Livro1 Metodologias - completo

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Livro1 Metodologias - completo
Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Letras e Lingüística
Grupo de Trabalho Estudos Medievais
Publicação:
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
Organização:
Gladis Massini-Cagliari
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Paulo Roberto Sodré
Risonete Batista de Souza
Comissão Científica:
Célia Marques Telles (Universidade Federal da Bahia/UFBA)
Lênia Márcia Mongelli (Universidade de São Paulo/USP)
Maria do Amparo Tavares Maleval (Universidade Estadual do Rio de Janeiro/UERJ)
Maria Isabel Morán Cabanas (Universidade de Santiago de Compostela/USC)
Rip Cohen (The Johns Hopkins University [USA])
Stephen R. Parkinson (University of Oxford [U.K.])
Yara Frateschi Vieira (Universidade Estadual de Campinas/Unicamp)
Catalogação:
Ana Maria de Matos (CRB 12/ES - 425)
Programador visual do e-book:
Erivelto Alves Moitinho
[email protected]
19 8194-6420
Dados Internacionais de Catalogação na publicação (CIP)
S485
Série estudos medievais 1 : metodologias [recurso eletrônico] / Gladis Massini-Cagliari
... [et al.], organizadores. – Rio de Janeiro : ANPOLL, 2008.
Sistema requerido: Adobe Acrobat Reader.
Modo de acesso: World Wide Web: <http://www.unesp.br/gtmedieval >.
ISBN 978-85-89760-02-7
1. Literatura medieval – História e crítica – Teoria, etc. 2. Textos medievais –
História e crítica. 3. Poesia medieval – História e crítica. 4. Poesia portuguesa – até
1500 – História e crítica. 5. Sátira galego-portuguesa. 6. Poesia medieval italiana. 7.
Poesia épica árabe. 8. São Bento da Bahia (BA), 1581-1815 – História e crítica. 9.
Vicente, Gil, 1465-1536 – Crítica e interpretação. 10. Hagiografia. I. Massini-Cagliari,
Gladis. II. Título: Metodologias.
CDD: 809.8940902
CDU: 82(091)“04/14”
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
Sumário
CAPÍTULOS
ESPELHO DOS MONGES DE SÃO BENTO .
Profa. Dra. Alícia Duhá Lose (FSBB/PPGLL/UFBA)
O ITINERARIUM EGERIAE E A CRONICA GERAL DE ESPANHA DE 1344: UMA METODOLOGIA NO
ESTUDO DIACRÔNICO DE FENÔMENOS LINGÜÍSTICOS NA ROMÂNIA
Profa. Dra. Célia Marques Telles (UFBA, CNPq)
O COMPARATIVISMO COMO FIO CONDUTOR DE UM ESTUDO SOBRE AS CANTIGAS DE
TROVADORES GALEGOS E A LÍRICA CONFESSIONAL DAS TROBAIRITZ ITALIANAS ISABELLA DI
MORRA E VERONICA FRANCO
Profa. Dra. Delia Cambeiro (UERJ)
CARACTERÍSTICAS PROSÓDICAS DO PORTUGUÊS ARCAICO: QUESTÕES METODOLÓGICAS
Profa. Dra. Gladis Massini-Cagliari (UNESP/Araraquara; CNPq)
ESTUDOS INTERDISCILPLINARES SOBRE O TROVADORISMO GALAICO-PORTUGUÊS
Profa. Dra. Lênia Márcia Mongelli (USP)
"POSTO QUE IOAM DELENZINA/ O PASTORIL COMEÇOU": METODOLOGIA PARA O ESTUDO DAS
FONTES IBÉRICAS DO TEATRO VICENTINO
Prof. Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz (UEFS)
DA RETÓRICA MEDIEVAL
Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval (UERJ)
SOBRE A METODOLOGIA DO PROJETO DE PESQUISA NON ES JUEGO DONDE HOMBRE NON RÍE:
ASPECTOS DA SÁTIRA GALEGO-PORTUGUESA
Prof. Dr. Paulo Roberto Sodré (Ufes)
AS CANTIGAS DE AMOR DE VIDAL, JUDEU D'ELVAS
Profa. Dra. Yara Frateschi Vieira (Unicamp)
Publicações
PREFÁCIO
Uma das preocupações de quem pesquisa é tornar público o resultado de sua investigação, de
maneira que os pares locais e estrangeiros, em maior número possível, possam acompanhar e
conhecer a trajetória que cada um desenvolve nas diversas partes do país e do mundo: quantas vezes
não assombra a coincidência de um colega estar examinando, sem que se saiba, o mesmo corpus ou
o mesmo tema, em instituições de região e nacionalidade diferentes. Se é verdade que há muita
publicação na área dos Estudos Medievais em boa parte do planeta, é verdade também que
dificilmente os trabalhos chegam ao investigador ou às bibliotecas a que tem acesso, inviabilizando
diálogos fecundos, esclarecedores e, portanto, necessários para uma boa discussão e orientação da
pesquisa.
Publicar os trabalhos que vêm sendo produzidos no GT de Estudos Medievais da Associação
Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Letras e Lingüística (Anpoll) tem primeiramente
essa função: dar a conhecer, a um público especializado e diversificado, uma série de trabalhos que
reflete sobre aspectos fundamentais da pesquisa sobre Língua e Literatura da Idade Média: seus
métodos, suas fontes, seus corpora, seus objetivos, seu alcance.
Com esse propósito, os membros do GT de Estudos Medievais reuniram, neste primeiro livro,
trabalhos cujo assunto é o dos procedimentos metodológicos adotados no desenvolvimento de suas
pesquisas atuais. Resultado do encontro inaugural do GT, ocorrido em novembro de 2005, no Rio
de Janeiro, o que aqui se expõe considera pontualmente – e visando, sobretudo, estudantes e
estudiosos brasileiros –, a importância da metodologia na discussão dos temas medievais, seja na
área dos estudos lingüísticos, seja na dos literários.
Alícia Duhá Lose, no capítulo “Espelho dos monges de São Bento”, expõe soluções para a edição
diplomática, de caráter conservador, do Dietário dos monges do Mosteiro de São Bento, em
Salvador, Bahia. Sua justificativa parte do princípio de que tal escolha editorial “permite o acesso
ao texto na sua grafia e linguagem originais, procedendo-se, ainda, a um estudo filológico do texto,
com a análise da grafia da época e das abreviaturas utilizadas”. Apoiada em reflexões de Giuseppe
Tavani, Célia Marques Telles considera, em “O Itinerarium Egeriae e a Cronica geral de Espanha
de 1344: uma metodologia no estudo diacrônico de fenômenos lingüísticos na românia”, que para a
leitura correta de um texto é necessário restabelecê-lo em sua forma arquetípica e em seu contexto
histórico. Com isso desenvolve análises discursivas em textos quatrocentistas (em português e em
espanhol), como a Crônica geral de Espanha de 1344, e em um texto da chamada Primeira Idade
Média, o Itinerarium Egeriae. Ainda na área de estudos lingüísticos, Gladis Massini-Cagliari indica,
em “Características prosódicas do português arcaico: questões metodológicas”, os procedimentos
que adota em projetos de pesquisa dedicados ao estudo da Fonologia do Português Arcaico, “através
da abstração da estrutura prosódica da língua dos trovadores a partir da estrutura métrica dos
poemas que compuseram”.
No capítulo, “O comparativismo como fio condutor de um estudo sobre as cantigas de trovadores
galegos e a lírica confessional das trobairitz italianas Isabella di Morra e Veronica Franco”, Delia
Cambeiro propõe e justifica a abordagem comparatista como um método producente, para
desenvolver um projeto sobre a lírica amorosa dos séculos XII e XIII, na Península Ibérica, e dos
séculos XV e XVI, na Itália. Em “Estudos interdisciplinares sobre o trovadorismo galaicoportuguês”, Lênia Márcia Mongelli desenvolve reflexões que elucidam a metodologia a ser usada
pelos estudantes da literatura medieval. Sobretudo, adverte-os da relevância e da inevitabilidade de
uma abordagem interdisciplinar consistente para o estudo de um corpus marcado quer pelo “estado
danificado dos testemunhos, as várias lições dos críticos no estabelecimento dos textos, as
divergências na compreensão de significados, a natureza do objeto que se tem em mãos – um
poema para ser cantado”, quer pela complexidade do período histórico-cultural em que se insere.
Refletindo sobre o método comparatista, Márcio Ricardo Coelho Muniz discute, em “Posto que
Ioam Delenzina/ o pastoril começou: reflexões metodológicas para o estudo das fontes do teatro
de Gil Vicente”, um dos aspectos fundamentais da obra do autor português. No capítulo “Da
Retórica medieval”, Maria do Amparo Tavares Maleval escolhe a Retórica como método a partir do
qual pretende estudar hagiografias, como o Liber Sancti Jacobi e o Flos Sanctorum, e crônicas
medievais, como a Crónica de Santa Maria de Iria e a Crónica de D. João I, uma vez que “tanto as
hagiografias quanto as crônicas constituem mensagens que estão abertamente voltadas para a
persuasão de seus receptores”. Paulo Roberto Sodré, em “Sobre a metodologia do Projeto de
Pesquisa Non es juego donde hombre non ríe: aspectos da sátira galego-portuguesa”, indica e
justifica o percurso de seleção de leituras (na área da História e do Direito) para a discussão das
cantigas satíricas galego-portuguesas. No capítulo “As cantigas de amor de Vidal, judeu d’Elvas”,
Yara Frateschi Vieira aponta as etapas iniciais da investigação que procura “elucidar os complexos
aspectos envolvidos pela inclusão de cantigas de um trovador judeu nos Cancioneiros galegoportugueses, bem como o seu possível diálogo com o texto bíblico e com a tradição poética árabe,
hebraica e românica”.
Os estudos, apenas sumariamente anunciados, ilustram as linhas de trabalho que o Grupo vem
desenvolvendo e em função das quais resolveu integrar um GT da Anpoll. Este livro, Série Estudos
Medievais 1: Metodologias, inaugura o que pretende ser um conjunto de publicações voltadas para
a pesquisa brasileira em estudos medievais.
Os capítulos, aqui expostos, sobre aspectos metodológicos dos projetos voltados para o Medievo,
predominantemente românico, procuram especialmente propor questões, pensamentos e alternativas
para a investigação de um assunto ao mesmo tempo complexo e ingrato, dadas as dificuldades de
consulta a fontes e fortuna crítica – muitas vezes recôndita em bibliotecas nacionais e internacionais
de acesso restrito –, e especialmente fundamental, considerada a importância de se estudar um
legado caro não apenas às nações em que se origina, mas também àqueles países que detectam nele
os traços de uma cultura que os atravessam, de ponta a ponta, a durarem persistente e
identitariamente.
Comissão Editorial
Gladis Massini-Cagliari
Márcio Ricardo Coelho Muniz
Paulo Roberto Sodré
Risonete Batista de Souza
Julho de 2008
Espelho
dos monges de São Bento
Profa. Dra. Alícia Duhá Lose
Mosteiro de São Bento da Bahia/Faculdade São Bento da Bahia
Universidade Federal da Bahia/Ufba
Resumo: O Dietário – documento que relata a história de cada monge que passou pelo Mosteiro de São
Bento da Bahia, desde a sua fundação, em 1581, até 1815 – reflete a manutenção de diversas práticas
medievais monacais, a modelo do que se vê no Espelho dos Monges de São Bernardo. Propõem-se, para
o Dietário, uma edição diplomática, de caráter conservador, que permite o acesso ao texto na sua grafia e
linguagem originais, procedendo-se, ainda, a um estudo filológico do texto, com a análise da grafia da
época e das abreviaturas utilizadas.
Palavras-chave: Dietário; Mosteiro de São Bento da Bahia; Edição diplomática; Espelho dos monges;
Filologia; Estudo de abreviaturas.
Abstract: Dietario is a document that reports the history of each monk that went by São Bento of Bahia
Monastery from its foundation in 1581 to 1815. Similarly to Mirror of São Bernardo's MonksIt, it reflects
the maintenance of several monkish medieval practices. A conservative diplomatic edition, allowing
access to the text in its original graph and language and a philological study, analyzing both graph and
abbreviations, will be performed in Dietario.
Key words: Dietário; São Bento of Bahia Monastery; Diplomatic edition; Mirror of the Monks;
Philology; Study of abbreviations.
Desde 1575, monges beneditinos portugueses foram enviados às terras brasileiras para
avaliar a possibilidade concreta da fundação de um mosteiro em terras d’além mar. O
local indicado seria a Cidade de São Salvador da Bahia, devido aos insistentes pedidos
da população local.
Em 1580, o Capítulo Geral da Congregação Lusitana da Ordem de São Bento aprovou a
fundação de um Mosteiro de São Bento na Bahia, o qual viria a ser o primeiro de todo o
Novo Mundo e um dos primeiros fora da Europa.
Os monges fundadores, em número de nove, chegaram à Bahia na Páscoa de 1582,
fixando-se num terreno fora da cidade, onde já havia uma pequena Ermida dedicada a
São Sebastião.
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No ano de 1584, o Mosteiro foi elevado à condição de Abadia com o Título de São
Sebastião da Bahia, mas, popularmente, ficou conhecido como Mosteiro de São Bento
da Bahia. As características físicas do edifício monástico assim como suas atividades
começavam a ser estruturadas e definidas, concorrendo para isso trabalho dos monges e
a colaboração de benfeitores como Francisco Barcellon e Gabriel Soares, Catarina
Paraguaçu, dentre outros.
Pautando-se pela Regra de São Bento (texto escrito no séc. VI), as atividades dos
monges se desenvolveram de forma gradativa e contínua. O aperfeiçoamento e a
implementação sistemática dos trabalhos ocorreram em diversas áreas: divina liturgia;
canto gregoriano e polifônico sacro; artes (música, arquitetura, pintura, escultura);
agricultura e pecuária; trabalho intelectual (estudos, pesquisas, ensino); serviço religioso
(catequese, pregação, realização dos sacramentos, aconselhamento espiritual); trabalho
de assistência social.
Com a consolidação do Mosteiro da Bahia, em torno de 1586, surgiram solicitações de
novas fundações por parte da população de outras cidades da colônia. Os monges
baianos partem para fundar novos mosteiros nas cidades de Olinda (1586), Rio de
Janeiro (1590), São Paulo (1598).
No ano de 1596, o Mosteiro da Bahia recebe o título de Arquicenóbio do Brasil. Cria-se
a Província Brasileira da Congregação Lusitana, tendo como Casa Geral a Abadia de
São Sebastião da Bahia. Outros mosteiros são elevados à condição de Abadia: Olinda e
Rio de Janeiro (1596), São Paulo (1635).
Em 1624, a Cidade de Salvador foi invadida por tropas holandesas e o Mosteiro foi
transformado em quartel militar holandês:
Neste m.mo anno, quando o Monstrº já contava quarenta annos de fundação,
invadirão os Olandeses esta terra, e como erão uma infernal mistura de
Luteranos, e Calvinistas, e prim.ro objecto de suas dannadas intenções, foi o
total estrago dos templos sagrados, aos quaes ao depois de roubados, e
saqueados os arrasarão, deixando tudo assolado, e destruido; os Religiosos
p.a salvarem as vidas, se retirarão p.a o Certão, aonde padecendo m.tas
necessidades, lamentavão a total destruição de um Mostrº q’ tanto lhes
custara, assim andarão até q’ as armas portuguesas, e castelhanas
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triunfando destes mortaes inimigos da fé catholica, os poserão em
vergonhosa retirada no seguinte anno de 1.625.
Os monges refugiaram-se nos engenhos do Recôncavo até a retirada dos holandeses,
quando a vida monástica retoma o seu curso com o regresso dos religiosos e a
recuperação das instalações do Mosteiro como também sua ampliação.
No século XVIII, quando uma grande peste assolou a Cidade, exterminando grande
número de pessoas, parte do Mosteiro foi transformada em enfermaria para o
atendimento dos doentes.
No século XIX, em 1827, a então Província Brasileira ganha autonomia em relação à
Congregação Lusitana, tornando-se a Congregação Brasileira da Ordem de São Bento,
tendo como Casa Geral a Abadia da Bahia. A partir de 1855 o Mosteiro de São Bento da
Bahia e os demais mosteiros brasileiros viveram dias de trevas quase sendo extintos por
falta de religiosos, devido à perseguição empreendida pelo governo imperial, que
fechara os noviciados das Ordens Religiosas no Brasil, aos moldes de Pombal, em
Portugal.
Na segunda metade do século XIX, os monges foram arautos da abolição da escravatura
no Brasil. Em 1867, o Abade Geral da Bahia determinou a libertação de todos os
escravos da Ordem de São Bento no Brasil, assumindo as conseqüências deste ato: o
comprometimento considerável da economia do Mosteiro, e ainda a hostilidade e a
perseguição política dos grandes senhores da época, que tentavam, a todo custo, sufocar
o movimento abolicionista. Também no século XIX, novamente o Mosteiro cedeu parte
de suas instalações, transformadas em enfermaria, para abrigar os feridos e mutilados na
guerra de Canudos.
Com a queda do Império e a Proclamação da República, o Abade Geral da Bahia, Frei
Domingos da Transfiguração Machado, escreve ao Papa Leão XIII, pedindo o envio de
monges europeus para assegurar a existência da Ordem Beneditina em terras brasileiras.
Acolhido o pedido, os monges alemães da Congregação de Beuron foram enviados,
chegando ao Mosteiro da Bahia em 1899. Retoma-se a vida conventual com novo
fervor.
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O Mosteiro de São Bento da Bahia, com sua presença multissecular no cenário cultural
baiano
e
brasileiro,
destaca-se
como
instituição
plenamente
inserida
no
desenvolvimento local e regional através da promoção e preservação das artes, da
cultura e do saber.
Desde sua chegada à antiga capital da América portuguesa, nos idos de 1581, a ordem
beneditina tem sido co-participante da história da cidade, tanto nos seus avanços mais
significativos quanto nas vicissitudes que se impuseram ao longo do tempo.
O Mosteiro de São Bento da Bahia, tendo mais de quatro séculos de tradição e história
vivas, constitui espaço privilegiado para a produção e difusão do conhecimento.
Guardião do tempo e da memória, através de regras determinadas no séc. VI, por seu
fundador, São Bento, o Mosteiro possui um rico acervo constituído de documentos
manuscritos que datam desde o séc. XVI, entre eles se encontram: bulas papais, cartas
de profissão dos monges, sermões, documentos relativos à vida privada do Mosteiro,
documentos de grandes personalidades como Catarina Paraguaçu, Gabriel Soares e
Diogo Álvares, cartas de alforria de escravos, documentos de compra e venda de
escravos, documentação relativa às propriedades de toda a região metropolitana de
Salvador, livros de pedidos de oração, e o Dietario das vidas e mortes dos Monges, q’
faleceráo neste Mosteiro de S. Sebastião da Bahia da Ordem do Principe dos
Patriarchas S. Bento – documento, encadernado em um volume, que relata a história de
cada monge que passou pelo Mosteiro de São Bento da Bahia, desde a sua fundação, em
1581, até 1815.
O Mosteiro não apenas constitui-se em guardião de todo este acervo raro, mas foi palco,
cenário e personagem de inúmeros acontecimentos históricos importantes para a história
da Bahia e em especial para a cidade de Salvador. Desde a fundação do Mosteiro da
Bahia, os monges beneditinos são guardiões da história e da tradição de São Bento.
Do patriarca da ordem, pouco se tem de informações documentais. O relato mais aceito
é a curta biografia escrita por São Gregório Magno, em cerca de 593 d.C., dada à luz em
um livro conhecido por Diálogos. Esta falta de informações sobre ele, de acordo com
Dom Gregório Paixão, OSB (1006, p. 29), provavelmente,
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[...] se deve ao fato de que São Bento não tomou parte em nenhum
acontecimento importante do seu tempo, quer político, quer eclesiástico, a
causa principal foi a sua humildade. Quis permanecer no silêncio. Escreveu a
sua regra e a entregou aos discípulos, escondendo-se nas sombras do
esquecimento.
Embora São Gregório em seu livro preocupe-se mais com fatos exemplares da vida de
São Bento e deixe de fora informações biográficas relevantes, sabe-se que São Bento,
Patriarca dos monges do Ocidente, nasceu por volta de 480 em Núrsia, pequena cidade
da Úmbria, no Império Romano. Ainda jovem, fez-se monge eremita, inspirado pelos
grandes vultos do movimento monástico que se formara no Egito e na Palestina, cerca
de duzentos anos antes. Depois de fundar doze pequenos mosteiros em Subiaco, nas
proximidades de sua gruta de eremita, partiu para Monte Cassino, onde fundou o
célebre mosteiro do mesmo nome. Ali escreveu a famosa Regra dos Mosteiros. Os
beneditinos se expandiram em toda a Europa, fundando centenas de mosteiros que
seguiram, e seguem até hoje, a Regra de Bento.
“A Regra de São Bento foi a grande norma espiritual da Idade Média e condicionou a
transformação da Europa em ponta de lança da civilização do Ocidente e do mundo. Por
esta razão São Bento foi proclamado Padroeiro da Europa pelo Papa Paulo VI, em
1964” (BENTO, 1993).
Essa regra, composta há 15 séculos, já foi objeto de incontáveis traduções e estudos,
pois
A vida religiosa, as instituições monasticas, desde sua origem, tiveram a
estima, o respeito e a veneração dos povos. [...] O monachismo representava
o mais alto esforço pela realização do ensino [...], o exemplo mais compacto
e integral da pureza e efficacia dessa boa nova que vinha remir o mundo; não
era, pois de surprehender, que o mundo o reverenciasse (CHÉRANCÉ, 1910,
p. v).
Os primeiros religiosos, assim como se dá até hoje,
Longe de evitarem a companhia dos outros christãos, [...] personificavam ou
creavam em torno de si toda uma sociedade christan. Longe de pensarem só
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em sua salvação, trabalhavam, sem descanço, primeiro na salvação dos
infieis, depois na conservação da fé e dos costumes nas christandades novas
nascidas de sua palavra. Longe de se limitarem á oração ou ao trabalho
manual, cultivavam e propagavam com ardor toda sciencia e literatura que
possuia o mundo de seu tempo. Os lugares apartados a que os levara no
principio o amor da solidão, transformavam-se rapidamente, e como pela
força das coisas, em cathedraes, em cidades, em colonias urbanas ou ruraes,
destinadas a servir de centros, de escolas, de bibliotecas, de officinas, de
cidadellas para as familias, os bandos, as tribus convertidas aos poucos. Em
torno dessas cathedraes monasticas e das principaes communidades,
formaram-se logo cidades que duraram até hoje [...] (MONTALEMBERT,
[18--?], p. 152 apud CHÉRANCÉ, 1910, p. vii-viii).
Desta forma, tem-se a vida religiosa intricada à vida cultural de toda a sociedade
ocidental. "A Regra de São Bento vem sendo seguida há mais de mil e quinhentos anos
sem interrupção, nas mais diferentes culturas, com as adaptações necessárias às
situações particulares. Embora distante, pelos anos, da sociedade atual, não perdeu sua
vitalidade [...]" (PAIXÃO, 1996, p. 48).
O Dietário traz informações sobre toda a história do Mosteiro, desde a sua fundação, em
1581, até o ano de 1815. Esta história é contada através do resumo da vida de cada um
dos monges que passou por ali ao longo desses anos.
O livro, com encadernação, que data de época posterior (séc. XX), feita em percalina e
bordas e lombada em couro, em um único volume, apresenta 221 fólios escritos em
tintas marrom e preta e mais 32 fólios que não apresentam texto.
O volume sofreu a ação de insetos, encontrando-se os fólios com inumeráveis falhas
devidas a cupins e brocas. Ainda, em diversos pontos, a tinta ferro-gálica corroeu o
papel através do processo de oxidação. Nota-se também o escurecimento, por oxidação,
do suporte. Nos fólios finais do documento, uma outra espécie de tinta utilizada
desbotou consideravelmente, ganhando uma coloração amarelo-clara, o que também
prejudica a leitura.
Todo o volume passou por um processo primitivo de restauro no qual se fazia a colagem
de um papel de seda com cola comum por sobre o fólio original. Com o passar do
tempo, este papel oxida, o que o escurece, e descola do suporte, o que provoca bolhas de
ar entre um material e outro, prejudicando sobremaneira a leitura. Ainda neste processo
de restauro, alguns fólios, que provavelmente estavam com as bordas corroídas, foram
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cortados, retirando-se, por vezes, partes do suporte em que havia texto escrito. Em
alguns casos, o monge responsável pelo restauro completou o texto mutilado com tinta
preta na margem inferior.
Todo o volume apresenta o mesmo papel, sendo este poroso, em gramatura média e
trazendo marca d'água e filigranas. O volume foi escrito por, pelo menos, 5 mãos
diferentes, cada scriptor com características peculiares de grafia, formas específicas de
abreviaturas, quantidade de linhas por fólio, vocabulário etc.
Todas as páginas estão numeradas, com algarismos arábicos, no centro da margem
inferior de cada fólio, na frente e no verso. Essa numeração é um acréscimo posterior
feito a lápis. Iniciando-se na primeira página, fólio 2rº e indo até o último fólio em que
há mancha escrita (página 306). Cada fólio apresenta, ainda, diversas interferências
realizadas posteriormente, algumas feitas a lápis, outras feitas a tinta preta (utilizando-se
pena) outras, bem mais modernas, com caneta hidrocor verde.
Este documento é de relevância inquestionável e sabida de todos os que o conhecem e
as suas informações alcançam um período de cerca de 234 anos, relativos aos séc. XVI,
XVII, XVIII e XIX, e embora referentes, todos, diretamente à vida dos Beneditinos da
Bahia, trazem informações de caráter político, social, militar, econômico, genealógico,
geográfico e histórico de grande importância para a história geral da Bahia, como é o
caso da tomada da cidade pelos holandeses, registrada logo no início do volume.
Como este documento foi escrito ao longo dos anos por variadas pessoas, e apresenta
grafias de várias mãos, optou-se, para o trabalho de edição, por caracterizar a escrita de
cada scriptor separadamente. Como o trabalho está ainda em processo, foram descritas
as características dos 3 primeiros scriptors, como se pode ser a seguir:
1º) Primeiro scriptor (do fólio 1rº ao fólio 11vº)
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Cada fólio transcrito apresenta, em média, 23 linhas escritas;
quando há <ss>, o primeiro se apresenta longo <>;
o <s> longo tem a grafia bastante semelhante a do <p> minúsculo;
o <z> é grafado como letra de imprensa;
a marca de nasalidade <~> é grafada como uma < >;
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o número <1> é grafado apenas como um traço vertical, não apresentando o
alongamento frontal na extremidade superior;
a última palavra do fólio anterior se repete, sistematicamente, como a primeira
do fólio seguinte.
o til dos ditongos nasais encontram-se sistematicamente sobre a segunda vogal,
ou, não raro, além desta;
em diversas letras, em especial <r>, <a>, <o>, <u> minúsculos, o traço final se
estende até alcançar a parte superior da letra.
há trocas de sílabas em algumas, raras, palavras, como em regilioso (por
religioso)
no fº6vº, L. 16 e L. 20, a palavra Pai, diferentemente do que se esperaria para a
grafia da época, vem grafada com a letra <i> no final e não com a letra <e>.
no fº7rº, L. 1, o verbo por no terceira pessoa do pretérito, encontra-se grafada
com a letra <z> ao final (da seguinte forma: poz)
em inúmeras utilização de <z> e <s> é vacilante, como no fº3rº, L.8, capases; no
fº3vº, L.3, trasião; e L.11, fiserão; L.15, redusidas; L.21, trasia; fº4vº, L.16,
cinsas; no fº7rº, L. 1, o verbo por no terceira pessoa do pretérito, encontra-se
grafada com a letra <z> ao final (da seguinte forma: poz);
no fº7rº, L. 17, encontra-se uma ligação porisso, fato relativamente escasso para
este scriptor;
no fº7rº, L. 20, emquanto, escrita com <m> antes de <q>
a utilização de <g> e de <j> também não é fixa: no fº3rº, L.8, sugeitos,
no fº8vº, L.7, Certão, grafado com <C>, e não com <s>
no fº8vº, L.12, poserão, quando se esperaria puseram
no fº10rº, L.2, em quanto, é escrito separado.
2º) Segundo scriptor (do fólio 12rº ao fólio 21vº)
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O <s> inicial ganha uma forma semelhante ao <s> maiúsculo, confundindo-se
também com um <D> maiúsculo;
o <z> passa a ter a sua haste inferior marcada;
as sílabas com <ss> dobrado apresentam ambos grafados da mesma maneira;
o sinal de <~> ganha um novo traçado, mais ondulante e mais longo;
o <x>, que apresenta para o primeiro scriptor, uma característica aparentemente
marcante, continuam sendo traçada da mesma forma: à semelhança da letra de
forma;
a última palavra de cada fólio já não se repete mais no início do fólio seguinte;
o sinal de final de linha, que até então era marcado com um traço vertical,
semelhante a um travessão desaparece;
a marca utilizada para indicar separação de sílabas de palavras em final de linha
passa agora a ser grafada com um traço duplo, semelhante ao sinal de igualdade;
o que, que era sistematicamente abreviado por supressão, passa a ser, em
diversos momentos, grafado por extenso;
aparecem diversas rasuras caracterizadas por vários traços na vertical e na
horizontal sobre as letras que se desejava anular;
aparecem mais palavras escritas juntas (com o traço da última letra se ligando ao
da primeira da palavra seguinte);
passa a haver mais linhas escritas em cada fólio (de 25 a 30, em geral);
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
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no fº13rº nasalidade marcada por <n> e não por <~>: em funcoens;
no fº14rºL 10, metátese marcada em Pertendeu, na inversão de posição entre
<e> e <r>, na primeira sílaba;
as partes sobrescritas das abreviaturas encontram-se praticamente acima da parte
anterior;
a escrita apresenta letras mais graúdas e mais descuidadas;
no fº17rºL1, o ditongo nasal <ão> encontra-se grafado sem o til;
nos fólios 20 recto e verso e 21 recto e verso, a letra ganha um traço mais
aligeirado e descuidado, apesar de visivelmente ter sido escrita pela mesma
pessoa, desta forma, a mancha escrita passa a ter menos linhas e letras mais
graúdas.
3º) Terceiro scriptor (do fólio 22rº ao fólio 48rº)
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a escrita apresenta um traçado mais fino e as letras são mais definidas e mais
bem desenhadas;
há mais linhas escritas por fólio (de 37 a 43);
as margens esquerda e direita são mais respeitadas, marcando cerca de 2cm de
cada lado; o mesmo não ocorre com as margens superior e inferior que são
praticamente inexistentes. Fato agravado pelo corte de ambas as margens no
processo de restauro;
diferentemente do primeiro, e à semelhança do segundo, este scriptor também
indica a separação silábica de final de linha com um traço duplo, semelhante ao
sinal de igualdade;
a abreviatura de Frei, que sistematicamente aparecia com o <r> escrito na
mesma linha das demais letras, passa a aparecer sobrescrito;
passa a haver mais abreviaturas por letra sobreposta;
diferente do que acontece anteriormente, Abade é abreviado, na maioria das
vezes, apenas com um <b>, seguido de ponto, e com <de> sobrescritos, e há
casos em que aparece apenas com <A> seguido de ponto e <be> sobrescritos;
a palavra casa, que vinha sendo escrita sistematicamente com <z>, passa a ser
escrita com <s>;
no fº 22rº, L3, Réligião é grafada com acento, e a expressão a quem, vem escrita
junta e com o quem abreviado com o <m> sobrescrito [aq’];
há mais rasuras e correções do que em relação aos scriptors anteriores;
não há padrão no uso de hífen na separação dos pronomes clíticos;
sistematicamente escreve hum e he com <h>;
no fº 25rº, L8 lê-se pertendendo, assim como ocorre para o scriptor anterior;
apresenta algumas palavras com parte das letras sobrepostas [capacidad.e].
O trabalho de edição do Dietário encontra-se em andamento. A digitação inicial de todo
o texto foi feita por Dom Gregório Paixão, OSB, com base na primeira transcrição feita
por Dom Clemente da Silva Nigra, OSB, na década de 1930. Ambos, embora sem
critérios filológicos, buscaram manter o texto na sua forma original.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
9
O trabalho que se realiza no momento é o cotejo das transcrições iniciais com o
documento original, segundo os critérios de edição diplomática. Além disso, faz-se o
levantamento das características de cada um dos scriptors, uma descrição externa do
material e um estudo de todas as abreviaturas presentes ao longo do texto, destacando-as
uma a uma e considerando-as nas suas especificidades, por exemplo, consideram-se
como duas formas as abreviaturas idênticas que, no entanto, divirjam pela presença ou
não de ponto de suspensão.
Para a lição conservadora dos manuscritos, foram utilizados os critérios expostos a
seguir, elaborados de acordo com as necessidades surgidas ao longo das transcrições.
- optou-se por numerar as linhas dos fólios contando apenas aquelas preenchidas
com escrita ou sinais muito particulares do scriptor. Desta forma, numeraram-se
as linhas de cinco em cinco, a partir da primeira;
- optou-se por manter a numeração de página atribuída por Dom Clemente da
Silva Nigra, indicando-a, entre hífens, como consta do original, ao centro de
cada página, em algarismos arábicos em itálico;
- a grafia original dos textos é conservada na íntegra, mesmo nos casos em que
fica claro o equívoco ou ato falho do scriptor;
- é respeitada, dentro do possível, a disposição gráfica do texto na página;
- separaram-se as palavras escritas juntas e juntaram-se as separadas, por não
pareceram um elemento significativo, já que na maioria dos casos, o fato parece
se dar em função do processo de escrita da época, sem levantar a pena do papel
enquanto ainda houvesse tinta nela;
- indicou-se a partição silábica com o auxílio de hífen, independente de o
scriptor tê-lo usado, reservando-se o travessão maior para indicar o traço de
preenchimento da linha (coisa que, ao que parece, apenas o primeiro scriptor
utiliza);
- observações adicionais do editor, por não serem numerosas, são expostas em
notas de rodapé;
- notas marginais do scriptor são transcritas em fonte menor;
- todas as alterações feitas a lápis foram posteriores e realizadas por Dom
Clemente da Silva Nigra, bibliotecário do Mosteiro de São Bento. Desta forma,
optou-se por não inseri-las diretamente na transcrição;
- as alterações realizadas ao longo da escrita primeira, original, que utiliza a
mesma tinta e feitas pela mesma mão são inseridas no texto da transcrição,
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
10
utilizando-se para isso, critérios semelhantes aos utilizados pela crítica genética,
os quais vêm indicados a seguir:
(†)
rasura ilegível
[†]
escrito não identificado
(...)
leitura impossível por dano do suporte
/ */
leitura conjecturada
<>
Supressão
()
rasura ou mancha
<†>
supressão ilegível
[]
Acréscimo
acréscimo na margem esquerda
[←]
acréscimo na margem direita
[→]
acréscimo na entrelinha inferior
[↓]
acréscimo na entrelinha inferior, abaixo de outro acréscimo na
[↓↓]
entrelinha inferior
acréscimo na entrelinha superior
[↑]
acréscimo
na entrelinha superior, acima de outro acréscimo na
[↑↑]
entrelinha superior
acréscimo na margem superior
[⇑]
acréscimo
na margem esquerda, abaixo do trecho substituído
[↓←]
acréscimo na margem esquerda, acima do trecho substituído
[↑←]
acréscimo suprimido
[< >]
substituição por sobreposição
<>/\
substituição por supressão e acréscimo na margem esquerda
< > [←]
substituição por supressão e acréscimo na entrelinha inferior
< > [↓]
substituição por supressão e acréscimo na entrelinha superior
< > [↑]
substituição por supressão e acréscimo na margem direita
< > [→]
substituição por supressão e acréscimo na margem esquerda,
< > [↓←]
abaixo do trecho substituído
substituição por supressão e acréscimo na margem esquerda,
< > [↑←]
acima do trecho substituído
- para movimentos em que o scriptor suprime um elemento e torna a
acrescentá-lo mais adiante na mesma frase, movimento que alguns editores
denominam de deslocamento, são usados os símbolos que indicam
supressão e acréscimo.
- para indicar as alterações posteriores, em nota de rodapé serão utilizadas as
seguintes siglas: APFL (alteração posterior feita a lápis) e APFT (alteração
posterior feita a tinta).
Até o presente momento foi editado cerca 30% do texto e quase 200 abreviaturas já
foram localizadas. Ordinariamente as abreviaturas são por contração, com letra
sobreposta (agradecim.to = agradecimento); quase sempre são suprimidas vogais (aqm =
a quem), muitas vezes, ditongos (Cadras = Cadeiras), e normalmente são suprimidas
duas letras (catolicam.te = catolicamente). As abreviaturas por suspensão, utilizando-se
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
11
apenas a primeira letra de cada palavra são reservadas para as referências aos religiosos
(D. = Dom); e ainda siglas (M. R. P. = Mui Reverendíssimo Padre).
Há diversas formas, utilizadas, por vezes, por um mesmo scriptor, para se referir a uma
mesma palavras (Most.o = Mosteiro; Mostero = Mosteiro; Mostr.o = Mosteiro). Por
vezes, são utilizados números arábicos para compor as abreviaturas (8.bro = outubro;
trigesimo 7º = trigesimo setimo)
Ao longo do trabalho de edição, são destacadas, em especial, as formas utilizadas para
fazer referência aos religiosos, por se mostrarem estas, por vezes, bastante curiosos:
encontram-se, às vezes, 5 formas de tratamento para se referir a um religiosos (p. ex. M.
R. P.e Ex. Abb.e Fr. = Mui Reverendissimo Padre Excelentissimo Abbade Frei; M. R.
P.e Preg.or Geral Fr. = Mui Reverendissimo Padre Pregador Geral Frei).
