Violência contra a criança e o adolescente_ Exploração Sexual

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Violência contra a criança e o adolescente_ Exploração Sexual
1 FUNDAÇÃO ESCOLA SUPERIOR DO MINISTÉRIO PÚBLICO DO ESTADO DE MATO GROSSO BENEDITA ROSARINHA DE ARRUDA BASTOS Violência contra a criança e o adolescente Exploração Sexual Infanto­Juvenil Prostituição Infantil CUIABÁ/MT 2008
2 BENEDITA ROSARINHA DE ARRUDA BASTOS Violência contra a criança e o adolescente Exploração Sexual Infanto­Juvenil Prostituição Infantil Monografia de Especialização em Direito da Criança Adolescente. Orientador: Prof. Ms. José Antonio Borges CUIABÁ/MT 2008
e do 3 BENEDITA ROSARINHA DE ARRUDA BASTOS Violência contra a criança e o adolescente Exploração sexual infanto­juvenil Prostituição Infantil Monografia apresentada à Fundação da Escola Superior do Ministério Público do Estado de Mato Grosso como exigência parcial para obtenção do Título de Especialista em Direito da Criança e do Adolescente. Aprovada pelos membros da banca examinadora com menção_______ (_____________________________________________________) BANCA EXAMINADORA _____________________ Orientador: Prof. Ms. José Antonio Borges Fundação Escola Superior do Ministério Público/MT __________________ Integrante: Prof. ...................................................... __________________ Integrante: Prof. ...................................................... Data de Aprovação ____/_____/_____
4 DEDICATÓRIA Aos meus netos: Ale Guilherme Arfux da Costa Ribeiro (in memorian), Antonia Arfux Taques e Rafael Vicente Arfux Taques
5 “É a partir dos que sofrem, dos que estão marginalizados (as) que devemos formular valores. São estas pessoas que através de sua dor indicam os caminhos em vista de uma vida mais justa ou em vista da restauração da vida” . (Serviço da Mulher Marginalizada)
6 RESUMO O tema da violência é cada vez mais freqüente nas publicações periódicas e científicas. A violência cresce assustadoramente e ainda não se reconhece, com precisão, as causas que a antecedem. Esta problemática está relacionada a outra mais específica, porém não menos importante. Trata­se do grave problema que vive a sociedade moderna atual, denominado Exploração Sexual Infanto­Juvenil. A prostituição e a exploração infantil são realidades disseminadas em todo o mundo. Entre os fatores que levam à alta incidência da prostituição estão, além da miséria, as tradições sócio­cultural e as pressões exercidas pela mídia. A cultura coronelista sempre esteve presente na valorização de práticas sexuais como o incesto, a preferência de sexo com meninas e a separação entre a mulher doméstica das “outras”. Este pensamento leva ao crescente número de usuários que fortalecem o surgimento e a manutenção das redes de exploração sexual de crianças e adolescentes. Geralmente, as meninas da classe social menos favorecida têm uma iniciação sexual no seio da família. E, as instituições que poderiam reverter essa situação são ausentes nas questões preventivas, bem como na orientação sexual dessas crianças e adolescentes. Entretanto, são inúmeros os projetos nessa área, o que falta – além da conscientização da sociedade – é o interesse por parte do Estado em trabalhar, efetivamente, essas questões. Os fatores que impulsionam o quadro da prática da prostituição têm contornos definidos. Os estudos realizados na área quantificam e categorizam as diferentes formas de exploração, abuso e exploração sexual infanto­juvenil. As pesquisas citam a quantidade de 500.000 meninas prostituídas, número este que coloca o Brasil em segundo lugar no mundo, superado apenas pela Tailândia. Somos da opinião de que a gravidade do problema social ora trabalhado pode se resolver conhecendo as causas sociais que os provoca, buscando soluções de diversas formas. Apesar de que as mais diferentes áreas como a Sociologia, Psicologia, Ética, etc., ao estudar o problema ainda não chegaram a uma resposta conclusiva. Dessa forma, somos favoráveis que em todos os casos a investigação multidisciplinar deve ser realizada. No presente trabalho consideramos de grande importância a abordagem teórica e prática do problema referente à exploração e ao abuso sexual da população infanto­juvenil, desde a sua perspectiva e a prática da busca dos direitos. Na realidade, sabemos que existem comportamentos “sociais” que ainda não estão caracterizados como delitos, a Pornografia, por exemplo. Existem fatores e aspectos teóricos que ainda precisam ser elaborados com a finalidade de vincular (melhor), a lei com a realidade social e garantir a prática dos Direitos Humanos ligado ao respeito à pessoa humana, garantindo­ lhe a liberdade de seus direitos. Violência – Direitos Humanos ­ Exploração e Abuso Sexual – Prostituição
7 ABSTRACT Each day, becomes amore frequent issue in periodical and cientific publications. Violence grows and still its causes are not well recognized. This difficulty is related to another whuch, although not more specific, it is not less imortant. It is the serious problem our modern soity lives – Infant – Juvenil Sexual Exploitation. Prostitution and infant explotation are disseminated realities all over the world. Among the factors which bring a rise to the prostituion incidence they are, besides mesery, the social. And cultural traditions and the pressions exercised by the midia. The presence of the patriarcal culture continues in the sexual practices as family, incest, preference of Sex with girls and the separation between the wife and other womwn. With this factor underlining the present situation, the great, number of consumers strengthens emergence and maintenence of the girl sexual exploitation network. Generally, girls from the lowest social classes have a violent sexual iniciation in their family. The instituions which could change this situation are absent in the prevention and the children sexual orientation. Although there is a great number of projects in this area, there is a lack of concientization from the soiety, application of these projects from the state. The factores which push the prostitution practices assume defined shapes. There are recent quantitatives studies which classift rhr different forms of infant – juvenil prostitution. A lot was said about quantifyng the prostitution girls were mentioned, number which positiones Brazil in the word’s second place, only behing Tayland. In our opinion, the seriosity of the social problem aluded can be resolved by knowing the social causes which provoke them and by questioning other their causes, we could say that we do not have get complete answers from any of the sciences which study the problem, like Soliology, Ethics, Psicology, etc. Worst it would be to try to final in Politics any solutions for these problems. We considere that a miltidiciplinar investigations of the subject should be done. In this study, we considere actual and of great teorical, meodological and pratical importance to appoach the Infant – Juvenil Sexual Exploitation Problem from the perspective and practice of the Law. The reality that there are criminal social behaviors and practices which are not yet labeled as infraction and, the negligence from the part of social and public institutions – from when it comes to the exercise lf the Law difficults the fight against these practices. These are technical factors and aspects which still need to be elaborated as to vinculate beteer the Law to the social reality and to ajust the social practice to the Humam Rights, related to the beings, their freedon and rights. Violence ­ Right Human ­ Exploration and Sexual Abuse ­ Prostitution ABSTRACTO
8 El tema de la violencia es cada vez mas frecuente en publicaciones periodicas y cientificas. És cierto que la violencia cresce y a ún no se reconoce com precisión las causas que conceden a ella. Esta problemática está relacionada com outra que, a ún mas especifica no es menos importante. Tratase del grave problema que vive la sociedad moderna actual, denominado Exploración Sexual Infancia – Juvenil. La prostitución y la esploración infantil son realidades diseminadas en todo el mundo. Entre los factores que llevan a la alta incidencia de la prostitución estan, fuera de la miseria, las tradiciones socio­culturales y las presiones ejercidas por la midia. La cultura coronelista se mantiene presente en la valorización de prácticas sexuales como el incest familiar, la preferencia de sexo com niñas, y la separación entre la muyer doméstica y las “otras”. Com esta armación es grande el número de usuarios que fortalece el surgimiento y la manutención de las redes de exploración sexual de niñas. En general las niñas de los segmentos mas pobres tienen una iniciación sexual violenta en el seno de la familia. Las instituciones que poderian revertir esa situación, se muestran ausentes en la prevención y orientación sexual de estos niños, no obstante haiga imnúmeros de proyectos en esa área, lo que falta es sin duda la concientización de la sociedade, del estado par ala aplicación de los mismos. Los factores que impulsan el cuadro de la práctica de la prostitución asumen contornos definidos. Existen estudios cuantitativos recientes que categorizan y estudian las diferentes formas de prostitución infania­ juvenil. Mucho se habla a especto de la contidad de la prostitución de uqe tratamos. Diversos números fueron sitados. Llego a ser mensionada la cantidad de 500.000 niñas prostituidas, cifra que colocaria el Brasil en segundo lugar en el mundo, superado apenas por Tailandia. Em nuestra opinión, la gravidad del problema social aludido puede ser resuelto, conociendo las causas sociales que las provoca y indagando las mas posibles para su solución. Apesar de que, en defirentes áreas, se intenta dar una respuesta sobre las causas del mismo, podemos decir que a ún no tenemos repuestas completas en nunguna de las ciencias que studian el problema, como la Soliologia, la Ética, la Psicologia, etc. Tan poco la politica tiene encontrado solución para estos problemas. Em nuestra conciencia, consideramos que a investigación multidisciplinar del mismo deve ser realizada. En el presente trabajo, consideramos actual y de grande importancia teórico metodológica que práctica y aborda el problema de la Exploración Sexual Infancia­Juvenil desde la perspectiva y la práctica del derecho. La realidad que tenemos delante de los ojos y que existen actos y comportamientos solicales criminosos que a ún no estan caracterizados como delitos, bien como existe negligencia por parte de instituciones sociales y de los poderes públicos, en la que se refiere el ejecicio de la ley que, debilita la lucha contra tal proyecto. Existen factores y aspectos técnicos que a ún precisam se elaborados com el fin de vncular mejor la ley com la realidad social y ajustar mas la práctica social al Derecho Humano, ligado al respecto a la persona humana, la mayor libertaad de sus derechos. Violencia – Derechos Humanos ­ Exploración y Abuso Sexual ­ Prostitución
9 LISTA DE SIGLAS AIDS – Síndrome da Imuno Deficiência Adquirida CPI – Comissão Parlamentar de Inquérito C.F. – Constituição Federal EUA – Estados Unidos da América NCCAPR – Nacional Center on Child Abuse Prevention Research FAI – Federação Abolicionista Internacional FEBEM – Fundação do Bem–Estar do Menor CUT – Central Única dos Trabalhadores OIT – Organização Internacional do Trabalho UNICEF – Fundo das Nações Unidas para a Infância ONG´s – Organizações não Governamentais AIJ D – Associação Internacional de Justiça e Direito. DPCA – Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente CRIAD – Conselho Estadual dos Direitos da Criança. G.D.F. – Governo do Distrito Federal CEDCA – Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente. PROSOL – Promoção do Bem–Estar Social ECA – Estatuto da Criança e do Adolescente AMENCAR – Amparo ao Menor Carente EMBRATUR – Empresa Brasileira de Turismo CONANDA – Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes CDCA – Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente. TJ SP – Tribunal de Justiça de São Paulo. CEBRID – Centro Brasileiro de informações sobre drogas e Psicotrópicos CP – Código Penal FORUM DCA/MT – Fórum Estadual de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente CMDCA – Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente FUNABEM – Fundação Nacional do Bem ­ Estar do Menor
10 SUMÁRIO Dedicatória Resumo Abstract Lista de Siglas Sumário 1.0 – Introdução...............................................................................................12 1.1 – Histórico............................................................................................14 1.2 – A Violência de Gênero no Âmbito dos Direitos Humanos...............20 2.0 – Desenvolvimento.................................................................................22 2.1 ­ Dos Direitos Humanos.......................................................................22 2.1.2 ­ Dos Direitos da Criança e do Adolescente......................................23 2.1.3 ­ Da Tutela Jurisdicional...................................................................27 2.2 ­ Violência Infanto­Juvenil..................................................................29 2.3 – Da Prostituição ................................................................................38 2.3.1 ­ Considerações Iniciais sobre a Prostituição....................................38 2.3.2 ­ Formas de Iniciação e Condições de Vida na Prostituição.............42 2.4 ­ Prostituição Infanto­Juvenil..............................................................44 2.4.1 – Análises Comparativas – Prostituição em Fortaleza......................49 2.4.1.1 ­ A Prostituição no Estado do Espírito Santo.................................51 2.4.1.2 ­ A Prostituição no Estado de Mato Grosso...................................52 2.4.1.3 ­ A Prostituição em Cuiabá............................................................55 2.4.2 ­ Do Turismo Sexual Infantil............................................................56 3.0 – Da Prevenção da Violência Sexual......................................................60 3.1 ­ Como Intervir e Prevenir a Exploração e a Violência Sexual............62 3.1.2 – Da Educação Sexual Preventiva.....................................................63 3.2 – Conseqüências...................................................................................63 3.2.1 ­ Das Doenças Sexualmente Transmissíveis.....................................64 3.2.2 ­ Alcoolismo Precoce........................................................................66 3.2.2.1 – O Álcool na Adolescência...........................................................67 4.0 ­ Do Sistema da Justiça...........................................................................68
11 4.1­ Do Sistema Jurídico............................................................................68 4.1.2 – Da Proteção do Estado à Criança e ao Adolescente......................69 4.1.3 – Estatuto da Criança e do Adolescente: Um Instrumento na Construção de uma Sociedade Cidadã.........................................70 4.2 ­ Do Sistema Político............................................................................73 4.2.1 ­ Instituições Repressivas: O Caso da Polícia Civil.........................73 4.2.2 ­ A Realidade Brasileira....................................................................74 5.0 – Considerações Finais...........................................................................76 6.0 – Bibliografia..........................................................................................78
12 1.0 – Intr odução A violência cresce assustadoramente no mundo todo. Em cada país, os que trabalham com saúde, bem­estar, educação, etc., assim também como os representantes dos governos têm expressado sua preocupação com a violência crescente, e se têm comprometido a empenhar­se em ações para resolvê­la. No entanto, todos nós sabemos que a real solução destes problemas tão complexos requer mudanças que sejam, igualmente, profundas. Tivemos a oportunidade de estudar os problemas das pessoas que vivem em situação de conflito ou que vivenciam tipos de violência. Convém assinalar que mulheres e crianças não são grupos “especiais” nessas situações. Por várias razões, mulheres e crianças são alvos de violência, principalmente da violência sexual, e da exploração sexual infanto­juvenil. Se olharmos a nossa realidade, a situação é ainda mais complexa, pois não estamos apenas diante de casos esporádicos que privilegiam uma faixa etária em detrimento de outras. O que se constata é que camadas populacionais inteiras são excluídas por um sistema político­econômico perverso que resguarda a poucos o direito de tudo possuírem, ainda que esta posse resulte em fome, doenças e a falta de habitação para milhões de cidadãos brasileiros, ou melhor, para os quase­cidadãos ou semi­cidadãos, pois no conceito de cidadania não está somente o direito/obrigação de votar, mas todos os direitos e deveres inerentes à vivência comunitária na polis, como trabalho, casa, alimentação, escola, saúde, etc. E nesse contexto é exatamente a criança a que mais sofre. Primeiro por não ter condições de se auto­defender, sendo vítima fácil da desnutrição e de todas as doenças, o que resulta em um elevado índice de mortalidade infantil. Desde pequena, a criança é jogada no mundo adulto, sendo explorada em sua força de trabalho, ficando distante dos bancos escolares, crescendo um adulto inabilitado para os requisitos de mão­de­obra especializada. Há, ainda, outras formas de exclusão, tais como a permissão de participarem de programas impróprios, pelo seu caráter nocivo (que violentariam uma premissa básica de serem sujeitos em processo de desenvolvimento e, portanto, merecedores de cuidados especiais), além de outras circunstâncias em que o envolvimento da criança não seria saudável, tanto para a criança e o/a adolescente como para os seus genitores. Há que se buscar mecanismos, sobretudo, como um estilo de vida, senão alternativo, mas no mínimo diferenciado do senso comum no qual o mundo adulto relega à criança um papel secundário, um submundo de completo descaso. A análise da problemática da infância tem que ser entendida num contexto globalizante da situação do ser humano Desta forma é importante colocar quais são os principais problemas que afetam os habitantes do mundo de hoje. Fazer frente a isto, avaliando as possibilidades críticas de êxito e também os desafios de uma ação contínua em favor da infância e da juventude, necessário se faz esclarecer que todos os problemas conforme se detalham, possuem seu próprio caráter e sua profundidade de se manifestar, que não são idênticas às conseqüências dessas para a humanidade em seu conjunto e para seus diversos grupos sociais. Os problemas globais que afetam a humanidade vão desde a necessidade de impedir o atraso dos países em desenvolvimento à eliminação de revoltantes injustiças sociais até garantir o desenvolvimento equilibrado entre o crescimento demográfico e a dinâmica de oferecer alimentos, recursos energéticos, matérias­prima e um efetivo cuidado de meio natural e, finalmente o problema do desenvolvimento do homem e da garantia de um futuro digno para ele. Para entrarmos na análise a que nos propomos, retrataremos alguns dos grandes problemas sociais, tais como o problema alimentar que resulta de difícil solução, o mesmo que está relacionado intimamente com o desenvolvimento demográfico. Durante os três primeiros quartos do século, a população aumentou 2,6
13 vezes, e a produção agrícola se desenvolveu somente 2,8 vezes. Ocasionando 500 milhões de pessoas que sofrem de fome crônica e alimentação insuficiente. Mais de 100 milhões de seres humanos se alimentam deficientemente. Durante os últimos 25 anos deste século, conforme cálculos moderados, a população aumentou em mais de 60% (635 milhões até o ano 2.000). De acordo com as projeções feitas pela ONU (2001), a população mundial crescerá em 52% passando para 9,3 bilhões. Como podemos vivenciar esse crescimento populacional, inevitavelmente, tem provocado um rápido crescimento no volume de procura dos alimentos. O diretor geral da FAO, Jacques Diouf, pediu à comunidade internacional não só que atue de imediato para solucionar a atual crise alimentar mundial, mas também que aproveite a oportunidade que constitui o aumento dos preços dos alimentos e se evite que esta situação dramática se repita no futuro 1 . No entender Diouf, “chegou o momento de relançar a agricultura, e a comunidade internacional não deveria perder a oportunidade”2 . A formação de cidades de várias dezenas de milhões de habitantes acarreta graves problemas tanto na provisão de serviços básicos como nas condições de vida das pessoas: emprego, assistência médica, água potável, alimentos. Em todo o planeta o número da população urbana pode chegar a superar os três bilhões de pessoas. A esses problemas se somam outros como os que estão relacionados com os valores humanos e particularmente entre adultos, crianças e adolescentes. Justamente neste quesito é que se concentra a especificidade da problemática que abordamos, qual seja, o abuso sexual como uma forma crua de maltrato que interrompe o desenvolvimento harmônico da criança e a possibilidade a que ela escolha de per si o desenvolvimento de sua sexualidade. Resulta reivindicar os direitos subjetivos e não somente os direitos objetivos. O maltrato é um fenômeno integrado de ações que lesam os direitos das crianças e dos/as adolescentes onde quer que estejam desde os círculos mais particulares até o contexto geral da sociedade e do Estado. Dessa forma a sociedade é deteriorada quando as condições dos pobres impedem a família de satisfazer as necessidades básicas de seus filhos. O Estado é deteriorador quando não define políticas orientadas à proteção da criança e da família, quando não prioriza suas descobertas na área social ou quando no aparato legal introduz postulados coercitivos e práticas punitivas que geram violência contra os menores de idade. O abuso sexual tem aumentado progressivamente pelas trocas na estrutura familiar devido ao crescimento da taxa de divórcios, pais/padrastos que abusam de crianças e adolescente os quais, segundo a ciência, quando adultos transformam­se, também, em abusadores. Outro fator é a nociva influência dos meios de comunicação no comportamento social e bem podem ser qualificados, em muitos casos, como motivadores ou indutores para atividades sexuais precoces. Veremos neste trabalho que as crianças e adolescentes do sexo feminino (muito embora, os do sexo masculino, também sejam alvos) são presas fáceis da exploração, do abuso e da violência que atingem seu corpo, seu sexo e seu ser. Trata­se das circunstâncias que fazem parte da realidade da vida de toda a população pobre: a menina, no entanto, por sua múltipla vulnerabilidade – por ser criança, por ser mulher e também por ser pobre – é, entre todas as que se encontra em situação de mais alto risco. 1 2 In Agraportal. 02/05/2008. Idem.
14 1.1­ Histór ico Resgatando a figura das crianças na história da humanidade, observamos que a sua presença é praticamente nula, quando não, é recebedora de algumas atenções e cuidados, pelo seu status enquanto filho (a) de nobre, de castas especiais, como aconteceu durante a idade antiga. Os estudos históricos sobre a criança e o adolescente são muito recentes. Iniciaram­se na década de 60 e se difundiram na década de 70. Estes estudos estão fundamentados em diversas fontes: decretos, livros de leis, prescrições da igreja, códigos, escritos filosóficos, escritos religiosos, registros oficiais, estudos demográficos, estudos epidemiológicos e testemunhos por registros que se baseiam na vida de uma família (em geral aristocrática) ou de uma comunidade, em determinado momento da história. O reconhecimento da criança como ser diferenciado dependeu dos modelos de cultura e dos fatores demográficos, da freqüente mortalidade e do inevitável desaparecimento (à mercê do azar), que criava uma indiferença para estes seres frágeis com quem ninguém queria se identificar nem se vincular. Eram considerados com a mesma ambigüidade que o feto, e não se avaliava o nascimento como mudança de natureza importante. Segundo Ariés: “não se pensava que esta criança continha já toda uma pessoa humana, como cremos habitualmente hoje” 3 . Aristóteles atribuiu à criança uma avidez doentia, próxima à loucura. Concedeu­lhe, apesar disto, disposições naturais para a virtude ao afirmar que a criança é um ser irracional carente de entendimento, e por capacidades inatas pode adquirir a razão, do pai ou do educador. Hipócrates propõe como natural de saber a que crianças convêm educar. Justino, o Santo que viveu entre 100 e 165 da era cristã, avocando o respeito dos cristãos pela vida da criança, especificava ser esta fútil recém­nascida. Santo Agostinho não assinala à criança, um estado de inocência, ao contrário, considera­a um ser de natureza corrompida que não pode ser salva a não ser com o auxílio vindo dos céus. E afirma que se deixarmos o menor fazer o que lhe apraz, não há nenhum crime em que não se o veja precipitar. A criança e o/a adolescente durante os séculos suscitaram desconfiança e rechaço. A tradição do infanticídio estava tão estabelecida que conseguiu se manter abertamente durante vários séculos, depois da conversão ao cristianismo, até praticamente, ao final do século XVIII. Era praticado com freqüência não desdenhável, já que as tradições culturais não ofereciam aos cônjuges outros meios mais cômodos e eficazes para limitar sua descendência e porque a pessoa da criança não estava ainda verdadeiramente sacralizada e tampouco suscitava, em princípio, respeito e amor. À mortalidade infantil em massa, imputável pelas condições sanitárias antigas, se acrescentava uma mortalidade imputável pela negligência e descuido. O abandono da criança em plena natureza, sem condições de viver, a incapacidade dos pais em alimentar seus filhos, descuidos e incidentes como a asfixia na cama, desmame precoce ou negação de alimentos eram as razões mais freqüentes do infanticídio. Com raras exceções, nos escritos encontrados a criança sempre foi negligenciada pelos meios. No entanto, alguns registros da inquisição, como da época do Papa Avignon, Benedito XII (1318­1325), o nascimento do filho é cultural e afetivamente vivido, especialmente quando o filho era do sexo masculino (primogênito), e de origem aristocrática. Isto faz com que não se possam generalizar as atitudes hostis em épocas tão longas e em culturas muito diversas. Entre os nobres e os ricos, o afastamento dos filhos do ambiente da família, para serem criados no campo com nutrizes substitutas é o modelo encontrado na história de vários países como a Inglaterra, França e Espanha. Mesmo os príncipes tinham famílias substitutas, onde mamavam no seio nutriz até os dois ou três anos e ficavam por mais 3 ARIÉS, Philippe. História da Criança e da Família. p. 276.
