-lhe:
– Tem saudades do Poeta? A resposta
não tarda:
– Eu falo-me com ele.
– E que lhe diz ele?
– Diz-me coisas assim: «Apetecia-me um
copo de água!»; «Gostava de ir a Inglaterra». Coisas comezinhas. Coisas que são a
minha paz, e a dele. (E depois de uma pausa):
Quando uma pessoa morre, eu fico com o
duplo do meu dever. Comporto-me com o
papel do outro.
Almada tem o segredo das frases aforísticas – concisas e profundas. Mas as violências
subtis da sua sintaxe muito pessoal e expressiva não contrariam a clareza e elegância
do seu estilo. Isso aliás já se verificava no
estupendo e actualíssimo A Invenção do Dia
Claro (19.21), que é urgente reeditar, e cuja
leitura recomendo vivamente aos nossos
vanguardistas. Porque Almada sempre se
preocupou com a originalidade e a invenção
em tudo. Diz-me:
– Eu não vou em maiorias nem em “minorias”. Ponham-me lá se quiserem. Mas eu
não estou lá. A arte não é nenhuma maçonaria. Nós somos franco-atiradores no deserto.
Por isso é que, aos 75 anos, ele continua
a trabalhar com a fúria dos 20. Fecha-se no
atelier, e recusa-se a atender quem quer que
seja, quando não se recusa mesmo a almoçar
ou a jantar. Eu tive muita sorte em ser atendido, numa altura em que ele anda ocupado
com frescos para a Faculdade de Matemática
de Coimbra e para a Sede da Fundação Gulbenkian de Lisboa: «O único progresso da minha vida» – vai-me
dizendo, enquanto
puxa de um maço
de cigarros – «foi
este: aos 14 anos
fumava provisórios, agora fumo
definitivos».
– E também
continua a escrever
poesia?
– Sinto-me hoje
mais poetado que
nunca, mas não me
interessa nada a
poética. Nem a genial. Já fiz o meu
serviço militar.
Esse «serviço
militar» poderia
muito bem ter sido
«A Cena do Ódio»,
que se destinava
ao terceiro n.º de
Orpheu. Trouxe
comigo a «Ode ao
burguês», de um
chefe do modenirismo brasileiro, e
pergunto a Almada
Se conhece esse
poema que parece
ter sido inspirado
no dele («Hei-de,
entretanto, gastar a
garganta/a insultar-te, ó besta!» – «Eu
insulto o burguês-
funesto!»; «ó alguidar de açorda fria/na
ceia-fadiga da dor-candeia» – «oh! gelatina
pasma!/ Oh! purée de batatas morais.»).
«Larga a cidade!» – «Marcha!» ; «Saltimbanco-bando», «macaco-intruja» – «Homemcurva», «burguês-cinema»; etc.). Almada não
o conhece, como não conheceu, na época, o
modernismo brasileiro. Nunca contactou com
Ronald de Carvalho, que era um dos directores do Orpheu. Dos modernistas, conheceu
apenas Guilherme de Almeida, quando ele
esteve em Lisboa. É Ribeiro Couto, que lhe
disse que o modernismo brasileiro gritara
«abaixo as universidades!.» e «vamos para o
sertão» – ao que Almada respondera: «Latim
sim, mas não assim».
Conversar com Almada é ouvir as palavras
na sua força originária. Ele não esbanja uma
sílaba. Tudo é pesado, rigoroso, como a sua
pintura. Ao descer as escadas desta velha
casa da Rua Filipe de Néri levo nos ouvidos,
mais um dos seus ditos «agudos e graciosos»:
«Hoje já sei prevenir-me: já sei sair do atelier
para a rua. Mas antes não. O artista chega
muito tarde à vida...». (4-6-68).
[“Jornal do Fundão” 11 de Agosto de
1971]
A Câmara
Municipal
de Idanha-a-Nova
felicita
o Jornal do Fundão
pelo 66.º Aniversário
Esperamos a sua visita
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
9
Uma reportagem
do outro mundo
Fernando Vasconcelos
1946
Em 1946, a crise era noticia e a falta de alimentos era uma preocupação
assim como os problemas
sociais que assolavam o
país e a região e mereciam
destaque de capa do número 10 do JF. A edição de 3
de Março de 1946 tinha
oito páginas. Uma delas
dedicada à agricultura e
uma outra de publicidade.
Uma curiosa página em
branco com o seguinte
texto: “Se fosse necessário
diríamos nesta página que
a Electro Gardunha tem à
venda os mais recentes modelos de aparelhos de rádio
‘Phillips’. Mas como todos
os nossos estimados leitores já têm conhecimento de
tão agradável notícia este
anúncio não se publica”.
– Trrr... ec! — Trrr... ec! — Trrr... ec!
O rascar gemente, áspero e compassado dum ferro
rasga o silêncio nocturno da aldeia como se a própria
terra soluçasse nos arrancos finais duma agonia de
morte.
A espaços, o silêncio aquieta-se. E logo, das bandas do cemitério, rola e reboa no ar um coro grave e
soturno de vozes mal distintas.
– Pac!... Pac!... Pac!...
O estalar seco de três chicotadas acompanha os
últimos ecos do coro misterioso.
Depois, mais próximo, mais agudo, o arrastar do
ferro:
– Trrr... ec! — Trrr... ec! — Trrr... ec!
Súbito, duas luzes pálidas surgem movendo-se a
um metro do solo como gotas de luz coalhada boiando
num mar de sombra densa.
Vagamente, como materializações imprecisas de
emanações astrais, esboçam-se as manchas alvadias
duma procissão de fantasmas.
À testa do estranho cortejo, três vultos brancos
conduzindo, o do centro, um crucifixo e, os outros
dois, uma lanterna de azeite que não alcança iluminar
à distância de meio metro.
Acima da fileira seguinte, flutua, ao meio, grande
cruz de madeira em cujos braços alvejam longos panos pendentes e, de cada lado, uma escada que os dos
extremos conduzem. Logo após, os cravos, o martelo e
a coroa de espinhos, seguem transportados por outras
três figuras semelhantes às anteriores.
E a teoria de fantasmas continua desfilando diante
dos nossos olhos, deslizando no silêncio da noite
escura como visão de pesadelo.
Agora, duas canas balançam-se no ar, levadas por
mais dois figurantes; segue-se um outro que sustenta
na mão direita um látego que, de quando em quando,
estala em golpes rijos – Pac!... Pac!... Pac!.. – numa
pele de ovelha que lhe cobre as costas, por baixo da
túnica branca de duende. Na sua esteira, um vulto escuro, sem túnica, uma silhueta de homem que arrasta,
presa à perna direita, uma relha de arado.
Uma paragem. Um cantochão de além-túmulo, cheganos aos ouvidos:
– Oh ! Meu bom Jesus
Pelos tormentos que passásteis na Cruz
Tende misericórdia das
almas!
E o coro, grave e soturno:
– E de nós!
10
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
– Pac!... Pac!... Pac!...
O cortejo, um momento interrompido, prossegue.
Agora, «o que apanha os passos»! É outra figura
irreal, caminhando duma maneira inverosímil, extenuante, estugando o passe quanto lho permite o comprimento das pernas, silenciosamente, em arrancos
sincopados ao compasso da relha que se arrasta na
sua frente.
Por último, fecha o cortejo um. comparsa transportando curta vassoura de giestas que passa periodicamente pelas costas do que o precede.
E mais nada...
Tal como surgiram, assim desaparecem engulidos
pela sombra da noite, densa, enquanto se afasta lentamente o lento arrastar do ferro na calçada.
– Trrr... ec! – Trrr. ..ec! – Trrr. ..ec!
***
Foi assim que nós vimos, no passado dia 23, a
«Procissão dos Penitentes», na vízinha aldeia do Paul.
Reminiscência viva dum passado perdido nos séculos, esta cerimónia de profunda inspiração religiosa
constitui, sem dúvida, um dos espectáculos etnográficos de maior intensidade dramática que ainda hoje
é possível observar. Basta, para tanto, uma visita à
portuguesíssima aldeia do Paul.
Procissão dos Penitentes!.,. Na verdade, que enorme penitência não cumprem os que expontâneamente
tomam lagar na cerimónia!
Desde o «pecador» que arrasta o peso dos seus
pecados que a relha simboliza, até ao que «apanha os
passos», exercício tão violento que faz parecer suaves
as voltas de joelhos ou de rastos dadas à capela do
santo a cuja protecção a devoção do crente se acolheu
em transe difícil.
Bem merece que os seus pecados sejam «varridos»
pela vassoura simbólica que fecha o cortejo.
A convicção absoluta e o respeito profundo de
figurantes e assistentes, o silêncio e escuridão da noite, o prestígio da simbologia católica, tudo contribui
para criar o ambiente solene em que o povo mistura
inconscientemente a fé viva no seu Deus com o terror
que lhe desperta o mistério do além.
Isto basta para nos fazer esquecer o que porventura
existe de risível numa cerimónia que se realiza hoje
como há 100, como há 200, 300 anos atrás.
