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Regulação social ou conhecimento poderoso? Possibilidades do currículo em Thomas Popkewitz e Michael Young1 Um espíritu sano en um cuerpo sano es uma descripcíon breve, pero completa de un estado feliz en este mundo [...] La felicidade y la desgracia del hombre son, em gran parte, su propia obra. El que no dirige su espíritu sabiamente, no tomara nunca el caminho derecho, y aquél cuyo cuerpo seja enfermizo y débil, nunca podrá avanzar por ello (LOCKE, 1986, p. 31). Toda nuestra sabiduría consiste en prejuicios serviles; todos muestros usos son sino sujeción, tortura y violencia. El hombre civil nace, vive y muere en la esclavitud: a su nascimiento se le cose em uma mantilla; a su muerte se le clava en um féretro; en tanto que él conserva La figura humana está encadenado por nuestras instituiciones (ROUSSEAU, 2008, p.42). O debate em torno do papel da escola na contemporaneidade apresenta uma agenda marcada pela percepção de suas dimensões políticas cujos fundamentos transitam da pressuposição moderna do poder do conhecimento científico à premissa pós moderna de como esse conhecimento “verdadeiro” e “forte” pode ser pensado como formação discursiva mediadora de controle social e/ou de processos emancipatórios. Enquanto alguns acreditam na ciência como um entendimento objetivo capaz de ampliar a compreensão dos fenômenos sociais e naturais, outros indicam que esta mesma ciência é uma formação discursiva que concorre para exercer controle e dominação. Para ambas perspectivas a escola e o conhecimento por ela propalado, podem contribuir para subverter as iniquidades sociais uma vez que sua missão é desenvolver certas dimensões intelectuais que propiciem o esclarecimento e autonomia nos educandos. Esta ambiência tem situado as abordagens sociológicas do currículo num paradoxo no que tange ao papel atribuído à escola e a função do conhecimento por ela transmitido. De um lado, temos os percursores do projeto da modernidade que advogam que devemos atualizar o iluminismo e fazer com que o currículo escolar forneça ao aluno um conhecimento poderoso e universal (YOUNG; 2007, 2007a, 2010, 2010a), sendo este representado pelas verdades científicas. Em outro polo, diametralmente oposto, emergindo no bojo do ataque a modernidade iluminista e racionalista, temos os signatários da percepção do conhecimento escolar como forma de regulação social (POPKEWITZ; 2000, 2004, 2010) e do conhecimento científico como um conhecimento particular historicamente formado e estruturador de percepções mantenedoras e reguladoras das relações desiguais. 1 IVAN FONTES BARBOSA (DCS-UFPB) 1 Estas questões são fundamentais para os trabalhadores da educação, que parecem estar inseguros quanto ao papel da escola e do currículo neste contexto. É a partir delas que podemos compreender as disputas neste campo sobre a função do conhecimento e sua relação com o papel da escola no atendimento das demandas universais ou particulares provenientes dos conflitos políticos. O pano de fundo desta contenda é a distinção entre uma forma de perceber o conhecimento que postula a existência de verdades universais e outra compreensão que vem apontá-las como discurso promotor de controle social, edificado historicamente por certas classes. A primeira visão implica a percepção de que a escola não equaliza e não promove a revolução social por não conseguir alcançar patamares elevados de qualidade e de acesso. Ela seria o lugar do conhecimento poderoso, científico, um saber que possuiu uma natureza universal e metódica. Instituição cujo propósito é transmitir a sabedoria acumulada e produzida pela espécie humana ao longo de sua história, e, ao fazê-lo, possibilitaria uma ação mais racional, prudente, calculada e mediada exclusivamente por valores e saberes fundados sobre o esclarecimento. De outro lado, encontra-se uma leitura que permite enxergar de forma mais incisiva o papel do currículo como instrumento político. Ela está voltada para a crença de que a escola representa uma cultura de um grupo e possui um currículo formatado de acordo com a visão de mundo do segmento que determina quais conhecimentos devem ser transmitidos pela escola. Neste caso, o conhecimento educacional deixa de ser neutro e passa a ser percebido a partir das relações de poder entre os segmentos que projetam os saberes que legitimam as dimensões simbólicas que garantem a distinção e alocação desigual de suas posições. Na verdade temos de certa forma um ataque à razão científica em sua típica e esperançosa forma moderna. Esta investida permitiu, no âmbito do discurso, a abertura para que a escola assumisse uma nova dimensão política. Os conhecimentos passam a ser contextualizados e criticados, sendo a seleção mediada pelos efeitos de poder (emancipador ou regulador) que ela exerce sobre os sujeitos. Neste sentido, a dimensão política do conhecimento tem sido estimulada diretamente uma vez que a própria prática pedagógica não se percebe mais como neutra e desinteressada. O texto está estruturado em torno de algumas questões. Primeiro, sugiro alguma das dimensões politicas e filosóficas que perpassaram o processo de escolarização ocorrido no transcurso dos séculos XVIII e XIX. Em seguida situo a emergência da preocupação da sociologia da educação com o currículo. Logo depois apresento variações da percepção do que seja a verdade e como ela resvala na estruturação do currículo e 2 caracteriza, com isso, uma proposta política pedagógica em Michael Young e Thomas Popkewitz. Encerro o texto fazendo algumas considerações acerca do paradoxo que estas tendências aparentam representar. A dimensão política moderna do conhecimento escolar Dizer que o conhecimento escolar tem uma índole política implica sugerir que ele é