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Em nome da lei Fernando Francischini Delegado Federal Preparação de texto e organização Miriam Karam Capa CCZ Comunicação Imagem da capa Agência Estado Projeto gráfico e diagramação Clarissa M. Menini Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Bibliotecária responsável: Mara Rejane Vicente Teixeira Francischini, Fernando. Em nome da lei - a história da prisão do maior traficante do mundo, Juan Carlos Ramírez Abadia / Fernando Francischini; organizadora: Miriam Karam. - Curitiba, PR : Editora Fator, 2010. 144 p.: il. ; 21 cm. ISBN 978-85-63776-00-6 1. Abadia, Juan Carlos Ramírez, 1963- . 2. Narcotraficantes – Colômbia. 3. Investigação criminal – Brasil. I.Karam, Miriam. II. Título. 364.17709861 CDD ( 22ª ed.) Rua Joaquim Amaral, 852 A Jardim das Américas Curitiba – PR | CEP 81530-430 Tel.: 41 3024 0103 2a. edição Impresso no Brasil Agradecimentos Aos policiais federais e agentes da Drug Enforcement Administration (DEA) que participaram ativamente das investigações que culminaram na prisão do traficante Juan Carlos Ramírez Abadia. Sem sua dedicação e eficiência essa operação não teria sido realizada com tamanho êxito. À minha família, que soube suportar as ausências e me deu o apoio necessário para que minha dedicação pudesse ser efetiva, obtendo o resultado almejado. O Senhor é o meu pastor Salmo de Davi 1. O Senhor é o meu pastor, nada me faltará. 2. Deitar-me faz em verdes pastos, guia-me mansamente a águas tranquilas. 3. Refrigera a minha alma; guia-me pelas veredas da justiça, por amor do seu nome. 4. Ainda que eu andasse pelo vale da sombra da morte, não temeria mal algum, porque Tu estás comigo; a tua vara e o teu cajado me consolam. Sl. 23, 1-4 Índice Apresentação por Beto Richa 9 Prefácio por René Dotti 11 Introdução 17 A identificação 21 A prisão 31 A chegada 41 A operação 51 A história 61 A investigação 69 O homem de US$ 1,8 bilhão 77 Agosto, o mês do cachorro louco 85 Os depoimentos 91 As ruas e as rotas 95 A entrevista 101 A palestra 117 Apresentação A situação caótica da criminalidade no Paraná tem origem nas drogas, o grande mal deste século. Por isso, o trabalho de combate ao tráfico precisa ser sistêmico e integrado entre as três esferas de poder: federal, estadual e municipal. Mas é preciso também a participação da sociedade, que tem função estratégica; associações, igrejas, escolas, todos temos responsabilidades no enfrentamento ao problema e no trabalho para recuperar o futuro de tantos jovens e crianças que sucumbiram no submundo das drogas. Como prefeito de Curitiba no período de 2005 a 2010, senti na pele o problema se alastrando no seio das famílias em Curitiba e na Região Metropolitana. Pais e mães desesperados me pediam ajuda. Decidi, então, convidar o delegado da Polícia Federal Fernando Francischini, que passava por um momento de grande reconhecimento na instituição, para me ajudar na dura tarefa de lutar contra as drogas. 9 Fui direto à fonte – e a Polícia Federal tem um histórico de combate implacável ao tráfico -, fui em busca do homem que havia prendido um dos maiores traficantes de drogas do mundo, Juan Carlos Ramírez Abadia. Para minha satisfação, Francischini aceitou o convite e juntos criamos a primeira Secretaria Antidrogas em uma capital brasileira. E aí vem a grande diferença do nosso trabalho: o foco principal da secretaria não é a tarefa policial (prisões e apreensões de drogas) e sim a educação, a conscientização e capacitação dos jovens para defenderem-se das drogas. Francischini dedicou-se por dois anos a esta luta, que também envolveu toda a sociedade paranaense; conseguiu unir igrejas, conscientizar pais, mães e professores; formar uma rede de informações estratégicas para repassá-las à polícia, sem comprometer o informante. E, finalmente, preparar terreno para um projeto piloto de recuperação da dependência química do crack para crianças e adolescentes carentes de Curitiba. Este livro traz a experiência de um policial extremamente competente e dedicado ao trabalho de prevenção às drogas junto à sociedade. Além de amigo pessoal, Francischini tornou-se um importante representante e interlocutor dos profissionais de segurança pública do Paraná. Beto Richa Prefeito de Curitiba (gestão 2005-2010) 10 Prefácio O registro das experiências humanas, nos mais distintos campos de atividade, constitui uma valiosa contribuição para a sociedade do presente e do futuro. Entre as diversas modalidades de gravação estão as mais antigas: a impressão de sinais e imagens sobre material mineral sólido e sobre um suporte de papel, em forma de livro. A Cultura e a Civilização dos povos acolheram o significado da sentença latina: verba volant; scripta manent (as palavras voam; o escrito permanece). Fernando Francischini certamente compreendeu o valor dessa antiga máxima e decidiu divulgar em livro algumas passagens fundamentais de suas experiências funcionais, como delegado de Polícia Federal e titular da Secretaria Antidrogas do município de Curitiba. Esse importante órgão de Política Criminal foi concebido por ele na gestão do prefeito Beto Richa, que o nomeou para dirigi-lo a partir de sua criação, em abril de 2008. Com um expressivo detalhe: foi a primeira, no gênero, em todo o país. Lembro que a minha atenção para com o seu fecundo trabalho 11 foi despertada pelo artigo “Tráfico de drogas x homicídios. A prisão de quantos Abadias são necessárias?”, publicado com destaque na Gazeta do Povo, em 29 de janeiro de 2008. No referido texto, o delegado Francischini decifrou o enigma da esfinge acerca do imenso número de chacinas e outras formas bárbaras de homicídios praticados nas últimas décadas em nosso país, especialmente nos grandes centros urbanos e periféricos. E não foi devorado pelo fabuloso monstro da Grécia mitológica, como tem ocorrido frequentemente com inúmeros responsáveis pela planificação e execução de (más) políticas de segurança pública. Pretende-se, equivocadamente, combater o aumento da violência e da criminalidade com o endurecimento da lei penal e a restrição das garantias processuais, como se a epidemia pudesse ser debelada com a homeopatia. Ao contrário, Fernando Francischini resolveu o enigma com duas lúcidas conclusões no mencionado texto: “A relação entre o tráfico de drogas e o aumento das taxas de crimes violentos, como homicídios, está cada vez mais nítida. A atuação repressiva do Estado sem a contrapartida preventiva não obtém resultados palpáveis”. Esta mensagem tem um caráter evidentemente preventivo e um objeto muito claro quanto ao combate inteligente da violência, que é um dos afluentes que deságuam no caudaloso rio do tráfico de entorpecentes e drogas afins. Seu depoimento é ilustrativo quando se refere à organização da criminalidade que dirige esse mercado negro. Vale repetir: “O organograma é piramidal e seus integrantes são ‘descartáveis e substituíveis’, com maior ou menor grau conforme o posicionamento na estrutura. Funcionam como uma empresa: graus de chefia, divisão de funções, planejamento estratégico, logística apurada, departamento financeiro, assessoria jurídica e tecnológica, corrupção estatal, bem como, pasmem, uma política bem definida de recursos humanos” (“Tráfico de drogas x homicídios”, cit.). Um detalhe impressionante: estudos realizados no Rio de Janeiro demonstram que cerca de 70% dos homicídios resultam de disputa pelos pontos de venda de drogas; da cobrança de dívidas dos dependentes e dos traficantes intermediários; do desespero dos consumidores na busca 12 de dinheiro para manter o vício, além dos confrontos de quadrilhas. O delegado Francischini informa que o Estado do Paraná é rota do tráfico internacional de drogas e de armas porque está em região fronteiriça com o Paraguai, com destaque para as cidades de Foz do Iguaçu e Guaíra e dos 173 quilômetros do lago de Itaipu, onde diuturnamente grandes apreensões são feitas. As principais organizações criminosas estão em São Paulo e Rio de Janeiro, atuando na receptação de drogas e armas de fogo. O gravíssimo problema já chegou a Curitiba e região metropolitana. Tratando-se de áreas de desenvolvimento econômico, são alvos de quadrilhas do tráfico ilícito, que geram o aumento da violência. Esta é a constatação de uma autoridade experiente e corajosa. Começa, a partir daí, a relação entre drogas e mortes; entre criminosos e vítimas; entre Polícia e Justiça Criminal. A Política Criminal, como já foi dito por alguém, “é a sabedoria legislativa do Estado na luta contra a violência e a criminalidade”. Surge, então, a pergunta: é possível reduzir o grande número de homicídios dolosos em nossa cidade e nas regiões vizinhas, em estatística que ganhou lamentável repercussão nacional? Conforme o diagnóstico feito por Francischini, a maior causa da violência em nosso país está ligada ao tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins. Ele enumera como ocorrências frequentes: homicídios (na modalidade de chacina), latrocínios, roubos, sequestros relâmpagos e extorsões que compõem o sinistro repertório alimentado pelas drogas. Sugerindo medidas alternativas, de caráter social, para a prevenção de muitos desses atentados, ele observa que os municípios podem desenvolver projetos de extraordinária eficácia. Mesmo não exercendo o poder constitucional inerente às polícias civis, de apuração das infrações penais, os municípios podem participar do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, criado pela Lei nº 11.343, de 23.8.2006. O SISNAD visa prevenir o uso indevido de drogas e promover a reinserção social de usuários e dependentes. 13 A coordenação municipal de projetos de lazer, esporte e cultura nas regiões pobres das cidades e direcionados para crianças, adolescentes e jovens de até 25 anos, é um dos caminhos eficientes de Política Criminal para retirar da marginalidade seres humanos utilizados pelas organizações criminosas pela falta de oportunidade em empregos lícitos. O crime e a violência de um modo geral são fenômenos complexos, produzidos por variadas causas e circunstâncias. Não é possível enfrentá-los somente com a ameaça da pena, por mais grave que possa ser. A perda da liberdade do infrator não constitui um meio suficiente para prevenir a reincidência ou neutralizar a vontade ilícita se o Estado não conceber e executar uma eficiente Política Criminal. A luta contra a delinquência deve ser orientada pela conjugação das instâncias formais e materiais de reação. Constituem exemplos da primeira, a lei, a polícia, o Ministério Público, os juízes e tribunais, os órgãos de execução da pena e os estabelecimentos penais. E são exemplos da segunda a família, a escola, a religião, a universidade e as organizações não governamentais. A “contrapartida preventiva” a que alude Francischini em seu artigo, para complementar a “atuação repressiva do Estado”, tem o seu foco na educação das crianças e dos adolescentes. Partindo da teoria para a prática, ele concebeu e executou projetos destinados a promover a autoestima das vítimas das drogas, mostrando-lhes caminhos saudáveis como antídotos eficientes para prevenir os malefícios do simples uso ou da dependência. Alguns programas executados pela Secretaria Antidrogas, sob a liderança de Fernando Francischini, obtiveram excelentes resultados porque partem do princípio da não violência para combater a violência. A lição da experiência prosperou e os meios e métodos contra a proliferação das drogas ilícitas virou modelo em muitos municípios paranaenses que também criaram secretarias com essa finalidade específica. O livro Em nome da lei mostra a outra face da criminalidade violenta, quando os poderes públicos e qualificados gestores de programas preventivos investem na educação, no lazer, no esporte e na cultura como 14 terapias para salvar a infância e a juventude da tentação das drogas ou do tratamento para deixá-las. Revela, também, que a prisão do traficante e a perda de bens materiais obtidos com o hediondo comércio é a resposta necessária para desmistificar esse agente de viagens alucinantes que, aparentemente destinadas ao paraíso, fazem uma escala no purgatório até chegar ao inferno. E, na maioria das vezes, sem o bilhete de volta. René Ariel Dotti Advogado — Professor Titular de Direito Penal — Medalha Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados — Presidente da Comissão Nacional da OAB para Defesa da República e da Cidadania. 15 Introdução Quando aquele homem baixo, mas forte, desceu de um veleiro numa praia do Ceará, ninguém da Polícia Federal que o vigiava poderia imaginar sua identidade; nem o que ele representaria nos próximos três anos ou o desfecho que o caso teria e a repercussão no país, no mundo e na própria instituição. O fato de estar sempre de óculos escuros e nunca tirar o boné não chamava a atenção. Afinal, o dia ensolarado e a areia branca justificavam a proteção de um suposto turista rico que aproveitava aquela maravilha da natureza para descansar. Era agosto de 2004. A prisão do perigoso traficante de drogas Juan Carlos Ramírez Abadia só aconteceria em outro mês de agosto, em 2007. Nesse período, Chupeta, como era conhecido o bandido (em português o apelido soa ainda mais ridículo que em espanhol, língua em que significa pirulito), montaria uma organização ramificada por seis Estados brasileiros, com 17 empresas de fachada que movimentariam cerca de 17 US$ 70 milhões mensais com o tráfico de cocaína. O valor impressiona mas não chega perto dos US$ 7 bilhões que lucrava o Cartel de Cali, organização criminosa onde Chupeta deu seus primeiros passos e aprendeu tudo o que deveria saber para se tornar o traficante mais procurado no mundo na época de sua prisão, com a cabeça a prêmio. O governo norte-americano garantia o pagamento de US$ 5 milhões a quem desse informações que levassem à captura de Abadia. Mas sua identificação apresentava um componente que dificultava em muito a missão. Além de toda uma estrutura montada com alta tecnologia de comunicação e despiste, Abadia se submetera a uma série de cirurgias plásticas, modificando o corpo e o rosto de forma espantosa. Era o homem das mil faces. Literalmente. Mas nada diminuiria o ânimo da Polícia Federal para tirá-lo de circulação. Quem de nós trabalha com a repressão a entorpecentes carrega marcas profundas de dor e revolta pelo que vê diariamente nas ruas e 18 Em nome da lei nos noticiários. As drogas, principalmente o crack, estão matando nossos jovens e até crianças, destruindo vidas e famílias inteiras, corrompendo futuros promissores e jogando no lixo os esforços de tantos quantos dedicam a vida ao combate ao tráfico e à recuperação de dependentes químicos. Os entorpecentes representam um mal em praticamente todo o mundo. A cada dia aumenta o número de países nos quais atuam quadrilhas transnacionais. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) avalia que o combate ao tráfico só consegue retirar das ruas cerca de 40% da produção mundial de cocaína, estimada em 850 toneladas ao ano. Os 60% restantes alimentam um mercado formado por 25 milhões de usuários que colocam nas mãos dos traficantes um valor próximo aos US$ 50 bilhões por ano. Isso dá um imenso poder de fogo aos barões do pó, como são chamados os temíveis chefões das grandes organizações criminosas que atuam principalmente em alguns países da América do Sul, especialmente a Colômbia. O desmantelamento dessas quadrilhas é um trabalho que não pode ter descanso. Mas esta é uma missão que só alcançará sucesso verdadeiro quando diminuirem as terríveis consequências registradas na outra ponta: quando conseguirmos diminuir o número de usuários e obtivermos a recuperação de tantos que sofrem – e às vezes nem sabem disso – com o vício, a drogadição. Tal certeza e preocupação levaram, em 2008, o então prefeito Beto Richa a me convidar para juntos encontrarmos uma forma de envolver o município de Curitiba no combate a esse mal do século. E foi a mesma certeza que me levou a propor a criação da primeira Secretaria Municipal Antidrogas de uma capital brasileira, que começa a apresentar resultados animadores. Mas esta é uma tarefa de todos. Sem exceção. Fernando Francischini 19 A identificação A identificação de Juan Carlos Ramírez Abadia ocorreu apenas um mês antes da prisão do traficante no condomínio Aldeia da Serra, em São Paulo. Durante quase três anos, a Polícia Federal empregou boa parte de seu tempo vigiando, muito de perto, um homem de quem se conhecia praticamente tudo, até os hábitos mais corriqueiros. Mas ninguém sabia quem era. As várias residências do traficante eram observadas cuidadosa e ininterruptamente em seis Estados das regiões Sul e Sudeste: São Paulo (capital, Campinas e Barueri), Santa Catarina (Florianópolis), Rio Grande do Sul (Guaíba), Minas Gerais (Pouso Alegre), Rio de Janeiro (Angra dos Reis) e Paraná (Curitiba). E simplesmente não era possível identificá-lo. Dezenas de identidades, todas falsas é claro, foram checadas nesse período e centenas de fotografias analisadas. As inúmeras cirurgias plásticas estavam cumprindo o propósito de esconder os traços verdadeiros de Abadia. 21 Abadia: pego pela câmera de um shopping de Curitiba Sabia-se, pela movimentação e pela riqueza demonstrada e, de certa forma ostentada, que se tratava de alguém muitíssimo importante no tráfico internacional de drogas. Mas quem? Era apenas o “Big Fish” nos relatórios e nas conversas entre as equipes da Polícia Federal que trabalhavam no caso. Se o traficante tivesse sido preso naquele período, era quase certo que sua verdadeira identidade jamais fosse conhecida e ele não pudesse ser julgado pelas 300 mortes de que era acusado na Colômbia e outras 15 nos Estados Unidos. Com muito dinheiro e acusações menores, era provável que estivesse livre novamente em pouco tempo para continuar aterrorizando o mundo e até mesmo comparsas acostumados a ver os atos mais cruéis de que já se ouviu falar. Aliás, isso ficou demonstrado no episódio de sua identificação. A Polícia Federal dispunha de autorização judicial para grampear telefones e abrir o sigilo de Abadia na internet. Acontece que as equipes do traficante 22 Em nome da lei espalhadas pelo Brasil e no exterior trocavam chips e aparelhos celulares a cada três meses no máximo. Cerca de 70 chips de celular eram usados ao mesmo tempo, o que dificultava a obtenção dos números para poder grampeá-los. Na casa em que o traficante estava no momento de sua prisão, foram encontrados 150 aparelhos de telefonia celular. Diz a lenda que Abadia usava um telefone apenas uma vez. Em seguida, descartava-o para dificultar as investigações. Dinheiro para isso não faltava. Todo o grupo que o cercava, e ele mesmo, tinham as identidades mudadas de tempos em tempos. A cada período era necessário praticamente recomeçar quase do zero. Também as reuniões dos asseclas de Abadia eram feitas de uma forma inusitada para despistar a vigilância. Certa vez, seguindo o grupo de traficantes colombianos que atuava em Curitiba, os agentes federais esperaram o piloto André Luiz Telles Barcellos, que desceu no Aeroporto Afonso Pena em vôo comercial. O piloto encontrou algumas pessoas e todos entraram num Fiat Doblò, que estava no estacionamento do aeroporto. Mas não foram a lugar nenhum. Simplesmente ficaram rodando durante uma hora na região de São José dos Pinhais, na Grande Curitiba. Depois de deixarem André Barcellos novamente no aeroporto, um deles levou o carro até um estacionamento da Rua Vicente Machado, centro de Curitiba. Descobrimos então que a quadrilha mantinha um veículo em cada um dos aeroportos de São Paulo e Porto Alegre, além de Curitiba, para usar nas reuniões. Cada veículo estava em nome de um laranja, depois investigados e presos. E aí entra uma regra apontada pela sabedoria popular que já se tornou lugar comum em histórias e filmes policiais: em algum momento o vigiado há de cometer um erro. Até o mais treinado e poderoso chefão do tráfico internacional de drogas sucumbiu. Fernando Francischini 23 Certo dia, num momento de descuido, Abadia usou o telefone “errado”: um celular grampeado com autorização da Justiça Federal de São Paulo que não havia sido protegido pelos equipamentos de despiste da quadrilha. A ligação foi feita para um dos comparsas e falava sobre o Uruguai. Abadia cobrava resultados de suas aplicações e a montagem de uma empresa de investimentos naquele país. E a voz de um dos homens mais procurados por praticamente todas as polícias e serviços de inteligência do mundo ficou gravada. Era um trunfo apenas sonhado até então. A voz de Abadia foi enviada à Drug Enforcement Administration (DEA), agência de combate ao tráfico de drogas dos Estados Unidos. A gravação percorreu inúmeros presídios federais norte-americanos sendo apresentada a dezenas de traficantes colombianos extraditados e em processo de negociação, ou seja, delação premiada. Aqueles bandidos estavam entregando comparsas para diminuir suas próprias penas ou para serem colocados em prisão domiciliar. O silêncio e as negativas chegaram a impressionar os agentes da DEA, que, em alguns casos, percebiam que o terror se estampava no rosto dos presidiários. O medo os impedia de falar. Até que, em Miami, um homem chorou. Tremeu ao ouvir a voz e, chorando muito, desesperadamente, repetiu várias vezes: “É o Chupeta, é o Chupeta”. O apelido de Chupeta fora dado por um tio porque o perigoso traficante comia muitos doces quando criança. Um apelido tão ridículo não comprometeu o crescimento desse capo, nem tanto doce diminuiu sua crueldade. A partir daí, vários colombianos encorajaram-se e foram unânimes em reconhecer a voz de Abadia. O primeiro a falar foi um colombiano também preso e extraditado para os Estados Unidos chamado Victor Patiño Fómeque, apelidado Químico, que tinha motivos de sobra para temer Chupeta. Juan Carlos Abadia fora responsável pela morte de 35 pessoas de sua família. Só restavam ele e a 24 Em nome da lei mãe, que está sob proteção da polícia norte-americana, incluída no programa de proteção a testemunhas. O homem contou que toda a família estava envolvida no tráfico e um de seus irmãos era o braço direito e laranja de Abadia na Colômbia. Acontece que o tal Procurado: cabeça a homem de confiança se recusara a devolprêmio por US$ 5 milhões ver uma enorme fazenda com milhares de de dólares cabeças