HUMANISMOS LATINOS EM ÁFRICA

Transcrição

HUMANISMOS LATINOS EM ÁFRICA
FONDAZIONE CASSAMARCA
Piazza S. Leonardo, 1 - 31100 Treviso
e-mail: [email protected]
HUMANISMOS LATINO EM ÀFRICA: encontros e desencontros
Coloquio internacional
HUMANISMOS LATINOS
EM ÁFRICA:
encontros e desencontros
Faculté des Lettres et Sciences Humaines
Université Cheikh Anta Diop de Dakar (Sénégal)
9-11 de janeiro 2003
Coloquio internacional
“Humanismos Latinos em África:
encontros e desencontros”
Dakar, 9-11 de Janeiro 2003
Indice
Pag. 7
Saluto
AVV. ON. DINO DE POLI
Presidente della Fondazione Cassamarca, Treviso (Italia)
Pag. 9
Allocution de bienvenue
MAMADOU KANDJI
Doyen de la Faculté des Lettres et Sciences Humaines
Université Cheikh Anta Diop de Dakar (Sénégal)
Pag. 11
Allocution
ELVIRA AZEVEDO MEA
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto (Portugal)
Pag. 15
Allocution
MOUSTAPHA NDAYE
Représentant du Ministre de la Culture et de la Communication
Pag. 17
«Eloge de la latinité» (1962), ou les fondements
négro-africains d’un discours senghorien
MAMADOU KANDJI
Professeur de Littérature Anglaise
Université Cheikh Anta Diop de Dakar (Sénégal)
Pag. 25
Humanismo y tradiciones africanas. El improbable encuentro
FERRAN INIESTA
Universidad Autònoma de Barcelona (España)
Pag. 43
Humanismo cristão e o messianismo africano: Os ideais
de Simão Gonçalves Toko na leitura dos Evangelhos
MANZAMBI VUVU FERNANDO
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto (Portugal)
Pag. 63
As missões perante os novos desafios sócio-políticos e
religioso-culturais
MANUEL AUGUSTO RODRIGUES
Universidade de Coimbra (Portugal)
Pag. 83
Humanismo latino em África: legados, partilhas e falências
MANUEL DOS SANTOS LIMA
Universidade Moderna Setúbal (Angola)
Pag. 91
A especificidade de Cabo Verde
no contexto colonial português
DANIEL A. PEREIRA
Ministério dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde
Pag. 107
La culture gréco-latine dans l’œuvre
de Léopold Sédar Senghor
OUMAR SANKHARE
Département de Lettres Classiques
Université Cheikh Anta Diop de Dakar (Sénégal)
Pag. 111
Abolição do tráfego de escravos: a comissão
luso-britânica da Boa Vista – um Humanismo peculiar
ELVIRA AZEVEDO MEA
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto (Portugal)
Pag. 127
O Humanismo Latino na costa da Guiné - (sécs. XIX-XX):
subsídios para um projecto de pesquisa
CARLOS CARDOSO
ISCTE - Lisboa (Portugal)
Pag. 137
La colonizzazione italiana in Africa orientale
SERGIO
BALDI
Istituto Universitario Orientale di Napoli (Italia)
Pag. 149
Mgr Raponda Walker, une variante de l’Humanisme Latin
en Afrique
SIMAO SOUINDOULA
Centre International des Civilisations Bantu
de Libreville (CICIBA) - (Gabon)
Pag. 155
Contribution à l’analise des principaux apports de
l’Humanisme Latin en Afrique de l’Ouest:
éléments favorables et éléments défavorables
CHEICK SAAD BOUH KAMARA
Professeur de Sociologie à l’Université de Nouakchott (Mauritanie)
Pag. 161
Humanismes et idéologies du développment:
La contemporanéité à l’épreuve de l’essentiel humain
ISSIAKA-PROSPER L. LALÉYÊ
Professeur d’épistémologie et d’anthropologie à l’Université
Gaston Berger de Saint-Louis (Sénégal)
Pag. 177
Um episódio do mercado de trabalho em África –
o relatório Nightingale de 1906
MACIEL MORAIS SANTOS
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto (Portugal)
Pag. 195
Communauté de sens et sens de la communauté:
le croisement des humanismes
JEAN-GODEFROY BIDIMA
Professeur à l’Institut d’Ethique - CHU Saint-Louis Collège
International de Philosophie - Paris
Pag. 209
Associação dos naturais e amigos de Angola de Itajaí:
As (Re)significações de africas no Brasil
JOSÉ BENTO ROSA DA SILVA
Universidade do Vale do Itajaí (Brasil)
Pag. 221
Globalização em África e (Des)Humanismo
CARLOS PIMENTA
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto (Portugal)
Pag. 233
Humanismos ocidentais em África: que futuro?
ZACARIAS KAMWENHO
Arcebispo do Lubango (Angola)
AVV. ON. DINO DE POLI
Presidente della Fondazione Cassamarca
Treviso (Italia)
Impossibilitato ad intervenire, ne sono profondamente
dispiaciuto per l’importanza culturale e civile che l’Africa ha
agli occhi di tutto il mondo.
Approfondire e sviluppare cultura significa approfondire
e sviluppare il dialogo fra ogni diversità e garantire, in questo modo, la pace sociale.
Questo Convegno fa seguito a quello svolto a Capo
Verde nel gennaio 2000 dal titolo “L’Umanesimo Latino e
l’Umanesimo Africano”.
La pubblicazione degli atti ha il significato di tenere
ferme le riflessioni e metterle a fondamento di ogni nuova iniziativa e testimonianza.
Grazie per Vostra così proficua collaborazione.
7
MAMADOU KANDJI
Doyen de la Faculté des Lettres et Sciences Humaines
Université Cheikh Anta Diop de Dakar (Sénégal)
Monsieur le Représentant du Ministre de la Culture et de
la Communication, Monsieur le Représentant du Centre
d’Etudes Africaines de Porto, Monsieur le Représentant de
la Fondazione Cassamarca, Mesdames, Messieurs les
Professeurs, Chères étudiantes, chers étudiants, Chers invités, Mesdames, Messieurs,
les dysfonctionnements et les incohérences du monde
moderne posent de plus en plus des questions lancinantes:
qui est l’homme? Quel est le monde dans lequel il vit?
Dans ce contexte précis, le 11 septembre 2001, en plus
du cinglant démenti qu’il a jeté sur l’orgueil de l’homme, a
secoué celui-ci de sa léthargie et a sonné le glas des radicales certitudes.
Le 11 septembre, par ce qu’il est dans un passé peu
lointain pose encore la question de l’humanisme sous sa
forme la plus troublante, c’est-à-dire ce qui reste d’humain
en l’homme.
Cet événement pour le moins inattendu a réactualisé un
certain nombre de concepts qui reposent la question de
l’humanisme. C’est ainsi qu’on a parlé de
– Conflits de civilisations
– Chocs des cultures
– Terrorisme
– Monde civilisé par opposition au monde barbare
– Valeurs de civilisation etc.
Issu des traditions gréco-latine et judéo-chrétienne, l’humanisme, dans sa forme la plus radicale, vise à la promotion
des valeurs, il tente de libérer l’homme de tous les obstacles
à son bonheur et à réduire le retard de celui-ci par rapport
à l’idéal moral qu’il s’est fixé, selon les termes du romancier
anglais d’origine polonaise, Joseph Conrad.
Si l’humanisme doit être revisité ces 3 jours-ci, c’est par
ce qu’«on ne peut pas aimer l’humanité et détester les
hommes». Autrement dit, il faut vivre l’humanisme et non la
théoriser.
9
Or, à la lumière de ce qui se passe dans le monde d’aujourd’hui, c’est l’idéalisme qui prévaut. La situation contemporaine interpelle tout le monde et les éducateurs que nous
sommes au premier chef.
On peut d’ailleurs se demander, à la suite George
Steiner, si ce n’est pas le recul des humanités dans les programmes de nos lycées et collèges, dans nos universités
qui a engendré, sous nos yeux, le déclin de l’humain.
Heureusement qu’une prise de conscience est en train de
se faire jour.
En France, le Ministère de Claude Allegre a de plus en
plus tendance à recentrer l’enseignement sur le sacré, sur
l’amour et sur la réflexion philosophique. Récemment, au
Sénégal, le Ministre de l’Education a introduit l’enseignement religieux. Il est question de la refondation de l’homme,
dans l’un comme dans l’autre cas. Le colloque vient donc à
son heure.
Et je voudrais, au nom de Monsieur le Recteur, vous souhaiter la bienvenue à l’Université Cheikh Anta Diop.
Les 20 communications que nous allons entendre traitent tous de l’humanisme sous différentes formes: laïque,
séculaire et religieuse.
Je sais d’ores et déjà que les débats seront riches et
féconds.
Je souhaite que les Actes puissent être édités et mis à la
disposition de la Communauté scientifique toute entière.
Je vous remercie.
10
ELVIRA AZEVEDO MEA
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto
(Portugal)
Exmªs Autoridades civis, religiosas, académicas, Senhor
Presidente da Fondazione Cassamarca, Caros Colegas,
Estudantes, Minhas Senhoras e Senhores:
È com muita honra e prazer que vos saúdo em nome da
Universidade do Porto e do seu Centro de Estudos
Africanos, que represento e em meu próprio nome. Ainda
nos parece uma miragem estar aqui a concretizar um dos
nossos objectivos: estudar e discutir em conjunto com
especialistas de dez países diferentes, em África, o tema
proposto: encontros e desencontros de povos e culturas
europeias e africanas, em termos científicos, sem tabus, alibis, preconceitos.
É, sem dúvida, um momento feliz este encontro para um
centro, como o nosso, um dos mais novos (sete anos) da já
vetusta Universidade do Porto, hoje com 91 anos, 14 faculdades e 14.000 alunos.
O CEAUP é interdisciplinar congregando um grupo de
docentes e investigadores das várias áreas das Ciências
Humanas, da História à Antropologia, Economia, Sociologia,
Direito, etc. Durante estes sete anos, para além de quatro
mestrados em E. A, vários colóquios e congressos, uma
revista anual, a investigação possível, realizámos no início
deste século, precisamente, em Janeiro de 2000, um colóquio na cidade da Praia, subordinado ao tema “Humanismo
Latino e Humanismo Africano” que entusiasmou muita gente,
inclusivamente o Presidente da Fondazione Cassamarca,
com um interesse cultural especial no Humanismo Latino,
acerca do qual tem realizado encontros científicos em todo
o mundo. Foi exactamente graças à Fondazione
Cassamarca que durante três dias pudemos debater toda
uma série de questões ligadas aos dois Humanismos, às
culturas englobantes, a povos que os viveram em determinadas vicissitudes.
Desse encontro sobressaiu, entre outras, a problemática
ligada a diferentes modos como se desenrolaram ao longo
dos séculos as relações entre europeus e africanos, em que
frequentemente o Humanismo ou outros “ismos” branquearam situações de grande desumanidade.
11
A África foi retalhada, missionada, esgotada, civilizada,
esterilizada. Daí, como alguém disse: “Por que não debater
essa incomensurável dívida da Europa à África?”
Foi o mote para este nosso colóquio, em que nos iremos
debruçar sobre os “Humanismos Latinos em África: encontros e desencontros”, uma vez mais graças ao mecenato da
Fondazione Cassamarca e à especial hospitalidade da
Universidade de Dakar, pelo que, em nome do CEAUP e de
todos os participantes agradeço nas pessoas do Senhor
Presidente e no Deão da Universidade Prof. Kandji.
———————————————
Excellentissimes Autorités Civiles, Religieuses,
Académiques, Monsieur le Président de la Fondazione
Cassamarca, Chers Collègues et Etudiants, Mesdames et
Messieurs.
C’est un grand honneur et un plaisir pour moi de Vous
saluer au nom de l’Université de Porto et de son Centre d’Études Africaines, que je représente, et en mon propre nom.
Il nous semble encore une mirage d’être ici et de concrétiser un de nos objectives: étudier et discuter ensemble, avec
des spécialistes en Afrique de dix pays différents, le thème
proposé: les rencontres et détours des peuples et des cultures européennes et africaines, en termes scientifiques
sans aucun tabou, alibi ou préjugé.
Ce colloque est, sans doute, un moment heureux pour
un Centre comme le nôtre, un des plus récents (sept ans) de
la déjà ancienne Université de Porto, qui a 91 ans, 14 facultés et environ 14 milles élèves. Le CEAUP est interdisciplinaire et rassemble un groupe de Professeurs et chercheurs
de plusieurs domaines des Sciences Humaines, de
l’Histoire à l’Anthropologie, Économie, Sociologie, Droit, etc.
Pendant ces sept années, on a organisé, au-delà des quatre Maîtrises en Études Africaines, plusieurs Colloques et
Congrès, une Revue annuel, et la recherche possible.
Précisément au début de ce siècle, en janvier 2000, on a fait
un Colloque dans la Cidade da Praia, Cap-Vert, subordonné au thème: “Humanisme Latin et Humanisme Africain”,
que a enthousiasmé nombreuses personnes, telles que le
Président de la Fondazione Cassamarca, qui a un intérêt
culturel spécial à l’Humanisme Latin, et sur lequel il a organisé des rencontres scientifiques dans le monde entier.
C’est précisément grâce à la Fondazione Cassamarca
12
qu’on a pu, pendant trois jours, débattre toute une série de
questions liées aux deux Humanismes, aux cultures englobantes, et aux peuples que l’ont vécu en des vicissitudes
particulières. Le contacte de l’Humanisme Africain avec
l’Humanisme Latin, considérant les circonstances historiques, a été un choque culturel brutal, a partir du moment où
les européens ont considéré comme politiquement correct
d’utiliser les africains comme un moyen pour atteindre leurs
fins. En agissant comme Maîtres de la Vérité, les européens
concevaient leur Humanisme comme unique.
L’Humanisme Chrétien, lui-même, a oublié souvent son
caractère intrinsèque, universel, en acceptant que tous les
moyens fussent légitimes pour convertir les nègres en fils de
Dieux, et pour cela et pour atteindre au Père, ils devraient
donc être obéissants, soumis et résignés. L’Humanisme
Chrétien a été évidemment écrasé dans ce choque, mais il
a continué à exister, souvent clandestin, mais dans une nouvelle dimension, dans des myriades de lieux et temps, les
africains ont continué à vivre, même si dans des conditions
toujours très difficiles, souvent infrahumaines, particulièrement pour ceux de la diaspora. De ce rencontre a ressorti,
entre autres, la problématique liée aux différents moyens de
déroulement des relations entre les européens et les africaines, au long des siècles, où fréquemment l’Humanisme et
d’autres «ismes» ont blanchi des situations de grande inhumanité. L’Afrique a été coupée, évangélisée, épuisée, civilisée, stérilisée. Ainsi, comme quelqu’un a dit: «Pourquoi pas
débattre cette dette incommensurable de l’Europe à
l’Afrique?» Ça a été le refrain pour notre Colloque, dans
lequel on va débattre les «Humanismes Latins en Afrique:
rencontres et détours», une fois de plus grâce au mécénat
de la Fondazione Cassamarca et en particulier à l’hospitalité de l’Université de Dakar. Je Vous remercie au nom du
CEAUP et de tous les participants, dans les personnes de
Monsieur le Président et de Monsieur le Doyen de
l’Université, Prof. Kandji.
13
MOUSTAPHA NDIAYE
Représentant du Ministre
de la Culture et de la Communication
Monsieur le Représentant de Monsieur le Recteur de
l’Université Cheikh Anta Diop, Monsieur le Représentant du
Centre d’Etudes Africaines do Porto, Monsieur le
Représentant de la Fondazione Cassamarca, Mesdames,
Messieurs les Professeurs, Chères étudiantes, chers étudiants, Honorables invités,
«L’humanisme latin en Afrique: Rencontres et Détours»,
voilà un thème qui ne laisse personne indifférent si tant est
que l’humanisme, c’est cette philosophie qui place l’homme
et les valeurs humaines au-dessus de tout, et qui, en définitive, ne vise que l’épanouissement des qualités humaines et
l’éclosion de ce qui est humain en l’homme.
C’est vrai qu’à travers l’histoire, il y a eu des moments où
des hommes ont réduit d’autres hommes à moins que rien,
et les ont, pour ainsi dire, déshumanisés, en leur ôtant leur
identité propre et en leur collant des matricules.
Mais tous ces malheurs sur lesquels je n’insisterai pas
n’ont pas empêché à l’homme, je veux dire à l’espèce, de
mener sa longue marche, tantôt courbé, tantôt penché tantôt droit vers l’espérance et de forger l’histoire, celle de
l’Humanité.
N’est ce pas Primo Levi qui disait:
«Détruire un homme est difficile, autant que le créer»?
Au regard de l’histoire, on pourrait dire qu’au bout du
compte, ce qui sauve l’Homme, c’est finalement la Raison,
c’est la Foi, c’est l’Espérance. C’est en définitive, ce qu’il y a
d’humain en lui, c’est-à-dire son humanité irréductible.
Dès lors, le choix de l’intitulé de votre Colloque,
«Humanismes latins en Afrique: Rencontres et Détours» ne
pouvait être plus judicieux.
L’Humanisme, – ou les humanismes – se situe au cœur
de la dialectique de la vie et de la politique, c’est-à-dire dans
ce qui réglemente la vie de la société. Il entretient avec la
citoyenneté des rapports étroits en ce qu’il est le garant de
la diversité culturelle, de la tolérance. Ainsi il devient du coup
une invite du citoyen à la vie politique entendu au sens large.
15
Ses dimensions variables nous interpellent tous les
jours, peut-être à notre insu, et sous différentes formes:
• Développement durable
• Problèmes écologiques
• Vieillissement de nos populations
• Asiles et prisons
• Préservation de nos valeurs culturelles
• Résolution des conflits frontaliers etc.
Tout cela a partie liée avec l’humanisme.
Notre pays, le Sénégal, s’est résolument engagé, malgré
une conjoncture mondiale difficile, à améliorer les conditions
de vie de ses citoyens mais aussi à entretenir de bonnes
relations de voisinage avec les pays de la sous-région. Il a
fourni de gros efforts, récemment, pour la stabilité de la
sous-région, conditio sine qua none d’un développement
économique viable. Le NEPAD, New Partnership for African
Development, cherche à promouvoir un partenariat garant
du développement de notre cher continent, l’Afrique.
Mesdames, Messieurs les conférenciers, je voudrais au
nom de Monsieur le Ministre de la Culture et de la
Communication, retenu ce matin par le Conseil des
Ministres, vous féliciter pour deux raisons au moins.
Pour avoir ciblé un thème dont l’actualité et la pertinence sont indiscutables.
Mais aussi – et peut-être surtout – pour avoir choisi, notre
pays, pays de la Téranga (en soi une forme d’humanisme)
pour abriter votre Colloque.
Au nom de Monsieur le Ministre, je vous souhaite plein
succès dans vos travaux et déclare ouvert le Colloque
International sur «Humanismes Latins en Afrique:
Rencontres et Détours».
Je vous remercie.
16
MAMADOU KANDJI
Professeur de Littérature Anglaise
Université Cheikh Anta Diop de Dakar (Sénégal)
«Eloge de la latinité» (1962), ou
les fondements négro-africains
d’un discours senghorien
«Eloge de la latinité» est l’allocution que Senghor
prononça, précisément, le 30 octobre 1962 à Rome, à l’occasion de sa Réception au Capitole par le Conseil Municipal
de la ville. Légèrement remanié, le texte original figure dans
Liberté 1. Négritude et Humanisme (1964)1. D’environ 4
pages, il entre dans le cadre des préoccupations qui ont
toujours été celles de Senghor:
Enracinement et ouverture
Dialogue des cultures
Métissage culturel
Le sacré comme élément important de la culture
africaine
• Une rhétorique africaine basée sur le mode
des ethnotextes sénégalais
• Le discours superpose: prose, poésie et
rhétorique classique.
•
•
•
•
Personnellement, j’entretiens avec ce texte des rapports
presque intimes dans la mesure où, en 1962-1963 déjà,
alors que j’étais jeune normalien de l’Ecole Normale William
Ponty de Sébikhotane, le Ministre de l’Education Nationale
et de la Culture de l’époque avait recommandé ce texte à
tous les professeurs de français des classes de seconde
pour qu’ils l’enseignent à leurs élèves. Ce discours senghorien, comme tant d’autres, ont pour ainsi dire fait partie du
royaume d’enfance de plusieurs jeunes sénégalais de ma
génération. Je voudrais, cet après-midi, montrer qui «Eloge
de la latinité», c’est aussi l’éloge de l’Africanité, et qu’il s’appuie sur des fondements négro-africains.
***
17
Ce discours, bien construit, obéit à une structure classique avec une introduction et une conclusion qui encadrent
3 parties distinctes.
• Dans une première partie de 4 paragraphes bien tranchés, Senghor se livre à une démonstration de la grandeur historique de Rome et de sa culture
• Dans une deuxième partie, de 3 paragraphes, cette
fois-ci bien ramassée, il démontre l’apport de
l’Africanité à la civilisation de l’Universel
• Et, enfin, il procède à une synthèse qui jette le pont
entre Latinité et Africanité en ces termes qui campent
le dialogue des cultures:
«Vous nous avez apporté, à nous, Africains, la raison discursive; nous vous apportons, à vous, Européens, à vous,
Latins, la raison intuitive, par quoi se définit la Négritude» (p.
356).
Dès le début, Senghor établit un parallèle entre l’apport
fécondant de la Latinité à la civilisation de l’Universel,
notamment avec le développement des sciences, des techniques et des arts, et d’autre part l’apport de l’Africanité à
cette même civilisation de l’Universel. L’apport de
l’Africanité, c’est la raison intuitive, c’est l’émotion, l’instinct,
bref ce sont les ressources illimitées de l’âme humaine etc.
Ce faisant, il abolit du coup, la dichotomie que l’on pourrait a priori trouver entre Latinité et Africanité deux concepts
qu’il perçoit en termes de complémentarité.
***
Dans la première partie, il montre la puissance impériale
de Rome, une grande civilisation qui fut maîtresse du
monde, irradiant à travers celui-ci, notamment par le biais
de la Renaissance, sa civilisation: le Droit, l’Enseignement,
l’Art, le Commerce, l’Agriculture, les Travaux Publics et les
Sciences. Il fige Rome, cette ville éternelle, dans sa mission
première telle qui Virgile l’a chantée.
«Ici se confondait l’orbis terrae et l’orbis terrarum […] Ici
se confondait le monde des dieux et le monde des
hommes, pour dire la mission de Rome, telle que la
chante Virgile, qui était d’éclairer le monde, sous le
guide de Dieu» (p. 354).
18
Dépassant cette vision réductrice de Rome, il développe
les valeurs essentielles de la Latinité dont il voit l’impact
jusque dans la vingtaine d’états africains modernes qui ont
hérité de ces valeurs. Mais ces valeurs de la Latinité, poursuit-il, même si elles sont héritées d’Athénes, ont été néanmoins organisées par Rome qui les a transmises par le biais
de la Renaissance, à l’Amérique, à une partie de l’Asie et à
l’Afrique. Ici on sent le poète et l’homme politique qui parlent:
«Il se trouve que nous sommes, en Afrique, une vingtaine d’Etats et de territoires dont les élites ont été nourris
du lait de la Louve, sont les filles du Capitole» (p. 354).
C’est la Renaissance qui a permis de révéler l’apport de
l’Italie, celle de la Latinité, à la Civilisation de l’Universel, par
le génie des artistes: Pétrarque, Dante, Michel Ange et tant
d’autres. Ce génie latin, Rome l’a entièrement partagé avec
le reste du monde, y compris avec les Africains:
«J’ai conscience d’accomplir un devoir filial, en venant
aujourd’hui, sur la Colline Sainte, rendre hommage à la
Latinité: à l’esprit de la civilisation romaine» (p. 354).
En plus de la métaphore du lait de la Louve, comme héritage de la Latinité, il parle des «frères de lait» faisant ainsi
allusion aux sociétés africaines matrilinéaires où la parenté
s’établit par le sein maternel. Senghor lui-même étant du
matriclan ou tim des Tabor qu’il cite souvent dans sa poésie.
William Shakespeare, ce poète et dramaturge nourri de l’humanisme latin a souvent fait appel à cette métaphore pour
rendre ce qu’il y a d’humain en l’homme. Lady Macbeth,
dans la pièce de ce nom, dit de son mari qu’il est plein du
lait de l’humaine bonté “the milk of human kindness”.
“Kindness” c’est d’abord la bonté, mais c’est aussi l’espèce
humaine dans ses valeurs les plus irréductibles.
L’une et l’autre métaphore, celle de l’allaitement et celle
de la greffe, se complètent et revoient au métissage biologique et culturelle. Dans «Elégies à Philippe-Maguilen
Senghor», «le rameau greffé du Viking sur Tabor» rend
compte du métissage de la race normande et du clan matrilinéaire du poète, plaçant ainsi Philippe, mort, aux
confluents de deux civilisations. A sa femme Colette le
poète dit:
19
«Voici donc notre enfant, souffle mêlé de nos narines,
qui s’éteint, ha !» Œuvre Poétique, (p. 286).
Senghor procède, ensuite, à un inventaire méthodique
des valeurs de la Latinité. Celles-ci ont nom:
•
•
•
•
sens de l’humain
respect de la personne humaine
respect de la diversité religieuse
promotion de la ratio sur le logos grec.
Si Senghor préfère la ratio latine au logos grec, c’est
parce qu’essentiellement la ratio dépasse l’analyse qui est
du domaine du logos et offre une méthode de réalisation qui
est le fruit d’une synthèse totalisante.
Si tant est que le logos est essentiellement discours et
raison discursive, la ratio, elle, est essentiellement rationalité. C’est la méthode au sens cartésien du terme. Entre discours et méthode, Senghor préfère la seconde. Ils voient
chez les Latins des gens traditionnellement pratiques alors
que les grecs sont plus théoriques.
«La Latinité, c’est aussi la ratio. Une ratio moins souple,
moins discursive que le logos grec dont elle procède, mais
combien plus efficace. Plus qu’analyse, elle est synthèse,
plus que théorie, elle est technique efficace d’organisation:
de réalisation» (p. 355).
Dans son ouvrage: Après Babel: une poétique du dire et
de la traduction, (1975) George Steiner, résumant les
conclusions de Humboltd sur les langues classiques, confirme la vision senghorienne en ces termes:
«Le registre grec est léger, délicat, nuancé. La civilisation attique regorge d’inventions sur le plan des formes
plastiques et intellectuelles… En même temps que la
syntaxe grec [c’est] la confiance excessive accordée à
la rhétorique, la dextérité mensongère…
Le latin présente un contraste solennel. La coloration
sévère, masculine laconique de la culture romaine est le
reflet exact du latin et de sa sobriété» (p. 134).
Et ce sont ces valeurs fondamentales de la Latinité qui
attachent Senghor à la langue et à la civilisation latines. Il en
vante constamment le mérite et l’utilité:
20
«Ce n’est pas hasard si le latin demeure en Europe, en
Amérique, en Asie, comme langue de culture. Si des
scientifiques comme M. Capelle, ancien Recteur de
l’Université de Dakar, le préconisent comme langue universelle. Encore une fois, la civilisation du XXe siècle,
celle de l’atome et des vols spatiaux, notre civilisation
technicienne est héritière du génie romain» (p. 35).
A ce thème, Senghor a consacré plusieurs essais. Et ce
n’est pas hasard non plus, si le dernier essai de Négritude
et Humanisme est intitulé «La jeune fille et le latin» (p. 436).
Ce texte de 4 pages est une allocution qu’il prononça le 26
juin 1963, lors de la Distribution solennelle des prix, au
Lycée des Jeunes Filles de Dakar.
«Chères élèves, le Latin – comme le Grec et l’Arabe –,
parce que discipline d’éducation aidera à cette promotion de la jeune fille, de la femme sénégalaise…
Mais, comme je ne cesse de le répéter, il faut que les
femmes et jeunes filles sénégalaises nous aident à les
aider. Par leur travail, par leur application, par leur
sérieux, avec ce souci du rationnel et de l’efficace que
nous inculque, chères élèves, l’enseignement du latin»
(p. 437-438).
***
C’est à mi-chemin de sa démonstration que Senghor
amorce une transition pour montrer comment la civilisation
latine a essaimé à travers toute la planète, et comment, elle
est arrivée en Afrique par l’Afrique du Nord, carrefour des
civilisations, des races et des cultures.
Le souvenir des guerres puniques qui ont opposé Rome
et Carthages et qui ont abouti à la destruction de Carthages
telle que chantée par Virgile reste encore vivace y compris
jusqu’en Afrique. Mais ici elle sert la cause d’une vaste
métaphore aux relents poétiques: «Les flammes de
Carthage agonissant brûlent encore nos cerveaux africains»
(p. 354).
Ainsi, Senghor montre la permanence des valeurs de la
Latinité et la puissance de la culture latine en Afrique et ce,
dès le début du texte (p. 354).
21
Dans les Elégies Majeures, se trouve une Elégie de 5
strophes, «Elégie de Carthage» qu’il dédie «A Habib
Bourguiba, le combattant suprême» (Œuvre Poétique, p. 306).
Mais ce que le poète met en contrepoint, dans le deuxième mouvement, c’est le rôle que l’Afrique du Nord a joué dans
la diffusion en Afrique de l’humanisme latin. Il signale au passage que plusieurs écrivains latins sont originaires d’Afrique
du Nord: Tertullien et Saint Augustin notamment. Il campe ces
deux penseurs dans leur origine africaine berbère.
Tertullien, ont le sait, avait essentiellement réfléchi sur la
foi par ce qu’il avait senti les limites de la raison discursive
dans l’appréhension du réel et dans la perception de la
Vérité. Il explora d’autres canons, d’autres modalités d’accès à la connaissance: émotion, intuition, instincts toutes
des catégories que Senghor assimile à l’Africanité et qui
servent d’armature à la Négritude. Il le dit juste avant d’aborder sa conclusion !
«Credo qui a absurdum. La phrase de Tertullien, reprise
par Saint Augustin, nous mènera a notre conclusion. Ce
qui veulent dire ces deux berbères, ces deux africains,
c’est que la logique, à elle-seule est incapable de comprendre le réel» (p. 356-357).
A cet effort personnel de l’Afrique, pour jouer sa partition
dans l’orchestre de la «convergence panhumaine»,
Senghor met Ibn Khaldoum. Au matérialisme sans épithète
(selon une formule que Senghor aime beaucoup), Ibn
Khaldoun a opposé le matérialisme spiritualiste. Au demeurant, c’est à Ibn Khaldoun qu’il attribue la naissance du
matérialisme spiritualiste qui a fait fortune en Afrique.
En contrepoint de la première partie, Senghor passe en
revue les valeurs nègres, celles de l’Africanité
Le rythme et l’image rythmée
L’art nègre: les arts plastiques
La raison intuitive
Le Dialogue et l’Amour comme voies
d’accéder à la connaissance
• Et enfin, les valeurs du terroir où s’enracinent l’homme.
•
•
•
•
En définitive, ce que Senghor reprend ici c’est la conver22
gence des cultures, l’apport indispensable de l’Afrique à l’humanisme planétaire: «l’orchestre de la convergence panhumaine ne serait pas complet, ne serait pas humain, s’il y
manquait la section rythmique de la Négritude» (p. 356).
Le binôme favori enracinement-ouverture sert de support au discours. Senghor parle du dialogue des cultures,
mais aussi de l’éducation et de l’hérédité. L’hérédité (nature)
c’est l’enfermement dans nos propres valeurs, dans notre
être, tandis que l’éducation (culture) c’est l’apport extérieur.
Ici c’est l’apport fécondant de la Latinité à la civilisation
négro-africaine.
***
Au plan de la rhétorique, l’écriture senghorienne s’apparente au tagg ou éloge en woloff, genre que Senghor pratique dans sa poésie comme «Tagg à Mbaye Djobb». Le
«tu» qu’il emploie l’illustre bien.
«Comme le disait le Gaulois Namatianus invoquant
Rome!: Tu as donné une patrie commune à des peuples
divers, tu offres aux vaincus de partager tes droits, tu as
fait du monde entier une seule Cité» (p. 355).
Le discours se lit comme un collage des classiques
latins, Cicéron, Tacite, Catulle, et de palabres africaines, sur
fond de mythes et de légendes. Il se lit comme cette greffe
du «rameau latin sur le sauvageon africain» (p. 357) qui permet au Nègre d’assumer son historicité, c’est-à-dire de se
réaliser pleinement parce qu’allant dans le sens de
l’Histoire.
Ce thème recoupe celui du métissage qui traverse la
pensée senghorienne, comme pour dire qu’au plan de la
langue aussi l’avenir du monde appartient au métissage linguistique et représentationnel, en somme à la mondialisation
que tous ses essais théoriques et sa poésie promeuvent.
La tonalité du discours, son balancement «ici, le
temple… ici, se confondait… ici se rencontrait…» rappelle
fort bien les saltigués où devises tambourinées ponctuant
les déclarations pendant les «khoye» ou cérémonies de
divinations. C’est ainsi qu’on a parlé, chez Senghor, de
poèmes saltigues, néologismes qui rend compte du rythme
incantatoire de certains de ses poèmes.
23
Conclusion
S’ouvrant par une évocation du sacré le poème se termine par une invocation du sacré.
«Au moment de me lever pour vous répondre, je me
sens saisis par le souvenir de la grandeur de Rome,
comme soudain saisir par pour les griffes de l’aigle.
Horresco! (début du texte)».
«Vous vous serez étonnés que sur la Colline Sainte, un
éloge de la Latinité, se termine par l’éloge de l’Africanité,
voire de la Négritude. De nouveau Horresco!»(fin du
texte).
Horresco!… De nouveau Horresco! pour rendre l’effroi la
crainte religieuse par ce que Senghor se trouve sur la colline sainte où jadis se tenait le temple de Jupiter. Mais cette
invocation religieuse doit, à mon avis, être considérée
comme une clause rhétorique, comme un élan mettant le
poète sur les ailes de Pégase pour chanter la grandeur de
Rome: «comment cacherai-je mon émotion?» dit le poète.
«Eloge de la Latinité» n’est pas en définitive qu’éloge de
la latinité. C’est aussi l’éloge de l’Africanité. Texte en prose,
il recoupe également les préoccupations rhétorique et poétique de Senghor. Les grands thèmes chers au poète
Senghor, son idéologie s’y trouvent en condensé.
BIBLIOGRAPHIE
Léopold Sédar Senghor, Œuvre Poétique, Paris, Seuil, 1990, Roman, édition 1964.
Léopold Sédar Senghor, Liberté 1. Négritude et Humanisme, le Seuil,
1964.
«Hommage à Léopold Sédar Senghor Homme de Culture», Présence
Africaine, 1976.
George Steiner, Après Babel: une poétique du dire et de la traduction,
traduit de l’anglais par Lucienne Lotringer et P.E. Dauzat, Albin Michel, 1998,
première édition O.U.P, Oxford, 1975.
Notes
(1) Les citations dans le texte renvoient à cette édition.
24
FERRAN INIESTA
Universidad Autònoma de Barcelona
(España)
Humanismo y tradiciones africanas.
El improbable encuentro
Como en cualquier cultura de cualquier época, hay en
Occidente ideas que son consideradas normales, lógicas y
naturales. Desde la declaraciones de derechos del hombre
y del ciudadano, en el siglo XVIII, la cultura occidental ha
ido asumiendo que hay valores indiscutibles, propios de la
naturaleza humana, y que su ausencia aboca a sociedades
enteras a la periferia de la historia por sus concepciones y
comportamientos ‘inhumanos’ (Rojo). Ese modelo se ha ido
elaborando desde hace unos quinientos años, en torno a las
ideas-fuerza de progreso e igualdad, y sus críticos han sido
duramente puestos en el índice del pensamiento correcto
en las últimas décadas del siglo XX (Sebreli, Finkielkraut).
Lo que se ha dado en llamar humanismo procede de
una particularísima visión separativa del ser humano y su
entorno, una concepción rupturista que hunde sus raíces en
la dialéctica aristotélica y despega con fuerza en la nueva
ciencia de los siglos XV y XVI. Hablar de antropocentrismo
para denostar un humanismo de mala calidad es algo
corriente hoy, aunque sólo ha aumentado la confusión conceptual existente: las culturas históricas son necesariamente antropocéntricas, pues se sitúan en lo real desde la centralidad inexcusable de nuestra especie, y por ello tanto las
culturas europeas como las demás han sido antropocéntricas en sentido estricto. Pero el antropocentrismo humanista
es de otra índole, pues se basa en el alejamiento y objetivación entre humanidad, universo y divinidad, con lo cual
todo se mide desde parámetros humanos escindidos del
conjunto real: Aristóteles ya había indicado que nada podía
conocerse íntimamente fuera de lo humano, ni lo natural ni
lo divino, y esa ha sido la senda ensanchada por el humanismo moderno.
Para agravar la confusión conceptual, la historia de la
filosofía occidental ha decidido rebautizar como humanistas
a los pensadores tradicionales – neoplatónicos – que nega25
ron la dialéctica y defendieron la necesaria complementariedad de contrarios (Nicolás de Cusa, Pico della Mirandola,
Marsilio Ficino). Me limitaré a invitar a una relectura de
aquellos autores, cuyas posiciones fueron claramente
opuestas a las de la ciencia moderna y su dialéctica eliminadora de contrarios, como lo prueba su fuerte apuesta por
el platonismo como pensamiento integrador. Un platónico
no es un humanista ni asume las tensiones propias del individualismo.
Por lo antedicho, emplear indiscriminadamente el término humanismo para englobar en él todo lo que parezca
positivo, no es muy conveniente ni desde el punto de vista
histórico ni desde su relatividad en el plano cultural. Ni toda
la historia occidental ha sido humanista – apenas quinientos
años – ni las culturas de otros continentes lo han sido, si respetamos el contenido original de la palabra. Sí es posible,
en cambio, hablar de humanismos exportados a Africa, e
incluso de aludir a sus variantes ‘latinas’, siempre que eso
no sirva para colocar toda la negatividad en la versión
anglosajona o germánica y todas las excelencias en el
‘modo latino’ o mediterráneo: en ambos casos, se trata del
humanismo moderno, pues no lo hay fuera de la modernidad. Por ello, aludiremos al humanismo occidental en líneas generales, ya que el antropocentrismo humanista está
lejos de los referentes tradicionales básicos de las sociedades de Africa.
1. Humanismo y Globalización
“En los tiempos antiguos, las naciones opulentas y
civilizadas tenían dificultades para defenderse de
las pobres y bárbaras; actualmente, los pobres y
bárbaros tienen dificultad para defenderse de los
opulentos y civilizados”
Estudio sobre la naturaleza y causas de la riqueza
de las Naciones
Adam Smith, Londres 1776
No es aceptable, intelectualmente, hablar de la función
bienhechora de una ideología – aquí la humanista – separándola de la práctica cotidiana que se hace socialmente en
26
el mundo. Por lo menos, los clásicos modernos – desde
Maquiavelo hasta Adam Smith – nunca cocultaron que la
civilización que defendían tenía sus aspectos oscuros,
cuando no truculentos ¿Pueden los universitarios de hoy en
día hablar de progreso y libertad (individual), haciendo abstracción de cómo se imponen esos ideales y qué se hace
con los otros modelos de sociedad? Sería una frivolidad, y
probablemente una labor de ocultación casi cómplice de
opresiones coloniales, guerras de represalia o liberación y
justicias internacionales desequilibradas.
El humanismo irrumpe en el mundo acompañando la
expansión colonial europea, y sería útil releer la historia de
un náufrago humanista – y racista – como el novelesco
Robinson Crusoe, por la misma época en que Jonathan
Swift defendía aún la posibilidad de diversidad cultural en
sus Viajes de Gulliver. Trata de esclavos, colonización, guerras mundiales y globalización del modelo único son la cara
menos amable de la preponderancia moderna, pero curiosamente ese lado oscuro no acostumbra a entrar en debate, ya que suele verse como una ‘desviación’ lamentable de
los principios humanistas positivos. Esa versión edulcorada
de los hechos disfraza el horror cotidiano de anomalía y presenta la pureza ideológica como norma universal. Este itinerario intelectual resulta poco valiente, y es tiempo de
recordar que los valores del individualismo y del progreso
han sido la justificación para la expansión europea ayer y
para la globalización homogeneizante hoy.
Para la conquista de América, cristianizar era la idea
rectora, y con ello se produjo una hecatombre demográfica
y – peor aún – un embrutecimiento cultural de los vencidos.
Para la conquista de Afroasia en el siglo XIX, el concepto
motor fue el progreso y el acceso paulatino de los colonizados a la libertad individual, rompiendo con sus formas de
organización y pensamiento. Puesto que todo en el universo es cambio, transformación y movimiento, podríamos
aceptar la inevitabilidad de las destrucciones, de las muertes masivas y de los exterminios culturales, vistos todos
ellos como un mal menor como antesala de un futuro humanista radiante. No obstante, el horror nunca justifica nada,
sólo es un hecho constatable, y sus frutos son escasos o
deformes ¿Va a imponerse la Good Governance a Africa
con desembarcos en Somalia o en Costa de Marfil? ¿O tal
vez el buen orden internacional ya se da con el mantenimiento de dictaduras feroces como en Nigeria o en Guinea
Ecuatorial, por las grandes multinacionales de los países
27
abanderados del humanismo como Estados Unidos o
Francia?
En 1502, junto a la pequeña isla de Kilwa, Vasco da
Gama amenazó la ciudad con sus cañones para que el
jeque swahili se plegara a sus condiciones político-económicas: ‘comercio es amor’ dijo el capitán de Dom Manuel al
dirigente africano (Iniesta), haciéndole comprender que
quien se negaba a negociar con él demostraría su falta de
amor y, por lo tanto, sería bombardeado ¿Puede haber más
hermosa doctrina que la del amor entre pueblos? Con el
paso de los siglos, los dirigentes civilizados a los que aludía
Adam Smith, se harían más prepotentes y claros en sus verdaderos designios; Jules Ferry aseguraba en el parlamento
francés que sus tropas en Africa no estaban allí para
implantar los derechos humanos, sino para sacar beneficios
para capitalistas y proletarios franceses: ‘los africanos no
nos han llamado’ (Suret-Canale).
Como señalaba hace unos años el historiador malgache
Esoavelomandroso en dura polémica con el humanista norteamericano Saul Mendlowitz: ‘Hace quinientos años ustedes empezaron a acorralarnos militarmente, hace un par de
siglos emprendieron nuestra expoliación económica y ahora
nos ofrecen su ayuda para barrernos ideológicamente y
desposeernos de lo útimo que nos queda: nuestra forma de
ver el mundo. No, gracias’ (Rojo). No se trata exclusivamente de una distinta manera de pensar y vivir, sino de una
concepción de verdad excluyente, única, que permite a
Occidente colocar en el campo del error a todos aquellos
que no comparten sus valores, sus intituciones y sus prácticas económicas: africanos y demás exteriores deben ser
salvados del error, deben ser liberados de sí mismos hasta
su homologación con el comportamiento civilizado (Nizbet).
Las lejanas bases teóricas de este planteamiento se
hallan en la dialéctica aristotélica y su objetivación del
mundo circundante: el mundo, el extranjero, incluso la
mujer, son errores que apenas podrán resolverse con la
extinción o su mantenimiento a distancia; la lógica expansiva de la civilización moderna, bien descrita por Smith, haría
el resto hasta la globalización homogeneizadora. Esa es la
razón del éxito de la sociología económica marxista, duramente universalizante, y el arrinconamiento de teóricos disidentes como John Galtung hoy o Karl Polanyi ayer (Polanyi).
El mundo tradicional africano no está presidido por la lógica del beneficio individual, al menos no exclusivamente y
por eso el bazar domina las relaciones de mercado (Fall28
Gueye), distorsionando el llamado orden liberal que las instituciones de Betton Woods tratan de imponer con todo tipo
de medidas de retorsión a las sociedades africanas.
Pero habría que ir a la raíz del fracaso modernizador de
Africa, y con ello al escaso éxito humanista, y esa raíz no es
otra que la incompatibilidad entre los presupuestos del
humanismo y los de las tradiciones negroafricanas. Las
bases del antropocentrismo humanista son rupturistas con
la divinidad, con la naturaleza y, en general, con el mismo
principio de indentidad esencial entre el Múltiple y el Uno,
por usar la terminología africana antigua. No fue casual que
Marx hiciera su tesis doctoral sobre el atomismo de
Demócrito, ni que la dialéctica que prevaleciese para el
despliegue de la ciencia profana se hiciera sobre el objetivismo aristotélico, ya que en ambos autores prima el no
reconocimiento de la esencial identidad de individuos, pueblos, países y astros. Con el humanismo, el universo pierde
su sentido, se vuelve ajeno, y el humano inicia su singladura hacia el absurdo sartriano, tal vez no en la teoría pero sí
en el comportamiento cotidiano. Como se ha dicho con
rotundidad, el humanismo idealiza una supuesta Naturaleza
Humana – la hegemónica – y parte en guerra contra la
incomprensible diversidad (R.Panikkar).
¿Dialogar la recolonización?
Los eruditos creen con frecuencia que el coraje consiste
en polemizar y ser incisivo en los debates, pero acostumbran
a descuidar que la brillantez puede ocultar el bosque de la
realidad: no cabe duda de que la labor desplegada por individuos y grupos modernizadores honestos han aportado una
suavización de la práctica brutal de la hegemonía moderna,
y eso podríamos decir de los Mandela en lo político o los
Raponda Walker en lo religioso, pero lo que importa son los
fundamentos. Hay escasa compatibilidad entre el modelo
progresista e individualista del humanismo y el paradigma
integrador y holista de la africanidad histórica, y no existe
zona intermedia o mestiza salvo en los estudios modernos
que parlotean sobre mestizaje o hibridación: cada cultura dispone de una columna vertebral, hecha de valores fundacionales, y desde ellos evoluciona hasta su desaparición.
Que el sistema dominante en la actual globalización pretenda que todo se mezcla o integra armoniosamente es
comprensible, ya que así se intenta camuflar la creciente
29
destrucción de la alteridad, aunque resulta menos comprensible que intelectualmente se renuncie a la función crítica tratando de borrar las fronteras entre individualismo
humanista y holismo africano. La vida económica africana,
por poner un ejemplo, tiene la aparencia de una abigarrada
mezcolanza de factores modernos y tradicionales, pero sólo
es así en la superficie, puesto que la disfunción de la teleología moderna prueba que el reconocimiento y la fidelidad
juegan tanto o más que la lógica de la mera ganancia: no
estamos frente a supuestos mercados mestizos o intermedios, sino ante mercados holistas distorsionados por la presión liberal a escala internacional, y ello es lo que da esa
apariencia híbrida o mestiza al mercado africano de 2003.
Desde un punto de vista hegemónico, la disfunción o
marginalidad africana (Moffa) debe subsanarse rompiendo
sus sistemas identitarios, sean étnicos, económicos o políticos, ya que su tenaz oposición a la ‘normalidad’ global es
percibida como un mal para los pueblos de Africa y un pésimo ejemplo para el resto del mundo en vías de sometimiento al nuevo orden planetario. Sería complicidad hablar de
humanismo – latino o general – silenciando los debates
públicos que, ya a mediados de la década de los noventa,
se produjeron en Occidente acerca de la ‘solución africana’.
Es conveniente rememorar aquellas reflexiones, en diarios y
revistas, en las que el paciente Africa fue diagnosticado y
se sugirieron varios tratamientos de shock, aunque en el
fondo se resumían todos en uno: recolonizar.
En un provocador artículo en el New York Times de Abril
de 1993, Paul Johnson proponía sacar a Africa de su parálisis evolutiva en la fase poscolonial, mediante una intervención internacional concertada. La llamada comunidad internacional (de hecho, la norma establecida por la modernidad hegemónica) avalaría una acción de países vecinos en
cualquier Estado africano sumido en el caos (Johnson). Los
Estados interventores se harían cargo de la Administración
del país en cuestión por un período que podría ir hasta un
siglo. Con ello se romperían las tendencias a la disgregación, se reeducaría a los pueblos administrados y se acabaría con los comportamientos ajenos al progreso y a los
derechos fundamentales, tal como se conciben por la
comunidad internacional.
En agosto del siguiente año, el historiador kenyatta afincado en los Estados Unidos Ali Mazrui ahondaba en la problemática, señalando que Europa debía terminar lo que
empezó: la colonización. A raíz de la catástrofe rwandesa,
30
Mazrui escribía en News Perspectives Quaterly que, vista la
experiencia de cuarenta años de independencias sin el
menor avance en la ideología individualista ni en la práctica
de la democracia, podía concluirse que la mentalidad tradicional jerárquica africana no evolucionaría por sí misma
(Mazrui) sin presión exterior. Las soluciones tradicionales
del pasado serían preferibles al desajuste actual, pero dada
la imposibilidad de retroceder en el tiempo, la única opción
realista sería recolonizar Africa mediante métodos menos
brutales que los de la colonización.
En 1955, dos politólogos se añadían al debate, con
voces claras y expeditivas. Para William Pfaff, en Foreing
Affairs, señalaba la responsabilidad de las antiguas metrópolis coloniales en haber concluido su acción transformadora demasiado pronto, dejando Africa en el desvalimiento
y la incapacidad de progreso: para él, las antiguas potencias europeas debían regresar desinteresadamente al continente y culminar la obra que antaño dejaron inconclusa
(Pfaff). Según Michael Walzer, en Letra Internacional, sólo
una presencia militar occidental duradera, sin premuras ni
límites de tiempo, podría reeducar al continente mediante
una sólida administración fiduciaria, estrictamente controlada por occidentales y capaz de acabar con el desgobierno
africano (Walzer).
Ali Mazrui, en el World Policy Journal del mismo año,
matizaba que sería preferible un sistema de protectorados
sólo para países en colapso y que dichos protectorados,
por razones culturales, fuesen ejercidos por países exclusivamente africanos (Mazrui). Ninguno de los citados autores
puso en duda la incapacidad africana para gobernarse,
como tampoco lo ponen en duda desde mucho antes las
instituciones financieras como Banco Mundial y Fondo
Monetario Internacional.
Como declaraba en 1997, en Madrid, el presidente de la
coordinadora española de ONGs para el desarrollo: ‘No
sólo hay que darles – a los africanos – caña y sedal, hay que
enseñarles a pescar’. La ignorancia de muchos politólogos
y cooperantes bien intencionados sobre los procesos históricos africanos no les lleva a conclusiones demasiado distintas que muchos intelectuales modernos africanos: Africa
debe modernizarse, acabar con su mentalidad retrógrada y
normalizarse respecto a la comunidad internacional. Los
procesos de tutela iniciados espectacularmente en
Mozambique desde los acuerdos de paz entre Renamo y
Frelimo indican una ruta que, a diferencia del desembarco
31
militar en Somalia, prioriza el control africano por vías económicas y gestionarias (Peñas).
Precisamente, desde la óptica humanista, las sociedades africanas se hallan metidas en un callejón de difícil salida, coincidiendo así con los analistas económicos y políticos del Occidente moderno. Cuando Eboussi-Boulaga, con
un enfoque cristiano pero de corte moderno, planteó que el
Muntu –el Anthropos africano- se halla en crisis, reflejaba
ante todo el pesimismo que se desprende del dualismo
moderno mucho más que la realidad de numerosos pueblos
africanos todavía bien vertebrados por sus tradiciones. Tal
vez algunos aludiríamos antes a una crisis del pensamiento
humanista, moderno, que no del pensamiento africano, ya
que no es el despliegue tecno-instrumental ni el individualismo burgués lo que garantizan el bienestar profundo de
los pueblos. El problema, para los humanistas, es que sus
bases fundacionales son las de la propia modernidad, y por
esa razón el horizonte que vislumbran en este mundo globalizado es sumamente pesimista. En ningún lugar, la entronización de la lógica moderna ha aportado armonía ni consuelo a las sociedades: tampoco en Africa.
Tradición africana frente a humanismo moderno
“La fin de ce IIe millénaire conjoncturellement dominé,
peut-être pour deux siècles, par des necéssités d’une
révolution téchnico-instrumentale est celle d’un monde
malade de la tradition culturelle de philosophies
totalitaires, historiquement nées dans le monde
sémito-européen”
Thèses sur épistémologie du réel et
la problématique néo-pharaonique
Pathé Diagne, Dakar 1981
Durante años se escribió sobre resistencias tradicionales, sobre atavismos africanos ante los procesos modernizadores, incluso sobre lo catastrófico de un rechazo social
del desarrollo (Kabou), además de estigmatizar la etnicidad
o tribalismo como genuinamente retrógrado y causante de
la mayoría de males al impedir que la conciencia de nación
moderna plasmase en Africa (Chrétien, Meillassoux).
Ciertamente, el bazar ha sido desestabilizado por el merca32
do globalizante y la etnia ha sido crispada hasta la exclusión nacionalista, pero en ambos casos lo que la ideología
moderna ha hecho ha sido empeorar situaciones ya degradadas por la trata esclavista y la colonización. Hay que
hacer una relectura del discurso oficial de corte humanista
sobre el universo africano actual.
Ante todo hay que rechazar la idea de que las culturas
africanas no son antropocéntricas: lo son, como cualquier
cultura humana, ya que colocan al ser humano en el centro
del eje cósmico o natural y desde él perciben y aprehenden
la realidad. Ahora bien, también son cosmocéntricas y teocéntricas, si tenemos presente que para las sociedades tradicionales el hombre es el corazón del mundo como la divinidad es el núcleo mismo del humano y de todo lo existente. El humanismo, en cambio, es el único antropocentrismo
que destierra y objetiva la naturaleza y dios, expulsándolos
de la intimidad humana: esa es su peculiar aventura dialéctica, la causa de su desarraigo y la razón de su angustia
existencial. El antropocentrismo africano es tradicional
(Ndaw), el humanista es moderno.
Los factores sociales de índole tradicional poseen una
persistencia, una capacidad envolvente y una pregnancia
en la vida cotidiana que desalienta a los propios cantores
de la modernidad en Africa (Copans). Resulta tarea árdua
intentar deslindar cualquier actividad de las concepciones y
valores que proceden de siglos atrás. Y no se trata, reductivamente, de considerar que la fuerza de la tradición está
vigente o regresa porque la democracia o el desarrollo económico fracasan, pues el comportamiento de sectores acomodados – intelectualmente occidentalizados – mantiene
asimismo comportamientos no modernos (Pfouma).
El primer elemento tradicional, por su peso innegable,
es aquel que los modernos llaman religión, pero que en sentido estricto es una determinada manera de concebir la realidad, de posicionarse en ella y de vivirla con sentido de
identidad esencial bajo la multiplicidad formal de los seres:
estamos hablando de tradición, de aquellos fundamentos
culturales que se transmiten de una a otra generación y que
caracterizan a una sociedad por encima de sus modificaciones puntuales o coyunturales. Cuando esas bases fundacionales pierden su preeminencia, se diluyen, dejan de
condicionar las actividades colectivas e individuales, entonces estamos en presencia del final no sólo de una tradición
sino de la misma cultura: físicamente, genéticamente, la
población será la descendiente de sus ancestros, pero ape33
nas en lo física, porque el profundo parentesco espiritual se
habrá roto de modo irrecuperable. Así analizan la vitalidad
de sus culturas numerosos universitarios africanos, que
siguen viendo en el mundo que les rodea, con todos los frenéticos cambios globalizantes, una única realidad que
manifiesta su pujanza en constantes variaciones multiformes: desde la Ennéada egipcia hasta el Mbog de los basaa
cameruneses, las tradiciones africanas han considerado
que el humano ocupa un punto central en la gran armonía
del universo, y eso impide la objetivación fría que la modernidad proclama (Nkoth Bisseck).
En directa derivación de la percepción enneádica de la
mayoría de sociedades africanas de hoy, aparece la pertinencia de lo particular, de lo distinto, de lo diverso. Mientras
para la modernidad, la diferencia, la alteridad, la nación o
tribu contiguas son entidades erróneas, incomprensibles y
amenazadoras, en el entramado africano cada agrupamiento identitario tiene un sentido, una función y un espacio,
incluso si esa alteridad permite la hostilidad o la burla periódicas. El respeto – que no la hegemónica ‘tolerancia’ – es
la norma entre extranjeros, entre gentes de diversa tradición, como señalaba el maestro sufí Tierno Bokar en el
Níger Medio (Hampaté Bâ). Atribuir al tribalismo o etnicismo
la responsabilidad de masacres como las rwandesas es
ocultar la responsabilidad del estado-nación moderno, con
su mentalidad excluyente y etnicida, responsabilizando así
a los propios africanos de la obra ideológica alterófoba de
la nación moderna (Mappa).
Es altamente significativo que el islam en Africa negra –
con puntuales excepciones – sea de claro predominio sufí y
que, algunos de sus más destacados teóricos (Ndaw, Bâ,
Ndam Njoya) no sólo no fustigan las antiguas tradiciones
africanas, sino que en ocasiones poseen doble o incluso triple iniciación: ese sería el caso del desaparecido Amadou
Hampaté Bâ, iniciado paganamente como pastor pehl, alto
grado en la tariqa Tijaaniya y finalmente miembro de la
franc-masonería occidental, con un notable sentido de la
diversidad de caminos y formas que conducen a las mismas certezas esenciales. Los estrategas y politólogos que
buscan un aliado táctico en el sufismo contra las corrientes
modernas islamistas cometen un error de envergadura: las
bases del dualismo musulmán – islamismo – son las mismas que las del moderno humanismo. De ahí la sombrosa
proximidad de los discursos y proclamas de Georges Bush
y Osama Bin Laden, buscando el exterminio del adversario,
34
como si el fin de las diferencias y oposiciones fuese posible
en el universo... los dualismos modernos – musulmán u
occidental – manifiestan una asombrosa ignorancia acerca
de la estructura misma de la realidad cósmica ¿Qué pueden
ofrecerle a Africa, salvo pan y circo?
Mientras el grueso de pueblos de Africa sigue haciendo
referencia a una edad de oro en la que todo era perfecto,
sigue mirando hacia atrás para sacar fuerza en el presente
y preparar el futuro, la propuesta humanista es centrar la
mirada en un mañana resplandeciente en el que la felicidad
económica y política será un hecho. Occidente, desde
Petrarca con su Vita Solitaria, lleva más de quinientos años
huyendo hacia delante, tratando de librarse de su malestar
presente con sueños de futuro, diseñando utopías en cuyo
nombre se justifican todos los horrores, desde el Gulag staliniano y el Reich de los Mil Años hasta las guerras liberadoras en Hiroshima, Vietnam, Afganistán o Irak, por sólo
mencionar algunas muestras del horror justificado por el
mañana áureo. Como comentaba un Mbombog – maestro
iniciado en el Mbog basaa – quien no respeta el legado de
sus mayores y no estima su presente no puede preparar de
modo responsable el futuro de sus descendientes ¿Cuánto
horror deberá sufrir Africa en nombre de la utopía humanista, del sueño moderno de omnipotencia?
Algunos especialistas en política africana se dieron
cuenta, ya en los años ochenta, de que el fracaso de la
democracia no se debía a bolsas de resistencia, sino a la
presencia de verdaderos modelos divergentes de sociedad
(Médard). Así, mientras para el sistema moderno el presente es el lugar de desencuentro, para las tradiciones de todo
el mundo – y las de Africa no son excepción – el presente
es el lugar de la plenitud individual y grupal, incluso en tiempos obscuros como los actuales (Panikkar). Como decía un
dirigente de la insurrección en Casamance – sur de Senegal
– el problema no se halla en la cohabitación entre nordistas
y sureños, sino en la falta de respeto por las tradiciones de
sus vecinos: la diversidad no se cuestiona, el desprecio y la
humillación sí, por innecesarios.
Desde mediados de los años noventa del pasado siglo,
podemos constatar una resurgencia de lo tradicional en
todos los ámbitos, desde el político institucional hasta el
estrictamente ritual. En el plano más superficial, sin ser desdeñable, algunos de los nuevos líderes africanos han introducido notables modificaciones en las constituciones de
sus países: Meles Zenawi introdujo ya en 1994 la idea de
35
respeto institucional por la diversidad de pueblos y naciones que constituyen el Estado federal etíope, Yoweri
Museveni ha dado legalidad constitucional a los antiguos
reinos de Uganda, Thabo Mbeki está desplegando la idea
de un urgente renacimiento africano, mediante la recuperación oficial de los valores clásicos de las sociedades que
conforman la actual Sudáfrica. Mientras los africanistas
occidentales siguen anclados en su discurso deconstructivista, Africa se interroga.
A un nivel más relevante que el político, por sus previsibles efectos a medio plazo, hallamos en los últimos años la
reaparición de autores de corte tradicional. No sólo se reeditan los trabajos de sufíes y cristianos (el sector que fue
conocido como etnofilosófico), sino que surgen escritores
de clara raigambre tradicional. Mientras hace unas décadas, los Eboussi-Boulaga y demás etnofilósofos ponían el
acento en las deficiencias africanas para asumir la modernidad, los pensadores que hoy suben al escenario reivindican con orgullo la tradición ancestral y denuncian el paradigma moderno en sus formas más destructoras: con su
obra mayor sobre el Mbog – Unidad, Universo – el camerunés Nkoth Bisseck abre un período de reconstrucción teórica de las antiguas tradiciones, sin los complejos inherentes a la occidentalización y sin rechazar las aportaciones
que la misma modernidad pueda ofrecer.
En ámbitos más profundos, lejos de tribunas estatales y
de salones eruditos, estamos asistiendo al más importante
rearme de las sociedades africanas, el de la práctica popular, cotidiana, de los senderos tradicionales, ya sea en versión musulmana, cristiana o clásico-antigua. A finales de los
ochenta sorprendió el abandono del espacio público, escrito, de un hombre como Ilunga Kabongo, que pasó a activar
la vida de comunidades tradicionales en el corazón mismo
de un Congo-Kinshasa convulso (Kä Mana). Esa labor callada, pero perceptible en todas las regiones del continente,
no es únicamente un repliegue defensivo – como pudo serlo
en la coyuntura congoleña – sino una voluntad explícita y
pujante de dar tiempo a la paz, colectiva e individual, y dar
la espalda a combates coyunturales que son los propios de
una modernidad enloquecida. En ese terreno, el resurgimiento africano empieza a ser el más pujante de todos los
que se alzan contra el paradigma global y sus ideologías
antitradicionales. Puede que estemos en la antesala del
más grave Vietnam de la modernidad, y justamente esa
guerra se prefigura sin armas de destrucción.
36
Muntu y Anthropos en los tiempos oscuros
“Les traditions? Respectez-les. Elles constituent
l’héritage spirituel de ceux qui nous ont précédés
et qui n’avaient pas rompu avec Dieu”
Tierno Bokar
in Vie et enseignement de Tierno Bokar
Amadou Hampaté Bâ, París 1980
Cuando leemos o escuchamos discursos entusiastas
sobre tolerancia, multiculturalismo y diversidad no dudamos
de la buena voluntad de la mayoría de sus militantes.
Simplemente cuestionamos su capacidad de reflexión, algo
bastante escaso en los descendientes del racionalismo y la
ilustración: el criticismo burgués periclitó, y hoy sólo quedan
epígonos, cargados de buenas intenciones, pero arrasando
con las culturas distintas de la moderna, y haciéndolo con
armas o con sistemas de mal llamada cooperación. Con
mayor sensibilidad y, por supuesto, mejores intenciones, la
ayuda humanitaria suele coincidir en valores y objetivos con
las intervenciones armadas que últimamente las grandes
potencias modernas vienen haciendo en diversos rincones
de un planeta que desean homogéneo, y férreamente controlado. Por ese motivo hemos mencionado la polémica
sobre la recolonización del continente para ponerlo a nivel
global: cabe la pregunta, nada ingenua, de si lo harán subir
hasta las excelencias modernas o más bien tendrán que
rebajarlo en lo que aún tiene de vital, gozoso, elevado, tradicional, a fin de igualarlo con la confusión y el absurdo.
Álvaro Velho, el redactor del libro de ruta de Vasco da
Gama, escribió al ver danzar a unos quinientos khoi-khoi en
False Bay: ‘Bailaban como negros’. El autor del roteiro se
limitó a constatar la diferencia, pero esa característica terminaría siendo peligrosa poco después, cuando Gama bombardeó Kilwa porque el sheikh local no deseaba comerciar
con ellos. Se puede ser diferente en todo aquello que sea
inocuo, pero nunca en aquello que moleste la sensibilidad o
los intereses modernos: extraña alianza la de la sensiblería
humanitaria que acompaña – cuando no exige – las intervenciones militares que pretenden imponer un único sistema
cultural al mundo. La única diversidad tolerable por el racionalismo humanista es, precisamente, aquella que resulta
exótica (ex-odós: fuera de la ruta), marginal, curiosa, y en
37
nada importante para la concepción hegemónica ¿Cómo
podría producirse un encuentro entre colonizadores y colonizados de ayer, entre humanistas y tradicionales de hoy?
Poco antes de terminar el siglo XX, Alain Finkielkraut se
lamentaba del retroceso del pensamiento occidental – que él
llamaba, simplemente, pensamiento – a manos de una vulgaridad creciente en arte, ética o política (Finkielkraut). La
queja es comprensible, pero habría que recordar que de los
fundadores de la modernidad -verdaderos gigantes al lado
de sus descendientes- salieron las actuales tendencias y
comportamientos, ya que los valores de sustentación son los
mismos: individualismo, progresismo, ruptura abierta con el
sentido del mundo. Así, cuando hace casi cuatro décadas,
John Maddox arremetía sarcásticamente contra los incipientes ecologistas, en nombre del progreso ilimitado que debe
caracterizar a la humanidad liberada (Maddox), ignoraba
que las predicciones sobre el ecosistema mundial quedarían pronto muy por debajo de la dura realidad: no hay que
asombrarse de que la sociedad moderna premiase la irresponsabilidad ecocida de Maddox otorgándole durante largos años la dirección de Nature, el prestigioso buque insignia – junto a Science – de la arrogancia científica del Homo
Aequalis (L. Dumont).