Ao longo dos 221 fólios que compõem o Dietario das vidas e mortes dos Monges, q’
faleceráo neste Mosteiro de S. Sebastião da Bahia da Ordem do Principe dos
Patriarchas S. Bento aparecem história comuns, e histórias bizarras, portanto, ao início
dos relatos, lê-se a seguinte advertência:
to
Em cumprim. ao decreto do <†> [↑SSmº] P.e Urbano oitavo, protesto q’
nestas vidas de Monges, q’ escrevo, q.do referir algum caso milagroso, algum
beneficio especial de Deos; e quando disser, q’ passarão a Bemaventurança,
e da m.ma sorte quando fallar algumas veses nesta palavra Santo, q’ tudo isto
he disendo respeito aos costumes, e nas acções, e não as pessõas, e q’
tambem não paraq’ se lhe de outro credito, mais do que aquelle, que
mereceo a fé humana.
O tom de todo relato é de bastante comoção religiosa. Os monges são numerados por
ordem cronológica de falecimento, relatando-se de forma breve a vida e as obras
religiosas de cada um; indicando local de nascimento, local onde professou, suas
funções na vida monástica, motivos de sua morte e os detalhes de seus últimos
momentos; assim como a data de sua morte e o nome do Abade da época em questão.
Acrescentam-se a isso, em alguns casos, narrativas mais alongadas quando há episódios
peculiares a relatar, como o do monge que foi expulso por 3 vezes e por 3 vezes foi
readmitido no Mosteiro; o do Monge que deixa a casa monástica para juntar-se a uma
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
12
mulher; o do Monge que, adiantado em anos, apresentava sinais de esclerose, e
protagonizava cenas quixotescas, como a que se destaca a seguir:
O vigesimo terceiro foi o P. Fr. Agostinho da Piedade nascido em Portugal,
e professo nesta caza. [...] Da Itapoam foi removido p.ª a Capella de N. S. da
Graça neste tp.º pertencente a este Mosteiro, achava-se ja adeantado em
annos, e destituido de forças naturaes, [...] Diante daq.la devotissima imagem
passava os dias, e as noites,[...] Como neste tpº corrião os necessitados, e
aflictos [...] aquelles q’ p.r impossibilitados não podião ir implorar o socorro
daquela soberanissima Rainha do Anjos mandarão pedir ao P. Fr. Agostinho
o menino, q’ a S. sustenta em seus braços; o P. tirando-o com toda a
reverencia, o entregava com toda a decencia, a q.m lho pedia; porem como
algumas vezes se não lembrava, do q’ fazia, p.la continua oração em q’
andava, e p.los mt.os annos q’ tinha, q.do voltava pª a Igreja, e via a falta do
menino nos braços da Sr.ª, ficava como louco, e olhando p.ª os outros
altares, vendo, q’ o menino não estava na Igreja, com as lagrimas nos olhos,
sahia pellas visinhanças, formando queixas de que tinha desaparecido o
menino dos braços de sua Mãy Santissima, e que elle não se lembrava a q.m o
tinha dado, perguntando com as palavras da Esposa Sta a todos os que
encontrava se sabião a onde estava o amado da sua alma? Quem o tinha
logo e entregava compadecido daquella virtuoza sincerid.e q’ so se
empregava em couzas Santas. Quando ja o P.e se via na posse daq.le celestial
Tesouro, contente, alegre, saudozo corria a levar a Snr.ª a noticia de q’ tinha
aparecido a joia mais precioza dos seus santissimos braços; punha-o no
altar e ao depois de lhe dar repetidos osculos nos pes, e de o adorar com
reverentes genuflexoens, p.ª explicar a saud.e em q’ o tinha posto a sua
auzencia, lhe tomava uma amoroza satisfação de se ter auzentado da Igreja,
exid.º a companhia de sua May Santissima, q’ com t.º gosto o tinha em seus
braços, e nelles o tinha levado p.r terras destantes, e caminhos trabalhozos
p.ª o livrar da morte q’ lhe queriao dar os seus inimigos, e elle agora lhe
fugia todas as vezes, q’ queria. Reprehend.º o menino com estas, e outra
suavissamas palavras, que elle sabia compor, o restituia ao seu deliciozo
Trono, q’ erão os braços da Snr.ª, e ajoelhado em terra se despedia
satisfeito. [...]
Outros relatos apresentam toque fantasioso, como é o caso daquele relativo à vida do
Padre Frei Ambrozio do Espirito Santo:
[...] Deste Monge se contão alguns casos que lhe accontecerão revestidos de
umas circunstancias que parece lhe diminuem o credito. [...] O primeiro
caso, he, que [...] huma noite estando conversando uns moradores da terra,
que era mal assombrado o caminho por onde se subia para uma alta Penha
na qual estava uma Ermida de N. S.ra O P.e ouvindo a conversa para os tirar
daquelles prejuisos, disse que elle iria a aquellas horas ate o mais alto da
Penha onde estava a Ermida, e para signal tocaria o sino da mesma capela,
e sem mais demora se poz a caminho, porem a poucos passos se encontrou
com um espantozo vulto, que mudando-se em varias formas o fora
accompanhando ate o lugar destinado; chegou a capela e querendo tocar o
sino, achou embaraçado na corda outro vulto de mais horrenda figura que o
primeiro; sempre lançou mão da corda e tocou o sino, porem ao mesmo
tempo aquelle animal immundo o impelio com tanta força, e violencia, que
no mesmo instante veio pelos ares cahir a porta da mesma casa aonde o
estavão esperando: admirados todos de verem o P.e junto a si logo que
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
13
ouvirão o sino, elle sem turpação alguma lhes referio o que havia passado.
Dizia o dito P.e que N. S.ra com aq.l se apegara quando lançou mão a corda,
o livrara de algum grande perigo que lhe podia succeder; e este he o unico e
sufficiente motivo que nos pode persuadir a darmos credito ao successo
referido.
Seguindo-se este relato, e em diversos outros, percebe-se uma tendência ao milagroso,
como são os casos de diversos Monges que foram surpreendidos pelos irmãos já mortos
que voltavam, por vezes, para pedir oração, perdão ou, simplesmente, desculpas. Vejase o que se escreve sobre isso ainda no relato da vida do P. F.r Ambrozio do Espirito
Santo:
O segundo caso foi: que não podendo este Religiozo em uma noite
adormecer se levantara pelas 11 horas, e sahira para um eirado que ficava
perto de sua cella aonde costumavão conversar o1 Religiozos nas horas
permitidas, e vendo que estava la outro Religiozo, se chegara a elle a saber
quem era, e conhecendo ser um Monge que havia dias tinha morrido, lhe
perguntara que vinha ca buscar, ao q’ o defunto respondeo que vinha
solicitar o perdão de uma restituição em que estava a hum Religiozo de um
pouco de dinheiro que achara dentro em uma bolsa que lhe cahira indo elle
para a horta em uma tarde dispensada, e como não restituiu e nem pedio
perdão em vida, agora por divina permissão vinha fazer esta diligencia. O
P.e tomando por sua conta o seo disencargo foi dar parte ao Prelado e ao
Religiozo do que tinha passado, e conseguido o perdão de um e outro voltou
com a resposta ao defuncto o q.l ao depois de lhe agradecer o beneficio que
lhe fizera desaparecera. O terceiro caso, he, que a este Religiozo veio pedir
um Monge falecido, que quizesse o accompanhar no coro a rezar o officio
Divino pelas faltas que nelle tinha commettido, por se não inclinar ao Gl.
Patri na forma que devia, e que o P.e [↑ao q o P.e] annunindo propoz-se
fazer <de um> [↑no espaço de um] anno desde huma hora da noite ate as
duas, [↑-e depois disso deixou de assistir o religiozo [↓fallecido a essas
obrigações] [...]
A maioria dos relatos constantes nos 221 fólios do Dietário, no entanto, denota que as
vidas ali relatadas eram de pessoas simples, trabalhadoras e que pregavam a
incontestável obediência à Regra de São Bento e aos ensinamentos de Deus, vivendo
uma vida regrada e plena de sacrifícios (cilícios, orações, penitências etc.).
A intenção desta edição, cujo trabalho está apenas no início, é de, além de preservar o
material e seu conteúdo, com valor histórico para a Ordem Religiosa em questão e para
1
Realmente, no original, não há concordância de número; o artigo está no singular e o substantivo está no
plural.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
14
a Bahia, é a de trazer à tona uma "realidade" e um texto muito representativo de séculos
anteriores.
Referências
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São Bento, 2006.
CANO AGUILAR, Rafael. Introducción al análisis filológico. Madrid: Castalia, 2000.
CASTRO, S. R. O estado na preservação de bens culturais: o tombamento. Rio de
Janeiro: Renovar, 1991.
CHÉRANCÉ, Padre Leopoldo. Vida de Santa Clara de Assis. Bahia: Typographia São
Francisco, 1910.
CONTRERAS, Lídia. Ortografia y grafémica. Madrid: Visor, 1994.
DE WALL, Esther. Vivendo com a contradição: reflexões sobre a Regra de São Bento.
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HERWEGEN, OSB., Dom Ildefonso. O sentido e espírito da Regra de São Bento. Rio
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JEAN-NESMY, Claude. São Bento e a vida monástica. Rio de Janeiro: Agir, 1962.
LAUSBERG, Heinrich. Lingüística românica. Trad. de Maria Ehrardt e Maria Luisa
Schemann. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1974.
MARQUILHAS, Rita. A Faculdade das letras: leitura e escrita em Portugal no séc.
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MARQUILHAS, Rita. Norma gráfica setecentista: do autógrafo ao impresso. Lisboa:
Instituto Nacional de Investigação Científica; Centro de Lingüística da Universidade de
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NÚÑEZ CONTRERAS, Luis. Manual de paleografía: fundamentos e história de la
escritura latina hasta el siglo VIII. Madrid: Catedra, 1994.
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SPINA, Segismundo. Introdução à edótica: crítica textual. 2. ed. rev. e atual. São
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ZAMITH, J.; CASTANHEIRA, M. A paz no meu caminho: vida de São Bento narrada
para o homem de hoje. São Paulo: Paulinas, 1979.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
15
O Itinerarium Egeriae
e a Cronica geral de Espanha de 1344:
uma metodologia no estudo diacrônico
de fenômenos lingüísticos na românia
Profa. Dra. Célia Marques Telles
Universidade Federal da Bahia/Ufba
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq
Resumo: Uma leitura de dois artigos de Giuseppe Tavani – “Le texte: son importance, son intangibilité” e
“Teoría y metodología de la edición crítica” (TAVANI, 1988a, 1988b) – traz à baila algumas das suas
reflexões sobre o conceito de texto e a propósito de edições fidedignas. Para ler corretamente um texto é
necessário restabelecê-lo em sua forma arquetípica e em seu contexto histórico. Nessa perspectiva estão
sendo desenvolvidos trabalhos ligados à análise do discurso em textos quatrocentistas (em português e em
espanhol) e em um texto da chamada Primeira Idade Média. Nos dois casos a escolha do texto perpassou
pela seleção da edição crítica. Os dois primeiros textos são de caráter preceptivo, o terceiro, um diário,
integra a literatura de viagens. Os resultados parciais a que se tem chegado começam a ser discutidos.
Palavras-chave: Textos medievais; Língua portuguesa; Língua Espanhola; Discurso; Argumentação.
Abstract: The reading of two articles written by Giuseppe Tavani – “Le texte: son importance, son
intangibilité” e “Teoría y metodología de la edición crítica” (TAVANI, 1988a, 1988b) – shows us some
of his reflections about the concept of text and dependable editions. In order to read correctly a text, it is
necessary to restore it in its archetypical form and in its historical context. In this perspective, works
concerned with the discourse analysis of Portuguese and Spanish texts dated from the XV century are
being developed, as well as with a text from the so called First Middle Ages. In both cases, the choice of
the texts went through the selection of the critical edition. The two first texts have preceptive
characteristics, the third is a journal, belonging to the traveling literature. The partial results begin to be
discussed.
Keywords: Medieval texts; Portuguese; Spanish; Discours; Arguments.
1. Introdução
Ao concluir a discussão no I Encontro do GT de Estudos Medievais da Anpoll
(TELLES, 2005), em novembro de 2005, dizia-se que as pesquisas do Grupo de
Filologia Românica tanto enfocam os estudos lingüísticos como os literários. Nesse
último caso, considerando que a história da língua implica estudo da língua, da cultura e
da literatura, o enfoque se faz na direção da história da língua. Isto porque, toda a
investigação tem como foco o texto.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
1
E, assim, o trabalho desenvolvido tem como ponto de partida o texto, quer em uma
edição que ofereça o texto fidedigno, quer editando-se esse texto (TELLES, 2000). A
depender do gênero de texto, literário ou não literário, pode-se ter uma edição crítica ou
uma edição semidiplomática. Quer se trate de textos literários ou não literários
evidencia-se que o conhecimento da língua do texto é de suma importância para o editor
(CASTRO, 1995, p. 519-520; GAMA; GAMA; TELLES, 1996).
No momento, traz-se à discussão os resultados das pesquisas em desenvolvimento que
enfocam o discurso do mundo narrado (WEINRICH, 1968), verificando-se que as
marcas discursivas encontradas em textos quinhentistas da literatura de viagens são as
mesmas documentadas tanto em textos quatrocentistas, como em textos da primeira
Idade Média.
2. A Crônica geral de Espanha de 1344
Conhecem-se versões em português e em castelhano da Crônica geral de Espanha de
1344 (CINTRA, 1961). Ressalta L. F. Lindley Cintra que a análise do conjunto dos
manuscritos conservados mostra que a Crônica teve duas redações sucessivas e que a
contextura geral do texto transmitido pelos manuscritos é fundamentalmente idêntica,
destacando-se o caráter da versão modernizada da segunda redação frente à primeira
(CINTRA, 1961, v. 1, p. xxix).
Dessa tradição manuscrita selecionou-se um excerto, o capítulo CXCVIII Do consselho
que o cavalleiro que avia nome Anrrique deu ao conde dom Ilham, segundo o texto
crítico editado por L. F. Lindley Cintra e duas versões castelhanas, aquela remanescente
da primeira redação e uma das versões da segunda redação. Da primeira redação, o
manuscrito M1 é o único remanescente completo, ainda que uma tradução em
castelhano do original português. Da segunda redação, o texto em língua portuguesa
utilizada é o da edição crítica de L. F. Lindley Cintra que busca reconstituir o original
1
Códice 2-I-2 da Biblioteca Real de Madrid, letra dos últimos anos do século XV ou primeiros do XVI
(CINTRA, 1961, v. 1, p. xxix e cdxci).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
2
português (*Z) com base no texto de L2, completado pelo de P3; enquanto o texto em
castelhano é o do manuscrito U4.
Fundamentado no conteúdo do cap. CCXXXIX, onde se lê: “...ataa a era de myl e
trezentos e oyteenta e dous annos que este livro foy feito, feria quarta, viinte e huu
dias de Janeiro da dita era”, L. F. Lindley Cintra afirma que a mencionada data (era
hispânica de 1382, correspondente ao ano de 1344 no calendário gregoriano) deve ser
atribuída à primeira redação da crônica (CINTRA, 1961, p. xxxix). Quanto à segunda
redação acredita ser a mesma datada dos primeiros anos do séc. XV, ou, mais
provavelmente, dos fins do séc. XIV (CINTRA, 1961, p. xl).
De acordo com o trabalho de L. F. Lindley Cintra, a tradição manuscrita da Crônica
geral de Espanha de 1344 pode ser representada pelo estema:
*Y (port)
M (cast)
E (cast)
*X (port)
*Z (port)
L
* (cas
W t)
C
U
Q
P
Li
V
Ev
Fig. 1 – Reconstituição do texto original,
segundo L. F. Lindley Cintra
(CINTRA, 1961, v. 1, p. lxxxvii e dxl)
2
Códice da Biblioteca da Academia das Ciências de Lisboa, ms. I Azul, letra do século XV. Pelas suas
características codicológicas teria sido escrito pelos escrivães da câmara de D. Duarte e decorado pelos
seus iluminadores, nas primeiras décadas do séc. XV, tendo sido conservado na biblioteca real por algum
tempo (CINTRA, 1961, v. 1, p. cdxcviii).
3
Códice da Biblioteca Nacional de Paris, port. 4, letra do século XV, certamente mandado copiar pelo
Condestável D. Pedro, filho do infante D. Pedro de Portugal (CINTRA, 1961, v. 1, p. dix).
4
Códice da Biblioteca de D. Francisco de Zabálburu, hoje Biblioteca do Marquês de Heredia Spinola, em
Madri, letra da primeira metade do século XV (CINTRA, 1961, v. 1, p. dxxii). Segundo L. F. Lindley
Cintra, o melhor manuscrito desta família (CINTRA, 1961, v. 1, p. dxxii).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
3
A escolha dos textos para o corpus de amostragem prende-se, assim, a critérios
filológicos: o códice M é a única cópia completa da primeira redação, enquanto a
segunda redação é representada pela restauração do original português5 (com base em
L) e pelo melhor manuscrito em castelhano, o códice U6. A tradição manuscrita explica,
desse modo, as semelhanças e as dessemelhanças entre os textos do corpus: o texto em
língua portuguesa e o castelhano, segundo o ms.U, correspondendo à segunda redação,
opõem-se ao texto castelhano do ms. M, representante da primeira redação. A segunda
redação, como assinala L. F. Lindley Cintra apresenta-se estilisticamente retocada
trazendo consideráveis variantes de conteúdo (CINTRA, 1961, v. 1, p. xxix).
As crônicas – como se sabe – situam-se entre as fontes narrativas da historiografia
portuguesa. Dois fatos discursivos são destacados: a dêixis temporal e a dêixis pessoal.
2.1 A dêixis temporal
Retome-se o fato de que para E. Coseriu (1980, p. 19-20), o espaço do presente é não
limitado, podendo abarcar todo o tempo, enquanto os do passado e do futuro são
limitados, cada um deles, de sua parte7. Nessa perspectiva, é preciso que se retomem as
observações de Klaus Heger (1974a, p. 124) de que ao se combinarem os vetores
dêiticos temporais referidos ao falante e ao processo eles não devem necessariamente
coincidir, conduzindo a novas subdivisões. Desse modo, fica evidente que, ao se
estabelecerem duas relações distintas entre os mesmos membros – momento do ato de
comunicação e momento do processo enunciado – uma delas forçosamente tem de ser
fictícia. Não importa, continua K. Heger, saber qual das duas tem maior tendência a
transformar-se em fictícia, sendo importante, entretanto, dar-se conta de que existem –
ou podem existir – dois momentos distintos atribuídos ao mesmo ato de comunicação.
O primeiro deles é aquele de onde parte o vetor temporal relativo ao falante, o segundo,
o que tende para o vetor dêitico referente ao processo (HEGER, 1974a, p. 124).
5
Segundo a edição crítica de L. F. Lindley Cintra (CINTRA, 1961, v. 2, p. 321-323).
Excerto extraído da crestomatia de Jesús Moreno e Pedro Peira (1979, p. 308-312).
7
A esse propósito, R. Martin questiona E. Coseriu se a oposição tempo/aspecto por ele concebida
corresponderia àquela de tempo explicado (i.e., cronológico, situando os eventos uns em relação aos
outros relativamente a um ponto de partida) e de tempo implicado (o tempo necessário à própria
existência do processo) (COSERIU, 1980, p. 24). Responde E. Coseriu que, com efeito, a distinção tempo
6
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
4
As crônicas, segundo a teoria de H. Weinrich (1968), são discursos do mundo narrado.
Trazem a forma verbal no tempo passado, com aspecto improspectivo. Para Harald
Weinrich (1968, p. 69) existem dois grupos de tempo, tempos do Grupo I, ou tempos
comentadores, e tempos do Grupo II, ou tempos narradores. Entre estes últimos, diz
ele, é muito fácil assinalar que têm em comum as situações comunicativas em que
dominam esses tempos, evidentemente situações comunicativas em que são feitas
narrações (WEINRICH, 1968, p. 66).
No discurso do mundo narrado, afirma H. Weinrich, o destinatário sabe que deve
recolher a informação como relato, ignorando que ele deva relacioná-la com o passado.
Tal fato deve, então, ser repetido com toda clareza (WEINRICH, 1968, p. 76). O mundo
narrado é indiferente quanto à temporalidade. Pode estar fixado no passado por uma
data, ou no presente, ou no futuro por qualquer outro dado. Entretanto, isto em nada
muda o estilo do relato nem a situação falada que lhe é própria.
O discurso do mundo narrado é expresso no modo indicativo: fato real, independente da
sua situação no eixo da temporalidade (TELLES, 2004). São tempos narradores, em
português e em espanhol: imperfeito / imperfecto, perfeito / pretérito indefinido, futuro
do pretérito / potencial, futuro do pretérito composto / potencial compuesto, mais-queperfeito composto / pluscuamperfecto e pretérito anterior.
a) perfeito / perfecto
5. a) Depois que a condessa fallou esto que avedes ouvido, tam grande foy o pesar que
ouve que se lhe çarrou o coraçon, de tal guisa que nõ pode fallar.
b) Despues que la condessa fablo aquesto que auedes oydo, tan grande fue el pesar que
ouo que se çerro el coraçon, de tal guisa que non podia fablar. (U)
c) Quando la condesa fablava, en tal guisa fue, que tamaño tomo el pesar que se le fue
el coraçon, en tal guisa desmayo e non pudo fablar ninguna cosa. (M)
b) imperfeito / imperfecto
6. a) E esto podiam elles muy ligeiramente fazer, ca nõ era homen ena villa que armas
podesse tomar, tanto eram despercebidos e os emiigos aguçosos / de os matar. E
todos fogiam aas casas fortes, mas esto nom lhes prestava nada, ca, assi como elles
– aspecto corresponde em parte à distinção guillaumiana entre tempo explicado e tempo implicado, isto é,
que elas a englobam (COSERIU, 1980, p. 25).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
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entravam, asi entravam os outros empos elles, que os matavã sem nem hua
piedade. E tanto fez Tariffe e os seus que, ante de meo dia, foy toda a villa livrada
dos cristãaos.
b) E esto podian ellos bien fazer, ca non era ninguno en la villa que armas podiesen
tomar, tanto eran desaperçebidos e los enemigos acuçiosos de los matar. E todos
fuyan a las casas fuertes, mas esto non les prestaua alla nada, que asi commo ellos
entrauan, asi entrauan los otros en pos dellos que los matauan sin ninguna piadat.
E tanto fizo Tarife e los suyos que, ante de medio dia, fue toda la villa librada de
los christianos. (U)
c) E esto fazian ellos muy ligeramente, que non avia y ome de la villa que armas
pudiese tomar con que se defendiese, que asi los tomaron non guardandose dellos.
E ellos tanto eran de acuçiosos de matar en ellos que todos fuyan a las casas altas e
a las torres lo mas que podian, mas esto non le montava nada, que asi commo ellos
entravan por las torres, ansi entravan los otros que los matavan, que otro dolor
dellos non avian. E tanto fez Tarifee e los suyos que, ante de medio dia, fue toda la
villa librada de los christianos. (M)
O fato passado é marcado pela indicação da data ao final do capítulo:
7. a) E, quando esto foi, andava a era dos mouros e noveenta e huu ãnos e era
quareesma delles meesmos.
b) E quando esto fue, andava la era de los moros en noventa e vn años, en la quaresma
dellos mesmos. (U)
c) E quando esto fue, andava la era de los moros en noventa e vn años, en la quaresma
dellos mesmos. (M)
Assim, o texto da crônica estrutura-se com a dêixis temporal característica do discurso
do mundo narrado. A Crônica geral de Espanha de 1344, registra, no discurso indireto,
a presença dos tempos perfeito / perfecto, imperfeito / imperfecto. O percentual de uso
do perfeito / perfecto, frente ao imperfeito / perfecto, no excerto selecionado, é de
91.6%, o que demonstra o seu emprego mais comum neste tipo de relato.
2.3 A dêixis pessoal
Quanto à dêixis pessoal, faz diferença se se trata de discurso direto ou de discurso
indireto. Neste último, a dêixis pessoal é caracterizada pela terceira pessoa – delocutiva
–, relacionada ao referido:
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8. a) E estava hi huu homen boõ, que era seu primo, que avia nome Anrrique. E,
quando esto vio, ouve tam grande pesar que maravilha; e disselhe enton:
b) E estaua y vn buen omen, que era su primo, que auia nombre Enrrique. E quando
esto oyo, ouo tan gran pesar que era marauilla: e dixole entonçe: (U)
c) E Anrrique, vn honbre bueno, primo e cormano de la condesa, e quando esto vido,
que la condesa estava asi, huvo tan gran pesar que maravilha era; e dixo commo
aquel que avia muy gran duelo de su cormana: (M)
No entanto, no discurso direto, a dêixis pessoal é caracterizada pelo uso da segunda
pessoa, o alocutivo (CREYSSELS, 1995, p. 442), representada por vós, alternada com
tu, em algumas situações no excerto examinado. Ressalte-se que o tratamento na
segunda pessoa do singular, em língua portuguesa, pode indicar dois tipos de
destinatário:
1. seria um tratamento de intimidade, entre indivíduos do mesmo nível
social e da mesma classe profissional8;
2. poderia ser um tratamento de superior para inferior (CINTRA, 1972, p.
65-6).
Na Crônica geral de Espanha de 1344, tanto em português, quanto em espanhol, os
interlocutores do diálogo usam a segunda pessoa do plural.
9. a) – Boa dona, nõ vos dedes a atam grãde coita, ca ben sabe Deus que nõ esta aqui tal a
que muyto nõ pese de vosso mal.
b) – Buena dueña, non vos dedes atan gran cuyta, que bien sabe Dios que non esta aqui
tal a quien mucho non pese de vuestro mal. (U)
c) – Buena dueña, non vos dedes a atan gran cuyta, ca bien saben que non esta aqui tal a
que mucho non pese de vuestro mal. (M)
8
Ora, “A escolha de uma ou de outra forma é motivada não apenas por quantas pessoas são os
destinatários, mas também por um sentido de familiaridade pessoal versus distância social, sendo a forma
singular usada para relações de maior intimidade e o plural para registrar um sentido de formalidade e
distância. Assim, o conteúdo da relação social é reflectido na escolha dos pronomes pessoais.” (FARIA et
al., 1996, p. 456).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
7
Entretanto, D. Anrique, o Homem Bom, “primo e cormano” da condessa, como se lê na
primeira redação (ms. M), usa a segunda pessoa do singular, quando se dirige ao conde,
na qualidade de conselheiro.
10. a) – Nõ he amigo aquelle que em todallas cousas nõ ama prol do seu amigo. E nõ te
digo esto se nom por que hei penssado todo teu feito e del rei dom Rodrigo e vejo
que tu nõ podes fazer cousa que te mal estê a Deus nem ao mundo, ca elle nõ he teu
senhor nem tees delle terra.
b) – Non es amigo aquel que en todas las cosas non ama pro de su amigo. E non te
digo esto sinon porque he pensado todo tu fecho e del rrey don Rodrigo, e veo que
tu non puedes fazer cosa que te mal este a Dios nin al mundo, ca el non es tu señor,
nin tienes tierra del. (U)
c) – Non es amigo aquel que en todas las guisas non ama pro de seu amigo. E non te
digo esto sinon porque yo he pensado todo tu hecho e del rrei dom Rrodrigo, e yo
veo que tu non puedes fazer tu cosa que te este mal quanto a Dios e al mundo, ca el
non es tu señor, nin tienes del tierra. (M)
A primeira pessoa, no discurso direto, refere-se a um dos interlocutores aquele que tem
a vez no turno da fala:
a) o conde D. Ilham:
11.a) Esto vos digo eu por my e por mynha fazenda, que vos ja sabedes.
b) Esto vos digo yo por mi e por mi fazienda, que ya vos sabedes. (U)
c) E esto vos digo yo por mi e por mi fazienda, que vos ya sabedes. (M)
b) D. Anrique, o Homem Bom:
12.a) E sabedes por que vos carrego tanto deste feito? Por que sei que vos devede de aver
tam grãde pesar como eu.
b) ¿E sabedes por que vos cargo tanto deste fecho? Porque se que vos deuedes auer tan
grant pesar commo yo. (U)
c) ¿E sabedes por que vos encargo tanto este hecho? Porque se que non devo yo aver
menos pesar desto que vos. (M)
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3. O Itinerarium Egeriae
O manuscrito do Itinerarium Egeriae está escrito em pergaminho e é uma cópia do
século XI em letra longobardo-casinense ou beneventana9. Códice medindo 262mm ×
171mm, com trinta e sete folhas, das quais ocupa vinte e duas, numeradas na margem
inferior, em época posterior à encadernação (ARCE, 1996, p. 36). O Itinerarium
Egeriae, de acordo com a argumentação de Arce (1996, p. 54-55), pode ser datado de
381-384 d.C., data estabelecida pelo próprio texto de Egéria, com base nos fatos
enumerados na sua viagem de volta, a saber, a informação sobre os “bispos
confessores” e a data da festa de Santo Elpídio.
Trata-se de uma admirável descrição de uma viagem piedosa da virgem Egéria ao
Oriente para visitar todos os lugares mencionados na Bíblia, escrita em forma narrativa,
dirigida a suas sorores, ou companheiras monásticas. A língua do texto apresenta
interesse pela liberdade que se faz do uso popular de sua época, assim como quando não
concorda com o uso da variante standard recomendada pelos gramáticos (DÍAZ y
DÍAZ, 1962, p. 79), ainda que se mantenha a flexão dos nomes e dos verbos (ARCE,
1996, p. 48-49).
A propósito desse texto, uma das fontes de informação da primeira idade média10,
lembra Hilário Franco Júnior (2005a) que o Itinerarium Egeriae já foi utilizado para
trabalhos de geografia sagrada, de arqueologia bíblica e sobretudo de liturgia, mas
exploraram-se relativamente pouco outros aspectos interessantes. Muito claramente
chama a atenção para o fato de que a língua da autora, bem estudada em relação à
gramática e ao vocabulário, pode ser útil para o sempre importante e difícil problema da
oralidade/escrita naquele contexto de fortes transformações do latim tardio11. No campo
da religião, a centena de referências bíblicas que ali aparece permite discutir a versão do
texto sagrado utilizado por Egéria alguns anos antes da tradução de São Jerônimo.
9
Como diz A. Arce, uma bela caligrafia do scriptorium de Monte Casino, como a de tantos outros
códices da escola longobardo-beneventana (ARCE, 1996, p. 37).
10
Conforme proposta de Hilário Franco Júnior (2005a, p. 236).
11
A propósito da sintaxe do texto, Alfred Ernout e François Thomas (1953), na sua Syntaxe latine,
apontam inúmeras construções que marcam o texto do Itinerarium Egeriae: construções com um genitivo
de pertencimento, como ponto de partida nas locuções temporais (ERNOUT; THOMAS, 1953, p. 52), o
ablativo de duração (p. 111-112), a expressão do chamado sujeito indefinido (p. 145-146), o emprego de
ipse (p. 191), o uso do perfeito passivo (p. 228-229), as construções com dico ou scio quod ou quia (p.
299), as orações temporais (p. 361, p. 366-367), o modo da repetição (p. 402).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
9
Através do conteúdo do Itinerário, é possível também tentar deduzir suas fontes
literárias. Por outro lado, as inúmeras menções à hierarquia eclesiástica constituem
material complementar importante sobre a eclesiologia primitiva, enquanto o ritmo da
viagem e das festas litúrgicas fornece dados para a percepção de tempo da época e a
descrição dos locais visitados faculta uma história da vida cotidiana (FRANCO, 2005b,
p. 31).
O Itinerarium Egeriae apresenta, como diz Dulce O. A. dos Santos (2005, p. 300), uma
forma textual híbrida, ou seja, com características do gênero epistolar, em que se dirige
constantemente a suas interlocutoras e ao mesmo tempo de diário de viagem ao
descrever os percursos quotidianos de sua peregrinação (SANTOS, 2005, p. 300).
Interessa a este trabalho o fato de considerar-se a narrativa como um diário de viagem12.
E, como assinala Dulce O. A. dos Santos (2001, p. 566), esse diário de viagem constitui
uma das poucas vozes femininas do primeiro milênio d.C., lembrando que à época,
mulheres letradas romano-cristãs, virgens ou viúvas, abandonavam casa e filhos para
seguirem São Jerônimo ou Rufino de Aquiléia e gastavam seu patrimônio em viagens
aos santuários cristãos do Oriente. Assim, Egéria, um testemunho vivo disso, redigiu
seu texto numa interlocução com outras dominae venerabilis sorores, às quais incitava
pelo menos à peregrinatio animae (i. e, a peregrinação da alma).
Lembra Agustín Arce (1996, p. 68-69) que não se sabe qual o tipo de vida dessas
monjas, mas eram piedosas e levavam uma vida consagrada a Deus. Ainda que
vivessem em comunidade não estavam sujeitas à clausura, circulando livremente entre
sua casa ou mosteiro e o mundo. Egéria dirige-se a elas em tom familiar e respeitoso,
chamando-as “dominae uenerabiles sorores” (3,8; 20,5), “affectio uestra” (5,8; 7,3;
20,13; 24,1; 27,2), “dominae uenerabiles” (12,7), “dominae animae meae” (19,19),
“domnae, lumen meum” (23, 10 bis), ou simplesmente “dominae sorores” (46, 1.4)
(ARCE, 1996, p. 69).
Egéria era uma mulher romano-cristã da Gallaecia, região noroeste da Hispania,
província do Império Romano, que se tornou peregrina no final do séc. IV, ao
12
A. Millares Carlo (1995, p. 211) refere-se a esse texto como um “relato de viagem”.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
10
empreender uma viagem ao Oriente Médio (por cerca de três anos) para visitar todos os
lugares sagrados da natividade, paixão e ressurreição de Cristo e de inúmeros santos e
santas dos primeiros tempos do cristianismo. Valério de Berzo, monge asceta da mesma
região, na Espanha visigótica católica, três séculos mais tarde (VII séc.) em carta
dirigida aos seus irmãos monges do mosteiro de São Pedro dos Montes, elegeu a
peregrinação de Egéria como modelo inspirador de religiosidade a ser imitado
(SANTOS, 2001, p. 566). A autora é mulher de certa cultura, considerando-se o fato de
se acharem no texto reminiscências literárias (DÍAZ y DÍAZ, 1962, p. 79).
3.1 O Itinerarium Egeriae, um diário de viagem
Ao considerar-se o Itinerário um relato de viagem, ou melhor, um diário de viagem,
vem a lume a classificação de J. Barradas de Carvalho (1960, p. 284) para as narrativas
de viagem, ampliada posteriormente por João Rocha Pinto (1994, p. 609). Ao propor
uma classificação mais vasta e minuciosa para a literatura de viagens, João Rocha Pinto
(1994, p. 609-610) faz uma sinopse tipológica distribuída em dois grandes itens: fontes
narrativas e obras técnicas. Definido o fato de se tomar o Itinerário como um diário de
viagem, vale advertir que a narrativa é escrita pela mão que escreve para um
destinatário, a quem o texto é dirigido, expressando a experiência do eu (singular ou
plural). Esse discurso – que serve ao ser existencial para definir a sua actância hic et
nunc – caracteriza–se em torno de dois eixos: a dêixis temporal e a dêixis pessoal.
Quanto à dêixis temporal, a narrativa do diário de viagem, segundo a teoria de H.
Weinrich (1968, cap. 3), é tomada na direção do que ele denomina mundo narrado,
perspectiva do discurso – como já se viu – que vem marcada pela presença de tempos
verbais, a saber, dos tempos do narrar. Nesse caso o texto estrutura–se em tempo
passado, com marca aspectual improspectiva: é a narração do fato, da experiência pelo
elocutor, com base em uma experiência anterior.
No que tange à dêixis pessoal, o discurso do Itinerário é caracterizado pela narrativa da
primeira pessoa – elocutivo (quem escreve) – para a segunda pessoa – alocutivo (as
sorores, a quem se destina o escrito) (CREYSSELS, 1995, p. 122).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
11
A relação entre o elocutivo (eu ou nós) e o alocutivo de unicidade específica e as duas
formas são inversíveis (BENVENISTE, 1966, p. 230). Por outro lado, faz-se necessário
lembrar que elocutivo e alocutivo desempenham papéis ilocutórios (CREYSSELS,
1995, p. 122; MAINGUENEAU, 1996, p. 11).
3.2 A dêixis temporal
Quando se tem o relato da própria experiência de narrador, o discurso traz tempo
narradores, em especial, o pretérito perfeito (na forma ativa ou passiva).
Essa
construção mantém todo o valor aspectual de inconcluso, documentando a referida
experiência da narradora Egéria. Essa experiência do sujeito narrador pode achar-se
expressa de modo exclusivo (eu, Egéria) ou inclusivo (Egéria e os seus acompanhantes).
Esses tempos narradores são encontrados no Itinerário, marcando o discurso do mundo
narrado, que trazem a forma verbal no eixo temporal do passado (pretérito perfeito,
pretérito mais-que-perfeito, pretérito imperfeito e futuro anterior13), com aspecto
improspectivo.
a) pretérito perfeito (primeira pessoa exclusiva)
Profiscentes ergo de Tathnis, ambulans per iter iam notum perueni Pelusio. (9, 33-4, p.