de gado e cavalos de raça que havia sido colocada em seu nome para encobrir a identidade do verdadeiro proprietário. Os capangas do chefão foram eliminando a família do tal traidor um a um, sem poupar velhos e crianças. Amigos e advogados também fazem parte da lista dos mortos. Era preciso ser exemplar para evitar novas e futuras traições. O traidor sofreu crueldade ainda maior. Foi morto, esquartejado e suas partes espalhadas pela região. Então, o próprio Abadia telefonou para a mãe do morto e indicou cada um dos locais em que ela poderia recolher braços, pernas, corpo e cabeça do filho. “O tráfico não perdoa. Ele matou toda minha família”, relatou o preso colombiano. O traficante de Miami também confirmou à DEA detalhes dos atos e crueldades cometidos pelo impiedoso chefão. Naquele momento, Abadia era um dos dez criminosos mais procurados pelo Federal Bureau of Investigations (FBI) em todo o mundo, e tinha a cabeça a prêmio no valor de US$ 5 milhões. Era julgado quase tão perigoso quanto o megaterrorista Osama Bin Laden – cuja captura estava pagando recompensa de U$ 25 milhões por ter planejado os atentados terroristas conhecidos como “11 de Setembro”, que derrubaram as torres gêmeas de Nova York e levaram à morte mais de 3 mil pessoas de diversas nacionalidades. Fernando Francischini 25 26 Em nome da lei Caça ao tesouro Quando a correspondência da DEA chegou à Polícia Federal em São Paulo, instalou-se um misto de júbilo e preocupação. Finalmente “Big Fish” fora identificado. O texto do documento dizia em suma: “Quem está com você é o maior traficante do mundo....” Tanto trabalho, afinal, não fora em vão. Sabíamos que era um peixe grande, mas ninguém imaginava que podia se tratar da figura mais importante, naquele momento, do maior cartel de drogas da Colômbia, o Cartel del Norte del Valle, produtor e distribuidor de mais da metade de toda cocaína consumida no mundo. Alguns meses antes chegamos a desconfiar da identidade do nosso “Big Fish”, mas avaliamos, por uma série de dados, que era praticamente impossível que fosse Abadia. Seria o contador do chefão? Alguma pessoa muito próxima a ele? Não havia dados seguros para avaliar. No entanto, em janeiro de 2007, as casas que a polícia colombiana invadiu, a partir de informações que repassamos a ela, através da DEA, pertenciam ao traficante. Nas três casas, a polícia colombiana encontrou US$ 81 milhões em dinheiro vivo, no piso e nas paredes das construções. Havia pequenos contêineres lotados até a boca de dólares. Da parede de um lavabo, saltaram 1.309 lingotes de ouro. Mas agora, identificado Abadia, era preciso agir rápido e com segurança. E era preciso lidar com duas novidades que mexem com os nervos de todos que se vêem em semelhante posição. De um dia para o outro, nosso grupo se tornara a sensação e os heróis da Polícia Federal. Todos os olhos se voltaram para nós. Estávamos com o maior peixe do tráfico nas mãos. Atraímos ainda o olhar e a atenção dos serviços de inteligência de cinco países que também queriam colocar Abadia atrás das grades: Estados Unidos, Colômbia, Espanha, Uruguai e Argentina. Os países haviam sido alertados pela inteligência norte-americana, que se lançou na busca Fernando Francischini 27 Em vários endereços de Abadia, no Brasil e na Colômbia, a polícia encontrou pilhas de dinheiro; na foto ao lado, a pilha alcança a altura de um homem de dados sobre Abadia em todo o mundo quando soube que ele estava no Brasil e poderia ser preso a qualquer momento. Todos queriam colaborar conosco e enviaram ao Brasil equipes e equipamentos de alta tecnologia para ajudar na captura do temido chefão do narcotráfico internacional. E também para identificação e rastreamento de contas. A DEA trouxe, por exemplo, um aparelho para escanear paredes, porque já sabia que Abadia escondia dinheiro e lingotes de ouro dentro de paredes. A Operação Farrapos se tornou então uma operação de alta tecnologia e de cooperação internacional. Foi iniciada uma verdadeira caça ao tesouro. Praticamente não dormimos naquele mês. A ansiedade era muito grande porque sempre havia a possibilidade de uma fuga. As equipes passaram a dormir na porta do Abadia, onde quer que ele se encontrasse. Havia muita coisa por fazer para que a prisão fosse capaz de tirar Abadia 28 Em nome da lei de circulação da forma mais efetiva em todos os sentidos. Um traficante preso que ainda pode dispor de seus bens continua sendo um homem poderoso. E perigoso. Esta é a visão capitalista da repressão ao tráfico, criada com base na observação de muitos casos em muito tempo de trabalho no combate às drogas. No momento da prisão, todos os bens de um traficante já devem estar bloqueados pela justiça. Ele não pode dispor de nada, caso contrário continuará podendo lançar mão de recursos a fim de livrar-se das acusações, recursos e capangas para ajudá-lo a fugir da cadeia e até sequazes dispostos a cumprir ordens de matar pessoas, inclusive seus captores. Rico, Abadia era uma ameaça; pobre, não passava de mais um traficante preso. Naquele último mês terminamos de mapear todas as posses de Abadia e identificar seus comparsas espalhados pelo território brasileiro, nos Estados em que a organização atuava com presença física, e nos cinco países que fizeram parte da operação. Em cada uma dessas bases Abadia dispunha de uma equipe ligada ao tráfico diretamente além de outras pessoas, brasileiras para melhor despistar, que serviam de laranjas e testas de ferro para os negócios de fachada e para a lavagem de dinheiro. Naquele momento, a operação bloqueou 351 imóveis em cinco países, aviões, submarinos, helicópteros, uma ilha no Caribe com um hotel cinco estrelas, fazendas com búfalos, enfim, uma gama sensacional de valores. E ainda viria mais, muito mais. No dia da prisão saímos a campo com 17 mandados de prisão temporária e 30 mandados de busca e apreensão a serem cumpridos em São Paulo, Curitiba, Porto Alegre, Guaíba, Florianópolis, Campinas, Angra dos Reis, Jundiaí, Santana do Parnaíba, Uberaba e Pouso Alegre. Os mandados foram assinados pelo juiz Fausto de Sanctis, da Justiça Fernando Francischini 29 Federal de São Paulo. Era o mesmo juiz da Operação Satiagraha, da Operação do Corinthians e de outras entre as operações mais complicadas. De Sanctis banca ações que poucos juízes enfrentam. Grampear uma pessoa de quem ninguém sabe o nome, só mesmo um juiz que realmente combate o crime organizado. A prisão Cumpridos tantos detalhes, organizados tantos procedimentos, tantas noites insones, chegamos à véspera do dia marcado para o cumprimento do mandado de prisão e de alcançar um objetivo tão arduamente batalhado. Então, um pequeno detalhe, fora da alçada da Polícia Federal, quase pôs tudo a perder. O site do Supremo Tribunal Federal (STF) publicou o pedido de prisão para extradição de Juan Carlos Abadia feito pelo governo norte-americano. Parece que nossos irmãos do Norte não suportaram a ansiedade e queriam ser os primeiros a pedir o “passe” do traficante. Era já tarde da noite e uma onda de preocupação percorreu tantos quantos trabalhavam nos últimos preparativos na Superintendência da Polícia Federal em São Paulo, de onde coordenávamos a operação. Naquele momento equipes de outros Estados viajavam às cegas para cumprir mandados de prisão e busca em locais fora de suas bases. Numa 31 operação de tal envergadura, todo o cuidado é pouco. Mesmo internamente. Os policiais são convocados sem serem informados sobre a operação da qual vão participar e têm seus telefones celulares desligados. Daquele momento em diante, eles só sabem que participarão de movimentações importantes, mas não sabem sequer para onde serão embarcados. Nada pode vazar. Estavam envolvidos 180 policiais somente na capital de São Paulo e 32 Em nome da lei Residência em condomínio fechado na Aldeia da Serra (SP) nesta casa Abadia e a mulher, Yessica, foram presos mais de 200 nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. A estratégia comumente usada pela PF é fazer as buscas e prisões logo no final da madrugada, ao mesmo tempo em todos os Estados onde se encontram ramificações da operação em questão. Tínhamos muita coisa para nos preocupar. O ambiente estava agitado. E nervoso. Era preciso deixar tudo pronto, tudo bem planejado e ensaiado, Fernando Francischini 33 sem nenhuma brecha para o acaso. Eram dezenas de alvarás assinados pelo juiz que precisavam chegar às cidades corretas para que as prisões fossem feitas e os locais vasculhados pelos policiais. E decididamente não precisávamos de mais uma questão para resolver naquela noite. Mas o susto veio à queima-roupa: o pedido de prisão de Abadia estava lá, para qualquer um ver. Um advogado – e eram muitos os que trabalhavam para Abadia – que estivesse navegando naquele momento poderia dar o alerta e tudo iria por água abaixo. Para contornar o problema, deslocamos várias equipes para um condomínio em Aldeia da Serra, em São Paulo, onde fica uma das mansões usadas pelo traficante, e onde ele estava naquela noite. As equipes que já se revezavam há um mês na vigilância tiveram que intensificar o trabalho e passaram a noite vigiando entradas e saídas do condomínio; elas estavam estratégicamente espalhadas em vários pontos do local. Naquele mês, Abadia havia feito duas viagens a Foz do Iguaçu, o que nos deixou de cabelo em pé. A fuga não estava descartada, apesar dos grandes cuidados que tomamos. Era uma possibilidade a ser considerada. E se o traficante cruzasse a fronteira e entrasse na Argentina, onde a polícia sabia de sua identificação? Ele poderia ser preso lá e perderíamos o crédito depois de tanto trabalho e dinheiro público envolvidos. Residência em condomínio fechado em Angra dos Reis (RJ) 34 Em nome da lei Às 4 horas da madrugada do dia 7 de agosto de 2007 começaram a chegar as equipes de várias cidades do interior de São Paulo e de outros Estados escaladas para participar da Operação Farrapos. Às 5h30, com o apoio total e irrestrito do então Superintendente Regional em São Paulo, delegado Jaber Saadi, fizemos uma reunião no auditório da Polícia Federal na Lapa, contando a que se prestava a operação e orientando os participantes sobre a importância da coleta de material que resultasse em provas do tráfico internacional e lavagem de dinheiro em vários países. Às 6 horas da manhã já estávamos, todos, em frente aos locais em que deveríamos entrar, em oito Estados brasileiros. Nossa equipe estava em frente ao número 71 da Alameda Dourada, no Condomínio Moradas do Lago, região de Aldeia de Serra, município de Barueri, na Grande São Paulo. Dado o sinal combinado, liberamos a entrada da casa de Abadia usando um aríete, uma peça de ferro bastante pesada. Bate-se com ela na altura da maçaneta e as travas da fechadura estouram. Dois agentes quebraram a porta e eu subi rapidamente, baseado na planta da casa que já estudara bem, e cheguei ao quarto do casal. Acendi a luz e ali estavam Abadia e sua terceira mulher, Yessica Paola Roja Morales, inteiramente nus, dormindo tranquilamente na cama do casal. Abadia foi rendido e Yessica, sua mulher, se enrolou num edredom. Duas policiais federais femininas ficaram sozinhas com ela para que pudesse se vestir longe dos olhares masculinos. Abadia também se vestiu e perguntou qual era a polícia que estava fazendo sua prisão. Ao ouvir que éramos da Polícia Federal, o traficante se deixou cair sentado na cama e colocou as duas mãos na cabeça num gesto de desconsolo, como se tivesse percebido então que tinha finalmente perdido o jogo. O homem mau tremeu. A música tema do filme “O Fugitivo” até que podia servir de trilha sonora para aquele primeiro interrogatório de Abadia. Com 315 homicídios nas costas e a acusação de tentar corromper grande quantidade de autoridades e parlamentares colombianos para impedir a votação da lei que permite a extradição. Apesar de ter esquartejado pessoas e ser conhecido como homem de poucas palavras e muitos tiros, Abadia tremeu. Tremeu muito na frente do delegado no momento do interrogatório. Durante a revista na casa, confirmou todos os crimes – de tráfico de Fernando Francischini 35 Em todas as casas, Abadia tinha TVs de plasma espalhadas por todos os cômodos, até nas dependências da empregada drogas, lavagem de dinheiro, homicídios –, e confessou estar cansado de uma fuga que já durava muitos anos. Pedimos que colaborasse e foi o que ele fez. Indicou, tanto naquela casa como em casas de outros Estados, os locais onde havia grandes quantidades de dólares, euro e reais para serem apreendidos. O total, naquele dia, girou em torno de R$ 4,5 milhões, além de jóias, veículos e outros bens, como relógios e roupas de alto valor, várias TVs de plasma e LCD, equipamentos de ginástica. Naquele dia, Abadia foi interrogado no escritório da casa do condomínio de Aldeia da Serra, onde encontramos o computador usado para mandar mensagens internacionais em código. O traficante dispunha de uma ferramenta de alta tecnologia, uma técnica conhecida como esteganografia, que faz a criptografia de arquivos de áudio e texto e os esconde em fotografias ou outras imagens. Ele usava fotos de crianças e adolescentes, seus sobrinhos, e imagens da boneca Hello Kitty, que pareciam ser uma mania de Yessica. 36 Em nome da lei A mesma tecnologia já serviu a outras operações criminosas. Foi usada no planejamento dos atentados de 11 de setembro de 2001, quando aviões foram lançados sobre as torres gêmeas do World Trade Center, em Nova York, e sobre o Pentágono, em Washington. Por trás dos atos terroristas, responsáveis pela morte de mais de 3 mil pessoas, estava a Al Qaeda, de Osama Bin Laden. O escritório da mansão de Abadia era decorado com centenas de quinquilharias da Hello Kitty, o que nos chamou a atenção. Ou era uma forma calculada para que a presença da bonequinha em e-mails e em torpedos pelo celular parecesse natural. Só que neste caso, a inocente boneca cor-de-rosa escondia mensagens criptografadas com ordens para matar. Extraímos das imagens gravações de áudio e texto, com a voz do próprio Abadia, dando ordens de lavagem de dinheiro, entrega de valores, tráfico internacional, informando datas de embarque e desembarque de drogas e recomendações gerais. E até ordens para queima de arquivo. Na outra ponta, as pessoas que recebiam os e-mails tinham de decodificar os arquivos das fotos. Mas dinheiro nunca faltou. A quem ainda pode pensar que a vida de um traficante é cheia de aventuras, como em filmes mocinho-bandido açucarados por Hollywood, Abadia é um dos melhores exemplos para provar o contrário. A fuga constante acaba por tornar-se uma prisão das mais monótonas. Em cada uma das residências de alto luxo que montou no Brasil, encontramos inúmeros aparelhos de televisão de alta definição, outros de LCD, e caixas e mais caixas de filmes em DVD. Abadia comprava diretamente de produtoras e estúdios de cinema todos os filmes que estavam sendo lançados. Encontramos em todos os lugares muitos DVDs de vários tipos, espécies e gêneros. Estavam lá, por exemplo, a trilogia de O Poderoso Chefão e os filmes de Indiana Jones. A maioria, no entanto, era de séries da TV norte-americana, como CSI e Without a Trace. Lazer e utilidade? Ao desvendar crimes, as séries sempre podem servir de inspiração ou revelar cuidados a tomar. O trafi- Fernando Francischini 37 O novo e o antigo: transformação impressionante cante passava grande parte do dia assistindo filmes em casa e praticando fisiculturismo, aliás, outra mania que tinha. Em pelo menos cinco casas preparadas para ele encontramos academias profissionais de ginástica e musculação. Em vários locais também encontramos equipamento de alta geração de criptografia de telefone celular, coisa que só existia no exterior em 2007. Abadia havia trazido de Buenos Aires, conforme investigações que fizemos, chips de criptografia militar, o que lhe possibilitou manter o anonimato por tanto tempo e só ser identificado um mês antes da operação. Por ter de permanecer recluso, e com dinheiro à disposição, Abadia montou em cada Estado em que atuava um espaço para si e a mulher com tudo o que pudesse precisar em qualquer tipo de emergência: sempre uma casa em condomínio fechado, com uma célula de pessoas ligadas a ele que não conheciam os comparsas de outros Estados. Assim, se o grupo fosse pego e ele escapasse, poderia recomeçar vida nova em outro lugar, já que ninguém poderia delatar as pessoas com quem ele estava depois da fuga. A estratégia é a mesma usada pelo terrorismo 38 Em nome da lei internacional. Em cada residência, Abadia dispunha de dinheiro, identidades novas e estrutura para começar uma vida nova. Ao ser preso, Chupeta se dizia cidadão italiano e usava passaporte argentino (No. 16036657) com o nome de Marcelo Javier Unzue. O documento data de 23 de novembro de 2005, emitido pelo Ministério de Governo de Buenos Aires. Naquele momento, Chupeta guardava pouquíssimas semelhanças com as fotos de alguns anos antes que constam da lista dos traficantes mais procurados do mundo. A mudança foi operada por um alto número de cirurgias plásticas realizadas em clínicas de São Paulo, Porto Alegre e Curitiba. Foram seis apenas no rosto. Descobrimos que algumas foram estéticas, para esconder os traços originais da face, mas outras cirurgias foram feitas para satisfazer o ego, dele e de sua mulher. Abadia chegou a fazer implantes de silicone nos bíceps, na batata das pernas e outros lugares do corpo para parecer mais forte. Yessica aproveitou para passar por uma lipoaspiração, uma abdominoplastia, uma cirurgia no nariz e outra para colocação de silicone nos seios. A febre por operações plásticas alcançou também a família de Yessica. Alçada a uma nova condição financeira, a mãe, Marta Morales, e algumas de suas irmãs fizeram várias cirurgias cosméticas. Yessica tinha 24 anos ao ser presa. Sempre cuidou da família em termos financeiros e o marido foi bastante generoso com ela. Uma fonte judiciária confirmou que desde a prisão de Yessica Roja, sua família veio diversas vezes ao Brasil, incluindo o Natal e o Ano Novo, para ver a filha. Dizem que a cada mês, a mãe ou uma das irmãs visitam Yessica na prisão. Ao ser preso, o marido apaixonado tentou várias vezes salvar a pele da mulher, repetindo aos policiais que a deixassem ir, porque nada sabia de suas atividades. Fernando Francischini 39 A chegada Na Polícia Federal de São Paulo há um setor, modelo para todo o país, chamado GISE, mas conhecido internacionalmente como SIU (Unidade de Investigações Especiais), um serviço de inteligência que tem convênio com os Estados Unidos. Os dois países têm acordos de cooperação técnica para treinamento de pessoal, intercâmbio de informações criminais e desenvolvimento de ações integradas de investigação. Lá estão lotados policiais federais que trabalham apenas no combate ao tráfico internacional. Eles são muito especializados, têm treinamento no exterior e dedicação exclusiva. Quando transferido para São Paulo para coordenar melhor a Operação Farrapos, passei a cooperar com esse setor. Antes, porém, em 2004, o SIU recebeu uma série de informações que intrigaram os policiais: agentes federais de boa parte dos Estados brasileiros avisavam que o colombiano que estava sob sua vigilância estava se deslocando para o Ceará. Uma coincidência enorme que chamou a 41 Abadia trocava de refúgio constantemente e se encontrava com capangas em estacionamentos e dentro de carros atenção de todos. Os suspeitos eram de alto nível no tráfico internacional, mas não dispúnhamos de provas concretas contra eles. Ou a reunião se tratava de uma conferência de luxo ou algo muito especial aconteceria em Fortaleza. Os colombianos que operavam no Brasil não ficaram em Fortaleza. Seguiram para Camocim, um agradável balneário de frente para o Oceano Atlântico, na costa Norte do Brasil, distante 365 quilômetros de Fortaleza. Um verdadeiro paraíso: 62 quilômetros de litoral, a maior costa litorânea do Estado, um espaço de dunas, praias e lagoas. Uma curiosidade: a cidade recebeu o nome da baía onde se encontra, que em tupi significa “buraco para enterrar defunto”. Mas não foi exatamente para enterrar algo que os colombianos se reuniram em Camocim. Seria mais correto dizer que eles foram desenterrar, ou saudar a chegada de um homem misterioso, mas certamente muito importante no esquema do tráfico, o que justificaria tal movimentação. Conta a história do município que Camocim fazia parte de uma Capitania Hereditária, mas permaneceu abandonada por muito tempo, à mercê de corsários estrangeiros. Pois foi nesse local, com um passado de exploração, que Juan Carlos Abadia chegou ao Brasil em agosto de 2004, vindo da Colômbia em um veleiro de luxo. 42 Em nome da lei A DEA tinha informações que naquela região costumava chegar muita droga para abastecer o Nordeste brasileiro. Mas num pedaço paradisíaco de praias do Ceará, e dali até o Caribe, um veleiro não despertaria suspeitas, a princípio, de quem quer que fosse. Depois se soube que Juan Carlos Ramírez Abadia havia embarcado em Porto La Cruz, na Venezuela, e viajado 15 dias para chegar ao litoral brasileiro. Os policiais enviados para vigiar a reunião de colombianos em Camocim viram desembarcar um homem baixo, forte, musculoso, sempre protegido por um boné e óculos escuros. Abadia estava muito diferente das fotos existentes de quando era mais jovem; usava cavanhaque e os cabelos tinham modificado de cor, estavam aloirados. Na ocasião ele portava três passaportes com os nomes de Miguel Ângelo Cano Ramos, Carlos Arturo Mora Calderón e José Martin Colque Cruz. Com aquele homem desceram quatro malas enormes e, à primeira vista, até foi levantada a hipótese de estarem cheias de drogas. Impossível. A “expertise” da Polícia Federal registra que um chefão nunca viaja com a droga. Raramente chega perto dela. Para isso existe todo um batalhão a seu serviço. Além do mais, um carregamento jamais seria presenciado por vários membros da cúpula dos cartéis colombianos em todo o Brasil. Só poderia tratar-se de alguém muito importante chegando ao país. Mas quem? Fernando Francischini 43 Também mais tarde soube-se que US$ 4 milhões estavam acondicionados na bagagem desembarcada em Camocim. Depois viria mais, muito mais. Mas, ao menos por enquanto, aquilo deveria ser suficiente para iniciar uma nova vida e implantar a estrutura necessária para que