Eu e outros nós, de Tiago Rivaldo Bernardo

Transcrição

Eu e outros nós, de Tiago Rivaldo Bernardo
Eu e outros nós, de Tiago Rivaldo
Bernardo Mosqueira
(ao meu amor)
“Eu vi um menino correndo
eu vi o tempo brincando ao redor
do caminho daquele menino.
Eu pus os meus pés no riacho.
e acho que nunca os tirei.“
“Lá longe era o mundo
åquela hora coberto de sol.
Mas haveria sol?
Boiávamos em luar. O céu,
uma difusa claridade. A terra,
menos que reflexo dessa claridade.”
“Eu perguntava, do you wanna dance?”
Em 2001, ele deixava o Rio Grande do Sul e chegava ao Rio de Janeiro. Naquele
momento, Tiago Rivaldo se propôs uma maneira de viver essa cidade. A nova solidão e
as outras que surgiriam receberiam elaboradas reações poéticas. Os novos encontros
e os velhos desencontros receberiam outros valores. Para cada investigação, para
cada investida, para cada desejo, um novo jogo era proposto. As regras iniciais e os
dados a rolar foram oferecidos a todos nas ocasiões das ações que se deram durante
a exposição. O que esteve presente na mostra é parte do que Tiago acumulou ao dar
vida a esses acordos nos últimos dez anos. Nesse catálogo, vamos ainda além da
exposição.
Pesquisando maneiras de investigar identidade, pertencimento, cadência, encontro e
o comunicar, Tiago Rivaldo construiu formas de fundir o interior e o exterior da camera
obscura como quem confunde objeto e tela, visual e tátil, observador e agente, retrato
e paisagem, virtual e real. Tiago aprendeu a criar imagens como quem cria encontros.
Descobriu como criar cor como quem faz caminho. Descobriu as proximidades entre o
narrar e o andar e, sobretudo, Tiago Rivaldo nos apresenta e convida a um fazer arte
que se faz como um fazer possíveis vidas e mais própria a própria vida.
Túneis
Chegando no Rio de Janeiro, Tiago ficou muito impressionado com os túneis da cidade.
Deslumbramentos como esse são, frequentemente, inspiração formadora de seus
trabalhos. Ao se propor penetrar e atravessar todos os túneis que cruzam as enormes
pedras-montanhas da cidade do Rio, Tiago se propôs conhecer o novo território que
escolhia como seu e entendeu que a chegada pode demorar. Não é ponto, é linha; não
é clique, é fluxo; não é porta, é túnel.
Utilizando uma simples câmera descartável, sem sua lente de plástico e com um
pequeno furo, um pinhole, Tiago coloca o aparelho fotográfico em movimento dentro
de seu objeto. Usada não mais como máquina mas, sim, como transporte do negativo
que revela sua vontade em trabalhar com película, Tiago cria imagens que traduzem,
em cada uma, a distância e a duração para atravessar cada um dos túneis.
Abolindo o aprisionamento do instantâneo em nome do interesse pelo momentâneo,
Rivaldo exibe os resultados na intenção de registrar fluxos de tempo e espaço que
mostram que o olho não é capaz de todas as possibilidades que a câmera aberta
carrega.
As fotografias são montadas como em um diagrama, sintetizando suas localizações
no mapa da cidade do Rio de Janeiro. Cada uma das peças remete em sua forma,
ainda, a placas de sinalização de trânsito, com seus cantos arredondados.
Neste trabalho, cruzar os túneis e ter a película cruzada por suas luzes preconizam o
desejo, mais evidente em trabalhos futuros, de marcar e ser marcado pela paisagem.
Não se chega ao outro lado do túnel sem transformação.
Obscura Vestível
Em seu último trabalho feito em Porto Alegre, Tiago usava encaixado em sua face um
tubo negro dentro do qual via, pela pequena estrutura de camera obscura criada no
instrumento, a paisagem à sua frente de cabeça para baixo. Naquele momento Tiago
pensava o objeto como um acessório do vestuário, interessado em questões relativas
à moda na cultura. Não são à toa o título “vestível” e o fato de que a ação, em Porto
Alegre, emitia um tom de desfile em espaço público.