210)
“E assim, partindo de Tânis e andando pelo caminho já conhecido, cheguei a Pelúsio”.
b) pretérito perfeito (primeira pessoa exclusiva e inclusiva)
Certe locum cum uideremus, columnam nullam uidimus, et ideo fallere nos super hanc
rem non possum. (12, 42-44, p. 218)
“Certamente, quando olhamos o lugar não vimos coluna alguma; assim é que não posso
enganar-vos sobre este assunto”.
c) pretérito imperfeito
Tunc ergo ego, ut sum satis curiosa, requirere cepi, quae esset haec uallis ubi sanctus,
monachus nunc, monasterium sibi fecisset; non enim putabam hoc sine causa esse. (16,
13-16, p. 228)
13
Isto é, o futuro do perfectum.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
12
“Então eu, como sou bastante curiosa, comecei a perguntar que vale era este onde este
santo, agora eremita, havia feito para si o eremitério; pois pensava que não seria sem
razão”.
d) pretérito mais-que-perfeito
Et sic proficiscens de Antiochia faciens iter per mansiones aliquot perueni ad prouinciam,
quae Cilicia appellatur, quae habet ciuitatem metropolim Tharso, ubi quidem Tharso et
eundo Ierusolimam iam fueram. (22, 3-7, p. 250)
“E logo, partindo de Antioquia e caminhando durante algumas jornadas, cheguei à
província chamada Cilícia, que tem por metrópole a cidade de Tarso, onde já havia
estado ao ir a Jerusalém”.
e) futuro anterior
Et licet in patria exemplaria ipsarum haberem, tamen gratius mihi uisum est, ut et ibi eas
de ipso acciperem, ne quid forsitan minus ad nos in patria peruenisset; nam uere amplius
est, quod hic accepi. Vnde si Deus noster Iesus iusserit et uenero in patria, legetis uos,
dominae animae meae. (19, 115-120, p. 240)
“E ainda que tenha em minha pátria cópias das mesmas, tive grande gosto em recebê-las
ali dele mesmo, pelo fato de que nos tivessem chegado à pátria algo incompletas; pois
não resta dúvidas de que é mais extenso o que aqui recebi; e assim, se nosso Deus Jesus o
ordenar, quando eu regressar à pátria, as lereis vós, senhoras de minha alma”.
Os registros do Itinerário mostram 71,15% de construções com o pretérito perfeito,
17,30% com o pretérito imperfeito, 11,53% com o pretérito mais-que-perfeito e apenas
1,92% com o futuro anterior. O uso do pretérito perfeito documenta 78,37% de emprego
da primeira pessoa exclusiva, ao lado de um percentual de 21,62% de inclusiva.
3.2 A dêixis pessoal
O texto do Itinerário – como discurso do mundo narrado – traz, como foi acabado de
ver, a forma verbal no eixo temporal do passado, com aspecto improspectivo, trazendo
implícita a dêixis pessoal ser marcada pela presença do elocutor ou do referido
(HEGER, 1974b).
Entretanto, o discurso do Itinerário é também caracterizado pela presença explícita na
narrativa da primeira pessoa (Egéria, exclusivo: eu, ou inclusivo: nós), que denota
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
13
sempre a interferência do narrador, marcando a dêixis pessoal pela presença do elocutor
(no singular ou no plural). Em outro momento do discurso, a pessoa vem marcada pela
presença do pronome, pessoal ou possessivo.
a) a narrativa, dia a dia, é a do elocutor (exclusivo):
Tunc ergo ego, ut sum satis curiosa, requirere cepi, quae esset haec uallis ubi sanctus,
monachus nunc, monasterium sibi fecisset; non enim putabam hoc sine causa esse. (16,
13-16, p. 228)
“Então eu, como sou bastante curiosa, comecei a preguntar que vale era este onde este
santo, agora eremita, havia feito para si o eremitério; pois pensava que não seria sem
razão”.
Nam et eulogias dignati sunt dare michi et omnibus, qui mecum erant, sicut est
consuetudo monachis dare, his tamen quos libenti animo suscipiunt in monasteriis suis.
(21, 20-23, p. 248)
“Dignaram-se, além disso, dar, a mim e aos que iam comigo, eulógias, como os monges
costumam dar, mas aos que recebem com gosto em seus mosteiros”.
b) ou ainda exclusivo/inclusivo:
Illud etiam satis mihi grato fuit, ut epistolas ipsas siue Aggari ad Dominum siue Domini
ad Aggarum, quas nobis ibi legerat sanctus episcopus, acciperem michi ab ipso sancto.
(19, 110-114, p. 240)
“Foi-me também de grande contentamento receber as mesmas cartas que o santo bispo
nos havia lido ali, tanto a de Abgar ao Senhor como a do Senhor a Abgar”.
Desse modo, os dados mostram que a primeira pessoa exclusiva se acha documentada
com um percentual de 86,66% frente aos 13,33% de emprego da primeira pessoa
exclusiva/inclusiva.
Conclusão
No momento, traz-se à discussão os resultados das pesquisas em desenvolvimento que
enfocam o discurso do mundo narrado (WEINRICH, 1968), verificando-se que as
marcas discursivas encontradas em textos quinhentistas da literatura de viagens são as
mesmas documentadas tanto em textos quatrocentistas, como em textos da primeira
Idade Média.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
14
A Crônica geral de Espanha de 1344, registra, no discurso indireto, a presença dos
tempos perfeito / perfecto, imperfeito / imperfecto. O percentual de uso do perfeito /
perfecto, frente ao imperfeito / perfecto, no excerto selecionado, é de 91.6%, o que
demonstra o seu emprego mais comum neste tipo de relato. No discurso indireto, a
dêixis pessoal é caracterizada pela terceira pessoa – delocutiva –, relacionada ao
referido. No discurso direto – tanto em português, quanto em espanhol – os
interlocutores do diálogo usam a segunda pessoa do plural. Entretanto, D. Anrique, o
Homem Bom, "primo e cormano" da condessa, como se lê na primeira redação (ms. M),
usa a segunda pessoa do singular, quando se dirige ao conde, na qualidade de
conselheiro. Por outro lado, a primeira pessoa refere-se a um dos interlocutores aquele
que tem a vez no turno da fala.
Os registros do Itinerário mostram 71,15% de construções com o pretérito perfeito,
17,30% com o pretérito imperfeito, 11,53% com o pretérito mais-que-perfeito e apenas
1,92% com o futuro anterior. O uso do pretérito perfeito documenta 78,37% de emprego
da primeira pessoa exclusiva, ao lado de um percentual de 21,62% de inclusiva. Desse
modo, os dados mostram que a primeira pessoa exclusiva se acha documentada com um
percentual de 86,66% frente aos 13,33% de emprego da primeira pessoa
exclusiva/inclusiva.
Nos dois casos, o texto românico quatrocentista e o texto latino da primeira Idade
Média, pôde-se comprovar o uso e as funções das formas verbais para expressão do
discurso do mundo narrado, assim como a dêixis pessoal de primeira pessoa, marcas
características do discurso das crônicas.
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Série Estudos Medievais 1: Metodologias
17
O comparativismo como fio condutor
de um estudo sobre as cantigas de trovadores galegos
e a lírica confessional das trobairitz italianas
Isabella di Morra e Veronica Franco
Profa. Dra. Delia Cambeiro
Universidade Estadual do Rio de Janeiro/Uerj
Resumo: Este trabalho quer refletir sobre a importância do comparativismo como via norteadora de um
projeto sobre a lírica amorosa composta por trovadores, entre os séculos XII-XIII, na Galiza; XV-XVI, de
autoria das poetisas Isabella di Morra e Veronica Franco1, na Itália. Ao longo do texto, justificamos tal
escolha investigativa, ao comentarmos trechos do corpus literário escolhido. Convém acrescentar que tal
orientação não exclui, ao contrário, demanda o concurso de outros campos do conhecimento, tais como, a
Teoria Literária, a História dos Anais e Literária, os Estudos Interculturais e do Imaginário, dentre tantos,
o que confere um caráter pluridisciplinar à pesquisa.
Palavras-chave: Lírica amorosa galega e italiana; Comparativismo; Intertextualidade; Isabella di Morra;
Veronica Franco.
Résumé : Ce travail propose une reflexion sur l´importance du comparatisme en tant que fil conducteur
d´un projet sur la poésie lyrique écrite entre les XIIe- XIIIe siècles, en Galice, par des troubadours et en
Italie, entre le XVe - XVIe siècles, par les femmes poètes Isabelle di Morra et Veronica Franco. Tout au
long de cette étude, on justifie ce choix en se fondant sur l´analyse des passages d´un corpus littéraire
spécifique. Dans le but d´une recherche pluridisciplinaire, outre le recour au comparatisme, on s´est servi
aussi d´autres domaines cognitifs, à savoir , la Téorie Littéraire, l´Histoire des Annales et de la
Littérature, les Études Interculturelles et de l´Imaginaire.
Mots-clés: Poésie lyrique galicienne et italienne; Comparatisme; Intertextualité; Isabella di Morra;
Veronica Franco.
Introdução
A escolha do comparativismo como fio condutor de nosso projeto deve-se, inicialmente,
ao propósito de cotejarmos as literaturas estrangeiras sugeridas para pesquisa, devido a
leituras preliminares, que apontavam traços a serem observados e desenvolvidos. Tal
decisão leva-nos não só à exegese do corpus literário de poemas dos autores escolhidos,
mas, em especial, à perspectiva de empreendermos uma abordagem dialógica. Esse tipo
de procura é de grande valia, sendo capaz de revelar várias e possíveis nuances, que
enriqueçam, a partir da lírica selecionada, o exame do fenômeno literário e cultural
próprios da Galiza e da Itália, no correr dos séculos XII ao XVI.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
1
Para uma análise comparada, em um primeiro momento, é necessário delimitarmos o
material literário a servir de eixo; formularmos hipóteses sobre a provável
intertextualidade existente entre as duas literaturas; restringirmos o tempo histórico em
que surgiram as respectivas líricas de teor confessional.
Em seguida, para que se imponha o caráter pluridisciplinar, é conveniente interrelacionar o material a ser investigado com outras áreas do conhecimento. Para a
História Literária da Galiza e da Itália delimitamos o período compreendido entre os
séculos XII ao XVI, mencionado desde o título do projeto. Dentre as ciências afins aos
estudos literários a que recorreremos citamos a Teoria Literária, a Escola dos Anais, os
Estudos Interculturais e do Imaginário, além de outros campos especializados, que
auxiliem a melhor desvelar os segredos dos textos poéticos em suas implicações com o
contexto em que as duas líricas foram produzidas.
Com isso, pretendemos fazer surgir o que há de universal, a partir do particular e do
individual, pois nosso objetivo é estabelecer uma leitura crítica de fato dialógica, capaz
de revelar diferenças, identidades, continuidades e rupturas no tecido proposto para
estudo. Longe de uma tentativa de caráter erudito, reconhecemos nas disciplinas
correlatas um papel propedêutico, auxiliar, para chegarmos, de fato, ao esperado diálogo
entre arte literária e suas respectivas culturas. Empreender esse tipo de investigação é
abrir portais para o conhecimento de questões novas de ordem histórico-cultural e do
imaginário, todas particularmente importantes no estudo comparado da Literatura.
Não buscamos utilizar o estudo do Imaginário no sentido de traçar a superioridade
cultural dessas duas culturas, porém, afinar contrastes e antagonismos próprios de um
tempo, em determinada produção literária. Não desprezamos, também, a idéia de que a
representação do sentimento amoroso e/ou confessional proporciona ao investigador
encruzilhadas do tipo binário, tais como, diferenças/identidades, continuidade/ruptura.
Pretendemos trabalhar sempre um tertium, que investigue, sem eliminar – ao contrário –
que agregue contornos da representação tanto de si – já que se trata de uma escrita em 1ª
pessoal – como do outro, ou seja, do objeto lírico, da figura de desejo.
1
Conservamos a grafia do italiano, sem o acento circunflexo, existente em português.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
2
O projeto quer captar a essência dessas líricas; evitar estereótipos que desconsiderem
paradoxos harmoniosos capazes de orientar a investigação; chegar, enfim, através de
uma dialética coincidentia opositorum, à percepção da verdade velada do e no texto.
A importância da perspectiva comparada em nosso projeto, de natureza inter e
pluridisciplinar, intertextual, intercultural, será evidenciada através da busca dos traços
constitutivos da linguagem das autoras escolhidas, em cotejo com as cantigas de
trovadores galegos. Com isso, sem dúvida, abriremos um maior leque de possíveis
respostas às hipóteses formuladas no texto do projeto.
Dado que a linguagem do texto confesional vem a ser uma escrita do Eu e do Outro,
necessitamos fazer um trabalho de comparar diferenças e identidades, provocar a
emergência do imaginário social e cultural nos versos de uma e de outra literatura.
Melhor diríamos, é preciso, através do comparativismo, apontar não apenas a
importância desse processo investigativo; pretendemos, em especial, chegar à
compreensão das alteridades representadas no texto poético.
Finalmente os processos operatórios de indagação textual devem apontar “o como” e “o
quê” determinantes de supostas influências poéticas sofridas pelas culturas galega e
italiana do XII ao XVI séculos.
Em projeto anterior, também de orientação comparatista, cujo título é “Mito e sagrado
no imaginário cultural dos séculos XII e XIII. A perspectiva de continuidade em
manifestações literárias modernas e contemporâneas”, apresentado durante o I Encontro
do GT Estudos Medievais, da Anpoll, realizado de 28 a 30 de novembro de 2005, no
Instituto de Letras da UERJ. Nesse trabalho, desenvolvemos crítica de cunho históricoliterário sobre o tema Idade Média, mediante pesquisa de textos medievais que
simbolizassem expressões das categorias Mito e Sagrado, além de motivos
concernentes, tais como: messianismo, milenarismo, heresia, utopia.
Para que se esclarecesse possível continuidade de tais categorias no mundo moderno e
contemporâneo, no corpus foram incluídas obras literárias ou não, surgidas em outros
momentos históricos, que apontavam a atualização dos temas circulantes no imaginário
cultural da época proposta para estudo. Pretendíamos investigar como os temas e
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
3
motivos se perpetuaram e se atualizaram em épocas posteriores e qual possível fator
dinamizou tal processo.
No que toca o atual plano de estudo, já enviáramos, em 2007.1, à Sub-Reitoria de
Pesquisa da UERJ (SR2), projeto de estudos, visando à obtenção de bolsa de Iniciação
Científica, para alunos da graduação, embriões de futuros pesquisadores, e interessados
em Idade Média. O título “A lírica amorosa medieval galega e italiana dos séculos XII e
XIII em perspectiva comparada”, demonstrava clara preocupação relativa à temática da
lírica amorosa medieval a ser desenvolvida e aumentada nesse projeto aqui relatado,
com vistas a um pós-doutoramento.
A escolha do corpus
É interessante explicarmos, em primeiro lugar, o que nos estimulou a buscar os
documentos que deverão compor o projeto, para, em seguida, delinearmos o material a
ser investigado, sob oponto de vista da Literatura Comparada; justificarmos também o
fato de termos, como assunto delimitado no título desse trabalho, a “lírica confessional”,
se a marca irrefutável da criatividade lírica galega e italiana desses séculos foi a
expressão do amor. Deve-se tal escolha a particularidades do mundo expresso nos
poemas de Isabella di Morra e de Veronica Franco. Esta perpetuou, em versos, seu
universo particular, ligado à vida na corte veneziana, em que experimentou sentimentos
profundos, em ralação a um nobre senador da Serenissima. Quanto a Isabella di Morra,
sua vida breve e trágica deu-lhe estímulo à atividade criadora que extravasasse, em
alguns momentos, de forma avassaladora, seu exílio existencial. Por isso, o termo
confessional substitui, sem invalidar, o complemento amorosa, para a lírica a ser
submetida à apreciação comparatista.
Em segundo lugar, reconhecemos que o recurso à leitura comparada, como estratégia de
crítica textual, para esse projeto sobre a lírica confessional galega e italiana deve-se não
apenas à nossa formação acadêmica em Literatura Comparada. O ensino de Literatura
Italiana, no Instituto de Letras da UERJ, ofereceu-nos, em sala de aula, um bom campo
para abrir aos discentes vias de interpretação do texto, que forjassem um constante
exercício de diálogo entre as obras - tanto do mesmo, como de outro(s) autor(es).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
4
Aos poucos, o alunado habituou-se a perceber semelhanças e diferenças ao confrontar
os textos do programa de Literatura Italiana. Com isso, buscávamos revelar, a partir de
temas e motivos recorrentes, os traços individual e o universal, próprios da criação
literária. A cada semestre, o exercício especulativo de caráter histórico e literário da
Idade Média se iniciava com a noção da importância do soneto, cuja criação se deve,
certamente, a Giacomo da Lentini.
Durante as discussões, explorávamos as possibilidades estéticas e a enorme recepção
dessa forma poética, desde os medievais, passando por Francesco Petrarca até suas
atualizações. Tudo isso nos desvelou uma rica produção lírica, oriunda da Itália dos
séculos XII e XIII, depois descobrimos e nos interessamos por outras figuras femininas
emblemáticas da lírica dos séculos XV e XVI. Dentre vários nomes, elegemos,
finalmente, os de Isabella di Morra e de Veronica Franco, para lançar as primeiras idéias
sobre a produção em voz feminina.
Como podemos depreender, os sonetos dessas poetisas diferenciam-se dos demais, pois
o Eu poético correspondia ao Eu autoral e, nessas composições, as trobairitz italianas
confessavam angústias e dores amorosas, no que toca a cortesã Veronica Franco, e
preocupações com seu destino, no caso de Isabella di Morra. Por isso, a escolha de lírica
confessional, sem aluões iniciais a sentimento amoroso. Na lírica italiana, composta
pelas trobairitz italianas, seja a mais conhecida, que constava do programa – Compiuta
Donzela – seja as que passamos a investigar nesse projeto, encontrávamos belíssimos
exemplos de voz feminina.
O número de mulheres que deixaram sua produção artística gravada na memória da
história literária universal não está tão divulgado e/ou comprovado, como no caso
masculino. Nossa consideração não traduz estatísticas de tom feminista, uma atenção
desmedida de ordem depreciativa. Moveu-nos o desejo de assinalar o fato de elas terem
evoluído, terem saído de uma atitude passiva, como leitoras e como objeto da literatura,
para uma relação ativa, lançando-se como sujeito do enunciado e da enunciação
poéticas.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
5
É preciso assinalar que a figura da mulher no papel de leitora foi belíssimamente
eternizada no Decameron. Nele Giovani Boccaccio não apenas conclama suas leitoras,
em diversos trechos das jornadas, a percorrerem uma obra totalmente dedicada a elas,
mas, em especial, trata-as de modo sedutor, envolvente, compreendendo as limitações
que o tempo lhes impunha. Boccaccio as invocava como narrador, em fortes imagens, e
autor, em passagens críticas endereçadas em primeira pessoas a certos detratores da
obra. As autoras eleitas para nossa investigação exemplificam magnificamente a
participação de sonhos, angústias, alegrias no mundo, em especial, o corpus poético
manifesta um variado tom confessional.
Para o estudo de trabairitz medievais, acrescentamos o nome de Compiuta Donzela,
ainda bastante desconhecida dos que não trabalham com a literatura italiana medieval,
talvez pelo escasso número de composições chegadas até nós; também Nina la siciliana,
além de algumas poesias anônimas, em que o eu feminino fala do/ao amado. Outra
representante da poesia confessional, Gaspara Stampa, apenas citamos seu nome, será
posteriormente estudada. Supostamente suicida, por diversos pesares amorosos, sua
casa em Veneza era um centro de encontros literários e suas poesias um foco de
anguústias amorosas.
Quanto às cantigas de trovadores galegos, abordaremos nomes bastante conhecidos na
tradição literária – Dom Dinis, Martin Codax, etc. – para cotejarem-se as vozes
femininas de seus versos, com as do Eu autoral e textual das poetisas eleitas.
De Isabella di Morra, trágica figura, assassinada pelos irmãos, por falsas ameaças
políticas de um amor não confirmado com nobre rival, destacamos: “I fieri assalti di
crudel fortuna”; “ D´un alto monte onde si scorge il mare”; “Torbido siri, dal mio mal
superbo”; “Ecco ch’un’altra volta, o valle inferna”, sonetos extraídos de sua obra
póstuma Rime.
Da obra Rime, de Veronica Franco, composta de alguns sonetos e em sua maioria de
poemas em terça rima e de cartas, selecionamos a terça rima de número I e II, uma
espécie de longa tensão, que, segundo alguns estudiosos, parece tratar-se de um diálogo
entre a Franco e o homem que amou, Marco Venier, um nobre senador da Serenissima
Repubblica de Venezia.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
6
Antes de concluir esse breve proposta de futuro projeto de Liteatura Compara, devemos
acrescentar que sabemos existir, a respeito dessas poetisas, dois filmes, em que são
romanceadas a história de suas experiências humanas.
Devido às dificuldades de se colher material sobre elas, conseguimos o referente à
veneziana Veronica Franco, entretanto, encontramos enormes barreiras para
adquirirmos o de Isabella di Morra. Também os textos escolhidos são resultado de
incansável pesquisa em bibliotecas européias, pela internet, pois, no Brasil, não
encontramos nenhuma edição das obras citadas.
Os textos aqui citados, de Isabella di Morra e de Veronica Franco podem ser
consultados nos seguintes endereços internet e foram acessados, pela última vez, em 25
de julho de 2007:
http://www.liberliber.it/biblioteca/f/franco/index.htm
http://www.liberliber.it/biblioteca/m/morra/index.htm
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Série Estudos Medievais 1: Metodologias
8
Características prosódicas
do português arcaico:
questões metodológicas
Profa. Dra. Gladis Massini-Cagliari
Universidade Estadual Paulista/Unesp-Araraquara
Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico/CNPq
Resumo: Este trabalho apresenta os procedimentos metodológicos adotados em dois projetos de
pesquisa que se dedicam ao estudo da Fonologia do Português Arcaico, através da abstração da
estrutura prosódica da língua dos trovadores a partir da estrutura métrica dos poemas que
compuseram.
Palavras-chave: Fonologia; Português Arcaico; Galego-Português; Cantigas medievais galegoportuguesas; Prosódia.
Abstract: This paper presents the methodological procedures adopted by two research projects,
dedicated to studying the Phonology of Archaic Portuguese, by means of abstracting the
prosodic structure of the troubadours’ language from the metrical structure of the poems they
composed.
Keywords: Phonology; Archaic Portuguese; Galician-Portuguese; Galician-Portuguese medieval
cantigas; Prosody.
Introdução
Este trabalho tem como objetivo apresentar os Projetos Características Prosódicas do
Português Arcaico e Fonologia do Português – análise comparativa: Séculos XIII-XIV
e XX-XXI, cuja meta é o estudo de aspectos da Fonologia do Português trovadoresco, a
partir de uma comparação das características lingüísticas das cantigas medievais
profanas com as das religiosas. Esta apresentação está centrada na metodologia de
suporte dos Projetos, baseada na abstração, a partir da estrutura métrica da poesia
remanescente do período, da estrutura prosódica de um momento da língua do qual só
sobreviveram registros escritos (obviamente, não havia tecnologia na época para a
gravação de registros orais), mostrando de que maneira a poesia dos trovadores deixa
entrever importantes informações sobre o “som” da sua fala.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
1
1. Natureza, objetivos e relevância dos Projetos
O objetivo principal dos Projetos de Pesquisa Características Prosódicas do Português
Arcaico e Fonologia do Português – análise comparativa: Séculos XIII-XIV e XX-XXI é
o estudo de aspectos da Fonologia do português medieval, nas suas dimensões
segmental e prosódica, a partir de uma comparação das características lingüísticas das
cantigas medievais profanas com as das religiosas.
A relevância destes Projetos reside, principalmente, na descrição, ao lado de fenômenos
fonológicos segmentais, de fenômenos prosódicos (tais como acento, ritmo,
estruturação silábica) e de processos segmentais condicionados pela estruturação rítmica
da língua, em um período passado, do qual não se tem registros orais - fato inédito em
relação ao tratamento da história do português.
Dentre os temas eleitos dentro do recorte feito ao objeto de estudo, são focalizados
processos rítmicos, verificados a partir da interação entre, por um lado, silabação e
acentuação lexical e, por outro acento secundário e processos segmentais. Estão também
em foco os sistemas vocálico e consonantal do português medieval, além de processos
morfofonológicos, que ocorrem na formação de palavras (derivação) e na flexão.1
2. Escolha do corpus
Como os textos remanescentes em Português Arcaico são todos registrados em um
sistema de escrita de base alfabética, sem qualquer tipo de notação especial para os
fenômenos prosódicos, fica praticamente impossível de serem extraídas informações a
respeito da prosódia do português desse período a partir de textos escritos em prosa.
Já em relação a textos poéticos, ocorre o contrário, principalmente se estes forem
metrificados, isto é, se levarem em conta o número de sílabas e/ou a localização dos
acentos em cada verso. Além de trazerem todas as informações necessárias sobre os
1 Para uma apresentação mais detalhada da metodologia, do corpus e dos resultados já obtidos no
contexto do desenvolvimento destes Projetos, remeto o leitor à minha tese de Livre-Docência – MassiniCagliari (2005).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
2
elementos segmentais (tanto quanto os textos em prosa), a partir da observação de como
o poeta conta as sílabas (poéticas) e localiza os acentos em cada verso, podem ser
inferidos os padrões acentuais e rítmicos da língua na qual os poemas foram compostos.
Por exemplo: da localização dos acentos poéticos, pode-se concluir a localização do
acento nas palavras, ou seja, os padrões de acento lexical da língua, e, da concatenação
desses acentos dentro dos limites de cada verso, os padrões rítmicos da língua em
questão.
Por este motivo, o corpus de base desta pesquisa corresponde a um recorte da lírica
medieval profana e religiosa remanescente, estando constituído da seguinte maneira:
•
as 7 cantigas de amigo de Martim Codax, contidas no Pergaminho Vindel;
•
as 7 cantigas de amor de D. Dinis, contidas no Pergaminho Sharrer;
•
as 310 cantigas de amor contidas no Cancioneiro da Ajuda (em que existem,
com poucas exceções, somente cantigas desse tipo).
•
as 503 cantigas de amigo contidas no Cancioneiro da Biblioteca Nacional de
Lisboa;
•
as 420 Cantigas de Santa Maria de Afonso X.
Falta, portanto, acrescentar à pesquisa a dimensão do discurso satírico, para que se
possa obter um quadro lingüístico mais completo e verossímil da língua dos trovadores
na época medieval do Português. Portanto, em termos de abrangência de corpus, o
objetivo principal é o contato com as cantigas de escárnio e maldizer.
As cantigas serão lidas a partir de edições fac-similadas ou microfilmes, com o apoio de
edições diplomáticas e críticas.
Estão disponíveis a esta pesquisadora as seguintes edições fac-similadas (em papel) das
cantigas profanas:
•
Cancioneiro da Ajuda. Fragmento do Nobiliário do Conde Dom Pedro. Edição
fac-silimada do códice existente na Biblioteca da Ajuda. Lisboa: Edições Távola
Redonda; Instituto Português do Património Arquitectónico e Arqueológico;
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
3
Biblioteca da Ajuda, 1994. Edição realizada com o apoio da Sociedade Lisboa
94 - Capital Européia da Cultura.
•
Cancioneiro da Biblioteca Nacional
(Colocci-Brancuti). Cod. 10991.
Reprodução fac-similada. Lisboa: Biblioteca Nacional/Imprensa Nacional - Casa
da Moeda, 1982.
•
FERREIRA, Manuel Pedro. O Som de Martin Codax - Sobre a dimensão
musical da lírica galego-portuguesa (séculos XII-XIV). Lisboa: UNYSIS,
Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1986. (contém o fac-símile do Pergaminho
Vindel)
•
MONTEAGUDO, H. Martín Codax: cantigas. 2. ed. Vigo: Galáxia, 1998.
(contém o fac-símile do Pergaminho Vindel)
e a seguinte edição fac-similada (em microfilme)2:
•
Cancioneiro Português da Biblioteca Vaticana (Cód. 4803). Reprodução
facsimilada com introdução de L. F. Lindley Cintra. Lisboa: Centro de Estudos
Filológicos/Instituto de Alta Cultura, 1973.
Também estão disponíveis reproduções fotográficas dos slides do Pergaminho Sharrer,
contendo 7 cantigas de amor, com respectiva notação musical, de D. Dinis - obtidos
junto aos Arquivos Nacionais Torre do Tombo, em Lisboa, por esta pesquisadora, em
1996.
Esta pesquisadora também tem acesso aos microfilmes dos quatro códices
remanescentes das Cantigas de Santa Maria:
•
E: El Escorial, Real Monasterio de san Lorenzo, MS B.I.2 (códice dos músicos);
•
T: El Escorial, Real Monasterio de san Lorenzo, MS T.I.1 (códice rico ou códice
das histórias);
•
F: Firenze, Biblioteca Nazionale Centrale, Banco Rari, 20 (códice de Florença);
•
To: Madrid, Biblioteca Nacional, MS 10.069.
2
O microfilme dessa edição do Cancioneiro da Vaticana me foi cedido pela Biblioteca Nacional de
Lisboa, responsável pela sua preparação.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
4
e a duas edições fac-similadas:
•
AFONSO X O SABIO. Cantigas de Santa María: edición facsímile do Códice
de Toledo (To). Biblioteca Nacional de Madrid (Ms. 10.069). Vigo: Consello da
Cultura Galega, Galáxia, 2003.
•
ANGLÉS, H. La música de las Cantigas de Santa María del Rey Alfonso el
sabio: facsímil, transcripción y estudio critico por Higinio Anglés. Barcelona:
Diputación Provincial de Barcelona; Biblioteca Central; Publicaciones de la
Sección de Música, 1943-1964.
3. Exemplificação da metodologia
3.1. A contribuição do estudo da estrutura poética das cantigas medievais para o
conhecimento da estrutura fonológica segmental do Português Arcaico
O estudo das cantigas medievais profanas e religiosas em galego-português pode
contribuir para o esclarecimento de dúvidas quanto à realização fonética de segmentos
específicos, sobretudo a partir da observação da rima e da escansão dos versos em
sílabas poéticas.
Mattos e Silva (1991, p. 32) mostra que:
A documentação lingüística fornecida pelo conjunto da lírica medieval
galego-portuguesa é riquíssima [...]. O fato de serem poemas de estrutura
formal em versos rimados os torna fundamentais, no que concerne a estudos
de história da língua, para o conhecimento de fatos fonéticos desse período,
como sejam, por exemplo, questões referentes aos encontros entre vogais
(hiatos/ditongos), ao timbre vocálico (abertura/fechamento), vogais e
ditongos nasais/orais.
Com relação à diferenciação do timbre das vogais médias, já Silva Neto (1970, p. 413)
apontava para o fato de que, no Português Arcaico, palavras como eu, meu, teu, seu,
deu, Deus e judeu não podiam rimar com a 3a pessoa do singular do pretérito perfeito
dos verbos em -ER (como, por exemplo, perdeu, temeu), por terem as primeiras formas
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
5
um E ainda aberto (ou seja, /E/). Ressalta, quanto à rima, o fato de esta respeitar
escrupulosamente o timbre das vogais. Desta forma, diante de exemplos dessa natureza,
podemos ter absoluta certeza quanto ao timbre da vogal, mesmo que haja mais de um
fonema vocálico representado pelo mesmo grafema (no caso, <e>).
Também a partir da observação da rima das cantigas medievais, é possível perceber que
os infinitivos dos verbos da segunda conjugação (em -ER) jamais rimavam com as
formas do Futuro do Subjuntivo (também escritas em –ER) e com alguns substantivos
como mester e moller, por exemplo, mas rimavam com outros substantivos, como
prazer. Esta subdivisão em grupos de palavras em –ER, possível de ser reconstruída
apenas a partir da observação da rima, aliada à consideração da etimologia das palavras
analisadas, confere a certeza quanto à consideração da forma de base de palavras da
época que apresentam vogais médias anteriores como contendo /e/ ou /E/.
A impossibilidade de rima entre palavras de “grupos” diferentes pode ser observada na
Cantiga de Santa Maria número 5, da qual três estrofes encontram-se reproduzidas
abaixo (a 4a, a 11a e a 13a), a partir da edição de Mettmann (1986, p. 66-72). O esquema
de rima seguido por esta cantiga específica é bbbbbaAA:
(1)
4a estrofe:
Quando ss'ouv' a ir o Emperador, aquel irmão seu,
de que vos ja diss', a ssa moller a Emperadriz o deu,
dizend': «Este meu irmão receb' oi mais por fillo meu,
e vos seede-ll' en logar de madre poren, vos rogu' eu,
e de o castigardes ben non vos seja greu;
en esto me podedes muy grand' amor fazer.»
Quenas coitas deste mundo ben quiser soffrer...
Santa Maria deve sempr'ante si põer.
11a estrofe:
O Conde, poi-la livrou dos vilãos, disse-lle: «Senner,
dizede-m' ora quen sodes ou dond'.» Ela respos: «Moller
sõo mui pobr' e coitada, e de vosso ben ei mester.»
«Par Deus», diss' el Conde, «aqueste rogo farei volonter,
ca mia companneira tal come vos muito quer
que criedes nosso fill' e façedes crecer.»
Quenas coitas deste mundo ben quiser soffrer...
13a estrofe:
Pois que a santa dona o fillo do Conde recebeu,
de o criar muit' apost' e mui ben muito sse trameteu;
mas un irmão que o Cond' avia, mui falss' e sandeu,
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
6
Pediu-lle seu amor; e porque ela mal llo acolleu,
degolou-ll' o menỹo ha noit' e meteu
ll' o cuitelo na mão pola fazer perder.
Quenas coitas deste mundo ben quiser soffrer...
O mesmo tipo de raciocínio e, conseqüentemente, a mesma metodologia servem para
investigar a distinção das vogais médias posteriores, na identificação de quais palavras
tinham na época um /o/ ou um /ç/ na forma de base.
A mesma metodologia é também capaz de dirimir dúvidas quanto à realização fonética
de grafemas consonantais suspeitos de representar um mesmo fonema: se aparecerem na
posição de travamento silábico na sílaba tônica ou em posição pós-tônica (tanto no
ataque como no travamento silábicos), rimando entre si, fica comprovado que
representam o mesmo fonema. Talvez se o nome do jogral Martim Codax, também
grafado Codaz na nota inserida no final da cantiga V882 (cf. Cunha, 1956, p. 13),
tivesse aparecido em posição de rima, não teria dado margem a todas as hipóteses a
respeito da pronúncia da consoante final, feitas por estudiosos anteriores a Cunha
(1956), retomadas por ele às páginas 13-18.
3.2. A contribuição do estudo da estrutura poética das cantigas medievais para o
conhecimento da estrutura prosódica do Português Arcaico: constituição silábica e ritmo
3.2.1. Questões de silabação
O estudo da estrutura poética das cantigas medievais possibilita investigar o status
fonológico de alguns segmentos específicos como simples ou geminados.
Somenzari (2006), que efetuou um mapeamento de todas as possibilidades de
consoantes grafadas como duplas na escrita das cantigas medievais profanas galegoportuguesas, atribui status de geminada a RR intervocálico; as demais ocorrências de
RR (no início de palavras ou no início de sílaba, depois de consoante – ex.: rrem, onrra)
constituem consoantes simples, no nível fonológico. O argumento a favor dessa
hipótese é baseado na variação da representação de uma mesma palavra, entre
RR/YR/IR (ex.: morreu/moyreu), ou em um mesmo paradigma verbal (ex.:
morrer/moiro/moira). Nestes casos, para que a primeira sílaba do verbo morrer
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
7
mantenha inalterada a quantidade de moras, no processo de flexão verbal, é necessário
que o som representado por RR seja considerado geminado (isto é, uma consoante
complexa, cuja distribuição abrange a coda da sílaba anterior e onset em que se realiza
foneticamente), já que na seqüência <yr> a semivogal grafada como i/j/y é
indiscutivelmente moraica. Tal variação é exclusiva das róticas, não podendo ser
verificada no Português Arcaico com relação a nenhuma outra consoante.
Com relação ao status fonológico de /ѭ, ¯/ no Português Arcaico, Somenzari (2006)
também argumenta a favor da consideração de geminadas, porém de natureza diferente
das róticas: as palatais (nasais e laterais) seriam consoantes complexas por natureza, ao
passo que as róticas complexas seriam, a exemplo do que consideram Abaurre e
Sandalo (2003, p. 149) para o Português Brasileiro, “um epifenômeno do encontro de
unidades idênticas”. Com relação ao Português Brasileiro atual, Wetzels (2000, p. 6)
arrola uma série de evidências a favor de considerar as consoantes nasais e laterais
palatais como geminadas:
As soantes palatais /n), ¥/ do Português Brasileiro (PB) se comportam, sob
muitos aspectos, diferentemente das soantes não palatais. Em se tratando da
nasalização da vogal precedente, a nasal-palatal se comporta como se fosse
uma consoante na coda, embora ela ocorra exclusivamente em posição
intervocálica. Acrescentado a isso, as sílabas que precedem uma soante
palatal são sempre leves, como pode ser observado não só na completa
ausência de rimas pesadas precedendo uma soante palatal intervocálica, como
também no algoritmo de silabação, que cria hiato no caso de seqüência de
Vogal + Vogal Alta que precedem /n), ¥/ (moinho, faúlha), enquanto antes de
/m, n, r, l/, os ditongos decrescentes surgem obrigatoriamente (queima,
baila). Além disso, se uma soante palatal ocorre como onset de uma sílaba
em final de palavra, como em alcunha, o acento da palavra nunca cai na
antepenúltima sílaba, embora o acento proparoxítono seja um padrão possível
no PB.
Por compartilharem das mesmas características das consoantes laterais e nasais palatais
do Português Brasileiro, pode-se dizer que, no Português Arcaico, esses segmentos
também constituem consoantes complexas, ou seja, geminadas. No período medieval,
assim como no Português Brasileiro, /¯/ e /¥/ ocorrem exclusivamente em posição
intervocálica, como em uenna (“venha”) e parella (“parelha”), ou em clíticos, como em
lhe; as sílabas que precedem /¯/ e /¥/ são sempre leves, como em mellor (“melhor”) e
manna (“manha”); antes de /¯/ e /¥/ nunca ocorre ditongo, assim como no exemplo
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
8
rainha; e, quando /¯/ e /¥/ estão posicionados no onset da sílaba final da palavra, o
acento nunca cai na antepenúltima, como em parelha, assanha e conselho.
