Biocapital - grupo
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Biocapital - grupo
Universidade de São Paulo Escola de Comunicação e Artes Thiago de Azevedo Biocapital – as implicações da nova simbiose entre capital e Estado São Paulo 2014 Thiago de Azevedo Biocapital – as implicações da nova simbiose entre capital e Estado Monografia apresentada à Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Especialista em Gestão Integrada da Comunicação Digital nas empresas Orientador: Prof. Dr. Mauro Wilton de Sousa São Paulo 2014 Autorizo a reprodução total ou parcial deste trabalho por qualquer meio convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte. Azevedo, Thiago Biocapital – as implicações da nova simbiose entre capital e Estado. Thiago de Azevedo: orientador Mauro Wilton de Sousa. São Paulo – 2014. 32 fls. Monografia (Especialização Lato Sensu) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade da São Paulo, 2014. 1. Biocapital . 2. Tecnologia . 3. Capital. 4. Estado. Nome: Azevedo, Thiago de Biocapital – as implicações da nova simbiose entre capital e Estado Monografia apresentada à Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Especialista em Gestão Integrada da Comunicação Digital nas empresas Aprovado em: Banca Examinadora Prof. ______________ Julgamento: ________ Instituição: ______________ Assinatura: ______________ Prof. ______________ Julgamento: ________ Instituição: ______________ Assinatura: ______________ Prof. ______________ Julgamento: ________ Instituição: ______________ Assinatura: ______________ Dedicado a Paulo Cesar de Azevedo (in memorian) Agradecimentos À Carmen Lucia de Azevedo e Camila de Azevedo, pela paciência Ao Prof. Dr. Mauro Wilton de Sousa, pelo direcionamento À Profa. Dr. Beth Saad, pela chance À Profa. Bianca Marder Dreyer, pelo incentivo Ao amigo Eduardo Furtado, pelas conversas esclarecedoras E aos companheiros da primeira turma do Digicorp, pela amizade RESUMO AZEVEDO, T. Biocapital – as implicações da nova simbiose entre capital e Estado. 2014. 32 f. Monografia (Especialização Latu Sensu) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Desde a 1ª Guerra Mundial pode se notar uma cooperação entre militares e capitalistas. Essa cooperação, que pode ser chamada de complexo-militar industrial teve três fases distintas. Na primeira, que se estendeu no período entre as duas grandes guerras mundiais, a iniciativa privada se subordinava ao Estado. Na segunda, durante a Guerra Fria, houve uma equiparação entre iniciativa privada e Estado. Finalmente, após a Guerra Fria, o Estado é que passou a ser subordinado à iniciativa privada, pois esta assumiu o controle sobre o desenvolvimento de novas tecnologias. Neste cenário, há uma transformação na relação de consumo. Com o nível avançado de captura e análise de dados, o usuário passou a ser também um produto, já que sua atenção pode ser comprada pelos anunciantes. Com isso, o conceito que Michael Foucault desenvolveu sobre biopoder – um poder capaz de invadir a vida inteiramente – possa ser observado e ampliado. O acadêmico chileno Jaime Osorio, a partir dos estudos de Foucault, cunhou o termo biocapital, uma análise baseada no viés da produção. Propomos, entretanto, que esse termo possa ser analisado também a partir das relações de consumo e de como o comportamento de cada indivíduo é utilizado para reprodução do capital. Palavras-chave: Biocapital; Tecnologia; Capital; Estado ABSTRACT AZEVEDO, T. Biocapital – as implicações da nova simbiose entre capital e Estado. 2014. 32 f. Monografia (Especialização Latu Sensu) – Escola de Comunicação e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2014. Since the 1st World War a cooperation between military and capitalists can be noted. This cooperation, which may be called the military-industrial complex had three distinct phases. In the first phase, which spanned the period between the two world wars, private enterprise was subordinated to the state. On the second stage, during the Cold War, there was a match between private and state enterprise. Finally, after the Cold War, the state is now being subordinated to private enterprise, because it took control over the development of new technologies. In this scenario, there is a transformation in the consumption process. With the advanced level of data capture and analysis, the user has also become a product, since their attention can be purchased by advertisers. Thus, the concept that Michael Foucault developed on biopower - a power capable of invading life entirely - can be observed and expanded. The Chilean academic Jaime Osorio, from studies of Foucault coined the term biocapital, one based on the production bias analysis. We propose, however, that this term can also be analyzed from consumer relations and how the behavior of each individual is used for capital reproduction. Keywords: Biocapital; Technology, Capital; State. SUMÁRIO Introdução ................................................................................... 10 Antecedentes do complexo militar industrial .......................... 14 Impactos do novo complexo militar-industrial: o biocapital. 20 O biocapital como extensão do biopoder ................................. 24 Conclusão .................................................................................... 28 Referências .................................................................................. 