15 tempo, praticamente até o período quando já passavam pelas doenças infantis, como sarampo, catapora, coqueluche e outras que dizimavam as crianças. Sobrevivendo, voltavam às suas famílias, onde passavam a ser considerados como pequenos adultos. Podemos dividir a história das crianças de acordo com as reações psicológicas dos adultos, especialmente a dos pais frente a elas, cuja classificação se deu seis épocas e conforme os pais projetam suas emoções:
· Modo Infanticida – que se estende desde a antigüidade até o século IV da era cristã, no qual o rechaço está em primeiro plano. Na dificuldade de cuidar dos filhos, pela ansiedade, os pais os matavam. A imagem de Medéia não é um simples mito, mas o reflexo da realidade;
· Modo de Abandono – do século IV ao século XIII, corresponde a um período no qual os pais começam a aceitar que a criança tenha alma;
· Modo Ambivalente – do século XIV ao XVI, quando a criança era autorizada a penetrar na vida emocional de seus pais, mas poderiam ser perigosas. Os pais tratam de moldá­las como patrão;
· Modo Intr usivo – século XVIII, é uma época de grande transição. Os pais começam a se aproximar da criança e ensaiam a conquista de seu espírito, com a possibilidade de verdadeira empatia, sem dar importância ao amor;
· Modo Social – do século XIX até meados do século XX. A educação passa a ser importante. Ela é menos um processo de conquista que um guia em seu próprio caminho. Educação com amor se torna o binômio importante;
· Modo de Ajuda – os pais compreendem que os filhos sabem melhor do que seus pais aquilo que necessitam em cada idade da vida. A criança empurra seus pais (quando os têm) a tratar de compreender suas necessidades particulares. O fenômeno das relações violentas entre pais e filhos talvez tenha estado presente desde os primórdios da raça humana. Entretanto, foi somente no século XX que este fenômeno foi estudado amplamente por diversos ramos do conhecimento. Em meados do século XIX começa a se esboçar uma preocupação com a criança, ou seja, ela é descoberta como um ser humano autônomo, percebendo­se com mais profundidade seus valores, seus sentimentos. Novas ciências como a Psicanálise, a Pediatria, a Psicologia passaram a se consagrar aos problemas desta etapa da vida, a tal ponto que Ariés chega a dizer que “o mundo atual é obcecado pelos problemas físicos, morais e sexuais da infância” 4 . A era contemporânea marca uma acentuada intervenção do Estado na vida familiar. Com Revolução Francesa e as Constituições baseadas no Código Civil de Napoleão, com a teoria da res publica e com o reconhecimento da cidadania do operariado, a criação e a educação dos menores — futuros cidadãos — tornou­se responsabilidade 5 pública. Isto vinculou as crianças ao Estado, que começou a exigir dos pais deveres e obrigações. As crianças passaram a ser encaradas como pessoas, ou seja, cidadãos em formação. Alguns movimentos podem ser percebidos, a partir daí na sociedade burguesa em termos da constituição e da destituição do poder familiar. Num primeiro momento, os pais são destituídos deste poder sobre o filho, uma vez que a ele é atribuída uma existência pública desde o nascimento. Num segundo momento, o Estado devolve aos pais o poder sobre o filho, consagrando­lhes a tarefa de zelar pela educação da criança, 4 5 Op. Cit. p. 276. SIMÕES, Carlos. A família e a propriedade no Código de Menores. p.85
16 e, num terceiro momento o Estado pode, ainda, confiscar o “pátrio poder” sob diversas circunstâncias, principalmente no caso específico de serem constatadas ameaças à integridade física da criança advinda de seus próprios pais. O Estado se organizou de forma a tomar conhecimento dos casos de violência imposta às crianças, estabelecendo medidas compatíveis. A criança é um fenômeno moderno, pode­se observar que numerosos ramos da Ciência começaram a se preocupar com ela e, evidentemente com o fenômeno da violência a que ela possa estar sujeita em seu ambiente familiar. Geralmente o termo violência tem sido empregado em diversas ciências como Física, Direito, Moral e Filosofia. No entender de Daniel: “referir­se a situações de força (sobretudo de procedência exterior à pessoa que a sofre) que se opõe à naturalidade, à responsabilidade jurídica, à liberdade moral, etc.”6 . Doutrinadores outros entendem, também, como a: “força material, ativa, vertida para o exterior e causa de prejuízo físico. Implica a relação energia física — prejuízo físico”7 . O estudo das relações violentas entre pais e filhos sempre é tratado com certo pudor. Este é mais um dos “temas malditos” na medida em que, ao abordá­lo, se está desvelando uma face que a família tem todo interesse em manter oculta, preservando assim sua imagem de “santuário”. Por outro lado, o estudo do fenômeno envolve um componente ameaçador para seus protagonistas pelas conseqüências que acarreta na legislação (criminais para os agressores), e possibilidade de separação da criança dos pais pelas vias de institucionalização, guarda por terceiros, adoção. A violência que os pais podem exercer contra os filhos, com fins pretensamente disciplinadores, no exercício de sua função socializadora ou com outros objetivos, assume três facetas principais: 1. Física: quando a coação se processa através de maus tratos corporais (espancamentos, queimaduras etc.) ou negligência em termos de cuidados básicos (alimentação, vestuário, segurança, etc.); 2. Sexual: quando a coação se exerce tendo em vista obter a participação em práticas eróticas; 3. Psicológica: quando a coação é feita através de ameaças, humilhações, privação emocional. As crianças estiveram em muitos períodos da História sujeitas, desde a tenra idade, a todos os castigos e sanções destinados a adultos incluindo­se até a Pena capital. A história da criança tem sido também a história de um mundo de violências perpetradas contra ela na forma de escravidão, abandonos, mutilações, filicídio e espancamentos. Embora se saiba que a violência contra a criança, perpetradas nas formas acima descritas tenha explicações científicas que procuram correlacioná­la com o contexto sócio­econômico­político­cultural em que ela se deu (ou se dá), como por exemplo, o filicídio, o trabalho infantil excessivo, etc.; o nosso objetivo será apenas o de descrever alguns tipos de violência a título exemplificativo. Estes mesmos exemplos, ocorridos em épocas diversas e em contextos também diversos, servirão para provar o fato de que a violência contra a criança é um fenômeno presente na raça humana. Não foi nossa preocupação apresentar os exemplos de forma cronológica, mas sim, enquanto flashes de uma realidade, não importando o período em que estivessem ocorrendo. A Bíblia é um dos instrumentos valiosos para se verificar o quanto a perseguição às crianças é antiga. Nela são descritos os grandes massacres sofridos na infância, como é o caso dos meninos judeus jogados ao rio, por ordem do Faraó, por ocasião do 6 7 DANIEL, Eduvaldo. Fenomenologia Crítica da Violência Urbana. p. 127. FERNANDES, Ana Maria Babette Bajer & FERNANDES, Paulo Sérgio Leite. Aspectos jurídico­ penais da tortura. p.104.
17 nascimento de Moisés. O mesmo se repete em relação aos primogênitos egípcios do Êxodo e na matança de crianças nascidas em Belém, ordenada por Herodes, em perseguição a Jesus. A sociedade espartana, por exemplo, decretava a morte das crianças portadoras de defeitos físicos, uma vez que eram consideradas inaptas aos objetivos guerreiros desta mesma sociedade. Na antiga Cartago eram freqüentes os sacrifícios de crianças aos deuses. Segundo evidências arqueológicas, estas crianças eram queimadas, sendo que antes desse procedimento, eram imobilizadas, utilizando­se para isso de drogas ou mordaças, e, que essa prática se dava não só por motivos religiosos, mas, também, econômicos. Estudando a história de Cartago, arqueólogos americanos perceberam que num dado momento este povo parou de sacrificar crianças trocando­as por animais, voltando, entretanto, tempos depois, a oferecer de novo crianças aos deuses. Atribuíram estas mudanças ao fato de que, no princípio, os cartagineses tinham uma economia desenvolvida, mas uma população pequena, sendo que não era conveniente o desperdício de recursos humanos. Era preferível o sacrifício de animais. Entre os romanos, em alguns períodos do seu império eram executados os varões portadores de deficiências físicas e mentais, bem como as crianças do sexo feminino, sob determinadas condições. Em uma passagem das Metamorphoses, de Ovídio (Livro IX), isto se torna claro quando Litus ordena à mulher, no caso de dar à luz uma menina, que a mate: “Edita forte tuo fuerit si femina partu (invitus mando, pietas ignosce) necato”8 . Na idade contemporânea tem­se, por exemplo, o assassinato de crianças na Alemanha nazista: As crianças condenadas à morte eram enviadas a uma divisão infantil (Goerden, Eichberg, Indstei etc.). Em sua maioria eram envenenadas com fortes doses de luminal, drogas administradas em colheres, como se fossem medicamentos, ou então, misturadas com alimentos. A morte ocorria alguns dias depois e, às vezes, semanas mais tarde. Na prática, as ordens para matar crianças se multiplicavam, incluindo crianças com orelhas disformes, as que urinavam na cama, as que mesmo sendo perfeitamente sadias eram 9 consideradas difíceis de educar. Posteriormente, empregou­se o método denominado eutanásia infantil, que consistia em deixar as crianças morrerem de fome literal e deliberadamente nas divisões infantis. As mutilações impostas às crianças com o objetivo de convertê­las em “mendigos profissionais” eram relatadas por M. Annaeus Sêneca, já na época de César. Este mesmo tipo de deformação é mencionado como existente no século XVII por Donzelot: Era realizada por mendigos que as compravam direta ou indiretamente, nos lugares de recolhimento que precederam à Ação de São Vicente de Paula ou na famosa Associação de Vagabundos, especializada em cirurgia teratológica, que eram os compra­chicos 10 (literalmente compra­crianças). Outros exemplos podem ser citados em termos de abandono de crianças, registrados em diferentes sociedades. Os romanos as lançavam em cestos de vime junto ao tronco da Figueira Ruminal ou da Coluna Lactaria no Forum Olitorium, 8 CANTU, César. História Universal. p. 482. RASCOVSKY, Arnaldo. O Filicídio. p. 163. 10 DONZELOT, Jacques. A Política das Famílias. p. 59.
9 18 especialmente nos últimos anos de seu Império, quando o número de crianças abandonadas cresceu de forma significativa. Até os nossos dias, o problema do abandono não foi resolvido, aparecendo intensamente em algumas partes do mundo. Tomemos ainda como exemplo, a Inglaterra nos fins do século passado, onde crianças de 04 anos de idade trabalhavam em fábricas e, a partir dos 08 anos em minas de carvão, durante 16 horas diárias. Em 1817, na Inglaterra cerca de 6% de mortes violentas eram classificadas como infanticídios. Os maus tratos dirigidos às crianças com fins pretensamente educativos têm antecedentes remotos. Essas violências sofreram sanções diversas que surgiram na forma de legislação específica destinada a salvaguardar a vida das crianças. Para tanto, basta que rebusquemos a história desde a Antigüidade até a Idade Contemporânea. O Código de Hamurabi, as inúmeras determinações dos imperadores romanos, a introdução dos mais diversos tipos de penalidades para os que maltratam crianças até a legislação atual, espelham a necessidade de diferentes sociedades em termos de estabelecer normas disciplinadoras da violência contra a criança, qualquer que seja o tipo desta violência. A violência sexual não é objeto de estudos severos por parte da História. Primeiro, pela deficiência de testemunhos, e, obviamente, o grosso das transgressões não ficou registrado, pois estaria dentro das circunstâncias em que a sociedade consideraria normal – previsível – a infração aos códigos vigentes. O conceito de estupro escondia experiências muito mais elásticas do que ilícitos penais cometidos contra a prática consentida da sexualidade. Esses ilícitos eram da competência de instâncias seculares e religiosas. No campo eclesiástico, o mais diretamente interessado nesse assunto constituía pecado ou impiedade, incluído nas transgressões da carne. O estupro era uma das modalidades da conjunção carnal ilícita, assim como a sedução, o rapto e a fraude sexual. Todavia, um caráter essencial o distinguia: a violência perpetrada contra a vítima, sempre de menor idade. Violência de um sexo que detinha o poder físico, econômico, moral e jurídico sobre o outro e que freqüentemente era exercitado pelo pai sobre suas filhas. A definição de estupro fala em atentado ao pudor, cometido com violência. As ordenações previam penas severíssimas aos estupradores de freiras, donzelas ou viúvas honestas. O Código Penal português estipulava, até em nosso século, que aquele que estuprasse mulher virgem ou viúva honesta (maior de 12 anos e menor de 17), teria a pena de degredo temporário. Na prática, as penas sempre foram mais suaves do que as leis estipulavam, mesmo estupros incestuosos encontravam conivência de juizes e da sociedade. Incestos envolvendo pais e filhas inserem­se na pauta sexual de longo passado histórico. No folclore ibérico, pais incestuosos são personagens banais dos romances. Representam o indivíduo instintual que submete todos à satisfação de seus desejos, assumindo posições anti­éticas e anti­sociais. A terceira figura do clássico triângulo Edipiano, a mãe, em algumas versões dos romances, lamenta não poder socorrer a filha. Em outras a maldizem, inculpando­a pelos revezes de seu casamento. A dissimulação dos estupros era necessariamente freqüente, o que explica que os processos arquivados sejam pouco numerosos, dificultando o seu estudo. Não obstante, como considera François Giraud 11 nas sociedades coloniais pluri­étnicas o problema do estupro era essencial, pois a obsessão da mestiçagem e da pureza racial fez das práticas sexuais um jogo fundamental nas estratégias de confronto e de distinção social. Os casos de estupro envolvem crianças e adolescentes nos umbrais da puberdade. 11 GIRAUD, François. "Viol et société coloniale: le cas de la Nouvelle­Espagne au XVIIIe siècle". Annales 41. 1986.
19 Boa parte dos crimes ocorria no âmbito doméstico – tal qual hoje ­, ficando claro que a violência contra mulheres era tributária do poder macho, da “força e superioridade” dos criminosos. Analisando a nossa realidade brasileira, a preocupação com a situação de abandono e marginalidade da criança pobre não é recente. No final do século XIX, surgiram os primeiros movimentos no sentido de uma organização por parte da sociedade e do Estado para se lidar com a questão, e, desde então inúmeras tentativas são empreendidas no sentido de dar assistência e recuperação a essas crianças. Constituiu­se uma ampla rede de instituições e programas de atendimento às crianças e aos adolescentes considerados carentes, abandonados e delinqüentes, bem como um extenso conjunto de leis de “proteção” à infância, que foi estruturado a partir da promulgação do Primeiro Código de Menores (1927). O forte domínio exercido pela esfera jurídica sobre a questão da infância durante todo o período de vigência do Código de Menores (1927 – 1990) resultou numa grave distorção de enfoque. Os problemas relacionados à infância, sobretudo aqueles que excediam às condições de resolução no âmbito das famílias pobres, adquiriram uma conotação predominantemente jurídica e desconectada do social. Essa distorção facilitou a dicotomização entre criança e menor que se estabeleceu em nosso país, ou seja, “menor” sendo invariavelmente a criança pobre, aquela que se encontra em situação irregular (Código de Menores, 1979), que é abandonada, que perambula pelas ruas, que comete atos infracionais. Somente nos anos 80 é que se observam fomentar uma nítida reação por parte de segmentos, os mais diversos da sociedade, contra o enorme descaso com que se vinha lidando com a questão. Muitas vozes se levantaram e foi possível a formação de um movimento em defesa da criança e do adolescente. Essa comunhão de esforços solidificou­se em dois importantes momentos da década, ou seja: participação no processo de elaboração da Constituição Federal (1980), em particular o artigo 227, que trata dos direitos da criança e adolescente e do Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), lei que revogou o antigo Código de Menores. A partir de então, muitos estudos vêm sendo empreendidos com relação ao conhecimento sobre as condições de vida da infância no Brasil. Entretanto, é cada vez mais freqüente o deslocamento de crianças já a partir dos 07, 08 anos de idade para as ruas das grandes cidades em busca de ocupações que lhes garantam algum dinheiro. São os chamados “meninos e meninas de rua” – fenômeno que tem sido alvo de preocupação em todo o país nos últimos anos. Mesmo aqueles que não rompem com suas famílias estão expostos a todo o tipo de violência e exploração nas ruas, envolvidos em atividade ilegais, imorais, “rentosas”, como tráfico de drogas, assaltos, prostituição, etc. Associada a essa situação de extrema pobreza e vida indigna para milhões de crianças, observa­se outro fenômeno que tem causado grande constrangimento em todo o país. Trata­se dos números alarmantes de crianças e adolescentes que vêm sendo assassinados em diversos estados brasileiros, onde os graves problemas sociais tornam a vida urbana particularmente difícil, encontram­se milhares de casos por ano. Esses crimes, geralmente, são cometidos por grupos de extermínio que são contratados para matar as crianças, que por serem de segmentos pobres da população, são vistas como um mal para a sociedade. O que se desprende desse perfil é que a maioria das crianças e jovens brasileiros não têm sequer um futuro, pois os mesmos encontram obstáculos intransponíveis para o seu desenvolvimento pleno, sendo excluídos da participação no processo produtivo do país. No presente trabalho, interessa­nos voltar o olhar para o caso específico da menina. Indagando se as conseqüências dessa realidade atingem igualmente à criança e ao adolescente de ambos os sexos. Através de pesquisas e indagações, demonstraremos
20 que não, muito embora as circunstâncias de vida impostas pela pobreza sejam duras para todos. As meninas, por sua condição de gênero, são em muitos aspectos mais sacrificadas. 1.2 – A Violência de Gênero no Âmbito dos Dir eitos Humanos A violência de gênero resultante das relações estruturais de poder­dominação e privilégio estabelecidos entre homens e mulheres na sociedade ­, ocorre em todas as classes sociais e regiões do mundo – tanto desenvolvidas quanto subdesenvolvidas e, permeia todas as dimensões da vida das mulheres, seja no lar, no trabalho ou na rua. Apesar dos esforços sistemáticos para entender a natureza e a ampla extensão da violência ser relativamente recentes, existe um número importante de estudos e pesquisas que analisam a violência contra a mulher e os fatores que a desencadeiam e a perpetuam. Os resultados dessas pesquisas confirmam a necessidade de se estudar a violência contra o sexo feminino, a partir de uma perspectiva analítica das relações de poder e de gênero. Ao mesmo tempo, indicam que a desigualdade que orienta essas relações e que coloca a mulher em situação desfavorável em relação ao homem, deriva de uma combinação de fatores culturais que repercutem em práticas sistemáticas de discriminação traduzidas em leis, normas sociais e políticas, econômicas discriminatórias. Esses fatores estão estritamente relacionados aos baixos níveis educacionais, à falta de profissionalização e à subordinação da mulher dentro do núcleo familiar. Além das privações e das péssimas condições de vida que uma proporção elevada de mulheres enfrenta em cada país, especialmente, nos países em desenvolvimento, elas também suportam a violência de gênero que, nas diversas regiões do mundo assume distintas formas, tais como maus­tratos físicos, tortura psicológica, esterilização forçada, mutilação genital, estupros (inclusive os perpetrados por maridos ou companheiros) e outros tipos de abuso sexual. Essa violência é dirigida às mulheres apenas pelo fato de serem mulheres. Nós a classificaremos de acordo com as formas sob as quais ela se manifesta, quais sejam:
· Na família: agressão física (espancamento, mutilação, homicídio, ausência de assistência médica), abuso sexual (estupro, incesto), agressão emocional (confinamento doméstico, não­aceitação da sexualidade, exigência de castidade, casamento forçado, desvalorização cotidiana, educação discriminatória);
· No local de trabalho: agressão sexual (assédio, intimidação, exploração), salários femininos e condições precárias de trabalho;
· Na comunidade: tráfico, prostituição (meninas da noite), estupro; pena de morte por adultério (legítima defesa da honra), obrigação de reproduzir;
· Na mídia: pornografia, pedofilia (comercialização do corpo feminino como objeto descartável de prazer);
· No Estado: violência política (através da polícia ou do exército, prisão, tortura, exílio, violência nas prisões, estupro), violência contra a saúde (tratamento médico inadequado, esterilização forçada, manipulação ginecológica abusiva, desinformação sobre contraceptivos), injustiça criminal (absolvição dos estupradores, ausência de proteção à mulher vítima).
· Na religião: criação da mulher, condenação do sexo, exigência da virgindade para o casamento. A combinação desses tipos de abuso com as relações hierárquicas de gênero fornecem o marco de referência para localizar os contextos onde ocorre a violência contra a mulher, isto é, na família, na comunidade e no Estado. A violência doméstica é produto de um padrão de relações assimétricas entre homem e mulher, legitimado pela
21 ideologia dominante­patriarcal e favorecido pela forma na qual a mulher se encontra sujeita aos desígnios sócio­econômicos e culturais prevalecentes, construídos a partir da concepção masculina. O lar, em sua grande maioria, nem sempre é um espaço onde as mulheres e as crianças se encontram protegidas, pelo contrário, pode tornar­se um lugar perigoso para elas quando são objetos de qualquer forma de abuso. Até recentemente a violência intra­familiar era aceita como normal ou atada como um assunto de caráter individual ou privado. A dicotomia entre espaço público e espaço privado – com conotação hierárquica específica designada a cada sexo – surge como marco de análise a fim de explicar a subordinação da mulher dentro do lar. De acordo com este enfoque, a autoridade do homem estende­se a todos os âmbitos da vida social, pública e privada, justificando­se pela sua inserção no trabalho produtivo. Por outro lado, à mulher se destina o mundo doméstico, um espaço restrito e controlado, com a conotação de valores que isto significa, colocando­a, assim, em posição de inferioridade no conjunto das relações sociais, levando­a, portanto, a assumir comportamentos subordinados e freqüentemente dependentes. Com o tempo, tem sido redimensionada a compreensão intelectual e política das questões que se colocam, tanto para a ciência quanto para os movimentos sociais. À medida que se começa entender a violência a partir de uma perspectiva mais ampla, os aspectos sociais, econômicos, políticos e culturais que possibilitam a explicação da violência estrutural são incorporados na análise. Uma das realizações mais significativas dentro desta perspectiva é a mudança da visão dicotômica do público e do privado. A violência intra­familiar é muito mais difundida do que a refletida pelas estatísticas oficiais, que não conseguem mostrar a magnitude total do problema devido ao fato de que grande parte desta violência não é denunciada. De qualquer forma, as estatísticas existentes mostram que na família a mulher é vulnerável desde que nasce. No Brasil, de acordo com o Relatório da CPI da Violência (1992), foram registradas nas Delegacias, em média, 337 ocorrências diárias de violência contra as mulheres. Os tipos de violência mais freqüentemente denunciados foram a lesão corporal (26,2%) e a ameaça (16,4%). A categoria dos “outros”, com mais de 59% dos casos, compreende o atentado violento ao pudor, o rapto, o cárcere privado, a discriminação racial e no trabalho. Não obstante, apesar de existir o reconhecimento dos abusos cometidos contra a mulher, como são demonstrados pelos estudos realizados em diversas regiões do mundo, os direitos da mulher não têm sido considerados como Direitos Humanos e, portanto, de responsabilidade do Estado. É latente que, ao Estado cabe a responsabilidade da proteção de todos os cidadãos e cidadãs. Na maioria dos países – a exemplo do Brasil ­, essa proteção é estabelecida por sua Constituição, que promete igualdade para todos os habitantes da nação. Na realidade, são poucos os países que podem mostrar, na prática, a igualdade da mulher, tanto na política nacional quanto na externa, como direito humano básico. Parece até que os Direitos Humanos, intrínsecos à humanidade, são diferentes dos direitos das mulheres, como se elas tivessem outro tipo ou classe de direitos, diferentes dos contemplados dentro do conjunto dos Direitos Humanos. O combate à violência de gênero não é um assunto apenas da competência das mulheres. Existe a necessidade de a sociedade, em sua totalidade, reconhecer os efeitos negativos e retrógrados deste tipo de violência, bem com se faz necessário perceber que, embora as mulheres sejam as vítimas, essa questão não dever ser restrita somente às mulheres. Embora seja fundamental a tomada de consciência social a fim de combater a violência contra a mulher, tornou­se também crucial a criação de mecanismos legais para contra­atacar essa violência. A lei até agora tem falhado não só em impedir a
22 violência, mas também em punir como agente de mudança social e em muitos casos expõe, ainda mais, a mulher à exploração e à violência. 2.0 – DESENVOLVIMENTO 2.1 – Dir eitos Humanos Os Direitos Humanos devem ser concebidos como um conjunto de princípios garantidores da dignidade humana voltados para a não–agressão e a não–degradação da espécie humana. Hoje, mais do nunca, o empenho pela tutela desses direitos implica em uma contínua resistência, perceptíveis na defesa da cultura indígena, da ecologia, dos direitos das crianças e adolescente, das minorias étnicas, da paz, etc. Segundo Baratta, classifica­se em dois os grandes grupos fundamentais de Direitos Humanos: Pertencem ao primeiro grupo o direito à vida, à integridade física, à liberdade pessoal, à liberdade de opinião, de expressão, de religião, e também os direitos políticos. Ao segundo grupo pertencem os denominados direitos econômico­sociais, dentre eles 12 o direito ao trabalho, à educação etc. Recorda Baratta que: O conteúdo normativo dos direitos humanos entendido numa concepção histórico ­ social, sobrepõe­se às suas transcrições nos termos do direito nacional e das convenções internacionais, assim como a idéia de justiça sempre ultrapassa às suas realizações dentro do direito e indica o caminha à realização da idéia do homem, ou seja, do princípio da dignidade humana. A história dos povos e da sociedade apresenta­se como a história dos contínuos obstáculos encontrados neste caminho, a história da contínua violação dos direitos humanos, isto é, da permanente tentativa de se reprimir as necessidades reais das pessoas, dos grupos humanos e dos povos. 13 Os direitos do homem são aqueles cujo reconhecimento é condição necessária para o aperfeiçoamento da pessoa humana, ou para o desenvolvimento da civilização. Todas as Declarações dos Direitos do Homem compreendem, além dos direitos individuais tradicionais, que constituem em liberdade, também os direitos sociais, que consiste em poder. Quanto mais aumentam os poderes dos indivíduos tanto mais diminuem a liberdade dos mesmos indivíduos. O problema fundamental em relação aos direitos do homem, hoje, não é o de justificá­los, mas o de protegê­los. Trata­se de um problema não filosófico, mas político. A Declaração Universal dos Direitos do Homem representa a manifestação da única prova através da qual um sistema de valores pode ser considerado humanamente fundado e, portanto, reconhecido. E essa prova é o consenso 12 BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a Violência Estrutural e a Violência Penal. Trad. da revisão alemã (1993) do original espanhol por Ana Lúcia Sabadell. Universidade de Saarland, Alemanha. Complementa o autor que “outras distinções levam em consideração às necessidades específicas dos sujeitos. Nesse caso, distinguem­se os direitos das pessoas, dos grupos, como por exemplo, no caso das minorias étnicas e os direitos dos povos, entre eles o direito à autodeterminação e o direito ao desenvolvimento”. pp .6­7 13 Idem. p. 04.