3.2.2. Questões rítmicas
Em relação à estruturação rítmica dos versos, o estabelecimento da grade métrica pode
auxiliar na descrição de fenômenos como alternâncias rítmicas básicas pós-lexicais,
acento secundário, retração do acento, etc. Para se chegar a conclusões quanto às
cadências rítmicas lingüísticas (que são suporte do ritmo poético), são seguidos os
seguintes procedimentos (em 4 etapas):
•
marcação de todos os acentos lexicais (candidatos a acento no nível do verso),
de acordo com as regras estabelecidas em Massini-Cagliari (1995, p. 175-236;
1999, p. 147-181);
•
marcar a última tônica do verso, uma vez que já se tem conhecimento de que
esta sílaba constitui o acento mais forte do verso;
•
explorar as diversas possibilidades de estabelecimento de alternâncias rítmicas
(quando houver);
•
formular hipóteses sobre os limites e as possibilidades de ocorrência de
fenômenos rítmicos (lingüísticos), com base na exploração poética desses
fenômenos.
Como exemplo da aplicação dos procedimentos acima descritos, será analisada a
cantiga 14 (CBN 563), de D. Dinis, na versão de Nunes (1973: vol. II: 14):3
(2)
Pe/sar/ mi/ fez/ meu/ a/mi/go,
a/mi/ga,/ mais/ sei/ eu/ que/ non/
cui/dou/ el/ no/ seu/ co/ra/çon/
de/ mi/ pe/sar,/ ca/ vos/ di/go
que/ an/t'el/ que/ri/a/ mo/rrer/
ca/ mi/ sol/ un/ pe/sar/ fa/zer./
(7)*
(8)
(8)
(7)*
(8)
(8)
2-3-4-5-7
2-4-5-6-8
2-3-5-8
2-4-5-7
2-3-5-8
1-2-3-4-6-8
3 O algarismo entre parênteses, no final de cada verso, corresponde à quantidade de sílabas poéticas do
verso, e os algarismos que o seguem, às sílabas acentuadas no nível lexical (candidatas a acentos poéticos
do verso). A barra inclinada marca a divisão do verso em sílabas poéticas, que são contadas conforme o
estabelecido em Massini-Cagliari (1995, p. 49-53; 1999, p. 52-55). Já o asterisco depois do parêntese
chama a atenção para o fato de que o verso em questão (sempre grave) tem uma sílaba poética a menos do
que os outros versos (agudos) da cantiga, pelo sistema de contagem de sílabas poéticas que o português
utiliza atualmente. Como foi visto em Massini-Cagliari (1995, 1999), na época das cantigas, também esta
sílaba átona final de verso fazia parte da sua estrutura rítmica, porque todas as sílabas deveriam ser
contadas. Isto faz com que todos os versos desta cantiga de D. Dinis tenham a mesma quantidade de
sílabas poéticas. Este fenômeno ficou conhecido na literatura especializada como lei de Mussafia.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
9
Non/ cui/dou/ que/ mi/ pe/sa/sse
do/ que/ fez,/ ca/ sei/ eu/ mui/ ben/
que/ do/ que/ foi/ non/ fô/ra/ ren,/
po/ren/ sei,/ se/ en/ cui/da/sse,
que/ an/t'el/ que/ri/a/ mo/rrer/
ca/ mi/ sol/ un/ pe/sar/ fa/zer./
(7)*
(8)
(8)
(7)*
(8)
(8)
1-3-5-7
1 - 2 -3 -4 -5 -6 -7- 8
2-4-5-62-3-5-7
2-4-5-7
1-2-3-4-6-8
Fe/ze/-o/ por/ en/co/ber/ta,
ca/ sei/ que/ se/ fo/ra/ ma/tar,/
an/te/ que/ a/ mi/ fa/zer/ pe/sar,/
e/ por/ es/to/ sõ/o/ cer/ta
que/ an/t'el/ que/ri/a/ mo/rrer/
ca/ mi/ sol/ un/ pe/sar/ fa/zer./
(7)*
(8)
(9)
(7)*
(8)
(8)
1-4-7
1-2-5-8
1-5-7-9
1-3-5-7
2-4-5-7
1-2-3-4-6-8
Ca/ de/ mo/rrer/ ou/ de/ vi/ver/
sa/b'el/ ca/ x'é/ no/ meu/ po/der./
(8)
(8)
1-4-8
1-2-3-4-6-8
Sabe-se que as proeminências do verso caem, quase sempre, em pontos em que já existe
uma proeminência lexicalmente marcada, ou seja, sobre os acentos no nível da palavra.
Portanto, se isto ocorresse sempre, bastaria localizar os acentos de palavra e,
automaticamente, estaria estabelecida a estrutura métrica, poeticamente falando, do
verso. No entanto, podem existir nas línguas processos que incluem mais de uma
proeminência nos limites de uma palavra (casos de acentuação secundária) ou que
alteram a localização dos acentos lexicais, motivados por fenômenos de eurritmia (casos
de retração de acento, por exemplo).
Na cantiga transcrita acima, pode-se perceber que a distribuição dos acentos nos versos
não se dá de maneira “regular”, com posições fixas para a ocorrência dos acentos
poéticos. Há, porém, um verso (verso 19, primeiro verso da fiinda) em que não há dupla
(ou múltipla) possibilidade de concatenação dos acentos: há apenas uma possibilidade a que considera os acentos primários acentos do verso. A ocorrência desse tipo de verso
mostra que há limites para a “submissão” do ritmo lingüístico com finalidades
estilísticas. Neste caso, como não há outras sílabas candidatas a carregarem acento,
mesmo que secundário, o posicionamento das proeminências (poéticas, sobre os acentos
lexicais – lingüísticos) tem apenas uma possibilidade de ocorrência nessa seqüência
específica:
(3)
(
(
(x)
(x)
Ca
(
(x)
de
(x)
mor
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
x)
x)
(x)
rer
(
(
(x)
ou
(x)
de
(x)
vi
x)
x)
x)
(x)
ver
10
Entretanto, na maioria dos versos desta cantiga de D. Dinis, ao se considerar todos os
acentos lexicais como candidatos a acentos em um nível posterior (e, portanto, acentos
que podem ser aproveitados pelos trovadores com finalidades de construção de um
ritmo poético), há mais de uma possibilidade de se construir uma grade métrica portanto, mais de uma possibilidade de se interpretar os fenômenos rítmicos da língua.
Um exemplo disso é o que ocorre no verso 8: "do que fez, ca sei eu mui bem", em que
são candidatas a proeminências poéticas todas as sílabas do verso, por se tratarem de
monossílabos. Neste caso, considerando-se o princípio universal da eurritmia (HAYES,
1995, p. 372-373), que prega a alternância (não necessariamente binária) como princípio
rítmico universal, as seguintes hipóteses podem ser feitas em relação ao ritmo deste
verso:
(4)
a.
b.
c.
(
(
(x)
(x)
do
(
(
(
(x)
(x)
do
(
(
(
(x)
(x)
do
x)
x)
(x)
fez,
(
(
(x)
ca
(
(x)
que
x)
x)
x)
(x)
fez,
(
(x)
(x)
(x)
ca
(
(x)
que
x)
x)
x)
(x)
fez,
(
(
(
(x)
ca
(
(x)
que
(x)
sei
(
(
(x)
sei
x)
x)
(x)
sei
x)
(x)
eu
x)
(x)
eu
(
(
(x)
eu
(
(x)
mui
x)
x)
x)
(x)
bem
(
(x)
mui
x)
x)
x)
x)
(x)
bem
x)
(x)
mui
x)
x)
x)
x)
(x)
bem
Note-se que, nas três hipóteses formuladas, a terceira (fez) e a última (bem) sílabas
sempre são acentuadas: a última, porque constitui a proeminência principal do verso, e a
terceira, porque constitui a última sílaba que precede a cesura (ou seja, a última sílaba
acentuada no nível lexical dentro do seu domínio). Outra observação importante dá
conta do fato de, destas três hipóteses, a terceira ser a menos provável, uma vez que
haveria um "clash" (colisão acentual) entre a sétima e a oitava sílaba, que teria de ser
resolvido em um nível posterior. Além disso, entre as duas primeiras hipóteses, pelos
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
11
critérios de eurritmia, a primeira seria a mais provável, dado o fato de as suas
proeminências estarem distribuídas de maneira mais harmônica, com uma boa
distribuição de picos e vales entre elas, em todos os níveis.
Por outro lado, o verso 13, "Feze-o por encoberta", coloca outra questão: ao considerar
os acentos lexicais dos itens envolvidos na composição deste verso, apenas a primeira, a
quarta e a sétima sílaba são candidatas a proeminências em um nível posterior - e,
portanto, a proeminências poéticas. Tomando-se apenas estes acentos como
proeminências poéticas, a estrutura métrica deste verso é a seguinte:
(5)
(
(x
(x
(x
Fe
)
)
.)
ze
-o
(
(x)
(x)
por
(
en
co
x
x
x
(x
ber
)
)
)
.)
ta
Por outro lado, se considerarmos as evidências apontadas por Massini-Cagliari (1995, p.
217-218) de que, em algumas circunstâncias, até mesmo artigos podem receber a
proeminência principal do verso, nas cantigas de amigo, então pode ser formulada a
hipótese de que o pronome clítico "o", preenchedor da terceira sílaba poética do verso
em questão, seria portador de acento no nível lexical e que poderia constituir uma
proeminência em um nível posterior. Além disso, se considerarmos que algumas sílabas
acentuadas no nível lexical (sobretudo quando se tratar de monossílabos) podem não o
ser em um nível posterior, pode ser formulada a hipótese de que poderia estar
ocorrendo, no verso em questão, uma alternância trocaica, que tomaria por não
acentuada a sílaba "por" e por acentuada, em um nível secundário, a sílaba "en". Aceita
esta hipótese, a estrutura métrica deste verso seria:
(6)
(
(x
(x
(x
(x
Fe
)
)
)
.)
ze
(
(
(x
(x)
-o
)
(x)
por
x
(x
(x
en
)
)
.)
co
x
x
(x
(x
(x
ber
)
)
)
)
.)
ta
Assim, é possível perceber que, assim como mostram Archangeli e Langedoen (1997, p.
30) para o inglês, o ritmo fonético das trovas em galego-português também baseia-se na
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
12
coincidência (“matches”) ou não-coincidência (“mismatches”) entre as proeminências
poéticas e lingüísticas:
the prototypical relation between poetic meter and spoken rhythm is that
strong matches strong and weak matches weak. Studying the matches and
mismatches between the strong or weak positions in poetic meter and the
strong or weak positions in a nonpoetic rendition of a line of poetry leads to a
very precise characterization of the poet’s ‘voice’.
Reside justamente na investigação das coincidências ou não-coincidências entre
proeminências poéticas e lingüísticas o cerne da metodologia aqui proposta.
Considerações finais
As propostas de pesquisa que acabo de apresentar são resultado do desenvolvimento de
dois projetos de Produtividade em Pesquisa do CNPq:
o Projeto “Características
Prosódicas do Português Arcaico” (Processo 300690/2003-7), concluído em 28 de
fevereiro de 2007; e o Projeto “Fonologia do Português – análise comparativa: Séculos
XIII-XIV e XX-XXI” (Processo 306845/2006-7), que dá continuidade ao anterior, tendo
sido iniciado em 01 de março de 2007, devendo ser finalizado em 28 de fevereiro de
2010. Ambos os projetos dedicam-se a testar as metodologias de estudo da Fonologia
do português no seu período arcaico, perscrutando os “sons” dos trovadores, que gritam
por trás do véu da escrita, revelados pela estrutura dos seus poemas. Os resultados
alcançados até o momento, dos quais alguns foram apresentados resumidamente ao
longo deste trabalho, comprovam o caráter eficaz e promissor dos procedimentos
metodológicos que vêm sendo adotados.
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jul./dez. 2000.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
15
Estudos interdisciplinares
sobre o trovadorismo galaico-português
Profa. Dra. Lênia Márcia Mongelli
Universidade de São Paulo/USP
Associação Brasileira de Estudos Medievais/Abrem
Resumo: A leitura da poesia medieval galego-portuguesa, recolhida em apenas três manuscritos (um
contemporâneo dos autores e dois outros copiados no século XVI), implica várias dificuldades: o estado
danificado dos testemunhos, as várias lições dos críticos no estabelecimento dos textos, as divergências
na compreensão de significados, a natureza do objeto que se tem em mãos – um poema para ser cantado.
Tudo isso obriga o leitor a começar seu trabalho pela consulta às edições fac-similadas dos Cancioneiros
e pela comparação entre si das possíveis versões de uma mesma cantiga. Só então será legítimo enveredar
para a interpretação pessoal, que deve estar solidamente sustentada por argumentos científicos e por
bibliografia atualizada.
Palavras-chave: Lírica medieval galego-portuguesa; Metodologia crítica de poesia medieval; Estudo de
texto; Literatura comparada.
Abstract: Reading the Galician-Portuguese medieval poetry, collected in only three manuscripts (one
contemporary with the authors and the other two copied on the 16th century) implies overcoming several
stumbling blocks: the damaged state in which the documents themselves survived, the various readings
that have been proposed by the critical editions, the divergences toward meanings, the nature of the object
being considered – a poem intended to be sung. All of which forces the reader, first of all, to check the
version(s) registered in the facsimile editions of the Cancioneiros, and to compare between themselves
the proposed editions existent for the poem(s) under scrutiny. This preliminary work having been done, it
will be legitimate to venture into a personal interpretation solidly backed by scientific arguments and upto-date bibliography.
Key-words: Medieval Galician-Portuguese lyric; Critical methodology of medieval poetry; Texts studies;
Comparative literature.
Reflexões iniciais
Trabalhar com a lírica trovadoresca galego-portuguesa, como faço no momento – ou
seja, aquela que se produziu principalmente a Noroeste da Ibéria entre o final do século
XII e o início do XIV - continua a ser tema instigante. No mínimo, três razões justificam
o interesse nunca esgotado: 1) a questão paleográfica, ecdótica e filológica: como se
sabe, esse material chegou até nós em três grandes testemunhos, um contemporâneo aos
trovadores, o Cancioneiro da Ajuda, e os outros dois em cópias italianas do século XVI
– Cancioneiro da Biblioteca Nacional e Cancioneiro da Vaticana - feitas a partir de um
original perdido, sendo B o mais completo dos três, com um total de 1.560 cantigas. A
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
1
par dessas três fontes fundamentais, ainda podemos arrolar o Cancioneiro da Bancroft
Library, que é cópia do Cancioneiro da Vaticana1, o Pergaminho Vindel e o
Pergaminho Sharrer, ambos fragmentos contendo, aquele, seis cantigas musicadas de
Martim Codax (ativo em meados do século XIII)2 e este, também seis cantigas
musicadas de D. Dinis (1261-1325)3. Com as Cantigas de Santa Maria, de Afonso X o
Sábio (1221-1284)4, completa-se o quadro lírico disponível em galego-português. Como
os Cancioneiros estão publicados em edição fac-similada, é possível verificar o grave
problema que representa para os pesquisadores o “estabelecimento do texto”, com
“lições” tão divergentes entre si e às vezes tão desviadas dos originais, que se corre o
risco de arquitetar uma interpretação baseada em falácias ou em comprometedores
“desvios” dos códices5; 2) a segunda questão nos remete ao comparatismo crítico,
literário e historiográfico: o trovadorismo galego-português decorre do provençal aquele praticado pelos trovadores ocitânicos no sul da França, entre os séculos XI e XIII
– e a ele deve os seus grandes temas e o seu sistema normativo, não há como negá-lo6.
Contudo, o lugar-comum dessa constatação, que só bem recentemente vem sendo
amplamente reexaminado, tem impedido pensar em alguns aspectos elementares e
decisivos para melhor compreender a densidade do lirismo ibérico: a) o apogeu do
trovadorismo galego-português dá-se quase um século após o provençal, espaço de cem
anos no qual ocorreram grandes transformações sociais e culturais; b) esse momento,
que é o do século XIII – entre 1250 e 1300 intensifica-se a produção das cantigas
peninsulares – para muitos configura já uma espécie de humanismo proto-renascentista,
pela difusão das línguas vernáculas, pela intensa especulação laica nas Universidades,
pela repercussão do modelo escolástico e pelo recrudescimento das leituras aristotélicas.
Como é de supor, os trovadores, homens cultos vivendo nas cortes régias e/ou
senhoriais (VIEIRA, 1999), exercendo, a mando dos magnatas, as atividades lúdicas do
canto, não poderiam estar alheios a tão profundas mudanças; 3) a terceira e última
questão é de matiz estético: o formalismo da poesia trovadoresca, presa a rígidos
códigos de estrofação, de rimas, de metrificação, de acentuação silábica, de seleção
temática e de adequação à música instrumental (pois era feita para o canto), tem levado
1
Informações bastante substanciais sobre os Cancioneiros podem ser encontradas em Dicionário da
Literatura medieval Galega e Portuguesa (LANCIANI; TAVANI, 1993).
2
Editadas por M. P. Ferreira (1986). Editadas, ainda, por C. F. da Cunha (1956).
3
Recentemente editadas por M. P. Ferreira (2005).
4
Editadas por W. Mettmann (1986).
5
Cf. V. G. Orduna (2005), principalmente a Parte I, "Los fundamentos".
6
Cf., inclusive por facilidade de acesso, S. Spina (1991).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
2
a um juízo de valor que vê esse “espartilhamento” da “inspiração” como limitador da
qualidade do texto. Uma vez que as artes poéticas do tempo fundamentam a
normatividade (ARTE, 1999; FARAL, 1962), parece não haver saída para o leitor senão
mergulhar nas especificidades genológicas (a decantada distinção entre cantigas de
amor, de amigo e de escárnio ou maldizer, além do lirismo religioso, submisso à mesma
regulamentação) ou na bastante restrita diversificação temática, que gira à volta do
“amor cortês”, considerado sempre em paralelo à fin’amors provençal.
Os três aspectos – o filológico, o comparatista e o estético – indispensáveis ao bom
conhecimento dos fremosos cantos – podem conduzir a desastrosos resultados
hermenêuticos se a perspectiva metodológica adotada não levar em conta a inserção do
texto em seu tempo – um dos problemas pluridimensionais mais debatido nos últimos
dez anos (MARIMÓN LLORCA, 1999), cristalizado no sacrossanto pecado do
anacronismo. Avaliar um texto pela óptica de quem o compôs é dos caminhos seguros
para desvirtuá-lo o menos possível. E com relação aos três motivos que sustentam entre
nós o interesse acadêmico pelo Trovadorismo, o erro de perspectiva – se assim podemos
dizer – tem sido sistematicamente cometido: por exemplo, quanto à rigidez formal,
quase sempre se conclui pela “falta de originalidade” dos bardos medievais, que
passaram 150 anos repetindo os mesmos motivos e modelos; ou, pior, pergunta-se
mecanicamente pelas relações iterativas entre “forma” e “conteúdo”, freqüentemente
examinadas em separado uma da outra; ou, ainda, considera-se o Amor ibérico muito
“inferior” àquele tratado nas cansó dos provençais. Se, no início do século passado,
nomes importantes como Carolina Michaëlis de Vasconcelos, Manuel Rodrigues Lapa,
José Joaquim Nunes, Luciana Stegagno Picchio, Celso Cunha e outros, do mesmo
quilate, que tantos e tão relevantes serviços prestaram à edição crítica desses
cancioneiros, fizeram julgamentos que devem ser matizados quanto a seu verdadeiro
alcance e significação, hoje, depois dos intensos estudos de filólogos portugueses,
galegos, espanhóis, italianos e brasileiros, não cabe continuar repetindo os mesmos
clichês, quer detratores, quer valorativos. É preciso voltar aos textos dos trovadores
agora “com olhos de ver”, munidos dos instrumentais – inclusive os fornecidos pela
internet7 – que a crítica moderna tem colocado a nosso dispor. Antes de ampliar essa
proposta, como faremos a seguir, enfatize-se: não é possível ler bem os trovadores, em
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
3
profundidade e com menor chance de deslizes, sem recorrer aos manuscritos. Mesmo
que a edição consultada seja reconhecidamente confiável, as “variantes” de leitura só
podem ser corrigidas – ou não – pelo documento original.
Esse alerta entronca numa linha de pesquisa que tem mobilizado lingüistas
(principalmente), historiadores, filósofos e sociólogos medievalistas, todos atentos à
pergunta chave: como ler um texto da Idade Média?8 Até que ponto aquilo que
interpretamos é realmente o que o texto diz ou é uma “ficção de realidade”, colocando
em zonas limítrofes a História e a Literatura9, dentre outras intersecções? Ao invés de
restituir o discurso do homem medieval, não estaremos superpondo a ele o nosso
próprio discurso científico moderno? O que sabemos da recepção aos textos por parte
do público contemporâneo aos séculos XII e XIII, numa relação obra-leitor que a
Retórica tem proposto, desde Aristóteles, como decisiva a uma determinada concepção
do real (MARIMÓN LLORCA, 1995)? Para ilustrar com mais propriedade essas
ponderações, tempos atrás esteve na Universidade de São Paulo (USP) a Dra. Régine Le
Jan10, especialista no período da Alta Idade Média, e sua palestra “Les femmes, le
vengeance et la construction des récits au haut Moyen Âge” girou em torno de um
interessante problema, muito proximamente afim deste que venho abordando: para
estudar o tema da “mulher vingadora”, baseado em um relato que circulou no BaixoReno à roda do ano Mil, tendo por protagonista a nobre Adèle de Hamaland, Régine Le
Jan serviu-se de três diferentes narrativas, escritas, as duas primeira, por Thietmar de
Mersebourg (entre 1012 e 1018) e por Alpert de Metz (entre 1024 e 1025), e a última,
baseada numa crônica sobre Meinwerk de Paderborn, filho de Adèle e seu primeiro
marido (entre 1155 e 1165); a particularidade documental é que as duas primeiras são
contemporâneas aos acontecimentos e a última, posterior a eles em um século e meio.
Além disso, Thietmar é um nobre saxão, bispo imperial; Alpert é um monge lotaríngio;
o suposto autor da terceira é um monge residente em Paderbonr. O resultado da análise
é que a imagem de Adèle como “mulher vingadora” varia tanto quantos são os relatos,
os interesses políticos envolvidos, a óptica dos narradores (saxão, lotaríngio e
7
Cf., por exemplo, o Banco de dados da Lírica profana galego-portuguesa, cujo acesso pressupõe o
cadastramento do usuário: www.cirp.es
8
Aliás, esse é o título de uma obra lançada no Brasil há seis anos, de M. S. Cavalcante Schuback (2000).
9
Sobre essa relação, há capítulos instigantes em H. White (1994; 1995).
10
Veio a convite do LEME (Laboratório de Estudos Medievais), grupo de estudos da USP e da
UNICAMP. Um dos mentores do grupo é o Prof. Dr. Marcelo Cândido da Silva, que gentilmente me
cedeu o texto da palestra da Dra. Le Jan. Ficam aqui meus agradecimentos.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
4
“conterrâneo”)
e algo como uma weltanshauung
temporal. Ao fim e ao cabo,
perguntava-se a Dra. Le Jan com acerto: afinal, quem foi Adèle? Qual dos retratos é o
verdadeiro? A essa pergunta, envolta em brumas favorecidas pelos documentos, só se
pode dar resposta aproximada. É a dose de “ficção” com que temos de lidar. Daí o zelo
redobrado, imperioso em se tratando dos Cancioneiros dos trovadores, os quais são – é
bom não perder de vista – ou fragmentários ou cópias tardias.
Na continuidade dessas ponderações e para retomar aqueles três aspectos que, se mal
manipulados, podem emperrar a leitura das cantigas – o filológico, o comparatista e o
estético – há dois outros pontos, extensão deles, que podem ajudar a iluminá-los: 1)
essas cantigas trovadorescas, chamadas “profanas” em oposição ao cancioneiro
“mariano” de Afonso X – cheias de erotismo, de jogos equívocos, de subterfúgios e de
ambigüidades – foram compostas dentro da e por uma sociedade religiosa, cristã, que
tem a Bíblia como paradigma e a Igreja como diretriz espiritual, atuando também como
orientadora comportamental pelo menos desde o século V. Por isso a “tensão dos
contrários” – quase regra sociológica – marca tão singularmente o perfil histórico e
cultural do medievo (FRANCO JÚNIOR, 1999), sempre cindido entre vida exterior e
vida interior, entre o corpo que vacila e o espírito que resiste; 2) se acusamos os
trovadores ibéricos de “massificados”, de inseridos em um grupo onde mal se
distinguem individualidades – quase sempre reconhecidas antes por sua categoria social
que por sua “inventividade” poética – pergunta-se até que ponto se pode falar em
“identidade” ou em “indivíduo” na Idade Média, sem ferir um modo de constituição que
é essencialmente grupal e homens que só se reconhecem plenamente como “filhos de
Deus”?
Voltando ao item 1, quero lembrar aqui uma obra recente de Michel Zink, historiador
especializado na literatura medieval francesa, Poésie et conversion au Moyen Âge
(2003), e que há muito vem se desdobrando para tentar entender a complexa
manifestação da “subjetividade” no medievo11. Justificando o título acima, o autor diz
que por conversión podemos entender “o caminho da alma para Deus”, mais ou menos
nos moldes da célebre Demanda do Santo Graal e do percurso salvífico dos cavaleiros
em direção ao Santo Vaso. Nessa via de “conversão” é que a “poesia” foi aos poucos se
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
5
firmando, ou melhor dizendo, se transubstanciando, herdeira que era do paganismo e,
portanto, rechaçada pela Igreja. Recorde-se a importância do mito de Orfeu para a
Antigüidade clássica, “poeta” cujo “canto” não só tinha o dom de aplacar a Natureza
como lhe permitiu adentrar o inviolável reino dos mortos, atrás de sua Eurídice – feito
heróico que se deveu, é preciso assinalar, à poderosa suavidade de seu canto (CIVITA,
1976). Ou seja, a melodia de Orfeu chegou até os deuses, soberba inaceitável mesmo
para Platão, que, como é sabido, condenou severamente os poetas, chamados de
“forjadores dos falsos mitos”, no Livro I da República: “(...) oferecer com palavras uma
imagem falsa da natureza dos deuses e dos homens, como um pintor cujo retrato não
apresentasse a menor semelhança com o modelo” (PLATÃO, [s.d.], p. 80) seria aliciar
pela sedução os jovens cidadãos atenienses e colocar em risco a estabilidade das
cidades-estados gregas.
Contudo, o Cristianismo teve de se haver com a inexcedível grandeza dos antigos e a
modelar essência de sua inspiração poética, quando menos porque foram seus
parâmetros teóricos – mantidos pelas disciplinas do trivium e do quadrivium – que,
sucessivamente reformulados, mas essencialmente os mesmos, regeram o discurso
religioso e laico ao longo da Idade Média, irrompendo pelo neoclassicismo adentro
(MONGELLI, 1999). Não é à toa que a voz cheia de autoridade de Santo Agostinho
defende, nas Confissões, a ”palavra criadora”, capaz de “inventar a realidade”, porque
foi assim que Deus fez o mundo: “Todas estas criaturas Vos louvam como a Criador de
tudo. Mas, de que modo as fazeis? Como fizestes, meu Deus, o céu e a terra? (...) É
necessário concluir que falastes e os seres foram criados. Criaste-los pela vossa
palavra!” (AGOSTINHO, 1981, p. 297). O apoio de Agostinho, claro, é bíblico: “Pela
palavra do Senhor foram feitos os céus. E pelo sopro de sua boca todo o seu exército.”
“Porque Ele disse e tudo foi feito; Ele ordenou e tudo existiu” (Salmos, XXXII, 6 e 9).
Estava aberta a porta que, ao longo dos séculos, elevaria paulatinamente o estatuto dos
poetas até chegar à irrupção dos trovadores com seu erotismo novidadeiro.
Passemos agora ao item 2, para tentar entender o modo de criação dos trovadores, sua
fonte de “inspiração” e sua “autonomia” artesanal. Por que esses primeiros poetas em
11
Sua obra mais conhecida sobre o assunto é La subjectivité littéraire autour du siècle de saint Louis
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
6
galego-português deveriam compor fora de um “modelo”, se a excelência da produção
literária até pelo menos o século XVIII pressupõe justamente sua maior ou menor
adequação à norma? Basta uma espiada nas cantigas de escárnio e maldizer para
constatar que grande parte das sátiras são dirigidas a determinados jograis cuja
pretensão a bardos esbarra no desconhecimento das regras de ben trobar. Não se fala,
portanto, em “inspiração” – como a entenderam os escritores oitocentistas – mas em
Arte que é antes de tudo “técnica” (ECO, 1988), conforme a primeira etapa de uma
composição retórica: a inventio significa escolher um determinado tema e adequá-lo a
determinada linguagem (CÍCERO, 1976, p. 18-19). Quanto mais perfeita e mais sem
brechas esta “adaptação”, tanto melhor o texto.
O assunto é tão instigante – talvez porque estranho a nossos conceitos modernos de
liberdade criadora – que a Seção Portuguesa da Associação Hispânica de Literatura
Medieval dedicou a ele todo um congresso, cujas Atas têm por título justamente Modelo
(LARANJINHA; MIRANDA, 2005). Nessa obra, os participantes fizeram-se as mais
variadas perguntas: que tipo de “modelo” Vergílio representou para o lirismo ocidental?
Quais os “modelos” para a correspondência entre Abelardo e Heloísa? De que “modelo”
se serviram os textos medievais para traçar o retrato de Afonso Henriques, primeiro rei
de Portugal? Qual o “modelo” subjacente ao herói impecável que foi Palmeirim de
Inglaterra? E as cantigas de amigo, que tradição deu a elas um “modelo”? O discurso
hagiográfico tinha quais “modelos”? Como se observa, todos partem do princípio de
que o homem medieval lidava, sim, com “modelos” para entender a realidade12. Foi a
tecla em que bateram todos os Padres da Igreja ao defender o “modelo” bíblico. Afinal,
as duas cidades agostinianas, a celeste e a terrestre, coexistem por espelhamento13.
Saindo do âmbito da história literária para o da história social e cultural, cito aqui outro
livro recente, que também se propõe a examinar temas atinentes a esta emergência ou
não de um “eu” na Idade Média, por trás de "modelos". Trata-se de L’individu au
Moyen Âge, coletânea de artigos reunidos por Brigitte Miriam Bedos-Rezak e
Dominique Iogna-Prat (2005) em torno de três grandes eixos: “As marcas da
(1985).
12
O texto de abertura da obra citada na nota anterior intitula-se “Modelo e imitação”, e seu autor, A.
Nascimento, discorre sobre a permanência destes dois conceitos ao longo da História, sempre
relativizados por circunstâncias contextuais.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
7
individuação”, “Sujeitos de Discurso” e “Indivíduo e instituição”. De diferentes
perspectivas – filosófica, psicanalítica, biográfica, lingüística, artística, semiótica etc. –
todos concluem pela lenta, mas inegável autonomização do sujeito, cuja representação
passa da “revelação” à “construção” do “eu”, apoiada pela fecundidade do subjetivismo
cristão. Todos menos um, Joseph Morsel, que no texto “A construção social das
identidades na aristocracia franconiana nos séculos XIV e XV. Individuação ou
identificação?” baseia-se em estruturas discursivas para dizer que as formas identitárias
na Idade Média remetem às relações sociais e, portanto, à “identificação” coletiva. Para
Morsel, no medievo a “pessoa” é persona, é entidade grupal (BEDOS-REZAK;
IOGNA-PRAT, 2005, p. 79-99).
A longa volta que demos – na mira do estudante brasileiro – visa a pontuar algumas
premissas para situar a lírica galego-portuguesa quanto ao "estado atual" dos estudos
críticos a ela dedicados: 1) é preciso avançar para além das amarras tantas vezes
representadas pelo viés filológico, ecdótico, paleográfico, comparatista, genológico e
formalista; 2) é preciso inserir as cantigas no contexto mais amplo da Idade Média não
só Ibérica, mas Ocidental, do ângulo de suas grandes estruturas, como por exemplo, a
clerical; 3) é preciso lembrar – e isto é indispensável – que, no medievo, tudo o que é
profano emerge no sagrado, de uma forma ou de outra.
A título de exemplo
Aqui se põe a questão do método. Antes de abordá-lo(s), convenhamos: se nosso ponto
de partida para conhecimento da matéria for uma edição atualizada das cantigas, como a
coordenada por Mercedes Brea (1996), que apontou minuciosamente os testemunhos de
que se serviu, a genealogia dos textos, o canon normativo, a ortografia e os diacríticos
utilizados, além de proceder com rigor à restitutio e à emendatio dos poemas, acrescidas
do aparato de variantes e de numerosas notas textuais – convenhamos que o trabalho
analítico se beneficia dessas bases sólidas, propiciando comentar diferenças,
discordâncias e oposições, em diálogo vivo com a tradição dos estudos trovadorescos.
Assinale-se que a comodidade não nos exime da árdua tarefa de verificação, mormente
13
V., de S. AGOSTINHO, a parte II de A cidade de Deus (1990), intitulada, nesta edição brasileira, “A
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
8
quando a intenção final é caminhar pelo terreno sempre frágil e tradicionalmente
rejeitado da interpretação14, com vistas a cumprir os desígnios de qualquer texto
literário de qualidade, quais sejam, ocultar-se sob camadas espessas de significantes
metafóricos, analógicos, simbólicos, míticos, conforme o cursus prosódico em que foi
concebido.
Quão variados podem ser os métodos de abordagem, recorde-se o estudo de R.
Jakobson (1970) de uma cantiga de Martin Codax do ponto de vista da tessitura
fonológica ou o mesmo trovador sendo tratado a partir de sua dimensão musical
(FERREIRA, 1986; CUNHA, 1956), ou, ainda, a linha histórico-sociológica das
pesquisas de Antônio Resende de Oliveira (1994)15 e de Yara Frateschi Vieira (1999),
sem contar os numerosos trabalhos na esfera da Lingüística16 (morfossintáticos, lexicais,
semânticos), suscitados por textos da estirpe da famosa “cantiga de guarvaia”17, ou até
da Psicanálise, como pelo poema único de Mendinho, “Sedia-m’ eu na ermida de San
Simión”18. A lista poderia tornar-se infindável, comprovando que a escolha do método
analítico-interpretativo está umbilicalmente ligado à natureza interna, à estrutura íntima
do texto-objeto de que se parte e do eventual recorte que nele se faça. Ele é que
determina a(s) linha(s) de pesquisa que o tornará(ão) menos opaco. O contrário (do
método para o texto) pode ter resultados desastrosos.
Numa obra admirável escrita em colaboração, e pelo viés da Sociologia, Pierre Bordieu
examina densas questões atinentes ao essencial do que vimos tratando, insistindo na
idéia de que “o real só responde quando questionado”; e para que ele melhor fale é
necessário despirmo-nos das “pré-noções”, lembrando-nos de que qualquer modelo
teórico é simultaneamente “construção” – porque nos ajuda a caminhar, inovando, e
“ruptura” – porque corrige erros do passado (BOURDIEU; CHAMBOREDON;
PASSERON, 2004), em rica interação dialética. E ainda: para uma “formação
epistemológica de base”, é muito saudável a “convergência de disciplinas”, desde que
cidade de Deus contra os pagãos”.
14
Conforme Germán Orduna (2005, p. 56), a Filologia ainda não se livrou da máxima de K. Lachmann,
recensio sine interpretatione, com seu verdadeiro horror ao iudicium e obsessão pela objetividade –
pressupostos há muito matizados pela Lingüística. V. “La edición crítica como arte ecdótico II. I.
Interpretatio – Iudicium”.
15
Ainda do ângulo sociológico e a título de exemplo, v. João Dionísio (1994).
16
Cite-se, no Brasil, G. Massini-Cagliari (1999).
17
Dentre tantos exemplos possíveis, J. Horrent (1955).
18
Vários artigos foram a ele dedicados em O mar das cantigas (ACTAS, 1997).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
9
manipuladas com o devido rigor e em atenção a um estreito “controle semântico”, que
respeite
a
especificidade
das
palavras
em
seu
contexto
(BOURDIEU;
CHAMBOREDON; PASSERON, 2004, p. 287 e 160, respectivamente).
Podemos ilustrar esse raciocínio com Rip Cohen, da John Hopkins University –
estudioso das cantigas de amigo, e Federico Corriente, da Universidade de Zaragoza –
conhecido arabista, cuja tarefa crítica pode ser aqui lembrada em um ensaio que coloca
em prática orientações teóricas indicativas de reflexões similares. Eis a lição que
propuseram para a fixação e interpretação do poema “Eu velida non dormia”, de Pedr’
Eanes Solaz (COHEN; CORRIENTE, 2002), trovador ativo no século XIII
(OLIVEIRA, 1994):
Eu velida non dormia
+ Lelia doura+
E meu amigo venia
+Edoy lelia doura+
Non dormia e cuidava
Lelia doura
E meu amigo chegava
Edoy lelia doura
O meu amigo venia
Lelia doura
E d’amor tan ben dizia
Edoy lelia doura
O meu amigo chegava
Lelia doura
E d’amor tan ben cantava
Edoy lelia doura
Muito desejei, amigo,
Lelia doura
Que vos tevesse comigo
Edoy lelia doura
Muito desejei, amado,
Lelia doura
Que vos tevess’ a meu lado
Edoy lelia doura
+Leli, leli+, par Deus, + leli+
Lelia doura
Ben sei eu que<n> non diz +leli+
Edoy lelia doura
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
10
Ben sei eu que<n> non diz +leli+
Lelia doura
Demo x’ é quen non diz +leli+
Edoy lelia doura
Transcendendo o evidente hermetismo do refrão, há várias outras divergências entre os
críticos não só quanto ao sentido dele, mas ainda com relação à própria transcrição do
texto: tanto J. J. Nunes como M. Brea, por exemplo, mantêm lelia ao final do verso 31,
seguindo a fonte em CV19. Se considerarmos a cantiga dividida em três partes, do ponto
de vista da “narrativa” oculta de um caso amoroso – estrofes I-IV (a moça espera pelo
namorado, cantando e sofrendo); estrofes V-VI (o namorado chega e ela agrada-o com
expressões amorosas); e estrofes VII-VIII (a moça diz leli três vezes e afirma conhecer
alguém que não pode fazê-lo) – conforme a sugestão dos dois críticos20, tal proposta
colide com Carolina Michaëlis de Vasconcelos, que vê disjunção entre a “primeira parte”
e o resto, bem como com Nunes, que toma por excrescentes as estrofes VII e VIII.