Achámo-la, sem dúvida, estranha pelo que contém de não habitual, pelo contraste com os costumes
actuais, porque ... pertence a um «mundo» que não
é o nosso.
Por isso chamamos a esta crónica «Uma reportagem de outro mundo».
[31 de Março de 1946]
WWW.ANA.PT
BEM-VINDO AOS AEROPORTOS DE PORTUGAL
Uma experiência
de prospecção folclórica
Fernando Lopes Graça
1953
No oitavo ano da sua publicação, o JF já era o
semanário mais lido das
Beiras. Na edição de 29 de
Novembro, a reparação da
estada entre o Tortosendo e
Unhais da Serra era destaque de capa, assim como o
desfile e a festa organizada
no Teixoso a favor da cantina escolar. Na página dedicada à mulher falava-se
dos novos penteados e dos
novos chapéus.
12
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
Convicto de há muito de que todo o trabalho de
recolha da nossa música popular ou, antes, e para evitar
confusões, da nossa música folclórica, (embora a expressão não seja ainda muito própria, convindo talvez
substituí-la pela de música rústica) não pode deixar de
se apresentar sujeito a caução quando realizado pelo
velho método da anotação de ouvido, foi-me possível,
por fim, realizar um sonho velho de alguns anos, uma
pequena excursão de prospecção munido de um aparelho de gravação cedido pela gentileza de um amigo.
Iniciado no essencial do seu mecanismo, boteime ao caminho, escolhendo para teatro de operações
três localidades da Beira Baixa, região privilegiada
nesta matéria. Foram elas S. Miguel de Acha, aldeia
situada a norte de Castelo Branco, nas proximidades
de Idanha-a-Nova, cujo interesse folclórico me havia
sido assinalado por um jovem amigo natural dali;
Donas, sítio co-vizinho do Fundão; e o Paul, a trinta e
tal quilómetros desta vila, já metido na Estrela, terras
que, numa primeira visita, há-de haver uns sete anos,
me havia surpreendido pela riqueza das suas canções
polifónicas.
Não posso deixar de confessar que esta experiência
se me revelou razoavelmente fecunda em ensinamentos; quanto aos resultados, sem ter a pretensão de os
considerar definitivos em matéria tão complexa e que
de modo algum sou especialista, ouso dizer que se
me antolham preciosos, tendo eu regressado com um
pequeno pecúlio de canções saborosíssimas, umas,
outras de uma profundidade de expressão rara, todas
oferecendo mais ou menos, por este ou aquele aspecto,
matéria de meditação aos estudiosos do assunto.
S. Miguel de Acha não desmentiu as informações,
algumas até já documentadas, que me haviam sido comunicadas. É na verdade um jazigo folclórico, de grande interesse, que merecia ser explorado mais funda e
metodicamente. Fértil em música popular religiosa,
bastariam duas preciosidades ali recolhidas: a impressionante Encomendação das
almas e os verdadeiramente
surpreendentes Martírios,
ambas entoadas monodicamente só por mulheres (e
isto sem esquecer outras
canções valiosas: o Bendito
chamado «das trovoadas»,
entoado antifonicamente
por homens e mulheres, e
a Senhora Santa Cat’rina,
com acompanhamento de
adufes), bastariam aquelas duas preciosidades, digo,
para justificarem plenamente a não muito cómoda
viagem e me fazerem esquecer o calor abrasador das
jornadas em S. Miguel.
Nas Donas e no Paul, verdadeiro ou imaginado,
senti um pequeno desencanto. Sem terem decaído no
seu invulgar interesse musical, afigurou-se-me porém
que, nos sete anos decorridos entre a minha primeira
e segunda visitas, algo se haveria passado (o próprio
desgaste do tempo? qualquer influência estranha?
alterações sociais locais?) que tinha feito perder às
suas canções um pouco da sua força primitiva, da
sua espontaneidade, da sua riqueza polifónica. Era
certamente um quase nada, mas, repito, a impressão
verdadeira ou imaginada, foi para mim o bastante para
me levar a deplorar o facto de não se haver procedido
ainda, com rigor sistemático, à exploração e compendiação da nossa música rústica.
No entanto, que enorme satisfação a minha em
poder desta feita trazer comigo, gravadas na milagrosa
fitinha magnética, algumas das tão características expressões musicais daquelas gentes! Do Paul, lá vem,
entre outras, a bela Senhora das Dores e o belo Menino
Jesus a angustiante Canção da roda, a dolente Canção
da azeitona, o gracioso Coletinho, uma imponente
Encomendação das almas, cantada antifonicamente.
Nas Donas, por motivos de ordem, técnica, a colheita
não pôde ser multo abundante, com bastante mágoa
minha, pois que a música e o estilo de cantar daquele
povo é do que de mais inapreciável se me tem deparado. Apenas quatro canções: uma Encomendação
das almas, a Sacha do milho, a Colha da azeitona e
a Senhora do Souto, mas estas de uma extraordinária
intensidade de expressão, de uma altura e de uma
gravidade aliadas a uma qualidade, a uma plasticidade
na execução verdadeiramente singulares.
Permitam-se-me algumas observações a respeito
do processo de recolha mecânica.
Naturalmente que a utilização de um aparelho
gravador supõe, pela parte do prospector folclórico,
uma técnica e um método de trabalho específicos, não
propriamente no que se refere ao manejo da máquina,
que é coisa meramente exterior, mas no que concerne
à observação das condições ambientes, ao tacto psicológico imposto pelo material com que tem que se
lidar, o homem rústico, com o seu comportamento e
as suas reacções características. Não sendo folclorista,
parti para a aventura desprovido de tal técnica, de tais
métodos de trabalho, fiado apenas num certo instinto,
numa certa capacidade nata para tirar algum partido
das circunstâncias. Não é porém de aconselhar semelhante atitude a quem queira fazer
verdadeira investigação folclórica e pretenda
obter neste capítulo resultados positivos.
Direi, contudo, que um dos óbices por
mim previstos, a desconfiança, a prevenção
dos cantores rústicos a respeito da maquina,
se não verificou em parte nenhuma. Pelo
contrário: a perspectiva de cantarem diante
do microfone parece até tê-los de certo modo
entusiasmado e estimulado. A misteriosa
maquineta já não era encarada como um
produto de malas-artes diabólicas. Não posso
deixar de atribuir o facto à relativa famíliaridade que as nossas populações rústicas já
têm com a Rádio; é sintomático o haverem
sempre imaginado que lhes estava registando
as canções para depois serem transmitidas
pela Emissora... Isto, que por um lado terá o
seu inegável interesse sociológico, tem, sob
o ponto de vista folclórico, evidentes contras,
a que o folclorista deve atender na sua tarefa
de investigação e recolha. E aqui não posso
deixar de os pôr de sobreaviso a respeito dos
chamados «Ranchos Folclóricos» que entre
nós há uns tempos se desenvolveram abundantemente, congregações artificiais e artificiosas de cantores e dançadores populares,
cultivando um folclorismo de contrafacção,
inimigo do verdadeiro e espontâneo folclore,
como me foi dado verificar, por exemplo, no
Souto da Casa, outra das localidades perto do
Fundão que visitei. Contra o que me havia
sido anunciado e contra o que, de certo modo,
me era lícito esperar, as canções aqui ouvidas
revelaram-se-me absolutamente incaracterísticas, daquela modalidade puladinha e
arrebicada a que, dada a sua generalização e
a corrente apreciação como padrão e matriz
da nossa música popular, tive já ocasião
de chamar lugar-comum do nosso folclore.
Vim a saber que existia, ou existira ali ainda
recentemente, um dos tais Ranchos, por sinal
triunfante numa competição folclórica em
Castelo Branco – tudo se me tornou claro...
Creio que um dos principais, senão o principal problema, a principal dificuldade que se
apresenta ao colector da música folclórica,
e mormente àquele qua pretende gravá-la,
é surpreender esta ao vivo, isto é, integrada
funcionalmente nas actividades ou momentos
que a exprimem ou lhe são pretexto: as canções de trabalho durante as fainas agrícolas ou
quejandas, as canções religiosas nos actos do
culto, as canções de embalar junto ao berço,
as canções de romaria nos locais de peregrinação ou a caminho destes, etc. Para fazer a
recolha, há que convocar os cantadores (coisa
nem sempre cómoda), reuni-los em qualquer
local e levá-los a cantar sob determinado
pretexto, fora portanto do seu ambiente e das
suas solicitações naturais. Procede-se deste
modo, e por assim dizer, a uma operação
laboratorial, agravada pela impossibilidade
de renovar à nossa vontade as observações e
de introduzir nelas os necessários índices de
correcção. O que se obtém não pode deixar
de ser considerado um produto transposto
ou derivado, fatalmente maculado de certa
artificialidade.