Si en el campo científico, el panorama resulta sombrío,
en el ámbito de la decisión política la situación es aún peor.
Sociedades adormecidas por los vapores del hedonismo
nihilista hallan natural que se proteste por una clitoridectomía
en algún paraje africano, al tiempo que consideran justo que
se desencadenen guerras por doquier, en defensa de una
dudosa libertad. Habría que citar, una vez más, al sabio de
Bandiagara (Tierno Bokar), sobre el advenimiento del tiempo
que los hindúes llaman de los chandalas, aquellos que ni
siquieran disponen de los principios de casta:
Quand l’occasion de jouer un rôle de chef
advient à un homme
à l’âme vulgaire, il ne sait qu’instaurer
une dictature mégalomane.
Au lieu de faire regner la paix pour tous,
ce sera le commencement
de la terreur sombre. Les fripouilles deviendront
financiers et les
canailles frapperont la monnaie. La morale
tanguera dangereusement
sur la mer en furie des passions déchaînées.
38
Desde su retiro en las montañas de la derecha del Níger,
el viejo sufí intuyó aspectos claves de lo que, medio siglo
después de su muerte, nosotros llamamos globalización. En
semejante contexto, una Africa empobrecida espiritualmente por siglos de guerras esclavistas, esquilmada y brutalizada por una colonización expoliadora, y sumergida en el fiasco del sueño modernizador, mantiene sus fidelidades tradicionales bajo una aparente confusión (Chabal-Daloz).
Un torrente incontenible de occidentales se vuelca sobre
Africa, unos buscando paisajes y ambientes exóticos, otros
tratando de salvar a los autóctonos con arrogante ignorancia
de su realidad presente y pasada, las instituciones financieras y las multinacionales imponiendo sus criterios, y todos
ellos convencidos del modelo salutífero que conviene a los
africanos. Como sucedió en el reparto de Africa en la conferencia de Berlín – 1885 – el destino de sus gentes se decide
sin ellos o atendiendo sólo a los intereses minoritarios de
algunos occidentalizados que abandonaron a sus pueblos y
perdieron el respeto por sus tradiciones. La pretensión de
cooperar, en semejantes condiciones, es un eufemismo destinado a encubrir la cruda verdad: imposición de prácticas
económicas, sociales y políticas ajenas a los modelos africanos en presencia. No se coopera desde la hegemonía.
El clasicismo africano quedó atrás, en Kémit o el antiguo
Malí, y quinientos años de frontera con Occidente aceleraron
la decadencia del continente (Iniesta-Roca). Sería, no obstante, una ingenuidad suponer que Europa y su expansión occidental se halla en mejores condiciones: basta una comparación rápida entre la creatividad renacentista, racionalista e
ilustrada con sus caricaturales descendientes del siglo XXI.
Con el agravante para Occidente de que en su seno casi han
desaparecido las pautas de sabiduría tradicional, mientras
que en Africa ésta sigue aún viva en el conjunto social. Las
perspectivas, para ambos continentes no son esperanzadoras, pero en los sombríos tiempos de la modernidad globalizada, las sociedades africanas son el último bastión tradicional frente a la locura homogeneizante y depredadora que
arrastra a Occidente. La pluralidad cultural, el mundo de la
Ennéada africana sobrevive de modo sorprendente todavía
entre los muros asfixiantes que se afana en levantar la Utopía
Global: y esa es la peor de las utopías porque mata, mata el
espíritu y destruye la fidelidad a la tierra y al cosmos desde la
particularidad de cada rincón del planeta.
No existen las condiciones indispensables para que el
humanismo – incluído el latino – pueda dialogar con su víc39
tima, la tradición africana. Probablemente porque ese diálogo sólo es posible entre tradicionales, y eso exigiría que un
sector de la latinidad humanista retornase humildemente a
Canosa: reconocimiento fraterno de la común identidad
humana en la más aceptada diferencia cultural, respeto
mútuo en las formas y contenidos propios de cada pueblo,
reconstrucción cultural conjunta de dos continentes asolados por la ceguera moderna. No hay más evolución sostenible que la que perfecciona su propio patrimonio histórico,
acondicionando no sólo bienes materiales, sino sobre todo
el pensamiento y la forma de ser a cada época y sus exigencias (Hampaté Bâ): pero el desprecio a los valores que
fundan las culturas sólo forja miseria y disgregación, y ese
tipo de evolución destructora es el llamado progreso. El
Logos, la Verdad que subyace en cada tradición, no circulará entre europeos y africanos mientras el humanismo pretenda ser el marco de la relación, porque sus bases son
rupturistas, objetivistas, progresistas, individualistas y, por
todo ello, antitradicionales.
La única posibilidad para un diálogo fraterno, sin prepotencias fátuas ni exigencias irrespetuosas, es el retorno del
más consciente sector humanista occidental a los senderos
tradicionales, retorno a Platón y Plotino (Rojo), al Areopagita y
al maestro Eckhart, a Cusa y Ficino, a Spinoza, a Guénon, por
citar algunos nombres de la genealogía tradicional europea.
Sin embargo, éste es un lento trabajo de reconstrucción que
no puede hacerse – en las sociedades modernas – a plena
luz, sino en el silencio de las catacumbas, allí donde la verdad
recupera su silenciosa centralidad y lejos de los ruidos y agitaciones de una moderniad degenerada, estéril y enfurecida.
Que los modernos puedan pensar que la nueva era está a su
alcance no deja de ser una pretensión grotesca, viendo lo que
estamos presenciando en estas últimas décadas de oscura
barbarie. Estamos en pleno descenso, en pleno crepúsculo
del dualismo o escisionismo moderno, y sólo la más ignorante de las arrogancias puede pretender dialogar con Africa,
sobre todo porque la modernidad es la negación del Logos,
de Maat o del Mbog. Hay mucho trabajo por delante, reconstruyendo lo que queda de las viejas tradiciones de Occidente
(Guénon) antes de pretender establecer puentes fraternos
entre el Anthropos europeo y el Muntu africano. Y como en
tiempos antiguos, Africa, pese a las apariencias superficiales,
está más cerca del Logos que el universalismo humanista.
Habrá que prestar más atención al tronco en nuestro ojo que
a la paja del ojo meridional: urge la reflexión.
40
REFERENCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BÂ, A.H. Vie et enseignement de Tierno Bokar, le sage de Bandiagara
Seuil, París 1980.
BÂ, A.H. Kaidara, cuento iniciático peul Étnicos del Bronce, Madrid 2002
CHABAL, P.-DALOZ, J.P. Africa camina Bellaterra, Barcelona 2000.
CUSA, N. De la Docte Ignorance, Trédaniel, París 1930.
DIAGNE, P. L’Europhilosophie face à la pensée du Négro-Africain
Tutanxamon, Dakar 1983.
DUMONT, L. Homo Aequalis Barral, Barcelona 1986.
ECKHART, M. Obras escogidas Edicomunicación, Barcelona 1998.
FALL, A.S.-GUEYE, Ch. Derem ak ngerem. Le franc, la grâce et la reconnaissance. Les ressorts d’une économie sociale et solidaire en Afrique de
l’Ouest Université du Québec en Outaouais, 2002.
FICIN, M. Theologie platonicienne 3 vols. París, 1964-70.
FINKIELKRAUT, A. La derrota del pensamiento Anagrama, Barcelona
1987.
GUÉNON, R. Formes traditionnelles et Cycles cosmiques Gallimard,
París 1986.
GUÉNON, R. La crisis del mundo moderno Obelisco, Barcelona 1998.
INIESTA-ROCA (eds) Africa en la frontera occidental Casa de Africa,
Madrid 2002.
INIESTA, F. L’Univers africain. Approche historique des cultures noires
L’Harmattan, París 1995.
INIESTA, F. Religión, comercio y guerra en el Canal de Mozambique,
900-1700 Sendai, Barcelona 1993.
JOHNSON, P. ‘Colonialism’s back – and not a Moment too Soon’ New
York Times 18-IV-1993.
KÄ MANA Théologie africaine pour temps de crise. Christianisme et
reconstruction de l’Afrique Karthala, París 1993.
MADDOX, J. El síndrome del fin del mundo ¿Catástrofe inevitable?
Barral, Barcelona 1973.
MAPPA, S. Pouvoir traditionnel et pouvoir d’État. L’illusion universaliste
Karthala, París 1998.
MAZRUI, A. ‘The Message of Rwanda: Recolonize Africa?’ News
Perspectives Quaterly aut. 1994.
MAZRUI, A. ‘The Blood of Experience. The Failure State and Political
Collapse in Africa’ World Policy Journal v. 12, 1, 1995.
MÉDARD, J.F. (ed) L’État africain Karthala, París 1989.
MOFFA, C. L’Afrique, à la périphérie de l’histoire L’Harmattan, París 1995
NDAW, A. La pensée africaine NEA, Dakar 1987.
NIZBET, J. Historia de la idea de progreso Siglo XXI, México 1984.
NJOYA, A.N. Njoya, reformateur du royaume Bamoun NEA, DakarAbidjan 1978.
NKOTH BISSECK, M. Mobog. Concept et portée de la vision universiste
africaine du monde Scribe 2 vols., Édéa 2001.
PANIKKAR, R. Ecosofía. Para una epiritualidad de la tierra San Pablo,
Madrid 1994.
PANIKKAR, R. El mundanal silencio Martínez Roca, Barcelona 1999.
PEÑAS, F.J. (ed) Africa en el sistema internacional UAB, Madrid 2000.
PFAFF, W. ‘A New Colonialism. Europe Must Go Back into Africa’ Foreing
Affairs v. 74, 1995.
PFOUMA, O. L’harmonie du monde Meinabuc, Yaoundé 2001.
PIC de la MIRANDOLE, J. Oeuvres philosophiques, PUF, París 1993.
POLANYI, K. La gran transformación Alianza Editorial, Madrid 1980.
ROJO-INIESTA-BOTINAS De Marx a Platón. Retorno a la Tradición occidental LIZA, Barcelona 1999.
41
ROJO, A. ‘El humanismo contra el antropocentrismo tradicional latino.
Aristóteles versus Platón’ in L’Umanesimo latino e l’Umanesimo africano
Fondazione Cassamarca, Treviso 2000.
SEBRELI, J.J. El asedio a la modernidad. Crítica del relativismo cultural
Ariel, Barcelona 1992.
SMITH, A. La riqueza de las Naciones Madrid 1978.
SURET-CANALE, J. Afrique Noire. La colonisation, 1900-1945 Éditions
Sociales, París 1973.
WALZER, M. ‘Las razones para intervenir’ Letra Internacional v. 4, 1995.
42
MANZAMBI VUVU FERNANDO
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto
(Portugal)
Humanismo cristão
e o messianismo africano:
Os ideais de Simão Gonçalves Toko
na leitura dos Evangelhos
Introdução
Pretendemos nesta comunicação tratar do fenómeno religioso em Angola tal como ele surge no processo da cristianização do continente africano partindo do encontro de duas
culturas, uma europeia e outra africana desde 1491, data
que se considera ser da primeira acção missionária em
Angola. Interessa-nos esta época, pois situa-se num período
que se caracteriza pelo movimento humanístico na Europa e
que coloca o homem no centro, na concepção do mundo e
na sua existência. Todo o percurso da acção missionária realizado, desde o fim do século XV até hoje, vai-se explicar
tendo por base o humanismo renascentista que se vai
expandir em toda Europa. Ele resume-se de seguinte maneira: exalta a dignidade e a liberdade do ser humano; reconhece a ausência de uma “natureza” humana estável e definitiva. Significa dizer que o ser humano não possui uma
essência fixa, uma vez por todas, mas sim ele é um ser livre
que é um autêntico “Manifesto de humanismo do
Renascimento”; O terceiro aspecto pode ser resumido na
concepção do homem como “grande milagre”, como um infinito que, enquanto microcosmo, reflecte nele todas as propriedades do universo ou de macrocosmos (documenti,
1996). Esta maneira de conceber o mundo fundamenta que
o universo não seja visto simplesmente como uma matéria
inerte mas sim como um organismo vivo ou sensível. (idem,
1996).
Para uma melhor apreensão do nosso tema, incidimo-nos no humanismo renascentista em Portugal com os poetas Gil Vicente, Sá de Miranda e João de Barros cujo fundamento do Humanismo se baseia no Humanismo cristão.
Interessa-nos, sobretudo, saber até que ponto a difusão do
43
humanismo cristão, através da cristianização, esteve na origem do choque de encontros e desencontros entre a doutrina cristã e a religião africana e o consequente surgimento do Messianismo africano ao longo de séculos.
Procuraremos provar que a aceitação do evangelho pelos
africanos, a sua releitura e o seu uso para a dignificação do
homem, reconhecendo a força da sua mensagem sendo universal, coloca Jesus Cristo no centro da humanidade.
Apoiar-nos-emos nas ideias que nortearam o movimento messiânico de Simão Gonçalves Toko, o “Tokoísmo”,
resultante do ensinamento dos evangelhos, considerado
distorcido em relação às realidades africanas, provocado
pela acção missionária.
O surgimento da Igreja do Nosso Senhor Jesus Cristo no
Mundo não será para o Tokoísmo a reafirmação da dignidade do homem e o seu reencontro com Cristo através da sua
libertação e a Inculturação da doutrina cristã?
O Humanismo como movimento do século XVI
44
O termo humanismo, que no século XIX designa o movimento de renovação de letras e de ideias fundamentadas no
estudo de textos antigos, aparece já no limiar do século XIII,
em Itália e evoluiu no século XVI quase em toda a Europa da
renascença. O termo reveste-se de vários significados
mesmo que ele se limite no tempo ou quando é aplicado por
extensão aos estados de espírito ulteriores, significados
esses que tem como ponto comum o homem. Na
Enciclopédia Luso-brasileira de cultura (1970), J.V. DE PINA
MARTINS refere-se a obra de F.J. NIETHAMER (1808) onde
se encontra o significado do Humanismo na sua primeira formulação explícita, em meados do século V a.C., no pensamento do sofista Protágoras. “Homem é a medida de todas
coisas”. O Humanismo deriva dos termos ciceronianos humanus e humanitas. Segundo o autor acima referido, a humanitas designa três coisas. Procurando dar significado aos três
sentidos que caracterizam o humanismo, o autor define-os da
seguinte maneira: – a característica que define o homem
como homem; – aquilo que vincula um homem a outro
homem e aos homems em geral, do gr. – a philanthropia; e
finalmente, – a característica que forma o homem como
homem (as letras e artes). Este último sentido persistirá
durante muitos séculos no Ocidente, como ideal de vida, de
civilização e de cultura. Humanitates é a nossa humanidade
associada à ideia de cultura como essência do homem.
O Cristianismo vai adoptar este ideal e depurá-lo das
conotações pagãs procurando consolidar a sua doutrina. O
humanismo dos nossos dias é encarado em dois sentidos
principais. O primeiro é temporal e o segundo o ideal.
Podemos caracterizá-los em histórico-cultural e em filosófico. Para responder aos objectivos que nos trazem por cá
iremos basear-nos no Humanismo, digamos, temporal dos
séculos XV e XVI da época renascentista em que, pelos
estudos dos autores clássicos greco-latinos, o homem julgava tornar-se mais humano ou verdadeira e plenamente
homem desenvolvendo as suas capacidades à imagem e
semelhença dos grandes modelos de sabedoria e de ciência, de arte e de virtude, que a Hélade e Roma tinha encarnado ou revelado e que o Cristianismo tinha prolongado
transpondo-os noutro registo.
Fora da Itália, com todo o prestígio que se alcançou na
irradiação artística, literária e cultural e outros domínios, o
Humanismo do século XV e do início do século XVI pôde-se
expandir. Na Alemanha, por exemplo, no século XV pretendia-se, com certas escolas, cristianizar a erudição clássica
para, por meio desta, glorificarem a fé cristã. Aqui, Erasmo
integra-se na perspectiva histórica do Humanismo germânico e como tal, ele mesmo, chamou ao seu programa humanístico que procura servir, pelas letras, a lição do
Evangelho: a Filosofia do Cristo, com o Manual do Cavaleiro
Cristão. Se na Itália, pelas fortes tradições universais do
Humanismo que de Petrarca a Ficino, preconizavam o primado do cristianismo humanista num quadro de ortodoxia,
um Erasmo não podia criar uma atmosfera doutrinária de
ambiguidade teológica. Na França passou a identificar-se
com o evangelismo e este com Lutero, sobretudo porque
Berquin não hesita, nas versões de Erasmo, em introduzir
passos do reformador alemão. Daí que o Humanismo
francês, apesar de influenciado pelo Humanismo italiano,
isto é, nos fins do século XV, não se tenha voltado tanto para
a tradição das letras clássicas e da sua lição universal,
como para a problemática religiosa.
O Humanismo renascentista em Portugal
O que acontece em Portugal, onde o Humanismo vai
incidir com o Movimento do Renascimento?
Como em toda a Europa da época, em Portugal o
Humanismo centra-se no Renascimento que se caracteriza
45
pelo cultivo das letras greco-latinas, o que teve um grande
reflexo na cultura. Em todas as esferas da vida de aristocracia e nas cortes, por exemplo de D. Eduardo e D. Afonso
V, circulavam já as traduções de Cícero, como as de De
Officiis, feitas pelo infante D. Pedro. Na vida politica, os
humanistas, além de serem os secretários dos reis, como o
foi Cataldo, desempenhavam também funções diplomáticas
na qualidade de oratores em cerimónias oficiais, públicas e
nas embaixadas, servindo-se da língua internacional, o
latim, que eles já dominavam. Prestavam obediência a
diversos papas, pronunciando as respectivas orações.
Eram também os panegiristas dos governantes e do País,
que em prosa e verso latinos, tornavam, deste modo, acessível a sua mensagem a toda a Europa culta daquela
época. Digamos que estes humanistas se implicaram quase
em todas as actividades ao ponto de se interessarem, como
professores, para o ensino de latim. Muitos humanistas
empenharam-se nas actividades literárias através do país,
através das grandes cidades, da época, Coimbra, Viseu e
Lisboa com uma grande produção literária entre os séculos
XV e XVI.
Nos séculos XV e XVI, o humanismo é mais considerado
como o culto das formas estéticas do mundo clássico em
que o renascimento se fundamenta, sobretudo, no culto das
suas normas éticas. Tendo em conta que não se pode separar os dois movimentos, pois que um influencia o outro, e
porque muitos humanistas se interessavam em não se limitar ao humanismo puro, pensamos ser a razão que levou
Hoffding a considerar o Humanismo não o designando
«apenas uma tendência literária, uma escola de filólogos,
mas também uma direcção da vida, caracterizada pelo interesse que se confere ao elemento humano, como objecto
de observação e como fundamento de acção». Aqui o Deus
deixa de ser a presença convincente e passa a objecto de
estudo, problema que se procura resolver não já na revelação bíblica, mas sim à luz do platonismo, do aristotelismo
ou do neo platonismo.
O Humanismo cristão em Portugal
Na tese cristã, o Humanismo é a tendência de tornar o
homem verdadeiramente humano, no desenvolvimento integral de todas as suas virtualidades, incluindo a preocupação do transcendente, a que está ligada a sua origem e
46
onde se realizará o seu destino essencial. Se o humanismo
renascentista considera o homem como a medida de todas
as coisas, o humanismo cristão centra em Cristo o seu fundamento no qual a humanitas justifica todo o seu valor infinito (Gil Vicente e Sá de Miranda). Os valores religiosos e
morais tais como o dever de amar Deus e o amor ao seu
próximo estão na base do movimento cristão humanista
baseado no pensamento de Erasmo e que muitos poetas
portugueses aderiram a esse movimento erasmista como se
refere José Vitorino de Pina Martins. É o caso de João de
Barros. Mas este último não aceita todos os postulados do
erasmismo. João de Barros não adere inteiramente ao pensamento de Erasmo, pois tem consciência de que a realidade portuguesa não lhe permite admitir certas coisas.
Segundo o poeta, Portugal tem por missão espalhar o
“Evangelho” e a expansão portuguesa no Oriente, onde
foram instaladas bases comerciais, é um excelente meio de
atingir o Reino do Cristo.
De facto, o Evangelho é um humanismo cristão, pois
coloca Jesus Cristo no centro do Cristianismo. Anthony
Freeman faz-nos uma boa reflexão a esse propósito ao afirmar que, apesar de Deus ter um lugar central no cristianismo, devemos saber que o humanismo não concebe Deus.
O novo Testamento, confirma o autor, atesta que não podemos saber de Deus senão aquilo que Jesus Cristo nos revela. É através de Jesus Cristo que Deus se revelou na vida
humana. Jesus Cristo não nos ensinou a ver em Deus um
ser sobrenatural, fora do mundo e no exterior da humanidade. Para ser um cristão não é necessário acreditar-se no
sobrenatural.
A compreensão humanista encontra as suas raízes na
tradição judaica segundo a qual a humanidade foi criada à
imagem de Deus, imagem que os primeiros cristãos contemplavam na pessoa de Jesus Cristo. «A Deus ninguém
nunca viu. O filho Unigênito que está no seio do Pai foi
quem no-lo deu a conhecer» disse João (João 1: 18). E
Paulo disse, em 2 Coríntios 5: 19, «Pois é Deus que em
Cristo reconciliou o mundo, já não levando em conta os
pecados dos homens. É ele que pôs em nossos lábios a
mensagem de reconciliação. Portanto desempenhamos o
encargo de embaixadores em nome do Cristo e é Deus
mesmo que exorta por nosso intermédio»...
É uma compreensão de Deus a imagem do Cristo que o
Novo Testamento nos propôs e, consequentemente, a imagem do homem.
47
Reflectimos sobre a posição do ANTHONY, F., quando
ele se refere a Deus sem interferirmos na sua situação
actual na igreja católica. Segundo o autor, Deus tal como ele
nos foi revelado por Cristo, não nos parece ser um ser
sobrenatural exterior à humanidade; Ele é parte integrante
da nossa vida humana. A fé cristã é verdadeiramente um
«humanismo cristão» que deve ser enriquecido por aspectos positivos do Evangelho. O autor refere-se a
Schleiermacher que insistia sobre o facto de que a divinidade de Cristo não provinha de uma intervenção sobrenatural mas sim do aperfeiçoamente natural da sua humanidade. Essa divinidade não era uma qualidade exclusiva de
Cristo, ela foi proposta a todo o ser humano. Para este autor
«O Cristo foi humano é a prova de que a natureza humana
é capaz de acolher nele a divinidade, como o Cristo o fez
ele próprio e nada disto foi sobrenatural».
O termo evangelho que vem de grego “euvangelion” e
que significa “a recompensa pela boa notícia trazida” ou a
própria “boa nova” indica no Novo Testamento a “boa nova”
da salvação trazida por Jesus Cristo. Esta palavra encontramos em lingua hebraica e significa bissar, termo de origem árabe “alvissara” que encontramos em português e
que significa “anunciar a boa nova de salvação”.
É este conceito de evangelho que se vai utilizar para
divulgar os ensinamentos de Jesus Cristo através do
mundo, ensinamentos esses que Mateus tentou organizar
em cinco grandes discursos. Esses discursos tratam de: a
nova justiça do Reino, os missionários do Reino, os mistérios do Reino, as relações entre os filhos do Reino, a ruina
de Jerusalém e a consumação do Reino. Era já uma visão
universalista que fundamentava os ensinamentos de Jesus
Cristo na época e que será concretizado na missão que
será confiada aos discípulos (Mateus, 28:16-20) de levar a
boa nova a todos os povos.
A difusão do humanismo cristão
e a cristianização de África
Como é que se propagou os fundamentos de humanismo cristão em África neste século XVI ?
O Humanismo cristão vai-se expandir fora da Europa,
através da Evangelização graças à obra do Apóstolo Paulo
que foi considerado como o primeiro missionário. Paulo
considerava que a mensagem de Cristo tinha uma
48
dimensão universal e um fundamento teológico para uma
evangelização de todos os povos. O cristianismo difunde-se
a favor da hegemonia romana que implantará o cristianismo
à volta do Mediterrâneo até à Europa do Norte, e para o Sul
até Etiópia incrementado pelos povos que balizavam as
rotas comerciais que levavam entre a Índia e a Ásia oriental.
Na África central, de um modo geral, e em Angola, em
particular, podemos considerar que o humanismo cristão foi
introduzido no processo de cristianização pelo encontro dos
primeiros viajantes portugueses com os nativos do universo
Kongo, no reino do Kongo, na actual província do Zaire na
República de Angola, onde Diogo Cão chegou à foz do rio
Kongo em 1482. Esse contacto, como outros que se seguiram, permitiram que em 1491 fosse instalada a primeira
missão cristã nesta região. Os primeiros contactos estabelecidos entre o reino do Kongo e o reino de Portugal, entre
o rei do Kongo Nzinga Nkuvu e o rei do Portugal, D. Manuel
I, o regresso dos nativos que Diogo Cão tinha levado como
reféns para Portugal, as impressões que trouxeram do bom
tratamento que eles tiveram e as ofertas vindas do rei do
Portugal, todas essas contingências irão preparar o rei do
Kongo a abrir-se à Fé cristã e aceitar Jesus Cristo como o
Senhor Salvador.
Contudo, e segundo nos relata W.G.L.RANDLES (1968),
a cristianização nesta região de África realizou-se em duas
fases. Primeiro a que se iniciou nos fins do século XV e no
início do século XVI, sob a insígnia de S. Tiago. Essa cristianização agressiva e intransigente introduzida por portugueses é a consequente projecção da luta multissecular dos
povos da Península Ibérica contra o Islão. A segunda, é a
cristianização do reino pelos capuchinhos italianos e espanhóis na maioria dos casos, que se realizou a partir da
segunda metade do século XVII, e que aparecia “menos violenta” “mais suave e educativa”. Nesta cristianização, os
capuchinhos vão convergir à volta da pessoa de Santo
António com os valores cristãos propostos aos povos do
Kongo. O Santo António aparece como sendo o mediador de
quem o povo espera a salvação nas doenças e infortúnios.
A doutrina de Jesus Cristo assimila-se com uma forte
resistência dos valores tradicionais que regulava a vida religiosa das populações, provocando o confronto no encontro
das populações e no desencontro dos valores religiosos.
Deste processo, nasce o sincretismo religioso. Esse sincretismo é resultante de contributos estranhos que o sistema
religioso autóctone se encarrega de assimilar, na maioria
49
dos casos impostos pelo cristianismo, considerado como
religião universalista (J-P.DOZON. 1978: 111). Assim Santo
António torna-se, para o povo kongo, objecto de um culto
particular cuja prova se vê na forma de estatuetas-feitiços
que ainda hoje se encontram nos museus através do
mundo. Ntoni malau é o mais significativo objecto de culto
de que se guarda ainda vestígios além das transformações
nos valores culturais. Ntoni malau pode-se explicar por:Ntoni de António; Malau significa sorte, fortuna, sucesso
[ob.cit.].
Perante esse sincretismo e outros factores que se fizeram acompanhar tais como a imposição da cultura ocidental, considerada civilizadora, a ingerência das autoridades
eclesiásticas na política do país e as sucessivas guerras,
como a de Ambwila e as suas implicações na crise económica dos fins séc. XVII e dos séculos que seguiram, fundamentaram o surgimento do que se pode considerar como o
primeiro movimento messiânico da África subsariana. É o
movimento messiânico de Kimpa Vita, Beatriz do Kongo ou
Jeanne d’ Arc do Kongo designado por Movimento de
Antoníno.
Tratando do Messianismo, encontramos a sua explicação nas tradições judaica e cristã. No contexto teológico,
o messianismo refere a esperança num reino divino e na
vinda de um Messias que vem abolir as vicissitudes do
tempo presente e restaurar uma ordem social harmoniosa
(J-P DOZON,1991:465-467). Podemos recuar no tempo
para nos situar, pelo menos na Europa da Idade média, e
procurar uma explicação do surgimento dos movimentos a
que se aplica também esse conceito de messianismo. De
facto, na Idade Média entre os séculos XI e XVI, vão surgir
vários movimentos que irão tentar introduzir mudanças na
sociedade feudal e modificar o fundamento religioso do
messianismo, tornando-se uma referência ideológica. Mas a
sua base, fortemente religiosa, levou esses movimentos a
uma mistura religiosa e política ligando a ressureição de
Cristo ao regresso de um imperador ou a uma tradição apocalíptica judaica (idem). Será esse o fundamento que introduziu o cristianismo em Angola no momento em que a bandeira do Rei cristão procurava impor, pela força, o processo
da cristianização, colocando o homem africano no centro
dos interesses e a submissão dos que não podiam resistir?
O humanismo cristão, baseado na defesa dos interesses
comercias e políticos de Portugal, na época, tal como mais
acima foi referenciado, não estaria na base de um desen-
contro com as culturas africanas aplicando o princípio de –
dar a noção de pecado para salvar e - dar a noção de selvagem para civilizar (op.cit. 1968)? O seu percurso através
dos séculos não teria permitido o surgimento de mais movimentos messiânicos, à semelhança do movimento de
Kimpa Vita no século XVIII?
Como explicar o surgimento de messianismos de Simon
Kimbangu, de Simon Mpadi, de André Matsuwa e finalmente o movimento “Tokoísmo” de Simão Gonçalves Toko no
século XX?
O Humanismo nascido no século XVI é ainda de actualidade. Hoje, ainda o homem continua sendo o centro de
gravidade da humanidade, procurando libertar-se da submissão. Essa libertação só é possível libertando o homem
espiritualmente. Para a África que se engajou nesta luta de
libertação através dos movimentos messiânicos e das igrejas independentes que eles implicaram, centra o Cristo
como o único redentor tornando patente hoje, a acção de
um novo evangelho mais humanista na dignificação do
homem. As igrejas que surgiram tais como: L’Eglise de
Notre Seigneur Jesus Christ sur la Terre (Kimbaguïsme)
revelado por Simon Kimbangu e L’Eglise des Noirs en
Afrique (Mpadisme) de Simon Mpadi, tiveram o mesmo fundamento na releitura do evangelho. A única diferença reside no fundamento evangélico, para a primeira, e na
negação do evangelho, para o segundo, abrindo uma nova
via para a luta pela emancipação do homen africano baseando os seus ensinamentos na história da resistência
contra a cristianização portadora da cultura europeia a ser
imposta em África e contra a colonização elaborando,
assim, uma doutrina independente. O que será do movimento messiânico revelado pelo Simão Gonçalves Toko? O
que podemos dizer sucintamente do Simão Gonçalves Toko
para melhor percebermos as suas ideias?
Alguns dados biográficos sobre a pessoa
de Simão Gonçalves Toko
Evitando relatar a sua biografia resumimo-nos ao
seguinte: Simão Gonçalves Toko frequentou a escola da
missão protestante de Baptist Missionary Society (BMS) de
Kibokolo no Norte de Angola no concelho de Maquela do
Zombo, foi enviado para Luanda a fim de continuar os seus
estudos no Liceu Salvador Correia onde concluiu o I° ciclo
51
de Liceu. Durante a sua estadia em Luanda, participou activamente na vida da Igreja Metodista. A sua educação
comunitária no seu meio cultural, a educação no meio das
missões protestantes e a sua actividade profissional como
professor em Kibokolo e Bembe (Angola) contribuíram para
a formação de base da personalidade de Simão Gonçalves
Toko. Contudo, quatro momentos importantes irão marcar a
sua vida e determinar a edificação da sua obra.
• A sua estadia em Luanda permitiu-lhe ter uma visão
ampla da realidade do seu país, de alguns aspectos
da realidade do mundo exterior, quer numa perspectiva socio-cultural quer na perspectiva económica e
política. Ele adquiriu uma cultura socio-política muito
abrangente tanto do país como também de Portugal e
do mundo para com Angola.
• A visão que ele teve em Catété (Katété) a 60 km de
Luanda aquando da sua deslocação a sul de Angola
numa missão episcopal em 1936, na qual Deus lhe
teria confiado a missão divina que ele tinha para com
o seu povo.
• A sua vida profissional como professor (1938-1943) e
o fundamento da carta aberta dirigida aos Exmos
Senhores Reverendos da Missão Evangélica do
Mbembe, em 1943, na qual ele denunciava o desvio
da obra de Nosso Senhor Jesus Cristo pelos missionários.
A sua saída de Angola e a instalação em Léopoldville
(Kinshasa) onde ele cria um coro composto maioritariamente por originários de Angola, a intensa actividade evangélica levada a cabo naquela cidade junto da
missão de BMS em Itaga (1943-1948) e a sua participação na Conferência Regional das Missões
Protestantes (1946) em Kinshasa-Kalina. Nesta conferência Toko, nas suas súplicas e orações, pediu o
poder do Espírito Santo em África e o aumento da
Palavra de Deus.
• O pedido da resposta das suas súplicas e orações feitas na Conferência num ritual preparado no dia 19 de
Julho de 1949. A descida neste dia do Espírito Santo
e o chamamento para Toko e os seus colaboradores
iniciarem a sua obra evangélica. Em 25 de Julho de
1949, num quintal cheio de gente Simão Gonçalves
Toko anunciava a Relembrança da Igreja do Nosso
Jesus Cristo no Mundo com a designação de
“Dibundu dye Mfumu eto Yesu Klistu o mu Nza”.
52
Meses depois Toko e os seus adeptos foram presos e
em 22 de Novembro de 1949 seguiu-se um julgamento sumário que decidiu a sua expulsão de Congobelga para Angola. Toko será expulsado do Congobelga em 9 de Janeiro de 1950, com cerca de 300
adeptos dos 3000 que aderiram ao movimento entre
1949-1950. Esses 300 adeptos expulsos vão constituir
o núcleo da Igreja em Angola. Entre 1949 a 1974, de
Léopoldville a Mbembe em Angola; de Mbembe a
Luanda; de Luanda para o Sul de Angola: Kakonda,
Kasinga, Chibia, Moçâmedes, Ponta Albina, os tokoístas levaram a boa nova dos ensinamentos de Jesus
Cristo para um mundo melhor. Em 1963 Toko será
deportado para as ilhas dos Açores onde irá permanecer até 1974, ano do seu regresso a Angola.
Os ideais de Simão Gonçalves Toko
na leitura dos Evangelhos
Os ideais de Simão Gonçalves Toko na releitura dos
evangelhos contribuíram na “relembrança” da “Igreja de
Nosso Senhor Jesus Cristo no Mundo, os Tokoístas”, e fundamentaram a dimensão universalista dos Evangelhos na
liberdade e dignidade da pessoa humana. Toko não vai fundar uma igreja independente tal como a sua acção evangélica é interpretada e que muitos autores tentaram publicar
mas sim Toko fez “relembrar” através da descida do Espírito
Santo no acontecimento da noite de 19 a 20 de Julho de
1949, a Igreja do Cristo. Naquela noite Toko foi investido de
poder para levar avante a missão dos apóstolos (Mateus;
28:16-20). Na altura, Jesus Cristo tinha dito: “ide, pois fazei
discípulos meus todos os povos, baptizando-os em nome
do Pai e do Filho e do Espirito Santo.” Essa missão foi precedida da revelação profética a que se refere Joel no seu
livro; 3:1-5; sobre a efusão do Espírito Santo. Simão
Gonçalves Toko beneficiou de uma educação cristã desde
a sua jovem idade pois frequentou a missão protestante de
Kibokolo onde ele fez o ensino primário e esteve sempre na
responsabilidade dos missionários como se refere a sua
biografia. Essa formação consolidou-se com a sua ida em
Luanda onde, além dos seus estudos no liceu, participou
activamente nas actividades da Igreja na Missão Episcopal
de Luanda (Metodista). Nesta missão, entre 1935-36 foi-lhe
incumbida a responsabilidade da escola dominical de clas53
se David, o que fundamentou a sua dedicação no conhecimento da Biblia. Duas revelações proféticas mostra-nos
como é que Toko interiorizou a palavra de Deus:
“Durante a sua estadia em Luanda Toko adoeceu e o
seu estado de saúde era desesperado. Estendido no colo
da sua madrinha em estado de coma enquanto o
Reverendo de missão desesperado ia comprar uma urna,
Toko sonhou ter encontrado o profeta Elias e mais além,
uma montanha. Toko procurava chegar ao outro lado da
montanha, mas foi impedido pelo profeta Elias dizendo que
o tempo ainda não tinha chegado para ele ir para aquela
montanha, pois ainda tinha uma missão a cumprir na terra.
Ele foi enxotado e com aquele movimento no sonho Toko
abriu os olhos e se apercebeu que tinha vindo de um
mundo maravilhoso” (Arquivos da INSJCM Luanda). Na
mesma época, em 1936, Toko foi incumbido de uma missão
que consistia em se deslocar a Kakonda para a realização
das actividades evangélicas. De passagem por Katete
(localidade a 60 Km de Luanda) Toko com a idade de 17
anos realiza a primeira visão do seu encontro com Deus e
foi-lhe dito o seguinte: “Hei-de pôr uma coisa em ti, mas não
hás-de saber e entender” (MANZAMBI VUVU, 2001).
Pensamos que as duas visões estão na base do início da
edificação da obra de Simão Gonçalves Toko e que será
consolidada ao longo de tempo com a interpretação dos
evangelhos.
Toko procurará ler a Biblia e sobretudo os Evangelhos.
Ele vai questioná-los para melhor significar a sua obra. Ele
vai fundamentar a sua reflexão no livro de Mateus que já
tinha uma visão universalista dos ensinamentos de Jesus
Cristo como bem nos referimos, pois Mateus mostra que
Jesus é messias prometido a Israel, o filho de Deus vivo
(16,16) que salvará o seu povo dos pecados (1,21).
Contudo, Mateus deixa claro no prólogo (1-2) que este
Jesus foi rejeitado pelos judeus para que a boa nova seja
comunicada aos pagãos. Desde aquele momento, só se
pode alcançar a salvação dentro da Igreja de Cristo, disse
Mateus no seu livro (16,18s; 18,17s). É essa Igreja do
Senhor Jesus Cristo baseada nos valores humanísticos dos
seus ensinamentos que Toko teve a missão de “relembrar”.
O livro de Mateus bem como os de Marco, Lucas, João, e
os actos dos apóstolos vão ser determinantes e de grande
inspiração para Simão Gonçalves Toko no fundamento dos
seus ideais e na edificação da sua obra. Para Toko, aquando da expansão do Humanismo cristão no século XV e XVI,
54
em África, a doutrina cristã já tinha sido desviada dos seus
valores humanísticos procurando satisfazer os interesses da
época, os da submissão religiosa, de dominar e de explorar
(intervenção de Toko na Conferência das Missões
Protestantes em África). Assim, como em todo o movimento
messiânico, o Tokoísmo nasce do encontro e desencontro
do processo da evangelização cristã a que foi submetida
África. Toko escolhe os livros da Biblia na qual se fundamenta o messianismo. É assim que ele se refere ao livro de
João: 14: 1-3 e que transcrevemos:
Não se pertube vosso coração. Credes em Deus, crede em mim (Jesus)
também. Na casa do Pai (Deus) há muitas moradas. Se assim não fora,
eu vo-lo teria dito. Pois eu vou preparar-vos um lugar. Quando tiver ido e
tiver preparado um lugar para vós, voltarei novamente e vos levarei
comigo para que, onde eu estiver, estejais também vós.
A releitura de certos livros e capítulos de inspiração
bíblica quer do Antigo Testamento quer do Novo
Testamento confrontadas as realidades sociais, políticas,
económicas e culturais de Angola e da África subsariana
em geral, criaram os fundamentos messiânicos africanos
que se centram na pessoa de Jesus Cristo.
Os ideais de Toko na prática do Evangelho
Logo na sua juventude, digamos na sua jovem idade,
Toko notava já que algo não correspondia bem em relação
ao comportamento dos missionários com os nativos, pois
não se entende como é que Toko vai abandonar por duas
vezes a missão de Kibokolo para emigrar no Congo belga.
Um dos motivos de emigração na altura eram as condições
de trabalho forçado nas plantações (ntonga) e na manutenção de estradas (sima) imposto pelo regime salazarista
que abrangia jovens de menos idade. Esta situação leva
Toko por duas vezes ao Congo. Já aos 10 anos, em 1928,
Toko vai a Léopoldville levado pelo seu tio que ia à procura
de melhores condições de vida, onde irá permanecer até
1929, data em que o senhor Reverendo Arthur Enock Guest
foi pessoalmente à sua procura para continuar os seus estudos na missão de Kibokolo. Em 1930, Toko fez uma nova
tentativa de abandonar a missão para o Congo desta vez
em Thysville (actual Mbanza Ngungu, provincia de Bas-Congo). Toko foi recebido por missionários de BMS de
Thysville que tencionavam enviá-lo numa das grandes
missões da região (Kimpese ou Ngombe Lutete); mas sob
55
pressão dos missionários de Kibokolo, foi obrigado a
regressar a Angola. Pensamos que Toko já tinha consciência de que os missionários tinham um comportamento passivo e tímido perante as atrocidades das autoridades coloniais, incapaz de reclamar justiça para os povos que são
iguais perante Deus. O que é interessante Toko, na sua
auto-biografia, a dado passo disse: “ do meu regresso na
missão foi obrigado ser baptizado”. Essa afirmação mostra
o percurso de Toko e o seu relacionamento antagónico no
futuro para com a acção missionária.
A convivência de Simão Gonçalves Toko com os missionários ao longo dos anos não será pacífica, pois logo
depois de ter sido transferido na missão de Mbembe, onde
leccionou durante seis anos, Toko decide denunciar a
acção missionária através da carta aos missionários entitulada por Carta aberta. Numa das passagens Toko refere-se
ao facto dele ser o escravo e que estava decidido a libertarse (carta aberta de 1943, p. 6). Designando os Exm.os
Reverendos por Patrões, Toko denuncia as práticas incorrectas que vinha a observar no comportamento dos missionários. Como podemos ler nesta passagem:
....visto que aturei todas as aventuras sofridas e fui sereno porque tive
uma vida solteira - era solteiro.
Com esta nova vida que possuo.....que desgraça é minha vida!
Compreendi todas as condições da minha vida que V. Exas me disseram, mas isso quem havia de pensar, quem havia de acreditar e quem
não duvidará? Esse serviço [de professor e evangelista] não merece a
mim (Vuzi), escravo, merece a um (Nsungu a mputu) europeu. O Vuzi
não tem a aptidão necessária no mundo....é indigente.
Em Léopoldville, na Conferência de Kalina (1946), tendo
em conta a situação que ele viveu em Angola, Toko, mais
uma vez denunciou o comportamento injusto dos missionários no exercício da sua obra. Na oportunidade Toko disse
na sessão do dia 15 de Julho do mesmo ano que:
«A dificuldade que existe entre missionários e africanos, [é] que eles não
estão de acordo com os nativos e não têm relações entre eles. Quer
dizer que a altitude europeu (europeia) é degredado no mais alto que os
Africanos.
A viagem em África é conveniente para vos saber se como é que os
Revrs. (Reverendos) andam e as relações com os Africanos se como e
que êles fazem o serviço.
Há uma separação que notras (noutras?) terras não vem dos miss. (missionários) mas vem do Estado daquele paíz
Há notras terras certa..... que lhes obrigam a desviar do Direito e do trabalho Cristão.
Eu vos amos (amo) e estimo o vosso serviço mais quer deveis saber a
coisa pior que separa as raças nesta conferência, se trata também dos
56
miss.(missionários) e Pastores das Igreja e pessoas semelhentes.
Quando pastor está em regras com os costumos da igreja, deve ser
muito bem segurado mas quando o Pastor está sempre aos costumes
do paíz esse Pastor deve ser tirado»... pp. 1-2.
O que nos parece, é que essas reflexões fizeram parte
das intervenções de Toko durante a Conferência e fundamentavam já os seus ideais, pois encontramos as mesmas
reflexões na “carta aberta” que ele redigiu e endereçou aos
Missionários de Mbembe em 1943, antes de emigrar para o
Congo belga. Simão Gonçalves Toko desconfiava da maneira de evangelizar que não correspondia ao comportamento
de bom cristão tendo em conta a cumplicidade que se verificava entre os missionários e a autoridade colonial.
Como todo messianismo baseado na doutrina cristã,
Toko inspira-se no Antigo Testamento, na sua revelação,
baseando-se nos livros de profetas tais como o de Joel, 3:
1-5; pois tinha consciência de que o Deus poderoso derramará o seu espírito sobre toda a carne como o tinha profetizado Joel:
«Depois derramarei.o meu espírito sobre toda carne,
Vossos filhos e filhas profetizerão,
Vossos anciãos terão sonhos, vossos jovens terão visões
Mesmo sobre os escravos e as escravas derramarei o meu espírito
naqueles dias».
O livro de Joel é em si um dos fundamentos proféticos
dos movimentos messiânicos que surgiram do Cristianismo
em África. Os seus autores, na maioria catequistas, puderam realizar uma releitura de capítulos que lhes foram revelados. Não se trata de possuir um domínio aprofundado da
Biblia mais sim a reinterpretação da Boa Nova cujo missionário era portador e que o africano assimilou e assumiu. O
livro do Joel legitima a autoridade da mensagem da Boa
Nova a toda a humanidade, mesmo aos escravos. É assim
que se compreende que, durante a Conferência de Kalina
em Léopoldville, foi convidado o coro do Mfidi (mestre ou
dirigente do coro) Simão Gonçalves Toko para entoar um
trecho de cântico sugerido pelo Reverendo responsável da
Missão de Itaga, (Ó evangelista mostra-me; eu não conheço
o caminho do céu) mas, Toko, ciente da missão que o
esperava, escolheu um trecho do hino mais significativo
(Cristo lhes dissera que o poder está com Ele; que anunciassem em toda a parte o poder está com Ele). O trecho
sugerido tratava da submissão do homem africano à acção
missionária que o leva a conhecer o caminho do céu.
57
Enquanto o trecho escolhido por Simão Toko significa que
Jesus Cristo é o único a quem foi investido o poder de Deus
e o que se deve anunciar em toda parte.
Pensamos que um dos objectivos subjacentes da
Conferência de Kalina em 1946 foi o de dispôr as igrejas ao
serviço da Humanidade pois, depois da 1ª guerra mundial,
as igrejas entraram em profundas mutações. Toko apercebeu-se que a acção missionária baseava-se num cristianismo mascarado e de uma dupla visão como se irá referir o
filósofo e teólogo Kä Mana quando disse que: em certa
medida, a racionalidade de implantação da fé cristã em
África inscreveu-se num contexto que funcionava em forma
de máscaras destinadas a cobrir permanentemente os
objectivos globais do projeto da ocupação ocidental de África (Kä Mana, 2000, p. 89).
Trata-se da máscara de uma política de dominação que
se apresenta sobre o pretexto de uma missão civilizadora; a
outra máscara é a de um mercantilismo feroz que se confronta com um dito humanismo cristão garantido por ordem
divina e, finalmente, a máscara de um racismo profundo
que esconde o carácter nocivo do próprio missionário. É
neste contexto, que o projecto da missão cristã não podia
escapar à ambiguidade da missão civilizadora na qual a
Europa pretendia levantar a bandeira do monopólio (Idem).
O que acabamos de observar justifica as afirmações de
Georges Gusdorf quando se referia à acção missionária
que era uma missão de ligação pura e simples de uma
população arcaica a uma espiritualidade ocidental. Para
esse autor, o Ocidente traiu o espírito de Deus ao estabecer
relações de violência, de exploração e de desumanidade
com as populações encontradas (Ibidem).
Para Simão G. Toko já tinha chegado o tempo de assumir a acção evangélica tal como ela foi ordenada por Jesus
Cristo.
Conclusão
O messianismo em que se fundamenta a Igreja do
Nosso Senhor Jesus Cristo no Mundo; os “Tokoístas” não
surge de uma reacção contra o Cristianismo mas sim, contra a acção missionária que se considerou mais civilizadora
que evangélica. É uma Igreja cristã na unidade de espírito
“relembrada”, segundo a sua doutrina em 25 de Julho de
1949, Joel; 3: 1-3. É a resposta às súplicas e orações dos
58
povos oprimidos a quem a acção missionária tinha negado
a mensagem de Cristo com os seus valores universalistas.
É o resultado do questionamento do Evangelho (a boa
nova) e a reinterpretação dos quatro Evangelhos do Novo
Testamento. O facto de se designar por Igreja de Nosso
Senhor Jesus Cristo no Mundo fundamenta toda a unidade
espiritual e que Ela, a Igreja, é una e indivisível. Significa
dizer que o Messianismo africano é evangélico e humanista. O Humanismo cristão africano, assim pensamos defini-lo, coloca o Cristo no centro da humanidade na valorização
do homem como ser emancipado, libertado, e autónomo e
o reconhecimento dos valores cristãos nas realidades culturais de cada povo. Ele tem o seu fundamento no
Messianismo africano. Os Evangelhos e o Cristo pertencem,
hoje, à memória colectiva e ao património da humanidade.
A Igreja de Nosso Senhor Jesus Cristo no Mundo; os
“Tokoístas”, sempre lutaram por uma nova evangelização,
pela edificação de uma nova sociedade africana que deve
contribuir na construção de um mundo melhor. Assim, a leitura dos Evangelhos por Simão Gonçalves Toko e a reinterpretação da mensagem não se limita a condenar a acção
missionária. Para Toko o Evangelho deve, na nova era,
como bem o disse Kä Mana, criar as condições que nos
permitirão, de hoje em diante, combater os comportamentos de crise, desenvolvendo um saber em nós próprios,
libertando as nossas energias para iniciativas que promovem as novas práticas sociais na vontade de edificar uma
nova sociedade (op.cit. p. 61). O autor reconhecendo a
obra edificada por Toko diria ainda:
“Quant à Simão Gonçalves Toko, l’impact de son Eglise sur la société
angolaise est tel aujourd’hui qu’il représente une réussite splendide
d’une évangelisation sans complaisance, qui a su faire une lecture originale du destin du peuple d’Israël et de la nouvelle venue du Christ au
sein du peuple noir, au profit de toute l’humanité”, (idem, p. 123).
De facto, Toko procurou passar do cristianismo da crítica teórica a um cristianismo de mudança social que é um
cristianismo de acto, de reflexão, digamos de acção.
Podemos concluir que Toko é um humanista cristão.
59
REFERÊNCIAS
De PINA MARTINS, J.V., 1970, Enciclopédia Luso-brasileira de cultura,
Lisboa, pp. 581-606.
ANTUNES, M., 1970, Idem, pp. 581-584.
FREEMAN, T., No seu texto sobre: L’Évangile, un humanisme chrétien,
traduzido do texto inglês com título – Christian Humanism: a gospel to proclaim – posiciona-se numa teologia radical. Anthony Freeman é um padre
católico, editor de “Journal of Consciousness Studies”.
RANDLES, W.G.L., 1968, L’Ancien royaume du Congo. Des origines à la
fin du XIX siècles, pp. 149-150.
DOZON, J-P., 1978, Os movimentos Político-religiosos. Sincretísmos,
Messianísmos, Neotradictionalísmos, Marc Augé, (dir.), A Construção do
Mundo, (Religião. Representações, Ideologia), p. 111.
DOZON, J-P., 1991, Messianisme, Bonte, P., Izard, M., 1991, Dictionnaire
de l’Ethnologie et de l’Anthropologie, p. 466.
MANZAMBI VUVU, F., 2001, “A trajectória do Simão Conçalves Toko e o
Tokoïsmo no despertar da consciência nacional em Angola. – Um contributo
para luta de libertação nacional”, Encontros de divulgação e debate em estudos sociais, n° 6, 2° semestre, p. 26.
“Carta Aberta” 1943, Arquivo da Igreja do Nosso Senhor Jesus Cristo no
Mundo, Luanda.
KÄ MANA., 2000, La nouvelle Évangélisation en Afrique, Paris, Eds.
Karthala et Eds Clé, p. 89.
KÄ MANA., 2000, idem.
KÄ MANA., 2000, ibidem.
KÄ MANA., 2000, op.cit, p. 61.
KÄ MANA., 2000, idem, p. 123.
BIBLIOGRAFIA
AGOSSOU, M. Jacob., 1987, Christianisme africain, une fraternité audelà de l’ethnie, Paris, Karthala.
AUGÉ, M. (dir.), 1978, A construçao do mundo, religião, representações,
ideologia, Lisboa, Ed. 70.
BONTE, P., IZARD, M? (édit.) 1991, Dictionnaire de l’Ethnologie et de
l’Anthropologie, Paris, Puf.
BUREAU, R., 1996, Le Prophète de la Lagune. Les harristes de Côted’Ivoire, Paris, Karthala.
COLLOQUE INTERNATIONAL DE TOURS (XIX Stage), 1973, L’Humanisme français au début de la renaissance, Paris, Librairie Philosophique J.
VRIN COMTE, F., 1996, Les Grandes notions du Christianisme, Paris, Bordas.
De SOUSA COLENSE, S., 1991, A la découverte de l’Église des Noirs en
Afrique (ENAF), Reportage, Travail de fin de Cycle présenté et défendu pour
l’obtention du grade de Gradué en Journalisme, Août 1991, ISTI, Kinshasa.
De PINA, J.V., 1984, Humanisme Chrétien au Portugal (XVI siècle), Paris,
Fondation Gulbenkian.
Dos SANTOS, E., 1972., Movimentos Proféticos e Mágicos em Angola,
Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
ERNY, P., 2000, Enfants du Ciel et de la Terre. Essais d’Anthropologie religieuse, Paris, L’Harmattan.
GONÇALVES, A. C.,
– 1985, Kongo. Le lignage contre l’état, Lisboa, Instituto de Investigação
Científica Tropical.
60
– 1980, La Symbolisation politique: le profetisme Kongo au XVIII siècle,
München-London, Weltforum Verlag.
JACQUIN, F.,ZORN, J-F. (Éds.), 2001, L’Altérité religieuse, un défi pour la
mission chrétienne, XVIII siècle, Paris, Ed. Karthala.
KÄ MANA., 2000, La nouvelle Évangélisation en Afrique, Paris, Eds.
Karthala et Eds Clé.
KABASELE-LUMBALA, F., 1993, Le Christianisme et l’Afrique. Une chance réciproque, Paris, Karthala.
KOUVOUAMA, A., 1979, Messianisme et Révolution au Congo, Thèse de
3° cycle en Anthropologie Sociale et Culturelle, Paris V.
LAWRENCE, W.H., 1990, A Igreja em Angola, um rio com várias correntes, Lisboa, Editorial Além-mar.
MANZAMBI VUVU, F.,
– 1976, Le Tokoïsme et les Implications Politiques en Angola, Mémoire de
Licence en Anthropologie sociale et culturelle, Université Nationale du Zaïre,
Lubumbashi.
– 2001, “A trajectória do Simão Conçalves Toko e o Tokoïsmo no despertar da conciência nacional em Angola. – Um contributo para luta de libertação nacional”, Encontros de divulgação e debate em estudos sociais, n° 6,
2° semestre.
RANDLES, W.G.L., 1968, L’ancien Royaume du Congo. Des origines à la
fin du XIX siècle, Paris-La Haye, Mouton.
61
MANUEL AUGUSTO RODRIGUES
Universidade de Coimbra
(Portugal)
As missões perante os novos desafios
sócio-políticos e religioso-culturais
1. As missões na história
Segundo a doutrina cristã,1 Cristo mandou os apóstolos
evangelizar o mundo (Mt. 28, 19; Lc. 24,27). Logo na idade
apostólica, essa actividade tomou enormes proporções, em
particular com S Paulo que aparece como o “apóstolo das
gentes” e cuja acção vem relatada nos Actos dos Apóstolos
e reflectida nas suas Cartas. As condições oferecidas pelo
império romano eram favoráveis em muitos aspectos. Basta
pensar na unidade política e na organização administrativa.
A língua e as comunicações eram outros factores importantes. As perseguições ao cristianismo não impediram esse
trabalho de propagação; o sangue dos mártires fazia crescer a adesão à doutrina cristã.
Com a paz constantiniana, as facilidades tornaram-se
uma realidade. A partir de então, o cristianismo propagou-se como a fé do império e a expansão pelo mundo era uma
realidade. Da Índia (ca. 190) à Alemanha (ca. 325), da
Abissínia (ca. 330) à Irlanda (ca. séc. V) e à China (VII) a
mensagem evangélica ia-se expandindo transformando
povos e pessoas que aderiam à nova doutrina. Célebres
nos séc. VII, VIII e IX foram as missões de Agostinho de
Cantuária na Inglaterra, de Willibrod na Frísia, de Anskar na
Suécia, de Cirilo e Metódio entre os eslavos, de Estêvão na
Hungria e de Vladimir na Rússia. Na Idade Média, dominicanos e franciscanos prosseguiram o trabalho missionário
nas regiões da Prússia e entre os Tártaros e Chineses.
Com o aparecimento do Islão, a situação alterou-se profundamente. É então que, ao lado das lutas político-religiosas, não faltaram tentativas de diálogo entre homens de boa
vontade. Francisco de Assis e Harun Rashid encontraram-se na Terra Santa no tempo das cruzadas. Piano Carpini e
outros foram enviados aos Mongóis e João de Montecorvino
à China. À distância de séculos, constatamos que a
63
questão das outras religiões não passava desapercebida a
alguns intelectuais cristãos.
Com os descobrimentos, teve início a missionação
moderna que se costuma situar nos sécs. XV-XVIII, ou seja,
até à Revolução Francesa. Longo seria referir aqui o que foi
a acção do clero secular e regular nas Américas e nos
outros continentes. Com a fé cristã levavam as línguas europeias, nomeadamente a portuguesa e a espanhola, e criavam estruturas de assistência que em muito beneficiavam
as gentes dos territórios recém-descobertos. 2
Criou-se assim uma teologia da missão e uma dinâmica
missionária. Foi no séc. XVI que o termo missão se tornou
usual para designar os esforços feitos dirigidos aos não
baptizados. Além da actividade dos países descobridores
(Portugal e Espanha), foi criada em 1622 a Sacra
Propaganda Fide e formulou-se a ideia da implantação da
Igreja (plantatio ecclesiae). Antes dizia-se apostolatus, propaganda fide, propagatio salutis. Foi com os descobrimentos que o termo missionário ganhou impacto e com ele
fomentou-se o proselitismo. Mas o sentido original ignorava
esta conotação «agressiva». A palavra evangélica (apostéllò) significava a amizade divina oferecida aos outros.
Na linguagem tradicional implantavam a Fé e o Império,
como o imortalizou o nosso Épico, de acordo com a concepção do tempo. Hoje, como sabemos, nem tudo se pode
considerar positivo na obra realizada. Os encontros e
desencontros traduzem essa aproximação de colonizadores e indígenas. O diálogo de culturas e religiões estava
longe de ser considerado como hoje se concebe.3
Mesmo a nível eclesiástico, surgiram não poucos atritos,
como foi o caso do diferendo entre a pretensão dos reis ibéricos, defensores da teoria do padroado, e a Congregação
da Fé (1622). A questão dos ritos chineses e malabares e
as reduções americanas também ofuscaram a certa altura o
trabalho missionário.
Referimos os nomes de algumas personagens e factos
que marcaram esse período de florescimento missionário:
Francisco Xavier em Goa (1542), a actividade crescente da
Congregação da Propagação da Fé (1622), a conclusão da
questão dos ritos chineses em 1744 e a expulsão dos jesuítas (1759) que se pode considerar como o início oficial da
desagregação missionária.4 Com a extinção das ordens religiosas em 1834, novo golpe foi dado na actividade missionária. A Companhia de Jesus veio a ser restabelecida em
1814 por Pio VII. Também os Capuchinhos, cujas activida64
des foram centralizadas pela Congregação de Propagação
da Fé, exerceram uma actividade notável no campo missionário.
Outras figuras cimeiras que inclusivamente colocavam
questões acerca da liberdade dos indígenas e do direito de
ocupação das parcelas territoriais adquiridas foram:
Bartolomeu de las Casas, José de Acosta, Manuel da
Nóbrega, José de Anchieta e António Vieira; e ainda
Gonçalo da Silveira na África austral, Pêro Paez e Afonso
Mendes na Etiópia, Valignani no Oriente, De Nobili e João
de Brito na Índia e Mateus Ricci na China. Na Universidade,
Francisco de Vitória e a Escola de Salamanca por ele criada e Francisco Suárez interessaram-se pelos problemas
surgidos com a ocupação dos novos territórios e os direitos
dos indígenas. Ricci sonhava com a conversão da China
fazendo certas concessões sobre o culto dos antepassados. Roma opôs-se e a rivalidade dos dominicanos contribuiu para o fracasso da proposta de Ricci.
Como se disse, não foram poucos os problemas surgidos. Por exemplo, discutiu-se se os pagãos tinham alma. E
foi só na assembleia de Valladolid que se deu uma solução
definitiva. Na América Latina a evangelização tomou por
vezes aspectos violentos. O negócio da escravatura ficou
como uma das notas mais negativas de todo o processo
missionário.
A missionação contemporânea (sécs. XIX-XX) assumiu
outras características. Assistiu-se a uma significativa multiplicidade de iniciativas e ao aparecimento de numerosos
institutos missionários nos vários continentes: África, Ásia e
Oceânia, inserido num vasto movimento de ocupação apostólica de todo o «mundo pagão». Coincidiu esse processo
com a época do colonialismo político. A actividade missionária estava centrada praticamente toda num dicastério
romano (Propaganda Fide), paralelo aos ministérios de
colónias das grandes potências europeias, mas quanto ao
Padroado Português chegou-se a um acordo. Depois do
Funchal era Goa a diocese que congregava todos os bispados não continentais. O crescimento de vocações na África e na América Latina revelou-se de grande relevância,
embora ainda longe do que viria a suceder na segunda
metade do séc. XX.
Várias iniciativas da piedade romântica deram origem
aos grandes movimentos de apoio económico às missões,
como a Obra da Propagação da Fé (1822), da Santa
Infância (1843) e de S. Pedro Apóstolo (1889).
65
Podemos dividir este período em duas fases: a conversionista (séc. XIX) impelida pela ideia da salvação das
almas que é a contrapartida da ideia civilizadora no campo
político, em que aliás se apoia; e a de índole assistencial e
educacional. O proteccionismo plurinacional muito favoreceu essa faceta voltada para a assistência e a instrução.
Criou-se a figura heróica e aventureira romântica, a que se
juntava o desbravamento e a ocupação geográfica, no
aspecto religioso.
O segundo período do séc. XX teve em vista a implantação da Igreja baseada no recrutamento de clero indígena.
Coincidiu esta fase com os movimentos descolonizadores.
Criaram-se estruturas eclesiásticas próprias, prefeituras e
vicariatos apostólicos e grande número de dioceses. A instauração jurídica acompanhava este processo da missionação que se fez sentir mais depois da 2ª Grande Guerra.
Em 1970, dos 38 metropolitas da Ásia 31 eram asiáticos
e 7 de fora; dos 35 de África 29 eram africanos e 6 de fora.
Isto no que toca à Congregação da Propagação da Fé.
Não podíamos deixar de fazer uma referência especial
ao trabalho desenvolvido pelos protestantes. O séc. XIX foi
a idade de oiro da missionação herdeira da Reforma.
Coincidiu com a colonização britânica e das outras potências onde havia fortes comunidades protestantes. Já no
séc. XVIII temos os Irmãos Moravos (Índias ocidentais,
Gronelândia, Surinam…) e os Metodistas e Baptistas que
exerceram uma acção extraordinária em diversos países.
Notável foi a grande influência de W. Carey (1761-1834),
chamdo “o pai das missões protestantes,” que escreveu
uma importante obra que ainda hoje é ponto de referência
obrigatória.5 A principal característica é que esse movimento não dependia propriamente de estruturas eclesiais
(excepto a metodista), mas sim de associações missionárias da Inglaterra, América, Suiça, Alemanha, etc.
No séc. XX, assistiu-se à internacionalização e à indigenização ou formação de igrejas jovens. O início pode situar-se na Conferência Missionária Mundial de Edimburgo
(1910), na qual participaram 159 igrejas e organizações
representadas por cerca de 1200 delegados, entre os quais
17 não ocidentais; foi então criada uma comissão especial,
da qual saiu em 1921 o Conselho Missionário Internacional
que em 1961 se uniu em nova Delhi com o Conselho
Ecuménico das Igrejas; dentro deste formou-se a Secção
de Missões e Evangelização. A missionação protestante
assenta bastante na Bíblia, na pregação oral e na acção
66
filantrópica, em especial nos campos da medicina e da instrução e formação de igrejas auto-suficientes.
As Igrejas da Reforma conheceram também uma intensa actividade missionária. Lembramos a Sociedade para a
Promoção do Conhecimento do Cristianismo (SPCK) e a
Sociedade para Propagação do Evangelho no Estrangeiro
(SPG), fundadas em 1698 e 1701 pelos anglicanos com o
fim de propagar a Bíblia e o ensino. A este propósito, recordamos aqui João Ferreira de Almeida, que fez a primeira
versão da Bíblia para português. Insistimos: a idade de ouro
das missões protestantes é o séc. XIX, conduzida sob o
impulso das sociedades missionárias metodistas (1786)6 e
baptistas (1792),7 imitadas por uma série de outras comunidades missionárias protestantes de todas as confissões.
Entre as missões célebres, contam-se as de David
Livingstone8 e Alberto Schweitzer.9
Actualmente os protestantes no Terceiro Mundo são tantos em África como nos EUA: 90.000 milhões; na Ásia ultrapassam os 35 milhões; para a China, é difícil calcular, mas
deve andar pelos 60 milhões.
Hoje a actividade missionária continua confiada aos
católicos e aos protestantes, que têm tentado colaborar em
espírito de bom entendimento e se têm esforçado por constituir no terreno comunidades sempre mais autónomas.
