trágico e tragédia em vestido de noiva

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trágico e tragédia em vestido de noiva
TRÁGICO E TRAGÉDIA EM VESTIDO DE NOIVA
Daniela de Freitas Ledur*
Orientadora: Profa. Dra. Márcia Ivana de Lima e Silva
RESUMO: Segundo Sábato Magaldi, desde que decidiu que não escreveria chanchadas, Nelson Rodrigues
preferiu relacionar suas peças com os gêneros considerados “sérios”. Assim, subintitulou sua primeira peça,
A mulher sem pecado, como drama. Sendo um termo bastante amplo, o enquadramento pareceu bastante
adequado para a peça, sendo que ninguém pôs em cheque seu subtítulo. Apesar de A mulher sem pecado
(1941) inaugurar a dramaturgia rodriguiana, foi com Vestido de Noiva que o dramaturgo conheceu o sucesso.
Partindo para uma tentativa mais ambiciosa, Nelson Rodrigues subintitulou Vestido de Noiva como “tragédia
em três atos”. Suas peças seguintes (Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos afogados) também
receberão o tão polêmico subtítulo. Mas ao compararmos as peças, percebemos que Vestido de Noiva afastase das características da tragédia moderna; no entanto, notamos nesta peça elementos trágicos, os quais
também se fazem presentes em outras obras da dramaturgia rodriguiana. Assim, o objetivo deste artigo é
apontar os elementos trágicos em Vestido de Noiva, assim como comparar esta peça com as outras tragédias
rodriguianas.
PALAVRAS-CHAVE: tragédia, Nelson Rodrigues, trágico.
ABSTRACT: According to Sabato Magaldi, since had decided not to write “chanchadas”, Nelson Rodrigues
choosed to relate his plays with literary genres considered “serious”. Thus, his first play (The woman without
sin) received the word drama as a subtitle. Being a very broad term, it´s seemed well suited to this play and
no one questioned it. Though The woman without sin (1941) inaugurated the Rodriguean dramaturgy, the
author only met success with Wedding gown. Going off to a most ambitious attempt, Nelson Rodrigues gave
to Wedding gown a subtitle of “tragedy in three acts”. His following plays (Family album, Black angel, and
Lady of the drowned) also would have the controversial subtitle. But when comparing the plays, we see that
Wedding gown deviates from the modern tragedy characteristics; however, we note tragic elements in this
play which are also present in other Nelson Rodrigues’ plays. The objective of this paper is to point out the
tragic elements in Wedding gown, and compare this play with the other rodriguian´s tragedies.
KEYWORDS: tragedy, Nelson Rodrigues, tragic.
Segundo Sábato Magaldi (1992), desde que decidiu que não escreveria chanchadas,
Nelson Rodrigues preferiu relacionar suas peças com os gêneros considerados “sérios”.
Assim, subintitulou A mulher sem pecado, sua 1.ª peça, como drama. Sendo um termo
bastante amplo1, o enquadramento pareceu bastante adequado para a peça, sendo que
ninguém pôs em xeque seu subtítulo (drama em três atos). Apesar de A mulher sem pecado
(1941) inaugurar a dramaturgia rodriguiana, foi com Vestido de noiva que o dramaturgo
*
Mestre em Literatura Brasileira pela UFRGS. E-mail: [email protected]
Sábato Magaldi cita Do grotesco e do sublime, de Victor Hugo, no qual o autor define o estilo do drama
como: “verso livre, franco, leal, que ousasse tudo dizer sem hipocrisia, tudo exprimir sem rebuscamento e
passasse com um movimento natural da comédia à tragédia, do sublime ao grotesco; (...) lírico, épico,
dramático, segundo a necessidade; poder percorrer toda a gama poética, ir de alto a baixo, das ideias mais
elevadas às mais vulgares, das mais bufas às mais graves, das exteriores às mais abstratas, sem jamais sair
dos limites de uma cena falada...” (HUGO, Victor apud MAGALDI, 1992, p.61).
