Ferramenta zine n 2
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Ferramenta zine n 2
Ferramenta zine 2 n Temas de construção Viseu | julho 2012 P3.LENTE NO LATENTE Fotografia de José Crúzio P4.Cansadas de guerra Crónica de Sara Augusto P6.Nem tudo o que parece é Crónica de Isabel Costa Bordalo Ilustração de Dedo Mau P12.ARTE PÚBLICA E CIDADANIA Crónica de Rosário Pinheiro P16.O feio Crónica de Luís Calheiros P20.eram maçãs e caíram Poema de Ricardo Bordalo www.ferramenta.dpx.com.pt 2 sobre esta ferramenta Uma mesa de café. O Lugar do Capitão é um café?! Façamos de conta que esta dúvida não é uma janela aberta para a que se segue. Que coisa estranha esta que faz com que as pessoas se juntem? Alguém pergunta à mesa do Capitão. Façamos de conta que a ausência de resposta não faz parte da certeza que se segue. Fazer coisas! Manusear o pé-de-cabra para abrir caixas de onde se retiram vontades antigas para delas fazer coisas novas. Com uma certeza: algures entre o antigo e o novo fica o efémero. E então? Basta ir regando. Como os jardins. Como as pessoas. Como os reis sem vida para lá do baralho. Como um croupier a distribuir o jogo da vida. É a vida! Ri-se ele ao dizê-lo do canto da mesa… Dois prometeram juntar-se à esquina para dançar o só-li-dó. Que apareça o da concertina. E o do regador. E que o rei de espadas não tema o dançar corrido da dama de copas. Porque, nesta mesa, o muito nunca é a maior parte… | colaboradores José Crúzio Artísta plástico / Professor EV Sara Augusto Professora Isabel Costa Bordalo Jornalista Dedo Mau Ilustrador Rosário Pinheiro Designer / Ilustradora Luís Calheiros Professor Ricardo Bordalo Jornalista faneditores Carla Augusto Fernando Figueiredo João Luís Oliva Joaquim Alexandre Rodrigues Nuno Rodrigues Ricardo Bordalo produção Projecto editorial DPX design Oficina Lugar do Capitão Impressão Kiosk Digital Tiragem 250 ex. lente no latente 3 Fotografia: José Crúzio palavra de ferramenta Uma coisa é estar lá onde ninguém repara. Outra coisa é publicá-la... crónica 4 CANSADAS DE GUERRA Sara Augusto PALAVRA DE FERRAMENTA A “biblioteca anterior” de Sara Augusto fá-la reler, para nós aqui na Ferramenta, os infortúnios de Florinda e Tereza, peregrinações exemplares do sofrimento no feminino. Há, de facto, em nós, uma “biblioteca anterior”, um acervo de histórias e livros que é — é certo que é - a matéria de que somos feitos. Podia ser de Eco ou de Borges a ideia simétrica da montanha sempre a crescer de livros que os livros lidos nos impelem a ler — esse labirinto de remissões, recensões, citações a fazerem crescer sempre as leituras futuras. Aí, nessa “biblioteca posterior”, são colocados para nós, Os Infortúnios Trágicos da Constante Florida e Tereza Batista cansada da guerra e O Alívio dos Tristes e... Conjugo duas leituras numa semana e subitamente os enredos enleiam-se em movimentos de rejeição e de concórdia de uma forma sempre surpreendente e inesperada. Reavalio a minha “biblioteca anterior” e percebo a vantagem dos anos ocupados em leituras, mesmo que dispersas ou então, com mais frequência, obrigadas por contingências de proximidade temática e formal. As relações entre grotesco e poder obrigam-me a reler Os Infortúnios Trágicos da Constante Florinda, novela barroca do alentejano de Aljustrel, Gaspar Pires de Rebelo, impressa a sua primeira parte no ano de 1625. Procuro responder a perplexidades antigas e a dúvidas não resolvidas, que a categoria do “trágico” anunciado no título, na sua relação de causa-efeito, não explicou em tempo devido. Como entender a traição e a condenação à morte de Florinda e Arnaldo, vítimas do ciúme, da violência e da vingança irracional do príncipe Aquilante, desfecho ingrato para duas histórias de constância e fidelidade amorosa? Como entender que um percurso hostil, de desconhecimentos e caprichos da fortuna, chegue a um termo bizarro, aniquilando expectativas justas e adequadas? Uma explicação reside na própria extravagância da história, feita de personagens arriscadas por caminhos demasiado ínvios, a convocar castigos e punições, singularidade que por si mesma parecia exigir desfecho igualmente extravagante. Procuro entender a “ideia”, no sentido mais platónico do termo, que comandou a imaginação do autor e que transformou o equilíbrio cristalino da exemplaridade, capaz de castigar e premiar respectivamente o vício e a virtude, em imagens distorcidas, inquietantes, caóticas, de um poder arbitrário, cego e imprevisível. Mais do que a manifestação dessa invenção artística, a Constante Florinda é expressão vívida da consciência de que nem essa imaginação consegue corresponder cabalmente ao resultado de um poder discricionário, cego, injusto e irracional, não determinado nem nomeado. Ou seja, no fim de contas, não está em causa o poder de qualquer autoridade, do fado ou do destino, sobre os homens, mas sim a “ausência” de poder dos homens sobre as suas acções e o seu destino. Foi um exemplo único na ficção romanesca produzida em Portugal em quase dois séculos de literatura... nem o barroco, de poética agitada por furores e imaginações formais e temáticos, onde o disforme e o grotesco se institucionalizaram como formas preferenciais de sátira, ousou desinquietar por mais alguma vez o caos da imprevisibilidade, quedando-se pela aventura exemplar, pela edificação, pela alegoria arrumada e arrumadora de pecados peregrinos. 