o traficante mais procurado do mundo continuasse a trabalhar a partir do Brasil. Era o início de um novo império das drogas, que havia escolhido o Brasil para espalhar seus tentáculos sobre o mundo. Naquele momento uma dúvida se instalou na coordenação: o que fazer? Abordar todo mundo, sem mandado de prisão... e se não houver droga nas malas? Não poderíamos prendê-los, a não ser que os pegássemos em flagrante, com muita droga. Mas os chefões do Brasil inteiro estariam se expondo dessa forma ingênua? Estranho, muito estranho. Depois de passar a noite na pousada mais cara de Camocim, Abadia rumou para Sobral, uma cidade a cerca de 150 quilômetros de distância, embarcou num bimotor e desapareceu. Naquele momento, desistimos de abordá-lo e ali o perdemos. Ficamos um ano sem contato. Depois soubemos que ele foi para São Paulo, montou uma super estrutura, células em várias cidades, instalou 17 empresas para lavar dinheiro... enfim, se estabeleceu em um ano. Mas, ainda em Sobral, descobrimos que o aviãozinho fora pilotado por André Luiz Telles Barcellos, contratado por US$ 30 mil para levar a figura para onde quer que fosse. Soubemos mais tarde que a aeronave partiu de Sobral e fez o primeiro pouso na Bahia, em Bom Jesus da Lapa, de onde seguiu para Araxá, em Minas Gerais. Ali, aquele desconhecido se hospedou por uma noite para viajar, no dia seguinte, de carro até São Paulo. Abadia passou a noite num hotelzinho modesto de Araxá, cidade turística procurada pelas águas medicinais e por ser o lar da mítica Dona Beja, cortesã do Século XIX transformada em novela muito tempo depois pela TV Manchete. Na manhã seguinte, o traficante seguiu de carro para São Paulo, seu destino final naquele momento. São Paulo 44 Em nome da lei era um bom lugar para passar algum tempo despercebido, em meio a 19 milhões de anônimos e desconhecidos. Nas duas primeiras semanas na capital paulista, Abadia trocou de refúgio inúmeras vezes, sempre na região dos Jardins. Seguia à risca a lição aprendida no Cartel do Valle del Cauca de manter o anonimato. Só abriu exceção para mais uma manobra de despistamento: uma nova cirurgia plástica, que deixou seu queixo quadrado e os olhos afilados como os de um oriental. Ele havia tirado o cavanhaque para cultivar um bigode fino. Gente em volta do traficante achou que ele ficara parecido com o roqueiro Fred Mercury, do grupo inglês Queen. Mas ninguém teve coragem de fazer qualquer comentário. Até porque Abadia levava muito a sério a própria masculinidade. E estava fazendo os últimos preparativos para trazer ao Brasil a jovem e bela Yessica Paola Roja Morales, a Gegê, terceira de suas mulheres, que desembarcaria no país cinco meses depois sob a identidade de Millareth Torres Lozano. Mas tudo isso ainda não sabíamos. Só quase um ano depois, em 5 de março de 2005, um acidente sem importância alguma, no Aeroporto do Bacacheri, em Curitiba, chamou a atenção da Polícia Federal. Com três pessoas a bordo, a pequena aeronave particular Beechcraft A-36, prefixo PR-AAJ, caíra dentro de um buraco no final da pista de decolagem. Junto com o piloto e outra pessoa, havia um colombiano a bordo, o que chamou a atenção. Investigações revelaram que os três haviam se hospedado num hotel três estrelas, no centro de Curitiba. Na lista de hóspedes estavam os nomes de um passageiro da aeronave, do colombiano Efren Rodriguez e do piloto André Luiz Telles Barcellos. Eureca!! Tratava-se do mesmo piloto que transportara o misterioso personagem que entrou no Brasil pela costa do Ceará. Tínhamos reencontrado nosso “Big Fish”. Na conta dos hóspedes do acidente curitibano, entre muitos telefonemas, havia ligações para a Colômbia. Indício de tráfico? De qualquer forma, Fernando Francischini 45 não o soltamos mais. Começamos a segui-lo pelo Brasil todo – Curitiba, Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo, Santa Catarina. Formamos um grande mosaico com sua movimentação, porque a cada deslocamento do traficante encontrávamos um novo endereço, uma nova empresa; na região sempre havia um colombiano, um esquema de documentos falsos e dinheiro escondido. Em todos esses locais Abadia encontrou um brasileiro para lhe dar sustentação e assumir os investimentos. Os US$ 4 milhões trazidos por Abadia na bagagem deveriam servir, pelos cálculos do traficante, para manter nos primeiros meses de Brasil o estilo de vida que levava na Colômbia. Em suas próprias palavras, para “viver como um rei”. O novo lar poderia representar um porto seguro naquele momento, quando vislumbrava muito trabalho a ser levado a cabo nos próximos meses para manter a organização funcionando. Entre outras tarefas, seria necessário estabelecer novos canais para dar vazão à cocaína que passaria a chegar da Colômbia. Também era preciso montar uma fachada respeitável para legalizar a enorme quantidade de dinheiro movimentada pelos negócios e estabelecer com pessoal brasileiro a vasta rede de operadores, tenentes, contadores, mulas e agregados que formam a base da pirâmide do narcotráfico. Gegê Assim como o marido, Yessica nunca havia sido reconhecida, por amigos e parentes, pelos dotes como estudante. Em compensação, era a terceira e mais bonita das quatro exuberantes filhas de Rafael e Martha Roja Morales, um casal colombiano de classe média que deixou a região de Sucre para fixar moradia em Cartagena, onde imaginavam encontrar melhores condições para criar as meninas. Aos 18 anos, Gegê havia sido atraída para o mundo das passarelas. Um ano depois, em 2001, ela despertou a atenção de Abadia durante um desfile, e o julgou “muito agradável”. Do namoro ao casamento, foi 46 Em nome da lei um pulo. E a vida dos Roja Morales mudou da água para o vinho. Logo a família estaria morando em uma enorme mansão de Pie de la Popa, região nobre de Cartagena. E Yessica passou a conviver com carrões importados, roupas finas e jóias, presentes do marido apaixonado. Como Abadia, a mulher também se habituou ao luxo. E logo depois da chegada ao Brasil passou a comprar mansões em vários Estados. O primeiro investimento no país foi uma mansão com cinco suítes orçada em R$ 1,5 milhão, no exclusivíssimo condomínio Moradas do Lago, em Aldeia da Serra, área residencial nobre do município de Barueri, a 32 quilômetros de São Paulo, onde ele viria a ser preso três anos depois. Fiel ao princípio de não guardar todos os ovos no mesmo cesto, Abadia logo começou a estender ramificações, implantando células pelo país, espalhando casas, empresas de fachada e sócios no negócio do narcotráfico por seis Estados do Sudeste e do Sul. Na praia de Jurerê Internacional, em Florianópolis, Abadia comprou uma mansão avaliada em R$ 2,5 milhões. Na mineira Pouso Alegre, comprou o Rancho Santa Bárbara; em Angra dos Reis, uma casa de R$ 700 mil no Condomínio Porto do Frade, equipada com uma reluzente lancha Azimuth 520 Full, avaliada em US$ 1 milhão. Em Curitiba, onde instalaria por alguns meses a sede da quadrilha, outro casarão em um condomínio de luxo no bairro Campo Comprido foi arrematado por R$ 2 milhões. No Rio Grande do Sul, comprou uma fazenda em Guaíba. A compra e manutenção dessa vasta rede imobiliária exigiam, além de dinheiro, um bando de laranjas e gente com “expertise” em corrupção de agentes legais, falsificação de documentos e lavagem do dinheiro obtido com o tráfico de drogas. Na condição de turista, Juan Carlos Abadia precisava renovar o visto a cada 90 dias. Para agilizar o processo e garantir o anonimato, o colombiano contratou os serviços de uma dupla de colaboradores em Foz do Iguaçu indicados pelo piloto André Luiz Telles Barcellos. Fernando Francischini 47 Ângelo Reinaldo Fernandes Cassol, ex-chefe da Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), ligado a uma agência de turismo na cidade de fronteira, e o ex-policial federal Adilson Soares da Silva, que trabalhava no setor de Imigração, eram os responsáveis pela “cobertura” na documentação falsa de Abadia. O traficante aproveitou-se de passaportes falsos de nacionalidade argentina e venezuelana, de vistos e prorrogação de permanência no Brasil, com aposição de carimbos, ao preço de US$ 200 por operação. Laranjas O gaúcho André Barcelos, que pilotara para Abadia o primeiro vôo sobre território brasileiro, também iria ganhar papel importante na organização criminosa. Contas de sua empresa seriam utilizadas para lavar o dinheiro da droga. A ele caberia ainda a compra de carros, imóveis e telefones, que lhe rendiam uma recompensa mensal que variava de US$ 5 mil a US$ 8 mil. Mas as compras não eram exclusividade de Barcelos. Muitos dos negócios imobiliários, por exemplo, eram feitos pelo casal Daniel Brás Maróstica e Ana Maria Stein, que em troca de US$ 3 mil mensais tornaram-se os felizes proprietários – fictícios, claro – de casas, mansões e chácaras em Aldeia da Serra, Pouso Alegre e Angra dos Reis. Com o passar dos meses, a quadrilha aumentava na medida em que Abadia estendia suas operações. A negociação de compra da mansão no sofisticado Jurerê Internacional, foi fechada por Victor Garcia Verano (Peter) e sua mulher, Aline Nunes Prado. Os dois também locavam os muitos imóveis alugados pelo colombiano em viagens pelo país, além de arregimentar laranjas para assumir a propriedade de casas, carros e empresas de fachada. Um deles foi o irmão do próprio Peter, Jaime Hernando Martinez Verano, responsável pelo aluguel da casa de Campinas, um endereço tranquilo no Condomínio Vila Verbenas, onde tempos depois o traficante esconderia uma bolada de US$ 1,4 milhão. 48 Em nome da lei Teia humana Por mais cuidadoso que fosse o “modus operandi” da quadrilha de Abadia, a movimentação de tanto dinheiro com a compra de imóveis, carros, lanchas e outros bens, e o envolvimento de táxis-aéreos, agências de turismo e empresas de fachada e, claro, as próprias características do narcotráfico, com a imensa teia humana formada das regiões produtoras até o consumidor final, não conseguiriam passar incólumes para sempre. Não demorou muito tempo para que a Polícia Federal começasse a se debruçar sobre os rastros deixados pela quadrilha. No mundo do crime, dizem que bandido sente de longe o cheiro da polícia. Abadia pareceu confirmar a regra. Para Gegê – que admitia ser a única pessoa em quem realmente confiava – ele revelou que já sentia a presença de policiais na vigilância de membros da quadrilha e em suas pegadas. A partir de então, já no final de 2005, a desenvoltura com que o traficante se movia pelo país, e por meio das células de sua rede de negócios, começaria a se tornar coisa do passado. De Curitiba, onde se sentia seguro a ponto de marcar reuniões com os comparsas em movimentadas praças de alimentação de shopping-centers, Abadia decidiu por uma apressada mudança para Florianópolis. As saídas do casal rarearam. Gegê já não tinha mais por onde desfilar sua coleção de 260 pares de sapatos e 60 óculos de sol. Nem Chupeta podia exibir os 170 pares de sapatos masculinos ou os mais de 100 relógios – de marcas como Bulgari, Rolex, Breitling e Tag Heuer – avaliados em US$ 2 milhões. As raras escapadas tinham como destino, invariavelmente, clínicas de cirurgia plástica. Reclusão De volta à mansão de Aldeia da Serra, em São Paulo, o casal de colombianos passou a viver um cotidiano de reclusão. No caso de Abadia, isso significava tempo de sobra para dedicar-se a duas de suas paixões: musculação Fernando Francischini 49 Em cada casa, Abadia mantinha uma academia de ginástica com equipamentos profissionais e filmes, muitos filmes. Na nova casa, só a academia da marca Reebok era avaliada em US$ 100 mil, com toda sorte de equipamentos de ginástica. Pela mansão também foram espalhados mais de vinte aparelhos de TV, plasma e LCD, de todas as marcas e tamanhos. Havia um, moderníssimo, até no quarto da empregada. Apesar da vida reclusa e da apreensão com a movimentação policial, os negócios de Abadia continuavam de vento em popa. Estimativas sobre os valores movimentados pelo tráfico de drogas são sempre aproximadas, porque seguir o dinheiro pelos intrincados meandros do submundo do crime e da sua legalização, da lavagem por empresas de fachada ou em contas em paraísos fiscais, é tarefa que envolve muitos especialistas em governos e instituições. Muitas vezes sem sucesso. De qualquer forma, calcula-se que, no seu melhor período, a quadrilha de Juan Carlos Abadia chegou a movimentar, na América do Sul, perto de US$ 70 milhões mensais com o tráfico de cocaína. A manutenção da quadrilha também custava caro. Abadia queixou-se, certa vez, a um de seus contadores que os custos operacionais nos vários países em que operava, por volta de 2005, estavam na casa dos US$ 5 milhões por mês. Afinal, trata-se de um negócio altamente organizado e com ramificações por diversos países. Sem contar que o silêncio custa caro. Muito caro. 50 Em nome da lei A operação O nome da operação que prendeu o traficante colombiano nasceu de uma brincadeira interna do grupo que começou as investigações. Éramos mesmo esfarrapados. O chute inicial na operação foi dado na sede antiga da Polícia Federal em Curitiba, na Rua Ubaldino do Amaral. Num porão de seis metros quadrados trabalhavam cinco pessoas que disputavam dois computadores: três agentes e um escrivão, além do delegado. A partir dessa piada caseira, adotamos o nome da Guerra dos Farrapos – 1835-1845 (também chamada Revolução Farroupilha, a rebelião gaúcha foi comandada por Bento Gonçalves e chegou a declarar independência em relação ao governo imperial. Os revoltosos se inspiraram na então recente independência conquistada pelo Uruguai e tiveram o apoio do italiano Giuseppe Garibaldi, que declarou a República Juliana, em Laguna, Santa Catarina, e junto com Anita Garibaldi lutaria em seguida pela unificação da Itália). 51 Mas a relação com a Guerra dos Farrapos só apareceu quando fomos apresentar a operação para o então diretor da Polícia Federal, Paulo Lacerda, e para o superintendente em São Paulo, Jaber Saadi. Éramos esfarrapados, mas não podíamos dizer que o nome era uma alusão a nossas condições de trabalho. Aí dissemos que a escolha se deu porque Abadia ia muito para o Rio Grande do Sul e nos sentíamos revolucionários, empenhados em mudar o combate ao tráfico. O diretor e o superintendente acharam ótima a história. A importância da operação cresceu à medida em que se foi revelando a atuação de Abadia no Brasil e a transformação do traficante em nosso “Big Fish”, ainda sem nome porém. Passamos a receber apoio de toda a estrutura da Polícia Federal. Operações deste tipo obtêm prioridade sobre outras investigações. Abrem as portas de todos os departamentos da polícia em todo o país. Fui transferido para São Paulo para estar mais perto do olho do furacão, uma vez que era lá a base do nosso peixão. Assumi a Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal de São Paulo, coordenando as delegacias que cuidam de drogas no Estado, para poder montar uma base e levar adiante a operação. Até então, em Curitiba, eu era coordenador de operações especiais de fronteira da Região Sul. Passamos por uma mudança fantástica: num dia estávamos em cinco num porão e no outro éramos prioridade para a Polícia Federal. A transferência para São Paulo aconteceu por tratar-se de uma situação que exigia controle rígido, pois havia corrupção na polícia local. A partir do que apuramos, o Ministério Público de São Paulo processou dois delegados da Polícia Civil paulista, um deles o próprio diretor do Denarc (Departamento de Investigações sobre Narcóticos); e seis investigadores da Polícia Civil. Também foram presos e condenados um agente da Polícia Federal em Foz do Iguaçu, que ganhava dinheiro de Abadia para carimbar os passaportes falsos, e um suboficial da Força Aérea Brasileira que comandava o aeroporto de Foz e dava cobertura aos vôos de André Barcellos. 52 Em nome da lei Em troca, Abadia comprava as passagens aéreas que precisava na agência de viagens da mulher desse suboficial. Foi uma verdadeira limpeza em São Paulo. Alguns já foram demitidos e os condenados pegaram, em média, 10 anos de reclusão. Os delegados respondem ao processo afastados do cargo. E os dois baseados em Foz do Iguaçu foram condenados junto com Abadia, por corrupção. Ao fim de investigações paralelas, a Corregedoria da Polícia Civil de São Paulo indiciou outras 20 pessoas, sendo 17 policiais e três informantes da polícia, os chamados gansos. Um dos policiais foi acusado de sequestrar o piloto André Barcellos e exigir veículos importados como resgate. Com os alvos da Operação Farrapos identificados, as diligências se intensificaram e obtivemos autorização judicial para quebrar os sigilos dos investigados. Agora já contávamos com várias equipes. Todos os nomes que apareciam nas investigações eram vigiados 24 horas por dia. Ficamos sabendo de tudo sobre Abadia e seus asseclas, menos os nomes reais. O esquema de Abadia era bastante complexo e muito organizado. O grupo usava tecnologia de comunicação internacional de difícil interceptação, programas de conversa instantânea via computador tipo MSN e Skype. Tinha conhecimentos para burlar técnicas de investigação policial, como o uso de celulares em circuito fechado de pessoas com constante mudança de números e aparelhos, e comunicação via telefones públicos. A quadrilha tinha grande facilidade para obter documentos falsos, adquirir bens em nome de terceiros e sempre demonstrou ter muitos recursos financeiros. Nunca economizou na montagem da estratégia de vida e de fuga de Abadia, comprando veículos caros e motos de grande cilindrada, alugando mansões e apartamentos de alto luxo, e até adquirindo fazendas. Fernando Francischini 53 Outros frutos A Operação Farrapos deu ainda muitos frutos depois da prisão de Chupeta. Mesmo antes havia permitido a localização das três casas na Colômbia. E logo depois, também na Colômbia, foi preso outro chefão do Cartel del Norte del Valle, Diego Montoya, conhecido como Don Diego, o senhor da guerra. A polícia o prendeu numa casa abandonada, com base em informações fornecidas por Abadia. A cúpula do cartel estava sendo desmantelada. Luis Hernando Gómez Bustamante, o Rasguño (“Arranhão”), havia sido capturado em Cuba em julho de 2004. A prisão de Abadia desencadeou prisões também em outros lugares do mundo. A DEA, até hoje, cita a Operação Farrapos nos relatórios internacionais como referência, porque não se tratou apenas da prisão de alguém que passava na rua, com um mandado de prisão. Teve a inteligência de identificar os membros da quadrilha, mapear os bens e reunir informações de muitos países. 54 Em nome da lei Fernando Francischini 55 56 Em nome da lei Às vésperas do Ano Novo de 2007, Abadia tentou fazer um acordo de delação premiada, porque tinha medo de morrer nos presídios brasileiros. Em troca da rápida extradição, propôs entregar US$ 35 milhões em notas de dólares e euros ainda escondidos no Brasil, revelar o nome de mais três comparsas com mandado de prisão expedido pelos Estados Unidos; portanto, seriam peixes grandes. E daria o nome de um brasileiro que não fora preso, que era o encarregado pelos aviões. Seria um ótimo acordo para nós em troca da extradição, que seria concedida de qualquer maneira, mais cedo ou mais tarde. O traficante reivindicou também o abrandamento da pena da mulher, Yessica. O juiz de primeira instância não levou em conta o pedido, mas juntou o documento ao processo de extradição. O Supremo Tribunal Federal (STF) e a Secretaria Nacional de Justiça ainda poderiam ter concordado com a negociação no momento em que autorizaram a extradição. Mas ignoraram totalmente os termos. Por conta da lei brasileira, os ministros da Corte concederam a extradição com a condição de que o governo norte-americano assumisse o compromisso de converter uma eventual pena perpétua ou mesmo de morte em uma pena máxima de 30 anos. Outra condição era o desconto, na pena, do tempo já cumprido no Brasil. Isso é o que prevê a legislação brasileira e também jurisprudência formada no STF. Assim, o governo brasileiro está impedido juridicamente de extraditar qualquer criminoso para um país em que ele seja condenado à pena de morte ou à prisão perpétua. O STF autorizou a extradição do traficante em 13 de março de 2008. Mas só soubemos do final do processo pela imprensa. Numa sexta-feira à tarde, um repórter telefonou contando que Abadia seria embarcado para os Estados Unidos no dia seguinte. O secretário nacional de Justiça deu parecer favorável à extradição sem levar em consideração o que podia ser obtido com o acordo negociado. Perdemos o dinheiro, três traficantes internacionais e um brasileiro. Que pena! Espero que o “esquecimento” brasileiro seja corrigido com informações obtidas nos Estados Unidos. Fernando Francischini 57 Nós abrimos mão dos US$ 5 milhões oferecidos como recompensa, porque a PF é um órgão constitucional do governo brasileiro e tem por obrigação prender traficantes e criminosos internacionais. Pedimos então que os Estados Unidos incluíssem esse valor no acordo que existe entre os dois países, que prevê o repasse de recursos para a PF. No começo de 2009 soubemos de outro fato também muito mal explicado. Um homem preso pela posse de 60 comprimidos de ecstasy estava encarcerado já há quase um ano no Centro de Detenção Provisória Pinheiros 2, em São Paulo, e só então foi levado diante de um juiz. Não havia relação com a nossa operação, mas soubemos que o preso esteve sob os cuidados do Denarc em São Paulo. O tal homem que se dizia mineiro foi levado à presença do juiz possivelmente por uma equipe policial que não tinha conhecimento de algum acordo. Quando o juiz lhe perguntou o nome, a resposta soou num forte sotaque espanhol: “Mi nombre es Manoel de Oliveira Ortiz, soy mineiro de Borda da Mata”. O juiz, é claro, desconfiou e pediu que a Interpol investigasse o caso. Soube-se então que se tratava de Ramon Manuel Yepes Penagos, conhecido como El Negro, que também usava a identidade de Carlos Ruiz Santamaría. El Negro revelou ao juiz ter pago R$ 1 milhão em propinas a policiais para manter em segredo a identidade colombiana. Ele era o contador de Juan Carlos Abadia que estava cuidando dos US$ 35 milhões oferecidos pelo traficante na proposta de delação premiada e era acusado pelo envio de 13 toneladas de cocaína para a Espanha. Ele contou que depois da extradição de Abadia, um grupo de colombianos foi contratado para levar o dinheiro, em notas de euros, de volta à Colômbia, para entregar de volta ao cartel. Cada pessoa, chamada de mula, levava E$ 1,5 milhão em pacotes de E$ 50 mil grudados ao corpo. Apenas duas mulas foram presas ao chegarem ao aeroporto de Bogotá. 