Para se contrapor a tais dificuldades, a dupla segue um amplo caminho, cuja finalidade é
lançar nova luz sobre o refrão, o qual sintetiza, como é de sua índole, o sentido da
cantiga. Cuidadosos em não tomá-la isoladamente, quer em relação ao próprio Solaz,
quer ao contexto ibérico (onde apontam numerosas ocorrências de teor análogo), vão a
outro texto do trovador, “Dizia la ben talhada”, que nos Cancioneiros precede o anterior e
com ele dialoga:
Dizia la ben talhada
“Agor’a viss’ eu penada
Ond’ eu amor ei!”
A ben talhada dizia:
“Penad’ a viss’ eu un dia
Ond’ eu amor ei!”
Ca, se a viss’ eu penada,
Non seria tan coitada
Ond’ eu amor ei!
Penada se a eu visse,
Non á mal que eu sentisse
Ond’ eu amor ei!
19
A partir daqui, comentam-se dados fornecidos pelo artigo citado de Cohen e Corriente (2002).
Esta divisão tem por suporte, inclusive, as rimas: em I-IV, rimas ia - ava; em V-VI, rimas igo - ado;
em VII-VIII, a rima é a palavra leli ( p. 21).
20
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
11
Quen lh’ oje por mi dissesse
Que non tardass’ e veesse
Ond’ eu amor ei!
Quen lh’ oje por mi rogasse
Que non tardass’ e chegasse
Ond’ eu amor ei!
Atendo-nos apenas ao que importa ao assunto em pauta21, esta leitura faz uma correção
fundamental a Nunes, de que resulta a proposta de decifração, na primeira cantiga, do
lelia doura: neste segundo poema, nos versos 2, 5, 7 e 10, os articulistas vêem uma
mulher, traduzida pelo pronome a, objeto direto de visse, divergindo de Nunes, que em
2 e 5 suprime o pronome, e em 7 e 10, transcreve-o pelo masculino o. Enquanto a opção
pelo masculino compromete a clareza do poema, o feminino, ao contrário, cria uma
situação dramática nada incomum ao universo trovadoresco: o ciúme, justificando a
imprecação Penad’ a viss’ eu un dia, que a moça lança sobre possível rival, cuja saída
de cena acabaria com seus males. Eis um caso de emendatio que conduz a distinta
interpretação.
O tema, assim concebido, parece aos dois críticos referendar sua repetição em lelia
doura – cujo sentido final é também expressão de júbilo contra “a outra”, em disputa
amorosa. O refrão é um arabismo e vem analisado palavra por palavra: “lelia represents
Andalusi Arabic líya, phonetically /leia/, an alomorph of Arabic li, ‘for me’, ‘to me’
(preposition with first personal pronominal suffix); doura represents Andalusi Arabic
ddáwra, ‘turn’, from the Semitic root dwr; líya ddáwra thus means ‘to me (belongs) the
turn’”.
Quanto a edoy, “we propose that edoy is not Arabic but represents Latin et hodie in
early Iberian Romance (not Galician-Portuguese, where we have e oje”, o que permitiria
ler edoy lelia doura como ed oi…. líya ddáwra – “a bilingual verse, as in so many
kharajat (karjas)”. Finalmente, leli, nas estrofes VII e VIII, “represents Arabic layli”,
sendo que “ya layli is a common exclamation in Arabic poetry, meaning ‘what kind of
nights I’ve had’". Orientando-se por esses raciocínios filológicos, etimológicos e
21
E deixando de lado discussões interessantes como a que se estabelece em torno do pronome “onde” –
um dos “nós” da cantiga – conforme exposto na nota 8 do referido artigo.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
12
comparativos, a cantiga é vertida para o inglês com a seguinte leitura, que a irmana à
precedente:
I, lovely girl, was not sleeping
(It’s my turn)
And my boyfriend was coming
(And today it’s my turn).
………………………………
I really wanted, friend,
(It’s my turn)
To have you with me
(And today it’s my turn)
………………………………
My night! My night! By God, my night!
(It’s my turn)
I know well who won’t say ‘my night!’
(And today it’s my tur).
Tendo em vista que Pedr’ Eanes Solaz poetou na corte de Afonso X, o Sábio, “we can
infer that the poem may well have been composed and performed in Toledo, which was
still a bilingual city, and one where Arabic (and Hebrew) poetry was being composed,
performed and copied”. Daí, “the linguistic question and the cultural, historical and
geographic setting lead us to larger interpretative problems: are we dealing with a
Christian or an Islamic context? How ought we to view the verse ed oi lelia doura in the
context of studies of the kharajat?”
Esta abertura de perspectivas para vertentes histórico-culturais, examinadas com riqueza
de detalhes aqui obrigatoriamente postos de lado, aponta uma conclusão do agrado dos
dois críticos: o tema central embutido na cantiga é típico do folclore islâmico –
“jealousy between several women belonging to one man as slaves or entitled to his love
as legal wives, which led to rivalry, insults or even acts of aggression, and to attempts to
take the rival’s place or turn in the belloved’s affection or bed.”. Ou seja: hoje “é o dia”
da amada nas preferências do senhor e, cheia de júbilo, ela tripudia sobre “a outra”,
que<n> non diz leli, pelo menos não neste momento que não lhe pertence.
Equilíbrio e bom senso
Conforme se depreende, tudo começa pelo texto estabelecido e pelas opções do editor –
porque “cada versión es um texto” (apud ORDUNA, 2005, p. 36) – o que conduz ao
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
13
exame comparativo, tanto das versões entre si quanto delas com as fontes manuscritas
impressas. Nos casos em que as variantes sejam discrepantes a ponto de interferir no
sentido interpretativo que se está buscando, as notas ao texto são obrigatórias. Elas é
que darão conta, par e passo, do intercâmbio analítico entre as normas vigentes ao
tempo e a intuição do crítico, em mútua complementaridade.
É necessário equilíbrio e bom senso: nem os suportes metodológicos podem se superpor
ao texto, ofuscando-o e obrigando-o a curvar-se a um molde que às vezes não lhe é
adequado22, nem se deve deixar levar pelas tentações perigosas do "gosto", que, fazendo
exceder o subjetivismo nas análises, reduz automaticamente a atividade analítica e fá-la
derivar para as abstrações falseadoras do objeto23. Há que lembrar que nenhuma leitura
científica é ingênua e que o suporte de uma teoria é que controla os possíveis excessos
das referidas abstrações. Se a tarefa epistemológica principia pela constatação de um
problema – por exemplo, Elsa Gonçalves pergunta-se, para começar a tratar de alguns
escárnios de D. Dinis: "Serão 'pilhérias inocentes' [segundo Rodrigues Lapa] as três
cantigas de escárnio que têm como alvo o cavaleiro Joan Bolo?" (1991, p. 37) – o qual
geralmente coloca em xeque posições anteriores (no caso, o juízo de Lapa), a etapa
seguinte é a reunião de provas – tantas e tão diversificadas quantos forem os matizes do
problema situado – que levarão a um outro argumento e a um novo ponto de vista. E
assim em cadeia sucessiva, até que a opacidade do significante vá se revelando ao
intérprete.
Não se deve saltar qualquer dos degraus de acesso às camadas profundas do texto.
Principalmente quando se considera o verniz enganador da ficção medieval, em sua luta
feroz para fazer-se valer como "verdade", apesar dos artifícios retóricos, e para impor a
língua romance (ou, entre os trovadores, a koiné literária), ao lado da soberania
indiscutível do Latim, língua sagrada do texto Escriturístico24. Afinal, quer pela prosa
quer pela poesia, quer pelo viés amoroso quer pelo satírico, o homem medieval buscou
22
Bourdieu (2004, p. 15 e p. 120, respectivamente) cita M. Weber, em Essais sur le théorie de la science
(Paris: Plon, 1965): "a metodologia não é a condição de um trabalho fecundo" (grifo nosso), postulado
repetido, de outra maneira, por E. Durkheim, que discorre sobre as benesses da "dúvida metódica" de
Descartes, uma das bases de qualquer método científico rigoroso (em As regras do método sociológico.
11. ed. São Paulo: Nacional, 1984).
23
P. Brunel et alii, de forma resumida, mas útil, acompanham as variações do "gosto" ao longo dos
séculos, a partir da Antigüidade clássica (1988, p. 2).
24
C. Carreto tem tratado dessas zonas limítrofes do discurso medieval (1996).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
14
estabelecer a relação analógica entre os signa e as res como forma de apreender a
significação do mundo, oculta em Deus. Cumpre-nos juntarmo-nos a eles, lendo-os
como queriam e devem ser lidos.
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Série Estudos Medievais 1: Metodologias
17
Posto que Ioam Delenzina/
o pastoril começou:
reflexões metodológicas para o estudo das fontes do teatro
de Gil Vicente
Prof. Dr. Márcio Ricardo Coelho Muniz
Universidade Estadual de Feira de Santana/UEFS
Resumo: Os dois versos presentes no título do presente texto compõem um dos principais testemunhos
das influências sofridas por Gil Vicente na construção de seu teatro. Garcia de Resende, autor dos versos,
indica Juan del Encina como o iniciador do teatro pastoril na Península Ibérica, mas vê em Gil Vicente
um continuador que supera em maestria o criador: "elle [Gil Vicente] foy o que inuentou/ isto ca, e o
vsou/ cõ mais graça e mais dotrina". No presente texto, apresentaremos algumas reflexões sobre a
metodologia dos estudos comparatistas, centrados particularmente na questão das fontes, que vêm
orientando nossas pesquisas sobre o teatro de Gil Vicente.
Palavras-chave: Gil Vicente; Juan del Encina; Literatura Comparada; Teatro Ibérico.
Abstract: The two verses in the title of this text component one of the key witness influences suffered by
Gil Vicente in the construction of his theater. Garcia de Resende, author of the verses, indicates Juan del
Encina as the initiator of the theatre pasture in the Iberian Peninsula, but sees Gil Vicente as a continuador
mastery in overcoming the creator: "elle [Gil Vicente] foy o que inuentou/ isto ca, e o vsou/ cõ mais graça
e mais dotrina". In this text, we present some reflections on the methodology of the comparative studies,
focusing particularly on the question of sources, which are focusing our research on the theater of Gil
Vicente.
Keywords: Gil Vicente; Juan del Encina; Comparative Literature; Iberian Theater.
A problemática das fontes do teatro de Gil Vicente vem instigando estudiosos de sua
obra desde há muito. Todavia, poucos trabalhos tomaram, nesta perspectiva, a totalidade
da obra vicentina para análise. Excetuando a já clássica tese de doutorado de António
José Saraiva, Gil Vicente e o fim do teatro medieval, de 1942, só na metade da década
de 1990, outro trabalho de doutoramento, posteriormente publicado em livro, retomou a
questão, porém numa perspectiva algo distinta, pois o pesquisador buscou, em
realidade, definir as matrizes do teatro de Vicente: refiro-me à Sátira e lirismo. Modelos
de síntese no teatro de Gil Vicente, de José Augusto Cardoso Bernardes, tese de 1995,
publicado em 1996. Para, além disso, apenas pequenos trabalhos, de modo geral,
centrados em um auto específico, abordam a questão, e não raramente de forma lateral.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
1
Uma nova perspectiva para a questão, no entanto, foi proposta por um arguto ensaio de
Margarida Vieira Mendes, especialista na obra vicentina. Em “Gil Vicente: o gênio e os
gêneros”, Mendes, a propósito de discutir os gêneros vicentinos e recuperando o estudo
de António José Saraiva, acima citado, tece uma série de considerações que iluminam
de modo muito instigante a discussão sobre as ‘formas’ e as fontes do teatro de Vicente.
Sintetizando suas reflexões, percebe-se que a estudiosa parte de uma compreensão de
gênero literário que não o considera como “camisa-de-força” obstrutora da criação
literária. Antes de condicionar a criação, segundo Mendes, os gêneros são “princípios
virtuais” e estão à disposição do criador, que os manipulará, combinará e transformará
de acordo com seu “gênio”. Nesse sentido, gênero é, antes de tudo, instrumento de
criação aberto, disponibilizado pela tradição e aberto a atualizações. Enquanto
repertórios, catálogos, funções e códigos dados ao criador, podem servi-lo, mas não
regular sua produção, a não ser que este assim o queira ou permita. O princípio que rege
a relação gênero-obra-artista é, assim, o das potencialidades1.
Para além desta compreensão de gênero como elemento potencializador da criação
artística, Mendes conclui o referido texto apontando doze “factores genológicos” ou
“formativos” que, de proveniência diversa, intervêm na gênese dos autos vicentinos.
Ainda que não disserte sobre de que modo, com que constância e com que intensidade
cada um desses fatores interfere na concepção dos autos, apenas indicando quais são
eles, percebemos que estamos frente a uma exposição de elementos verdadeiramente
significativos para a discussão e encaminhamento das pesquisas futuras sobre as
‘formas’ e as fontes do teatro vicentino, pela amplitude e largo alcance do que
sugestiona. Reproduzo as doze “forças criadoras de forma” do teatro vicentino, segundo
Margarida Vieira Mendes:
1
Nas palavras da estudiosa: “os géneros existem dentro e fora das obras: são princípios virtuais,
repertórios de conteúdos, catálogos de soluções formais e de funções arquetípicas, possibilidades de
actuação, códigos de comportamentos – depositados, disponíveis e combináveis numa série de tradições
móveis, que só se conhecem e realizam em cada uma das obras. Um autor apropria-se deles e eles
apropriam-se do autor, mas os modos de actualização nunca se repetem e são antes modos de
transformação. Os constrangimentos e convenções de cada gênero tornam-se potencialidades e sugestões
para a invenção singular; a criação não lhes é alheia e muito menos prejudicada por eles” (MENDES,
1990, p. 328). Discutindo, da mesma forma, o papel que cabe ao gênero na obra de Gil Vicente, José
Augusto Cardoso Bernardes afirma que “mais que um inventário fixo de categorias, importa estabelecer
uma rede de combinações possíveis, já que o género, longe de ser categoria fixa, se assume como uma
base orientadora da criação e da recepção literária de carácter flexível e não predeterminado”
(BERNARDES, 2001, p. 67).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
2
aarquétipos teatrais (os de “devaçam” – moralidades, mistérios,
milagres -, e os profanos – farsas, pregações burlescas, comédias,
tragicomédias);
bpráticas parateatrais (ofícios litúrgicos e orações de horas,
espectáculos e ritos de sociabilidade aristocrática e cortesã – momos, jogos
de sortes em papelinhos, horóscopos, sinais, visitações, eventualmente bailes
e banquetes);
ctécnicas dramáticas (monólogo, diálogo – altercações, conflitos,
contrastes, debates, ecos);
dformas poéticas (cantigas, vilancetes, glosas, hinos, paráfrases
trobadas, romances, ensaladas, vilancicos, cantigas de amigo, prantos,
disparates);
eformas discursivas (pragas, provérbios, rifões, contra-provérbios,
gírias, ensalmos, prognósticos, esconjuros, testamentos, sermões,
panegíricos, mandamentos);
fgéneros e modos literários (novelas de cavalaria, novela sentimental,
estilo pastoril);
gformas próprias de outras artes (opereta, danças, música instrumental e
coral, recitação de poemas, iconografia);
hfunções enunciativas de ocasião (elogio da família real, arte de morrer,
adoração, paródia de discursos, triunfos);
ilocal de representação e materiais cénicos (capela, presépio, câmaras
régias, máquinas);
jmomento de representação (festas ou celebrações régias, calendário);
kestrutura ou sintaxe (quadros, cenas, passos, prólogo, intróito, peça
preliminar ou loa, argumento, canção final);
lacções, personagens e registro ou estilo (elevado, rústico, chocarreiro,
com alegorias, com ou sem desenlace feliz) (MENDES, 1990, p. 334).
Como se vê, os pontos indicados pela estudiosa como possíveis fontes de inspiração da
criação vicentina ou, nas palavras da crítica, as “forças criadoras de forma” de seu
teatro, abarcam uma ampla gama de elementos que possibilitam ao pesquisador pensar a
obra de Vicente em perspectivas bastante diversas. A leitura dos autos vicentinos
comprova que todos e cada um desses elementos se presentificam no ato criativo do
dramaturgo, variando conforme o tema, o contexto histórico e situacional, as funções da
representação, o espaço da cena etc. Da mesma forma, muitos desses elementos
sugerem direta ou indiretamente as fontes que lhe inspiraram, permitindo ao leitor
perceber o diálogo que se estabelece com a tradição de que se serviu Gil Vicente.
Exatamente por isso, trabalhos esparsos têm comprovado ser a tese de Mendes não só
inovadora, mas também a mais adequada para os estudos sobre os processos de criação
do teatro vicentino, bem como sobre as possíveis fontes inspiradoras de seus autos.
Como exemplo, pode-se tomar toda a larga produção de Vicente para se comemorar
nascimentos, o de Cristo ou os de figuras reais. No total, conhecemos 14 autos
vicentinos dedicados a este tipo de celebrações, repartidos entre quatro dos cinco livros
de que se compõe a Copilaçam: nove estão entre as “obras de devaçam”; três são
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
3
“tragicomédias”; há uma “farsa”; e, também, há uma classificada entre as “obras
miúdas”. O período em que elas se inserem alcança todo o largo tempo de produção do
dramaturgo, ou seja, inicia-se exatamente com o primeiro auto representado, o Auto da
Visitação, de 1502, para festejar o nascimento do príncipe e futuro rei D. João III; e
termina com uma das últimas obras representadas por Vicente, a Tragicomédia da
Romagem de Agravados, de 1533, representada para comemorar o nascimento do
infante D. Felipe, filho de D. João III e D. Catarina – isto se não considerarmos que há
quem defenda que o último auto vicentino, a comédia Floresta de Enganos, foi
representado para celebrar o nascimento do infante D. Manuel, filho dos mesmos
monarcas, em 15362.
Todos os autos têm em comum o “momento de representação”, qual seja, comemorar
um nascimento. Este fato contextual aproxima-os, condicionando o tom predominante
neles, ou, nas palavras de Margarida Vieira Mendes, revelam suas “funções
enunciativas de ocasião”: o júbilo, a comemoração, a festa. Índice claro disto é a
conclusão de quase todos: “E cantando assi todos juntamente, oferecem os Reis seus
presentes. E assi muito alegremente cantando se vão” (Auto dos Reis Magos, vol. 1, p.
503); ou “Alevantam-se todas e ordenadas em folia cantaram a cantiga seguinte com que
se despediram (Auto da Feira, vol. 1, p. 186); ou, ainda, “Os Sintrões em folia com o
Príncipe se vão, que é o fim da susodita tragicomédia” (Tragicomédia do Triunfo do
Inverno, vol. 2, p. 117). O ritmo é de festa, de baile; a motivação, comemorar.
Por outro lado, o teatro vicentino nasce não apenas duplamente motivado por festas
natalinas (o já referido Auto da Visitação, representado a 7 de junho de 1502; depois, o
nascimento de Cristo, com o Auto do Pastoril Castelhano, no Natal deste mesmo ano)
mas também influenciado pelo teatro pastoril do dramaturgo castelhano Juan del
Encina. Esses dois fatores deixarão marcas nesse “teatro natalino”: primeira, o
predomínio de personagens rústicas, pastoris, conforme o modelo da tradição cristã que
se segue, o nascimento de Cristo num ambiente pastoril. Lembro aqui uma das
2
Esta é a interpretação de Carolina Michaelis de Vasconcelos (1949, p. 576), no que é seguida por Maria
João Brilhante (1992, p. 3).
3
Todas as citações dos textos de Gil Vicente serão feitas a partir da edição dirigida pelo professor José
Camões, em cinco volumes, e indicada nas referências bibliográficas deste texto. A seguir à citação,
indicarei o volume e a página em que ela se encontra.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
4
passagens bíblicas que interliga a figura de Cristo aos pastores, a descrição da
anunciação pelo “anjo do Senhor” àqueles no Evangelho de São Lucas:
Havia naquela mesma região [Belém] pastores que viviam nos campos e
guardavam o seu rebanho durante as vigílias da noite. E um anjo do Senhor
desceu aonde eles estavam e a glória do Senhor brilhou ao redor deles;e
ficaram tomados de grande temor. E o anjo, porém, lhes disse: Não temais:
eis aqui vos trago boa nova de grande alegria, que o será para todo o povo: é
que hoje vos nasceu na cidade de Davi, o Salvador, que é Cristo, o Senhor
[...]. E, ausentando-se deles os anjos para o céu, diziam os pastores uns aos
outros: Vamos até Belém e vejamos os acontecimentos que o Senhor nos
deu a conhecer (São Lucas, II, 8, 9, 10, 11, 15)4.
Segunda marca, as “formas poéticas” tomadas e, posteriormente transformadas, de Juan
del Encina, como as cantigas, os vilancetes, os vilancicos etc. Se se quiser avançar um
pouco mais, esse teatro de fundo pastoril acabará por delinear uma determinada “técnica
dramática” mais apropriada a sua representação, técnica esta construída, de modo geral,
sobre o estabelecimento do “conflito” entre os mundos rústico/pastoril e
civilizado/cortesão/citadino, condicionando, por sua vez, o “registro” rústico ou elevado
das personagens (CARNEIRO, 1992; 1993).
Na continuação dessas reflexões, e para discutir as influências exercidas por Encina
sobre Vicente e também para observar a propagada superação da fonte, por parte deste,
sugerida por Garcia de Resende – “[...] elle [Gil Vicente] foy o que inuentou/ isto ca, e o
vsou/ cõ mais graça e mais dotrina,/ posto que Ioam Delenzina/ o pastoril começou”
(RESENDE, 1991, p. 363) – , decidi tomar para comentários o primeiro texto redigido e
representado por Vicente, o Auto da Visitação, e fazê-lo dialogar com algumas de suas
possíveis fontes na obra de Encina.
Visitação é auto duplamente “natalino”, embora não tenha sido representado no Natal:
comemora o nascimento do príncipe D. João, filho de D. Manuel I e de D. Maria, e
futuro rei D. João III, como se disse acima; e, da mesma forma, anuncia o nascimento
do próprio teatro de seu autor. Neste sentido, dialoga com a primeira Égloga de Juan del
Encina, denominada Égloga representada en la noche de la Natividad ou simplesmente
4
Além deste, veja-se também: São Marcos, VI, 34 e XIV, 27; São Lucas, XII, 32; São João, X, 11-14;
Hebreus, XIII, 20; Apocalipse, VII, 17; Isaías, XL, 11; LXIII, 11; Ezequiel, XXXIV, 5-24; Samuel, V, 2;
Jeremias, II, 15 e XXIII, 1, entre outros.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
5
Égloga I, provavelmente de 1492 ou 1493 (PÉREZ PRIEGO, 1991, p. 60 e ss.), por ser
esta também natalina e inauguradora da produção teatral do dramaturgo castelhano. Há
ainda outros dados em comum: ambas são frutos de uma “visitação” as suas senhoras,
para entregar-lhes presentes – Encina presenteia a Duquesa de Alba com “cien coplas de
aquesta fiesta [Natal]” (ENCINA, 1991, p. 97)5; e Vicente, de certa forma, com algo
semelhante, pois presenteia a Rainha, que recentemente deu a luz, com a própria
representação –; as personagens das duas peças são rústicos – pastores, em Encina;
vaqueiro, em Vicente – e falam “sayagués”, segundo Neil Miller, “língua convencional”
e literária com que se caracterizava o falar dos homens rústicos (1970, p. 46-47); nas
duas peças encontramos frutos do que Margarida Vieira Mendes denominou por
“funções enunciativas de ocasião”, qual seja, o elogio dos homenageados – Encina
louva os duques de Alba [a duquesa é “reluziente”, e o duque é comparado a César e
Heitor]; Vicente, por sua vez, saúda os reais pais, glórias de toda Espanha –; por fim, as
duas representações produzem continuações – Encina com a Égloga representada en la
mesma noche de Navidad ou Égloga II; Vicente com outra obra e representada
posteriormente, no Natal, o Auto Pastoril Castelhano.
Diferenças entre as duas obras são também perceptíveis. A Égloga I de Encina não se
completa em si mesma, necessita da continuação que se lhe segue, a Égloga
representada en la mesma noche de Navidad. Já o Auto da Visitação sustenta sozinho
seus percurso e propósitos, sem necessitar de outro texto para imprimir-lhe sentido.
Embora motive outra representação, o próprio Vicente decide que esta tem de ser
distinta da primeira – “gostou tanto a rainha velha [D. Leonor] desta representação que
pediu ao autor que isto mesmo lhe representasse às matinas do Natal, endereçado ao
nascimento do redentor. E porque a substancia era mui desviada, em lugar disto fez [o
autor] a seguinte obra”, o Auto Pastoril Castelhano (v. 1, p. 23).
São, contudo, na composição das personagens que mais nítido se percebem as
diferenças entre os dois autores. Os pastores de Encina na Égloga I, Juan e Mateo,
possuidores de alguma individualidade, perdem-na na Égloga II, pois se tornam figuras
alegóricas, personagens paralitúrgicas. Perdem, de certa forma, seu status literário, para
5
Todas as citações dos textos de Juan del Encina serão feitas pela edição preparada por Miguel Angel
Pérez Priego, devidamente referida na bibliografia final deste trabalho. No corpo do texto indico apenas a
página em que está o texto citado.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
6
servirem a propósitos de edificação religiosa. A eles se juntam mais dois pastores,
Lucas e Marco, para compor a representação dos quatro Evangelistas bíblicos. Veja-se,
por exemplo, este diálogo entre os pastores da Égloga II, quando se anuncia o
nascimento de Cristo, e repare-se como seus discursos perdem certa rusticidade que
deveria marcar as falas de pastores, assumindo uma dicção próxima a dos Evangelhos:
Lucas: Ay una nueva muy luenga,
menester es gran arenga:
que Dios es nacido ya.
Mateo: ¿Y quándo, quándo nació?
Lucas: Aun agora, en este punto:
Dios y hombre todo junto,
y una virgen lo parió.
Marco: Bien lo barruntava yo.
Mateo: Yo tanbién bien lo sentía,
mas primero lo sintió
aquellotro que escrevió
que una virgen pariría.
Lucas: ¿Qué te parece Mateo?
Mateo: ¿Y a ti, Lucas? Di, verás.
Lucas: ¿Y tu, Marco, qué dirás?
Marco: Qu’es cumplido mi desseo.
Lucas: ¿Y tu, Juan del buen asseo,
qué dizes que estás callando?
Juan: Miafé, digo que lo creo,
que ya estava yo en oteo
de luengo tiempo esperando.
Mateo: ¿Qué esperavas? Di, zagal,
por tu salud, habra, habra.
Juan: Que Dios, que era la palabra,
decendiesse a ser carnal.
Lucas: En un vientre virginal
como lluvia decendió,
para remediar el mal
del pecado original
qu’el primer padre nos dio.
Del cielo vino su nombre,
el mayor que nunca hu,
que le llamassen Jesú
y Cristo por sobrenome.
Juan: Ya tenemos Dios y hombre,
ya passible el impassible.
¿Quién avrá que no se assombre?
¿Quién avrá que allá no encontre
ver visible el invisible?
Lucas: Embió Dios embaxada
a la Virgen con Graviel
para en ella venir él,
y luego quedo preñada.
Dizen que estava turbada
del mensage nunca visto,
mas quedó muy confortada,
que esperava se llamada
la madre de Jesucristo (p. 107-109).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
7
A longa citação faz-se necessária para que se perceba bem que, em realidade, esses
pastores fazem uma síntese da narrativa dos Evangelhos sobre o nascimento de Jesus
Cristo e de toda significação simbólica deste acontecimento. A síntese alcança,
inclusive, os mistérios da fé: o deus-palavra/verbo encarnado; a trindade divina; a
concepção virginal, entre outros. Como se vê, tudo muito distante da mundividência
pastoril.
Em Vicente, isto não se dá. Visitação é simplesmente auto pastoril, sem ligação direta
com a mensagem natalina bíblica, embora nesta se possa encontrar uma de suas
matrizes de representação6. Da mesma forma, o Auto Pastoril Castelhano, representado
no Natal de 1502, ainda que se constitua mais propriamente num auto natalino, no
sentido cristão do termo, pois comemora e representa o nascimento de Cristo, em
nenhum momento suas personagens, todas pastores, perdem sua individualidade pastoril
para servirem a propósitos de edificação religiosa. Elas tratam fundamentalmente das
questões do seu cotidiano pastoril, como se pode ver pelo trecho abaixo:
Lucas: Hao carillos.
Gil: A quién hablas?
Lucas: A vosotros digo yo
si alguno de vos me vio
perdidas unas dos cabras
Gil: Yo ño.
Brás: Ñi yo.
Lucas: Ah Dios pliega.
Gil: Como lás perdisti? Di.
Lucas: Perdiéronse por ahí
por la veja
o algún me lãs soniega (v. 1, p. 26).
Outra distinção importante, a Égloga I, de Encina, cumpre uma espécie de papel
metalingüístico no conjunto da obra do dramaturgo castelhano, por meio do qual ele
explicita e defende as características e valores de suas obras pastoris, contra acusações
de “detratores y maledizientes”. Sua função básica, em realidade, é esta, fazer o elogio
6
Osório Mateus aponta ainda outro possível elemento convergente como fonte de inspiração desses
autos: “Visitação é nome feudal dum tributo em géneros que os vassalos pagavam aos senhores
entregando-lhes o melhor das colheitas, quando ele vinha à terra, uma vez no ano” (MATEUS, 1990, p.
11). Ora, presentes são o que os Reis Magos bíblicos trazem à criança nascida, presentes/tributos são o
que carregam os pastores que, na maioria dos autos, vêm visitar a criança divina/nobre que acaba de
nascer. Como se vê, as “forças criadoras de forma” do “teatro natalino” de Gil Vicente podem ser várias.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
8
do autor. Daí ter sido escolhida para abrir seu Cancionero (PÉREZ PRIEGO, 1991, p.
62). Visitação, por sua vez, limita-se a ser comemoração, festa, sem outras pretensões
que entreter a corte, de fazê-la folgar. Ao menos, não se percebe claramente outro
sentido imediato para sua representação.
Outros muitos elementos comuns aos dois autores ou às obras abordadas poderiam ser
aqui levantados, bem como apontados a distância entre eles no tratamento de muitas
outras questões7. Todavia, os exemplos acima arrolados, creio, são suficientes para
exemplificar o perfil que vimos dando a nosso trabalho. Ao estudar algumas das
possíveis fontes do teatro de Gil Vicente, sejam as apontadas pela tradição, como a que
nos indica Garcia de Resende, sejam as perceptíveis no corpo textual dos autos, a
metodologia comparatista se revela bastante útil. Por meio da comparação com seus
pares, como Juan del Encina, Lucas Fernández, Torres Naharro, entre outros, o teatro de
Gil Vicente revela-se integrado a um corpo dramático em construção e em afirmação na
Península Ibérica, mas, por outro lado, vemos também uma obra dramática muito
pessoal, cujas soluções vão sendo encontradas na medida do diálogo com esta tradição
ibérica e com um repertório de referências culturais bastante ampla e diversificada,
como sugere Margarida Vieira Mendes que se busque investigar.
É, portanto, na consideração daqueles “factores genológicos” ou “forças criadoras de
formas” de que nos fala Mendes que a metodologia comparatista aplicado ao estudo das
obras de Gil Vicente apresenta-se mais instigante e produtiva. Tendo em conta a
diversidade que caracteriza a proposta deixada por Mendes e desejando avançar para
além da simples constatação das fontes, ou seja, entendendo que tal perspectiva deve ser
caminho para uma melhor compreensão das opções do dramaturgo e mesmo reflexo de
sua recepção; neste ponto, creio, os estudos de fundo comparatistas podem ser de
grande ajuda no revelar os sentidos que este rico teatro ainda guarda. Neste caminho é
que vimos construindo nosso percurso investigativo pela obra de Vicente
7
Entre outros, vejam-se os trabalhos de MENDES, 1993; RODRIGUES, 1999; SILVA, 2002;
MORALES, 2003.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
9
Referências:
BERNARDES, José Augusto Cardoso. Sátira e lirismo: modelos de síntese no teatro de
Gil Vicente. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1996.
BERNARDES, José Augusto Cardoso. Gil Vicente. In: HISTÓRIA da Literatura
Portuguesa. Lisboa: Alfa, 2001. v. 2, p. 47-133.
BRILHANTE, Maria João. Floresta. Quimera: Lisboa, 1992.
CARNEIRO, Alexandre S. O rústico na corte: o auto pastoril vicentino no contexto das
práticas culturais da corte portuguesa do início do século XVI. Estudos Portugueses e
Africanos, Campinas, n. 19, p. 05-30, 1992.
CARNEIRO, Alexandre S. Aspectos do auto pastoril vicentino: sua importância, seu
significado político e seu lugar de corte de período. Estudos Portugueses e Africanos,
Campinas, n. 22, p. 63-87, 1993.
ENCINA, Juan del. Teatro completo. Edición de Miguel Angel Pérez Priego. Madrid:
Cátedra, 1991.
MATEUS, Osório. Visitação. Quimera: Lisboa, 1990.
MENDES, Margarida Vieira. Gil Vicente: o gênio e os gêneros. In: ESTUDOS
portugueses. Homenagem a António José Saraiva. Lisboa: ICALP/Universidade de
Lisboa, 1990. p. 327-34.
MENDES, Margarida Vieira. Encina e Vicente: disparates. In: ACTAS do IV
Congresso da Associação Hispânica de Literatura Medieval. Lisboa: Cosmos, 1993. v.
3, p. 347-54.
MILLER, Neil. O elemento pastoril no teatro de Gil Vicente. Porto: Inova, 1970.
MORALES, Manuel Delgado. Gil Vicente y Juan del Encina: cara y cruz del
neoplatonismo renacentista. In: BRILHANTE, Maria João et al. (Org.). Actas do
Congresso Internacional Gil Vicente, 500 anos depois. Lisboa: Centro de Estudos de
Teatro/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2003. 2 v. v. 2, p. 31-43.
NAVAS, Maria Victoria. Pastoril castelhano. Quimera: Lisboa, 1989.
PÉREZ PRIEGO, M. A. Introducción. In: ENCINA, Juan del. Teatro completo. Edición
de Miguel Angel Pérez Priego. Madrid: Cátedra, 1991. p. 11-94.
RESENDE, Garcia de. Crônica de D. João II e Miscelânea. Edição fac-similada.
Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1991.
RODRIGUES, Maria Idalina Resina. Dos Salmatinos a Gil Vicente: as celebrações do
Natal. In: _____. De Gil Vicente a Lope de Veja: vozes cruzadas no teatro ibérico.
Lisboa: Teorema, 1999. p. 11-50.
SARAIVA, António José. Gil Vicente e o fim do teatro medieval. 4. ed. Lisboa:
Gradiva, 1992.
SILVA, José Alberto Lopes. O mundo religioso de Gil Vicente. Covilhã: Universidade
da Beira Interior, 2002.
TEATRO breve del Siglo de Oro. Edición de Antonio Rey Hazas. Madrid: Alianza,
2002.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
10
TEATRO español del siglo XVI: del palacio al corral. Edición de Alfredo
Hermenegildo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1998.
VASCONCELOS, Carolina Michaëlis de. Notas vicentinas: preliminares duma edição
crítica das obras de Gil Vicente. 2. ed. Lisboa: Revista Ocidente, 1949. Notas I-IV.
VICENTE, Gil. As obras de Gil Vicente. Direção científica de José Camões. Lisboa:
Centro de Estudos de Teatro/Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002. 5 .
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
11
Da Retórica medieval
Profa. Dra. Maria do Amparo Tavares Maleval
Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ
Resumo: Na pesquisa que desenvolvemos desde 2006, sob os auspícios do ProCiência UERJ e do CNPq
(PDS), elegemos os pressupostos metodológicos da Retórica para analisarmos hagiografias e crônicas
medievais galego-portuguesas, tendo por corpus o Liber Sancti Jacobi, a Crónica de Santa Maria de Iría,
a Crónica de D. João I – Parte Primeira de Fernão Lopes e o Flos Sanctorum. Isto porque tanto as
hagiografias quanto as crônicas constituem mensagens que estão abertamente voltadas para a persuasão de
seus receptores: as primeiras, propondo-se ao ensino da prática das virtudes cristãs e da fé, com apresentar
vidas e outros escritos sobre santos que constituem modelos de comportamento; as segundas, por
propagarem as qualidades de sés, episcopados ou casas senhoriais, a serviço dos quais o cronista se
encontraria. Acrescente-se a isto o fato de na Idade Média a Retórica ser uma das disciplinas do Trivium
(como sabemos, composto por Gramática, Retórica e Lógica) enquanto arte por excelência do discurso,
informando preceitos para a composição do mesmo, bem como fornecendo elementos para a sua exegese.
Portanto, nada mais conveniente do que examinar o texto medieval a partir dessa arte tão em voga no
período.
Palavras-chave: Retórica; Hagiografias; Crônicas; Idade Média.