5 ... Ao mesmo tempo releio Tereza Batista cansada de guerra (1972), o meu romance favorito de Jorge Amado, à procura de um motivo que me alentasse a participar, de forma mais veemente, no centenário do nascimento do seu autor, que vai ser lembrado com as mais diversas efemérides por todo o mundo onde se fala português. Comprei o meu exemplar do romance num dos tantos sebos de rua que se estendem pelo cruzamento da avenida Rio Branco, entre o Museu, o Teatro Municipal e a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Limpei-o com cuidado mas continuou com marcas do sol e da chuva desenhadas no papel de um amarelo queimado com letra miudinha. Nada que prejudique a leitura. Na história de Tereza, menina órfã, vendida pela tia, a um capitão de roça, canalha corrupto, ávido de virgens compradas aos desamparados e aos oportunistas sem pudor, reencontrei o percurso comum da violência e do silêncio temeroso e escondido. Mas foi a descoberta do amor, pela mão inconsequente de um dandy desocupado e cobarde, que provocou a insurreição de Teresa: matou o capitão, foi presa, mas tornou-se livre de uma escravatura de corpo e alma. Da prisão foi levada pelo Dr. Emiliano e durante seis anos conheceu uma relação calma e tranquila, tornou-se mulher, até que o dono de usinas e bancos morreu. Mas Tereza tinha crescido em força e em vontade. Conheceu Janu. Depois disso foi o inevitável desencontro e o desenvolvimento de mais duas histórias de constância e fidelidade amorosa... por entre histórias de prostituição, samba, peste, revoltas, que correm o recôncavo baiano e se centram finalmente em Salvador. Tereza assume o protagonismo nos momentos de perigo, e a virtude, pensada em termos de heroísmo, desta vez é recompensada, cumprindo a ordem natural da sequência esperada entre sofrimento e o respectivo prémio. Quando Tereza já tinha de todo perdido a esperança, eis que Janu volta a Salvador. Para tanto infortúnio sobrou ventura. Florinda e Tereza representam duas épocas distintas que subitamente revelam um “mundo ao contrário”, mais surpreendente a primeira narrativa se tivermos em conta os códigos orientadores da ficção exemplar. Mas talvez os Infortúnios Trágicos ainda não sejam tão exemplares como O Alívio de Tristes ou a Roda da Fortuna do prolífero Mateus Ribeiro, ou o Serão Político de Frei Lucas de Santa Catarina... Quanto a Tereza Batista, tal como Gabriela, tal como Tieta do Agreste, tal como Dona Flor, representa uma construção romanesca centrada no protagonismo feminino: vivendo do corpo, Tereza afirmou coragem onde outros fugiram, fidelidade onde outros quebraram, mostrou uma inteireza de alma num mundo fragmentado e marginalizado. O amor de Janu foi a recompensa, a sublimação de uma lógica interna, a sagração de uma virtude tão perigosamente próxima da leitura alegórica e exemplar da narrativa barroca. | crónica 6 NEM TUDO O QUE PARECE É Isabel Costa Bordalo palavra de ferramenta A Parker Brothers foi a responsável pela introdução na década de 60 de dois fenómenos internacionais de jogos de tabuleiros: o Risco e o Monopólio. No Risco, 2 a 6 jogadores disputam o mapa político do mundo dividido em 42 territórios e agrupados em 6 continentes. Os jogadores conquistam territórios uns aos outros e o jogo termina quando um jogador conquista todos os “No período de ouro do «milagre económico alemão», nos finais dos anos sessenta, na estação de Colónia, os alemães recebiam eufóricos o imigrante «um milhão», que aconteceu ser um português do Algarve, baixinho de estatura, tímido, e que, sem compreender uma palavra daqueles que o saudavam, agradecidos por ele ter chegado para a construção da Deustsche Wunder, recebia como prémio uma motocicleta e um ramo de flores. Um documentário daquela época mostra esse dia na estação de Colónia, era Outono, estava frio, e o presidente do patronato alemão cumprimenta aquele Gastarbeiter, cuja tradução mais precisa é «trabalhador convidado». Alguns dias depois, Willy Brandt, na sua qualidade de chanceler, pedia-lhe desculpas por aquela recepção indigna. Numa carta dizia-lhe: «O senhor é a pessoa número um milhão que chega para colaborar no maior esforço económico da história alemã. Estamos-lhe gratos por isso, e dou-lhe as boas-vindas como ser humano, como pessoa, como cidadão estrangeiro com os mesmos deveres e direitos de qualquer cidadão alemão.” territórios. No Monopólio, 2 a 6 jogadores disputam propriedades, comprando, vendendo e negociando ruas, bairros, casas, hotéis e empresas e o jogo termina quando um jogador fica totalmente rico e os outros vão à falência. Entre a guerra e a banca: conquista, derrota, domínio, falência. Não era suposto o jogo limitar-se ao tabuleiro? Este excerto de um dos textos do livro «Crónicas do Sul», do escritor chileno Luís Sepúlveda, ganha uma desconcertante actualidade. O pretexto para Sepúlveda escrever esta crónica foram os tumultos em Paris, que aqueceram o outono de 2005 e que levaram o ministro do interior francês Nicolas Sarkozy, elevado a Presidente da República dois anos depois, a classificar de “chusma” e “canalha” os jovens que desencadearam os protestos, maioritariamente de origem magrebina. O destino de Sarkozy, que tentou conquistar um segundo mandato presidencial, é conhecido. A “arrogante estupidez que gerou a ira destruidora de uma geração fora do baralho, de milhares de raparigas e de rapazes filhos do desemprego e da degradação social, moral, económica e política”, como a ela se refere o escritor chileno que reside em Espanha, teve como consequência — não foi a única razão — a