58 Em nome da lei A condenação Por formação de quadrilha, corrupção ativa, lavagem de dinheiro e uso de documentos falsos, Juan Carlos Ramírez Abadia foi condenado a 30 anos de reclusão e ao pagamento de R$ 4,3 milhões. Sua mulher, Yessica Paola Roja Morales, que está presa em São Paulo, recebeu a condenação de 11 anos de reclusão e multa de R$ 1,37 milhão por falsificação, uso de documentos falsos, lavagem de dinheiro e associação ao tráfico. Outras dez pessoas também foram condenadas pelo juiz Fausto Martin de Sanctis, da 6ª Vara Federal Criminal de São Paulo, que era contrário à extradição do traficante. O piloto André Luiz Telles Barcellos recebeu a pena de 23,6 anos de reclusão e pagamento de R$ 2,4 milhões; Daniel Brás Maróstica e Ana Maria Stein foram condenados a 6,3 anos de reclusão, mais o pagamento de R$ 535,8 mil. Victor Garcia Verano e Aline Nunes Prado receberam a pena de 7,6 anos de reclusão, mais o pagamento de R$ 644,1 mil; Jaime Hernando Martinez Verano também foi condenado a reclusão por 7,6 anos e R$ 42,94 mil de multa. A condenação atingiu ainda Ângelo Reinaldo Fernandes Cassol com a pena de 9,2 anos de reclusão e pagamento de R$ 19 mil; Adilson Soares da Silva à pena de 9,4 anos de reclusão e pagamento de R$19,38 mil; Eliseo Almeida Machado a três anos de reclusão; e Antonio Marcos Ayres Fonseca a quatro anos de reclusão. Meio ano depois, caía na Colômbia o quarto e último chefão do Cartel del Valle del Norte. Em fevereiro de 2008, Wilber Varela, o Jabón, por quem o governo dos Estados Unidos também oferecia US$ 5 milhões, foi assassinado na Venezuela. O corpo foi encontrado crivado de balas num hotel próximo à cidade de Mérida. O capo era procurado por seis acusações de narcotráfico e teria sido executado por alguns de seus próprios homens, a mando de Carlos Mario Jimenez, o Macaco, um dos líderes das forças paramilitares colombianas. A partir do desmantelamento do Cartel del Valle del Norte, pequenos Fernando Francischini 59 traficantes tomaram conta do narcotráfico na Colômbia. Não se formou outro grande cartel, mas no fundo a situação ainda é a mesma. Entre os “pequenos” chefes que, segundo a polícia colombiana, antes pertenciam ao segundo escalão do Norte del Valle, estão Daniel Barrera (El Loco); Carlos Alberto Rentería (Beto Rentería); Néstor Ramón Caro Chaparro (Felipe); Daniel Rendón Herrera (Don Mario), Fredy Rendón Herrera (El Alemán), Pedro Guerrero Castillo, o Cuchillo; Luis Henrique Calle Serna (Comba); e Diego Pérez Henao (Diego Rastrojo). Hoje, os grandes cartéis são mexicanos, com base principalmente em Ciudad Juárez, na fronteira com os Estados Unidos, na região de El Paso (Texas). Autoridades mexicanas consideram Ciudad Juárez uma das mais violentas cidades do mundo, com 2,7 mil assassinatos ligados ao tráfico de drogas na cidade apenas em 2009. Bastante reduzido, o grupo de Abadia encontrou um novo chefe apenas uma semana depois da prisão do capo. Os grupos daquela região têm fortes ligações com os cartéis mexicanos, que assumiram o papel antes desempenhado pelos colombianos. São os novos “barões” do narcotráfico, com tudo que isso implica em venda de drogas em praticamente todo o mundo; e em barbárie e crueldade. E a Colômbia segue sendo o maior produtor de cocaína do planeta. 60 Em nome da lei A história Juan Carlos Ramírez Abadia tinha 44 anos quando foi preso em São Paulo na Operação Farrapos. Sua vida de crimes havia começado aos 19 anos, quando a paixão por cavalos o levou a trabalhar no haras de Ivan Urdinola Grajales, empresário colombiano instalado em Cali criador puros-sangues árabes e ingleses. (Mais tarde, Urdinola seria assassinado com veneno na prisão). A localização do haras não era por acaso. A verdadeira fonte de renda do patrão de Abadia era o tráfico de drogas. Nessa época, Abadia conheceu também os irmãos Miguel e Gilberto Rodríguez Orejuela, de quem se tornou discípulo aplicado. Os irmãos eram os barões das drogas do Cartel de Cali ao lado de José Santacruz Lodoño. O cartel controlava as plantações na região do Vale do Rio Cauca, produzia, distribuía e vendia a droga. Depois da queda do Cartel de Medellín, com a morte de Pablo Escobar, o Cartel de Cali aumentara seu poder e chegou a controlar 80% da produ- 61 ção e exportação de cocaína da Colômbia, faturando US$ 7 bilhões por ano. O cartel, porém, não demorou a ruir por conta da nova política de enfrentamento do governo colombiano com apoio dos Estados Unidos. Abadia tinha posição de pouca importância no Cartel de Cali e conseguiu sobreviver à débâcle. Transferiu-se então para o Cartel del Norte del Valle, que florescia mais ao Norte do Vale do Rio Cauca. Ali, Abadia cresceu rapidamente e granjeou fama internacional pela grande capacidade de organização da estrutura do tráfico e pelos métodos violentos que usava, servindo-se de crueldade jamais imaginada antes. Ele foi responsável por um verdadeiro banho de sangue. Ao contrário dos antigos cartéis, no Norte del Valle ocorreram massacres internos e mortes isoladas atribuídas a disputas no seio da organização. Questões internas eram resolvidas à bala e eram frequentes os assassinatos entre parceiros. Apesar da prática local da violência ser comum, Abadia conseguiu levá-la a extremos. A polícia da Colômbia contabiliza em milhares as mortes daquele período – os anos 90/2000. Foi o perigo interno crescente que teria levado Abadia a procurar um novo endereço para reerguer seu império de drogas e outros crimes. O traficante havia sido preso antes, na Colômbia, quando cumpriu parte da pena de 24 anos de prisão. Naquela ocasião, Abadia se entregara à polícia junto com o amigo Juan Carlos Ortiz Escobar, conhecido por Cuchilla, para beneficiar-se de leis que ofereciam redução de pena a quem se entregasse e se declarasse culpado. Naquela época, Abadia confessou à polícia colombiana ter enviado 30 toneladas de cocaína aos Estados Unidos. O relatório da Interpol falava em 500 mil quilos que teriam entrado nos país passando pelo México. Mais tarde, o montante do contrabando de droga feito por Juan Carlos Abadia foi calculado em mil toneladas. Os dois parceiros no crime cumpriram quatro anos da pena e foram libertados em 2000. Poucos dias depois Cuchilla foi assassinado. O 62 Em nome da lei crime foi atribuído a Wilber Varela, o novo parceiro de Chupeta. Outro assassinato interno com muitas sombras em sua explicação. Já no Cartel del Norte del Valle, Abadia fez carreira rápida, voltado para o mercado norte-americano, estabelecendo as bases para distribuição de cocaína e heroína em Nova York. Outros dois chefões, Luis Hernando Gómez Bustamante, o Rasguño (Arranhão), e Wilber Varela, o Jabón, se dedicavam ao mercado europeu. A divisão de negócios e do poder Abadia: rotina de cirurgias plásticas e tatuagens Fernando Francischini 63 Marcelo Javier Unzue A última identificação falsa seguia um modelo diferente de cartéis tradicionais onde um único e poderoso capo reinava sobre toda a organização. Autoridades avaliam, no entanto, que a divisão de poder muito contribuiu para minar o novo cartel. Chupeta ficou apenas seis meses em liberdade. Teve que voltar à clandestinidade quando uma corte de Washington emitiu ordem de captura contra ele. E ofereceu US$ 5 milhões em recompensa a quem desse informações que levassem à sua prisão. A acusação citava narcotráfico no Colorado, em 1994; e no Distrito Leste de Nova York em 1995 e em 2004. Na divulgação do rosto e de informações sobre o traficante procurado, a DEA listou uma série de apelidos usados por Abadia, além de Chupeta, como era mais conhecido na Colômbia: Cien, Don Augusto, El Patron, Gustavo Ortiz e Charlie Pareja. 64 Em nome da lei Na época, ao se sentir cercado, Chupeta usou de um estratagema sórdido: espalhou o boato da própria morte. Com isso imaginava tirar a polícia de seu encalço, talvez por um bom tempo. Abadia chegou a usar um oficial do exército colombiano recrutado pelo chefão Diego Montoya, Don Diego, que passou informações de onde poderia ser encontrado o suposto cadáver. Abadia também esteve perto de ser capturado em 2006, mas escapou por pouco em função de um deslize da polícia argentina. Depois, foi muito procurado no Paraguai, no Uruguai e, por fim, informes davam conta que Abadia poderia estar em Tijuana (México). Chupeta tinha bons contatos com bandidos mexicanos desde os tempos do Cartel Cali. Por indicação de um dos chefões, Hélmer Herrera, o Pacho, Abadia havia feito os primeiros contatos com os traficantes mexicanos. Pacho foi assassinado em outubro de 1998 em meio a uma sangrenta guerra entre máfias. Oportunidades para seguir outra vida, no entanto, não faltaram ao jovem Abadia, nascido em 16 de fevereiro de 1963, em Palmira, na Colômbia. Foi um jovem de classe média, sem problemas financeiros, formado em engenharia numa universidade de Bogotá, mas conhecido por ser um mau estudante. Ou um estudante pouco dedicado. O problema é que o exemplo estava em casa. O que talvez explique como um homem apelidado Chupeta tenha conseguido alcançar posição de comando no tráfico internacional num mercado disputado não apenas pelos demais cartéis colombianos, mas também pela Cosa Nostra italiana, os chineses e as máfias russas. Juan Carlos Ramírez Abadia é o único filho de Osmar Ramírez e Carmen Alicia Abadia, de classe média, que também faziam parte da organização criminosa. Eles atuavam como testas de ferro do narcotráfico, escondendo-se sob a fachada de um negócio de medicamentos, a DisDrogas. O casal pretendia que o filho assumisse os negócios da família, mas aquilo era muito modesto para o ambicioso Abadia. Fernando Francischini 65 Abadia é mesmo engenhoso e uma inteligência usada para o mal. Chegou a idealizar pequenos submarinos para fazer a travessia entre a Colômbia e o México. Apesar de rudimentares, os submarinos transportavam quatro toneladas de drogas. Navegando a cinco metros da superfície, os submarinos chegavam à costa mexicana sem serem descobertos pelas patrulhas marítimas. A primeira viagem do submarino teve no comando o próprio Abadia, que acabou por desenvolver uma pequena frota. Cauca A ocupação habitacional do Vale do Cauca é bastante recente – data do final do século 19. Interessado em tomar posse efetiva e marcar presença naquela parte do território da Colômbia, o governo incentivou a migração. E para lá foram presidiários beneficiados por redução de pena para trabalhar a terra; outros presidiários foram levados para fazer trabalhos forçados e acabaram ficando por lá como agricultores. O tráfico de drogas começou cedo e a região ficou marcada pela violência registrada desde o início do século 20. A lei do silêncio, os sequestros e mortes de jornalistas passaram a fazer parte da rotina local. Os chefões Diego Leon Montoya, Luís Hernando Gómez e Wilber Varela já haviam se deslocado mais para o Norte daquela região quando Juan Carlos Ramírez Abadia se juntou a eles, formando a cúpula do Cartel del Norte del Valle. O cartel se movimentava depois da queda do Cartel de Cali. Mas encontrou já instalados pequenos cartéis regionais que disputavam entre si o controle do comércio e das rotas de envio de droga desprezadas pelos chefões do narcotráfico. Assim, a violência se intensificou ainda mais. O novo cartel chegava com vantagens, pois já contava com a facilidade do domínio de rotas e contatos internacionais de há muito usados por antigos barões da droga. E os novos chefões buscaram arduamente permanecer no anonimato. Perceberam que publicidade era contrapro- 66 Em nome da lei ducente. Não queriam repetir os erros de Pablo Escobar, por exemplo, o primeiro chefão a obter fama internacional. Escobar fazia o tipo do bandido romântico, gostava de ter Medellín a seus pés, o que conseguia por meio da distribuição de dinheiro e da assistência à comunidade de uma forma que ela nunca fora assistida pelo governo. Ele foi quase um herói em Medellín. Mas os quatro chefões do Norte del Valle lutavam pela tranquilidade do anonimato. Quanto menos aparecessem, melhor. Mas a ambição é mais forte. De acordo com as autoridades colombianas, as disputas entre os chefões do Cartel del Norte del Valle começaram com os planos de Varela para afastar Don Diego e Rasguño. Um detalhe: Varela já era acusado de assassinar Cuchilla, o amigo de Abadia, provavelmente com a anuência deste. A guerra entre as quadrilhas aumentou e, a partir de 2000, envolveria também grupos paramilitares em uma onda de violência inédita no Norte do Valle del Cauca. O banho de sangue assumiu proporções épicas com a contribuição de Chupeta. Abadia trouxe ao Brasil sua terceira mulher, Yessica Paola Roja Morales, que ele conheceu em 2001 em Cartagena, quando ela tinha 19 anos e trabalhava como modelo. Os dois passaram muito tempo na Venezuela antes de virem para o Brasil. O casal jamais viajava junto; seguiam sempre rotas diferentes. Apesar disso, Abadia disse em seu depoimento que Yessica não sabia do pedido de extradição que pesava sobre ele, pois, “na Colômbia, não explicamos esses problemas para mulheres porque elas ficam nervosas!” Fernando Francischini 67 A investigação O trabalho de um delegado da Polícia Federal está longe de se assemelhar aos famosos personagens da literatura policial. O charme do elegante Arsène Lupin certamente foi desenhado para o encanto dos leitores; um Sherlock Holmes, altamente racional e dedutivo, porém, se aproxima mais da realidade. Mas um Sherlock acrescido de um James Bond tecnológico, capaz de usar uma imensa gama de parafernálias eletrônicas hoje à disposição das investigações. Um caso como o que resultou na prisão de Juan Carlos Ramírez Abadia só foi possível com o uso de meios como a vigilância eletrônica, equipamentos para comparação antropométrica e para desvendar mensagens criptografadas ou em sistema de Camouflage; interceptação telefônica e na internet; e análise de Extratos e ERBs – Estações Radio Base (antenas de telefonia celular). Na recuperação de altas somas em dinheiro e dos muitos bens do tra- 69 ficante foi usado equipamento para escanear paredes, por exemplo, trazido pela equipe norte-americana que se juntou à Polícia Federal brasileira, num esquema de cooperação internacional que incluiu também a Espanha, Argentina, Uruguai e Colômbia. Mas que ninguém se iluda sobre aspecto aventuresco de uma investigação. Esses casos costumam levar anos para serem deslindados e, mais que tudo, exigem paciência de Jó aos policiais. É preciso ter controle absoluto da ansiedade e da tentação do impulso irracional. “Qual cão de caçador, sagaz e ardido”, descreveu Luiz de Camões na obra “Os Lusíadas”. Pois é como um cão farejador, arguto e capaz de perceber com rapidez as coisas mais sutis, que a Polícia Federal chega a bandidos internacionais da estatura de Abadia. No final, porém, também resumem análises interessantes, acontecimentos curiosos e, principalmente, raciocínio frio com deduções precisas, decorrentes da experiência e da mais aguda observação do gênero humano. Antes de tudo, é preciso ter método. Os crimes não mudam desde que o mundo é mundo; o que muda é a forma de cometê-los. A tecnologia apenas criou novas armas para que fossem cometidos velhos crimes. Os crimes, muitas vezes perpetrados “de longe”, pela internet ou por outra via oferecida pela parafernália eletrônica disponível nos dias de hoje, exigem um tipo de detetive melhor preparado tecnicamente. A solução, no entanto, ainda depende do raciocínio lógico, dedutivo, cheio de argúcia e todos os demais adjetivos que se apliquem a quem é capaz de desatar nós de crimes cibernéticos complicados ou intrigas das mais sofisticadas. E da interpretação de pequenos sinais. Como antes. E como antes ainda é verdadeiro o conselho de Sherlock Holmes ao amigo Watson: “Não despreze absolutamente nada, por mais insignificante que pareça”. O lado pesado de uma investigação, como a do tráfico internacional de drogas, é a necessidade de sangue frio para entrar em contato com um mundo de barbárie. Um espaço cheio de ramificações com linguagem e 70 Em nome da lei códigos de conduta próprios, onde a simplificação maniqueísta do bem e do mal, que grassa na sociedade de hoje, encontra sua maior expressão. A opção de Juan Carlos Abadia pelo Brasil para implantar um novo centro de operações não se deu por acaso. Foi feita após consultas a diversos amigos do submundo do crime, dos quais muitos já operavam no país. As vantagens, segundo eles, eram muitas: as dimensões do território permitiam a montagem de um sistema de células de negócios – modelo adotado pelo capo colombiano – em cidades bem distantes entre si, mas dotadas de eficiente estrutura de comunicações. A geografia também ajudava. Com 17 mil quilômetros de fronteira seca, o Brasil faz vizinhança com todos os países produtores de drogas da América Latina – Paraguai, Bolívia, Peru e a própria Colômbia. Melhor ainda para o negócio dos narcotraficantes, essas fronteiras são esparsamente povoadas e, por isso mesmo, pouco policiadas. Além disso, como a maior economia do continente, o Brasil mantém intenso intercâmbio de carga e pessoas com os Estados Unidos e a Europa – os principais centros consumidores de drogas do planeta. As informações recebidas por Abadia batiam com os dados da Drug Enforcement Administration (DEA), a agência de combate às drogas do governo dos Estados Unidos, sobre o mercado brasileiro para drogas ilícitas. Nas estatísticas dos norte-americanos, o país é um importante corredor do narcotráfico para o abastecimento do continente europeu e, em menor escala, da América do Norte. O volume de drogas que transita pelo território brasileiro, aliado ao tamanho do seu mercado consumidor, transformou o Brasil no segundo maior usuário mundial de cocaína, só atrás dos Estados Unidos. No último relatório sobre o Brasil, divulgado em 2009, a DEA reconhece que o país reforçou a cooperação com os Estados Unidos e seus vizinhos no combate ao tráfico de drogas. Apesar disso, alerta que os esforços para controlar o tráfico vindo da Bolívia, a principal fonte de cocaína para o Brasil, ainda eram limitados: Fernando Francischini 71 O Brasil é um importante país de trânsito para o hidrocloreto de cocaína (HCl) e um destino significativo para base de cocaína e outros derivados de cocaína, por exemplo drogas assemelhadas ao crack consumidas localmente.(...) O HCl que entra no Brasil muitas vezes é reembarcado para a Europa via África. Ainda que o Brasil cultive pequenas quantidades de maconha de baixa qualidade, a maior parte da maconha de potência mais alta consumida no país vem do Paraguai. Para maior preocupação da sociedade, o relatório aponta a participação de quadrilhas brasileiras no negócio do tráfico: As autoridades brasileiras constataram envolvimento crescente do PCC, em São Paulo, e do CV, no Rio de Janeiro, em tráfico de armas e narcóticos. Essas gangues criminosas têm uma presença internacional cada vez maior em lugares como Bolívia, Paraguai e possivelmente Portugal, bem como elos internacionais crescentes com traficantes colombianos e mexicanos. Na avaliação dos norte-americanos, as dimensões do território brasileiro tornam o país dependente de operações conjuntas, unindo os serviços de informações de diferentes países, para controlar o tráfico internacional de drogas e outras mercadorias ilícitas. Carências que levaram o Brasil a aderir à Convenção da ONU sobre as Drogas em 1991. O país já era signatário da Convenção contra o Crime Organizado Internacional da ONU, de 1971, bem como de seus três protocolos, e da Convenção da ONU Contra a Corrupção e da Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas. O Brasil é signatário, ainda, da Convenção Interamericana Contra a Corrupção, da Convenção Interamericana de Assistência Mútua em Assuntos Criminais, da Convenção Interamericana Contra o Terrorismo e da Convenção Interamericana Contra o Tráfico de Armas de Fogo Ilegais. Acordos bilaterais baseados na Constituição de 1988 formam a base para a cooperação no combate a narcóticos entre o Brasil e os Estados 72 Em nome da lei Unidos, e uma nova carta de acordo (LOA) foi assinada em agosto de 2008. Estados Unidos e Brasil assinaram também um tratado bilateral de assistência legal mútua (MLAT), em 2001, e um acordo de assistência mútua em questões alfandegárias, em 2002. Por meio dele, essencialmente, os dois governos se comprometem a trocar informações para ajudar a prevenir, investigar e reprimir quaisquer violações das leis aplicáveis no Brasil e nos Estados Unidos: Os programas bilaterais entre os governos do Brasil e dos Estados Unidos em 2008 incluíram treinamento básico e avançado de combate a narcóticos a agentes do Departamento de Polícia Federal (DPF) e outras forças policiais brasileiras; apoio a programas expandidos de detecção e interdição de narcóticos nos portos e aeroportos brasileiros; elevação do número e reforço da capacidade das Unidades Especiais de Investigação do DPF e garantir um papel crescente em suas operações para a polícia dos países colaboradores na região; auxiliar autoridades estaduais e locais no combate às gangues criminosas que controlam os narcóticos e o tráfico de armas em suas jurisdições; ajudar as autoridades brasileiras a combater a lavagem de dinheiro e outros crimes financeiros; e elevar o apoio do governo norte-americano ao governo e ONGs brasileiros para programas de prevenção e tratamento. O Brasil também tem diversos acordos de controle de narcóticos ou arranjos semelhantes com os vizinhos sul-americanos, com países europeus (especialmente Portugal, Espanha e Reino Unido) e com a África do Sul. E coopera, rotineiramente, com outros países quanto a crimes relacionados a narcóticos, além de participar do Programa de Controle de Drogas da ONU (UNDCP) e da Comissão de Controle de Abusos e Combate às Drogas da Organização dos Estados Americanos (OEA). Apesar de elogiar os esforços em cooperar com seus vizinhos, o relatório da DEA também reserva críticas, ainda que injustas, ao papel do Judiciário brasileiro, por considerá-lo excessivamente brando