organizado e selecionado com vista à atuação de sujeitos em torno de determinados valores e formas de percepção do mundo e de suas relações. O Ocidente foi à cultura que mais especificamente construiu uma representação ideal-típica do ser humano centrado no uso da racionalidade e no controle sistemático das dimensões emocionais e fantasiosas. Desde os gregos, temos a emergência da construção de um projeto político educativo que visava à autonomia dos sujeitos em função da incorporação reflexiva e sistemática do conhecimento. De acordo com Bertrand Russel (1956, p.35), a ideia antiga acerca da natureza humana era que a virtude e a ação racional dependiam essencialmente da vontade. Nascíamos prenhes de maus desejos e ignorantes, devendo, por intermédio da organização da volição e da razão, controlá-los. Estas projeções antigas, porém não tão em desuso, atravessaram o itinerário do desenvolvimento e pensamento ocidentais e assumiram a condição de lastros da construção política pedagógica do projeto moderno. A “Alegoria da Caverna” de Platão (428-348 a.C.) é um dos textos que fundam desta tradição. É nele que temos um primeiro programa filosófico, político e pedagógico sistemático acerca da necessidade de transmissão do conhecimento e de sua construção que prevalece ainda hoje como fundamento de práticas sociais e de suas propostas educativas. Platão (2004, p.225), cabreiro com a natureza sensorial da percepção humana, alertava que ela conduzia para que os homens atribuíssem realidade [...] às sombras dos objetos. O pensamento racional inicia um processo de dissolução de sua relação com o real, colocando o mundo inteligível em outra dimensão, a do pensamento, do conceito, da ideia abstrata, que acaba se tornando o plano que fundamenta as noções universais de verdade. Quinze séculos depois o inglês Francis Bacon [1620] (2005, p.39) insistiu persistentemente na necessidade de tomarmos cuidado com os sentidos e com as nossas opiniões e suposições. Indicava que purgássemos a mente dos ídolos, uma vez que estes, enquanto noções falsas que ocupam o intelecto humano e nele se acham implantados, não somente obstruem o entendimento eficaz das coisas, como impedem o acesso à verdade. René Descartes [1637] (2003) indicou que o homem é 3 um animal racional. O desabrochar dessa dimensão, que é naturalmente igual em todos os homens, só ocorre por intermédio de um conjunto de procedimentos (método) para conduzir bem a razão. Immanuel Kant [1783] (2005, p.68) em um dos textos mais apologéticos e representativos dessa tradição moderna conclama que ousemos saber e garantamos as condições do aperfeiçoamento futuro dessa ousadia. Uma época não pode se aliar e conjurar para colocar a seguinte em um estado em que se torna impossível para esta ampliar seus conhecimentos, purificar-se dos erros e avançar mais no caminho do esclarecimento. Isto seria um crime contra a natureza humana, cuja determinação original consiste precisamente neste avanço. Em Karl Marx e Friedrich Engels [1846] (1996, p.17) há o coroamento dessa intuição ao afirmarem que [...] até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos, sobre o que são ou deveriam ser. Organizaram suas relações em função de representações que faziam de Deus, do homem normal etc. Os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça. Eles os criadores, renderam-se as suas próprias criações [...] Ensinemos os homens a substituir estas fantasias por pensamentos que correspondam à essência do homem e a realidade existente cairá por terra. Todos estes autores estavam preocupados em atingir a verdade universal e teórica mediante regras e procedimentos criteriosos e fizeram e ainda fazem parte do conjunto de fundações das instituições da contemporaneidade. Alcançar esta meta estaria vinculado à necessidade de termos conhecimento acerca dos fenômenos naturais e sociais para realizarmos um projeto de sociedade e de sujeitos fundados nos conhecimentos racionais e científicos. Em conformidade com Maria Garcia (2002, p.14), a pedagogia e a escola foram um dos principais vetores da produção do sujeito ocidental, almejando construir indivíduos racionais, centrados, masculinos, reflexivos, ativos, emancipados, autônomos, responsáveis, empreendedores e críticos. Tomaz Tadeu Silva (2010, p.250) reforça essa premissa apontando que a teoria educacional moderna, em geral, está alicerçada na pressuposição de que o conhecimento e o saber constituem fontes de libertação, esclarecimento e autonomia. No mundo moderno esse projeto filosófico e pedagógico ganhou contornos com as sugestões de John Locke [1693] (1986) e Jean-Jacques Rousseau [1762] (2008). Ambos procuram edificar propostas pormenorizadas de como e para quê educar os jovens. Trata-se dos primórdios da modernidade e a escola ainda estava intimamente ligada à formação esclarecida das elites. Foi com a Revolução Francesa que a proposta moderna deste sujeito, alvo da pedagogia nascente, foi delimitada. Período marcado pelo alvitre do iluminismo é nesse momento que a proposta de cidadania laica e racionalmente instruída 4 ganha força e as instituições escolares arrogam para si a exclusividade do papel de fornecer esse conhecimento. É o instante da invenção histórica da escola moderna que passa a ser ideologicamente e discursivamente legitimada a partir da necessidade de formação dos cidadãos e da organização e transmissão dos saberes que, notadamente, em consonância com Rui Canário (2000), davam folego ao desenvolvimento social, nacional e industrial daquele período. Essa era e ainda é a promessa da escola. Trata-se de uma instituição que foi construída no intuito de permitir a transmissão de saber e conhecimento acumulado com vista à constituição do sujeito cidadão autônomo e esclarecido. O Marquês de Condocert (1743-1794), um dos colaboradores do iluminismo, teve contribuição decisiva na fundamentação da proposta de criação de um sistema público de ensino pós-revolucionário voltado para a edificação de um ensino laico orientado para a formação do sujeito esclarecido. De acordo com Condocert [17912] (2008, p.18), só haveria consolidação do regime republicano democrático se cada um fosse suficientemente instruído para exercer por si mesmo, e sem se submeter cegamente a razão do outro, aqueles direitos cujo gozo é garantido por lei. Ainda segundo ele, foi pela descoberta sucessiva das verdades de todas as ordens que as nações civilizadas escaparam da barbárie e de todos os males que acompanham a ignorância e os preconceitos. É pela descoberta de verdades novas que a espécie humana continuará a se aperfeiçoar (Idem, p.25). Encerra sua primeira memória nos seguintes termos: Generosos amigos da igualdade e da liberdade, reuni-vos para obter do poder público uma instrução que torne a razão popular, ou se não for assim, deveis temer perder logo todo o fruto de vossos nobres esforços. Não imagineis que as leis mais bem elaboradas possam tornar um ignorante igual a um homem hábil e tornar livre aquele que é escravo de preconceitos (Ibid.Idem, p.65). Consoante Patrizia Piozzi (2009, p.918), apenas uma pedagogia orientada para instruir e ilustrar todos os seres humanos, independente de seu país ou religião, poderia assegurara a vitória universal e o exercício efetivo dos direitos políticos e sociais conquistados pela revolução e fixados em lei. Seu escopo foi à formação intelectual orientada pelo pressuposto de que todos os homens são seres dotados de sensibilidade e aptidão para formar raciocínios complexos e ideias morais. A sociologia do Currículo 2 Os escritos a qual faço referência são as memórias sobre a instrução pública, publicadas durante este ano num jornal intitulado Biblioteca do homem público (Cf. Souza, 2008, p.12). 5 Este precário e breve panorama indica que o projeto da escolarização moderno foi estruturado em torno da importância do conhecimento científico e das dimensões políticas que ele implicava, na medida em que construiria cidadãos laicos – menos tementes e mais autonômicos – politicamente engajados no marcha de consolidação das instituições que advieram no processo revolucionário e que caracteriza o projeto político, intelectual e social da modernidade. O aperfeiçoamento que o itinerário do mundo ocidental preconizou foi alcançado? A escolarização em massa, tida como esperança e ao mesmo tempo promessa para o aniquilamento das desigualdades sociais e das formas tradicionais de explicar o mundo, consolidou-se, mas, aparentemente, não conseguiu alcançar suas metas. Quais as explicações das razões desse insucesso? Em meados da década de 1960 as abordagens sociológicas da educação passaram a entrever nos processos pedagógicos, discretos e sutis mecanismos de manutenção das relações estratificadas e desiguais das sociedades de classes. Embora ela sempre houvesse tido essa função, como já havia sido constatada nas abordagens clássicas da sociologia, ainda pairava a esperança de que a ampliação em larga escala do processo de escolarização pudesse eliminar ou amenizar a inequação nestas sociedades. Em um primeiro momento o foco estava direcionado ao débil engajamento dos setores populares ao processo de escolarização, que culminava com a decisão de não frequentar mais a escola e as muitas “reprovações” que, como assevera Maurício Tragtenberg (1986), estigmatizavam e acomodavam os alunos provenientes das camadas populares a uma ideologia meritocrática perversa. Estudos como os de Paulo Freire [1965] (1987), Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron [1965] (1967) e Basil Bernstein [1958] (1989) atestaram isso. Perceberam que a cultura escolar não era neutra, mas sim, uma cultura selecionada pelos setores dominantes e tida como coordenada para pensar as disposições e saberes a serem definidos pelo currículo. Estes trabalhos prefaciam a década de 1970. Década profícua e marcada pela emergência de várias abordagens críticas acerca da escola que dissecam sua ossatura e percebem-na como verdugo do processo de manutenção e reprodução das relações de classe no mundo capitalistas. São exemplos os trabalhos de Ivan Illich [1971] (1985), Louis Althusser [1970] (1985), Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron [1970] (2008), Basil Bernstein (1971) dentre tantos outros, não tão conhecidos, porém não menos expressivos. A pauta daquela ocasião, ainda bastante atual, vertia seus esforços para entender como se processava a dissimulação da desigualdade e a manutenção das relações 6 de classe com o foco na escola. Bourdieu e Passeron (2008), por intermédio do conceito de habitus, buscaram a identificação dos mecanismos objetivos que determinam à eliminação contínua de crianças desfavorecidas da escola. Louis Althusser (1985), operando com a ideia de AIE procurou compreender como a escola moldava as crianças das classes populares para o universo objetivo e subjetivo da dominação capitalista. Basil Bernstein (1971) por intermédio, naquela situação, dos conceitos de códigos restritos e elaborados, intentou compreender a predisposição e a resistência das classes populares a certos processos educativos (notadamente, os pedagógicos). Estas críticas ganharam força, no plano da pesquisa sociológica, com a sugestão feita por Ivan Illich (1985) de uma sociedade sem escolas e pela contundente crítica aos procedimentos e aos efeitos letais da pedagogia tradicional, denominada de educação bancária, por Paulo Freire (1987). É patente que esse despertar não se deu pelo viés estritamente personalista. Estes autores estavam diante de processos sociais marcados pela consolidação hegemônica