expulsão de Sarkozy do cenário político francês. Sem honra nem glória. Numa Europa divorciada de valores, o desemprego vai tratando de conciliar os cidadãos com alguns ideais perdidos na máquina centrifugadora da propaganda do “governo invisível” que se tornou no verdadeiro poder no planeta. Os indignados estão aí para o provar. Em 1928, o norte-americano Edward Bernays, considerado o pai das Relações Públicas, dava à estampa o livro «Propaganda» que ainda hoje é encarado como a Bíblia dos 7 ... Ilustração: Dedo Mau 8 ... publicitários. Nele Bernays escrevia: “Somos governados, as nossas mentes moldadas, os nossos gostos formados, as nossas ideias sugeridas, em grande medida por homens dos quais nunca ouvimos falar”. A constatação de Edward servia para pôr ordem no caos que a proliferação de produtos, com o advento da industrialização, podia gerar. “A manipulação conscienciosa e inteligente dos hábitos organizados e das opiniões é um elemento importante da sociedade democrática”, justificava ele, longe de antecipar a exponenciação do poder que essa meia dúzia de personalidades que formam o “governo invisível” iria ter, menos de um século depois, usando os instrumentos de comunicação e manipulação que ele consagrava. Se, em 1928, esses governantes invisíveis (vulgos publicitários e detentores do poder da manipulação conhecidos nos EUA por spin e que se espalharam pela Europa) eram “em muitos casos, desconhecedores da identidade dos seus companheiros”, confinados que estavam aos seus “gabinetes secretos”, hoje eles assumem vários rostos e identidades. São os presidentes da Goldman Sach, do Bank of America e outros grandes grupos económicos, muitos deles reúnem-se todos os anos, em Davos, para definir o rumo da política internacional, executada pelos Obamas e Merkels do Ocidente e, numa escala inferior, pelos Passos Coelhos dos países periféricos. Este governo invisível apenas concorre e serve-se de um outro, representado pelo Presidente chinês Hu Jintao, para justificar a aplicação da teoria neoliberal, que tem como princípio basilar a exponenciação do lucro e a sua concentração na mão de alguns, poucos. O efeito mais visível desta estratégia do “governo invisível” é o aumento do desemprego à escala planetária, consequência directa da especulação financeira que cavou um enorme buraco nos EUA com réplicas significativas na Europa e fruto do esvaziamento humano das empresas. Corta-se na mão-de-obra para aumentar o lucro das empresas e, assim, alegam eles, poupam-se alguns postos de trabalho; fragiliza-se quem fica sob a ameaça persistente da perda de emprego; e chantageia-se os governos para obter vantagens fiscais. Esta estratégia produz efeitos no curto prazo, mas a médio e longo prazo significa a morte da galinha dos ovos de ouro, dando razão a Karl Marx quando dizia que “o capitalismo gera o seu próprio coveiro”. É que, como frisou recentemente o multimilionário norte-americano Nick Hanauer, “os verdadeiros criadores de postos de trabalho são os consumidores, a classe média” e não os ricos. 9 ... A afirmação faz parte de uma intervenção que Hanauer apresentou numa das famosas conferências da TED (Technology, Entertainment and Design), organizadas pela Sapling Foundation, organização norte-americana sem fins lucrativos. O vídeo da palestra devia ter sido publicado (como acontece com todas as comunicações destas conferências), mas a instituição optou por não o fazer. As reacções por este acto de censura surgiram em catadupa, em várias redes sociais. Foi pior a emenda que o soneto. Ao contribuir para a estratégia do “governo invisível”, confinando o recado do multimilionário e investidor de risco, com o argumento de que a palestra era “demasiadamente politizada e controversa”, a TED acabou por contribuir para a disseminação do seu conteúdo. Nick Hanauer não foi inovador. Antes dele já o multimilionário norte-americano Warren Buffett, um dos homens mais ricos do mundo pedira, um ano antes, aos políticos para deixarem de mimar os ricos, com impostos reduzidos. “Enquanto os pobres e a classe média combatem em nosso nome no Afeganistão, e enquanto a maioria dos americanos luta para esticar o salário, nós, os mega-ricos, continuamos a beneficiar de impostos reduzidos”, escreveu num artigo publicado no «New York Times». O apelo, sem seguidores na Europa, não teve efeitos. E Buffett e os seus pares continuaram a ser mimados por um “Congresso amigo dos multimilionários”, palavras suas. Mas o que disse Nick Hanauer que fez tremer a TED? “Um comum consumidor da classe média cria muito mais emprego do que um capitalista como eu”. O primeiro-ministro português finge que não. Passos Coelho, desde que tomou posse, carrega mais nos impostos sobre os consumidores do que nos das empresas com o argumento de que quer salvar postos de trabalho. Os números do desemprego desmentem-no, mas a máquina poderosa da propaganda insiste na mistificação das causas que estão a conduzir à perda de postos de trabalho em Portugal. “Eu criei e ajudei a criar dezenas de empresas e contratei muitas pessoas. Mas se ninguém tivesse dinheiro para comprar o que nós tínhamos para vender, os meus negócios teriam falhado e todos esses postos de trabalho ter-se-iam evaporado. É por isso que posso afirmar que os ricos não criam empregos. O que cria emprego é a relação entre os consumidores e os negócios. E só os consumidores podem pôr em marcha este ciclo de aumento de procura e contratação de pessoas”, sublinhou o magnata norte-americano. 