com os consumidores de entorpecentes: Fernando Francischini 73 O sistema judicial (brasileiro) tem autoridade para tomar posse de ativos (apreendidos) e a lei brasileira permite que esses ativos sejam compartilhados com outros países. Mas a lei brasileira de combate às drogas, de 2006, que proíbe e penaliza o cultivo e o tráfico de drogas ilícitas, também oferece considerável latitude de interpretação ao Judiciário, que virtualmente descriminalizou a simples posse e consumo de pequenas quantidades de drogas. O relatório dos norte-americanos cita também dados do Departamento da Polícia Federal, situando na região Nordeste boa parte da produção brasileira de maconha, e que quantidades limitadas de base de cocaína, de Ecstasy e de produtos semelhantes ao crack processados no país se destinam primordialmente ao consumo interno. Mas lembra, ainda com dados da Polícia Federal, que o Brasil é o maior fabricante de produtos químicos da América do Sul. A existência de mais de 25 mil companhias registradas para trabalhar com materiais químicos facilita o desvio de precursores químicos e/ou narcóticos. O DPF executou diversas operações de repressão ao uso ilegal de produtos químicos em 2008, incluindo a apreensão de 20 toneladas em diversas empresas de Pernambuco, em setembro de 2008. O DPF também desmantelou uma organização criminosa em Minas Gerais responsável pelo desvio de toneladas de produtos químicos. Oito suspeitos foram detidos, com base em 13 mandados de busca. Adicionalmente, o DPF apreendeu e desmantelou o primeiro laboratório de ecstasy que viria a ser fechado no Brasil, infelizmente localizado na cidade de Pinhais, no Paraná. A Polícia Federal mapeou o fluxo de drogas pelo território brasileiro. A cocaína que chega da Bolívia e a maconha vinda do Paraguai servem basicamente para consumo interno, enquanto que a cocaína de mais alta qualidade, da Colômbia e do Peru, passa pelo Brasil para ser exportada à Europa, via África. A droga parte de navios pelos portos de Suape (perto de Recife), Salvador e outros terminais do Nordeste, mas tam74 Em nome da lei bém pelo Porto de Santos, o maior do país, pelos portos do Paraná e de Santa Catarina. Volumes significativos são contrabandeados por meio de transporte pessoal (mulas), em vôos internacionais originários principalmente em São Paulo e no Rio de Janeiro. Devido à Lei do Abate, que a partir de outubro de 2004, permite o uso de força letal contra aviões não identificados, os narcotraficantes passaram a confiar menos em vôos clandestinos de longa distância sobre o Brasil. Apesar disso, a despeito do avanço na cooperação brasileira com países vizinhos e no aumento do número de centros conjuntos de informações ( JICs) operando em pontos estratégicos ao longo da fronteira brasileira, os traficantes de narcóticos continuam a explorar essas regiões, vastas, pouco habitadas e difíceis de controlar, especialmente no Mato Grosso e Mato Grosso do Sul, que fazem fronteira com a Bolívia, e no Paraná, separado do Paraguai pelo Rio Paraná e pelo lago da Hidrelétrica de Itaipu. O mesmo relatório ainda aponta: As drogas vêm fluindo em quantidades crescentes da Bolívia para o Mato Grosso e o Mato Grosso do Sul e para a cidade de Guaíra, no Paraná, se tornou um dos principais pontos de entrada de armas, munições e drogas no Brasil. Gangues organizadas como o PCC e o CV operam abertamente na cidade e um comitê de investigação estabelecido pelo Congresso brasileiro reportou que o PCC está conduzindo vendas de armas abertamente na área. O DPF não dispõe de recursos para controlar com eficiência as vastas regiões fronteiriças brasileiras, e outras agências policiais não trataram devidamente desse problema. As Unidades de Investigações Especiais (SIUs) do governo brasileiro e outras operações de inteligência semelhantes ajudaram a melhorar um pouco a situação na região Noroeste e propiciaram grandes melhoras aos esforços nacionais de interdição. As SIUs agora são formadas rotineiramente por agentes do DPF e da polícia de combate a narcóticos (CN) dos aliados que cooperam com esses esforços, o que dá às unidades a capacidade de antecipar e interditar embarques significativos. Fernando Francischini 75 Mas o número de SIUs e sua capacidade operacional vem sendo insuficientes para acompanhar o ritmo de avanço do tráfico de drogas. Embora as atividades de combate às drogas no Brasil sejam executadas por todos os níveis de governo, os sistemas confiáveis de coleta de dados e as melhores estatísticas sobre apreensões são as mantidas pela Polícia Federal. Em resumo, na visão de Juan Carlos Abadia, o território brasileiro era gigantesco, com fronteiras imensas e mal vigiadas, um grande mercado consumidor de drogas e portos e aeroportos com tráfego intenso para os Estados Unidos, a África e o continente europeu. Tudo o que o narcotraficante poderia desejar para estabelecer a nova sede de seus negócios ilegais. 76 Em nome da lei O homem de US$ 1,8 bilhão Alguém ainda se lembra do “Homem de 6 milhões de dólares”? Era uma quantia fantástica na década de 1970, aplicada em tecnologia para dar nova vida a um ex-astronauta gravemente ferido e mutilado. Pois o nosso homem, Juan Carlos Martínez Abadia, “valia” um tanto mais que isso: US$ 1,8 bilhão. O valor corresponde apenas aos bens conhecidos e ao dinheiro apreendido do traficante, num levantamento feito pelo governo dos Estados Unidos. Tal é o poder do tráfico de drogas. Numa vida praticamente curta – Abadia estava com 44 anos quando foi preso e teve seus bens bloqueados – ele havia conseguido amealhar tal fortuna, descontando os altíssimos custos da manutenção da estrutura, que chegou, segundo ele mesmo, a US$ 5 milhões por mês. Um homem com US$ 1,8 bilhão em patrimônio está entre os 500 mais ricos em todo o mundo. Em todo o planeta. Seguindo a lista da revista 77 norte-americana Forbes dos homens mais ricos do mundo, Abadia seria o número 556, num ranking que começa com o mexicano Carlos Slims, o rei da comunicação em boa parte do mundo, e Bill Gates, o criador da Microsoft. O primeiro brasileiro a aparecer na lista da Forbes é o empresário Eike Batista, com US$ 27 bilhões em patrimônio. Só dois colombianos frequentam o ranking mundial, Julio Mario Santo Domingo, controlador de mais de 100 empresas espalhadas pelo mundo, na posição 123 (a filha de Santo Domingo, Tatiana, é noiva do príncipe Andrea Casiraghi, filho de Caroline de Mônaco). O outro colombiano é o banqueiro e construtor Luis Carlos Sarmiento, na posição 135. Os dois colombianos têm bem mais que 70 anos. E provavelmente trabalharam a vida toda. Há que se levar em conta, também, que Abadia não economizava. E tinha métodos estranhos. Comprava jatos por quantias entre R$ 10 e 15 milhões e os usava uma única vez. Depois da primeira viagem, os aviões que iam para o México ou para a África eram incendiados. A aeronave saía vazia do Brasil e rumava para a Venezuela, porque o presidente daquele país, Hugo Chávez, acabou com o controle aéreo e com a cooperação internacional de combate às drogas na região. Os aviões desciam na floresta amazônica venezuelana sem controle algum, protegidos pelas Farc, que atravessaram a fronteira da Colômbia para a Venezuela e colocaram o país de Hugo Chávez numa situação ainda pior que a do vizinho. Em apenas uma das viagens, o avião de Abadia carregou três toneladas de cocaína na Venezuela. São dados como este que confirmam que 90% da coca consumida no mundo sai da Colômbia, Peru e Bolívia, embora a Venezuela venha aumentando vertiginosamente sua participação. O dinheiro que Abadia angariava com o tráfico de cocaína era retirado dos EUA pelo México e da Europa pela Espanha, e desses dois países era remetido a bancos sulamericanos. Aqui havia ramificações das empresas laranjas mantidas pelo traficante no Brasil para tornar legal o lu78 Em nome da lei cro obtido com a droga. Assim era lavado o dinheiro que manteve o luxo do traficante e seus asseclas no Brasil. Além das 17 empresas de fachada em território brasileiro, o tesouro norte-americano apontou outras 23 na Colômbia. Os números do tráfico são fantásticos, geram enriquecimento rápido para pessoas sem escrúpulos. Mas na outra ponta, observa-se a mais triste exploração. A folha da coca sempre é cultivada nas regiões mais pobres desses países andinos, pelos chamados cocaleiros. O problema é que, ao mesmo tempo em que a cocaína é extraída da folha da coca, a mesma folha faz parte dos hábitos tradicionais desses povos. É quase sagrada, com vários usos medicinais. É usada para fazer chá e mascada depois de seca, especialmente para facilitar a respiração nas grandes altitudes que existem nesses países. Mas também serve para enganar o estômago dos que pouco têm para comer. São muitos milhares os camponeses que dependem do cultivo da coca para sobreviver. O movimento dos cocaleiros é muito forte e organizado na Bolívia, a ponto de um dos seus líderes, Evo Morales, ter chegado à Presidência do país em 2002. Morales defende com unhas e dentes a chamada folha sagrada e quer sua industrialização. Para isso ele negocia com os governos venezuelano e cubano. Mas, na prática, até agora Evo Morales nada fez para mudar a vida dessa gente que acaba servindo ao tráfico de drogas por completa falta de opção. Teoricamente, a Bolívia permite o plantio e a distribuição da folha dentro de margens estabelecidas em lei e até permitiu o aumento das terras destinadas ao plantio, exigência do movimento dos cocaleiros. Mas o fato é que tanto o governo da Bolívia, como os do Peru e do Equador, não se empenham em tirar os camponeses das mãos do tráfico. Os únicos países que trabalham seriamente, onde existe enfrentamento com o tráfico, são a Colômbia e o Brasil. A Colômbia, pela presença dos norte-americanos, que têm lá bases militares e uma forte estrutura; e no Brasil porque hoje a Polícia Federal tem credibilidade. O salto de Fernando Francischini 79 80 Em nome da lei qualidade ocorreu nos últimos 15 anos, com investimentos em pessoal, treinamento e tecnologia. Antigamente havia pouca estrutura para o combate às drogas, o tráfico dominava. Os colombianos consideravam o Brasil uma terra de ninguém. Aliás, foi por isso que Juan Carlos Abadia mudou-se para nosso país. Por muito tempo bases do tráfico colombiano funcionaram no Brasil. Além de menos problemas com a polícia, é mais conveniente exportar a droga para todo o mundo tendo o Brasil como origem e não a Colômbia, país muito visado. Os traficantes ainda usam muito Santos, Paranaguá e Buenos Aires como portos de origem, porque são cidades de países pacíficos, com credibilidade. Recursos O símbolo mais forte da Operação Farrapos foi o leilão dos bens do maior traficante de drogas do mundo. Foi importantíssimo para mostrar que esses bens poderiam ser revertidos para o trabalho de prevenção ao uso de drogas e também para ações da própria Polícia Federal no combate ao tráfico. A apreensão das propriedades e outros bens levantou recursos em leilões efetuados com autorização da Justiça. Recursos revertidos na prevenção ao uso de drogas, para o tratamento de dependentes químicos, em treinamento e equipamento para aperfeiçoar a Polícia Federal e aumentar o número de operações contra o tráfico internacional. O primeiro leilão vendeu os imóveis comprados por Juan Carlos Abadia. Foram arrematados imóveis em Aldeia da Serra, na Grande São Paulo, Angra dos Reis (RJ), Jurerê Internacional (SC), Guaíba (RS) e Pouso Alegre (MG). Apenas essas vendas renderam R$ 5,44 milhões. Dezoito veículos foram doados a instituições assistenciais. Abadia tinha dinheiro escondido também em locais supostamente mais seguros, ou menos suspeitos. Em notas de dólares e euros, R$ 3 miFernando Francischini 81 lhões estavam enterrados na casa do pai do motorista Eliseo Almeida Machado, que trabalhava para um dos colombianos que serviam como testas de ferro a Abadia: Jaime Hernando Verano Garcia. O colombiano morava em Campinas (SP) e, tanto ele como o motorista, foram presos na mesma operação. Verano disse à polícia que pagava R$ 7 mil por mês para o motorista esconder o dinheiro. Os leilões das peças menores despertaram enorme curiosidade do público. As pessoas fizeram longas filas para arrematar relógios, celulares, televisores, aparelhos de som, trajes de grife, objetos de decoração e até roupas íntimas do traficante e de sua mulher. Entre eles havia móveis de design nada baratos. A cadeira Garden Egg, uma cadeira à prova d’água do designer húngaro Peter Ghyczy, por exemplo, estava em todos os cantos; o preço de mercado: cerca de R$ 1,3 mil. Obras de artistas plásticos nacionais ajudavam na decoração da casa de Abadia em São Paulo, entre elas, uma do modernista Antônio Gomide. As obras foram encaminhadas a um museu. Na cozinha, ricamente equipada, outras peças de design, como copos da marca alemã Ritzenhoff (uma simples caneca para café pode custar US$ 40), que foram vendidos a apenas R$ 15 cada. Camisas e calças, de tamanho 40 ou 42, em quantidade capaz de lotar uma sala do Jockey Club, revelaram um guarda-roupa sofisticado. As peças eram praticamente todas importadas, de marcas como Hugo Boss e Lacoste. Havia cerca de 170 pares de sapatos masculinos no tamanho 40 de Abadia, e outros 260 de sua mulher, que no bazar foram vendidos a preços que variaram entre R$ 40 e R$ 70. Os bens mais caros foram leiloados no dia seguinte, num evento fechado por motivos de segurança. Da relação fizeram parte dois carros e duas TVs de 61 polegadas e outros objetos de valor. Só com a venda dos cerca de 100 relógios de Abadia foi arrecadado R$ 1 milhão. Por um deles Abadia havia pago mais de R$ 200 mil. 82 Em nome da lei Em outra etapa, a Justiça Federal leiloou 71 itens, entre os quais se destacava uma lancha Modelo Intermarine Azimut M520, de 2005, que valia mais de R$ 2 milhões. Também estavam disponíveis outros relógios de luxo, uma mania do traficante, de marcas como Cartier, Rolex, Bulgari, Chopard, Mont Blanc, TAG Heuer, entre outras, com preços que chegavam a quase R$ 110 mil. Os lances foram feitos virtualmente, através do portal Leilão Eletrônico Judicial (LEJ), operado pelo Instituto Nacional de Qualidade Judiciária (INQJ). Abadia vinha sofrendo perdas em suas propriedades já há algum tempo. De uma só vez o governo colombiano havia bloqueado 40 propriedades em Cali avaliadas em US$ 3,5 milhões. Em 2005, outras 91 propriedades do traficante foram confiscadas em Cali e Armênia. Em janeiro de 2007, já com informações levantadas pela Polícia Federal brasileira, as autoridades colombianas apreenderam US$ 90 milhões que estavam em pequenos contêineres escondidos, enterrados em casas de Ramírez Abadia. Das paredes de uma humilde casa no bairro Prados del Norte saltaram 1.309 lingotes de ouro. No auge das apreensões na Colômbia, um ministro daquele país declarou com muita propriedade: “Com este dinheiro os traficantes compram fuzis, munição, sequestram, recrutam crianças, compram minas, prejudicam muito o povo colombiano, por isso temos que continuar esta luta contra o narcotráfico”. Com a prisão do chefão, e de muitos asseclas, outros elos da corrente começaram a aparecer. Os primeiros bens apreendidos pareciam ser apenas alguns trocados. Basta lembrar do megaconfisco feito pelo governo colombiano 20 dias após a prisão de Abadia. Nunca é demais repetir: foram 321 propriedades – prédios inteiros, fazendas, mansões e até uma ilha no litoral de Cartagena, no Caribe, com um hotel 5 estrelas –, avaliadas em mais de US$ 400 milhões. Fernando Francischini 83 Uma curiosidade: em uma das mansões leiloadas as paredes foram destruídas pelo comprador que ingenuamente sonhava encontrar pilhas de lingotes de ouro ou montanhas de dinheiro vivo escondidas pelo traficante. Mal sabia ele que a Polícia Federal já tinha efetuado busca semelhante, mas com um moderno scanner de paredes fornecido pela DEA. 84 Em nome da lei Agosto, o mês do cachorro louco Para não comprometer as investigações, costumam ser criadas histórias de cobertura quando uma ação precisa ser feita antes da prisão do investigado. Alertado o bandido, há o risco de fuga e comprometimento de todo o trabalho já realizado. No caso de Abadia, a polícia colombiana estourou três esconderijos e apreendeu uma bolada de dinheiro em janeiro de 2007 a partir de informações repassadas do Brasil pela Operação Farrapos. A Polícia Federal havia rastreado ligações do traficante para a Colômbia e chegado a endereços que pertenciam a Abadia. A imprensa, no entanto, foi informada que as casas haviam sido localizadas por meio de carta de um informante para o presidente colombiano, Álvaro Uribe. A carta realmente existiu, e embora não tenha sido a partir dela que os esconderijos foram localizados, serviu para que Abadia não percebesse que estava grampeado. A carta foi enviada a Uribe em dezembro de 2006 por um homem 85 que se identificou como Raúl Mangosta. Ele se disse uma das pessoas mais próximas de Abadia e explicava, com detalhes, o funcionamento da complexa estrutura montada pelo traficante. Em oito páginas, muitas vezes fantasiosas, o informante dizia que Chupeta tinha comparsas infiltrados no exército colombiano, no departamento de segurança do país, na polícia, na Fiscalía (Ministério Público da Colômbia) e até na norte-americana DEA. O informante nomeou algumas dessas pessoas apenas pelo primeiro nome ou pelo apelido. Um deles exerceria influência em vários serviços de informações tanto da Colômbia como dos Estados Unidos. Em Bogotá, outra pessoa tinha um parente que era funcionário da DEA. Mangosta entregou ainda três escritórios de cobrança que serviam a Abadia, um deles chefiado por um ex-membro do Gaula (Grupo de Ação Unificada para a Libertação de Pessoas) da polícia. Outro grupo de doze pessoas, chefiado por um ex-policial, teria a única incumbência de localizar colaboradores de Víctor Patiño, considerado traidor de Abadia. Mangosta conta que Abadia estava diminuindo o número de propriedades para deixar mais leve a organização, por isso tanto dinheiro foi encontrado na Colômbia e no Brasil. Grande parte do dinheiro foi investida na compra de euros; outra parte, em dólares, estava escondida em buracos e paredes para garantir o futuro da família de Abadia, inclusive suas duas ex-mulheres. Na época da carta, Abadia teria escondida a quantia de US$ 150 milhões e E$ 50 milhões. Em um desses esconderijos estaria a coleção de relógios e objetos de ourivesaria de Chupeta. Com a carta, a polícia localizou um escritório de advocacia que cuidava dos interesses de Chupeta e era a cabeça de lança da penetração do traficante nos círculos judiciais. O escritório era comandado por uma pessoa que seria o responsável pelas propinas pagas a funcionários da Fiscalía para mexerem nos processos contra Abadia. Naquele momento, cuidavam especialmente dos processos contra as ex-mulheres de Chupeta, que deveriam ser retiradas do país porque o cerco estava se fechando. 86 Em nome da lei Complô Juan Carlos Ramírez Abadia foi extraditado para os Estados Unidos no dia 22 de agosto de 2008. Ele saiu de Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, onde havia chegado um ano antes, no final da tarde de 11 de agosto de 2007. Tanto na chegada como na saída, Chupeta tinha os pés e mãos algemados e usava colete à prova de bala. Era protegido por escolta de 36 agentes fortemente armados. Todo cuidado era pouco, porque não seria de estranhar se comparsas do traficante tentassem alguma coisa para libertá-lo. O traficante passou aquele ano na Penitenciária Federal inaugurada menos de um ano antes para abrigar até 208 criminosos de alta periculosidade. Na mesma prisão e na mesma época, estava o traficante Luiz Fernando da Costa, o Fernandinho Beira-Mar. Equipamentos de segurança de última geração, 200 câmeras de vídeo, aparelhos de Raios-X e de impressão digital, detectores de metais de alta tecnologia estão instalados para impedir fugas. Presos no Regime Disciplinar Diferenciado (RDD), como Abadia, são isolados totalmente dos demais detentos. Embora todas as celas sejam individuais e delas os presos não saem nem para tomar banho de sol – há uma clarabóia para a entrada de luz –, Chupeta e Beira-Mar conseguiram se comunicar por meio de seus advogados. A Polícia Federal recebeu informes que os dois traficantes teriam planejado sequestrar um dos filhos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Fábio Luís Lula da Silva, o Lulinha. Ele seria levado para a Colômbia e entregue aos cuidados das Farc. A idéia era pedir a libertação de Abadia e Beira-Mar em troca de Lulinha. Boatos contavam com a participação de outros bandidos nesta ação, do porte de José Reinaldo Girotti (Alemão), autor intelectual do assalto ao Banco Central de Fortaleza, em 2005, que levou R$ 164,7 milhões; e João Paulo Barbosa, um dos chefões do Primeiro Comando da Capital (PCC). Lulinha trabalhava como preparador físico do Corinthians e viajava constantemente com as equipes. Em 2008 quando o time brasileiro joFernando Francischini 87 O desembarque nos Estados Unidos extraditado em agosto de 2008 gou com o Independiente Medellín, pela Copa Libertadores da América. O governo colombiano montou um esquema especial de segurança para proteger Lulinha e o jogador Ronaldo Fenômeno. A delegação brasileira era protegida desde a chegada ao aeroporto por uma escolta de motos, carros e militares fortemente armados. O percurso só era definido na última hora, sem divulgação para a imprensa. Agosto Se Chupeta acredita em coincidências ou desígnio dos astros, deveria estudar bem o mês de agosto. O colombiano desembarcou no Brasil num mês de agosto, foi preso em agosto e extraditado também num mês de agosto, o mês das superstições que rimam com desgosto. Pelo menos em relação ao Brasil, o mês não trouxe notícias agradáveis ao traficante. E como dizem os espanhóis, “Yo no creo en brujarias; pero que las hay, las hay” (não creio em bruxarias, mas que existem, existem). Confinado numa prisão de segurança máxima nos Estados Unidos, 88 Em nome da lei Abadia deve permanecer preso até os 75 anos. Se estiver vivo e ganhar a liberdade, não deverá enfrentar problemas econômicos. Os cartéis funcionam como as máfias, nunca esquecem os seus. No caso de não encontrar os velhos companheiros, Abadia ainda poderá contar com muito dinheiro que continua escondido