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15.:Layout 1 10/4/10 7:43 PM Page 108 Grupo Cultural AfroReggae Rio de Janeiro, RJ Música para o mundo Beatriz de Araújo caminhava pelas ruas empoeiradas e mal traçadas de Parada de Lucas, periferia da zona norte do Rio de Janeiro, carregando nas costas um estojo de violino. Corria o ano de 2006 e a menina, então com 11 anos, havia conquistado recentemente o privilégio de levar o mais indispensável dos instrumentos de corda da orquestra para sua modesta casa, a fim de treinar durante a semana. Ela, que há poucos meses sequer conhecia um violino! Enquanto se dirigia a mais um ensaio da Orquestra de Cordas do AfroReggae, ouviu de uma desconhecida um comentário que lhe soou como desaforo: “Duvido que isso aí vá dar fruto. Vocês nunca vão sair da favela. Onde já se viu favelado tocar violino?”. Chocada, a menina conta ter sentido o estômago embrulhar. A sensação lhe serviu para desafiar não só aquela mulher, como também a vida que lhe foi destinada e o preconceito de toda a sociedade. “Desde esse dia, não tiro uma coisa da minha cabeça: vou provar a todos que vamos vencer na vida e que a nossa orquestra vai para qualquer lugar do mundo”. Desafio Filha única de uma costureira, Beatriz tem pouco contato com o pai e sempre morou em Parada de Lucas, uma das regiões mais violentas do Rio de Janeiro, com taxas de até 84 homicídios por 100 mil habitantes. Nos bairros de Ipanema e Leblon, na zona sul do Rio de Janeiro, a taxa é de seis mortes em cada 100 mil habitantes. Sua mãe recebe cerca de R$ 500,00 por mês da confecção onde trabalha, dentro da própria comunidade. Há meses em que recebe até menos. “Nunca passei fome, mas muitas vezes não temos como comprar o que precisamos”. 15anos Conviver com privações e com a violência faz parte da rotina de Beatriz e de seus colegas, que, com tão pouca idade, têm histórias chocantes para contar. “Teve um dia em que vi um cara ser morto do meu lado. A favela ficou toda em silêncio, fiquei apavorada”, lembra a adolescente, Beatriz de Araújo 15.:Layout 1 10/4/10 7:43 PM Page 109 15.:Layout 1 10/4/10 7:43 PM Page 110 hoje com 15 anos. “Nessa área, a gente sempre tem que sair com um pé na frente e outro atrás. Nunca com os dois na frente. Penso que eu vou, mas não sei se volto”. A insegurança do dia a dia é apenas um dos desafios que os mais de 100 alunos da Orquestra de Cordas precisam driblar para perseguir seus sonhos – armados de violinos, violas, contrabaixos e violoncelos. Beatriz sabe que quem vive na comunidade enfrenta preconceito até mesmo dos próprios vizinhos, além da classe média. “As pessoas podem até pensar que somos desleixados, que arranhamos e estragamos os instrumentos. Mas, para estarmos aqui, temos que ter responsabilidade, nos empenhar muito no estudo de música e ter boas notas na escola”. Quando ensaiam, todos os sábados, meninos e meninas também aprendem a história da música, a vida e a obra de compositores, as influências nacionais e internacionais. Na sala em que as aulas são ministradas, um grafite ilustra Gilberto Gil de braços abertos e, sobre a porta, um de seus famosos versos resume o que, para os jovens músicos, aquela reunião semanal representa: “O melhor lugar do mundo é aqui e agora”. De vez em quando, o ensaio no Centro de Inteligência Coletiva Lorenzo Zanetti, cravado na comunidade, é substituído por programas culturais: os alunos já assistiram a concertos no Theatro Municipal do Rio de Janeiro e tocaram para autoridades no Palácio Guanabara. Parte do grupo está fazendo uma capacitação na cidade de Vassouras, no estado do Rio. Ainda este ano, o AfroReggae pretende aumentar a turma, inserindo na orquestra naipes de madeira, metais e percussão sinfônica. União Em abril de 2010, o projeto foi rebatizado como Orquestra de Cordas