10 ... Os empresários portugueses, com o beneplácito de Pedro Passos Coelho, Vítor Gaspar e Álvaro Santos Pereira, defendem que é preciso tornar os despedimentos mais fáceis para que as empresas sejam mais competitivas e fingem não saber que estão a mandar para a rua os que garantem que as empresas continuem com as portas abertas: os que compram aquilo que elas produzem. “Quem já geriu um negócio sabe que os capitalistas só contratam em último recurso, é algo que fazemos apenas quando a procura o exige. Considerarmo-nos criadores de emprego não é apenas incorrecto, é insincero”, reconheceu Nick na sua palestra. Os governos deste e outros países querem-nos fazer crer que não; propagandeiam que têm de ajudar as empresas para que estas tenham condições para contratar pessoas, quando são os trabalhadores que ajudam as empresas a ter sucesso. “Se fosse verdade que os impostos mais baixos para os ricos criassem mais emprego, hoje estaríamos afogados em postos de trabalho. (…) Taxar os mais ricos para que eles invistam no crescimento da classe média é a medida mais inteligente que podemos tomar para ajudar a classe média, os pobres, mas também os ricos”, concluiu Hanauer. Em 2009, Lula da Silva, então Presidente do Brasil, já tinha posto em prática a teoria de Hanauer, consciente de que “dar dinheiro aos pobres é mais eficaz que reduzir impostos”. O Presidente brasileiro que, em cinco anos de mandato, viu criados 20 milhões de postos de trabalho, criticou os empresários do seu país por não “repassarem” os benefícios dados pelo seu governo com o desagravamento tributário e prometeu pôr termo ao regabofe. “Em vez de a gente ficar desonerando, é melhor pegar esse dinheiro e dar aos pobres. Cada real na mão do pobre volta automaticamente para o comércio, para o consumo e move a economia”, afirmou Lula, acrescentando, num bom português, que o seu objectivo era tirar o “povo da merda” em que se encontrava. E tirou. O governo de Lula pôs dinheiro nas mãos dos pobres, através da renda mínima e do acesso ao crédito (aumentado de 336 milhões para um trilião de reais em sete anos), estimulou a venda de bens e, com o aumento do consumo interno, provocou o crescimento ímpar da indústria nacional - em contraciclo com o que acontecia no resto do mundo - alimentada quase exclusivamente pelos consumidores brasileiros. 11 ... Por cá, os governantes cortam nos salários dos trabalhadores e nas suas regalias sociais, diminuem a capacidade de consumo, fragilizam o comércio, potenciam o encerramento de empresas e fazem crescer o desemprego. Incapaz de dar respostas, Coelho aconselha os desempregados da geração mais qualificada do país - a emigrar, levando membros do governo de outros países a ridicularizarem-no, como fez recentemente o ministro do Trabalho e da Imigração do Luxemburgo. “Não é solução dizer às pessoas: Se não tens trabalho, vai”, afirmou Nicolas Schmit, numa entrevista ao jornal «Público», argumentando que em Portugal há “demasiada austeridade” e “não há enfoque no crescimento”. “Temos de consolidar orçamentos, mas não desta forma”, concluiu o governante luxemburguês. Passos Coelho, que centra a acção do governo na propaganda política traçada pelo “governo invisível”, e por si competentemente aplicada, insiste, com a sua voz afinada de barítono, que assim é que é. E mantém-se fiel ao programa da Troika, um dos braços do “governo invisível”, que põe em causa os mais elementares princípios da economia, tentando fazer parecer aquilo que é com aquilo que não é. Numa das suas célebres frases, o jornalista e humorista brasileiro Millôr Fernandes, falecido em Março deste ano, resumia bem este estado de aparente esquizofrenia: “A economia compreende todas as actividades do país, mas nenhuma actividade do país compreende a economia”. Mas o que se passa é mais grave. É o resultado da “pobreza interior” dos que nos governam. | Este texto não obedece ao Acordo Ortográfico, porque a autora se recusa a adoptá-lo crónica 12 ARTE PÚBLICA E CIDADANIA A que papel podem aspirar criadores, profissionais da área projectual e atores não-profissionais da vida urbana, na reivindicação de uma ocupação responsável do espaço público, enquanto lugar de cidadania? (Pedro Andrade) Rosário Pinheiro palavra de ferramenta 14 de julho de 1789. Paris. A revolução do povo. O povo a desenhar uma metamorfose que, ainda hoje, decorre. Somos parte dela. Para o bem e… para o bem. Uma cidade e a sua fome permanente, uma cidade e o seu lixo permanente. O “sentimento de pertença”, o “sentimento de segurança”… a ânsia de mudar. Em tempos de separar o bosão de higgs do joio, é bom não esquecer que a gratidão que, forçosamente, temos para com aqueles que correram para a Bastilha, não deve esconder que, então, se correu mais contra o lixo, mais contra a pestilência que escorria nas ruas de Paris que da fome ou da injustiça. O lixo pode ser o mote… a razão… a cidade, essa, gera as suas justificações. Ergue-se nelas e por elas… somos nós. Uma coisa é certa, actualmente os sistemas de planeamento da cidade revestem-se de dúvidas. A cidade, não é apenas um conjunto de edificações, uma planificação estável e perene, apresenta-se como um organismo vivo ampliado que tem o seu epicentro num sistema global de centralidades competitivas entre si. É necessária a compreensão dos mecanismos estruturantes da urbe, quais são e como actuam? Como podemos enunciar novos símbolos e significados? E como reconhecê-los depois? Fará