Résumé: Dans le cadre des recherches que nous menons depuis 2006, avec une aide financière du
programme ProCiência UERJ et du CNPq (PDS), nous avons retenu les présupposés méthodologiques de
la Rhétorique pour analyser les hagiographies et les chroniques médiévales galego-portugaises, ayant
pour corpus le Líber Sancti Jacobi, la Crónica de Santa Maria de Iría, la Crónica de D. João I –
Première Partie de Fernão Lopes et le Flos Sanctorum. Nous estimons que tant les hagiographies que les
chroniques constituent des messages qui se tournent ouvertement vers la persuasion de leurs récepteurs:
les premières proposent l’enseignement des pratiques des vertus chrétiennes et de la foi, présentant la vie
et d’autres écrits sur les saints qui sont autant de modèles de comportement; les deuxièmes diffusent les
qualités des sièges, épiscopats ou maisons seigneuriales, au service desquels le chroniqueur travaille. En
outre, au Moyen Âge, la Rhétorique est une discipline qui intègre le Trivium (à savoir, la Gammaire, la
Rhétorique et la Logique), et elle indique les normes pour la composition du discours, aussi bien qu’elle
fournit des éléments pour son exegèse. Il semble donc pertinent d’examiner le texte médiéval à partir de
cet art si renomé dans la période étudiée.
Mots-clès : Rhétorique; Hagiographies; Chroniques; Moyen Âge.
A propriedade da Retórica como método para a exegese de textos medievais (mas não
só) pode ser comprovada não apenas no fato de ser ela uma das disciplinas do Trivium –
e portanto diretriz, tanto no que toca à composição, quanto à interpretação dos textos,
para os poucos que tinham acesso à leitura e à escrita na Idade Média. Os prólogos de
obras várias, obedientes ao que os retores clássicos propõem para os exórdios dos
discursos, confirmam este fato, como, por exemplo, os Prólogos do Liber Sancti Jacobi
– Codex Calixtinus do século XII (1999) e da Cronica delRei dom Joham de boa
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
1
memória e dos Reis de Portugal o décimo, escrita no século XV por Fernão Lopes
(1977). Nesta, o cronista argumenta a favor da sua imparcialidade, buscando alcançar a
confiança e a simpatia dos leitores-ouvintes a quem a obra se destina, afirmando-se
como pesquisador incansável de documentos vários e escritor da “simprez verdade”,
avesso à “afremosemtada falssidade” (LOPES, 1977, p. 1-3). Naquele, a carta-prólogo
atribuída ao papa Calisto II, ao que tudo indica falsamente, já a partir dessa atribuição
autoral tenta firmar o princípio de autorictas; e afirma ser a matéria transcrita por ele
testemunhada ou baseada em relatos considerados verazes, escritos ou orais. Tudo
vazado em estilo singelo, para que seja entendida por todos, desde os eruditos aos
simples, como faz questão de observar o autor dessa carta (LIBER, 1999, p. 3). Tal
preocupação retórica não se limita, nessas obras, aos prólogos, mas se desvela no
decorrer das suas páginas, conforme temos demonstrado em diversos estudos,
publicados ou apresentados em congressos vários.
A Retórica na Idade Média
Para uma aproximação à Retórica medieval, começamos por lembrar, com James
Murphy (1986, p. 142), que “... la historia de las artes del discurso en la Edad Media es,
al menos en parte, la historia de la supervivencia de las obras clásicas”. Dentre estas, a
presença marcante no Medievo foi a da Retórica aristotélico-ciceroniana, através da
juvenil obra de Marcos Túlio Cícero, De inventione, e da Rhetorica ad Herenium, que
também a ele se atribuiu por séculos1.
Colocando a ênfase na Política e vinculando-a às leis romanas, a obra de Cícero
disseminou no medievo os princípios da disciplina sistematizada por Aristóteles, que
objetiva as técnicas de persuasão do discurso. Lembremos que, embora circulassem
cópias no medievo da “Arte de bem dizer” aristotélica, esta fora considerada mais um
livro de “Filosofia moral” (MURPHY, 1986, p. 142) do que propriamente um manual
1
Se na Idade Média as lições de Aristóteles (384-322 a. C.) e Cícero (65-27 a. C.) foram as fontes por
excelência para o conhecimento da Retórica, no fim do período medieval, estendendo-se pelo
Renascimento e depois, Quintiliano (30-100 d. C.), com Instituto oratoire, e o Cícero maduro, autor de
De oratore, estiveram em grande voga. Aliás, esta última obra foi claramente seguida por Santo
Agostinho (2002), como veremos adiante.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
2
de Retórica. Aliás, os textos medievais se referem freqüentemente ao Estagirita como o
Filósofo – por exemplo, Fernão Lopes, na Crônica de D. Pedro, o denomina “claro
lumme da fillosophia” (1966, p. 216). Realmente, na sua Retórica, o sábio grego não
deixa de estabelecer reflexões filosóficas – por exemplo, sobre a felicidade, enquanto
fim último a que todos aspiram e que deve ser levada em conta se desejamos persuadir
alguém sobre a utilidade de algo (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 49). E relaciona-a à
Dialética ou Lógica, bem como à Política: “(...) Donde resulta ser a Retórica como que
um rebento da Dialética e da ciência dos costumes que podemos, com justiça,
denominar Política” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 35).
Reportando-nos aos primórdios dessa Arte, lembramos que ela se firmaria no século V
a.C., ligada a práticas democráticas, à defesa de direitos sobre propriedades
reivindicados por seus antigos ou possíveis donos após a queda dos tiranos na Sicília,
notadamente em Siracusa. E tornou-se a Arte de maior prestígio em Atenas, no tempo
de Aristóteles, discípulo dileto de Platão. Este, aliás, também refletira sobre a
eloqüência em seus diálogos, como, por exemplo, em “Fedro”, no qual apresenta
Sócrates criticando veementemente os sofistas (PLATÃO, [s.d.], p. 243 e ss.).
Embora alguns retores já tivessem elaborado tratados parciais sobre a Retórica, como
Córax e Tísias, Aristóteles é quem nos fornecerá, no século IV a.C., a sistematização
mais competente da mesma, definindo-a como o estudo das técnicas de persuasão dos
discursos dirigidos a um auditório, do qual o orador, melhor atuante se homem
exemplar, teria de levar em conta os caracteres e paixões, para melhor conseguir-lhe a
adesão. Na observação abalizada de Paul Ricoeur, o seu grande mérito foi relacionar o
“conceito retórico de persuasão” com o “conceito lógico de verossímil, e o de construir
sobre esta relação o edifício completo de uma retórica filosófica” (RICOEUR, [s.d.], p.
13). Como diria Roland Barthes, trata-se de
uma lógica expressamente rebaixada, adaptada ao nível ‘do público’, isto é,
ao senso comum, à opinião corrente. Estendida às produções literárias (o que
não era seu campo propriamente original) ela implicaria mais uma estética do
público do que uma estética da obra (BARTHES, 1975, p. 157).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
3
Sublinha Barthes ser “realmente tentador colocar essa retórica de massa em relação à
política de Aristóteles”. Esta seria “uma política do justo meio, favorável a uma
democracia equilibrada, centrada nas classes médias e encarregada de reduzir os
antagonismos entre os ricos e os pobres, a maioria e a minoria” (BARTHES, 1975, p.
157).
Recordemos que o tratado aristotélico é constituído por três partes ou livros,
apresentando “uma divisão de tipo informático” (BARTHES, 1975, p. 156). O primeiro
deles focaliza o orador e a busca dos argumentos, as provas técnicas convenientes ao
discurso. O segundo trata principalmente do público receptor da mensagem, de seus
caracteres e paixões, bem como das provas morais, subjetivas e lógicas mais adequadas
à argumentação. E o terceiro trata dos aspectos formais do discurso: da elocução –
figuras, tropos, seleção vocabular... – e da ordenação das partes do discurso, referindo-se
também à sua pronunciação, relacionada ao estilo, que deve se adequar a cada gênero de
discurso e primar sempre pela justa medida. Portanto, leva em conta os três elementos
essenciais da comunicação, modernamente retomados pelos estudos lingüísticos: o
emissor, o receptor e a mensagem.
Os discursos pertencem ao gênero judicial quando objetivam o justo ou o injusto através
da acusação ou da defesa de um réu diante de juízes, baseada principalmente em fatos
passados e tendo o entimema como principal argumento. Já o deliberativo se preocupa
fundamentalmente com o útil ou o prejudicial, por meio do aconselhamento de uma
ação futura à assembléia, tendo por principal recurso o exemplo. E o epidítico
estabelece o elogio ou a censura do nobre ou do vil, fundado principalmente no tempo
presente e tendo a amplificação como recurso maior. Mas já o Filósofo destacava que os
gêneros de discurso podem apresentar variações e imbricações várias:
porque há três gêneros, há três fins distintos. O fim do gênero deliberativo é o
útil e o prejudicial, pois, quando se dá um conselho, este é apresentado como
vantajoso, e quando se pretende descartá-lo ele é apresentado como funesto.
Por vezes, este gênero toma algo dos outros, por exemplo, o justo ou o
injusto, o belo ou o feio. O fim para os pleiteantes é o justo ou o injusto, mas
acontece que também eles colhem elementos dos outros gêneros. Quando se
louva ou se censura, as referências são feitas ao belo ou ao feio; sucede
todavia que também aqui se introduzem no assunto elementos estranhos
(ARISTÓTELES, [s.d.], p. 43).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
4
Essa mistura de finalidades facilmente se constata em textos medievais, por exemplo
nas crônicas de Fernão Lopes2 e nos sermões do Codex Calixtinus3. E também a
preocupação com a qualidade do estilo, que, conforme a retórica aristotélica, deve ser
claro, agradável, pictórico, adequado ao assunto, ao gênero de discurso (predominante) e
a seu respectivo auditório, bem como à realização oral ou escrita do mesmo. O
equilíbrio, a justa medida deve nortear-lhe o tom e a escolha do vocabulário e das
figuras e/ou tropos, enfim, dos recursos expressivos, inclusive na pronunciação (tom de
voz e, acrescentamos, gestualística adequados) – arte, que, segundo Aristóteles, não fora
ainda elaborada à sua época (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 206).
Aristóteles defende que as partes do discurso são essencialmente duas: exposição (ou
proposição, ou exposição, ou indicação do assunto ou questão) e demonstração
(argumentação, prova), aceitando-lhe, quando muito, quatro partes: “Assim, pois, de
obrigatório só há a exposição e a prova (...). No máximo, podemos admitir: o exórdio, a
exposição, a prova, o epílogo. A refutação depende das provas, (...) não é mais que uma
amplificação das provas do orador”, é “uma parte das provas” (ARISTÓTELES, [s.d.],
p. 246). Já o De inventione de Cícero ([s.d.], p.31) e a Retórica a Herênio (2005, p. 57)
propõem seis partes: exórdio, narração, divisão, confirmação, refutação e conclusão,
acentuando a importância da confirmação e da refutação (2005, p. 71).
O exórdio, início ou cabeça do discurso – que corresponde ao prólogo na poesia ou ao
prelúdio na aulética –, tem por finalidade indicar o assunto e conseguir a atenção e a
predisposição do auditório para a aceitação da causa que será proposta ou defendida.
Na narração ou exposição do assunto, deve-se também atentar para a justa medida,
evitando-se a concisão excessiva do mesmo modo que a prolixidade desnecessária. As
provas devem ser demonstrativas e levar em conta os assuntos da contestação. As
interrogações fazem-se oportunas em muitas situações, para confundir ou desequilibrar
2
Cf., a propósito, a nossa Tese de Doutoramento A revolução pelos ornamentos: Fernão Lopes,
defendida na Universidade de São Paulo/USP, em 1982 (TAVARES, 1982).
3
Cf. comunicação de nossa autoria apresentada no I Encontro Regional da Associação Brasileira de
Estudos Medievais/ABREM, realizado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro/UERJ, de 7 a 9 de
novembro de 2006, intitulada “A Retórica antiga e a prédica medieval. Um exemplo jacobeu”
(MALEVAL, 2007); e a conferência “Da Retórica franco-compostelana à Compadecida de Suassuna”,
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
5
o adversário etc. E também a facécia (ironia ou bufoneria) tem o seu lugar em algumas
situações.
Quanto à refutação de uma acusação, arrolam-se vários meios utilizáveis, inclusive os
que ferem à ética. Mas, com relação a estes últimos, assevera o Sábio: “Assim se
comportam os oradores mais hábeis, mas também os mais injustos; servem-se do que é
honroso para prejudicar, e misturam o bem com o mal” (ARISTÓTELES, [s.d.], 255).
A peroração é a última parte do discurso, compondo-se de quatro procedimentos: dispor
o ouvinte (receptor) a favor do orador (emissor), amplificar ou atenuar o exposto,
excitar as paixões no receptor e recapitular a mensagem.
Enfim, embora apresentando inclusive os meios escusos de que podem lançar mão os
oradores para conseguirem a persuasão dos ouvintes, método usado pelos sofistas,
Aristóteles não abandona a ética, asseverando que “De um modo procede o homem
prudente, de outro o homem de bem; a prudência consiste em buscar o útil, a
honestidade o bem” (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 258).
Deixaremos por ora de desenvolver maiores comentários sobre as obras De inventione
de Cícero e Rhetorica ad Haerenium, por serem propagadoras de elementos da Retórica
aristotélica sem acrescentar-lhe modificações substanciais. A primeira atém-se aos
ensinamentos dos livros I e II, que tratam da descoberta (inventio) do que é próprio à
argumentação específica do tipo de discurso a ser elaborado; discorre sobre os gêneros
de causas, os meios de alcançar-se a benevolência do auditório no exórdio, as formas de
repreensão, as fontes de indignação e (outros) meios de se alcançar o patético, além de
destacar, inicialmente, as vantagens e os inconvenientes da eloqüência. A segunda
discorre esquematicamente sobre todas as partes que compõem a Arte Retórica
(inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronuntiatio), os gêneros e partes do discurso,
dando particular relevo ao gênero judicial e arrolando profusamente as figuras e/ou
tropos, elementos da elocução.
apresentada no VII Encontro Internacional de Estudos Medievais, realizado de 3 a 6 de julho de 2007, na
Universidade Federal do Ceará/UFC (MALEVAL [No prelo]).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
6
A cristianização da Retórica
Na confluência do legado clássico e do substrato judaico-cristão, tem origem a arte da
predicação (ars praedicandi), que, juntamente com a gramática preceptiva ou retórica da
versificação (ars poetriae) e com a arte epistolar (ars dictaminis), compunha o estudo
do discurso na Idade Média.
Com relação ao substrato judaico-cristão, lembremos, com Murphy (1986), que pregar
foi “o segundo ato de Deus após a criação do homem e durante muitas épocas constituiu
o meio primordial de comunicação entre Deus e o homem” (1986, p. 275-276;
traduzimos). Observa que já Roberto de Basevorn destacara, no século XIV, a primeira
persuasão das Escrituras, encontrada no Gênesis: “Após criar o homem, Deus predicou
(se ampliamos a palavra ‘predicação’) dizendo a Adão (Gên., II, 17): Porque no dia em
que comeres [do fruto proibido], certamente morrerás” (MURPHY, 1986, p. 276). E
toda a Bíblia está permeada de pregadores, por exemplo, os profetas, sendo que Jesus,
instruído na liturgia judaica (com leituras e exegeses do Velho Testamento, sobretudo
dos seus cinco primeiros livros, o Pentateuco), ordenara aos seus apóstolos que
difundissem as suas idéias através da prédica: “e designou doze para que estivessem
com ele e para enviá-los a pregar” (Mateus, XXVIII, 16-20). Nela abundam técnicas
diversas da Retórica, com farto uso de figuras e tropos, reconhecidos desde os primeiros
séculos cristãos e no Medievo por autores como Santo Ambrósio, Santo Agostinho,
Cassiodoro, Beda, Alcuíno, Roberto de Deutz etc.
Como na Retórica antiga, sistematizada por Aristóteles, intentava-se a persuasão através
da prédica. Mas a argumentação se apoiava no que o Filósofo chamara de prova
apodítica – no caso, isto é, na verdade tida por incontestável das Escrituras; e intentavase atingir a todos os homens, não apenas a um auditório limitado, como o das
sociedades escravocratas e ‘materialistas’ grega e romana. No entanto, de comum
apresentavam alguns aspectos, como a preocupação com adequar o discurso ao
auditório. Por exemplo, Aristóteles já ensinava que “é em função do auditório que se
desenvolve toda a argumentação” ([s.d.], p. 7) e Marcos (IV, 33-34) testemunhava que
Jesus Cristo “Anunciava-lhes [às multidões] a Palavra por meio de muitas parábolas
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
7
(...), conforme podiam entender; e nada lhes falava a não ser em parábolas. A seus
discípulos, porém, explicava tudo em particular”.
Paulo, um dos pregadores mais eficientes da história, levando às últimas conseqüências
a ordem de Jesus, a responsabilidade de converter ao cristianismo os pagãos, e a certeza
na força divina da mensagem, desenvolveria essas declarações sobre a prédica,
estabelecendo o que Murphy considerou uma “teologia da pregação”. Introduziria
vários conceptos que interesarían a los teóricos durante los primeros tiempos
cristianos y el Medievo: la relación de la gracia con la predicación, el
contraste entre la predicación y la oratória ordinária, la cuestión de quién
debe predicar e incluso la relación entre predicación y culto. Ante todo, puso
en relieve el mandato de Jesucristo (MURPHY, 1986, p. 286).
Como bem observa Murphy (1986), a esta fase primacial, encabeçada por Jesus Cristo4,
seguiria uma segunda, cuja principal expressão seria A doutrina cristã, obra de Santo
Agostinho, concluída em 426. Outros tratados menores surgiriam – como Cura
pastoralis de São Gregório Magno (591), De institutione clericorum, de Rabano Mauro
(819), Liber quo ordine sermo fieri debeat, de Guiberto de Nogent (cerca de 1084) e De
arte praedicatoria, de Alan de Lille (1199?) –, até que no século XIII firmar-se-ia uma
teorização plenamente desenvolvida sobre a prédica. Da primeira metade deste século
até à Reforma, surgiriam mais de 300 tratados, dos quais destacam-se autores como
Tomás de Salisbury, Ricardo de Thetford e Alexandre de Ashby, que estabeleceram uma
forma de pregação baseada em divisões e amplificações. E em 1322, Roberto de
Basevorn reuniria as contribuições dessa terceira fase da prédica medieval em Forma
praedicandi.
Aceitemos que, entre Jesus Cristo e Paulo e o século XII, apenas um tratado
considerável sobre a prédica surgiria: De doctrina christiana de Santo Agostinho (396426). Como explicar esse vazio de séculos no mundo cristão, se o seu fundador, Jesus
4
“Cristo estableció un modelo para los predicadores cristianos de varios modos y, aún más importante,
confirmo y reforzó la práctica judía del uso de las Escrituras como prueba; distinguía escrupulosamente
entre parábolas y discurso ‘directo’, entre evangelización (anuncio) y enseñanza (exposición de la
doctrina), y hacía constantes comparaciones de lo terreno y lo divino, mediante analogías y metáforas.
Estos rasgos aparecen en la predicación cristiana hasta el dia de hoy, pero tuvieron especial relevancia en
el período medieval” (MURPHY, 1986, p. 282).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
8
Cristo, fora tão enfático quanto à necessidade da prédica? Segundo Murphy (1986, p.
291), as perseguições aos primeiros cristãos e, em seguida, a revolta contra a cultura
pagã seriam explicações possíveis. Após Santo Agostinho, as invasões bárbaras
constituiriam
também
uma
causa
plausível;
mas
discutiam-se
temas
mais
intrinsecamente relacionados à doutrina e à administração eclesial, como o celibato
sacerdotal, a jurisdição episcopal, a pobreza e divindade de Cristo, a natureza do
pecado, a relação com os judeus etc.: “Ante la evidencia de que la Iglesia sí debatía las
cuestiones más urgentes, solo cabe concluir que la teoría de la predicación no estaba
considerada como problema clave” (MURPHY, 1986, p. 291).
Destaquemos, pois, que, para a aceitação e prestígio da Retórica entre os cristãos,
inclusive compondo as disciplinas do Trivium, foi fundamental a posição de Santo
Agostinho (354-430 d C), que a defendeu veementemente dos seus opositores,
considerando-a, na esteira de Platão (427-347 a C), um eficiente meio de catequese das
almas e canalizando-a para o ensino das virtudes cristãs, para a exegese da Bíblia.
Enfim, assumindo uma posição teológica e ética, propugnou a importância da prédica
clerical, apoiada na fé, na pedagogia do amor, na retidão do pregador, na capacidade de
evocação do ouvinte, nas Escrituras como base do conhecimento e fonte de provas
incontestáveis (diferindo, desse modo, dos romanos céticos, amorais, políticos
defensores de probabilidades).
A sua obra De doctrina christiana5 (cujos três primeiros livros teriam sido concluídos
em 396), mais especificamente o Livro IV (terminado em 426), não apenas divulga os
princípios básicos da Retórica, mas destaca o quão vantajoso é ensinar-se de modo
claro, agradável e persuasivo as verdades cristãs – “o útil unido ao agradável”
(AGOSTINHO, 2002, p. 214). Isto sem deixar de alertar sobre o perigo da Retórica se
5
Também nos breves tratados De magistro (Sobre o mestre), de 389, e De catechizandis rudibus (A
catequese dos rústicos), de 399, contribui para a sedimentação da Retórica no mundo cristão, indo mais
longe que Cícero na reflexão sobre o conceito de signo, sua essencialidade, sua relação com a graça e a
beatitude. Aproximou-se de Quintiliano na recomendação do ensino para os jovens, que mais facilmente
aprendem ou imitam. E, como Platão, considerava a capacidade de o indivíduo aprender por si mesmo,
“em contraposição à capacidade de outra pessoa alheia, de instruir o ouvinte ou persuadi-lo somente por
força dos signos convencionais que emprega para comunicar-se” (MURPHY, 1986, p. 294; traduzimos).
Contrapunha-se, pois, à fé que os romanos depositavam na imitatio, investindo na inventio (descoberta)
para o processo de aprendizagem e na pedagogia do amor, que está na base inclusive do próprio processo
de comunicação, já que o amor nos obriga a comunicarmo-nos com o nosso próximo. Frisa a propósito
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
9
usada ao modo dos sofistas, uma vez que ela é a arte da persuasão tanto do verdadeiro
quanto do falso: “que se diga ao menos com sabedoria o que não se consegue dizer com
eloqüência, de preferência a dizer eloqüentemente coisas tolas” (AGOSTINHO, 2002, p.
274). Portanto, a finalidade primeira da prédica não pode ser o deleite, embora seja este
desejável para melhor transmissão dos ensinamentos. Da mesma forma que Cícero,
elege a sabedoria, já agora de procedência bíblica, como fundamento da oratória.
Também ciceronianas são as funções que dela apresenta: ensinar, deleitar e comover,
recomendando que “assim como é preciso agradar ao auditório para o manter na escuta,
também é preciso convencê-lo para o levar à ação” (2002, p. 234).
A adequação dos tipos de estilo ao discurso, às suas finalidades, é outra lição que
aproxima de Cícero o bispo de Hipona, conforme o seu próprio testemunho:
Pois a esses três objetivos (instruir, agradar e converter) correspondem três
tipos de estilo, como parece ter desejado demonstrar aquele mestre de
eloqüência romana quando disse de modo análogo: “Ser eloqüente é poder
tratar assuntos menores em estilo simples; assuntos médios em estilo
temperado e grandes assuntos em estilo sublime” (Cícero, De oratore, 29,
10s) (AGOSTINHO, 2002, p. 241).
E propõe a mistura desses estilos na pregação: o orador deve buscar instruir o ouvinte,
para que ele alcance o entendimento das verdades cristãs, através do estilo simples; e
convertê-lo, tornando-o dócil para a prática dos comportamentos recomendáveis, através
do estilo sublime; isto sem deixar, sempre que possível, de proporcionar-lhe o deleite
através do estilo temperado, que tem por meta o elogio ou a censura. Mas o pregador
deve, antes de tudo, ter perfeito conhecimento do assunto a ser tratado, e adequar o seu
discurso ao auditório. E, fundamentalmente, possuir uma vida exemplar, mais
convincente que qualquer sermão para o ensino das virtudes. Com base em Timóteo
(1,9), recomenda Santo Agostinho: “Sê para os fiéis um modelo na palavra, na conduta,
na caridade, na fé, na pureza” (AGOSTINHO, 2002, p. 272).
Antes de passarmos para outros teóricos da Oratória, registre-se que, para o
desenvolvimento da prédica medieval, foram muito importantes a tradução da Bíblia
Murphy (1986, p. 297) que amor cristão (caritas) implica em um conceito mais elaborado que o ethos de
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
10
para o latim, supervisionada por São Jerônimo no século IV, e as exegeses que sobre a
Vulgata vieram a lume. Bem como o fato de a liturgia cristã contemplar a leitura bíblica
seguida de comentário em cultos regulares, pelo menos dominicais6.
Quase dois séculos após Santo Agostinho ter estabelecido a sua retórica da predicação, o
papa Gregório Magno (540-604) publica, em 591, Cura pastoralis, obra de grande
aceitação nos meios clericais até começos do século XIII, tornada inclusive leitura
obrigatória para os bispos pelos concílios de 813 e 836 (MURPHY, 1986, p. 298).
Nessa obra, destaca a importância da prédica, considerada fundamental já desde o Velho
Testamento, comparando a função do pregador à dos anjos da escada de Jacó7. Dá
ênfase à vida exemplar do pregador e à importância de fazer-se amado pelo público para
melhor recepção da sua mensagem. Bem como à necessidade de adequação do discurso
ao auditório, considerado em suas especificidades e heterogeneidade (dado novo em
relação à Retórica antiga, baseada mais na circunstância do discurso – judicial,
deliberativo, demonstrativo – que na índole dos ouvintes – muito embora já Aristóteles
relevasse as diferenças de caracteres e paixões); sublinha, portanto, as necessidades de
todos e de cada um dos receptores. Nesse sentido, resume alguns enfoques moralizantes
que se podem abordar para 36 pares de tipos de ouvintes, como, por exemplo:
homem/mulher, humilde/arrogante, servo/amo etc. Trata-se de uma lista não
sistemática, que mistura gênero, posição social, caráter, hábitos pessoais, nível de
conhecimento, idade, virtudes e vícios. Considerando o pecado como uma enfermidade,
que deve ser curada com a ajuda do pregador, é muito mais um “tratado sobre patologia
Aristóteles, já que abrange não apenas o orador, mas também o ouvinte.
6
Murphy (1986) adverte que, para o estudo do sermão medieval, há que se levar em conta a diferença
então existente entre a sua realização mais formal, baseada em normas, e a informal, a que se dava o nome
de homilia. Hoje os termos são sinônimos, mas, no Medievo, a homilia se caracterizava pela sua
informalidade, pela conservação do enfoque personalizado procedente dos cultos primitivos, realizados
em pequenos recintos, em casas particulares. Conforme observa Murphy (1986, p. 305), o próprio Santo
Agostinho se referia às “conversações populares que os gregos chamam de homilia” (traduzimos). Antes
dele, Orígenes (falecido em 253) popularizara o termo em grego, e se tornara “famoso por suas
interpretações alegóricas da Bíblia, seguindo a tradição alexandrina, derivada, em última instância, da
antiga tradição judaica” (MURPHY, 1986, p. 305; traduzimos). Mais que isso, “sua cuidadosa
determinação das múltiplas interpretações de um texto – prática que viria a ser um importante instrumento
de amplificação para os pregadores medievais – consistia em uma escrupulosa análise oral das Escrituras
diante do público. Por este método, em realidade era o texto o organizador do discurso. Seguindo desse
modo a Bíblia, o pregador ficava também isento de quase todos os problemas de memória e disposição, e
a homilia podia ser, dessa forma, uma espécie de ‘glosa falada’ ou ‘comentário falado’ do texto bíblico”
(MURPHY, 1986, p. 305; traduzimos).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
11
moral” (MURPHY, 1986, p. 303) que de Retórica, interessando-se sobretudo por temas,
não pela forma do discurso. Não se reporta aos autores clássicos, antes retira da Bíblia,
notadamente de Paulo, as bases das suas proposições.
Posteriormente, Santo Isidoro de Sevilha (560-636), com a obra Etimologias, também
contribuiria de forma decisiva para o desenvolvimento da prédica8. Valoriza
aristotelicamente o papel da Gramática para a Oratória: “com a gramática nos
instruímos na ciência de falar corretamente; com a retórica aprendemos de que modo
devem expor-se os conhecimentos adquiridos” (ISIDORO, 2004, p. 353; traduzimos).
Da mesma forma que Santo Agostinho e São Gregório, mas também que Cícero e
Quintiliano, destaca a concepção (catoniana) de que o orador deve ser, antes de tudo, um
homem reto em sua natureza, em seu costumes, em suas qualidades. Aliás, já Aristóteles
relevava a importância da retidão do orador, colocando-a entre as provas persuasórias do
discurso:
Entre as provas fornecidas pelo discurso, distinguem-se três espécies: umas
residem no caráter moral do orador [que deve se mostrar digno de confiança];
outras, nas disposições que se criaram no ouvinte; outras, no próprio discurso,
pelo que ele demonstra ou parece demonstrar (ARISTÓTELES, [s.d.], p. 34).
A diferença é que o sábio Estagirita trabalha com a categoria do verossímil, com o que
se apresenta como possível, com o que parece verdadeiro; e não com verdades absolutas
e dogmas.
Analogamente a Aristóteles, Isidoro reduz a quatro as partes do discurso: exórdio,
narração, argumentação e conclusão, afastando-se de outros teorizadores do Medievo,
que, na esteira dos romanos, estabelecem seis partes: exórdio, narração, divisão,
confirmação, refutação e conclusão. E se debruça sobre muitos outros aspectos e
técnicas do discurso, que não cabe neste momento desenvolver.
7
“Hinc Iacob domino desuper innitente, et uncto deorsum lapide, ascendestes ac descendentes angelos
uidet; quia scol. Praedicatores recti non solum sursum sanctum caput ecclesiae, uidelicet dominum,
contemplando appetunt, sed dorsum quoque ad membra illius miserando descendunt”. (P.L., t. 75, col. 33)
8
Estranhamente Murphy não se refere a ele, em seu clássico estudo sobre a retórica medieval (1986).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
12
Mas as suas reflexões sobre o saber antigo não se restringem à Retórica, abarcando de
um modo geral, enciclopédico, as instituições e os seres, a partir das palavras que os
denominam. As Etimologias constituem “uma espécie de explicação por procedimentos
lingüísticos de tudo quanto existe, proporcionando um modo de conhecer e compreender
melhor o universo” e uma melhor e mais aprofundada exegese dos textos antigos, como
já observara Diaz y Diaz (apud ISIDORO, 2004, p. 163; traduzimos). Esta, a sua
principal contribuição para o sermonário medievo, fartamente explorada na técnica da
amplificatio.
Passando por Rabano Mauro, escritor germânico que em 819 produzira o manual
destinado aos sacerdotes, De institutione clericorum, no qual cita e/ou transcreve muito
das obras citadas de Santo Agostinho e São Gregório, chegamos aos séculos XI-XII. O
então jovem beneditino Guiberto de Nogent (1053-1124) elabora um pequeno tratado
sobre como se compõe um sermão, anteposto à sua interpretação do Gênesis, intitulado
Liber quo ordine sermo fieri debeat, que concluiria em 1084.
Muito geral no que respeita à prédica, essa obra é valiosa por destacar a polissemia das
Escrituras, as quatro maneiras de proceder-lhe à exegese, levando-se em conta 1) a
história; 2) a alegoria; 3) a tropologia ou edificação moral; 4) a anagoge, que leva à
iluminação espiritual. Mesmo não sendo o inventor do conceito de interpretação
múltipla da Bíblia, estabelece, segundo Murphy, “uma primeira explicação medieval de
como devem ser utilizados os ‘quatro sentidos’ da interpretação bíblica para a
descoberta da matéria da prédica” (1986, p. 309; traduzimos):
Há quatro maneiras de interpretar as Escrituras; sobre elas, como se fossem
rolos múltiplos, gira cada página sagrada. A primeira é a história, que fala dos
sucessos reais tal como ocorreram; a segunda é a alegoria, em que uma coisa
representa outra distinta; a terceira é a tropologia ou edificação moral, que
trata da ordenação e disposição da vida de cada um; e a última é a anagoge ou
iluminação espiritual, pela qual nós, que estamos em condições de tratar de
assuntos celestiais e sublimes, somos levados a um modo superior de vida.
Por exemplo, a palavra ‘Jerusalém’: historicamente representa uma
determinada cidade; alegoricamente, representa a santa Igreja; tropológica ou
moralmente é a alma de todo homem de fé que anela pela visão da paz eterna;
e anagogicamente refere-se à vida dos cidadãos celestiais que já contemplam
o Deus dos deuses, revelado em toda sua glória em Sião. Embora admitindo
que estes quatro métodos de interpretação são válidos e podem utilizar-se,
juntos ou separados, o enfoque moral parece o mais adequado e prudente nas
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
13
matérias que concernem às vidas dos homens (NOGENT, apud MURPHY,
1986, p. 308-309; traduzimos)9.
Reitera também Guiberto que, sendo a finalidade da prédica dar aos ouvintes um
ensinamento moral e religioso, a retidão do pregador é atributo imprescindível. Nesse
sentido, fornece sábios conselhos aos pregadores, relativos às qualidades a serem
seguidas e aos defeitos a serem evitados, combatendo duramente certas faltas correntes,
como o orgulho, a tristeza, a inveja (DAVY, 1931, p. 31).
No século seguinte, o monge cisterciense Alan de Lille (falecido em 1202), autor
destacado de tratados de Lógica, Literatura e Teologia, elaboraria, cerca de 1199, um
tratado mais significativo, mais empenhado em estabelecer uma retórica da predicação
para o combate do pecado, unindo fontes clássicas e eclesiásticas10: De arte
praedicatoria.
A definição e finalidade do sermão é por ele estabelecida claramente: “um ensino
público e coletivo dos costumes e da fé, apoiado na razão e fundamentado na
autoridade, tendo em vista a instrução dos homens”11 (LILLE, apud DAVY, 1931, p. 3;
traduzimos). Bem como suas partes (4) e gêneros (3)12, adaptados dos clássicos.
Na esteira dos antigos, que recomendavam em relação ao exórdio ser este o momento do
discurso em que o orador deve conseguir a simpatia do ouvinte, Alain de Lille
estabelece: “O pregador deve captar a benevolência de seu auditório para com sua
própria pessoa através da humildade. Deve também prometer que apenas dirá coisas
9
Lembremos que Isidoro de Sevilha distingue, sobretudo, os três primeiros sentidos. Da mesma forma
Hugo de São Vitor, que compara os sentidos da Escritura Sagrada a um edifício, em que a história seria o
fundamento, a alegoria os muros, a tropologia a ornamentação.
10
Como São Gregório, aproxima os pregadores dos anjos da escada de Jacó: “Vidit scalam Jacob a terra
usque ad caelum attingentem, per quam ascendebant angeli (,,,). Septimum gradum sdcrndit, quando in
manifesto praedicat quae ex scriptura didicit” (P. L., t. 210, col. 111).
11
“Praedicatio est, manifesta et publica instructio morum et fidei, informationi hominum deserviens, ex
rationum semita, et auctoritatum fonte proveniens” (P. L., t. 210, col. 111).
12
“Tres species praedicationis: uma quae est in verbo (...) alia est in scripto (...) alia est in facto” (P. L., t.
210, col. 111).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
14
úteis e pouco numerosas; que não desejará tomar a palavra senão que por dedicação a
seus ouvintes”13 (LILLE, apud DAVY, 1931, p. 32; traduzimos).
Em seguida, “deve empreender a exposição do texto proposto, fazendo-o servir
inteiramente à instrução dos que o escutam”, recorrendo aos ensinamentos não apenas
bíblicos e patrísticos, mas até pagãos, “da mesma forma que o apóstolo Paulo inscrevia,
nas suas epístolas, as palavras dos filósofos”14 (LILLE, apud DAVY, 1931, p. 32).
Recomendava, também, que o sermão não fosse exagerado, teatral. Nele não deveria
haver “nem bufoneria, nem puerilidades, nem melodias cadenciadas ou versos bem
torneados, que servem mais para encantar aos ouvidos que para formar os espíritos”15
(LILLE, apud DAVY, 1931, p. 32; traduzimos).
Sobre a arte da prédica é obra preceptiva no prefácio e na primeira parte. As 47 seções
restantes focalizam os temas a serem utilizados na pregação sobre determinadas virtudes
ou vícios e a matéria adequada a diferentes ouvintes (considera 9 tipos: advogados ou
oratores, doutores, outros prelados, príncipes, soldados, enclausurados, casados, viúvos
e virgens). Porque diversos podem ser os assunto tratados no sermão, desde que
direcionados para o ensino da religião e da moral. E o tema deveria ser interpretado de
forma adequada às circunstâncias e ao auditório (DAVY, 1931, p. 33).
Murphy sintetiza da seguinte forma essa obra Alan de Lille:
Define a pregação, esclarece a sua relação com as Escrituras, declara que seus
temas [fundamentais] são a fé e a moral, distingue-a de outros tipos de
discurso e faz breves observações sobre o uso adequado das ‘autoridades’.
Embora sinteticamente – o prefácio e o cap. I juntos não passam de 1.400
palavras latinas – apresenta pela primeira vez, depois de Santo Agostinho, um
ponderado intento de estabelecer uma retórica da predicação (MURPHY,
1986, p. 312; traduzimos).
13
“Debet captare benevolentiam auditorium a propria persona per humilitatem... debet etiam promittere se
pauca dicturum et utilia; nec se trahi ad hoc nisi amore auditorum, neque etiam se loqui, quod majoris sit
scientiae aut prudentiae vel melioris vitae...”.
14
“...debet accedere ad auctoritates propositse expositionem, et totam inflectere ad auditorum
instructionem; nec auctoritatem nimis obscuram vel difficilem proponat, ne auditores eam fastidiant, et ita
minus attende audiant... poteri etiam ex ocasione interserere dicta gentilium, sicut et Paulus apostolus
aliquando in epistolis suis philosophorum auctoritates interserit” (P. L,. t. 210, col. 113-114).