O trabalho carrega quem o veste e quem assiste a experiências de desorientação.
Tiago demorou dez anos para repetir o trabalho na nova cidade. Precisou se sentir
“local” antes da desorientação. Ironicamente, a ação em Porto Alegre se passou
em um calçadão que reproduz padrão, em pedras portuguesas, semelhante ao de
Copacabana.
Na nova experiência, Tiago construiu uma caixa leve longa e trapezoidal que, para
ser mantida na altura dos olhos, precisa que o artista se coloque de braços abertos.
A sensação em quem observa é de estar na presença de alguém que, por não poder
ver o que vemos, oferece um abraço impossível. Muito branco, usando sunga e a
usual mochila, em dia de sol em frente à praia, Tiago causa muita curiosidade se
assemelhando a um alienígena mestiço já tocado pela cultura carioca.
O trabalho mostrado no Rio foi feito em dois dias de sol e é composto por seis
fotografias que mostram partes da ação (sempre com pessoas se virando pra dar um
outro olhar sobre o trabalho) e uma projeção com um vídeo que mostra o que era visto
dentro da caixa. É interessante marcar que Tiago usa a expressão “estar lá dentro”
para quando se está com o olhar voltado para dentro da câmera. Existe, como em
muitos dos trabalhos do Tiago, um jogo complexo entre o que está dentro e o que está
fora. Nesse caso, se dava pela vontade de mostrar, fora, o rastro luminoso do que,
estando fora, ele via dentro da caixa.
Volante
Depois de algum tempo no Rio, Tiago teve de ir a Porto Alegre. Mais uma vez,
questionando a banalidade dos acontecimentos, Rivaldo transforma poeticamente o
cotidiano com o teor de sua vontade.
Dessa vez, registrar as viagens de ida e volta de carro entre Rio e Porto Alegre é, além
de expor parte importante de sua pesquisa sobre fotografia viva, em/de movimento, é
garantir e afirmar a volta ao Rio: é amostra da afirmação da decisão de uma mudança.
Nesse trabalho, a câmera pinhole presa ao volante do carro registrava autorretratos
de Tiago. As durações das exposições das fotografias eram os intervalos entre as
paradas feitas no caminho para comer, ir ao banheiro, esticar as pernas etc. Um
percurso narrativo se fazia. As cores das imagens, além de revelarem os horários
e climas dos momentos, podem traduzir um braço apoiado ou a frequência dos
cigarros. Se a reta é o caminho mais rápido entre dois pontos, quanto mais curvas a
estrada tinha, mais transformado, distante do inicial, era o rosto de Rivaldo.
Flanar
Para um trabalho que faria em Paris, Tiago aproximou João do Rio a Baudelaire. O
caminhar solto e atento é pleno em percepção: afirmação maior do indivíduo entre
imagens. Mais uma vez maravilhado, Rivaldo deseja se imprimir sobre a paisagem,
interferindo diretamente no resultado dos trabalhos. Dessa vez, os cartões postais
do Rio são referência.
Coincidindo com a época em que descobria o Reiki (prática espiritual budista
japonesa de cura pela imposição das mãos muito difundida no Brasil), Tiago criou
um instrumento com luvas especiais que portam lâmpadas de carro ligadas a uma
bateria presa à sua perna. Após ter descoberto como transportar luz, Rivaldo se pôs
a caminhar entre a câmera aberta e paisagens noturnas cariocas, criando, assim,
desenhos cujas formas variam de acordo com a velocidade na qual o artista se
locomoveu.
A ação era, certamente, feita para o registro. A presença da câmera justificava, para o
passante, o estranho que caminhava com luzes nas mãos. Tiago percebe, ainda, numa
importante análise, que, mesmo que pudesse fazer esse trabalho sozinho, procurou
sempre montar equipes que tornam o encontro e o outro imperativos ao trabalho.
Era uma maneira de querer(PODE TIRAR) se apropriar da cidade, ser absorvido por
ela, fazer parte da paisagem e da paisagem humana dela. O fazer das próprias mãos
impresso sobre a cidade: das ações, nos restam os desenho das revoltas urbanas,
trajetórias cometárias.