sentido hoje, planear a cidade, quando cada vez menos o resultado é previsível e consonante com o plano? São algumas interrogações que inquietam os profissionais do desenho, que exercem a profissão de forma reflexiva. O desenho é necessário a vários níveis, estéticos e competitivos, no entanto, o espaço público não pode ser reduzido a noções de valorização ou embelezamento. Ainda que esse desejo seja válido, o sentido da cidade deve ser pensado na vinculação aos valores da vida quotidiana dos habitantes, que são no fundo os utilizadores da cidade, e assim, a própria cidade. O entendimento da cidade pelo observador/habitante não se limita a absorver os aspectos corpóreos/arquitectónicos, pelo contrário, é de maior relevância, a percepção emocional, o sentimento de pertença ou não pertença a um determinado lugar. Kevin Lynch (1918-1984 arquitecto e teórico americano) defende que a imagem de um bom ambiente urbano, dá ao habitante/visitante um importante sentimento de segurança. Do ponto de vista do habitante, este aspecto é especialmente importante, na medida em que existe uma relação pessoa-cidade, da qual este não se pode dissociar, quando essa relação é harmoniosa, resulta num sentimento de orientação e pertença, o culminar da sensação do doce lar, em que o lar é ao mesmo tempo familiar, distintivo, em suma, especial. É neste espaço, que é público, nas ruas, praças e estradas que se dá a conferência entre habitantes e visitantes, assim, podemos considerá-lo, de forma muito geral, o primeiro e principal espaço de urbanismo, cultura urbana e cidadania. O sentido da cidadania, revê-se na possibilidade do uso e na liberdade de expressão no espaço público, nos valores do colectivo e na interacção comunicativa. Um projecto que se diga projecto de espaço público, exprime sociabilidade, zela pelos interesses da urbe. Comunicar na cidade, acto de liberdade, é também um acto de sujeição. 13 ... A história de uma cidade encontra-se inscrita nela própria, nas edificações e manifestações que nela figuram como registo biográfico do território e é registada em arquivos documentais de toda a espécie e monumentos simbólicos da identidade no/do espaço. Este registo é fundamentalmente uma expressão do poder. O controlo sobre a memória ou esquecimento é uma vantagem do poder totalitário funcionando como imposição. No entanto, em democracia, a organização simbólica e a comunicação no/do espaço público processam-se de maneira diferente. Sendo o povo soberano, a construção simbólica é feita pela participação deste povo no desenho da cidade. Existem múltiplas possibilidades de participação e associativismo que se podem exprimir em liberdade no espaço público. Porém, olhamos para uma parede cheia de tags e interrogamo-nos sobre os limites desse sentido de liberdade. Estas inscrições, os tags, não são, ao contrário do que possa transparecer, uma prática desprovida de sentido colectivo, mas sim uma manobra culturalmente codificada que só adquire sentido dentro de uma comunidade restrita, daí a sua menor compreensão e consequente não aceitação do público em geral. A existência destes e outros significantes à margem, remete-nos para a questão do estudo da regulação da comunicação no espaço público. Este não se confina às especificidades do posicionamento da informação no espaço, mas também, e com mais afectação, a finalidades políticas, sociais e culturais, e, por isso mesmo, revela-se tarefa árdua de juízo ético, delicado de resolver. Assim, o design urbano (expressão utilizada pela primeira vez em 1953, por José Luís Sert, a significar o urbanismo com objecto projectual, o desenho que operacionaliza a forma física da cidade) traz em si uma atitude crítica em relação a este tipo de 14 ... planeamento rígido e normativo. Pressupõe, pelo seu sentido de projecto, o desenho como uma ponte comunicacional entre o chamado espaço entre espaço. Este espaço entre é o lugar de comunicação e interacção das pessoas, um espaço que une e separa, que permite a comunicação e a não comunicação. O objectivo é recorrer à comunicação, com vista a diferentes soluções interdisciplinares para as diversas tipologias de problemas que surjam deste processo, tendo em mente o papel participativo do cidadão. Nesta comunicação, a arte, tal como a publicidade, é informação constante inscrita no espaço público. Essa comunicação, sendo de diferentes tipos, permite estabelecer uma tipologia dos monumentos: segundo o traço evocativo de memória, ou segundo a forma propiciadora de poder estético no espaço. Sendo a comunicação uma forma de organização, a comunicação artística na cidade tem um significado matricial. A Arte pública pode ser uma forma de atribuir identidade às cidades. (José de Guimarães) Por todo o lado, seja na nossa cidade natal ou num país distante, deparamo-nos com homenagens e referências: uma escultura numa praça, um edifício monumental, uma intervenção de cariz político, etc. Figurações que se insinuam como documentos sócio-culturais, na medida em que veiculam mensagens, oriundas de ideologias políticas ou de representações de cidadania em conforto. Levanta-se a questão do reconhecimento dos objectos urbanos como obras de Arte pública: intervenções urbanas ilegais (como a Street Art), e outros movimentos contracultura, não sendo tudo menos uma representação política de cidadania em conforto, estarão condenados á marginalização face à Arte pública? Poderíamos dizer que Arte pública são as obras que foram