23 geral acerca de sua validade. É indispensável que os Direitos do Homem sejam protegidos por normas jurídicas. A Declaração dos Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral em 20 de novembro de 1959, refere­se em seu preâmbulo à Declaração Universal, e, em seguida apresenta os problemas dos direitos da criança como uma especificação da solução dada ao problema dos direitos do homem. Sê se diz que a criança e o/a adolescente – em virtude de sua imaturidade física e intelectual ­, necessitam de uma proteção particular e de cuidados especiais, deixa­se assim claro que os direitos da criança e do/a adolescente são considerados como um “ius singulare” com relação a um “ius com mune”. Vale dizer, na medida em que se impede ao homem de se desenvolver plenamente, neste momento, dá­se o início a um processo de violência, que se manifesta das mais variadas formas, servindo­se de diferentes meios. 2.1.2 – Dos Direitos da Criança e do Adolescente O processo de construção de um novo direito – o Direito da Criança e do Adolescente – que não tem a pretensão de ser autônomo, haja vista que cada vez mais tomamos consciência da interdisciplinaridade, se apresenta hoje como uma das mais importantes discussões. Esse direito, sobre o qual nos debruçamos, evidencia não somente a importância, mas a imprescindibilidade da conjugação de conhecimentos. O novo direito da criança e do adolescente é construído com vistas ao Direito Internacional Público e Privado, ante os Tratados e as Convenções Internacionais, ao Direito Constitucional, que no caso brasileiro, deferem absoluta prioridade à criança e ao adolescente, ao Direito Civil, Penal, Trabalhista, Processuais e ainda, leis extravagantes. Exemplifica essa defesa de direitos, Ação Civil Pública, imprescindível em se tratando da tutela dos interesses difusos. Devemos considerar, ainda, o seu entrelaçamento com outras áreas do conhecimento, que não o jurídico, como a sociologia, psicologia e criminologia, conforme dito alhures. Entendemos como necessário elaborarmos um resgate histórico das nossas leis e ações em favor da criança brasileira, para daí compreendermos no que consiste, efetivamente, a mudança de paradigma ocorrida. Ou seja, do Direito Tutelar, caracterizador da doutrina da situação irregular , para um Direito Protetor, responsável pela Doutrina da Proteção Integral. Reconstituir a história da criança e do adolescente através das legislações e iniciativas assistenciais surgidas em seu favor no Brasil, a partir de 1823 – logo após a independência política de Portugal (7 de setembro de 1822), implicou em resgatar aspectos específicos que traçaram e estruturaram esse movimento. O tímido surgimento das primeiras leis e instituições foi sendo firmado gradativamente. Quando da primeira colocação sobre o problema da criança (criança negra), em virtude do nosso sistema escravocrata, na Constituinte de 1823, não houve uma preocupação com a criança negra em si. Quando José Bonifácio defendia que a escrava depois do parto teria um mês de convalescência, e durante o ano que se seguisse não trabalharia longe “da cria” 14 ; antes, o que se pretendia era zelar por aquele que constituiria em breve a força de trabalho gratuito, ou seja, o escravo. Com a decretação (1871) da Lei do Ventre Livre, fruto da campanha abolicionista, os senhores de escravos delineavam dois caminhos: ou recebiam do Estado uma indenização (deixando no abandono as crianças libertas cujos pais permaneciam no cativeiro), ou as sustentavam 14 Revista Retrato do Brasil. “Organização Social/população: a situação do menor e os órgãos de proteção – nossos pixotes”. p.303
24 e, em seguida, cobrariam tal “generosidade” através de trabalhos forçados até que completassem 21 anos. Observando o processo de formação das instituições que prestavam serviços de assistência às crianças e aos adolescentes, verificamos que, no período colonial e no Império, a mesma se dava em três níveis: uma caritativa, prestada pela igreja através das ordens religiosas e associações civis; outra filantrópica, oriunda da aristocracia rural e mercantilista e, a terceira (em menor número), fruto de algumas realizações da Coroa Portuguesa. Com as mutações sociais, políticas e econômicas que se sucederam à Abolição dos Escravos (1888) e à Proclamação da República (1889), a proteção e assistência à criança tornaram­se cada vez mais uma necessidade, sentida, sobretudo, pelo próprio corpo social. A partir de 1920, fortaleceu­se a opinião de que ao Estado caberia assistir à criança. Tanto que surge desse período o trabalho de formulação de uma legislação específica para crianças e adolescentes, o que se consolidou no Decreto n. 17.943 – A, de 12 de outubro de 1927, cuja elaboração foi confiada pelo Presidente Washington Luiz ao jurista Mello Mattos. O Código de Menores de 1927 conseguiu corporificar leis e decretos que, desde 1902, propunha­se a aprovar um mecanismo legal que desse especial relevo à questão do menor de idade. Alterou e substituiu concepções obsoletas como as de discernimento, culpabilidade, responsabilidade, discriminando, ainda, que a assistência à infância deveria passar da esfera punitiva para a esfera educacional. A concepção dessa lei pôs em relevo questões controversa em relação à legislação civil em vigor. Com o Código de Menores, o “pátrio poder” foi transformado em pátrio dever, pois ao Estado era permitido intervir na relação pai/filho, ou mesmo substituir a autoridade paterna, caso este não tivesse condições ou se recusasse a dar ao filho uma educação regular, recorrendo então o Estado à utilização do internato. Já no Código Civil (1916), o pai, enquanto chefe da prole continuava detendo o “pátrio poder”, sobre todos os que compunham a estrutura familiar: mulher, filhos, agregados, pessoas e bens sob o seu domínio. Na esfera constitucional, as Cartas de 1824 e 1891 são omissas com relação à criança. A primeira a se referir sobre o assunto foi a Constituição de 1934, ao proibir o trabalho para os de idade inferior a 14 anos. A partir de 1937, é ampliada a esfera de proteção à infância, ficando ao encargo do Estado assisti­la nos casos de carência. A Constituição de 1946 continuou de igual modo, protegendo­a desde a maternidade. Por sua vez, a Constituição Federal de 1967, seguida pela Emenda Constitucional n.1, de 1969, ao instituir a assistência ao universo infanto­ juvenil, não seguiu, no todo, as Constituições precedentes, determinando duas modificações, quais sejam: a primeira, referente à idade mínima para a iniciação ao trabalho, que passa a ser de 12 anos, e, a segunda, instituindo o e sino obrigatório e gratuito nos estabelecimentos oficiais para as crianças de 07 a 14 anos de idade. A postura assumida pelo Estado brasileiro de permitir o trabalho de crianças com 12 anos, a partir de 1967, significou um retrocesso com relação às legislações da maioria dos países. A Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 05 de outubro de 1988 significou um grande avanço nos Direitos Sociais e isto por sua vez beneficiou, entre outros, a criança e o/a adolescente, ou, deveria ter beneficiado, vez que ao declarar absoluta prioridade em todas as circunstâncias à população infanto­juvenil. Nessa perspectiva, tem­se exemplificativamente, que a idade mínima para admissão ao trabalho é, novamente, fixada aos 14 anos (artigo 7º, XXXIII), sob a forma de aprendiz. Muito embora, na Convenção de n. 182 e Recomendação de n. 190, a OIT tenha deliberado ao empregador admitir apenas os maiores de 16 anos. Nesse sentido, o Brasil deliberou pelo trabalho sob a forma de aprendiz a partir dos 14 anos, fato gerador de polêmica em nossa sociedade. Por um lado, opinam alguns que é melhor trabalhar que
25 ficar nas ruas. Outros, mais engajados na legislação de proteção integral à criança e ao adolescente (a exemplo desta autora), opina no sentido de que lugar de crianças e adolescente é, justamente, no orçamento público gozando de prioridade, a fim de que possam gozar de todos os seus direitos e garantias fundamentais. Quanto à educação, a referida Carta Política, em seu artigo 208, determina como dever do Estado garantir ensino fundamental (primeiro grau), obrigatório e gratuito, até mesmo para os que a ele não tiverem acesso na idade própria. Consoante a presente análise histórica, verificou­se que a expressão “menor” foi usada como categoria jurídica desde as Ordenações do Reino, como caracterizadora da criança ou do adolescente envolvidos com a prática de infrações Penais. Já no Código de Menores de 1927, o termo foi utilizado para designar aqueles que se encontrava em situações de carência material ou moral, além de infratoras (conforme dito alhures). Com o surgimento do Código de Menores de 1979, surge uma nova categoria: “menor em situação irregular”, isto é, o menor de 18 anos, abandonado materialmente, vítima de maus­tratos, em perigo moral, desassistido juridicamente, com desvio de conduta ou autor de infração penal. O Código de Menores, apesar de ter constituído um avanço em algumas direções, continha, no entanto, aspectos controversos que permitiam questionamentos e críticas, como é o caso das características inquisitoriais do processo envolvendo crianças e adolescentes, quando a própria Constituição garantia ao maior de 18 anos ampla defesa. O referido Código não previa o princípio do contraditório. Outro fato que pode ser colocado como exemplo dessa distorção era a existência, para os menores de 18 anos da prisão cautelar, vez que ao “menor” a que se atribuía a autoria de infração penal, podia ser apreendido para fins de verificação, o que significava uma verdadeira afronta aos direitos da criança e do adolescente, na medida em que para o adulto a Prisão Preventiva só poderia ser aplicada em dois casos: flagrante delito ou ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente (artigo 5º, LXI, Constituição Federal 1988). O Estatuto da Criança e do Adolescente veio pôr fim a estas e tantas outras situações que implicavam numa ameaça aos direitos da criança e do adolescente. Suscita no seu conjunto de medidas uma nova postura a ser tomada tanto pela família, pela sociedade, como também pelo Estado, objetivando resguardar os direitos da criança e do/a adolescente zelando para que não sejam, sequer, ameaçados. No entanto, embora existam pessoas comprometidas com a causa e que não se cansam de interceder nesse sentido, observamos que o Estatuto até hoje não ser tornou eficaz em face da falta de implementação por parte do governo. Do universo de documentos internacionais que objetivam resguardar as garantias dos Direitos Infanto­Juvenis destaca­se a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança aprovada pela Assembléia das Nações Unidas em 20 de novembro de 1989. Se elaborarmos uma análise pormenorizada desse Tratado de Direitos Humanos, constatamos a sua efetiva influência sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente. Nesse sentido, chama atenção o fato de que a Convenção Internacional não se configura numa simples carta de intenções, vez que tem natureza coercitiva e exige dos Estados­Partes que a subscreveu e ratificou um determinado agir, consistindo, portanto, num documento que expressa de forma clara, sem subterfúgios, a responsabilidade de todos com o futuro. A referida Convenção trouxe a proteção integral para o universo jurídico da Doutrina. Situa a criança dentro de um quadro de garantia integral, evidencia que cada país deverá dirigir suas políticas e diretrizes tendo por objetivo priorizar os interesses das novas gerações. A infância passa a ser concebida não mais como um objeto de medidas tuteladoras o que implica reconhecer a criança e o/a adolescente sob a perspectiva de sujeitos de direitos.
26 O Estatuto da Criança e do Adolescente, ao assegurar em seu art. 1º a proteção integral à criança e ao adolescente, reconheceu como fundamentação doutrinária o princípio da Convenção que em seu artigo 19 determina: Os Estados Partes adotarão todas as medidas legislativas, administrativas, sociais e educacionais apropriadas para proteger a criança contra todas as formas de violência física ou mental, abuso sexual, enquanto a criança estiver sob a custódia dos pais, do representante legal ou de qualquer outra pessoa responsável por ela. 15 A Constituição Federal de 1988 dispõe em seu art. 227, caput: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá­los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A atual Carta Política tem essa nova base doutrinária, na qual implica que, fundamentalmente, as crianças e adolescentes brasileiros passam a ser sujeitos de direitos. Essa categoria encontra sua expressão mais significativa na própria concepção de Direitos Humanos de Lefort: “o direito a ter direitos” 16 , ou seja, da dinâmica dos novos direitos que surge a partir do exercício dos direitos já conquistados. A Lei anterior ao Estatuto da Criança e do Adolescente (Código de Menores de 1979) fundamentava­se na doutrina da situação irregular, isto é, havia um conjunto de regras jurídicas que se dirigiam a um tipo de criança ou adolescente específico, aqueles que estavam inseridos num quadro de patologia social, elencados no seu artigo 2º. O que equivale afirmar, no entender de Amaral e Silva, que tal doutrina: Confunde na mesma situação irregular, abandonados, maltratados, vítimas e infratores. Causa perplexidade que se considerasse em situação irregular o menino abandonado ou maltratado pelo pai, ou 17 aquele de saúde ou da educação por incúria do Estado. Salienta o citado autor que, estará sim em situação irregular: (...) aquele que descumprir os deveres inerentes ao pátrio poder ou quem negligenciar políticas sociais básicas. Está em situação irregular, de ilegalidade, o pai que abandona ou o Estado que 18 negligencia nunca o abandonado, a vítima. (sic) 15 Aliás, tal regra repetiu o que já havia sido colocado na Declaração Universal dos Direitos da Criança (1959), que no seu princípio de n. 9 dispõe: “A criança gozará proteção contra quaisquer formas de negligência, crueldade e exploração. Não será jamais objeto de tráfico, sob qualquer forma”. 16 LEFORT, Claude. Pensando o Político: ensaios sobre sobre democracia, revolução e à liberdade, p. 58. 17 AMARAL E SILVA, Antônio Fernando. Comentários do debatedor. In Simonetti, C. et ali (orgs.) – “Do avesso ao Direito, p. 37. 18 Idem.
27 O Código de Menores de 1979, ao se dirigir a uma categoria de crianças e adolescentes (os que se encontravam em situação irregular ), colocava­se como uma legislação tutelar. Na realidade, tal tutela pode ser entendida como culturalmente inferiorizadora, pois implica no resguardo da superioridade de alguns, ou mesmo de grupos, sobre outros, como a história registrou ter ocorrido, e ainda, ocorrer com as mulheres, índios e outros. 19 Dessa forma, a Lei 8069/90 significou a convicção de que a criança e o adolescente são merecedores de direitos próprios e especiais que, em razão de sua condição específica de pessoas em desenvolvimento necessitam de uma proteção especializada, diferenciada e integral. O advento de uma legislação que se ocupasse seriamente dos direitos da infância e da adolescência era de caráter imprescindível, pois havia uma necessidade fundamental de que estes passassem da condição de “menores” para a de cidadãos. O Estatuto da Criança e do Adolescente tem a relevante função ­ ao regulamentar o texto constitucional­, de fazer com que este último não se constitua em letra morta. No entanto, a simples existência de leis que proclamem os direitos sociais por si só não consegue mudar as estruturas. Antes há que se conjugar aos direitos, uma política social eficaz que de fato, assegure materialmente os direitos já positivados, conforme nos referimos anteriormente. E isto significa que se dê um impulso aos dois grandes princípios da Lei n. 8069/90, o da descentralização e o da participação. A implementação deste primeiro princípio deve resultar numa melhor divisão de tarefas, de empenhos, entre a União, os Estados e os Municípios no cumprimento dos direitos sociais. No que tange à participação, esta, importa na atuação sempre progressiva e constante da sociedade em todos os campos da ação. 2.1.3 – Da Tutela Jurisdicional A Lei n. 8069/90 diz respeito à possibilidade dos direitos das crianças e dos adolescentes serem demandados em juízo. Portanto, ao tratar da tutela jurisdicional dos interesses individuais, difusos e coletivos, chama a atenção o fato de que o Estatuto da Criança e do Adolescente está em consonância com as novas diretrizes da processualística civil, por três motivos: 1º ­ Ao contemplar os meios judiciais garantidores dos interesses da criança e do adolescente (sobretudo no que diz respeito aos direitos coletivos e difusos), percebe­se que a natureza privatista do direito processual está sendo objeto de profundas modificações, as quais remetem à necessidade de superação de determinadas estruturas tradicionais. Por conseguinte, a Lei em comento, ao admitir o ingresso em juízo dos mais variados tipos de demandas que visem à proteção de seus interesses, importa um significativo avanço no campo processual, vez que não está presa à idéia de procedimentos, de rito, considerando merecedor de atenção o conteúdo do direito que está sendo pleiteado; 2º – Ao se preocupar com o tema do acesso à justiça, esta nova lei atenta ao fato de que hoje, a garantia desse acesso se constitui num dos mais elementares direitos, pois 19 Neste quesito, muito oportuna a crítica de Zaffaroni ao afirmar que: “Ao longo de toda a história da humanidade, a ideologia tutelar em qualquer âmbito resultou em um sistema processual punitivo inquisitório. O tutelado sempre o tem sido em razão de alguma inferioridade (teológica, racial, cultural, biológica, etc.), colonizados, mulheres, doentes mentais, minorias sexuais etc., foram psiquiatrisados ou considerados inferiores e, portanto, necessitados de tutela”. Zaffaroni, Raul. Do Advogado – artigo 206: In Cury, Munir et ali (coords.). Estatuto da Criança e do Adolescente: comentários jurídicos e sociais. p. 640.
28 a sociedade pouco a pouco passou a compreender que não mais é suficiente que o ordenamento jurídico contemple direitos, antes é imprescindível que estes sejam efetivados, sendo que a propositura em juízo é, portanto, um dos mecanismos que visam a sua aplicabilidade; 3º – O acesso à Justiça na interposição de interesses afetos à criança e ao adolescente se constitui, ainda, em mais um fator a corroborar no processo de transformação do próprio Poder Judiciário, o qual passa a ser um instrumento de expansão da cidadania. Isto se dá porque da antiga posição de árbitro de litígios de natureza inter­subjuntiva, agora é chamado a posicionar­se diante de situações de caráter trans­individual, como o são os direitos sociais. Uma das inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente consiste, justamente, na possibilidade de cobrar do Estado ­ através, por exemplo, da interposição de uma Ação Civil Pública ­, o cumprimento de determinados direitos como o acesso à escola, ao sistema de saúde, a um programa especial para portadores de doenças físicas e mentais, etc., previstos na Constituição Federal e regulamentados pelo Estatuto. Como afirma Nogueira, inevitável é o fato de que no Brasil há toda uma produção legislativa: (...) em favor do cidadão, concedendo­lhes os direitos individuais, difusos ou coletivos, através da Constituição Federal, das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas Municipais, além de outras leis ordinárias, como o Estatuto da Criança e do Adolescente, mas o que falta, nesse complexo de leis, é fazer justamente o Estado funcionar, através de seus governantes, que conhecem os problemas e têm as soluções, mas que só se 20 preocupam em desfrutar o poder . A lei anterior, ou seja, o Código de Menores de 1979 prelecionava: A despeito de ser tratado por alguns, como instrumento de proteção e tutela, olvidou que o Estado é o grande responsável por essa degradante situação na qual se encontra a maioria da população infanto­juvenil, isentando­o, de qualquer responsabilidade. Considerando os pais ou responsável como exclusivo causador da situação irregular, nenhuma menção existe em relação à omissa participação do Estado e, via de conseqüência, tão pouco contempla o Código de Menores mecanismos jurídicos visando compelir o Poder Público a cumprir suas funções. Assim, restringiu­se a Justiça de Menores do julgamento de conflitos eminentemente individuais, jamais colocando a Administração no banco dos réus. O Estado nunca foi chamado perante o judiciário, sequer para justificar suas constantes 21 omissões. Nesse quesito, a exceção foi o julgamento havido através do Tribunal Permanente dos Povos 22 que condenou (por unanimidade), o Estado de Mato Grosso, no Fórum realizado na sede da OAB/MT, da qual a autora teve a honra de participar. E, depois de colhida toda a pesquisa realizada em nível de Brasil, de igual forma procedeu­se a 20 NOGUEIRA, Paulo Lúcio. Estatuto da Criança e do Adolescente Comentado. p. 283. PAULA, Paulo Afonso Garrido de. Menores, direitos e justiça: apontamentos para um novo direito das crianças e dos adolescentes. p.122. 22 Tribunal Permanente dos Povos. Brasil. A violação dos direitos fundamentais das crianças e dos adolescentes no Brasil: O distanciamento entre a lei e a realidade vivida. Mar­Ago. 1998.
21 29 condenação do Brasil quanto à violação dos direitos fundamentais da criança e do adolescente no País. Entendemos que o postular junto ao Poder Judiciário visando a garantia dos direitos e interesses afetos à criança e ao adolescente, o tema conduz também a uma reflexão de que tal acesso constitui um avanço na construção da cidadania em três planos: 1º – no sentido de que torna mais explícitos os direitos das crianças e dos adolescentes, possibilitando à sociedade uma maior conscientização no que tange ao seu papel de contínua reivindicação dos citados direitos e interesses; 2º – o próprio Poder Judiciário passa a ser encarado como um instrumento de expansão dessa cidadania, pois suas sentenças – deferidas em favor da garantia dos direitos pleiteados ensejarão, para sua eficácia, determinadas realizações por parte do Poder Executivo, notadamente no campo social; 3º – as inovações trazidas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente devem gradativamente revolucionar o modo da família, da sociedade e do Estado de encararem as questões relativas à infância e à juventude brasileira. Resta colocar que, ao longo da pesquisa, foi possível constatar que a questão da criança e do adolescente não deixou de ser contemplada em leis. No entanto, nem sempre as são foram obedecidas, o que reforça a idéia de que meros dispositivos legais não resolvem os problemas sociais. Urgem, portanto, medidas públicas adequadas à demanda. Faz­se necessária não somente a implantação de políticas sociais básicas, mas, a sua efetivação 23 , garantindo dessa forma, acesso a todos, aos direitos fundamentais. 2.2 – Violência Infanto­J uvenil Ao revisitar a história, necessário se faz perceber, que a violência sempre esteve presente no cotidiano de crianças e adolescentes. A forma de abordagem tem relevância quando associada às especificidades dominantes em cada época e em cada sociedade. Os conceitos acerca da violência contra a criança se refinam de tal modo a ponto de se distinguirem entre violência contra a criança no ambiente doméstico, na sociedade e nas instituições. A violência nesses vários âmbitos de vias expressa sob a forma de: síndrome da criança espancada, abuso emocional, físico e sexual, exploração econômica, negligência, abandono, etc. A violência contra a criança e o adolescente, embora repudiada socialmente, pode ser considerada ainda hoje um fato cotidiano. Tornou­se um tema de preocupação e reflexão por parte da sociedade civil, leiga e acadêmica, devido às formas disseminadas e intensificadas com que se tem caracterizado, especialmente, nas últimas décadas, nas áreas urbanas. E, a pesquisa aponta que uma das causas que levam à violência (generalizada), é a extrema pobreza em que vive a maior parte da sociedade, excluídas das políticas públicas de geração de Emprego e Renda. Essas formas de violência são conceituadas como “violência estrutural ou fundamental” e, claro, são originadas pelo sistema social vigente. Os maus­tratos são formas de violência interpessoal que costumam se apresentar contra crianças de todos os níveis sociais, sendo, no entanto, mais comumente registrados naqueles grupos que sofrem as conseqüências negativas da desigualdade social. A categoria “maus­tratos” engloba os conceitos de abuso físico, sexual, emocional e negligência/abandono. As crianças e adolescentes maltratados são aqueles que sofrem ocasional ou habitualmente 23 Estatuto da Criança e do Adolescente. Artigo 7.