Esperando Cravan
É dito que Cravan, o controverso herói Dada de vida nebulosa, após seu casamento
no México, colocou a esposa em um barco para a Argentina e decidiu navegar
pelo mesmo caminho com um veleiro. Cravan nunca mais apareceria, e sua vida e
desaparecimento se tornariam motivos de muita especulação.
O trabalho de Tiago chamado “Esperando Cravan” é uma câmera-mirante que
enquadra apenas o horizonte. O convite à contemplação é seguido pela sensação de
que esperamos algo que demora muito a chegar e, talvez, não venha. Tiago sente a
falta, fantasia um ressurgir Dada e dá sentido poético à espera por Cravan. Mas, com
os olhos pousados sobre o horizonte, o que esperamos não surgirá de trás do mar,
mas sim, de dentro de quem busca.
Via de mãos dadas, n.º 1
Em Amsterdam, no ano de 2004, após ter lançado um longa em que criticava o modo
como a mulher é tratada na cultura islâmica, foi assassinado o diretor de cinema Theo
Van Gogh por um muçulmano marroquino holandês. Tiago estava na cidade quando
a população foi às ruas com tochas cobrar uma política do Estado em relação aos
imigrantes e seu modo de ocupar a cultura local. Na cidade onde todos são ciclistas,
surge, em Rivaldo, o questionamento de como dividir espaço (físico ou interno) de
forma justa, horizontal, sem hierarquias.
Depois de três anos estudando e repensando o trabalho, Tiago constrói a “bike”:
objeto que é construído utilizando duas bicicletas que compartilham a roda traseira. O
objeto, que remete à ideia de cabo de guerra e emana tensão, conflito, impossibilidade,
luta e discórdia, precisa de seu uso como ação para que tudo possa ser colocado de
outra forma.
Diferente do que se imagina ao olhar o objeto, ele, de fato, pode ser utilizado. A
roda central foi reforçada de modo a não se deformar pelo peso, pela tensão e pelas
torções do encontro. Essa bicicleta, porém, não serve para sair de um lugar e ir a
outro: o grande movimento no/do/pelo trabalho é interno. No processo de aprender
a andar com essa nova bicicleta (quando ter controle, dar controle, ceder, sentir e se
fazer sentido se mostram imprescindíveis), o pensamento, o equilíbrio, a força e a
respiração conectados aos do outro colocam os participantes numa experiência que
se constrói como a emergência de uma grande metáfora das relações.
Retratopaisagem
Novamente, o encontro pleno em vontade de fusão entre Tiago e a paisagem. Dessa
vez, depois de procurar a vista certa, Rivaldo transforma o quarto de uma amiga em
camera obscura. No propósito original, a luz se projetava sobre o rosto de um Tiago de
olhos fechados, pois acreditava que, se encarasse a câmera ou o furo, não permitiria
a própria passividade.
Porém, acabou se mostrando possível, preciso e necessário ao mesmo tempo permitir
e estar de olhos abertos. Dez anos após sua chegada ao Rio, Tiago se mostra pronto
a receber a cidade. Ela pousa sobre ele - com todo o peso do Pão de Açúcar sobre
o peito. E ele aguenta, vivo, atento, consciente, se fundindo em luz no processo, se
fundindo nos grãos da impressão, se fundindo em vida na vida.
Horizonte de nós dois
Em festas e reuniões sociais, Tiago começou a recortar páginas de revistas e
fotografar a sobreposição dos papéis aos rostos dos amigos. Com o mesmo propósito
de se lançar sobre as questões de identidade, Tiago criou espelhos de duas faces e
convida as pessoas a ficarem de frente umas para as outras com o espelho posto
entre elas. O formato do espelho faz com que as pessoas possam ver o próprio rosto
montado com os olhos da pessoa à frente ou ver os próprios olhos montados ao rosto
do outro. O trabalho, invariavelmente, tirou as pessoas do sério: ver-se no rosto do
outro ou ver o olhar do outro no próprio reflexo é desconcertante.
O silêncio que precede, em geral, a gargalhada nervosa é o (pode tirar) sinal de que
há pacto sendo feito. Nesse pacto, os dois se reconhecem por compartilhar o mesmo
desconforto em desejar e temer a perda da própria identidade.