Um exemplo típico dos inconvenientes
desta desintegração foi-me fornecido pela
recolha da tão dramática Procissão dos
Penitentes, do Paul. A cerimónia realiza-se
tradicionalmente na Sexta-Fetra de Paixão;
o canto fúnebre, entoado apenas por homens,
é sublinhado pelos ruídos de flagelação dos
penitentes e pelo das cadeias que arrastam nos
pés. No «laboratório» tiveram estes ruídos de
ser inventados, «fabricados» artificialmente,
o que, além de desnaturar o complexo melodia-ruído, que sob o ponto de vista documental, importaria captar, foi de molde a despertar
nos flagelados um sentimento caricatural, que
os levou por vezes à hilariedade, frustando-se
portanto desta forma a seriedade do acto e,
consequentemente, a fidelidade da recolha.
Outro percalço ainda sucedido no Paul.
As curiosas Janeiras que ali se cantam são
acompanhadas de adufes, panderetas e campainhas. Como fosse impossível de encontara
estas de momento, tiveram de ser substituídas
por garfos e facas chocalhando no gargalo
de garrafas, o que, evidentemente, falseou a
sonoridade instrumental.
Já agora observarei que, em matéria de
música instrumental, nada me foi dado topar
por estes povos, fora dos acompanhamentos
rítmicos das canções pelos instrumentos já
referidos, nas Donas, contudo, é este costume
parece que desconhecido, preferindo-se ali as
manifestações do canto puro.
Em S. Miguel de Acha falaram-me de um
pastor, exímio tocador de flauta, mas não foi
possível havê-lo à mão. Seria uma manifestação de música instrumental pura curiosa
de registar, tanto mais quanto, na verdade, a
música instrumental, por menos imediata do
que a música vocal ou, em geral, associada
sobretudo à dança, mais dificilmente e mais
contingentemente pode encontrar momento
para se nos revelar.
A transcrição destas melodias nem sempre
é tarefa cómoda. Muitas das particularidades do seu estilo, como certas acentuações,
certas inflexões de voz, com os seus ataques
e portamentos característicos, são de dificil
notação. O ritmo pode constituir, por vezes,
um verdadeiro problema. Duas das canções
que a seguir apresentamos são disso um
exemplo flagrante: a Encomendação das almas e os Martírios de S. Miguel de Acha que,
na sua grande liberdade, na complexidade
dos seus melismas, na sua flutuação métrica,
no seu rubato, frustam o rigor geométrico do
nosso solfejo tradicional. A nossa transcrição
não pode ser considerada senão como uma
aproximação e, mesmo assim, deu-nos penas
infinitas. Quanto às canções polifónicas do
Paul e das Donas, já porque materialmente
não seria possível transcrevê-las aqui na
íntegra, já porque, confessamo-lo, não nos
achamos habilitado para o fazer (talvez que
com bastante tempo ao nossa dispor pudéssemos chegar a algurn resultado), temos que
nos contentar em dar delas apenas a melodia,
de resto tão expressiva só por si.
Como complemento, consignamos também algumas das letras mais curiosas que
com elas é costume cantar, além da que figura
na transcrição musical, e que é apenas a que
ficou registada.
[“Jornal do Fundão”, 29 de Novembro
de 1953]
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
13
1959
O JF tinha 14 anos. Na
edição de 14 de Junho,
era dado a conhecer o entusiasmo que a campanha
do jornal estava a suscitar
nos beirões a propósito
da “glorificação de Pedro
Álvares Cabral na terra
onde nasceu”. O Externato
de Santo António realizou
uma tarde infantil com
“elevado êxito” e continuava a aumentar o número
de assinantes um pouco
por todo o mundo.
14
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
Crónicas da vida
Manuel de Carvalho
Naquele tempo Castelo Branco era uma cidade
morna. Morna no viver e naquela soleira do Verão
que nos torrava o corpo. Faltava a água e os cântaros
alinhavam-se, policiados, às dezenas, frente a duas
bicas mirradas, já fora de portas. O Borronha cuspia
na Corredoura, sentado mesmo sob o Arco do Jardim
do Paço. Dizia coisas desconexas e cuspia, cuspia
sempre. Era gaseado da guerra de 14, ao que se dizia.
Era Borronha, não era? Cuspia sempre. No caminho do
Liceu, fazíamos uma derivação em semi-círculo para
não pisar o cuspo do Borronha. Havia umas meninotas
que andavam a cavalo nas ruas, um parque desportivo
com 1.500 sócios e melancias àcoroa e às montanhas
no mercado fronteiro ao Passeio. É curioso. Eu nunca
mais fui a Castelo Branco, mas as melancias, as meninas a cavalo que moravam na rua do Pina e o Borronha
da cuspidela forneceram-me sempre a perspectiva
do Castelo Branco que eu conheci. E já lá vão vinte
e cinco anos. Dizem-me que
Castelo Branco está hoje muito mudada. Para melhor, evidentemente. O Liceu já não
é, ao que me dizem também,
no velho Paço Episcopal; o
Borronha há muito morreu
de certo, desfeito em cuspo
e as meninas que andavam
a cavalo serão hoje respeitáveis mamãs, ou talvez avós,
de peso igualmente respei-
tável que pouco se coadunará com o garbo desportivo
das amazonas. Seja como for, apetece-me hoje falar
aqui do Castelo Branco da (minha adolescência, do
bilhar do velho Policarpo, que tinha um olho torto (o
Policarpo, não o bilhar) era pai dos Irmãos Unidos (o
Policarpo, outra vez); sim, apetece-me falar na velha
Ana Chá padeira, que fazia bolos e tinha sempre uma
braseira acesa para a rapaziada amiga; da tasca Noé,
do Bairro Leonardo, e da música de Caçadores, aos
domingos, no passeio público, com povo para cima e
povo para baixo, a fazer horas, marcialmente e disciplinadamente. Mesmo no pino do telhado do hospital
fronteiro ao Liceu assentara ninho uma família de cegonhas que fornecia o tema para os primeiros ensaios
de conversação latina: – «Jam vidisti cicónias in hoc
ano, in civita aibicastrensis? – Ite, magister, Ubi?. In
tecto hospicii (em genítívo), vel in testo eclesiae. –
Bene, bene... Lege...» O velho Dr. Celestinus Antonius
Roxae... Usava bengala e perdia manhãs inteiras na
praça à cata de vocábulos castiços. Dizia-se à boca
pequena que preparava uma gramática que esgotaria
a matéria, mas o certo é que, ao que me conste, a gramática nunca chegou a aparecer. Havia também o Tí
Zé Cónego. O Tí Zé Cónego era gordo, pachorrento
e tinha ar patriarcal: «– A filosofia é a ciência que à
luz da razão humana se eleva às causas últimas e supremas dos entes e dos fenómenos...» Coitado do Ti
Zé Cónego. Tinha sempre lá em casa uma caneca de
bom vinho tinto para a rapaziada visitante. Depois foi
o caso do Dr. Lacerda. Um dia bateu-lhe ao ferrolho no
Hotel Central o agente Paulitos e o Dr. Lacerda fugiu
açodadamente para Espanha. Afinal,o Dr. Lacerda que
MMCORREIA
simples
era aliás um óptimo professor e uma excelente
pessoa dada à introversão, forjara muito simplesmente um diploma de ensino e conseguira
ser durante anos professor efectivo dos liceus.
Um escândalo, o caso Lacerda. O Reitor era o
Ti Tonho que professorava latim e português,
tinha tiques nas faces e uma filha lá em casa
algo espampanante. As matemáticas eram do
foro Xavier Lobo (João Matilde) e Almeida
Esteves. O primeiro era frio e prepotente. O
segundo era um professor magnífico e um
homem sério. Todos mortos, ao que me consta. Mas falar no velho Liceu Nun’ÁIvares
daquele tempo e não falar dos manos Senas
seria deficiência grave. Estes constituíam a
faceta mais bizarra do ornamento docente
da época. Homens dados às ciências experimentais eram igualmente dados à prudência
nas lides do volante: – «Oh mano, vai ver se
vem carro». E o mano saía em cada curva e
ao virar de cada esquina. Os manos Senas...
Davam-me sempre 10, premiando talvez
o meu alheamento disciplinado às coisas
laboratorialmente comprováveis.
Eu conseguia, no entanto, brilhar a alturas
algo destacadas nas sabatinas de geografia do
Tavares Ferreira. Eu e o meu amigo António
Esteves: – Qual é a capital do Nepal? Onde
fica o Lago Negami? Quais as seis principais
cidades da Roménia? O Esteves e eu, dois
viajantes potenciais desde os bancos do 2.º
ano ano do Liceu e que de viagens apenas
conhecíamos o caminho do Montalvão aos
domingos, com paragem reconfortante na
fábrica dos pirolitos. E era assim, Castelo
Branco. Uma terra, afinal, como qualquer
outra da sua dimensão. Voltarei um dia a
Castelo Branco e irei direitinho à Travessa
da Misericórdia, se ainda existir, e poisarei os
olhos na primeira casa que habitei. Recuarei
30 anos e esforçar-me-ei por rever a paisagem
humana daqueles tempos. Não sei se ainda
existe o sapateiro Joaquim Salgueiro que
era atreito a ataques epilépticos. Sei apenas
que num dos últimos números do «Jornal do
Fundão», aqui mesmo ao lado desta «Crónica
da Vida Simples» se dizia que uma senhora
presidia a uma qualquer cerimónia académica
no velho burgo albicastrense. Pois eu estou
a ver a mesma senhora com 4 ou 5 anos de
idade, chorando o pai militar, mobilizado
para o combate a um qualquer movimento
insurrecional. Se estou enganado, peço
perdão. Certo ou errado, o facto é que tal
fotografia trouxe-me lá das profundezas do
tempo todo um somatório de vivências e de
ambientes que a vida vária, apesar de tudo,
não conseguiu totalmente apagar.