Criaram-se associações diversas, como a União dos
Crentes Metodistas (1935) (Argélia).
Os mormons passaram de 3 milhões em 1970 para 6
milhões no presente, desenvolvendo uma actividade considerável em 150 países.
Depois da criação do Conselho Ecuménico das Igrejas
(1948) deu-se novo impulso à actividade missionária, no
quadro do objectivo de aproximação das Igrejas e confissões religiosas. O diálogo ecuménico encontra nos territórios não europeus um excelente espaço para se desenvolver com grande vitalidade.
Com o Concílio Vaticano II abriu-se uma nova fase da
história da Igreja em que o problema das missões também
conheceu uma atenção especial. Entre os documentos
aprovados pela assembleia conciliar, destacamos o da
liberdade religiosa, o do diálogo ecuménico e o da Igreja e
as religiões não-cristãs.
Referimos ainda o encontro de Assis de João Paulo II
com os dirigentes de outras religiões em 1996, a acção da
igreja de Santo Egídio de Roma (1968) que hoje conta com
15.000 aderentes. Em 1996 teve lugar o encontro com
67
representantes de outras religiões: «a paz em nome de
Deus». Nos Estados Unidos as igrejas evangélicas obtiveram do Departamento de Estado a criação de uma
comissão para controlar a liberdade religiosa no mundo
seja qual for a religião. O Dalai-Lama. Em França, associações, como a Fraternidade de Abraão ou a Conferência
Mundial das Religiões, trabalham no mesmo sentido.
Não passaram desapercebidas certas tensões que
tanto os missionários como o clero indígena têm procurado
ultrapassar. Tudo se resume no binómio evangelização –
desenvolvimento (Missão de Deus – Humanização do
Mundo).10 Como conciliar o suporte humano com a ideia de
civilização; a expansão da Igreja (com o seu peso euro-americano) e a auto-suficiência das igrejas jovens (relação
horizontal e não vertical); a conversão e a secularização,
por causa da conquista da autonomia intra-mundana pela
libertação dos mitos antigos. É um problema de adaptação
cultural com os olhos no futuro e não nas expressões em
presença.
Outras questões que se colocam: a necessidade da
Igreja e a salvação universal, o diálogo das religiões, o respeito das tradições e mentalidades locais.
2. Teologia da missionação
Na terminologia teológica, o conceito de missão está
envolto em muitas questões intelectuais e de incerteza emocional. A missão, entendida como empresa tentada para o
amor da palavra de Deus em certas partes não católicas do
mundo (concepção geográfica, exterior, confessional da
missão) é, hoje, por diferentes razões, exposta à crítica.11
Esta crise da missão tornou-se mais aguda depois das
duas grandes guerras e da descolonização.12 Com efeito,
os que então eram o objecto da missão («os pagãos»)
começaram a recusar «que não eram senão a matéria-prima que outros utilizavam para a sua própria salvação».
Por outro lado, os missionários, «agentes da missão», sofreram também a interpretação cada vez mais positiva, eclesiológica e cristológica, no plano da história da salvação,
das religiões não cristãs e do facto da experiência da secularização do mundo ocidental («Missão operária» e «Missão
de França», arrastando uma perda geral de identidade (cf.
Projecto moratório).13 O princípio «extra Ecclesiam nulla
salus» era defendido com todo o vigor por muitos.
68
Estas reacções muitas vezes agressivas e autocríticas
acompanham a desintegração da cristandade ocidental
(Corpus christianum) que, depois da era dos descobrimentos, foi considerada como criatura privilegiada de Deus,
como detentora exclusiva duma revelação absoluta, como
mestra política do mundo, como criadora duma civilização
mundial e como produtora das ciências e das técnicas.
Pelo contrário, os outros, os não-ocidentais, foram
subestimados como sendo pagãos (pagani) e bárbaros,
selvagens que se mantêm no erro e como inimigos políticos.
É tão difícil afastar-se dum tal juízo histórico sobre o
paganismo que tais ideias racistas estiveram ligadas a esta
concepção propagandista fundada no «apartheid» e aos
métodos missionários correspondentes.14
A consciência que o Ocidente tem da sua missão é
igualmente posta em questão pelo desequilíbrio entre
demografia e história do cristianismo, desde o
«Mediterrâneo cristão» até à «Terceira Igreja» actual: 85%
dos católicos estão nos dois grandes blocos: na Europa e
na América do Norte (44%) e na América Latina (com a
América Central e as Caraíbas) (41%); ou seja, há mais
católicos na América Latina do que na Europa (daí a
importância das Conferências Episcopais de Medellin
(1968) e Puebla (1979) e outras; após 1978, 56% dos católicos vivem no Terceiro Mundo (em 2000: ca. 70%). Depois
de 1981, não há senão 47,4% de cristãos de cor branca15;
em 1978, 1390 dos 2217 bispos diocesanos pertencem à
zona não ocidental. Conclusão: a missão em sentido único,
de origem ocidental, chegou ao seu fim.
Acresce que as religiões mundiais passaram à contra-missão no Ocidente (novos movimentos religiosos de origem asiática na Europa: Meditação Transcendental,
Sociedade Internacional da Consciência de Krishna,
Sogakkai, Igreja da União de San Myung Moon,
Ahmadiyya), e que reflectem ao contrário as mesmas características – do ponto de vista da fenomenologia das religiões – que a missão tradicional: pretensão absoluta da verdade (absolutismo extensivo e intensivo), vontade de conversão no sentido duma ruptura com a religião anterior e
recusa de coexistência om a religião inicial.16
De acordo com os especialistas, há que definir o estilo
da missão. O mundo é o destinatário da missão e do envio
de Cristo, o que significa que a mensagem evangélica deve
ser anunciada para iluminar e contribuir para o bem do
homem e da sociedade.17 O missionário não é o possuidor
69
da verdade ou duma técnica de desenvolvimento, mas é
«sacramento». Despoja-se a ele próprio18 para servir os
outros. Cria-se no anunciador da Palavra de Deus como
que um vazio, uma atitude espiritual própria, uma prestação
cultural e antropológica: o missionário deve libertar-se de
preconceitos racistas e do seu enraizamento cultural (desculturação, processo de aculturação e transculturação),
para pregar a Cristo e não a si próprio, a sua cultura, a sua
civilização ou a sua forma de religião.
A temática missionológica de inculturação não é pois
uma técnica pedagógica, mas um dever de incarnação. A
unidade de fé encontra aí expressões pluriformes e infinitamente variadas que devem ser respeitadas. Por exemplo,
as comunidades de base latino-americanas e a teologia
correspondente de libertação no domínio social, a teologia
negra no quadro da discriminação jurídico e política, a teologia indiana de Ashram ou a teologia femininista ocidental.19
Isto implica o desaparecimento da missão de tipo geográfico, as comunidades eclesiais não ocidentais devendo
tornar-se quanto antes autónomas, governando-se por si
próprias e expandindo-se mesmo com os seus meios (plantatio ecclesiae).
Quanto ao momento e à maneira de realização destas
três autonomias – domínio financeiro, opções apostólicas e
nomeação de pessoas – há opiniões diversas. O melhor
exemplo vem da China: Mao-Tse-Tung em 1949 tomou o
poder e criou a igreja patriótica em 1958. Isto representa
uma época pós-missionária.
Do ponto de vista eclesiológico e prático procura-se
numa situação modificada estabelecer relações novas entre
a Igreja universal e as Igrejas locais de África, Ásia e
América Latina.20 A regionalização das conferências episcopais vai no sentido desta Igreja de estrutura sinodal.21
A evangelização deve ser considerada como comunicação. O fim da missão é atestar o amor de Deus para com
todos os homens em Jesus Cristo crucificado e ressuscitado (kérigma, evangelização). A missão é uma esperança
contagiante e, por isso, combate todos os principados e
poderes22 Assim a vontade salvífica de Deus realiza-se pela
presença crítica dos cristãos nas situações desumanas,
sociais e políticas que se deterioraram ou onde a paz não
está instaurada (cf. sobre a diaconia e a caridade Mt. 25,31-46; e a missão indirecta das obras de caridade da Igreja,
70
os jejuns que permitem oferendas, os projectos de desenvolvimento, os mass-media, os hospitais e as escolas). As
injustiças estruturais (Medellin 2 e 6) e as violações dos
direitos do homem devem ser estigmatizadas como pecados sociais (Puebla 487; cf. Tb. 46,314,437,1259) e mesmo
como estruturas do pecado (João Paulo II, cf. Puebla 452).
Mas as comunidades eclesiais também devem autoreformar-se. Devem converter-se. A experiência missionária
é pois uma existência de combate e de esperança para
com o outro, e o missionário torna-se pedra de escândalo
antes de o serem os outros.
A adaptação nos domínios litúrgico, catequético, pastoral e teológico e de expressão da fé exige antes o processo
cultural e antropológico de uma segunda inculturação (aculturação), em que se oferece ao receptor a sua mensagem
tendo em atenção o meio ambiente. Não é um encontro em
sentido único (linear), mas circular (reciprocidade na
missão), pois que o receptor reage ao emissor (empatia,
vulnerabilidade).
A preparação missionária pressupõe portanto um conhecimento muito respeitoso quer dos seus próprios modelos de pensamento e dos comportamentos sociais, culturais
e religiosos, quer dos de fora (língua, antropologia cultural,
exegese histórico-crítica da tradição bíblica, ciências das
religiões, procura de preconceitos, etnocentrismo racista,
condicionamento cultural das próprias formas de expressão
teológica e litúrgica), para se converter, de forma suave
mas com persistência em «fazer-se tudo a todos»).23
Diálogo e missão não se excluem. É imprescindível o diálogo com os membros de outras religiões, culturas e ideologias.24 Enraizado na vontade salvífica divina para com a
humanidade (missio) e levado pelo Cristo crucificado e ressuscitado, que pela sua morte abrange todos os homens, o
missionário não encontra nunca um pagão em absoluto, mas
um homem que Cristo sempre encontrou anonimamente.25
E como, em razão dos seus limites culturais e das suas
divisões culpáveis,26 as comunidades cristãs e os seus missionários não são senão em parte atingidos por Cristo e não
levam portanto senão imperfeitamente o testemunho de
Cristo, por isso o diálogo missionário é o meio de conhecer
melhor a Cristo e de penetrar melhor no mistério de Deus
que vai além e esgota todo o discurso e comportamento
humanos.27
O diálogo não é só falar em conjunto, mas sobretudo
suportar e sofrer juntamente (diálogo social e moral).28 Neste
71
movimento de diálogo, a pregação do Evangelho tem uma
função crítica e purificadora onde as sociedades, as culturas e as religiões têm uma acção desumanizante.29 O que
está em causa é ser de Cristo e pertencer à Igreja.30
Intimamente relacionado com o que se acaba de dizer
está o tema da ciência missionária e missionológica. Uma
vez que a Igreja é uma comunidade transnacional que
propõe uma mensagem e uma praxis ao mundo, nenhum
aspecto da teologia pode ser desenvolvida sem um estreito
contacto com a dimensão missionária.
O que a teologia e a missionologia têm hoje a procurar e
a apresentar resulta do que se acaba de dizer: uma concepção bíblica, exegeticamente fundada, da missão; uma
teologia da missão (sobretudo teologia da incarnação que
engloba também a cruz e a ressurreição; uma relativização
das suas próprias estruturas mentais, dos seus próprios
comportamentos sociais e das suas próprias representações religiosas e entrar sempre mais nos dos outros (antropologia cultural); uma tipologia das formas de diálogo entre
culturas e religiões; uma contribuição para as acções internacionais a favor da paz; uma elaboração, pelo diálogo, de
teologias africanas, latino-americanas e asiática, etc.31
3. A globalização do «religioso»
Num livro recente intitulado La globalisation du religieux
encontramos uma série de trabalhos que tratam do problema missionário à luz das novas aquisições teológicas e culturais.32
A explosão das tecnologias da informação e da comunicação, o aumento da economia mundial e os fluxos migratórios afectam as nossas sociedades, rasgando fronteiras,
etc. Assiste-se à compressão do tempo e do espaço e à
multiplicação das instituições globais e respectiva mundialização da comunidade humana.
O religioso é necessariamente afectado em toda esta
conjuntura. Também não se deve esquecer o facto da
exportação de religiões para fora do seu território de origem, desterritorialização. Já com os descobrimentos isso
acontecera, mas agora é muito diferente.
A AFSR33 realizou em Paris (5 e 6 de Fevereiro de 2000)
uma discussão com o objectivo de tratar destes novos fenómenos dentro da globalização, mundialização. A globalização, fenómeno complexo e plural, deriva da modernida72
de. Intensificaram-se as dependências recíprocas, as trocas entre países, a circulação e o consumo de bens materiais e não materiais.
A globalização do religioso em termos transnacionais é
um facto. Já não há dependência de hegemonias políticas,
há outras lógicas que já não são propostas pelos Estados.
Antes havia uma ligação à história das expansões coloniais.
Hoje há outra lógica que não segue um critério nacional. Os
indivíduos são independentes, o mesmo sucedendo com as
Igrejas como organizações não governamentais.
A globalização como fruto de muitos movimentos associa-se à glocalização; as religiões e as lógicas de desterritorialização não podem ser esquecidas. Passou-se das
missões à internacionalização das Igrejas. Houve evolução
ou revolução? O cristianismo levado pelas missões que teve
um afrouxamento no séc. XVII e foi relançado no XIX conheceu o seu fim com o XX.
Esta nova visão do problema missionário que pode ser
considerada como uma crise conduz à ideia de que o
Cristianismo deve seguir o caminho do testemunho e não o
do proselitismo. É o fim duma era e dum sistema missionário que em nada invalida a actividade evangélica confiada
à Igreja. Ma a antiga forma de compreender a missão ainda
subsiste na América do Norte com o protestantismo evangélico.
A nova geografia cristã apresenta características peculiares. As jovens igrejas crescem por si, o que é uma grande novidade em relação ao que acontecia no passado.34
Vejamos o número de católicos por continente em 1880,
1950 e 1995: Europa –70% –51% –29,1%; América –24%
–42% –49%; Ásia –4,2% –4,4% –10,2%; África –1,1 –3,1
–10,8; Oceânia –0,27 –0,4 –0,7.
Em termos globais, constatamos que em 1880 havia 217
milhões, em 1950 esse número passou para 450 milhões e
em 1995 para 989.366.000. Na África Negra houve uma
grande evolução: em 50 anos passou-se de 9.585.000 católicos (1951) para 21.556.000 (1961) e depois para
106.820.000 (1995).35
Os novos fluxos, a renovação dos quadros, a internacionalização, as Igrejas tradicionais em quebra, as outras em
crescimento, a sociologia católica – eis uma série de temas
que merecem uma consideração especial.
É fecundo o número de vocações de clérigos ou pastores dos antigos países de missão, quando as antigas
Igrejas são atravessadas por uma profunda crise. Assim vai
73
desaparecendo a separação antiga entre missionários ocidentais brancos e clero indígena de cor. Esta é a primeira
consequência da nova sociologia clerical católica.
As congregações à antiga dão lugar a congregações
locais. A partir de 1970 essa foi a solução encontrada. A
africanização tem um belo exemplo na SMA.36 Em 1990, a
SMA contava 190 candidatos ao sacerdócio, sendo 79 africanos, 32 irlandeses, 9 indianos, 9 polacos, 8 filipinos e só
4 franceses.
A mesma africanização existe com os Padres Brancos e
com os Espiritanos. Presentemente há um grande aumento
dos Padres Brancos: 311 candidatos, sendo 241 africanos
nos noviciados de Burkina Faso, Tanzânia e Zâmbia.
Os jesuítas em 1990 contavam com 25.000 membros,
sendo 2. 997 indianos, ou seja, em 2º lugar atrás dos EUA
(4724) mas à frente da Espanha (2029) e da Itália (1575).
Na Ásia havia 1560 em 1989, sendo 1200 indianos, à
frente dos EUA (1471), da Europa (904), da África (323) e
da Oceânia (41).
Também as congregações católicas femininas denotam
um crescimento assinalável: por exemplo, as irmãs de S.
José de Cluny têm 103 casa na Europa (1090 membros)
precedendo agora de perto as 95 casas da Ásia (865).
Perdeu, pois, significado a distinção entre o pessoal
missionário e o clero local. Os europeus e os americanos
perderam o monopólio. O progresso da Ásia é impressionante e a circulação do pessoal evangelizador é um facto.37
Perante tudo isto podemos perguntar: há contradições
na internacionalização? Depois do Vaticano II, fizeram-se
alterações várias na Congregação da Propagação da Fé. A
instrução Relationes de 24 de Fevereiro de 1969 estabeleceu que as dioceses dos antigos países de missão não
podiam ser confiadas a um instituto missionário; deviam ter
à cabeça um bispo local.
As Conferências Eclesiásticas Nacionais na Ásia e
América continuam a funcionar e existe ainda o Symposium
das Conferências Episcopais de África e Madagáscar
(SCEAM). Outra solução adoptada foram os sínodos continentais
Os protestantes foram mais radicais: criaram estruturas
comunitárias de que a CEVA38 é exemplo; é a concretização
no espaço francófono. O poder que detinham as instâncias
missionárias passou para as Igrejas locais. O Conselho
Ecuménico das Igrejas instaurou novas relações e em
Bangkok e Nairobi foram tomadas novas iniciativas.
74
Grandes são os desafios que se colocam. Faltam textos
necessários para a normal vida da Igreja. No princípio do
séc. XX havia traduções da Bíblia para 71 línguas, em 1970
para 1630, em 1990 para 1800.39 Mas há diferenças entre as
versões. O vocabulário religioso oferece dificuldades. Não é
fácil encontrar termos para designar a Deus e o Espírito
Santo, o pecado, a santidade, o baptismo, a eucaristia. A
tendência sincretista ou neologista ganha cada vez mais
terreno.
Já antes houvera problemas por causa dos ritos chineses e indianos (malabares) que foram resolvidos de forma
autoritária no séc. XVIII, sendo condenadas as acomodações que preconizavam certos jesuítas.
Com a versão dos textos litúrgicos o problema veio ao
de cima. Também a liturgia e a organização das Igrejas oferecem não poucas dificuldades.
A adaptação em todos os domínios (culto, liturgia, organização, catequese, dogma) é o meio mais preconizado. O
cristianismo deve através da inculturação adaptar-se às
áreas missionárias. O trabalho a fazer é ingente, um autêntico desafio.
A inculturação do evangelho é pois uma questão que
merece toda a atenção. Trata-se dum termo relativamente
recente para descrever a penetração da mensagem evangélica num certo meio e as novas relações que se estabelecem entre o Evangelho e a cultura deste meio.
Semelhante a aculturação (antropologia).
O encontro de culturas traz consigo as línguas, os costumes, as crenças, os comportamentos. Termo desde os
anos 30. Mas só a partir dos anos 70 nos documentos oficiais. Em 1988 a Comissão Teológica Internacional publicou
o documento La Foi et l’Inculturation, preparado com o
Conselho Pontifício da Cultura.
No seu nº 11 lê-se: «O processo da inculturação pode
ser definido como o esforço da Igreja para fazer penetrar a
mensagem de Cristo num meio sócio-cultural, chamando
este a crescer segundo todos os seus valores próprios,
desde que estes sejam conciliáveis com o Evangelho. O
termo inculturação inclui a ideia de crescimento, de enriquecimento mútuo das pessoas e dos grupos, pelo facto de
o Evangelho se encontrar com um meio social. A inculturação é a Incarnação do Evangelho nas culturas autóctones
e, ao mesmo tempo, a introdução destas culturas na vida da
Igreja: Encíclica Slavorum Apostoli, 2. 6. 1985, nº 21».
São muitas as lições que colhemos da história. A incul75
turação é tão antiga como a primeira evangelização. Diz a
Carta a Diogneto: «Os cristãos não se distinguem dos
outros nem pelo país, nem pela língua, nem pelos costumes. Porque eles não moram em cidades que sejam suas,
eles não utilizam qualquer dialéctica extraordinária especial, o seu modo de vida não tem nada de singular…
Passam a sua vida na terra, mas são cidadãos do céu.
Obedecem às leis estabelecidas, e a sua maneira de viver
é mais que perfeita que as leis.»40
Interessante o que a Congregação de Propagação da
Fé escreveu em 1659: «Não metais nenhum zelo, não avanceis nenhum argumento para convencer estes povos para
mudarem de ritos, de costumes e tradições, a menos que
estes sejam contrários à religião e à moral. Que de mais
absurdo que transportar, entre os chineses, a França, a
Espanha, a Itália ou outro país da Europa? Não introduzais
entre eles os nossos países, mas a fé, esta fé que não
assenta nem fere os ritos nem os usos de nenhum povo,
posto que eles não sejam detestáveis, mas pelo contrário
quer que se observem e sejam protegidas.»41 Vários documentos eclesiásticos, como Maximum illud (1919), Rerum
Ecclesiae (1926), Evangelii Praecones (1951), insistem em
que haja uma melhor adaptação do Evangelho às realidades locais. Há que dominar a língua, promover o clero indígena, dar autonomia às novas instituições, conhecer as
ciências modernas: geografia, linguística, história, medicina, etnografia. A maturação da teologia missionária foi um
facto nos últimos tempos. Respeitar o carácter dos povos.
Pio XII na sua primeira encíclica Summi Pontificatus
(1939) afirma: «…compreender mais profundamente a civilização e as instituições dos diversos povos e a cultivar as
suas qualidades e os seus melhores dons…Mas não as
superstições e os erros…». Muito disto aparece no decreto
Ad gentes do Vaticano II.
Com a descolonização e a libertação dos países colonizados, as jovens Igrejas modificaram-se. Procedeu-se a
uma revisão de métodos da evangelização praticada pelos
missionários. Falou-se do paganismo latente que escondia
uma evangelização em profundidade; da falta de respeito
das tradições e costumes; da passagem de tradições europeias para as missões (língua, instituições, modo de pensar,
etc.). Contra a tendência de levar o Cristianismo ocidentalizado há que inculturar a fé nos costumes locais. A africanização, a asiação e a indianização da mensagem evangélica exige determinação e abrange todos os aspectos: lín76
gua, teologia, moral, liturgia, aceitação de elementos das
religiões tradicionais, como textos sacros e formas de
oração. A necessidade de aprofundar tudo, nomeadamente um melhor conhecimento antropológico.
Os especialistas falam de critérios da inculturação, distinguem fé e cultura, procuram salvaguardar unidade e pluralismo e debatem a Extensão da inculturação que respeita
não só aos territórios de missão, mas também aos antigos
que são as sociedades modernas.
O termo missão aplica-se agora às velhas civilizações
ameaçadas de indiferença, de agnosticismo ou de a-religião. Há novos sectores de cultura, com objectivos, métodos e línguas diversas. O diálogo intercultural impõe-se aos
cristãos em todos os países.42
Conclusão
Ainda se verifica hoje a preponderância das Igrejas
europeias e dos EUA. O catolicismo aparece como um
arquipélago de grupos, podendo classificar-se isto como
uma grande heterogeneidade. Os protestantes sentem também dificuldades na actividade de inculturação.
Interessante seria desenvolver os pontos de vista teológicos acerca das relações entre religiões. K. Rahner, Yves
Congar, Jacques Dupuis, R. Panikkar e H. Kueng trataram
de diversa maneira o problema do diálogo interreligioso.
Pela sua actualidade referimos o livro de J. Dupuis, Vers une
théologie chrétienne du pluralisme religieux,43 que inclui
uma análise. Vale a pena aprofundar este assunto que tem
uma relação muito estreita com a questão missionária.
O pluralismo religioso, a unidade relacional, o fundo cultural de cada povo – eis alguns elementos fundamentais
para poder estudar com o devido rigor uma questão tão
relevante para a aproximação das diversas gentes. O
humanismo latino pode em todo este processo dar um contributo enorme na defesa dos valores e princípios que marcaram profundamente a história.
Não podíamos terminar este trabalho sem uma referência a algumas personalidades que em África foram intérpretes notáveis do diálogo de culturas, reconheceram os
valores próprios de cada povo, pugnaram pela libertação e
promoção da pessoa humana: Leopold Senghor (1906-2001) e Louis Massignon (1883-1962).
Leopold Senghor (1906-2001) na vasta e valiosa obra
77
que nos deixou, como Hóstias negras, Estética negro-africana, Liberdade I: Negritude e humanismo, II: Negritude e
caminho africano do socialismo, III: Negritude e civilização
do universal, IV: Socialismo e planificação, V: Diálogo das
culturas, exprime esse mesmo sentido de aproximação entre
todos os homens. Senghor representa uma referência muito
especial do desejo de entendimento e colaboração das culturas latina e africana. Quanto não havia aqui a dizer acerca
desta extraordinária figura de pensador e humanista?
Massignon escreveu: “Compreender alguma coisa, não
é anexar-se a coisa, é transferir-se para uma descentralização para o centro do outro… A essência da linguagem
deve ser uma espécie de descentramento… Não nos podemos fazer compreender se não entrarmos no sistema do
outro.”44 Num livro recente intitulado Louis Massignon et le
dialogue dês cultures45 que contém as actas do colóquio
organizado pela UNESCO, pela Associação dos Amigos de
Louis Massignon e pelo Instituto Internacional de
Investigações sobre Louis Massignon encontramos temas
deveras interessantes que achamos dignos de ser mencionados: a 1ª parte trata das bases do diálogo: uma resposta
de Massignon sobre o Islão; o Corão segundo Massignon,
aspectos teológicos do seu pensamento e aproximação
dialógica; a 2ª parte inclui os assuntos: Massignon, os direitos do homem e a mediação, o pensamento social, o diálogo islamo-cristão, Massignon face a Israel, para uma compreensão espiritual das culturas.
Escreveu o ilustre pensador: «Que a nossa caridade não
seja táctica, “anexionista”, colonialista; nem helenismo, nem
latinismo, nem francicasnismo, nem jesuitismo, nem foucauldismo…46 permanecendo como auxiliares das missões
em diocese indígenas dum catolicismo ecuménico.» E
ainda: «A grande arte dos políticos é a de reduzir ao silêncio os espirituais.» Palavras eloquentes que mantêm toda a
sua actualidade nos nossos dias.
78
Notas
(1) Dictionnaire Culturel du Christianisme, Paris, 1994.
(2) “As armas e padrões portugueses postos em África e em Ásia, e em
tantas mil ilhas fora da repartição das três partes da Terra, materiais são, e
pode-as o tempo gastar: pêro não gastará doutrinas, costumes, linguagem
que os Portugueses nestas terras deixarem” (João de Barros, Diálogo em louvor de Nossa Linguagem). São palavras proféticas do cronista da Ásia e primeiro gramático autêntico da língua pátria, ele que no Reino redigia cartinhas
e compêndios gramaticais. A dilatação da fé e do império precisava da língua como instrumento imprescindível. Ainda João de Barros: “Certo é que
não há glória que se possa comparar a quando os meninos etíopes, persianos, indos, de aquém e de além do Gange, em suas próprias terras, na força
dos seus templos e pagodes, onde nunca se ouviu o nome romano, por esta
nossa Arte aprendem a nossa linguagem”. Nesse trabalho de grande dificuldade e delicadeza extrema, os descobrimentos e a aculturação só se tornam
entendíveis com a missionação. - Não interessava mandar livros de doutrina,
se eles não sabiam ler. O envio de catecismos, cartinhas e cartilhas era aos
milhares. “Ensina-se a ler, ensina-se a escrever, ensina-se Português, ensinase Latim, ensinam-se as línguas indígenas, abrem-se escolas no Ultramar,
ministra-se a Doutrina, fundam-se tipografias, as primeiras que fabricam tipos exóticos e imprimem em línguas e alfabetos orientais: tamil, japonês e
até abissínio!”. Até nós chegaram, em largo número, exemplares e impressos, desse esforço enorme, como a Arte da Língua de Angola do Padre
Pedro Dias (1697). A remessa de cartilhas para o Brasil e para o Congo era
intensa. Damião de Góis e Jerónimo Osório em 1504 tinham enviado “mestres de ler e escrever”…”que abrissem escolas onde instruíssem meninos”,
mandando entregar muitos livros de doutrina cristã. – O Padre Mateus, em
1624, SJ e missionário no Congo, traduziu para essa língua a “Doutrina christã” de Marcos Jorge, (Lisboa 1561), dedicando-se ao poderoso e católico
rei do Congo, D. Pedro Afonso. A tradução é interlinear, em português e congolês. – Em 1642 e 1661, outro padre jesuíta, António do Couto, natural de
Angola, publica O gentio de Angola, suficientemente instruído nos mysterios
de nosssa sancta fé” e o Cathecismo em latim, português y angolano. Em suma, os portugueses levaram a língua portuguesa pelo mundo. Hoje com 200
milhões de falantes é a 4ª língua mais falada do mundo. Isso ficou a deverse às missões desde Cabo Verde, à Guiné, a S. Tomé e Príncipe, a Angola,
a Moçambique e a Timor.
(3) Cf. sobre a missionação as actas do Congresso Internacional de
História. Missionação Portuguesa e Encontro de Culturas, 4 vols. Braga,
1983, promovido por ocasião das comemorações dos descobrimentos.
(4) Hoje os jesuítas são mais de 20.000: 8.000 na Europa (lembramos
que há 1.400 na Itália e 840 em França), 8. 400 nos Estados Unidos, ca. 5.
300 na Ásia (sendo 3. 300 na Índia) e ca. 1. 500 na África.
(5) An Enquiry into the obligations of Christianity to use Means for the
Conversion of the Heathens, 1792.
(6) O metodismo é um movimento de reforma do anglicalismo que nasceu da pregação de John e Charles Wesley (1729). Por causa da sua organização, veio a chamar-se metodismo. Tornou-se independente do anglicalis-mo em 1784. Recusa todo o conformismo e acentua o sacerdócio universal;
a experiência pessoal de Deus é o único guia possível da consciência; a salvação é acessível a todos pela fé. Pressupõe uma conversão: “o despertar”.
Pregação do Evangelho fora das paróquias, pelo que os pregadores vão para fora das paróquias nos locais de trabalho. O metodismo desempenhou e
desempenha um grande trabalho missionário por todo o mundo.
(7) Os anabaptistas (do gr. “rebaptizador) são adeptos de uma Igreja
reformada que recusa o baptismo das crianças, considerado como a princi-
79
pal abominação do papa. Só os adultos podem receber a água baptismal.
Recusam a função de pastor. No séc. XVI entraram no movimento de Münster
(1538) com muita violência; mas outros, os mennonitas, discípulos do reformador holandês Menno Simons (1496-1561) defenderam um pacifismo radical. As suas igrejas provieram das Igrejas protestantes ou anglicanas; desenvolveram-se principalmente nos Estados Unidos desde o séc. XVII. A
Igreja dos Baptistas, fundada em 1609 por John Smith em Amsterdão, constitui a maior igreja protestante dos Estados Unidos. Segundo ela, a autoridade da Sagrada Escritura, interpretada individualmente, é absoluta, e cada
cristão tem a obrigação de evangelizar. Martin Luther King (1929-68) era um
pastor baptista. Cf. Voltaire, Cândido, cc. III, IV e V e Margueritte Yourcenar,
L’Oeuvre au noir, 1968.
(8) David Livingstone nasceu em Blantyre (Glasgow) a 19 de Março de
1813. Tendo ouvido falar da China e dos seus problemas, decidiu fazer-se
médico missionário. Estudou também teologia e entrou para a Sociedade
Missionária de Londres com o objectivo de trabalhar na China. Entretanto por
motivos especiais mudou o seu plano e veio a rumar em direcção a África.
Foi em Kuruman que se estabeleceu e aí criou uma missão. Depois foi para
Chonuane e Kolobeng. Os seus contactos com o Dr. Moffat (com cuja filha viria a casar) e com Sechele foram muito importantes. Dedicou-se aos estudos
geológicos e geográficos das regiões por onde ia passando. Também esteve em Luanda. Praticamente conheceu toda a parte meridional de África, de
Leste a Oeste. Interessou-se imenso pela promoção dos povos africanos e
pela defesa dos direitos dos indígenas. Depois de três expedições ao continente africano, Livingstone faleceu a 1 de Maio de 1873, sendo sepultado na
Abadia de Westminster.
(9) Albert Schweitzer (1875-1965), médico, teólogo e organista protestante, formado nas Universidades de Estrasburgo, Paris e Berlim, tornou-se
pastor em Estrasburgo em 1899 e professor de teologia em 1902. Com 30
anos, numa noite de Pentecostes, decidiu consagrar a sua vida à luta contra
a miséria e o mal; por isso fez-se médico. Em 1913 partiu como missionário
para a África equatorial (Lambarene-Gabão). Internado em França em 1917,
porque era alsaciano, era considerado alemão, pelo que não pôde deixar o
hospital senão em 1924. Instalou-se então definitivamente em África, desenvolvendo uma acção notável na assistência e continuando a sua obra teológica e dando concertos. Cuidava dos doentes sem os retirar do seu meio cultural e familiar, solução adoptada também por Raul Follereau para os leprosos. Recebeu o prémio Nobel.
Exerceu grande influência sobre o protestantismo europeu e americano.
Quando triunfava na exegese uma aproximação histórica da Escritura, ele
tinha, desde 1901, insistido no papel da iminência do fim do mundo (escatologia) na mensagem de Jesus. Em 1911, interpretou também as Epístolas de
Paulo no mesmo sentido.
(10) Aquilo a que se se costuma chamar Missio Dei - Humanisierung der
Welt.
(11) J. Chr. Hoekendijk, Zur Frage einer missionarischen Existenz,
Munique, 1966, 315-38.
(12) Conferência Mundial da Missão, em Bangkok, 1972-73. Cf. Ph.
Potter, Das Heil der Welt heute. Dokumente der Weltmissionskonferenz
Bangkok 1973, Estocarda/Berlim, 1973, 180.
(13) Cf. Sobre este assunto as excelentes obras de De Lubac, G.
Warneck, P. Charles, K. Rahner, Congar, etc.
(14) Cf. 1610-1848: «reduções» indianas nos actuais Panamá, Paraguai
e Argentina; 1645-1742: querela dos ritos da China; 1842-1887: 22 convenções sem igual entre 16 nações cristãs e a China; trabalhos de escravos
nas colónias africanas).
(15) D. B. Barret, World Christian Encyclopedia, Oxford/N. Y. 1982, 3.
(16) (Hummel 1980).
80
(17) Sacramentum mundi. Is. 52, 13 – 53,12, Phil. 2,5-7.
(18) Phil. 2,7: héauton ekenosen.
(19) Cf. A Comissão Internacional de Teólogos 1973.
(20) Código de Direito Canónico, cânones. 782 & 1 e 786; cf. Concílio
Vaticano II, Ad Gentes 38.
(21) CELAM (Conferência Episcopal Latino-Americana), AMECEAE
(Associação de Membros Episcopais das Conferências da África Oriental);
SECAM (Symposium das Conferências Episcopais de África e de
Madagáscar); FABC (Federação das Conferências de Bispos da Ásia).
(22) Eph. 6,11-12; Lc.1,51-53.
(23) 1 Cor. 9,19 e 22; Ef. 1, 10: juntar todas as coisas em Cristo. No cris-tianismo ou não as mesmas coisas que em Cristo (cf. Carta Apostólica de
Paulo VI, Evangelii nuntiandi, 1975, 63 e 20: Secretariado para a Unidade dos
cristãos 1982).
(24) Cf. O programa de diálogo do Secretariado para os não cristãos,
fundado em 1964 e do CEI, depois Upsala em 1968, não é simplesmente um
instrumento pedagógico de conversão, mas uma práxis constitutiva para a
missão.
(25) Cf. no AT a referência aos santos pagãos ou o acolhimento dos
estrangeiros e o tema patrístico da “Ecclesia ab Abel”.
(26) Cf. Lumen Gentium: Ecclesia semper …sancta simul et semper purificanda.
(27) Cf. 1 Cor 13, 12 e Rom 11, 33-36.
(28) Cf. Conferência Mundial das Religiões pela Paz.
(29) Cf. 1 Ped. 5, 8.
(30) Cf. as Declarações do Vaticano II sobre a liberdade religiosa e as
religiões não-cristãs. Não fornecem coisas concretas mas falam de disponibilidade (cf. Ad Gentes 16).
(31) Dispomos hoje de muitos instrumentos de trabalho, como a
Bibliografia missionaria, Roma 1925s.; Bibliotheca Missionum, MünsterAachen-Friburgo, 1916s.
(32) Paris, 2001.
(33) Associação Francesa de Ciências Sociais das Religiões.
(34) Como fonte principal, temos o Annuaire statistique de l’Église catholique (31.XII.1996), citado pela Agência Fides (16. X. 1998).
(35) Cada ano são publicadas no Anuário Pontifício estatísticas relativas
à vida da Igreja. O número de padres apresenta-se estável há uns 20 anos:
400.000, sendo 250.000 diocesanos e 150.000 religiosos. Há ca. de 4.000 bispos:. – Na Europa, contam-se ca. 220.000 padres, em diminuição de 7% em
10 anos; nos EUA há 64.000, em diminuição de 8%; América Latina: 54.000
com aumento de 3% em 10 anos. Situação medíocre nos países tradicionais.
A Ásia atinge 36.000 padres, o que representa um aumento de 22% em 10
anos. Na África há 22.000 padres, sendo o aumento de 50% também para 10
anos. – A África começa a ver os resultados de uma acção missionária iniciada há um século. Há mais de 40 seminários maiores abertos em 15 anos,
com mais de 15.000 futuros padres. – Nota-se um equilíbrio: a Europa e os
EUA Norte dispunham há uns 15 anos de mais de 100 padres para 100.000
católicos, enquanto a África não contava senão de 17 para o mesmo número. Hoje os números: são diferentes: 93 padres na Europa e 24 em África.
(36) A Société des Missions Africaines de Lyon depois da Irlanda recorreu à África.
(37) A revista Solidaire das Obras Pontifícias Missionárias Católicas pode mencionar-se como uma, entre outras, que nos mostram a mudança de
paradigma verificado. A Europa ainda domina, mas tende a desaparecer.
Àquela podemos juntar a Catholic Mission League que se destina a leigos.
As instituições eclesiásticas reflectem essa alteração: em 1995 (1 de Janeiro)
havia 14 cardeais asiáticos. O Conselho Ecuménico das Igrejas congrega
332 igrejas membros, estando nas diversas presidências vários de África e
81
Ásia. A Aliança Reformada Mundial (ARM) com 199 igrejas em 99 países dos
vários continentes. A Federação Mundial Luterana (FML) com 112 igrejas em
68 países. Formados nas Universidades Gregoriana, Latrão, e da
Congregação para a Propagação da Fé, etc. os membros do clero indígena
desenvolvem nos seus países actividades apostólicas e humanitárias.
(38) Comunidade Evangélica de Acção Apostólica.
(39) C. Dieterlé em 1997, «Diversité et complementarité des traductions
de La Bible», in H. Didier et alii, Les enjeux de la traduction. L’experience dês
missions chrétiennes, Lião, 1997.
(40) A Carta a Diogneto escrita em grego por um autor cristão des-conhecido e dirigida a alguém também desconhecido data do séc. II ou III.
O autor explica porque é que o paganismo e o judaísmo não podem ser aceites, descreve os cristãos como a alma do mundo e insiste em que o cristianismo é a única revelação de Deus.
(41) Le Siège apostolique et les Missions, Paris, 1959.
(42) João Paulo II ao Pontifício Conselho da Cultura em 18 de Janeiro de
1983.
(43) Paris, 1997. Cf. ainda D. J. BOSCH, Dynamique de la mission chrétienne. Histoire et avenir des modèles missionaires, Paris-Genebra, 1995 ; H.
CAMOER, Guide pour l’inculturation de l’Evangile, Roma, 1997.
(44) Louis Massignon, Opera minora, II, p. 631.
(45) Paris 1996.
(46) Charles-Eugène de Foucauld (1858-1916) viveu como ermita no
Sahará. Oficial indisciplinado, veio a apaixonar-se pelo deserto aquando de
uma exploração em Marrocos. Tendo voltado à fé e à prática religiosa em
1886, retirou-se para a Trapa de Notre Dame-des-Neiges de Ardèche. Fez-se
sacerdote em 1901, passando a levar vida de ermita em Beni-Abbès no sul
da Argélia, depois em Tamanrasset no Hoggar. Elaborou um dicionário e uma
gramática da língua tuareg. Morreu assassinado em condições misteriosas.
Embora tivesse feito uma regra para as comunidades de “Irmãozinhos” e de
“Irmãzinhas”, contudo nunca teve discípulos durante a sua vida. Foi apenas
em 1933 que alguns sacerdotes e religiosas adoptaram a sua regra.
82
MANUEL DOS SANTOS LIMA
Universidade Moderna Setúbal
(Angola)
Humanismo latino em África:
legados, partilhas e falências
Quando no século XV, em pleno Renascimento, as caravelas portuguesas se fazem ao mar dando início à grande
epopeia, a Expansão marítima, partem em busca de especiarias, de ouro e dessa "gente remota" a que aludiu Camões.
As caravelas levam a cruz estampada sobre as velas –
símbolo da evangelização e no bojo espadas e canhões –
símbolos da Conquista e da vontade de submeter nações e
povos ultramarinos que, desde o século XIV, se encontram
no seu apogeu mas desconhecem a pólvora e o que está
para além do mar.
Esta contradição fará com que uma parte significativa
da mensagem humanista da latinidade se perdesse numa
ambiguidade desconcertante.
Tudo começa na perspectiva do olhar que se deita ao
Outro, dentro de um determinado quadro cultural e sistema
de valores. A imagem que sobre ele se constrói condiciona
o relacionamento. O olhar é de ordem física (corpo escuro
ou pardo, nu), religiosa (idólatras), moral (lubricidade), linguística (falam línguas bárbaras), consuetudinária (práticas
culinárias exóticas, desconhecem o trigo e o vinho, comem
em grupo, sem horas fixas e sem talher) além de que deixam às mulheres os trabalhos agrícolas.
No contexto europeu da época, juntamente com um discurso etnocentrista vislumbrar-se-á entanto alguma curiosidade científica que animará exploradores, missionários e
compiladores do século XV.
Porém a figura do Negro na cena portuguesa será popularizada pela chacota pelo falar “guinéu”, “língua de negro”
ou "língua de preto" do teatro da época e até às revistas da
I Guerra Mundial. No plano literário há unanimidade no sarcasmo e mesmo crueldade na maneira como os poetas satíricos e gazeteiros do século XVIII glosaram a figura do
Negro, comparando-o a animais de capoeira, na literatura
de cordel.
83
A negrura da pele é considerada sujidade ou luto.
Negros, Mestiços e todos os indivíduos com mistura de sangue africano foram considerados pessoas de sangue infecto, como, aliás, aconteceu com os Judeus.
E quando a partir de meados do século XVI a costa atlântica de África, do Senegal a Angola, se tornou num imenso
reservatório de escravos para as plantações do Novo
Mundo, os ideólogos esclavagistas vão fazer do Negro
objecto da história dos homens e os puritanos americanos
vão diabolizá-lo juntamente com o índio e institucionalizam a
exclusão de ambos. Está-se então nos alvores do período
colonial e os Europeus têm sobretudo a preocupação fundamentalista de não corromper a raça cristã misturando-lhe
sangue impuro de não cristão1 É o preconceito religioso que
domina, pois o baptismo "apagava" a diferença. Quando em
1510 uma Bula do Papa Nicolau V autoriza os Portugueses a
escravizar Sarracenos, pagãos e outros inimigos do Cristo,
ao sul dos cabos Bojador e Não, será com a condição de
converter os cativos ao cristianismo.
Da inicial troca de mercadorias passa-se, gradualmente,
ao tráfico de escravos numa extensão litoral de 3500 kms,
entre a Mauritânia e o Congo. Os portugueses, que inauguraram esse comércio, detêm o monopólio no século XVI. Os
holandeses ultrapassam-no no século XVIII.2
Na centúria seguinte a África torna-se moeda da troca
internacional, pois que as colónias constituem uma espécie
de apólice de seguros sobre o futuro.
Reduzido à condição de mercadoria, de coisa transacionável, o Africano deixa de ser objecto de conhecimento
até ao século XVIII, embora o século das luzes consagrasse o bom selvagem e a Revolução Francesa proclamando
os Direitos do Homem consagrasse o direito de Igualdade
entre todos os homens.
Já só será no século XIX, em plena expansão do capitalismo industrial e comercial, que o Europeu se voltará a
debruçar sobre o Outro, com um novo olhar, apesar do colonialismo erigir em dogma a superioridade da raça branca e
da sua cultura e de a impor pela força das armas.3
Independentemente de ter o Africano como parceiro
comercial, a leitura que o Europeu faz dele é, além do mais,
estética e moral: o branco é bonito, limpo e sadio enquanto
que o Africano, além de pobre, é feio e doente, bêbedo,
ladrão e preguiçoso, embora se lhe reconheça que trabalha
bem o ferro e é capaz de se sustentar.
A caracterização do Africano no século XX engloba
84
todos os predicados do século anterior mais o epíteto de
antropófago.4
A questão colonial está particularmente presente na
cena política portuguesa nos séculos XIX e XX, pois ela
prende-se tanto ao problema da identidade nacional como,
em épocas de crise, ao da própria sobrevivência do país,
depois da perda do Brasil em 1822.
Com efeito o imperialismo português não tendo seguido o
modelo capitalista clássico, e definindo-se como oposto a
todos os outros colonialismos pelo atraso económico, social e
até demográfico de Portugal, fabricará mitos de toda a ordem:
– Mito do Eldorado – acreditar na fortuna de além-mar,
nas riquezas das terras de que engrandeceriam a
nação dando ao pequeno Portugal o estatuto de grande potência, compensando-o da amputação do Brasil
ao seu Império.
– Mito da herança sagrada – consequência da inquietante vizinhança siamesa com Espanha, o nacionalismo português defendia que jamais se poderia alienar
qualquer parcela do território. Salazar será a encarnação viva deste mito, o que terá como consequência
a guerra colonial, a sua Alcácer-Kibir do século XX.
– Mito da missão sagrada – restaurando um espírito de
Cruzado, o povo português tinha por missão indefectível, outorgada pela providencia divina5, de libertar os
Africanos da barbárie e da selvajaria para os cristianizar, ao mesmo tempo que os resgatava do vício, de
uma estagnação milenária6, da preguiça e da tirania
dos seus chefes primitivos.
Como é óbvio esta ideologia legitimaria a nacionalização dos Africanos, seres inferiores, com “a criação de
uma mentalidade portuguesa entre os indígenas”, isto é,
uma política de assimilação que começa por dar às colónias o estatuto de “províncias ultramarinas”.
Toda a mística colonial portuguesa repousará na afirmação de uma unidade e de uma identidade absolutas
entre as partes diversas que constituem o Portugal intercontinental: “um Estado, uma raça, uma fé e uma civilização” e a colonização portuguesa longe da vil exploração
económica é “um movimento propulsor de doutrina religiosa que deseja conscientemente unir a humanidade sob a
mesma bandeira da paz, justiça e amor” num tipo de
relações humanas imbuídas de fraternidade, o que daria à
colonização portuguesa um significado transcendental na
história da humanidade.
85
Nesta ordem de ideias, a política de Assimilação para os
Africanos se tornarem "Portugueses de cor", apregoada
pelo Estado Novo nos anos trinta, poderia funcionar como
uma espécie de lavagem ao cérebro. Todavia a política
colonial portuguesa só foi assimiladora na medida em que
autóctones pudessem ser úteis na prestação de serviços e
no comércio. Fora disso só a pele contava. Transformada
em uniforme social e económico, ela cobre praticamente
toda a literatura africanista e africana do século XIX. Os literatos indígenas desse tempo são efectivamente assimilados
na medida em que se exprimem numa língua estrangeira e
que buscam os seus modelos na cultura metropolitana. As
literaturas africanas lusógrafas foram suscitadas pelo
encontro das culturas europeia e africana.
O processo de assimilação implicava a destruição gradual das sociedades tradicionais, seguida da inculcação da
cultura portuguesa e finalmente a integração ou dissolução
dos africanos "lusitanizados" na sociedade portuguesa.
Recorde-se no entanto que este processo só resultou em
cenários onde os africanos, cortados das suas fontes pelo
isolamento imposto sobretudo pela distância, perderam largamente a sua identidade cultural, incorporando-se, com as
novas gerações noutros contextos culturais, embora remotamente fiéis à sua ancestralidade. Assim aconteceu no
Brasil onde, já no século XIX, os descendentes de escravos
Quimbundos eram culturalmente brasileiros, tal como os
seus irmãos levados para os Estados Unidos se tornaram
americanos.
Na África lusófona o falhanço da assimilação foi estrondoso, não só pela tradicional falta de meios como pelo
muito pouco interesse que as próprias autoridades coloniais
e os colonos manifestavam por essa política, e estorvante
de imediato e suicidária a longo prazo, para os 35% de
analfabetos metropolitanos, patrões de Negros.
Com efeito as sementes da contestação nacionalista
foram lançadas pelos Assimilados e naturalmente que germinaram entre as populações que não tendo sido grandemente expostas à cultura portuguesa se rebelaram por fidelidade à sua historicidade feita de resistências seculares à
colonização.
Independentemente desse falhanço geral da
Assimilação, urna minoria de Africanos tornar-se-á em maior
ou menor grau culturalmente mestiça, vivendo entre dois
mundos entre o feiticeiro e médico, entre os panos tradicionais e os calções apertados da colonização.
86
Se a peregrinação dos Portugueses pelo mundo fora
teve espontaneamente uma vertente humanística decorrente do encontro de culturas que o império das armas, a
escravatura e a colonização subverteram irremediavelmente, a mestiçagem biológica e cultural poderia ter sido a
materialização do humanismo latino.
As caravelas levavam cruzes nas velas, dissemos. Qual
o papel da Igreja, em tudo isso? Não será exagerado dizer
que ela participou da mesma ambiguidade até quase finais
do século XIX, quando a liberdade de evangelização das
missões, conquistada na Conferência de Berlim, a fará perder influência e exclusividade em terras de África, em proveito das igrejas protestantes americanas, inglesas e suecas que, provindo de sociedades liberais, industrializadas e
mais evoluídas foram pioneiras na educação, serviços
sociais e formação profissional ao mesmo tempo que inculcavam nos Africanos ideias de igualdade, justiça e liberdade, que alimentarão os movimentos messiânicos e independentistas das antigas colónias portuguesas.
Curiosamente o catolicismo demasiado colado ao fascismo salazarista e ao seu obscurantismo não soube
expressar a sua mensagem humanística aos povos negros.
A metrópole também não escapou às ambiguidades e
contradições da actuação da Igreja. Depois das Cruzadas
e das descobertas supostamente para cristianizar os povos
ultramarinos e da sua captura e venda como escravos, eis
que se nega aos novos cristãos o acesso aos lugares de
culto. Assim, os escravos ou forros de Lisboa à semelhança
do resto do país, formavam confrarias, tendo elegido para
sua devoção e patrocínio, entre outros, S. Jorge e Nossa
Senhora do Rosário (dos Homens Pretos de Lisboa) e só
astuciosamente conseguiram lugar para oculto, ao lado dos
brancos, na igreja de S. Domingos: num primeiro tempo reuniam-se diante da igreja, depois obtiveram permissão para
armarem mesa na calçada e posteriormente, sempre sob
pretexto de prestarem culto à Virgem do Rosário, conseguiram, finalmente, que lhes concedessem um cantinho… o
canto dos Negros – já no interior da igreja… onde passariam a usar a sua confraria nomeadamente na compra de
alforrias.
Até hoje a sociedade portuguesa nunca foi multirracial e
a presença secular dos negros em Portugal foi fagocitada,
restando apenas escassos vestígios.
A França lembra-se que Alexandre Dumas, o célebre pai
de "Os Três Mosqueteiros, era mestiço; mas quantas pes87
soas em Portugal saberão que o famoso Marquês de
Pombal o era igualmente?
Não há sociedade sem cultura nem cultura que não se
reporte a uma determinada sociedade no espaço e no
tempo. A cultura é o bilhete de identidade de cada povo. As
diferentes colonizações europeias foram unânimes na política de inferiorização das culturas autóctones, em seu proveito. Contra isso a Negritude foi, entre o mais, o movimento
de afirmação de uma personalidade comum a todo o continente e particularmente no tocante à Africa subsahariana,
tendo sido reconhecida una e pertencente à africanidade,
ou seja a grande comunidade cultural do continente negro.
Por essa razão, sem dúvida, todos os novos países africanos sentiram a necessidade de reabilitarem a sua identidade cultural e consequentemente romperem com o legado
educativo alienante da época colonial.
Acontece que a educação tradicional não está vocacionada para responder às exigências da modernidade. Esse
não é o seu espírito e as elites africanas estão conscientes
de que o progresso só poderá vir das ciências e das técnicas adquiridas por empréstimos culturais, obtidos nesse
fundo comum de uma civilização planetária, que se vai
construindo.
Volvidos quase cinquenta anos sobre as independências, o problema da articulação entre tradição e modernidade continua a pôr-se com a acuidade de sempre, uma
vez que o Estado pós-colonial não soube resolvê-lo e até o
agravou com a sua falência. As próprias estruturas dessa
educação tradicional foram gravemente afectadas. A África
de vocação agrícola e autonomia alimentar perdeu-se com
os tropismos populacionais do campo para a cidade, perdeu-se nas politicas económicas erradas, nos meandros
das ditaduras, das ideologias e corrupções endémicas. Por
outro lado os Africanos tendo herdado das colonizações
modelos de cidades de tipo europeu, têm-se revelado
pouco capazes de as preservar e muito menos de as
desenvolver. Os camponeses e refugiados das mil e uma
guerras invadiram-nas e ruralizaram-nas. A degradação
urbana derivada do desencontro cultural deu por sua vez
origem a um convívio multi-étnico e promíscuo em que os
valores tradicionais mais positivos e fecundos se deterioraram pelo instinto de conservação. Disso resultou uma subcultura, a da sobrevivência, coabitando paredes-meias com
a sociedade de consumo e civilização técnica e industrial
subscritas pelas diferentes tribos políticas dos governos.
88
O encontro com a modernidade parece assim cada vez
mais longínquo e comprometido já com a lanterna vermelha
acesa por risco de inviabilidade, merecendo por isso a
designação de países em vias de desenvolvimento.
Contra o messianismo visionário apoiado na crença de
construir um Império, de fundar o espaço da Lusitanidade,
o tradicionalismo africano com base no princípio de que
toda a Criação é uma hierarquia centrada sobre o Homem,
continua a ser a manifestação quotidiana do humanismo
dos Africanos e as lutas de libertação e certas insurreições
como movimentos para a dignificação do homem africano
enquadram-se nesse eterno combate pela Afirmação pelo
Ser.
O diálogo entre o humanismo latino e o africano ainda
não se cumpriu e as partilhas foram insignificantes por conflitos de interesses. Mas para além de todos as contingências, tenhamos alguma fé numa globalização económica e
social contra as abissais assimetrias entre o Norte e o Sul,
esperando que ela seja fonte de uma nova forma de relacionamento entre os povos e de uma cultura de solidariedade e tolerância, um outro Renascimento, um novo
Humanismo à medida deste milénio.
Citações
(1) “Não faltam eminentes autoridades contemporâneas que afirmem
que os Portugueses nunca tiveram quaisquer preconceitos raciais dignos de
menção. O que as autoridades não explicam é a razão pela qual, nesse
caso, os Portugueses durante séculos, puseram uma tal tónica no conceito
de "limpeza” ou "pureza de sangue", não apenas de um ponto de vista classista mas também de um ponto de vista racial, nem a razão por que
expressões como "raças infectas" se encontram com tanta frequência em
documentos oficiais e na correspondência privada até ao último quartel do
século XVIII C.R. Boxer – "O Império Colonial Português" Edições 70, Lisboa,
p. 279 e segts.
– O Código Negro, editado por Colbert, em 1685 e que é uma espécie
de estatuto da escravatura, proibia a concubinagem entre Franceses e mulheres de cor mas permitia o casamento desde que a mulher se convertesse
ao catolicismo.
(2) O tráfico era considerado comércio honroso e tanto a Igreja Católica
como a anglicana não protestaram. Até se pretendeu justificá-lo com textos
do Antigo Testamento e com a necessidade de converter pagãos.
89
As primeiras exportações por mar têm lugar desde meados do século
XV, a partir de pontos de "resgate" estabelecidos na costa ocidental (Arguim
e Costa da Guiné).
(3) …”a filantropia insiste em esperar que a Bíblia, traduzida em bundo
ou em banto, converterá os selvagens; que a férula do mestre escola fará
deles homens”.
(4) Henrique Galvão: "Os Antropófagos" (1974).
(5) A própria Igreja Católica portuguesa perfilhava esse messianismo
pois que os seus bispos, em 1961, em assembleia plenária: "linha providencial da nossa história tornou-nos, desde há muitos séculos, instrumento do
Senhor na Evangelização de parte considerável do Mundo, na América, na
África, na Ásia, e até na Oceânia. E a Igreja tem confirmado sempre essa
missão (...) Nesta hora que o Ocidente parece ter perdido a consciência de
si mesmo (…) na subestima dos valores cristãos com abandono da sua defesa, Portugal é consciente da sua missão evangelizadora e civilizadora".
Transcrita por Adriano Moreira in "A Batalha da Esperança", Lisboa, s.d. (2ª
ed.), p. 64.
(6) "Os Africanos não souberam valorizar sozinhos os territórios que
habitam há milénios, não se lhes deve nenhuma invenção útil, nenhuma descoberta técnica aproveitável, nenhuma conquista que conte na evolução da
humanidade, nada que se pareça ao esforço desenvolvido nos domínios da
Cultura e da Técnica pelos europeus ou mesmo pelos asiáticos" Marcello
Caetano, "Os Nativos na Economia Africana", Coimbra, 1954, pp. 51 e 52.
90
DANIEL A. PEREIRA
Ministério dos Negócios Estrangeiros de Cabo Verde
A especificidade de Cabo Verde
no contexto colonial português
Considerações Preliminares
Gostaríamos, antes de mais, de agradecer à organização do Colóquio em geral, e à Faculdade de Letras da
Universidade do Porto, através do seu Centro de Estudos
Africanos, a oportunidade que me deram de estar aqui presente, partilhando com todos vós algumas reflexões sobre o
percurso histórico do meu país, Cabo Verde, naquilo que
tem de particular e lhe confere feição própria, no quadro do
colonialismo português, com os seus “encontros e desencontros” partilhados ao longo de cinco séculos de história
muito intensa e rica. O título da minha comunicação, “A
especificidade de Cabo Verde no contexto colonial português”, justifica-se, pois, perfeitamente.
Estou convencido de que, numa plateia como esta, o
debate que pode suscitar a apresentação do tema, certamente nos fará sair, a todos, um pouco mais enriquecidos
com a troca de informações, que sem dúvida se verificará
durante as discussões que terão lugar.
De igual modo, é minha mais profunda convicção de
que este Colóquio, que foi projectado sob o signo de total
abertura e sem quaisquer tipos de complexos, tal como
deixa entender o título temático do mesmo, e onde participam especialistas de tantos e tão diversos países, se constituirá num marco importante de debate académico de
ideias sobre tão importante matéria, que ainda incita um
cortejo de controvérsias, mal-entendidos e animosidades
entre os variados actores do processo em equação.
Ainda assim, ou talvez por isso mesmo, compartilho,
com Lídia Jorge, escritora portuguesa de renome, o princípio por ela expresso, numa recente reportagem publicada
pela Revista Visão, “Angola e Moçambique, Memórias de
África”, segundo a qual, “pode-se aprender com o passado,
mas não se pode repetir o passado”, o que interpreto como
91
significando que a história deve ser assumida integralmente e não contestada, como muitas vezes acontece.
Os Primeiros Momentos
No contexto do processo expansionista europeu,
começado na era de quatrocentos, e de que os portugueses foram, indubitavelmente, os grandes iniciadores, algumas ilhas atlânticas, como o arquipélago de Cabo Verde,
foram sendo, paulatinamente, achadas ou descobertas,
vindo a desempenhar um papel de extrema importância no
prosseguimento dessa empresa e que se viria a revelar,
pelo seu impacto e pelas transformações que engendrou,
como algo de transcendente para o mundo hodierno.
Segundo a tese oficial, as ilhas de Cabo Verde foram
descobertas entre 1460/62 por António de Noli e Diogo
Afonso.
Se bem que existam várias teses que se referem ao co-nhecimento do arquipélago cabo-verdiano antes da chegada dos portugueses, não falaremos delas por as considerarmos meramente académicas e simultaneamente irrelevantes para o que pretendemos demonstrar.
O certo é que à data da descoberta, as ilhas se encontravam desertas. Isso sim é para nós relevante, na medida
em que tudo teve de vir de fora, inclusive, portanto, o modelo de ocupação. Não houve que modificar nada previamente existente.
O documento mais antigo que se conhece sobre Cabo
Verde é a Carta Régia de 3 de Dezembro de 1460 pela qual
D. Afonso V doa as ilhas então descobertas ao infante D.
Fernando. Incluía essa doação, além dos arquipélagos da
Madeira e dos Açores, as cinco primeiras ilhas de Cabo
Verde descobertas por Noli, ainda em vida do infante D.
Henrique.1
Segundo a carta de privilégios, de 12 de Junho de 1466,
que o rei Afonso V concedeu aos moradores de Santiago, o
inicio do povoamento da mesma teria sido entre 1461/62.
Na verdade, o documento refere que “... haverá quatro anos
que ele (D. Fernando) começara a povoar a sua ilha de
Santiago que é através do Cabo Verde e que por ser tão
alongada dos nossos regnos a gente não quer a ela ir viver
senão com mui grandes liberdades e franquezas ...”2
Seria a distância razão suficiente para obstar ao povoamento? Em nosso entender não. Na verdade, as ilhas mos92
travam-se desde o inicio desfavoráveis à ocupação humana. Ademais, não apresentavam aquilo que os portugueses
buscavam – as especiarias, os metais preciosos, o comércio vantajoso para os seus próprios fins. Quer dizer, não
existiam riquezas que pudessem estimular a ida de colonos, nem culturas tidas por essenciais. Só os privilégios
especiais, outorgados através da Carta de 1466, tornou
possível o povoamento mais intenso. Apesar da distância,
da ausência transitória de culturas e a inexistência de riquezas.
Então, pergunta-se, que razões levaram ao incremento
do povoamento de Santiago a partir de 1466?3 Porque terá
a Coroa portuguesa aberto mão do monopólio dos tratos
dos Rios de Guiné, excepção feita a Arguim, que tão ciosamente guardara até então?
Convenhamos que a tarefa da ocupação do espaço
cabo-verdiano se iria revelar como algo ingente e de grande envergadura. Desguarnecida de qualquer espécie vegetal utilizável para a alimentação, houve que introduzir de
imediato as espécies agrícolas necessárias à subsistência
e, posteriormente, introduziram-se outras espécies originárias dos três continentes que os portugueses passariam a
frequentar.
Efectivamente, quando chegaram os portugueses, apenas encontraram tamarindos, urzela e dragoeiros e, além
destes, uma vegetação bravia que cobria a superfície das
ilhas.4
Tal como nas restantes ilhas do Atlântico, os produtos
que se experimentaram no início foram aqueles que eram
mais familiares aos portugueses como cereais de pragana,
vinha e oliveira. Mas os obstáculos impostos pelas condições climáticas, a escassa pluviosidade devido à
situação geográfica, ocasionava dificuldades à transplantação das bases alimentícias dos europeus e o seu modo
de vida.
Portanto, a agricultura não devia ser (como ainda não é)
tarefa fácil em Cabo Verde, dadas as características do seu
clima e do seu solo. Já Duarte Pacheco Pereira salientara
esse facto dizendo que só Agosto, Setembro e Outubro
eram meses chuvosos e que as ilhas eram “estéreis porque
vizinhas ao trópico de Câncer... São terras altas e fragosas
e serão más de andar”.5
93
Uma Situação Estratégica Privilegiada
Voltando à questão inicialmente levantada, qual teria
sido a motivação principal que levaria à necessidade, ao
imperativo da ocupação do espaço de Cabo Verde, designadamente da ilha de Santiago, que foi a que pareceu
menos desfavorável desde os primórdios?
A nosso ver, a situação geo-estratégica do arquipélago
determinou de imediato a obrigatoriedade do seu povoamento de modo a que, efectivamente, pudesse servir de
base de apoio logístico à navegação atlântica.
Tudo indica, na realidade que, seis anos depois da descoberta das ilhas e reconhecido os mares bem mais para o
Sul, foi essa a razão fundamental do seu povoamento. Não
havendo praticamente recursos locais, ou face ao seu reduzido valor, foi dada primazia às actividades do comércio e
da navegação. A importância das ilhas adveio, fundamentalmente, da navegação atlântica. Na frase lapidar de
Orlando Ribeiro, “a fortuna das ilhas dependeria essencialmente da importância da navegação atlântica”.6
Com efeito, face à sua posição geográfica, as ilhas de
Cabo Verde foram chamadas a desempenhar, desde o inicio da progressão dos portugueses em direcção à ponta
meridional da África, o papel de placa giratória no quadro
do abastecimento dos navios em água e viveres.
Mas mais do que isso, corroborando o que temos vindo
a expender, a importância de Cabo Verde passa a ser definitivamente reconhecida quando, pela primeira vez, o
mundo é dividido em esferas de influência. Referimo-nos,
naturalmente, à assinatura do Tratado de Tordesilhas a 7 de
Junho de 1494, após dilatadas conversações, cujas cláusulas principais reconheciam como pertencentes a Castela
todas as ilhas e terras descobertas para além do meridiano
passando 370 léguas a ocidente das ilhas de Cabo Verde,
com uma única excepção: Este limite era encurtado para
250 léguas a respeito dos descobrimentos que Colombo
viesse a fazer durante a sua segunda viagem, iniciada
antes da conclusão do acordo.