A vontade das pessoas em registrar em foto o reflexo e a dificuldade em fazê-lo
fizeram com que Tiago elaborasse uma nova proposta. Rivaldo constrói um set
fotográfico e convida o público a posar para uma foto na qual ele enquadra apenas
os olhos do outro. A fotografia desse olhar é imediatamente impressa, e, então, Tiago
troca de lugar com o participante, encaixa os olhos do outro no próprio rosto e pede
que o colaborador o dirija até que esse possa fotografar a mistura entre seus rostos.
Então, uma projeção exibe, em sequência, um grande número de fotografias de Tiago
usando olhos de quem o fotografava. A presença do outro se mostra cada vez mais
imperativa: por desejada.
Olhar Condicionado
Caminhando pela cidade, Tiago percebeu a enorme recorrência, nas fachadas,
de buracos para condicionadores de ar vazios. Encontrou um desses até mesmo
na própria casa. Tiago começou, então, a transformar esses espaços em camera
obscura. Na simples instalação de uma placa de compensado com um orifício ao
centro na face externa do buraco e uma placa de vidro jateado em sua face interna,
a paisagem em frente ao orifício tem sua luz naturalmente projetada, de cabeça pra
baixo, sobre o anteparo. Tiago concluiu o procedimento na própria casa, fez um vídeo
que registra o efeito e expôs na galeria do Ibeu em seu próprio aparelho televisor ao
lado de um pequeno cartaz. O impresso era um convite que propunha fazer a mesma
operação na casa de um desejado colaborador voluntário em troca de poder exibir,
durante a mostra, o vídeo feito na camera obscura do colaborador no televisor da
própria pessoa durante o tempo restante de exibição.
Olhar condicionado é um trabalho que deseja o encontro, precisa do outro, de seu
interesse e de sua permissão. Tiago oferece o trabalho em troca de entrar na casa do
outro, ouvir o outro, estar com o outro. Mais uma vez, Rivaldo confunde a membrana
que separa dentro e fora: estando fora, troca pelo entrar; construindo a câmera, traz o
que está fora para dentro; levando a TV para fora, adentra com ela o espaço expositivo
que, por sua vez, sinaliza a fronteira, os laços e os poros entre o eu e o outro.
Identidade
Primeira carteira de identidade de Tiago emitida no Rio de Janeiro: roída por seus
cachorros.
Personal DJ - Baile da Mudança
Uma das ações realizadas durante o período da exposição nasceu em parceria com
Susana Guardado. A artista portuguesa realiza, desde 2008, a série “Personal DJ” de
retratos sonoros em vídeo elaborados em parceria com o próprio retratado. Nessa
ocasião com Tiago, foi intitulado “Baile da Mudança” e aproximava o interesse de
Guardado na música como elemento agregador às cameras obscuras para encontros
de Rivaldo.
Durante a ação, caixas de papelão preparadas com dois buracos recortados em
forma de rosto e com dois pequenos orifícios sobre eles são oferecidas ao público
para que, se e somente se duas pessoas encaixarem as faces nos recortes e vedarem
as entradas de luz, a caixa se transforme em camera obscura e projete a paisagem
invertida sobre os rostos dos participantes. Em geral, quando percebem como
funciona o fenômeno, as pessoas começam a segurar com cuidado a caixa contra o
próprio rosto, movendo o corpo para descobrir, com o enquadramento da projeção,
novas imagens.Dessa forma, se movem com atenção ao movimento do outro. Isso,
além do emparelhamento face a face, faz com que os pares pareçam dançar. Com
muitas caixas, Tiago e Susana criaram um baile na praia de Copacabana.
No lugar dos ícones recorrentes em caixas de papelão como a taça quebrada para
“frágil” ou a seta orientando “este lado para cima”, entram o sinal de play para
música, a taça convidativa à bebida, um par de setas indo e vindo para troca e um
coração pleno para amor. Tiago, que já havia explorado o Rio de Janeiro, riscado a
paisagem, encontrado o outro, trocado com o outro e recebido o peso da paisagem
sobre si, agora faz um baile com seus amigos e com quem mais chegasse. Talvez nem
soubéssemos, mas comemorávamos.