da forma escolar e do seu espraiar. Replicavam às questões que esse curso impunha. Tinham que responder as constatações do fenômeno corriqueiro, nas classes populares que acessavam a escola, do grande número de estudantes que optavam por não continuar estudando, de resistirem ao dispositivo pedagógico e pela óbvia falência da missão de equalização social que a escola havia arrogado para si. Neste contexto emerge a sociologia do currículo denunciando que a desigualdade social que a escola operava tinha como epicentro o currículo. O conhecimento educacional foi diagnosticado como instrumento de dominação, controle e exclusão na medida em que representava a cultura de um grupo, uma visão de mundo que comandava os sujeitos sobre o pretexto de instruí-los. Instaura-se nesse contexto uma dúvida de caráter epistemológico que vai ser traduzida como um dos dilemas enfrentados pela sociologia da educação, e em específico, à sociologia do conhecimento educacional. As críticas oferecidas às escolas se davam no âmbito da organização, controle, vigilância, indisciplina, exclusão e uma série extensa de temas que deixavam de lado o conteúdo escolar. Questões como Para que servem as escolas? Quais conhecimentos transmitir? estavam fora dos debates e do sumário da sociologia da educação até meados de 80. Com o despontar do pós-modernismo e pós-estruturalismo nas ciências sociais, as questões sobre a verdade e, por conseguinte, sobre a natureza do conhecimento e suas dimensões políticas, começam a alçar o status de pauta basilar do conjunto de questões contemporâneas da sociologia da educação. Neste instante, as tensões que se 7 davam no universo epistemológico se espraiam para o âmbito político pedagógico e podem ser caracterizadas, grosso modo, em torno dos embates sobre a luta por redistribuição (marxismo) e luta por reconhecimento (pós-estruturalismo) e sua incidência nas formas de pensar a função da escola neste processo. De um lado uma proposta universalista de escolarização como promotora do conhecimento científico e humanista, e por isso, capaz de dar autonomia aos sujeitos e, de outro, uma proposta que rejeita o caráter universal, neutro e objetivo deste saber, e, portanto, do escolar, apontando para a necessidade de movimentos emancipatórios que desfaçam as omissões e as intenções reguladoras do conhecimento educacional. Ilustrarei essa altercação a seguir a partir de dois significativos representantes destas tendências na contemporaneidade. Michael Young: a escola e a transmissão do conhecimento poderoso Alguns sucessores dos hegelianos da direita, atualmente considerados tecnocratas, querem parar a Historia; alguns, como os hegelianos da esquerda, invocam as vozes populares como as expressões das contradições sociais; e outros afirmam que não existe uma solução racional aos problemas, mas somente existe o poder. Eu acho que estou tentando buscar um caminho entre os dois primeiros (YOUNG, 2010, p.35). A promessa da modernidade de construir um homem capaz de, constituindo a si mesmo e ao mundo, chegar à autonomia, à liberdade e à justiça, gerou a articulação de ações políticas com vistas à efetivação desses valores. Esse ideário tem como ápice a criação da escola que se constituiu como modelo dominante para alcançar o processo de educação e de formação dos sujeitos dotados de razão (PRESTES, 1996, p.54). O sociólogo da educação britânico Michael Young (1915-2002) é um dos representantes da postura que defende a proposta curricular adotada pelas escolas modernas. Fundador da cognominada Nova Sociologia da Educação, iniciou a abordagem sociológica do currículo centrando na controvérsia em torno do conhecimento escolar como forma de controle social. A visão que apresento de sua proposta advém da revisão que elabora sobre seu trabalho da década de 1970, quando muda sua leitura do entendimento do papel da escola e deixa de notar apenas os aspectos conservadores da escolarização, denunciando a marginalização do papel do conhecimento nos estudos sobre o currículo3. 3 Conforme Michael Young (2010, p.19-20) existe tendências na teoria educacional que acentuam o processo de marginalização do conhecimento nos estudos sobre currículo: a primeira é meu próprio trabalho [...] paradoxalmente, este trabalho 8 Crítico da posição pós-estruturalista e pós-moderna da escola, aponta que ancoradas em Michel Foucault passaram a associar escolas a hospitais, prisões e asilos e a detectar nelas as formas de vigilância e controle, enfatizando as dimensões disciplinares e de poder que orbitam em torno do processo de transmissão e construção do conhecimento. Menosprezaram a importância e o debate sobre o conteúdo dos currículos escolares, ao perceberem que o currículo baseado nas matérias excluíam outras vozes e saberes além de exercerem um controle simbólico sobre os sujeitos. O cerne dessa rejeição está assentado no fato de que Young (2010a, p.66) considera que por não possuírem qualquer teoria do conhecimento enquanto tal, pouco mais conseguem fazer do que expor a forma como as políticas curriculares mascaram as relações de poder. Incorrem no relativismo que nega qualquer possibilidade de conhecimento objetivo4. Advoga Michael Young (2007, p.1292-1293) que a luta histórica pelos propósitos da escolaridade se deu em torno de duas tensões. A primeira diz respeito aos objetivos de emancipação e dominação e a segunda versa sobre quem deve receber a escolaridade e o que o indivíduo recebe com esta escolaridade. No primeiro aspecto temos o fato de que a escola permitiu e permite a mobilidade e autonomia mesmo em detrimento de ser um mecanismo de seleção, controle e adestramento. A segunda tensão diz respeito, primeiro, ao fato de que ela vai ser encarada como uma necessidade histórica que deve ser propagada