30 Introdução No dia 17 de janeiro de 1961, Dwight Eisenhower ocupava as televisões dos Estados Unidos para pronunciar seu último discurso como presidente da nação. O discurso entraria para a história não só por descrever exatamente como foram os dois mandatos de Eisenhower, mas por prever, com exatidão, um futuro sombrio. “Um elemento vital para manter a paz é nossa presença militar”, disse Eisenhower. “Nossas forças devem ser poderosas e estar prontas para a ação imediata, para que nosso potencial agressor esteja tentado a arriscar sua própria destruição” 1. Ninguém melhor que Eisenhower para afirmar isso: logo em seu primeiro ano como presidente dos EUA, ele autorizou um golpe que depôs o presidente do Irã, em 1953, e jogou seu poder nuclear contra a China para sair da Coreia. “Este conjunto de uma imensa presença militar e uma grande indústria de armamentos é novo na vida dos Estados Unidos. A influência total – econômica, política e até mesmo espiritual – é sentida em cada cidade, em cada assembleia legislativa, cada agência do governo federal. Nós reconhecemos a necessidade imperativa para este desenvolvimento. Porém, não podemos deixar de compreender suas graves implicações. Nosso trabalho, recursos e sustento estão envolvidos; esta é a estrutura da sociedade. Nos conselhos de governo, devemos nos proteger contra a aquisição de influência indevida, intencional ou não, pelo complexo industrial militar. O potencial para o desastroso surgimento de um poder indevido existe, e continuará existindo”2. É interessante notar que o complexo militar industrial se consolidou justamente sob os olhos de Eisenhower. Em sua administração, os técnicos e especialistas agrupados na Rand Corporation (uma organização financiada pelo Pentágono e por instituições particulares, como a fabricante de aviões Douglas Aircraft Company, para criar estratégias e conceber produtos militares) receberam atenção especial. Uma teoria criada na Rand Corporation e que teria grande influência na consolidação do complexo militar industrial seria a da “Mutual assured destruction” (MAD; em português, “destruição mútua garantida”), baseada na ideia de equilíbrio desenvolvida pelo téorico dos Jogos John Nash – que também era funcionário da Rand Corporation. 1 Discurso disponível em http://coursesa.matrix.msu.edu/~hst306/documents/indust.html. Acessado em 31 de agosto de 2014. 2 Idem. 10 Segundo a teoria MAD, cada oponente teria força nuclear suficiente para destruir o outro; portanto, nenhum lado tentaria o primeiro ataque porque a resposta do oponente levaria a perdas inaceitáveis. Assim, o que se obtém é um equilíbrio pacífico, tenso, mas estável. Há um outro aspecto da teoria: para que este equilíbrio se mantivesse estável, ambos os lados teriam de manter a paridade também em armamentos – o que exigiria investimentos contínuos em tecnologia militar. Em última análise, este processo de alimentação permanente levou a um setor militar desproporcional ao governo dos Estados Unidos; na União Soviética, levou ao seu colapso. Pensadores mais apressados, desde Francis Fukuyama até o francês Jean Baudrillard, não perderam tempo em afirmar que a vitória dos Estados Unidos na Guerra Fria significava igualmente a supremacia da democracia liberal (ou da globalização, no caso de Baudrillard) e, por conseguinte, o final da história. Ecoando o cientista político David Bell, Fukuyama proclamou a morte das ideologias; Baudrillard afirmou que a própria ideia de progresso histórico estava morta. No entanto, algo passou despercebido por ambos: a emergência do inimigo religioso, muito mais fluido e real do que os comunistas. Resultado direto das intervenções norte-americanas no Oriente Médio (e mesmo da União Soviética, como no caso do Afeganistão), no intricado tabuleiro da Guerra Fria, o inimigo religioso adaptou as próprias teorias revolucionárias que emergiram nos anos 60 às suas crenças religiosas para lutar contra os infiéis. Estas teorias revolucionárias aceitavam o terrorismo como método justificado de luta, já que a opressão não deixava alternativa aos povos pobres e invadidos pelas superpotências. Porém, o inimigo religioso não se organiza em nações, mas sim em grupos religiosos; tem acesso às mesmas armas que seu oponente, já que se aproveita do mercado negro de armamentos surgido com o desmantelamento da União Soviética; é fluido, já que os membros destes grupos religiosos podem estar em qualquer lugar, visto que não estão restritos em nações; e, o que é ainda pior, aceita a morte em luta como purificação religiosa. Como lutar contra alguém que não teme a morte? A resposta foi transformar o complexo industrial militar, aparelhando-o para prever ataques, ao invés de intimidar o inimigo com armas cada vez mais letais. Concluiu-se que a vantagem militar estaria na tecnologia da informação e não em 11 armamentos, porque grupos religiosos não têm estrutura física para financiar e operar grandes centros tecnológicos de captura e processamento de dados. Saíram de cena as indústrias de equipamentos militares e aeronáutica para dar lugar a consultores e fornecedores de tecnologia e equipamentos tecnológicos. O governo norte-americano também mudou: se antes a CIA era o principal braço de operação na Guerra Fria, agora outras siglas assumiram o seu lugar, notadamente a National Security Agency (NSA, que nasceu em 1917, foi extinta nos anos 30, mas renasceu durante o mandato de Harry Truman, em 1952). Sob a nova estratégia de atuação e a nova configuração operacional, agora o complexo militar industrial se aparelhou para vigiar todo e qualquer cidadão, já que o inimigo poderia ser basicamente qualquer um. Saíram de cena as bombas nucleares para dar lugar a supercomputadores, capazes de processar milhões de mensagens escritas e faladas por segundo. Para obter acesso às estas mensagens, a NSA estabeleceu acordos com empresas de comunicação, sob a ótica da segurança (o que não é, de forma alguma, uma prática nova: já em 1929 a Western Union aceitava repassar os telegramas que enviava aos seus clientes para a agência antecessora da NSA, o MI-8). “Não devemos dar nada por certo. Apenas cidadãos alertas e informados podem impelir a trama apropriada da imensa maquinaria industrial e militar de defesa para usar métodos e metas pacíficas, para que a segurança e a liberdade possam prosperar juntas”, disse Eisenhower no mesmo discurso, mas poderiam ser palavras de Julian Assange, o fundador do Wikileaks, ou de Edward Snowden – o ex-funcionário da consultoria Booz Allen e da Dell, prestando serviços para a NSA, que vazou documentos do órgão e expôs seus métodos de violação de privacidade em nome da segurança. Ou até mesmo de Frank Church, o senador que investigou o órgão à luz do escândalo de Watergate, que levou à renúncia de Richard Nixon, em 1975. Assim como Henry Stimson, o secretário de Estado que fechou o antecessor da NSA, o MI-8, justificando que “cavalheiros não leem as correspondências de outras pessoas”, em 1929, Church conduziu uma investigação do senado que descobriu, dentre outras, uma parceria da NSA com o órgão britânico de inteligência GCHQ (Government Communications Headquarters) para vigiar os principais oponentes da invasão ao Vietnã nos Estados Unidos. 