na Colômbia. Desde que alguém espere 30 anos para devolvê-lo. 89 Os depoimentos O juiz Fausto Martin de Sanctis, da 6ª Vara Criminal Federal de São Paulo, julgando denúncia formulada pela Procuradora da República, Thaméa Danelon Valiengo, condenou Juan Carlos Ramírez Abadia a 30 anos de prisão por formação de quadrilha, corrupção ativa, lavagem de dinheiro e uso de documentos falsos. Na sentença, o juiz descreve como funcionava a organização criminosa e traça o perfil psicológico de Abadia. Alguns trechos: Comprovou-se que Juan Carlos Ramírez Abadia, após julho de 2004, direcionou seus negócios no Brasil notadamente para aquisição de imóveis, veículos e outros objetos com utilização de valores decorrentes do narcotráfico perpetrado a partir da Colômbia. Para tanto, e com vistas a dissimular a propriedade, registrou seus bens em nomes de terceiros. Trata-se de criminoso profissional, fazendo do delito o seu modo de vida. 91 Todo o seu patrimônio, mesmo aquele trazido ao Brasil e aqui investido com identidade falsa, somente deve ser considerado produto ou proveito do crime, de tal forma não ser necessário, neste contexto, rastrear a origem de cada bem de seu patrimônio para vinculá-lo a um específico crime de tráfico, o que, aliás, seria tarefa extremamente árdua e praticamente impossível. Não se tem notícia de realização de qualquer atividade lícita que justificasse o patrimônio do indiciado. Ao contrário, toda a prova é no sentido de que os seus bens, ao menos os que foram investidos no Brasil, possuíam espúria origem. Tanto que foi necessária sua remessa por meio de procedimentos não usuais (altas somas em espécie e em moeda não em curso no país), o cruzamento físico da fronteira também por caminhos não regulares, a utilização de diversos veículos (barco, aeronave e automóvel) e trajetos (Venezuela, Nordeste, Minas Gerais) para chegar a São Paulo. Além disso, utilização de falsa documentação, tudo para que não fosse detectado pelas autoridades brasileiras. A organização criminosa liderada por Juan Carlos Abadia esteve estruturada em três grupos, que o auxiliaram na prática do delito de “lavagem” de dinheiro, mas devidamente coordenados entre si, fornecendo-lhe a logística e infra-estrutura necessárias para garantir a sua ocultação no país. Além de lhe terem prEstado serviços na aquisição de bens, colocando-os em nome de terceiros para assegurar a ocultação e dissimulação da origem ilícita dos recursos utilizados na compra. O grupo do Rio Grande do Sul contou com a intensa participação de André Luiz Telles Barcellos, que atuou em diversas frentes. Contratou Antônio Marcos Ayres Fonseca para aquisição de diversos veículos em nome de terceiros. Alguns dos veículos foram registrados em nome de familiares e empregados do próprio André Luiz Telles Barcellos; outros foram registrados em nome de pessoas indicadas pelo co-réu Antônio Marcos Ayres Fonseca. Por sua vez, o grupo do Paraná/Campinas foi integrado pelos acusa92 Em nome da lei dos Victor Garcia Verano e sua esposa, Aline Nunes Prado. Além dos indivíduos residentes em Campinas Jaime Hernando Martinez Verano e Eliseo Almeida Machado. Este último participou de um único ato de “lavagem” de valores consistente na ocultação do numerário apreendido na residência de seu pai em Campinas/SP. Por fim, o último grupo, de São Paulo, era integrado pelo casal Daniel Brás Maróstica e Ana Maria Stein. Estes acusados recepcionaram Juan no país e foram os responsáveis pela aquisição de veículos (automóveis e motocicletas), imóveis e lancha, sempre em nome de terceiros, além de serem responsáveis pela conservação destes bens para plena utilização de Juan Carlos Ramírez Abadia e sua esposa. Davam efetivo apoio logístico em todas as suas atividades no Brasil, inclusive quando das operações plásticas levadas a efeito para alterar a aparência física de Juan. Ângelo Reinaldo Fernandes Cassol foi o responsável pela obtenção de carimbos de entrada e saída no território nacional em um dos passaportes falsificados utilizados por Juan Carlos Ramírez Abadia, cuja atividade se processou da seguinte forma: Cassol recebeu o passaporte de André Luiz Telles Barcellos e o entregou ao Agente da Polícia Federal Adilson Soares da Silva, oferecendo-lhe vantagem indevida, para determiná-lo a praticar ato de ofício, cujo procedimento teria ocorrido por 04 (quatro) vezes. Adilson Soares da Silva foi o agente da Polícia Federal que carimbou, de forma irregular, o passaporte utilizado por Juan Carlos Ramírez Abadia, percebendo, para si, diretamente, em razão de sua função, vantagem indevida consistente na quantia de US$ 200,00 (duzentos dólares) por cada carimbo. Yessica Paola Roja Morales, apesar de negar qualquer participação nas atividades empreendidas por seu marido; inclusive afirme que ele tenha lhe pedido perdão após a prisão; e em suas alegações finais assevere inexistir nexo causal entre as suas condutas e as atividades imputadas a seu companheiro e; por conseguinte, qualquer ato comissivo que a vincule à Fernando Francischini 93 prática de “lavagem” de valores, a prova coligida demonstrou validamente ter ciência de todos os fatos. E seu efetivo auxílio na aquisição de imóveis, móveis e veículos com valores oriundos do tráfico internacional de entorpecentes, bem ainda sua contribuição para a ocultação e dissimulação da propriedade destes por meio de registro dos bens em nomes de terceiros. Em outro trecho, o juiz diz sobre Abadia: “Mostrou-se de uma individualidade ímpar, egocêntrico desmedido, que se desvincula facilmente dos parâmetros sociais para satisfação de benefício econômico seu e de sua esposa (conduta social). Suas qualidades ou habilidades mais marcantes não se lastreiam na preservação de valores da ética ou correção, apesar de alegar ser originário de família evangélica e, juntamente com Yessica, orar diariamente”. 94 Em nome da lei As ruas e as rotas Basta dar uma olhada nos números da fortuna que o traficante Juan Carlos Ramírez Abadia conseguiu amealhar, apesar dos altos custos de manutenção da organização criminosa e de sofrer tantas apreensões e bloqueios de bens, para ter a certeza de que poucos negócios são tão lucrativos como o tráfico de drogas ilícitas. O Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc) revela que o combate ao tráfico realizado pelos governos e organizações retira das ruas apenas 40% da produção mundial de cocaína, estimada em 850 toneladas ao ano. Os 60% restantes são consumidos por um mercado de cerca de 25 milhões de usuários, que movimenta cerca de US$ 50 bilhões por ano. Os números são grandiosos em todos os sentidos. Inclusive no crime. O governo federal tem estatísticas que revelam que 70% dos homicídios têm relação com drogas; no Paraná, o governo do Estado divulga um percentual ainda superior: os crimes motivados pelas drogas chegariam a 90%. E não estamos computando o alto número de pessoas e famílias 95 que tem suas vidas devastadas por drogas ilícitas. Das plantações cultivadas pelos cocaleiros até o consumidor final, a cocaína tem seu valor elevado em até 3.000%. Desde os tempos de Pablo Escobar e seu Cartel de Medellín, a Colômbia é o principal fornecedor da droga, controlando 80% do mercado mundial. Praticamente todo o restante é produzido no Peru e na Bolívia. O que preocupa o Brasil é que as plantações de coca estão se alastrando e já foram encontradas áreas de plantio na fronteira do Brasil com a Colômbia e com o Peru. O Relatório Mundial sobre Drogas 2009, divulgado em junho pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), mostra que o mercado global de cocaína, opiáceos (ópio, morfina e heroína) e maconha está estável ou em declínio. Parte disso, porém, está sendo substituída pelo uso de drogas sintéticas, especialmente nos países em desenvolvimento. Em compensação, lamentavelmente, apreensões crescentes revelam que o tráfico tem se espalhado em termos geográficos, e já afeta todas as regiões do planeta. Em 2005, 131 dos 165 países do mundo registraram apreensões de cocaína. Duas décadas antes, havia registros em apenas 69 países. O que aumentou de fato no Brasil foram as atividades de grupos de traficantes de cocaína na região Sudeste e a presença de grupos do crime organizado internacional. O país é utilizado como importante ponto para o tráfico de droga vinda da Colômbia, Bolívia e Peru. Dentro do Brasil, o maior consumo é registrado nas regiões Sudeste e Sul. Com relação à América do Sul, o relatório aponta que a maior parte do cultivo ilícito ocorre nas regiões sem a presença do Estado – cuja ocorrência a ONU considera uma tragédia –, e que a maior parte da droga é vendida em regiões urbanas fragilizadas pela violência. Relatórios de organizações internacionais de combate ao crime confirmam que a principal rota do tráfico ainda segue dos países andinos para a América do Norte. Mas nos últimos três anos cresceu muito o trânsito de drogas da América do Sul para a África, para então ser enviada à 96 Em nome da lei Europa. O Brasil aparece como escala nessa rota que segue para o Oeste da África e até diretamente para a Europa. Dizem as autoridades que países como Guiné-Bissau são usados porque têm governos fracos, fáceis de corromper e onde a população sabe muito pouco sobre drogas. A ponto de uma aldeia da costa africana ter encontrado um grande número de sacos de pó branco e, sem saber do que se tratava, espalharem nas plantações imaginando que fosse fertilizante. Na África, os países mais utilizados pelos cartéis são Ghana, Costa do Marfim, Togo, Nigéria, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Ilhas Canárias. Autoridades da Guiné calculam que cerca de 60% da cocaína que chega ao país passaram pelo Brasil e o restante foi enviado diretamente da Colômbia. A entrada da droga na Europa se dá principalmente por Portugal e Espanha, que registraram as maiores apreensões de cocaína nos últimos 20 anos. No aeroporto de Madri também é grande o número de prisões das mulas, com o estômago e o intestino cheios de cápsulas de cocaína. Em espanhol são chamados de “boleros”. Apenas nos cinco primeiros meses de 2010, os policiais espanhóis interceptaram 160 traficantes, quase a metade deles com a droga dentro do corpo. Eles carregam em média de 80 a 100 cápsulas de uma vez e recebem entre E$ 3 mil e E$ 4 mil como pagamento. Os traficantes têm lucro bem maior na Europa, onde 450 gramas de cocaína podem render US$ 21 mil, mais que o dobro que nos Estados Unidos, onde custariam US$ 10 mil (na América do Sul o quilo da pasta-base de cocaína vale US$ 1,5 mil). O Brasil não é um importante produtor de drogas, mas é considerado um grande consumidor. O maior problema, porém, é a enorme quantidade de empresas que vendem produtos químicos que também servem para a produção de entorpecentes. O Brasil também é uma região de difícil fiscalização, porque tem mais de 10 mil aviões e mil helicópteros, e mais de dois mil aeroportos espalhados pelo território. Muitos deles não são oficiais e, portanto, não têm controle da Agência Nacional de Fernando Francischini 97 Aviação Civil (Anac) e da Infraero. O relatório da ONU estima que a produção mundial de maconha tenha diminuído. Em 2005, a maior parte da maconha foi produzida nas Américas (46%) e na África (26%). Em termos de volume, a maconha é a substância ilícita mais traficada no mundo – 90% (148) dos 165 países do mundo registraram apreensões. O tráfico, porém, é intra-regional, com inclusão de países vizinhos em alguns casos, mas não é de longo alcance. É assim como se cada país produzisse sua própria maconha. O mercado brasileiro é abastecido em grande quantidade pelo Paraguai. O México e os Estados Unidos são os maiores produtores de maconha do mundo. O Sudeste da Ásia continua sendo o maior mercado mundial de anfetaminas, seguido da América do Norte e da Europa. Cerca de 14 milhões de pessoas – 55% dos consumidores mundiais de anfetaminas – vivem na Ásia. O número total de usuários de anfetaminas na América do Norte é estimado em 3,8 milhões de pessoas (15% do total mundial). Na Europa é de 2,8 milhões de pessoas (11% do total mundial). No âmbito sub-regional, a maior prevalência de uso de anfetaminas está no Brasil, que também é o maior mercado de opiáceos da região. São 600 mil pessoas, ou 0.5% da população entre 12 e 65 anos. Os dados são da pesquisa domiciliar realizada em 2005 (Cebrid/Senad). Os cartéis Os grandes cartéis hoje estão no México. La Familia Michoacana, por exemplo, é uma espécie de sindicato de traficantes no Estado de Michoacán. Os métodos são os mais cruéis. É comum corpos desmembrados serem enviados como mensagens para algumas vilas da região; o bilhete escrito à mão que acompanha o corpo costuma dizer “ele falou demais” ou “Teve o que mereceu”. Autoridades mexicanas dizem que o tráfico em grande escala existe há décadas na região, mas recentemente a violência parece ter saído de qualquer controle. 98 Em nome da lei Mais de 23 mil pessoas já foram mortas desde 2006, quando Felipe Calderón assumiu a Presidência do país e declarou guerra contra os barões do tráfico. Recentemente, estimativa de organizações não governamentais avaliaram que 85% das empresas legalmente instaladas em Michoacán têm alguma ligação com traficantes e são usadas para lavagem de dinheiro. O cartel La Família também é considerado dos mais violentos. Em setembro de 2006, cinco cabeças humanas foram jogadas na pista de dança de um night club na cidade de Uruapan, no Estado de Michoacán. Outros cartéis significativos que atuam no México são o Sinaloa e o Zetas. As próprias autoridades admitem que o crescimento do controle de regiões inteiras pelos traficantes se dá pela falta de confiança, entre a população, na polícia e na Justiça. E, na contramão das liberdades individuais, muitos políticos creditam o aumento das atividades do crime organizado à democracia multi-partidária mexicana. Durante 71 anos, até 2000, o México foi governado por um único partido, o PRI. Os sanguinolentos cartéis mexicanos transformaram Ciudad Juárez, na fronteira com os Estados Unidos, na mais violenta cidade do mundo. Só no ano passado, as autoridades mexicanas contabilizaram 2,7 mil assassinatos ligados ao tráfico de drogas na cidade, vizinha à texana El Paso. Fernando Francischini 99 A entrevista Entrevista publicada pelo jornal O Estado do Paraná em 13 de junho de 2010 A sensação de enxugar gelo, um sentimento muito próximo da revolta pela impotência, começou a minar a satisfação do delegado da Polícia Federal Fernando Francischini sempre que obtinha uma vitória contra o crime organizado, mesmo que fosse um gol de placa como a prisão do maior traficante do mundo, Juan Carlos Ramírez Abadia. Cai o grande capo de um grupo, logo outro toma conta da venda e entrega de drogas num número de locais cada vez maior. E o que é pior: a entrega de drogas a um número crescente de crianças. Crianças!!! Crianças caídas na sarjeta porque o crack faz parte do cotidiano das escolas. E então, Curitiba aparece em pesquisas como a sétima capital brasileira em homicídios dolosos. A cidade ecológica, com aspirações turísticas, é recordista em violência. E, mais uma vez, as drogas estão na raiz do problema. 101 Já era mais que hora de fazer alguma coisa, além das palestras a que vinha se dedicando, nos horários de folga, para trabalhar na prevenção e recuperação de dependentes químicos. O convite do então prefeito Beto Richa veio bem a calhar, e juntos criaram em 2008 a primeira Secretaria Municipal Antidrogas do país. O prefeito também estava muito empenhado a contribuir para resolver o problema. Já no primeiro ano, alocou R$ 1,2 milhão para começar o projeto, valor era maior do que o governo federal aplica em todo o país na prevenção do uso de drogas. Em 2010 o orçamento já estava em R$ 6 milhões, revelando o comprometimento da prefeitura de Curitiba. Atraindo um público curioso dos detalhes da prisão de Abadia, as palestras de Francischini saíram das igrejas e se espalharam por auditórios de escolas e universidades. E, grata surpresa, o delegado descobriu que até jovens de classe média se interessam pelo combate ao crime organizado, ainda não estão totalmente descrentes da polícia e consideram a profissão de delegado da Polícia Federal uma real opção para si próprios. Até posam para fotos ao lado do delegado que prendeu Abadia. Francischini não deixa escapar a chance de manter contato com uma geração altamente vulnerável às drogas e agarra mais uma arma para usar contra bandidos: as mídias sociais, como o Orkut, Twitter e Facebook. Por que o senhor optou pelo combate às drogas quando entrou para a Polícia Federal? Fernando Francischini: Foi uma opção. Há muitos assuntos na Polí- cia Federal, crimes de ordem financeira, fazendária, de ordem política, eleitoral, e a parte mais dura é a de drogas, porque envolve a rua, sangue, tiro, risco de vida pesadíssimo. Estamos lidando com gente como Abadia, Beira-Mar, traficantes, policiais presos, políticos que se envolvem em corrupção e tráfico, como o deputado federal e coronel Hildebrando Paschoal, aquele da moto-serra. Não são muitos os que se dedicam a isso, só os abnegados. Tem que ter vocação. 102 Em nome da lei Delegado Francischini em coletiva de imprensa em São Paulo E o motivo dessa escolha? Francischini: Eu vi a devastação da droga. Ver crianças nas drogas é o que mais dói, porque elas estão largadas nas calçadas, no meio-fio. E sabemos que a droga que chegou à criança passou perto da gente, porque cuidamos de fronteiras, perseguimos grandes traficantes. Isso machuca muito e sempre me preocupou. Com a Secretaria Municipal Antidrogas estou desenvolvendo mais esse lado de cuidar de crianças. Prevenir e recuperar. O trabalho de recuperação foi uma decorrência. Francischini: A primeira opção foi dedicar meu trabalho para tirar de circulação esses caras que trazem drogas para os meninos que estão nas ruas. Com o passar do tempo, no final de cada uma dessas grandes operações, ao invés de comemorar, eu começava a ter a sensação de enxugar gelo. É que muito rapidamente ficávamos sabendo que o traficante já havia sido substituído, que estava chegando outro carregamento de droga. Aquela sensação de desconsolo: ‘Acabamos de pegar um e já chega outro!!’ Fernando Francischini 103 Qual foi sua reação? Francischini: Comecei a dar palestras. Fui convidado por um amigo da igreja que frequento para falar sobre Drogas a outras pessoas e tivemos tanta repercussão que outras igrejas também pediram a palestra. Quando percebi, estava indo em igrejas em toda a cidade de Brasília e, de repente, estava em outros Estados. Criamos então um projeto de capacitação de lideranças de escolas, das igrejas, que queriam aprender para dar palestras. Já que a droga chega até aquele menino da rua, queríamos evitar que ele pegasse a droga, ensiná-lo a recusar a droga e ensinar o pai, a mãe, professores para que pudessem orientar essa criança. O senhor percebeu que é mais efetivo na ponta de cá. Francischini: Percebi exatamente isso, que o efeito é maior. Cada meni- no para quem a gente conseguia falar poderia ser um a menos a cair nas drogas. E comecei a levar uma vida profissional dupla. De um lado era o delegado que fazia as prisões, linha dura, que prendia, levava tiro, dava tiro; do outro, aquele que ia a escolas, igrejas, que fazia um trabalho de capacitação. Por isso a minha ligação tão forte com a igreja. Pode-se dizer que a crueza das ruas não o endureceu? Francischini: Muitas vezes parece uma coisa estranha estar em pontas tão diferentes. Mas é muito compensador. Para o pessoal é um orgulho ver alguém da igreja deles, gente muito simples, prendendo traficantes, obtendo esse sucesso. E isso se expandiu bastante. O Abadia e o delegado da Polícia Federal foram instrumentos para fazer um trabalho de prevenção. Francischini: Se estivesse ali um psicólogo, um psiquiatra, um profes- sor, o auditório estaria vazio, infelizmente tenho certeza. Na média reunimos entre 800 e mil pessoas. Uma palestra para alunos de uma Facul104 Em nome da lei dade de Direito em Curitiba lotou dois auditórios. Tiveram de instalar um telão num segundo local para receber mais estudantes. E essa faixa é a menos receptiva a esse tipo de palestra, não é? Francischini: Exatamente, sobretudo nas faculdades particulares, fre- qüentada pela classe média, classe média alta. Até o reitor ficou impressionado. Isso pode se dar pelo lado charmoso, da aventura, que o cinema usa muito? Francischini: A operação do Abadia é um filme. Acho interessante por- que o menino vai à palestra porque viu as notícias e quer ver como foi preso, como é que não houve corrupção na última parte. Tenho percebido que os jovens sentem falta de exemplos. No final, os estudantes querem tirar foto comigo, coisa que o jovem não faz. Meu filho não faz. (O delegado Francischini tem quatro filhos, de 19 anos, 16, 6 e um recém nascido) É justamente a faixa etária em que os jovens querem distância dos pais, de autoridades. Francischini: Vejo pelos meus próprios filhos. Nessa idade, eles têm vergonha de se aproximar. Mas no fim das palestras os meninos querem conversar comigo, tirar foto, querem meu Orkut. O senhor usa essas mídias sociais? Francischini: Criei ferramentas jovens justamente para isso. Estou montando o terceiro perfil no Orkut, porque é uma coisa de menino. Meus filhos me ajudam a responder perguntas, eles acabam se envolvendo, perguntando o que responde aqui, outro pede material... O mais Fernando Francischini 105 velho viajava comigo para ir às palestras. Hoje, deu uma segurada agora porque a faculdade de Direito exige muito. O exemplo pode ser usado dentro e fora de casa. Francischini: Sinto que essa situação se transforma em exemplo para os jovens. Eles estão acostumados a ver a polícia de forma pejorativa, a ver a polícia como corrupção, como violência, quase do outro lado (do crime). E quando ouvem a história das prisões, das apreensões, vêem o lado humano do delegado e começam a se identificar. Pensam: ‘ainda existe alguém em quem consigo me espelhar’... Às vezes até como tábua de salvação... Francischini: E quando falo sobre a profissão de delegado da Polícia Federal, com bom salário, credibilidade e estrutura, percebo que várias cabecinhas que fazem perguntas no final estão sonhando em seguir a profissão, principalmente os alunos de cursos de Direito. Fazem perguntas muito práticas sobre o salário, o trabalho. Dá para perceber que eles realmente se interessam. Este aspecto é muito interessante. Às vezes saímos de alma lavada mais do que quando se prende um traficante. A sua liberação da Polícia Federal foi obtida com facilidade junto ao Ministério da Justiça? Francischini: Num primeiro momento foi. Cheguei a tomar posse, mas o ministério quis voltar atrás. Aí entrou em campo o ex-governador Paulo Pimentel. Sem que eu soubesse, ele fez ligações para Brasília e ameaçou fazer críticas ao governo federal todos os dias, até o final do ano, na primeira página do jornal O Estado do Paraná, se eu não fosse liberado. Ele estava muito animado com a criação da secretaria, acreditava que poderíamos fazer a diferença. Depois ele me telefonou e até foi engraçado. “Alô, Francischini, aqui é o 106 Em nome da lei Paulo”. Respondi mas nem sabia de quem se tratava. E ele: “Como vai, menino? Você não está me reconhecendo, é o Paulo Pimentel, do Estado do Paraná, menino.” Há dez dias eu estava no limbo, nem na Polícia Federal nem na secretaria. No dia seguinte saiu minha liberação. Como Curitiba entra nessa história? Francischini: Eu já conhecia o Beto e depois da operação que prendeu Abadia, ele pediu ao ministro da Justiça para me liberar da Polícia Federal para montar a primeira Secretaria Antidrogas do país. O governo federal tinha uma estatística em que Curitiba aparece como a sétima capital brasileira em homicídios dolosos. Então o prefeito queria um projeto que no fundo era o meu trabalho. Um trabalho dentro das escolas, das igrejas, capacitação de lideranças comunitárias... Como o senhor mesmo já disse, juntou a fome com a vontade de comer. Francischini: O Beto precisava de alguém de peso para dirigir a secre- taria. Para usar a fama para atrair as pessoas e intensificar o combate às drogas. Sempre pergunto nas palestras se as pessoas estão lá por causa das drogas ou pela curiosidade em ver o delegado que prendeu o Abadia. A resposta é a mesma: pelo Abadia. Então mostro tudo sobre a operação, vídeos, detalhes, prendo a atenção de todos e no final deixo o meu recado. As prisões são importantes didaticamente, como exemplo, mas como o senhor diz, não vão acabar com o tráfico. Francischini: Quando o Beto me chamou e falou dos dados sobre ho- micídios em Curitiba, ele estava muito preocupado, mas segurança é atribuição do governo do Estado e do governo federal. Ele me deu dois exemplos que mexiam com ele: andando pelos bairros, uma mãe o pega Fernando Francischini 107 pelo braço, conta que a filha é dependente química e foi na escola que conheceu o crack. E o prefeito me perguntou: ‘O que respondo para ela?’ O mesmo quando um pai conta ter visto o filho morrer na escada de casa, executado por traficantes. É fácil dizer que a atribuição não é do município, mas o que se diz a um pai que o aborda na rua, desesperado porque não quer que isso aconteça com os outros dois filhos? Não dá para dizer que liguem para o governador, para o presidente. O Beto queria fazer alguma coisa. Nasceu então a secretaria antidrogas. Francischini: Começamos a estudar e mapear os crimes na cidade. Em março de 2008, descobrimos que, em pelo menos 70% dos crimes, quem morreu ou quem matou tinha relação com drogas. A droga estava sempre por trás. A secretaria do Estado divulga que o índice é ainda maior, chega a 90%. Estava ali o problema a enfrentar. Francischini: O foco era a droga. E como diminuir a droga? A qua- tro mãos, Beto e eu escolhemos os projetos. Lembro das palavras dele: educação, conscientização e prevenção nas escolas. Queríamos chegar a todos os alunos da rede municipal, que beiram os cem mil, a maioria até a quarta série. E implantamos projetos de prevenção, alguns em parceria com a Polícia Federal, como o Bola Cheia, o Papo Legal. Num segundo momento, vimos que era preciso criar vagas gratuitas em entidades de recuperação química de drogas. Quando abordamos crianças de rua dependentes do crack e a levamos ao pai, ele diz que não tem dinheiro para pagar pela recuperação do filho; a criança foge, pula a janela; ou a mãe está presa, é prostituta. Para este ano de 2010, temos R$ 1 milhão no orçamento para enfrentar esse problema. 108 Em nome da lei Parece que a secretaria tem tudo para consolidar um bom trabalho. Francischini: Pois é, tinha gente que pensava que era uma secretaria de vitrine. Quando viram o orçamento, um dos maiores da prefeitura proporcionalmente falando, a repercussão na mídia e o respaldo popular nos bairros, perceberam que era sério e a secretaria se transformou numa força muito grande. Qual é o orçamento da secretaria? Francischini: Em dois anos, passou de R$ 1,2 milhão para R$ 6 mi- lhões. Mesmo no primeiro ano, quando os recursos foram usados para montar a estrutura e começar pequenos projetos, o valor já era maior do que o governo federal aplica em prevenção em todo o Brasil. Em dois anos a secretaria saiu de duas salas para 1,8 mil metros quadrados em quatro andares de um prédio; saiu de nove assessores para 78 funcionários. São dados que mostram a força que criamos. O Beto está estudando a expansão dessas comunidades para todas as regiões do Estado. Muitos municípios já se interessaram pela secretaria, não foi? Francischini: tivemos de criar um projeto para atender a demanda de municípios que queriam um trabalho igual. Comecei a dar palestras no interior; foram mais de 50 em dois anos. Nessas andanças, o prefeito criava uma secretaria ou um departamento antidrogas ou encarregava a Secretaria de Ação Social pelo projeto. Chamamos isso de Exportando Idéias. Quase 20 cidades já criaram ou estão criando a secretaria. Apenas no Paraná? Francischini: Fora também. Cuiabá, Manaus, São Paulo... é uma febre Fernando Francischini 109 por intensificar o trabalho de prevenção. Normalmente as ações estão espalhadas em várias secretarias e a nossa era uma espécie de articuladora. Não pretendia ser a protagonista, por isso funcionou bem. Colocava na mesma mesa a educação, saúde, ação social e propunha um programa conjunto. Quando muitos órgãos se reúnem sempre há problemas de relacionamento. Francischini: Sempre tem, mas quem não quer ser protagonista resolve fácil. Conseguíamos com o argumento de que é em favor dos meninos, não de alguma autoridade. Funciona bem. O senhor já sofreu atentados? Francischini: Muitas represálias e ameaças de morte. Muitas vezes senti o perigo muito próximo. Fui atropelado uma vez, mas não conseguimos provar nada, porque era um carro roubado. Fiquei dois dias no Cajuru, arrebentado. Meu segurança no Espírito Santo foi baleado. O juiz... era um dos meus melhores amigos e foi morto a duas quadras do meu prédio. São coisas muito pesadas. No Espírito Santo combatemos o crime organizado face a face, o poder público e autoridades envolvidas, no Maranhão a mesma coisa. As ameaças passaram a fazer parte do cotidiano. Hoje ameaças graves vêm de presídios onde estão policiais que prendi, de autoridades acusadas de desvio de dinheiro público e narcotráfico. Várias vezes a própria Polícia Federal me avisa para ter cuidado. Agora estou recebendo ligações de um presídio aqui do Paraná avisando que vão encomendar um pistoleiro para me matar. O senhor anda com seguranças? Francischini: Tenho andado com amigos policiais. O delegado às vezes precisa cuidar de si próprio, e é difícil, sendo policial, andar com outros 110 Em nome da lei policiais cuidando de você. Não há palestra em que dois ou três policiais não estão comigo. Eles até fazem uma escala (rs). Numa palestra em Araucária, uma pessoa que já foi presa por tráfico e por fraudes em licitações levantou e me ameaçou. Eu o botei para correr da palestra e ele, de dedo em riste, dizia que a CPI do Narcotráfico não o tinha pego. O empresário fora preso por fraudar licitações da Funasa, usando helicópteros, fez delação premiada, portanto entregou outras pessoas para livrar a sua pele, e quer posar de bacana na cidade. Porém, ainda existem muitos crimes da esfera estadual que estão no referido Processo, espero que o Ministério Público Estadual requisite cópias da Polícia Federal e inicie uma nova ação. O contato com o tráfico e situações degradantes não o derruba emocionalmente? Francischini: Derruba. Mas o lado igreja me sustenta. Chego em casa e tem a oração, tem a esposa, a família é muito forte, a fé te levanta e no outro dia está novo. Mas é difícil, porque a gente recebe uma carga negativa muito grande. Na CIC, em Curitiba, um policial e dois traficantes que eu já havia prendido entraram no meio da palestra e ficaram me encarando, para me intimidar. O senhor tem medo? Francischini: Acho que passei da fase. O medo é o limite entre a vida e a morte. Porque o medo alerta para determinadas situações e você cria um sistema de defesa. A autoconfiança excessiva pode te expor à morte. Mas a gente acaba se acostumando a conviver com o medo. O senhor já obteve resultados concretos com a atuação da secretaria? Francischini: Se uma criança recebe bem a informação de que não pode Fernando Francischini 111 nem experimentar o crack, que esta droga não é como a maconha, porque a maconha ainda tem volta, já valeu a pena. E, na verdade, são milhares. Quando deixei a secretaria, em março de 2010, estávamos atingindo quase sete mil crianças por mês. Mas a criança não é muito receptiva quando já esteve envolvida com drogas. Francischini: Aí vem a segunda parte, que é a recuperação. A prevenção pretende atingir 96% das crianças, porque elas nunca tiveram contato com drogas; o percentual vem de estatísticas da Senad. E os 4% que já tiveram o primeiro contato, se foi com crack, precisam de recuperação; se foi com outra droga mais leve, podem ser acompanhados com orientação. Há dois braços: o braço forte para o crime organizado, traficante profissional, como o Abadia, o Beira-Mar, lavagem de dinheiro, um político envolvido em corrupção. Do outro lado, o braço que tem uma mão amiga na ponta, que previne e recupera os jovens. 112 Em nome da lei Antes de prender o traficante Juan Carlos Ramírez Abadia e mesmo durante os três anos de investigações, o delegado federal Fernando Francischini participou de uma série de outras operações de combate ao crime organizado, corrupção e drogas. Algumas delas: Operação Fênix: realizada pelas superintendências da Polícia Federal do Paraná e do Rio de Janeiro para desbaratar a quadrilha de Fernandinho Beira-Mar, especializada no tráfico de drogas e armas. Na operação foram presos também João Marino, em Foz do Iguaçu, com 3,6 toneladas de maconha. Em Passo Fundo (RS), Alcione Norberto com 100 quilos de cocaína. Marcelinho Niterói foi preso em Pedro Juan, no Paraguai, e com ele foram apreendidas 270 pistolas, duas metralhadoras e 47.330 cartuchos. Em Goiânia, foram feitas as prisões de Luis Cláudio Salvador e José Elias Campos, com 36 quilos de cocaína; em Brasília, presa a Vovó do Pó, com 18,5 quilos de cocaína. Apreensões também foram feitas no Rio (208 quilos de coca, 50 quilos de crack e 5 de haxixe) e em Curitiba (50 quilos de cocaína, 2 fuzis 7.62, 2 metralhadoras, 2 pistolas Glock e 1,5 mil cartuchos. O nome da Operação (Fênix) foi escolhido porque o objetivo da investigação era evitar que Fernandinho Beira Mar, mesmo encarcerado no Presídio Federal de Catanduvas, ressurgisse das cinzas (como a ave mitológica), por meio da lavagem de dinheiro e novos carregamentos de drogas para o Rio de Janeiro. Os delegados da Polícia Federal Wagner Mesquita e Gilberto Castro coordenaram esta e várias outras operações; a sua equipe, policiais federais que trabalharam sob meu comando por muitos anos, herdados com minha transferência para São Paulo, foram decisivos e fundamentais em todas as operações relatadas neste livro e que sem os quais seria impossível o sucesso obtido. Fernando Francischini 113 Operação Ícaro: no dia 5 de julho de 2006, desmantelou a quadrilha de outro integrante de peso do tráfico internacional operando no Brasil, Floriano Nolasco da Silva Junior. Realizada no Paraná, São Paulo e em Santa Catarina, a Polícia Federal descobriu dois laboratórios de refino de cocaína que funcionavam em duas fazendas nos municípios de Pardinho e Gália, no interior de São Paulo, onde foram apreendidos 80 quilos de cocaína refinada e cerca de 700 quilos de produtos químicos para refino de drogas; e prendeu mais de dez pessoas. O grupo transportava cocaína da Bolívia até São Paulo com a ajuda de helicópteros. Foram vários anos de investigação até a identificação dos integrantes da quadrilha. Operação Zapata: em 20 de julho de 2006, prendeu o perigoso traficante Lucio Rueda Bustus, que usava o nome falso de Ernesto Plascência San Vicente, conhecido como Mexicano, e morava no bairro Hauer, em Curitiba. Mexicano fazia parte do Cartel Juarez, considerada a maior organização criminosa do México, responsável pela remessa de dezenas de toneladas de cocaína para os Estados Unidos, arrecadando US$ 200 milhões por mês. Diversas empresas, imóveis e veículos teriam sido adquiridos com o dinheiro obtido com as drogas. Mexicano e outros comparsas tinham diversas empresas estabelecidas em Santa Catarina. A cabeça desse mexicano estava a prêmio por US$ 1 milhão. Essa operação foi responsável também por revelar corrupção policial infiltrada na Promotoria de Investigações Policiais (PIC). Foi preso o investigador da Polícia Civil Ricardo Abilhoa, filho de um procurador de justiça que exercia a função de coordenador da PIC.. Eles foram acusados pelos crimes de corrupção passiva, de usurpação de função e por lavagem de dinheiro. Em junho de 2004, Ricardo e outro policial civil, Carlos Eduardo Carneiro Garcia (Carlinhos), prenderam o traficante e pediram US$ 1 milhão para não entregá-lo à Polícia Federal. Eles teriam recebido, de fato, US$ 350 mil. A sentença de condenação do Mexicano e dos poiliciais envolvidos foi exarada pelo Juiz Federal Sérgio Fernando 114 Em nome da lei Moro, titular da 2 Vara Criminal Federal, especializada em Lavagem de dinheiro e Crime Organizado. Graças a perseverança, confiança e coragem de alguns juízes como Sérgio Moro e Pedro Sanson Corat, da Vara de Inquéritos Policiais de Curitiba, da Justiça Estadual do Paraná, e da promotora de Justiça Marla Blanchet, diversas ações de combate ao narcotráfico foram concluídas com êxito para o bem da sociedade. Operação Tentáculos: a partir da investigação do assassinato do major Pedro Plocharski, comandante do 13.º Batalhão da Polícia Militar, 2005, foi preso o traficante Éder de Souza Conte, conhecido como o Beira-Mar do Paraná. O major foi executado numa emboscada, possivelmente porque investigava uma quadrilha formada por traficantes, advogados e policiais corruptos. Mais de 30 pessoas foram presas, entre elas nove policiais militares. Éder foi solto por falta de provas, mas voltou para a prisão na Operação Ressaca, em 2010, por acusações de tráfico de drogas. Nesta época, Francischini já estava na Secretaria Municipal Antidrogas e forneceu informações, por escrito, que ajudaram na prisão do traficante. O caso também alcançou notoriedade porque junto com Éder foi presa a segunda colocada no concurso Miss Curitiba/2010. Máfia chinesa: o chinês Law Kin Chong, apontado como o maior contrabandista em atividade no Brasil, que movimentava milhões de dólares em mercadorias ilegais na Avenida 25 de março em São Paulo, foi preso novamente pela Polícia Federal em 2007. A Polícia Federal e a prefeitura de São Paulo encontraram grande quantidade de mercadoria contrabandeada num esconderijo no shopping Pari, de propriedade do empresário. Law também é acusado de escravizar imigrantes ilegais e brasileiros, normalmente nordestinos desempregados, em trabalhos com salários irrisórios, horários extenuantes e obrigação de empenho. Fernando Francischini 115 A palestra Em 13 anos, o delegado da Polícia Federal Fernando Francischini trabalhou em mais de onze Estados. Sempre transferido para alguma cidade que estava pegando fogo ou havia suspeitas de casos graves de corrupção e atividade do crime organizado. O delegado enfrentou grandes quadrilhas, prendeu policiais e políticos corruptos. E vive sob constante ameaça de morte. No ano que passou no Espírito Santo e viu um amigo ser assassinado (o juiz Alexandre Martins de Castro Filho, assassinado a tiros aos 32 anos porque lutava contra o crime organizado), Francischini participou das investigações contra o Crime Organizado em todo o país. Da prisão de Juan Carlos Abadia, o megatraficante colombiano ao chinês Law Kim Shong, um dos controladores da Rua 25 de Março, em São Paulo. Como ele diz: o “pessoal” não gostava de sua presença no Estado, mas a população aplaudia, porque a sociedade está cansada de corrupção e desvios de conduta em todos os níveis de autoridades de todos os Três Poderes. Nosso principal objetivo em Curitiba foi criar uma política pública de prevenção ao uso de drogas, porque tudo que costuma ser feito, nos três níveis de governo, é pontual: campanhas eventuais em rádio e TV, uma ou outra palestra em escolas ou uma igreja empenhada na recuperação de dependentes químicos. Nunca houve uma política bem definida para a cidade toda, com ações permanentes e pessoal capacitado para lidar com o problema. Em muitas situações, as operações que nossa equipe comandou e ob117 teve sucesso desmantelando quadrilhas, prendendo políticos e policiais corruptos, tirando de circulação perigosos traficantes, percebíamos uma aprovação enorme por parte da população. Senti que era preciso usar toda essa notoriedade, principalmente depois da prisão do traficante Juan Carlos Abadia, para chamar a atenção de lideranças que podem atuar no combate às drogas e para abrir os olhos de crianças e adolescentes para os riscos trazidos pelos entorpecentes. Só na Operação Farrapos, que prendeu o Abadia, foram indiciados pelo Ministério Publico (GAECO SP) por Corrupção: dois delegados e seis investigadores da Polícia Civil de São Paulo. Também um agente da Polícia Federal e um Suboficial da Força Aérea Brasileira foram presos e condenados em média de 9 a 10 anos de reclusão cada um, com perda de função pública. Prender policiais, especialmente, é perigoso e ficou difícil de andar na rua em São Paulo. Mas cumpri a missão, como cumpri em outros Estados. As palestras começaram já há alguns anos e até criamos um programa informal, executado nas horas de folga na Polícia Federal para aumentar o trabalho de prevenção, porque uma pesquisa mostrou números otimistas, de certa forma: 96% das crianças e jovens em idade escolar ainda não haviam sido conquistados pelas drogas. Havia muita esperança para eles, mas é preciso tornar as escolas um espaço saudável; e para os outros 4%, é preciso intensificar os programas de recuperação. Com a prisão de Abadia, nossa equipe foi promovida a algo parecido com o estrelato. E não podíamos deixar isso escapar. Por coincidência, o então prefeito de Curitiba, Beto Richa, de quem já era amigo, mostrou enorme preocupação com o alto índice de violência na cidade. Embora a segurança não seja atribuição municipal, ele disse que não podia ficar de braços cruzados. Levantamento feito nos crimes registrados pela polícia em 2007 revelou que mais de 70% dos crimes violentos tinham a participação de traficantes ou usuários de drogas. E mais: Curitiba ocupava a sétima posição entre as 27 capitais brasileiras com mais homicídios dolosos. 