e, segundo, que os conhecimentos que devem ser fornecidos são os científicos. A ênfase na ciência se dá em função da credibilidade das explicações científicas e das formas de auferir a sua verdade. Entende os ataques à racionalidade científica, porém não concorda com a pressuposição de que ela não seja um conhecimento objetivo. Ela é histórica e social e isso não tira a sua credibilidade como querem os defensores da proposta pós-moderna. O dado histórico que atesta que o currículo ainda em voga foi delimitado por um segmento da classe média na transição dos séculos XVIII/XIX [...] não é motivo para que ele seja descrito como um currículo de classe média. Seria igualmente falho descrever a Lei de Boyles como uma lei de classe média, pois Boyles era um cavalheiro de classe média-alta do século XVIII! As origens históricas específicas de descobertas científicas são interessantes como origens históricas de leis científicas. No entanto, essas origens não têm como dizer a verdade sobre uma lei científica ou sobre os méritos de um currículo (Idem, p.1291-1292) A condição social e histórica da ciência não constitui razão para inquirir acerca de sua verdade e objetividade ou para tomar o currículo como uma mera política expressa através de buscou centralizar o papel do conhecimento na educação. No entanto, o currículo ficou conceituado com uma seleção de conhecimentos, exprimindo os interesses dos poderosos. 4 Além disso, porque dependem de uma noção irredutível da experiência, negligenciam a distribuição desigual de experiências que o currículo tem de tomar em consideração, se quisermos que os estudantes com origens diversas disponham de oportunidades para adquirirem um conhecimento que os leva para além das suas experiências (Idem). 9 outros meios. Sua postura sociorrealista do conhecimento remete justamente a este caráter social da reflexão científica e enfatiza que é ele que dá subsídios e fornece as bases da sua objetividade e das suas alegações de verdade. É por isso que devemos considerá-lo como único fundamento para preferir certos princípios curriculares, em detrimento de outros (YOUNG, 2010a, p.399). A sua leitura de verdade está amparada, primeiramente, nas contribuições de Emile Durkheim acerca da natureza social e histórica do conhecimento. Parafraseando este autor, Michael Young exprime que, [...] a humanidade do conhecimento só se pode localizar na sociedade e na necessidade de os conceitos serem, ao mesmo tempo “do mundo” (um mundo que inclui tanto a sociedade como a realidade material) e diferenciados da experiência que temos desse mundo [...] o social era objetivo, pelo menos em parte, porque excluía as subjetividades do ego e o mundo profano da ação e experiências individuais [...] criamos conhecimento como criamos instituições: não de uma forma qualquer, mas em relação com a nossa história e com base naquilo que gerações anteriores descobriram ou geraram (Idem, p.401). Outros fundamentos que subsidiam o resgate da proposta de verdade moderna da ciência são as contribuições de Basil Bernstein, Randall Collins e Ernst Cassirer. Incorpora, respectivamente, as noções de variações de estruturas de conhecimentos através de linguagens, formas de perpetuar-se e histórias específicas das áreas dos saberes, o caráter social do conhecimento como único critério que permite considerá-lo verdadeiro e a justificação filosófica da unificação metodológica (objetividade simbólica) das ciências, tanto as sociais como as naturais. Partindo de pressuposições que ensejam que o constante processo de aprimoramento científico segue uma dinâmica própria e está imune aos interesses de ordem não teórica, entende que as escolas são instituições cujo proposito é a promoção da aquisição desse conhecimento. São agências de transmissão cultural e de saberes. No contexto atual a questão fundamental tem gravitado em torno dos tipos de conteúdo que a escola tem a incumbência de comunicar. A sua resposta é objetiva: o conhecimento poderoso. Este tipo de saber está ligado ao alcance que ele permite, ou seja, a possibilidade de fornecer explicações confiáveis ou novas formas de pensar a respeito do mundo. É um tipo de conhecimento que não é local e, muitas vezes, vai de encontro às experiências dos alunos. São estas informações que a escola tem de transferir e por isso precisam de especialistas. Todavia, insurgindo contra os que negam as relações verticais e as dimensões institucionais do processo de transmissão dos conteúdos, o autor postula que a transferência desse tipo de conhecimento implica a manutenção de relações hierárquicas 10 que não podem ser democráticas em sua plenitude, pois, ao ser produzido por especialistas, não pode ser escolhido por aqueles que estão aprendendo. Isso não significa para Young (2007, p.1295) que as escolas não devam levar muito em conta o conhecimento que os alunos trazem, ou a autoridade pedagógica não precise ser desafiada. Significa que alguns tipos de relação de autoridade são intrínsecos a pedagogia e a escola. O conhecimento escolar é diferente do conhecimento não escolar proveniente do cotidiano. O currículo escolar não seria construído em função do conhecimento dependente do contexto, que aprendemos usualmente e que aproveitamos para resolver problemas específicos do nosso dia a dia. O conhecimento que ele conceitua como poderoso é o independente do contexto ou conhecimento teórico, que são planejados para fornecer generalizações com dimensões e alcance universais (Idem, p.1296). A escolaridade implica fornecer ao estudante acesso a esse tipo de conhecimento especializado. A construção do currículo deve envolver questões relativas aos conhecimentos científicos e seus domínios e as diferenças entre essa forma de conhecimento e o conhecimento que aprendemos de maneira habitual. Como instância propaladora do conhecimento poderoso, não é sugestivo a escola estar sujeita a dinâmica de transmissão e de delimitação do conhecimento educacional que não seja a ditada pelas esferas de produção desse conhecimento. As escolas devem perguntar: “Este currículo é um meio para que os alunos possam adquirir conhecimento poderoso?”