Como porto marítimo de passagem. obrigatória, Cabo
Verde viria revelar-se de importância capital no prosseguimento das viagens mais para o Sul. E a confirmar essa
asserção e sem pretensão de sermos exaustivos poderíamos apontar algumas referências, a nosso ver, bastante elucidativas.
94
Em 1497, a armada de Vasco da Gama, caminho da
Índia, lançou âncora na vila da Praia (Santiago) para se
abastecer em víveres e água.
Em 1500, Pedro Alvares Cabral, a caminho do Brasil,
escala Cabo Verde, da mesma forma que já antes, em 1498,
Cristóvão Colombo, durante a sua 3ª viagem, passou por
Ribeira Grande. Por seu turno, Sebastião del Cano, que
prosseguiu a viagem de circum-navegação, após a morte
de Fernão de Magalhães nas Filipinas, só teve a certeza
que tinha dado a volta ao mundo quando avistou Cabo
Verde, vindo do Sul, onde se deteve em 1522.
Mas o certo é que a importância das ilhas de Cabo
Verde foi diminuindo, ao longo de todo o final do século XVI
e mais ainda durante o século XVII, mais por causa da guerra de corso e de usura praticada por outras potências europeias emergentes, designadamente a Inglaterra, a Holanda
e a França, criando muita instabilidade no mar e em terra,
fazendo afugentar as embarcações com receio de ser
saqueadas, provocando a decadência económica das ilhas
face a esse estado de coisas.
Assim, apesar da importância das ilhas de Cabo Verde
como base de apoio logístico ter diminuído, significativamente, no decurso de todo o século XVIII e primeira metade do século XIX, elas ganham um novo alento com o aparecimento da navegação a vapor quando, a partir de 1850,
os ingleses criam uma estação de aprovisionamento, no
Porto Grande da ilha de S. Vicente, valorizando, uma vez
mais, a nossa posição geográfica, a meio caminho entre a
Europa, a África e a América do Sul. Bem entendido, o brilho de outrora esfumara-se completamente.
Por outro lado, a primeira travessia aérea do Atlântico
Sul, realizada em 1922 por Gago Coutinho e Sacadura
Cabral, concede de novo importância estratégica a Cabo
Verde. Mindelo, na ilha de S. Vicente, foi ponto de amaragem do hidroavião que transportou esses dois portugueses.
Aliás, toda a navegação entre a América do Sul e a Europa
e não só continua a utilizar o espaço cabo-verdiano.
Durante a II Guerra Mundial, as forças aliadas estiveram
na eminência de ocupar as ilhas de Cabo Verde caso o
General Romell conquistasse o canal do Suez. As razões
para tal são mais do que evidentes: controlar a Rota do
Cabo por onde teriam de passar os combustíveis do Médio
Oriente.
Não oferece, pois, contestação a importância e o papel
que o arquipélago cabo-verdiano desempenhou ao longo
95
da sua história com uma ênfase particular para os séculos
XV, XVI e mormente para a 1ª metade do século XVII.
A Primeira Globalização
Se é certo que Cabo Verde se encontrava situado no
cruzamento das rotas do Atlântico, menos verdade não é
que essa circunstância teria consequências que os homens
de quatrocentos sequer imaginariam.
Como já se verificou, constatada a importância geo-estratégica das ilhas de Cabo Verde e apesar delas não
disporem de condições mínimas iniciais para o seu povoamento, tudo se fará para manter a sua ocupação humana
de forma permanente e estável.
Introduzir-se-ão, para isso, os elementos essenciais à
vida do homem, permitindo minimamente a sua sobrevivência. Levam-se plantas e animais, numa primeira fase do
Continente fronteiro e de Portugal e, posteriormente, da
Ásia e do Brasil.
Desde então, o destino de Cabo Verde encontrar-se-á
indissoluvelmente ligado à dinâmica do Atlântico, elo entre
os continentes Europeu, Africano e Americano. Elo de
ligação mas também campo de experiências.
Como dizia, com propriedade, Orlando Ribeiro, Cabo
Verde funcionou como uma espécie de estação de experimentação, “um centro de concentração e de difusão de
plantas, animais e homens, como porventura nenhum outro
nos vastos territórios do mundo tropical”7.
Basta referir a esse propósito que, por exemplo, a cana
sacarina foi introduzida da que veio da Madeira para Cabo
Verde, daqui foi levada para o Brasil. O coco da Índia aclimatou-se nas ilhas e delas foi introduzido no Brasil. Da
mesma forma, o arroz que saiu do Continente africano e do
nosso arquipélago foi transplantado para o Brasil, assim
como inhame. Do Brasil recebe-se o milho, a abóbora, a
mandioca, depois transferidas para o Continente e para a
Europa. As primeiras vacas foram enviadas para o Brasil de
Cabo Verde. Encontram-se, por isso, representadas nas
ilhas de Cabo Verde, em maior ou menor escala, as espécies comuns da flora alimentar de quase todas as partes do
mundo.
Nestas circunstâncias, é também Orlando Ribeiro a concluir que, em Cabo Verde, os campos são mediterrâneos, na forma como são trabalhados, as plantas america96
nas e a alimentação africana, o que introduz o panorama
universal nas nossas ilhas. Universalidade que, como se
conhece, contribuiu, com o tempo, para conceder aos
cabo-verdianos feição própria, uma identidade específica.
Por seu lado, o povoamento das ilhas de Cabo Verde,
uma vez que as condições naturais eram pouco propícias,
foi lento e difícil. Por ser pobre e a população branca não
desejar ir para ali, com o fito de ultrapassar o problema da
falta de mão-de-obra para os trabalhos a empreender, recorreu-se à escravatura, transportando negros do Continente,
a partir de 1466, quatro anos após o início do povoamento
branco que, até ai, se mantivera ténue.
Este modo de actuação explicava-se através dos fundamentos morais e jurídicos, que estiveram na base das conquistas e da colonização portuguesas, permitindo aquilo
que, à luz da teologia medieval, se chamou guerra justa
“contra quaisquer infiéis assim mouros como gentios, ou
quaisquer outros que por algum modo negaram algum dos
artigos da Santa fé católica ...”8
Aliás, dando fundamentação legal a esse ideário, a Bula
Dum diversas (18 de Junho de 1452) do papa Nicolau V
concede ao rei de Portugal “o direito de conquista, isento
de quaisquer restrições, de todos os domínios territoriais da
mais variada categoria ao tempo na posse dos sarracenos,
pagãos, infiéis, e de quaisquer outros inimigos de Cristo
com a faculdade de os invadir, expugnar, subjugar, reduzir
seus habitantes a perpétua servidão, de os tornar enfim.
propriedade legítima do Estado português”9
Transformado, simultaneamente, num entreposto escravocrata, aprovisionando em força de trabalho o Brasil, as
Antilhas, o Caribe, entre outros, a partir de então e até à
abolição da escravatura em 1876, o peso sócio-económico
e cultural deste fenómeno foi algo marcante. Efectivamente,
a economia de Cabo Verde esteve, durante quase todo
esse tempo, indissociável do comércio de escravos, que
suportava os senhores locais e as finanças do arquipélago,
sobretudo no período áureo deste comércio para Cabo
Verde que vai até meados do século XVII, perdendo paulatinamente a sua importância a partir desse período.
Digamos que, grande parte da universalidade do
homem de hoje se deve um pouco a Cabo Verde, que
nunca foi, como a ilha de Goré no Senegal, uma simples
prisão de escravos. Funcionou mais como um centro de
“formação” e de “transformação” do escravo para o trabalho. Um verdadeiro centro de aprendizagem em exercício, o
97
que se convencionou chamar-se “ladinização”, na
utilização de novos meios e métodos de produção, mas
também de novos valores morais, particularmente os
cristãos, defendidos e aceites por uma significativa franja
da humanidade.10
Desponta a Nação
O facto de Cabo Verde ter estado, no transcurso da sua
história, no cruzamento das rotas do Atlântico e por se ter
verificado uma mistura de raças (europeia e africana), tal
situação provocou uma mestiçagem cultural mais ou menos
harmoniosa e diversificada onde as contribuições de uns
não se sobrepõem às dos outros, dando origem à universalidade dos seus padrões cultural e comportamental, sem
contudo abafar a sua identidade própria e especifica..
Temos igualmente presentes a grande influência desempenhada pela Igreja católica no seio das populações, base
da religiosidade cabo-verdiana, se bem que persistam
aspectos do sincretismo religioso em alguns aspectos da
nossa cultura.
Nem se pode esquecer também a língua cabo-verdiana,
ela ainda produto do cruzamento de culturas, que nasceu
bastante cedo em Cabo Verde de tal modo que, na segunda metade do século XVII, já era utilizada na catequese de
escravos que para ali iam e é hoje língua materna e nacional, falada por todos os cabo-verdianos sem excepção.
Como diria António Carreira, “o catolicismo imperante nas
ilhas desde tempos remotos, com todo o seu sincretismo, a
língua falada, os hábitos e os comportamentos sociais, a
ausência de divisões ou compartimentações étnicas de
qualquer tipo, constituem os grandes elos de unidade que
identificam o Cabo-verdiano”11
Portanto, paradoxalmente, a contrariar a dispersão geográfica, o fenómeno nacional em Cabo Verde, onde a
Nação precedeu o Estado, é algo que merece realce por se
tratar de um fenómeno raro em África.*
E a primeira questão que, desde já, pode surgir é a partir de quando podemos falar da existência da Nação cabo-verdiana. Para tal pergunta, no entanto, não dispomos de
uma resposta definitiva... Em nosso entender e dentro desta
perspectiva, o século XVII constitui para Cabo Verde um
século de viragem.
Com efeito, face ao abandono provocado pela decadência económica, é durante este período que os vários ele98
mentos constitutivos da cultura cabo-verdiana começam a
ganhar forma, a ter um corpo próprio, autónomo. Os séculos subsequentes serviriam para melhor alicerçar esses elementos, dando-lhes maior coesão e unidade.
Verifica-se também que a estruturação da cultura cabo-verdiana tem o seu inicio ou é marcada pela quase ausência física do elemento europeu (numericamente muito
pouco expressivo). Tal situação permanecerá praticamente
até aos finais do século XIX ou mesmo durante todo o 1º
quartel do século XX.
Por isso, no grande caldeirão em que a cultura de Cabo
Verde foi preparada, o século XVII merece uma referência
especial. Possivelmente, só a partir dessa altura as pessoas livres começaram a sentir as ilhas como a sua própria
terra. O tempo se encarregou de enraizar na mente dos
habitantes permanentes tal herança.
Daí, unidos na desdita, também ela factor aglutinador
dos habitantes, o apego muito especial do cabo-verdiano à
sua terra natal. Se do ponto de vista material ou físico,
quase nada o pode ligar ao seu torrão, dada a pobreza do
meio, de uma perspectiva psicológica, no entanto, é completamente diferente.
Na história da formação da Nação cabo-verdiana foi
extremamente importante o papel desempenhado pelo
mestiço, nado e criado nas ilhas. A razão de ser deste facto
deve ser buscada nas diversas vicissitudes históricas que
orientaram e definiram a colonização das ilhas.
Terra pobre e sem grandes atractivos económicos que
pudessem aliciar os potenciais colonos, os brancos reinóis
sempre puseram sérias reservas em para lá irem.
A recusa do branco reinol em ir para o arquipélago explica, em grande parte, a razão de ser da Carta Régia de
1466, verdadeira Carta de Foral dada aos moradores de
Santiago, que iria proporcionar o rápido povoamento de
Santiago e Fogo.
Iniciada a colonização dessas duas ilhas, seria ainda o
africano da costa fronteira e posteriormente o mestiço, produto do cruzamento do branco com a escrava negra, os
verdadeiros motores da colonização cabo-verdiana.
Quer dizer, o mulato cabo-verdiano cedo arcou com a
responsabilidade da colonização das ilhas e também teve
que assumir, e Portugal a isso anuiu, na ausência do branco, a administração das coisas de Cabo Verde.
Podemos, pois, afirmar que, já a partir do século XVII,
Cabo Verde, dentro dos circunstancialismos históricos mais
99
diversos que o têm rodeado (secas, fomes, sistema económico-social da escravatura, pirataria, esquecimento a que
foi votado, entre outros factores) tem sido obra de cabo-verdianos. Na verdade, o que apercebemos da história do
arquipélago autoriza tal conclusão.
Compreende-se, pois, a supremacia do mestiço, do
mulato, na sociedade e na formação social cabo-verdianas.
Aliás, tal como defende Gabriel Mariano, o que comprova a
nossa asserção, diferentemente do que sucedeu nos outros
territórios colonizados por portugueses, em Cabo Verde
“foram os negros e os mulatos os responsáveis directos na
estruturação da sociedade”12.
Por outro lado, numa sociedade patriarcal como foi a
cabo-verdiana, onde imperou por muito tempo a monocultura da cana sacarina e do algodão, grandes consumidores
de mão-de-obra escrava, o papel do meio físico e geográfico, a quase ausência do branco reinol, como elemento primordial de aglutinação social, levaram à democratização da
sociedade, à horizontalidade (embora com as suas variantes) social, onde ao mestiço “não molestavam os complexos
de inferioridade”.
As razões que temos vindo a expender explicam, de
algum modo, a ausência de racismo no meio social de
Cabo Verde. Ali, o económico será, desde cedo, factor de
promoção social, de “brancalização”. Assim se compreende que negros, pelo simples facto de usarem sapatos,
sejam tomados por brancos (século XVIII). Não será, por
isso, a coloração cutânea que definirá o status social, mas
a situação económica de cada um, com todas as contradições que a ideia enferma.
Mas é, também, em grande parte, à escravatura e à sua
persistência ao longo dos séculos, que devemos parte significativa da nossa especificidade, a nossa identidade. Sem
ela, as nossas características, enquanto povo, seriam bem
mais semelhantes às dos restantes arquipélagos que formam a Macaronésia, como sejam as Canárias, os Açores e
a Madeira. Em todos eles foram introduzidos escravos, que
acompanhavam sempre a produção da cana sacarina.
Diluíram-se, no entanto, completamente no seio da população branca e não há memória que tenham marcado as
suas sociedades. Mesmo em Portugal, cuja Lisboa quinhentista apresentava 10% de população negra, onde a
mão-de-obra escrava persistiu até 1763, essa população
diluiu-se completamente.
100
Portanto, a cabo-verdianidade, de que tanto falamos e
que tanto orgulho nos suscita, tem a marca indelével do
negro africano, na sua condição degradante de escravo,
dentro do qual abafaram muitas das suas melhores tendências criadoras e normais para se acentuarem outras artificiais e até mórbidas. Não se pode, pois, negar, nem esconder as influências negro-africanas na nossa cultura. Como
foram muitas e diversas as etnias que participaram nesse
processo, ao todo devem ter entrado nas ilhas, vindos dos
Rios da Guiné, como escravos, cerca de 27 grupos étnicos
e alguns subgrupos, o difícil é identificar quem é quem
nesse mosaico cultural que somos.
Porém, o facto de Cabo Verde ser hoje um nação mestiça, de raça e de cultura, não é isento de escolhos. A dificuldade em encontrar uma tipologia capaz de definir e identificar, claramente, os cabo-verdianos é motivo para alguma
incompreensão e mesmo para alguma desconfiança. A
navegar entre a incompreensão de uns e a desconfiança de
outros, situação provocada. pelo seu visível hibridismo cultural e étnico, o cabo-verdiano não pode senão assumir plenamente a sua história. Logo, assumir a cultura na verdadeira dimensão e complexidade, já que a sua identidade é
compósita, constituída por pertenças múltiplas, mas não
uma justaposição de pertenças autónomas. Como diz Amin
Maalouf, escritor libanês de renome internacional, a identidade “é um desenho sobre uma pele esticada; se se tocar
numa das pertenças, é toda a pessoa que vibra”.13
Resumindo
A ocupação do espaço arquipelágico cabo-verdiano,
pertencente ao chamado grupo da Macaronésia, que inclui
também os arquipélagos da Madeira, Açores e Canárias,
fez-se segundo a circunstância de as ilhas se encontrarem
desertas, por ocasião do seu descobrimento, seguindo o
modelo de então, já experimentado pelos portugueses na
Madeira e nos Açores, que era o das Capitanias-Donatarias.
A primeira fase da ocupação aconteceu em 1462, cerca
de dois anos depois da descoberta, com italianos e portugueses, mas manteve-se ténue até 1466, data a partir da
qual o rei Afonso V, reconhecendo a importância geo-estratégica das ilhas de Cabo Verde, para aliciar colonos brancos, abriu mão do monopólio do comércio escravocrata nos
chamados “Rios de Guiné”, área geográfica actual com101
preendida entre o norte do Senegal e o norte da Serra Leoa,
englobando, por isso, para além daquele país, a Gâmbia, a
Guiné-Conacry e a Guiné-Bissau.
Com o incremento do povoamento, Cabo Verde vai-se
transformar numa espécie de placa giratória da navegação
Atlântica, devido à sua localização geográfica, entre os
Continentes Europeu, Africano e Americano. Tornou-se também num centro redistribuidor de escravos, primeiro para a
Europa, depois para o Brasil e as Caraíbas. Do mesmo
modo, funcionou como uma espécie de estação de experimentação, nos trópicos, de homens, plantas e animais, no
dizer de Orlando Ribeiro, desempenhando um papel de primeiro plano no processo da universalização iniciado por
portugueses e espanhóis.
O sistema escravocrata introduzido na ocupação do
espaço cabo-verdiano, a ausência da mulher branca desse
processo, acabou por conceder feição própria à paisagem
humana em Cabo Verde, onde a miscegenação foi e é a sua
imagem de marca. Terra pobre e praticamente sem recursos naturais, a tarefa da colonização das nossas ilhas acabou por ficar sobre os ombros do mestiço, produto do cruzamento do colono branco e da escrava negra.
O abandono e o ostracismo a que as ilhas foram votadas desde cedo, a supremacia do mestiço na sociedade
em Cabo Verde e o peso social da escravatura e do escravo na formação social cabo-verdiana, onde entraram, no
decurso dos séculos, cerca de vinte e seis etnias diferentes,
a contrariar a dispersão geográfica, caldeou, paradoxalmente, o nascimento de uma nova cultura e marcou a nossa
diferença relativamente aos restantes elementos do grupo
Macaronésia a que pertencemos. Ganhámos, assim, identidade própria, com novos elementos agregadores, resultantes da amálgama cultural entre brancos e negros que se
processou no transcurso dos séculos.
Cabo Verde transformou-se, desde modo, no que é caso
muito raro, senão único em África, numa Nação antes de ser
Estado. Quer dizer, ao contrário do que normalmente acontece no nosso Continente, em que cabe ao Estado a árdua
tarefa da construção da Nação, em Cabo Verde, o Estado é,
ao fim e ao cabo, reivindicação e corporização da Nação
pré-existente, consubstanciados, por exemplo, no Nativismo
dos finais do século XIX, no Movimento Claridoso, iniciado
na década de 30 do século XX e, finalmente, na luta pela
independência nacional, conseguida a 5 de Julho de 1975.
102
Essa realidade não é de somenos. Ela é de relevância
transcendente e muito particular. Na verdade, pensar um país
em que o seu substrato populacional se revê num projecto
nacional que é de todos, porque pertencente a um mesmo
substrato cultural, constitui em si mesmo uma mais-valia de
grande peso, por isso mesmo de capital importância.
Sem embargo das nossas diferenças e especificidades,
relativamente aos restantes países africanos, tal não deve
constituir argumento de exclusão, antes pelo contrário. De
facto, é na nossa diversidade cultural, que bebeu em muitas fontes, que está a riqueza de Cabo Verde. Porque as
nossas raízes culturais são múltiplas, devemos, precisamente por isso, ter uma política de inclusão e não de
exclusão, já que a nossa proximidade em relação aos
outros e o processo de integração se tornam bem mais
fáceis.
Deve, todavia, alertar-se para algumas perigosas falácias,
que nos podem induzir em grave erro de perspectiva. Refiro-me, naturalmente, à ideia generalizada de que existe unicidade cultural em África como na Europa, o que não corresponde, de modo algum, à verdade. Essa ideia feita e transmitida vem fazendo escola no seio da sociedade cabo-verdiana e constitui um grave entrave no caminho da nossa
identificação como africanos, num mundo em integração,
onde o isolamento pode ser a nossa morte enquanto país
com referências próprias. Assim, permanecer na nossa ambiguidade cultural, poderá ter consequências cujo alcance não
estamos ainda em condições de poder medir, mas que terá,
certamente, os seus limites a médio e longo prazos.
Extravasando
Dizia que a integração é uma das características fundamentais do mundo de hoje. Essa realidade é inelutável e
irreversível. Como país africano, pequeno, arquipélago,
saheliano, a integração de Cabo Verde na nossa sub-região
e no Continente é não somente uma necessidade, como
também um imperativo estratégico. Não nos podemos
desenvolver no quadro da exiguidade do mercado cabo-verdiano. A nossa identificação deve ser assumida sem
qualquer tipo de ambiguidade, seja ela sociológica ou cultural, tanto mais que não existe nenhuma ambiguidade política quanto à nossa pertença ao lote de países africanos
como membros da ONU, UA, CEDEAO, PALOP.
103
Mas essa integração não pode, não deve ser considerada excludente, quer dizer, ser a única possível, em detrimento de outras possibilidades, que se podem equacionar
ou desenvolver em outros espaços geo-políticos ou geo-económicos. Daí também o nosso envolvimento com a
CPLP, Macaronésia e alguns mais que vierem a perfilar-se.
A inexistência de recursos exploráveis no solo cabo-verdiano e o défice de financiamento do nosso desenvolvimento
obriga-nos a um realismo político muito grande, a um enorme
pragmatismo na identificação dos nossos parceiros e na
mobilização dos meios necessários ao desenvolvimento do
país, capitalizando tudo o que for possível capitalizar, como
por exemplo, a nossa boa imagem externa e a nossa credibilidade internacional, como país sério na forma como gere os
recursos postos à disposição, e útil no concerto das Nações.
Tudo isso é possível, graças a nossa diferença e diferenciação positiva no contexto africano, marcado, infelizmente, por uma imagem de descrédito, desconfiança, má
gestão, corrupção, conflitos mortíferos, entre outros. E é
neste quadro que nos destacamos. E não nos deixemos
enganar, que a diferença não significa exclusão, até porque
África não é um conjunto uniforme, onde tudo se iguala ou
se nivela, como a Europa também não o é, ao contrário do
que nos querem fazer crer.
Concluindo
Quer nos parecer que os homens de quatrocentos, de
forma alguma, tinham a exacta consciência de que estavam
a transformar uma época, mormente que estavam a preparar a unificação do mundo.
O fenómeno nacional em Cabo Verde, por exemplo, é
um acaso da história. Aconteceu em circunstâncias que os
homens não podiam, de nenhum modo, controlar. Nesse
sentido, tal como dizia o poeta e ensaísta Gabriel Mariano,
e estou a citar de memória, “a Nação cabo-verdiana foi um
tiro que saiu pela culatra do colonialismo português”.
Seja como for, a diferença que marca o homem do passado e o do presente é que hoje ele tem a consciência de
que está a fazer história. E se não pode, por isso, corrigir os
erros do passado, pode ao menos evitar os do presente,
sobretudo quando estes podem, eventualmente, comprometer o futuro da humanidade.
104
A unificação do mundo, ou menos eufemisticamente, a
sua ocidentalização é uma constatação difícil de refutar.
Mas trata-se de uma medalha com dois versos.
Se bem que alguém já tenha afirmado que o homem é
incorrigível, mister se torna manter a esperança de que o
mundo de amanhã será, necessariamente, mais solidário e
menos egoísta. Não se pode continuar eternamente numa
situação de troca desigual entre os países industrializados
e os menos avançados.
Se os homens nascem livres e iguais, não vivem todos,
porém, a vida livremente e em igualdade, já que a dignidade da pessoa humana se encontra, muito frequentemente,
em causa entre a esmagadora maioria de países do mundo.
Por isso, fazer política hoje deve traduzir-se num exercício
de construção de pilares para uma sociedade que, tendo
por base as gritantes desigualdades existentes, tenha por
objectivo vencê-las.
Praia, 7 de Janeiro de 2003
BIBLIOGRAFIA
BARCELOS, Cristiano José de Sena – “Subsídios para a história de Cabo
Verde e Guiné”, Parte I, Tipografia da Academia Real das Ciências de
Lisboa, 1899.
BRÁSIO, Padre António – “Monumenta Missionária Africana” (África
Ocidental), 2ª série, Vol. I (1342-1499), A.G.U., Lisboa, 1958.
– “Evangilização Ultramarina”, In Dicionário da História de Portugal –
CARREIRA, António, Apresentação, Notas e Comentários – “Notícia
Corográfica e Cronológica do Bispado de Cabo Verde”, Edição do Instituto
Caboverdeano do Livros, Lisboa, 1985.
MARIANO, Gabriel – Do funco ao sobrado ou o mundo que o mulato
criou”, In Colóquios Cabo-verdianos, nº 22, de Estudos de Ciências Políticas
e Sociais, Lisboa, 1959.
MAALOUF, Amin – “As Identidades Assassinas”, 2ª Edição, DIFEL,
Lisboa, 2002.
PEREIRA, Daniel A. & Tomé Varela da Silva – “Condicionalismos histórico-culturais da formação da Nação cabo-verdiana”, In A Construção da
Nação em África-Os Exemplos de Angola, Cabo Verde, Guiné Bissau,
Moçambique e S. Tomé e Príncipe”, INEP, Bissau, 1989.
– “Ribeira Grande de Santiago – uma nascente”, Comunicação à III
Bienal do Livro e da Cultura dos Países Africanos de Língua Portuguesa,
Praia, Outubro/99 (Dactilografado).
PEREIRA, Duarte Pacheco – Esmeraldo de Situ Orbis”, por R. Mauny,
Memória, nº 19, do CEGP, Bissau, 1956.
RIBEIRO, Orlando – “A Ilha do Fogo e as suas erupções”, Memória da
série Geográfica, J.I.U., Lisboa, 1964.
– “Aspectos e Problemas da Expansão Portuguesa”.
– “Primórdios da ocupação das ilhas de Cabo Verde”, In Studia, vol. X,
1962.
105
Notas
(1) Brásio, P.e António - “Monumenta...”, 2ª série, vol. I, Doc. 56.
(2) Barcelos, Senna - “Subsídios para a História de Cabo Verde e Guiné’’,
Parte I.
(3) Lembramos que quando os primeiros franciscanos chegaram a
Santiago (1466), acharam a terra “... destituída de povos, exceptuando
alguns genovezes, que mais tratavam de colher algodão pelo mato”.
Barcelos, “Subsidíos...”, Parte I, p. 28.
(4) Ribeiro, Orlando - “A ilha do Fogo e as suas Erupções”, p. 85.
(5) “Esmeraldo de Situ Orbis” p. 102.
(6) “Aspectos e Problemas da Expansão Portuguesa”, p. 142.
(7) “Primórdios da Ocupação das Ilhas de Cabo Verde”.
(8) Brásio, P.e, “Evangelização Ultramarina”, D.H.P., vol. II. p. 141, coluna 2.
(9) Idem, Ibidem, p. 143, coluna 1.
(10) Pereira, Daniel A., “Ribeira Grande de Santiago – uma nascente”
(11) “Notícia Corográfica do Bispado de Cabo Verde...”, Apresentação,
notas e comentários por, pp. 11-12.
* ”A história e cultura são os dois elementos mais importantes da coesão
e da unidade nacional. Todavia, história e cultura constroem-se, produzem-se no dia a dia da vivência de uma determinada comunidade. Naturalmente
que existem, ou acontecem, certas condições que influenciam decisivamente o percurso de uma dada comunidade. Quando de tais condições resulta
algo que identifica todo um conjunto socio cultural, porque a marca do tempo
se encarregou de solidificar e estruturar esse algo, passando a constituir uma
herança (património) com a qual todos se identificam e na qual todos se projectam, então temos Nação.
Nem sempre, no entanto, a consciência desse facto se encontra desperta. Com efeito, no caso cabo-verdiano, podemos dizer que durante séculos Cabo Verde foi Nação antes de ser Estado. Tal situação que aparentemente parece ser contraditória não o é de facto, na medida em que, nas condições históricas em que a Nação cabo-verdiana se formou e que perduraram durante séculos, não era possível que ela se projectasse e se transformasse em Estado soberano e independente. Para que tal acontecesse seria
preciso esperar pelo século XX”. (Daniel A. Pereira & Tomé Varela Silva,
Condicionalismos histórico-culturais da formação da Nação cabo-verdiana,
in “A Construção da Nação em África, Os exemplos de Angola, Cabo Verde,
Guiné-Bissau, Moçambique e S. Tomé e Príncipe”, INEP, 1989, pp. 171-187.
(12) “Do funco ao sobrado ou o mundo que o mulato criou”.
(13) “As Identidades Assassinas”, 2ª Edição, p. 36.
106
OUMAR SANKHARE
Département de Lettres Classiques
Université Cheikh Anta Diop de Dakar (Sénégal)
La culture gréco-latine dans l’œuvre
de Léopold Sédar Senghor
«Mère, respire dans cette chambre
peuplée de Latins et de Grecs
l’odeur des victimes vespérales de mon cœur».
Ce verset d’Hosties Noires nous plonge d’emblée au
cœur même des humanités gréco-latines où le poète nègre
s’est abreuvé. L’agrégé de grammaire, professeur de lettres
classiques, a toujours éprouvé un fol amour pour le latin et
le grec. Son couvre entière respire ce parfum antique de la
Grèce et de Rome. Aussi voudrions-nous souligner les raisons de cette passion avant d’examiner l’influence que les
anciens ont exercée sur son activité politique et son couvre
poétique.
1. Le goût des humanités gréco-latines
Pour Senghor, le latin est à la source de nombreuses
langues européennes dites langues romanes comme l’italien, le roumain, le portugais, l’espagnol, le français. Étudier
le latin, c’est donc acquérir du vocabulaire et perfectionner
sa syntaxe française. Naturellement, le théoricien de la francophonie ne pouvait pas être insensible à ces qualités
grammaticales que procure l’apprentissage du latin. De
plus, l’esprit de rigueur, le goût de l’effort et de la persévérance, l’organisation et la méthode sont des atouts importants qui ne peuvent être acquis qu’à travers le latin et le
grec. Ce sont en outre des langues dans lesquelles sont
écrits de nombreux textes sur l’histoire de l’Afrique. Homère
évoque dans l’Odyssée les Éthiopiens qui sont un peuple
très hospitalier. Hérodote nous peint la riche civilisation de
l’Égypte ancienne dans ses Enquêtes. Le géographe
Strabon nous décrit les pays et les hommes du continent
noir. La latin et le grec sont également les langues d’auteurs
africains comme Térence, Saint-Augustin, Tertullien.
107
Il est donc possible de dire que les langues classiques
sont des vecteurs de la culture africaine. En témoigne le
Révérend père Mveng, auteur des Sources grecques de
l‘historie africaine, d’Homère à Strabon.
2. L’homme politique
Durant son mandat à la tête de l’État sénégalais, il a toujours considéré l’éducation nationale comme l’élément
moteur du développement. Par décret présidentiel, il avait
rendu le latin obligatoire en sixième et avait autorisé l’expérimentation de la nouvelle méthode Africanè latine discunt
qui constituait une nouvelle pédagogie pour l’enseignement
du latin en Afrique. Aussi, dans tous les ordres d’enseignement, les latinistes jouissaient de nombreuses faveurs et des
bourses entières leur étaient accordées soit au Sénégal, soit
à l’étranger. Les lauréats qui étaient primes en latin et en
grec au Concours Général et ceux qui réussissaient dans
les disciplines classiques faisaient l’objet d’une attention
particulière auprès du Chef de l’État. C’est du reste luimême qui était le président d’honneur de l’Association des
Professeurs de Lettres Classiques. Cet amour du latin a culminé avec l’invitation qu’il avait adressée aux membres de
l’Academia latinitatis inter omnes gentes fovendae de venir
tenir leur congrès à Dakar, en 1977. A cette occasion, il présenta une brillante communication où il démontrait la place
privilégiée que les Anciens Latins accordaient aux Africains
aussi bien sur le continent noir qu’à Rome même.
On le voit, Senghor n’a eu de cesse de développer et de
promouvoir l’enseignement du latin au Sénégal.
3. Le président-poète
Quant à sa poésie, elle s’inspire particulièrement des
auteurs anciens.
Senghor nourrit un fol amour pour les filles d’Homère.
Cette passion apparaît tantôt dans le goût du poète pour
les épithètes homériques et les comparaisons empruntées
aux éléments de la nature, tantôt dans l’usage d’expressions
épiques tantôt dans l’invocation des Muses.
La descente aux enfers de l’Elégie pour Martin Luther
King demeure assurément la manifestation la plus éclatante
du souffle homérique. Inspirée du Chant XI de l’Odyssée,
108
cette évocation des morts se situe comme chez Homère au
coeur même des Élégies Majeures. Le poète s’y rend dans
l’au-delà en suivant la voie que lui indique la voix.
De même, Ulysse se laisse guider par les conseils de la
magicienne Circé à la porte de l’Hadès.
Le même climat infernal dans lequel baignent l’Odyssée
et les Élégies Majeures caractérise l’Énéide de Virgile. Au
Chant VI de l’épopée virgilienne, Énée accompagné de la
Sibylle de Cumes, gagne les Enfers pour rendre visite à son
père Anchise. Il contemple la glorieuse postérité de la Rome
future, de Romulus jusqu’aux 2 Marcellus, de même que
Senghor voit défiler les âmes des grands hommes de
l’Amérique, de Georges Washington aux deux Kennedy.
Surgissent aussi dans la même laisse des réminiscences platoniciennes sur l’âme qui se sépare du corps à la
mort pour quitter le Monde Sensible et s’élever vers le
Monde intelligible.
«Son âme s’envolait, colombe diaphane qui monte».
Dans le poème consacré à Carthage, l’auteur, tout au long
de la seconde strophe, réécrit le Chant VI de l ’Énéide qui
évoque les amours fatales d’Enée et de Didon. Énée, le
«dieu blanc» que cette reine de Carthage avait préféré à la
sombre splendeur de l’Africain larbas, fils de Garamantis, se
montra infidèle. Il abandonna Didon en prétextant la mission
que lui avaient confiée les dieux aryens d’aller fonder Rome.
Le suicide auquel l’amoureuse trahie se livra a mué le chant
de sa douleur en un chant de deuil. Quant à la troisième partition de l’Élégie pour Carthage, elle porte la marque de TiteLive. L’oeuvre de cet historien latin développe longuement
les trois guerres qui ont opposé Rome et Carthage, et. que
les poètes considèrent comme l’accomplissement des
imprécations de Didon contre la descendance d’Enée, à
savoir les Romains. Tite-Live célèbre avec magnificence le
général africain Hannibal, fils d’Hamilcar Barca, qui «fut
bien prêt de crouler la puissance du Nord». Ce héros
sombre et sans ombre succomba vaillamment à l’impérialisme romain. C’est la figure de Salluste qui se profile dans la
strophe VI consacrée à Jugurtha. L’écrivain a en effet relaté
les péripéties de «la guerre que le peuple romain mena
contre Jugurta, le roi des Numides» le héros à la vision puissante d’une Numidie bien numide.
La mythologie grecque réapparaît dans l’Elégie pour
Philippe Maguilen Senghor qui constitue un chant funèbre à
la mémoire du dernier fils du poète. Après la description
idyllique du bonheur que distillait la présence de l’enfant, le
109
poème dépeint le choc ressenti par les parents à l’annonce
du drame. Alors retentit ce douloureux gémissement du
père qui rappelle à la mère
«Et fleur vaporeuse soudain tu tombas dans mes bras
Et lianes nous enlacions l’enfant de l’amour, absent et
beau comme Zeus l’Éthiopien».
Zeus l’Éthiopien traduit en effet la formule grecque Zeus
Aïthiops que le poète Lycophron utilise pour qualifier le dieu
vénéré à Chios. Toutefois, cette épithète polysémique est
susceptible de multiples interprétations.
Le terme ethnique Azthiops désignait chez les Grecs
l’homme noir dont la peau semble être brûlée par le soleil à
cause de sa proximité. Le qualificatif s’expliquerait par le fait
que le dieu consumé sans cesse par la foudre qui est son
attribut avait fini par ressembler à un nègre.
Par ailleurs, de ce vocable, il existe un paronyme homérique, Aïthops, qui signifie «à l’aspect brûlé». A la suite
d’une confusion entre ces deux adjectifs, l’expression rapprocherait la fulguration de Zeus et la couleur sombre du
noir. On comprend donc aisément pourquoi Senghor, le
théoricien de la négritude, a été tout naturellement amené à
employer cette dénomination si flatteuse pour la race noire.
Qui plus est, les dieux grecs avaient tissé de profondes
relations avec les Éthiopiens. Le pays apparaissait comme
une terre d’abondance où Zeus était souvent invité pour des
banquets.
En définitive, la culture classique constitue le terreau
dans lequel s’informe l’écriture senghorienne. Les multiples
références à la littérature et à la mythologie anciennes, tout
en conférant à l’œuvre une facture savante, illustre d’une
manière éclatante le thème de la Civilisation de l’Universel.
110
ELVIRA AZEVEDO MEA
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto
(Portugal)
Abolição do tráfego de escravos:
a comissão luso-britânica da Boa Vista
um Humanismo peculiar
No dealbar do século XIX a questão do abolicionismo
caiu em Portugal como uma bomba relógio, que, apesar de
todas as pressões e consequentes atitudes de aparente
aceitação, se pretendeu neutralizar ou, pelo menos, avariar
ou retardar. Com efeito, até praticamente ao tratado de 1810
os portugueses estavam completamente de fora desta problemática, pelo que, mesmo a alto nível, se pensou que o
compromisso era meramente teórico.
Assim, em 1807, o ministro dos Negócios Estrangeiros,
Araújo de Azevedo, referia que não obstante a abolição ser
uma questão de humanidade, o certo é que se se concretizasse seria a ruína “certa e incalculável” do Brasil, pelo que
se resolvia com “melhorar o trato dos escravos no Brasil”, já
que, em seu entender, os portugueses eram superiores aos
outros relativamente ao transporte e tratamento dos escravos.
Aquando do tratado e numa memória que o acompanhou, explicitou-se que o artigo sobre o abolicionismo era
tão só “a expressão dos sentimentos humanos do... Real
coração.” Na realidade o escravismo era algo há muito
enraizado na sociedade portuguesa, que, não esqueçamos, no início do século XIX continuava isolada do resto da
Europa, sujeita a uma censura, a braços com problemas
próprios, e portanto, perfeitamente estranha à problemática
do abolicionismo. Aliás, ao longo do tempo tinha-se construído toda uma série de justificações para a aceitação do
escravismo, inseridas na própria cultura cristã e mesmo as
vozes desgarradas que tinham pregado contra a escravatura, como o Padre António Vieira (1633), Ribeiro Sanches
(1782) ou Azevedo Coutinho, bispo de Pernambuco (1808),
no fim tinham encontrado razões para a situação, quer fossem de natureza religiosa, como no caso de Vieira ou na
própria concepção duma África bárbara e antropófoga,
111
devoradora dos seus próprios filhos, segundo Coutinho,
uma ideia comum na época aceite pelos próprios abolicionistas.
Daí que o compromisso inserto no artigo 10º do tratado
de amizade entre Portugal e a Inglaterra de 1810 passasse
despercebido, não fosse suficientemente avaliado, como se
nota nas afirmações do príncipe D. João “plenamente convencido da injustiça e da má política do comércio de escravos”, pronto, portanto, para colaborar nessa causa da
humanidade “adoptando os mais eficazes meios para conseguir em toda a extensão dos seus domínios uma gradual
abolição.” Manteve, porém o direito de tráfico entre as colónias africanas portuguesas.
Assim, a má percepção da conjuntura continuou, apesar
dos navios portugueses apresados, do descontentamento e
protesto no Brasil e das contínuas e inúteis advertências do
embaixador em Londres, Domingos de Sousa Coutinho, no
sentido do governo dever dar mais atenção ao problema, e
demonstrar colaborar minimamente com Londres, já que
havia que acalmar os “filantropistas” e os fanáticos abolicionistas, sugerindo algumas medidas que demonstrassem
o interesse português numa “gradual” abolição.
Entre outras, o embaixador tomava [“igualmente a liberdade de observar que a referida gloriosa lei do Senhor D.
Pedro II devia ser ampliada pois o número de escravos que
ela consente que se embarque parece demasiado (...); a lei
de Jorge III em 1789 exactamente fixava o número à metade.” Sugeria também que se estabelecesse no Brasil um
imposto sobre os escravos de luxo ou urbanos. Na sua opinião, os ingleses “estariam mais dóceis se vissem que Sua
Alteza dava, de seu, alguns passos para a gradual abolição; mas que, vendo que nada se fazia senão por tratado
e constrangimento, isto os irritava e enfurecia. Tendo, talvez,
em mente, o exemplo dos inquéritos em devido tempo efectuados pelo Parlamento britânico, Funchal sugeria que
fosse dirigida “por pessoas conhecidas pela sua instrução
e luzes, porque reflectiria uma grande honra ao soberano.”]
Esta atitude mais de subserviência que de conciliação,
sugeria cedências que não se concretizaram porque a
deterioração das relações entre os dois países determinou
uma ingerência cada vez maior da Inglaterra na política portuguesa, empecilhando desde o desejo de expansão brasileira para a região platina, ao projecto de união ibérica, à
própria constituição dum novo governo, demasiado francófilo para os interesses britânicos. Com efeito Araújo
112
Azevedo passou para a situação oposta, adoptando uma
atitude de confronto do mesmo modo prejudicial para os
interesses portugueses, tanto mais que a guerra na Europa
não permitia qualquer tipo de apoio internacional.
O reforço da posição cimeira da Grã-Bretanha e a
necessidade crescente de Portugal poder contar com o
apoio da velha aliada para manter na íntegra os seus territórios determinaram novas e importantes cedências consignadas na convenção e tratado de 1815 e na convenção de
1817, onde, no primeiro caso, Portugal se comprometia a
abolir o tráfico de escravos a norte do Equador, limitando-se
o comércio do sul a servir única e exclusivamente as possessões portuguesas, ao mesmo tempo que em colaboração com a Inglaterra tomaria as medidas necessárias
para concretizar a abolição no hemisfério norte.
Em 1817, numa perspectiva ainda mais favorável para a
Inglaterra, já com o Brasil elevado a reino e a crise de
Montevideu, Portugal teve de ceder ainda mais, aceitando
o direito de visita recíproco e a criação de duas comissões
mistas, sediadas no Brasil e na Serra Leoa, para julgamento rápido e sem apelação das infracções à legislação sobre
o tráfico.
Portugal foi, portanto, o primeiro país a fazer cedências
na sua soberania política, tanto mais quanto havia a plena
consciência da impossibilidade da reciprocidade por falta
de meios, ao mesmo tempo que foi pressionado para, finalmente, legislar o conteúdo do primeiro tratado, pelo que
data só de 1818 um alvará em que se proibia o tráfico a
norte do equador com penas pesadas para os infractores
(cinco anos de degredo em Moçambique, confisco dos barcos e dos escravos).
De notar que durante este período a limitação crescente de capacidade de negociação se deveu ainda à incompreensão do governo do Rio que insistia em iludir o problema quando a estratégia defendida pelo embaixador
Palmela (sobrinho do embaixador Sousa Coutinho) era
aproveitar a política legalista britânica e firmar rapidamente
acordos exaustivos que permitissem defender o comércio
lícito de escravos e a própria navegação portuguesa.
Graças a Palmela Portugal foi o único a conservar um
comércio lícito de escravos a sul do equador.
A revolução liberal e a independência do Brasil modificaram muita coisa, a começar pela política abolicionista
inglesa, que tendo-se dado conta do impasse em que caíra,
procurava novas soluções, dificultadas pelo próprio pro113
gresso económico britânico, que, nalguns casos, como na
década de vinte, no Brasil e Cuba, dava apoio ao iníquo
comércio através do crédito e investimento de capitais.
Por seu turno a pressão do abolicionismo popular, incentivado pela acção da Anti-Slave Society exigia maior eficácia
com uma Grã-Bretanha a liderar o concerto das nações
para, duma vez por todas, pôr fim a uma situação vergonhosa para todos os povos civilizados.Portugal quis aproveitar a forte pressão inglesa sobre o Brasil para acabar com a
comissão mista da Serra Leoa, deslocando-a para Cabo
Verde, pois o sistema inglês possibilitava “o recrutamento de
pretos sem despesa nem incómodo”, canalizando assim os
escravos libertos dos apresamentos para o arquipélago,
sempre falho de gente, provavelmente também tentando dar
uma certa visibilidade aos seus comissários que na Serra
Leoa nunca participavam nas decisões e julgamentos.
Por outro lado o Brasil independente anulava a
excepção portuguesa no comércio de escravos no hemisfério sul, situação que Palmela quis evitar a todo o custo,
alegando, primeiro, que isso seria uma aceitação tácita da
independência do Brasil, depois, que sendo manifestamente prejudicial à economia brasileira, poderia provocar retaliações nos portugueses lá residentes.
Por estas e outras razões foi-se avolumando a ideia do
toleracionismo sobre o abolicionismo, a que não foi alheia a
questão do novo interesse pelas colónias africanas portuguesas, como S. Tomé, onde a mão-de-obra escrava era
imprescindível, ou os casos de Angola e Moçambique,
cujos maiores rendimentos provinham dos direitos de
exportação de escravos. Do mesmo modo era cada vez
mais aceite a concepção de que, dado o carácter intrinsecamente bárbaro dos africanos, o tráfico de escravos era,
afinal um mal menor.
Com o aumento do tráfego negreiro para o Brasil, a partir dos anos vinte, é óbvio que Portugal foi de novo o centro
do antagonismo abolicionista, até porque se sabia que os
grandes negreiros que operavam no Brasil eram portugueses, a começar pelo próprio cônsul, João Baptista
Nogueira, sendo, naturalmente também, o pavilhão português o mais hasteado nos tumbeiros em curso.
Estabilizado o regime liberal, o governo inglês iniciou
toda uma ofensiva diplomática para acabar com a situação,
cabendo aos setembristas fazer tudo o que foi possível para
demonstrar aquiescência e colaboração de modo a não
mudar nada ou quase nada. Tornava-se urgente uma nova
114
legislação seguida duma execução real, que foi sendo adiada em função das mudanças governamentais constantes e
da tradicional divergência de perspectivas entre os ministérios da Marinha e dos Negócios Estrangeiros.
Em Dezembro de 1836 foi aprovado o decreto do ministro Sá da Bandeira, em que se consignava a proibição de
exportação de escravos em todos os territórios portugueses, muito aquém do projecto apresentado enquanto deputado, todavia, dados estes antecedentes, incluindo a sua
passagem pelo ministério da Marinha, parecia um bom
ponto de partida para um tratado. Todavia as expectativas
britânicas não se concretizaram, pois Sá da Bandeira apresentou um contraprojecto onde se pretendia acabar com as
comissões mistas, cabendo apenas às instituições jurídicas
portuguesas o julgamento de infracções, limitar o âmbito do
anterior direito de visita, canalizar os escravos libertos para
possessões portuguesas, não deixando qualquer margem a
modificações. Via-se claramente que Sá da Bandeira queria
que a abolição do tráfico e sua repressão dependesse
única e exclusivamente de Portugal, sem intervenção de
terceiros, nomeadamente da interferência inglesa.
Iniciou-se então todo um moroso processo entre a
Inglaterra e Portugal, um diálogo de surdos, ou melhor,
como o designou o marquês de Fronteira “um negócio
embrulhado” em que Sá da Bandeira seguiu uma política
imediatista, aos ziguezagues, de molde a não adiantar
muito, dados os custos políticos que o pretenso tratado
acarretaria.
Na fina análise do especialista João Pedro Marques: “Ao
tomar a iniciativa de abolir “espontaneamente” o tráfico de
escravos em Dezembro de 1836, o ministro português procurara escapar à pressão britânica através de uma fuga
para a frente, mas a inoperância dessa fuga, realizada sem
verdadeiro suporte político, expusera-o – e ao país, que o
não seguira – a pressões britânicas redobradas. Sá da
Bandeira estava agora praticamente emparedado entre o
quase ultimatum de Palmerston, o seu desejo de proceder
a uma supressão controlada e a resistência de uma parte
significativa dos seus apoiantes políticos.
Não foi, portanto, apenas a pressão dos traficantes que
obstou à assinatura do tratado. Foi a pressão deses traficantes, mais a dos anti-britânicos e a dos toleracionistas,
uma coligação de vontades (ou de más vontades) demasiado ampla para ser afrontada pelo chefe do governo
setembrista.
115
Assinar o tratado equivaleria a virar conta si uma frente
de antiabolicionistas activos (que manobravam na imprensa, nos clubes, na administração), de toleracionistas alarmados com a projecção fantasmática de descalabro colonial e de puros e simples anti-britânicos. Mas não assinar, e
assumir frontalmente que o não faria, significava reconhecer
à face do mundo que o decreto de 1836 fora um mero artifício, que não correspondia a um propósito sério de suprimir
o tráfico, e conceder à Inglaterra a legitimidade para actuar
por si própria contra os navios negreiros portugueses a sul
do equador. A única forma de conciliar tudo – até mesmo o
seu eventual e ilusório receio de perda colonial, se admitirmos a hipótese mais improvável da auto-ilusão – passava
pela admissão da assinatura do convénio em termos extremamente favoráveis, isto é, na condição de obter dos
Ingleses a garantia da integridade territorial das colónias e
a promessa de ajuda militar por tempo indefinido, opípara
concessão que apaziguaria e desarmaria a oposição toleracionista que Sá sabia existir na rua, no governo e nas
Cortes. E, porque o parecer de Gomes de Oliveira, dramatizando a situação colonial, lhe fornecia o pretexto e a argumentação para se agarrar a essa última bóia de salvação
política, o ministro português tê-lo-á seguido fielmente”.
Apesar de se ter encetado em 1839 um certo envolvimento naval na perseguição ao comércio escravista, a
decisão foi demasiado tardia, acabando a situação por escapar totalmente ao controlo português, pelo que em 1842 foi
inevitável a assinatura do tratado, onde, além da abolição
definitiva do tráfico de escravos (consignada no projecto
inglês de 1838), o delito era considerado equivalente a pirataria, portanto sujeito à pena mais severa “imediata à de
morte”, alargando-se a condenação a todos os navios que
mesmo sem escravos ou equipamento para os transportar, o
tivesse feito durante a viagem em que eram interceptados.
Criou-se então também no âmbito do tratado a comissão
mista da Boa Vista (Cabo Verde), a fim de controlar e julgar
os processos instaurados aos navios apresados no tráfico
da escravatura em toda a área envolvente até à zona da
outra comissão mista da Serra Leoa. A comissão instalou-se
solenemente em Junho de 1843, tendo como comissários,
primeiro, John Rendall (cônsul britânico em Cabo Verde),
depois H.W. Macauley e o capitão de fragata Ladislau
Benevenuto dos Santos, sendo árbitros Charles Pettingal
Esquire e o médico Hipólito José Xavier de Almeida e o
secretário José António Martins.
116
Ao analisarmos algumas fontes documentais relativas a
esta comissão, nomeadamente a correspondência com as
autoridades locais (1843-1847), pretendemos saber qual foi
o seu desempenho nas tarefas atribuídas e o seu papel na
sociedade de então, sobretudo no que diz respeito à
questão da escravatura.
Logo de início não parece ter sido boa política fazer o
cônsul Rendall acumular o cargo com o de comissário,
dado que não conseguira ter boas relações com os naturais
nem com as autoridades locais, como se constata da
correspondência trocada, por exemplo, em 1841 com o
governador geral, João de Fontes Pereira de Mello, em que
o cônsul pedia satisfações pelo ultraje e humilhações sofridos pelo comandante e oficiais do brigue Fermagaut que na
Praia se envolveram em desordem com a tripulação de
duas escunas espanholas, que pretenderam tomar, tendo
morrido um inglês.
Rendall não perdeu a ocasião para um pequeno remoque relativo à inoperância do governador perante os navios
usados no tráfego de escravos que passavam pela Praia.
Fontes Pereira de Mello apesar de referir que se reserva
“para responder ao seu contheudo quando o governo de
Sua Magestade Fidellissima assim o determine”, não deixa
de esclarecer a escassa informação do cônsul, visto que
durante o seu mandato foram apreendidos, processados e
julgados pelo tráfico negreiro, o brigue espanhol Ensaiador,
a escuna espanhola Nova Constituição (falsamente sob
bandeira portuguesa), a escuna Ariete apreendida no rio
Bissau, o brigue americano Boxer sob suspeita não confirmada e ainda outras duas escunas espanholas que, não
obstante os esforços da escuna de guerra Cabo Verde não
se conseguiu interceptar.
Acrescenta ainda que a comissão mista da Serra Leoa
tinha declarado “haver n’estes ultimos tempos diminuido consideravelmente o tráfico da escravatura”, o que o tornava
quanto ao assunto um homem despreocupado. Note-se que
ainda durante esse ano de 1841 foi apresada a escuna portuguesa D. Maria II na zona de Bissau também devido à
acção do governador, o que, aliás, acontece sempre, mesmo
durante a existência da comissão mista anglo-lusa, como
sucedeu em 1844 com a escuna brasileira Fortuna.
Nesse aspecto a comissão falhou, pois mesmo havendo
uma efectiva diminuição do tráfico, como vimos, não desapareceu. Na realidade e no período considerado, parece-nos que a comissão não desempenhou minimamente a
117
tarefa para que fora incumbida, pois logo de princípio, os
ingleses tomaram o comando da situação, decidindo,
fazendo e desfazendo sem muitas vezes darem conhecimento aos parceiros portugueses, que, pela documentação
que vimos, parecem ter-se acomodado ao papel, tal como
acontecia na Serra Leoa.
Em conformidade com essa situação, notámos que o
comissário Macauly privilegiava sempre os seus próprios
assuntos, a começar pela sua comodidade, muito complicada e difícil de atingir.
Ao longo de cerca de cinco anos deparámos apenas a
interferência de Macauley num caso que de certo modo
ultrapassava o âmbito das competências da comissão,
todavia justificável pela sua gravidade. No entanto emerge
também o facto de incluir alguém que se ia tornando incómodo aos interesses ingleses, António Martins.
Trata-se do caso dum escravo, Boa Ventura, que parece
ter morrido por maus tratos, pancada, o que leva a um ofício do comissário britânico ao governador e comandante
militar da Boa Vista, o tenente coronel Joaquim Pereira da
Silva, pedindo esclarecimentos acerca do assunto, tanto
mais que o escravo era de António Joaquim Martins,
nomeado pela comissão curador dos negros libertos ,
O comandante militar explicou que os boatos que circulavam acerca do escravo não correspondiam à verdade, na
medida em que realmente o escravo fora castigado por ter
roubado mas a sua morte não fora consequência do castigo mas acidental, como constava do documento comprovativo. Por seu turno, o curador não podia ser envolvido porque se encontrava ausente há mais de um mês.
O comissário Macauly não se contentou com a resposta
e voltou à carga, acentuando o facto de Boa Ventura ter
sido “maltratado e açoutado á morte, sendo castigado repetidos dias em seguimento á vista de muito povo... Que o
principal autor desta horrivel tragedia foi o seu proprio ajudante d’ órdem, o Sr. Eça ... na propriedade do Senhor
António Joaquim Martins, o cavalheiro recentemente nomeado por nós para vigiar sobre ‘o bom tratamento permanente’ aos negros libertos locais.”
Perante tudo isto, o comissário pedia oficialmente, não
ao comandante militar, mas ao colega na Junta de
Superintendência dos Negros Libertos para o ajudar a
“obter uma rigorosa investigação de todas as circunstâncias que disserem respeito á morte do Boa Ventura, de
maneira que o governo de S.M. Britanica possa possuir as
118
necessarias informações para poderem ou não confirmar a
nomeação que temos feito”.
Dirigindo-se à mesma pessoa, mas agora na qualidade
de governador da Ilha, exige-lhe que cumpra as ordens
recebidas pelo governador geral, ou seja, “prestar todo o
auxilio e favor que for requisitado no exercício dos meus
deveres publicos”. Como tal, deveria também informar o juiz
e o procurador régio para que tomassem conhecimento
judicial desse crime, assim como apurar as responsabilidades do seu ajudante de ordens que, como qualquer oficial
acusado “de crimes ignomiosos á humanidade e derrogatorios á honra” devia ser julgado em conselho de guerra.
Por fim, e considerando que as autoridades civis e militares
negavam informação para se apurar quão responsável era
o curador Martins, dono de Boa Ventura, Macaulay concluía
que era seu dever mostrar ao seu governo “quão improprio
é o lugar para residencia dos negros libertos, onde V.Ex.ª
occupa o lugar de Governador e Comandante militar; –
onde hum negro e não pela primeira vez depois da minha
chegada a esta Ilha pode ser assassignado ao aberto dia
sem pensarem ao menos de occultar o crime, – aonde hum
official militar, encarregado da policia desta Villa, e servindo
como ajudante d’Ordens de V.Exª, pode com suas proprias
maos, armado com um pao grosso, derrubar o corpo d’hum
negro amarrado, e conduzido pelas ruas como um boi,
e então consummar a sua crueldade açoutando aquele
negro á noite; – e isto sem castigo; sem emendas e sem
alguma examinação dos numerosos espectadores que testemunharão a occorrencia...”.
Depois desta intervenção deixou de haver diálogo,
mesmo se até então era mais aparente que real, confrontando-se claramente dois pontos de vista inconciliáveis e
sobretudo duas autoridades, pelo que a análise deste incidente se torna significativa e sintomática. Com efeito, através do auto do corpo do delito, verificámos que o médico
que examinou o escravo castigado e depois o cadáver foi o
cirurgião Hipólito Almeida, árbitro da própria comissão luso-britânica, o qual, sob juramento, asseverou que “o achou
sem febre, nem outra qualquer doença, e só a parte onde
levou os açoutes com pequenas sarjas; e parecia que não
tinha levado mais que cento e cincoenta a duzentos açoutes;
e por achar ser tão simples o estado em que achou as pizaduras, só mandou em um lado lavar com cozimento de malva
e em outro untar com banha de porco ou azeite doce, e que
lhe não encontrara mais pizaduras, contuzões ou feridas.”
119
O ofício de resposta do comissário militar foi contundente, começando por, de uma vez por todas, explicitar ser
indubitável que se o curador dos escravos libertos e dono
do Boa Ventura, o senhor António Martins, estava ausente,
nada tinha a ver com o sucedido; a questão competia à
autoridade judicial, pelo que, o que se punha em causa era
o tipo de interferência do comissário britânico:
“Estou bem certo que a interferencia a que V.Sª. se
propõe no presente cazo é devida a um sentimento philantropico que manifesta, e não a posição em que se acha na
qualidade de membro da Junta da Superintendencia dos
Negros libertos, porquanto, esta Junta nenhuma authoridade exerce sobre os escravos que são propriedade dos subditos de Sua Magestade Fidelissima.”
No mesmo tom, precisava que o auxílio a que estava obrigado se reportava apenas ao conteúdo do tratado de 1842,
para além de que, o alferes Eça não exercia as funções que
lhe atribuíra Macaulay, pelo que seria julgado conforme as
leis a que estava sujeito, sublinhando que “ninguem pode ser
condamnado sem ser ouvido ou convencido do crime”.
O comissário britânico não desiste, pondo a questão e a
responsabilidade nas mãos do Governador Geral, afirmando que: “He direito que eu diga francamente que é impossivel esperar justiça, se o andamento da inquirição e a
escolha e exame das testemunhas foi inteiramente deixado
nas mãos do Juiz Ordinario e Delegado do Procurador
Regio, os quais já se accometterão na espantosa decizão
de diserem que a morte de Boa Ventura foi precedida de
uma extraordinaria constipação”.
Macaulay enfatiza particularmente a responsabilidade
moral do curador dos escravos libertos, já que “a condição
do individuo assim injuriado, se branco ou preto, captivo ou
livre, não fas differença respectivamente a este dever, o
qual é importante sobre nós pela situação que o Senhor
Martins tem por nossa nomeação”.
Não sabemos qual o desfecho, mas não deixa de ser
curioso o facto de nunca se mencionar o árbitro da
comissão, o médico Hipólito de Ameida, o responsável,
como vimos, pelo estado de saúde do preso e pelo veredicto de morte. Por outro lado o incidente diz-nos muito
acerca da situação dos escravos em Cabo Verde e sobretudo da mentalidade geral acerca deles. Um outro incidente marcou a correspondência da comissão mista durante
este período, comissão mista que, no que toca à correspondência, é única e exclusivamente britânica.
120
Em 17 de Março de 1845 chegou à Ilha da Boa Vista a
corveta inglesa “Growler”, tendo-se deslocado a bordo o
comissário Macaulay no escaler da comissão; como o mar
estava picado levou para terra o comandante da corveta,
Buckle, com a respectiva bagagem e mais uns caixotes,
que foram apreendidos na Alfândega, incluindo o escaler.
Mediante o pagamento dos direitos exigidos, foi restituída
uma cesta porque tinha fruta fresca, assim como, já no dia
seguinte, a bagagem do capitão, pois a acostagem dera-se
depois do sol posto.
E tudo começou exactamente pela concepção de sol
posto, visto que, segundo o regulamento das alfândegas do
arquipélago, desde o pôr do sol até ao amanhecer eram
considerados perdidos todos os produtos embarcados ou
desembarcados que não tivessem o correspondente despacho aduaneiro. Segundo o comissário, o escaler deveria
ser de imediato restituído (até porque estava mal fundeado)
visto pertencer ao serviço público da comissão, para além
de que tinham sido apreendidas caixas com documentação
oficial secreta e três pequenas caixas, sem valor, prenda do
capitão de que, portanto, não podia ter pedido licença; e de
modo nenhum o sol se tinha posto, era apenas uma tarde
coberta de nuvens, como o podia provar o cônsul que os
esperava no cais.
Após troca de ofícios um tanto acerbos, o director interino da Alfândega, Félix José da Costa, agastado, mas reiterando a legalidade da situação, remeteu o assunto para a
Junta da Fazenda.
De seguida o comissário Macaulay apresentou outras
razões, ligadas ao facto das leis invocadas não serem válidas para os navios de guerra, insistindo nos volumes com
ofícios dirigidos ao serviço público do cônsul e dos comissários britânicos, que não podiam ser examinados ou detidos e o facto de terem examinado e retido a mala do
capitão Buckle.
Macaulay queixou-se então ao governador geral, brigadeiro Francisco de Paula Bastos, o qual se limita a confirmar
a legalidade do sucedido, visto que o escaler desembarcara artigos proibidos.
Entretanto, o director da Alfândega, António Augusto
Sequeira Thedim, regressado à Boa Vista, encarrega-se do
assunto, informando, sem rodeios, que as caixas sem valor
que o comissário tanto insistia por reaver, continham champagne, o que era proibido.
O relatório enviado então ao Governador Geral pelos
121
comissários britânicos da Boa Vista, incluindo cópias traduzidas de alguns ofícios, apresenta o assunto como “o
grave insulto offerecido á Marinha Britânica pelo tratamento
que o capitão Buckle recebeu na Alfandega tendo sido já
representado por este official ao Comandante da Esquadra
Britanica na Costa Occidental d’Africa, não teríamos feito
allusão a esta perfeitamente independente queixa, senão
para mostrar o que a dirigido todos os procedimentos
d’Alfandega neste negocio do principio ao ultimo. A
detenção durante quinze horas dos documentos officiaes
mandados-nos por os commissarios Britanicos na Serra
Leoa he uma injuria mais séria. Com mal-posta confiança na
honra e civilidade da Alfandega da Boa Vista, os
Comissarios na Serra Leoa tinhão mandados-nos seus officios em uma caixa aberta, sem fechadura ou chave, e simplesmente cobrida pela tampa mudavel. Os papeis assim
inclusos erão da mais grande importancia, sendo os documentos originaes que hão de ser usados nos processos instituidos no Porto Praia contra diversas pessoas implicadas
no trafico da escravatura...”.
Solicitam também a restituição do escaler “que estava
um prezente liberal e espontaneo do Governo Britanico à
Commissão Mixta estabelecida nesta Ilha, sem alguma
qualquer despeza ao Governo Portugues...
Respondemos sem suspensão que o procedimento do
qual queixamos-nos, he solamente uma instancia do systema de insulto e injuria que nos mezes passados tem sido
praticado para os residentes Britanicos nesta Ilha pelos
quasi todos os empregados publicos: As rasões principais
desta hostilidade são evidentes – o impedimento imposto
pela presença dos empregados Britanicos sobre o trafico
da escravatura, e sobre o negocio feito com os navios occupados n’aquelle tráfico, que antigamente era o commercio
principal deste porto – os processos instituidos no Porto
Praia, e instados urgentemente pelos empregados
Britanicos, contra pessoas numerozas implicadas na escravatura, – os amigos e parentes das familias da Boa Vista –
e os procedimentos recentemente tomados para descubrir
as circunstancias da morte d’um escravo pertencente ao
dono da caza occupada pela S. Exª., por meio allegado
d’um official Militar agora residente nesta Ilha. – O sentimento resultando destas e semelhantes circunstancias tem
sido, em mossa opinião o motivo único da detenção continuada do Escaller da Commissão Mixta. Regulamentos
desusados tem sido buscados.”