desenvolvidas para ou no espaço público, mas este género de Arte não se confina apenas a arte na rua, antes pressupõe uma participação pública, um envolvimento interventivo que pode ser interpretado como acção política, sendo na rua, ou fora dela. Assim deparamo-nos com o conceito de Arte Pública crítica, a velada pela marginalidade. Por volta dos anos 60 do século XX, a arte contemporânea estava perfeitamente estabelecida no espaço público, em praças corporativas, jardins, ruas, etc., no entanto todos estes locais situavam-se em áreas consideradas institucionais, ou seja, áreas condicionadas pelo poder económico-político. Nas áreas populares, não brindadas com obras deste género, começou a existir um outro tipo de arte contemporânea: intervenções 15 ... públicas críticas feitas clandestinamente pelos habitantes, o início do movimento artístico reconhecido como Graffiti, e posteriormente como Street Art. È um fenómeno multifacetado. Ainda que nenhuma definição seja considerada final, a Arte pública e Arte pública crítica, são muitas vezes, aquilo que as outras artes não são. Uma expressão que se quer genuína e activista, uma declaração de guerra e paz, um despertar da consciência dos indivíduos para algo superior à própria individualidade. Jean Baudrillard, disse àcerca do Maio de 68 em França, que a rua é a forma alternativa e subversiva de todos os mass-media, por ser um suporte comunicação bilateral com resposta imediata, os limites comunicativos são praticamente anulados proporcionalmente ao desejo de expressão. Em relação à Arte pública, tanto uma encomenda pública como privada são fruto de um desejo de satisfizer uma intenção, é estudada a relação objecto – contexto – missão. Tal como diria o arquitecto modernista Louis Sullivan (1856 – 1924), “a forma segue a função”. Este desiderato toma especial valor no círculo da arte pública marginal, sendo a obra reveladora de mais intenções do que as que poderiam ser compreendidas à primeira vista. O valor da arte pública, e principalmente da arte pública crítica, como símbolo de algo é proporcional ao valor do símbolo em si, pode dizer o que não foi dito (o sítio, por exemplo, é fundamental: será ele a dizer boa parte do discurso criativo e será este a recriar o espaço, transfigurando-o com novos valores). Estas manifestações críticas da comunidade, através da arte pública, denunciam a negação de uma ideia de hierarquia do centro para a periferia, surgindo uma identidade não convencional sem raízes históricas ou de lugar, mas sim com fundamento numa vontade de criar um sentimento de pertença, como afirma o artista José de Guimarães. É uma denúncia de experiências individuais e colectivas de determinado local, uma vontade urgente de libertação do circulo vicioso da concentração autoritária da iniciativa cultural na classe dominante e a não sujeição à figura de espectador e consumidor passivo de um conteúdo padronizado. Cabe aos profissionais da área projectual reconhecer o valor destas manifestações, não ignorando ou desprezando o seu potencial, atendendo às chamadas de atenção vindas da rua, como maneira de entender o espaço público na perspectiva partilhada com o indivíduo. | 16 da criação O feio nos cadernos de desenhos do Mestre Leonardo da Vinci, criados que foram nos idos finiseculares do quattrocento e primoseculares do cinquecento. Luís Calheiros palavra de ferramenta É um Leonardo da Vinci diferente, este de que nos fala o pintor, crítico de arte e professor Luís Calheiros. O mestre renascentista continua a ser, como mestre e como renascentista, objecto do escrito; mas o que releva é a sua menos conhecida capacidade de fuga à ortodoxia e ao cânone da revolução estética de que ele mesmo é figura emblemática. É que todas as revoluções — estéticas ou não — têm sido encarceradas pelos próprios protagonistas, prevenindo a sua contestação; isto é, a revolução que se segue. Contra a corrente de interesses, mitos e modas, aqui se vê, como dizia o mestre, que pintura “è cosa mentale”… Leonardo da Vinci é o melhor exemplo, o mais paradigmático, da justaposição no mesmo pensamento estético, no mesmo discurso artístico, da extrema contradição entre a Beleza mais elevada, mais angelical, mais ideal(ista), e (a par) a mais chã e prosaica (= feia) realidade humana. Criou tipos e modelos ideais, sublimes, arquétipos de uma serena beleza «platónica», clássica e pessoal a um tempo, com a mesma obsessiva caracterização fisionómica que lhe é peculiar e que ficou dele emblemática – os célebres sorrisos enigmáticos e a expressão cândida dos olhares em escorço. E, no entanto, foi também um controverso aristotélico, teimando sempre em descrever o que de finito, mutável e humano existe na beleza, no Belo. Sendo um prosaico experimentalista, com uma sólida sabedoria empírica (um saber todo de experiência feito), compensando com contínuo e árduo estudo os etéreos e contemplativos voos de esteta idealista, mostra nos seus «Cadernos de Desenhos» (de cerca de 1494 a 1510), uma outra face, inesperada e sombria, do seu universo estético, completando um inteiro quadro dicotómico, um todo completo de luz e sombra, clara dualidade de contrários. Descobertas entre as fascinantes folhas de comentários daqueles célebres cadernos, secretos manuscritos que o mestre tinha escondido da ignorância e do preconceito das várias inquisições e justiças seculares1, surpreendem-nos e maravilham-nos os seus minuciosos desenhos, de insuperável e virtuosa mestria