15
“Non debet habere verba scurrilia, vel puerilia vel rhythmorum melodias et consonantias, metrorum,
quae potius fiunt ad aures demulcendas quam ad animum instruendum, quae praedicatio theatralis est est
mímica, et ideo omnifarie contemnda...” (P. L., t. 210, col. 112)
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
15
Mas acrescenta em seu ajuizamento tratar-se de uma obra que se preocupa muito mais
com o pregador, com sua técnica, do que com estabelecer uma arte geral da prédica,
“coincidindo perfeitamente com o espírito de sua época” (MURPHY, 1986, p. 315).
Omite completamente dados sobre como organizar um sermão (a dispositio), sobre o
estilo (a elocutio), e pouco se refere à pronuntiatio e à memoria. Destaca que as
Escrituras fornecem idéias e provas apodíticas, sendo, pois, dupla fonte da inventio.
Emprega analogias e outras comparações mais que formas silogísticas – enfim, baseiase muito mais na experiência que na retórica clássica. Mas a técnica da autorictas, bem
como da divisio (tríptica) e da correspondentia, típicas da prédica posterior, já se
encontravam na metodologia de Alan de Lille.
Em 1220, a prédica já se encontra bem estabelecida e, em meados desse século XIII,
plenamente desenvolvida, apresentando um “vocabulário técnico completo e uma pauta
estabilizada de organização” (MURPHY, 1986, p. 317). Os autores ou teóricos mais
destacados, de 1220 a 1250, foram Alexandre de Ashby, Tomás Chabham, Ricardo de
Thetford, João de la Rochelle e Guilherme de Auvernia, sem esquecermo-nos de
Jacques de Vitry (falecido em 1240)16. Após 1250, podem ser citados Arnoldo de Pódio,
João de Galles, Gualtério de Paris – ao todo, o século XIV contara com mais de 30
teóricos, fora os anônimos, e o século XV com não menos de 20 (MURPHY, 1986, p.
317).
A universidade teria desempenhado importante papel nessa evolução, ou pelo menos na
fixação e/ou aprimoramento da tradição já existente fora dos seus muros, já que “a
estrutura do sermão e os artifícios amplificatórios do que se converteu em um gênero
independente, estavam muito claros já antes de 1200” (MURPHY, 1986, p. 318). Um
exemplo dessa tradição é o já mencionado Liber Sancti Jacobi, que serve de corpus à
nossa pesquisa, apresentando uma importantíssima recolha de sermões e/ou homilias
feita no século XII. Quanto ao sermão universitário, a mais antiga coleção de sermões
procederia da Universidade de Paris, ano acadêmico de 1230-1231, que conhecemos
pela edição de M. M. Davy (1931). Dirigidos a um público erudito, certamente
obedeceriam ao magistério das artes praedicandi do período, como as de Alexandre,
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
16
prior do convento agostiniano de Ashby (Northamptonshire) de 1205 a 1215, do mestre
Tomás de Salisbury (ou Chabham) e de Ricardo de Thetford.
De modo praedicandi, da autoria de Alexandre de Ashby, possivelmente do ano de
1200, começa por relevar, na esteira dos seus antecessores, como Cícero, que “em todo
escrito e em todo discurso, o homem sábio procura que seus leitores ou ouvintes estejam
dóceis, bem dispostos e atentos”17 (ASHBY, apud MURPHY, 1986, p. 319). Esta deve
ser a preocupação de filósofos, poetas e teóricos das artes. E estipula que “O modo de
predicar consiste na divisão (nas partes) do sermão e em sua pronunciação. Há quatro
partes num sermão, a saber: prólogo, divisão, prova e conclusão. Toda a matéria do
sermão é a proposição e a autoridade”18. Segue, pois, a Aristóteles, ao observar quatro
partes no discurso, e não cinco ou seis como os romanos (embora estas se reduzam
essencialmente àquelas). Afasta-se de Cícero também ao propor a imediata
comprovação das partes, não vendo as provas como algo independente.
O prólogo, da mesma forma que o exórdio clássico, se destina a captar a atenção e
benevolência dos ouvintes; a divisão (da matéria) estabelece o plano do sermão (propõe,
no máximo, três divisões, para não cansar o ouvinte comum); as provas (respaldadas em
autoridades, arrazoados, alegorias, exemplos), adequadas ao auditório, devem
acompanhar cada divisão ou subdivisão, ratificando-as de imediato; a conclusão deve
conter uma breve recapitulação, a exortação ao medo do castigo e a oração emotiva,
incentivando à devoção constante.
O pregador teria uma tríplice tarefa: ensinar a doutrina, exortar à boa conduta e dar bom
exemplo. Quanto à pronunciação, embora de forma concisa, estabelece que deveria ser
clara e modesta, agradável e adequada ao plano do sermão e à índole do tema.
Relaciona-a, pois, ao estilo, preconizando cuidados com a voz e os gestos19.
16
Como Santo Isidoro, também estranhamente deixado de lado por Murphy (1986).
“In omni scriptura et sermone primum satagit sapientis intencio ut lectores sive auditores [redaat]
dociles, benivoles et attentos” (P. L., T. 210, col. 111).
18
“Modus vero consistit in partibus sermonis et pronunciacione. Quartorum autem est partes sermonis,
scilicet prologus, divisio, confirmacio, conclusio. Propositio atque auctoritas que sit sermonis tocius
matéria” (P. L., T. 210, col. 111).
19
“In omnibus hiis observandum est ut pronunciacio non sit tubida non superba nom amara nom
inconcinna, sed modesta et humilis, dulcis et scematibus condita et materie conformis. Nec solum oportet
17
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
17
Diferentemente de Alan de Lille, interessa-se pelo modo de pregar. E dá como certa a
existência de um modo estável, e presumivelmente admitido, de regras a serem seguidas
(como as da ars dictaminis, estabelecidas um século antes pelos italianos).
Sublinha Murphy (1986, p. 324) que, das obras que nos chegaram, esta seria a primeira
a estabelecer “a atitude fundamental e os princípios retóricos concretos que só alguns
anos depois seriam amplamente conhecidos como a forma ‘moderna’ da prédica, como a
ars praedicandi”.
A Summa de arte praedicandi de Tomás de Salisbury (ou Chabham), que fora aluno e
professor em Paris, escrita provavelmente entre 1210 e 1215, vai mais além, tornandose, na apreciação de Murphy (1986, p. 324), “o tratado mais significativo do século XIII
sobre a matéria”, nem por isso devidamente estudado pelos especialistas do século XX.
Explica a nova terminologia (thema, antethema, divisio); compara as tarefas do pregador
com as dos oradores antigos (destacando, como Santo Agostinho, a necessidade da
Retórica para o pregador); relaciona a prédica às seis partes da oração propostas pelos
romanos (exórdio, narração, divisão, confirmação, refutação e peroração) e às cinco da
Retórica (invenção, disposição, estilo, memória e pronunciação); trata da persuasão, da
dissuasão e da memória do público; relaciona Retórica, poesia, Teologia e prédica –
enfim, “reflete os interesses do ‘Renascimento’ de fins do século XII: a relação entre as
diversas artes, e entre a cultura antiga e a moderna” (MURPHY. 1986, p. 324;
traduzimos).
Refletindo sobre os significados em sua relação com as disciplinas, estabelece que “dos
quatro tipos de significados, o sentido literal ou histórico corresponde em particular à
filosofia e à teologia, enquanto que os outros três – tropológico, alegórico e anagógico –
pertencem ao estudo das sagradas Escrituras. O sentido literal retira o significado de
uma coisa (res), ao passo que os três restantes o derivam de uma locução (vocum)” –
como fábulas, argumentos etc. (MURPHY, 1986, p. 327; traduzimos).
vocem, sed etiam vultum materie conformari ut leta ultu leto, tristia tristi pronunncientur” (P. L., t. 210,
col. 111).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
18
Acentua que a pregação tem por finalidades a evangelização (anúncio) e a instrução
sobre a fé e os costumes, as virtudes e os vícios. E a Retórica é encarecida como fonte
de conhecimento para o pregador.
O paradigma do ‘sermão artístico’, por ele proposto, reconhecia os seguintes elementos:
1) prece inicial, evocativa da ajuda divina; 2) protema ou apresentação do tema
(antetema); 3) tema ou citação e uma passagem bíblica; 4) divisão ou enunciado das
partes do tema; 5) desenvolvimento (prosecutio) dos membros mencionados na divisão;
6) conclusão (considerada parte não integrante do sermão) (MURPHY, 1986, p. 332).
É importante salientar, com Murphy, que, contrariando a tese da origem universitária da
arte da prédica, tanto Alexandre como Tomás “demonstram que todos os elementos do
novo gênero estavam em circulação perto do ano 1200 e pouco depois. Seu testemunho
nos leva a inferir que a teoria básica da ars praedicandi já era conhecida em 1190 e
talvez em 1180 ou antes” (MURPHY, 1986, p. 333; traduzimos).
A famosa Ars dilatandi sermones, de Ricardo de Thetford, escrita certamente antes de
1268, indica oito modos concretos da amplificação que segue à divisão e à subdivisão
do tema, a saber: 1) utilização de uma locução no lugar de um nome, ao definir,
descrever, interpretar etc.; 2) dividir; 3) raciocinar, valendo-se do silogismo, da indução,
do exemplo e do entimema; 4) recorrer a autoridades concordantes; 5) basear-se nas
raízes do conhecido; 6) propor metáforas, mostrando serem adequadas à instrução; 7)
expor o tema de diversos modos, a saber, nos sentidos literal, alegórico, tropológico e
anagógico; 8) assinalar a causa e o efeito (MURPHY, 1986, p. 334).
Outros tratados existiram dedicados à arte da amplificação, como, por exemplo, a
primeira parte de uma Ars concionandi, de datação duvidosa e anônima, embora
atribuída a S. Boaventura, iniciada pelas palavras Omnio tractatio, como por vezes é
chamada.
Citem-se, ainda, dentre outras, a Ars conficiendi sermones, do franciscano João de la
Rochelle (falecido em 1245), e De arte praedicandi, de Guilherme de Auvernia (bispo
de Paris em 1228-1249). Da segunda metade do século XIII, Forma praedicandi,
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
19
atribuída ao franciscano João de Gales, aluno em Oxford, mestre em Paris (cerca de
1270) e falecido em 1302. Prova que o novo gênero está plenamente assimilado,
apresentando uma tipologia de sermões e definindo a prédica, levando em conta o
formato aceito (tema, divisão, amplificação...), sublinhando que as provas de cada
subdivisão devem ser retiradas das autoridades bíblicas; omite a conclusão.
O tratado mais completo da nova retórica da predicação seria Forma praedicandi de
Roberto de Basevorn, escrito em 1322. Nela reúne todos os elementos que encontramos
no desenvolvimento da nova arte de pregar.
No prólogo, exalta a necessidade de os pregadores conhecerem o sistema e método da
prédica artística, encarada como ciência. No primeiro dos 50 capítulos, define a prédica:
persuadir um público em um moderado espaço de tempo, para que se comporte
dignamente (MURPHY, 1986, p. 351). Determina, após estipular obrigação e requisitos,
aqueles que podem pregar: o Papa, os bispos, os cardeais e os pregadores de ofício.
Ao tratar da questão do método, destaca o papel da imitação; os métodos francês e
inglês como os de uso mais geral; o método de Jesus Cristo, que lançaria mão de
promessas, ameaças, exemplos, razões, de forma velada ou clara, segundo o auditório; o
de Paulo, que unia a razão à autoridade do Evangelho, da Lei, dos profetas; o de São
Gregório, que recorria a figuras bíblicas, autoridades, exemplos, significados dos nomes,
etc.; o estilo próprio de São Bernardo, que lançara mão de toda ‘cor’ retórica.
Arrola os ornamentos presentes nos sermões mais trabalhados, mais elegantes: invenção
do tema; conquista do público; prece; introdução; divisão, declaração das partes; prova
das partes; amplificação; digressão ou “transição”; correspondência; acordo de
correspondência; desenvolvimento em circuito; convolução; unificação; conclusão;
coloração; modulação da voz; gestos apropriados; humor (que deveria ser usado com
adequação e parcimônia); alusão; impressão firme; ponderação sobre a matéria
(MURPHY, 1986, p. 354).
Quanto ao tema, estipula que uma boa escolha requer: conveniência à celebração;
clareza; respaldo em texto bíblico fidedigno (não alterado nem corrompido); limitação
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
20
(ao máximo de três declarações ou uma só que possa se converter em três);
concordâncias destas três idéias (MURPHY, 1986, p. 355).
No que concerne à conquista do público, para escutar e reter a lição impetrada
recomenda que se apresente algo sutil e interessante, prodigioso; alguma causa
desconhecida; algum exemplo assustador; exemplo ou anedota sobre a intenção do
demônio de impedir que se escute a palavra de Deus; a palavra de Deus como um
grande signo de predestinação ao Bem; a intenção do pregador: converter, não pedir
esmola (MURPHY, 1986, p. 355).
Referenda a posição de Santo Agostinho, de que antes de pregador há que ser-se homem
de oração etc.; e estabelece os ornamentos do tema20. Termina por lembrar a existência
de outros dois métodos: o primeiro (parisiense-gregoriano), adaptado ao idioma vulgar
dos incultos, que seleciona três materiais adequados aos ouvintes, sendo o tema
desenvolvido em três partes – através de prova tomada da natureza ou das artes, de
prova da Escritura, ou relato de autoridade; o segundo, dirigido exclusivamente a um
público mais erudito ou inteligente, abstém-se de citação de autoridades, dissimula o
artifício. E conclui com os métodos extrínsecos ao sermão: coloração (Cícero);
modulação da voz (Santo Agostinho); ademanes apropriados (Hugo de São Vitor);
humor oportuno (Cícero) para, sobretudo, espantar o sono dos ouvintes; alusão não
literal às Escrituras; impressão firme através de alusões constantes; reflexão sobre a
matéria (quem, a quem, de que e quando se deve falar). E termina, dizendo que aos 50
capítulos acrescenta um de silêncio.
20
Introdução, resumo e localização (livro e capítulo de onde foi retirado) – antetema –; repetição do tema;
introdução (autoridade – algo original, um filósofo, um poeta, alguém de prestígio – e/ou argumento – por
indução, por um exemplo, por um silogismo, por um entimema). Os exemplos podem ser da natureza, das
artes, da história; os entimemas podem ser irrefutáveis (definidos por Aristóteles) ou prováveis (definidos
por Boécio). A divisão se apresenta como o quinto ornamento do tema, podendo ser feita de acordo com o
fato ou com a ordem de construção, ou com a ordem de apresentação do sermão. Em seguida, a
declaração, que pode mostrar as partes de um todo virtual, as partes de um todo universal, ou outra
maneira – principalmente através de substantivos. Depois, as provas e a amplificação com suas oito
espécies (definição ou seu contrário, de um nome; divisão; raciocínio ou argumentação – resolução de
contrários, entimema que exige do ouvinte uma conclusão, exemplos –; concordâncias – de autoridades;
exposição – coisas coincidentes na essência, mas divergentes nos acidentes –; invenção de metáforas;
exposição do tema – histórica, alegórica, moral, anagógica –; causas e efeitos; digressão ou transição;
correspondência ou concordância entre as partes; desenvolvimento em circuito, considerado mais
decorativo que útil; convolução; unificação; conclusão (prece), recomendando-se que “quanto mais o fim
se pareça com o princípiuo, tanto mais elegante será a culminação” (MURPHY, 1986, p. 360).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
21
Depois de Baservorn, o tratadista mais importante do século XIV seria o dominicano
Tomás de Gales, mestre de teologia em Oxford na década de 40, autor de De modo
componendi sermones cum documentis. Na esteira da tradição já firmada, prescreve a
seguinte fórmula: “a predicação consiste, após uma invocação da ajuda de Deus, na
exposição de um tema escolhido e sua divisão em várias partes convenientemente
concordantes entre si, com a finalidade de dar um ensinamento religioso, intelectivo, e
de inflamar de caridade os corações” (BASERVORN, apud DAVY, 1931, p. 31;
traduzimos)21. Discorre, nos nove capítulos da obra, sobre os quatro elementos básicos
do sermão: identificação, apresentação, divisão e ampliação do tema; preconiza o ensaio
da pronuntiatio (voz e gestos), por considerar o modo de dizer tão importante quanto o
que se diz. De forma inteligente e em estilo pessoal sintetiza a doutrina corrente; assim,
no capítulo final, enumera e exemplifica 15 modos de relacionar o tema e as
autoridades, podendo o nexo ser intrínseco, mediato, por exposição, por definição, por
descrição, por causalidade, por especificação, por modificação, por confirmação, por
totalidade ou parcialidade, por substituição, por circunstância (entre autoridades), por
contrariedade, por exceção, ou de forma extrínseca (MURPHY, 1986, p. 341).
Outros autores e tratados destacáveis: Ars componendi sermones, do beneditino inglês
Ranulfo Higden, falecido em 1364, e João de Chalons, que em seu tratado subdividiria,
na tentativa de torná-lo mais lógico, o quadro temático usual:
A) Tema
1. Declaração do tema
2. Admissão do postulado do tema
3. Assunção do tema, afirmando sua aplicação
4. Formação do termo principal da proposição
5. Prova do termo principal por probabilidade
6. Amplificação do termo principal [por correspondência]
7. Subscrição do termo menor
8. Amplificação ou prolongação da matéria
9. Digressão sobre moral
10. Proposição sobre o postulado, se procedente
11. Autoridade bíblica introduzida como concordância ou circunlocução
12. Conclusão do tema
B) Divisão
21
Citado por E. Gilson em “Michel Menot et la technique du sermon medieval” (Révue d’Histoire
Franciscaine, t. II, 1925, p. 304): “Viso que sunt predicationis genera, restat videre quid sit
predicatiodillinitive, de qua intendimus quantum ad primum gepus. Potest ergo sic describi: predicatio est,
invocato Dei auxilio, propositi thematis dividendo et concordando, congrue data et devota expositio, ad
intellectus catholicam illustrationem et affectus caritativam inflammationem”.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
22
13. Divisão do tema quando necessário para o desenvolvimento
(amplificação)
C) Conclusão
14. Apresentação conveniente do todo como uma conclusão
(MURPHY, 1986, p. 343; traduzimos).
Conclui Murphy que “como quase todos os escritores medievais da matéria, João
termina gastando a maior parte de seu tempo nos meios de amplificação” (1986, p. 344).
Já o anônimo Modus sermocinandi do século XIV, muito menos pretensioso, restringe a
três partes a estrutura do sermão: assunção do tema, divisão do tema e desenvolvimento
ou exposição das divisões. E o italiano Tomás da Todi, também do século XIV (final),
notabilizara-se particularmente pela distinção sistemática entre “prova” (baseada em
autoridade, figuras e simbolismo metafórico, razões e causas, exemplos, e testemunho
da história) e “amplificação” (acumulação de autoridades, subdivisões detalhadas,
análises de figuras, análises para elogiar ou maldizer, ritmo complicado, refutação, e
exemplos), bem como pelo uso do ritmo na prédica (“para o prazer auditivo do
público”).
Não termina por aí o rol dos tratadistas. Por ora, interessa-nos lembrar, com Murphy
(1986), que
o sistema retórico de que dispunha o pregador medieval tinha cinco
elementos:
1) As próprias escrituras (com suas glosas), que forneciam tanto a proposição
como sua prova apodítica.
2) Coleções de exempla e outros dados sobre o homem, os animais e o
mundo.
3) Concordâncias, listas alfabéticas, quadros de tópicos e outras ajudas
bibliográficas para buscar materiais.
4) Coleções de sermões, com esquemas de como deviam ser compostos e
sermões já feitos, para determinadas circunstâncias.
5) A própria ars, que correspondia ao tipo de tratados retóricos preceptivos
escritos por Aristóteles ou Cícero.
O pregador medieval possuía, pois, “amplos meios para cumprir a tarefa ordenada”
(MURPHY, 1986, p. 350).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
23
Considerações finais
Vimos que, da união dos preceitos retóricos aristotélico-ciceronianos com a tradição da
prédica e da exegese judaico-cristã, com o contributo da patrística, firma-se nos fins do
século XII-inícios do XIII a nova arte da Oratória, materializada nos sermões.
A dispositio que preceitua para os sermões compõe-se basicamente de um protema ou
antetema, seguido ou constituído de uma oração; em seguida, apresenta-se a declaração
do tema (citação bíblica) e seu desenvolvimento, com divisões, subdivisões e
amplificações através de diversos modos (inclusive de razões contrárias – herança da
dialética aristotélica –, digressões etc.); podendo conter ou não uma conclusão.
O sermão, endereçado mais à sensibilidade que à razão, objetivaria fundamentalmente
comover os corações dos ouvintes, levando-os à contrição e a uma conduta edificante,
para o que concorreria o exemplo de vida do orador.
Além do imprescindível respaldo bíblico, para a argumentação, os exemplos (historietas
e fábulas) eram geralmente recomendáveis, desde que adequados, podendo servir de
provas às teorias apresentadas no decorrer da exposição. Não apenas pelo que possam
conter de ensinamento moral ou religioso, mas também para “estimular o fervor dos
fiéis, prender-lhes a atenção, e até mesmo combater-lhes a sonolência” (DAVY, 1931, p.
35).
Os tratados estabeleceriam regras bastante rígidas para a prédica, modelos de sermões
apropriados a determinadas circunstâncias e auditórios, recolha de exemplos adequados
à seriedade do culto. Os pregadores escolhiam e adaptavam essas fórmulas ao interesse
do momento, às idéias em voga, fornecendo, dessa forma, uma representação da vida e
dos costumes da sociedade sua contemporânea.
O sermão teria por principais objetivos, tal como propostos nas artes praedicandi:
instruir e comover. Instruir, através da exegese das Escrituras principalmente; e comover
para o exercício de uma vida edificante com vistas à recompensa celestial. Por
aconselhar a utilidade da prática das virtudes e a nocividade dos vícios, a prédica se
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
24
apresentaria como um discurso do gênero deliberativo, muito embora mesclado ao
epidítico no elogio do santo e da santidade; e, mesmo, ao judicial, uma vez que justa se
mostra a recompensa divina através das provas apresentadas para o seu alcance.
Com o surgimento das ordens mendicantes, certas particularidades do sermão seriam
precisadas ou destacadas. Por exemplo, os franciscanos insistiam em que “as palavras
do sermão devem ser discretas, puras e breves”; para com maior eficácia “pregar sobre
as virtudes e os vícios, a expiação e a recompensa gloriosa”, etc. (DAVY, 1931, p. 33).
Matéria ensinada na Faculdade de Teologia, aí se exercitava uma tríplice função: ler
(legere, lectio), discutir (disputare) e pregar (praedicare) (DAVY, 1931, p. 23). M. M.
Davy observa, em seu cuidadoso estudo e antologia de sermões universitários
parisienses do século XIII, que estes, dirigidos a um auditório formado por clérigos, e,
por isso, compostos em latim, se apresentam “carregados de divisões e subdivisões,
plenos de textos escriturais e patrísticos, semeados de alegorias e de exemplos
simbólicos” (1931, p. 75). Neles eram seguidos os preceitos de Guibert de Nogent, de
Allain de Lille, de Jacques de Vitry: “Quer se trate de recorrer à Bíblia, aos pais da
Igreja, às autoridades profanas, ou ainda de interpretar palavras gregas e hebréias,
recontar anedotas ou considerar as propriedades dos animais e das pedras preciosas, a
técnica é sempre a mesma” (DAVY, 1931, p. 75). Evidentemente que essa técnica
poderia variar de acordo com o gosto pessoal dos pregadores e as circunstâncias do
tempo e do lugar em que pregam, avisa Davy (1931, p. 76), ressaltando na conclusão
que a prédica universitária do período estudado caracteriza-se por um caráter
eminentemente simbólico (1931, p. 75).
Mas os sermões obviamente, já o vimos, não se limitavam às universidades, “tinham
lugar também nas igrejas” e freqüentemente, o que nos interessa mais de perto, “entre os
cultores de São Tiago” (DAVY, 1931, p. 28). Assim é que numerosos sermões
destinados aos ofícios em torno desse Apóstolo, cujo sepulcro acredita-se estar na
basílica de Santiago de Compostela, são documentados no Livro I do Liber Sancti
Jacobi compostelano, o precioso Códice Calistino do século XII, que nos serve de
corpus. Alguns já foram por nós analisados (MALEVAL, 2007).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
25
Para terminar, acentuaríamos que a reflexão sobre a prédica medieval é importante não
só por permitir um maior detalhamento desse sub-gênero literário, em que são tão
abundantes as figuras de retórica e os símbolos – como costuma acontecer nos discursos
ficcionais. Principalmente através da sua feição tropológica, possibilita o conhecimento
dos costumes condenáveis e reprováveis de uma época – por exemplo, a importância de
Tiago Maior e sua cidade arcebispal no contexto da cristandade, o interesse pelos nomes
e números, para além dos ensinamentos bíblicos esperados.
Unida ou veiculadora dos preceitos da Retórica clássica, penetrou nos vários gêneros da
literatura medieval – por exemplo, nas crônicas clericais e laicas, como as de Fernão
Lopes, o primeiro cronista-mor e o primeiro grande prosador de Portugal. Impossível
fazer uma boa exegese dos seus textos (mas não só) sem levar em conta a tradição
parenética medieval.
Referências:
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ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s.d.].
BARTHES, Roland. A retórica antiga. In: PESQUISAS de Retórica. Petrópolis: Vozes,
1975.
BÍBLIA. Português. A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, [1981].
CÍCERO, Marcos Túlio. De inventione. De l’ invention. Trad. Henri Bornecque. Paris:
Garnier, [s.d.].
DAVY, M. M. Les sermons universitaires parisiens de 1230-1231. Contribution a
l’histoire de la prédication mèdievale. Paris: J. Vrin, 1931.
ISIDORO DE SEVILLA, San. Etimologías. Versión castellana de Luis Cortés y
Góngora. Introd. y índices de Santiago Montero Díaz. Madrid: Biblioteca de Autores
Cristianos, 1951.
LIBER Sancti Jacobi. Codex Calixtinus. Trad. de A Moralejo, C. Torres, J. Feo. Reed.
de X. Carro Otero. Santiago de Compostela: Xunta de Galicia, 1999.
LOPES, Fernão. Crônica de d. Pedro. Ed. critica, com introduzione e glossário a cura
di Giuliano Macchi. Roma: Ateneo, 1966.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
26
LOPES, Fernão. Crônica del rei dom João I da boa memória e dos reis de Portugal o
décimo. Parte primeira. Reprodução fac-similada da edição do Arquivo Histórico
Português, preparada por Anselmo Braamcamp Freire, 1915. Prefácio de Luís Felipe
Lindley Cintra. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1977.
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. A retórica antiga e a prédica medieval. Um
exemplo jacobeu. In: BASTOS, Mário Jorge da Motta et alii (Org.). Atas do I Encontro
Regional da Associação Brasileira de Estudos Medievais. Rio de Janeiro: H. P.
Comunicação, 2007. p. 248-255.
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares. Da retórica franco-compostelana à
Compadecida de Suassuna. In: MARTINS, Elizabeth Dias, PONTES, Roberto (Org.).
Atas do VII Encontro Internacional de Estudos Medievais da ABREM. [No prelo].
MALEVAL, Maria do Amparo Tavares (Sel.). Maravilhas de São Tiago. Narrativas do
Líber Sancti Jacobi (Codex Calixtinus). Niterói: Eduff, 2005.
MURPHY, James J. La Retórica en la Edad Media. Historia de la teoría de la retórica
desde San Agustín hasta el Renascimiento. Trad. Guillermo Hirata Vaquera. México:
Fondo de Cultura Econômica, 1986.
PLATÃO. Fedro. In: _____. Diálogos. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, [s.d.]. p. 193269.
RETÓRICA a Herênio. Trad. e introd. de Ana Paula Celestino e Adriana Seabra. São
Paulo: Hedra, 2005.
RICOEUR, Paul. A metáfora viva. Porto: Rés, 1983.
TAVARES, Maria do Amparo. A revolução pelos ornamentos: Fernão Lopes. 1982.
Tese (Doutorado em Literatura Portuguesa) – Universidade de São Paulo, 1982.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
27
Sobre a metodologia do Projeto de Pesquisa
Non es juego donde hombre non ríe:
aspectos da sátira galego-portuguesa1
Prof. Dr. Paulo Roberto Sodré
Universidade Federal do Espírito Santo/Ufes
Resumo: Expõe a metodologia de trabalho, a ser desenvolvido em curso de pós-doutoramento,
sobre os aspectos da produção e recepção da sátira galego-portuguesa. Estuda os conceitos de
escárnio e maldizer, jugar de palabras, de maneira a detectar a noção e as normas jurídidoculturais a partir das quais os trovadores teriam produzido gêneros satíricos. Investiga a
recepção de cantigas de caráter mais cômico-popular.
Palavras-chave: Sátira galego-portuguesa; Leis afonsinas e escárnio; Poética medieval.
Abstract: It presents the methodology of the post-doctorade work about aspects of the GalicianPortuguese satire production and reception. It studies the concepts of “escárnio” and “maldizer”,
jugar de palabras, in order to observe the law-cultural notion and rules the “trovadores” had in
mind to produce satirical genders. It investigates the reception of comic-popular “cantigas”.
Key-words: Galician-Portuguese Satire; Alfonsine Laws and “Escárnio”; Medieval Poetics.
Em Leitura e leituras do escarnh’ e maldizer, Américo António Lindeza Diogo (1998)
ora elucida, ora perturba alguns pressupostos teórico-metodológicos da fortuna crítica
dos estudos trovadorescos. Numa das últimas cinco partes, dedicadas mais
especificamente à sátira peninsular, Diogo levanta uma dúvida acerca da tendência dos
críticos de se buscar um todo coerente nas possíveis relações entre as diversas instâncias
textuais e culturais da produção trovadoresca:
Tomem-se para exemplo A Arte de Trovar e os textos do corpus lírico
galego-português. No plano da metalinguagem, dir-nos-ão a mesma coisa? E
o quê? E, supondo que nos falem de “sátira”, é legítimo alargar as
concordâncias à teorização dos Accessus e à “teorização” do palácio [referese o autor à Lei XXIX do Título 9 da Partida Segunda de Las siete partidas
de Alfonso X]? Justamente porque são da mesma época, ou, no limite,
“medievais”, e porque de algum modo estão relacionados ou são de algum
1
Projeto de Pesquisa de Pós-Doutorado, sob a supervisão da Profa. Dra. Yara Frateschi Vieira, da
Unicamp, aprovado pelo CNPq, em curso desde março de 2007, com previsão de conclusão para março
de 2008. Parte deste trabalho foi apresentada, em forma de comunicação, no VII Encontro Internacional
de Estudos Medievais, realizado em julho de 2007, na Universidade Federal do Ceará.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
1
modo relacionáveis, não estaremos especialmente enganados? (DIOGO,
1998, p. 484).
Arguta e inesperada, a questão nos coloca diante de uma desconfiança – não de todo
incomum entre os críticos (Tavani sempre nos alertou, por exemplo, sobre as tentações
interpretativas dos cantares galego-portugueses2) – da leitura moderna tanto das cantigas
como dos (para)textos que nos ajudam a contextualizar e a dimensionar melhor a
produção, a execução e a recepção dos trovadores, em seu próprio tempo.
Diante dessa interrogação, as dúvidas e, por conseguinte, as reflexões sobre como
abordar as cantigas trovadorescas ganham novo matiz. Isso ocorre na medida em que,
habitualmente, tendemos a justificar a análise e a interpretação de uma estratégia
discursiva, de um pensamento e de um recurso poético de trovador a partir de sua
provável relação com reflexões de pensadores e escritores. Tal relação abrange,
contudo, de Aristóteles ao Conde de Barcelos (possível autor da Arte de trovar), de Safo
a Estevão da Guarda (um dos últimos trovadores da tradição galego-portuguesa), de
Sêneca e Agostinho a Freud.
Não resta dúvida de que os conceitos de duração e de intertextualidade legitimam as
aproximações entre um poeta do século XIII e uma recomendação poética do século IV
a. C. ou uma ponderação filosófica do século XX. Entretanto, algumas discussões
parecem ganhar porventura em nitidez ou em precisão quando amparadas em textos o
mais próximo possível do objeto de estudo de um período tão recuado no tempo; ou
seja, discutir uma cantiga à luz de testemunhos do mesmo século, do mesmo ambiente e
geografia social e cultural, talvez seja mais prudente – embora não completamente
acertado, como ressalva Diogo –, tornando as leituras se não mais justificadas, ao menos
mais aproximadas, a princípio, de sua mentalidade.
Essa evidência, contudo, parece não ser ponto comum quando se observam em geral os
estudos sobre lírica galego-portuguesa. Mostra isso Rafael Mérida, em artigo de 1993
(M. MÉRIDA, 1993, p. 433-437), ao chamar a atenção dos críticos para a necessidade
de se estudar a representação da sodomia nas cantigas satíricas, por exemplo,
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
2
considerando o que dizem as leis, reunidas em Las siete partidas, cuja conclusão se deu
entre 1256 e 1265.
Não se pretende acusar com isso a imprecisão ou a ociosidade de abordagens em que se
utilizam conceitos modernos para compreender melhor a produção trovadoresca, como
o fazem Hans-Robert Jauss, em “Littérature médiévale et théorie des genres” (1970), ao
discutir a produção trovadoresca pelo viés da estética da recepção, e Benjamin Liu, em
Medieval Joke Poetry: The Cantigas d’Escarnho e de Mal Dizer (2004), ao interpretar a
sátira galego-portuguesa pela clave psicanalítica.
Tudo dependerá, evidentemente, do tema e do foco escolhidos ou do que se pretende
considerar no corpus das cantigas. Não será vão lembrar o que Descartes comenta a esse
respeito: “(...) a diversidade das nossas opiniões não resulta do fato de uns sermos mais
assizados que os outros, mas somente que conduzimos os nossos pensamentos por via
diversa e não consideramos as mesmas coisas” (1997, p. 11).
Nosso projeto de pesquisa sobre a sátira galego-portuguesa, entrevista à luz de Las siete
partidas e de outros tratados jurídicos peninsulares coetâneos, foi esboçado, não
obstante, a partir dessas considerações preliminares, uma vez que implica no estudo de
documentos contemporâneos àquela modalidade trovadoresca. Ainda que talvez
distantes, de algum modo, da efetiva produção das cantigas, como adverte Américo
Diogo, as leis que regiam a corte alfonsina podem oferecer dados que sugiram
importantes conceitos e valores culturais a partir dos quais os trovadores produziram
seus cantares.
Para detalharmos a metodologia que sustenta o Projeto, expomos, antes e
abreviadamente, seu propósito.
Vários estudos expõem os vínculos entre a produção satírica galego-portuguesa e a
cultura cômica popular (TAVANI, 1984; LOPES, 1994; LIU, 2004). Neles a discussão
é desenvolvida normalmente desde um ponto de vista estrutural e quase sempre
2
Como ilustração, lembre-se da passagem em que ele comenta sobre o perigo de vermos originalidade ou
modernidade nos “encrespamentos superficiais da estrutura de base” das cantigas de alguns trovadores
(TAVANI, 2002, p. 189-190).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
3
descritivo. Entretanto, desconhecemos investigações até o momento que abordem
especificamente a relação entre a prática trovadoresca satírica e Las siete partidas,
conjunto de leis peninsulares organizado, na segunda metade do séc. XIII, por Alfonso
X, tendo em vista especificamente a dicotomia "escárnio", vista como produção mais
cortês, mais aconselhável, e "maldizer", como produção, ainda que cortês, mais cômicopopular ou carnavalizada3, aconselhável com restrições. Essa oposição parece indicar
mais que uma “diferença” entre os gêneros escarninhos na Arte de trovar.
Em cantigas como a de Estevão da Guarda, “Rui Gonçálvis, pero vos agravece” (B
1312, V 917) – em que ele aconselha um trovador a não fazer maldizer, mas, sim,
escárnio como cantiga mais apropriada e menos contundente, o que coincide com o
conselho do legislador de Las siete partidas a respeito do retraer (escarnecer)4 –, a de
Martim Moya, “Per quant’eu vejo” (B 896, V 481) e “De Martin Moya posfaçam as
gentes” (B 917, V 5045) – em que o clérigo critica a tendência maledicente que se
assiste nas cortes – e nas observações do anônimo autor da Arte de trovar a respeito da
cantiga de risabelha e do cacófato – em que ele prestigia mais o escárnio do que a
risabelha6, propensão dos “homens cultos” diante da produção satírica desde os gregos
(ALBERTI, 1999, p. 39 et seq.), nota-se uma predisposição à valorização de cantigas
satíricas que escapem ao estilo popular carnavalesco, franqueado especialmente na
altura em que se promoveu a moda popularizante na Península Ibérica (VIEIRA, 1997).
3
A despeito do que ressalva Gurevitch acerca da teoria de Bakhtin, manteremos por ora o uso dos termos
“carnaval” e “carnavalização”, respeitando seu uso pela fortuna crítica sobre a sátira peninsular produzida
até o momento (GUREVICH, 2005, p. 53-60).
4
“(...) deben cuidar de retraer en manera que digan por palabras cumplidas (corteses) y apuestas
(adornadas) lo que dijeren, y que semeje que saben bien aquello que dicen; otrosí, que aquellos a quienes
lo dijeren tengan gusto en oírlo y en aprenderlo; y en el juego deben cuidar que aquello que dijeren sea
apuestamente dicho (...); y esto debe ser dicho de manera que aquel con quien jugaren [hicieren objeto del
juego verbal] no se tenga por denostado (ofendido); y más, lo tomen con placer, y que tengan con qué reír
de ello, tanto él, como los otros que lo oyeren. Y otrosí, el que lo dijere, que lo sepa bien reír [convertir en
motivo de risa] en el lugar donde conviniere, pues de outra manera no sería juego; y por eso dice el verbo
antiguo que no es juego donde hombre no ríe, pues sin falta el juego con alegría se debe hacer, y no con
saña ni con tristeza. Por esto quien se sabe guardar de palavras excessivas y desapuestas, y usa de estas
que dicho hemos en esta ley, es llamado palaciano (...)” (ALFONSO X, 1992, p. 172-173). Francisco
López Estrada e María T. L. García-Berdoy traduzem o termo retraer como “contar, referir, publicar” (p.