12 Julian Assange, vazando os telegramas secretos da Secretaria de Estado dos EUA, e Edward Snowden, denunciando os métodos de violação de privacidade da NSA, revelaram ao mundo as consequências do novo complexo militar industrial, que o filósofo francês Michel Foucault, no fim da vida, chamou de biopoder: a prática dos estados modernos e sua regulação dos que a ele estão sujeitos por meio de "uma explosão de técnicas numerosas e diversas para obter a subjugação dos corpos e o controle de populações". Em nome da segurança, e sob a ótica da desconfiança mútua que regia as principais estratégias criadas pela Rand Corporation durante a Guerra Fria, órgãos governamentais e a iniciativa privada se reuniram, em uma nova versão do complexo militar industrial revelado por Eisenhower, para ignorar qualquer lei de privacidade e tentar assim, manter a hegemonia do capitalismo, como sistema de produção, e da democracia liberal, como sistema político, no mundo. Esta aliança remodelada serve, portanto a dois propósitos: para o Estado, é um componente vital de sua nova estratégia de segurança; mas para as empresas, ela é fundamental para garantir a expansão contínua de seus lucros. Senão, como pensar no faturamento de empresas como Google ou o Facebook – nascidas na virada do século XX para o XXI - que são maiores do que o PIB de muitos países, em grande parte obtido por meio do rastreamento incessante da navegação do usuário pela internet? Este trabalho, através de uma pesquisa bibliográfica exploratória, baseada no artigo Biopoder e Biocapital, el trabajador como moderno homo sacer, de autoria do mexicano Jaime Osorio e no conceito de biopolítica desenvolvido por Michael Foucalut e presente nas obras Nascimento da biopolítica, História da Sexualidade e Vigiar e Punir, tenta compreender as implicações das ações deste novo complexo militar industrial sobre a sociedade em geral, e compreende quatro seções. A primeira recupera os antecedentes do complexo militar industrial, tentando proporcionar o contexto de sua criação. A segunda parte discorre sobre o impacto das tecnologias e estratégias criadas pelo complexo industrial militar na economia, quando aplicadas pelas empresas. Sugerimos, nesta seção, um complemento à ideia de biocapital proposta pelo teórico chileno Jaime Osorio, baseando-se nas ideias de Foucault sobre o biopoder. Já a terceira parte discorre sobre o nosso conceito de biocapital, explicando-o e contextualizando-o à luz das recentes estratégias empregadas pelo capital para transformar a existência do indivíduo em mercadoria; e finalmente, a quarta parte conclui o trabalho. 13 Antecedentes do complexo militar industrial Em 1946, o departamento do Tesouro dos Estados Unidos solicitou à embaixada norte-americana em Moscou que esclarecesse por que os soviéticos não estavam colaborando com duas instituições criadas durante a Conferência Monetária e Financeira das Nações Unidas que aconteceu em Bretton Woods, Estados Unidos, no ano de 1944: o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. O requerimento caiu nas mãos de George F. Kennan, então vice-líder da missão dos Estados Unidos em Moscou. Kennan respondeu em fevereiro do mesmo ano, argumentando cinco pontos fundamentais: o primeiro era que a URSS estava engajada em uma luta contra o capitalismo; que a URSS via grupos de esquerda (mas não comunistas) como um inimigo ainda pior: que a URSS poderia controlar marxistas em países capitalistas, como aliados; que a agressão soviética se baseava em no histórico nacionalismo russo e em sua neurose; e, finalmente, que a estrutura do governo soviético impedia análises objetivas ou precisas da realidade interna e externa3. No Reino Unido, ideias similares foram defendidas por Winston Churchill. Apesar de derrotado nas eleições de 1945, que lhe impediu de continuar as negociações de paz com os norte-americanos e os soviéticos como primeiro-ministro inglês, Churchill ainda era uma voz ativa. Em um discurso pronunciado em março de 1946, nos Estados Unidos, o inglês declarou que uma “cortina de ferro” havia caído sobre a Europa – uma clara menção ao estabelecimento de governos comunistas no Leste Europeu. Em 1944, os Estados Unidos propuseram aos ingleses e aos soviéticos um plano que impediria a Alemanha de se aparelhar futuramente e assim, iniciar outras guerras. Escolados pelo fracasso do plano francês aplicado ao final da 1ª Guerra Mundial, que buscou debilitar financeiramente os alemães ao cobrar pesadas reparações de guerra, 3 A mensagem de Kennan foi posteriormente publicada na revista Foreign Affairs, de julho de 1947. Disponível em http://www.foreignaffairs.com/articles/23331/x/the-sources-of-soviet-conduct. Acessado em 30 de agosto de 2014. 