. Para crianças de lares desfavorecidos, a participação ativa na escola pode ser a única oportunidade de adquirirem conhecimento poderoso e serem capazes de caminhar, ao menos intelectualmente, para além de suas circunstâncias locais e particulares. Não há nenhuma utilidade para os alunos em se construir um currículo em torno da sua experiência, para que este currículo possa ser validado e, como resultado, deixa-los sempre na mesma condição (YOUNG, 2007, p.1297). O projeto deste autor está assentado na premissa de que a ciência é um bom instrumento para pensar a intenção de formação que as escolas devem patrocinar. Para Young (2007, p. 1299) existe uma ligação entre as expectativas emancipatórias associadas à expansão da escolaridade e a oportunidade que as escolas dão ao aluno de adquirir conhecimento poderoso, ao qual raramente eles têm acesso em casa. O conhecimento educacional tem a incumbência de fornecer generalizações e informações que permitam os alunos transcenderem os limites impostos pelas suas trajetórias e experiências. Ele fornece um saber poderoso capaz de garantir a sua inserção no contexto do mundo do trabalho e a sua formação enquanto sujeito em processo de aperfeiçoamento. No mundo contemporâneo esse sujeito carece de conhecimento universal para poder pensar universalmente a condição humana e suas possibilidades criativas. 11 Thomas Popkewitz: currículo e controle social Governar a escola é inscrever racionalidades políticas nas sensibilidades, disposições e consciências dos indivíduos (POPKEWITZ, 2004, p.107). Pedro Goergen (2001, p.18) sugere que para pós-modernos o conceito de razão com traços de universalidade e a possibilidade de interferir nos caminhos da humanidade são ideias do passado, hoje vazias de sentido. Desacreditaram a razão moderna e a condenaram como a grande e algoz ilusão dos terríveis desastres cometidos em nome da ciência e do progresso. Os trabalhos do professor norte americano Thomas Popkewitz (1940-) enfrentam a questão da relação entre escola e regulação social, ou melhor, buscam captar as inter-relações entre o saber e suas correlatas manifestações de poder. Estão interessados em perceber como o poder limita e reprime as práticas sociais, como ele permite que expressemos desejos pessoais, vontades, necessidades corporais e interesses cognitivos. O preceito teórico e metodológico adotado pelo autor é por ele nomeado de epistemologia social histórica. Proveniente da virada linguística esta leitura difere da anterior tradição (historicista, filosofia da consciência), que pressupõe o texto (e o privilégio de seus atores e eventos) como centro da análise, ao valorizar os padrões de pensamento e razão. Estes padrões são vistos com práticas sociais que constroem os objetos do mundo e não apenas as representações dos objetos. Segundo ele, uma epistemologia social explora os diferentes princípios de classificação [...] presentes não apenas num texto, mas num amalgama de condições sociais nas quais as classificações são legitimadas (POPKEWITZ, 2010, p.184). Seus pressupostos estão ancorados nas premissas de Michel Foucault, cujo mote fundamental é decifrar as relações entre o saber e o poder nas sociedades modernas, através da arqueologia e da genealogia. A primeira busca explicitar os princípios que organizam e legitimam determinadas áreas do saber. Procura estabelecer a constituição dos saberes privilegiando as inter-relações discursivas e sua articulação com as instituições (como os saberes apareciam e se transformavam). A segunda busca explicar o aparecimento dos saberes a partir das condições de possibilidade externas aos próprios saberes, ou como estes saberes estão estrategicamente articulados a lutas, disputas, e relações de força entre grupos e nas relações entre homem e a natureza. Ou seja, o porquê dos saberes (sua existência e transformação) como epifenômeno das relações de poder. Conforme Michel Foucault (2005, p.18): É contra um mundo sem ordem, sem encadeamento, sem formas, sem beleza, sem sabedoria, sem harmonia, sem lei, que o conhecimento tem de lutar. É com ele que o conhecimento se relaciona. Não há nada no conhecimento que o habilite, por em qualquer direito, a conhecer esse mundo. Não é natural a natureza a ser conhecida. 12 O conhecimento é uma violação das coisas a conhecer e não percepção, reconhecimento, identificação delas ou com elas. Se quisermos saber em que reside o conhecimento, não devemos nos voltar da forma de vida, de existência, de ascetismo, própria do filósofo. Ao buscar conhecê-lo, o que ele é, como se origina, como é fabricado, devemos nos aproximar dos políticos, posto que urge compreender quais são as relações de luta e de poder que estão por trás dos processos de sua emergência e dinâmica. Esta proposta sugere a compreensão do conhecimento em termos de uma história política do conhecimento, dos fatos do conhecimento e do sujeito do conhecimento. Em conformidade com ele, é somente nessas relações de luta e de poder – na maneira como as coisas entre si, os homens entre si, odeiam, lutam, procuram dominar uns aos outros, querem exercer, uns sobre os outros, relações de poder – que compreendemos em que consiste o conhecimento (FOUCAULT, 2005, p.23). O regime da verdade deve ser entendido como um conjunto de procedimentos que regulamentam a produção, a lei, a repartição, a circulação e o funcionamento dos seus enunciados. Está intimamente associado