30 atos de violência física, sexual, ou emocional, tanto no grupo familiar como na comunidade ou nas instituições sociais. Os maus­tratos podem ser executados por omissão, supressão e transgressão dos direitos individuais e coletivos. Situações de abandono também podem ser incluídas nesta categoria de maus­tratos (UNICEF, 1989), desde que seja fruto de ação/omissão parcial ou total do agressor. Pesquisas em vários países do mundo têm demonstrado a gravidade do problema destes abusos em crianças e adolescentes. Segundo o National Incidents Study, realizado nos EUA durante o ano de 1986, 311.500 crianças, ou 4,9 em cada grupo de 1.000, foram abusadas fisicamente; 188.100 crianças, ou 3 por 1.000, foram abusadas emocionalmente; 133.600 crianças ou 2,1 por 1.000 foram abusadas sexualmente; 507.700 crianças, ou 8,1 por 1.000, foram vítimas de negligência física e 285.900 crianças, ou 4,5 por 1.000, foram vítimas de negligência educacional (US Departament of Health and Human Services,1992). Outro estudo indica que 20% de todas as mulheres e 7% de todos os homens nos EUA, já tiveram experiência, pelo menos uma vez, num episódio de abuso sexual durante a infância (National Center on Child Abuse Prevention Research, 1992). Este mesmo relatório menciona outro estudo realizado com 7.000 adolescentes entre 15 e 16 anos, na Finlândia. Os resultados indicam que 7% das moças e 3% dos rapazes foram identificados como vítimas de abuso sexual. Para que possamos efetuar investigações científicas, é essencial ter muito claro os conceitos fundamentais à pesquisa. No tema da violência, algumas definições operacionais têm sido elaboradas e utilizadas com grande freqüência. São elas: a) Entende­se por abuso físico qualquer ação, única ou repetida, não acidental (ou intencional), perpetrada por um agente agressor adulto, que provoque dano físico à criança ou ao/à adolescente. O dano provocado pelo ato abusivo pode variar de lesão leve às conseqüências extremas, como a morte; b) Compreende­se por abuso sexual todo ato ou jogo sexual, relação hetero ou homossexual, cujo agressor esteja em estágio de desenvolvimento psico­sexual mais adiantado que a criança ou adolescente. Tem por finalidade estimulá­la sexualmente ou utilizá­la para obter estimulação sexual. Estas práticas eróticas e sexuais são impostas às crianças e aos adolescentes pela violência física, ameaças ou indução de sua vontade. Pode variar desde atos em que não exista contato sexual (voyeurismo, exibicionismo), aos diferentes tipos de atos com contato sexual sem penetração (sexo oral, com objetos, intercurso genital ou anal). Engloba ainda a situação de exploração sexual, visando lucros, como a prostituição e a pornografia; c) Define­se como abuso psicológico a interferência negativa do adulto (ou pessoas mais velhas) sobre a competência social da criança, conformando um padrão de comportamento destrutivo. São seis as formas estudadas: 1ª. Rejeição : quando o adulto não reconhece o valor da criança nem a legitimidade de suas necessidades; 2ª. Isolamento : o adulto afasta a criança de experiências sociais normais, impede­ a de ter amigos e a faz crer que está só no mundo; 3ª. Ater ror izamento: agressões verbais à criança, onde o agressor instaura clima de medo, atemoriza e a faz crer que o mundo é hostil a ela; 4ª. Abandono: o adulto não estimula o crescimento emocional e intelectual da criança; 5ª. Cobrança: expectativas irreais ou extremadas exigências sobre o rendimento (escolar, intelectual, esportivo), que têm sido mais relacionados com crianças oriundas de classe média ou alta;
31 6ª. Corr upção: ato pelo qual o adulto corrompe a criança à prostituição, ao crime ao uso de drogas. Por ser difícil de identificar, dada sua subjetividade, costuma­se habitualmente categorizar como abuso psicológico apenas as formas graves (extremas) ou continuadas. Este é o tipo de violência da qual menos se tem conhecimento e que é raramente registrado nas instituições que atendem às crianças e adolescentes. Caracteriza­se abandono como a ausência do responsável pela criança e pelo adolescente. Considera­se abandono parcial a privação de afeto, o atendimento parcial às necessidades das crianças, as situações de risco. Entende­se por abandono total o afastamento do grupo familiar, crianças sem habitação, desamparadas e sujeitas a perigos. Finalmente, define­se por negligência a postura de não oferecer à criança aquilo de que ela necessita, quando isso é essencial ao seu desenvolvimento sadio. Pode significar omissão, em termos de cuidados básicos, como: privação de medicamentos, alimentos, ausência de proteção contra inclemências do meio (frio, calor). É necessário ressaltar que estes dois últimos tipos de abuso são de difícil identificação, já que é complicado distinguir entre condições sócio­econômicas e atuação voluntária dos responsáveis. Contudo, é preciso que se considere a ação ou omissão do agente agressor, independente das condições sócio­econômicas existentes. Ainda deve­se considerar que esta ação ou omissão pode ser voluntária ou não. Pode­se sintetizar o abuso ou maus­tratos pela existência de um sujeito agressor em condições superiores (idade, força, posição social, condição econômica, inteligência, autoridade) que perpetra um dano físico, psicológico ou sexual, contrariamente à vontade da vítima ou por consentimento obtido a partir da indução ou sedução enganosa. Cabe ressaltar que a violência contra a criança e o adolescente assume características peculiares devido às mudanças físicas, intelectuais, sexuais e sociais que ocorrem nesta etapa de seu desenvolvimento. As habilidades cognitivas dos adolescentes são mais desenvolvidas do que as das crianças. As razões dos adolescentes são muito parecidas com as dos adultos, e isto traz um novo elemento para a complexidade das tarefas dos pais ou responsáveis. Os adolescentes têm uma força física maior que a das crianças, podem com maior habilidade estimular e desencadear conflitos familiares. Podem ainda desconsertar seus pais ou responsáveis e compará­los com outros adultos. Suas relações individuais se ampliam e se tornam mais independentes, inicia nesta fase um relacionamento afetivo e sexual. A violência contra a criança sensibiliza mais a opinião pública do que a violência contra adolescentes. No entanto, os adolescentes são também vítimas indefesas, vez que, também, são dependentes emocional e financeiramente de seus pais. Para compreender o problema da violência que acomete crianças e adolescentes, forçosamente teremos que buscar conhecer a rede de violências que está por detrás de cada caso. Estamos afirmando, com isto, que as formas de violência estão intrinsecamente interligadas. Uma criança, educada através da “pedagogia do tapa”, dificilmente deixará de sofrer conjuntamente o abuso emocional. E o que dizer de crianças que vivem nas ruas, saídas muitas vezes de seus lares por serem vítimas de abusos e, certamente, pelo quadro de miséria, ao qual estão sujeitas. O Brasil é o mais rico entre os países com maior número de pessoas miseráveis. Isso torna inexplicável a pobreza extrema de milhões de brasileiros, mas mostra que o problema pode ser atacado com sucesso. Miséria é palavra de significado impreciso, como de resto a maior parte dos termos que se referem à camada menos favorecida da sociedade. Geralmente, cada um percebe a miséria por sua experiência pessoal. Para efeito estatístico, no entanto, os estudiosos chegaram a uma definição quase matemática sobre o que são miséria e pobreza. Estabeleceram duas grandes linhas. Uma delas é a
32 linha de pobreza, abaixo da qual estão as pessoas cuja renda não é suficiente para cobrir os custos mínimos de manutenção da vida humana: alimentação, moradia, transporte e vestuário. Outra é a linha da miséria (ou de indigência), que determina quem não consegue ganhar o bastante para garantir aquela que é a mais básica das necessidades: a alimentação. No Brasil, há 53 milhões de pessoas abaixo da linha da pobreza. Destas, 30 milhões vivem entre a linha de pobreza e acima da linha da miséria. Cerca de 23 milhões estariam na situação que se define como indigência ou miséria. Para melhorar este quadro é necessário dar prioridade à infância e à juventude, vez que representam quase a metade do universo de miseráveis brasileiros. Daí priorizar os programas sociais para os jovens, pois a parcela de até 15 anos de idade representam 45% do total. A violência estrutural tem sido consensualmente, considerada como desencadeante de outras violências mais específicas, como a delinqüência, o crime, a institucionalização de crianças e adolescentes, a existência de meninos meninas as vivendo nas ruas. Paradoxalmente, convivemos diariamente ameaçados por crianças e adolescentes que passam da condição de vítimas à condição também de vitimizadores. A expressão “cuidado com as crianças” que outrora designava o zelo pelas crianças, hoje também representa o temor diante da iminência de um ato violento por elas provocado. Algumas alternativas têm sido propostas para a resolução de tais problemas, como por exemplo, a diminuição da idade para a responsabilidade criminal dos 18 para os 16 anos, o policiamento ostensivo e reforma das instituições que recebem crianças e adolescentes infratores. Como percebemos, as “soluções” citadas se referem muito mais ao momento de crise, não privilegiando, e mesmo ignorando, os fatores macro­sociais que estão na base do problema. Diante da difícil tarefa de enfrentar estruturalmente essa questão, o que se tem observado é uma freqüente postura de inércia. Esta noção de imutabilidade do problema perpassa todas as esferas da vida em sociedade, desde as instâncias governamentais ao cidadão comum. No tocante à infância e à juventude, quando se fala da violência, logo a associamos ao fenômeno dos maus­tratos e da violência sexual. De fato, estas duas formas são, de certo modo, as mais visíveis. Os meios de comunicação social têm demonstrado as aberrações que ocorrem neste campo em nosso País. As estatísticas dizem por si mesmas, e a situação é ainda mais estarrecedora quando temos consciência de que muitos e muitos casos não chegam sequer a ser noticiados, compondo a cifra negra da violência. A violência que acontece no interior da família, na maioria das vezes assinalada por um “pacto de silêncio”, se apresenta como uma das maiores responsáveis pela vitimização da infância (em termos micro­criminais). Pesquisas realizadas confirmam que 70% dos casos de agressão contra as crianças e adolescentes ocorrem na entidade familiar. As estatísticas sobre maus­tratos na infância, tem chamado a atenção de pediatras, traumatologistas e psiquiatras pelo fato de que as ocorrências têm se multiplicado. Estima­se que 1% a 2% da população infantil do planeta é submetida a alguma forma de agressão, sem diferença de classe social, de cultura ou mesmo de época, sendo em algumas até estimulada. Nesse aspecto, chamam atenção os dados apontados por Rolim: Na Austrália, uma pesquisa realizada em 1987 com crianças de escola primária revelou que 81% dos meninos e 74% das meninas haviam apanhado de suas mães e que 76% dos meninos e 63 % das meninas haviam apanhado dos pais; em Barbados, uma sondagem feita com pais em 1987 demonstrou que 70% dos pesquisados aprovavam a prática das punições físicas, sendo que deste total, 76% apoiavam o uso das cintas e tiras de couro; na Índia, pesquisa com estudantes universitários em 1991 revelou que 91% dos rapazes e 86% das estudantes haviam sido castigados fisicamente de modo regular em sua infância; na Romênia, uma pesquisa de
33 1992 mostrou que 84% dos pais consideravam as surras como um método normal de educação infantil, sendo que 96% do total não as consideravam uma prática degradante; no Reino Unido, um estudo de 1985 demonstrou que 63% das mães admitiram ter batido em seus bebês antes da idade de um ano; nos Estados Unidos, uma pesquisa de 1985 com mais de 3 mil famílias com filhos de 17 anos demonstrou que 89% dos pais haviam golpeados seus filhos de até três anos e, aproximadamente, 1/3 dos adolescentes entre 15 e 17 anos havia apanhado. O Reino Unido foi o último país europeu a erradicar o castigo corporal em seu sistema educacional estatal, o que só ocorreu em 1987. Em alguns outros países, isto ocorreu no século XVIII. Ainda hoje, é bastante comum bater em alunos em quase metade dos Estados norte­ americanos (no Estado de Mississipi, por exemplo, 10% dos alunos recebiam castigos físicos ainda em 1990). Na África do Sul, em meados dos anos 80, 12% da população escolar e 30% dos alunos negros recebiam punições físicas uma vez por dia, em média. Em contraste, a Namíbia declarou tais práticas inconstitucionais e Botswana as proíbe formalmente, embora, na prática, as punições ainda ocorram. Quando passamos a examinar os sistemas penais em todo o mundo, descobrimos que, na África, ainda se permite legalmente em algumas nações o chicoteamento de crianças. Na Gâmbia, crianças podem receber chibatadas desde os sete anos pela prática de delitos, desde que com autorização de um oficial superior da polícia. Em Uganda, os tribunais da aldeia podem sentenciar crianças ao chicote e no Sudão utiliza­se a 24 flagelação (Dados do Epoch­Worldwide). Preocupado com esta matéria, o Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 13 preceitua: “Os casos de suspeita ou confirmação de maus­tratos contra criança ou adolescente serão obrigatoriamente comunicados ao Conselho Tutelar da respectiva localidade, sem prejuízo de outras providências legais”. Abordaremos a questão da violência social conforme a terminologia de Galtung 25 injustiça social, designando sempre a repressão das necessidades, situação na qual os direitos humanos são atacados em seu conteúdo histórico­social. Dessa forma, há que se dar início ao processo de transformação dessa cultura (in) civilizatória, na qual a criança brasileira é desumanamente tratada, não somente em função dos maus­tratos, da violência e exploração sexual, mas também por situações que demonstram um estado de verdadeira barbárie, onde as atitudes brutalizantes e brutalizadoras têm sido mascaradas como “naturais”. Falamos das centenas de meninos e meninas que têm as mãos em carne­viva, por carregarem feixes de sisal, falamos dos que se encontram nas ruas de nossas cidades em meio aos vícios e à prostituição, dos que se aniquila na construção civil, nos estaleiros, nas carvoarias e na produção de calçados. Cite­se a cidade de Franca, em São Paulo, onde se estima que 5.000 crianças entre 5 e 14 anos são utilizadas como mão­de­obra barata no pesponto e colagem dos sapatos. Fato este que, de imediato sugere duas observações: a primeira é que, em função do trabalho ser terceirizado, o mesmo é realizado em casa, o que implica, além da redução dos custos da indústria, o desembaraço de possíveis ações trabalhista, vez 24 ROLIM, Marcos, “Apresentação”. Relatório: Pelo fim das punições físicas contra crianças, Rio Grande do Sul, Comissão da Cidadania e Direitos Humanos/ Assembléia Legislativa dos Estados do Rio Grande do Sul, 1996. págs. 8 e 9 25 GALTUNG, Johan. Direitos Humanos ­ Uma Nova Perspectiva. Tradução Margarida Fernandes. Lisboa, Instituto Piaget. 1994.
34 que estão longe do olhar da fiscalização. De acordo com pesquisa realizada pela CUT e OIT, cerca de 60% dessas bancas de produção trabalham clandestinamente. 26 A segunda, é o específico problema da cola e da tinta, extremamente tóxicos, as quais provocam sérias agressões ao corpo da criança, desde um simples enjôo até a cegueira, como também a grave questão da dependência a essa droga, haja vista que a princípio estes pequenos trabalhadores – “pequenos escravos”– estranham o cheiro, mas em seguida passam a “gostar” e infelizmente tornam­se dependentes dessa substância; como conseqüência da inalação da cola tem­se o surgimento de problemas neurológicos, como a alteração da memória e diminuição dos reflexos, bem como a queda das defesas do organismo. Como se percebe, a infância brasileira se submete por necessidade econômica a um número sem fim de atividades perigosas, insalubres, bem distante da aprendizagem prevista no seu Estatuto, como o trabalho educativo que daria condições ao pequeno empregado, a partir dos 14 anos de idade, sob a forma de aprendiz. 27 Faz­se necessário falar, também, de uma das formas mais atrozes de violência que é o extermínio, se é que podemos graduar o fenômeno da violência, pois toda agressão, por mais singular que possa parecer, é injustificável e quase sempre objeto de futura reprodução no sentido de que adultos que sofreram maus­tratos e abusos durante a sua infância, quase sempre reproduzem tal comportamento, agredindo sua família, principalmente, os filhos, pois estruturalmente mais frágeis e, portanto mais facilmente objetos de vitimização. Deve­se esclarecer ainda que, de acordo com o objeto de estudo desta pesquisa–levantamento das denúncias de abuso sexual e prostituição com crianças e adolescentes, faz­se necessário realizar um detalhamento no tema da violência e enfatizar a violência sexual que ocorre contra crianças e adolescentes antes da seguinte forma ­ a definição do fenômeno da violência sexual contra crianças e adolescentes. Vários termos têm sido utilizados para designar o fenômeno: assalto e ataque sexual, agressão sexual, violência e maus­tratos sexuais, perturbação sexual, ofensa sexual, etc. Todos designam aspectos específicos e complementares do mesmo fenômeno e por isso mesmo são inadequados para designar o fenômeno em sua totalidade ou abrangência. A partir dessas considerações, propomos a denominação “abuso­vitimização sexual” como a possibilidade de expressar o fenômeno em sua totalidade de processo de causar dano à criança através de sua participação “forçada” em práticas ou atos eróticos. O argumento é que, quando se emprega o termo abuso, a ênfase é colocada no pólo adulto e quando se emprega o termo vitimização, a ênfase é posta na criança; por 26 Folha de São Paulo. In. Caderno Cotidiano: Dia do Trabalho. 2 de maio, 1983, p. 3. 27 A questão do trabalho infantil no Brasil ainda é dramática: mais de 1,2 milhões de crianças e adolescentes de 5 a 13 anos ainda eram vítimas de exploração em 2007, segundo levantamento da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio) divulgado em 18/09/2008 pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). Mas, apesar do número alarmante, a incidência de crianças trabalhadoras caiu de 4,5% da população desta faixa etária, em 2006, para 4%, em 2007. Ou seja, 171 mil delas deixaram de trabalhar. Os dados da PNAD revelam ainda que os meninos negros ou pardos, de famílias de baixa renda (até um salário mínimo) e que moram em áreas rurais do Norte­ Nordeste formaram o perfil médio do trabalhador mirim. Mais da metade das crianças de 5 a 13 anos morava no campo e, conseqüentemente, 60,7% delas trabalhavam em atividades agrícolas. Entre jovens com mais de 14 anos, a proporção de pessoas no trabalho agrícola cai para 32%. Os mais novos foram as principais vítimas do trabalho sem remuneração (60%), sendo que, em todas as regiões do país, a presença de crianças trabalhando sem qualquer tipo de contrapartida foi muito mais incidente nas atividades agrícolas (83,6%) do que nas não­agrícolas (18,7%). Quase metade das crianças ocupadas de 5 e 13 anos (44,2%) trabalhou até 14 horas por semana e 6,6% delas chegaram a ter uma jornada de 40 horas ou mais. Apesar disso, 94,7% delas também foram à escola, praticamente a mesma porcentagem obtida entre as crianças que não trabalhavam (95,7%). Entre os jovens de 14 a 17 anos, a situação é outra. Nessa faixa etária, 88,9% dos não­ocupados vão à escola, contra 74,9% dos trabalhadores.
35 isso, afirmam que vitimização sexual é o que melhor expressa e de fato define o fenômeno ocorrido. Definida como “participação de uma criança em prática erótica mediante coerção (física ou psicológica) de um adulto” a vitimização sexual tem os seguintes pressupostos:
· A criança é vítima e nunca poderá ser transformada em ré;
· O objetivo presente no processo é sempre o prazer (direto ou indireto) do adulto;
· A participação da criança é garantida pelo coerção/poder que o adulto exerce sobre ela;
· O efeito da vivência da situação para a criança revela­se sempre danoso: a vitimização sexual é uma forma de erosão da infância. A violência sexual contra crianças e adolescentes costuma ser classificada como não doméstica, quando ocorre dentro ou fora do domicílio da vítima, perpetrada por desconhecido ou conhecido sem vínculos e parentesco ou responsabilidade sobre a vítima, e doméstica, quando ocorre no domicílio da vítima e parte de adultos próximos afetivamente, com grau de parentesco ou responsabilidade para com a vítima. Azevedo e Guerra esclarecem um pouco mais essas duas modalidades de violência sexual contra crianças e adolescentes: Abuso sexual e incesto às vezes costumam ser confundidos, mas não são a mesma coisa. Abuso sexual (ou vitimização sexual) geralmente designa relações sexuais entre um adulto e uma criança. Incesto refere­se a relações sexuais entre dois membros da mesma família, cujo casamento seria proibido e muito incesto é vitimização sexual tal como o definimos: mas eles não são idênticos. Em particular, o contato sexual entre familiares da mesma idade é uma espécie de incesto que não é vitimização e o contato sexual entre um adulto estranho a família e a criança é 28 vitimização sexual . Estatisticamente as meninas estão mais sujeitas à violência sexual e esta ocorre principalmente, no convívio familiar. A fim de melhor esclarecemos, citaremos algumas dessas formas de violência: a) Violência sexual não doméstica: Em consonância com a maioria das literaturas, definiremos violência sexual como todo ato/jogo sexual, relação heterossexual ou homossexual entre um ou mais adultos e uma criança menor de 18 anos, tendo por finalidade estimular sexualmente a criança ou utilizá­la para obter uma estimulação sexual sobre a sua pessoa ou a de outra pessoa. Os abusos sexuais, com a participação de estranhos, na maioria das vezes, são acompanhados de agressões corporais, freqüentemente graves, quando não fatais. b) Violência sexual doméstica: Para a identificação e caracterização da violência sexual doméstica relacionaremos e definiremos alguns itens: 1 – Toda ação que busca a satisfação de uma necessidade sensual/sexual de um adulto e abrange as seguintes atividades: 28 ÁZEVEDO e GUERRA. Abuso e Exploração Sexual da criança e do Adolescente na região metropolitana de Goiânia (1992­1996). p. 8.
36 a) sem contato físico (por exemplo, o voyerismo); b) com contato físico envolvendo níveis diversos de intimidade (desde beijos até copulas orais, anais ou vaginais); c) sem uso de força física; d) com uso de força física. 2 – Pode ser heterossexual ou homossexual conforme formação das duplas de protagonistas (pai­filha, pai­filho, mãe­filha, irmão­irmão, irmão­irmã, irmã­irmã, avô­neta, avô­neto, avó­neta, avó­neto, tio­sobrinha, tio­sobrinho) etc., o agressor pode atuar sozinho ou não; 3 – Como se trata de abuso/vitimização doméstica, a denominação adulto deve ser complementada por pais (biológicos, por afinidade) responsáveis (tutores, padrinhos), parentes (irmãos, avós, tios, primos etc.). Entretanto, não podemos olvidar que existe uma grande dificuldade em se estabelecer um diagnóstico da vitimização sexual quando o agente agressor pertence à própria família, pois depende da ruptura da passividade de um dos cônjuges ou mesmo da vítima. Com relação ao incesto, trata­se de um abuso sexual intra­familiar, com ou sem violência, explícita, caracterizado pela estimulação sexual intencional por parte de algum dos membros do grupo que possui um vínculo parental pelo qual lhe é proibido o matrimônio. Portanto, as características do incesto são: o abuso sexual e o vínculo familiar. O adulto­abusador, no caso do incesto, não é apenas aquele indivíduo que tem uma relação de consangüinidade com a vítima como também aquele adulto que tem afinidade com a vítima e ou responsabilidade sobre ela. Dessa forma, nota­se que a proibição do incesto extrapola os limites do biológico e se instala no contexto cultural, ou seja, várias culturas, de formas diferentes, estabelecem limites para os contatos sexuais. A dinâmica do abuso sexual percorre cinco etapas, como veremos a seguir:
· Cer ceamento – o abusador tem acesso à vítima e tente lhe mostrar a atividade sexual como algo especial e divertido, tratando­o como algo “normal”;
· Interação sexual – realiza­se uma progressão da atividade sexual menos íntima e evasiva até chegar a uma penetração anal, oral ou vaginal;
· Segr edo­ o abusador impõe à vítima manter segredo, o que possibilita a repetição de abuso sexual e o deixa livre das sanções que poderia sofrer;
· Descobrimento ou r evelação­ a revelação do abuso sexual se dá de maneira acidental, porque uma terceira pessoa o descobre, por alguns sintomas de evidência física, por gravidez etc. Geralmente, o momento da revelação provoca uma crise na família, e esta pode continuar a negar o ato ou efetivar uma denuncia formal contra o abusador;
· Coerção – ocorre após a revelação e tem por objetivo eliminar a publicidade, desviar a informação e evitar intervenções externas. Características da vítima do incesto: Diferenciaremos o tratamento dado ao incesto segundo o grau de evolução mental e psicossocial da vítima: a) quando a vítima é uma criança: o incesto deve sempre ser considerado como uma agressão violenta; b) quando a vítima é adolescente: neste caso, como freqüentemente a vítima é acusada de ter seduzido o abusador, sua participação se dá pelo terror e culpa que a situação lhe provoca;
37 c) quando a vítima é um adulto: se não se comprovar uma doença mental ou um distúrbio de personalidade, deve ser respeitada a opção sexual da pessoa. Conseqüências psicológicas do abuso sexual: a) adaptação afetiva – apesar de não haver estudos conclusivos sobre a intensidade dos problemas emocionais da vítima de abuso, os registros das vítimas que buscam tratamento psicológico dão conta de que elas costumam enfrentar três problemas intimamente ligados: sentimento de culpa, sentimento de auto­desvalorização e depressão; b) adaptação interpessoal – como o abuso sexual ocorre na trama de uma relação interpessoal, em geral as vítimas costumam experimentar as seguintes dificuldades básicas: recusa no estabelecimento de relação com homens, estabelecimento de relações apenas transitórias com homens e tendência a super­sexualizar relações com homens; c) adaptação sexual – como não poderia deixar de ser, a área da sexualidade parece se a mais seriamente afetada pela vivência do abuso sexual. De um modo geral os problemas de adaptação sexual parecem estar ligados ou a uma negação de todo e qualquer relacionamento sexual ou a uma incapacidade de vivenciar relacionamentos sexuais satisfatórios. Conseqüências orgânicas que o abuso sexual provoca: a) lesões físicas gerais – a possibilidade de agressões físicas podem variar desde a imobilização coercitiva até a morte da vítima, para o não reconhecimento posterior do abusador (é inerente ao abuso); b) lesões genitais – as lesões traumáticas do aparelho genital feminino vêm apresentando índices crescentes nas notificações dos serviços de saúde e, dentre essas lesões assume relevantes freqüência a rotura do fundo do saco vaginal, encontrada em mais da metade dos casos. Lesões vulvares e clitoridianas têm sido relatadas com freqüência; c) lesões anais – a penetração do pênis ou de objetos variados pelo orifício anal pode provocar uma série de lesões de extensão variada, intenso sangramento, e risco dessas lacerações cutâneo­mucosas se infectarem, levando a formação de abscessos perianais; d) gestação – se o abuso sexual ocorre com mulher­adolescente com ovulações, existe o risco de haver uma gestação. Trata­se de uma situação extremamente complexa em qualquer das duas possibilidades, tanto quanto o pai da criança é um estranho/desconhecido, ou quando este é membro da família. Nos dois casos, tanto a mãe quanto a criança sofrem várias conseqüências, principalmente, no âmbito da marginalidade social e da rejeição emocional; e) DST – a vítima corre também o risco de se contaminar com doenças sexualmente transmissíveis de que porventura o abusador seja portador, que podem variar de uma blenorragia até os casos mais graves, por exemplo, SIDA/AIDS; f) disfunções sexuais – as disfunções sexuais podem ser as mais variadas, pois a função sexual excede, na espécie humana, os meros aspectos orgânicos, tornando­se uma dependência de fatores biopsicossociais. Características da família incestuosa:
38 Considerando que o incesto não é apenas relação sexual entre duas pessoas, mas uma relação que nasce devido à ausência de uma estrutura familiar que pudesse contê­ la, abordaremos dois tipos de incesto associados às características das famílias incestuosas: 1) Incesto Espótico – é aquele verificado numa situação ocasional, e geralmente violenta, sendo a mãe uma pessoa fraca e submissa que não pode impedir o pai de abusar sexualmente da filha; 2) Incesto Marital – é aquele em que, geralmente, a filha mais velha toma o lugar da mãe, desempenhando outros papéis além de esposa, como mãe (dos irmãos), administradora da casa, etc. Valendo­nos dos ensinamentos de Azevedo e Guerra 29 que adotam a conceituação de Cohen, ambos classificam como incestogênicas as famílias com as seguintes características:
· Afeto é expresso de forma erotizada: a criança pede amor e o adulto dá sexo;
· A comunicação não é clara, a vítima se cala diante das ameaças ou por medo de perder o pouco de afeto que conquistou; os outros membros se negam a enxergar o que está acontecendo na família e principalmente a mãe desenvolve um papel de ‘cúmplice silenciosa;
· Dever/poder está altamente centralizado na figura paterna e a mulher­criança é vista como objeto sexual da satisfação do poder masculino;
· Em decorrência da estrutura e da história familiar os limites básicos das relações inter e intra­geracionais não foram estabelecidos. Alguns dados importantes sobre o fenômeno do incesto. Por exemplo:
· As vítimas são preferencialmente mulheres e os agressores são preferencialmente homens (embora em pequeno número, há vítimas do sexo masculino);
· O tipo mais comum é o incesto pai­filha, por isso, denominado de ordinário;
· Existe a possibilidade, embora em menor grau de o agressor sexual sofrer de distúrbios psiquiátricos;
· Embora haja vítimas de 0 a 18 anos, a idade mais comum varia entre 8 e 12 anos. O tratamento terapêutico deve envolver toda a família, pois, na verdade, trata­se de uma família incestogênica, e não de indivíduos isolados que praticam um ato ou atividades sexuais. Não podemos ficar inertes diante da violência que nos rouba a humanidade, que nos animaliza. Há que se exigir ações efetivas por parte do Estado e da sociedade, é imperioso, portanto, uma reação contrária ao cotidiano avanço da violência, do descaso com os direitos humanos mais elementares. 2.3 – DA PROSTITUIÇÃO 2.3.1 – Considerações Iniciais Sobre a Prostituição A prostituição é um fenômeno de degenerescência social, constante em quase todas as civilizações, cuja origem se perde, nos tempos. Desde logo, podemos vislumbrar dificuldades que se antepõem a sua definição. 29 Op. Cit. p.10.