14 cuja crise resultante foi apontada por muitos como responsável pela ascensão do nazismo, o plano Morgenthau propunha retroceder a Alemanha para um estado agrário, com suas regiões industriais sendo anexadas pelos países vizinhos. Depois de muitas alterações, o plano foi aceito por Churchill e Stalin – mas, em 1946, com a eleição de Truman para a Casa Branca, o plano foi unilateralmente abandonado. Agora, os Estados Unidos afirmavam que uma Europa forte economicamente era necessária para a paz; estavam lançadas as bases para o plano Marshall. Para os soviéticos, tanto o discurso de Churchill quanto o plano Marshall equivaliam a uma declaração de guerra. Estes foram os primeiros passos na direção da Guerra Fria, e exigiram a criação de vários órgãos e iniciativas pelo governo norte-americano para conter o perigo soviético. A ideia de “contenção” foi delineada na mensagem de Kennan ao Departamento de Tesouro e aplicada no Plano Marshall: os Estados Unidos deveriam impedir a disseminação do comunismo por diplomacia, política e ações disfarçadas – tudo, menos a guerra. Nesse sentido, os órgãos e as iniciativas colocadas em operação nos primeiros anos de Guerra Fria serviram para este propósito – em especial a Rand Corporation, fundada em 1946 com um pequeno grupo de cientistas e US$ 10 milhões de orçamento, pelo general Henry Arnold4. A Rand Corporation (Rand seria as iniciais de Research and Development) cresceria em importância nos anos seguintes, atraindo mais cientistas e obtendo mais verba do governo federal. Da Rand saíram as principais invenções que definiriam o século XXI, como a internet, os satélites de comunicação e o computador5. Além disso, a Rand Corporation criaria as principais estratégias empregadas durante a Guerra Fria. Teóricos da Rand desenvolveram uma nova ferramenta matemática, a Teoria dos Jogos, para tentar prever os possíveis desfechos de uma guerra nuclear entre os Estados Unidos e a União Soviética. Durante seu apogeu, nos anos 1950, a instituição (sediada nas instalações da fabricante de aviões Douglas) não só influenciou a Guerra Fria, também como as Ciências Sociais, nos Estados Unidos6. Talvez o mais famoso destes matemáticos seja John Nash. Foi seu trabalho, publicado antes de sua entrada na Rand, que permitiu que a instituição adotasse a Teoria 4 http://mentalfloss.com/article/22120/rand-corporation-think-tank-controls-america. Acessado em 30 de agosto de 2014. 5 Idem. 6 NASER, S. Uma Mente Brilhante”, p. 130. Rio de Janeiro: Editora Record, 8ª edição, 2006. 15 dos Jogos. Nash conseguiu provar que mesmo em jogos onde não há cooperação pode surgir um equilíbrio, isso porque ao desenvolver suas estratégias, os jogadores se dão conta de que podem maximizar seus ganhos se encontrarem um meio de colaborar. Porém, como fazer com que Estados Unidos e União Soviética cooperassem? A resposta seria dada por outra estratégia, chamada de “destruição mútua garantida”, ou MAD (Mutual Assured Destruction). Baseada na teoria de “deterrance” (em que o desenvolvimento de armas cada vez mais letais serve para ameaçar o adversário e assim, evitar o uso destas mesmas armas), MAD supunha que, com o desenvolvimento de armas cada vez mais letais, a destruição do adversário é certa; assim, para evitar sua destruição, o adversário não utiliza suas próprias armas, evitando assim a destruição mútua dos dois oponentes. Esta estratégia foi usada por toda a Guerra Fria, e é responsabilizada pela tensa paz que vigorou durante a Pax Americana. É interessante observar que a teoria foi criada pelo mesmo inventor da Teoria dos Jogos, John Von Neumann. John Von Neumann foi um matemático húngaro que emigrou aos Estados Unidos em 1930, depois de lecionar em Berlim. Ele não foi um caso isolado: muitos dos funcionários e pensadores mais destacados que apoiaram a Guerra Fria, como Henry Kissinger (nascido na Alemanha, fugiu do nazismo em 1938) e Isaiah Berlin (nascido na Rússia, fugiu dos comunistas em 1920). Junto com eles, viria também uma visão pessimista do homem que seria aceita pela Teoria dos Jogos: para estes intelectuais, o homem é um ser egoísta, que age apenas em interesse próprio e que, portanto, só pode desconfiar do próximo. Assim, as sociedades viveriam em competição contínua, e qualquer tentativa de mediação desta competição pelo Estado só poderia resultar em regimes totalitários. Na economia, estas ideias eram também defendidas por dois pensadores influentes: Frederich von Hayek (nascido no antigo Império AustroHúngaro, fugiu do nazismo em 1938) e Ayn Rand (nascida na Rússia, emigrou para os Estados Unidos em 1926). Junto com a Pax Americana, veio também a hegemonia do Keynesianismo. John Maynard Keynes publicou, em 1936, “Teoria Geral do Juro, do Emprego e da Moeda”, que se tornaria a principal referência econômica pelo menos até a crise do petróleo de 1973. Para Keynes, os governos deveriam corrigir os desequilíbrios naturais do mercado por meio de investimentos em infraestrutura, que assim ajudariam a reduzir os efeitos de 16 tais desequilíbrios, principalmente o desemprego. No entanto, Hayek e Rand advertiam que o mercado poderia se ajustar sozinho para corrigir tais desequilíbrios, pois o governo não teria como saber exatamente como intervir no mercado, dada a sua complexidade. Assim, qualquer intervenção governamental no mercado seria uma violação dos direitos econômicos de cada participante do mercado, o que, em última análise, levaria ao surgimento de regimes totalitários, como argumentou Hayek em seu livro mais influente, “O Caminho para a Servidão”, ou no tolhimento das potencialidades individuais, como Rand contou em “A Revolta de Atlas”. Os investimentos norte-americanos em defesa e segurança tentavam equilibrar as duas propostas econômicas. Os recursos liberados pela administração federal eram canalizados para contratos com empresas privadas – o que permitiu, por exemplo, que as tecnologias imaginadas pela Rand Corporation fossem exploradas comercialmente. No entanto, esta abordagem daria início ao que Eisenhower chamaria de “complexo militar-industrial”, em seu último discurso como presidente dos Estados Unidos, em 1957. A aliança entre militares e capitalistas também não surgiu na Guerra Fria, mas na 1ª Guerra Mundial. A princípio, era uma aliança principalmente baseada na colaboração; à medida, porém, que as exigências de segurança se tornavam mais complicadas, a relação passou a ser de simbiose. Então, o MI-8 (órgão de vigilância dos Estados Unidos, anterior à NSA) poderia solicitar à Western Union que repassasse à agência os telegramas que emitia ou recebia; porém, quando as exigências de defesa passaram a incluir o desenvolvimento de armamentos, o nível de envolvimento da iniciativa privada com o governo teria de se tornar igualmente maior. Como demonstrado no caso da Rand Corporation, esta relação de simbiose começava com o governo, imaginando tecnologias e aparatos de defesa e repassando estes projetos à iniciativa privada, que os desenvolveria com financiamento estatal. Posteriormente, a iniciativa privada poderia explorar comercialmente tais projetos – no que o filósofo francês Paul Virilio chamaria, nos anos 70, de “o modelo da guerra”: projetos e tecnologias militares que impulsionam a história (“a história progride na velocidade dos seus sistemas de armamentos”, escreveu Virilio em “Velocidade e Política”). 