122
Os comissários invocam precedentes na questão do
tempo de acostagem e no facto de se vender champanhe
com a designação de “champanhe cidra” para contornar a
lei e insistindo então que a retenção das caixas de champanhe, algo particular de que já não fazem questão de
receber, é o pretexto para continuar a reter o escaler. Mas o
certo é que depois os comissários referem ter na sua posse
uma comunicação oficial do embaixador inglês em Lisboa,
segundo a qual o champanhe podia ser importado nas
ilhas, assim como uma comunicação semelhante do governador geral para o cônsul Rendall, o que é posteriormente
desmentido pelo próprio governador.
Este incidente insignificante é, no entanto, uma fotografia nítida e a cores duma situação que explica, em parte, a
separação inconciliável entre membros da mesma
comissão mista (o comissário português não sabe de nada,
pelo que se recusa a assinar o documento) e entre autoridades a trabalhar para o mesmo objectivo, pois os move
interesses muito distintos.
Não esqueçamos que com o final do tráfico negreiro, a
pequena economia da Boa Vista caiu a pique . Mas também
é preciso ter em consideração que esta inoperância se relaciona também com a encruzilhada a que chega a política
inglesa na década de quarenta, um impasse que requer
novas soluções, que se denota nalguma mudança da política inglesa à medida que emerge uma certa incompatibilidade entre a filosofia do abolicionismo e a do liberalismo
económico.
Com efeito, nos anos quarenta, a questão do açúcar do
Brasil e de Cuba e a sua penetração no mercado açucareiro inglês, fomentando a produção, incrementou simultaneamente uma maior necessidade de mão-de-obra escrava,
cruzando-se, por conseguinte, medidas políticas contraditórias. Por outro lado havia que proteger e fomentar o
comércio lícito da Grã-Bretanha, que amiúde era prejudicado pelo afã dos navios encarregados da intercepção do tráfico ilícito, para além de que havia muitos comerciantes
ingleses envolvidos indirectamente no tráfego negreiro através da venda de artigos e fornecimento de crédito.
De notar ainda, o progressivo esmorecimento do entusiasmo abolicionista, um certo desencanto até, à medida
que se ia constatando que a emancipação não se concretizava como se tinha previsto, pois os libertos, mesmo se não
provocaram revoltas, não adoptavam concepções e critérios de valores ocidentais, como trabalhar muito com vista a
123
enriquecer e outros, que, em contrapartida, forneceriam
maior produção mais barata, o que não aconteceu.
Assim, consciente ainda de possuir a verdade e a civilização, a opinião pública inglesa foi resvalando para a concepção cómoda de que o africano era intrinsecamente
indolente e estúpido para não entender todas as benesses
que a civilização ocidental lhe poderia dar se trabalhasse
segundo os moldes exigidos pelo capitalismo industrial.
Daí que para muitos era perfeitamente inútil os gastos e
sacrifícios que se tinham feito.
Relativamente ao abolicionismo, precisamente nesta
altura o que encontrámos, insere-se já num outro contexto
relacionado com a mudança de política inglesa neste
campo, que privilegia a acção no terreno sob a forma de
acordos com as autoridades africanas e até incursões
repressivas em terra, ao mesmo tempo que defende mais
os interesses e negócios lícitos da Grã-Bretanha, por vezes
inseridos em interesses muito particulares e privados.
Exactamente a partir sobretudo do início da década de quarenta os navios de guerra ingleses passaram a mostrar um
interesse crescente pela ilha de Bolama, pelo que, depois
de incursões esporádicas, em 1838, em 1843 não deixaram
içar a bandeira portuguesa que os dois ingleses lá residentes tinham substituído pela sua, e a que o reduzido destacamento se não pôde opor.
Aliás, parece ter havido ligações perigosas entre as
várias incursões de barcos ingleses em Bolama, com apresamento de escravos conduzidos para a Serra Leoa, sob o
pretexto de que as autoridades portuguesas protegiam o
tráfico na zona, informações provenientes do cônsul
Rendall, para justificar o conflito constante que mantinha
com as autoridades locais, devido a possuir uma casa
comercial na Boa Vista e pretender enchê-la com produtos
livres de direitos, pelo que, aproveitando o incidente anterior, chegou a solicitar uma série de privilégios, que foram
recusados, sendo o assunto levado ao Ministério dos
Negócios Estrangeiros.
Todavia algo existia, pois em Setembro de 1845 o governador foi instado por uma portaria régia a substituir os funcionários e até autoridades implicados na protecção do tráfico negreiro por gente idónea e de boa moral. Tomaram-se
outras medidas para o gradual abolicionismo, estabelecendo impostos sobre os escravos, depois dum arrolamento
geral feito em 1843.
Datam também de então instruções para uma maior
124
defesa dos direitos portugueses ameaçados por uma convenção franco-britânica, em que para melhor assegurar o
fim do tráfico se permitia aos comandantes navais estabelecerem acordos com autoridades indígenas, empregar a
força e até proceder a ocupação territorial .
E na realidade, as incursões a Bolama não se fizeram
esperar: em Novembro de 1847 os marinheiros do brigue
inglês Dart invadiram uma propriedade de lavoura de
Aurélia Correia, levando consigo à força sete escravos, que
depois venderam na Serra Leoa. Em Dezembro de 1850 o
brigue de guerra Ranger ancorou em Bissau, onde o
comandante Miller teve a delicadeza de avisar o governador de que tinha ordens da Serra Leoa para ir a Bolama e
arriar a bandeira portuguesa; como não encontrou qualquer
bandeira, perante o compromisso prévio do governador de
não enviar outro destacamento, em vez de deitar fogo à
povoação, limitou-se a levar os três soldados, que constituíam o destacamento da ilha, para a Serra Leoa.
Perante os protestos do governo português relativamente ao ataque à soberania portuguesa da Ilha, a justificação
era sempre a escravaria que “pretensamente” se fazia na
Guiné e o tratamento cruel aplicado a escravos, como sucedia com alguns senhores da Guiné. A apetência inglesa
pela ilha de Bolama continuou, pelo que houve que pedir o
auxílio francês. Entretanto, em 1851 acabava a comissão
mista luso- britânica sem qualquer mérito, mas com um
saldo lucrativo para os ingleses que oportunamente se interessaram pelo progresso de S. Vicente, onde em 1850 a
Companhia Royal Mail Packet estabelecia, com isenções
fiscais, um depósito de carvão de pedra para uso dos seus
navios. Foi o factor decisivo para o arranque do desenvolvimento do Mindelo, onde ingleses, como o próprio cônsul
Rendall, e o comandante Thomas Miller foram assentando
arraiais, por vezes com apropriamento abusivo de terras,
como sucedeu com Rendall, que inclusivamente construiu
uma casa à beira-mar com um cais que levantou algumas
suspeitas. Aliás, chegou mesmo a criar situações embaraçosas a nível ministerial relativamente à licença do depósito de carvão no Mindelo, visto que estava particularmente
interessado em usufruir dessa licença, já que era o proprietário da escuna que carregava o carvão para bordo dos
navios.
Em 1852, para acabar com o monopólio de Rendall
quanto ao depósito de carvão, é concedida licença semelhante a Thomas Miller, o qual, contrariamente ao primeiro,
125
desenvolveu toda uma série de iniciativas que propiciaram
significativos melhoramentos locais. Como referimos, entretanto, a posição abolicionista inglesa perdeu agressividade
e dinamismo.
Com efeito, nos anos quarenta esta atitude não só prejudicava o tráfego de comércio legal, como a mudança da
política económica ao pôr fim ao sistema do proteccionismo, vinha possibilitar a introdução do açúcar brasileiro e
cubano no mercado inglês, incentivando mesmo que circunstancialmente a importação de escravos nestes territórios. Em simultâneo a repressão do tráfico em terra, incluindo tanto acordos com as autoridades africanas como
incursões violentas, como aconteceu em Bolama e nas
Galinhas, deu mais problemas que resultados. Assistia-se
mesmo a um certo desencanto pelos resultados insignificantes de tanto esforço dispendido em sinergias e verbas.
A abolição do tráfico de escravos e da escravatura em
geral foi algo que andou ao sabor das conjunturas políticas
e conforme os ventos e marés dos interesses económicos
de vários países, assim foi manipulada a faceta filantrópica
e humanitária.
O humanismo arvorado em bandeira dos abolicionistas
nem sempre foi real e a sua autenticidade, se existiu a nível
individual, foi a capa que cobriu e branqueou muita cobiça,
mesquinhez e vileza. Basta pensar nos vários alibis encontrados para justificar a continuação da escravatura ou até
as lutas em prol da abolição, em que, como vimos, o africano é visto como um ser inferior ao europeu porque, entre
outros, não atingia o privilégio que se lhe dava de poder
ascender a usufruir da civilização, e, portanto, era passível
de ser mais ou menos moldado, arrastado, catapultado
para essa “civilização superior”.
Apesar de passado mais de um século é ainda um tipo
de raciocínio que não desapareceu de todo, uma mentalidade que no consciente ou inconsciente colectivo, sob a
bendita “capa humanista” ainda se manifesta.
126
CARLOS CARDOSO
ISCTE - Lisboa
(Portugal)
O Humanismo Latino
na costa da Guiné - (sécs. XIX-XX):
subsídios para um projecto de pesquisa
INTRODUÇÃO
Desde a época que os viu nascer1, nunca os valores do
humanismo pareceram tão importantes como hoje. O tempo
histórico em que vivemos coloca-nos perante desafios incomensuráveis: o terrorismo internacional, o perigo iminente
de um regresso à produção de armas de destruição maciça
e as ameaças de uma guerra no Golfo Pérsico tornaram o
nosso planeta inseguro, as nossas previsões incertas, e
fazem temer o pior: a destruição de milhares de vidas
humanas2. Neste momento conturbado, o regresso à história e à revitalização dos valores do humanismo constituem
um imperativo. Não se pode aceitar o investimento maciço
em armamentos a preteto de uma guerra “preventiva”
quando se sabe que a guerra contra a SIDA custa duas a
três vezes menos do que a luta contra o terrorismo.
Por outro lado, a globalização – com todos os aspectos
que comporta em termos de avanços tecnológicos – coloca-nos perante a necessidade de busca de novas formas
de sociabilidade, que não aquelas baseadas na supremacia tecnológica, mas naquilo que está subjacente a todo o
progresso e para o qual todo o progresso se deve voltar: o
homem.
Este novo tipo de sociabilidade planetária tem que se
alicerçar sobretudo numa cultura de Paz, num relacionamento pacífico entre Nações e Povos, tal como o defendeu
recentemente o Sumo Pontífice num documento tornado
público por ocasião do Dia Mundial da Paz, sugerindo “a
constituição de uma nova organização de toda a família
humana, a fim de garantir a paz e a harmonia entre os
povos e simultaneamente, promover o seu progresso integral”3.
127
Defender uma sociabilidade baseada nos valores do
humanismo não requer nenhuma invenção, pois esses valores podem ser encontrados na história da humanidade. Daí
a nossa opção por um tema de dimensão essencialmente
histórica.
O nosso projecto de investigação pretende compreender até que ponto a manifestação de uma ou mais correntes humanistas se fez sentir, de uma forma geral, na Costa
da Guiné e, em particular, no que corresponde ao actual
território da Guiné-Bissau, durante os finais do século XIX e
princípios do século XX. Por outras palavras, como é que
um valor reputado de tão supremo e de tão profundo enraizamento no imaginário português – pelo menos assim nos
diz uma certa hitoriografia portuguesa4 –, encontra eco (ou
não) num período tão conturbado, crítico, prenhe de ideias
progressistas e de sonhos, e dos quais o abolicionismo é
um exemplo.
Esta comunicação e o projecto de pesquisa que o subjaz baseiam-se em três teses preliminares ou hipóteses de
trabalho: 1) o século XIX é um século de revoluções e de um
reavivar do pensamento humanista, 2) a desigualdade é o
fundamento da dominação colonial e 3) a alma lusitana é tributária do humanismo latino, mas a prática social de
Portugal nem sempre reflectiu esse humanismo.
O século XIX é um século de revoluções e de
renascimento do pensamento humanista
O século XIX é um dos séculos mais complexos da história da humanidade, tendo como um dos traços mais evidente a frequência de sacudidelas revolucionárias. É o
século das revoluções, porque nenhum foi tão fértil em
levantamentos e insurreições, em guerras civis, às vezes
triunfantes, mas às vezes esmagadas.
As agitações que a marcam começam com a contra-corrente da revolução de 1789, mas não são só as sequelas desta que fazem dele um século diferente. À medida
que o século se aproximava do seu fim outros traços se afirmam e, passo a passo, tomam predomínio sobre a herança
da revolução burguesa. Fenómenos novos aparecem: a
revolução industrial, a pujança sindical, as escolas socialistas. Foi um século de vagas diversas. Estas vagas extravasam o espaço latino e encontram formas de manifestação
em quase toda a Europa.
128
Na Alemanha, por exemplo, num plano mais especificamente literário, somos confrontados com o movimento
”Jovem Alemanha”. A nível da crítica filosófica, religiosa e
política, emerge com cada vez mais força o “radicalismo”
daqueles que é uso agrupar sob a designação de
“Esquerda Hegeliana”.
Dentro do movimento “Jovem Alemanha” havia os literatos “comprometidos”, uma nova escola literária que pretendia sobretudo fugir ao “romantismo” e que encerrou o pensamento alemão num nacionalismo cada vez mais sombrio,
enfim numa desconfiança em face dos ideais liberais.
A “esquerda hegeliana”, representada, entre outros, por
Ludwig Feurbach, chegou a abordar, à sua maneira, a problemática do homem, partindo do terreno do religioso e da
ideia do homem em relação à esta. Feurbach postula a tese
fundamental de que a religião constitui para o homem uma
perda da sua substância: ele projecta esta substância num
“ser divino” exterior a si próprio, passando o homem a ser
apenas um puro produto da consciência desse mesmo ser
divino.
Há autores que defendem que Feurbach fixou como
ponto de partida de toda e qualquer reflexão filosófica o
homem concreto, entendido não apenas como ser individual, mas também como espécie social e como “massa
humana”. Daí ele deduzir a necessidade duma libertação
de toda a espécie humana, ao mesmo tempo da ilusão religiosa e do egoísmo individualista, e terminar pela aliança
da filosofia e do movimento social.
Sem pretender entrar em detalhe sobre o pensamento
deste filósofo, convinha destacar que esta referência ao
posicionamento de Feurbach parece pertinente no contexto
desta comunicação porque, embora apresentando-o como
uma coisa nova e atípica, é deste tipo de humanismo que
se reclama o humanismo defendido por alguns teóricos do
“humanismo português”, isto é, a ideia de libertar o humanismo das amarras da especulação filosófica, transformando-o num movimento e numa praxis social a favor da libertação do homem, como veremos mais a frente.
Assim, é de se admitir que o movimento humanista que
caracterizou a Europa do século XIX tenha tido algum eco
na sociedade portuguesa de então. Resta no entanto saber
se esta influência se fez sentir igualmente a nível do relacionamento entre Portugal e as suas Terras do Além-Mar.
Segundo os autores da História Geral de África, também
em África o século XIX foi marcado por mudanças profun129
das. Não porque o contacto com a Europa em profunda
mutação tenha sido retomado de alguma maneira, nomeadamente através da integração crescente das economias
africanas no sistema mundial, mas porque houve uma dinâmica interna própria ao continente, que deve ser vista como
o prolongamento das evoluções do século XVIII. O século
XIX teria sido para a África “a idade de progresso”, tendo os
europeus sabido utilizar o desejo de mudança dos
Africanos para consolidar as suas próprias posições, acabando por impôr o regime colonial e contrariar as iniciativas
internas de reforma e de desenvolvimento.
É o conflito entre estas forças de renovação e as potências estabelecidas que compõem a história do século XIX,
que explica a violência e a frequência de fricções. É nesta
confrontação entre as forças de conservação, política, intelectual, social e as forças de constestação que devemos
não só procurar a chave da maioria dos acontecimentos
históricos, nacionais, bem como europeus e internacionais,
mas também do relacionamento entre a África e a Europa.
A desigualdade é o fundamento da dominação colonial
Historicamente, o contacto entre a Europa e a África foi
carregado de conflitos. Desses contactos resultaram
relações de dominação e de subjugação. E, contrariamente
ao que professa uma certa historiografia, Portugal não pode
ser considerado um caso à parte, apesar de todas a especificidade que possa ter assumido a colonização portuguesa em África-como, aliás, todos os colonialismos a assumiram à sua maneira e feitio.
As relações que a Europa mantém com o resto do
mundo são dominadas pela sua expansão e suas tentativas
de dominação do globo. Como nos diz René Rémond, a
conquista colonial no século XIX não resulta de uma vontade sistemática dos Estados, não se passa segundo um
plano preconcebido, uma visão de conjunto. Ela é antes a
consequência de uma sucessão desordenada de iniciativas, às vezes individuais, às vezes colectivas – mas quase
sempre privadas – que ultrapassam a intervenção dos
Estados e lhes colocam perante o facto consumado. São
geralmente as ordens missionárias que tomam a iniciativa.
Com efeito, no século XIX a história da colonização é
inseparável da de evangelização. O balanço das missões
em 1815 é comparável àquela da colonização: mais ou
130
menos completamente negativa. A maior parte das ordens
foram dissolvidas. Podemos estimar que em 1815 a história
das missões, que tinha conhecido no século XVI um grande
élan paralelo à da conquista, é encerrada e termina com
uma constatação de falhanço.
Foi preciso esperar pelo pontificado de Gregório XVI
(1832-1846) para ver um novo impulso e registar-se os sintomas de um despertar missionário. As ordens antigas ressuscitam, reencontram as vocações. Sobretudo criam-se
ordens novas.
Concomitantemente, reforça-se um outro processo. No
fim do século XIX há o imperialismo caracterizado por um
alargamento das potências coloniais. A África que era
quase desconhecida no princípio do século XIX, é colonizada a 90% no final do século. O Congresso de Berlim de
1885 faz a repartição das cobiças e opera uma repartição à
amigável das zonas de influência e de ocupação. É o nascimento de um sentimento imperialista. O orgulho nacional
encontra o seu prolongamento nas dependências coloniais.
Certos historiadores dizem-nos que por todo o lado os
Europeus fundaram sociedades semelhantes àquelas do
continente de origem e que se deu uma europeização do
mundo. Num certo sentido até se pode concordar com o
autor. A Europa foi durante muito tempo e talvez seja ainda
o centro do mundo. Porém, a questão é de saber se estes
valores que fizeram jus na Europa serviram de paradigma à
actuação dos europeus em África. É o que vamos tentar
analisar seguidamente.
A alma lusitana é tributária do humanismo latino,
mas a prática social de Portugal nem sempre
reflectiu esse humanismo
Numa pequena comunicação intitulada Humanismo e
Universalismo do Homem Português, datada de 1964,
Antunes Valente dizia: “E foi na vivência deste humanismo
cristão, que assentou a existência secular do Homem
Português no Mundo, processada sem discriminação e em
contacto de simpatia e amorosidade com o homem de
etnias e regiões diferentes e distanciadas”. O mesmo autor
diz mais à frente “ao Homem Português coube o singular
mérito de jamais ter praticado a discriminação, nomeadamente a discriminação racial”. Valente remata dizendo “O
povo português encarnou, singularmente, a mensagem do
131
humanismo cristão”. Antes de problematizar esta afirmação,
vejamos como se pode caracterizar o humanismo português.
Tal como outros humanismos, o humanismo latino em
geral e o português em particular teve uma trajectória histórica determinada pelos condicionalismos locais, mas também pelo contacto que Portugal manteve com outros povos.
Pelos relatos históricos disponíveis, creio que não estarei longe da verdade se afirmar que o humanismo luso que
se manifestou no século XIX e XX teve uma origem longínqua nas várias correntes espirituais da idade média alta,
nomeadamente na instituição da Cavalaria e no
Franciscanismo. Desde logo porque os dois ideais constituíram forças históricas que impeliram a Nação Portuguesa
à empresa dos Descobrimentos, mas também porque o
ideal da Cavalaria, forjado na reconquista ao Mouro, e o
franciscanismo, nascido à beira do Mediterrâneo, mas
ardentemente adoptado na praia ocidental, davam à necessidade premente de abrir outra rota ao tráfico dos produtos
do Oriente, uma justificação, um objectivo e uma sanção
ideais.
São autores portugueses que nos dizem que, enquanto
nos demais povos, o ideal de Cavalaria se exauria no século XIV e o do Franciscanismo não ia além da Idade Média,
os dois perduravam em Portugal, como medula viva da
Nação. Essas duas tendências vão reflectir-se na acção e
nas artes, principalmente nas letras, durante os séculos
seguintes. O Franciscanismo havia de afigurar-se como
uma actualização e sublimação da Cavalaria andante. Os
dois eram itinerantes. Aos dois animava um ideal religioso.
Mas os franciscanos, diz-nos Cortesão, em vez de guerra ao mouro, propunham-se levar a palavra e o amor de
Cristo por todo o mundo e a todos os ditos infiés. Ao esforço
generoso dos homens, que tinham sede de servir, davam-se-lhe para andar todos os caminhos da Terra e dos Mares,
mas para consolar e resgatar a Humanidade. Além disso, o
homem entrava numa nova sociedade: a de Deus e da
Natureza. Na concepção do franciscanismo, desde o dia do
nascimento até à ressureição, o homem visitava ou era visitado por Jesus.
Segundo o autor, aqui reside a diferença essencial que
distingue o humanismo, nascido do Renascimento greco-latino, localizado no espaço e na Antiguidade, e o humanismo português, integrado no seu tempo, inspirado em
todas as culturas do planeta e, se não formando
132
inteiramente, reunindo elementos de formação do espírito
moderno.
E à guisa de conclusão, o nosso autor diz-nos: “Um cristianismo franciscanista, sentimento de fraternidade universal, de comunhão entre o homem e a Natureza, de amorabilidade comunicativa, tão peculiar e consubstancial aos
portugueses, permitiu-lhes apreender e compreender pelas
vastas e desvairadas terras por onde viajaram, que havia
fora dos seus códigos, das suas tábuas de valores, dos
seus princípios morais, uma Humanidade tanto ou mais
adiantada e perfeita que a do Ocidente… Humanismo mais
pragmático e moral do que filosófico e crítico, ele não era
apenas uma ideia. Era menos e mais do que isso. Era uma
regra de conduta. Um temperamento moral. Uma cultura em
acção… O sentimento duma unidade humana a realizar,
quer pela fé, quer pelo conheciemnto e pelo amor. E só os
que misturaram intimamente à grande aventura do
Descobrimento, às influições de outros climas, outros astros
e outros povos, o sentiram, o encarnaram e o definiram”5.
Por um lado, tem que se admitir, dando razão ao autor,
que à medida que Portugal ia alargando o seu raio de
acção em África, na América e, sobretudo no vasto Oriente,
a sua civilização nacional se ia enriquecendo com sínteses
sucessivas. Parece não restarem dúvidas de que, tal como,
aliás, fizeram outras potências europeias de então, Portugal
criou cidadãos do Mundo. Formou-se nesses homens uma
consciência nova e unitária da Humanidade.
Gil Vicente pode ser citado como o primeiro grande
representante dessa corrente. Humanista, no sentido erasmista da palavra, a sua crítica faz-se não por inspiração de
modelos clássicos, mas em nome das normas morais duma
tradição castiça.
Outro grande nome foi Jorge Ferreira. Iniciador na
Península dum Humanismo, universalista pela substância
do saber valorizado, ele restringia esse carácter, ao cingir-se às fontes nacionais, ao mesmo tempo que o dilatava, ao
dar-lhe por base uma lição prendida em todos os Oceanos.
Reconheço a necessidade de pesquisas mais aturadas
focalizadas na problemática do humanismo no século XIX e
princípios do XX, mas, à luz do que julgo saber sobre o
relacionamento entre a Europa e a África de uma maneira
geral e sobre a actuação dos portugueses na Costa da
Guiné em particular, considero que se deve relativizar, à
partida, certas destas teses expostas mais acima, particularmente no que concerne à apologia do espírito humanista
133
que, supostamente, guiou os portugueses em África. A
implantação definitiva das estruturas coloniais no território
foi precedida de lutas intensas que assumiram a forma de
verdadeiras guerras devido à forte resistência que as autoridades coloniais encontraram por parte das populações
locais em se submeterem a elas. E só assim foi porque
estas mesmas autoridades teimaram em implantar-se nestas paragens como portadores de uma civilização e de uma
religião superiores às dos povos locais e, não raramente,
trataram-nos como se perante sub-homens se encontravam.
No prefácio à interessante obra de Réné Pélissier sobre
a História da Guiné, com um ainda mais interessante subtítulo portugueses e africanos na Senegâmbia (1841-1936),
Leopold Senghor dizia: “Certamente, os Portugueses não
eram santos. Eram conquistadores e isso no interesse da
sua Metrópole, Portugal. Compreender-se-á que a maior
parte do estudo de René Pélissier se debruce sobre a pacificação – não digo a conquista – da Guiné. Abordarei aqui
apenas o essencial.
O essencial são as campanhas de pacificação que as
forças de segurança realizaram durante cerca de noventa
anos: desde a guerra de Bissau, em 1884, até à campanha
de Canhabaque, em 1935-36. O que caracteriza estas
expedições é o facto de, de acordo com a respectiva
importância, todas as forças de segurança terem sido utilizadas, desde as forças policiais até à aviação, sem esquecer a marinha e a artilharia. E se necessário, era o próprio
Governador, naturalmente um militar, quem conduzia as
operações.
O leitor (…) europeu não ficará pouco surpreendido ao
verificar isto: estas campanhas, mais exactamente estas
repressões ou, ad libitum, estas guerras, são quase sempre
dirigidas, não tanto contra “revolucionários” das cidades, os
mestiços, os cristãos, até mesmo os muçulmanos, mas contra os povos animistas: os Papéis, os Balantas, os Felupes
e outros Biafadas”6.
Ainda sobre esta mesma temática, o próprio René
Pélissier diz-nos: “A Guiné, entre 1841 e 1936, foi uma terra
de violência, não ‘permanente’ como em Angola, mas repetitiva e de uma intensidade que não foi igualada nos territórios de extensão comparável na África Ocidental: perto de
três vezes mais que no Casamansa! Com 81 campanhas,
expedições ou simples operações que envolveram um mínimo de 8444 soldados regulares e 42500 guerreiros e auxi134
liares alistados do lado português, para consolidar uma
colonização que, até ao começo do século XX, não sabia se
não teria de fazer as malas e pôr-se a andar…”7.
E como se isso não bastasse, após a sua implantação
definitiva e durante muito tempo, a prática colonial contrastava com o tão propalado princípio de humanismo universal.
A própria filosofia subjacente a estas práticas, baseada na
discriminação do homem pelo homem, era aberrante em
relação ao que se podia esperar de uma Nação que se pretendia civilizada e mandatada para civilizar os outros. Um
dos exemplos mais eloquentes desta discriminação, que na
prática não se diferenciavam doutras formas de discriminação, nomeadamente a racial, é a institucionalização do
estatuto de indeginato8.
Com efeito, no conjunto do Império Colonial Português a
Guiné era considerada uma colónia de indeginato, segundo
o artigo 246 da Carta Orgânica do Império. Isto queria dizer
que, em princípio, os seus naturais eram sujeitos à designação legal de “indígenas” e, consequentemente, eram
submetidos a um regime jurídico especial9. Para esse efeito
e segundo o artigo 2 do decreto 16.473, de 6 de Fevereiro
de 1929, são considerados “indígenas” os indivíduos de
raça negra ou dela descendentes que, pela sua ilustração
e costumes, se não distingam do comum daquela raça.
Portanto, as suas relações jurídicas e os seus institutos
eram regulados por leis especiais, por cuja execução o
Governador vigiava.
Dentro desse princípio constitucional o decreto no.
16.473, de 6 de Fevereiro de 1929, aprovou o Estatuto
Político, Civil e Criminal dos Indígenas. Esse diploma ficou
sendo a verdadeira Carta Política dos Indígenas. Segundo
os princípios que estabeleceu, os indígenas gozavam de
direitos políticos e civis, mas sendo aqueles concernentes
apenas às suas instituições políticas próprias, à liberdade e
segurança individual, à liberdade e segurança individual, à
liberdade de consciência, de exercício de cultos e de trabalho e, ainda, à assistência pública, que se traduz no
socorro hospitalar e médico na doença, internamento na
colónia correccional de Ilha das Galinhas, quando considerados vadios, etc. Em relação aos institutos de caracter
europeu não gozavam de direitos políticos.
Dado que as notas que aqui quisemos trazer não passam de ideias para um projecto de investigação, podemos
terminar questionando, se essas práticas são compatíveis
com o tão propalado humanismo universalista, e se sim, em
que medida o são.
135
BIBLIOGRAFIA
BARBOSA, HONÓRIO: Os indígenas da Guiné perante a lei portuguesa,
in BCGP, Vol. II, Abril de 1947, No. 6, p. 343-362.
CORTESÃO, JAIME: O Humanismo Universalista dos Portugueses.
Obras Completas, Vol. VI, Portugália Editora, Lisboa, 1965.
Histoire générale de l’Afrique. VI. L’Afrique au XIX siècle jusque vers les
années 1880, Présence Africaine/Edicef/UNESCO, Paris, 1997.
MENDY, PETER KARIBE: Colonialismo Português em África: A Tradição
de Resistência na Guiné-Bissau (1879-1959), INEP, Bissau, 1994.
PÉLISSIER, R.: História da Guiné. Portugueses e Africanos na
Senegâmbia (1841-1936), Vol. I, Imprensa Universitária, Editorial Estampa,
Lisboa, 1989.
VALENTE, A.: Humanismo e Universalismo do Homem Português,
Edição da Seccção Cultural da Casa das Beiras, Luanda, 1964.
Notas
(1) O humanismo como fenómeno cultural e humano é uma corrente que
invade a Europa durante os séculos XV-XVI. Mas é na Itália onde o fenómeno adquiriu caracteres próprios e bem definidos. Dante (1265-1321),
Petrarca (1304-1374) e Boccacio (1313-1375) foram alguns dos seus primeiros representantes. Para expressar a centralidade que o homem ocupava no
pensamento humanista, Pico della Mirandola, um outro representante desta
corrente, chegou a afirmar o homem é semente de todas as possibilidades,
que o homem é a forma de todas as coisas. “A forma do homem é não ter
forma. Pode ser o que ele quiser.
(2) Sozinho para a Guerra que se avizinha contra o Iraque, os especialistas começam a avançar a previsão de 10 a 100 mil vítimas.
(3) Ver Público, 2 Jan. 2002.
(4) Ver, por exemplo, Cortesão, 1965 e Valente, 1964.
(5) Cortesão, 1965:101/102.
(6) Senghor, citado segundo Pélissier, 1989:20.
(7) Pélissier, Idem, p. 24/25.
(8) A política praticada pelo colonialismo português optou por um modelo de colonização, cujo principal paradigma consistia na assimilação e integração dos povos colonizados. Este paradigma traduzia-se, em termos práticos, numa política que por um lado advogava a manutenção das “tradicionais” formas de organização social e política, próprias das sociedades
autóctones, o que implicava a manutenção dos líderes tradicionais e, por
outro, numa tentativa de constituição de uma classe de intermediários entre
o poder colonial e as populações locais para facilitar os contactos entre as
estruturas implantadas pelo Estado colonial e as estruturas ditas tradicionais.
(9) Assim rezavam os artigos 22 do Acto Colonial e 246 da Carta
Orgânica do Império.
136
SERGIO BALDI
Istituto Universitario Orientale di Napoli
(Italia)
La colonizzazione italiana
in Africa orientale
La politica coloniale italiana inizia con un notevole ritardo rispetto a tutte le altre nazioni europee per un semplice
ed ovvio motivo: il tardivo raggiungimento dell’unità del
Paese.
«L’Africa ci attira invincibilmente. È una predestinazione.
Ci sta sugli occhi da tanti secoli questo libro suggellato,
questo orizzonte misterioso che ci chiude lo spazio che ci
rende semibarbaro il Mediterraneo, che costringe l’Italia a
trovarsi sugli ultimi confini del mondo civile... L’Africa, sempre l’Africa! ... L’abbiamo proprio sugli occhi e fin qui ne
siamo esiliati».1
In realtà l’Africa interessa soltanto una ristretta cerchia di
studiosi e di viaggiatori, di sognatori e di scontenti della politica «rinunciataria» delle «mani nette», d’armatori che mirano alle sovvenzioni statali e di speculatori, di missionari cattolici che contendono ai protestanti o all’Islam le ultime riserve di anime disponibili, e di avventurieri attratti dal miraggio
di grandi e facili ricchezze.2
Il motivo del disinteresse verso l’Africa è evidente, se si
considera che lo stato, raggiunta da poco l’unità nazionale,
deve fronteggiare una miriade di problemi ereditati dai vari
stati preunitari, le cui amministrazioni devono essere amalgamate. Il Paese è d’altra parte in una notevole arretratezza:
basti citare che secondo il censimento del 1861, gli analfabeti erano il 78 per cento della popolazione del regno; un
altro 10 per cento si poteva considerare semianalfabeta; gli
studenti universitari erano soltanto 6.500.
Per l’Italia l’avventura coloniale iniziò col governo
Depretis, che, spinto da considerazioni di prestigio e dalla
pressione di ristretti gruppi di interesse, aveva ritenuto
opportuno porre le basi per una piccola iniziativa coloniale in
Africa orientale. Il punto di partenza fu costituito dall’occupazione, nel 1882, di una striscia di territorio fra la baia di Assab
e la città di Massaua, sulla costa meridionale del Mar Rosso.
137
Successivamente, sotto il governo Crispi, i possedimenti italiani furono ampliati e riorganizzati col nome di Colonia
Eritrea (1890), mentre venivano poste le basi per una nuova
iniziativa di espansione sulle coste della vicina Somalia.
Alla riorganizzazione «efficientistica» dello Stato faceva
riscontro, nei progetti di Crispi, una decisa quanto velleitaria
affermazione del ruolo dell’Italia come grande potenza,
anche nel settore coloniale. La politica coloniale di Crispi
suscitava, però, perplessità in seno alla stessa maggioranza, in quanto risultava troppo costosa per il bilancio dello
Stato in un momento di grave crisi economica. Già durante
il suo primo governo (1887-1891), Crispi non solo aveva cercato di allargare i possedimenti italiani sulle coste del Mar
Rosso, ma aveva cercato di ottenere una qualche forma di
protettorato sul vicino Impero di Etiopia (Abissinia), il più
grande e il più forte fra gli Stati africani ancora indipendenti. A questo scopo aveva intavolato col negus (imperatore)
d’Etiopia Menelik trattative che portarono, nel 1889, alla
firma del trattato di Uccialli. Il trattato, considerato dagli italiani come un implicito riconoscimento del loro protettorato,
fu però interpretato diversamente dagli abissini, che reagirono energicamente ai tentativi italiani di penetrazione, ripresi dopo il ritorno al potere di Crispi (1893-96). Fra Italia ed
Etiopia si giunse così allo scontro armato, culminato nel
disastro di Adua del 1° marzo 1896, quando una colonia italiana di sedicimila uomini fu praticamente annientata dalle
forze abissine. La sconfitta ebbe immediate ripercussioni in
Italia, il governo fu costretto a dimettersi. Crispi usciva dalla
scena politica. Al suo successore, ancora una volta Rudinì
(1891-92), non restò che concludere in tutta fretta una pace
con l’Etiopia che garantisse almeno la presenza italiana in
Eritrea e Somalia. L’episodio di Adua e le reazioni che ne
erano seguite avevano dimostrato quanto la guerra coloniale fosse poco sentita dalle masse popolari e da larghi strati
della classe dirigente e quanto illusorio fosse stato il tentativo di Crispi di cogliere successi di prestigio, per sé e per il
paese, in un’avventura imperialistica a cui mancavano le
indispensabili premesse politiche ed economiche.
L’interesse italiano per l’Africa Orientale riprende vigore in
Italia con il fascismo. A spingere Mussolini verso un’impresa
di cui pochi in Italia sentivano la necessità, e che presentava
costi economici e umani sproporzionati ai possibili vantaggi
concreti, furono motivi di politica interna e internazionale.
Con la guerra d’Etiopia Mussolini intendeva innanzi tutto dare
uno sfogo alla vocazione imperiale del fascismo, vendicando
138
lo scacco subìto dall’Italia nel 1896 con la sconfitta di Adua
e mostrando che il suo regime poteva riuscire là dove la classe dirigente liberale aveva fallito. Ma voleva anche creare
una nuova occasione di mobilitazione popolare che facesse
passare in secondo piano i problemi economico-sociali del
Paese (in particolare la disoccupazione, che si manteneva
su livelli piuttosto alti). Mussolini pensava inoltre di poter
sfruttare la favorevole congiuntura diplomatica creata dalla
politica hitleriana, che rendeva l’amicizia dell’Italia più preziosa che in passato per le potenze occidentali. In effetti i
governi francese e inglese – soprattutto il primo – erano
disposti ad assecondare, almeno in parte, le mire italiane. Ma
non potevano accettare che uno Stato indipendente, per
giunta membro della Società delle Nazioni, fosse cancellato
dalla carta geografica da un atto di aggressione. Né potevano ignorare il fatto che in Gran Bretagna e in Francia si era
creata una forte corrente di opinione pubblica in difesa dell’indipendenza etiopica. Così, quando ai primi del’ottobre
1935 l’Italia diede inizio all’invasione dell’Etiopia senza nemmeno farla precedere da una dichiarazione di guerra, i
governi francese e inglese non poterono fare a meno di condannare ufficialmente l’azione e di proporre al Consiglio della
Società delle Nazioni l’adozione di sanzioni consistenti nel
divieto di esportare in Italia merci necessarie all’industria di
guerra. Approvate a schiacciante maggioranza pochi giorni
dopo l’inizio dell’invasione, le sanzioni ebbero un’efficacia
molto limitata: sia perché il blocco non era esteso alle materie prime, sia perché non impegnava gli Stati che non facevano parte della Società delle Nazioni, come gli Stati Uniti e
la Germania. Queste decisioni ebbero però l’effetto di
approfondire il contrasto fra il regime fascista e le democrazie europee e consentirono a Mussolini di montare un’imponente campagna propagandistica tesa a presentare l’Italia
come vittima di una congiura internazionale.
L’immagine dell’Italia proletaria cui le nazioni plutocratiche, già padrone di sterminati imperi coloniali, volevano
impedire la conquista di un proprio «posto al sole» riuscì in
effetti a far breccia nell’opinione pubblica italiana, non
escluse le classi popolari, alle quali fu fatto intravedere il
miraggio di nuovi posti di lavoro e di nuove opportunità di
ricchezza da conquistare oltremare. Le piazze si riempirono
di folle inneggianti a Mussolini e alla guerra. Studenti e attivisti di partito diedero vita a rumorose manifestazioni antiinglesi. Milioni di coppie, a cominciare da quella reale,
accolsero l’invito del governo di donare alla patria l’oro delle
139
loro fedi nuziali. Anche alcuni noti antifascisti, fra cui
Benedetto Croce, si sentirono in dovere di esprimere solidarietà alla nazione in guerra. Il paese fu percorso da un’ondata di imperialismo popolaresco, ben più ampia di quella
che aveva accompagnato, un quarto di secolo prima, la
spedizione in Libia. Gli organi di informazione fecero a gara
nel denigrare la resistenza degli etiopici, riproponendo l’equazione fra popoli di colore e selvaggi e solleticando gli
istinti inconsciamente razzisti del pubblico. Ma non mancò
neppure il tentativo di assegnare alla guerra scopi umanitari, presentandola come una crociata per liberare la popolazione etiopica da un regime corrotto e schiavista.
In realtà gli etiopici si batterono con accanimento per più
di sette mesi sotto la guida del negus Hailé Selassié. Ma il
loro esercito, male organizzato e peggio equipaggiato (molti
soldati non disponevano nemmeno di armi da fuoco), nulla
poteva contro un corpo di spedizione che giunse a impegnare circa 400.000 uomini e fece ampio ricorso ai mezzi
corazzati e all’aviazione (usata in più occasioni per bombardare le truppe nemiche con gas asfissianti). Il 5 maggio
1936, le truppe italiane, comandate dal maresciallo
Badoglio, entrarono in Addis Abeba.
Quattro giorni dopo, Mussolini poteva annunciare alle
folle plaudenti «il ritorno dell’Impero sui colli fatali di Roma»
e offrire al sovrano la corona di imperatore d’Etiopia.
Da un punto di vista economico, la conquista
dell’Etiopia, paese povero di risorse naturali e poco adatto
agli insediamenti agricoli, rappresentò per l’Italia un peso
non indifferente, aggravato dai problemi suscitati dalle sanzioni (poco efficaci militarmente, ma dannose per il commercio) e non compensato dai temporanei benefici arrecati
all’industria dalla produzione bellica.
Ma sul piano politico il successo fu clamoroso e indiscutibile. Portando a termine una campagna coloniale vittoriosa, imponendo la propria volontà alle democrazie occidentali e costringendole poi ad accettare il fatto compiuto (le
sanzioni furono ritirate nell’estate del ’36 e, successivamente, Gran Bretagna e Francia riconobbero l’Impero italiano in
Africa orientale), Mussolini diede a molti la sensazione di
aver conquistato per l’Italia uno status di grande potenza. In
realtà, si trattava di una sensazione illusoria: l’Italia, infatti,
non era in grado di affrontare uno scontro con una potenza
di prima grandezza e aveva potuto «tirare diritto» (secondo
l’espressione mussoliniana) nella questione abissina solo
perché gli inglesi, pronti a mobilitarsi a parole per sostenere
140
il buon diritto dell’Etiopia, non avevano alcuna intenzione di
affrontare una guerra per difenderla. Mussolini era consapevole di tutto questo. Ma, inebriato dal successo etiopico,
credette ugualmente di poter condurre una politica adeguata a una grande potenza, sfruttando ogni occasione (vedi il
caso della Spagna) per allargare l’area di influenza italiana
giocando sulla rivalità fra tedeschi e franco-inglesi.
L’educazione sotto il regime di occupazione fu tesa a
produrre un’ossequiente classe dominata. Agli inizi il governo coloniale sovvenzionò le scuole missionarie che addestravano gli Etiopi ad un livello avanzato. Molti furono mandati in Italia per continuare gli studi e ritornarono in qualità di
preti. Agli inizi del 1936, le scuole governative furono create, ma il numero delle scuole e degli studenti rimase troppo
esiguo per avere una ricaduta sul totale della popolazione.
Per esempio, nel 1940 ci furono solamente 926 studenti in
tutto lo Shoa e solo 282 nello Harar, entrambe provincie
popolose e importanti. Le scuole furono separate non solamente tra Etiopi ed Italiani, ma anche tra Etiopi secondo le
differenze religiose e sociali. Per esempio, ci furono scuole
separate per i musulmani che includevano arabo e studi
coranici, per i bambini degli ufficiali nativi che dovevano
essere addestrati come interpreti, impiegati ed assistenti
amministrativi, e per i bambini delle famiglie umili cui era
insegnato l’agricoltura e l’artigianato come pure leggere,
scrivere, aritmetica e italiano.
Le scuole patrocinate dal governo italiano o missionarie
in Eritrea oggi sono molto più numerose e migliori di quelle
scuole coloniali. Ci sono ventotto di queste scuole: una è a
livello di college. La lingua d’insegnamento è l’italiano, sebbene l’amarico sia pure insegnato.
Durante la guerra etiopica, nonostante che fossero state
commesse delle atrocità da parte delle truppe occupanti, la
colonizzazione italiana fu improntata a principi umanitari a
tal punto che quando l’indipendenza fu ristabilita nel 1941,
a molti Italiani che preferivano restare in Etiopia fu concesso
di farlo. In Eritrea specialmente la presenza italiana è manifesta. Dei 18.000 italiani ora in Etiopia, 5.000 vivono in
Asmara solo, e la maggioranza nel resto dell’Eritrea. La
maggior parte dei migliori negozi, ristoranti e bar in Eritrea
sono posseduti da Italiani. Migliaia di Eritrei sono impiegati
in imprese industriali ed agricole possedute da Italiani. Ci
sono biblioteche, cinema e giornali italiani. Dopo il tigrinya,
la lingua nativa della maggior parte degli Eritrei, l’italiano è
la lingua più importante in Eritrea.
141
È difficile fare delle generalizzazioni circa le attitudini
degli Etiopi verso i loro conquistatori. Prima di tutto, è chiaro che la comunità rurale fu poco influenzata dalla presenza
italiana nel paese. La piccola minoranza cittadina fu quella
che venne in contatto diretto con gli Italiani. Questa può
essere divisa in due gruppi principali.
I primi erano quelli che ricevettero una certa educazione
nelle scuole italiane (che andava da alcuni anni delle scuole elementari ad i livelli avanzati ricevuti in Italia). Questo
gruppo fu largamente attratto dalla cultura che il potere
coloniale voleva ignorare. La capacità nel padroneggiare l’italiano era la chiave per l’avanzamento occupazionale e per
il raggiungimento di uno status sociale più elevato. Quindi
gli Etiopi istruiti cercarono di parlare la varietà standard dell’italiano e considerarono il substandard italiano, che era
impiegato come una lingua di contatto usata solo dalle
masse ignoranti impiegate con compiti servili.
Questi contatti ebbero dei riflessi naturalmente nel campo
linguistico da ambo le parti. Alcuni termini, presi a prestito,
penetrarono nell’italiano, mentre termini italiani furono accolti,
talvolta con adattamenti fonetici, nelle lingue locali.
Lo studio di questi prestiti “esotici”, per impiegare un termine usato da Marco Mancini in una sua monografia, è
abbastanza consistente in italiano, osservando la bibliografia citata a piedi pagina nella sua opera. Tuttavia, stupisce
che, in un simile lavoro, ben documentato, nell’“Indice degli
etimi esotici” (Mancini: 218-31) figurano solo due etimi dall’amarico: nSgus e ras. Pertanto, in appendice a questo
intervento, qui si propone una lista di termini italiani riconducibili, per provenienza, all’Africa orientale:
amarico / amharico [1875; der. di amara / amhara (Kane
1123), nome di una regione dell’altopiano etiopico] lingua semitica, derivante dall’antico etiopico, parlata in
gran parte dell’Abissinia
amba [1880; dall’amarico amba (Kane 1127)] rilievo isolato
a forma di tronco di cono tipico dell’altopiano etiopico
ambaradan [sec. XX; etim. incerta, forse da Amba Aradam,
massiccio montuoso dell’Etiopia presso il quale, nel
1936 si svolse una cruenta battaglia tra le truppe italiane
e quelle abissine] scherz. grande confusione, baraonda
barambara [1889; S. Sonnino “Diario”; dall’amarico balambaras (Kane 862)] capo di un fortilizio su un’amba
beisa [1913; dall’amarico bS’Sz (Kane 923)] orice beisa
bulukbashi [turco milit.; 1503 nella versione antica biluchbassi; dal turco bulukba_i “comandante di compagnia”]
142
nell’esercito turco, grado militare corrispondente a quello di capitano; nelle truppe indigene delle ex colonie italiane, sottufficiale comandante di plotone
caberù [1913 nella var. caberu; dal franc. cabéru] cane selvaggio dell’Etiopia (Canis simensis) considerato il progenitore dei levrieri
cicà [1913 nella var. ant. cicca; dall’amarico øSqa (_um,
Kane 2221)] in Etiopia, capo di un villaggio
cubi [sec. XX] unità di misura di lunghezza in uso in Eritrea
cusso [1875; dall’amarico koso (Kane 1403)] unica specie
del genere Hagenia (Hagenia abyssinica o Brayera
anthelmintica) che cresce sulle montagne dell’Africa
orientale e centrale. Var. koso, kousso, kusso
dagussà [1875 nella var. ant. dagoussa; dall’amarico
dagussa (Kane 1833)] varietà etiopica dell’Eleusine
coracana, i cui semi sono impiegati come cereali e nella
fabbricazione della birra
daula [1956; dall’amarico dawSlla (Kane 1821), voce etiopica] unità di misura per capacità di aridi utilizzata in
Etiopia, corrispondente a circa 93 litri
degà [1892 nella var. ant. dega; dall’amarico däga (Kane
1827)] zona di pascolo nell’altopiano etiopico
deggiasmac [1922; dall’amarico däùùazmaÊÊ (= däùù
azmaÊÊ, Kane 1826) propr. “comandante della porta
(reale)”] grande feudatario etiopico inferiore al ras
degiac [1890, E. Scarfoglio “Abissinia”; dall’amarico
däùùaÊÊ (Kane 1827) “comandante”] feudatario etiopico inferiore al ras. Var. deggiac
derah [1913; dall’amarico derah, dall’arabo dir c “braccio”]
unità di lunghezza pari a 46 centimetri usata in Eritrea.
Sin. emmet
ecciaghiè [1956; dall’amarico Søäge (Kane 1343)] nome
della massima autorità ecclesiastica etiopica
emmet [1956; voce di origine eritrea Smät (Kane 1132)]!
derah
falascià [1892; dall’amarico fäla_a (Kane 2265) propr. “straniero”] tribù etiopica cuscitica di religione ebraica, stanziata nell’Etiopia settentrionale. Sin. falasha
fitaurari [av. 1889 nella var. fitorari; dall’amarico fitawrari (=
fit awrari, Kane 2306) propr. “comandante dell’avanguardia”] nell’organizzazione militare abissina, grado corrispondente a quello di colonnello * in passato, il capo
dell’esercito invasore nel territorio nemico che aveva
anche poteri amministrativi
143
geez [av. 1950; dall’amarico gScSz (gS’Sz, Kane 2023)]
antica lingua dell’Etiopia, di ceppo semitico, conservata
nell’uso liturgico. Var. gheez
ghebì [av. 1889; dall’amarico gSbbi] in Etiopia, spazio interno di un recinto da palizzate che costituiscono la dimora
di un nobile, di un’autorità, o del re. Var. ghebbì
kantibà [1957; dall’amarico käntiba] autorità locale dell’amministrazione eritrea, con poteri equivalenti a quelli del
sindaco
madoqua [sec. XIX; dal lat. scient. MadoqÄa1, dall’amarico
midaqqwa (mSdaqqwa, Kane 326)] piccola antilope africana del genere Madoqua, comunemente detta dik-dik.
Var. madocca
mancor [1957; dall’amarico e tigrino mänqor, Kane 268]
strumento di pena usato in Etiopia, costituito da un
ceppo terminante in una forcella, nella quale veniva fatto
passare il collo del condannato
naib [1895; dall’amarico naib, dall’arabo n_’ib “luogotenente”] nel XVII sec., durante il dominio turco in Eritrea, carica ereditaria di amministratore, governatore
negarit [1840 nella forma nagaret; dall’amarico nägarit
(Kane 1063) propr. “la annunciante”] tamburo tipico
dell’Etiopia, di piccole dimensioni e di forma emisferica,
la cassa di legno o di metallo pregiato, usato in coppia e
suonato con bacchette di legno durante cortei o processioni solenni
neggadras [1958; dall’amarico näggadras (Kane 1068)
“capo dei mercanti”] in Etiopia, capo di una carovana di
mercanti * esattore della dogana con giurisdizione sui
mercati delle località in cui esercitava le proprie funzioni
negus [1577; dal’amarico nSgus (Kane 1066)] sovrano
dell’Etiopia. Der. negussita
qunnà [1959; dall’amarico qunna (qwSnna, Kane 782)] recipiente largo e concavo, in paglia intrecciata, impiegato
per la misura dei cereali spec. in alcune regioni etiopi
ras [1885; dall’amarico ras (Kane 381) “testa, capo”]
nell’Impero Etiopico, titolo che originariamente veniva
conferito ai capi feudali delle maggiori provincie e, successivamente, al più alto dignitario dopo il negus. Il termine ha assunto anche il senso di “despota locale”
safari [1907, da una voce swahili, dall’arabo safara] spedizione di caccia grossa, anche a scopo turistico, effettuata nelle regioni dell’Africa tropicale ed equatoriale
sassà [1913; dall’amarico säsa (Kane 500)] > Sin. saltarupe,
144
unica specie africana del genere Oreotrago (Oreotragus
oreotragus)
sciamma [1888; E. Scarfoglio “Abissinia”; dall’amarico
_ämma (Kane 609-610) “mantello”] ampio scialle, spec.
di morbido cotone bianco, usato come toga da alcune
popolazioni etiopi. Var. scemma, sciammà
sciangalla [1895, etnonimo, dall’amarico _anqSlla (Kane
642), nome con cui gli Abissini designano genericamente le popolazioni negre] qualsiasi popolazione
dell’Etiopia occidentale o del Sudan orientale
schiftà [sec. XX; dall’amarico _Sfta (Kane 667)] in Etiopia e
in Eritrea, fuorilegge, bandito
scioano [av. 1889; der. di scioa, nome di una provincia e
regione storica dell’Etiopia centrale, cfr. amarico _äwa
(_iwa, Kane 667)] nativo o abitante dello Scioa
swahili [1927; dall’ar. saw_Œil, pl. di s_Œil “costa”] lingua
del gruppo bantu, largamente diffusa in Africa centrale
come lingua commerciale interetnica. Var. suahili
tanquà [1927 nella var. ant. tanque; dall’amarico tankwa
(Kane 982)] imbarcazione lacustre di forma allungata,
caratteristica dell’Etiopia, costituita con fasci di fusti di
papiro seccati. Var. tancuà
tec [1891; E. Scarfoglio “Abissinia”; dall’amarico ƒäùù (Kane
2178-2179)] bevanda etiopica lievemente alcolica, dal
sapore amarognolo, ottenuta con miele fermentato in
acqua insieme a foglie o cortecce di determinati arbusti,
bevuta spec. in occasioni solenni. Var. tecc, tecce
teff [1895; dall’amarico ƒef (Kane 2193-2194)] erba amma
del genere Eragrostide (Eragrostis tef), alta fino a un
metro con steli che terminano in una pannocchia, coltivata spec. in Etiopia, dove viene utilizzata per ricavarne
una farina simile al frumento. Var. taf, taff, tief, tieff
torà [1961; voce tigrina, der. dall’amarico tora (Kane 964)]
mammifero del genere Alcelapo (Alcelaphus buxlaphus
tora), simile a un’antilope, dal mantello rossastro e corna
a forma di lira, diffusa nell’Africa orientale
tucul [1879 nella forma tukul, in “La Valigia”; voce indigena,
di origine incerta] abitazione a pianta circolare con tetto
conico di paglia, tipica dell’Africa orientale.
Un termine coniato in quel periodo fu madamismo.
L’istituzione del madamismo venne in esistenza, secondo
Sepelli, uno dei primi scrittori colonialisti italiani, immediatamente dopo l’occupazione italiana del plateau eritreo, e fu in
un primo momento adottato dagli ufficiali italiani in comando
di truppe “native”.3 La pratica risultò, si potrebbe aggiunge145
re, da una notevole mancanza di donne europee nella colonia, una caratteristica che era già sottolineata da una
Commissione reale italiana del 1891.4
Tali unioni conferivano un considerevole prestigio alle
donne locali nella loro società. La prevalenza del madamismo colpì un governatore italiano dell’Eritrea, Ferdinando
Martini, che dedicò un numero di annotazioni talvolta spiritose ad esse nel suo diario.5
La maggior parte dei vecchi colonialisti italiani parlò
molto favorevolmente del sistema del madamismo, più che
generoso verso la prole lasciata nelle colonie dopo la partenza dei padri e, come osserva Alessandro Sepelli nelle
sue Memorie d’Africa (1881-1906), pubblicate successivamente nel 1935, oggetto di attenzione e cure sino alla maggiore età.6
D’altra parte all’arricchimento linguistico dell’italiano, va
aggiunto quello delle lingue locali, di cui, per terminare questo breve elenco viene fornito qualche esempio.
Per quanto concerne i termini dell’italiano standard
penetrati con uno speciale significato nell’italiano semplificato dell’Etiopia abbiamo tra l’altro:
bedri ’prete’ (< It. padre)
regaso ’figlio, figlia’ (< It. ragazzo)
tirobbo ’molto’ (< It. troppo)
u_ire ’lasciare’ (< It. uscire)
menjato ’ottenere un mensile o spendere per le spese
quotidiane’ (< It. mangiato).
BIBLIOGRAFIA
1968. New Redhouse Turkish-English Dictionary. Istanbul.
Bender, Marvin L.; Bowen, J. Donald; Cooper, Robert L.; Ferguson,
Charles A. 1976. Language in Ethiopia (Ford Foundation Language Surveys).
London: Oxford University Press.
Calchi Novati, Giampaolo. 1994. Il corno d’Africa nella storia e nella politica. Etiopia, Somalia e Eritrea fra nazionalismo, sottosviluppo e guerra.
Torino: Società Editrice Internazionale.
Del Boca, Angelo. 1976. Gli Italiani in Africa Orientale. Dall’unità alla marcia su Roma. Bari: Laterza.
De Mauro, Tullio. 1999. Grande dizionario italiano dell’uso, ideato e diretto da Tullio De Mauro. Torino: Utet.
Kane, Thomas Leiper. 1990. Amaharic-English Dictionary. Wiesbaden:
O. Harrassowitz, 2 voll.
146
Kane, Thomas Leiper. 2000. Tigrinya-English Dictionary. Springfield VA:
Dunwoody Press, 2 voll.
Malvezzi, Aldobrandino. 1933. La politica indigena nelle colonie. Padova:
CEDAM.
Mancini, Marco. 1992. L’esotismo nel lessico italiano (Biblioteca di
Ricerche linguistiche e filologiche Nr. 32). Viterbo: Università degli Studi della
Tuscia, Istituto di Studi Romanzi.
Pankhurst, Richard. 1969. “Fascist Racial Policies in Ethiopia: 19221941” Ethiopian Observer: 270-285.
Sbacchi, Alberto. 1980. Il colonialismo italiano in Etiopia, 1936-1940
(Biblioteca di Storia Contemporanea 20). Milano: Mursia.
Wehr, Hans. 1966. A dictionary of modern written Arabic, edited by J.
Milton Cowan. Wiesbaden-London: Otto Harrassowitz.
Note
(1) Dichiarazione fatta da Cesare Correnti il 18 aprile 1875 nel corso di
un’adunanza in Roma della Società Geografica Italiana.
(2) Del Boca, Angelo. 1976. Gli Italiani in Africa Orientale. Dall’unità alla
marcia su Roma, p. 3.
(3) Sepelli, A. 1935. Memorie d’Africa (1883-1906): 196.
(4) Relazione generale della R. Commissione d’inchiesta sulla Colonia
Eritrea. 1891: 47.
(5) Martini, Ferdinando. 1898. Il diario Eritreo, I: 179.
(6) Sepelli, A. op. cit.: 199.
147
SIMAO SOUINDOULA
Historien, Centre International
des Civilisations Bantu de Libreville (CICIBA) - Gabon
Mgr Raponda Walker, une variante de
l’Humanisme Latin en Afrique
Introduction
Deux années exactement après notre rencontre de
Praia, nous voici, presque à la même latitude, mais cette
fois-ci, sur le continent pour préciser nos approches sur l’
influence de l’ humanisme latin en Afrique, dans ses traits de
similitudes et ses particularités par rapport au Quattrocentro
italiano et à la Renaissance française.
Rénovation culturelle qui se produisit en Europe au
XVème et au XVIème siècle, dans les domaines littéraire,
artistique et scientifique d’ une part, et dans les domaines
économique et social, d’ autre part, ce mouvement a influencé, sous une forte dynamique historique, le reste du monde.
En Afrique, centre d’intérêt de notre réunion, l’analyse
que nous avions proposée dans la capitale cap-verdienne
sur le profil humanistique du jésuite camerounais, Englebert
MVENG, a été, à cet égard, je le crois, assez illustrative.
Cette fois-ci, nous avons choisi d’examiner, dans un élan
comparatif diptyque, convergences/particularités, la vie et
l’oeuvre d’un autre érudit de l’Afrique Centrale, le Mgr André
RAPONDA WALKER (1871-1968).
SIMILITUDES ENTRE RAPONDA WALKER ET
LES HUMANISTES LATINS
Le Latin, langue de base
Né à Libreville, en 1871, d’un père anglais et d’une mère
gabonaise, RAPONDA WALKER coula très vite, comme
d’autres jeunes africains du littoral de la sous-région de la
période «Deuxième Evangélisation», dans le séduisant
moule de l’humanisme chrétien.
149
Il commença naturellement l’étude du latin en 1882 jusqu’à son ordination sacerdotale en 1899.
La maîtrise de cette langue, rendue indispensable à
cause de son statut de langue liturgique de l’Eglise romaine,
a permis au prélat gabonais, à l’image des théologiens de
la Renaissance, d’apprécier les textes anciens qui sont,
comme le disait Rabelais, en 1532, «des instruments d’éducation morale, à la fois philologie et philosophie, docte érudition et sagesse».
Le Christianisme comme fondement
Malgré la farouche opposition de sa mère, qui ne voulait
pas d’un fils prêtre, dans un contexte favorable au négoce
côtier, le jeune séminariste trouva le moyen de poursuivre
ses études jusqu’à la rhétorique.
En 1892, il était majeur et pouvait donc se passer des
préférences pragmatiques de sa chère mère.
Il recevra, un peu plus tard, sa soutane et sa première
tonsure avant de poursuivre ses études de philosophie et de
théologie.
L’inébranlable foi chrétienne fondera la pratique sociale
et les activités scientifiques de RAPONDA WALKER à l’instar des humanistes de la période spiritualiste (1470-1547),
longue période d’humanisme à tendance essentiellement
religieuse, d’expression latine d’abord, puis française à partir de 1530.
Les similitudes entre l’opiniâtreté du missionnaire et le
travail méthodique de cette époque sont étonnantes.
L’intérêt pour les langues et les textes
En effet, si cette période est marquée par la restauration
de la grammaire et de la littérature hébraïques grâce aux
travaux de Johannes Reuchlin, (1455-1522), le développement des traductions des textes classiques grecs et latins
avec Guillaume BUDE (1467-1540) et Erasme, humaniste
hollandais d’expression latine (1469-1536), la publication en
langue vulgaire c’est-à-dire en français, des oeuvres de
Platon, César, Cicéron, Juvénal, Perse, Salluste par Etienne
DOLET (1509-1546), Antoine HEROËT (V.1492-1568),
Bonaventure Des Périers (V.1510-1544), Richard LE BLANC
(V.1510-V.1574), Simon VALLAMBERT, Pierre DU VAL, Jean
150
DE LUXEMBOURG, la codification des règles grammaticales et esthétiques de la langue «vulgaires », le toscan par
le Cardinal Pietro BEMBO (1470-1547), quelques siècles
après, en Afrique Centrale, la sensibilité religieuse de l’humanisme est mise en relief par les nombreux travaux et traductions en une dizaine de langues bantu de RAPONDA.
Il mènera ses études en vue de l’apostolat direct et la
connaissance linguistique pure.
Il publiera des grammaires et des recueils de littérature
orale dans des idiomes bantu tels que le fang, parlé au
Cameroun, en Guinée Equatoriale et au Gabon et le vili, en
usage en Angola, dans les deux Congo et au Gabon.
Cette production linguistique ne constituera qu’une partie de son impressionnant travail dont la principale caractéristique sera, à l’image de celui d’Aristote, dans l’antiquité et
des humanistes du Quattrocentro et de la Renaissance, tels
que RABELAIS, son étendue encyclopédique.
Le savoir encyclopédique
En effet, parallèlement à son long apostolat à travers le
Gabon et la Guinée Equatoriale et sa retraite strictement
paroissienne, Mgr RAPONDA s’engagera, avec une
incroyable vivacité, dans la recherche en sciences
humaines dans la sous-région. En effet, il s’intéressera à
l’histoire, à la linguistique, à la botanique et aux traditions
orales.
La respectable bibliographie de cet érudit mise au point
en octobre 1993 présente une dizaine d’ouvrages et une
centaine d’articles scientifiques publiés.
Les tâches d’éducation
Comme les humanistes latins, RAPONDA WALKER se
consacra en plus des ses obligations sacerdotales et cela,
durant près d’un demi-siècle, aux tâches d’éducation; l’un
des champs d’action fondamentale que privilégiaient les
érudits européens, d’Erasme à Montaigne. Le propagateur
africain de la foi chrétienne avait, en effet, conscience
comme ses prédécesseurs latins que humanitas désigne
bien l’essence de l’homme, c’est-à-dire son comportement
culturel.
151
Particularités de l’Humanisme de Raponda
L’approche du parcours de Mgr RAPONDA confirme des
axes de ressemblances mais aussi met en évidence un
ensemble de particularités.
Ces singularités semblent découler: premièrement, d’un
contexte de stabilité doctrinale suscité par l’Eglise catholique après le premier Concile du Vatican, tenue entre 1869
et 1870; et, deuxièmement, de la personnalité profondément
africaine du prélat gabonais.
En effet, celui-ci n’évoqua pratiquement pas, en public,
comme Margueritte DE NAVARRE (1492-1549), confrontée à
la réforme, une éventuelle modération des positions de
l’Eglise romaine, lui qui avait été souvent chargé, durant sa
longue carrière apostolique, de tâches de ministère public
près des populations bantu de la grande forêt équatoriale.
C’est cette attitude de statu quo doctrinal qui semble
expliquer la place franchement marginale des beaux-arts
dans l’oeuvre de RAPONDA WALKER. Alors qu’Englebert
MVENG, sans doute, encouragé par le renouveau de
l’Eglise catholique face au monde moderne amorcé par le
Deuxième Concile du Vatican (1962-1965) s’engagera avec
conviction à la représentation picturale d’inspiration africaine des thèmes bibliques.
Très attaché à son pays, il veut lui être utile efficacement.
Il relégua donc, en second plan, les littératures grécolatines, l’écriture poétique et les beaux-arts.