[14 de Junho de 1959]
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
15
A primeira crónica de JOSÉ SARAMAGO - Deste mundo e do outro
A Guerra do 104
e do 65
José Saramago
1971
No ano em que José Saramago escreveu a primeira
crónica no jornal (o jornal
custava dois escudos), o
JF dava conta de uma
entrevista do prof. Marcelo
Caetano ao jornal “O Globo” do Brasil e também das
dificuldades da RTP, assim
como dos preços praticados na praça do Fundão.
No desporto, a Volta a
Portugal em Bicicleta era
notícia.
16
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
No primeiro dia não liguei importância. Recebi
os papéis, li-os escrupulosamente, com esta minha
incomparável ingenuidade que a tudo resiste, e, vinte
metros adiante, como obediente munícipe, depositei–os no receptáculo do lixo. Passada uma semana
sabia-os de cor, e começava a sentir-me ridículo; ao
parecer, o primeiro trabalho da manhã consistia em
receber dois papéis de cores diferentes das mãos de
dois homens simultaneamente obsequiosos e mal encarados, transportá-los (aos papéis) durante vinte metros
e deitá-los no lixo. Para uma pessoa como eu, sempre
ocupado em altos planos e pensamentos, havemos
de convir que a situação era bastamente vexatória...
Julguei contudo que se tratasse de simples escaramuça, um rápido corpo-a-corpo de fronteira, e que
em breve a paz tornaria à rua, as horas voltariam a ser
doces, no jogo alternante de luz branca e sombra azul
que o sol maneja ao correr do dia. Acreditei que depois
do arreganhar de dentes e do mostrar de unhas, o 104
e o 65 se contentariam com um mútuo e silencioso
desprezo, guardando as pragas para o recato do lar.
Mas isto era contar de mais com o efeito regressivo
do tempo nos sentimentos. Afinal, os grandes conflitos
humanos têm mostrado aguentar muito mais do que
as pirâmides do Egipto...
O caso é que a guerra se agravou. Os dois homens
deixaram de estar a distância prudente um do outro
e passaram a operar frente a
frente, cada qual na sua esquina
de uma rua perpendicular, e ali,
atravancando o caminho, intimativamente estendiam aos passantes inocentes os papelinhos
coloridos que em linguagem
mercante apregoavam os méritos absolutos do 104 e do 65.
O resultado foi lançarem-me a
mim para o limiar da neurose.
De longe, mal entro na rua,
salto os olhos por cima das
cabeças, à procura dos guerreiros (um, alto, grisalho e
de bigode; outro, baixo, grisalho e cara-rapada), a ver
como escaparei à agressão. Nos dias em que me sinto
timorato, quase todos, passo ao outro passeio (que
não sei porquê detesto) e roço os prédios, humilde.
Outros dias há em que me invadem lembranças de
heróicos antepassados, conquistadores e mareantes –
e então avanço sobre os exércitos do 104 e do 65, de
lábios cerrados, olhar firme que os ignora (ainda não
pude chegar ao desafio), e mãos apertadas atrás das
costas para resistir à injunção do papel estendido...
Mas quando estou a salvo, bem me sinto a tremer de
medo retrospectivo.
Vai para três meses que isto dura. A loja do 104 e a
loja do 65, concorrentes e rivais, disputam a clientela
– e odeiam-se. A rua, não há quem o não sinta, cheira
a pólvora e a sangue. Nos últimos dias, notei que ao
entregarem os papéis os homens dizem rápidos algumas palavras. Ainda não sei de que se trata, porque
ando em maré de timidez e passo do outro lado – mas
presumo que estarão dizendo calúnias, insinuando
denúncias de mau porte, lançando acusações de subversão, sei lá que mais.
Tudo isto, declaro, é complicado em excesso para
mim, Que o 104 e o 65 sejam inimigos, é com eles,
bom proveito lhes faça, embora eu saiba, que acabarão por celebrar paz e aliança (juntando as firmas,
por exemplo) contra os consumidores, por enquanto
lisonjeados com persuasão e blandícias. Se tal acontecer talvez nos reste um 23 como derivativo. Mas
pelo rumo que as coisas levam, ainda vem a acontecer
tomarem os homens dos papéis dores que não são as
verdadeiras suas, e começarem à pancada, aos gritos
de «viva-e-morra», qual por baixo, qual por cima, (e
são homens de meia idade, cansados, reformados...),
enquanto os donos do 104 e do 65 contam lá dentro o
dinheiro e sorriem ao balcão...
[“Jornal do Fundão, 15 de Agosto de 1971]
Pré-aviso para uma
carta expresso
Joaquim Letria
Londres
23.8.71
Meus caros,
Palavra que uma coisa que detesto é escrever cartas. Mas uma coisa que o António Paulouro acabou
de me fazer ver, aqui em Londres, é que vos devo
correspondência. E assim, aqui estou, felizmente bem,
ao fazer desta.
Peço-lhes que não esperem nunca desta coluna mais
do que simples cartas. Cartas que vos são dirigidas,
a todos vós, leitores do JF. Cartas de um homem
como vocês, com as mesmas esperanças, angústias
e incertezas.
Tenho como ponto de união com muitos milhares
de leitores deste prestigioso periódico uma qualificação que, infelizmente, é das mais utilizadas da língua
portuguesa: sou um emigrante.
São pois despretenciosas cartas de um emigrante
que devem esperar ler. Mais de dois mil quilómetros
nos separam. O que aqui se passa, no dia-a-dia londrino de um emigrado cidadão português, será o tema
destas cartas.
Não esperem que vos escreva no estilo empolado
dos especialistas dos suplementos dos diários, ou no
que os escritores dos mensários utilizam. Nada disso.
Palavra que não sei escrever assim, e até tenho raiva a
quem sabe. Muitos portugueses de 10 anos já sabem
ler. E o seu hábito de leitura merece ser estimulado
de outra forma que não seja através da «temática da
problemática da carência das infra-estruturas». Então
havíamos de andar a aprender a ler para isto!
É por estas e por outras que chamei a estas primeiras palavras «Pré-aviso para uma carta expresso». Não
desejo de modo algum secar saliva de profissionais
de «mentideros» ou de tertúlias «part-time». É com
o português do Fundão e do resto das Beiras, com o
homem da rua – de Lisboa ou do Bidonville – que
quero ter estas conversas em família, com sua licença.
As minhas cartas serão leves, leves, como a espuma
do champanhe. E se vos subirem à cabeça ainda bem,
porque é precisamente a essa parte do corpo humano
que as destino. Querem um exemplo?
Quando esta tarde vinha de autocarro para o meu
trabalho, assisti a uma curiosa discussão. O 11, o número da carreira do autocarro em questão, passa em
frente do Palácio de Buckingham, que é a residência
oficial da Rainha Isabel e dos seus parentes mais
próximos. Chovia, pois em Agosto também chove em
Londres. E à chuva estavam os guardas da rainha, que
têm uma farda vermelha parecida com a dos soldadinhos de chumbo e um capacete de pele, muito alto,
e que vos deve ser familiar dos livros de anedotas.
«Olhem para eles», disse o homem que estava à
minha frente.
«Para eles, quem?» perguntou a senhora ao lado
dele.
«Para os guardas da rainha, ali à chuva, coitados»,
disse o homem.
«Pior vida do que guarda da rainha só a de cavalo
do guarda da rainha», disse outro homem atrás de mim.
A discussão começava a generalisar-se.
«Ninguém os manda serem guardas da rainha. E de
resto aquela vida não é má. O pior é a chuva», insistiu
o segundo homem.
«Em todo o Mundo os palácios têm guarda», disse
a senhora.
«Pois, mas estes somos nós que pagamos», disse
o segundo homem.
«Até o Papa tem os guardas suíços», disse a senhora.
«Mas Cristo não teve guardas», disse o primeiro
homem.
«Foi sempre assim em todos os tempos», começou
o condutor, que tinha estado sempre calado. «Sempre
houve soldados a brincar e soldados a sério», acrescentou.
«Pois, mas quando veio a guerra eu é que fui para a
frente. Eles fazem paradas e rendições para os turistas
verem e nós é que fazemos guerras de matar ou ser
morto», disse o segundo homem.
O autocarro chegou à minha paragem. Nesta altura,
outras pessoas já estavam viradas para trás, toda a
gente, praticamente, participava na conversa. Devia
ter continuado viagem, para saber no que aquilo dava.