17 Não só a Douglas financiou e hospedou a Rand Corporation, como também se beneficiou de muitos projetos de desenvolvimento de aeronaves que ela fabricou. Igualmente a IBM se beneficiou da tecnologia criada no aparato estatal para fabricar o primeiro computador em escala comercial; o que pretendemos deixar claro aqui é que o “complexo militar-industrial” denunciado por Eisenhower só pode ser alcançado pela integração entre Keynesianismo e a Guerra Fria. Foi essa integração, justamente, que levou ao final da Guerra Fria: em 1980, com o projeto “Guerra nas Estrelas”, o governo de Ronald Reagan injetou não apenas quase um trilhão de dólares na economia, como impossibilitou que a União Soviética acompanhasse a escalada de gastos militares na mesma proporção. A implosão da “Cortina de Ferro”, que se seguiu à “glasnost” de Gorbatchev, foi ironicamente o sucesso da estratégia MAD. O inimigo não foi derrotado pelo uso de armas nem no campo ideológico, mas pela economia. O colapso da União Soviética e o subsequente fim da Guerra Fria não colocou um fim ao “complexo militar-industrial”, como seria de se esperar. As seguidas intervenções no Oriente Médio criaram um novo tipo de inimigo, agora mais fluido, menos definido, e alteraram não só as feições deste complexo, mas também a própria noção de guerra. As invasões do Afeganistão, pela União Soviética, em 1979, e dez anos depois, do Kuwait, em 1989 – culminando com a invasão do Iraque, em 2003 – despertaram um novo tipo de conflito: ao invés de nações, o inimigo agora eram grupos religiosos. Ao invés de invasões, agora o inimigo se infiltra em territórios para desferir seus golpes, normalmente sob a forma de atentados. Esta nova forma de guerra levou a uma terceira fase do “complexo militar-industrial”: se antes a iniciativa privada se subordinava ao Estado (até a 2ª Guerra Mundial) e depois, a iniciativa privada se aliou ao Estado (Guerra Fria), agora é o Estado que se subordina à iniciativa privada, pois perdeu o controle sobre o desenvolvimento das novas tecnologias, que começaram a nascer a partir das próprias tecnologias que o Estado desenvolveu. A tecnologia de rastreamento do comportamento do usuário de sites na Internet é um exemplo. Sem esta tecnologia, o sistema de vigilância empregado pela NSA não teria a abrangência denunciada por Edward Snowden. Nesta nova relação, os princípios básicos de privacidade individual foram ignorados em nome da segurança coletiva – exatamente como nos dois estágios anteriores do “complexo militar-industrial”. A diferença, no entanto, está em que o Estado não consegue mais justificar tal violação 18 como antes; as denúncias de Julien Assange e de Edward Snowden mostram que, apesar de ainda concordarem com os princípios de vigilância da Guerra Fria, as sociedades contemporâneas exigem novos métodos de defesa. Não há contradição nenhuma aqui: agora, as sociedades participam ativamente de um sistema de comunicação que passou a ser considerado o próprio paradigma de liberdade democrática, e qualquer tentativa de supressão desta liberdade afeta uma quantidade de pessoas muito maior que a parceria entre o MI-8 e a Western Union afetou. Na próxima seção, analisaremos os impactos que a nova configuração do “complexo militar-industrial” gerou sobre a sociedade ocidental. 19 Impactos do novo complexo militar-industrial: o biocapital Talvez a consequência mais surpreendente do terceiro estágio do complexo militar-industrial, no campo da economia, tenha sido a transformação da relação entre mercadoria e consumidor. Agora, um é o outro: como notou o cyberativista Andy Müller-Maguhn, “o usuário do Facebook é o produto, e os verdadeiros clientes são as empresas anunciantes7”. Isso porque o pilar fundamental da simbiose entre Estado e empresa privada, que caracteriza o terceiro estágio do complexo militar-industrial, é a captura de dados dos indivíduos. Estes dados são posteriormente analisados, com dois vieses: se a análise se dá pelo Estado, seu fim é a segurança nacional; se a análise é executada pela empresa, sua finalidade é aumentar os lucros. Vejamos como isso se realiza quando a empresa utiliza dados dos seus usuários para seus próprios fins. Há, basicamente, duas estratégias pelas quais uma empresa pode extrair valor dos dados que captura de usuários. A primeira é a discriminação por preço, definida como a capacidade de precificar um produto conforme o cliente, usando principalmente os atributos pessoais daquele cliente8. A segunda é a discriminação por navegação: a capacidade de uma empresa em precificar um produto conforme a navegação de um usuário por outros sites na Internet até chegar ao website daquela empresa específica. Esta empresa usará estes dados para então definir um preço para a sua mercadoria àquele usuário, que será diferente do preço que será exibido a outro usuário que tenha histórico de navegação distinto. Neste novo ambiente econômico, o ativo de maior valor é, portanto, os dados do usuário – ou seja, o usuário em si. Por dados, não estamos nos referindo a apenas dados econômicos, sociais ou geográficos dos usuários, mas também do comportamento destes usuários em websites ou em aplicativos conectados a websites. O especialista em segurança e analista de sistemas operacionais móveis da Apple, Jonathan Zdziarski, declarou que o novo aplicativo Messenger do Facebook, para sistemas operacionais da 7 ASSANGE, J. et al. Cypherpunks: Liberdade e o Futuro da Internet, p. 78. São Paulo: Editora Boitempo, 1ª edição, 2013. 