39 Gaspar 30 define prostituição como um contínuo de relações possíveis entre homens e mulheres que combinem sexo e dinheiro sem passar pelo casamento ou pela procriação. A tendência a relacionar prostituição e casamento encontra suas origens na divisão histórica da condição feminina entre “honestas” e “perdidas”. Observa esta divisão como o processo da coisificação da mulher, reduzida a mero objeto dos desejos do homem, a quem deve ser assegurada a garantia da realização plena. Sobre as semelhanças e diferenças entre a prostituta e a esposa, Beauvoir 31 preleciona em suas lições que (...) para ambas, o ato sexual é um serviço; a segunda é contratada pela vida inteira por um só homem; a primeira tem vários clientes que lhe pagam tanto por vez. Àquela é protegida por um homem contra os outros, esta é defendida por todos contra a tirania exclusiva de cada um. A prostituição é alimentada diariamente através de mecanismos sociais, como linguagem, hábitos, educação, dominação, discriminação, competição, consumo, status. Analisando os padrões sociais masculinos e femininos, Saffiotti reflete: Há um arquétipo masculino muito precioso, o do homem forte (...). No arquétipo masculino eu identifico o sujeito desejador. Ele deseja um objeto que está fora dele e usa este objeto para a sociedade da sua aspiração. Do outro lado, o que encontramos? Não apenas um arquétipo feminino, porém dois arquétipos: o arquétipo da SANTA* mãe, dona de casa, assexuada e outro que é o arquétipo da prostituta. Aparentemente, estes dois arquétipos são absolutamente contraditórios, mas há um entre elas, uma identidade básica. Ela resulta do fato de ambas as mulheres, a SANTA* e a PUTA*, serem objeto de prazer do homem. Nenhuma delas é sujeito de desejo, o que reflete evidentemente relações de dominação e de subordinação, razão por que eu não 32 consigo desvincular a prostituição de violência. Os padrões sociais de dominação/subordinação, homem/mulher, brancos/negros, adultos/crianças se interpenetram e se cruzam nas relações sociais, dando origem à ordem “social”. No universo amplo da prostituição, a infantil, enquanto “comércio carnal de crianças” ou “sua participação em atividades sexuais com adultos ou jovens mediante um elemento de retribuição sob a forma de dinheiro, de presentes, e até mesmo de tóxicos”, se insere como mais uma forma de violência contra a criança, ao lado do rapto, do tráfico, das mutilações e assassinatos, dos abusos e negligências, da exploração no trabalho, do abandono político e social. 33 Quando abordamos o tema da exploração sexual de crianças e adolescentes nos deparamos com um primeiro problema, qual seja, seria correto falar em prostituição, como oportunamente indaga a socióloga Marlene Vaz: “Seriam essas meninas prostitutas ou prostituídas?” 34
Comungamos da idéia que essas meninas são prostituídas, haja vista o fato que as conduzem a esse tipo de vida ser, justamente, a alta de uma política de base – geradora de desemprego –, levando­as primeiramente à prostituição famélica. Daí, a se transformar em vício é apenas uma questão de tempo – mínimo. Da fome, chega­se à 30 31 GASPAR, Maria Dulce. Garotas de programa. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. DE BEAUVOIR, Simone. Le Deuxième Sexe. L´Expérience vécue.Paris: Gallimard. 1975. In: Revista de Psicologia, Fortaleza, v.7 (1/2), p.97­113. Jan/Dez.1989/90. 33 AZEVEDO. Op. Cit.p. 112. 34 VAZ, Marlene. “Meninas de Salvador”. Pesquisa sobre a População Infanto­Juvenil Prostituída – CEDECA/UNICEF, Bahia, 1994, p.8
32 40 necessidade das drogas, do álcool; à subordinação às cafetinas ou cafetões onde, mais uma vez são vitimizadas – pela fome e pelo vício. E, apesar das freqüentes denúncias, principalmente, das entidades que defendem os interesses da infância e da adolescência no Brasil, sobre a prostituição infanto­juvenil, essa face escura da realidade tem sido freqüentemente encoberta pela sociedade. O número sobre a exploração e o abuso sexual de crianças e adolescentes aumentam dia­a­dia. Pode­se tornar como um indicador da dimensão do fenômeno o interesse e o envolvimento de alguns organismos governamentais e não­governamentais que se propõem a conhecer e discutir o problema e intervir na realidade que o produz e sustenta. São bons exemplos disso a realização da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) sobre a Prostituição Infantil, em 1993, a realização em Brasília do Seminário sobre Exploração Sexual de Meninas e Adolescentes no Brasil em março/1.985, a realização do Seminário contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, em Brasília, no mês de abril de 1986, e o World Congress Against Comercial Sexual Explotation of Children, congresso realizado em Estocolmo no mês de agosto de 1996. A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Prostituição Infanto­Juvenil (1994) tornou ainda mais explícito o que vinha sendo denunciado através dos meios de comunicação e da literatura, a respeito da prostituição e da exploração sexual de crianças e adolescentes brasileiros. O Relatório Final dessa CPI afirma que tal situação antes de ser um choque, um escândalo social, é na verdade um crime, pois: (...) não é fácil para nossas consciências sequer acreditar que há crianças de apenas seis anos de idade sendo usadas em práticas sexuais remuneradas, ou meninos de cinco anos contracenando com meninas de doze, em filmes pornográficos. Numa idade em que crianças brincam de bonecas e jogam bola, estas crianças, para quem a Constituição Federal proclama obrigatório o ensino básico, já são brutalizadas por seus pais, parentes e 35 exploradores. À época, a CPI apurou ­ com apoio do UNICEF ­, ser em torno de 500.000 (quinhentos mil) o número de crianças e adolescentes que se encontra em estado de prostituição no Brasil, expondo­se a toda sorte de doenças – inclusive a AIDS – e também às mortes violentas. Outra constatação importante dos parlamentares foi de que, em quase todos os casos, a família é o ponto de partida para a prostituição infantil, sendo o pai/padrasto o principal agressor. Assim, numa trágica inversão de valores, a casa que deveria abrigar e proteger oferece perigo, e as ruas são vistas como um refúgio seguro. O referido Relatório sintetiza considerações, frutos dessa investigação, desse mapeamento do “fenômeno” da prostituição em nível nacional, tais como: A prostituição e a exploração infanto­juvenil são realidades disseminadas por todo o território nacional e permeiam todas as classes sociais; Não existe idade mínima para a vitimização; há distinção entre a prostituição famélica e a destinada à obtenção de bens de consumo ou acesso aos locais da moda. As meninas que se prostituem para conseguir sustento se enquadram no primeiro grupo: a prestação de favores sexuais serve à subsistência ou à proteção contra autoridades a que se submete etc. A CPI recebeu, 35 Comissão Parlamentar de Inquérito destinada a apurar a responsabilidade pela Exploração e Prostituição Infanto­Juvenil. Relatório final. Brasília, Câmara dos Deputados, 1994 (mimeo) p.22.
41 inclusive, denúncia de corrupção policial, segundo as quais 36 agentes da lei exploram, eles próprios a prostituição. Definiremos a prostituição infanto­juvenil como o comércio carnal da criança e ou adolescente com adulto ou jovem, em que ela recebe em pagamento em dinheiro, presentes e substâncias tóxicas. A ampliação do fenômeno da prostituição infanto­ juvenil está relacionada com três fatores principais: a) O desenvolvimento do turismo sexual; b) A condição sócio­econômica das crianças, isto é, sua condição de miséria e opressão; c) A ideologicização da infância e da sexualidade feminina e masculina. Sabe­se que a prostituição infanto­juvenil ocorre tanto em grandes centros urbanos como em comunidades pequenas, principalmente aquelas nas quais se desenvolve alguma atividade produtiva com a participação de um grande número de homens e que, além disso, ficam distantes e ou são de difícil acesso, como, por exemplo, os garimpos. Ela adquire, certamente, significados e contornos diferentes dependendo dos contextos geográficos e sócio­econômicos, por isso se ouve falar (com freqüência) em turismo sexual especialmente nas cidades litorâneas, escravização de meninas em zonas de garimpo, meninas prostituídas em áreas portuárias etc. Os levantamentos realizados por diferentes entidades – CPI, prefeituras, órgãos governamentais e ONGs – mostram que a iniciação na prostituição ocorre cada vez mais cedo, chegando a atingir crianças de até cinco anos de idade. Apesar de se privilegiar o estudo da menina prostituída, existem crianças e adolescentes do sexo masculino prostituídos, principalmente para práticas homossexuais. Em todos os estudos já realizados a prostituição infanto­juvenil, este figura relacionado com o aumento da pobreza e miséria, desemprego, violência doméstica, desagregação familiar, perda de valores culturais, carência do sistema escolar e consumo e tráfico de drogas. Certamente, essa realidade atinge em maior profundidade as crianças e adolescentes advindas das camadas populares. A prostituição consiste, para muitas meninas, em um meio de contribuir com a precária renda familiar ou de ter acesso a bens de consumo que não estão ao seu alcance. Vítimas da violência de adultos aprendem a utilizar seu corpo como mercadoria de troca na esperança de mudar o curso de uma existência que parece já traçada, onde o sonho e a brincadeira deixaram precocemente seus lugares à dor e à luta pela sobrevivência. Mas, os sonhos das mulheres/meninas terminam, na maior parte dos casos, na rede de exploradores sem escrúpulos ou na morte. Pode­se afirmar que, não existe prostituição infantil sem que haja ­ no mínimo ­ um adulto responsável, ou ele é o cliente, que explora os serviços sexuais, ou é o agente aliciador, que obtém vantagens econômicas. No nosso entender, o tema da vitimização sexual em família é altamente responsável pela prostituição, mormente de meninas porque incide muito mais sobre elas do que sobre os meninos. A violência sexual possui diferentes contornos, dependendo do contexto de classe social, conforme assinala Saffioti: Uma diferença que encontramos, é a desigualdade de classe, no abuso incestuoso que é a seguinte: nas classes mais pobres, o pai joga a filha numa cama, põe uma faca, um canivete, um revólver, a arma que tiver a lado da cama e estupra a filha e diz: ´Se você abrir a boca, eu mato você, mato sua mãe, todos os seus irmãos´. A menina vive sob ameaça concreta. Agora é muito pior nas camadas 36 Idem. p.23­27
42 privilegiadas. Não se ameaça com revólver nem faca. Não há ameaça. O que há é um processo de sedução que, a meu ver, é muito mais deletério, para a saúde emocional da criança do que a ameaça grave. Porque o pai vai seduzindo, ele vai avançando as carícias – dizemos o pai porque é a figura mais freqüente, mas isso não impede que seja o avô, o tio, o primo, o irmão, etc. – e é muito difícil para a criança distinguir entre a ternura e o afago com fins 37 genitais. (grifamos) 2.3.2 – Formas de Iniciação e Condições de Vida na Prostituição O relatório da AIJD 38 nos fornece informações sobre a forma de iniciação da criança na prostituição:
· A idade de ingresso na prostituição varia de acordo com o local e a forma de recrutamento das crianças. As nascidas em zonas de prostituição, ou provenientes de mães prostitutas, são, em geral, exploradas a partir de 03 anos de idade. As que são trazidas do interior para trabalharem como domésticas em casas de família, geralmente aos cinco anos, também são utilizadas sexualmente pelo patrão, seus filhos e amigos, e posteriormente, por volta dos 13 anos, colocadas na rua. Nas zonas de garimpo, é comum a existência de meninas de 10 a 12 anos com a finalidade de “servirem” aos homens;
· Em alguns lugares, a prostituição infantil se organiza em “casas de tolerância”, situadas geralmente na periferia das cidades. Foram citados Caruaru–PE, Lages­SC, e Rio Grande do Sul, onde as casas de tolerância são chamadas “Matadouros”. Ali as meninas são drogadas e guardadas por cães;
· Em cidades como Fortaleza, São Paulo, Salvador e Porto Alegre, o recrutamento das crianças para prostituição se confunde com o rapto e o tráfico de crianças;
· A rota do tráfico de crianças brasileiras pode se iniciar em Fortaleza, com destino ao Rio de Janeiro, onde as crianças são negociadas, ou pode ainda se estender do Sul do Brasil para países fronteiriços como Paraguai e Argentina;
· A revista acima referendada publicou uma matéria (Fev.1988, pág.34) acerca do comércio de crianças brasileiras, salientando que a cada ano, perto de 1.500 (mil e quinhentas) crianças brasileiras deixam o país para morar no exterior – com os papéis em ordem. Pela rota da clandestinidade, que passa obrigatoriamente pela falsificação de documentos e pela exploração abusiva dos sentimentos tumultuados de mães em dificuldades, estima­se um número bem maior – a projeção da Polícia Federal, por exemplo, alcança 3.000 (três mil) crianças por ano, ou 50 (cinqüenta) a cada semana. Curitiba e Fortaleza são identificadas como plataforma de embarque de crianças para o exterior. De acordo com o chefe local (Fortaleza) do Serviço de Fronteiras da Polícia Federal, a Secretaria de Segurança Pública do Ceará recebe em torno de 05 (cinco) denúncias de seqüestro de criança, por semana;
· A produção de filmes pornográficos, envolvendo crianças no Brasil, está localizada principalmente no Rio de Janeiro e São Paulo, onde estão os estúdios mais importantes. Recife foi citado também como produtor de pornografia infantil. Ali as crianças mais novas são as preferidas dos clientes, em função do baixo preço cobrado por elas. Algumas vezes, o próprio cliente leva a menina para o bordel. Há registro de casas especializadas que fornecem meninas virgens por telefone. 37 Revista de Psicologia, Fortaleza. v.7 (1/2), pg.115.Jan/Dez. 1989/1990. Apud LORENZI, Mário. Prostituição Infantil no Brasil e outras Infâmias. Porto Alegre: Thê, 1987. p.30.
38 43 Na tentativa de fazer a síntese das variadas e complexas causas que contribuem para o surgimento e permanência do fenômeno da prostituição infanto­juvenil no Brasil, relacionamos as seguintes causas e, respectivamente, suas conseqüências: a) Causas Essenciais:
· Sexualidade – o papel da sexualidade na cultura brasileira e na cultura ocidental é responsável em grande parte, pela Prostituição Infanto­Juvenil. A idéia da sexualidade está intimamente ligada à idéia que se tem de dominação. Existe uma ética sexual que é embasada por uma prática da dominação, da coerção, e que faz com que essa dominação seja geracional, porque se manifesta de uma geração à outra;
· Família – a ordem familiar historicamente estabelecida. A ética sexual predominantes na sociedade, que determina a construção familiar monogâmica, fiel ( profundamente hipócrita), reconhece também a existência de figuras extraconjugais – a outra, a prostituta, a amante, a concubina­ que fazem parte do imaginário da família brasileira. b) Causas Secundárias:
· Pobreza ­ a situação de extrema pobreza e necessidade vivida pelas famílias e as crianças/adolescentes. Certamente esse fator não é único, determinante e exclusivo, mas é fundamental;
· Escola ­ a natureza do sistema escolar brasileiro marcado pela exclusão, que impossibilita o acesso e a permanência das crianças na vida escolar;
· Violência ­ seja física, sexual, simbólica, emocional ou psicológica, a violência, tanto dentro quanto fora da família, é constitutiva da inserção da menina na prostituição. De acordo com a pesquisa “Meninos de rua: dimensão trajetória e estratégias de sobrevivência”, realizada em Recife, o objetivo foi de conhecer em profundidade o fenômeno da prostituição infanto­juvenil – a saída para a rua, a trajetória empreendida e as estratégias que permitem a sobrevivência, apresenta os seguintes dados e conclusões:
· Do total de meninas e adolescentes pesquisados, 47% estavam na faixa etária de 17 a 20 anos, 36% tinham entre 12 e 16 anos e 17% até 11 anos de idade;
· Quase todas não são crianças sem famílias, nem crianças abandonas. Vão para a rua porque é o elemento mais frágil numa estrutura familiar enlouquecida pela miséria que esmaga gradativamente do adulto à criança;
· A maioria absoluta não tem pai. A figura ou é desconhecida ou totalmente ausente por abandono ou rejeição da família. Quando presente na família, sua ação é quase sempre marcada pela violência – física, psíquica ou sexual;
· As mães estão presentes e são vistas como as responsáveis pelo sustentáculo da pseudo­estrutura familiar existente. No entanto, não dispõem de condições emocional, física e econômica para atender a essa expectativa. A mãe da menina de rua é uma mulher esmagada pelas engrenagens da miséria, afetada no seu equilíbrio mental e recorrendo com freqüência à embriaguez;
· Na relação estabelecida entre mãe e filha predominam o abandono diário, a agressão verbal, a rejeição, a violência física e a indiferença;
· Outro dado da relação mãe­filha é a presença de padrastos, que em geral, rejeitam as enteadas, de forma violenta, levando as mães a praticamente expulsarem as filhas de
44 casa. Essa relação se torna mais complexa mais ainda pela ocorrência freqüente do abuso sexual contra as enteadas e do ciúme das mães em relação às filhas;
· Aposição da menina na hierarquia familiar é visivelmente inferior a posição do menino, cabendo a esta quase sempre a responsabilidade pelo cuidado dos irmãos mais novos e dos afazeres domésticos;
· A desagregação do grupo familiar, que não permite às meninas construir vínculos mais profundos e afetivos com os pais/mães/irmãos, é causada por falta: de uma das figuras fortes, o pai ou a mãe, de dinheiro para a comida e outras necessidades básica, de espaço para morar, de privacidade para cada um dos membros da família e de afetividade no interior da família;
· A liberdade em relação à situação familiar significa, para a menina, ir para a rua, que representa um espaço de ‘liberdade’ psicológica. Esses dados expõem as múltiplas causas da prostituição infanto­juvenil no país. Eles mostram que a sua erradicação passa por uma tomada de consciência de toda a sociedade e, especialmente dos órgãos governamentais. Muito mais que um esforço de entidades que lutam pelo fim da prostituição infanto­juvenil no Brasil e no mundo, é fundamental a conscientização e o engajamento de toda a sociedade e principalmente do Estado para retirar do silêncio essa triste situação buscando formas de superar essa prática que foi socialmente instituída. Destacamos três níveis de conseqüências da prostituição infantil: a) Problemas de ajustamento sexual, que vão desde uma preocupação acentuada com a questão sexual, até uma identificação deteriorada, passando pela troca de sexo e pela promiscuidade; b) Problemas de natureza interpessoal, ou perturbações nas relações sociais, que vão da hostilidade às idéias suicidas; c) Problemas educacionais, como por exemplo, dificuldades de aprendizagem. Acrescentam­se ainda sintomas de debilidade mental (social), perda de auto­ estima, ansiedade, perturbações do sono. Ressaltamos que todos esses efeitos são relativos à violência sexual como um todo, onde se inclui a prostituição. Os fatores até aqui relacionados, não se destinam a formar um quadro definitivo daquilo que significa ser a prostituição infanto­juvenil. Antes, pretendemos evidenciar, a partir de estudos diversos, em épocas e lugares diferentes, elementos que possam contribuir para a compreensão das possibilidades do ingresso e da manifestação do fenômeno de prostituição, bem como de algumas conseqüências a nível individual. 2.4 ­ Prostituição Infanto­J uvenil O fato de o Brasil ter sediado, recentemente, o Seminário Contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas, sugere a abrangência do problema em nosso país. O Seminário contou com a participação de diversas organizações da sociedade civil de defesa e promoção da infância e juventude. Em seu transcurso, foram divulgadas denúncias de exploração e abuso sexual de crianças e adolescentes tanto no âmbito das famílias, como por redes e organizações de prostituição, de pornografia e de tráfico de drogas. A expansão do problema se dá com a atuação de redes globais de sexo e, principalmente, via turismo sexual, conforme dito alhures. As denúncias falam também da morbidade e mortalidade de crianças e adolescentes associadas à violência sexual e à prostituição. A existência da prostituição infanto­juvenil no Brasil é inegável. A gravidade e abrangência desse problema estão expressas na fala/denúncia de
45 Pinto 39 ao observar que a exploração sexual infanto­juvenil se apresenta em todas as unidades federadas do país. Embora com formas diversificadas, que se relacionam inclusive, com a organização local e com a economia local, ela está presente nas 27 unidades federadas. A faixa etária mais visível é entre 12 e 16 anos. No entanto, temos presença confirmada, especificamente, nas regiões Sul, Sudeste, no Espírito Santo, Norte, no Acre e Amapá, e em Pernambuco, de meninas de quatro, cinco, seis e sete anos, usadas sexualmente das mais diversas formas, porque tem a ver com o desenvolvimento físico, e com o que elas podem fazer. A violência sexual contra crianças e adolescentes é tão­somente uma face (talvez a mais perversa) da violência que, de uma forma geral, se alastra pelas sociedades contemporâneas. O significado da violência tem de ser compreendido no contexto de uma sociedade específica e de uma cultura determinada. No caso brasileiro, diversas formas de violência estão gerando uma sociedade extremamente desigual em termos sócio­econômicos e com históricas marcantes de injustiça social. Trata­se, portanto, de uma sociedade que pratica a violência tanto entre as classes sociais quanto no interior de cada classe, conforme comprovam as elevadas, estatísticas dos conflitos (urbanos e rurais) e das ocorrências de maus­tratos às mulheres, idosos, crianças e adolescentes, no interior da família e fora dela. A literatura nacional e estrangeira registra que, do total de violência cometida contra crianças e adolescentes, cerca de 10% correspondem a abusos sexuais. No entanto, o desconhecimento de tal situação, tem levado à desinformação e ao despreparo dos profissionais de educação e saúde, à dificuldade de comprovação de algumas formas de abusos sexuais (sevícias, atos de libidinagem, sexo oral, etc.), e ao descrédito com que é tratada a criança e o/a adolescente. Existe um sub­registro dos casos. Há estudiosos que chegam a estimar que para cada caso denunciado, haveria mais três sem denúncia. De qualquer modo, é consenso que as estatísticas revelam apenas um esboço do quadro real. São inúmeros os relatos e de abuso sexual contra crianças e adolescentes no Brasil. Várias reportagens são feitas mostrando bordéis localizados em áreas de garimpo e o turismo sexual nos grandes centros. Podemos apontar como principais causas da prostituição infanto­juvenil, a fome, a miséria, a carência afetiva, bem como, o lucro que tal exploração propicia a quem dela se vale. Vemos um país com grandes problemas sociais e a maioria da população vivendo em condições de pobreza e miséria. Explorar sexualmente uma criança ou um/uma adolescente acaba sendo fonte de renda para muitas famílias. Em 1993, o Brasil foi apontado como o segundo do mundo em prostituição infanto­juvenil (só perdendo para Tailândia, pois este possuía à época, cerca de 800.000 crianças e adolescentes envolvidos com a prostituição) cerca de 500.000 (quinhentas mil) 40 crianças e adolescentes na prostituição, 150.000 (cento e cinqüenta mil) só no eixo Rio/São Paulo). Não se pode deixar de citar as áreas de garimpos, na Região Norte do país, que abrigam uma grande quantidade de meninas. Em 2005, a SNDH em parceria com a UNICEF realizou um estudo que revelou a exploração de crianças e adolescentes com fins comerciais em 17% (dezessete) dos municípios brasileiros. E, diante desse resultado, o então ministro da SNDH ­ Nilmário Miranda ­ declarou o intuito de reduzir esse número pela metade até 2006, com relação aos municípios e reduzir o número de crianças e adolescentes envolvidos nesse tipo de exploração. À época não entendemos a declaração da redução dirigida à apenas uma das 39 LEAL, Maria Lúcia P. Relatório do Brasil ­ Exploração Sexual Comercial de Meninos, Meninas e de Adolescentes na América Latina e Caribe: Relatório Final – Brasil. In. Violência y ­Explotacíon Sexual Comercial del Ninõs y Niñas en America latina y el Caribe. Montivideo: IIN/OEA, 2001. 40 Estimativa da UNICEF. O Secretário da SNDH discordou da estimativa, muito embora haja forte ocorrência do problema.
46 formas de exploração sexual infanto­juvenil. Ainda de acordo com a UNICEF, os grandes problemas do Brasil são a miséria, seguida do desemprego e da violência dentro de casa. Segundo diagnóstico, a violência que a criança sofre nas ruas é muito menor do que a sofrida dentro de casa, cometida pelo pai, padrasto, ou irmão. E é, “(...) então, essa falta de respeito, de solidariedade, tudo isso que joga as crianças na rua”41 . O comércio de crianças é outro problema social freqüente e de extrema gravidade que está intimamente relacionado à prostituição. As crianças são vendidas como mercadorias a bordéis e casas de massagens. Junto com tal comércio, vem o seqüestro de crianças para serem comercializadas nas grandes cidades, em áreas de garimpo ou em agenciadoras no exterior. Crianças e adolescentes de classes menos favorecidas é o alvo mais freqüente, já que o empenho policial não é intenso no sentido de encontrá­las e devolvê­ las às suas famílias. Diz o relatório E/CN4/Sub. 2 Ac 2/1984/ NGO/4 da Subcomissão da ONU: Se a compra e venda de pessoas humanas é proibido no mundo todo sobre o nome de escravidão, é claro que os que praticam este comércio (...), ocorrem em graves riscos, tanto mais que as crianças não sobrevivem muito tempo à vida dura que lhes é imposta. Tudo deverá ser feito na mais extrema clandestinidade e serão procuradas crianças indigentes do terceiro mundo a bom preço (sic) tanto mais fácil e tanto melhor se não tem mais família, 42 nem pátria, como por exemplo, as crianças refugiadas. Crianças sem família, crianças maltratadas, crianças vivendo em situação de miséria é a melhor escolha para o seqüestro e conseqüente venda. A promessa de uma vida melhor, muitas vezes leva as meninas a abandonarem suas casas. Um emprego com salário razoável é o grande sonho que as fazem entrar numa aventura desconhecida. A maioria não sabe que estão sendo levadas para zonas de prostituição, sendo enganadas e mantidas presas por donos de bordéis onde são obrigadas a manter relações sexuais com qualquer homem e, caso se recuse são trancadas e ficam vários dias sem comer. Dimenstein transcreve vários relatos dessas meninas, tal como: Miriam não estava entendendo nada. Há três dias viajava pelo rio em busca de um emprego prometido pela irmã. Mas no porto foi recebida pela primeira vez a passarela de madeira que separa o porto da boate, um homem parou­a, pegou­a pelo braço e disse: ‘quero ver se você é boa de cama’. Teve que amargar um mês até se libertar e ir embora da cidade. A regra da boate era dura: se não ‘fizesse salão´ , não comia e ainda tinha de pagar o aluguel do 43 quarto. A desobediência era resolvida no braço. Esse é o depoimento de uma menina de 14 anos, levada à Laranjal do Jari (Sul do Amapá), com a promessa de emprego em uma lanchonete. A própria irmã a enganou e ela se viu obrigada à prostituição. A irmã ganhava dinheiro arranjando meninas para os bordéis em áreas de garimpo. Uma CPI foi instaurada para cuidar do problema da prostituição infanto­juvenil. Os membros dessa Comissão percorreram diversas regiões de garimpos e descobriram, entre outras coisas, que os donos do garimpo pagam, com ouro, aos policiais da região para que eles impeçam a fuga de meninas do garimpo e, 41 UNICEF. Infância em Perigo. In Programa Zoon: TV Cultura. 1998 Op. Cit. p.30. 43 DIMENSTEIN, Gilberto. “Meninas da Noite: a prostituição de meninas­escravas no Brasil. São Paulo: Ática, 1992. p. 55
42 47 conseqüentemente livrá­las da prostituição. São vítimas de todo o tipo de violência e caso se recusem a dormir com algum garimpeiro, algumas chegam à morte. O que, também, se observa com freqüência são meninas que vivem nas ruas agenciadas pelos meninos que igualmente vivem nas ruas. Eles fazem o contrato com o “freguês”, e levam um percentual nos lucros. E, um dado peculiar é que muitas dessas meninas começam a se prostituir após terem sido violentadas pelos próprios meninos de rua. Muitas meninas foram iniciadas sexualmente nas ruas, por um policial ou outro homem qualquer que as estupraram. Outras foram violentadas na própria casa pelo pai ou outro parente qualquer (evidenciado anteriormente). A mãe e o restante da família, muitas vezes se calam diante do estupro porque o estuprador é a base de sustento da família. O Brasil é detentor de uma das maiores concentrações de renda do mundo, onde se aglomeram altos níveis de desigualdade e pobreza, crescente deterioração dos salários, aumento das taxas de desemprego; desigualdades regionais e ocupação perversa da terra. Resumindo alguns dados, relacionamos ainda as seguintes informações:
· Entre 1980 e 1985, enquanto no Brasil a taxa de mortalidade infantil alcançava o índice de 37 óbitos por mil nascidos vivos, o Nordeste se sobressaía com o índice alarmante de 103 por mil. As causas mais freqüentes de mortalidade infantil (infecções intestinais, infecções respiratórias agudas associadas à desnutrição), são causas que podem, perfeitamente, ser detectadas e tratadas e até prevenidas;
· Após sobreviver às intempéries do primeiro ano de vida, a criança proveniente de lares empobrecidos será gradualmente inserida no mercado de trabalho, em geral no setor primário, com vista a aumentar a renda familiar;
· Apesar de realizar uma jornada de trabalho adulta, igual ou maior a 40 horas; praticamente nenhum menor de idade, no Nordeste, recebe mais de um salário mínimo;
· As instituições de recolhimento que se propõe a atender as crianças tidas como “portadoras de conduta anti­social” e/ou “abandonadas”, há muito têm sua função social e sua competência questionadas, em face do caráter perverso e estigmatizante de que se revestiram;
· Ao mesmo tempo em que cresce o número de meninos e meninas de rua, este espaço se afirma cada vez de forma mais irreversível como local de trabalho, que garante muitas vezes o sustento de famílias inteiras;
· Quanto ao uso de drogas, 77,5% das crianças de rua, em São Paulo, utilizam solventes orgânicos e 60% já experimentaram maconha. A idade média de iniciação é de dez anos;
· Sobre a educação, o país detém um índice de analfabetismo de 17%, entre crianças de 10 a 14 anos; o índice eleva­se no Nordeste para 37%. Evasão e repetência escolar são fenômenos associados, principalmente na 1ª Série do 1º Grau. Observou­se, em 1985, que, das crianças que ingressaram na 1ª série, apenas 18,3% concluíram o 1º Grau. As escolas padecem de condições precárias de infra­estrutura e de recursos humanos;
· Quanto à saúde, são péssimas as condições de saneamento básico em que vivem, principalmente, as famílias de baixa renda. O que favorece a proliferação das mais diversas doenças. Mais de 90% das crianças brasileiras de até 04 anos, provenientes de famílias em situação de pobreza absoluta (menos de ¼ de salário mínimo per capita ) vivem em condições inadequadas de saneamento básico. Existem estudos desenvolvidos em todo o mundo apontando que 50% a 80% de crianças em idade escolar usam drogas lícitas ou ilícitas, como forma de “recreação.”