Il se consacrera, après une appréciation éminemment
rationnelle, à l’essentiel, c’est-à-dire, à développer une
meilleure communication avec les populations, à mieux
connaître leur histoire, leur comportement anthropologique
et leur pharmacopée.
Conclusion
Bien qu’ayant accompli une oeuvre similaire à celle des
humanistes européens, RAPONDA WALKER y apporta des
nuances notables.
Ce fut une véritable variante de l’humanisme latin qui
confirme que l’influence à travers le monde du
Quattrocentro italiano et de la Renaissance française, n’a
pas échappé à la diversité culturelle des peuples.
152
BIBLIOGRAPHIE
BADY, M., «L’humanisme chrétien dans les lettres françaises, XVIème et
XVIIème siècles», Fayard, Paris, 1972.
CHASTEL A. - KLEIN R.,« L’Europe de la Renaissance, l’Age de l’humanisme», éd. des Deux Mondes, Paris, 1963.
DELUMEAU J., «La Civilisation de la Renaissance», Arthaud, Paris, 1967.
JOHNSON D., Reflet du Cameroun in Topic, N° 195, USIA, Washington.
KABASELE-LUMBALA J., Le Christianisme et l’Afrique, une chance réciproque, Karthala, Paris, 1993.
RENAUDET A., Humanisme et Renaissance, Droz, Génève, 1958.
SOUINDOULA S., «O Padre Engelberg MVENG, do humanismo latino ao
humanismo negro-africano» in l’Umanesimo Latino e l’Umanesimo Africano,
Actes, Praia, Capo Verde, gennaio 2000, Fondazione Cassamarca, Treviso,
2000».
VEDRINE H., Les philosophes de la Renaissance, PUF, coll. «Que saisje», Paris, 1971.
153
CHEIKH SAAD BOUH KAMARA
Professeur de Sociologie à l’Université de Nouakchott
(Mauritanie)
Contribution à l’analise des principaux
apports de l’Humanisme Latin
en Afrique de l’Ouest: éléments favorables
et éléments défavorable
Introduction
Les premiers apports de l’Humanisme Latin en Afrique
de l’Ouest dateraient de plusieurs siècles selon nombre
d’Historiens et en se référant à la tradition orale. En Afrique
de l’Ouest, tout au long de la façade de l’Océan Atlantique
des vestiges historiques (ruines, noms de localités…) et
autres légendes locales permettent de situer les premiers
contacts avec ces Portugais, Espagnols et Français à la fin
du XIVème siècle et au début du siècle suivant.
Les premiers explorateurs latins empruntaient les routes
maritimes de la Côte occidentale de notre continent et composaient des cohortes de navigateurs, de traitants et de
commerçants. Ceux-ci et ceux-là ont fortement contribué à
façonner une certaine image ainsi qu’une appréciation
(encore vivaces?) que se faisaient (et ou se font encore?) les
Européens, s’agissant des populations et des contrées africaines. Les Africains de l’époque ne connaissaient de
l’Europe que cet échantillon hétérogène et non moins, très
spécifique: administrateurs, soldats, missionnaires, commerçants, traitants, aventuriers…
La curiosité, le désir ardent de découvrir des terres et de
les annexer constituaient autant de facteurs importants qu’il
convient de souligner. Il faut aussi noter que l’Europe avait
besoin de matières premières. A l’époque les empires coloniaux se bâtissaient et l’expansionnisme ne cessait de se
développer.
Au nombre des principales motivations de ces décideurs et divers responsables de ces découvertes maritimes
il importe de citer, entre autres, d’abord, la ‘‘pacification’’
des terres considérées comme non ‘‘occupées’’, ensuite,
l’expansion de la civilisation latine et, aussi, l’exploitation
des nombreuses richesses réelles ou imaginaires.
155
En plus de ce qui précède, les explorateurs Latins appliquaient leur fameuse devise ‘‘du glaive et du goupillon’’. En
effet, toutes les conquêtes militaires et autres ‘‘pacifications’’
s’accompagnaient de campagnes de prosélytisme permettant aux diverses missions évangéliques d’œuvrer en faveur
de la religion chrétienne. Ces explorateurs se conduisaient
comme si les Africains n’avaient pas de croyances, ni de
cultures, ni de civilisations. Ces ‘‘ruées’’ vers l’or et autres
denrées précieuses constituaient de véritables expéditions
visant le pillage de ces ressources.
Des prêcheurs de rêves se mêlaient à de fervents partisans des conquêtes coloniales et à des stratèges navigateurs fort expérimentés pour s’équiper afin de foncer vers
l’Afrique Occidentale. Toutes ces personnes semblaient ne
rechercher que les intérêts des puissances colonisatrices.
1. De l’Humanisme Latin
Une brève tentative de définition pourrait résumer cet
Humanisme Latin comme une Doctrine ayant pour objet
l’épanouissement de l’Homme …Latin.
A cela il faut ajouter deux facteurs très importants. D’une
part, l’émergence et l’essor du Mouvement des Humanistes
de la Renaissance qui a remis en honneur les langues ainsi
que les littératures anciennes; d’autre part, la Projection philosophique qui met l’Homme et les valeurs humaines audessus de toutes les autres valeurs. A ces deux courants il
convient d’ajouter les apports fertilisants des savants du
siècle des lumières qui ont constitué de véritables précurseurs des défenseurs des Droits de l’Homme.
Dans la présente Communication nous entendons par
Humanisme Latin tout ce puissant courant d’idées qui provenait de l’Italie, de l’Espagne, de la France et du Portugal.
L’Humanisme Latin a permis le développement d’idées
fortes qui ont creusé le lit des doctrines favorables aux
Droits de l’Homme. Citons parmi ces idées l’ancrage de
l’Homme comme valeur essentielle incontournable dont il
faut tenir compte. Les penseurs humanistes ont renoué avec
la sagesse des auteurs de l’Antiquité en insistant sur la priorité à accorder à l’Homme. Celui-ci doit se situer en amont,
au centre et en aval de tout progrès visant les personnes et
les sociétés.
Face à la frénésie liée aux Grandes Découvertes et à
l’essor exponentiel de l’industrialisation, ces initiatives
156
consistaient à recentrer les idées sur la prise en considération de l’Homme. Mais aussi ces Humanistes Latins tenaient
à alerter l’opinion publique sur les éventuels dérapages et
effets pervers de ces deux événements.
L’Humanisme Latin ne saurait être séparé de la religion
catholique qui lui fournissait, ainsi, des arguments et permettait de justifier toutes ces opérations de ‘‘pacification’’.
Les missionnaires apportaient leur bénédiction à ces multiples campagnes menées au nom des Empereurs et des
Rois de l’Europe de l’époque.
Les très nombreux et divers échanges qui s’intensifiaient
à travers ces itinéraires maritimes ont contribué grandement
à façonner un nouvel aménagement de l’espace Ouest africain.
En effet, d’une part, de nombreuses populations se
concentraient sur la côte atlantique attirées par ces trafics
avec les Européens, d’autre part, les fameuses pistes sahariennes intra continentales enregistraient une diminution
notable de leur commerce caravanier du fait de cette gigantesque concurrence.
Il convient aussi de noter d’autres effets induits et pervers: baisse des rezzous (pillages) de ces caravanes, forte
augmentation des violences liées aux actions des pirates,
déclin sensible des villes anciennes sahariennes, énorme
essor des importations des produits industrialisés européens, lente extinction de l’artisanat africain…
2. Apports de l’Humanisme Latin en Afrique de l’Ouest:
eléments favorables
Tout au long de ces siècles, assurément, l’Humanisme
Latin a apporté en Afrique de l’Ouest une remarquable
contribution, qualifiée par de nombreux chercheurs comme
essentielle. Les multiples éléments ainsi recensés pourraient être résumés à travers quelques facteurs considérés
comme hautement positifs.
Tout d’abord, il importe de citer un certain esprit rationaliste ainsi que les fondements des idéaux démocratiques.
Ces deux aspects méritent réellement d’être soulignés. En
effet le rationalisme se distingue comme un véhicule efficient de la pensée. Il permet, non seulement, de mieux
employer les concepts, mais aussi, de façonner les opinions, tout en canalisant les uns et les autres vers des objectifs fort pertinents. L’impact des idéaux démocratiques et
157
leur traduction dans les faits n’échappent guère à personne.
Car, ils constituent le fondement ainsi que le socle d’un
ordre social plus juste qui implique l’équité et la justice.
Ainsi, ils facilitent le développement d’une société plus
juste, donc plus stable. De même ils concourent à l’établissement d’une paix durable et à la croissance harmonieuse
des nations. L’Etat de droit constitue un objectif important
recherché par les peuples colonisés.
Puis, il faut y ajouter la relative bonne organisation du
commerce, de même que l’apport d’une monnaie plus
stable, donc plus pérenne. Ces différents atouts aident,
sans aucun doute à améliorer, considérablement, ces divers
secteurs. Ils favorisent une planification prévisionnelle, de
même qu’une gestion scientifique des tractations commerciales. De plus, l’adhésion à ces approches, de même que
l’utilisation de ces mécanismes et autres diverses
démarches modernes entraînent l’insertion de l’Afrique dans
le concert planétaire des Nations. Toutefois il importe de
souligner avec force que ces transactions financières et
économiques s’effectuaient, très fréquemment, en faveur de
l’Europe. Celle-ci étant, d’une part, mieux nantie en ressources humaines mieux qualifiées, mais, aussi, d’autre
part, possédant une expérience, dans ce domaine, comme
dans bien d’autres, fort riche et très ancienne.
Mais, il convient aussi de rappeler bien d’autres aspects
fort importants tels que certains instruments du Progrès.
Ces facteurs sont considérés, généralement, au plan universel, et, dans divers domaines, comme des secteurs prioritaires: hygiène, santé, éducation… A travers ces vecteurs
vitaux les populations bénéficiaires parviennent à améliorer, considérablement, leurs conditions de vie. Grâce à ces
apports entraînant un puissant impact, les Africains font
connaître leurs civilisations ainsi que leurs cultures et
découvrent celles des autres peuples de divers continents.
L’hygiène et la santé permettent aux groupes sociaux
cibles de lutter contre les nombreuses maladies tout en multipliant les campagnes de sensibilisation et de prévention
concernant les grandes endémies très dévastatrices.
L’éducation, non seulement, détermine l’accès aux différents types de savoir de base, mais, aussi, elle débouche
sur d’innombrables autres possibilités: perfectionnement
professionnel, collecte et analyse d’informations, apprentissage de diverses langues, etc.
Mais tous ces nombreux aspects, bien que positifs, ne
sauraient masquer d’autres multiples facteurs défavorables
158
liés aux apports de l’Humanisme Latin en Afrique
Occidentale. N’est-ce pas, comme le précise un sage
adage chinois: ‘‘Un se divise en deux’’.
3. Apports de l’Humanisme Latin en Afrique de l’Ouest:
éléments défavorables
Parmi les éléments défavorables liés à l’Humanisme Latin
en Afrique de l’Ouest il faut noter, tout d’abord, l’actif commerce des esclaves. Puis il faut souligner que l’impérialisme
constitue son corollaire car il visait le maintien de la domination coloniale. II importe aussi de relever l’inique système de
deux poids deux mesures s’agissant du traitement des colons
et des indigènes. Il n’échappe à personne que l’Humanisme
Latin visait tout autant la tentative d’assimilation des autochtones, ainsi que l’imposition de la religion catholique…
Le très célèbre ‘’commerce triangulaire’’ a considérablement saigné et appauvri l’Afrique. Faut-il le rappeler? Il a
consisté à transporter de force des millions d’esclaves africains vers les Amériques et les Antilles. De cette partie du
monde les traitants exportaient vers l’Europe du café, des
épices, des métaux et autres produits très recherchés. Le
continent africain était abondamment inondé d’armes, d’objets de verroterie, de tissu… Il faut souligner que des potentats africains ont activement participé à ce triste commerce.
L’Afrique était déjà saignée par deux autres formes d’esclavage: celui, interne, opposant les tribus entre elles et celui
qui se faisait en direction des pays arabes.
Cette très sombre page de l’Histoire du Continent noir
relève du devoir de mémoire et du devoir de vérité. Il
convient d’y ajouter le devoir de justice et le devoir de réparation. Les diverses modalités restent à déterminer avec la
participation très active de la Société Civile Mondiale.
L’impérialisme, au service des Européens, était mené,
résolument, par leurs puissances. L’Afrique en a été une des
principales victimes. Ce phénomène mérite encore des
études spécifiques pour mieux cerner, avec précision, l’ensemble de ses contours et pour évaluer, judicieusement,
toutes ses conséquences. Il s’agissait d’un système injuste
conduit exclusivement dans l’intérêt des impérialistes. Sa
justification morale demeure encore de nos jours ahurissante: à l’époque, ses partisans clamaient partout la supériorité
de l’Homme européen!
En effet, dans les Empires coloniaux une situation, forte159
ment décriée, tant à l’époque que de nos jours, prévalait.
Elle consistait à prendre en considération deux types de
personnes: les citoyens européens et les colonisés indigènes. Deux statuts distincts, largement réglementés et diffusés, traitaient des êtres humains de façon très différente!
Cela ne devrait pas tant nous étonner; car à cette époque
en Europe la féodalité triomphait. Ce qui est moins étonnant
c’est la perpétuation de l’impérialisme après le triomphe des
idéaux républicains et démocrates…
Parmi les conduites des Européens, deux autres éléments méritent d’être rappelés: la très forte tentative d’assimilation des Africains et la ferme détermination de vouloir
imposer la religion catholique. Ces démarches consistaient
à dépersonnaliser les indigènes en niant leurs croyances,
en les aliénant, en tentant d’extirper de leur mode de pensée tout ce qui ne provenait pas de l ’Occident. Les ravages
commis suite à ces traitements inhumains restent encore
très vivaces. L’acculturation du colonisé, étudiée avec brio
par Frantz FANON et Albert MEMMI, constituait le cheval de
bataille des impérialistes.
Conclusion
L’Humanisme Latin déferlant sur l’Afrique à partir de la
fin du XIVème siècle contribua, sans aucun doute, directement ou indirectement, à façonner l’évolution politico-historique de ce continent. A ce sujet une recommandation s’impose: il demeure important que diverses études pluridisciplinaires soient réalisées afin de mettre en exergue ses différents apports. Ainsi ces investigations ne manqueront pas
de faire toute la lumière sur ces nombreuses zones d’ombre.
Un regard croisé de spécialistes en Sciences Sociales,
Européens et Africains, permettrait de conjuguer maints
efforts pour bien diagnostiquer cette période peu connue de
l’Histoire de l’Humanité.
Les échanges intercontinentaux actuels s’intensifient.
Les nouvelles technologies de l’information bouleversent les
traditions et facilitent ces échanges. L’avenir de la planète
dépendra de l’utilisation de tous ces moyens. Deux hypothèses pourraient être formulées: soit rechercher la paix et le
bien-être pour tous les Citoyens de la planète, soit vouloir
imposer de nouvelles formes d’impérialisme.
La mondialisation actuelle serait-elle la suite logique de
cet Humanisme Latin? Dans ce cas le Mouvement Social
Mondial pourrait être une forme de puissant correctif!
160
ISSIAKA-PROSPER L. LALÉYÊ
Professeur d’épistémologie et d’anthropologie
à l’Université Gaston Berger de Saint-Louis (Sénégal)
Humanismes et idéologies
du développement
La contemporanéité à l’épreuve
de l’essentiel humain
Notre époque est championne en droits humains, et
pourtant, on y parle peu d’humanisme1. Faut-il voir là un
signe de l’absence chez nos contemporains du souci pour
l’homme et sa dignité comme valeur rectrice de la pensée,
de la parole et du comportement? Je refuse de le croire.
L’humanisme, à mon avis, est de toutes les époques, la
nôtre non exceptée. Ses formes varient énormément; son
contenu beaucoup moins; nonobstant le fait que par
moments et à certains endroits le souci de l’homme et la
célébration de sa dignité paraissent désespérément et définitivement abandonnés.
Quand on a l’occasion de rapprocher les humanismes
latin(s) et africain(s) comme c’est le cas au cours de cette
rencontre dont je tiens à rendre hommage aux initiateurs –
personnes et institutions confondues – je ne pense pas que
nous aurions raison de limiter le sens du mot humanisme à
son acception historiquement attestée telle que l’illustrent
les noms de Pétrarque, Erasme ou Budé. Il en va des humanismes comme des visions de l’homme et du monde.
Chaque groupe humain a la sienne et le sien. Ce ne serait
pas plus sage de supposer que lorsque nous prononçons le
mot humanisme et tel ou tel de ses dérivés, c’est exactement la même idée que chacun de nous a dans l’esprit.
C’est pourquoi je commencerai mon propos par un arrêt au
mot «humanisme» pour dire très brièvement quel sens je lui
donne et quel contenu je (me) refuse de lui affecter dans le
cadre de la présente communication.
Une fois ce minimum de clarification notionnelle assurée,
j’exposerai, dans une seconde partie, les principales présuppositions de l’argumentation que requiert le traitement
du thème que je me suis choisi et qui n’est autre que d’interroger les humanismes latins et africains à partir de la
161
dominante de notre vécu commun actuel à l’échelle de l’humanité et du globe, tant il est vrai que ces deux notions tendent désormais à apparaître comme des synonymes. Ces
présuppositions de ma pensée que l’on pourra considérer
comme autant de postulats auront pour cadre le contemporain en tant que tel et étant donné la propension que l’on
constate chez nos contemporains à confondre l’actuel et le
moderne, je consacrerai au concept de contemporanéité
des considérations susceptibles d’en faire un concept opératoire pour certaines sciences humaines qui seraient
capables, dès lors, de produire des analyses et des conclusions protégées autant que faire se peut des déclarations
tapageuses et des jugements à l’emporte pièce des partisans et des adversaires de la modernité ou de la soi disant
postmodernité.
Dans la troisième partie de ma communication, je
m’adonnerai à des affirmations délibérément rendues
abruptes davantage pour provoquer la contradiction et en
faire jaillir de la lumière que pour porter des accusations
contre des individus, des groupes ou même l’histoire.
*
Le premier contenu que j’affecte au mot humanisme est
la valorisation de l’homme. Mais les notions de valeur et de
valorisation ne vont pas sans poser des problèmes. Le
risque étant de se perdre très vite dans de savantes discussions sur ce qu’est et/ou devrait être une valeur.
Contentons-nous donc d’admettre que chaque fois qu’une
manière d’être ou de faire, individuelle ou collective, est
reconnue comme propre à l’humain au point d’être – en tant
que manière d’être et de faire – choisie, posée, respectée,
enseignée, recherchée, recommandée, prisée, objet d’éloge, de célébration – voire d’un véritable culte – cette manière d’être et de faire fait partie intégrante de l’humanisme du
groupe humain auteur de cette reconnaissance et de cette
valorisation. L’humanisme d’un groupe d’hommes à un
moment de l’histoire et en un point de l’espace, c’est l’ensemble des manières d’être et de faire que ce groupe juge
bon de choisir pour les chérir et les cultiver, ce qui est proprement les valoriser.
Le deuxième contenu que j’affecte à l’humanisme est
que les manières d’être et de faire qui le constituent sont
essentiellement dynamiques. Certes, le choix à la faveur
duquel elles ont été préférées à d’autres les stabilise
162
quelque peu, en apparence tout au moins. Mais fondamentalement, ces manières de faire, constamment menacées
par leurs contraires, nécessitent de la part de ceux qui
adhèrent à elles une vigilance qui avoisine le militantisme, et
parfois un véritable apostolat. Il leur faut comme lutter contre
leurs contraires pour demeurer ce qu’elles sont. Ce dynamisme intrinsèque les rend donc ouvertes. Aussi ont-elles
tendances à adhérer avec une certaine spontanéité à tout
ce qui, venant d’ailleurs, leur paraît concourir à réaliser les
mêmes idéaux qu’elles. A cela, rien de bien étonnant. Car,
s’il est vrai comme l’on dit que «tout ce qui monte converge», alors, les manières d’être et de faire dont se compose
un humanisme en un temps et en un lieu donnés sont
promptes à s’incorporer des éléments venus d’ailleurs pour
autant que ces derniers leur paraissent non seulement compatibles mais plus fondamentalement convergents. Le
double dynamisme dont font montre les éléments constitutifs d’un humanisme les rend ainsi littéralement poreux les
uns aux autres. Pour essayer de rendre compte de cette
propriété qui leur est commune, on pourrait dire que rien
n’est plus semblable à un humanisme qu’un autre humanisme. A celui qu’étonnerait cet air profond de famille de tous
les humanismes, il suffirait de rappeler que malgré les apparences, à quelque endroit et à quelque époque qu’on le
considère, l’homme n’est pas aussi différent de l’homme
qu’on veut bien le croire.
Cette porosité des humanismes les uns aux autres permettra de comprendre la troisième composante que personnellement je me permets d’affecter à l’humanisme en
tant que tel. Je veux parler de l’ouverture de tout humanisme au transcendant, et, de proche en proche au tout Autre
qui n’est autre que Dieu.
Naturellement, la simple évocation de cette propriété des
humanismes fait surgir devant nous la question des humanismes qui se disent et que l’on dit athées. Mais il n’est pas
indispensable, je crois, d’ouvrir tout un débat sur cette question pour se forger une opinion fondée ou sensée en se
réservant de mieux l’argumenter plus tard et à nouveaux
frais. Il peut suffire d’évoquer brièvement le cas de Jean-Paul
Sartre présentant son existentialisme clairement déclaré
athée comme un authentique humanisme. Car en simple
logique, si une doctrine qui se reconnaît elle-même comme
athée réussit à démontrer qu’elle est cependant un authentique humanisme, alors les humanismes qui se conçoivent et
se pratiquent sous le sceau de la foi en un Etre suprême, per163
sonnel et transcendant auront une relative facilité pour
démontrer leur ouverture à la transcendance en tant que telle.
Rappelons que l’athéisme sartrien est d’abord la conséquence «logique» d’un traitement réaliste de notre expérience du monde. Qu’il s’agisse d’un réalisme excessif, pessimiste et acculé au désespoir, les adversaires de Sartre ne se
sont pas privés de le lui faire remarquer. Mais c’est Sartre luimême qu’il convient de suivre dans son argumentation. Or,
ce que constate l’auteur de l’Existentialisme est un humanisme est que l’homme est abandonné à lui-même. Dieu paraît
sourd et aveugle à sa souffrance. Certes, celui qui a la foi et
qui à ce titre n’a plus besoin qu’on l’aide à l’acquérir voit Dieu
dans le moindre élément de sa création. Pour lui, l’homme
n’est pas sans appui; il n’est pas abandonné à lui-même et
n’est pas condamné au désespoir. La divine Providence
dans son infinie bonté pourvoie à tous les besoins et à toutes
les attentes du croyant qui n’a point de peine, dès lors, à
s’imaginer que tout ce qui lui arrive dans la vie est «voulu»
par l’Etre Suprême. Tel – on le sait – n’est pas le cas de celui
qui se dit athée. Ne voyant ni ne sentant Dieu nulle part, à
commencer par son «for intérieur», il se sent totalement sans
appui et condamner à se tirer d’affaire tout seul.
C’est justement ce que pense Jean-Paul Sartre lorsqu’il
écrit: «…l’homme, sans aucun appui et sans aucun secours,
est condamné à chaque instant à inventer l’homme»2. Mais
de cet homme littéralement condamné à être libre, Sartre
écrit aussi: «Tout se passe comme si, pour tout homme,
toute l’humanité avait les yeux fixés sur ce qu’il fait. Et
chaque homme doit se dire: suis-je bien celui qui a le droit
d’agir de telle sorte que l’humanité se règle sur mes
actes?»3
Il n’est pas nécessaire de citer plus longuement l’auteur
de l’Existentialisme est un humanisme pour voir de quelle(s)
manière(s) l’humanisme sartrien, bien que présenté comme
athée, reste ouvert à la transcendance. Car qu’est-ce que
l’humanité….. pour un homme réduit à ses seules forces et
presque condamné à se créer de toutes pièces comme le
pensait Sartre? Que peut bien signifier pour cet homme
(ramené pour les besoins autant de la cause que du raisonnement aux limites de Sartre lui-même en tant que penseur)
l’homme auquel font référence les affirmations de l’auteur de
l’Existentialisme est un humanisme lorsqu’il déclare tour à
tour:
1. «… je crée une certaine image de l’homme que je
choisis; en me choisissant, je choisis l’homme.»4 ou encore
164
2. «… il n’est pas un de nos actes qui, en créant l’homme que nous voulons être, ne crée en même temps une
image de l’homme tel que nous estimons qu’il doit être.»5?
Pour un homme dont l’horizon se bornerait aux seules
limites de son être biologique, que sont cette valeur, ce bien,
ce mal dont parle l’auteur? Qu’est-ce que «affirmer» et
qu’est-ce que «choisir» et surtout «se choisir et en même
temps choisir pour tous les autres hommes»? Il faut le
reconnaître humblement et le dire sans ambages: il n’y a
rien dans l’homme que l’on puisse réduire à l’individu. Dès
que chacun de nous s’arrête à son expérience en tant
qu’ego, mais surtout, aussitôt que cette expérience fait l’objet d’une attention qui la scrute, qui la creuse et quelque
douloureuse qu’une telle égologie6 puisse parfois être, c’est
tout l’humain qui s’y glisse et s’y installe, peu à peu mais
dans une éclatante évidence qui frise l’indicible, l’ineffable.
Limitant à trois les caractéristiques élémentaires de l’humanisme – de tout humanisme – nous pouvons donc dire
que valoriser l’homme tel qu’on le conçoit, être dynamique
en soi et par rapport à son entourage immédiat et lointain et
être ouvert à l’autre y compris au tout autre, peuvent être
considérés comme les caractéristiques de l’humanisme.
*
Ma première supposition, dans la présente communication, est que l’humanisme est une «donnée» universelle à
l’échelle de l’humain. Je le conçois donc comme une des
dimensions essentielles de toute culture. Il n’est jamais
absent d’aucune d’entre elles. Plus explicite ici que là, portant sa conscience de soi à un véritable paroxysme ou
demeurant si discret et silencieux qu’on en viendrait facilement à mettre en doute sa simple existence, l’humanisme tel
que je le conçois est de tous les temps et de tous les lieux
à l’échelle de l’humain. La condition nécessaire et suffisante pour qu’il existe est qu’il y ait un groupe humain organisé
en société et produisant cette «chose» spéciale que nous
nommons la culture. Ma conception de l’humanisme pourrait
donc être considérée comme «anthropologique». Sans se
confondre avec la culture, il est présent chaque fois qu’elle
nous est donnée.
Mon second présupposé est que tout développement
est la mise en application d’une idéologie. Cela quel que
soit le degré de la conscience de soi à laquelle est parvenue cette idéologie. Pour admettre, ne serait-ce qu’à titre
165
d’hypothèse de travail une telle concomitance, il suffit d’accepter que par développement l’on entende un système
d’idées dynamiques à l’origine d’une action collective. Car
une action collective ne saurait se poursuivre sans un minimum de référence à des repères également collectifs. Il s’en
suit que les idées contenues dans l’idéologie ainsi entendues se distinguent d’abord par leur dynamisme intrinsèque. Que les voies qu’elles empruntent soient
conscientes ou non, elles innervent la totalité de l’action collective à un moment donné de la vie du groupe.
Mon troisième présupposé est que le continent africain
peut être regardé comme une véritable forêt d’humanismes.
Ils y sont nombreux; plus anciens les uns que les autres;
habitués, pour certains d’entre eux à s’affronter plus ou
moins violemment, mais parvenus, il n’y a pas si longtemps
à un état d’équilibre aussi relatif que réel, permettant de
facto une coexistence pacifique. Equilibre relatif ou dynamique que la colonisation, on le sait, sera venue perturber
en profondeur.
Cependant, nous aurions tort de penser qu’il y avait en
Afrique autant d’humanismes que d’ethnies! Ces humanismes convergeaient nécessairement, étant donné d’une
part leur cadre écologique relativement identique et d’autre
part leur soubassement métaphysique et religieux relativement homogène à défaut d’être partout identique. Les
points de convergence de ces humanismes africains légués
par la tradition sont aujourd’hui clairement perceptibles
dans ce que nous nommons la personnalité négro-africaine
traditionnelle telle que la psychologie sociale et l’anthropologie permettent de la mettre en évidence7.
Mon quatrième et avant dernier présupposé est que l’humanisme me paraît prompt à se muer en idéologie. Il suffit,
peut-on dire, que l’occasion lui en soit donnée. Et celle-ci
l’est presque toujours. Car l’ensemble des valeurs à la fois
humaines et humanisantes que l’humanisme reconnaît,
regroupe, recommande, célèbre et diffuse semble(nt) porté
par une énergie propre qui d’abord les cimente en un bloc
autoportant, autosuffisant et constamment désireux de tout
inspirer, de tout animer et de tout régenter. On parlerait de
l’impérialisme consubstantiel de tout humanisme sur ce
point qu’on n’aurait pas tout à fait tort. Ainsi, non seulement
ces valeurs, une fois réunies en système, tendent à faire le
vide autour d’elles, mais surtout, elles écartent plus ou
moins violemment tout ce qui s’oppose à elles et il peut suffire de ne pas leur être favorable pour être pris pour un
166
ennemi à abattre! Comme quoi, les barbares et autres sauvages sont toujours «bons» à faire disparaître. Et que sont
les «barbares» sinon ceux qui adhèrent à un humanisme
perçu comme plus ou moins radicalement différent du
nôtre?
Si tout humanisme est prompt à se muer en idéologie
(présupposé n° 4) et si tout développement est la mise en
application d’une certaine idéologie (présupposé n° 3),
alors, derrière toute théorie du développement et même tout
simplement derrière toute situation de développement, il n’y
a pas seulement une idéologie qui sommeille, il y a également et toujours un humanisme qui veille. Implicites ou explicites, cette idéologie et cet humanisme sont là et le problème n’est pas tant d’affirmer leur(s) existence(s) que de pouvoir la mettre en évidence en utilisant à bon escient aussi
bien les ressources d’une observation dûment outillée que le
support d’une argumentation rigoureuse et rationnelle.
Sur l’arrière plan de la clarification terminologique
consacrée à la notion d’humanisme et de ces quatre présuppositions considérées pour faire vite, comme autant de
postulats, mon problème, dans le cadre de la présente communication, c’est de considérer l’idée dominante actuelle du
développement comme une donnée de départ, de supposer à titre d’hypothèse de travail, qu’elle recouvre aussi bien
une idéologie qu’un humanisme et de confronter quelques
unes des données majeures de cette idée dominante d’une
part à l’humanisme implicite qui la véhicule et, d’autre part,
à l’ensemble des humanismes dûment ramenés à l’essentiel
de leur message pour déceler ne serait-ce qu’en creux, les
voies d’une humanité encore à venir. Mais pour qu’un tel
exercice soit possible, il me faut m’arrêter à une notion qui
nous joue des tours en raison de la proximité qui la caractérise par rapport à d’autres notions qui nous sont peut être
plus familières mais qui ne présentent pas le même intérêt
et ne sont pas directement mêlées à des enjeux d’importance comparable. Je veux parler de la notion de contemporanéité.
La contemporanéité évoque d’abord l’idée de simultanéité. Elle implique ensuite la concomitance entre deux évènements qui se déroulent parallèlement dans le temps sans
cependant nécessairement s’entre déterminer. Elle signifie
enfin ce qui est actuel; à ceci près que cette actualité peut
se situer dans le présent, dans le passé ou même dans
l’avenir. Par rapport à cette troisième signification de la
contemporanéité, deux êtres ou deux choses contempo167
raines sont des êtres ou des choses ayant eu, ayant ou
appelés à avoir un même présent.
Dans les trois acceptions de la contemporanéité qui précèdent, il y a quatre notions. Pour départager les trois premières de ces notions indûment rendues concurrentes par
le sens commun, faisons remarquer que le sujet qui constate une simultanéité de deux évènements et en parle ne s’y
implique pas nécessairement. Tandis que le sujet qui use de
la notion de contemporanéité peut s’inclure lui-même dans
la propriété dont il parle. Ainsi, la simultanéité ne concerne
que deux faits (ou sujets) considérés dans le temps alors
que la contemporanéité concerne nécessairement le sujet
qui en parle. Les contemporains d’Aristote ou d’Alexandre le
Grand ne sont de toute évidence pas les nôtres, mais chacun de nous a ses contemporains. Pour le meilleur comme
pour le pire, d’ailleurs, puisque pour tuer Abel, il a bien fallu
que Caïn fût son contemporain!
L’intérêt qu’il y a à préciser le sens de la contemporanéité se trouve selon moi dans la confusion dont cette notion
est l’objet par rapport à la notion de modernité. Car, si les
hommes, les faits et les évènements qui coexistent dans un
espace donné en un temps donné sont contemporains les
uns des autres, il s’en faudrait de beaucoup pour que tout
ce qui est contemporain soit automatiquement moderne.
La notion de modernité possède en effet une connotation valorisante que ne contient pas nécessairement celle de
contemporanéité. C’est justement à cause de sa neutralité
éthique (et même esthétique) que la contemporanéité me
paraît préférable à toute autre notion apparemment semblable si l’on désire examiner un état de l’évolution de l’humanité sans se laisser piéger par les innombrables jugements de valeur qu’entraîne la moindre référence à l’humanité comme propriété (ou ensemble de propriétés) et
comme valeur. Or, le développement est partie intégrante
de notre contemporanéité à tous. S’en suit-il qu’il fasse aussi
partie de notre modernité ? Il est permis de ne pas répondre
machinalement à cette question! Et d’abord, qu’est-ce que
le développement?
*
Si de la lucarne d’un vaisseau spatial, il était demandé à
quelqu’un à qui cette position exceptionnelle permet de
tenir l’humanité entière sous un seul regard, de dire ce
qu’est le développement, il dirait probablement que c’est
d’abord un ensemble de mouvements.
168
En effet, petites ou grandes, toutes les sociétés
humaines d’aujourd’hui travaillent à leur développement.
Mais si le développement est un ensemble de mouvements,
il n’est pas un mouvement d’ensemble. Car il n’en a ni l’homogénéité structurale dynamique ni l’harmonie; il n’en a
donc pas la grâce. Tous les mouvements de la vie individuelle et collective sont désormais orientés vers le développement. Il en est la finalité permanente et donc universelle.
Notre astronaute ferait sans doute remarquer ensuite
que l’ensemble de mouvements qu’est le développement,
faits de myriades d’attitudes, de comportements et d’actions individuels et collectifs, est porté par une multitude
d’idées, de pensées et de théories. Produites par une multitude de sciences plus exactes les unes que les autres,
adossant leurs doctrines à l’observation, à l’expérimentation
autant qu’à l’imagination, ces pensées projettent ici et là des
spots de lumière intense qui constituent autant d’espace de
rationalité plus ou moins hermétiques les uns aux autres.
D’une part le nombre élevé et croissant de ces zones de
lumière entretient en nous le vif espoir que l’ensemble du
phénomène qu’est le développement ne va pas tarder à
recevoir une explication rationnelle totale. D’autre part, la
multiplication de ces zones lumineuses agissant comme
autant d’étincelles, n’empêche pas une gigantesque zone
d’obscurité d’envelopper ce qui, comme une comète, continue de déchirer de son éclair l’épais velours noir d’un univers illimité.
La coexistence paradoxale de tant de lumière et de tant
d’obscurité n’est pas faite pour rassurer. Ceux qui en prennent conscience ne peuvent éprouver que du vertige. A
moins qu’ils ne se bouchent les oreilles et ne se ferment les
yeux pour essayer de se soustraire à ce qui les dépasse et
les déstabilise si profondément. C’est que derrière le gigantesque amas de mouvements qu’est le développement se
trouve et évolue une idée gigantesque. Celle-ci, en tant
qu’idée, n’est elle-même qu’un gigantesque système
d’idées à l’intérieur duquel, tout en donnant l’impression
d’être séparés par des cloisons étanches, des ensembles
d’idées s’entre déterminent pour produire une orientation
résultante puissante. Aucun de ces ensembles ne suffit à lui
seul pour produire cette orientation résultante. Chacun
d’eux est au contraire totalement soumis à cette orientation.
Néanmoins l’orientation résultante est et n’est que le produit
de l’interaction de ces ensembles d’idées les uns sur les
autres.
169
C’est à cette orientation résultante que l’on peut donner
le nom d’idéologie. On pourrait même l’appeler une méga
idéologie.
Rappelons qu’avant d’élire domicile dans les sciences
sociales et humaines, notamment dans les sciences politiques et les sciences économiques, le concept de développement s’est d’abord illustré dans les sciences de la
nature et dans les sciences du vivant. L’image de la graine
mise en terre et qui germe, devient une plantule avant de
s’épanouir en une plante plus ou moins géante qui donne
naissance à des fleurs puis à des graines appelées à suivre,
à leur tour, ce même itinéraire quand les conditions en
seront remplies demeure l’une des meilleures illustrations
que l’on puisse donner du développement.
Ce qui est ici vrai du végétal l’est également de l’animal.
Le concept de développement, après s’être épanoui dans
les sciences de la nature végétale et animale n’a pas tardé
à gagner les sciences de l’esprit; tant il est vrai que la vie
mentale demeure un des multiples aspects de la vie, notamment chez l’homme. Ainsi, au fur et à mesure que la psychologie des différentes fonctions de l’esprit humain a pris
conscience des contraintes et des avantages de son aspiration à la scientificité, la notion de développement a bénéficié des illustrations qui font désormais apparaître la chose
nommée développement comme une des données les plus
permanentes et les plus précieuses de la vie sous toutes
ses formes. Ainsi, de W. Wundt (1832-1920) à Piaget (18961980) en passant par Karl Marx (1818-1883), S. Freud
(1856-1939), Jung C.G. (1875-1961) et Watson (1878-1958),
la psychanalyse ou psychologie des profondeurs, la psychologie sociale, la psychologie de l’intelligence et la psychologie des fonctions essentielles que sont la perception,
la mémoire, la volonté, et même l’amour, la haine et la jalousie ont révélé ce que toutes ces dimensions de la nature
humaine doivent au développement.
De nos jours, l’omniprésence du mot et de l’idée de
développement nous pousse à oublier ou à minimiser l’ampleur de l’événement que fut la découverte du développement en tant que tel. Car, jusqu’à la fin du dix-huitième
siècle, et pour nous limiter à la civilisation européenne, la
réalité du développement, sans être totalement étrangère
aux sciences n’avait dans aucune d’elles l’importance que
nous lui connaissons aujourd’hui. Dans la connaissance de
l’univers cosmique comme dans celle du monde humain et
de l’homme lui-même conçu comme un microcosme, tout
170
paraissait se trouver à peu près dans l’état dans lequel la
création est sortie des mains de son Créateur.
Ce n’était pas seulement les astres qui tournaient en des
cercles réguliers autour d’un centre fixe. C’était aussi des
facultés humaines «sorties» toutes construites des mains de
Dieu. Certaines sciences, la logique et la mathématique
notamment, donnaient même l’impression d’être achevées,
d’avoir non seulement saisi tout leur objet, mais encore et
surtout exprimé toute la vérité dont elles étaient capables.
Emmanuel Kant (1724-1804) aura sûrement été le dernier
grand épistémologue des sciences de cet univers fixe8.
C’est pourquoi la mise en évidence de l’évolution fut une
véritable révolution. Nous aurions tort de penser que nous
avons fini d’en prendre la mesure et d’en tirer toutes les
conséquences. C’est pourquoi aussi, lorsque nous observons l’hégémonie actuelle qu’exerce le concept de développement9 dans les sciences politiques et sociales, nous
devrions avoir le courage de replacer ce concept dans le
contexte des sciences pour lesquelles l’objet englobe l’homme comme individu, les sociétés en tant qu’individus et
même l’humanité entière contenue dans les limites d’un
globe qui est loin d’être «seul au monde»!
Concrètement, il y a un développement des galaxies et
un développement du projet humain tel que Dieu l’a conçu,
voulu et installé qui englobe les développements des continents, des régions, des pays, des Etats ou des classes
sociales à l’intérieur d’une même société. C’est en prenant
conscience de la nécessité d’intégrer à la pensée cet
emboîtement des développements que j’affirme: «l’orientation résultante générée par l’interaction des ensembles de
savoirs que nous pratiquons et possédons aujourd’hui n’est
pas seulement une idéologie, mais une méga idéologie».
Une idéologie n’est pas un simple amas d’idées. Les
idées n’étant pas des choses matérielles, il ne saurait être
question de les amasser ou de les entasser. Leur immatérialité – qu’il ne faut pas confondre avec de l’irréalité – n’autorise sur elles que certaines opérations. Parler de manipulation des idées, c’est être déjà près de contrevenir à leur
nature. Disons donc qu’une idéologie n’est pas un simple
ensemble d’idées. La relation unissant les idées aux choses
et aux êtres qui en tant qu’acteurs agissent sur ces choses
nécessite que soit soulignée une deuxième dimension des
idées et des idéologies. Je veux parler de leur abstraction.
Ce sont des attitudes individuelles ou collectives, des
comportements, des actions et des actes des hommes agis171
sant seuls ou en société qu’il est possible de voir et de toucher. Il n’en va pas de même des idées relatives à ces attitudes, ces comportements, ces actes ou ces actions. Ces
actes étant concrets, palpables, sensibles, les idées avec
lesquelles ils sont en rapport ne peuvent être que pensées.
Elles sont donc par définition impalpables, immatérielles.
C’est en ce sens qu’on les dit abstraites. Mais il ne suffit pas
qu’étant donné un ensemble de choses et de comportements, il y ait un ensemble d’idées avec lesquelles ces
choses, ces acteurs et ces actes sont en relation pour que
nous ayons une idéologie. L’ensemble d’idées susceptible
d’être considéré comme une idéologie se caractérisera, dès
lors, par sa nature de système. Cet ensemble doit former un
tout à l’intérieur duquel les parties que sont les idées se
déterminent les unes les autres. Cette détermination est placée sous le double effet du tout qui contient les parties et de
chacune des parties considérées isolément.
L’ensemble d’idées qu’est l’idéologie se caractérisera
ainsi par deux traits qui pourraient surprendre mais qui
demeurent parfaitement explicables. Le premier est la relative indépendance des idées de cet ensemble par rapport
aux comportements à l’origine desquels elles se trouvent. Le
second est non seulement l’autonomie du système des idées
contenues dans l’idéologie, une fois que ce système s’est
constitué, mais encore et surtout l’auto portance de ce système. En tenant compte de ces deux traits caractéristiques,
il devient possible de comprendre de quelle manière une
idéologie peut ne pas être totalement présente dans une
conscience humaine individuelle. Les idées qui constituent
cette idéologie ont donc pour référentiel et pour substrat non
pas l’individu, mais le groupe auquel il appartient.
Par ailleurs, ce n’est pas seulement la conscience individuelle qui ne contient jamais la totalité d’une idéologie donnée. La conscience collective elle-même ne peut avoir de
l’idéologie qui la fait vivre et qu’elle fait vivre qu’une vision ou
une possession parcellaire et épisodique. En conséquence,
chaque fois que l’on statue sur l’idéologie d’un groupe
humain, d’une classe sociale ou d’une époque donnée, on
s’expose à des contestations de divers ordres dont l’origine
se trouve dans la nature abstraite des idées, dans la
conscience seulement partielle dont une idéologie peut jouir
de la part des individus et du groupe que cependant elle
détermine, et enfin dans l’auto portance de cette idéologie
en vertu de laquelle elle semble mener une existence détachée de celle du groupe qu’elle détermine.
172
Telle étant ma conception de l’idéologie, la méga idéologie que je constate à l’origine du développement tel que les
hommes et les sociétés d’aujourd’hui s’efforcent de le réaliser
a ceci de remarquable qu’elle est plus puissante que la technologie, plus puissante que la science, plus puissante que
les philosophies, plus puissante que les politiques, plus puissantes que les religions et même plus puissante que les idéologies déjà connues, nommées et plus ou moins adéquatement étudiées. Le beau projet des idéologistes et idéologues
du 19ème siècle qui ont voulu, en se plaçant hors d’atteinte
de toute métaphysique, mettre en évidence l’origine, la structure et le fonctionnement des idées constitutives de l’idéologie ne me semble pas avoir été complètement accompli.
A voir les rôles que joue la méga idéologie qui nous est
contemporaine dans nos vies individuelles et collectives, on
ne peut que souhaiter une renaissance de l’étude patiente
et objective du phénomène idéologique en tant que tel. Car,
par fatalisme ou par démission de l’intelligence, si ce n’est
de la raison, le risque me paraît aujourd’hui énorme de laisser les mécanismes idéologiques qui régissent nos sociétés
tourner tout seuls.
En attendant qu’une science rénovée de l’idéologie nous
offre l’occasion d’éclairer les soubassements, les structures
et les différents pièges et forfaits de la méga idéologie qui
mène notre monde, la dominante de notre expérience commune actuelle est la souffrance et la douleur. Même ceux qui
se disent et que nous croyons déjà développés n’ont ni la
tranquillité ni la paix. Non seulement ce développement tant
envié est loin d’apporter le bonheur à ceux qui y travaillent
sans relâche, mais surtout, nous nous rendons de plus en
plus compte que c’est lui qui produit, entretient et aggrave
chaque jour la pauvreté des individus pauvres dans les
sociétés dites développées ainsi que la pauvreté et la misère des groupes humains périphériques dans sociétés dites
en voie de développement.
C’est justement parce que le développement génère partout de la souffrance et de la douleur qu’il est impossible de
ne pas se poser certaines questions troublantes à son sujet,
par rapport à l’humanisme et aux humanismes. En effet, ce
développement est-il le produit d’un humanisme et si oui
lequel? Et s’il ne vient pas d’un humanisme, serait-il capable
de nous mener à un humanisme? Dans ce cas, par quelles
voies et à quel prix? Fondamentalement, qu’est-ce qu’un
humanisme pourrait apporter au développement tel que
nous le concevons et essayons de le réaliser aujourd’hui?
173
*
Que je sache, aucun humanisme ne dit: l’essentiel, c’est
de bien manger, c’est de bien boire! Pas un humanisme ne
dit: l’essentiel, c’est de produire, c’est de consommer, c’est
de commercer avec ses semblables, avec ou sans les institutions de Bretton Woods. Aucun humanisme, à ma connaissance, ne déclare: l’essentiel, c’est de faire la guerre à
l’autre, c’est de le réduire à l’esclavage, de le transporter
par delà les océans pour le faire travailler gratuitement de
père en fils durant des générations! Je ne connais pas d’humanisme qui dise, l’essentiel, c’est de coloniser des
peuples entiers, déstructurant profondément et durablement leurs sociétés et leurs cultures!
Mais je ne connais pas davantage d’humanisme qui
dise: l’essentiel, c’est de prendre des avions et de les jeter
sur les tours jumelles un onze septembre 2001, tuant des
milliers d’êtres humains en quelques secondes.
Mais oui: aucun humanisme ne dit toutes ces choses et
pourtant, elles sont arrivées. Elles nous sont arrivées. Elles
continuent de nous arriver!
Ce que disent les humanismes, où qu’on les trouve et à
quelque époque qu’on les prenne, c’est: «quoi que tu
fasses, fais en sorte qu’en le faisant, tu sois toujours plus
homme»! Non pas que tu sois «plus qu’homme». Mais simplement et sérieusement plus homme!
Bien évidemment, le mot humanisme n’existe pas – tel
quel – dans les langues africaines! Et comment cela se
pourrait-il ? Le mot n’existe pas, mais la chose, fort bien! Et
dans la mienne de langue africaine, en yoruba, HUMANISTE se dit OMONLUWABI: «Celui que ses propres actes
enfantent»; enfanter dans le sens de générer!
Je vous remercie pour votre aimable attention.
174
Notes
(1) Il y a des exceptions qui pourraient «confirmer» ce constat! C’est ainsi qu’on peut lire dans l’allocution prononcée par le Président de la
République Française lors de son investiture le 16 mai 2002: «Fidèle à l’idéal
humaniste qui guide le peuple français depuis la proclamation des Droits de
l’Homme et du citoyen, je veillerai à ce que les principes de liberté, d’égalité
et de fraternité inspirent constamment l’action de son gouvernement.»
Une autre exception plus ancienne et plus intéressante par rapport au
présent colloque se trouve dans l’œuvre de L.S. Senghor qui a explicitement
abordé la question de l’humanisme. Voir à ce titre Liberté 1. Négritude et
humanisme, Paris, Seuil, 1964, dans lequel se trouve le texte intitulé «Eloge
de la latinité». Ouv. Cit., pp. 354-357.
(2) J.P. Sartre, L’existentialisme est un humanisme, p. 38.
(3) Idem, p. 31.
(4) «…Et si je veux, fait plus individuel, me marier, avoir des enfants, même si ce mariage dépend uniquement de ma situation, ou de ma passion, ou
de mon désir, par là j’engage non seulement moi-même, mais l’humanité tout
entière sur la voie de la monogamie. Ainsi je suis responsable pour moi-même et pour tous, et je crée une certaine image de l’homme que je choisis; en
me choisissant, je choisis l’homme.» Cf. J.P. Sartre, ouv. cit, p. 27.
(5) «…Quand nous disons que l’homme se choisit, nous entendons que
chacun d’entre nous se choisit, mais par là nous voulons dire aussi qu’en se
choisissant il choisit tous les hommes. En effet, il n’est pas un de nos actes
qui, en créant l’homme que nous voulons être, ne crée en même temps une
image de l’homme tel que nous estimons qu’il doit être. Choisir d’être ceci ou
cela, c’est affirmer en même temps la valeur de ce que nous choisissons, car
nous ne pouvons jamais choisir le mal; ce que nous choisissons, c’est
toujours le bien, et rien ne peut être bon pour nous sans l’être pour tous.» ouv.
cit. p. 25-26.
(6) Voir I.-P. Lalèyê, «Le même et l’autre de l’homme. Le savoir aux prises avec la différence» dans «Philosophies africaines: traversées des expériences», Rue Descartes n° 36, Collège International de Philosophie, Juin
2002, Paris, Presses Universitaires de France, pp. 75-91, [200 p.].
(7) Cf. I.-P. Lalèyê, La conception de la personne dans la pensée traditionnelle yoruba. Approche phénoménologique. Herbert Lang et Cie SA,
Berne, 1970, 252 p.
(8) La première édition de la Critique de la raison pure est de 1781.
(9) Cf. I.-P. Lalèyê, «Du temps comme dimension au temps comme condition du développement», dans S.D. Diagne et H. Kimmerle (édit.), Temps et
développement dans la pensée de L’Afrique subsaharienne, Etudes de philosophie interculturelle, n° 8, éditions Rodopi, Amsterdam, Atlanta, GA 1998,
327p, pp. 251-265.
175
MACIEL MORAIS SANTOS
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto
(Portugal)
Um episódio do mercado de trabalho
em África – o relatório Nightingale de 1906
Há cerca de cem anos, o humanismo europeu ainda
precisava de explicitar a sua condenação do tráfico de
escravos e de a consagrar juridicamente. As ratificações
internacionais eram recentes (Berlim em 1885, Bruxelas,
1892) embora já parecessem irreversíveis a todos os governos constitucionais. No entanto, ao mesmo tempo, estados
nacionais e capitais produtivos começavam a implantar-se
nos territórios coloniais e a transformá-los de um modo que
implicava o trabalho assalariado. Onde não o havia – e esta
relação laboral era praticamente inexistente na África subsahariana – criavam-se grandes pressões para corrigir a
história e a geografia, inclusivamente nos países onde a tradição abolicionista era mais forte.
Os pontos seguintes referem-se a um episódio desta
transformação social que, pelas contradições diplomáticas
envolvidas, contribuiu para apressar o fim de um processo
já com algumas décadas de suspeitas esclavagistas.
Envolveu simultaneamente três colónias africanas e duas
metrópoles europeias: S. Tomé e Moçambique, do lado português e a África do Sul, do lado inglês.
1. O mercado de trabalho em África
1.1 A recuperação dos circuitos do trabalho forçado
Praticamente até às décadas de 1940-50, a agricultura
do cacau constituía um ramo de composição técnica inferior à média e os seus custos de produção tinham como
principal verba o trabalho directo. A extensão das chamadas “frentes” do cacau – isto é, as margens da floresta
húmida a transformar em cacaual – dependeu portanto da
177
maior ou menor facilidade na obtenção de fluxos migratórios, sem os quais seriam impossiveis os arroteamentos e
plantações iniciais. Numa agricultura baseada em explorações individuais, a necessidade de aumentar a densidade populacional não obriga à criação de um mercado de
trabalho. Contudo, para as explorações organizadas no
modo capitalista de produção, a necessidade de população trabalhadora toma a forma da necessidade de uma
população assalariada.
Em África, o sistema de plantações foi pela primeira vez
instalado no arquipélago de S. Tomé. Como é sabido, nem
nas ilhas nem em praticamente nenhuma região de África
existiam então condições para que uma procura concentrada de assalariados fosse satisfeita. A proletarização de
grandes efectivos demográficos dependia de uma reorganização fundiária que, na maioria das regiões, os novos
poderes coloniais não tinham completado ou, em algumas
regiões, sequer iniciado.
Dado que nas regiões coloniais os investimentos tendiam a dirigir-se para ramos de produção cuja diferença
entre custos e preços no mercado mundial proporcionava
grandes margens de lucros, a utilidade marginal deste bem
“raro” – a força de trabalho africana – esteve constantemente em alta. Este fenómeno não afectou apenas a agricultura do cacau de S. Tomé e Principe. Em todas as
situações nas quais se desenvolveram exportações de mercadorias assente no modo capitalista de produção (ramo do
açúcar nas ilhas do Índico ou no Natal, dos diamantes no
Kimberley, do ouro no Rand) surgiu uma pressão sobre as
possiveis áreas de recrutamento.
Como dificilmente poderia deixar de acontecer, a combinação de tantos focos de procura deficitária acabou por
levar à constituição de uma oferta mas o mercado de trabalho que emergiu não podia deixar de apresentar especificidades relativamente aos de outras latitudes.
A principal delas foi, como se calcula, o facto de grande parte da oferta disponível não chegar voluntariamente ao
mercado. Os plantadores da Jamaica e das Mauricias já tinham descoberto à sua custa que, sempre que havia terrenos disponíveis e nenhuma coacção instalada, nem os antigos escravos nem as populações locais se sujeitavam à
condição de assalariados e que desertavam as explorações. Para satisfazer a procura era necessário estabelecer algum tipo de coerção extra-económica, legal ou ilegal
e, no caso de S. Tomé e Principe, as plantações de cacau
178
beneficiavam desde a década de 1860 de um sistema de
escravatura organizado a partir de Angola.
2. As contradições diplomáticas e
o statu quo do recrutamento para S. Tomé
2.1 Factores contrários à sua manutenção
Se só os lobbies coloniais tivessem actuado sem oposição, nenhuma administração metropolitana teria tido os
embaraços dos governos inglês e português em 1905. No
entanto, alguns factores estavam a alterar o statu quo na
questão laboral das colónias, e particularmente de S. Tomé.
a) Na potência colonial hegemónica – a Inglaterra – o
partido liberal, com o qual estavam conotados os industriais
de chocolate e as sensibilidades religiosas dissents, ganhou as eleições de 1905.
Nas décadas de 1900-10 estava a ser travado um conflito entre cartéis pelo mercado mundial do cacau: quer
alguns dos grandes produtores (nos quais se incluíam as
companhias de S. Tomé) quer alguns dos comerciantes
europeus experimentaram então alianças para estabelecer
preços de monopólio. A história dos cartéis do cacau está
ainda por fazer mas não pode haver dúvidas de a campanha contra o slave cocoa e o boicote ao cacau de S. Tomé
foram episódios deste processo.
Além disso, desde 1860-70 que no Parlamento se repetiam denúncias sobre os abusos do indentured labour para
as plantações tropicais (especialmente da emigração chinesa) e da continuação do tráfico de escravos em África.
Depois da Conferência de Bruxelas de 1890, o alvo da
atenção filantrópica começou por ser o Estado
Independente do Congo, onde a violência estatal para estabelecer uma oferta de trabalho tinha sido levada até às últimas consequências.
A imbricação dos interesses do chocolate com a sensibilidade dissent deu uma enorme capacidade mobilizadora
à acção das missões e das sociedades abolicionistas, que
se tornaram eleitoralmente significativas. À imprensa afecta
a estas correntes juntou-se a de grande tiragem quando
compreendeu as potencialidades dessa campanha sobre
um mercado de massas. Em resultado desta conjugação,
179
em 1905 a questão da emigração chinesa para o Transvaal
já se tinha tornado um dos temas decisivos da campanha
eleitoral, que acabaria por colocar os liberais no poder.
Assim, não se podendo dizer que o governo Asquith
estivesse inteiramente coagido pelos lobbies do chocolate
e do abolicionismo, era inegavel que teria de mostrar mais
empenhamento relativamente a estes interesses do que o
seu antecessor.
b) Do lado do governo português também havia factores
que concorriam para contrariar os interesses das companhias coloniais, para as quais o “recrutamento” laboral africano com as características referidas acima não se deveria
interromper sob nenhum pretexto.
Em Portugal não havia correntes de opinião abolicionista comparáveis às inglesas mas desde a Conferência de
Berlim que estava em causa o estatuto do país como potência colonial. Permitir que as acusações de tráfico de escravos em Angola continuassem sem consequências significava reconhecer a impotência da administração portuguesa
nos seus territórios coloniais. Atendendo a que as potências
dominantes procuravam então um equilibrio de forças, muitas vezes alcançado à custa dos colonizadores históricos
ou iniciáticos, uma campanha de opinião do género da do
slave cocoa corria o risco de trazer consequências sérias
para o património colonial português. Os acordos anglo-alemães de 1898 não eram totalmente desconhecidos para
o MNE.
Além disso, os eventuais prejuizos de um boicote ao
cacau de S. Tomé – que tanto através dos rendimentos
aduaneiros como do imposto de rendimento se tinha tornado num dos grandes contribuintes liquidos do orçamento
português – eram frequentemente mais considerados pela
diplomacia portuguesa do que, paradoxalmente, pelos lobbies roceiros.
2.2. Factores favoráveis à sua manutenção
Em 1898, a Inglaterra e a Alemanha tinham feito um
acordo secreto para dividir as colónias de Angola e
Moçambique, no caso de se verificar uma suspensão de
pagamentos da dívida externa portuguesa. Pouco tempo
depois, as bases do acordo estavam sem fundamento. Na
guerra anglo-boer de 1899-1901, durante a qual esteve isolada entre as “potências”, a Inglaterra teve necessidade de
180
contar com o apoio logístico da colónia portuguesa de
Moçambique. A partir de 1900 a sua política de alianças
europeia consolidou a Entente Cordiale com a França, o
que relativisou os arranjos coloniais informais com a
Alemanha e, em 1902, a dívida pública portuguesa consolidou-se através do Convénio com os credores externos.
Contudo, foi a política africana e não a europeia que
mais contribuiu para que o Foreign Office revalorizasse a
aliança portuguesa. A vitória militar inglesa sobre as repúblicas boeres seria incompleta se uma eventual União Sul-Africana se tornasse politicamente instável e comprometesse a segurança de alguns dos grandes investimentos ingleses na região, nomeadamente da B.S.A.C. As concessões
a fazer à principal dessas repúblicas, o Transvaal, incluíam
a revisão do acordo feito com o governo de Moçambique
sobre tarifas ferroviárias na linha de Lourenço Marques e o
recrutamento para as minas do Rand. Esse acordo, conhecido informalmente como o modus vivendi e negociado em
1901, estava redigido como uma troca directa, ligando automaticamente as tarifas ferroviárias sul-africanos à autorização portuguesa para a emigração de trabalhadores
moçambicanos. De modo muito directo, o artigo XIII estabelecia que o governo colonial português poderia suspender imediatamente o recrutamento no caso de qualquer
revisão unilateral.1 Para o governo inglês, a dificuldade estava portanto em conciliar os interesses mineiros do Rand
com os do Natal e do Cabo visto que, em função do regime
tarifário de excepção, a linha de “Delagoa Bay” tinha passado a absorver uma fracção crescente do trânsito ferroviário da colónia2.
Dados os riscos de ruptura entre os vários grupos de
pressão sul-africanos,3 o Colonial Office passou a considerar prioritária a cooperação portuguesa para a reforma do
modus vivendi de 1901. Acontece que a posição de força
nesta negociação era sem dúvida a portuguesa, como
explicava o alto-comissário Selborne ao Colonial Office:
“The position of the Portuguese Government is that of the
beati possidentes... The Natal contend that the labour
supply is not dependent on the Modus Vivendi, because the
Portuguese Governement could not afford to check the
supply, and could not check it if they wished to do so. I cannot admit the contention. The Portuguese Government could
stop the supply almost entirely if they wished, and they
would certainly do so, in spite of the loss in revenue envolved, because they know that their loss would be small in
181
comparison with the loss inflicted on the Transvaal Moning
industry. Their attitude is not of mere “bluff”.4
Dado que os mineiros moçambicanos representavam
entre um terço e metade de toda a força de trabalho de
Joanesburgo, Selborne estipulava aos negociadores do
governo inglês que em caso algum utilizassem a ameaça
da denúncia unilateral.5O seu oficio ao Colonial Office terminava resumindo o que estava em jogo:
“To hazard the continuance of the supply of Portuguese
native labour by denouncing the Modus Vivendi at this
moment, when the question of the Chinese labour is in the
balance, would be an act of criminal folly. A step which
would result in the collapse of the gold mining industry and
aconsequently of trade throughout South Africa is one for
which I am not prepared to take the responsibility and which
Natal itself would bitterly regret in the end.”6
Neste quadro, a contestação do regime de trabalho das
plantações de S. Tomé e do seu recrutamento em Angola
tornava-se totalmente inoportuna, apesar dos riscos eleitorais crescentes dessa omissão. Por maiores que fossem as
pressões em sentido contrário, quer o Colonial Office quer,
por arrastamento o Foreign Office, sabiam que o período de
renegociação do modus vivendi não era a altura própria
para alterar o statu quo do “resgate” em Angola.
3. O relatório Nightingale
Desde pelo menos 1882 que o Governo inglês recebia
informações sobre as irregularidades do recrutamento para
S. Tomé. Durante mais de trinta anos, as denúncias da renovação dos circuitos da escravatura vieram de fontes muito
diversas: comerciantes de Liverpool (1884), deputados
(Pease em 1894), missionários e jornalistas. A partir de
1894, começaram também a vir de relatórios consulares,
nomeadamente dos agentes creditados em Luanda
(Pickersgill e Brooks em 1894 e 1897).
Das evidências recolhidas, e que também já constavam
de vários Blue Books, o Governo inglês deixara de ter dúvidas quanto à natureza da oferta de trabalho. Em consequência, o Foreign Office renovava periodicamente sobre
Lisboa uma pressão no sentido de corrigir os “abusos”,
que, ainda que de baixa intensidade, tendia a subir de tom.
182
No entanto, esta política inverteu-se nos anos de 1905-6 e
parece paradoxal que a maioria das iniciativas inglesas
relativamente a S. Tomé tenha sido tomadas antes de 1905-6, isto é, antes surgirem as provas indiscutíveis sobre a
continuação da captura de escravos em Angola. Nos
pontos seguintes, descrevem-se os principais desenvolvimentos ocorridos nestes dois anos.
3.1. A pequena crise de 1905
A 3 de Junho de 1905, a Aborignes Protection Society
(A.P.S.) enviou uma carta ao Foreign Office com novas
evidências sobre a continuação do tráfico de armas e de
escravos. Parte das informações datava de Dezembro de
1904 e referia-se a resgates e capturas feitas por desertores e por autoridades nativas no sul do Estado do Congo
(na região do rio Lukoleshe) para fornecimento dos “Bihean
and Portuguese traders”. Tinham sido localisadas duas
grandes caravanas de escravos, pertencendo uma delas a
um comerciante português:
“They were selling guns and gunpowder ad lib.(idum),
and buying gangs of slaves. These slaves are destined for
the Bihé and Benguela markets, their ultimate destination
being Principe and San Thomé islands… I have myself seen
scores of slaves gangs en route to the coast.”7
Os factos não eram novos e nos anos seguintes haveria
muitas denúncias semelhantes mas pela primeira vez parecia haver provas. No entanto, o Foreign Office mostrou-se
“inquieto”, sobretudo quando, a 8 de Julho, na sequência
da correspondência enviada, a A.P.S solicitou uma entrevista para denunciar formalmente “the tolerance of that State
(Congo Belga) and also of the Portuguese”. A deputação da
Sociedade deveria incluir Brampton Gurdon, seu presidente e deputado.8
Em telegrama para Lisboa, Soveral confirmou as preocupações do governo inglês9, cuja bona fide para com os
embaraços portugueses foi em seguida demonstrada em
diversos pormenores: nas informações passadas à
Legação portuguesa em Londres, na recusa da entrevista à
A.P.S. e no teor da resposta dada, na qual repetia para a
imprensa britânica as garantias portuguesas.10
Como habitualmente, essas garantias limitavam-se a
desmentidos formais11, embora as informações dos agentes
consulares ingleses e até de um alto comissário do Colonial
183
Office confirmassem os esforços das autoridades portuguesas e belgas para reprimir o tráfico.12 Numa comunicação
de 25 de Julho a própria A.P.S. admitiu que o tráfico estava
no momento em regressão na maior parte do Estado Livre
do Congo mas reiterava que se mantinha no sul e que “a
large traffic in arms... done by half-caste Portuguese traders” se fazia com vista à exportação de trabalhadores para
S. Tomé. Como tal, em Setembro, Fox Bourne, o secretário
da sociedade, insistiu de novo para que o governo britânico apresentasse uma representação oficial ao português,
desta vez especificando a sua responsabilidade sobre a
Barotselândia ocidental entretanto anexada a Angola.