Com música, bebida, troca e amor, comemorávamos os encontros que fazem o
peso da paisagem e da cidade suportável; comemorávamos encontros que fundam
trabalhos como esse, exposições como essa, catálogos como esse; comemorávamos
o sorriso do outro ao receber a cidade sobre si e o sorriso de Tiago ao ver isso possível.
Por dentro da caixa-preta: variações da síntese na obra de Tiago Rivaldo
Manoel Silvestre Friques in Seis Chaves- 1.ed. - Rio de Janeiro: Híbrida, 2012
o indivíduo não é senão
o entrecruzamento
necessário, porém variável,
de um conjunto de relações
Marc Augé
Se pudéssemos sintetizar a obra de Tiago Rivaldo em uma única palavra, esta seria...
síntese. Antes de ser reduzida a mero recurso tautológico, a síntese como síntese
considera as variações em torno da ideia de condensação – temporal e espacial –
entrevista nos trabalhos do artista. Tais variações deram-se de múltiplas formas e
serão organizadas aqui em três abordagens distintas e permeáveis entre si.
A primeira delas refere -se a um conjunto de trabalhos, produzido ao longo da primeira década
do século XXI, no qual Rivaldo fabrica artesanalmente dispositivos fotográficos e, munido
deles, passa a realizar deslocamentos no ambiente urbano – em especial, no Rio de Janeiro e
em Porto Alegre, bem como nas rodovias que conectam as duas cidades. Integram esse grupo
obras como Road movies e SubinônibuS (ambas de 2000), Câmera obscura vestível, nº1 (20002001), Túneis (desde 2001), Volante Rio–POA–Rio (2005) e Obscura para dois. Com exceção dos
dois últimos – que, apesar de apresentarem o mesmo procedimento que caracteriza todos os
outros, suscitam questões que nos conduzem às outras duas chaves de acesso, comentadas
mais à frente – os trabalhos, em sua maioria fotográficos, apresentam imagens impregnadas
de duração, uma vez que, por motivos técnicos, a fotografia de uma pinhole necessita de longa
exposição. As fotos, com isso, apresentam uma atmosfera densa, resultante do percurso do
artista sintetizado em uma única imagem. Cada foto – e isso impõe às suas imagens uma
diferença radical em relação às fotografias instantâneas produzidas por câmeras digitais –
revela-se como um aglomerado de imagens, todas consolidadas em uma só. Os trabalhos
não refazem nem representam percursos, mas os revelam, condensados e sintetizados
em uma única imagem. Cada fotografia apresenta-se a nós como puro deslocamento.
Por decorrência desse filme amalgamado em um único fotograma, as imagens
apresentam uma aura – e aqui, conscientemente, invoca-se Benjamin – fantasmática
que impede o pleno reconhecimento de lugares, seres e coisas. Tudo nessas imagens
é impreciso: não é possível identificar com nitidez nada, afinal, trata-se de capturar o
transitório.
Quando Rivaldo opta por uma relação com a imagem fotográfica que precede a sua
industrialização – o artista não lança mão de dispositivos de alta tecnologia, mas os produz a
partir dos princípios básicos da fotografia –, essa retomada dos procedimentos pioneiros não
procura produzir, tal como outrora, imagens a partir da imobilidade dos objetos fotografados.
Se os primeiros aparelhos fotográficos necessitavam que seus modelos permanecessem
imóveis, pois a longa exposição assim os solicitava, no caso das fotografias de Rivaldo, o
movimento é o foco de interesse do artista, que procura capturá-lo em uma imagem-síntese.
A aura decorrente daí não é a mesma dos primórdios da fotografia, que Benjamin descreveu
apropriadamente em 1931.
Sem dúvida alguma, ambas levam “o modelo a viver não ao sabor do instante, mas dentro
dele” (BENJAMIN, 1999, p. 96). No entanto, enquanto nas imagens de fotógrafos como David
O. Hill (1802–1870), a duração dá forma à pose, no caso de Rivaldo esta última desvanece. Isto
é: nas fotos de Rivaldo, a pose se esvai, sublinhando o movimento e a imobilidade.