48 Na zona rural, a situação se intensifica:
· Somam­se à ineficácia do sistema de tratamento de esgoto e do lixo, as deficiências crônicas no padrão alimentar e nutricional do brasileiro, tendo assim condições propícias à manutenção do estado de saúde precário da população. No Brasil, apenas 4% das crianças com menos de 12 anos se beneficiam da assistência hospitalar, no Nordeste, o índice é inferior a 3%. Num país em que a população é diariamente fraudada em seus direitos sociais mais básicos, deslocado do interior para a periferia dos grandes centros, sendo obrigada a subsistir em meio a condições miseráveis, é natural que se desenvolvam alternativas de sobrevivência por vezes perversas. Entretanto, não queremos aprisionar a análise da prostituição infantil às condições sócio­político­econômicas da sociedade brasileira, vez que acreditamos estar a questão, também relacionada a certo modo de ver e tratar a criança e o adolescente sob a ótica de um padrão cultural que costuma reduzir o mundo infantil a uma categoria de alienação da realidade. Dessa maneira, é com o silêncio que a sociedade vem se resguardando do processo de implosão que sofrem suas instituições, e a prostituição é um dos reflexos. Segundo Paulo Victor Sapienza, há um aumento de casos de agressão física, espancamento e negligência, totalmente relacionados à família, ou seja, a desestruturação familiar criada pelo desequilíbrio sócio­econômico é a razão que leva o pai, a mãe ou o responsável pela criança a praticar violência contra ela. Entende Sapienza que a maior parte dos casos registrados vem das classes baixas. As denúncias partem de parentes, vizinhos e das próprias crianças. Nas classes privilegiadas, a violência é absorvida e não se transforma em denúncia. Para ele, o afastamento dos pais do convívio com os filhos é o principal motivo para o envolvimento com drogas e a fuga para as ruas e afirma que, quando a família se desestrutura e a criança perde seus referenciais, como o pai e mãe, a rua passa a oferecer vínculos mais atrativos. “Não adianta colocar a criança em uma instituição onde ela não tenha amor e carinho. É preciso ajudar a reestruturar a família para que as crianças tenham carinho e amor 44 dentro de casa e não precisem sair” . De acordo com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos e a UNICEF, a exploração da prostituição infantil atinge 927 dos 5.561 municípios brasileiros 45 . O levantamento (realizado pela Universidade de Brasília), que inclui dados colhidos entre 2002 e 2004, a região que mais apresenta casos é o Nordeste, com ocorrências em 289 cidades (31,1% do total). As regiões Sul e Sudeste, que concentram a maior parte da riqueza nacional, tiveram ocorrências em 402 cidades. Os números refletem a melhor estrutura de proteção à infância nestas regiões, mas também ajudam a derrubar o mito de que a exploração infanto­juvenil se concentra nas regiões mais miseráveis. No Estado de São Paulo (casos registrados em 93 cidades), está na liderança do ranking da exploração sexual infantil, seguido por Minas Gerais, com 92, e Pernambuco, com 63. Segundo os pesquisadores, ainda hoje, não existe um perfil definido vez que acontece em várias classes sociais, econômicas e culturais. Essa violência contra a infância e juventude está ligada à violência intra­familiar, trabalho infantil e drogas, explica a professora Maria Lúcia Leal, da UNB, que coordenou o levantamento. Ao contrário do que se pensa, a prostituição infanto­juvenil não acontece apenas nas classes menos favorecidas. É comum encontrar adolescentes de classe média se prostituindo. Os motivos que levam essas adolescentes à prostituição diferem daqueles que comumente encontramos o desejo de consumo é o mais comum deles. Aquele 44 45 In O Estado de São Paulo ­ 07/11/95. p. C5. Jornal O Globo.
49 produto de marca famosa, roupas, dinheiro para freqüentar lugares badalados, são alguns exemplos que se pode citar. Nos classificados dos grandes jornais encontra­se anúncios de belas garotas para servir de acompanhante para executivos. São universitárias, estudantes, na sua maioria pertencente à classe média. A grande dificuldade encontrada no combate à prostituição infanto­juvenil, é que normalmente as meninas usam documentos falsos, muitas vezes arranjados pelos próprios agenciadores. Regina Stela Braga afirma que “as pequenas prostitutas vendem amendoim, balas, bilhetes de loteria e em nada diferem das meninas que vivem apenas da venda desses produtos” 46 . No Rio de Janeiro, segundo a jornalista, é possível observar diferenças nas meninas, de acordo com o local de prostituição: As meninas da Zona Sul vestem­se com mais cuidado que suas colegas do centro cobram alto e quase sempre em dólar. Algumas moram em apartamento conjugado, dividindo o aluguel entre três e quatro. No centro, o preço é baixo e há meninas de 10 anos de 47 idade que se entregam por um prato de comida. Apesar de iniciativas das entidades civis em combater a exploração sexual de crianças e adolescentes, é notório que falta vontade política no sentido de tratar, com a seriedade devida, o problema da exploração sexual infantil. Não basta apenas acusar a família, responsabilizando­a pelas crianças nas ruas, é preciso dar condições para que essas pessoas cuidem de seus filhos. É necessário investimento, não só de verba, mas de interesse em realmente coibir a exploração de crianças e adolescentes. É um comércio que movimenta muito dinheiro, além da rigidez das leis a certeza da punição tem que se fazer presente, caso contrário nossas crianças e adolescentes continuarão a mercê desses exploradores. 2.4.1 – Análises Comparativas – Prostituição em Fortaleza Durante a elaboração deste estudo, cinco pessoas, que trabalham diretamente com a menina prostituída em Fortaleza (duas educadoras da Pastoral do Menor, duas educadoras do Movimento Terre des Hommes e uma médica) foram entrevistadas, com vistas a colher dados relativos ao desenvolvimento do fenômeno da prostituição infantil em Fortaleza. Analisando comparativamente a caracterização da prostituição anteriormente explicitada e o material colhido através das entrevistas, observamos alguns pontos de convergência e divergência, que passamos a discorrer. Ressaltamos que os dados obtidos em Fortaleza referem­se à situação da menina prostituída nas ruas, em função da dificuldade de acesso às meninas confinadas em bordéis, ou a dados fidedignos sobre elas. O contexto miserável em que vivem essas crianças e suas famílias, o que lhes impõem a inserção precoce no mercado de trabalho como única forma de sobrevivência, desponta como principal motivo, no Ceará, para a menina na rua se tornar menina prostituída, ou prostituta. Assim a menina de rua (em nosso entender, são meninas na rua), em geral, percorre inicialmente o caminho da mendicância, para em seguida ocupar­se com pequenas vendas nos sinais e nas praças, onde finalmente se inicia na “vida”. Ressalte­se o fato de a prostituição infantil se 46 BRAGA, Regina Stela. O triste caminho que ameaça as meninas da rua. O Globo, Rio de Janeiro, 14 de Junho, 1987. Jornal da Família, p.1 47 Idem.
50 deslocar no Centro da cidade para a beira­mar, zona de intenso fluxo turístico, caracterizada pela existência de grande número de bares, restaurantes e bordéis. O deslocamento, longe de ser apenas físico­espacial diz respeito ao grau de envolvimento da menina com a prostituição, captados a partir do uso discriminado de atributos como beleza e poder de sedução. Não é por acaso que a idade das meninas do centro da cidade varia entre 11 e 14 anos, enquanto que na beira­mar encontram­se meninas de até 06 anos de idade. O tráfico de crianças, embora não tenha sido citado pelas entrevistadas, constitui notadamente, uma forma de ingresso da menina na prostituição, e Fortaleza vem se destacando já há algum tempo, como porta de embarque de crianças para o exterior. Uma vez compondo o universo da prostituição, a saúde precária da menina prostituída em Fortaleza é uma conseqüência natural da instabilidade da sua vida na rua, no espaço público onde ao uso abusivo de tóxicos e de álcool soma­se a cuidados corporais efêmeros. Há um acúmulo de doenças mal tratadas e mal curadas, ao uso constante de automedicação, a gestação sucessivas (seguidas de abortos clandestinos), à ineficácia da assistência pública, ao contato com muitos parceiros, à precariedade higiênica dos locais que freqüentam, à ignorância, e tantos outros fatores. No tocante às drogas destacamos o fato de ser comum entre meninas e meninos nas ruas, o uso de misturas de drogas (cola, remédios, thinner e maconha), ao invés de drogas isoladas. As doenças mais comuns às meninas envolvidas com a prostituição infanto­juvenil em Fortaleza (segundo a médica entrevistada) são as de pele, as sexualmente transmissíveis, em especial a gonorréia e a sífilis, e as infecções respiratórias, como a pneumonia e a bronquite, mormente entre aquelas que dormem nas ruas. Ainda de acordo com a médica, há grandes possibilidades de existência de AIDS entre as meninas, apesar de não ter sido constatado nenhum caso À época, entretanto podemos afirmar que, fatalmente essas meninas compõem um grupo de risco muito grande e, a conseqüência maior é o vírus HIV positivo. O que mais impressionou na pesquisa, foi o fato de as meninas mais jovens (em torno de 13 anos), demonstrarem vontade de engravidar. Essa vontade, com o passar dos anos, irá diminuir, até desaparecer por volta dos 16 anos. Dentre as que levam a gravidez até o fim (por vontade ou porque os métodos abortivos não surtiram efeitos), os filhos nascem geralmente, mortos ou morrem nos dois primeiros meses de vida, em função da total instabilidade de suas vidas nas ruas. Diferentemente da análise de Junqueira 48 as “prostitutas” infantis de Fortaleza são negligentes com seus filhos, que são levados para a rua, onde geralmente morrem. A relação das meninas entre si, em Fortaleza, de acordo com as investigações anteriores de Beauvoir 49 e Junqueira 50 , é marcadamente ambígua: amizade/competição. Por um lado, algumas preferem trabalhar em grupo, por medida de segurança, e também para melhor atender à demanda de clientes, por outro, as brigas entre elas são freqüentes, na disputa por clientes, gigolôs (de quem são, por vezes, amantes apaixonadas), por drogas e por vingança. Há quem se refere ao senso de vingança das meninas, observamos um desacordo entre o universo pesquisado por Junqueira 51 pois que, entre as meninas envolvidas com a prostituição em Fortaleza, o senso de vingança está presente, sendo uma das principais causa das agressões físicas entre elas. No tocante ao relacionamento entre meninas e meninos nas ruas ­ de acordo com as entrevistas feitas em Fortaleza ­, situa­se entre a amizade chegando em alguns casos à relações amorosas e a marginalização em função das atividades desenvolvidas 48 JUNQUEIRA, Lia. 1986. Abandonados. São Paulo. Ed. Ícone LTDA. 1986. Op. Cit. 50 Op. Cit. 51 Idem.
49 51 na rua pela menina. No último caso, observamos a reprodução, entre meninos e meninas marginalizados, da atitude de cominação machista inerente à sociedade de uma maneira geral. Interessante ressaltar que determinadas ruas na cidade de Fortaleza eram espaços quase exclusivo dos meninos. A partir de 1987, a quantidade de meninas na rua aumentou, chegando a constituírem 10% (SAS/UNICEF/NUCE­PEC­UFC, 1988). O universo masculino com o qual a menina se relaciona sexualmente na rua compõe­se basicamente dos meninos, dos cafetões e dos clientes. De acordo com o registro de Gaspar 52 , há em Fortaleza o cliente habitual e o circunstancial, e a preferência por um, ou por outro, refere­se ao tipo de atividade sexual exigida, e ao cumprimento do acordo preestabelecido com a menina. São preferidos aqueles clientes que substituem o coito pelas fantasias sexuais e, são preteridos aqueles que se utilizam de violência no ato sexual, ou que se recusam a pagar o acordado. Portanto, a fantasia do cliente, diferente da análise de Beauvoir 53 é bem aceita pelas meninas de Fortaleza. É óbvio que, nem todas as meninas têm condições de manter uma relação sexual completa, inclusive por falta de maturidade genital. Assim, a fantasia do cliente, além de preferencial, pode ser ainda para a menina condição única de acesso à prostituição, e consequentemente ao dinheiro. Segundo uma das entrevistadas, as primeiras experiências sexuais são apontadas pelas meninas como violentas. De igual forma, os espancamentos por parte dos clientes fazem com que as meninas andem armadas e em grupo, para se protegerem de eventuais incidentes. Para se chegar a um perfil claro da menina envolvida com a prostituição em Fortaleza, é necessário acrescentar aos fatores já expostos, a questão da educação e da família da menina, pois são intimamente relacionados com as perspectivas de saída da menina da prostituição. A situação das meninas nos bordéis não pode continuar confinada ao silêncio. Urge que se encontrem vias de acesso a essas crianças e adolescentes, relegadas a um destino tão cruel quanto o abandono sócio­político­ institucional. Registramos que esta sistematização das condições de vida da menina envolvida com a prostituição, deve retornar àqueles que, com seu trabalho cotidiano e pouco reconhecido, nos demonstraram que, a parte todas as dificuldades, algo deve e pode ser feito. Tivemos a oportunidade de participar do “Seminário Internacional sobre Políticas e Programas para a Família” (16 e 17 de Outubro de 1997), em Fortaleza, onde foram expostos trabalhos de quase toda América Latina e do Caribe, no combate à violência intra­familiar como um todo. Merece destaque estudo realizado sobre a prostituição infantil, naquela cidade. Embora os projetos apresentados pela Secretaria do Bem­Estar Social tivessem imbuídos de boas intenções tais como: monitoramento 24 h/dia nas ruas e praias de Fortaleza constatamos in loco que as meninas continuam se prostituindo sem a intervenção dos órgãos participantes do referido Seminário. E, ao dialogar com várias meninas, o que elas dizem é que: “A praia é tão boa (principalmente por causa dos ‘gringos´, (...) não dá nem tempo de guardar o dinheiro de uma relação sexual para outra (...), nós colocamos nos seios”. 2.4.1.1 – A Prostituição no Estado do Espírito Santo No Estado do Espírito Santo, ao contrário de outros Estados brasileiros, a existência da prostituição infanto­juvenil (desde a década de 90), circulou no jornal “A GAZETA” que, há tempos aparecem denúncias dessa natureza. Nos últimos dez anos, 52 53 Op. Cit. Op. Cit.
52 várias reportagens foram feitas com o intuito de trazer à tona o abuso que essas crianças vêm sofrendo. Em 1994, o então presidente do Instituto do Bem­Estar do Menor (IESBEM) revelou que “Vitória, infelizmente, está entre as primeiras capitais do país no índice de prostituição infanto­juvenil” 54 . À época calculava­se que existiam aproximadamente 100 casas de massagem funcionando na Grande Vitória (Vitória, Cariacica, Viana, vila Velha e Serra) que se utilizavam de “menores” na prostituição. Em 1995, Nilcilene Verbeno revelou que existiam, no Estado, cerca de 6.000 crianças e adolescentes envolvidas com a prostituição, sendo que aproximadamente 1.200 estavam na região da Grande Vitória. Falar das causas da prostituição infanto­ juvenil no Espírito Santo é repetir a história de miséria, abandono, exploração e violência, tal qual se encontra na história de milhares de crianças brasileiras. Não é diferente do que foi descrito até então. Ao invés de repetir as conhecidas causas da prostituição infanto­juvenil, prefere­se mostrar o descaso e a falta de estrutura dos órgãos que deveriam se responsabilizar pelas crianças e adolescentes do Estado. Em 21 de agosto de 1993 55 , foi criada a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA), ocorrida dois dias antes, com o que parecia ser o objetivo de combater a exploração infantil de qualquer espécie. Segundo a reportagem, “o Governo deu todos os recursos para um funcionamento perfeito da Delegacia, que será informatizada com a ajuda do prefeito de Vitória” 56 . A intenção era atuar, juntamente, com o Juizado da Infância e Juventude para reduzir o índice de violência cometida contra crianças e adolescentes. Segundo Claudia Feliz: A estrutura dos órgãos ditos competentes na Grande Vitória para combate à prostituição infantil e juvenil é quase nenhuma. A começar pela Delegacia de Proteção à criança e ao Adolescente (DPCA)... Não é segredo que na DPCA equipamentos como máquinas de datilografia e até rádios­transreceptores foram adquiridos com recursos próprios da delegada. O carro da delegacia, um Fiat Prêmio já velho, está freqüentemente com 57 problemas. A fim de colher dados estatísticos atuais acerca da prostituição infanto­juvenil, detectamos através de pesquisas que, o Instituto da Criança e do Adolescente do Espírito Santo, é o órgão administrativo para a execução da Política Estadual de Promoção e Defesa dos Direitos das Crianças e Adolescentes. O “SOS Criança” divulga que a maioria dos casos atendidos referem­se à maus­ tratos, violência sexual, agressão e negligência. No caso de violência sexual, a criança e o/a adolescente são encaminhados para um membro da família ou, na falta deste, para um local especializado. De acordo com relatórios apresentados, a prostituição infanto­ juvenil em Vitória é gritante. As crianças e adolescentes, em geral, vêm de outros Estados, como Bahia e Minas Gerais. Isto se deve ao fato de Vitória ser uma capital litorânea ­ ponto de turismo­, o que levaria à prostituição. Assim como sua 54 VERBENO, Nilcilene. Prostituição de adolescentes aumenta 100% no Espírito Ssnto. A Gazeta, Vitória, 11 jun. 1995.p.34. 55 Jornal A Gazeta: Delegada reprimirá prostituição. Vitória, 21 ago/ 1993.p. 29 56 Idem. 57 FELIZ, Claudia. Crianças invadem mercado de prostituição. A Gazeta . Vitória, 24 nov.1996.p.28.
53 localização atrai crianças e adolescente do interior do Estado do Espírito Santo, em busca de uma vida mais “fácil” e com maior lucratividade e trabalho e que acabam por cair no mundo da prostituição. 2.4.1.2 – A Prostituição no Estado de Mato Grosso A prostituição e a exploração infanto­juvenil são realidades disseminadas em todo o Estado. Entre os fatores que levam à alta incidência da prostituição estão além da miséria, das tradições socioculturais do brasileiro e das pressões da mídia. A cultura coronelista se mantém presente na valorização de práticas sexuais como o incesto familiar, a preferência de sexo com meninas, e a separação entre a mulher do “lar” e as “outras”. Tendo este pano de fundo, é grande o número de usuários que fortalece o surgimento e a manutenção das redes de exploração sexual de meninas. Há praticamente uma estrada de mão única entre a vida da menina na família, na escola e na vizinhança e os diferentes elos nas redes de exploração. Em geral, as meninas dos segmentos mais carentes têm uma iniciação sexual violenta na família. As instituições que poderiam reverter essa situação se mostram ausentes na prevenção e orientação sexual destas crianças (família, escola, posto de saúde, polícia). Ao tomar conhecimento da iniciação sexual das meninas, desenvolvem­se medidas e assumem posturas que as marginalizam do convívio social e a empurram para a rede de exploração. Os fatores que impulsionam – em nosso Estado ­ o quadro da prostituição assumem contornos definidos, tais como: a) Rede que emerge a partir das atividades do garimpo e que é alimentada pelo tráfico de escravas brancas. Este tipo de rede é o maior responsável pelo cárcere privado de meninas e pelo aliciamento de cidades do interior e de outros Estados (preferencialmente Nordeste), e, se localiza no norte de Mato Grosso, tendo como casos mais graves Peixoto de Azevedo e Alta Floresta; b) Rede que se instaura para viabilizar a prostituição nas ruas, bordéis, agências de acompanhamento e que aparecem nas cidades maiores do estado: Baixada Cuiabana, Rondonópolis, Barra do Garças e Cáceres; c) Rede de prostituição infantil vinculada ao narcotráfico, que se localiza nas regiões de fronteira: Cáceres, Pontes e Lacerda, Jauru (fronteira Oeste); d) Rede alimentada pelos usuários (caminhoneiros, motorista de ônibus, policiais) dos serviços existentes ao longo das principais estradas de escoamento agrícola e de abastecimento da região Centro­Oeste; e) Rede de prostituição infantil vinculada ao turismo em Mato Grosso, fazendo­se presente, principalmente, nas cidades do Pantanal (Santo Antônio, Cáceres, Poconé, Mimoso, Rosário Oeste e Barão de Melgaço), e cidades de turismo ecológico (Chapada dos Guimarães e Barra do Garças). Uma pesquisa feita pelo Governo do Estado de Mato Grosso (através da PROSOL­1995), objetivando detectar as condições de sobrevivência das crianças até 06 anos de idade, revelou que, em primeiro lugar, no intervalo definido entre 0,50 a 1,00 (com condições menos favoráveis de sobrevivência) encontravam­se cerca de 42,0% dos municípios do Estado (40). Sua população infantil atingia quase 1/3 (um terço) do total da faixa etária (101.8 mil). Os municípios de Barão de Melgaço deteve o índice de 0,81(o mais crítico deste grupo e de todo o Estado), enquanto que Apiacás obtinha 0,30 e estava no limiar deste intervalo. Mais de 40.0% dos municípios (39) encontravam­se no agrupamento de 0.30 a 0,49 (de condição intermediária, com um contingente de 163.7 mil crianças, 44,8%). Como pior classificado deste grupo figurou o município de Figueirópolis D’Oeste (0,49), enquanto Apiacás deteve a melhor colocação (0,30). Em
54 terceiro lugar, no intervalo compreendido entre 0,00 a 0,29 (de condições mais favoráveis de sobrevivência) ficaram 16 municípios, com um contingente de população infantil um pouco superior a ¼ (um quarto) do total dessa faixa etária (91,9 mil crianças). Tapurá apareceu com um índice de 0.28, enquanto que a melhor condição cabia a Campo Novo do Parecis e a Dom Aquino (0.08). Cuiabá, capital do Estado se situou com um índice de 0,24, algo distante do melhor colocado. Parece evidente, pois, que o Estado de Mato Grosso, tendo grande parcela de seus municípios localizados nos dois primeiro grupos, passa por um momento de transição, já que quase metade de suas crianças ainda se encontra no intervalo de condições médias de sobrevivência. Nos anos de 2006 e 2007, a Polícia Rodoviária Federal (PRF), juntamente com a Organização Internacional do Trabalho (OIT), realizou mapeamento às margens das rodovias federais do nosso Estado e concluiu que chega a 91 o número de pontos vulneráveis de prostituição infanto­juvenil. Até maio do ano passado, 64 pontos haviam sido elencados. A quantidade de pontos localizados garantiu ao Estado, na época, a 11º posição entre as demais unidades da federação. O inspetor Átila Passos Calonga ­ Núcleo de Capacitação da PRF e gestor de ações educativas responsável pela pesquisa em Mato Grosso ­, cita que a localização de novos pontos, não necessariamente, significa que eles tenham surgido após a pesquisa. Foram vislumbrados após implantação de nova metodologia de trabalho, afirma o inspetor. Calonga estima ainda que o número pode ser ainda maior já que o levantamento continua sendo realizado, principalmente no trecho entre Cuiabá e Rondonópolis. A pesquisa aponta que em alguns locais (terminais rodoviários), foram encontrados mais de um ponto vulnerável. Para tanto, cita o caso de um posto situado na saída de Cuiabá (às margens da BR­364), onde foram encontrados três pontos distintos e, antes da mudança de metodologia, apenas um era contabilizado. Afirma o inspetor que a pesquisa ainda está incompleta no trecho da BR­364 que liga Cuiabá à Rondonópolis. Os pontos vulneráveis mapeados abrangem estacionamentos de caminhões, balneários, lojas, paradas de ônibus, lanchonetes, hotéis, borracharias, clubes, postos de caixa eletrônico, povoados, vilarejos, trevos e rotatórias nas estradas, festas freqüentes, praças, casas particulares, viadutos ou pontos espalhados ao longo das estradas. Na referida pesquisa foram identificados 1.918 pontos considerados vulneráveis à ocorrência de casos de abusos sexuais contra crianças e adolescente ao longo dos mais de 60 mil quilômetros de rodovias federais em todo país. Em 2006 foram mapeados 1.222 pontos, demonstrando um aumento de mais de 55% em todo o país. No nosso Estado, no ano de 2006 foram catalogados 52 pontos. Isso representa um aumento de 12% se comparando com as informações obtidas em 2007. A identificação desses locais foi possível graças ao mapeamento dos corredores viários do país. O relatório é elaborado pela Divisão de Combate ao Crime, com apoio da Coordenação de Inteligência e de 151 Delegacias da PRF. A pesquisa servirá de parâmetro na elaboração de estratégias para combater a exploração sexual infanto­juvenil. Só em Mato Grosso cerca de 4,8 mil km de estradas federais por onde circulam o equivalente a 10 mil veículos (a grande maioria carretas e caminhões) diariamente, o que termina por fomentar a prostituição, necessita de uma intensa mudança cultural, diz Calonga. De acordo com a Secretaria Especial dos Direitos Humanos (SEDH), existem 930 municípios vulneráveis à exploração sexual. A prostituição infantil não está ligada somente ás cidades turísticas, mas também ao interior, especialmente nas fronteiras com outros países. E, de acordo com o promotor da Vara da Infância e Juventude – Dr. José Antônio Borges­, este, avalia que para se combater efetivamente a questão da prostituição infanto­juvenil são necessários investimentos pesados na criação de Varas e Promotorias Especializadas e aplicação de punições rigorosas. Hoje, os crimes sexuais
55 contra crianças e adolescentes são distribuídos nas cinco varas criminais de Cuiabá. Ele avalia ainda que o trabalho de investigação deve ser mais profundo pela Polícia Judiciária Civil. Segundo o promotor: Em eventos como rodeios e festas agropecuárias o que existe é uma verdadeira festa de prostituição. Sabe­se que centenas de mulheres são contratadas, e dentre elas, estão menores. Sofre­se de uma acomodação olfativa sobre a questão. Quem mora com o lixo ou próximo de um curtume termina se acostumando ao odor, deixa de incomodar, mas está ali, presente, todos os dias. A elite se incomoda com a violência, mas esquece do que essas crianças 58 sofrem. O membro do parquet matogrossense critica ainda as campanhas que não trazem no seu âmago perspectivas de mudanças, ou seja, de uma vida digna para crianças e adolescentes que vivem submersos num mundo de qualidade tão ruim. Essas campanhas estão pautadas em leis cujas funções seriam moralizar e reprimir atuações exploradoras de indivíduos, entretanto, não se vê ações efetivas para sobrevivência desses jovens, há um total descaso com sua realidade social. De igual forma o então coordenador dos Conselhos Tutelares de Cuiabá, professor Edinaldo Gomes de Souza, considera nulas as medidas adotadas, já que o investimento é pequeno na criação de programas, que de fato, atendem as necessidades dessas jovens. Ele traça um perfil das meninas que foram localizadas e encaminhadas para atendimento pelos Conselhos, são jovens com idade entre 12 e 16 anos, semi­alfabetizadas e de famílias extremamente pobres. Assegura o Coordenador “que prostituição acaba entrando na vida delas como forma de ter acesso a bens materiais e comida, muitas vezes”. As garotas servem também a outro propósito como a venda de entorpecentes e drogas lícitas. A proibição do comércio de bebidas é tida como positiva já que vai reduzir a oportunidade de encontros. “O uso do álcool, muitas vezes, fomenta esses encontros sexuais”, diz o Coordenador. 59 Em 2008, os seis Conselhos Tutelares de Cuiabá (Pedra 90, CPA, Santa Isabel, Coxipó, Centro e Planalto) registraram 87 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes em Cuiabá. Somente a Delegacia de Defesa dos Direitos das Crianças e dos Adolescentes (DEDDICA) registrou 49 boletins de ocorrências envolvendo crimes sexuais como estupros, atos obscenos, sedução, atentados violento ao pudor, entre outros. 60 O número de ligações para o Disque­Denúncia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual contra crianças e adolescentes no ano de 2007 chegou à 24.924. 2.4.1.3 – A Prostituição em Cuiabá Conforme dito alhures, pesquisas mostram que a prostituição infantil está presente na maioria dos municípios do Estado. Crianças e adolescentes de Mato Grosso estão se prostituindo, cujo diagnóstico faz parte de um levantamento divulgado (12/12/2008), pela Secretaria Especial de Direitos Humanos (MJ). De igual forma, confirmaram­se, também, casos em todas as capitais brasileiras e em 910 cidades do interior do país. 58 Jornal A Gazeta. 02/03/2008. Idem. 60 Fontes: Conselho Tutelar e DEDDICA.