172), como também consideram Carolina Michaëlis de Vasconcelos (1990, v. I, Glossário, p. 78) e Walter
Mettmann (1972, p. 265). Entretanto, na tradução norte-americana, Samuel Parsons Scott opta por
“ridicule” (ALFONSO X, 2001, v. II, p. 330), sentido que concorda com o de Augusto Magne (1967, p.
336 [verbete mais completo, com as várias acepções do termo]) e o de Rodrigues Lapa para o termo
(1995, p. 372 [retraúdo]). Curiosamente, Herbert Allen Van Scoy não registra o termo (1986).
5
Segundo Graça Videira Lopes, a autoria não é segura (2002, p. 300).
6
“Pero er dizem que outras há i ‘de risabelha’: estas ou serám d’escarnho ou de maldizer; e chamam-lhes
assi porque riim ende as vezes os homens, mais nom som cousas em que sabedoria nem outro bem haja”
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
4
Embora esse estilo seja largamente desenvolvido nas cantigas de maldizer, aquelas
cantigas e anotações tendem, a despeito da legitimidade destas, a considerar o profaçar
explícito e/ou obsceno menos aconselhável, alinhando a produção cômica galegoportuguesa às lições retóricas sobre o riso: cultura e urbanidade, ou seja, senso de
conveniência (CÍCERO, 2004; ALBERTI, 1999). Com esse alinhamento, pensamos que
o prestígio e o contato das cantigas com a cultura cômica popular seriam reduzidos,
processo que se percebe na baixa Idade Média e que se acentua nos séculos ditos
clássicos, a partir do XVI (BAKHTIN, 1993).
Mikhail Bakhtin comenta, decerto, a tolerância e a legalização da Igreja e do Estado
medievais da festa popular, “oficializando” assim a incontornável cultura do carnaval
(BAKHTIN, p. 8), paradoxo que se percebe, por exemplo, no “cancioneiro de burlas”.
Distante da genuína manifestação popular do carnaval, por ser expressão legalizada das
cortes senhoriais, eclesiásticas e reais, um bom número de cantigas satíricas,
nomeadamente as de maldizer – e provavelmente as cantigas de risabelha, mais
populares –, no entanto, atualiza recursos próprios daquela cultura (como a grosseria,
injúria, realismo grotesco, paródia [TAVANI, 1984]), ainda que cerceadas pelas leis que
regem a convivência na corte. Por essa razão, a presença dessas cantigas
“carnavalizadas” parece atestar, ao mesmo tempo, a tolerância institucional da cultura
popular na corte – recorde-se das cantigas obscenas de Alfonso X, o Sábio, e dos
trovadores de sua corte – e a tensão que ela provoca nos produtores culturais desse
período, porventura menos tolerantes. Disso são testemunhos as leis, as cantigas de
Guarda e Moya e as considerações do anônimo autor da Arte de trovar.
A dimensão e a abrangência dessa provável disputa ou tensão cultural (LIU, 2004) são,
pontualmente, o objeto da pesquisa que ora apresentamos.
Um estudo com tal propósito implica, como se sabe, na interdisciplinaridade, na medida
em que abarca, ao menos, quatro áreas do conhecimento: Literatura Portuguesa,
Filologia Românica, História do Direito e História da Cultura. Ressalve-se que, embora
os estudos sobre a Música, a Iconografia e a Literatura Oral esclareçam muito da
(ARTE, 1999, p. 42. Itálicos acrescentados). Talvez por isso, as cantigas de risabelha não foram
compiladas nas recolhas dos séculos XIII e XIV.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
5
produção trovadoresca, preferimos nos ater aos manuscritos, numa abordagem
textualista, ou seja, que considera exclusivamente a natureza própria do texto legado por
escrito, desvinculado, para os fins deste Projeto, da perspectiva intersemiótica que lhe é
peculiar.
Como alguns filólogos costumam(avam) alertar, um dos óbices mais sérios ao estudo
crítico-literário da lírica galego-portuguesa é a instabilidade textual dos manuscritos,
tanto dos cancioneiros em que se recolheram as cantigas como do tratado poético e dos
livros de leis da Península medieval. Isso exige que o pesquisador se ampare, nem
sempre com segurança, tanto na observação desses manuscritos, dos fac-símiles, como
em suas edições críticas mais autorizadas.
Assim sendo, e em se tratando de fontes primárias peninsulares do século XIII e XIV,
lançaremos mão, no que diz respeito às cantigas satíricas, das duas edições desse
corpus, a de Manoel Rodrigues Lapa (1995) e de Graça Videira Lopes (2002), que
pretende corrigir e ampliar aquela. A despeito do caráter polêmico desta edição
(SOUZA, 2007), correção e ampliação (VIEIRA, [s.d.]), a princípio, pretendemos
estudar as cantigas arroladas por Lopes, considerando suas justificativas genológicas e
editoriais para incluir no corpus satírico cantigas não recolhidas por Lapa nem por
outros filólogos. Justifica-se esse nosso passo, na medida em que a autora, ademais de
recolher os textos editados por Lapa, relê cantigas a partir de novos dados ou de novas
interpretações que tornam ao menos presumível seu teor jocoso ou escarninho. Como
nos interessa buscar cantigas que, como as de Estevão da Guarda e de Martim Moxa,
indiquem situações e valorações acerca do escárnio e do maldizer, as novas quarenta e
oito cantigas satíricas podem nos ajudar na recolha de nosso corpus. Averiguada,
admitida e considerada a possibilidade levantada por Lopes, cotejaremos os manuscritos
e os textos com as edições individuais conhecidas, quando houver.
A Arte de trovar, felizmente, foi editada por dois renomados filólogos, Jean-Marie
D’Heur (1975) e Giuseppe Tavani (1999). Além disso, conta-se também com a versão e
comentário de Yara Frateschi Vieira para os capítulos sobre cantigas de escárnio e
maldizer (VIEIRA, 2003), fundamentais para nossas discussões. Como a produção
poética galego-portuguesa atualiza a tradição provençal e francesa, observaremos outras
poéticas coevas (LAS LEYS, 1971; MARSHALL, 1972).
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
6
No que concerne às leis alfonsinas – ainda desprovidas em geral de uma edição crítica –
, em especial a Partida Segunda, em que se expõem noções de “corte”, “palácio”,
“cortesia”, “palavra” “jugar de palabra” e “retraer” (fundamentais para a compreensão
da mentalidade e ambiente cultural da época), utilizaremos a edição fac-similada de
1555, em que as Partidas são glosadas por Gregorio López (ALFONSO X, 2004). Será
consultada também a edição das Partidas, em forma de antologia anotada, de Francisco
López Estrada e María Teresa Lopez García-Berdoy (ALFONSO X, 1992), além da
tradução inglesa de Samuel Parsons Scott (ALFONSO X, 2001), cujas introduções e
comentários ajudam muito na compreensão do contexto e do pensamento jurídico da
corte alfonsina. Como há dúvidas acerca da promulgação das Partidas, estudaremos
também a edição do Espéculo, livro de leis, também organizado pelo Sábio,
provavelmente usado antes das Partidas (O’CALLAGHAN, 2001, p. xxxiii-iv), em
edição de Robert A. MacDonald (1990).
O cotejo dessas edições literárias e jurídicas será ainda mediado por glossários7 e
dicionários especializados (SCOY, 1986), de maneira a garantir a interpretação justa de
termos e passagens dos textos peninsulares do século XIII e XIV.
Estabelecidas as lições das cantigas, do tratado poético e das leis que compõem o
corpus deste Projeto, e revisada a fortuna crítica dedicada à sátira galego-portuguesa,
acompanharemos mais estreitamente as observações que consideram as relações entre
esta produção, a poética (LIU, 1998; 2004), a jurisprudência (MONTOYA
MARTÍNEZ, 1989) e a cultura cômica popular (TAVANI, 1984; LOPES, 1994).
Nessas reflexões estarão paralelamente presentes as discussões sobre recepção no
período trovadoresco (JAUSS, 1970), aspecto teórico sensível aos problemas da
motivação da produção e da recepção literária das cantigas, em especial, as satíricas.
A complementar essas considerações de ordem filológica e crítico-literária, e
procurando o mais possível uma hermenêutica adequada aos estudos trovadorescos
(BELTRÁN, 2001, p. 47), ponderaremos ainda, mas não de modo exaustivo, as análises
provenientes da história da cultura popular e os estudos do direito medieval (MERÊA,
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
7
1958; BURNS, 2001; O’CALLAGHAN, 2001). O objetivo é identificar melhor as
condições jurídicas e culturais que permearam o ambiente cortesão galego-português,
entre os séculos XIII e XIV, e sua relação com o conceito de risível ou cômico
estabelecido ou sugerido nas cantigas, em Las siete partidas e na Arte de trovar.
Decerto, não será fácil espreitar essa relação, forçosamente sutil e não raro inapreensível
pelos documentos, mesmo contemporâneos dos trovadores, e análises deles derivadas.
A
equação
normas
jurídicas/convívio
social
cortês/prática
cultural
redunda
necessariamente – dadas as distância temporal e a exigüidade de testemunhos – em
imprecisão e contornos largos.
Em que pese essa provável – se não incontornável – falta de nitidez de resultados, vale a
tentativa de buscar respostas para questões importantes acerca do trobar galegoportuguês. Dentre elas a da noção mais matizada de sátira numa corte, e em seu raio de
influência, conduzida por um Sábio polígrafo e polêmico, regente e trovador,
provavelmente um rex facetus.
Referências:
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Zahar, 1999.
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MacDonald. Madison: Universidad de Richmond, 1990.
ALFONSO X. Las siete partidas. Edição fac-similada da edição salmantina de 1555,
glosada por Gregorio Lopez e impressa por Andrea de Portonariis. Madrid: Boletín
Oficial del Estado, 2004. 3 v.
ALFONSO X. Las siete partidas. Translation by Samuel Parsons Scott. Edition by
Robert I. Burns. Pennsylvania: University of Pennsylvania, 2001. 5 v. v. II.
ALFONSO X. Las siete partidas: antología. Selección de Francisco López Estrada y
María Teresa López García-Berdoy. Madrid: Castalia, 1992.
ARTE de trovar do Cancioneiro da Biblioteca Nacional de Lisboa. Edição crítica com
introdução e fac-símile de Giuseppe Tavani. Lisboa: Colibri, 1999.
7
Para as cantigas satíricas, o vocabulário de Rodrigues Lapa (1995) continua sendo indispensável. Para
complementar seus verbetes, serão utilizados os glossários das edições críticas dos trovadores estudados.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
8
BAKHTIN, Mikhail. A cultura popular na Idade e no Renascimento: o contexto de
François Rabelais. 2. ed. Tradução de Yara Frateschi. São Paulo: Hucitec, 1993.
Introdução, p. 1-50; Capítulo Primeiro, p. 51-123.
BELTRÁN, Vicenç. El rey sabio y los nobles rebeldes. La poética del escarnho. In:
ENCONTRO INTERNACIONAL DE ESTUDOS MEDIEVAIS DA ABREM, 3., Rio
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BURNS, Robert I. The Partidas: Introduction. Introduction to the First Partida. In:
ALFONSO X. Las siete partidas. Translation by Samuel Parsons Scott. Edition by
Robert I. Burns. Pennsylvania: University of Pennsylvania, 2001. 5 v. v. 1. p. ix-xxix; p.
li-lviii.
CÍCERO. El orador. Traducción de Eustaquio Sánchez Solar. Madrid: Alianza, 2004.
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Série Estudos Medievais 1: Metodologias
9
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Série Estudos Medievais 1: Metodologias
10
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trovadores e jograis galego-portugueses, de Graça Videira Lopes. Românica, Lisboa, p.
255-258, [s.d.].
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
11
As cantigas de amor
de Vidal, judeu d’Elvas
Profa. Dra. Yara Frateschi Vieira
Universidade Estadual de Campinas/Unicamp
Resumo: O presente texto levanta questões suscitadas pelo exame das cantigas de amor de Vidal, Judeu
d’Elvas. Não podendo ainda apresentar conclusões, limito-me a indicar as etapas dessa primeira
abordagem dos textos e as linhas de pesquisa que me parecem instrumentos indispensáveis para elucidar
os complexos aspectos envolvidos pela inclusão de cantigas de um trovador judeu nos Cancioneiros
galego-portugueses, bem como o seu possível diálogo com o texto bíblico e com a tradição poética árabe,
hebraica e românica.
Palavras-chave: Lírica galego-portuguesa; Vidal, judeu d’Elvas; Cantigas de amor; Motivos bíblicos;
Poesia árabe e judaica na Península Ibérica medieval.
Abstract: The present text raises questions suggested by the exam of the cantigas de amor composed by
the Jewish-Portuguese poet Vidal. Since I am not yet in a position to present conclusions, I limit myself to
indicate the steps taken in this first approach to the texts, and the research lines that seem to me
indispensable tools, in order to elucidate the complex aspects involved in the inclusion of poems
composed by a Jewish troubadour in the Galician-Portuguese Cancioneiros, as well as their possible
dialogue with the Biblical text and with the Arabic, Hebrew, and romance poetic tradition.
Key-words: Galician-Portuguese Lyric; Vidal, the Jewish poet from Elvas; Love songs; Biblical motives;
Arabic and Hebrew poetry in medieval Iberia.
I. Introdução
O presente texto constitui um primeiro levantamento das questões que me foram
sugeridas pelo exame mais atento das cantigas de amor de Vidal, Judeu d’Elvas. Não
podendo ainda apresentar conclusões, limito-me a indicar as etapas dessa primeira
abordagem e as eventuais pistas que me foram parecendo frutíferas, à medida que me
familiarizava com as cantigas e com todos os problemas poéticos e contextuais que
colocam; na verdade, aliás, deveria dizer, à medida que fui também sendo tomada por
uma sensação de grande estranhamento, diante do quadro de relações amplas e
complexas entre os três mundos peninsulares que, embora coexistentes e fortemente
permeáveis uns aos outros, permaneceram afastados e geralmente isolados pelas
respectivas críticas: o mundo cristão, que produziu a lírica trovadoresca, e os mundos
árabe e judaico, com uma produção lírica mais homogênea, em árabe e hebraico.
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
1
II. Estado da questão e relevância do tema
As duas cantigas de amor atribuídas a Vidal, Judeu d’Elvas, foram recolhidas nos
cancioneiros copiados em Itália, o antigo Colocci-Brancuti, hoje Cancioneiro da
Biblioteca Nacional (B 1605 e 1606) e o Cancioneiro da Vaticana (V 1138 e 1139). Em
ambos a transmissão é incompleta, o que já se anota na rubrica anteposta às cantigas: “e
non sabemus mais d’ela[s] mais de duas cobras, a primeira cobra de cada hũa.”
(PICCHIO, 1979, p. 85)
As cantigas foram objeto de cuidadosa edição crítica, acompanhada de estudo históricoliterário, por Luciana Stegagno Picchio (1979, p. 67-93), resenhada por Rodrigues Lapa
(1961-1962, p. 359-361).
A identificação do poeta como judeu, a rubrica que lhe foi anteposta e o lugar onde
foram copiadas as cantigas nos Cancioneiros suscitam, antes de mais nada, questões
importantes sobre o motivo que teria levado o compilador a incluir na recolha
trovadoresca cantigas reconhecidamente truncadas e de um trovador pertencente a uma
minoria religiosa e social. Tanto Picchio (1979, p. 70-71) como Oliveira (1994, p. 241
ss.) procuraram explicar o porquê dessa inclusão que parece ir contra os critérios gerais
subjacentes à compilação como um todo.
Além desse aspecto, as cantigas de Vidal despertaram interesse por incluírem imagens
pouco usuais no conjunto das cantigas trovadorescas galego-portuguesas. Carolina
Michaëlis de Vasconcelos já chamara a atenção para o uso do símile do cervo que
brama pelas águas, considerando o poeta “quasi o unico entre os trovadores que utilizou
reminiscencias biblicas, em cantares de amor” (1990, II, p. 624) e vários estudos
posteriores retomaram o uso da metáfora do cervo e da cerva por Vidal, principalmente
relacionando-o a imagens semelhantes que se encontram nas cantigas de Pero Meogo
(MÉNDEZ FERRÍN, 1966; ASENSIO, 1970, p.128-131; HATTO, 1965, p. 815-819;
AZEVEDO FILHO, 1974; DEYERMOND, 1979, p. 265-283; RECKERT &
MACEDO, 1996, p. 108-131; MARTÍNEZ PEREIRO, 1996, p. 191ss).
Apontam-se geralmente possíveis fontes bíblicas para essas imagens, mas também
fontes folclóricas pagãs bem mais antigas, que constituiriam um repertório indo-europeu
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
2
comum a várias culturas. Reckert e Macedo lembram ainda a presença da “gazela” nas
carjas moçárabes e observam que a raiz da palavra gazela em árabe é comum também a
“amante” e à denominação genérica arábico-persa de um poema de amor, ghazal (1996,
p. 110-111).
Além do motivo do cervo, outras imagens singularizam as cantigas de Vidal: assim, a
caracterização do amante “tolheyto, como a quen dam as hervas”; a visão do “peyto/
branco” da dona de Elvas; a presença das “servas” como interlocutoras do poeta; o
poeta como cervo que “pacesse das hervas”; e a senhor que “semelha rrosa que ven,
quando sal d’antr’as rrelvas”. Essas imagens não têm recebido tanta atenção dos críticos
como a dos cervos anteriormente mencionada, que, como já disse, tem sido
normalmente trazida à baila na esteira das interpretações das cantigas de Pero Meogo.
Na cantiga de Vidal, porém, faz-se um uso muito próprio dessa figura, comparando-se o
poeta apaixonado ao “cervo lançado, que sse vay do mund’a perder/ da companha das
cervas”.
Um estudo que procurasse iluminar todas as possíveis ramificações dessas imagens, por
si só já constituiria motivo suficiente para justificar um renovado interesse nas cantigas
do judeu d’Elvas.
No entanto, não creio que tal estudo fosse factível, se não levasse em conta os estudos
vindos à luz principalmente nas duas últimas décadas, e que se têm ocupado, com
perspectiva renovada, das relações entre as três culturas que conviveram de forma
bastante estreita, embora nem sempre pacífica, na Península Ibérica dos séculos VIII a
XV: cristãos, muçulmanos e judeus; e também, naturalmente, como decorrência disso,
os que focalizaram as inter-relações culturais ativas que se podem observar, não apenas
entre judeus, muçulmanos e moçárabes em Al-Andalus, entre os séculos VIII e XII, mas
também entre judeus e cristãos, a partir do momento em que a Reconquista avança para
o Sul. Uma bibliografia inicial, que pude levantar até agora sobre o tema, inclui
TAVARES, 1979, 1982-84 e 1992; MITRE FERNANDEZ, 1988; GOITEIN, 1988;
GERBER, 1992; MANN, V., 1992; BAER, 1993; REILLY, 1993; CONSTABLE,
1997; GLICK, 2000; LEROY, 2001; FLETCHER, 2003; CORFYS, 2007 – mas
corresponde apenas a uma fração de tudo o que se publicou e deverá ser aumentada à
medida que a investigação prossiga e que as condições de consulta bibliográfica o
Série Estudos Medievais 1: Metodologias
3
permitam. Ao mesmo tempo, a poesia árabe e hebraica da Península tem recebido
também atenção especial, com novas edições e estudos que nos oferecem oportunidade
de aprofundar eventuais comparações. Da mesma forma, um levantamento bibliográfico
preliminar levou-nos a GARCÍA GÓMEZ, 1990; RUBINSTEIN, 1993; SÁENZBADILLOS e TARGARONA BORRÁS, 1994; ZWARTJES, 1997; CORRIENTE,
1998; DORON, 2000; SLEIMAN, 2000; COLE, 2006 e 2007.
III. As cantigas de Vidal revisitadas
Elenco a seguir, portanto, aqueles aspectos que me parece poderiam eventualmente
beneficiar-se de um novo olhar:
1. Biografia
Como já foi dito, nada se encontrou sobre a biografia de Vidal, a não ser aquelas
informações que se oferecem na rubrica que antecede as cantigas:
Estas duas cantigas fez hũu judeu d’Elvas, que avia nome Vidal, por amor
d’ũa judia de ssa vila que avia nome Dona. E pero que é ben que o ben que
home faz sse non perça, mandamo-lo screver; e non sabemus mais d’ela[s]
mais de duas cobras, a primeira de cada hũa. (PICCHIO, 1979, p. 85).
As cantigas encontram-se naquela parte dos Cancioneiros que Oliveira caracteriza como
o terceiro grupo da “compilação geral”, isto é, aquela que teria sido realizada talvez na
década de cinqüenta do século XIV (1994, p. 246). De acordo com essas coordenadas
cronológicas, podemos supor que Vidal teria vivido em Elvas por volta do fim do século
XIII e primeira metade do XIV.
Seria preciso verificar, porém, nos trabalhos que se ocupam da presença dos judeus em
Portugal até o século XV, se é possível encontrar alguma referência a um Vidal, judeu
d’Elvas (as que vimos até agora simplesmente se baseiam na rubrica acima citada: p. ex.
TAVARES, 1992, p. 143). Por e-mail recebido do Dr. Arlindo Sena (15.3.2008),
historiador especializado na história de Elvas, fui informada de que um Mestre Vidal,
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cirurgião, judeu de Elvas, é mencionado na Judaria de Elvas, em 22 de agosto de 1461,
tendo prestado exame na disciplina de Física (doc. ANTT livro 9, fl. 131 e livro 31, fl.
116 v, Chancelaria de D. Afonso V). Naturalmente, as datas são muito tardias para que
se tratasse do poeta. No entanto, pelos dados que encontrei em obras referentes aos
judeus em Portugal (TAVARES, 1992), há uma tendência nas famílias judias a repetir
os nomes ao longo das gerações – não seria impossível, portanto, que esse Mestre Vidal
fosse descendente longínquo do nosso Vidal. De qualquer forma, seria preciso consultar
também os documentos depositados na Torre do Tombo (constantes das Chancelarias
reais ou provenientes de Elvas) para ver se registram alguma referência a um judeu
Vidal de Elvas, dentro dos limites cronológicos assinalados acima.
O nome Vidal é bastante comum entre judeus, correspondendo ao hebraico Hayim (=
Vida). Por outro lado, o nome feminino Dona, como nome atribuído a uma judia,
aparece em um documento do século XIV, publicado por Pedro de Azevedo entre os
documentos que se referem a Martim Soares e a sua família:
Sabhã quantos esta carta de quitaçon vyren e léér ouuiren Que eu Náámã
ffilho de Josep Náámã e de dõna Dõna sa molher e procurador da dita dõna
Dõna mha madre ... (doc. datado de 14 de julho de 1304 e feito em Santarém:
AZEVEDO, 1918, p. 257).
Em outro documento, passado em Leiria em 17 de abril de 1293, no qual Isaac Rabi dos
Judeus de Leiria e familiares renunciam a umas casas “que estão en a Juderia que foy
em leirea”,
comparece como testemunha um “Samuel trobador”. Azevedo assim
comenta o fato de o epíteto “trobador” ser atribuído a um judeu de Leiria:
Um nome completamente novo na serie dos trovadores é o do judeu Samuel,
de Leiria; ou será a designação de trovador que se lhe junta em maneira de
profissão uma palavra de que se não póde tirar consequencia nenhuma? O
hebraísmo não ficou, é certo, indifferente ao movimento que se deu na
Provença, conservando-se ainda hoje algumas producções escriptas na lingua
d’oc nos caracteres hebraicos. Em Castella tambem se derão factos identicos,
não sendo para admirar que a judaria (e não judiaria) de Leiria, que tão
notavel se tornou no sec. XV pelas suas impressões, talvez as primeiras em
Portugal, tivesse tambem cultivado o campo poetico. (AZEVEDO, 1897-99,
p. 119 e 129).
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Sabemos que um grande poeta judeu, Todros Abulafia, esteve por algum tempo ligado
às cortes de Afonso X e do seu filho Sancho IV (COLE, 2007, p. 256-257) e que deve
ter tido familiaridade com a poesia trovadoresca então aí praticada, pois dois dos seus
poemas tratam do conceito de “amor espiritual” (DORÓN, 1994). Zwartjes menciona
alguns poetas judeus na Provença e inclina-se a crer que a maioria desses poetas
conhecesse a poesia provençal, hispano-árabe e hispano-hebraica: como evidência,
informa que na poesia de Abraham de Béziers (segunda metade do século XIII)
encontram-se mencionados dois trovadores, Folquet de Marselha e Peire Cardenal, e
dois poetas árabes: Ibn Quzmán e al-Harini (1997, p. 83). Não conheço, porém,
nenhuma referência a um poeta judeu que tivesse composto cansós ou cantigas em
romance; as únicas composições em romance que conheço dos poetas árabes e judeus
da Ibéria medieval são as que encontramos nas “carjas” (GARCÍA-GÓMEZ, 1990;
CORRIENTE, 1997; ZWARTJES, 1997). Nesse contexto, Vidal seria um caso bastante
especial de poeta judeu que compôs na língua e no estilo da cultura dominante.
2. As cantigas
A edição crítica de Stegagno Picchio (1979) não parece deixar margem para revisões.
De todas as formas, penso que a estrutura estrófica talvez pudesse ainda requerer
alguma atenção.
No que se refere aos motivos já apontados acima e que constituem aparente novidade no
âmbito da lírica galego-portuguesa, gostaria de fazer algumas observações prévias:
2.1 Motivo do cervo
As diversas possibilidades de fonte desse motivo que têm sido aventadas, como já
mencionei anteriormente, incluem: fontes bíblicas do Cântico dos Cânticos ou do salmo
42.1: “Como o cervo anseia pelas correntes das águas, assim a minha alma anseia por ti,
ó Deus!” Esta última é a sugerida por Carolina M. de Vasconcelos (1990, II, p. 624),
mas tem sido rejeitada, uma vez que na cantiga não existe o sentido místico que o símile
ali adquire. Aubrey Bell chamou a atenção para as imagens do cervo nas cantigas de
Pero Meogo e aventou a hipótese de o trovador ter sido judeu, por causa da sua
familiaridade com a cultura bíblica (BELL, 1922, p. 258). Eugenio Asensio considerou
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que essa hipótese carece de base sólida e lembrou que o cervo, símbolo fálico, pertence
à mais típica herança do paganismo ibérico (ASENSIO, 1957, p. 56). Arthur Hatto, por
sua vez, analisou o emprego da imagem do cervo e da cervo por Pero Meogo e por
Vidal, e considerou que a imagem utilizada por este último é “singularmente inepta”,
uma vez que compara o amante ao cervo que se vai do mundo perder, da companhia das
cervas. Ora, argumenta Hatto, numa cantiga de amor a referência às cervas, no plural,
constituiria uma séria quebra do código da absoluta fidelidade do amador à dama
(HATTO, 1965, p. 816-7).
Embora não concorde com essa restrição, penso que as suas reflexões sobre a relação
entre as referências ao cervo e à cerva nas cantigas dos dois trovadores e as suas
eventuais correspondências no Cântico dos Cânticos, na versão hebraica e na da
Vulgata, são dignas de consideração e devem ser levadas em conta.
Segundo observa Hatto, na versão da Vulgata do Cântico dos Cânticos os gêneros do
cervo estão misturados. Assim, em 2: 7, lemos capreas cervosque e em 2:8 e 2:17
caprae hinnuloque cervorum. Em hebraico, porém, os termos usados são todos
femininos em 2:7, e todos masculinos em 2:9 e 2:17. E conclui: “Se os cervos de Meogo
derivam do Cântico, só podem ter vindo através de alguém que conhecia o hebraico”
(1965, p. 816).
Essa observação levanta uma questão que me parece bastante relevante: se Vidal
conhecia a Bíblia na versão hebraica, como muito provavelmente ocorreria, uma vez
que era comum o uso do hebraico nas funções religiosas e nos documentos notariais,
ficando o romance para o uso cotidiano e para o contacto com os cristãos (TAVARES,
1992, p. 45), teremos de comparar as duas versões (as suas cantigas e as eventuais
referências bíblicas hebraicas) para ter uma idéia mais clara da possível fonte de Vidal.
Na verdade, temos de nos perguntar qual o animal que se refere na versão hebraica –
nas traduções para o latim e para as demais línguas há uma grande variedade, que inclui
o cervo, a cerva, a corça, o gamo, a gazela. Na tradução que Haroldo de Campos fez do
Cântico dos Cânticos, por exemplo, encontramos: II.7 Eu vos conjurei filhas de
Jerusalém/ pelas corças ou pelos gamos campestres; II. 9 Semelha meu amado o cervo/
ou a cria da cabra montesa; II. 17 Volta como quem semelha meu amado o cervo/ ou a
cria da cabra montesa (CAMPOS, 2004, p. 116 ss.).
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Deveríamos ainda trazer à colação o emprego da imagem na poesia árabe e hebraica de
Al-Andalus e da Ibéria da reconquista: a uma primeira leitura, pareceu-me que o
emprego de “cervo” ou “gazela” nesses poemas tem um uso bastante claro, estando pelo
“objeto amado” (homem ou mulher), e ocasionalmente referindo-se ao próprio poeta;
mas seria preciso também verificar qual é o animal aludido na versão original, uma vez
que nas traduções observamos a mesma variação: p. ex., “gazela”, “cervo”, “filhote de
cervo”, “cerva”. Zwartjes anota que o amado é uma gazela (gazal) ou um filhote de
cervo (raša, em inglês fawn) (1997, p. 200).
Comentando os problemas que coloca a tradução dos poemas medievais hebraicos para
um público moderno, Cole observa:
Otherwise, what is one to do, for example, with the gazelle – to take but one
of the period’s prominent conventions – the object of erotic (often
homoerotic) desire, which in much medieval Arabic and Hebrew poetry is
represented by a figure variously referred to as “fawn”, “doe”, “gazelle”,
“deer”, and so on, with interesting philological slippage and camouflage
along the way (2006, p. 58).
É possível que Vidal tenha querido introduzir nos seus poemas amorosos em galegoportuguês o animal cervídeo que constitui na poesia árabe e hebraica algo como uma
marca discursiva do gênero (semelhante à ocorrência de “senhor” nas cantigas de amor
ou de “amigo”, nas de amigo), mas, consciente de que esse animal específico não
pertencia à tradição da poesia em romance, a não ser na forma já empregada por Pero
Meogo, tenha optado por essa forma que, além de tudo, tinha também a vantagem de lhe
chegar através do Cântico.
A respeito da inclusão de referências ou citações bíblicas no texto do poema por poetas
hebraicos, Cole informa que
(...) the use of biblical phrasing was brought over, in part, from Arabic
literature, where it was based on the Quran and was known as iqtibas,
literally “the lighting of one flame from another”, and implied a source and
transfer of energy. Rather than constituting a rote application to an otherwise
useful but unadorned and plain poetic surface – or existing at a static remove
from meaning (or experience, or reality) in the poem, ornaments serve in this
verse as carriers, and questioners, of value (2006, p. 62).
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E é ainda o mesmo Cole que chama a atenção para o problema que um leitor moderno,
não familiarizado com a riqueza da cultura árabo-judaica na Península medieval,
encontra quando procura “traduzir” esses poemas:
For in translating or merely closely reading medieval Hebrew poems, one is
riding (and responding to) a ripple of the Judeo-Arabic cultural revival in
which the poems were formed; engaging in the history of biblical
commentary and all that brings with it – with regard to theology, philology,
even archaeology and sociology; and addressing or attempting to address a
contemporary secular religious divide. In other words and whether one likes
it or not, one is dealing with virtually the whole of the “argument” of Jewish
history, and the religious and secular scholarship pertaining to that history
(2006, p. 53).
2.2 Motivo do “peito branco”
Sendo motivo de uso único na lírica galego-portuguesa, é natural que chamasse a
atenção dos estudiosos. Stegagno Picchio vê nessa descrição o sinal de quanto Vidal
estava fora das regras da poesia cortês, “num clima de sensualidade mais liberta”
(PICCHIO, 1979, p. 79). Ao mesmo tempo, lembra que a poesia árabe era muito mais
livre na descrição da mulher e que o “peito branco” é constante atributo das filhas de
Israel em poemas provençais, entre os quais cita o “Blanc pieitz ab dura mamella,/ Del
talh dels filhs d’Israels” de Peire Vidal. Referindo-se a uma carja em que aparece a
expressão “col albo” (vid. infra), menciona um artigo de Aurélio Roncaglia, em que este
considera o tema como um possível desenvolvimento do que se representa no Cântico
dos Cânticos (1.10): Collum tuum sicut monilia (PICCHIO, 1979, p. 77). Na tradução
de Haroldo de Campos: belo teu colo entre colares (CAMPOS, 2004, p. 115).
Num rápido percurso pela poesia de Al-Andalus encontro nas carjas algumas instâncias
de “colo branco”. Assim, na leitura de F. Corriente, a carja de Yehuda Ha-Levi: Como
prenda tenedme el collar, madre, en depósito a mi disposición; cuello blanco quiere ver
mi señor, no quiere joyas (1997, p. 315); e a de um anônimo: Madre! ¡qué amado! Bajo
la melenilla rubita, aquel cuello blanco y la boquita roja (1997, p. 285). Numa carja
anônima, transcrita por García-Gómez, lemos: Pero si un fuego caliente con tanta/
brasa,/ ¿puede apagarlo ese pecho de nieve/ blanca? (1990, p. 187); e na muaxaha
XXXIV, de Abu-l-Qasim al-Maniši: ¿Dónde estáis, ojos de noche,/ rosas de la cara,/ el
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besar los dientecillos,/ el morder la plata/ de los pechos, ... (1990, p. 365). Nesses dois
casos, seria preciso verificar inclusive se o enjambement cai no mesmo lugar, no
original e na tradução.
Uma pesquisa mais ampla poderá encontrar outras ocorrências em carjas ou em poemas
árabes ou hebraicos.
2.3 Motivo da “rosa entre as relvas”
Uma imagem semelhante encontra-se no Cântico dos Cânticos (II. 1-2): Eu uma
anêmona das várzeas de Sharon/ uma rosa das planuras// Qual uma rosa entre cardos
silvestres/ tal minha amada entre as mulheres (CAMPOS, 2004, p. 116-7).
Em relação a esse motivo, Hatto comenta que a versão da Vulgata traz: flos campi et
lilia convallium. No entanto, continua, embora a versão hebraica realmente diga “Eu
sou o narciso de Sharon, o lírio dos vales”, a segunda flor era tradicionalmente
identificada, já algum tempo depois da Diáspora, não com o lírio, mas com a rosa
(1965, p. 816). Ele não refere o motivo seguinte (II. 2), o da rosa entre cardos silvestres,
que me parece mais próximo da imagem de Vidal: “semelha rrosa que ven/ quando sal
d’antr’as rrelvas”. Será preciso conferir a imagem na versão em hebraico.
2.4 Motivo das ervas que tolhem o amante
Ainda não encontrei nenhum antecedente para esse motivo, embora o tema do vinho ou
do hachiche fosse comum na literatura árabe, como um recurso de sedução:
Among the Muslims, hashish, together with wine (which was not then
prohibited to the Muslims), was often used to aid in the seduction of reluctant
boys; even more frequently it was used by boys trying to seduce men”
(ROTH, 1982, p. 26).
Roth cita um livro que talvez contenha esclarecimentos sobre o assunto: Franz
Rosenthal, The Herb: Hashish versus Medieval Muslim Society. Leiden, 1971.
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2.5 Motivo das servas da dama como interlocutoras do poeta
Tampouco conheço antecedentes para esse motivo, que talvez exista na poesia árabe ou
hebraica.
2.6 Motivo do cervo que pasce entre as ervas
Provavelmente um motivo também com origem no Cântico dos Cânticos, onde
encontramos (2. 16): Meu amado está comigo eu estou com meu amigo/ que pastoreia
entre rosas; ou 6: 2: Meu amigo desceu a seu jardim/ em meio aos canteiros de bálsamo/
Pastoreia ao longo dos jardins/ e colhe rosas no caminho. Será preciso conferir, porém,
se no original hebraico o verbo usado corresponde a “pastorear” ou a “pastar”, como em
4:5: Teus dois peitos como dois filhotes/ gêmeos de uma corça/ Que vão pastando entre
rosas (CAMPOS, 2004, p. 119, 123, 130). A tradução inglesa na versão de King James
leva-nos a supor que nos dois primeiros casos, trata-se de “pastorear”, com o sentido de
levar o rebanho a pastar; e no segundo, de pastar. Com a identificação entre o “amado”
e o “cervo”, porém, os dois verbos podem se tornar equivalentes.
IV. Conclusão
Resumindo, creio que existem aspectos importantes que merecem ser revisitados nas
duas cantigas truncadas de Vidal, Judeu d’Elvas. A sua editora, Luciana Stegagno
Picchio, já se tinha dado conta disso: encerrou o seu cuidadoso e perceptivo estudo com
as seguintes palavras, que me permito entender como um convite para prosseguir na
investigação dos caminhos que ela abriu para nós:
(...) os seus textos, que à primeira vez parecem vasados com cuidados
artesanais nas formas pré-existentes de uma escola entendida no sentido mais
restrito do termo, abrem de súbito o horizonte para um mundo e uma cultura
diversas e nos revelam, no Portugal de trezentos, a existência de estratos
sociais para os quais a poesia era alcançável por caminhos diversos dos da
temática dos trovadores (1979, p. 83).
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