Certamente não sairiam dali moções, nem petições,
nem manifestações ruidosas. Tudo era apenas conversa
mole de autocarro, em dia londrino de Agosto modorrento e chuvinha de molha-tolos. Afinal, era somente
uma coisa vulgar desta cidade. Nem sei porque estou
para aqui a contar-vos. Enfim, perdoem-me esta parolice lusitana. Mas que culpa tenho eu de em 27 anos
de lisboeta nunca ter ouvido uma
conversa assim num autocarro 12
ou 27, ao passar ali por Belém ?
E pronto. São parolices destas
que vos vou passar a contar, se
o director deste jornal for suficientemente tolerante e a vossa
paciência não se esgotar. Saúde
e até para a semana são os votos
deste vosso criado.
1971
Em 1971, o JF premiava os assinantes com …
imagine-se, uma casa em
Monsanto. Um concurso
lançado entre quem se
fizesse assinante atribuía
esta casa. Mas neste ano na
edição de 5 de Setembro, o
jornal dava conta da decisão da Câmara do Fundão
em mandar ferver a água
de consumo público depois
de muita polémica com
análises que davam conta
de água imprópria para
consumo. No desporto, os
Jogos Juvenis do Fundão,
foram um êxito e eram
dadas muitas notícias das
freguesias.
***********
A PIDE passou a interceptar as cartas e adeus cartas
de Londres
[5 de Setembro de 1971]
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
17
Biscoitos do Fundão
H. Correia Pardal
1971
O 25.º aniversário do JF foi
assinalado com um rallye
das cerejas organizado
pelo Clube Português dos
Publicitários. A edição de
23 de Maio de 1971 trazia
à estampa uma notícia que
dava conta de que a Cova
da Beira era o segundo
pólo de desenvolvimento
da região centro e que
o espectáculo de consagração das “Jovem 71”
tinha sido adiado (não
autorizaram Zeca Afonso
nem Adriano). O assalto
à ourivesaria Académica
do Fundão tinha rendido
aos assaltantes “quatro
centenas de contos”.
18
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
A abelha que transviada volitou um momento,
entrando pela janela aberta, sobre esta folha de papel,
deve ser responsável pelas suas primeiras letras, ela
que nos dá com o mel a sugestão de outras coisas
doces.
É com certeza das obreiras que têm seu cortiço
numa varanda da freguesia, ali em pleno povoado, e
que, por tão familiarizadas com a gente da casa, deram
já origem a uma notícia nossa, estampada no ‘”Jornal
do Fundão” sob título incontestável – «As Abelhas,
Insectos Domésticos».
Esta veio dar-nos também uns bons-dias melífluos,
deixando-nos por associação de ideias a doce lembrança dos biscoitos ao Fundão.
Conhecem-nos os senhores?
Há os biscoitos de Sevres, que são outra coisa, em
massa de porcelana, encanto dos olhos, mas dignos de
idêntico apreço, em massa da farinha, só os biscoitos
do Fundão, lisonja do paladar.
Quem uma vez os provou na capital da Cova da
Beira, em tudo preciosos, até no aspecto e no formato,
e tão convidativos como substanciais, não os esqueceu
e levou-os consigo, circunstância que é a explicação
do seu sucesso, porque estes biscoitos não endurecem
nunca, o que por sua vez é a razão do seu segredo.
Inutilmente os têm querido imitar.
As duras contrafacções provam apenas que eles são
únicos, émulos ímpares do pão-de-ló de Margaride,
dos pastéis de Tentúgal, das regueifas de Valongo,
das cavacas das Caldas ou das queijadas de Sintra.
E não nos venham dizer os despeitados que estamos
aqui a perder o nosso tempo com um mínimo pormenor regional, pois não o perdeu o dulçoroso pincel
de Josefa de Óbidos, legando-nos um estimulante
mostruário pictórico do que foi a doçaria portuguesa
de tempos idos.
Perante esse painel, nós não temos dúvidas de que
os olhos também comem, também são capazes de ter
fome – como de ter fastio.
E o que é doce nunca amargou...
Além de tudo, o Fundão
sabe e tem destas coisas que
lhe legaram, as donas de
prestigiosas casas solarengas,
quando estas coisas, sem
Rádio nem Televisão, animavam serões patriarcais, na
província. As velhas criadas
fiéis conservaram a receita, a
mesinha desde então popular em que ficou o segredo
da abelha. Ainda há pouco,
a senhora Maria Joaquina é
que sabia fazer disto na perfeição.
E disto prevaleceram, deliciosamente, os biscoitos
do Fundão.
Cientes de que são eles um gosto na vida, que vale
mais do que cem mil réis na algibeira, cremos assim
que a abelhinha da nossa crónica veio sugerir-nos o
panegírico, à falta de melhor assunto.
O panegírico dos biscoitos do Fundão – ou a sua
defesa.
A sua defesa. Ê que as abelhas também se mostram
aptas para uma atitude protectora perante o que está
em perigo, como o provaram os cortiços que na base
das fortalezas medievais eram um bélico debrum
com o qual tinham de se haver os sitiantes inimigos.
Os ferrões em riste eram de facto a primeira defesa.
E no caso presente os biscoitos do Fundão também
estão em perigo.
Já comprometidos pelo tempo, sem remédio, os
lanifícios de Pombal e as castanhas da Gardunha,
não será com efeito sem protesto que vemos agora
sob ameaça de igual risco os açucarados primores
que fizeram ainda, em parte, o nome e o prestigio da
terra. Porque a verdade é que se podem por enquanto
topar-se as tradicionais especialidades gastronómicas
de Portugal, os presuntos de Lamego, por exemplo,
com tanto que não seja em Lamego, ou por exemplo
as morcelas de Arouca, com tanto que não seja em
Arouca, já não será possível depararem-se-nos amanhã
no Fundão os biscoitos do Fundão.
O Fundão foi terra que já deu biscoitos.
O frenesi modernista que alastra por toda a parte
não tolera que indefinidamente continuem a fazerse de farinha, ovos e açúcar, umas guloseimas que
sumariamente podem manipular-se sem prejuízo
das unhas pintadas, e há agora pastilhas elásticas – e
biscoitos sintéticos.
É o que há.
Biscoitos de plástico...
Que a abelha continue a realizar o mesmo trabalho,
como as abelhas primeiras da Criação, compreende o
modernismo dos nossos dias. Os homens, porém, os
homens e as mulheres, cônscios duma inteligência
progressiva, deixaram, atrás de si, a pedra lascada e
opuseram à caverna a Torre Eiffel e o Empire State.
Por isso estarão prestes a rebelar-se contra a própria
Natureza e as suas leis imutáveis.
Não será assim?
Mas a nossa abelha volta.
Adeja um momento, de novo, sobre este arrazoado,
e parece deixar-nos uma advertência:
– Sim, o mundo marcha, mas não conseguiram
ainda fazer os homens, através dos séculos, nada de
mais doce do que um favo de mel...
[“Jornal do Fundão”, 23 de Maio de 1971]
O século
de Camões
Eduardo Lourenço
1980
Em 1980, o futuro da Escola do Magistério do Fundão continuava envolto em
incertezas. Os problemas
da habitação e a burocracia eram também alvo de
destaque na edição do dia
25 de Janeiro, onde, na
edição especial de aniversário, Eugénio de Andrade,
Arnaldo Saraiva e Eduardo Lourenço escreviam.
Começavam os problemas
do sector dos lanifícios
com as leis da CEE e na
Covilhã, um colóquio sentava à mesa especialistas
e interessados na matéria.
20
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
Quatro séculos após a sua morte era tempo de
acertar as contas pátrias, talvez ainda por pagar ou
pagas em termos impróprios – com aquele a quem
devemos a única imagem universal do nosso ser e
cultura. Essa clarificação decisiva de Camões importa menos ern relação ao mistério e destino do indivíduo que ele foi – o qual será melhor que fique salvaguardado que falsa ou romanescamente esclarecido
– que ao mito cultural da nação implicado no canto
onde, celebrando o momento solar dela, lhe outorgou
um perfil que perturba ainda o nosso presente. Nos
finais do século XIX, confrontados com uma crise de
reajustamento a si mesmos e a um mundo que mal
entendiam, os nossos vizinhos espanhóis pensaram
curar-se da fragilidade presente e da insolação histórica dos seus séculos de ouro, lembrando-se de fechar
a sete chaves o túmulo de Cid. É verdade que os povos que se deixam vampirizar pelo passado não estão
à altura das exigências vitais do presente. Nietzsche
fez o processo desse vampirismo em termos sempre
actuais mas ainda incómodos para aqueles a quem só
a exaltação factícia da glória embalsamada confere
uma aparência de vida. Um certo comemorativismo
camoniano podia enquadrar-se nesse pendor equívoco e malsão de cobrir as misérias presentes com as
glórias extintas, se Camões não se tivesse tornado,
corno só ao génio acontece, o espelho mesmo onde
essa glória permanece intacta. Intacta mas também
fora de alcance, desencorajando pela sua excepção os
aproveitamentos efémeros e suspeitos, as idolatrias
daquilo a que Ortega e Gasset chamava a «beatice
cultural». Seria traí-lo duas vezes consagrar-lhe um
culto sem relação alguma com o espírito que a sua
obra encarna corno filha de um tempo dilacerado entre o fascínio do ouro e a herança da gratuitidade heróica que nele se dissolvia sem outra remissão que a
da memória épica camoniana ou o humor cervantino,
verso e reverso da mesma medalha imperial ibérica.