gráfica, de uma curiosa série de caricaturas grotescas e alegorias macabras, contrastando com toda a serenidade clássica da sua obra mais conhecida, consagrada e convencionalmente considerada. Magníficas obras gráficas de risco poderoso e ágil, parecendo ter tido alguma significação de (subliminar) crítica política, que por enquanto nos escapa, ainda hoje, e que terão sido sobretudo, para o «divino mestre», excelente ocasião de manifestar exuberantemente a sua invulgar curiosidade intelectual, a sua alargada abrangência de interesses e um surpreendente e inesperado gosto pelo bizarro. Numa das alegorias podem ver-se duas bruxas sentadas num sapo gigante, enquanto uma terceira cavalga um esqueleto. Há também monstros bicéfalos e seres ameaçadores e selvagens, que se ferem, agridem e distendem ao acaso, personagens de um autêntico pesadelo, desenhadas no traço rápido e nervoso que o esquerdino genial reservava aos temas que mais verdadeiramente lhe interessavam. E há ainda as tão comentadas caricaturas, que logo quando foram descobertas, pouco depois da sua morte, 1 Sábia e arguta prudência: os próprios comentários escritos em cursiva e enigmática grafia invertida, apenas legível na simetria de um espelho. 17 ... maravilharam tanto todos os que as viram e foram depois tão apreciadas, consideradas que foram entre as suas obras mais originais – mais modernas – as quais se foram reproduzindo, ao longo dos tempos, por outros grandes artistas, abertas em numerosas gravuras que serviram de modelo a inúmeras outras obras. Foram, com toda a razão, consideradas altamente significativas, por desvendarem facetas essenciais do génio leonardesco, ao denunciarem alguns dos aspectos mais sombrios e misteriosos da sua personalidade. Sobretudo reflectem claramente o seu estranho gosto (mórbida curiosidade) pelas anomalias, pelas patologias, pelos caprichos e excentricidades da natureza. Giorgio Vasari conta-nos como o Mestre seguia durante um dia inteiro, a fim de fixar bem na memória para depois reproduzir fidedignamente, as deformidades daquelas desgraciosas e desajeitadas criaturas de triste figura, com traços excêntricos, fisionomias bizarras, aspecto feio e disforme. Sabemos que chegava a tomar notas das moradas daqueles desgraçados marginais, horrendas figuras que lhe haviam interessado particularmente.2 Esses inúmeros registos gráficos de «Mícer» Leonardo di Sir Piero, burlescas caricaturas de estranhíssimas criaturas, velhos anciães com múltiplas deformações, cabeças e rostos de homens idosos, calvos e pelados, de sobrancelhas franzidas, o nariz e o queixo em forma de rabeca, aquilo que a uma visão menos atenta parece ser apenas exagero caricatural, mas que é tipológico e imediatamente simbólico de atitudes e expressões exaltadas de um incontornável «furor poético». Esses traços rudes, grosseiros, brutais, fortemente acentuados, lembram, ao mestre florentino, formas simbólicas de força e vontade, que ele confronta por vezes, para lhe estremar a expressão, com outro totalmente diverso perfil de uma beleza solar, luminosa, o do jovem efebo («Velho e Salai»). São as «pictografias impulsivas» do subconsciente de Leonardo, as duas contrárias imagens tipo, que a sua hábil mão desenha quase inconscientemente, enquanto o pensamento se abstrai e deambula, sendo, para a moderna crítica de arte, de uma importância fundamental para julgar a essência (figurada) de um pujante pensamento estético, do qual o estatuto de precariedade de esboço não deve diminuir o significado. Viris ou efeminadas, essas imagens simbolizam os dois aspectos contrários, contraditórios (dialécticos) da natureza íntima daquele criador, passíveis de generalizar a muitos outros mortais menos dotados de talento e génio. 2 «Giovaninna, fantasticca creatura, nell’Ospedale di Sancta Caterinna». 18 ... Aquelas bestiais feições3, crispadas fisionomias traduzindo força e energia animal, serviram seguramente ao «Mestre» como fortíssima sugestão visual para outras posteriores e ousadas associações, tanto para tumultuosas, enérgicas e movimentadas composições, como a da «Batalha de Anghiari»4, como também para modelo ideal para trabalhos de artes decorativas, das couraças bélicas aos frisos arquitectónicos, chamados que foram de brutescos (ou grotescos), exótica afirmação do «feio na arte renascentista», bestiários decorativos revivalistas de outras tantas faunas fabulosas, que tiveram os primeiros e áureos dias na Roma clássica, vistos agora com mais prosaico uso. Moda, gosto, espírito lúdico, citação elegante, erudita, requintada, é toda a antiga mitologia clássica que é revisitada, vista agora como forma apelativa metafórica, alegorista, de motivar as virtudes cívicas e a perfeita e moderna urbanidade, e sobretudo de apregoar uma superior cultura humanística. Ou mesmo como atitude emblemática, essencialmente decorativa, de estabelecer padrões eruditos e socialmente elevados («saber é poder» escreverá nos seus apontamentos, Leonardo da Vinci). Demonstram ainda os ditos «Cadernos»5o seu vivo interesse pelos aspectos mais brutais e sórdidos, mas também mais realistas, positivos, físico-materiais, científicos, da humana figura: dos anciãos decrépitos e disformes, das faces de horríveis feições, das cabeças monstruosas (aberrações da natureza), dos corpos degradados, … volta-se para o interior (mesmo) dos corpos – e logo aparecem os registos veristas, verdadeiros, fidedignos, minuciosos, rigorosos, de cadáveres (dissecados, abertos), de esfolados, de esqueletos.6 3 Talvez mesmo arremedos humanos de cabeças de animais, antecipando de mais de meio-século as primícias da Physiognomia, estudo proto-científico avançado pelo napolitano Giovanni Bapttista della Porta, pelos idos de 1586. 