Consultado para o efeito pelo Foreign Office, o Colonial
Office demorou cerca de 4 meses a responder. Quando o
fez, os liberais já tinham formado governo mas a relutância
em colocar representações a Portugal era a mesma:
“it appears... to be a matter for Sir E. Grey’s consideration whether a representation implying a reflection on
Portuguese methods of administration, would be appropriate in connection with claims of Great Britain to which has so
recently been rejected, and whether such action could be
taken without risk of diminuishing the effect of any representation which His Majesty’s Government might have occasion
to make at some future date.”13
A resposta deixava as dificuldades para a nova equipa
de Grey no Foreign Office. Para diminuir a pressão abolicionista, foi resolvido explicar “confidentially” à A.P.S.que a
recente atribuição de parte da Barotselândia a Portugal tornava delicado fazer representações que aí se localizassem.
Com este tipo de justificações que pareciam inconfidências,
contava o governo não hostilizar as sensibilidades abolicionistas visto que, como dizia uma minuta do Departamento
“It is better to trust them with confidential information than to
risk awkword questions beeing asked in Parliament”.14
Entretanto, para que alguma acção ocorresse e dado o
atraso do relatório entretanto pedido ao cônsul em Luanda,
Brock, em 18/10/1905, Nightingale – antigo cônsul em
Luanda e então nomeado para Boma – foi encarregado de
relatar sobre o trabalho contratado em S. Tomé. Há indicadores de que até esta última iniciativa, que visava legitimar
definitivamente o “serviçal system”em Inglaterra, fora tomada por sugestão do governo português.15
184
3.2. A crise maior de 1906
Entre Setembro de 1905 e Fevereiro de 1906, a A.P.S.
não enviou mais reivindicações ao Foreign Office mas as
dificuldades estavam apenas no princípio. Desde Outubro
de 1905 que a “Harpers Monthly Magazine” americana
estava a publicar os artigos do jornalista Nevinson sobre os
circuitos do tráfico de escravos de Angola para S. Tomé: a
tão temida campanha de imprensa tinha começado.
Em Fevereiro de 1906, a Howard Association remeteu
um deles para o Foreign Office, expressando a sua expectativa que se colocasse “some kind of pressure” sobre o
Governo português. Reagindo do modo habitual, o
Departamento reenviou-o ao ministro Soveral e para mostrar
que não fora apanhado desprevenido, tornou público que
estava em preparação um relatório consular sobre a
questão.16 A mesma informação foi repetida à A.P.S, que
tinha voltado a solicitar uma entrevista formal ou, em alternativa, um encontro do próprio Nevinson (de passagem por
Londres) com E. Grey.17
Relativamente aos episódios de 1905, a diferença era
sobretudo geográfica: o foco da pressão anti-esclavagista
tinha-se deslocado para S. Tomé, via Angola, e já não era
sobre o Katanga ou o Barotse que se pedia “immediate
action”.18 Durante a entrevista no Foreign Office, Nevinson e
Fox Bourne salientaram a Eric Barrington, um dos assessores de E. Grey, os pontos que a A.P.S. desenvolveria em
ulteriores comunicações e que punham em causa o statu
quo de S. Tomé:
1) todos os trabalhadores eram comprados em Angola
“in the most unblushing way”;
2) devido à “harsh and unhealthy servitude”, a taxa de
mortalidade era elevadissima;
3) os contratos eram vitalícios e sem repatriação.
Tratava-se de um aglomerado de acusações já bem
conhecidas do Foreign Office, que se limitou a aceitar – sem
compromisso – um Memorandum que a A.P.S. tinha em preparação e, informalmente, a falar de novo com Soveral.19
O memorandum prometido chegou poucos dias depois,
juntamente com a transcrição de uma resolução aprovada
na Conferência anual da A.P.S. em que se pedia “energetic
action” para os abusos coloniais belgas e portugueses, e
continha a argumentação jurídica ao abrigo da qual o
governo inglês poderia interpelar o português. Uma das
novidades dessa argumentação era considerar a legislação
185
em vigor em Angola e S. Tomé não só de deficiente aplicação como sendo em si responsável pela degradação da
situação: ao legalizar, através de uma contratação formal,o
sistema do resgate de cativos, criava condições para a
extensão de um mercado de escravos na África Central.20
Face à informação de que o governo inglês tinha pedido um
relatório consular sobre a matéria, o Comité da A.P.S. aceitava esperar mas declarou que contava em seguida com
uma intervenção em conformidade. Como depois verificou
à sua custa, o Foreign Office ganhou algum tempo ao condicionar a sua política por um relatório que estava por fazer
mas fê-lo por um preço elevado.
Nos meses seguintes, continuou a campanha de
imprensa contra o “slave cocoa” na Europa e, com especial
intensidade, nos Estados Unidos. Na ausência de outras iniciativas oficiais, em Julho recomeçaram as questões parlamentares, tão receadas quer por Lansdowne quer por E.
Grey. Para responder à pergunta do M.P. Gilbert Parker
sobre as medidas a tomar sobre a alegada escravatura em
S. Tomé, o Foreign Office não tinha então outro expediente
senão reafirmar que esperava um relatório.21 Logo a seguir,
o governo acabou por ser directamente interpelado sobre a
sua recepção22 e no final de Julho a A.P.S. já considerava
pouco justificável adiar iniciativas por um relatório de chegada incerta.23 O cônsul Nightingale teve de ser pressionado, quer por oficio quer por telegrama, e o documento acabou por ser enviado de Boma no dia 28 de Julho.24 Pela
minuta da Secretaria de Estado apensa a um dos telegramas recebidos de Boma pode deduzir-se que não seriam
exactamente os seus destinatários oficiais quem mais
ansiava por ele: “The philantropists have been waiting for
this report for a long time”. 25
3.3. O relatório no Foreign Office
Tendo ganho uma importância que o Foreign Office
decerto não lhe atribuíu quando o solicitara oito meses
antes, o relatório Nightingale foi objecto de uma atenção
especial ao chegar à Secretaria de Estado. Durante a semana seguinte à sua recepção (20 de Agosto), um alto funcionário, G.H. Locock, foi encarregado de o resumir e em
Setembro foi publicado internamente como Confidential
Print (número de série 8806).
O relatório continha as conclusões do cônsul retiradas
186
durante a sua estadia nas ilhas, compreendida entre 24 de
Novembro de 1905 e 9 de Fevereiro de 1906. Como o próprio Nighitingale explicou, o atraso no seu envio deveu-se
apenas ao tempo que levou a ser redigido, dadas as obrigações consulares a que estava obrigado em Boma.
Apesar de ter permanecido apenas cerca de dois meses
em S. Tomé, Nightingale incluía também no documento
informações sobre legislação, práticas administrativas e
comércio em Angola, que certamente recolhera durante o
seu tempo de serviço em Luanda.
O relatório começava por uma retrospectiva do sistema
de trabalho implementado nas ilhas desde a lei abolicionista de 1875 e continha um resumo do primeiro Regulamento
de trabalho, datado de Agosto de 1876. Ao historiar o início
do ciclo do cacau, Nightingale apercebeu-se da lógica
interna que tinha levado à restauração do mercado de
escravos em Angola. Enumerando primeiro os factores da
procura (deserção dos antigos escravos das roças, impossibilidade de obrigar os “forros” a assalariarem-se, epidemia de varíola em 1875-76), depois os da oferta (continuação da escravatura doméstica no continente, circuitos
da borracha utilizados pelos traficantes), retirou a seguinte
conclusão:
“It being impossible for the planters to rely on the local
resources for labour, they had perforce to look to Angola,
from whence the slaves had been obtained in bygone days,
and where the traffic in human beings was still rife amongst
the tribes in the interior.”
Depois de descrever as disposições legais em vigor, o
relatório avaliava os seus resultados sobre as condições de
vida dos “serviçais”, desde o seu resgate em Angola até S.
Tomé. Relativamente a algumas variáveis, a sua apreciação
pode ser classificada do seguinte modo:
Transporte marítimo
Alimentação
Instalações e assistência médica
Intensidade do trabalho
Maus tratos
Taxa de mortalidade adulta
Taxa de mortalidade infantil
Salário monetário
Educação
Repatriação
Positiva
Positiva
Positiva
Positiva
Positiva
Positiva: taxa em regressão
Negativa: taxa muito elevada
Negativa
Negativa
Negativa
187
As conclusões gerais eram simples:
“In conclusion, I have only to reiterate the opinion that the
“serviçal” is well treated and cared for, and that the real evil
lies in the manner they are obtained in Angola.”26
Deste documento, o “resumé” confidencial de Locock
visava sobretudo comparar os dados fornecidos por
Nightingale com as reivindicações anteriormente feitas pela
A.P.S. (v.supra, ponto 2.5). A comparação aliviava o Foreign
Office apenas parcialmente e pode sintetizar-se do seguinte modo:
– era satisfatória quanto às condições de vida dos serviçais em S. Tomé, o que era importante para desmentir as
acusações de maus tratos e elevada mortalidade;
– era insatisfatória quanto ao recrutamento, visto que o
relatório confirmava integralmente a condição servil dos trabalhadores em muitos campos: custos elevados dos contratos, irregularidades nos salários, ausência de repatriação 27.
Quanto aos pontos positivos, o relatório servia para tentar imediatamente desmobilizar as associações abolicionistas28.
Quanto aos negativos, Locock descobrira como servia
ganhar tempo sem correr o risco de indispôr os lobbies
coloniais em Lisboa. Sendo impossivel obrigar a administração portuguesa a reprimir um tráfico que, legalmente,
não existia, era conhecida uma forma de aferir a extensão
da condição servil: a repatriação. Trabalhadores assalariados deveriam contratar-se a termo certo e regressar em
número significativo de modo que as estatísticas da repatriação acabariam com as dúvidas. Contudo, e a julgar pela
própria legislação portuguesa, os verdadeiros contratos tinham começado apenas a partir de 1903, ano do novo
regulamento: como a duração máxima permitida aos contratos era de 5 anos, então só em 1908 se poderia objectivamente ajuizar das irregularidades em S. Tomé.
Com este argumento o Foreign Office esperava suspender a controvérsia por mais dois anos, permitir à administração portuguesa corrigir os abusos e terminar tranquilamente as suas negociações do Modus Vivendi. A este respeito, uma das minutas apensas ao “resumé” de Locock
não deixa dúvidas sobre o que a Secretaria de Estado pensava sobre as prioridades a calendarizar:
“It will be difficult for us to make representations to the
Portuguese with regard to the islands.
We might howewer urge them to take steps to suppress
the slave trade on the mainland… the principal sources of
188
supply are the families whose members are sold by their
kinship undr native laws, generally for debt. The Portuguese
Govt. could probably put an end to it if they wished to. But it
would probably be best to do nothing until the negoctiations
about the modus vivendi are finished as representations on
the subject would no doubt irritate the Portuguese.”
Havia ainda uma dificuldade: como divulgar os resultados de um relatório que teria de ser tornado público (tinha
sido oficialmente anunciado como condição de uma nova
política) mas que comprovava integralmente as acusações
de escravatura, pelo menos até 1908? As minutas seguintes, respectivamente autografadas por Eric Barrington e
pelo próprio E. Grey esclarecem o sentido geral da solução
encontrada: uma divulgação selectiva.
“The Aborigenes Protection Society are very anxious to
see this report, and it might be politic to show it a true greater part of it to the secretary or let him have a slightly condensed… copy for the confidential information of the Society
on the distinct condition that no part of it is to be published.
This might prevent their friends in Parl(iament) from pressing
for its presentation which would angry the Portuguese.”
“No representation should be made to the Portuguese at
present. Such portions of Consul Nightingale report as relate to the present condition of affairs might be communicated, not for publication, to the Aborigenes Society. The portions, which relate to past history, may give rise to unnecessary controversy & annoyance.” 29
Na medida em que todas as referências a situações de
escravatura deveriam ser consideradas “past history”, a
versão enviada à A.P.S. a 12 de Setembro30 foi mais do que
ligeiramente condensada. Excluídos os anexos, o texto original dactilografado por Nightingale continha 28 páginas. Os
cortes feitos a lápis e uma minuta da Secretaria de Estado de
13 de Setembro definiram a extensão da versão a divulgar:
começaria na letra “A” (marcada na pg. 9, i.e., omitiria o historial até ao Decreto de 1903); seguiria na versão integral
até à pg. 22 inclusivé (da pg. 9 à 19 Nightingale limitava-se
a resumir o Decreto de 1903); teria omissões em 5 das 6
páginas seguintes (nas quais se comparava a letra do
Decreto com a sua aplicação). Em resumo, cerca de metade do texto original era cortada, bem como partes não identificadas dos anexos 1-2 e todo o anexo 5.31
Em contrapartida, a versão integral deveria ser enviada
para Lisboa, para que o governo português se apercebesse da gravidade da situação.
189
Divulgando uma versão censurada do relatório
Nightingale, a diplomacia inglesa pretendia silenciar as
pressões abolicionistas e, ao mesmo tempo, marcar pontos
nas negociações com Lisboa.
As expectativas relativamente ao primeiro desses falharam porque a A.P.S. já sabia desvalorizar a contribuição de
um relatório exclusivamente centrado nas ilhas.32
“The root of the evil, howewer… is not in the islands visited by Mr. Nightingale, but in the mainland traffic for the
supply of servile labour to planters and others in Angola
itself as well as in the adjacent islands.”
Relativamente ao segundo falharam também porque, a
partir das questões parlamentares de Julho de 1906, surgiram novas repercussões internacionais, especialmente
sobre um dos tópicos a que o governo de Lisboa se mostrava mais sensível: o funcionamento da administração colonial em Angola. Um pormenor da discussão que duas autoridades coloniais portuguesas mantiveram a propósito das
acusações de 1905 sobre o tráfico no Moxico serve como
exemplo desta sensibilidade. Face aos documentos que
mostravam estar dentro das fronteiras do Estado Livre do
Congo o ponto de partida do circuito dos escravos, o governador de Angola tinha proposto enviar imediatamente uma
representação às autoridades belgas. No entanto, os ministérios do Ultramar e dos Estrangeiros já sabiam que o melhor seria não admitir quaisquer factos:
“Segundo o officio do Governador Geral de Angola, nos
engajamentos feitos na Luba tomam parte portuguezes, e
os serviçaes comprados são introduzidos em territorio portuguez, c(o)nduzidos ao Bihé e ao Bailundo, e d’ahi ao littoral, soffrendo em todo o percurso para os fazer andar. Se as
averiguações posteriores das auctoridades de Angola confirmarem estes factos, julga esta Secretaria d’Estado preferivel não fazermos reclamações ao Estado Independente,
antes de podermos obstar, pelo menos na maioria dos
casos, a que os abusos comettidos na Luba tenham
sequência no interior da nossa colonia.” 33
Do mesmo modo, em 1906 e para evitar danos maiores
sobre a questão de S. Tomé, o governo português considerou que, mais proveitoso do que tentar o impossivel – isto é,
actuar a curto prazo no terreno – o melhor seria lembrar aos
seus concorrentes coloniais os pontos essenciais da colaboração inter-metropolitana. Numa memória enviada às
potências, mas que visava sobretudo Londres, salientavase que
190
«Il est opportun de rappeler que, renouvelant ses
anciens précédents, dans un esprit de loyale intelligence et
dans un but de coopération sincère, que des circonstances
spéciales avaient rendu precieuse, le Gouvernement
Portugais, par un accord international célébré en 1901, facilita et garantit, dans ses possessions de l’Afrique Orientale,
le contrat de travailleurs indigènes pour les mines du
Transvaal…».34
Este era precisamente o ponto que Londres gostaria de
não ver incluído num caderno global de negociações e para
o qual desde há mais de um ano recebia relatórios dos seus
altos funcionários no Cabo a recomendar prudência.
Conclusão
Apesar da sua tradição abolicionista, pode dizer-se que
os interesses sul-africanos condicionaram a atitude geral de
Londres para com a escravatura em Angola. Em várias ocasiões das décadas de 1890-1900, a administração inglesa
sancionou o status quo em Angola e S. Tomé. Contudo,
outros interesses levaram a que, a partir de meados de
1906, nem o governo inglês nem o português tivessem suficiente margem de manobra para sustentar uma prática que
durava há já algumas décadas. De um relatório relativamente inócuo – o do cônsul Nightingale – resultou um
balanço negativo para ambos os lados:
– para o Foreign Office, uma discussão pública “very
much annoyed” e que comprometeu um pouco mais as
negociações do Modus Vivendi. O acordo seria revisto apenas em 1909 e com poucas cedências da parte portuguesa, o que ocasionou uma grande contestação no Natal;
– para o governo português, a percepção de que, sob
penas mais graves, teria de liquidar definitivamente aquele
tipo de ligação entre S. Tomé e Angola. Primeiro porque,
tendo as peripécias do relatório exposto publicamente os
esforços de cobertura do Foreign Office às irregularidades
coloniais portuguesas, teria de contar com uma protecção
cada vez menor do gabinete inglês.
191
Notas
(1) “Article XIII… As soon as the modus vivendi is denounced by either
of the parties, the engagement of natives in the Province of Mozambique will
be ipso facto suspended.” Modus Vivendi, 18/12/1901. O Alto-Comissário
Selborne comentou-o do seguinte modo: “I heartily wish that the the two questions of labour supply and railway rates had never been mixed up; but I must deal with the facts as they are.” PRO, FO 367/18, 10 579. High Comissioner,
26/2/1906.
(2) Curtis, um alto funcionário sul-africano, constatava que entre 1902 e
1906 a percentagem do tráfico ferrovíario do Rand para Lourenço Marques
tinha passado de 21 para 56%. HAMMOND, R.J., 1966: 327.
(3) Selborne dava conta “of the bitter feeling which has arisen out of the
Modus Vivendi. During the past twelve months the breach between the British
Colonies has grown wider and threatens to prove a serious obstacle to that
policy of federation which I believe His Majesty’s Governement desires to encourage.” PRO, FO 367/18, 10 579. High Comissioner, 26/2/1906.
(4) PRO, FO 367/18, 10 579, 26/2/1906.
(5) “The difficulty here is that from one third to one half of the native labour in Johannesburg is recruited under the Modus Vivendi, and such recruiting would stop at once on denuncioation. The consequences would be so
serious that the threat of denounciation is only to be regarded as a mesure of
desesperation.” PRO, FO 367/18, 10579. Memorandum, p. 6.
(6) PRO, FO 367/18, 10 579. High Comissioner, 26/2/1906.
(7) AHD-MNE, 3º P.A.3, M.772-778. Communicated to Lord Lansdowne
by the Aborigenes Protection Society.
(8) AHD-MNE, 3º P.A.3, M.772-778. Aborigenes Protection Society, 8 July
1905.
(9) “Marquez Lansdowne pediu-me para o vir ver, mostrando-se muito inquieto... recebeu uma carta do Secretario da Sociedade Protectora dos
Indigenas pedindo-lhe para que receba uma grande deputação composta
de homens muito importantes afim de exporem os documentos que provam
a existencia do commercio de escravos prtaicado a sul do Estado do Congo
com a acquiescencia d’aquelles Estado, e tambem do Governo Portuguez...
Marquez Lansdowne receia uma grande agitação no Parlamento e na
Imprensa...” Telegrama, 15/7/1905, AHD-MNE, 3º P.A.3, M.772-778.
(10) “In reply, I am to express Lord Lansdowne’s regret that the number
of hs engagements and the pressure upon his time render it impossible for
him to accede to his request, thoug he is, of course, ready to receive and consider witih care any information… his lordship was informed that, although
there had been abuses, these had been punished by the authorities, while the
most stringent instructions had been issued that the regulations, which were
in themselves all that could be desired, shoul be strictly enforced.” Lord
Lansdowne and the Central African Slave Trade, “The Times”, 28/7/1905.
(11) Para habilitar Soveral a responder ao Ofreign Office, o governo português reenviou o seguinte telegrama do governador de Angola: “Emigração
para S. Tomé... é feita nos termos decreto 16 Julho 1902, 29 de Janeiro 1903.
Os abusos que tem havido teem sido punidos com todo o rigor pelos tribunaes judiciaes.” As cópias dos processos seriam depois enviadas para
Lisboa., AHD-MNE, 3º P.A.3, M.772-778, Telegrama, 18/7/1905
(12) PRO FO 367/18, Confidential Print, 8598, pp. 9-10.
(13) PRO FO 367/18, 6210. Colonial Office, 19/2/1906.
(14) PRO FO 367/18, 6210. Colonial Office, 19/2/1906; Foreign Office,
1/3/1906.
(15) Ainda durante o governo Balfour, Soveral “would probably ask
H.M.Govt. to send a Commissioner to the Islands to enquire into the condition
of the Serviçaes.” PRO FO 367/18, 7265, Willliam Tallack, 26/2/1906.
192
(16) PRO FO 367/18, 7285. William Tallack, 26/2/1906.
(17) PRO FO 367/18, 7402. The Aborigenes Protection Society, 27/2/1906
(18) Fox Bourne salientava que “the question of most importance, in the
Committee’s view, is as to acknowledge a very considerable traffic in natives
of Central Africa for the supply of “serviçaes” to the portugueses plantations
in Wstern Africa, and especially in the neighbouring islands of San Thome
and Principe.” PRO FO 367/18, 8057. The Aborigenes Protection Society,
6/3/1906.
(19) “It is not a matter about which we so far cared to press the
Portuguese Govt. strongly, though M. de Soveral’s attention has been called
to it several times. I told him yesterday that the philantropists are much excited & that it would be very disagreable if public feeling were aroused by the
fact that the Portuguese Governement were encouraging something apinfully
akin to Slave Trade.” PRO FO 367/18, 9864. Foreign Office, 15/3/1906.
(20) “It appears, indeed, that as consequence of the Decree of 1899 and
of commercial undertakings facilitated by it, the evils previously existing have
been largely developed and are still rapidely increasing.” PRO FO 367/18,
11542. Aborigenes Protection Society, 3/4/1906.
(21) A questão parlamentar foi levantada a 5/7 e o Foreign Office respondeu que o relatório era esperado “shortly”. PRO FO 367/18, 23070.
Parliamentary Question, 5/7/1906
(22) A questão foi colocada pelo M.P. por Hereford, Arkwright. PRO FO
367/18, 25515 Parliamentary Question, 21/7/1906
(23) PRO FO 367/18, 26131. The Aborigenes Protection Society,
30/7/1906.
(24) PRO FO 367/18, 28370. Consul Nightingale, 28/7/1906.
(25) PRO FO 367/18, 25287. Consul Nightingale, 21/7/1906
(26) PRO FO 367/18. Confidential Print, 8806, p. 9.
(27) Como dizia Locock, “These prices clearly show that the serviçal becomes the proprety of the man who contracts him, as no sane person would
pay such a fee for a contract unless he were certain of having the life-long
service of the labourer.” PRO FO 367/18, 28370, Resumé, 28/7/1906.
Nighitngale usava o mesmo argumento, comparando os custos de recrutamento dos escravos, isto é, custos de aquisição, com os dos assalariados
cabo-verdeanos. “The answer is that one is repatriated and the other is not.”
PRO FO 367/18, Confidential Print, p.8
(28) A auto-correcção de Locock na minuta do seu “resumé” é significativa quanto ao que o Foreign Office gostaria que a A.P.S. valorizasse: “Mr
Nightingale’s report appears to give us ample proof that the Serviçaes are not
harshly treated in the islands, and we might inform the Aborigines Protection
Society (of the measures taken to ensure the well-being of the report”) mas
corrigiu a frase aqui entre parentesis para “of the general purpose of the
Report”. PRO FO 367/18, 28370, Resumé, 28/7/1906.
(29) PRO FO 367/18, 28370, 28/8/1906.
(30) PRO FO 367/18, 28370, Foreign Office, 12/9/1906.
(31) O relatório estava de tal modo alterado que, quando se discutiu a
publicação da versão censurada, os próprios funcionários do Foreign Office
tiveram escrúpulos relativamente a Nightingale: “It seems howewer hardly fair
on Mr. Nightingale to publish as his report na edition which has been so ecluded as largely to alter its complexion.” PRO FO 367/18, 36718. Parliamentary
Question, 26/10/1906.
(32) “(...) howewer important may be Mr. Nightingale’s confirmation in
previous reports concerning the virtual slavery and slave trade long practised
and now incresasing in the islands in question, it is not expected to deal with
the traffic in mainland which is the acknowledged root of the evil…” PRO FO
367/18, 26131. The Aborigenes Protection Society, 30/7/1906
(33) AHD-MNE, 3º P.A.3, M. 768-769, Ministério dos Negocios
Estrangeiros, 21/2/1906. A concordância do Ministério das Colónias era com-
193
pleta. AHD-MNE, 3º P.A.3, M. 768-769, Ministério da Marinha e Ultramar,
6/3/1906.
(34) Travail Indigène,1906:4,6. (sublinhado no original). A frase em
evidência refere-se às circunstâncias anteriores ao Modus Vivendi, i.e., a
guerra boer e a Convenção anglo-portuguesa de 1899.
194
JEAN-GODEFROY BIDIMA
Professeur à l’Institut d’Ethique - CHU Saint-Louis
Collège International de Philosophie - Paris
Communauté de sens et sens de la
communauté:
le croisement des humanismes1
INTRODUCTION
Quand on entreprend aujourd’hui de réfléchir sur l’humanisme, on a l’habitude de s’appuyer sur quelques références: la substance (qu’est-ce que l’humanisme?), les
sujets (qu’est-ce qu’un humaniste?), la norme fondatrice
(quelle règle ou norme de comportement justifie l’humanisme?). Ces références sont très problématiques, car du
contenu de ce qu’est l’humanisme, on ne peut rien dire de
pertinent parce que ce n’est pas une substance qu’on définit in abstracto sans référence à un espace, à un temps et à
des sujets agissants avec leur singularité dans une histoire
particulière. Au lieu de le définir, il faut plutôt suivre l’humanisme dans son procès de profération au sein de l’histoire
humaine. Comment les humains vivent et qualifient-ils leur
comportement d’humaniste? C’est là où l’on rencontre la
question de l’action. C’est au sein de la problématique de
l’action que la question de l’humanisme peut être posée.
Mais, de l’action humaniste, que peut-on dire de pertinent?
En recourant à la distinction que fait Hannah Arendt entre
agir et faire, nous pourrions dire que seul l’agir est du ressort de l’humanisme, mais là aussi il y a une difficulté, car,
comment déterminer que tel agissement relève de l’agir ou
du faire quand les individus qui agissent disent toujours agir
au nom de (la Référence) quelque chose? D’où la deuxième
difficulté liée à l’action; Mais celle-ci est produite soit par des
acteurs conscients que sont les hommes en société, soit par
des structures mises en place par l’homme, d’où le rôle du
sujet dans l’humanisme. On estime, et avec raison, que
l’homme doit être mis au centre de tout et c’est ce qui détermine l’humanisme. Mais là aussi les choses ne sont pas
faciles car cette place privilégiée de l’homme a été suspectée par ce qu’on a appelé les philosophies du soupçon.
195
D’abord Nietzsche, celui-ci dirait que cette surenchère
qu’on fait du Sujet humain est le dernier avatar de Dieu qui
a justement été tué mais dont le cadavre encombrant produit de faux-fuyants comme le Sujet ou l’Homme. Lui,
Nietzsche, voudrait plutôt l’avènement du règne du
Surhomme briseur d’idoles et créateur de nouvelles valeurs.
L’humanisme avec l’homme au milieu serait une ruse du
monothéisme ou l’homme, but et créateur des valeurs,
mimerait assez lâchement d’ailleurs les gestes et attributs
du Dieu monothéiste qui se dit l’Alpha et l’Oméga. La
deuxième critique viendrait de Marx. Placer l’homme au
centre de l’humanisme serait l’une de ces mauvaises abstractions dont il avait horreur, car pour lui, “l’homme n’est
pas une abstraction liée à l’individu isolé, il est l’ensemble
des rapports sociaux” (VIe thèse sur Feuerbach).
L’humanisme avec ses grands concepts comme l’Homme
avec H, la Valeur avec V, masquerait – toujours dans la perspective de Marx – les rapports économiques qui montrent
comment les humains produisent et reproduisent leurs vies.
La troisième critique viendrait de Freud. Mettre l’homme au
centre du processus d’humanisation serait de la méconnaissance, car on fait comme si cet être de désir qu’est
l’homme était une unité consciente d’elle-même et légiférant
souverainement la production des connaissances et
actions. Cet homme, ce sujet est agi par ce qui, étant lui
(l’inconscient) et en lui, agirait paradoxalement sans lui. Ces
critiques auraient pu être historiquement complétées par
celles que le structuralisme sous toutes ses variantes fit de
la notion de l’homme ou de Sujet pour avancer la dernière
critique faite à l’humanisme au nom de la “bioéthique”. On
estime que l’humanisme met l’homme, tous les hommes et
tout l’homme, au centre des préoccupations, mais cette
centralité de l’homme est suspecte de jouer le jeu de ce
qu’on a appelé la rationalité instrumentale. L’homme, au
nom de sa conservation et du progrès, aurait utilisé les différentes zones de la nature à son profit, au point de tuer ce
qui est la condition de l’homme, à savoir la vie. C’est ainsi
que l’humanisme n’a parlé que de la souffrance de l’homme,
que de la compassion envers l’homme et de la préservation
des autres espèces animales qu’en fonction et au service
de l’homme. Cette éthique humaniste a privilégié l’homme
en méprisant la Vie, condition de l’homme. En mettant au
centre des préoccupations, non plus l’homme mais la vie (y
compris celle de la nature qui ne doit ni être polluée ni
même méprisée), on aurait une vraie éthique, une bio196
éthique qui privilégiera la source et non l’effet car l’homme
peut très bien ne plus exister, mais la vie restera dans les
animaux et autres êtres, alors que sans la vie l’homme n’est
rien. L’humanisme qui met l’homme au centre et le reste de
la vie à son service paraît ainsi étriqué et à la limite dangereux. Tel est le point de vue de H. Jonas. Le dernier point est
la norme fondatrice de l’humanisme; autrement dit quelle
règles fondatrices justifient l’humanisme, là aussi la difficulté est énorme car comme dit Wittgenstein, une règle n’est
qu’un résultat d’un des multiples jeux de langage qui exprime des formes de vie. Il y aurait ainsi une grande difficulté
à formuler une telle règle, car toutes les sociétés l’ont à
chaque moment de leur développement.
Ces difficultés à formuler la question de l’humanisme
viennent en partie du fait que cette question a été posée
dans l’abstrait sans en référer à un contexte déterminé et
pour éviter cette abstraction nous avions choisi de mettre
ensemble trois notions aux destins différents: le sens (dans
sa double acception de signification et de direction), la
communauté (non pas au sens où le sociologue Tönnies
l’entend quand il l’oppose à la société) au sens où elle désignerait un acte (il y a communauté quand il y a la mise en
commun, partage des dons, ces fameux “munia” dont parlent les latins) et le croisement en tant qu’il n’est pas une
simple mise en contact mais une réelle prise de contact
(opérons la différence entre une mise en contact créée par
des structures et situations et une prise de contact qui est
un acte volontaire par lequel je risque la rencontre).
Pour analyser comment cette rencontre de la communauté et du sens se fait, il importe d’examiner dans quelle
mesure le sens de la communauté devient un projet (I) et
quelle direction peut-on donner à une communauté de sens
(III) susceptible de favoriser la rencontre des humanismes.
I - LE SENS DE LA COMMUNAUTE:
UN PROJET
La communauté est aujourd’hui à la mode; référent fondateur quand il s’agit de mettre sur pied une logique de rassemblement qui donne un air de famille à ces quasi atomes
sociaux que seraient les individus. De référent fondateur, la
communauté devient la justificatrice d’une forme de critique
197
qui s’adresse à un universalisme coagulant. Au nom de la
communauté, des philosophes comme Walzer ont critiqué
l’abstraction d’une certaine conception de la justice. Pour
Walzer, la notion d’appartenance est ce qui définit mieux le
sens de la communauté, ainsi une théorie de l’égalité postulée par quelque justice que ce soit n’a de sens que référée à un rapport d’appartenance. Contre John Rawls qui
soutient la notion d’égalité en l’adossant à l’universalisme,
Walzer pense qu’il y a un préalable à la question même de
la justice, à savoir qu’elle ne peut être posée qu’en fonction
d’une communauté déterminée. “Même s’ils sont impartiaux, la question que se poseront le plus probablement les
membres d’une communauté politique n’est pas: que choisiraient des individus rationnels dans telle ou telle condition
propre à garantir l’universalité de leurs choix? mais: que
choisiraient les individus comme nous, dans la situation qui
est la nôtre, partageant une culture déterminée et déterminés à continuer à la partager? Quelles sortes de choix
avons-nous déjà faits durant notre vie commune?”2. Au nom
de la communauté, ensuite, A. MacIntyre critique Rawls car,
selon lui, la justice serait basée sur la problématique du
sujet, ce qui pour MacIntyre relèverait de l’individualisme. Il
s’agit de redonner à la communauté la primauté sur l’individu en insistant sur les formes de communautés en formation
et surtout sur l’aspect narratif comme mode de rapport
essentiel à la communauté. Pour que cette thèse soit claire,
il faut remarquer que l’existence forme un tout; une action
n’est pas isolable d’une vie et de son histoire. L’homme est
par excellence un être conteur d’histoires. Il ne l’est pas par
essence, mais le devient. La question principale n’est donc
pas la paternité des récits: je ne peux répondre à la question: “que dois-je faire?” (Kant) que si je peux répondre à la
question précédente: de quelles histoires ou de quelle histoire fais-je partie? Quel récit ordonne et informe ma notion
de devoir?
La communauté est utilisée dans ces deux critiques
comme l’instance qui donne le sens par excellence, car
chaque peuple vit et se raconte une histoire qui a une rationalité, celle-ci se constituant par une connexion entre le
devenir et le récit. Ce qui doit être retenu, c’est bien le fait
que la notion de communauté est conçue à la fois comme
une propriété qui s’ajoute à la nature des sujets et comme
une substance produite par l’union de ceux-ci. La communauté renvoie, dans cette perspective, à un plein, à un bien
que nous conservons ou à une essence que nous pouvons
198
perdre et retrouver. Le sentiment d’appartenance fonde la
notion de communauté et les modes d’appropriation de
cette communauté constituent ce qu’on appelle la quête
d’identité.
A vrai dire, quand on se penche sur l’étymologie de cette
notion, on remarque que la communauté n’est pas tant fondée sur un plein que nous devons redécouvrir ou conserver
que sur un manque. En effet, Communitas se référerait à
donum et à munus3. Ces deux termes exprimeraient le don
et le devoir de rendre. Dans la communauté on a des dons
et des dettes. Il en résulte que ce que les membres de la
communauté ont en commun, c’est les devoirs et les dettes:
“communitas est l’ensemble des personnes unies non pas
par une propriété, mais très exactement par un devoir ou
par une dette; non pas par un plus mais par un “moins”, par
un manque, par une limite prenant la forme d’une charge...”4. La communauté est donc ce que les membres s’engagent à donner, mais qui n’est pas encore là. La communauté est donc en devenir et à inventer. Comment dès lors
inventer ces communautés aujourd’hui en faisant attention à
ce qu’elles ne deviennent pas des entités closes sur un sens
définitif que l’on transmet aux membres qui sont obligés de
le suivre?
Le sens de la communauté qui est en fait un projet, permet à chaque communauté de conjuguer à la fois l’agir et
l’action. En nous référant aux distinctions phénoménologiques de Schütz, relevons que l’agir (Handeln) serait toujours en cours, en train se dérouler et vécu par le sujet
immergé dans le flux de l’expérience vivante; et l’action
(Handlung) la reprise réflexive d’un agir déjà accompli. D’un
côté on a l’actio, le modus operandi, et de l’autre l’actum,
l’opus operatum. Les communautés communiquent leurs
dons et leurs dettes à travers l’agir. Si l’action est ce qui a
été fait, c’est une expérience modo praeterito, seul l’agir qui
est l’action s’accomplissant modo praesenti peut permettre
aux communautés d’aller à la recherche d’autres expériences et d’entrer ainsi en contact avec les autres communautés.
Dans la conception de la communauté, les Sujets vivent
un manque et essayent dans leur implication dans l’action
de se tourner vers un ailleurs. Comme le dit Deleuze, c’est
au milieu que la créativité s’inscrit, une communauté ne crée
qu’au milieu des parcours et se réfère à son propre dessaisissement pour avancer. “Comme l’indique son étymologie...
le munus que la communitas partage n’est pas une proprié199
té ni une appartenance. Il n’est pas un avoir mais au contraire une dette...”5. Pour pouvoir payer cette dette, les
membres endettés ne se retourneront pas nécessairement
vers le grenier des significations qui est en quelque sorte
vidée par chaque période historique, mais vers des significations qu’ils rencontreront au milieu de leur parcours. Le
sens de la communauté est donc inséparable de cette
recherche des rencontres qui viendront combler partiellement notre quête. Le sens de la communauté n’est pas de
conserver les réserves que de les augmenter par ce que les
autres apporteront. C’est justement manquer de sens de la
communauté que de se tourner vers le point d’origine. Les
problèmes d’origine dans une communauté lui permettent
de s’inscrire dans l’histoire, de procéder à des anamnèses
et d’avoir de la matière pour monter des fictions nécessaires
à “l’inconscient collectif” d’un peuple. Mais une origine n’est
pas un point fixe, c’est un point de fuite qui trace lui-même
des lignes tellement enchevêtrées qu’on ne sait plus quelle
a été la ligne initiale. Raison pour laquelle le sens de la communauté ne se fait que dans l’altération et dans la reconnaissance non seulement d’une identité partagée, mais
aussi et surtout de notre manque; c’est “le faire-défaut” qui
nous maintient ensemble”6.
– Quelques mauvaises habitudes polluent aujourd’hui le
sens de la communauté.
a) Le repli communautaire. Il se conçoit comme un
sacerdoce et surtout comme un messianisme. Le sens de
l’histoire y est l’enjeu principal ainsi que la définition d’un
bon récit porteur des espérances. Il y a d’abord la fabrication d’un point d’origine qui indique bien que toutes les énergies d’une communauté ont une même ancrage: isomorphisme des racines. Ensuite, on fabrique un drame qui
serait survenu et au terme duquel la communauté a survécu; à charge à celle-ci de répéter ce geste salvateur et auto
conservateur. Ce drame joue avec l’espace et le temps.
Pour réactiver la marche de l’histoire, on fouille et érige deux
sortes de listes: les martyrs, ceux dont la mémoire exige la
revanche et les héros. Enfin émergent quatre types de récit
au moins: a) celui de la victimisation par lequel une communauté, à un moment donné de son relâchement, réactive
le souvenir de ses plaies; b) Le récit héroïque par lequel une
communauté retouche inlassablement une figure héroïque
afin de la propulser comme un modèle identificatoire; c) Le
récit de légitimation à travers lequel la fondation du sens de
cette communauté s’est faite; et c) Le récit d’espérance par
200
lequel on mobilise les affects pour regarder devant l’histoire.
Ces quatre récits peuvent se contredire ou fonctionner
ensemble avec chaque fois une prédominance d’un discours sur les autres. Le sens de la communauté se vit ici
comme un repli agressif et méfiant qui lutte pour se faire
reconnaître. Le sens de la communauté est dans ce cas la
fermeture au novum et la constitution d’un type de personnalité susceptible et fermée à la critique des fondements de
sa propre culture. Le repli communautaire manque la dimension autoréflexive.
b) Le sens de la communauté par l’intériorisation des
maux et la stigmatisation
Quand une communauté se referme sur elle-même, elle
gère de manière spéciale les stigmates qui lui ont été imprimés par son histoire passée. On gère ces stigmates de
deux manières: a) vis à vis de l’extérieur, le groupe stigmatisé, comme le fait remarquer Goffman, va accepter ce
qu’on dit de lui, va intérioriser ses stigmates et guetter chez
ceux qui se croient normaux les marques de rejet pour
mieux les fustiger: “l’individu stigmatisé peut s’attaquer
ouvertement à la désapprobation à demi déguisée des normaux (...) et tâcher de les “prendre en faute” en guettant
dans leurs paroles et leurs actes le signe furtif qui révélera
que leur tolérance n’est qu’une façade”7.
L’écrivain Patrick Modiano utilise de manière ironique
cette tactique d’assimilation des stigmates: “Pour décourager les bonnes volontés, je répète aux journalistes que je
suis Juif. Par conséquent, seuls l’argent et la luxure m’intéressent. On me trouve très photogénique: je me livrerai à
d’horribles grimaces, j’utiliserai les masques d’orang-outang
et je me propose d’être l’archétype du juif, que les Aryens
venaient admirer vers 1941 à l’exposition zoologique du
palais Berlitz”8. Un autre type d’exemple, c’est la paranoïa
qui peut saisir ceux que l’histoire stigmatise, au point que le
sens de la communauté devient anesthésié par la peur.
Romain Gary narre dans son roman Les oiseaux vont mourir au Pérou, l’histoire de deux juifs réfugiés en Bolivie après
la Deuxième Guerre mondiale. L’un d’eux, Gluckman, est
convaincu que, bien que la guerre soit terminée depuis plusieurs années, le projet d’anéantissement des juifs existe
toujours et que la création de l’État d’Israël est une ruse pour
rassembler les juifs afin de mieux les exterminer. “Israël,
c’est une ruse pour nous réunir tous ensemble ceux qui ont
réussi à se cacher puis nous gazer... C’est pas bête... Ils
veulent nous attirer tous là-bas... et puis d’un seul coup... Je
201
les connais...”9. La méfiance systématique dont font souvent
preuve les opprimés (à juste titre parfois !) et les stigmatisés
peut être un frein à l’ouverture du sens de la communauté à
autrui.
b) Au niveau interne, le sens de la communauté peut stigmatiser les individus pour que leur pensée coïncide exactement à ce que veut ou croit vouloir la communauté. C’est
ainsi qu’un Africain qui essaye de s’occuper d’une histoire
sociale qui ne concerne ni celle de ses origines, ni celle de
la colonisation, ni celle de l’esclavage, ni même celle de l’État postcolonial, serait immédiatement stigmatisé par les
Africains de jouer le jeu de l’occultation de l’histoire africaine,
de mimer la colonisation et de rater cette chance qui, pour
une fois dans l’histoire récente, donne aux Africains l’opportunité d’écrire leur histoire. La tendance inverse qui croit faire
de l’universel en fuyant la particularité, se traduit par un refus
obsessionnel de ne pas parler de soi et de se diluer dans
des problématiques communes à tous. On a ainsi reproché
à certains écrivains juifs d’affirmer leur judéité pour l’affadir;
on a dans ce sens critiqué l’écrivain Roger Ikor, auteur de
“Les eaux mêlées” d’assimiler les écrivains juifs aux écrivains
français et de “rallier à une morale laïque censée avoir résorbé et les valeurs juives et les valeurs chrétiennes”10.
Le sens de la communauté, pour qu’il soit ouvert à l’altérité, doit conjuguer au moins deux choses: le “comme si” et
la “sphère d’appartenance”.
– Le “comme” autorise la comparaison, l’équivalence et
même la relativisation. Le “comme” rapproche en même
temps qu’il indique la distance. Dans nos discours pour évaluer les autres, la formule du “tout se passe comme si”
indique d’abord que nous ne pouvons pas coïncider avec
ce qu’est l’autre; il est impossible de vivre et de décrire ce
qu’est l’autre, ensuite, par le “comme si”, nous ouvrons un
monde des possibles, celui du souhait, de la prière et de
l’espérance11. La comparaison, la métaphorisation et l’analogie sont des éléments qui permettent de forger le sens de
la communauté tout en le relativisant en même temps. On
retiendra que Husserl fait de la notion de “sphère d’appartenance” le moment crucial pour constituer l’expérience
d’un monde objectif, mais ce qui nous appartient en propre
présuppose l’autre. Le fait qu’en général je peux opposer
cet être qui m’est propre à quelque chose d’autre, le fait que
moi qui suis moi, puisse être conscient de cet autre que je
ne suis pas (de quelque chose qui m’est étranger) – présuppose que les modes de compréhension de l’autre.
202
II - LE MALENTENDU FONDATEUR DU CROISEMENT:
LA COMMUNAUTE DE SENS
II.1. - Du malentendu
“Le monde ne marche que par le malentendu. C’est par
le malentendu universel que tout le monde s’accorde. Car si
par malheur on se comprenait, on ne pourrait jamais s’accorder” (Baudelaire, Mon coeur mis à nu, XLII).
Nous vivons une époque qui communique, qui se
drogue de transparence comme si nous savions qui sont
nos interlocuteurs. On nous invite à la rencontre, à respecter les différences ou à les condamner comme si nous en
connaissions le tracé exact. On nous dit de quitter notre
petit espace d’assignation et notre territoire de consignation
pour se remettre à un universel qui est peut être souvent
aussi coagulant qu’une identité compacte. Des uns parlent
de racines à préserver, à arroser, à respecter pour assurer à
la fois croissance et transmission, d’autres répondent que la
logique des racines est stérile et qu’une logique des
connexions et excroissances seule vaut, car la transmission
est une traversée et une aventure vers l’inconnu. Nous
sommes à la fois saturés par nous-mêmes (nous voulons et
connaissons trop de choses!) et étouffés par autrui qui nous
culpabilise soit de ne pas pouvoir le comprendre, soit de ne
pas le vouloir.
Pourquoi dans notre croisement avec l’autre on ne se
comprend pas? Pourquoi nos conversations ont souvent cet
aspect désolant et lisse qui consiste ni à intéresser autrui à
ce que je dis ou suis, ni à être impressionné par lui?
Comment n’arrive-t-on ni à prendre autrui ni à être pris par
lui? Comment arrive-t-on à assurer la permanence de ces
phrases: “il ne peut me comprendre, il ne peut comprendre
ma culture”, ou alors “A vrai dire je n’arrive pas à le comprendre”? La solution brutale et irréalisable serait que
chaque culture reste dans son ipséité, érige les barrières,
mais aujourd’hui cela est impossible.
La deuxième solution que nous adoptons serait de placer comme postulat que la mécompréhension est la condition du croisement des humanismes. Ce qui implique que
nous éliminions trois types de questions.
1 - Pourquoi ne se comprend-on pas? (question légitime
qui occupe les philosophes, les linguistes et logiciens)
2 - Comment se fait-il qu’on ne se comprenne pas?
203
(question renvoyant aux mécanismes herméneutiques de la
compréhension).
3 - La question du “quoi” du contenu de l’information à
communiquer.
Il s’agit pour nous de privilégier le fait que les gens se
sont arrangés avec le fait de ne pas se comprendre.
Comment est-il encore possible de rencontrer l’autre sans
que le fait de se comprendre ou non soit discriminant de
notre rencontre? Autrement dit, le malentendu étant inévitable, comment cohabiter avec lui, comment faire avec jusqu’à faire de lui un art de la rencontre? Comment édifier une
solidarité avec cet inconvénient de la mécompréhension et
du malentendu?
Pour rencontrer l’autre, je perçois des signaux et des
signes qu’il produit. Bien que fait d’objets, la rencontre est
d’abord celle des signes et présuppose l’utilisation du langage qui nous permet de décrypter ce que l’autre a voulu
dire. Dans la rencontre avec l’autre, il ne s’agit pas de comprendre un concept commun ni même de parler la même
langue, mais d’être dans une intentionnalité qui, seule, permet la compréhension. Dans ce cas, la fonction du langage
n’est pas tant de transmettre la connaissance d’un esprit à
un autre, ou d’une culture à une autre, mais d’amener les
deux esprits sur une même ligne de pensée et de les poursuivre dans la mesure du possible vers la même voie.
Notre hypothèse est que le malentendu est l’espace où
les cultures en se découvrant différentes et irréductibles, se
révèlent et se confrontent. Le malentendu est alors la ligne
de partage, un terrain neutre et vague où s’affrontent les
visions du monde.
“Tu ne me comprends pas? Cela vaut mieux, ainsi tu ne
prétendras pas que je viole ton espace”. C’est parce qu’on
ne s’est pas compris qu’on peut continuer à discuter. Le
malentendu devient alors une zone de traduction, de translation et de traversée ininterrompue. Loin d’être un handicap, le malentendu est fondateur.
II.2. “Théorie de passage”
Fondateur. Il ne faut pas prendre le fondement ici au
sens métaphysique de principe premier d’ordre déductif. Le
fondement est entendu ici comme un sol, une source, une
fondation sur laquelle viendra s’élever toute une superstructure. Mais pour que l’édifice puisse s’élever, cette fondation
204
qu’est le malentendu exige comme préalable l’existence
d’un monde commun partagé. Deux personnes, deux cultures commencent à s’entendre sur leurs malentendus s’ils
édifient et identifient entre eux des sortes de “théories de
passage” selon le mot de Richard Rorty. Il s’agit d’être attentif à ces moments singuliers et étranges (parce que rares!)
où les hommes, les cultures produisent des zones de tourbillons qui sont aussi ces surfaces de contact. “Dire que
nous découvrirons que nous parlons le même langage signifie, comme le dit Davidson, que nous tendons à converger
sur des “théories de passage”: ce qui sert à deux personnes
à se comprendre dans un même discours, est leur capacité
à converger sur des théories de passage”12. L’un des
moments par excellence pour ces passages est cette capacité de vivre en résonance avec la sensibilité d’autrui.
Autrement dit, il faut sentir les autres non comme des êtres
exotiques, mais comme des êtres souffrants. La compassion est ce qui opère mieux que tout ce passage vers autrui.
II.3. De la compassion
Certes, certains philosophes, comme Spinoza, se
méfient de la compassion qui serait le synonyme de la pitié
et le siège de l’envie, mais à bien regarder, la compassion
qui sera théorisée par Schopenhauer est différente de l’envie dans ce sens que celle-ci ne m’ouvre pas à l’autre, mais
me ramène à moi. Pour Schopenhauer en tout cas, la compassion est le noyau de l’éthique, c’est bien pour cela qu’il
ne faut pas fonder la morale dans un ciel rationnel épuré de
toute passion: “ce qui nous pousse aux bonnes actions ou
aux oeuvres de charité, n’est rien d’autre que la connaissance de la souffrance d’autrui, laquelle nous est immédiatement compréhensible grâce à notre propre souffrance... il
est évident que la nature de l’amour pour (agapé, caritas)
est conforme à la compassion”13. Dans cette perspective, la
compassion liée nécessairement à la souffrance est un mouvement vers autrui pour lui venir en aide. Mais le néo-kantien
Hermann Cohen nous indique que, face à la souffrance
d’autrui, nous ne faisons pas un mouvement vers l’autre
pour lui venir en aide, nous faisons au contraire un mouvement réflexif de l’autre à ce que nous sommes. Une interrogation donc14.
205
II.4. Des inversions
Dans le croisement, les passages et la compassion ne
suffisent pas à garantir le rapport à l’autre, il faut encore
compter avec plusieurs stratégies “de conversion à l’autre”.
Francis Affergan nous décrit le processus d’abordage de
l’autre par le missionnaire Charles de Foucault. La première
stratégie est celle de “l’auto-inversion” (qui) consiste à utiliser le stratagème du déguisement ou de la feinte en vue de
tromper autrui. C’est en se faisant autre que non seulement
on séduit autrui afin de l’amener à conversion”15. Cette stratégie est utilisée par les missionnaires qui veulent vivre
l’aventure de l’autre de l’intérieur et comme le colonisé vivre
ses propres souffrances. La deuxième stratégie est l’hétéroinversion qui consiste à “déguiser l’Autre en un autre-Autre”.
La procédure réside dans le fait qu’en faisant adopter par
l’Autre les coutumes et les moeurs d’autres cultures, on
nourrit l’espoir de le voir se métamorphoser et, par inversion,
se reconvertir définitivement à la religion visée”16.
Ces inversions ne produisent pas une communauté du
sens dans la mesure où, loin de considérer l’altérité de
l’autre dans ce qu’elle a d’important pour l’ouverture, elles
miment une ouverture qui en fait est une clôture tronquée. Il
manque là l’esprit véritable de la palabre17.
CONCLUSION
Le croisement des humanismes exige plusieurs préalables qui conduisent à mettre le sujet non pas face à l’autre
dans un rapport spéculaire – même s’il n’est pas agressif –,
mais au travers de l’autre. Que l’autre dans son indicibilité et
dans son altérité radicale nous “envahit” et nous “pénètre”,
tel serait l’idéal. Souvent on a conçu autrui à l’image de
l’ego; les autres cultures sont vues à partir du prisme de la
mienne propre et elles renvoient constitutivement à ma culture. Dans cette perspective, l’autre est un reflet de moi18. Il
faut cependant dépasser ce redoublement du même pour
penser l’altérité dans les termes mêmes de sa propre dislocation. Et c’est le concept de chiasme, puisé chez MerleauPonty, qui nous sert de fil directeur. Par le chiasme, nous brisons une partie de nous-mêmes comme nous brisons celle
d’autrui. Une fois que nos vues sur l’expérience du monde
ne seront plus parallèles, ni spéculaires ni même concaves,
mais à la fois brisées et convexes, on pourra tenter le rap206
prochement avec l’autre. Cela exige d’abord de résoudre le
problème de notre présence au monde qui devient co-présence. Heidegger avait bien vu que notre être au monde est
toujours un être-avec (Mitsein), mais un problème subsiste –
que Heidegger n’a pas explicitement abordé – et qui est le
fond de la démarche hégélienne, celui de la reconnaissance. Comment et selon quelles modalités le Dasein impliqué
dans le souci (Sorge) et dans l’angoisse (Angst) va-t-il
accepter de reconnaître l’autre? La présence dans le champ
de la conscience d’un sujet du phénomène de la co-présence indique que l’existence du sujet et celle de son groupe doivent être attentives aux tensions et distensions qui
jalonnent le champ de l’agir et les modalités de l’action. Ce
n’est qu’à ce titre que le sens de la communauté ne sera pas
une fermeture, ce n’est qu’à cette condition que la communauté de sens s’établit au sein d’un espace social.
Notes
(1) Nous dédions cet article à Marguerite Noah et à Eyenga Mbida.
(2) M. Walzer, Sphères de la justice, Paris, Seuil, 1997, p. 26.
(3) Robert Esposito, Communitas, Paris, PUF, 2000, p. 17.
(4) Ibid., p. 19.
(5) Robert Esposito, Communitas, Paris, PUF, 2000, p. 20.
(6) Esposito, op. cit., p. 21.
(7) Erwin Goffmann, Stigmate, les usages sociaux des handicaps, Paris,
Minuit, 1975, p. 136.
(8) Patrick Modiano, La place de l’Etoile, Paris, Gallimard, 1968, p. 48.
(9) Romain Gary, Les oiseaux vont mourir au Pérou, Paris, Gallimard,
1962, p. 245.
(10) Arnold Mandel, Une mélodie sans paroles ni fin, Chroniques juives,
Paris, Ed. du Seuil, 1993, p. 64.
(11) Lire là dessus Francis Affergan, La pluralité des mondes, vers une
autre anthropologie, Paris, Albin Michel, 1997, p. 59 et suivantes.
(12) Rorty, Contingency, irony and solidarity, Cambridge University
Press, Cambridge 1989, p. 14.
(13) Schopenhauer, Metaphysik in A. Sch. SW,X,1911, p. 222.
(14) Cohen Hermann fut un représentant du néokantisme en Allemagne.
(15) Affergan Francis, Critiques anthropologiques, Paris, Presses de la
Fondation Nationale des Sciences politiques, 1991, p. 53.
(16) Ibid., p. 54.
207
(17) C’est Husserl qui, dans les Méditations cartésiennes, Cinquième
méditation, pose le problème de l’existence de l’autre à partir de celle de l’ego, à l’intérieur de son être propre, puisse en quelque sorte constituer l’autre... c’est-à-dire lui conférer un sens existentiel qui le met hors du contenu
concret du “moi-même” (Méditation cartésiennes, Paris, Vrin, 1980, p. 78-79).
La critique qui a été adressée à Husserl insiste sur le fait que la primauté est
accordée à l’ego et qu’alter ne peut se constituer qu’à l’image de l’ego qui reste premier: Husserl affirme “alter veut dire alter ego, et l’ego qui y est impliqué, c’est moi-même, constitué à l’intérieur de ma “sphère d’appartenance”
(Husserl, op. cit., p. 93). Cette phrase a fait dire à Levinas que Husserl réduit
l’autre au même, autrui à ce je suis, “autrui demeure infiniment transcendant,
infiniment étranger” (Lévinas, Totalité et infini, essai sur l’extériorité, La
Haye/M. Nijhoff, 1965, Livre de poche, p. 211).
(18) Bidima Jean-Godefroy, La palabre, une juridiction de la parole,
Paris, Michalon, 1997.
208
JOSÉ BENTO ROSA DA SILVA
Universidade do Vale do Itajaí
(Brasil)
Associação dos naturais e amigos
de Angola de Itajaí: As (Re)Significações
De Áfricas No Brasil
A partir de vinte de janeiro do ano de 1976, jornais da
cidade de Itajaí, localizada no Litoral Norte do Estado de
Santa Catarina, na região Sul do Brasil, e caracterizado pela
colonização de imigrantes europeus (alemães, italianos,
poloneses, austríacos, dentre outros) desde finais do século XIX, passaram a noticiar a chegada de angolanos na
cidade. O navio pesqueiro no qual se encontravam os
angolanos estava atracado próximo ao porto. O jornal A
Nação1, do dia vinte de janeiro de 1976, por exemplo, trazia
a seguinte manchete:
“Fugitivos de Guerra de Angola Chegam em Itajaí
Quatro barcos angolanos atracaram na manhã
de ontem no Porto de Itajaí, trazendo a bordo
cerca de oitenta e quatro pessoas.
Todos os estrangeiros são refugiados da sangrenta
guerra que se desenrola em Angola, vindo buscar
em Santa Catarina novos horizontes”.
Outros jornais, como o Jornal do Povo, registraram a
chegada do grupo de angolanos na mesma semana, de
forma sensacionalista, lembrando trechos da peregrinação
do povo hebreu em busca da Terra Prometida2:
“Brasil, Terra Prometida
Acham-se ancorados no Porto de Itajaí
quatro barcos pesqueiros procedentes de Angola,
com oitenta e cinco pessoas a bordo (N.D.P.,
uma criança nascera a bordo durante a viagem)
que fizeram a travessia do Atlântico com destino
ao Brasil em dezenove dias (...os angolanos,
segundo dizem, são peritos na pescaria, de forma
que todos estão afim de se dedicar a esta profissão)”.3
209
Passados os primeiros meses da presença destes refugiados em Itajaí, um boato veio a público: os refugiados
estariam com o vibrião colérico, colocando a saúde da
população itajaiense em risco. O jornal O Correio de Itajaí,
na edição de sete de fevereiro do mesmo ano de 1976, veiculou a seguinte nota assinada pelo médico responsável
pelo Departamento de Saúde Pública da Cidade:
“(...) Não tem fundamento o boato de que os angolanos
que estão aportados em Itajaí, sejam portadores do
cólera, o dr. Wilson Reblin, diretor do Departamento de
Saúde Pública nos tranqüilizou, informando-nos que
foram realizados minuciosos exames em adultos e
crianças, inclusive com testes de laboratórios, nada
sendo constatado”4.
Novas notícias sobre os refugiados ganharam as páginas dos jornais locais meses depois. O jornal A Nação5, que
havia sido o primeiro a noticiar a chegada dos angolanos
em Itajaí em janeiro de 1976, voltou a noticiar, agora em tom
de denúncia:
“Angolanos Vivem Triste Situação
Ainda sem definições na sua situação os angolanos que
chegaram ao Brasil fugitivos daquele país em barcos
pesqueiros, permanecem residindo em seus barcos (...)
enquanto aguardam o pronunciamento do Ministério do
Exterior, a situação dos refugiados não mudou em nada
desde que aqui chegaram”6.
Esta foi a última notícia veiculada nos jornais sobre a
presença dos refugiados angolanos em Itajaí. No entanto,
eles permaneceram na cidade, enfrentando os trâmites
burocráticos da justiça brasileira que, à época, era tutelada
pelo regime militar.
A senhora Adriana Tavares Correia, diretora de eventos
da Associação dos Naturais e Amigos de Angola, lembrou
que, na época, foi chamada à agência de Correios e
Telégrafos da cidade para prestar depoimento em relação a
uma carta endereçada a ela por um seu irmão que estudava em Cuba. Diz ela que jamais esquecera do acontecimento, ou seja, o fato ficou gravado em sua memória dado
o significado do mesmo, como nos lembra Ecléa Bosi ao
analisar a reação dos acontecimentos com a memória e o
ato de lembrar: “fica o que significa”7. E quantos significa210
dos este acontecimento pode ter proporcionado à senhora
Adriana, refugiada de Angola, num país pretensamente de
irmãos e de solidários?8
O cotidiano destes refugiados deixou de ser manchete
dos jornais locais, no entanto, eles não saíram de cena, pois
continuaram vivendo em Itajaí enfrentando preconceitos,
narrados “in off” no decorrer das entrevistas (devido, inclusive, à ignorância da população e das próprias relações
entre Brasil e África, que não passavam além das formalidades do governo militar). A população brasileira, de modo
geral, desconhecia a África, matriz da cultura brasileira,
como também desconhecia que maioria de sua população
era – é – descendente de africanos, ainda que não saibam
(e alguns ainda que não o queiram saber).
Malgrado o desdém oficial, a população afro-brasileira,
bem como os angolanos na diáspora9, que escolheram ou
que foram levados a escolher, pelas circunstâncias, a viver
no Brasil, viviam seu cotidiano em meios às tensões proporcionadas por um regime de exceção, onde os iguais
(leia-se os marginalizados) eram motivos de desconfiança e
de competição entre eles mesmos, como fica evidente no
depoimento do senhor Adriano:
“(...) Havia alguns engraçadinhos com piadas bobas. É
claro que houve alguma forma de represália. Essa coisa
de povo, sempre tem alguns que faz uns comentários
que não são agradáveis, mas isso sempre tem em qualquer povo, em qualquer lugar.
Uma vez um vizinho fez um comentário dizendo assim:
‘há tanto brasileiro que não consegue comprar nada,
eles (angolanos) estão há pouco tempo aqui e já compraram casas e móveis.
Contudo, estes comentários não representava muita
coisa, pois em todos os revions, eles vinham, nos
abraçavam e diziam sermos os melhores vizinhos”10.
Viver na diáspora implica em reorganizar-se, pois na
“nova moradia voltam as lembranças dos espaços vividos.
Para a casa do futuro são transportados os usos e costumes, o que implica uma continuidade em relação ao passado e evidencia a perpetuação da identidade do lugar de origem”11, ou seja, busca-se preservar a dignidade, lembrando Martin Heidegger: “O esforço a tornar o homem livre
para a sua humanidade e a levá-lo a encontrar nessa liberdade a sua dignidade”12.
211
A busca da humanidade e da dignidade parece ter sido
um dos sentidos da organização da Associação dos
Naturais e Amigos de Angola de Itajaí, em três de outubro
de 1999, vinte e três anos após terem chegado à cidade de
Itajaí. Para Adriano Alexandre Correia, nascido em Cabo
Verde e tendo residido durante vinte anos em Angola, onde
os filhos nasceram, o “principal motivo foi a regularização
da cidadania e respaldo do governo angolano”13. Já para
Adriana Tavares Correia, Carolina Delgado e Eugênia Maria
Brito, fundadoras e diretoras da entidade, as motivações
foram: “o desejo de reunir todos os angolanos com o objetivo de nos confraternizarmos e podermos falar sobre o
nosso país, bem como divulgar e manter nossa cultura e
servir as causas sociais envolvendo nosso conterrâneos”14.
A importância da organização da entidade foi descrita
da seguinte forma pelo senhor Felipe de Brito Gomes, nascido em Cabo Verde, mas que desde a adolescência passou a residir em Angola (entrementes, Cabo Verde vêm à
sua memória quando tece relações e/ou ao re-significar a
terra natal a partir de traços geográficos existentes no
Brasil, bem próximos à sua residência): “Aqui no Brasil o
que mais me dá saudades de Cabo Verde é do meu tempo
de criança, quando eu corria pelos morros todos, descalço,
um morro como o Morro da Cruz (o ponto mais elevado da
cidade de Itajaí, com vista panorâmica privilegiada. Sua
residência está localizada praticamente aos pés deste acidente geográfico), correndo atrás das cabras dos meus
pais. Todo dia de manhã eu ia buscar as cabras para tirar o
leite (...)”. E ele conta como era esta atividade nas noites de
lua cheia quando as cabras se distanciavam da localidade,
“seduzidas” pela lua, e, noutros dias, quando as mesmas
não se afastavam. Mas a memória a partir da infância15 em
Cabo Verde foi apenas uma digressão, pois em seguida ele
falou da importância da entidade da qual faz parte:
“A Associação está mais ou menos com dois para três
anos, foi surgida desta maneira: ‘- alguns haviam perdido documentos de identidade, ou que não conseguiram
fazer, precisavam de passaporte e tudo. A Carolina
então propôs ajudar o pessoal, entrou em contato com o
consulado de Cabo Verde, de Angola, e daí foi escrevendo para eles, informando o que estava acontecendo... então ela teve esta iniciativa.
A Associação agora é uma forma de a gente ter mais
acesso aos documentos e relembrar sempre a nossa
212
terra (...) o fato é que hoje a Associação é reconhecida.
A única diferença é que alguns destes rapazes ainda
não botaram na cabeça que tem que ter esta
Associação, que é necessário para todos, faz falta para
todos.(...) Nas festas que fazemos, preservando os costumes, os que vieram de lá criancinhas, que não sabiam
nada, assim, vão entrando dentro da cultura de Angola
e de Cabo Verde: sabendo o que se usava, quais eram
os costumes, o e se fazia... O fim da Associação é ajudar aqueles que não têm meios, não tem como resolver
a questão dos documentos... Financeiramente a
Associação não pode ajudar, porque não tem fundos,
mas nós é que temos que fazer a Associação, nos agrupar, nos ajudar. Está difícil, mas estamos indo, até já está
reconhecida!