“Os Lusíadas» não são um começo mas um fim,
como em geral todas as obras onde o espírito de uma
época se dá em espectáculo.
Fim literário de um género
ressuscitado quase um século
antes pelo amor de Angelo
de Ticiano, por Homero e
renovado com a mais renascente de todas as fantasias
por Ariosto.
Fim ideológico e ético
de uma atitude encarecedora dos leitos nacionais
numa óptica universalizante que os transcende e
cujos ecos e traços se podem perceber em medieval
perspectiva nas crónicas de Azurara e em toda a sua
amplitude renascentista em João de Barros. O texto
camoniano, mau grado a sua singularidade, é igualmente texto-resumo de uma aventura cultural de amplitude cultural e geográfica tal que sem ela a sua
leitura fica reduzida à paráfrase erudita de um comparativismo inato ou à glosa formal dos seus jogos de
construção interna A compreensão do discurso épico
ou lírico camoniano só é possível no horizonte da
cultura internacional e nacional cujo perfil começa a
desenhar-se nos fins do século XV até tornar-se cultura dominante e dominadora em estado de perplexidade íntima na época da formação do Poeta. Subtrair
a obra e o caso camoniano a esse processo
de agonia da cultura medieval, triunfo e metamorfose de uma Nova Cultura – de que ele
é o exemplo ímpar entre nós, – é contribuir
para uma idolatria sem substância. As vozes
que se cruzam e unificam no canto camoniano para constituir a Voz onde todas recebem um suplemento de força e esplendor
são as do seu século. Compreender Camões,
lê-lo, celebrá-lo, comemorá-lo não pode ser
outra coisa que revisitar o mundo onde foi
possível esse canto destinado por sua vez a
recriar numa perspectiva nova o mundo de
onde procede.
Poucas culturas como a portuguesa cultivam com tanta persistência a política de terra queimada contentando-se para os gastos
sempre interessados do presente, com a veneração (intermitente) a uma outra estrela,
deixada não se sabe por qual milagre, de pé
no meio da desolação. Adoramos os Everestes, reais ou imaginários, sem nos importar
nada que tais cumes são só culminâncias,
apoteose geológica de um tumulto das alturas menos grandiosas que o sustentam. É
de certo um exagero de Pessoa, afirmar que
a emoção transmitida pela lírica camoniana teria melhor suporte se a supuséssemos
emanada sem intermediário da pura fonte
de Petrarca. Mas, naturalmente, que há uma
profunda verdade nesta observação, como
possível maior ainda na que suporia uma
proximidade mais viva entre o lirismo camoniano e de Bosca, Garcilaso, Diogo Bernardes ou Caminha, pois tão difícil é reconstituir sem lugar para dúvidas o cânone lírico
de Camões. Contudo não é nesta ritual perspectiva do comparativismo que o essencial
se decide em matéria de compreensão autêntica do Poeta. Os comentadores mais entusiasias de Camões como Faria e Sousa nunca pensaram que as passagens “análogas”
ou quase idênticas dos poemas camonianos
e das de outros autores diminuíssem o Poeta. É com júbilo que assinalou a referência
ou reminiscência virgiliana ou ovidiana ou
lucariana, A sua exegese não se ofusca com
a apropriação mormente de que é tábua da
lei literária como Vergílio ou Lucaro. Mas
não é da ausência desta espécie de comparativismo exaltante que nos devemos queixar
quando se trata de “compreender» Camões.
Os Faria e Sousa, os Manuel Correia, não tinham nem podiam ter o sentido da História.
A Cultura é da ordem da intemporalidade e
a mediação criadora cumpre-se no horizonte de textos «fixos» subtraídos ao fluxo da
experiência quotidiana. A textualidade poética (mesmo a inovadora) é concebida como
diálogo entre o poeta e outro(s) texto(s)
exemplar. Só a consciência histórica moderna imaginou que essa textualidade podia ser
medida pela totalidade da experiência humana com o texto do real e do imaginário
disponível de uma época, sob o perigo de
ver o trabalho criador ainda devorado pela
História. Era (é) excessivo porque nenhum
criador, globaliza a experiência da sua época
– ou ela se globaliza nele – mas essa reacção foi salutar. As miragens do historicismo
literário são falaciosas. Não há grande homem que não tenha sua vítima. Foram elas
que criaram um Camões omnisciente em
todos os ramos do saber divino e humano...
A mais trivial referência do Épico ao saber
floral. zoológico, alimático, geográfico, mitológico, escriturário, etc., da época, é-lhe
imputada como uma maravilha sem nome.
É tempo de o subtraír a riquezas imaginárias
para guardar apenas aquele “tesouro» que
no-lo torna precioso: o da invenção poética
da metamorfose formal a que submeteu uma
experiência ao mesmo tempo única e anàloga à de outros homens do seu tempo, na luz
de uma cultura que foi, na sua totalidade, a
do século que nele culmina.
Quer isto dizer que é urgente inverter as
duas ópticas exegéticas mais comuns dos
estudos camonianos e em particular as que
têm por objecto “Os Lusíadas”. Um deles
serve-se do Poema para «compreender» o
século ou para iluminar este ou aquele dos
seus aspectos. Assim se converte Camões
no Ideólogo ou no Moralista de uma época
que não precisava dele para esses papéis que
tinham os seus titularas precisos e autorizados. A outra, projecta no Poema o conhecimento particular e parcelizado de certos
aspectos da época – de ordem social, económica ou política – para o “explicar” por eles.
Mas compreender «Os Lusíadas» ou a obra
camoniana em função do seu século para ter
direito, por sua vez, a servir-se de «Os Lusíadas» como chave real para compreender
o tempo onde ele banha transfigurando-o, é
outra coisa. Entre o texto cultural e o texto
literário a osmose é certa, reversível e dialéctica, mas o conhecimento do texto cultural camoniano não se deixa domesticar com
a facilidade como certa exegese camoniana
no-lo tem apresentado. É o texto sociológico
de uma época particularmente perturbada,
o texto ideológico de uma cristandade em
crise e em luta, o texto ético de um tempo
subvertido em profundidade por novidades
inauditas, o texto religioso de teólogos em
estado de cruzada permanente, o texto literário de uma cultura estética, partilhada entre o exemplo antigo e o apetite da inovação,
em suma é o texto Ticiano, Savonerola, Lutero, Erasmo, João de Barros, Heitor Pinto,
Leão Hebreu, Carteglione sem falar do especificamente poético. Desses textos todos
cuja meada constitui um labirinto que só a
nossa ilusão de habitarmos a transparência
pode imaginar fácil e acessível, é tecida afinal a sumptuosa, complexa tapeçaria que
nós chamamos século de Camões. Quanto
mais o conhecemos, mais conhecemos Camões. Por dentro, o que em matéria de vivência espiritual e compreensão séria quer
sempre dizer, por fora, no espaço cultural
objectiva defeito da presença e do diálogo
dos textos que foram homens que os textos
se convertessem na vida que dura.
Vence, 12 de Janeiro de 1980
[“Jornal do Fundão”,
24 de Janeiro de 1980]
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
21
A primeira crónica de CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
Contos sem estrutura
Carlos Drummond de Andrade*
OS LIMITES DA IMAGINAÇÃO
Por que lhe deram esse nome – Vitrúvio? Porque os
pais acharam bonito. Assim, por ter crescido Vitrúvio,
quis tornar-se Vitrúvio, mas a profissão de arquitecto
não combinava com o seu eu profundo.
Seus projectos conduziam a desabamentos, e teve
de resignar-se a não projectar no papel. Passou a fazêlo em imaginação, reconstruindo totalmente Paris e
outras cidades, e conquistando prémios académicos
de repercussão internacional.
Mas vivia triste, porque Cristina Onassis não lhe
deu licença para instalar na ilha de Scórpio o Centro
Universal de Festas, obra que traria felicidade ao
mundo. Por mais que insistisse em sonho com Cristina,
ela continuava irredutível. A imaginação freou-se a
si mesma. Se fosse procurá-la pessoalmente, talvez a
moça acabasse cedendo à insistência. Mas de longe,
e em pensamento, nunca.
Vitrúvio jamais se consolou, e passou a julgar
Cristina mulher sem imaginação.