118 O Paraná tem alguns recordes de que não se orgulha. Foz do Iguaçu tem o maior índice de homicídios de adolescentes em TODO Brasil. De cada mil pessoas assassinadas, dez são adolescentes em Foz. A média nacional é de 2,3. Percebam a enorme diferença!! O Beto estava vendo isso de perto, porque percorria os bairros da cidade todos os dias. A primeira pessoa a sentir o efeito da violência não é o governador nem o presidente. É o prefeito e o vereador, as lideranças de bairro, o pastor, o padre. O Beto também estava cansado de ser procurado por pais que viram o filho morrer na porta de casa, baleado por traficantes; ou mães que diziam não saber mais o que fazer com os filhos, viciados em crack dentro das próprias escolas. Eu ainda chefiava a Delegacia de Repressão a Entorpecentes da Polícia Federal em São Paulo e o prefeito me pediu ajuda. Não dava para recusar porque tínhamos as mesmas preocupações. E começamos a fazer um estudo para ele, e concluímos que o importante não é apreender drogas ou prender pequenos traficantes. Claro que isso precisa ser feito também. Mas é na outra ponta que vamos ganhar a guerra contra as drogas e contra os crimes vinculados ao Tráfico Internacional. O importante é dar o primeiro passo! É preciso ter esperança. E eu acredito que estas palestras e reuniões são uma forma de chacoalhar a sociedade, de fazer pensar, chamar a imprensa para multiplicar e vários segmentos começarem a se mobilizar para enfrentar o problema! No Paraná estamos sentados sobre a maior rota de tráfico internacional de drogas que passa pelo Brasil nos dias de hoje. E muitas vezes, acaba logo ali, no Porto de Paranaguá. Muita droga entra por Foz do Iguaçu, pelo Lago de Itaipu e por Guaíra. Há poucos meses, foi apreendido um “container” com quase quatro toneladas de cocaína. Isso é muita droga!! E seguidamente a Polícia Federal apreende 2, 3 quilos de droga com gente que trabalha nos navios e leva para Europa. Ainda em São Paulo, começamos a estudar o Paraná, para ver o que 119 poderia ser feito para mudar a história da Segurança Pública no Estado. Hoje, só se pensa em comprar viaturas, apreender drogas e encher as cadeias. Fomos em busca de projetos que funcionavam em outros locais e eram certificados academicamente, que apresentavam resultados. Durante os dias em que Abadia ficou sob minha custódia na Polícia Federal em São Paulo, diariamente o tirava da cela, ligava a filmadora e conversava com ele. Quem era o pai, quem era a mãe, onde estudou, quando ele entrou na droga. Se era usuário, se era dependente. Por quê? O sábio chinês Sun Tzu, que escreveu a Arte da Guerra traçando estratégias, dizia: estude “soile” para saber como lidar com ele! Aprenda tudo o que ele sabe fazer de melhor ou de pior para você saber como agir contra ele. Passei vários dias estudando uma das maiores mentes criminosas do mundo, aquele traficante que tinha nas costas tantos homicídios, tráfico, violência, mortes em vários países. Chamo de “efeito Abadia” as perguntas que ele me fez durante essas conversas, e que fizeram uma diferença gritante no meu modo de pensar e de encarar o crime. A primeira pergunta que ele me fez, era quase uma provocação: “Dr. Francischini, o senhor acha que a minha prisão afetou o tráfico de drogas?” O que ele queria dizer com essa pergunta? Queria dizer que a prisão dele não afeta o tráfico. Porque cada traficante preso é substituído imediatamente. De fato, já no dia seguinte à prisão de Abadia, a polícia colombiana nos avisou: “Olha, já tem um novo Abadia na organização.” Um jovem preparado para assumir o lugar do chefão, se este fosse preso ou morto, a quem o tráfico pagou os estudos durante toda a vida, com pós-graduação nos Estados Unidos. E o que vale para o Abadia, vale para esse traficante que vende drogas aqui nas ruas das cidades brasileiras. Cada vez que a polícia prende um jovem que vende drogas, sem fazer uma grande investigação sobre o que existe atrás dele, nada acontece de 120 fato. Ele é substituído em segundos. O tráfico é uma atividade comercial. Tráfico visa mudar poder político? Tráfico visa mudar ação religiosa? Alguma coisa assim? Não! Tráfico é dinheiro. A única coisa que interessa é o bolso. E todos são substituíveis. Todos podem ser descartados a qualquer momento. Com o crack, a situação é ainda pior. As pessoas mais velhas costumavam dizer: “Traficante é esperto! Ele não usa droga!” “Só vende!” Hoje é diferente. O grande traficante trabalha para viciar os pequenos que vendem na esquina, nas ruas. Por quê? Porque ele vai ter o melhor vendedor do mundo, aquele que fica 24 horas sentado na beira de uma esquina, na porta de um colégio vendendo. Porque a cada 10 pedras que ele vende, ganha 2 para usar. E por que tanta violência no tráfico? Sob o efeito da droga, o vendedor não consegue fazer essa contabilidade. Acaba usando mais do que é autorizado ou até usando tudo. Quando está totalmente endividado, e não tem mais quem pague a conta, ele é descartado! Ele morre! Em Curitiba sabemos que os traficantes torturam o jovem ou a jovem antes de o matar. Em Foz do Iguaçu cortaram a cabeça de um menino de 12 anos; em Colombo, também cortaram fora a cabeça de uma garota de 19. Colocaram numa sacola de lixo e mandaram entregar na casa da família. Por quê? Para servir de exemplo para o bairro inteiro. Para que toda aquela vila fique sabendo que quem deixa dívidas com o crack não é só morto; é torturado com crueldade antes de morrer, para servir de exemplo. E isto é apenas uma parte da violência. Os índices de homicídio têm relação direta com o crack: 70% no Rio de Janeiro; 70% em Curitiba. Estatísticas altíssimas. A segunda pergunta do Abadia foi a que definiu a política pública de 121 Curitiba. “Doutor, o senhor acha que eu não sei que foi sua equipe que ajudou a derrubar o meu avião? O senhor acha que aquilo me afetou financeiramente?” Ele se referia a um avião no qual colocamos um GPS no motor, ajudados por pessoal do governo americano. O avião saiu vazio de Curitiba, reabasteceu em Manaus e desapareceu do radar brasileiro quando passou para o lado venezuelano da selva amazônica. Então o satélite americano continuou rastreando o avião, que pousou sem problemas e foi carregado com 3 toneladas e 600 quilos de cocaína. Quando sobrevoava a península do Yucatán no México, a Força Aérea interceptou o avião e mandou que ele baixasse. O avião não baixou e caiu. Os jornais cometaram, na época, que a força aérea teria derrubado a aeronave. Eu realmente cheguei a pensar que aquele golpe o tinha deixado com dificuldades financeiras. Pura ingenuidade. Três toneladas e 600 quilos de cocaína significam a mesma quantia em ouro. A cocaína pura custa R$ 60,00 mais ou menos. Havia cerca de US$ 200 milhões naquele carregamento. É muito dinheiro. E não abalou o traficante. A Polícia Federal tinha trabalhado meses para pegar um grande carregamento de Abadia. Ele comprava aviões a jato em Curitiba, São Paulo, Rio Grande do Sul, Santa Catarina. O avião saía vazio do Brasil, entrava na selva amazônica, desaparecia e reaparecia queimado na África ou no México. Abadia virou para mim e falou: “Olha, aquilo não fez nem cócegas.” E por que não fez? Porque a cada 20 carregamentos desses, a polícia só pega um. E isso acontece também com o pequeno traficante da rua. Quantos caminhões cheios de drogas passaram para a polícia conseguir pegar um? Muitos passaram! Por isso é que precisamos de políticas de Estado. A polícia inteligente 122 combatendo a corrupção dentro da polícia, combatendo a corrupção na política. Combatendo o dinheiro da droga que vai bancar campanhas políticas. Porque depois, o vereador, o deputado, o prefeito, até presidentes ficam amarrados e não podem agir contra o tráfico. A primeira coisa a fazer é a Repressão Inteligente. Quando se prende um traficante, é preciso fazer como a Polícia Federal tem feito nos últimos anos: prende o atravessador. Prende o financiador. Prende o empresário que dá uma de bacana na cidade, mas está lavando o dinheiro das drogas. Ele fica distante da droga e não quer nem saber. Ele dá R$ 10 mil e recebe R$ 20 mil no mês seguinte, e não quer saber o que está acontecendo. É preciso prender o intermediário, o policial envolvido com os traficantes para afetar realmente o tráfico. Enquanto prender só o menino da esquina que vende umas pedrinhas de crack, a gente não vai conseguir efeito algum. Prender a mula não é política de segurança. Isso é ação pontual que não resolve o problema do crime. E, por último, a prevenção! “Repressão Inteligente, Prevenção Existente!” Mas é difícil convencer um político, para aplicar dinheiro em prevenção. Por que é difícil? Porque quando o político asfalta uma rua, tem inauguração. Quando constrói um prédio, tem placa com o nome pregado lá. A placa vai ficar pregada por 20 anos, para ser vista em todas as reeleições. Agora, gastar dinheiro público de orçamento na prevenção? Em Curitiba, a primeira coisa foi convencer o prefeito. “Beto, você acredita que a prevenção pode fazer a diferença?” Ele acreditou! Por isso tem funcionado. É preciso preparar o professor que está na escola orientando o aluno; preparar o pastor, o padre, o pai, a mãe, para que eles saibam o que é a droga. Saber que aquela pedrinha não é um chiclete mastigável. É uma pedra de crack. E isso mata. 123 Todos têm que entender que alguma coisa precisa ser feita. Se ficarmos parados, vamos ser engolidos. E não adianta mais pensar que a droga só está na casa do vizinho. Concluimos então que precisamos do braço forte contra os grandes traficantes e o crime organizado e da mão amiga para os jovens nos projetos de prevenção e de recuperação gratuita da dependência química do Crack. O Projeto Curitiba Pesquisas mostraram que os bairros onde o tráfico era mais forte eram os mesmos onde havia mais homicídios. Então, se não enfrentássemos o tráfico de drogas trazendo a prevenção para as escolas, igrejas, não haveria diminuição no número de homicídios. Enquanto a Política de Segurança Pública for somente colocar viaturas policiais nas ruas, e a família não estiver preparada para evitar que o filho se envolva, continua tudo igual. Os adolescentes continuam morrendo, sendo presos, tornando-se criminosos profissionais. E o crime continua intocado. O segundo ponto, talvez o mais importantes desse projeto, é a Reincidência Criminal. É uma palavra difícil. Reincidir quer dizer o que? Cometer o crime novamente. O Ministério da Justiça tem uma estatística analisando os presos que voltaram a cometer crimes depois de terem sido presos a primeira vez: 83% voltam ao crime. Quer dizer: se eu soltar 10, mais de 8 vão furtar, roubar, traficar de novo. Portanto, o sistema está errado e falido. Se a reincidência é tão alta é porque ninguém está fazendo Reinserção Social. Cuidando para que, quando sair da cadeia, o jovem tenha uma nova chance. Um exemplo: um jovem de família que frequenta igreja; o pai, a mãe são pessoas que deram boa educação. Não tinha nenhum fator que o levasse ao crime, à droga. 124 Nunca cometeu um crime. Não tem exemplos negativos. Podia estar sentado aqui dentro com sua família, hoje. Mas tem a pressão do grupo de amigos e uma bela noite, o pai descobre que ele experimentou crack, sem saber que era uma viagem sem volta. E se torna um dependente químico. O pai se desespera, leva na igreja, faz oração, tenta fazer alguma coisa. Mas a dependência química vai engolindo aquele menino. E, aos poucos, começam os furtos dentro de casa. Portas e armários são trancados. Certo dia, fica dentro de um bueiro, porque ficou na rua, sem roupa, trocou tudo o que tinha de roupa no corpo pela droga. Tênis já não existe mais. Só chinelo. Se fosse uma menina, estaria se prostituindo para ter a pedra do crack. O menino também se prostitui, vai se degradando até que a família não aguenta mais. Não há família que aguente quando começa a violência. Pai matando filho. Filho matando pai. Houve dois casos de pais matando filhos, mês passado na Região Metropolitana de Curitiba, por causa do crack. O pai defendendo a família de jovens violentos sob a influência de drogas, querendo espancar a família inteira, e ele teve que atirar e matar o filho. Isso é o pior que pode existir no mundo. Um pai matar o próprio filho por causa da droga. E aí, a gente vê que acaba a relação familiar, e o pai e a mãe acabam botando na rua esse jovem. É esse jovem que vai para a praça perambular, porque não tem mais para onde voltar. Não tem local apropriado de tratamento de dependência química. Não tem uma mão estendida para ele. Acaba cometendo um crime pela primeira vez. Pega um tijolo no chão, olha e quebra a vidraça do carro para roubar o DVD. E acaba preso. Se for um jovem pobre, dependente químico, jogado nas ruas pela família, vai conseguir negociar com a Polícia Militar? “Olha, sargento, livra a minha aí, poxa! Tava brincando com esse tijolo e acertei o vidro”. Não, ele vai para o camburão. Algema e camburão. Não tem a mínima chance de conversa. 125 Na Delegacia da Polícia Civil, o delegado vai estar lá, esperando? Vão telefonar pro delegado, dizendo que um jovem foi preso porque quebrou o vidro de um carro. Dependente químico, pobre, expulso de casa. O delegado vai estar às 3 horas da manhã na delegacia? Não. O jovem vai ficar preso até o delegado chegar no dia seguinte, 9, 10 da manhã, pra ver se vai fazer o flagrante, o que vai fazer com esse jovem. A falta de efetivo da Polícia Militar e da Polícia Civil, os baixos salários das bases das instituições e as deficiências estruturais colocam aquele sargento e o delegado em posições difíceis e constrangedoras. Se o jovem levado à delegacia é pobre, dependente químico, jogado nas ruas, alguém vai estar pronto no final de semana pra dar um “habeas corpus” para esse jovem? Vai se preocupar se usaram algemas? Nem o juiz da cidade viu o caso ainda. Vão dizer que ele foi injustiçado? Estava brincando com tijolo e foi preso. Ninguém vai fazer isso. O jovem vai para cadeia, muitas vezes esquecido, abandonado. Aí começa a se fechar o ciclo do crime. Lembrem: família de bem, não tinha maus exemplos, tinha uma família da igreja. A dependência química o jogou dentro de uma cadeia. Se existe inferno, com certeza tem o cheiro da delegacia de polícia, de uma custódia. De um presídio. É terrível. Um amontoado de pessoas, sarna, doença venérea. Todas as doenças num cubículo. Um lugar onde cabem 30 pessoas tem 200. Três andares de redes para dormir. Escala de serviço pra poder dormir, porque não cabem todos no chão. Esse jovem é jogado lá dentro. Boa pinta, arrumado. A primeira coisa que vai acontecer é violência sexual. E deve ter alguém com Aids, alguma doença venérea, e esse jovem vai continuar nesse ciclo do crime. Ali, ele vai aprender de verdade. Se ele não era bandido, agora vai aprender. Vai passar 5, 6 meses convivendo com assaltante, com traficante, com homicida, estelionatário. Ele vai fazer uma faculdade. E quando botar o pé pro lado de fora, pelo menos estará recuperado da dependência 126 química? Nem isso, porque não há tratamento de dependência química, psicólogo, assistente social. Mas droga tem. E muita. Entra droga à vontade e a família é extorquida pelo traficante pra pagar a droga que o filho usa dentro da prisão. Então aquele menino, que além de deixar a família destruída, estar preso, faz a família, que recebe salário mínimo, pagar a droga dele, porque é avisada: ele vai ser morto na próxima rebelião. E a família trabalha pra pagar a droga dele dentro da cadeia. E quando ele sair? Seis meses depois, dependente químico, pobre, abandonado, o empresário vai dar emprego pra esse jovem ser motorista da família, cuidar do caixa do comércio? Não vai dar! Uma mulher vai contratar uma menina que passou pela cadeia para ser babá? Não vai, ninguém vai dar uma chance. Se não fizermos nada, estamos fazendo uma fábrica de criminosos. Cada vez que a Polícia Militar recolhe um jovem dependente químico da rua, que não é um traficante profissional, e o joga dentro de uma delegacia, estamos ajudando a produzir um criminoso profissional. Quem vai dar emprego a ele é o tráfico, o crime organizado. E é com ele que vamos cruzar num sinaleiro, que vai nos assaltar com uma arma... Infelizmente é o que tem acontecido em Curitiba e em praticamente todas as cidades brasileiras. A culpa não é do juiz, promotor, do delegado da Polícia Civil ou do coronel da Polícia Militar, mas sim da Política Pública de Segurança equivocada que está sendo aplicada em todo o Brasil. E a terceira constatação: Cidadania e Auto-estima. Faltam ações para os jovens nos bairros. Nas grandes cidades, todos vão para o shopping no final de semana, inclusive aqueles meninos que a gente chama de “carçudos”, é aquele menino do boné quadrado, que a bermuda chega ao meio do joelho, com um pedaço da cueca aparecendo nas costas, mas não é um bandido. Não é criminoso só pelo jeito de se vestir. É um jovem da periferia da cidade, que tem poucas atividades de cidadania, de esporte, 127 de cultura, de lazer onde ele mora. O esporte, a cultura, o lazer para ele é ir para o shopping. Então propusemos ao prefeito criar uma secretaria para formular políticas públicas municipais sobre drogas com prevenção, com reinserção social para esses jovens, para criar oportunidades de cidadania e auto-estima onde ele mora e no horário em que ele precisa. Assim nasceu a Secretaria Antidrogas de Curitiba. A primeira do país a ser criada em uma capital. Um projeto único que já se espalhou para mais 20 cidades do interior e 3 ou 4 capitais de Estados. Temos uma rede de colaboração. A própria ONU diz que o principal fator que leva o jovem à dependência química é a falta de informações. Usa o crack sem saber que crack é um caminho sem volta. Se ele usar o crack uma ou duas vezes, já foi. Não volta mais. A bebida alcoólica usada muito cedo pode aumentar a predisposição de uma pessoa se tornar dependente químico. Então planejamos: vamos fazer palestras educativas com líderes da sociedade, que agem como multiplicadores. Se eu for num colégio só com os alunos, fica ali. Se eu falar com as lideranças da nossa cidade, multiplico por cinquenta, por duzentos. Cada palestra tem um programa sério e, no final, meus bolsos costumam ficar cheios de papeizinhos: vinha uma professora escondida e colocava um papelzinho na minha mão, que dizia “o traficante da vila, fulano de tal, mora na casa tal.” Caramba! Será que alguém viu essa professora me dando papelzinho? Ele vai ser preso e ela vai correr risco de vida. Em outra palestra, um guarda municipal me entregava um papel e dizia que tal policial comanda o tráfico em determinada região. Criamos uma rede que se chama “Salomão” – aquele que tudo vê. É um site da internet que temos em Curitiba, onde a pessoa pode dar informações anônimas. Mas só os multiplicadores, as lideranças é que recebem senhas. Pessoas que vão dar palestras e podem escutar uma informação, fingir que não escutou, e repassar pela internet. 128 Temos uma central de Inteligência na Secretaria Antidrogas, em parceria com a Guarda Municipal. Alguns guardas, cada um na frente de um monitor, recebem essas informações on-line. Pesquisamos os antecedentes criminais, quem é o dono de tal placa de carro. Então eu assino uma informação para a Polícia Civil ou para a Polícia Militar e a liderança comunitária, evangélica, religiosa, não aparece. Não corre o risco de ser identificado, não vai precisar depor na Justiça nem vai ficar frente a frente com o traficante denunciado. É uma forma diferente, um sistema excelente e funciona bem. O número de trotes é mínimo. Estamos multiplicando projetos de geração de renda para os jovens. O primeiro curso que oferecemos é em parceria com uma faculdade - um curso de Web Designer. Os jovens em tratamento são enviados pelas Associações de Moradores e Comunidades Terapêuticas. A idéia é dar uma chance a esse jovem conseguir um emprego. O último passo é o banco de talentos. Estamos fazendo um estudo jurídico para inserir uma cláusula nos contratos assinados pela prefeitura que obrigue que uma porcentagem das vagas que a empresa gerar sejam preenchidas por jovens que têm dificuldade para encontrar emprego. São as vagas sociais. Criamos uma Rede de Comunidades Terapêuticas, em todas as nove regiões de Curitiba, com vagas sociais. Teremos um núcleo de recolhimento, de encaminhamento, de cidadania, que vai receber todas essas pessoas. A prefeitura vai contratar vagas para tratamento de quase mil pessoas por ano, dependentes químicas de droga. Vamos pagar um valor justo por mês para cada jovem ou para cada adulto internado. O Beto colocou orçamento suficiente para a secretaria funcionar bem. Quando foi criada, nosso orçamento era de R$ 1,2 milhão. Agora é de R$ 6 milhões. O novo prefeito de Curitiba, Luciano Ducci, médico conceituado, com certeza continuará o projeto que já tem cerca de R$ 1 129 milhão só para usar nas Comunidades Terapêuticas. Estamos ajudando as comunidades a se adaptarem a todas as exigências do Ministério da Saúde. Queremos evitar que esses meninos se transformem em bandidos. Eles não são bandidos, mas se deixarmos certamente se tornarão. E temos o programa BOLA CHEIA. Conheci esse projeto em Nova York, quando fui colaborar com a polícia norte-americana com informações sobre o Abadia. Pedi à prefeitura de Nova York para conhecer um projeto de prevenção. Numa noite, fomos com o administrador de um bairro, que disse ser um local em pé de guerra. Mas quando chegamos, foi um susto ao contrário: turistas com câmera pendurada no pescoço; igrejas abertas de madrugada; um bairro muito bonito, iluminado. O que tinha acontecido ali? O administrador contou que o ex-prefeito Rudolf Giuliani tinha implantado um projeto planejado por dois sociólogos (Broken Windows): eles diziam que o jovem se comporta de acordo com o ambiente em que vive. Se o ambiente é fechado, sujo, degradado, ele se comporta da mesma forma. Se ele é desrespeitado todos os dias, se não tem seus direitos básicos atendidos; se a casa em que mora é toda pichada, ele vai reagir com desrespeito às autoridades, com desrespeito ao pai e à mãe. Aos poucos, vai se tornando um bandido. O que o prefeito fez? Limpou aquele bairro. Trocou os vidros quebrados, rebocou os carros que estavam com os pneus furados, pintou as paredes. Arrumou todo o bairro. E o jovem começou a se comportar de uma forma diferente. Começou a sentir orgulho, a respeitar e não querer mais ir embora dali. E aí vem o BOLA CHEIA, que é o principal. A prefeitura reformou uma quadra de esportes que ficava entre esses blocos de apartamentos. E colocou a escolinha de basquete para funcionar durante a madrugada. No horário em que mais havia ocorrências na sexta, sábado e domingo. Eles chamavam de “Midnight Basketball”. Copiamos uma parte desse projeto. Abrimos as quadras de esportes de escolas da prefeitura de Curitiba nos horários de pico de ocorrências de 130 tráfico, de homicídio. Contratamos professores de Educação Física, assistentes sociais, psicólogos. Gente que vai ser amiga daqueles jovens. E no meio das brincadeiras, de lazer, do esporte, vão passando princípios, valores. Dois meses depois, exigem que voltem a estudar, caso contrário, não podem mais ficar. Mas o jovem já criou um círculo de amigos, uma rotina, começou a ser respeitado ali. E não quer sair. Ele volta a estudar. Com três meses, ele tem que deixar a assistente social visitar sua casa. Vamos saber se o pai é alcoólatra, se a mãe é prostituta, vamos ver qual é o problema daquela família. Ver onde a prefeitura, o governo do Estado, o governo federal podem entrar para ajudar aquela família. Em Brasília, na Ceilândia, que também copiou as bases do projeto de Nova York, o índice de homicídios de jovens já baixou em 25%. Lá se chama “Esporte à Meia-Noite.” Em três meses na região de Vila Formosa, em Curitiba, baixamos de uma média de 15 ocorrências policiais para cinco. Só tirando os meninos das esquinas em que vendiam drogas, que ficavam brigando na porta dos botecos com cachaça, com sinuca, e levando esses jovens para uma nova situação de cidadania, onde é respeitado e tem uma nova chance. Hoje, temos em média 1,2 mil adolescentes por noite no programa Bola Cheia em Curitiba. São 1,2 mil jovens que a cada dia renovam a expectativa de vida, jovens que poderiam não amanhecer vivos ou terem cometido um crime brutal contra a sociedade, e que, por estarem dentro de um projeto desses, estão ganhando um dia a mais de vida, e, talvez, nós também! Todos os projetos são articulados entre si. Para a reinserção social queremos gerar um emprego para ele. Se é dependente químico, vamos levá-lo para as Comunidades Terapêuticas. Temos tentado todos os dias, em Curitiba e na Região Metropolitana, levar mais um jovem a esses programas. Estamos dispostos a disputar, a 131 levá-lo pelo braço. Encarar cada menino e cada menina de uma maneira diferente, para tirá-los do tráfico, salvá-los do homicídio. O que pretendemos é plantar a semente de uma política pública linha dura contra os criminosos profissionais e mais humana e solidária para os nossos jovens. 132 133 Este livro foi impresso em tipos Rockwell e Adobe Jenson Pro, 11/14.5 no inverno de 2010 sobre papel alta alvura 90g pela Gráfica Fotolaser