1
conheceu o sucesso. Partindo para uma tentativa mais ambiciosa, Nelson Rodrigues
subintitulou Vestido de noiva como “tragédia em três atos”. Suas peças seguintes − Álbum
de família, Anjo negro e Senhora dos afogados − também receberão o tão polêmico
subtítulo. Mas, ao compararmos as peças, percebemos que Vestido de noiva se afasta das
características da tragédia moderna; no entanto, notamos nessa peça elementos trágicos, os
quais também se fazem presentes em outras peças da dramaturgia rodriguiana. Sábato
Magaldi afirma que, levando em conta que a tragédia não pode ser entendida desligada da
ideia de fatalidade, do homem subjugado por uma força poderosa, torna-se sem sentido
incluir Vestido de noiva no gênero trágico. Segundo o crítico:
Em Vestido de noiva, não cabe referir-se a uma fatalidade inelutável, que
determinou de alturas inatingíveis o destino de Alaíde. Sua morte decorre de
acidente – e não há nada mais fortuito do que ele. Na acepção grega, o acidente
seria o oposto do trágico. Feita essa ressalva, é lícito justificar o qualitativo:
Alaíde sai de casa tão perturbada, o conflito conjugal adquiriu tamanha
proporção que, inconsciente ou conscientemente, ela suicidou-se. A peça não
esclarece o episódio, nem haveria razão ficcional para esclarecê-lo. A
autodestruição da heroína, por desejo de não mais opor-se ao mundo adverso,
equipara-se à derrota frente à divindade soberana. A demissão humana
corresponde à certeza do efêmero em face da eternidade dos deuses (MAGALDI,
1992, p.62).
Após escrever nos anos seguintes Doroteia e Valsa n.º 6, ambas não recebendo o
subtítulo de tragédias, Nelson Rodrigues, em 1953, escreve A falecida, peça subintitulada
“tragédia carioca em três atos”. Situando a ação na cidade do Rio de Janeiro, o dramaturgo
quis adicionar a cor local à sua nova tragédia. Diferentemente de Álbum de família, Anjo
negro e Senhora dos afogados, as quais apresentam espaço e tempo indefinidos e
características que as universalizam, A falecida “funde os valores arquetípicos das peças
míticas2 e os circunstanciais da realidade imediata do Rio de Janeiro” (MAGALDI, 1992,
p.63). Inaugurando, assim, uma nova fase da sua dramaturgia, Nelson Rodrigues, ao rever
suas peças anteriores e obviamente comparar Vestido de noiva com Álbum de família, Anjo
negro e Senhora dos afogados, afirmou que Vestido de noiva foi sua primeira tragédia
carioca. “Em O reacionário, p.131, Nelson escreveu: ‘Depois, apanhei uma cópia
datilografada da peça (Vestido de noiva), que era a minha primeira tragédia carioca’”
(MAGALDI, 1992, p.63).
2
Sábato Magaldi classifica Álbum de família, Anjo negro, Senhora dos afogados e Dorotéia como peças
míticas.
Afastando-se, assim, da tragédia clássica, Vestido de noiva foi um marco na
dramaturgia brasileira. Tendo ações simultâneas em tempos diferentes, os quais se
desdobram em três planos: realidade, memória e alucinação, essa peça apresenta uma
complexidade estrutural que levou seu criador ao sucesso e o tornou o inaugurador do
moderno teatro brasileiro. “Pode-se afirmar que Nelson libertou nossa dramaturgia da
cansativa preparação psicológica de certos dramas ibsenianos, modelo da estrutura realista
tradicional” (Ibid., p.46).
Nosso objetivo aqui não é analisar todas as inovações presentes em Vestido de
noiva, nem tampouco apresentar as diversas interpretações até hoje atribuídas a essa peça,
mas buscaremos apontar como o trágico se faz presente e como já percebemos um
“embrião” das futuras tragédias rodriguianas.
Embora, como afirma Sábato Magaldi, a protagonista de Vestido de Noiva não seja
vítima de um destino predeterminado por forças superiores, Alaíde pode ser considerada
vítima de si mesma ao impulsionar seu fim trágico. Insatisfeita com sua realidade e com
seu casamento, desejando consciente e inconscientemente a vida de uma prostituta
assassinada pelo amante de 17 anos, Alaíde rebela-se contra as “normas sociais” da época
ao “roubar” o namorado da irmã e se casar com ele, apesar de tomar ciência de que ambos
ainda mantinham relacionamento. Alaíde torna-se uma personagem trágica na medida em
que é movida por pensamentos, desejos e sentimentos não localizáveis pela razão. Tal qual
os heróis trágicos modernos, ela possui uma vontade interior que entra em conflito com um
fator externo, social, natural, rebelando-se contra a sociedade. Apesar de tentar adequar-se
a uma moral imposta pela sociedade, Alaíde, em seu íntimo, almejava a vida e a morte de
Madame Clessi. Surge daí o conflito interno da personagem entre o seu dever e o seu
querer. Aqui cabe o argumento de Bornheim de que na tragédia nos deparamos com a
existência humana entregue ao conflito que deriva do entrelaçamento do ser e da aparência.