As imagens-sínteses produzidas por consequência da longa duração exigida pelo
aparelho criam retratos desorientadores – e a perspectiva crítica promovida por esse
conjunto de trabalhos surge precisamente daí. Pois os locais nos quais se produzem
as imagens são aqueles onde geralmente nós nos orientamos: avenidas, ruas e túneis
apresentam-se como vias que nos direcionam, sempre, para um lugar determinado.
Não se pode parar nesses locais, mas apenas passar por eles. Tal característica –
comum a recintos como hotéis, aeroportos, redes de fast-food, caixas eletrônicos e
shoppings – é um dos motivos que levaram o etnólogo francês Marc Augé a denominálos de “não lugares”, isto é, espaços impessoais e indiferenciados destinados à
passagem, nos quais os indivíduos devem realizar ações previstas e já roteirizadas.
SubinônibuS ou Túneis são imagens de não lugares: nos deparamos com fotografias
que revelam o desnorteamento em meio a vias que, se por um lado apresentam-se
como orientadoras, por outro oferecem-se como locais nos quais não é permitido
criar nenhum tipo de vínculo e/ou de identificação.
A desorientação é também trabalhada por Tiago Rivaldo nas obras Setas (a partir de
2004) e Dédalo1 (2011), que formam o segundo conjunto. Nelas, o artista deixa de lado
a fotografia e passa a utilizar fitas adesivas para construir, sobre paredes e camas –
dentre outros móveis que Rivaldo encontra nos quartos dos hotéis pelos quais transita
– símbolos gráficos. O título do segundo trabalho evidencia a sua motivação: o artista
assume a função do engenheiro grego que conteve o minotauro e produz sobre uma
parede o seu próprio labirinto visual. A relação entre o gesto e a situação temporária
(pois a confecção das setas se dá, muitas vezes, durante as viagens do artista) torna
as setas rastros de seu itinerário. Como tal, o emaranhado multidirecional funciona
como âncora – âncora de um deslocamento (síntese?).
Um dos personagens mais clássicos da literatura do século XX é também mencionado
indiretamente: Stephen Dedalus, reconhecido pela deriva urbana que é a sua vida
narrada nas obras de James Joyce – neste caso, Dublin é a cidade personagem que
se apresenta como labirinto para Dedalus e também para o homem moderno. Esse
homem viveria hoje, segundo Augé, em uma supermodernidade, o outro lado da pósmodernidade caracterizado por espaços que não são relacionais, nem identitários,
nem históricos.
Se, em Dédalo1, o convite para que o olhar se perca é motivado pelo labirinto, em
Setas, Rivaldo produz aglomerados de setas, de modo que o coletivo de símbolos
gráficos anule a função que um único exemplar possui. O procedimento utilizado
pelo artista – qual seja, a neutralização da função de um objeto decorrente de suas
multiplicação e inversão – aproxima Setas de Estojo de geometria (1977 – 1979), no
qual Cildo Meireles, lançando mão de operação semelhante, une lâminas cortantes,
pregos e machados de modo a destituí-los de suas respectivas funcionalidades.
No trabalho de Rivaldo, as flechas reunidas não apontam univocamente para um alvo,
mas sintetizam, na forma de aglomerados, desvios e evasões.
Nos dois conjuntos de trabalhos comentados até o momento, seja por meio da
fotografia ou de outros suportes, o artista focaliza a desorientação. A perspectiva
subjacente a todas essas obras tematiza a deriva que constitui a experiência de nossa
supermodernidade. A obra de Rivaldo, no entanto, não destaca apenas o malestar
dessa condição, apresentando outras perspectivas menos desoladoras.
Mais acima, afirmou-se que os trabalhos Volante Rio–POA–Rio e Obscura para dois,
apesar de partirem da elaboração de pinholes, apontariam, tal como as obras do
primeiro grupo, para questões que tornam-se mais explícitas no terceiro grupo de
obras, composto por Via de mãos dadas nº1 (2008) e nº2 (2010), Fio dental (2007),
Horizonte de nós dois (2011) e Sem Título, ou Carta Social, ou Carta-pretexto, ou Carta-protesto (2003). Vejamos por quê.
