A importância da conservação fotográfica na
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A importância da conservação fotográfica na
○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○○ ○○ ○○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Pró-memória A importância da conservação fotográfica na reconstrução da memória The importance of photographic conservation in the rebuilding of memory Marli Marcondes Mestre em Multimeios (Unicamp) Professora de Fotografia na Unip-Campinas Assessora na área de Fotografia – Unicamp R e s u m o É inegável a importância da fotografia como instrumento de memória e conservação de dados e fatos históricos. Embora seja carregada de uma série de elementos que tiram dela o caráter de total veracidade, ela traz informações do passado, recente ou remoto, que de outra maneira poderiam não ser documentados. A conservação das fotografias torna-se, muitas vezes, a única forma de preservar fragmentos do passado. Unitermos: memória; fotografias; história; imagem Synopsis The importance of photography as an instrument of memory and conservation of data and historical facts is undeniable. Although a group of elements deny it the character of complete truthfulness, photography restores information from the past, recent or remote, which, otherwise, would not be documented. The conservation of photos often becomes the only way to preserve fragments from the past. Terms: memory; photography; history; image Resumen Es innegable la importancia de la fotografía como instrumento de memoria y conservación de datos y hechos históricos. Aunque esté cargada de una serie de elementos que le quitan el carácter de total veracidad, trae informaciones del pasado, reciente o remoto, que de otra manera no podrían quedar documentados. La conservación de fotografías pasa a ser muchas veces la única forma de preservar fragmentos del pasado. Términos: memorias; fotografías; historia; imagen Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 121 ○ ○ ○ Ano 11 - n0 20 - junho / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ “ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ A restauração é operação crítica antes de ser operação técnica.” Cláudia Philippi É usual em encontros familiares a recordação de momentos passados. Os primos relembrando aspectos da infância, as festas, as brincadeiras, as estripulias, etc. A citação de um acontecimento por um determinado familiar desencadeia nos demais a lembrança desses fatos. Esses momentos são evocados, geralmente, por testemunhas, pessoas que estiveram presentes durante o acontecimento relembrado. “Somos, de nossas recordações, apenas uma testemunha, que às vezes não crê em seus próprios olhos e faz apelo constante ao outro para que confirme a nossa visão.”1 É possível se pensar a fotografia como sendo um análogo do real A fotografia desempenha exatamente essa função de testemunha do passado, pois ao visualizarmos uma foto de família, revivemos com muito maior clareza a significação daquele momento em nossas vidas. Apesar de a fotografia ter sempre suscitado lembranças, seu uso como documento, sobretudo na pesquisa histórica, teve início somente nos anos 70 na Europa e nos anos 80 no Brasil. Embora haja discordâncias quanto à sua função documental, sob a alegação de que sua informação não pode ser transmitida por não contar com um sistema de signos como os da escrita, seu sentido de “espelho do real” foi sempre de grande aceitação. A fotografia congela o momento transformando-o em memória. Essa qualidade se dá tanto pela percepção visu1 A fotografia congela o momento transformando-o em memória ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ al, pela analogia com o real, segundo Roland Barthes, e também pela representação mental, ou seja, ao visualizarmos uma fotografia identificamos signos visuais que fazem parte de nosso repertório e assim conseguimos compreender a imagem. Mas o que nos leva a acreditar que a imagem fotográfica seja uma reprodução do real? Quais são as características físicas intrínsecas à produção fotográfica que lhe confere esse caráter de veracidade? Sabe-se que a propaganda utilizou a fotografia em suas peças publicitárias, em detrimento das ilustrações e do desenho, com o objetivo de gerar maior credibilidade ao produto