Além disso, os infortúnios que abatem Alaíde são consequências de forças que fogem
completamente ao seu controle, mas também de opções elegidas por ela.
Educada conforme a mentalidade burguesa, prisioneira de um casamento
fracassado numa época em que a indissolubilidade do matrimônio era
estritamente respeitada, rivalizando-se com a própria irmã pelo amor do mesmo
homem, a moça não abriu mão do noivo cafajeste e somente na agonia de morte
tentou dar início a um processo de individuação. Apesar do caos implacável da
realidade externa, o destino dos personagens de Nelson Rodrigues provém de
fato dos abismos interiores que cultivam, das obsessões às vezes absurdas e da
degradação que os conduz à destruição (RABELO, 2004, p.167).
O acidente que vitimou Alaíde, da maneira como Nelson apresenta, está cercado de
tamanha inevitabilidade que se assemelha à catástrofe trágica. Após violenta discussão
com a irmã, a qual afirma que sempre foi amante de Pedro e que casará com ele após sua
morte, Alaíde encaminha-se para a rua, lugar de seu sacrifício. Resta-nos, assim, a dúvida
quanto à morte da protagonista: acidente, suicídio ou assassinato? As ameaças feitas por
Lúcia levam-nos a pensar em assassinato; entretanto, se considerarmos a pesada carga que
se sobrepôs à Alaíde, a intensidade emocional da descoberta da contínua traição do marido
e o desespero do casamento frustrado, podemos interpretar o atropelamento como um ato
suicida inconsciente. De qualquer maneira, não há acaso ou fatalidade. Aproximando esse
fato das tragédias gregas, podemos dizer que o inconsciente perturbado e desconexo de
Alaíde é que age como uma força fatal, impedindo-a de agir por sua própria vontade e
resultando sua queda trágica. A morte, assim, ergue-se como fim inevitável.
Assim como na tragédia grega, em que o herói era destituído de uma posição inicial
favorável, a protagonista de Vestido de noiva passa de uma condição de completa
realização pessoal, em virtude das expectativas em relação a um casamento feliz, para uma
realidade cruel e assustadora, na qual se sente ameaçada de morte pela irmã e pelo marido.
Oprimida pela realidade de uma vida frustrada, Alaíde, então, caminha em direção à morte.
Eudinyr Fraga considera Alaíde um “arquétipo da condição humana, de nossos medos,
dúvidas e frustrações” (FRAGA, 1998, p.70). Quanto a outro elemento fundamental nas
tragédias gregas, a tríade unitária, Vestido de noiva segue a unidade de ação somente se
pensarmos nos planos da memória, realidade e alucinação isoladamente. Apesar de ao final
da peça todas as ações se conectarem e apontarem para seu significado específico, torna-se
difícil pensar em unidade de ação em uma peça em que três planos ocorrem simultânea e, à
primeira vista, desconexamente. Tempo e espaço também se apresentam sem uma aparente
unidade; passamos do passado ao presente e vice-versa durante toda a peça, assim como de
um lugar ao outro. Desse modo, tudo se desenrola livremente nas dimensões de espaço e
tempo, assim como na realidade interior e exterior, fazendo com que, a princípio, o próprio
modo de (des)organização do texto nos pareça caótico.
Quanto à caracterização do herói trágico, distanciando-se dos nobres representados
nas tragédias clássicas e aproximando-se da tragédia burguesa, Alaíde pertence à classe
alta do Rio de Janeiro, esposa de um industrial e filha de pessoas da alta sociedade.
Causadora do erro que impulsionará a ação, Alaíde rouba o namorado da irmã, fato que
gerará o ódio e a rivalidade entre ambas.
Alaíde (dolorosa): − Sempre soube.
Lúcia (com desprezo): − Então por que tirou Pedro de mim?
Alaíde: − Você sempre com esse negócio de tirou – tirou! (num transporte) É tão
bom tirar o namorado das outras. (irônica) Então de uma irmã (RODRIGUES,
2004, p.61).