1980
Seis anos depois do 25 de
Abril, o JF recordava o
que se passou na Beira naquele dia com um número
especial onde vários nomes
grandes da política, cultura e economia nacional
escreveram. Neste mesmo
número, que assinalava
o início da colaboração
de Carlos Drummond de
Andrade, o presidente da
Câmara do Fundão garantia que a Escola do
Magistério não encerrava
e João Lopes e Francisco
Belard evocavam Jean
Paul Sartre que falecera
dias antes.
NA CABECEIRA DO RIO
Ouviu a queixa do rio e prometeu salvá-lo. Dali
por diante ninguém mais despejaria monturo em suas
águas. Contratou vigilantes, e ele próprio não fazia
outra coisa senão postar-se à margem, espingarda a
tiracolo, defendendo a pureza da linfa.
Seus auxiliares denunciaram que alguém, nas
nascentes, turvava a água. Foi até lá e verificou que
um casal de micos se divertia corrompendo de todas
as maneiras o fio d’água. Os animais fugiram para
reaparecer à noite. E explicaram, antes que levassem
tiro na barriga:
– Não fazemos por mal, apenas brincamos. Que
pode um mico fazer para se divertir, senão imitar
vocês?
– A mim vocês não imitam, pois estou justamente
lutando para proteger o rio.
– Já não se pode nem imitar – observaram os micos,
fugindo outra vez. O homem é um animal impossível. Agora deu para fazer o
contrário.
QUEIJO PARA DOIS
A Situação comia o queijo
sozinha, a Oposição tinha
fome e também queria comer
do queijo.
– Negativo – respondeu
a Situação. O queijo não
dá para todos. Mesmo que
desse, o queijo nunca é para
22
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
todos.
– Então eu vou aí e tiro o queijo todo para mim –
ameaçou a Oposição.
– Experimente para ver – retrucou a Situação. O
queijo nunca é para a Oposição.
E continuava comendo o queijo, comendo o queijo.
Até que ele acabou. Vendo que tinha acabado mesmo,
ela se queixou da Oposição.
– Viu o que você me arrumou? De tanto reclamar
uma fatia de queijo, ele foi minguando, minguando, e
me deixou com fome. Você botou olho grande. Quando
eu arranjar outro queijo, vou comê-lo escondido.
DESEMPREGO
– Não está me reconhecendo? Sou a terceira mulher
do Sabonete Araxá. Aquelas do anúncio.
– Eu sei, as três mulheres do poema de Manuel,
Bandeira.
– Não, do anúncio do sabonete. O poema veio
depois, nós já existíamos antes.
– E que foi feito das duas outras?
– A primeira passou a trabalhar para Sentinela
Juropapo. A segunda está no galarim, só trabalha
para a Secom. Eu estou desempregada, não dá para
me arranjar uma mordomia no INPS? Sei que é difícil
me aposentar, porque já tenho idade de sobra, mas...
TUDO BEM
O Ministro do Optimismo reuniu os repórteres e
declarou:
– A situação não é tão grave como estão dizendo.
Aliás, a situação não é nada grave. Quem foi que disse
que a situação é grave?
– Ministro, os números...
– Nunca ouvi os números dizerem alguma coisa.
Número não fala. Se falasse, reconheceria que tudo
está sob controle.
– Perdão, sob controle de quem? Indaga um repórter.
– Quando as coisas estão sem controle, é porque
estão sob o controle de si mesmas, e esta é uma questão
muito delicada, é um controle intestinal, entende? Se
não entender, não faz mal.
– O custo de vida...
– O custo de vida é uma ilusão. Não há custo de
vida. O Governo sustenta maternidades gratuitas.
Ninguém paga para nascer. Além disto, para facilitar
ainda mais a vida, cogitamos de estabelecer o imposto de morte. Todos os mortos pagarão esse imposto.
Assim, ninguém mais vai querer morrer, e está salva
a pátria. Eu não disse?
*(Serviço especial Jornal do Brasil/Jornal do Fundão)
[25 de Abril de 1980]
História de Jornal
Um esqueleto
na redacção
Fernando Paulouro Neves
1989
Em 1989, ano em que o JF
fez 43 anos, o destaque da
edição de 27 de janeiro foi
para os milhões que poderiam vir de Bruxelas para
a Barragem do Sabugal,
o espaço da FACIF no
Fundão era estudado pela
Escola de Arquitectura
de Lisboa; a criminalidade aumentava nas zonas
urbanas e o Hospital de
Castelo Branco tinha um
novo director clínico. Na
Covilhã o orçamento da
autarquia era aprovado só
pelo PSD.
24
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
Era ao fim da tarde e o Joaquim Duarte, com aquele
ar optimista que o faz sorrir das próprias desgraças,
chegava com o efémero albicastrense, para o jornal
da semana. Ainda mal tinha posto pé na redacção,
para as ruidosas saudações da praxe, e já o Director
o chamava à pedra:
– Então? O que é que você traz de Castelo Branco?
Pergunta difícil de atender, que às vezes não se passava nada... Desta vez, porém, na revisão da matéria
dada, o repórter tinha no bolso um enigmático facto:
– Descobriram um esqueleto no Montalvão!
Boa. A semana estava salva. E logo, ali, em plena
redacção, o caso foi analisado ao bisturi, em toda a
complexa extensão. Os elementos eram parcos, os ossos tinham sido descobertos por caçadores, as polícias,
como habitualmente, não sabiam de nada. Em suma:
o repórter tinha o esqueleto nos braços e não sabia o
que fazer com ele. Mas o Director voltava à carga:
– Isso dá uma boa peça. Investigue, que tem o
espaço que quiser. Que diabo, o esqueleto há-de pertencer a alguém!
A notícia saiu com o destaque adequado, e o assunto tornou-se, durante semanas, tema e alimento
da redacção. Enquanto a PJ investigava (se era que
investigava) os ossos e se solicitavam pareceres à
medicina legal, na esperança de que a análise científica
da desconjuntada ossatura apurasse qualquer coisinha,
no jornal faziam-se telefonemas na pista de algum
eventual desaparecido a quem o esqueleto ficasse bem
ou, pelo menos, fizesse falta.
Nós bem interrogámos, uma vez e outra – em título
ampliado: «DE QUEM SERÁ O ESQUELETO DO
MONTALVÃO?» – mas os resultados, esses, eram
escassos para desfazer o enigma. E todas as semanas,
na hora do balanço, parecíamos estar face a um caso
tão misterioso que porventura nem o senhor Poirot,
com a sua elementaríssíma ciência, seria capaz de
decifrar para a posteridade dizendo: «Elementar, meu
caro Holmes!».
Na rotina da redacção avolumava-se o tédio.
– Que chatice! O legítimo
dono dos ossos não aparece!
Navegávamos todos já em
outras águas, quando um dia
me solicitaram:
– Estão ali uns senhores.
Vêm por causa da notícia do
esqueleto...
Quase saltei na cadeira.
E vinham, de facto, por via
do esqueleto, que não saíra
do armário, como geralmente acontece por cá, mas
de uma moita, como um coelho. Vinham de luto carregado. Tinham lido no jornal as notícias da macabra
descoberta e o caso dera-lhes que pensar. O esqueleto,
afinal, podia ser de parente, um irmão, há anos desaparecido da terra natal. Haviam tentado tudo, mesmo
tudo, para saber dele, mas novas de seu achamento,
nem uma. Morreu foi o que foi. Tinham já posto luto
e ponto final no assunto («para quê mortificarmo-nos
mais?»), quando leram aquilo no jornal. E, abrindo a
carteira, puxaram de fotografia:
– É este!
Podia ser, não há dúvida, que os ossos de um esqueleto ajustam-se decerto como uma luva ao corpo
de qualquer mortal.
Ficou a fotografia para a notícia. Voltámos ao
romance, com larga referência à figura do desaparecido, que a família abatera já ao regimento dos vivos.
Seria ele?
Em outra latitude, na Holanda, um cidadão português entra, ao fim da tarde, na associação que habitualmente frequenta, como muitos dos seus compatriotas
emigrados. Bebe talvez uma heineken, circunstancial
fuga ao stress dos dias de Amsterdão, e repete um
velho hábito para manter viva a ténue raiz que o liga
ao seu país e à região de origem: folheia o “Jornal
do Fundão».
De súbito, inquieta-se:
– É pá! Vem aqui a minha fotografia no jornal!
O companheiro do lado, meio incrédulo, foi ver:
– É mesmo!
Ficou o outro ciente da noticia, um pouco amarelo
talvez, e, para mostrar que estava bem vivo, mandou
repetir a dose de heineken.
Já em casa, depois, quebrou um silêncio de muitos
anos. E escreveu para o jornal a dar conta de si:
– Tenho muita pena, caros amigo, mas o esqueleto
não é meu! Estou de boa saúde e recomendo-me!
O caso do esqueleto do Montalvão nunca se esclareceu, permanece um daqueles acontecimentos
insondáveis que permite mil suposições, desde o crime
perfeito à morte por esquecimento de um «diabo-qualquer-sem-eira-nem-beira». Paciência. Mas as noticias
do JF conseguiram, pelo menos, o milagre de recuperar
para o número dos vivos, um homem que muitos, a
começar pela família, consideravam completamente
morto. Querem melhor exemplo da força de uma
simples notícia de jornal?