59 56 Ressaltamos que em 2004, o governo federal, através do Disque­Denúncia recebeu 80 casos referentes à Mato Grosso, colocando­o em 19º Estado em quantidade de relatos. A exploração sexual se faz presente em municípios da região norte como Juára, Peixoto de Azevedo, São Félix do Araguaia e Sorriso e também em grandes centros como Várzea Grande, Rondonópolis e a capital, de acordo com dados estatísticos apresentados acima. Segundo os pesquisadores, o número pode ser ainda maior, já que o estudo compilou dados de quatro relatórios: a) Uma pesquisa sobre rotas de exploração sexual (PESTRAF); b) Um mapa da Polícia Rodoviária Federal (PRF) sobre pontos de prostituição nas rodovias; c) Ligações para o Disque­Denúncia sobre a CPI da Exploração Sexual Infantil, concluída em julho de 2004. Esse estudo teve a participação da Universidade de Brasília (UnB) e do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF). Constatou­se durante a pesquisa que a pobreza está diretamente ligada à prostituição infantil. Há uma relação entre a situação de pobreza e exclusão social e a incidência de ação das redes criminosas na cooptação dessas crianças, afirma a coordenadora do estudo, Elizabeth Leitão (SDH). Nesse sentido, a coordenação das Casas da Retaguarda depreende outro traço comum nesses casos, ou seja, a falta de estrutura familiar. Na maioria dos casos, o pai além de ser pobre financeiramente, é alcoólatra, há irmão preso por homicídio, mãe conivente ­ tudo isso faz parte da vida de várias das adolescentes que encontram refúgio nas Casas. Há relatos de casos como da adolescente “Aninha” 61 (16 anos), que após ter sido corrigida pela pai porque desobedecia suas ordens para não sair à noite, foi abrigada na Casa da Retaguarda. Meses depois se evadiu, vindo a ser estuprada logo em seguida, fato que culminou com uma cirurgia gravíssima. E, o pior, o pai não a quer receber de volta à casa, bem como sua mãe (que é separada do pai). Noutro caso, “Maria” 62 (17 anos), grávida de 08 (oito) meses foi para a Casa de Retaguarda logo após ter sido espancada em um bar onde se prostituía. Relata a adolescente que começou a fazer programas aos 11 (onze) anos de idade. Em seguida teve que deixar a escola, segundo ela “às vezes achava bom, outras não, todos brigavam muito comigo”. Maria diz que entrava em boates, consumia bebidas alcoólicas e freqüentava motéis. E, como não podia deixar de acontecer, traficava pasta base e cocaína. Maria termina seu relato dizendo: “quero trabalhar e estudar”. Geralmente, o perfil das adolescentes que ficam na Casa de Retaguarda apresenta história de violência sexual na família. Na maioria dos casos são violentadas pelo pai, padrasto, irmão, tios, amigos, etc., desde a mais tenra infância. E, como somos sabedores, essas adolescentes têm que fazer uso de psicotrópicos a fim de atenuar as seqüelas deixadas pela violência praticada. É muito comum se deparar com “pontos” de prostituição infanto­juvenil nos bairros da grande Cuiabá (CPA, 1º Março, Morada do Ouro, etc.). Existem casos na grande Cuiabá, em que cafetinas estão levando meninas de 08/10 anos para colocar silicone nos seios e nas nádegas, a fim de ficarem atraentes para seus clientes. 2.4.2 – Do Turismo Sexual Infantil A prostituição infantil e o turismo sexual, duas práticas muito comuns no Sudeste Asiático, cresceram na América Latina e transformaram­se em um problema de grandes 61 62 Nome fictício. Idem.
57 proporções. Especialistas concordam que o aumento do abuso sexual a menores deve­se à extrema pobreza e à mudança das estruturas familiares, com destaque para o aumento do número de mulheres solteiras com filhos. O Brasil é um dos poucos países do mundo com uma espécie de vocação natural para o turismo sexual, detentor de um dos maiores e mais promissores potenciais turísticos do planeta. Entretanto, transforma esse mesmo paraíso em alvo preferido de uma das práticas mais violentas contra a dignidade humana: o turismo sexual. Um tipo de turismo nocivo em que as principais vítimas são crianças e adolescentes de ambos os sexos. O país tenta ser vigilante para que nossas crianças e adolescentes sejam vigiadas, mas, falta vontade política de dar continuidade ao que já foi implantado. Como estratégia de combate a esse tipo de ação que denigre a imagem de todos os países envolvidos, (tanto os emissores como os que recebem esse tipo de turista), o Brasil fez uma proposta à Organização Mundial de Turismo, convocando todos os países membros da Convenção das Nações Unidas sobre os Direitos da Criança, a instituir normas, estratégias e legislação específica para o combate à Exploração e ao Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes. Quanto à ocorrência desses problemas especificamente no Brasil, a EMBRATUR adotou duas frentes de combate: mercados emissores e mercado doméstico. Uma das principais ações da EMBRATUR nessa campanha é a de mobilizar todos os segmentos envolvidos no mercado de turismo, como: hotéis, agências de viagens, bares e transportadoras, cujo objetivo é evitar o abuso sexual de crianças. E, em havendo comprovação de que uma dessas empresas se envolveu com alguma forma ou prática de turismo sexual, a Embratur tomaria as providências cabíveis. O turismo sexual é um grande problema existente no Brasil, principalmente nas cidades litorâneas. Diversas agências de turismo espalhadas pelo mundo vendem seu “pacote” de viagem com a criança já incluída. Nas cidades da região Nordeste, onde a exploração de meninas para atender ao turismo sexual é mais intensa, existem verdadeiras “máfias” envolvendo taxistas, garçons e gerentes de grandes hotéis. Normalmente os taxistas oferecem as meninas aos turistas e já os levam para um local onde, com certeza, ele (o turista) poderá manter relações sexuais com essa menina. Um detalhe que serve ainda mais para agravar esta situação, é que todas as meninas gostariam de ter uma vida diferente (casar, ter filhos, uma profissão, um emprego). Não gostam da vida que são obrigadas a levar, os depoimentos dessas meninas – “garotas de programas”, são imbuídos de tristeza, falta de esperança e descrença total, senão vejamos: Eu acho que isso não é uma vida digna, nem par mim, nem pra ninguém, entendeu? Eu acho que uma vida assim, eu acho que ninguém quer (...) tem muita gente que fala: ‘pôxa, uma vida assim é fácil’, mas não é fácil, não 63 . Outra menina: ­ Eu não gosto dessa vida na rua. Eu continuo porque não tenho nada para fazer. Não tenho outra coisa pra fazer, entende? Eu não vou viver de vento, né? (...) Eu queria ser professora 64 . Gastou­se muito dinheiro, erroneamente, para promover o Brasil como o país de mulheres bonitas. Esse erro de enfoque de publicidade e de marketing voltados, principalmente, para o exterior criou a distorção do turismo sexual. Americanos e europeus passaram a visitar o Brasil em busca de companhia e não mais pelo interesse cultural e paisagístico de nossos pontos turísticos. O impacto negativo do turismo sexual 63 64 Rede Globo. Globo Repórter. Prostituição de Crianças e Adolescentes. Rio de Janeiro. 1993. Idem.
58 só tende a crescer e a afastar os verdadeiros turistas principalmente, a partir da constatação do envolvimento de crianças. Com a edição da campanha nacional contra a Prostituição Infanto­Juvenil, intitulada: “Cuidado, o Brasil está de Olho”, o país prova que não tem nenhuma conivência oficial com esta prática. E na tentativa de varrer este subproduto de seu território, tem feito acordos com as autoridades dos países emissores de turistas; buscando também coibir as agências de turismo brasileiras que participassem deste tipo de “pacote”. O crescimento do turismo sexual no Brasil é tão grande que vem colocando nosso país à frente de Bangcoc ­ Tailândia onde essa prática é tolerada. Essa máfia vem se espalhando pelo país e já registram casos de hoteleiros do Nordeste que sofreram boicote porque se recusaram a aceitar este tipo de prática turística. As medidas contra o turismo sexual são fundamentais para preservar a imagem de o país consolidar um marketing positivo, que aponte para as nossas potencialidades turísticas e para o vigor de uma das dez maiores economias do planeta. Este tipo de subproduto turístico só serve para minar as bases da indústria turística nacional porque tem um efeito moral devastador, principalmente no MERCOSUL e nos Estados Unidos. Poucos produtos dependem tanto de emoções positivas como o turismo, mas elas precisam ser cultivadas pela publicidade e pelo marketing, com responsabilidade. Por causa deste fator é tão importante o repúdio ao turismo sexual. Paralelamente, torna­se importante consolidar o marketing externo do país, com verbas e divulgação compatíveis com as grandezas do Brasil, motivando os estrangeiros a se transformar em turistas em potencial. Temos alternativas para todos os gostos – pesca, praia, ecoturismo, estâncias, parques temáticos, etc. Em turismo, quando o problema existe, não se pode ignorar. Temos de assumir e buscar soluções. Foi o que fizeram as autoridades de Miami, quando os turistas em carros alugados viraram alvo de assaltantes. Ao negar a prática de turismo sexual, o Brasil está afirmando que concebe a indústria turística como atividade significativa dentro da economia nacional. Aliado ao Turismo como fonte de exploração de crianças e adolescentes, estão as revistas e filmes pornográficos, encontrados em larga escala no mercado. Crianças são fotografadas e filmadas praticando sexo oral e tendo relações sexuais com adultos. É um comércio bastante lucrativo. Dos anos 60 para cá se vendem na América e na Europa fotografias e filmes onde crianças de 06 (seis) anos e até menores fazendo sexo oral entre elas e adultos. A revista Little girl (meninas) oferece fotografias de crianças de 10 (dez) e 12 (doze) anos em poses sexuais com homens adultos. [...] e mais, das estatísticas da polícia e da lista de assinantes de material pornográfico, se calcula que nos EUA (e, 1982) 1.200.000 menores de 16 (dezesseis) anos estejam envolvidos pela 65 comercialização sexual. Com a Internet, o problema se agrava ainda mais. É possível encontrar na rede, fotos de crianças mantendo relações sexuais com adultos. Configura­se a tão decantada Pedofilia, que há mais de 10 anos temos tomado conhecimento através da mídia, a exemplo de uma reportagem 66 , em que um rapaz encontrou a imagem de uma menina de aproximadamente 08 (oito) anos mantendo relações sexuais com um adulto. A imagem foi gerada por um dos computadores da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz 65 66 LORENZI, Op. Cit., p.31. BARROS, Andréa. Revista Veja. Rede proibida. São Paulo, n. 1531, 28 jan. 1998.
59 – ESALQ – da Universidade de São Paulo, por um de seus funcionários. Das 574 imagens geradas pelos computadores da ESALQ, 72 são de crianças e 44 de adolescentes. Outros órgãos públicos já foram acusados de colocarem fotos pornográficas nos computadores do local de trabalho. São citados pela reportagem – um funcionário da Secretaria de Saúde de São Paulo e da Universidade de Campinas que mantinha “[ ...] um endereço na rede para discussão da pedofilia, que, na verdade, se transformou em espaço para troca de dicas de locais da Internet em que se podia encontrar fotos eróticas de crianças” 67 . O problema maior é que qualquer usuário da rede pode ter acesso a esse tipo de foto, bastando apenas descobrir onde encontrá­las. A Internet é hoje utilizada por milhares de pessoas, inclusive crianças que, a qualquer momento podem encontrar este tipo de material pornográfico. Infelizmente, no Brasil, a pedofilia – inobstante a CPMI que tramita no Congresso – ainda é apenas uma patologia (de difícil cura, vez que o único remédio seria a castração química); entretanto, segundo o Segundo o Senador Magno Malta: “Enquanto a pedofilia não for tipificada como crime em nosso Código Penal, ela não será encerrada”68
. E, o mais curioso é que o Senador foi convidado por vários países para proferir palestras acerca do assunto e, muitos desses países já estão legislando e punindo os pedófilos. Nesse sentido, a Bélgica saiu à frente vez que suas crianças estão sendo protegidas da Pedofilia na Internet através do Kids card (cartão inteligente de identidade que autentica a criança nos sites de chat), através do certificado digital armazenado no chip, garantindo assim que estejam conversando com crianças da mesma faixa etária. A lei aprovada para a implementação dessa tecnologia levou o país a oferecer aos belgas um novo direito por meio do aplicativo da web “My File” (“Meu arquivo”). Esse serviço permite que todos os cidadãos belgas saibam quem consultou seus dados pessoais. Isso porque cada acesso por oficiais do governo aos dados no registro nacional ficará gravado em um banco de dados no qual também ficará registrada a identidade, a data e a localização do agente que leu ou usou os dados do cidadão. Além disso, um formulário para questionamentos ou reclamações estará disponível e poderá ser enviado para solicitar que a administração explique as razões dos acessos mencionados. No Brasil, o Centro de Estudos, Resposta e Tratamento de Incidentes de Segurança registrou, no segundo trimestre de 2008, um aumento de 96% de tentativas de fraudes virtuais em relação ao primeiro trimestre do mesmo ano e de 114%, em comparação com o segundo trimestre de 2007. Esses números corroboram, sobremaneira, na denúncia de um grande problema, ou seja, sem a presença física dos usuários, como provar que eles são quem realmente afirmam ser? E como assegurar que as informações trocadas na rede mundial de computadores não serão lidas, interceptadas, modificadas e armazenadas por outra pessoa? Destarte, o governo brasileiro tem investido na regulamentação do uso da internet e prevê punições (Lei dos Crimes Digitais). De igual forma, as empresas de tecnologia têm investido no aprimoramento de segurança e certificação digital. E, como dito alhures com relação à Bélgica, a tecnologia mais usada é o smart card, (adotado por bancos, operadoras de telefonia GSM e governos como método de identificação e autenticação). Esta tecnologia é uma excelente resposta ao problema dos crimes digitais, pois é um dispositivo seguro e à prova de fraude. 67 Idem. Seminário: A Influência da Pedofilia nos casos de Abuso e Exploração de Crianças e Adolescentes. Câmara dos Deputados – Brasília­DF. 06­11­2008. Representamos a OAB/MT no Evento.
68 60 Um estudo, recentemente divulgado pela Frost & Sullivan, aponta que em 2012 o mercado de smart cards será 43% maior do que o de 2006, contabilizando uma importante receita de US$ 775.4 milhões na América Latina. 3.0 – Da Pr evenção da Violência Sexual A literatura enfatiza a importância (fundamental) da prevenção, embora reconheça as dificuldades que as medidas preventivas apresentam. Países desenvolvidos, principalmente os EUA, têm­se empenhado já há algumas décadas em estudar, pesquisar, diagnosticar e denunciar esse problema. Contam, para essa tarefa, com instituições que acompanham as famílias, vítimas e abusadores, tentando dessa forma, romper o círculo vicioso vítima­abusador que tem caracterizado o fenômeno. Esclarecemos que, em relação aos abusos sexuais praticados por estranhos, é necessário desenvolver estratégias de detecção de fatores de risco, relacionados com o ambiente (situações de aliciamento), bem como criar mecanismos de segurança do Estado e da própria comunidade a fim de prevenir os abusos sexuais contra a criança e o/a adolescente. Analisamos as relações existentes entre crianças e seus pais, particularmente no que diz respeito aos abusos sexuais e violências físicas. Sugerimos algumas medidas preventivas com relação à prática médico­hospitalar, atendimento em Pronto­Socorro, tais como: reestruturação dos espaços físicos, sensibilização da população para o problema, mobilização dos profissionais de saúde, preparação e educação para a paternidade e sensibilização dos órgãos públicos para a necessidade de encontrar soluções reais e eficientes tanto para esses pais como para essas crianças e, principalmente, a criação e implementação de um Comitê de Defesa da Criança e do Adolescente em todos os hospitais, pronto­socorros, postos de saúde, etc. Nesse diapasão, Azevedo e Guerra (1985) apontam a necessidade de se combater uma cultura sexofóbica, sexodiscriminativa e sexoviolenta e, obviamente, combater a educação sexista que em geral meninos e meninas recebem cotidianamente. Nesse sentido, afirmam que um programa bem sucedido de prevenção da violência sexual doméstica contra crianças e adolescentes, deve assumir, no mínimo, três compromisso fundamentais: 1º­ Compromisso comum à visão positiva da sexualidade humana, admitindo a legitimidade do prazer sexual e da diversidade de manifestações sexuais e, em especial, da sexualidade humana infantil; 2º­ Compromisso com uma cultura sexofílica que diga não à díade sexualidade + violência, e sim, à díade sexualidade + afeto. Uma cultura que postule a bondade da sexualidade (“sexo com amor”), e o respeito à vontade sexual do outro (como exercício de limites); 3º­Compromisso com uma educação de gênero igualitária que condene a transformação da diferença de sexo em diferença assimétrica de gênero e oportunidade de dominação do sexo masculino sobre o feminino socialmente definido como “segundo sexo”. As pesquisas na área apontam a prevenção como a estratégia privilegiada para combater com mais eficácia a (re) produção da violência doméstica. Citaremos três níveis de prevenção conhecidos: a­ Primária: todas as estratégias dirigidas ao conjunto da população num esforço para reduzir a incidência ou o índice de ocorrência de novos casos. As estratégias adotadas incluem, de modo geral, programas de pré­natal que abordam a temática e reforcem os vínculos pais­filhos, programa de treinamento para pais em escola
61 (especialmente para adolescentes), campanhas pelos meios de comunicação, palestras, debates; b­ Secundária: envolve a identificação precoce da assim chamada “população de risco”. As estratégias incluem visitação domiciliar para prover cuidados médico­sociais aos pais do “grupo de risco”, os “telefones de crise”, aos quais se recorre em momentos difíceis, obtendo ajuda e encaminhamento especializado; recepção de auxílio material; programas de creches para as crianças do “grupo de risco”; c­ Terciária: dirigidas aos indivíduos que já são agressores ou vítimas no sentido de reduzir as conseqüências adversas do fenômeno ou de evitar que o indivíduo sofra o processo de incapacidade permanente. O jornal “Amparo ao Menor Carente” ­ MENCAR ­ veiculou em uma de sua edição (março/abril de 1996) 69 , as principais propostas resultantes do Seminário Contra a Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes nas Américas para equacionar essa problemática, quais sejam:
· Prioridade com relação ao problema da exploração sexual na definição ou redefinição de políticas de modo a garantir recursos financeiros e humanos apropriados para sua implementação, identificando os grupos mais vulneráveis e empreendendo ações concretas para atende suas necessidades;
· Formulação de estratégias de mobilização social para despertar e criar a consciência pública de forma que todos os membros da sociedade assumam o compromisso de eliminar a exploração sexual de crianças e adolescentes;
· Criação de uma rede de serviços integrados de caráter político e social, no âmbito da exploração sexual, para a prevenção, proteção, defesa e atendimento às crianças e aos adolescentes, ampla divulgação dos serviços e garantia plena de acesso da população a esses serviços;
· Adoção e implementação por todos os países envolvidos, de leis protetoras e punitivas, baseadas na Convenção dos Direitos da Criança, conforme o compromisso assumido pelos Estados, devendo inclusive seguir o principio da extraterritorialidade da lei, para eliminar a prática da exploração sexual;
· Adoção por parte dos meios de comunicação, de um compromisso ético no trato das questões relacionadas com a criança e adolescente para garantir o respeito à sua dignidade. Nesta perspectiva, a capacitação dos profissionais dos meios de comunicação é determinante;
· Subscrição pelos governos dos países americanos, das estratégias internacionais e regionais, definidas no Congresso Mundial contra a Exploração Sexual e Comercial da Criança. Seguindo essa linha de pensamento ­ para a compreensão da violência a que são submetidas as crianças e adolescentes ­, Azevedo e Guerra 70 propõem como ponto de partida a criação de modelos explicativos, tais como: os modelos unidimensionais, os modelos multidimensionais, e o modelo interativo multi­causal. Muito embora esses modelos sejam propostos para a violência doméstica, podem ser utilizados, também, para explicar o fenômeno da violência de uma forma mais ampla, englobando situações de violência não­doméstica. Os modelos unidimensionais podem ser representados por dois tipos: um cujo pressuposto é o da causalidade linear entre características psicopatológicas e/ou sociais dos agressores e ocorrências de abusos de crianças e adolescentes e o outro que se preocupa com a relação causal não tanto entre as características do agressor e o abuso, mas sim entre as características da criança e do/a 69 70 Cumpre observar a data das referidas propostas: 1996. Op. Cit. 121.
62 adolescente vítima e o abuso. Esses dois tipos de explicações unidimensionais têm em comum seu caráter determinista. 3.1 – Como Intervir e Prevenir a Exploração e a Violência Sexual Para intervir e prevenir a exploração e a violência sexual contra crianças e adolescentes é preciso que ­ além de se criar uma Rede de Atendimento multiprofissional e interinstitucional – é imperioso que essa Rede seja devidamente implementada e funcione atuando, principalmente nas seguintes áreas:
· Notificação: é fundamental para o conhecimento da ocorrência do fenômeno, pois possibilita o planejamento da intervenção. Preferencialmente, deve ser centralizada em um único local como, por exemplo, no Conselho Tutelar. Para tanto, os médicos dos Pronto­Atendimentos, Pronto­Socorros e demais Postos devem atentar para a Notificação, vez que a mesma será o ponto de partida para uma investigação da violência praticada 71 ;
· Diagnóstico: comprova a ocorrência, verifica a gravidade e o risco que oferece tanto para a vítima quanto para as demais crianças e adolescentes da família. Define as medidas mais adequadas da intervenção nos planos social, jurídico, psicológico e médico;
· Intervenção: deve ser planejada, tomando as medidas cabíveis mediante a gravidade de cada caso. Tipos de Inter venção:
· Jurídica: pode ser aplicada através dos Conselhos Tutelares, das Varas da Justiça da Infância e Juventude ou das Varas da Justiça Criminal;
· Social: viabiliza a hospitalização da vítima (se necessário), a sua colocação em família substituta ou em abrigos (medida provisória);
· Médica: aplicadas em decorrência de seqüelas orgânicas provenientes da violência. Deve ser realizada em hospitais e, incluir a vítima em algum programa de proteção;
· Psicoterapêutica: aplicadas conforme o caso, observando a idade da vítima, tipo de família, tipo de abuso, etc. Pode ser psicoterapia familiar, para vitimizados, bem como para o agressor;
· Pesquisa: periodicamente deve se realizar pesquisas, tanto para construir estatísticas confiáveis, como para planejar as intervenções;
· Prevenção : é a estratégia privilegiada para combater a (re) produção da violência contra crianças e adolescentes. 71 Os casos notificados apresentam grande importância, pois é por meio deles que a violência ganha visibilidade, permitindo o dimensionamento epidemiológico do problema e a criação de políticas públicas voltadas à sua prevenção. O artigo 66 do Decreto­Lei 3.688 de 1941 reconhece como contravenção penal, a omissão do profissional de saúde que não comunicar crime do qual tenha tomado conhecimento por meio do seu trabalho. O não cumprimento acarreta pena pecuniária. A interpretação desse artigo remete à idéia de que o profissional de saúde deverá comunicar crime cometido contra qualquer pessoa, independentemente de idade ou gênero da vítima. O Estatuto da Criança e Adolescente afasta uma política meramente assistencialista, e cria uma estrutura que protege e defende esse grupo, haja vista o preconizado no seu artigo 13 em que a notificação dos casos, mesmo que suspeitos de maus­tratos passou a ser obrigatória. Nesse sentido, Braz & Cardoso (2000) afirmam: “ (...) todos os profissionais entrevistados, mesmo diante de fortes suspeitas de maus­tratos contra crianças, tendem a não denunciar o caso”.