Essa relação tempestuosa entre as irmãs, motivo deflagrador do conflito,
assemelha-se às tragédias clássicas e à premissa aristotélica de que é do núcleo familiar
que as melhores tragédias afloram. Podemos também apontar outros recursos que se
assemelham aos da tragédia clássica, tais como uma espécie de coro, de reconhecimento e
de peripécia. Com funções não muito semelhantes às do coro grego, mesmo assim
lembrando-o, temos os diálogos entre médicos, repórteres e até das prostitutas. Cada plano,
então, possui, digamos, seu coro, sendo que esse só atua dentro do seu próprio espaço. No
plano da realidade, temos os médicos e os repórteres; no da alucinação, as três mulheres e
o homem do prostíbulo; e, no da memória, os pais de Alaíde.
Pimenta (berrando): − Morreu a fulana.
Repórter (berrando e tomando nota): − Qual?
Pimenta: − A atropelada da Glória.
Repórter: − Que mais?
Pimenta: − Chegou aqui em estado de choque. Morreu sem recobrar os sentidos;
não sofreu nada.
Repórter: − Isso é o que você não sabe!
Pimenta: − A irmã chora tanto!
Repórter: − Irmã, é natural!
Pimenta: − Um chuchu!
Repórter: − Quem?
Pimenta: − A irmã (RODRIGUES, 2004, p.61).
Podemos também relacionar o episódio em que a mulher do véu o retira e revela-se
como Lúcia com o recurso do reconhecimento. Em Vestido de noiva, porém, o
reconhecimento dá-se entre o plano da memória e o do inconsciente, pois Alaíde já sabia
quem era a mulher do véu, mas não conseguia se lembrar de seu rosto devido ao trauma
sofrido no acidente ou, talvez, devido à dor de reconhecer uma inimiga no rosto da própria
irmã. A peripécia, uma espécie de reviravolta dentro da estrutura da peça, assemelha-se em
Vestido de noiva ao momento em que Lúcia conta para Alaíde, no dia do seu casamento,
que ama Pedro. A partir daí, a pretendida felicidade conjugal não mais será possível. Outro
elemento importante é a culpa que perseguirá Lúcia após a morte de sua irmã. Essa culpa, a
princípio, parecerá um elemento capaz de afastá-la de Pedro. Após uma viagem para
descanso, porém, Lúcia volta disposta a realizar a união. As visões de Alaíde vestida de
noiva e a audição de sua voz pela casa lembram Erínias perseguidoras e punidoras de
crimes contra pessoas do mesmo sangue. O casal, que supostamente tramou a morte de
Alaíde, está condenado pela própria consciência a conviver para sempre com o sentimento
de culpa, sendo assombrado pela presença da morta. Assim, com o “fantasma” de Alaíde
sempre presente e impedindo sua felicidade, o buquê de Lúcia, no dia do seu casamento
com o cunhado, lhe é entregue pelas mãos da irmã morta. Essa entrega do buquê simboliza
a transferência de uma espécie de maldição: Lúcia será condenada a uma vida conjugal
insatisfatória da qual a única saída será a morte.
A solidão irremediável, a terrível precariedade do ser humano, a existência
mesquinha que gera um desejo irrefreável de romper os limites da moralidade
convencional, a realidade que aniquila as idealizações, entre outros, são alguns elementos
que compõem a visão trágica em Vestido de noiva. Combinando uma “acepção trágica da
existência” (MAGALDI, 1992, p.65) com elementos modernos − expressionismo, a
antecipação de noções do teatro do absurdo, uso do grotesco e do corriqueiro −, Nelson
Rodrigues apresenta uma peça que preserva elementos trágicos sem que, no entanto, possa
ser considerada uma tragédia moderna. Tragédia carioca, como o próprio dramaturgo mais
tarde a subintitula, parece realmente uma expressão mais adequada, visto que as
personagens são representativas de um tempo e lugar bastante específicos, afastando-se
daquela universalidade tão característica das peças subintituladas por Nelson como
tragédias. Elen de Medeiros faz uma constatação sobre as tragédias cariocas que se
enquadra perfeitamente em Vestido de noiva, fato que reforça a afirmação de que,
realmente, essa peça é uma tragédia carioca e se aproxima das demais obras subintituladas
por Nelson Rodrigues com essa expressão.
Os heróis, ou heroínas, das peças que se seguem são absorvidos por
uma realidade cruel, frente à qual devem ter atitudes que são levadas ao seu
limite. Esses momentos extremados vão encaminhá-las à sua destruição, a uma
morte fria, estúpida. As personagens aniquilam-se a partir das ações que
praticam no decorrer das peças, submetendo-se a situações trágicas
(MEDEIROS, 2005, p.64).