[27 de Janeiro de 1989]
Poemas
António de Navarro
Ao Ribeiro Couto
Senti ontem a agonia duma flor...
Depois do seu perfume ter percorrido toda a natureza
em segredo e num silêncio profundo
a pequenina corola tombou na haste
como a cisma que terminasse o abismo da sua reza.
Uma abelha não quis o seu pólen, o silêncio à sua
volta cantou melhor — e foi abrir outra flor.
Senti ontem a agonia dum homem
e lembrei-me da agonia daquela flor...
A vida não o quis, como ao pólen a abelha,
e a terra vai guardar o seu corpo
para guardar o segredo da eternidade.
O mistério esvasiou mais um copo
do sortilégio e encheu-o de novo de silêncio,
de silêncio e de verdade para dar de beber
e embriagar
a vida daquele que vai nascer
e, com o seu amor, amá-lo,
[Jornal do Fundão, 26 de Janeiro 1946]
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
25
Um cavaleiro
de esperanças
Fernando Namora
1963
O Jornal do Fundão tinha
18 anos em 1963. Na edição de 8 de Dezembro, O
destaque era um artigo de
Fernando Namora, sobre
António Augusto dos Santos Abranches, natural do
Paul. Nesta edição era noticiado também o assalto a
uma ouriversaria em Castelo Branco o crescimento
de assinantes. Na última
página o JF publicava uma
fotografia da Miss Mundo.
26
ANIVERSÁRIO
Janeiro 2012
Das batalhas, perdidas ou ganhas, lembram-se os
generais. Mas bem sabemos que são os de menos
galões, cujo nome, ao fim de alguns anos, ninguém
conhece, que prestam o ardor, o sacrifício, para já não
falar do heroísmo, sem os quais as odisseias murcham
a meio da jornada.
Cada geração literária que hasteia uma bandeira
oposta à que veio encontrar, e é essa rebeldia que a legitima e alenta, trava uma batalha. Após dois decénios,
se a empresa não soçobrou, já se podem contar os que
ficaram de pé, os que se renderam ou desertaram, já se
podem contar os mortos e os vivos. Morre-se, porém,
de muita maneira, como se podem aceitar ou preferir
muitas formas de viver. Há os que, morrendo, perduram, e os que, vivendo, agonizam. Em que lista, de
triunfadores ou de derrotados se deve, pois, situar este
António Augusto dos Santos Abranches – cavaleiro de
esperanças, sonhador irremediavelmente adolescente,
andarilho, D. Quixote a perseguir, de peito em chama,
mil formas de permanecer no mundo dos vivos ?
Vou recordá-lo para que saibamos responder. Vou
recordá-lo com o respeito que merece um companheiro leal, um lutador que nem as desventuras nem os
silêncios vergaram, e com a emoção de quem perdeu
um amigo.
Na Coimbra de há cerca de trinta anos, entre
muitos jovens portadores de fecunda irrequietude,
aportou este beirão indócil, confiante, de um lirismo
destemperado, que logo trocou as voltas aos planos domésticos de cavar os alicerces de um destino burguês.
Nesse viveiro de doutores, o Abranches desdenhou
os diplomas e as respectivas mercês; às imposições
familiares de, ao menos, assentar praça no comércio
que tivesse um atestado de bom-senso e proveito,
preferiu um balcão de livros – não de livros escolares,
que era negócio fácil, de merceeiro, com clientela na
maioria acéfala, mas de livros que lhe trouxessem o
convívio daquela meia dúzia de estudantes que lia as
«sebentas» por obrigação e devorava um romance, um
ensaio, ou soletrava um poema
por devoção. Aquela meia dúzia que, fossem quais fossem
os obstáculos, os desdens,
pretendia esclarecer o seu
alvoroço e dar-lhe um rumo
e uma voz. Tal clientela não
garantia, era bom de prever,
um negócio rendável, tanto
mais que a lojeca, à esquina
de uma das vielas da Sé
Velha, longe dos locais es-
tratégicos, mal podia contar com o freguês ocasional;
e se um deles viesse interromper um animoso colóquio
sobre temas políticos ou literários, o Abranches, que
tanto podia ser amável como brusco, logo o despedia
com duas pedras na mão. Não admitia intrusos. Estaria
o Abranches interessado na prosperidade da casa, em
apresentar à família um deve e haver eloquente? Eis
uma pergunta insultuosa para quem tinha objectivos
e ralacões de outra monta: um novo poema, que era
diário, um novo desenho, uma nova técnica de gravura,
e grosas de livros para ler ao balcão, nas horas mortas
da tertúlia, e lia-os em casa, de afogadilho, numa febre
de urgências, e em sobressalto, clandestinamente, pois
não abrandara a excomunhão paterna. Dizia-se que o
Augusto tinha uma reserva privada por debaixo das
tábuas do soalho do seu quarto. O Abranches, pois,
escrevia poemas, contos, ensaios, numa insaciável e
desgovernada prolixidade; o José Marmelo e Silva e
outros mais tinham o seu romance na forja. Mas como
transformar essa ânsia premente de testemunho e revelação em obra de prelo, único veículo de diálogo,
única forma de assinalar activamente uma presença?
Dinheiro, não o havia, e os tipógrafos olhavam de viés
os estudantes que lhes apareciam portas adentro com
mais um projecto visionário, a crédito, apenas afiançado pelo desejo de honrar a palavra. Esse problema
afogueou o rosto, de si rubicundo, do Abranches, como
já lhe afogueara o cérebro. Pois não tinha ele uma
livraria? E grandes editoras não haviam irrompido e
medrado por acreditarem nos que, de começo, não conseguem ninguém que neles acredite? E assim nasceu a
«Portugália/ Coimbra», a pano solto e frágil e alma rasgada, chancela dos primeiros livros que demarcaram
a cepa coimbrã da nova geração. Editora sui-generis,
bem entendido, sem alvarás nem contabilistas, e, estou em crer, sem cobradores. Ora aconteceu que esse
ingénuo mas fogoso amadorismo teve as bênçãos de
certo público e da crítica mais temida. Em escassos
meses, as edições da baiuca da Sé Velha usufruiam os
escaparates das tais livrarias majestosas que, em regra,
descuidam a precária brochurinha provinciana, visto
que as tribunas dos mestres da crítica as inculcavam,
a toda a largura da página, ao público que se guiava
pelas suas sentenças. (Um parêntesis neste particular:
honra a João Gaspar Simões e Adolfo Casais Monteiro,
que não hesitaram, antes de mais provas, a dar o seu
fervoroso apoio, ao tempo decisivo, a esse alfobre de
novos escribas).
Assim nasceu em Coimbra, pela mão do Augusto
dos Santos Abranches, uma iniciativa editorial que não
só congregou, da maneira mais profícua, um grupo de
aspirantes à literatura, como lhe instilou a fé
e lhe garantiu as oportunidades sem as quais
a melhor semente nem chega a germinar. A
partir daí, milagre quase inédito na nossa
terra, vários foram os editores, dos que fazem
contas e cobranças, que abriram os braços a
esse letrados de menos de vinte anos: a partir
daí, fundaram-se colecções que deram um
cariz diferente à vida intelectual portuguesa;
a partir daí, os estímulos proliferaram.
O corajoso rasgo do Abranches teria sido
obra de uma afortunada intuição comercial?
Fora seu secreto intento jogar a sua vasa de
escritor timorato, que duvida de si, escorando-se nun grupo afoito? Nem uma coisa
nem outra: o livro, a edição eram para ele um
meio e não um fim; faltavam-lhe aptidões e
recursos para solidificar um empreendimento
em raízes perduráveis; quanto a ambições de
artista, deixou-as sempre na penumbra, sem
amargor, sem ressentimento, sem drama, para
que fossem outros, os de maior desembaraço,
a ir à frente dessa marcha que era sentida
como uma saga colectiva. Todavia, nenhum
dos companheiros zelou mais pela arte, e lhe
foi mais fiel, de todos os modos e em todas
as circunstâncias, do que ele. De malogro em
malogro, que a vida sempre lhe negou uma
aragem de bonança, de mala aviada para um
rosário tormentoso de ofícios e de obras,
Europa, Africas, Brasis, pois na sua tenda
sempre soprou um vento adverso de instabilidade até ao cabo, o Augusto Abranches soube
alimentar a sua candeia de filiado nas causas
nobres e no culto da beleza. Em todos os
seus projectos, em que o sonho nunca soube
estribar-se na realidade, o aceno próximo ou
tardio era a arte. Por ela, em suma, os homens
do senso-comum o condenarão à tumba dos
vencidos, enquanto nós, os seus companheiros, os seus amigos, os que lhe devemos um
exemplo de pertinácia e de generosidade,
aqui estamos a registá-lo, com saudade e
admiração, entre os que, porque ousaram,
porque creram e persistiram, alimentam o
cerne das vitórias.
[Jornal do Fundão, 8 Dezembro 1963]
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