8 MIKIANS, J.; GYARMATI, J.; ERRAMILI, V.; LAOUTARIS, N. “Detecting Price and Search Discrimination on the Internet”. Disponível em http://conferences.sigcomm.org/hotnets/2012/papers/hotnets12-final94.pdf. Acessado em 13 de setembro de 2014. 20 Apple, é capaz de registrar tudo que é possível em um dispositivo móvel de um usuário, incluindo onde e o que um usuário digita em seu celular, e até se este usuário utiliza seu celular na posição horizontal ou vertical9. Um novo setor econômico surgiu para explorar a viabilidade econômica destas informações pessoais, composto não só por empresas que capturam estes dados, mas que os analisam e os utilizam em estratégias comerciais para empresas que produzem mercadorias tangíveis. É um processo de retroalimentação: os mesmos dados que os usuários geram ao navegar serão usados pelas empresas para oferecer produtos a estes mesmos usuários. Ou, como prefere o geógrafo David Harvey, “a organização, mobilização e canalização dos desejos ativos através de uma dedicação política ativa às táticas de persuasão, vigilância e coerção... produzindo... todo o tipo de pressões sobre o corpo como âmbito e agente performativo do consumo racional para maior acumulação10”. Assim, os dados econômicos, sociais, geográficos e comportamentais dos indivíduos são usados tanto para campanhas publicitárias quanto para precificar produtos conforme cada usuário, subvertendo assim a noção clássica de preço e valor. Ao mesmo tempo, ocorre o que Foucault identificou em seu livro “Vigiar e Punir”: “A multidão, massa compacta, local de múltiplas trocas, individualidades que se fundem, efeito coletivo, é abolida em proveito de uma coleção de invidualidades separadas 11”; mas, se em Foucault tal separação é espacial, aqui esta separação é por capacidade de consumo. Conforme uma matéria publicada no jornal Wall Street Journal, o website Orbitz.com, especializado em turismo, exibe ofertas de hotéis com preços superiores com maior destaque para usuários que acessam o site usando computadores da Apple em relação aos preços exibidos para usuários de computadores utilizando o sistema operacional Windows. Além destes critérios, o website também usa o histórico de navegação, reservas anteriores feitas pelo usuário em Orbitz.com e a localização do usuário para determinar o valor das reservas de hotéis pelo site 12. Desta forma, é 9 Conforme reportagem publicada na revista eletrônica Motherboard. Disponível em http://motherboard.vice.com/en_uk/read/facebooks-messenger-app-is-tracking-a-lot-more-of-your-datathan-you-think. Acessado em 13 de setembro de 2014. 10 HARVEY, D. Espaços de Esperança, p. 153. São Paulo: Edições Loyola, 1ª edição, 2004. 11 FOUCAULT, M. Vigiar e Punir, p. 177. Petropólis: Editora Vozes, 3ª edição, 1984. 12 “On Orbitz, Mac Users Steered to Pricier Hotels”, in Wall Street Journal, 23 de agosto de 2012. Disponível em 21 possível cobrar valores diferentes pelo mesmo produto, com base não no seu custo de produção, mas sim na capacidade e no desejo do usuário em pagar o valor que lhe é cobrado por aquele produto. Outra estratégia envolve a exibição de preços por localização geográfica. Segundo o Wall Street Journal, a loja de materiais para escritórios Staples oferece preços menores para consumidores localizados mais próximos de lojas físicas de concorrentes do que para consumidores mais distantes, para o mesmo produto. Além disso, o jornal descobriu que a Staples também considerava a renda do bairro em seus métodos de precificação: assim, clientes que moram a mais de 32 quilômetros de uma loja física rival e em bairros com renda mais alta também pagavam mais por um produto que outros clientes em outros locais. Em alguns casos, a diferença de preço chegava a 67%13. Em um artigo intitulado “Biopoder e biocapital: o trabalhador como moderno homo sacer”, o teórico chileno Jaime Osorio aponta que, ao entregar sua força de trabalho ao meio de produção, o trabalhador não consegue separá-la da sua própria existência. Ou seja: sem vida e sem corpo, não há força de trabalho14. Osorio chama a este fenômeno de biocapital: “as particularidades do biopoder no contexto em que o capital, sua dinâmica e sua reprodução, regem o sentido do mundo e de sua organização15”. Tomamos a liberdade, portanto, de realizar o mesmo método de Osorio (a saber: aplicar o conceito de biopoder, conforme estipulado por Foucault e posteriormente retomado por Giorgio Agamben, a um campo da economia) para propor uma nova dimensão à ideia de biocapital. Osorio tratou da relação capital-trabalho, ou seja, da produção; aqui, pensamos a relação mercadoria-indivíduo, ou seja, do consumo. Assim, propomos uma segunda formulação para o conceito de biocapital: como o capital se http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424052702304458604577488822667325882.. Acessado em 13 de setembro de 2014. 13 “Websites Vary Prices, Deals Based on User’s Information”, in Wall Street Journal, 24 de dezembro de 2012. Disponível em http://online.wsj.com/news/articles/SB10001424127887323777204578189391813881534. Acessado em 12 de setembro de 2014. 14 OSORIO, J. “Biopoder e biocapital. El trabajador como moderno homo sacer”. Disponível em http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-33/biopoder-y-biocapital-el-trabajador-comomoderno-homo-sacer. Acessado em 13 de setembro de 2014. 15 Ibidem 22 apropria do comportamento do indivíduo, como ser vivente dotado de desejos e necessidades, para se reproduzir. É neste sentido, portanto, que as estratégias de vigilância criadas durante a Guerra Fria e que foram adotadas e expandidas no terceiro estágio de desenvolvimento do complexo militar-industrial devem ser entendidas. Se em Osorio o trabalho é uma mercadoria, como já apontara Marx, aqui a mercadoria é o próprio indivíduo: seu comportamento, determinado por suas características físicas, econômicas, sociais e geográficas, que são capturadas e analisadas para se transformar em mercadoria consumida por este mesmo indivíduo. Este comportamento é transformado em dados que, por sua vez, geram lucros de duas formas. A primeira é pela criação ou promoção de mercadorias que buscam prever seus desejos e necessidades; a segunda é pela própria comercialização destes dados – como tentamos mostrar acima. 