Mas o que diferencia Vestido de noiva de Álbum de família, Anjo negro e Senhora
dos afogados? Décio de Almeida Prado escreveu o seguinte:
O próprio Nelson Rodrigues, tão estranhadamente carioca, não permaneceu de
todo imune à tentação universalizante. As peças que denominou “tragédias”,
escritas muitas delas em sucessão imediata a Vestido de noiva, inspiravam-se no
modelo supremo com que tantas vezes lhe acenava a crítica – o teatro grego,
nada menos que o grande teatro grego, de Ésquilo, de Sófocles, de Eurípides. (...)
Esse, indubitavelmente, o alicerce de peças como Álbum de família, Anjo negro,
Senhora dos afogados, concedendo-lhes uma inconfundível semelhança com a
tragédia grega: enquanto forma, por exemplo, a divisão nítida entre as
protagonistas, portadores dos conflitos, e o coro que emoldura a ação, formada
por vizinhos, parentes, circunstantes; e enquanto conteúdo, as famílias marcadas
pelo sofrimento, designadas para o dilaceramento interior, com a maldição que
as obriga ao crime e ao castigo passando de pais a filhos. (...) As personagens são
brasileiríssimas e do nosso tempo, mas sem que exista nessas peças qualquer
intuito de retratar a realidade em seus níveis habituais, psicológicos ou
históricos. Teríamos, quando muito, a irrupção, surpreendente no contexto do
cotidiano, de impulsos primevos, elementares – e aí é que estaria o laço de
parentesco com a tragédia grega, na interpretação dada a esta por Freud.
Paralelamente, Nelson Rodrigues, brincando com os gêneros teatrais, ia
escrevendo as suas “tragédias cariocas” e “tragédias de costumes” (A falecida,
Boca de ouro, Beijo no asfalto, Perdoa-me por me traíres), ligadas mais de perto
à paisagem social do Rio de Janeiro, além de esporádicas “divinas comédias”
(Os sete gatinhos) e até mesmo algumas “farsas irresponsáveis” (Doroteia, Viúva
porém honesta), o máximo de irresponsabilidade que o palco se pode permitir,
posto que a farsa, por si mesma, já não costuma responder por nada do que faz
em cena (PRADO apud HOLANDA, 1995, p.549-550).
Apesar de algumas semelhanças com a tragédia moderna, as quais podemos chamar
de resquícios do trágico, Vestido de noiva afasta-se dessa concepção na medida em que
apresenta indivíduos envolvidos com problemas relativos ao cotidiano, tais como o medo
de Alaíde de que a irmã faça um escândalo em seu casamento, a mãe que pede licença e
aguarda para entrar no quarto da filha, a prostituta como símbolo de libertação sexual, o
horror que a acusação de transpiração excessiva causa na mãe de Alaíde, o papel da
imprensa em divulgar o atropelamento, entre outros. As personagens nesta peça são parte
importante do todo da sociedade carioca da época, seres representativos, obviamente com
seus conflitos individuais, mas que, ao mesmo tempo, apresentam os conflitos e angústias
de todo um grupo demarcado no tempo e no espaço. Não que suas dúvidas, medos e
angústias não possam ser os de todos os seres humanos, mas a diferença está no fato de que
as personagens de Álbum de família, Anjo negro e Senhora dos afogados são seres míticos
vivendo em um mundo isolado e atemporal, praticamente alheio à sociedade. Apesar de
algumas referências à sociedade brasileira da época, nestas três peças, chamadas aqui de
tragédias rodriguianas, esse dado é apenas acessório para tratar de temas que ultrapassam o
homem brasileiro e se concretizam no ser humano universal.
Buscando uma linguagem mais elevada, renovando e utilizando os recursos do coro
e das máscaras, tendo como base a substância mítica, apresentando a fatalização que
advém do próprio homem e ocorrendo em um núcleo familiar fechado, Álbum de família,
Anjo negro e Senhora dos afogados pertencem claramente ao gênero trágico. Lembrando a
constatação de que “a tragédia só pode ocorrer onde a realidade não foi arreada pela razão
e consciência social” (STEINER, 2006, p.193), apontamos para o fato de as tragédias
rodriguianas ocorrerem em famílias fechadas, sem nenhuma interferência, portanto, da
sociedade e de suas normas de convivência, fato que não ocorre em Vestido de noiva.
Abolindo o conceito de sociabilidade, “desaparecem as restrições comportamentais, agindo
as personagens de acordo com os instintos menos disciplinados. É o homem primitivo, em
estado bruto, recusando o verniz do convívio” (MAGALDI, 1992, p.51).
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