Volante Rio–PoA–Rio é uma série de autorretratos do artista produzidos com a pinhole.
Do mesmo modo que nas imagens-síntese do primeiro grupo, nesse trabalho o rosto
do artista aparece desfocada e fugazmente, sendo, cada imagem, a condensação de
uma duração da face e não apenas de um instante de sua aparência. Por sua vez,
Obscura para dois só é possível com a colaboração de dois indivíduos, que devem
preencher os dois buracos da caixa de papelão, para que ela se torne uma câmera
obscura. No terceiro grupo de obras, tanto a figura do artista quanto a participação de
terceiros estão presentes de modo conjunto.
Em Horizonte de nós dois e Sem Título, ou Carta Social, ou Carta-pretexto, ou Cartaprotesto Rivaldo expõe a imagem de seu corpo, bem como solicita a colaboração de
outros participantes. No primeiro caso, são construídos rostos derivados de dois
sujeitos: a parte inferior da face origina-se do artista, enquanto a parte superior (do
nariz para cima) provém do rosto convidado. Cria-se, com isso, uma nova identidade,
a meio caminho de um rosto e outro. A multiplicação de possibilidades, resultante das
inúmeras imagens produzidas pelo artista, faz desse trabalho um acervo fisionômico,
não do real, mas de uma derivação do real, criando fotografias que ilustram
visualmente as interações intersubjetivas do artista com seus colaboradores. Assim,
Rivaldo cria faces para transações relacionais, produzindo simultaneamente um
retrato e um autorretrato, sintetizados em um único rosto.
Em Sem Título, ou Carta Social, ou Carta-pretexto, ou Carta-protesto, o artista solicita
outro tipo de comprometimento dos interlocutores. Em 32 cartas despachadas
por Rivaldo a amigos de Porto Alegre, ele, além de cumprimentá-los, enviou-lhes
instruções para que cada correspondência fosse levada à inauguração da exposição
e fixada em um mural junto às outras, de modo a configurarem, em conjunto, o seu
retrato em 3x4 ampliado. O resultado da proposta é um quebra-cabeça coletivo,
expondo sete peças ausentes, nas quais a figura do artista (que não estava presente
na exposição) ressurge fragmentada. Cada peça do quebra-cabeça apresenta
uma trajetória singular: partindo de um ponto comum (o próprio artista), elas
tomam percursos diferenciados, até convergirem parcial e novamente no suporte
da exposição. Nesse trabalho, a imagem do artista se torna possível por meio da
colaboração de terceiros – dependência que não permite a visualização completa de
seu rosto, mas lhe impõem lacunas que, por sua vez, podem e devem ser completadas
por outros colaboradores, aqueles que, sem participar diretamente do feito, apenas
visualizam o seu resultado.
Em Via de mãos dadas nº1 e nº2 e Fio dental, a síntese aparece como resultado
de proposições dialógicas e temporárias entre o artista e seus colaboradores. Nos
dois vídeos que compõem Via de mãos dadas, Rivaldo investe na constituição de um
elemento comum resultante do comprometimento entre ele e seu interlocutor. Em
um caso, o artista e seu interlocutor estão frente a frente, perfilados frente à câmera.
Suas bocas passam então a produzir repetidamente bolhas de sabão, que, por sua vez,
se interpõem entre os dois indivíduos.
Com o passar do tempo, as bolhas ora se chocam, destruindo-se mutuamente, ora
se unem, formando uma esfera frágil, que estabelece um elo temporário entre os
dois sujeitos. Tal elo, sem dúvida alguma, funciona como um espaço – frágil e fugaz
– no qual pode-se observar a plena produção da síntese. No entanto, o vídeo revela,
com maior frequência, a destruição de uma bolha por outra, fato que parece querer
sublinhar a dificuldade em se obter um espaço compartilhado, por mais delicado
e temporário que seja. O que resulta de uma ação relacional não é, portanto, uma
coesão entre os sujeitos implicados, mas um esforço em estabelecer bolhas efêmeras
e quebradiças que criem espaços para a constituição do comum.