O consulado já falou na possibilidade de organizarmos
uma excursão para Angola... Daqui, desde que viemos
para o Brasil, só a Eugênia teve a oportunidade de voltar lá. A maioria não tem possibilidades (...)”16
Na seqüência da entrevista fica evidente o desejo de re-significar aspectos lingüísticos da África no Brasil e as dificuldades encontradas:
“A língua nativa até estamos propondo que na festa se
falasse a língua nativa, aquele que falar português vai
levar uma multa (risos). Mas só que a língua angolana, o
idioma angolano vai ser difícil, porque eles vieram
pequenos, não aprenderam nós em casa não falávamos
nem angolano, nem cabo-verdiano; mas eu creio que no
futuro deve entrar para a história, porque um povo não
pode esquecer suas raízes.
Em cabo-verdiano eu falo corretamente, às vezes eu e
minha esposa falamos, a Eugênia entende um pouquinho, mas fala pouco, os meus filhos não falam nada, nem
cabo-verdiano, nem angolano, só falam o português
quem era a língua oficial de Angola. Filhos de pais angolanos que não falam a língua nativa, só o português.
Porque os da cidade já falavam a língua oficial; agora os
do interior tinham a escola em português e a escola em
quimbundo, umbundo... dependia da região”17.
Do depoimento do senhor Felipe depreende o fato de
que ser africano na diáspora é “fazer-se” africano18; é
encontrar-se com o seu passado, ainda que re-significando213
-o em situações adversas; é encontrar-se apesar dos
desencontros:
“(...) Através da Associação a gente tem notícias de
Angola, pois o consulado envia revistas, jornais...19 é
uma forma da gente reencontrar o passado, e a própria
terra”20.
A senhora Maria da Luz Peixoto, natural de Angola, falou
dos momentos em que a Associação possibilita re-significar
África no Brasil, ainda que não tenha usado esta expressão,
sobretudo nos eventos culturais:
“Com a Associação nós recordamos mais, principalmente quando eles vão dançar, na dança já lembra, porque nós temos as danças típicas cabo-verdianas... nós
assistimos tudo, e a dança também, porque a nossa
dança mesmo de lá (de Angola), não tem quem dance.
As moças dançarinas cabo-verdianas imitam um pouco,
mas as danças de Angola mesmo, nem eu sei mais
dançar, só vendo mesmo! Aqui não temos mais, tudo
que veio de lá, já não está mais com aquele tipo antigo,
já esqueceram, a cultura... esqueceram assim um
pouco da cultura...
A comida, na festa a gente faz a cachupa... Feijoada
nunca fizemos, faz a cachupa que é de Cabo-Verde. De
Angola que temos é o mambá; tem lugar que chamam de
calulu. No nosso lugar era chamado de mambá”21
(pacientemente, explica com se elabora o manjar que,
sem conhecer, encheu-me de desejos de degustá-lo...).
A dança parece ser um dos momentos que permite a
recriação de espaços, a apropriação do mundo, como frisou Muniz Sodré, um dos estudiosos da cultura afro-brasileira: “Ao dançar, colocando-me ora aqui, ora ali, eu posso
superar a dependência para com a diferenciação de tempo
e espaço, isto é, a minha movimentação cria um independência com relação às diferenças correntes entre altura,
largura, comprimento. Em outra palavras, a dança gera
espaço próprio, abolindo provisoriamente as diferenças
com o tempo, porque não é algo espacializado, mas espacializante, ou seja, ávido e aberto à apropriação do mundo,
ampliador da presença humana, desestruturador do
espaço /tempo necessariamente instituído pelo grupo como
contenção do livre movimento das forças”22.
214
Ao lembrar das danças, a entrevistada Maria da Luz
Peixoto também fez a seguinte ressalva:
“As vezes eu fico pensando: era bom se todos participassem da Associação, mas os que são evangélicos já
não vem integrar conosco”23 .
A dança, que como mostrou Muniz Sodré, tem para o
povo africano e seus descendentes uma função libertadora,
para certas concepções religiosas não passam de divertimento profano, bem aos moldes da epistemologia cartesiana onde a razão estaria divorciada de emoção.
A senhora Marciana, nascida em Cabo Verde, residiu
em Angola por vinte e oito anos, onde os filhos nasceram.
Falou da importância da Associação da seguinte forma:
“A Associação é boa porque faz lembrar Angola. Eu vivi
em Angola durante vinte e oito anos. Eu gosto, porque
faz lembrar muita coisa: vem um conjunto de amigos,
vem pessoal de Cabo Verde, fazemos a cachupa da
terra. A cachupa é comida da minha terra, de Cabo
Verde (...)
Na festa tenho costume de fazer a cachupa porque é de
minha terra, os meus filhos gostam muito. Faço mais no
tempo de frio, no calor não faço muito não.
Na festa, com três pessoas fizemos a cachupa: colocamos carne de porco, carne fresca, lingüiça.. cozinha o
feijão, cozinha o milho, mistura tudo...” (pacientemente,
como a senhora Maria da Luz Peixoto, vai explicando
todos os detalhes da culinária e, mais uma vez, me deixando com água na boca, até porque as horas eram
próximas ao meio dia...)”.
Após uma breve pausa, ela fala do significado da
Associação:
“A Associação ajuda a relembrar como era o povo em
Angola, aqueles movimentos. Aumenta a vontade de
viver, já estamos aqui há vinte e sete anos, a gente
sempre ajuda. Foi uma coisa maravilhosa que inventaram“.24
Nos eventos são veiculadas projeções sobre países africanos, desfile de trajes típicos, enfim, uma forma de mostrar
a África para os que estão presentes, através de uma ação
215
cultural para a liberdade, se me permitem usar uma
expressão do educador brasileiro Paulo Freire que, com
Amílcar Cabral, experimentaram na prática um humanismo
latino na África, mais precisamente em Guiné Bissau25.
Aliás, nas entrevistas, ao re-lembrarem do processo de
emancipação de países africanos de língua portuguesa,
vários entrevistados citaram a ação educativa de Amílcar
Cabral, que se tornou referência para a organização deles
em situações adversas.
Falar da Associação proporcionou também a oportunidade de lembrar a terra natal, as razões que fizeram com
que os antepassados deixassem Cabo Verde e fossem para
Angola. Essas lembranças estão vivas na memória dos que
vieram adultos para Itajaí. O momento de lembrar foi também uma forma de refazer aquele passado que parecia distante. Então, o momento da entrevista foi, portanto, um ato
de re-encontro com o passado:
“O pai da minha mãe, o meu avô, era cabo-verdiano, diz
que eram três primos. Uma vez deram uma surra num
policial. O policial ficou muito mal. Eles foram condenados, foram mandados para Angola. Foram condenados
para Angola. Então eles cumpriram a pena. Quando
mandaram chamar eles de volta, eles não quiseram
mais voltar. Era o meu avô, pai da minha mãe. Ele era
moço. Depois mandou buscar a família que tinha ficado
em Cabo Verde, ele mandou chamar os primos”26.
Falar sobre a Associação, como já frisei acima, oportunizou também para o senhor Felipe a re-significação do
passado. Ouvir foi também uma oportunidade de ajudar a
criar e recriar mutuamente, como criadores de algo novo,
que acontece no momento do diálogo. A entrevista neste
caso foi semelhante à maiêutica socrática, para usar uma
expressão de Antônio Montenegro27. Disse ele:
“Sou natural de Cabo Verde, cidade de Mindelo. Fui
para Angola em 1952, com dezesseis anos de idade. Fui
enganado, porque os menores iam para oficinas aprender alguma arte nas diversas oficinas que tinha. Mas
aconteceu o contrário, chegando lá nos botaram para
trabalhar na fábrica de peixe, as roupas que nos davam
era simplesmente uma camiseta, calções de lona para
trabalhar no peixe, sem proteção nenhuma. A gente
andava com as pernas cheias de furúnculos.
216
Depois de terminado o contrato que era de três anos,
isso acabou. Aliás, antes de terminar o contrato, porque
nós de Cabo Verde não estávamos acostumados a viver
da maneira como eles tratavam os nativos de Angola.
Nós nos revoltámos. Muitos foram para a cadeia, até eu
passei quatro dias na cadeia, só comendo pirão de
milho, o fubá e um peixe chamado carapau, seco, fermentado. Eles cortavam e davam a gente duas vezes
por dia. Fui preso sem ter feito absolutamente nada
(altera a voz). Foi por causa dos colegas que se revoltaram por razões deles: pois foram trabalhar à noite no
mar, chegaram de manhã para descansar e foram
buscá-los para trabalhar na estiva. Havia um navio da
marinha mercante ancorado na Baía, chamado Baía
Farta. Foram buscar os rapazes para trabalhar. Aí houve
a revolta”.28
A entrevista com o senhor Felipe me fez lembrar a arte
de narrar lembrada por Walter Benjamim, numa época em
que parece ser rara esta arte, ainda mais em tempos de globalização. Diz Benjamin:
“A liberdade do diálogo está-se perdendo. Se antes,
entre seres humanos em diálogo, a consideração pelo
parceiro era natural, ela é agora substituída pela pergunta sobre o preço de seus sapatos ou de seu guardachuva. Fatalmente impõe-se, em toda conversação em
sociedades, o tema das condições de vida, do dinheiro.
No caso, trata-se não tanto das preocupações e dos
sofrimentos dos indivíduos, nos quais talvez pudessem
ajudar um ao outro, quanto da consideração do todo. É
como se se estivesse aprisionado em um teatro e se
fosse obrigado a seguir a peça que está no palco, queira-se ou não, obrigado a fazer dela sempre de novo,
queira-se ou não, objeto do pensamento e da fala”.29
Pois bem, o senhor Felipe contou como foi que saíram
de Angola, frisando que não foi por nenhum espírito de
aventura, mas sim dentro de determinadas condições,
caracterizando, portanto, a situação de diáspora para estes
angolanos que vivem em Itajaí:
“Eu falava: ‘- aqui de Angola eu só saio correndo com o
calcanhar batendo na bunda, mesmo que eu vá sem
nada’. E foi o que aconteceu. Quando as forças contrá217
rias ao M.P.L.A. entraram na cidade onde nós vivíamos.
Antes já andavam ameaçando, fazendo ameaças ao
pessoal de Cabo Verde. O pessoal da UNITA dizia que,
se ganhassem a independência, matariam todos os
cabo verdianos. Então foi nesta ocasião, foi em cinco de
novembro de 1976, quando saímos de lá. O M.P.L.A.
recuou porque não tinha forças suficientes contra a
UNITA. A gente embarcou com o nosso patrão e viemos
com ele. A gente não tinha a intenção de sair de
Angola”.30
Considerações Finais
Hoje, a Associação dos Naturais e Amigos de Angola de
Itajaí conta com o número de cinqüenta membros naturais.
Somando os descendentes, chega-se a um total de 106
pessoas.
Segundo alguns membros, depois da formação da
Associação os itajaienses passaram a se interessar mais
em saber sobre Angola, sendo que os encontros entre eles
ficaram mais freqüentes, como frisou a senhora Adriana,
dizendo que no último Natal passaram juntos, comemorando. Aliás, no decorrer das entrevistas, os angolanos e descendentes de angolanos radicados em Itajaí demonstraram
grande interesse numa possível viagem coletiva para
Angola, a fim de revisitar seu país de origem e resgatando,
com maior intensidade, sua cultura, tanto que, neste provável roteiro de viagem, não só a capital ou os pontos turísticos seria visitado, mas, em especial, as regiões de origem
do grupo.
É preciso frisar ainda que, em Florianópolis, capital do
Estado, existe a Associação dos Estudantes Africanos de
Santa Catarina – AEA /SC, fundada em maio de 1996; estes
têm participado também dos eventos promovidos pela
Associação dos Naturais e Amigos de Angola de Itajaí.
De uma forma ou de outra, alguns africanos acabam-se
encontrando e se reencontrando através das suas entidades civis, ainda que na diáspora.
218
Notas
(1) Jornal A Nação. Itajaí, 20.01.1976. In: CRUZ, Euclides José da,
Angola-Brasil: Lembranças, Práticas E Representações Da Imigração Angola
Em Itajaí. Itajaí: Universidade Do Vale do Itajaí, Departamento de História,
2000 (Monografia de Conclusão de Curso de Graduação em História), p. 23.
(2) Estou me referindo à tradição judaico-cristã narrada em Êxodo, cap.
6, 2-13.
(3) Jornal do Povo. Itajaí, 24.01.1976. In. CRUZ, Euclides José da. Op.
Cit. p. 24.
(4) Jornal Correio De Itajaí. Itajaí, 07.01.1976. In. CRUZ, Euclides José
da. Op. Cit. p. 28.
(5) O jornal A Nação fazia parte da principal e mais poderosa rede de
notícias do Brasil na década de 50 e 60: Os Diários Associados do empresário Assis Chateaubriand. Veículo estes que deu pleno apoio ao golpe militar implantado no Brasil no ano de 1964 e que vigorou até o ano de 1984.
Sobre a influência desta rede de comunicação na política brasileira. Ver.
MORAIS, Fernando. CHATÔ – O REI DO BRASIL. SP: Cia. Das Letras, 1997.
(6) Jornal A Nação. Itajaí, 24.07.1976. In: CRUZ, Euclides José da. Op.
Cit. p. 30.
(7) Estou me referindo à obra Lembranças De Velhos, onde Ecléa Bosi
estuda a importância da memória na sociedade contemporânea.
BOSI, Eclea. Lembranças De Velhos. SP: Edusp., 1987.
(8) O Brasil foi um dos primeiros países a reconhecer a independência
de Angola, ainda que sob o jugo do governo militar.
Sobre esta questão. Ver. Um Momento Especial Nas Relações BrasilAngola: do Reconhecimento da Independência aos dias atuais. In: PANTOJA, Selma e SARAIVA, José Flávio Sombra (orgs.) Angola e Brasil: Nas Rotas
Do Atlântico Sul.RJ: Bertrand Brasil, 1999, pp. 225-252.
(9) Entendo por diáspora as várias categorias de refugiados, imigrantes,
residentes estrangeiros e minorias étnicas, raciais e religiosas.
(10) Entrevista com Adriano Tavares Correia. In. CRUZ, Euclides José
da. Op. Cit. p. 32.
(11) LUCENA, Célia. Tempo E Espaços Nas Imagens Das Lembranças.
In. SIMSON, Olga Rodrigues De Morais Von (org.) Os Desafios
Contemporâneos Da História Oral. Campinas: Ed. Unicamp., 1997, p. 231.
(12) HEIDEGGER, Martin. Sobre O Humanismo. RJ: Tempo Brasileiro,
1995, p. 36.
(13) Entrevista com Adriano Alexandre Correia, 65 anos, realizada a 03
de janeiro de 2003, por José Bento Rosa Da Silva.
(14) Entrevista coletiva realizada com as diretoras da Entidade: Adriana
Tavares Correia (diretora de eventos), Carolina Delgado (Presidente) e
Eugênia Maria Brito (Diretora Social), em 29 de dezembro de 2002, por José
Bento Rosa Da Silva.
(15) A memória a partir da infância foi discutida por Maurice Halbwachs
de forma magistral.
Sobre esta questão. Ver. HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva.
SP: Ed. Vértice, 1990.
(16) Entrevista realizada com Felipe De Brito Gomes, 67 anos. Realizada
por José Bento Rosa Da Silva, em 07.12.2002, em Itajaí, Santa Catarina, Brasil.
(17) Entrevista com Felipe De Brito Gomes. Citada.
(18) A expressão “fazer-se” tomo emprestada do historiador E. Paul
Thompson, para caracterizar que trata-se de um processo que se deve tanto à ação humana como aos condicionamentos históricos.
Sobre esta questão. Ver. THOMPSON, E.P. A Formação Da Classe
Operária Inglesa, 3 Vols. RJ: Paz e Terra, 1987.
(19) Tive oportunidade de manusear algumas revistas e jornais que
219
membros da Associação recebem em Itajaí, tais como: Notícias De Angola:
Informativo do Consulado Geral de Angola No Rio De Janeiro (jornal) e
Tribuna Diplomática: Revista Da Embaixada De Angola No Brasil (vários
exemplares).
(20) Entrevista com Felipe De Brito Gomes. Citada.
(21) Entrevista com Maria Da Luz Peixoto, 62 anos, natural de Nova
Lisboa, Angola. Realizada em Itajaí, a 05.12.2002, por Jose Bento Rosa Da
Silva.
(22) SODRÉ, Muniz. O Terreiro E A Cidade.: A Forma Social Negro-Brasileira. Petrópolis: Vozes, 1988, p.122.
(23) Entrevista com Maria Da Luz Peixoto. Citada.
(24) Entrevista com a senhora Marciana Antônia Da Cruz, 74 anos.
Realizada a 05.12.2002, por José Bento Rosa Da Silva. O grifo é meu.
(25) Estou me referindo sobretudo ao relato da experiência educativa em
Guiné Bissau de Paulo Freire e Amílcar Cabral.
Sobre esta questão. Ver. FREIRE, Paulo. Cartas À Guiné Bissau. RJ: Paz
e Terra, 1980, 3ª Ed.
(26) Entrevista com Maria Da Luz Peixoto. Citada.
(27) “O trabalho de rememorar, que se estabelece através do diálogo entre entrevistador e entrevistado, assemelha-se à maiêutica socrática, sobretudo pela empatia que deve existir. O entrevistador deverá colocar-se na postura de parteiro de lembranças, facilitador do processo que se cria e resgatar as marcas deixadas pelo passado na memória”. In: MONTENEGRO,
Antônio Torres. História Oral E Memória: A Cultura Popular Revisitada. SP:
Contexto, 1992, p. 150.
(28) Entrevista com Felipe De Brito Gomes. Citada.
(29) BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas. Vol II (Rua de Mão Única).
SP: Brasiliense,1995, 5ª Ed., p. 23.
(30) Entrevista com Felipe De Brito Gomes. Citada.
220
CARLOS PIMENTA
Centro de Estudos Africanos, Universidade do Porto
(Portugal)
«Globalização em África
e (Des)Humanismo»
Permitam-me que comece por saudar a realização
desta iniciativa que permite juntar sobre uma mesma problemática tantos pontos de vistas diferentes, forjados em
disciplinaridades científicas específicas, em experiências e
consciências possíveis variegadas, em posturas ideológicas e filosóficas – sempre presentes por mais esforço metodológico que se faça para a sua depuração – dissemelhantes. Todos diferentes mas com a preocupação comum de
tratar de uma forma epistemologicamente correcta um
mesmo tema: “Humanismo”.
E porque se vão acumulando experiências anteriores de
outras iniciativas, de outras leituras e outros diálogos, permitam-me que esta minha saudação inicial concentre-se em
dois pontos:
(1) Os “encontros e desencontros” é o único terreno possível, do meu ponto de vista, para se estudar o humanismo.
“Pensar o homem, num processo de criar e recriar o humanismo”, aceitar os desafios do quotidiano e aproveitar todo
o pretexto, toda a situação, para criar melhores condições
para o futuro da humanidade, construir um “neo-humanismo”
exige inexoravelmente que um dos pilares da sociedade
futura seja o “respeito pela diversidade”. Assim sendo, o
isolamento de um «humanismo» e a homogeneidade de leituras sobre ele, podem ser a sua condenação, certamente
é o seu empobrecimento progressivo. “O «humanismo latino» pode ser uma referência significativa se se reconstruir
permanentemente em confronto com a sua negação”. “O
humanismo latino construi-se e vivifica no confronto – de
afirmação e aceitação – com outras formas de pensar o
homem, no confronto com outros humanismos, com outras
culturas, com outras axiomáticas e lógicas de agir e pensar.
É esse confronto que garante que o homem seja «o eu e o
outro» ou, ainda melhor, «o outro e o eu». É na mescla de
culturas que se construirá o futuro.”
221
(2) Homens de cultura de tão variadas formações criam
condições altamente favoráveis aos rumos de um neoconhecimento que frequentemente tem a designação de interdisciplinaridade. Sabemos que a prática da interdisciplinaridade está muito aquém da promoção que dela é feita.
Sabemos que é necessário uma vasta reflexão epistemológica sobre a interdisciplinaridade que ainda está por fazer.
Sabemos que existem dificuldades diversas (desde as
limitações cognitivas do homem ao grande volume de informação, desde a clausura das linguagens específicas aos
entraves institucionais, ...) no trabalho de interdisciplinaridade mas ela é um sistemático desafio, mesmo desesperante,
quando ninguém duvida do “homem total”, da “multidimensionalidade humana” e, no entanto, não se consegue ultrapassar o campo restrito do seu saber disciplinar. Temos que
ter a ousadia da interdisciplinaridade e talvez o “humanismo
latino” seja um novo elo identificador capaz de desafiar as
nossas sínteses. Certamente que conferências como estas
contribuem para um seu repensar rumo a uma aproximação
ao “homem total”.
Feitos estes dois reparos entro na temática da minha
comunicação, assente na Economia.
Tenho frequentemente reparado, quando me encontro
na situação de ouvinte, sentado numa sala em que predominam intelectuais das «humanidades» que o discurso económico é assumido, desde logo, como um discurso «desviado», tecnocrático, terminologicamente espinhoso. Talvez
tenham alguma razão mas esta só advém da pouca experiência de nos ouvirmos mutuamente.
Contudo, tendo em atenção essas formas típicas de
sentir e agir, quero colocar desde já uma informação e uma
preocupação.
A informação é simples. Assento a minha comunicação
na Economia mas frequentemente esse é apenas o trampolim para uma Anti-Economia.
Anti-Economia porque procura, quiçá com pouco
engenho e insuficiente fundamentação, mostrar a face oculta do «discurso económico». Igualmente porque tenta ultrapassar as fronteiras disciplinares.
A preocupação tem a ver com a minha intenção em evitar muitas referências numéricas, embora algumas sejam
inevitáveis e até intelectualmente saudáveis, em pôr de lado
as formulações matemáticas e econométricas, embora por
vezes estejam subjacentes e tenham servido de suporte a
alguns comentários. Enfim, procurei, com o sucesso que
222
cabe a vós apreciar, comportar-me no discurso como
«homem das humanidades» sem perder o sabor dos desafios da minha disciplinaridade específica.
“Num sistema de comércio perfeitamente livre, cada
país consagra o seu capital e trabalho às actividades que
lhe são mais rendosas. Esta procura da vantagem individual
coaduna-se admiravelmente com o bem-estar universal.
Deste modo, estimulando-se a indústria, premiando-se os
inventos e empregando-se o mais eficazmente possível as
possibilidades especiais concedidas pela natureza, o trabalho é melhor distribuído e com maior economia enquanto
que, aumentando a produção total, se espalha o bem-estar
por toda a parte e se ligam todas as nações do mundo civilizado com os elos do interesse e do intercâmbio. É este
princípio que faz com que o vinho seja produzido em
França e Portugal, que se cultive o trigo na América e na
Polónia e que se fabriquem ferramentas e outros produtos
na Inglaterra” (Ricardo, Princípios de Economia Política e de
Tributação, Pág. 149).
Esta é uma passagem lapidar das páginas que este
«monstro sagrado do pensamento económico», este «pai»
da Ciência Económica como hoje é concebida, dedica para
desenvolver a sua teoria sobre a importância da especialização e da liberdade de comércio. Apesar de formulada em
1817, continua a ser uma referência obrigatória e muitos
dos modelos posteriores assentam nos mesmos princípios
e nas mesmas lógicas de abordagem do problema. Como
diz um dos grandes «pedagogos» do ensino da Economia
– pelo menos grande na quantidade de economistas que se
formaram sob os seus ensinamentos – é “uma bela tese
sobre os benefícios para as nações da especialização internacional, a que chamou a lei da vantagem comparativa ou
teoria dos custos comparados” (Samuelson-Nordhaus,
Economia, Pág. 1037).
Certamente que muito haveria a dizer sobre o conceito
de “bem estar universal” num texto escrito por um inglês,
quando este era indiscutivelmente o país mais poderoso e
dominador do mundo.
Certamente que não deixa de ser sociológica e historicamente interessante que as produções agrícolas fossem
vantajosas para os outros tendo a Inglaterra que se especializar, por ditames da lei natural, nas produções de maior
valor acrescentado, nas mais exigentes tecnologicamente,
nas que eram a expressão típicas da revolução industrial
223
que estava a mudar o mundo. Mas não são esses aspectos
que agora nos preocupam.
O que pretendemos aqui salientar é que, segundo
Ricardo, Portugal deveria especializar-se no vinho (nos seus
subsectores direccionados para a exportação como é o
caso do vinho do Porto) e a Inglaterra nos têxteis. O que
Ricardo se esqueceu de dizer é que uma grande parte da
propriedade dos vinhos do Porto era inglesa. Esqueceu-se
igualmente que o “comércio perfeitamente livre” assentava
desde 1703 num tratado político, no tratado de Methuen,
que consolidava a dependência económica e política de
Portugal em relação à Inglaterra. Certamente pormenores
irrelevantes para a construção do modelo.
A realidade muda, os modelos revelam-se desajustados
e a história económica revela dinâmicas nem sempre esperadas. Portugal acabou por ter uma importante actividade
têxtil. Em Portugal, onde “a revolução da máquina a vapor,
que veio acelerar de forma extraordinária o progresso capitalista, operou-se entre nós com grande atraso e de forma
tímida” (Armando Castro, Dicionário de História de Portugal,
entrada “capitalismo”) mas “é possivelmente a indústria têxtil algodoeira que constitui o exemplo mais frisante deste
processo de desenvolvimento capitalista”.
O que muitas vezes se esquece é de salientar a
importância que a exploração colonial teve (no fornecimento de matérias-primas e como mercado) para esse “processo de desenvolvimento capitalista” português.
Parafraseando Albert Camus, com as devidas adaptações a estas situações, podemos dizer que “a Ciência
Económica oficial é mais poderosa pelo que cala do que
pelo que diz”.
Os exemplos que poderíamos apresentar destes esquecimentos – uns involuntários e alicerçados no ceteris paribus da Ciência Económica, outros construídos num ensino
tecnocrático das instituições universitárias, outros ainda
expressão do cinismo dos poderosos face à miséria e à
dependência – são muitos e diversos.
Vão desde o esquecimento do colonialismo e do neocolonialismo como factores responsáveis pelo subdesenvolvimento em África (veja-se a este propósito os textos da conferência de Tunis, Abril de 2001, organizado pelo FMI para
analisar a mundialização e África) até ao cinismo com que
FMI e BM falam de democracia, defesa da democracia,
liberdade e valor da liberdade quando são instituições todo
224
poderosas que escapam totalmente ao controlo democrático dos povos e nações, que impõem ditatorialmente as
suas regras aos mais fracos.
Mas a nossa preocupação não é apresentar exemplos
ou fazer o inventário das declarações e estudos técnicos
onde as afirmações políticas e tecnocráticas são pérolas de
amnésia social. Fazemos referência a estas questões porque abordar o subdesenvolvimento africano – enganadoramente designado de desenvolvimento –, tratar da globalização em África exige colocarmo-nos na sombra do que é
esquecido, conseguirmos ler o drama dos vencidos numa
história que é feita pelos vencedores.
Identificando o «desenvolvimento» como uma “crença
ocidental”, politicamente inventada nos condicionalismos
económicos, sociais e políticos da década de 40 do passado século, “O «desenvolvimento» aparece assim como
uma crença e como uma série de práticas que formam um
todo, apesar das suas contradições. A primeira não é
menos verdadeira que as segundas pois estão indissociavelmente ligadas. No conjunto reflectem a lógica de uma
sociedade em vias de mundialização que, para cumprir o
programa que esta fixou – e cujas consequências não são
igualmente alegres para todos –, deve referir-se a certas
verdades indiscutíveis e largamente partilhadas – que relevam do mito –, para aí assentar a sua legitimidade” (Gilbert
Rist, Le Développement, Histoire d’une croyance occidentale, pag. 46).
Nas últimas décadas a economia, a sociedade em
geral, está num processo de transformação, de desestruturação e estruturação que se costuma designar por «globalização». Entretanto o que se passa em África?
Olhemos, então, para a globalização e para África. O
que observamos? Essencialmente que a África Subsariana
continua na cauda do crescimento e do desenvolvimento
económico.
Apenas alguns dados demonstrando o que é sobejamente conhecido:
(1) No relatório de Desenvolvimento Humano de 2002, o
país com o maior valor do índice é a Noruega, com 0,942 e
o que tem menor é a Serra Leoa com 0,275. O conjunto da
África Subsariana tem 0,47. É a grande região com o menor
índice.
Este índice sintético – apesar de alguns artificialismos
na sua construção visando atenuar a importância dos ren225
dimentos per capita como medida das desigualdades –
acaba por reflectir um conjunto de más situações em diversas áreas. Essa mesma região africana tem uma das maiores percentagens de adultos analfabetos (batida neste indicador pela Ásia do Sul), 39% em 1999; a mais baixa esperança de vida à nascença, a grande distância das restantes
regiões do globo, 47 anos em 1999; a mais elevada taxa de
mortalidade infantil, 92%o, etc.
Também é uma a região com maior nível de miséria.
Em 1998, a percentagem dos que possuíam como rendimento menos que um dólar por dia era de 48,1% da população. Mas o que é de registar a este propósito, é que essa
percentagem aumentou na última década. Segundo os
mesmos dados (cuja origem é o BM) em 1990 a percentagem correspondente era de 47,7%.
(2) Esta tendência de evolução remete-nos para uma
análise ao longo do tempo, num período suficientemente
grande para podermos retirar conclusões estruturais e não
nos confundirmos comas manipulações de informação que
o tratamento da conjuntura permite.
Pegámos em dois indicadores: rendimento per capita
medidos em dólares e a preços constantes e
esperança de vida à nascença, tendo como fonte o BM.
Analisámos a sua evolução entre 1960 e 1999.
São conhecidas as críticas ao primeiro indicador: considera exclusivamente vertentes económicas e deixa de lado
aspectos sociais que podem ter uma dinâmica autónoma; é
uma média e não entra em conta com as desigualdades na
distribuição do rendimento; focaliza o crescimento e tende
a esquecer que o desenvolvimento é uma realidade mais
abrangente. Contudo consideramos que continua a ter um
conjunto de virtudes porque as subtilezas de distinção entre
crescimento e desenvolvimento são, em alguma medida,
preocupações etnocêntricas das sociedades desenvolvidas, porque o problema fundamental de África é o crescimento. Quanto ao facto de ser uma média, facilmente poderemos ultrapassar essa limitação se tivermos em conta que
grosso modo as diferenças relativas de rendimento são
tanto maiores quanto menores são os rendimentos médios
(com excepção de algumas poucas economias, nomeadamente as produtoras de petróleo).
Quanto ao segundo indicador podemos considerar que
reflecte a globalidade das condições de vida.
Mais do que as palavras, vejam-se os gráficos seguintes, em que cada uma das linhas mostra a evolução ao
226
longo do tempo desse indicador para um país africano.
Consideraram-se apenas os países da África Subsariana.
Rendimento per capita:
Esperança de vida à nascença (não havendo dados
para todos os anos):
Fugindo a uma análise pormenorizada e estando mais
preocupados com o conjunto das informações do que com
as situações específicas de alguns países, atrever-nos-íamos a retirar duas leituras:
– Os ritmos de crescimento nestes quarenta anos são
lentos, tendendo frequentemente para a estagnação. Lento
em termos absolutos, isto é, com baixas taxas de variação
anual. Lento em termos relativos, bastando para tal comparar com o que se passou em muitos outros países e regiões
do globo.
– A partir de 1988/90 até ao fim do século passado em
muitos países, e para o conjunto da região, há uma agravamento da situação.
Ora, se atendermos que as estratégias internacionais de
desenvolvimento, as políticas internacionais visando o crescimento e o desenvolvimento abrangem todo este período,
pois iniciaram-se após a II Grande Guerra, podemos concluir que essa política internacional tem sido manifestamente insuficiente ou inadequada.
Se atendermos que a década de 90 do passado século
é o “período de ouro” da chamada «globalização», podemos concluir que esta tem sido nefasta para o desenvolvimento económico e social de África.
É essencialmente esta última situação que nos ocupará.
Se a “globalização” progride, com coros afinados de
políticos e tecnocratas cantando hosanas aos paraísos que
tem construído, e África piora de situação, só podemos tirar
uma ou várias das conclusões seguintes:
África está possuída por forças demoníacas que só se
podem radicar, já que são conhecidas as vastas riquezas
naturais desse continente, numa debilidade endémica dos
seus povos;
Há um incompatibilidade estrutural entre a «globalização» e o desenvolvimento da África subsariana, quiçá de
todas as economias subdesenvolvidas.
A globalização não é o paraíso terreno e as cantorias
apenas são manobras de diversão.
227
É completamente desnecessário analisar a primeira
hipótese. É do domínio público – apesar dos perigos que o
racismo e a xenofobia continua a representar por todo o
mundo – que a menoridade intelectual não é dos povos africanos mas dos que os consideravam desse modo.
Resta, pois, analisar, as duas últimas hipóteses.
GRAFICO 1
9000
8000
7000
6000
5000
4000
3000
2000
1000
1998
1992
1996
1990
95
1994
1988
92
1986
90
1984
1982
1980
1978
1976
1974
1972
1970
1968
1966
1964
1962
1960
0
GRAFICO 2
75
70
65
60
55
50
45
40
35
99
19
97
19
19
19
87
19
85
19
19
82
19
80
19
77
75
19
72
19
19
70
19
67
19
65
19
60
19
19
228
62
30
Estudar a incompatibilidade estrutural entre a “globalização” e o desenvolvimento da África Subsariana exigiria
espaço e tempo muito superiores aos que aqui dispomos,
pelo que nos vamos limitar a dois aspectos.
Comecemos por recordar textos da década de 60 que
continuam a ter, na nossa opinião, toda actualidade:
“O que conceituamos como subdesenvolvimento é (...) a
ocorrência de um dualismo estrutural” (Furtado, Dialéctica
do Desenvolvimento, pág. 84)
A “economia dualista constitui, especificamente, o fenómeno do subdesenvolvimento contemporâneo” (Furtado,
Desenvolvimento e Subdesenvolvimento, pág. 173)
O que caracteriza uma economia subdesenvolvida não
é a sua pobreza ou o seu atraso, mas o seu dualismo, mensurável pela baixa densidade da matriz de relações intersectoriais, pela ausência de articulação entre diversos sectores. É a sua desarticulação, a convivência de modos de
produção, sectores e actividades com tecidos produtivos e
de distribuição de rendimento desligados uns dos outros.
Umas actividades económicas não têm impactos sobre as
restantes, não existe um processo cumulativo de produção
e aplicação de valor.
As raízes desse dualismo africano encontra-se, muito
provavelmente, na colonização, mas prolonga-se com o
neocolonialismo, com o investimento externo em sectores
exportadores que apenas visam aproveitar alguns tipos de
recursos ou espaço de poluição, prolonga-se com a cooperação que se dirige para os sectores que interessam ao
país desenvolvido e que pode ser secundário para a economia subdesenvolvida. Até processos aparentemente
humanamente bem intencionados (de doação, de ajuda,
etc.) podem reforçar esse dualismo.
Ora a «globalização» impondo a muitos países africanos programas de ajustamento estrutural, exigindo a aceleração das relações de produção capitalistas típicas das
economias desenvolvidas e a sua abertura ao mercado
mundial, diluindo ou esmagando as relações de produção
do país para impor “normas internacionais”, dando uma
particular atenção às operações monetárias e financeiras, a
«globalização» através de todos estes meios e outros tem
contribuído fortemente para o reforço do dualismo da economia africana, de muitas economias subdesenvolvidas.
A situação dramática actualmente existente, o agravamento das condições de vida, melhor dito condições de
sobrevivência, na África subsariana não é o resultado de
229
dificuldades em os países africanos acompanharem a «globalização»: terem uma excessiva intervenção do estado,
não terem um sector privado dinâmico, não terem legislação
suficientemente liberal, de as suas «sociedades civis»
serem débeis, dos equilíbrios macroeconómicos não terem
sido conseguidos. O agravamento da situação resulta de
tentarem impor-lhes tudo isso. E tudo isso radica-se numa
falta de respeito pela diferença, numa falta de respeito pelas
decisões dos povos, numa tentativa de todos serem iguais à
imagem e semelhança da economia americana.
Não foi o não terem entrado totalmente na «globalização» que lhes agravou a situação, como diz o BM e o
FMI, mas foi o terem entrado ainda que parcialmente.
E esta constatação remete-nos de imediato para o
segundo aspecto: a grande diferença entre a bondade das
palavras, sobretudo quando sopradas ideologicamente, e a
dureza da realidade.
A palavra de ordem da globalização é «liberdade»:
liberdade de comércio, liberdade de mercado, liberdade de
escolha. Mas o que é essa liberdade para as economias
desenvolvidas e para as economias subdesenvolvidas? O
que é essa liberdade para quem tem um milhão de dólares
por dia e para quem tem menos de um dólar? O que é essa
liberdade para quem impõe e para quem é subjugado? A
liberdade formal não se concretiza num espaço mundial
socialmente homogéneo, e quando existem contradições,
conflitos, dependências e explorações a liberdade de uns
pode ser a não-liberdade de outros, é-o muitas vezes.
Propõe-se em nome da liberalização “menos Estado”
mas quem o exige são estruturas supraestatais, tão coercivas quanto o são os Estados.
“Menos Estado” não é o enfraquecimento da política
económica mas a modificação da sua natureza.
Pretende-se substituir “o desvio dirigido das contradições” para “a lógica de rebentamento pelos «elos mais
fracos»”. E esta lógica tem diferentes resultados conforme
os países e as ocasiões. Num país dependente (tecnologicamente, centrado em poucas produções sujeitas a troca
desigual, financeiramente, etc.) o elo mais fraco desloca-se
para a relação nacional/internacional, reforçando a
dependência e o dualismo.
Existirão excepções neste panorama, casos de sucesso?
Certamente que a situação de cada país é diferente,
mas os casos de sucesso são muito escassos. As instâncias de Bretton Woods não perdem oportunidade para
230
encontrar esses exemplos enaltecedores, mas geralmente
tem de se refugiar na análise de caso da Ilha Maurícia.
Podemos dizer que pequeno é o exemplo (1900 Km2,
pouco mais de um milhão de habitantes) para tão grande
continente. E, mesmo assim, têm que reconhecer que “uma
componente não negligenciável dos resultados [de sucesso] permanecem sem explicação. É plausível que certas
especificidades da Ilha Maurícia também tenham jogado
um papel importante, sendo a mais importante a diversidade étnica do país e a forma como ela se gerou” (Barracoon,
em “La Mondialisation et l’Afrique”, pág. 23).
Não será a própria «globalização» que está mal? Para
que possamos colocar a questão é necessário admitirmos
que esta não é inevitável. E de facto não é.
A mundialização é inevitável mas a globalização é apenas uma das formas que aquela pode assumir.
Globalização é um ordenamento económico internacional que visa mundializar as formas de organização económica, política e social do capitalismo americano reforçando
a sua hegemonia.
Globalização é essencialmente a finaciarização das
relações internacionais, a expansão e unificação dos mercados financeiros, muitas vezes feita contra similar mundialização de outros mercados, como é o caso do mercado de
força de trabalho.
Globalização é a imposição cultural da hegemonia do
económico na escala de valores dos homens e da sociedade. Globalização é o agravamento das desigualdades internacionais e nacionais.
Por outras palavras.
Se há um agravamento das condições de vida dos
cidadãos de muitos países, como é o caso dos africanos,
resultante do confronto da globalização com as relações
sociais vigentes, reforçando o dualismo.
Se há um agravamento das desigualdades económico-sociais resultantes da globalização, que simultaneamente
gera tensões entre a expansão das operações financeiras e
a criação de rendimento, que fomenta e promove a economia subterrânea como uma das formas de atenuar essas
tensões.
Se a lógica liberal promotora da globalização faz-se
mais pelos silêncios do que pelas afirmações, mais pelo
que não diz do que pelo que diz, produzindo catadupas de
ideologização sob a capa da desideologização.
231
Se a globalização é apenas uma das formas de funcionamento da economia mundial, havendo outras formas possíveis de ordenamento internacional, respeitando o desenvolvimento tecnológico, a aproximação entre cidadãos de
todo o mundo, a circulação plena da informação, quiçá
mais assentes na acessibilidade generalizada aos benefícios científicos e tecnológicos hoje existentes, mais concordantes com uma vida digna para uma grande maioria de
cidadãos.
Se tudo isto é, assim, lutar pela dignidade do homem,
pelo respeito pela diferença, lutar pelo humanismo é lutar
contra a globalização, é lutar por uma economia mundial, e
não só, com outro tipo de relações, de ordenamento.
BIBLIOGRAFIA CITADA
FURTADO, Celso
- Dialéctica do Desenvolvimento
1964, Rio de Janeiro, Fundo de Cultura
- Desenvolvimento e Subdesenvolvimento
1965, Fundo de Cultura
NSOULI, Saleh M., GALL Françoise le & Outros
La Mondialisation et l’Afrique
Finances & Développement, Dezembro 2001
PNUD
Relatório do Desenvolvimento Humano 2002
Queluz, Mensagem
RICARDO, David
Princípios de Economia Política e de Tributação
Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian
RIST, Gilbert
Le Développement: Histoire d’une Croyance Occidentale
1996, Presse de la Fondation Nationale des Sciences Politiques
SAMUELSON/NORDHAUS
Economia Lisboa, McGraw-Hill
SERRÃO, Joel & Outros
Dicionário de História de Portugal sd. Lisboa, Iniciativas Editoriais
232
ZACARIAS KAMWENHO
Arcebispo do Lubango
(Angola)
Humanismos ocidentais em África:
que futuro?
Introducão
O tema que me cabe é complexo e apaixonante: complexo, porque o Ocidente, geograficamente, teve e tem também as suas variantes, como a nossa África; apaixonante,
porque, perante a situação actual podemos escolher facetas que nos permitem dizer alguma coisa das nossas próprias convicções num Mundo aparentemente dividido e
incerto, melhor, num mundo que já não é bipolar, mas
mundo à deriva.
Em Agosto passado participei no Meeting de Rimini
(Itália) a convite de um grupo de euro-deputados italianos,
e, reflectindo sobre o tema do Meeting –2002 “Per l’amicizia
fra i popoli”, compreendi que a fraternidade humana ainda
não é mera utopia mas algo que já se visualiza entre as
luzes e sombras dessa nossa comum história, com as suas
contradições no quotidiano a que nos habituamos a assistir
ou viver.
E por que com Terêncio dizemos também "Homo sum,
humani nihil a me alienum puto" (Homem sou, nada do
humano me é alheio) – Atrevo-me a dizer duas palavras
sobre o tema que, desde já confesso, será apresentado
sem pretensões de erudição porque o tempo de Pastor de
uma Comunidade grande, como é a Arquidiocese de
Lubango, pouco mais permitiu para um trabalho mais polido, digno desta assembleia. Desde já, portanto, conto com
a vossa vénia e compreensão.
233
I
“Por mares nunca dantes navegados”
Disse algures Hegel:
1.- "Desde que os navios deram a volta ao mundo, o
globo tornou-se para os Europeus um círculo fechado. O
que ainda não dominam, ou não vale a pena, ou ser-lhes-á
ainda submetido". (citado por K. Jaspers)
A África com os Descobrimentos marítimos, entrou
assim neste círculo a partir da Idade Média, embora 1.200
anos A.C. houvesse já presença não-africana no continente, com os fenícios, no Norte, que, com as guerras púnicas,
tal presença darão lugar à presença helenística, que, por
sua vez, durará até ao ano 30 A.C. inicio duma nova era, a
romana, que permanecerá, sobretudo na zona costeira,
durante 3 séculos. A história conta-nos como este Império
Romano veio a entrar em decadência, e os vândalos a
penetrarem, por sua vez, no continente por volta dos anos
430 D.C. Veio depois a retomada das posições por parte
dos romanos e bizantinos que, 150 anos depois, seriam
outra vez rechaçados pelos Árabes.
2.- Dissemos que a África sub-sahariana começa a ter
presença não-africana a partir da Idade-Media. Dois factores são marcantes: a invasão islámica e a penetração
europeia.
A 1ª iniciou por volta do ano 640 D.C. com a conquista
do Egipto pela Síria, penetrando mesmo até ao lago Chade.
Desenvolveu-se ao longo da Costa Oriental, até à Ilha de
Moçambique e Madagáscar e, na Costa Ocidental, na orla
marítima do Atlântico. Sua influência é patente ainda hoje.
Esta cidade – Dakar – é exemplo claro.
3.- A penetração europeia podemos dizer que é de
exclusiva responsabilidade dos portugueses que levou um
dos seus Poetas a dizer: "Ó mar salgado, quanto do teu sal
/ são lágrimas de Portugal" (Fernando Pessoa). Foi assim
que Gil Eanes em 1434 atravessou o Cabo Bojador, e em
1484 Diogo Cão atinge a Foz do Rio Zaire, e Bartolomeu
Dias dobrou o Cabo Boa-Esperança, em 1488; dez anos
depois Vasco da Gama explora toda a Costa, a Norte do Rio
do Infante na viagem que o levará até à Índia.
Conhecida a Costa Africana seria fácil a penetração no
interior. Foi o que se fez. E na segunda metade do séc. XVII
234
a azáfama por África cresce por toda a Europa. Desta feita
todas as aventuras possíveis e imaginárias precipitam-se
sobre o Continente. Sonha-se com `El dorado` que de certo
modo é encontrado. Interesses e astúcias entram em jogo
para o domínio de territórios com o objectivo primário de
exploração dos recursos existentes e o seu aproveitamento.
No séc. XIX aos quatro países dominantes no terreno
(Portugal-Espanha-Reino Unido e França) vem juntar-se,
com a Conferência de Berlim (1855) outros países:
Alemanha, Itália, Bélgica, operando-se a partilha, à régua,
da África-negra ou Sub-Sahariana.
II
O Humanismo europeu
1.- Que ideia de ‘homem’ trazia o Colonizador? ou seja:
‘que humanismo alimentava toda aquela práxis, relativamente ao homem’ encontrado?
Camões, o poeta maior da Língua Portuguesa dirá que:
"Canta as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
a fé, o império e as terras viciosas
de África e de Ásia andaram devastando".
Quer dizer: quanto a ‘Encontro de culturas’ foi mesmo um
‘devastar’. Quantos repartiram o Continente entre si tinham de
facto um denominador comum: a supremacia do homem
branco sobre o negro, que teve como consequências erradas a devastação do homem subjugado e da sua cultura tida
como inferior, quando não supersticiosa. A história da escravatura é prova mais que evidente. Razão teve o Papa João
Paulo II quando, ao visitar a Ilha de Gorée, aqui no Senegal,
disse: "é notável a gravíssima e torpe injustiça cometida contra as populações negras do Continente Africano que foram
arrancadas com violência do seu território, da sua cultura e
das suas tradições e levadas para as Américas".
2.- Uma visão embora sumária, do conceito de “humanismus ou Humanitas” diz-nos que tal conceito caminhou
com o homem e expressou-o no momento em que descobriu o ‘Tu’ e que, a partir de então, começou a comportar-se
com ‘humanitas’ por ter descoberto no outro o que ambos
têm de comum: a racionalidade. Foi isso certamente que
235
levou Protágoras já no séc. V a.C. a definir o homem como
"medida de todas as coisas". No humanismo ocidental
podemos distinguir dois sentidos que, sem se excluírem,
completam-se, isto é, o humanismo temporal e o filosófico. O 1º olha mais pelas épocas sucessivas, através dos
escritores e artistas clássicos que nos legaram modelos
acabados na arte do ‘dizer’ ou no ‘exprimir ideias’, e, na arte
de um ‘viver’ consequente. O Humanismo filosófico fundamenta-se na concepção que o homem estudioso tem do
mundo e do Homem. Daqui o haver quantos humanismos
quantas as concepções do homem. Tais concepções invadirão o Continente com todas as suas cargas negativas ou
positivas. Fundamentalmente, quer o temporal quer o filosófico têm subjacente a ideia de que o Homem é Relação.
Bergson dirá, do humanismo ocidental, aplicando-o à
moral e à religião, que ele pode ser aberto ou fechado,
sendo este último como que a soma de explicações filosóficas do passado e do presente abrindo caminho ao agnosticismo e ao nihilismo a que terá chegado o próprio
Protágoras. Mas o Humanismo aberto, este, considera todo
o homem, de qualquer cor ou Continente, um ser perfectível
nas suas virtualidades e capaz de ascender ao ‘ser-mais’
quer exercitando as suas faculdades naturais, quer por
abrir-se a um dom gratuito do seu Criador. O pensamento
de Sócrates liderou esta ala do humanismo aberto com a
sua máxima "conhece-te a ti mesmo". Nisto, a existência, a
verdade e a vida, a ciência e a sabedoria, a experiência
racional e a mística não se dissociam, antes pelo contrário,
andam a par, abrindo-se a todo um horizonte real e possível. No dizer de Jacques Maritain, Sócrates levou o homem
a entender-se integralmente. O Vat. II dirá: "Para o discípulo
de Cristo, não há realidade alguma, que seja verdadeiramente humana, que não encontre eco no seu coração" (GS.
1); É a máxima de Terêncio dita por outras palavras.
III
Encontro de culturas
1.- O homem encontrado teria também a sua Cultura?
Naturalmente que sim. Também o Africano – negro, aqui
me limitaria a falar do negro-banto, tem a sua cultura, o seu
modo de "desenvolver os bens e valores da natureza para
chegar a uma autêntica e plena realização." (G.S. 53)
236
Nesta cultura, tudo parte do ‘Ntu’-Ser; donde a designação que os antropólogos lhe deram de ‘Banto’ (plural de
Muntu) para dizer ‘homem’ ou pessoa existente. É, portanto, a partir do ‘Ntu’ que o Negro-banto elaborou a sua política, a sua religião, a sua gramática e a sua relação com o
outro. A partir do ‘NTU’ ele elaborou a sua cultura. Portanto,
cultura centrada no SER: Muntu e Cintu, isto é, Homem
(Pessoa) existente, coisa existente.
Os navegadores portugueses com a sua mentalidade
cristã estavam a agir sob um humanismo aberto, como se
depreende dos Lusíadas e de toda a literatura da época,
como Petrarca, Gil Vicente, Miguel Ângelo... Os termos com
que Luís de Camões, por exemplo, na estrofe 5 do 1º canto,
se refere ao Regente da Ilha de Moçambique, entre outras,
são de um respeito pela pessoa que em nada deixam a adivinhar as posteriores atrocidades praticadas pelos colonos,
quer quanto à dignidade da pessoa, quer quanto ás culturas encontradas. A intenção de “dilatar a fé e o império”
depressa se perverteu, melhor: a ideia de dilatar o império
e enriquecer à custa da ignorância dos encontrados,
sobrepôs-se à ideia do Muntu, prevalecendo o Cintu. Do
Império, hoje, restam a língua portuguesa e com ela a cultura que distingue um Angolano de um Zambiano, por
exemplo; e, da fé, restam manifestações mais ou menos
profundas do cristianismo recebido através dos missionários ocidentais que não eram só os portugueses. Para o
negro-banto, o próprio Deus também é Ntu. Fonte do Ser.
Daí, concluir que o Próprio Deus (fonte do Ser, fonte da
Vida) ser a raiz do humanismo que deveria estar na base
dos comportamentos dos seres humanos.
2.- A Aculturação foi a chave do encontro das culturas.
Os futuros colonizadores, digo futuros, porque os primeiros
contactos (por exemplo em Angola), foram aparentemente
amistosos, e foi isto que levou os Reis do Congo a abrir-se
aos Portugueses. Poderíamos classificar esses encontros
em dois tipos, ou seja, que eram dois os tipos de colonização: A colonização Anglo-Saxónica, praticada pelos
Ingleses, Alemães, belgas e holandeses, e a colonização
latina, que seria a praticada pelos portugueses, espanhóis,
franceses e italianos. O tema do colóquio põe acento nesta.
Da primeira ficou-nos o sinete da imposição da supremacia
do branco fundada na cor da pele e na superioridade da sua
cultura. Da segunda, conquanto o figurino do colonizador
fosse o mesmo, podemos dizer que entrou com uma certa
237
"politesse". O credo professado pelo mais forte (o colonizador), Católico ou Protestante, teve também o seu peso.
No entanto, em ambos tipos, o contacto de homem para
homem, de cultura para cultura traduziu-se numa atitude de
agressão aos valores sagrados dos colonizados. Por exemplo, no tipo anglo-saxão, a língua do colono era ensinada
para que o negro pudesse entender o que diz o grande
patrão; o Inglês só muito tarde entrou nas Forças Armadas
como língua veicular.
Todavia, devemos ser justos para com aqueles antropólogos ou etnólogos que estudaram as línguas e os costumes dos povos encontrados para melhor pôr em diálogo as
duas culturas. Os etnólogos missionários fizeram-no para o
serviço da evangelização, mesmo cometendo erros; os
etnólogos laicos fizeram-no para ‘civilizar’ o negro, melhor,
para garantir a feição política e económica que foram as
duas realidades que introduziram aspectos novos nas
relações entre o colono e o colonizado.
3.- Mesmo sem a perfeita ligação das duas margens, a
aculturação lá onde foi possível (litoral) confundiu-se com a
civilidade (boas maneiras à europeia), chamando-lhes de
‘civilização’ e a esta, de cultura. Daqui o chamar-se inculto
a quem não sabe servir-se do garfo, etc. A conclusão era
óbvia: fazer tábua rasa da cultura local para impor a chamada civilização, esta que, por sua vez se traduzia em
construções de pontes, casas, estradas, manufactura de
matérias-primas.... aliás, coisas que o negro não podia
enfrentar por falta de meios. Os nossos professores negros
incentivavam os meninos a não faltar à escola ou a aprender na escola, para amanhã serem como o branco ou para
não ser enganado pelo branco. Por aqui se vê que a relação
que nasceu entre o ‘hóspede’ e o dono da casa era verdadeiramente assimétrica.
4.- INCULTURAÇÃO. Conquanto o termo seja novo e a
sua cidadania seja mais a nível da Igreja, sobretudo a
Católica, mesmo assim, podemos sentir num passado não
muito distante, a concretização do conceito de inculturação
mesmo no encontro/desencontro das culturas. Refiro-me ao
movimento de vai-e-vem entre africanos que estudaram em
África ou na Europa, (elites africanas) aprendendo dos europeus e com os europeus, e também dos europeus que estudaram a cultura africana, ainda que por curiosidade ou por
exigências da evangelização, aprendendo dos e com os
238
africanos. De parte a parte houve homens e mulheres, que
assimilaram a cultura que não era a sua sem deixar de ser o
que eram, estamos a fazer-lhes justiça. Da margem de cá
(África) encontramos um Léopold Sédar Senghor, um Félix
Houphouét-Boigny, um Agostinho Neto e outros negros que
tiveram assentos nos Parlamentos europeus ou nas
Universidades europeias (só para falar da colonização latina
que melhor conheço) e que hoje são tidos como humanistas
de vanguarda, portanto, protagonistas da ‘nova-cultura’ que
emerge nos seus países. Foram homens que não deixaram
de ser africanos e lutaram contra a política de segregação
do colonizador, apoiando, com outros intelectuais africanos
ou não africanos, a libertação do Continente.
5.- PAN-AFRICANISMO E NEGRITUDE. Entre os diversos Movimentos que se formaram para o ajustamento do
humanismo ocidental na África podemos referir o Pan-Africanismo e a Negritude.
Certamente que não é o momento de repetir a sua história, mas a sua lembrança, mesmo ao de leve, situa melhor
o nosso tema, ainda que restritivo à África lusófona.
O Pan-Africanismo evoluiu em 3 dimensões: a racial com
o seu cariz de ‘neo-sionismo negro’ que seria um racismo
negro em oposição ao racismo branco, a dimensão Política
que ganhou forma em Bandoeng em 1955, e cujos efeitos
desastrosos não se fizeram esperar nas novas independências, originando Estados sem Nações. Será, porém, a
dimensão cultural do Pan-africanismo que nos vai interessar por desabrochar no amplo Movimento da NEGRITUDE.
6. Esta, a Negritude, nascida com o poema "Cahier d’un
retour au Pays Natal" de Aimé Césaire, inventor do termo
(1934), encontrará em Senghor a sua definição: "Conjunto
dos valores da civilização do mundo negro. Não valores do
passado, mas cultura autêntica. É este espírito da civilização negro-africana que, enraizado na terra e nos
corações negros, tende para o Mundo (ser e coisas) para o
compreender, o unificar e para o manifestar". É ainda a
Senghor que devemos a expressão " CIVILIZAÇÃO DO UNIVERSAL" isto é, a civilização que não se confunde com a
ocidental, a do "cogito, ergo sum", mas tipicamente africana-banto, civilização do "Ntu", do "je danse, donc je suis",
porque civilização do ‘ser’, isto é, que diz respeito a todos
os seres, no topo dos quais os humanos que partilham a
mesma aventura nesta casa comum: A TERRA.
239
Jean-Paul Sartre, o teorizador da Negritude, no seu
"Orphée noir" diz concretamente: "a Negritude aparece
como o tempo fraco duma progressão dialéctica: a afirmação teórica e prática da supremacia do branco é a tese;
a posição da Negritude como valor autêntico é o momento
da negatividade... e tende a preparar a síntese ou a realização do humano numa sociedade sem raças. A Negritude,
para empregar a linguagem Heideggeriana, é o estarnomundo do negro".
O historiador J.Ki- Zerbo diz-nos, referindo-se à negritude: "Temos que proteger a Negritude, ela que não seja
fumaça que desaparece no ar, mas conceito operacional,
motor colectivo. Assim, podemos dizer, sim ao modernismo
técnico, mas sobretudo sim à personalidade africana. Sim à
Ciência Universal, mas, sobretudo, sim à consciência africana. Mas se um jovem intelectual me pedisse para resumir
tudo isto numa frase, responder-lhe-ia com a injunção do
filósofo: "sê aquilo que tu és" (deviens ce que tu es).
Agostinho Neto, o poeta maior Angolano, estando na
cadeia em Portugal, escreveu o seu poema mais característico em que antevê o regresso, não só à Angola libertada, mas também.
À frescura da Mulemba
às nossas tradições
aos ritmos e às fogueiras...
À marimba e ao guissanje
(e) ao nosso carnaval Havemos de voltar.
IV
A resposta do Ocidente
1. As reacções à Negritude não tardaram, mesmo no
seio da África. Portanto, não admira que as houvesse no
mundo ocidental, sobretudo por parte daqueles cujo humanismo mais tendia para o humanismo fechado. O receio do
racismo negro que infelizmente existia nalguns sectores
que se escudavam na Negritude estaria na base da
rejeição. Em Angola, que o digam os estudantes da era
colonial; os poemas de Agostinho Neto, António Jacinto,
Viriato da Cruz, entre outros, eram simplesmente banidos
240
da circulação. Qualquer foco ou atitude negritudinista devia
ser silenciado. Em França, com a guerra de 39-45 dispersou-se o grupo criador da Negritude e suspensa a publicação "L’etudiant noir". Mas em 1947 surge a Revista
“Présence Africaine” – com o patrocínio de grandes intelectuais franceses como E. Mounier, A. Gide, J.P. Sartre, etc. A
França mostra assim que não é por acaso que é Mãe da
democracia moderna alicerçada na trilogia LiberdadeIgualdade-Fraternidade. Com esta emblemática publicação
(Présence Africaine) destacou-se mais uma vez um filho de
Senegal, Alioune Diop, para levar avante a bandeira asteada em 1939 com o aparecimento do Movimento.
2. A Europa ocidental depois da II guerra mundial, acelera a revolução tecnológica e científica. À proposta de L.S.
Senghor da criação de uma ‘civilização do Universal’ o ocidente responde-nos com a globalização, mas uma globalização mais virada para soluções económicas, científicas e
técnicas que criam o homem ‘de sentido único’ e não o
homem-humano, sonho da Bíblia, e das literaturas mais antigas; tal globalização obnubila os aspectos positivos daquela globalização que é aceitável.
Celebramos há pouco os 40 anos de existência da
Declaração dos Direitos do Homem. Perguntamo-nos: O que
mais se exportou para África, ou, por outras palavras, o que
mais importaram do Ocidente os nossos governantes? A resposta é: as armas, a pornografia, as bebida alcoólicas, os
anti-conceptivos, enfim, a desumanização da África negra.
Em Angola estamos preocupados com a desminagem
das estradas, dos campos e outros locais de utilidade pública e ecológica. Mas quem nos ajuda a desminar as mentes? Quem nos ajuda a reconstruir o Homem-Novo?
Os genocídios de 1994 em Rwanda e Burundi ainda não
nos ensinaram tudo e a todos?
V
Conclusão
1. À guisa de conclusão voltamos a perguntar:
Humanismos latinos: que futuro?
Depois da queda do fascismo em Portugal, (1974),
depois da queda do Muro de Berlim, em 1989, depois do 11
241
de Setembro de 2001, em Nova York e Washington, a pergunta parece ociosa. O ex-presidente português Dr. Mário
Soares numa conferência em que fala do ‘Futuro do futuro’
tem esta brilhante tirada sobre a globalização que não
desisto em transcrever:
‘O Mundo globalizado em que vivemos – que é uma inevitabilidade, com aspectos positivos e negativos – assente
na competitividade e na concorrência económica, sem
outros critérios que não sejam o sucesso imediato e o lucro,
não tem conseguido dar resposta a desafios tão instantes,
como: a erradicação da pobreza; um desenvolvimento sustentado, com dimensão social e ambiental, que salvaguarde os necessários equilíbrios ecológicos de forma a preservar o Planeta dos atentados a que todos os dias está sujeito; a luta consequente contra flagelos, como a droga, a criminalidade internacional organizada, o dinheiro sujo e pandemias como a SIDA e outras doenças (a tuberculose, por
exemplo, já erradicada e que agora reaparece); o comércio
ilegal de armas; a venda de minas antipessoais; o monstruoso comércio de órgãos humanos; etc. A humanidade
tem hoje conhecimentos científicos e meios tecnológicos ao
seu alcance para enfrentar, com êxito, todos estes desafios
e os resolver. E a pergunta que se coloca é simples e irrecusável: por que não os enfrenta e resolve?” (Cadernos
democráticos n.º 14, pag. 70).
2. Os Estados africanos à hora da Independência costumam apresentar em síntese o seu programa numa trilogia
mais ou menos igual: Liberdade-Progresso-Democracia.
A mim, pessoalmente, tais palavras ou outras de tipo
slogan nacional sempre me pareceram vazias, uma repetição escolar como antigamente repetíamos a hidrografia de
Portugal sem lhe sentirmos amor ou ódio. Tudo inocente,
inócuo: é para passar de classe.
No final desta comunicação, o caro ouvinte apercebeu-se, certamente, da convicção de muitos de nós os africanos-bantos: os humanismos ocidentais se algum rasto deixaram, esse, foi o de abrir-nos clareiras para o Mundo e
podermos também nós dizer alguma coisa no meio desta
incerteza generalizada, deste medo globalizado do homem
pelo homem.
Já que nos encontramos no País de L.S. SENGHOR, a
ele essa Palavra da África:
“Não fomos nós que inventamos as expressões ‘arte
negra’, ‘música negra’, ‘dança negra’. Não fomos nós que
242
inventamos a lei da PARTICIPAÇÃO. Foram os Europeus
brancos. Quanto a nós, a nossa preocupação única, foi
assumir esta Negritude, vivendo-a, e, vivendo-a, aprofundar-lhe o sentido. E isto, para apresentar a Negritude ao
Mundo como Pedra angular no edifício da CIVILIZAÇÃO do
UNIVERSAL que, – ou será obra comum de todas as raças,
de todas as civilizações diferentes – ou nunca será”.
Em 1789 a França lançou as bases da moderna democracia, assente na ‘Liberdade-Igualdade-Fraternidade’.
No dia 11 de Setembro de 2001, perante as chamas das
duas torres-gémeas de Nova Iorque apercebemo-nos, paradoxalmente, que a fraternidade era possível. A consternação
mundial foi o ‘sinal dos tempos’ para este tempo. Partidários
e não-partidários das políticas americanas, Homens e
Mulheres de todas as raças, credos e línguas, naquele dia e
nos subsequentes éramos apenas “Irmãos”, irmãos que
reprovavam aqueles atentados terroristas, que reprovavam
as causas dos tais atentados, que reprovavam, inclusive, a
então proclamada ‘justiça eterna’. Éramos apenas Irmãos.
Estava ultrapassado o limite da mera solidariedade.
Então, direi, perante uma Europa que se vai unificando,
e perante esta marcha ascensional para a unidade da
grande família: os seres humanos... direi, com João Paulo
II: A Europa necessita de uma nova alma, revitalizar o seu
humanismo, procurar o equilíbrio entre o Ser (que o humanismo negro privilegia) e o Ter (que o humanismo ocidental
privilegia).
Então, como Pastor da Igreja e Prémio Sakharov 2001,
repetiria aqui no país de Diop e Senghor a mensagem que
deixei em Rímini, na Itália:
A fraternidade entre os povos é possível,
o caminho para ela, na expressão
do Papa João Paulo II,
é fazermos do nosso Planeta
“casa e escola da comunhão”.
Tudo isto depende de todos:
Eis o Humanismo Universal.
+ Zacarias Kamwenho
Arcebispo do Lubango
e Prémio Sakharov 2001
243
Pubblicato a cura di:
Fondazione Cassamarca
Piazza S. Leonardo, 1 - 31100 Treviso
Stampato nel mese di dicembre 2003 presso Europrint (Tv)

Documentos relacionados