anunciado, utilizando principalmente retratos. É possível se pensar a fotografia como sendo um análogo do real, mas não se pode deixar de refletir sobre a interferência que exerce o dispositivo fotográfico na produção dessa imagem, e também o fato de a realidade ser mostrada sob um único ponto de vista, o do autor. Mas a confiança na verdade contida na informação fotográfica pode ser compreendida ao longo do processo de produção, ou seja, é importante que se estabeleça uma análise anterior e uma posterior ao ato do disparo fotográfico. Pode-se, previamente, selecionar o objeto a ser fotografado e nisso entra o repertório cultural e juízos de valor de quem produz a imagem. Pode-se selecionar os dispositivos técnicos que serão utilizados durante o processo, tais como: câmeras, lentes, tipo de filme, luz, enquadramento, pose, etc. Essas escolhas são determinantes para atender à proposta do fotógrafo. “O enquadramento traz consigo, portanto, BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos velhos. São Paulo: Ed. T.A. Queiroz, 1979. p.331. Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 122 ○ ○ ○ Ano 11 - n0 20 - junho / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ o recorte do mundo: economia de elementos na composição de cena, de um lado, e concentração de vista nos elementos registrados, de outro”. 2 A partir dessas escolhas, há uma etapa no processo de produção fotográfica em que ocorre de fato a automatização, ou seja, torna-se impossível a interferência do homem. Esse momento é aquele do disparo, do “click”. A luz que emana do objeto irá incidir sob a película sensível e resultar numa imagem. Nesse instante, será produzida uma marca do objeto na película, ou seja, seu contorno, densidade e textura ficarão impressos por meio da ação direta da luz. É em função desse instante que se pode afirmar que a fotografia é um índice puro do real pois, a imagem na película atesta a existência do objeto fotografado naquele instante. O momento da impressão da luz é único. As etapas que sucedem ao disparo fotográfico, revelação, ampliação e divulgação, contam com a intervenção do homem e, portanto, tornamse passíveis de manipulação. Veja o exemplo a seguir que serviu de ilustração para o livro de Jeziel de Paula, intitulado “ 1932 – Imagens Construindo a História”. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Capa da “Revista da Semana”. No canto inferior direito o braço da poltrona de Getúlio Vargas pintado como se fosse uma faixa branca para esconder parte da manga do paletó de Francisco Morato. Com isso podemos dizer que a fotografia serve plenamente aos propósitos da documentação, não substituindo o passado, mas trazendo informações de um fragmento do real, já previamente selecionado e organizado. A fotografia abre uma nova perspectiva documental, e apesar da restrição provocada pelo enquadramento, foco, etc., sua significação aumenta na medida em que diminuem os elementos de significação presentes no quadro. Essa compreensão sobre a ontologia da imagem fotográfica faz-se necessária para que se tenha clareza do valor documental que ela representa e, também, para que haja a valorização do papel da conservação dos materiais fotográficos como solução na reconstrução da memória. A preocupação com a conservação fotográfica esteve, inicialmente, atrelada à busca pelo aperfeiçoamento dos processos existentes, na tentativa de minimizar os custos de O momento da impressão da luz é único Essa compreensão sobre a ontologia da imagem fotográfica faz-se necessária Fotografia original num vagão do Trem da Vitória na estação Sorocabana, 29/10/1930. 2 RIBEIRO, TRENTIN, POZENATO. “A Mudança do Olhar: a fotografia como Instrumento de resgate da memória cultural”, Histórico, p.179. Revista do Patrimônio Histórico Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 123 ○ ○ ○ Ano 11 - n0 20 - junho / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ produção, facilitar a produção e melhorar a qualidade da imagem. A descoberta em 1851 do colódio úmido (nitrocelulose, éter e álcool) como meio ligante, valorizou a qualidade da imagem fotográfica, proporcionando lhe uma maior nitidez. Esse foi o processo preferido de grandes retratistas, que teve como um de seus maiores expoentes o fotógrafo Félix Nadar. ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ Ferrótipo de 1898. Autor desconhecido. Acervo Centro de Memória Unicamp Um terceiro e último exemplo foi a evolução tecnológica transcorrida com os negativos. Desde a descoberta do princípio do negativo em papel, 1840, por Henri Fox Talbot, até os negativos atuais de poliéster, resistentes ao corte e impermeáveis, houve uma série de processos alternativos, tais como: negativo de vidro em colódio, em albumina, nitrato de celulose, diacetato de celulose, triacetato de celulose, entre outros. O mesmo desejo vivido pelo homem em fixar sua imagem, acarretando na descoberta da fotografia, levou-o à prática da restauração, cuja finalidade era de eternizar aquelas imagens já desgastadas pelo tempo. Procurou-se, inicialmente, uma recuperação estética, sem o conhecimento prévio de que essa intervenção poderia tornar-se prejudicial, acelerando o processo de deterioração da imagem. Hoje em dia o conceito de restauro vem se modificando, optando-se pela proteção do artefato, e adotando-se um tratamento que privilegie a preservação em longo prazo. Esse tratamento implica na adoção de procedimentos que sejam reversíveis. Sarah Bernhardt, entre 1860-1865 Mas o uso do colódio trazia alguns inconvenientes pois todo o processo deveria ser realizado com o produto ainda úmido, aproveitandose a abertura de seus poros, quer para o registro da imagem, quer para a revelação. Na tentativa de aperfeiçoar e simplificar o processo chegouse ao colódio seco, que, embora trouxesse vantagens na manipulação, apresentava resultados inferiores ao anterior. Um outro exemplo foi o ferrótipo que, na tentativa de minimizar os custos de produção, acabou por consolidar-se como processo bastante resistente. Procurou-se, inicialmente, uma recuperação estética 3 CARTIER-BRESSON, Anne. Uma nova disciplina: a conservação – restauração de fotografias, Cadernos Técnicos Fotográfica. Funarte, RJ, 1997. de Conservação Fotográfica Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 124 ○ ○ ○ Ano 11 - n0 20 - junho / 2002 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ “(...) o objetivo da restauração não é mais recuperar ou reformar objetos para adaptá-los ao gosto do dia ou restituir-lhes um valor de uso; ao contrário, se a matéria é indissociável da significação da obra, trata-se daqui por diante de respeitar a sua integridade. O restauro crítico não obedece mais apenas a critérios técnicos, mas leva em conta a globalidade do objeto: sua história, seu contexto cultural, sua estética e sua evolução temporal.”3 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ O restauro crítico não obedece mais apenas a critérios técnicos Busca-se a estabilização, precedida de uma análise detalhada do processo fotográfico, para posteriormente se adotar as medidas adequadas de conservação. Realiza-se, portanto, um diagnóstico. A definição do processo é de extrema importância para a caracterização da fotografia enquanto documento, pois “(...) sua utilidade prática não tem valor senão por sua inscrição no espaço e no tempo” 4 , logo, o processo fotográfico é definido dentro de determinadas condições sócio-culturais. Vimos, por exemplo, o surgimento dos 4 ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ ○ papéis albuminados coincidirem com um período de busca pela mecanização, da industrialização. Isso fez nascer a indústria papel fotográfico, que teve na Alemanha a maior fornecedora de ovos (albumina) do mundo. O papel da conservação e preservação fotográfica ainda sofre alguns revezes pois, em países como o Brasil, não há formação acadêmica específica nessa área. Muitas instituições detentoras de acervos fotográficos importantes tratam essa documentação sem levar em consideração as diferenças de suporte material. Também na Europa essa situação ainda é bastante frágil, aplicando-se procedimentos inadequados em originais. Portanto, a conservação/preservação/restauração, é uma disciplina fundamental para que se possa pensar em reconstrução da memória. Mas deve haver uma associação da conservação com a pesquisa sobre o conteúdo da imagem, sob pena de se colecionar documentos que não exerçam sua função social, ou seja, a da reconstrução da memória. Idem. p. 1 Revista de Educação do Cogeime ○ ○ ○ 125 ○ ○ ○ Ano 11 - n0 20 - junho / 2002