aos sistemas de poder que o produzem e o apoiam e a efeitos de poder que ele induz e que o reproduzem. Com esta influência ele indica que o conceito de epistemologia social da escolarização possibilita a descoberta dos efeitos sociológicos do currículo. Este conceito faz referência à forma como o conhecimento no dispositivo pedagógico organiza as percepções, as maneiras de responder o mundo e as concepções do eu. O estudo das práticas das reformas escolares contemporâneas atesta a assunção da escolarização como uma construção histórica que pressupõe relações particulares entre o poder e o saber. O currículo e suas prescrições começam a ser objetos privilegiados nos estudos sociológicos da educação, pois passa a ser percebido, na sugestão de Thomas Popkewitz (2010, p.174), como um conhecimento particular, historicamente formado, que determina o modo como às crianças tornam o mundo inteligível. Ele começa a ser encarado como uma forma de regulação social (governo da alma) produzida a partir de estilos privilegiados de raciocínio, que não devem ser apenas entendidos como informação e conhecimento, mas sim, formas particulares de agir, falar, sentir e “ver” o mundo e o “eu”. Aprender gramática, ciências ou geografia é também aprender disposições, consciência e sensibilidade em relação ao mundo que está sendo descrito. Minha ênfase no conhecimento curricular está dirigida a vincular nas formas de falar e raciocinar – as formas pelas quais nós dizemos a verdade sobre nós mesmos e sobre os outros – com questões de poder e regulação [...] não podemos tomar a razão e a racionalidade como 13 sistema unificado e universal pelo qual podemos falar sobre o que é verdadeiro, mas como sistemas historicamente contingente de relações cujos efeitos produzem poder (Idem, p.185). Consoante Tomaz Tadeu da Silva (2010) quando pensamos no currículo levamos em consideração apenas o conhecimento que ele preconiza, esquecendo que o conhecimento que constitui o currículo está vitalmente envolvido naquilo que somos, naquilo que nos tornamos (nossa identidade e subjetividade). Logo devemos encarar a noção moderna de razão, como [...] produto de uma construção histórica que deve suas características às condições da época em que foi desenvolvida e não a uma essência humana abstrata e universal. Essa razão é eurocêntrica, masculina, branca, burguesa, setecentista e, portanto, particular, local, histórica, e não pode ser generalizada (Idem, p.256). A regulação social que o currículo opera atua em dois diferentes planos. O primeiro está atrelado ao fato de que ele elege e impõe certas definições do que deve ser conhecido. Essa eleição modela substancialmente a maneira como os eventos sociais e pessoais são organizados para a reflexão e a prática, atuando como lentes para definir problemas, através das classificações que são sancionadas. O segundo sugere que a escolha do conhecimento não significa apenas seleção de informações, mas regras e padrões que guiam os indivíduos na construção de seu conhecimento sobre o mundo. O currículo propugna uma tecnologia social que opera através de um conjunto de métodos e estratégias que guiam e legitimam o que é razoável/não razoável como pensamento, ação e autorreflexão. Conforme Thomas Popkewitz: O currículo é uma coleção de sistemas de pensamento que incorporam regras e padrões através dos quais a razão e a individualidade são construídas. As regras e padrões produzem tecnologias sociais cujas consequências são regulatórias. A regulação envolve não apenas aquilo que é cognitivamente compreendido, mas também com a cognição produz sensibilidades, disposições e consciência do mundo social (2010, p.194). A reforma propugnada pelo Estado e a construção dos indivíduos constituem um mesmo projeto social. A produção do progresso e de sua racionalidade é orquestrada não apenas por meio de mudanças institucionais, mas também pela mudança das capacidades interiores dos indivíduos, de modo que cada pessoa age como um cidadão autoresponsável e automotivado. A administração social da alma é personificada de forma mais profunda na pedagogia escolar. A escola assume a condição de mecanismo orquestrado pelo estado para conceituar e organizar um grande e contínuo programa de pacificação, disciplina e treinamento, responsável pelas capacidades políticas e sociais do cidadão moderno (POPKEWITZ, 2004, p.110). 14 Aquilo que se tem como capacidades universais de resolução de problemas no âmbito do discurso pedagógico inscrevem divisões de uma forma que faz os estados normais assumirem a condição de naturais e não problemáticos. É nesse nível de inscrição de disposições e sensibilidades que as inclusões e exclusões ocorrem – ou seja, no nível do ser da criança. O poder, no sentido da produção de princípios que excluem ao tempo que incluem, está localizado em práticas classificatórias e divisórias, no nível do ser da criança e do professor (Idem, p.121). Conforme Michael Apple (2006) as escolas não foram construídas para ampliar ou preservar o capital cultural de classes ou comunidades que não fossem as dos segmentos mais poderosos da população. O controle social e econômico ocorre nas escolas não somente sob a forma de disciplinas ou dos comportamentos que ensinam – as regras e rotinas para manter a ordem, o currículo oculto que reforça as normas de trabalho, obediência, pontualidade etc. O controle é também exercido por meio de formas de significado que a escola distribui: o corpus formal do conhecimento escolar pode tornar-se uma forma de controle social e econômico (idem, p.103). A abordagem de Thomas Popkewitz (2010) indica que sua intenção é problematizar o que percebemos como dado objetivo ou verdade e desestabilizar as formas e instituições que permitem e propalam este tipo de raciocínio. Isto