23 O biocapital como extensão do biopoder A ideia de que o controle econômico possa ser exercido através do corpo não é nova. Karl Marx já apontara que “enquanto valor, a força de trabalho representa apenas determinada quantidade de trabalho social médio nela corporificado. Não é mais que a aptidão do indivíduo vivo. A produção dela supõe a existência deste16”. Marx define força de trabalho como “o conjunto das faculdades físicas e mentais existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez que produz valores-de-uso de qualquer espécie17”. Não é difícil identificar nestas passagens a influência da definição de salário por David Ricardo: “o preço natural do trabalho é aquele necessário para permitir que os trabalhadores, em geral, subsistam e perpetuem sua descendência, sem aumento nem diminuição18”. Francis Wheen identifica também ecos de Adam Smith na definição de Marx, ao lembrar que o escocês escreveu que “a demanda por homens necessariamente governa a produção dos homens, como qualquer outra mercadoria19”. É nessa linha de pensamento que Foucault identifica o desenvolvimento do biopoder no século XVII em duas formas principais. A primeira é “centrada no corpo como máquina: sua educação, o aumento de suas aptidões (...) sua docilidade, sua integração a sistemas de controle eficazes e econômicos (...)20”. A outra “se forma (...) em meados do século XVIII, foi centrada no corpo-espécie (...) e que serve de suporte aos processos biológicos: (...) os nascimentos e a mortalidade, o nível de saúde, a duração da vida (...)21”. Assim, Foucault julga que emerge um poder com a função não mais de matar, mas sim de invadir a vida inteiramente22, tanto no âmbito social quanto no político. 16 MARX, K. O Capital, volume 1, p. 201. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 29ª edição, 2011. 17 Op. cit., p. 197. 18 RICARDO, D. “Princípios de Economia Política e Tributação”. In Os Economistas, p. 67. São Paulo: Círculo do Livro, 1996. 19 WHEEN, F. O Capital de Marx (Uma Biografia), p. 55. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 2007. 20 FOUCAULT, Historia de la sexualidad I – La voluntad de poder, p. 168. Cidade do México: Siglo XXI Editores, 1977. 21 Op. cit., p. 168. 22 Op. cit., p. 169. 24 Para Foucault, talvez ecoando Ricardo e Smith, o próprio desenvolvimento do capitalismo dependeu fundamentalmente do biopoder: “[o capitalismo] não pôde se afirmar sem o preço da inserção controlada dos corpos no aparato de produção, mediante um ajuste dos fenômenos de população aos processos econômicos23”. Jaime Osorio aponta que Foucault pouco se deteve no âmbito econômico do biopoder, concentrando-se nos seus aspectos sanitários. Porém, Osorio afirma que são os vínculos econômicos que compõem a base primordial para construir uma reflexão sobre o biopoder. Ele vai adiante, ao postular que “o campo do biopoder se aloja na relação capital-trabalho, que é a que articula o mundo social em que os homens se desenvolvem hoje24”. Como vimos acima, Osorio afirma que é impossível dissociar força de trabalho da existência; a afirmação parece óbvia a uma análise superficial, mas se recorrermos à Marx, a ideia ganha outros tons: “(...) é a sociedade que regula a produção geral e me possibilita fazer hoje uma coisa, amanhã outra, caçar de manhã, pescar à tarde, pastorear à noite, fazer crítica depois da refeição, e tudo isto a meu bel-prazer, sem por isso me tornar exclusivamente caçador, pescador ou crítico25”. Ou seja: ao vender sua força de trabalho, o indivíduo também se priva de determinar a direção de sua vida. Porém, na dimensão do consumo, o biocapital transforma a própria vida do indivíduo em mercadoria, não através da venda da força de trabalho, mas quando o indivíduo oferta gratuitamente sua própria vida, que é traduzida pelos dispositivos tecnológicos em dados que, por sua vez, são utilizados pelas empresas para prever os futuros comportamentos e desejos deste mesmo indivíduo. Em outras palavras: o indivíduo fornece gratuitamente e, quase sempre, sem saber, os dados que serão traduzidos em produtos e serviços que ele consumirá posteriormente, a um custo. Além da diferença entre obter os dados gratuitamente do indivíduo, mas revendê-lo a um preço, na forma de produtos e serviços, ao mesmo indivíduo, o capital também se reproduz a partir de um aspecto inerente à sua configuração: o valor dos 23 Op. cit., p. 171. OSORIO, J. “Biopoder y biocapital: El trabajador como moderno homo sacer”. Disponível em http://www.herramienta.com.ar/revista-herramienta-n-33/biopoder-y-biocapital-el-trabajador-comomoderno-homo-sacer.. Acessado em 15 de setembro de 2014. Tradução do autor. 25 MARX, K. A Ideologia Alemã”, volume 1, p.41. Lisboa: Editorial Presença, 1980. 24 25 dados aumenta com a sua abundância, e não ao contrário. Isso porque cada indivíduo aporta seus dados à rede de usuários conectados entre si, e a cada adição de novo usuário, maior será o valor da rede. Daí existirem empresas específicas, como redes sociais e subsidiárias de grupos de comunicação, para captar e comercializar estes dados a outras empresas. Assim, é preciso agregar valor a estes dados ou à rede para que o capital continue a se reproduzir. Para elevar o valor da rede, é necessário agregar mais usuários a ela – o que é feito ao se reduzir o preço de aparelhos que realizam tal conexão, como smartphones e tablets. No entanto, agregar valor aos dados é muito mais difícil, porque implica em criar novas tecnologias para aprimorar as técnicas e estratégias de rastreamento de usuários. Atualmente, estas técnicas permitem capturar praticamente todo o comportamento dos indivíduos conectados à rede. Portanto, para agregar ainda mais valor aos dados, é necessário ir além: à psicologia do indivíduo. É o que parece ser um experimento conduzido pelo Facebook em 2012, com quase 700 mil usuários, e