4 Grande cena parietal representando a vitória dos florentinos sobre os milaneses na dita refrega bélica, pintada em 1505, numa técnica inovadora mas arriscada e com resultados incertos, sobre o estuque da Sala del Gran Consiglio, salão nobre das reuniões da vereação governativa florentina, do Palazzo Vecchio de Florença, abandonada pelo mestre no ano seguinte, ficando apenas no estádio de esboço. A obra foi encomendada pela Signoria de Florença, em competição com o seu rival, cerca de vinte anos mais novo, Michelagnelo di Sir Lodovicco Buonarroti Simoni da Canossa, a quem foi destinada a parede fronteira, este com a Batalha de Cascina, em que os florentinos derrotaram os pisanos, e que este artista também não acabou. Em 1563, foi escondida por nova parede que foi pintada em afresco pelo arquitecto, pintor e ensaísta biógrafo Giorgio Vasari, que deixou pistas sobre o que, contra a sua mais íntima vontade, estava tapando (cerca trova). Em 1565 o cartão inicial da obra, a maior do mestre florentino, perdeu-se, mas os esboços preliminares foram reproduzidos em 1603/04, por uma cópia fidedigna feita a carvão, bico de pena e tinta, por Pieter-Paul Rubens, que assim preservou a memória da pintura, tornando-a ainda muito conhecida. No presente ano de 2012 foram iniciados esforços por especialistas para tentar recuperar a pintura leonardesca subjacente ao posterior fresco de G. Vasari. 5 Actualmente designados Códices, foram vendidos separadamente pelos herdeiros do grande mestre florentino, os seus discípulos Salai e Francesco Melzi, pertencendo hoje a vários coleccionadores como a Rainha de Inglaterra, o estado francês, a signoria milanesa ou o milionário americano da Microsoft, Bill Gates. 6 Estudos anatómicos que antecedem, em mais de três décadas, os estudos pioneiros do «pai» da anatomia científica, Andrea Vesalius, autor do livro fundador De Humani Corporis Fabrica, de 1543. 19 ... Por trás de uma insuspeita fachada, de elevada elegância erudita e de sofisticado ambiente cortês, que candidamente o rodeava, vivendo aparentemente animado por uma côrte caprichosa de amigos e criados, descobria-se um misterioso, hermético, secretista, esclarecido e rigoroso homem de ciência, em tempos de alguma barbaridade gregária e controle preconceituoso, em que esse estatuto era, no mínimo, considerado suspeito, um sóbrio e austero abstémio vegetariano, que passava muitas noites esquecido do mundo e de si, totalmente concentrado em estranhas e secretas experiências, dando livre curso à sua inesgotável sêde de conhecer, à sua vivíssima curiosidade especulativa e experimental, dissecando cadáveres, e desenhando-os minuciosamente, mergulhado num repugnante cenário macabro, rodeado dos fétidos odores de uma morgue. Tanto os desenhos dos cadáveres, dos esqueletos, dos esfolados, como dos estropiados e deformados e das suas caricaturas, são mais realistas do que parece à primeira vista, mostrando que a verosimilhança verista pode ser, paradoxalmente, muito mais fantástica do que o pensamento idealizado da realidade envolvente. E são, ainda, uma tão competente forma de rigoroso registo gráfico científico, tão impressionantemente precoce em relação aos posteriores e mais sistemáticos estudos da ciência da anatomia, como também uma tão sublime forma de desenhar, de uma tal excelência de risco, que por si só chegavam para o considerar como o mais formidável e mais superlativo, o de longe, maior desenhador de toda a história da arte. Nos nossos tão conturbados tempos, tanto fascinam, pela frescura, pelo rigor e sobretudo pela modernidade, como causam alguma repulsa, ou pelo menos aborrecem a mentalidades mais fechadas e convencionais, A nossa «piedosa» e humanitária época fecha instintivamente os olhos a esses horrores, todo um pathos que podemos encontrar em asilos de alienados, em dispensários de gerontes, nos hospitais, nas prisões, nas morgues … ou mesmo, trivial e quotidianamente, nas ruas. A morte, a doença, a deformação são, em geral, silenciadas «piedosamente», psicologicamente interiorizadas, banidas do nosso normal convívio, mas também, paradoxalmente, mostradas despudoradamente, enfatizadas e banalizadas pelo patético espectáculo diário dos média – o excesso icónico, como sucedâneo hiper-moderno dos circos e feiras de excentricidades que se multiplicaram desde o século XVI tardio, pelos séculos XVII, XVIII e XIX, aos quais o voyeurismo mórbido ia ver o estranho e bizarro para se excitar, «homens-elefantes», «mulheres-de-barbas», gente peluda, irmãos siameses, anões, gigantes, liliputianos, obesos XXL e outras excentricidades e aberrações – espécie de «gabinetes de curiosidades» ambulantes. | 20 de forma poética eram maçãs e caíram Ricardo Bordalo 1. na minha cidade há uma rua pequenina que vai de mim a ti imensa esta rua do tamanho de um passo ou até dois passos e, entre um e outro, podemos passear ou ficar quietos 2. na minha rua há uma cidade pequenina que se enche de ti ao outro ou até duas por entre as quais se pode erguer um país ou uma ideia e quando madura… levá-la à fonte 3. com uma rua e uma cidade podemos esperar: cedo ou tarde é noite e depois manhã e quando as luzes, devagarinho se apagarem fazer de conta que eram maçãs e caíram