introduz um paradoxo aparente à medida que afastamos questões da agência e atores do centro da análise. Ao se desestabilizar as condições que confinam e prendem a consciência e seus princípios de ordem, criando, assim, uma gama mais ampla de possibilidades para a ação, o ator é paradoxalmente, reintroduzido. Tornar as formas de raciocínio e as regras para “dizer a verdade” potencialmente contingentes, históricas e suscetíveis à crítica é uma prática que desaloja princípios ordenadores (p.184-185). Associar mudança histórica com rupturas epistemológicas não implica impossibilitar a ação política. Enfocar as epistemologias ao invés dos atores não concorre para abdicar ao papel da razão e da racionalidade na busca de um mundo mais democrático. A proposta do autor enreda o paradoxo de nos situarmos no processo histórico de forma que nós, coletivamente, através de nossas ações no presente, alteremos a causalidade que organiza as construções de nossos “eus” e, nesse processo, possamos abrir novos sistemas de possibilidades para nossas vidas coletivas e individuais (Idem, p.207). La crítica puede abrir nuevos sistemas de posibilidad para nuestras vidas colectiva e individual. Poner de manifesto los sistemas de orden, apropiación y exclusión que nos rigen hace possible que les ofrezcamos resistência (POPKEWITZ, 2000, p.28). 15 Situar o sujeito dentro da história e problematizá-lo são artifícios hábeis na tentativa de reincluir a humanidade nos projetos sociais. Não se trata de negar o sujeito e sua importância. O que devemos fazer é inquirir e compreender sobre como se deu o seu processo de construção e qual o seu significado político. O procedimento genealógico vem propor uma libertação do sujeito, busca entender como este sujeito foi constituído no transcurso histórico, de como os saberes, os discursos, dos domínios dos objetos, sem invocar um sujeito transcendente e que busca sua identidade “vazia” ao longo da história. Conhecimento poderoso ou regulação social Qual a dimensão política do currículo neste cenário? O que devem às escolas ensinar? Como resolver o paradoxo apresentado? É inconteste que o conhecimento científico é importante, assim como é evidente que ele governa subjetividades e muitas vezes assume a condição de discurso e conhecimento legitimador de práticas educativas discriminatórias e assentadoras dos injustos e distintivos critérios de classificação regulados pelo dispositivo pedagógico. Tentei indicar que esse paradoxo é filosoficamente orientado a partir da concepção de verdade e de conhecimento que as respectivas propostas arrolam. Enquanto que para Michael Young o conhecimento verdadeiro existe e fornece poder para conduzirmos o revigoramento da proposta iluminista inacabada, Thomas Popkewitz aponta para o fato de esse projeto ser unilateral e incorporar dispositivos de controle e de perpetuação das diluídas injustiças sociais que obliteram o alcance do reconhecimento e da inclusão dos segmentos amplamente explorados das modernas sociedades capitalistas. É assaz imaturo declarar o esgotamento da ciência moderna e de sua importância para o processo de escolarização e isso os autores pós-modernos tem a plena convicção. No entanto seria muito ingênuo, como atesta a história, acreditar na imparcialidade da ciência e no julgamento político dos cientistas e deixá-los, com isso, conduzir o processo decisório da identificação e distribuição do conhecimento educacional. É necessário que as ponderações acerca da escola introduzam a reflexão sobre a natureza reguladora do conhecimento com o intuito de identificar os limites de sua feitura, de sua transposição didática e de seus alcances. É imprescindível escolarizar sujeitos imunes a alguns de seus deletérios efeitos de poder. Temos que ter clareza das dimensões políticas que a escolarização, seus conhecimentos e as correlatas políticas educacionais oferecem, para podermos atuar com vistas à consecução de propósitos políticos que estejam 16 comprometidos com a sistemática extinção da inequação social e da gradual conquista da autonomia e das benesses sociais que uma luta política esclarecida pode oferecer. A ciência, ainda que assuma a feição pós-moderna, deve continuar sendo o aporte mais seguro para tal empreitada. Aceno para esse paradoxo utilizando as falas dos autores que compuseram a epígrafe desta proposta e que a meu ver refletem, ainda que de forma tangencial, algumas ânsias e aflições das proposições modernas e pós-modernas de nosso tempo. Jean-Jacques Rousseau constatara em meados de 1762 que enquanto conservássemos as feições humanas estaríamos presos às instituições sociais. Seria impossível escapar dessa condição após o abandono do estado de natureza e deflagração do contrato social. No entanto, como seis décadas antes observara John Locke, são estas instituições e estes acordos que promovem a felicidade e/ou a desgraça dos homens. Quanto mais presos permanecermos ao mundo do pensamento abstrato e teórico, mais atados e dependentes estaremos dos homens, de seus interesses e da sua história, eis a nossa condição. Não se foge desta sina sem sacrificar alguma parte substancial do intelecto e da criatividade humanas. Referências Bibliográficas ALTHUSSER, Louis (1985) Aparelhos ideológicos de Estado: notas sobre os aparelhos ideológicos de Estado. Rio de Janeiro, Edições Graal. APPLE, Michael W. (2006) Ideologia e Currículo. Porto Alegre, Artmed. BERNSTEIN, Basil (1989) Clases, códigos y control: estudios teóricos para uma sociologia del lenguaje. Madrid, Akal Universitária. BOURDIEU, P. e PASSERON, J. (2008) A reprodução: elementos para uma teoria do sistema de ensino. Petrópolis, Editora Vozes. __________________ (1967) Los estudiantes y la cultura. 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