Diego Frazão, numa homenagem a um dos alunos, morto de leucemia aos 12 anos. A perda do menino foi a segunda em seis meses: em outubro de 2009, o coordenador de projetos sociais do AfroReggae, Evandro João da Silva, foi assassinado durante um assalto, no Centro do Rio. No enterro, seus alunos o homenagearam, e a imagem do rosto de Diego, chorando e tocando seu violino, rodou o mundo, que, pela mídia, acompanhou mais um episódio de violência no Rio, envolvendo a polícia. Pós-graduados em sofrimento, os integrantes da orquestra tiram da própria música forças para continuar realizando seus sonhos. “O que vale é que a lembrança de Evandro e Diego está sempre entre nós. Essa orquestra era o sonho deles, então vamos com ela até o final”, explica Beatriz. Ela já aprendeu que, às vezes, o desafino na vida não tem lá muitas explicações. 110 15.:Layout 1 10/4/10 7:43 PM Page 111 Priscila Frazão, de 14 anos, é a irmã mais velha de Diego. Em 2010, soube que a mãe tem câncer no cérebro. É começar a tocar e um largo sorriso ilumina seu rosto. “Eu podia desistir de tudo, mas tirei forças de Deus, da música e do AfroReggae. A orquestra foi um presente para mim: hoje sei que pode acontecer de tudo na minha vida, mas isso aqui eu não largo nunca mais”, conta ela, que sonha em ser musicista e pedagoga. Batalhadores No comando da batuta dessa turma guerreira – o próprio AfroReggae nasceu após uma chacina em que 23 moradores da favela de Vigário Geral foram assassinados – está o flautista Guilherme Carvalho. Orgulhoso, ele acredita que a orquestra está salvando muitos meninos e meninas do envolvimento com o tráfico e a prostituição. “A expressão artística resulta do desejo. O que tento passar para os alunos é que desejem, tenham tesão, se entreguem, sem tabu, para a arte. Com isso, é possível superar qualquer dificuldade”. Leandro Justino, de 28 anos, sabe disso. Nascido e criado na comunidade da Grota, em Niterói, envolveu-se com a música aos 10 anos, incentivado por uma mulher de classe média que resolveu dar uma nova perspectiva para as crianças do local. Hoje é um dos instrutores da Orquestra de Cordas. “A gente começa ajudando um, esse um ajuda outro, esse outro ajuda um terceiro. E, assim, conseguimos mudar essa violência toda por aí”. Orquestra do AfroReggae ensaia em Parada de Lucas, Rio de Janeiro, onde a taxa de homicídios é 84 por 100 mil habitantes. No Leblon, zona sul, a taxa é seis óbitos por 100 mil. 111 CONTEXTO 15.:Layout 1 10/7/10 3:18 PM Page 112 2000 ECA completa uma década; ONU lança os Oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODMs) no ano da Cultura de Paz Criança Esperança bate a marca dos 4.570 projetos apoiados em todo o país; esporte é tema do show A Organização das Nações Unidas (ONU) decretou o ano 2000 como o Ano Internacional da Cultura de Paz, trazendo o conceito da tolerância fundamentado na diversidade e no pluralismo. No mesmo ano, durante a Assembleia do Milênio das Nações Unidas, foram lançados os Oito Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, focados na melhoria das condições de vida da população como um todo, incluindo as crianças, os jovens e suas famílias. No Brasil, a data coincidiu com as comemorações dos dez anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio são: acabar com a fome e a miséria; educação básica de qualidade para todos; igualdade entre sexos e valorização da mulher; reduzir a mortalidade infantil; melhorar a saúde das gestantes; combater a Aids, a malária e outras doenças; qualidade de vida e respeito ao meio ambiente; todo mundo trabalhando pelo desenvolvimento (PNUD). A UNESCO, que liderou a mobilização mundial em prol da cultura de paz, divulgou o Manifesto 2000, redigido por um grupo de ganhadores do Prêmio Nobel da Paz. O objetivo foi colher cem milhões de assinaturas em todo o planeta. Quem assinava o documento comprometia-se a passar adiante os valores da paz. Mais de 50 milhões de pessoas aderiram. O Brasil foi o campeão proporcional em coleta de assinaturas, com quase 15 milhões de adesões. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o documento publicamente. Desafio O ECA fez aniversário, enfrentando o desafio de consolidar direitos adquiridos há uma década. Nesse sentido, a Câmara dos Deputados aprovou o Orçamento Criança e Adolescente, um projeto do Instituto de Estudos Socioeconômicos que monitora e divulga a execução orçamentária de programas públicos voltados para a infância. Ao mesmo tempo, a Conferência Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente estabeleceu metas de criação dos conselhos tutelares em todo o país. O Brasil também ratificou a Convenção 182 da Organização Internacional do Trabalho, sobre as Piores Formas de Trabalho Infantil, e foi lançado o Dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual Infanto Juvenil: 18 de maio. No mesmo ano, foi inserido no Plano Plurianual do governo federal o Programa de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra Crianças e Adolescentes – sua primeira medida concreta foi a criação do Programa Sentinela, um conjunto de ações voltadas ao atendimento de crianças e adolescentes vítimas desse tipo de violência. Abrindo Espaços A violência letal que envolvia jovens seguia em um ritmo crescente. Como parte do esforço para tentar reverter esse quadro, a Representação da UNESCO no Brasil lançou o Abrindo Espaços – programa que abre escolas 112 públicas nos fins de semana para os jovens e suas comunidades. A ação começou em parceria com os governos do Rio de Janeiro, da Bahia e de Pernambuco. Por trás de uma ideia aparentemente simples, o Abrindo Espaços pretendia ser uma ferramenta na construção de uma cultura de paz e no combate às desigualdades. No ambiente escolar, os jovens – especificamente aqueles em situação de vulnerabilidade social – são menos expostos à violência e têm mais oportunidades de acesso à educação, à cultura e ao lazer. Em 2004, o programa virou uma política pública do Ministério da Educação, com o nome de Escola Aberta. Também neste ano, o IBGE lançou o Índice de Desenvolvimento Infantil (IDI), chamando a atenção para a importância dos primeiros seis anos de vida para o desenvolvimento integral das crianças. O instrumento tornou-se um importante aliado na formulação das políticas públicas voltadas para a infância. As Organizações Globo receberam do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF) o diploma de reconhecimento pela responsabilidade social do programa Criança Esperança, que chegava à marca dos 4.570 projetos sociais apoiados em todo o país. Tendo o esporte como tema, o especial Criança Esperança foi apresentado no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, e contou com a presença de atletas como Popó, Raí, Maureen Maggi e Robson Caetano. Em homenagem a Ayrton Senna, Viviane Senna, irmã do piloto, falou sobre o Instituto que leva o nome do irmão, morto em 1994, em acidente automobilístico. 15.:Layout 1 10/4/10 7:43 PM Page 113 Foto: Flávio Martin Raphael Vandystadt Gerente de Projetos Sociais – CGCOM TV Globo “Nos 25 anos do Criança Esperança, é gratificante perceber que os projetos apoiados estimularam o surgimento de novas parcerias entre empresas privadas, organizações não governamentais e o setor público, e contribuíram para o pleno exercício do conceito de responsabilidade social no Brasil. Torço que para que essa parceria, UNESCO e TV GLOBO, se multiplique e continue fomentando oportunidades para milhares de crianças e jovens brasileiros, estimulando uma cultura de paz. Aí então, construiremos juntos mais do que um país. Construiremos uma nação”. 113