divulgado em meados de 201426. O experimento consistiu em regular o fluxo de posts de tom positivo e negativo para os usuários selecionados, para saber se as emoções contidas em tais posts se refletiriam nos posts criados por aqueles usuários. Assim, por uma semana, o Facebook rastreou as publicações destes usuários após a manipulação de seus “news feeds”. Dentre as conclusões do experimento, há duas de especial relevância para este trabalho. A primeira é que as emoções expressas por outros usuários influenciam as emoções de outros usuários, o que “constitui evidência experimental para contágio em grande escala via redes sociais27”. A segunda é que “pessoas menos expostas a publicações emotivas (de ambos os valores) em seus ‘news feeds’ publicaram menos nos dias seguintes, o que pode implicar que a expressão emocional afeta o engajamento social online28”. É neste sentido que entendemos o biocapital como uma extensão do biopoder: seja ao vender sua força de trabalho, seja ao consumir os produtos criados à sua imagem 26 O estudo está disponível, na íntegra, no endereço eletrônico http://www.pnas.org/content/111/24/8788.full. Acessado em 17 de setembro de 2014. 27 Op. cit. 28 Conforme o estudo mencionado. 26 e semelhança a priori, a matéria prima que o indivíduo dispõe para o trabalho e o consumo é a sua vida. 27 Conclusão Argumentamos neste trabalho que o desenvolvimento do complexo industrialmilitar, em simbiose com o capital privado, levou à transformação da própria vida humana em mercadoria. O desenvolvimento do complexo industrial-militar, em simbiose com o capital privado, teve três fases. A primeira marcou o domínio do Estado sobre o capital, em que o primeiro subordinava o segundo para executar suas estratégias de vigilância; a segunda fase foi a parceria entre Estado e capital, para criar e executar estas estratégias; e a terceira fase, sob a qual agora vivemos, marca a dependência do Estado em relação ao capital. Tomemos por exemplo a Oracle, principal fabricante de bancos de dados e sediada nos Estados Unidos. Nascida de um projeto de banco de dados nacional criado pela CIA nos estertores da Guerra Fria, a empresa fornece bancos de dados para as principais empresas de tecnologia atualmente, como afirma seu fundador, Larry Ellison: “Os bancos de dados da Oracle rastreiam praticamente qualquer coisa. As informações sobre suas contas bancárias, suas reservas de passagem aérea, os livros que você comprou na Amazon.com e seu perfil no Yahoo!29”. Ellison escreveu, em um artigo no New York Times publicado após os ataques aos Estados Unidos em setembro de 2001, que “um banco de dados de segurança nacional, combinado com biométrica, impressões digitais, impressões manuais, scans da íris ou o que for melhor pode ser usado para detectar pessoas com falsas identidades”. Não é preciso muita imaginação para pensar que este seria um produto com forte apelo para instituições financeiras, por exemplo. Assim, esta é a característica marcante da terceira fase do complexo industrial-militar: estratégias que servem para a vigilância também servem para reproduzir o capital. NOVAK, M. Larry Ellison’s Oracle started as a CIA project. Paleofuture. 20 set. 2014. Disponível em <http://paleofuture.gizmodo.com/larry-ellisons-oracle-started-asa-cia-project-1636592238>. Acesso em 20 de setembro de 2014. 29 28 Esta ambivalência se dá pela transformação da própria vida do indivíduo em mercadoria, já que estas estratégias são aplicadas para obter dados sobre a própria existência do indivíduo, que são utilizados não apenas para conceber novos produtos, mas novos meios de indução a compras de produtos. Em “A Sociedade Afluente”, lançado em 1959, o economista canadense John K. Galbraith afirma que para se sustentar, o capitalismo teria de criar novas necessidades e desejos; agora, o verbo passou de “criar” para “prever”: ao dominar a vida do indivíduo, o capital consegue saber, antes mesmo dos indivíduos, as próximas tendências de consumo. Para tanto, é necessário que o indivíduo se conecte a uma rede global de usuários de serviços de tecnologia, como websites de redes sociais e mecanismos comparadores de preços. A significativa redução dos custos de aparelhos que permitem tal conexão, como telefones celulares, tablets, computadores e até mesmo relógios - é o principal mecanismo de expansão desta rede global, e implica em uma transferência de valor. Agora, as informações são mais valiosas que a tecnologia que as captura. Assim, estas estratégias de vigilância, quando aplicadas para a reprodução do capital, geraram um mercado específico: o de captura e análise de dados, que são comercializados para empresas fabricantes de produtos e serviços. Este fenômeno é o que chamamos, neste trabalho, de biocapital, com base nas ideias de Jaime Osorio que, por sua vez, as elaborou sobre o conceito de biopoder, proposto por Michel Foucault. Osorio utilizou as ideias de Foucault sobre uma sociedade baseada na vigilância do poder sobre a vida para pensar a relação trabalho/capital. Neste sentido, segundo Osorio, o trabalhador, por não poder dissociar a venda de sua força de trabalho da sua própria vida, acaba sendo objeto de estratégias de saúde com vistas não só a prolongar sua capacidade de trabalho, mas também de aumentá-la. Neste trabalho, nós nos ocupamos de outra dimensão do biocapital: a relação entre indivíduo e mercadoria, sob o prisma de que, agora, o indivíduo é a mercadoria. Para este trabalho, é a transformação da vida humana em produto, que é realizada pela aplicação das estratégias de vigilância para a reprodução do capital, uma faceta tão importante quanto aquela proposta por Osorio, e acreditamos igualmente que se trata de um complemento oportuno às suas ideias. 29 Referências ABELLA, A. The Rand Corporation: The think thank that controls America. Mental Floss. 30 jun. 2009. Disponível em <http://mentalfloss.com/article/22120/randcorporation-think-tank-controls-america>. Acesso em 30 de agosto de 2014. ASSANGE, J. et al. 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