Já no primeiro vídeo da série, Rivaldo cria uma bicicleta preparada, formada por duas
bicicletas que dividem uma única roda traseira. Tal como no trabalho anteriormente
comentado, e também em Fio Dental, na obra em pauta observa-se um conjunto de
tensões produzido por decorrência da dificuldade em se instituir o comum. Aqui, o
artista e seu colaborador permanecem de costas um para o outro, em direções
inversas. A situação, portanto, parte de uma oposição: um deve ir para um lado,
enquanto que o outro necessariamente deve seguir o caminho contrário. Ela, com
isso, impõe a impossibilidade de os agentes envolvidos trilharem o mesmo caminho.
Assim como em Setas, em que Rivaldo neutraliza a função do elemento gráfico por
meio de sua multiplicação, aqui o artista torna inviável a opção por uma direção sem
que esta não seja oposta a um dos agentes envolvidos. A diferença entre as duas obras
é crucial: na primeira, focaliza-se a desorientação, por meio de uma densidade de
setas agrupadas em direções opostas; essa também é a preocupação do primeiro
grupo de trabalhos, nos quais as fotografias surgem como imagens-sínteses de
deslocamentos.
No entanto, no caso de Via de mãos dadas, a síntese não procura sublinhar o
desgoverno, mas as possibilidades relacionais entre dois indivíduos. Aqui, partese da oposição para revelar a oscilação de uma direção à outra como movimento
ondulatório possível entre as partes.
Tese e antítese, para além da polarização, parecem se equilibrar por meio de uma
negociação entre os agentes. Tal síntese diz respeito aqui à mobilidade do binômio
atividade-passividade entre os indivíduos, criando assim uma dialética relacional. Isto
é, o condutor é conduzido – de fato, para que possa orientar o movimento, o ciclista da
bicicleta preparada de Rivaldo precisa também ser orientado. Essa troca de funções
entre os agentes, sem que haja uma atribuição estável dos papéis de sujeito e de
objeto, é observada sobretudo em Obscura para dois – na qual há um mergulho de
dois sujeitos no interior da caixa-preta.
A industrialização da fotografia é o que, para Benjamin, inaugura o seu declínio. A
partir de então, dois fenômenos ocorrem simultaneamente. De um lado, a fotografia
perde a sua especificidade, transformando-se em objeto teórico, fato que permite
que o crítico alemão eleja uma característica da fotografia, o click 1 do fotógrafo,
para observar a experiência do choque na modernidade. De outro lado, a caixa-preta
adquire tamanha complexidade que se torna um aparelho opaco, do qual o fotógrafo
não possui domínio algum. Por mais que tenha conhecimento de determinados
aspectos técnicos característicos da máquina fotográfica, o indivíduo só consegue
controlar o seu input e o seu output, ignorando os processos internos que ocorrem
independentemente dele. O interior da caixa-preta não está, portanto, disponível ao
sujeito.
Tal possibilidade manifesta-se justamente em Obscura para dois. Nesse trabalho,
Rivaldo esvazia a caixa-preta de toda a sua complexidade tecnológica e, no lugar
dela, propõe uma dinâmica de olhares que faz com que o ato de visão perca a sua
unilateralidade. No interior da caixa-preta, a visão do outro pelo sujeito condiciona-o
a também ser objeto do olhar de quem o está vendo. O sujeito se afirma na mesma
medida em que se define como objeto. Como era de se esperar, observa-se aqui
também uma síntese resultante do tratamento dado à caixa-preta, que, por sua vez,
deixa sua aridez industrial de lado para ser o espaço no qual se promove o intercâmbio
entre agentes e funções. Na verdade, pode-se dizer que não há fotografia, mas
experiência fotográfica, em que aquilo que se focaliza não é uma imagem-síntese,
como em outros trabalhos de Rivaldo, mas a síntese enquanto relação. Mas isto é
apenas uma variação.
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1 É Rosalind Krauss quem percebe as abordagens distintas de Benjamin em “A pequena história da
fotografia”, publicado em 1931, e o famoso ensaio “A obra de arte na era de sua reprodutibilidade
técnica”, de 1936. Os cinco anos de diferença entre os dois textos indicam uma mudança radical no
pensamento de Benjamin a respeito da fotografia.
Referências bibliográficas:
AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
Campinas: Papirus, 1994.
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