63 Níveis de Prevenção:
· Primária: destina­se à toda população, pode ser realizada através de programas de educação sexual, palestras, debates, campanhas educativa;
· Secundária: objetiva a identificação precoce das crianças em situação de risco pessoal e social, impedindo a ocorrência e/ou repetição da violência. Atua em situações já existentes;
· Terciária: visa o acompanhamento integral das vítimas e dos agressores. 3.1.2 – Da Educação Sexual Preventiva Uma forma de tratar a violência sexual contra crianças e adolescentes e contribuir para o rompimento do “pacto do silêncio” pode ser feita por meio de uma política de educação sexual, com profissionais da área, altamente capacitados. Uma política que chegue às escolas, aos centros comunitários. Afinal, este fenômeno acaba mexendo, diretamente, com a sexualidade humana. A educação sexual trabalha a auto­estima, o conhecimento do corpo – suas necessidade e potencialidades. E isso fortalece a pessoa, ajudando­lhe a enfrentar o problema. Os programas de educação sexual proporcionam, entre outras coisas, condições para que crianças, jovens e adultos tenham uma visão mais clara do fenômeno. Assim podem se defender, evitar certas circunstâncias, denunciar e dizer não à violência. Uma das formas de enfrentamento e combate à exploração e violência sexual contra crianças e adolescentes é a articulação dos diversos atores responsáveis pela promoção, defesa e garantia dos direitos humanos por meio de FORUNS de Defesa. Os Fóruns têm por objetivo conscientizar a sociedade sobre a realidade da população infanto­juvenil, aglutinando vários setores para desencadear um processo educativo de combate à violência, bem como fomentando a elaboração de políticas públicas efetivas para essa população. Suas estratégias seguem três eixos:
· Conscientizador – para que possibilite à sociedade refletir sobre as causas e conseqüências da violência na vida da criança e do adolescente;
· Educador – para que provoque mudanças de atitudes (individual e institucional);
· Repressor – para que identifique, denuncie e articule a punição dos agressores não somente nos casos de exploração e violência sexual, mas, em todos os casos de violação de direitos da criança e do adolescente. As ações dos Fóruns não têm o escopo de substituir serviços já existentes. Mas buscam a potencialização dos mesmos, bem como a posição de diretrizes para uma política de atendimento aos direitos das crianças e dos adolescentes. 3.2 – Das Conseqüências As jovens nos países em desenvolvimento são três vezes marginalizadas – primeiro por ser mulher, segundo porque fazem parte de uma família de baixa renda, e a terceira vez por ser menor de idade. Basicamente as dificuldades que essas mulheres enfrentam são prelúdios de suas vidas como adultas. Em relação à sua condição de saúde, as contrariedades que começam desde o seu nascimento têm conseqüências a longo prazo. A vida dessas jovens tem muitos riscos: gravidez indesejada e/ou de alto risco, experiências sexuais precoces e abuso sexual expostas às doenças sexualmente transmissíveis como sífilis, gonorréia, AIDS, problemas de doença mental, incluindo vício em drogas e má nutrição.
64 No mundo, por ano, 15 milhões de adolescentes entre 15 e 19 anos dão à luz, 80% destas, em países em desenvolvimento. Na América Latina, 50% das mulheres se tornam mães antes dos 20 anos. Esse tipo de gravidez precoce é acompanhada, muitas vezes, pela alta taxa de mortalidade materna, mortalidade infantil e aborto clandestino e arriscado. Uma das características mais comuns entre as mulheres jovens de baixa renda é a gravidez precoce não desejada. Importante atentar para esse tipo de gravidez, não somente porque são numerosas, mas porque mostram que desde pequenas elas não têm controle sobre seus próprios corpos e suas vidas. Outro fator maior que contribui para a alta taxa de mortalidade materno­infantil entre mães adolescentes nos países em desenvolvimento é o aborto perigoso e induzido. É calculada a existência de 10 a 20 milhões de abortos clandestinos de mulheres de todas as idades nos países em desenvolvimento. Considerando que de 10% a 20% das mulheres que dão à luz são adolescentes, é provável que seja proporcional ao número das que abortam. Baseado nesses números, os abortos ocorridos entre adolescentes nos países em desenvolvimento está entre 1 milhão a 4,4 milhões por ano. O impacto desses abortos perigosos é significante. Enquanto faltam dados exatos, vários estudos e a evidência dos números, os países em desenvolvimento mostram que as adolescentes compõem a porcentagem significante das 200.000 mortes que ocorrem cada ano. 3.2.1 – Das Doenças Sexualmente Transmissíveis Em virtude da alta taxa de pessoas que iniciam sua atividade sexualmente muito cedo e a resistência ao uso de preservativo (camisinhas), os dados disponíveis mostram que as jovens de baixa renda correm maior risco de pegar doenças sexualmente transmissíveis, incluindo AIDS/HIV. Além disso, muitas delas usam o sexo para sobreviver – sexo em troca do dinheiro, abrigo ou proteção – ou outras relações sexuais que exploram, muitas vezes não têm como e não pode exigir de seus parceiros o uso da camisinha. Como acontece a gravidez precoce, a prevenção das doenças sexualmente transmissíveis entre mulheres jovens nos países em desenvolvimento é atrapalhada pelos preconceitos sociais e vergonha dos adultos com a sexualidade do adolescente. Assim, limita o tipo de informação a serviço aos quais essas jovens têm acesso. Exemplificaremos a dimensão do problema das doenças sexualmente transmissíveis entre adolescentes de baixa renda. Na Tailândia, uma fonte revela que 6% dos 10.000 portadores de vírus do HIV positivo, são prostitutas entre 15 e 20 anos de idade. Outra fonte calcula que 70% das 700.000 prostitutas são contaminadas com alguma doença sexualmente transmissíveis. Em Uganda, o Ministério de Saúde relata que, entre as 800.000 pessoas de com HIV positivo, há duas vezes mais mulheres de 15 a 20 anos do que homens da mesma faixa etária. Nos Estados Unidos, o vírus HIV está aumentando rapidamente entre jovens de famílias de baixa renda e, mais ainda, entre mulheres que deixaram de estudar. Dados do Centro Nacional de Controle das Doenças (U.S. Center for Disease Control), referentes as jovens de baixa renda, com idade entre 16 a 25 anos, descobriram que, entre 1988 e 1990, o número das mulheres contaminadas dobrou, enquanto diminuiu o número dos homens contaminados. Foram examinadas 50.000 mulheres e quase 120.000 homens. Atualmente, nos Estados Unidos, a mulher tem 1,5 vezes mais a possibilidade de ser portadora de vírus HIV do que os homens. Entrevista com 73 jovens de rua, na Guatemala revelaram que 15% já tiveram alguma doença sexualmente transmissível, assim como 21 das 39 mulheres entrevistas na Nicarágua. Um programa dedicado a serviço das meninas “de rua” na cidade de
65 Guatemala relata que a maior despesa mensal é com remédios para tratar doenças sexualmente transmissíveis. Como a médica não tem certeza se essas mulheres retornarão, é necessário dar um remédio de dose única. E, essa é a válvula de escape das adolescentes, a “pílula do dia seguinte”, vendida deliberadamente em qualquer farmácia do país. Na Bolívia, todas as 35 meninas “de rua”, entrevistadas já tiveram resultado positivo para uma doença sexualmente transmissível. Nesse sentido, os Programas a serviço dessas meninas na Bolívia, no Brasil e na Guatemala informam que muitas vezes essas meninas se cortam com facas e giletes revelando a raiva e ódio de si mesmas. Essa automutilação demonstra a baixa consideração que elas têm por si próprias e os esforços para lhes dar assistência se complicam ainda mais pelo sentido de fatalismo que elas mostram. As adolescentes que nasceram na área rural e depois migraram para as cidades muitas vezes sentem­se deslocadas e isoladas. Programas na Bolívia e Senegal informam que esse isolamento é agravado pelo fato de que essa juventude (fora da escola muitas vezes) só fala linguagem indígena e dialeto tribal em vez da linguagem da cidade. Um número alarmante de jovens dessa categoria (de baixa renda, urbana, nos países em desenvolvimento) são obrigadas a se prostituir para se sustentar financeiramente a si e suas famílias. Na América Latina, por exemplo, o perfil da prostituta é a mulher de 24 anos de idade, que trabalha desde a juventude e vem de classe trabalhadora de baixa renda. No Brasil, um recente relatório do governo calcula que há 500.000 mulheres com menos de 19 anos de idade na prostituição. Esse relatório conclui que a maioria delas escolheu esse trabalho para se sustentar, ajudar no sustendo da família e dos filhos advindos precocemente. Muitas vezes, a prostituição é vista como o único meio possível da mulher jovem, urbana, de baixa renda ganhar dinheiro. Em Dakar, Senegal, as meninas de rua dizem que podem ganhar entre US$ 7 e US$ 90 por dia, como prostitutas, enquanto que meninas “de rua” pedem esmolas e ganham entre US$ 7 e US$ 17 por dia. Nas Filipinas, as meninas “de rua”, trabalhando na prostituição, podem ganhar até US$ 20 por hora, quase sete vezes mais do que suas colegas que trabalham em outras atividades. O abuso e a exploração sexual são, também, comuns na vida de muitas mulheres trabalhadoras e meninas “de rua”. Nos casos de incesto (de pai ou padrasto) que resulta em gravidez, as mães destas jovens são obrigadas a expulsar o pai ou a filha de casa. Um programa de apoio às meninas “de rua” em Recife relata que o abuso sexual dentro de casa é fator principal que leva as meninas à rua. Em seis cidades grandes na América Latina, nas entrevistas com meninas “de rua” entre 6 a 95% contam que sofreram algum abuso sexual. Com referência às condições de vida da prostituta, Beauvoir 72 afirma que a baixa prostituição é um ofício penoso em que a mulher oprimida sexual e economicamente, submetida à arbitrariedade da polícia, a uma humilhante fiscalização médica, aos caprichos dos fregueses, presa dos micróbios, de doença e da miséria, é realmente degradada ao nível de uma coisa. Registra­se o fato de haver encontrado meninas de doze anos já com alguns anos de prostituição e que aos 20 anos já eram consideradas velhas, afirma Beauvoir. Sair da prostituição impõe­se como perspectiva difícil de ser executada. Há um comprometimento que vai além do aspecto físico. Para suportarem este tipo de vida acabam fazendo uso de tóxicos e de bebidas alcoólicas, que embora as ajudem a sustentar a vida que levam, estão ao mesmo tempo as deteriorando. Além do mais, o tipo de trabalho as consome, pois muitas vezes se obrigam a manter relações sexuais com mais de cinco homens por dia. 72 Op. Cit.
66 3.2.2 – Do Alcoolismo Precoce O alcoolismo precoce é um problema que deveria chamar a atenção das autoridades sanitárias, por ser um problemas de saúde pública e, particularmente, das famílias brasileiras. Pesquisa realizada pelo CEBRID constata que, estudantes da rede estadual de primeiro e segundo graus da cidade de São Paulo (70,4%) começaram a beber entre os 10 e os 12 anos de idade (quando nos Estados Unidos o índice é de 50,2%). A maioria dos debates anti­drogas nos quais se enfocam as drogas ilegais, como a maconha, a cocaína, o “crack”, etc., não estão se preocupando com as “drogas lícitas”, como a cola de sapateiro, o éter, esmalte de unhas, e sobretudo, o álcool, e, acabam por contribuir, ainda que involuntariamente para um novo agravamento da questão. De fato, é paradoxal que tais campanhas se restrinjam às drogas ilícitas, dando a entender que o álcool (por ser legalizado), é algo seguro que com o seu consumo não se corre o risco da overdose (se esquecem da possibilidade do coma alcoólico), e que o mesmo não gera grandes complicações, o que também é uma inverdade, pois sua síndrome de abstinência é tão séria quanto a das drogas mais pesadas. Sem contar a própria questão da dependência, hoje se estima que 10% da população brasileira é dependente de álcool, dado este que é por si só alarmante. Entre os mais variados fatores que levam as pessoas ao uso das drogas, desde a simples curiosidade de conhecer/experimentar até os mais complexo, como problemas familiares, econômicos, estados depressivos, etc., não se pode olvidar que no Brasil as bebidas alcoólicas são baratíssima, a exemplo da cachaça, a imprensa tem denunciado que é muito comum, nas centenas de bolsões de pobreza aqui existentes, o largo consumo da “pinga”, e até os bebês são seus consumidores, pois a mãe, não tendo com que lhes alimentar, coloca na mamadeira esta barata e mortal fonte de caloria – tecnicamente chamada de falsa caloria – e que, além disso, adormece os sentidos, o que em termos sociais se constitui tal prática num estado de gritante perversão, de barbárie. O consumo do álcool está associado, inclusive, com a criminalidade. Sabe­se que muitos bebem para se encorajar e daí cometerem atos ilícitos como assassinatos, lesões, etc. Tal hipótese (estado de embriaguez preordenado) se constitui, nos termos do Código Penal, em agravamento da pena. Há os que por estarem alcoolizados cometem excessos e crimes, como é o caso dos acidentes automobilísticos – nos quais há mortes e lesões­, das violências domésticas, entre outros. Há que se ressaltar, ainda, o custo social desta droga lícita, haja vista as despesas realizadas com os tratamentos das cirroses hepáticas, com as mais variadas lesões decorrentes do seu uso, bem como das intervenções psiquiátricas. No campo Jurídico, em se tratando especificamente, da criança e do adolescente, a Lei 8.069/90 não se omite. Tanto que a venda de bebidas alcoólicas aos menores de 18 (dezoito) anos que anteriormente ao seu advento era simplesmente considerada uma contravenção penal (artigo 63, I do Decreto­Lei n. 3.688/41), conhecido com Lei das Contravenções Penais, passou a ser concebida como crime previsto no artigo 243 da referida Lei. Todavia, a nova Lei protetora dos direitos infanto­juvenis neste aspecto é frontalmente desrespeitada. O poder público e a própria sociedade hipocritamente escamoteiam ou negam o problema do alcoolismo. É evidente que o trabalho de conscientização a respeito dos perigos do uso do álcool, tanto para o corpo físico quanto para o corpo social, não pode ser simplesmente reduzido a uma questão legal. Por ser um assunto que atinge a saúde pública, sob tal enfoque deveria ser abordado. Defendemos a idéia de que se faz imperioso dar início às campanhas elucidativas nas escolas, igrejas, grupos, associações e, também, no âmbito familiar. E aí nos
67 deparamos com uma grave questão, o embate deverá ser dirigido, sobretudo à mídia, na qual circulam centenas de milhares de reais nas propagandas de álcool e do fumo, as quais mostram um mundo de bem­estar e de prazer, o que de fato é incompatível aos viciados de qualquer tipo de droga. Podemos, dessa forma, indagar por que a sociedade não se organiza e exige do Estado — justamente neste momento em que este último, defendendo um neoliberalismo, pretende se esquivar de todos os seus encargos — que cumpra ao menos uma das suas funções mais elementares, qual seja a de segurador/promotor de saúde pública? Isto se daria, através da promoção de campanhas sérias e responsáveis, taxando­ se gravosamente as “drogas legais” (álcool e cigarro). É inaceitável que enquanto nos países desenvolvidos os impostos sobre as bebidas alcoólicas são cada vez mais pesados, 73 no Brasil nos encontramos num estágio incivilizatório, pois não se reconhece a questão do alcoolismo, especificamente do alcoolismo precoce, como um grave problema a ser respondido com medidas concretas e urgentes. 3.2.2.1 – O Álcool na Adolescência Como dito anteriormente, o uso do álcool entra cada vez mais cedo na vida tanto da criança como do adolescente. O adolescente que está consumindo álcool, causando preocupação aos pais, geralmente não é receptivo à ajuda dos familiares quando tentam encaminhá­lo para um profissional ou a um serviço especializado. Existem trabalhos realizados na Clínica Mirante do Instituto Bairral de Psiquiatria – Itapira/SP com dependentes de substâncias psicoativas, ao pesquisar a história de vida de pessoas em tratamento por alcoolismo, foi possível encontrar nessas histórias subsídios para identificar sinais ou indicadores relacionados ao consumo do álcool na época da adolescência dessas pessoas. Acredita os pesquisadores que se esses indicadores fossem conhecidos e trabalhados à época da adolescência dessas pessoas, talvez fosse possível impedir o avanço e a configuração do quadro de alcoolismo em que se encontram e que levam para a vida adulta. O fácil acesso à bebida alcoólica pelos adolescentes se deve ao fato da vulnerabilidade sócio­cultural ao álcool. Na adolescência, quando das primeiras experiências com a bebida alcoólica, há o adolescente fraco (sensível para beber, é aquele que com uma ou duas doses de bebida alcoólica já se sente alterado e, ao mesmo tempo, pode passar mal com isso. Não consegue então beber mais que isso, porque não se sente bem. No dia seguinte ao uso ou ao abuso de álcool, o fraco para beber não pode ver bebida alcoólica em sua frente. E, sofre as conseqüências do álcool, como: mal estar, dor de cabeça, problemas abdominais, indisposição), e o adolescente forte em relação ao álcool ( tolerante para beber, é o que suporta beber quantias maiores sem muita alteração. Desenvolve também, com o aprendizado de beber, a tolerância comportamental, quer dizer, a capacidade de executar tarefas mesmo sob o efeito do álcool SHUCKIT 74 . É aquele que é enaltecido pela turma pelo fato de agüentar a beber. No dia seguinte, o forte para o beber, mesmo sentido alguns efeitos do consumo de álcool do dia anterior, mostra disposição para beber novamente. No decorrer do uso, o valor reforçador do álcool, emparelhado com outros estímulos ambientais, desenvolve 73 74 A pretensão dessa imposição é diminuir o consumo e obter recursos que se destinariam às campanhas preventivas e para o tratamento dos dependentes. SHUCKIT, M.A. Transtornos relacionados ao álcool. In: I.H. KAPLAN & B.S. SADOCK e cols. Tratado de Psiquiatria Compreensiva. Porto Alegre: Artemed. 1999.
68 condicionamentos e reforçadores secundários. Conforme se instala a dependência, o álcool passa a ser um reforçador negativo, pois alivia o organismo dos sintomas de abstinência de outras drogas. Os efeitos ruins experimentados pelo organismo decorrentes do uso do álcool podem tornar o álcool um estímulo aversivo. As pesquisas na área constatam que as pessoas em tratamento que desenvolveram um quadro de dependência de álcool (diagnosticados na vida adulta), após anos e anos de uso e abuso de álcool, são os que na juventude mostraram tolerância ao álcool. Essa dependência culmina com desgastes físicos, desorganização da vida, perdas ou ameaças de perdas (emprego, separação conjugal, condutas agressivas, condutas irresponsáveis), entre outros. 4.0 – DO SISTEMA DA J USTIÇA 4.1 – Do Sistema J urídico A nossa Constituição Cidadã de 1988, prescreve em seu artigo 227 que: É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, saúde, alimentação, educação, ao lazer, profissionalização, cultura, dignidade, ao respeito, liberdade e convivência familiar e comunitária, além de colocá­los a saldo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. E ainda em seu §4º, preceitua: “A lei punirá severamente o abuso, a violência, e a exploração sexual da criança e do adolescente”. Diante do preceito constitucional, podemos indagar se a atual legislação penal consegue atender o que naquele documento normativo está exposto. A Convenção sobre os Direitos da Criança, adotada pela Assembléia Geral das Nações Unidas, em 20 de novembro de 1990, da qual o Brasil foi um dos signatários, determina em seu artigo 34: Os Estados Partes se comprometem a proteger a criança contra todas as formas de exploração e abuso sexual. Nesse sentido, os Estados Partes tomarão, em especial, todas as medidas de caráter nacional, bilateral e multilateral que sejam necessárias para impedir: a) o incentivo ou coação para que uma criança se dedique a qualquer atividade sexual ilegal; b) a exploração da criança na prostituição ou outras práticas sexuais ilegais; c) exploração da criança em espetáculos ou materiais pornográficos. O referido dispositivo, portanto, assegura à criança e ao adolescente a proteção contra a exploração e o abuso sexual, incluído a prostituição e o envolvimento em pornografia. Convém ressaltar que, no Brasil, a Convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional, através do Decreto Legislativo n. 28, de 14 de setembro de 1990, sendo que em 21 de novembro desse mesmo ano foi finalmente promulgada pelo Decreto n. 99.710. Desta forma, a negligência de nosso País no que concerne a exploração sexual infanto­juvenil se constitui num desrespeito à Constituição Federal, num descaso para com a citada Convenção e para com os direitos proclamados no Estatuto da Criança e do Adolescente. Trata­se, em síntese, de uma profunda negação dos direitos
69 fundamentais da pessoa humana, sobretudo tendo­se em conta que esta negativa de cidadania atinge justamente aqueles que são merecedores de proteção especial e integral, por estarem num processo de desenvolvimento. E o que mais nos indigna nesta abordagem é que todo o sistema político é condescendente com tais abusos. Por outro lado, ao tentar se elaborar uma leitura jurídica da prostituição infantil e, portanto, quais os mecanismos que o sistema penal teria para oferecer a fim de se evitar a degradante exploração sexual infanto­juvenil, somos também levados a questionar se o mero advento de normas que dessem à questão um enfoque mais severo, no sentido de impor penas mais drásticas já seria suficiente. Nesse diapasão, preleciona Garcia­Pabios de Molina: “a eficaz prevenção do crime não depende tanto da maior efetividade do controle social formal, senão da melhor integração ou sincronização do controle social formal e informal”. 75 Significa que a verdadeira prevenção de um problema tão sério como o é o da prostituição infantil, se dará através de uma ação conjunta entre a sociedade e o Estado, se servindo de métodos e programas capazes de neutralizar o problema já na origem. É lógico que a solução não se dará a curto prazo, mas isto não deve servir como um argumento para um não agir. Devemos considerar que a sociedade civil deve cobrar do Estado uma maior fiscalização em hotéis, motéis e congêneres, inclusive, parece oportuno o estabelecimento de medidas administrativas que impliquem a imposição de multas significativas, e até mesmo a interdição de estabelecimentos nos quais fossem flagrados o abuso e a exploração sexual de crianças e adolescentes, sem detrimento da responsabilidade penal. Certamente, temendo mais as multas ou o fechamento de suas “atividades” do que a punição penal ter­se­ia, uma diminuição dessa exploração. Pois, pensar em resolver estas questões com a mera prevenção pelo Direito Penal é uma ilusão, porque, em primeiro lugar, nem sempre o rigor das leis importa em sua efetividade. Estes dois fatos como que “geram” o problema da impunidade. A este respeito, já se pronunciara o jovem Beccaria, em 1764: Não é o rigor do suplício que previne os crimes com mais segurança, mas a certeza do castigo, o zelo do magistrado e essa severidade inflexível que só é uma virtude no juiz quando as leis são brandas. A perspectiva de um castigo moderado, mas inevitável, causará sempre uma impressão mais forte do que o vago termo de um suplício terrível, em relação ao qual se 76 apresenta alguma esperança de impunidade. 4.1.2 – Da Proteção do Estado à Criança e ao Adolescente O Estado assumiu, juntamente com a família, responsabilidades com relação à criança e ao adolescente, quais sejam as de lhes assegurar, com prioridade absoluta, o uso e gozo dos direito fundamentais, tendo sido muito mais pródigo na enunciação desses direitos com referência à criança e ao adolescente do que com relação aos adultos. A preocupação do legislador constituinte com a criança e o adolescente justifica­se pelo fato de o Brasil ter uma população muito jovem que, aliás, durante longos anos vem tendo seu destino negligenciado pelo Estado, que particularmente em relação às crianças e adolescentes vez que, a partir da Constituição de 1988 passaram a 75 MOLINA, Antônio Garcia Pablos de. “Criminologia: uma introdução aos seus fundamentos teóricos”, Trad. De Luiz Flávio Gomes, São Paulo, RT, 1992, p. 78 76 BECCARIA., Cesare. Dos Delitos e das Penas. Trad. De Paulo M. Oliveira, Rio de Janeiro, Ediouro, 1994. p. 80
70 figurar como sujeitos de direitos. Entretanto, o Estado parece não entender a sua responsabilidade para com esta camada da população tão relegada à marginalização. Em conseqüência de tal desapreço com relação à tão nobre problema, é que convivemos hoje com a falta de estabelecimentos suficientes e adequados para a internação de adolescentes envolvidos com a prática de Ato Infracional, lançado­os na vala comum de estabelecimentos inadequados que funcionam como escolas de delinqüência ou celeiros de criminalidade. É natural, portanto, que no seio de uma sociedade assim tão mal assistida, germine e cresça a criminalidade, que tendo sua origem necessariamente na fome, na miséria e no desemprego, tem também, suas raízes na (des) educação e na falta de assistência e efetiva proteção à população infanto­juvenil que vive sob constante risco pessoal e social. Em nosso Estado, é imperioso reconhecer que com a edição da nova Carta Magna, a despeito de todas as promessas de proteção das autoridades governamentais à criança e ao adolescente, os Programas de Atendimento não têm continuidade. Vale ressaltar que o artigo 204 Constituição Federal dispõe sobre a “descentralização político­ administrativa e a participação da sociedade por meio de organizações representativas na formulação das políticas e no controle das ações em todos os níveis”. O Estado, como já foi dito, ao prometer em norma constitucional assegurar à criança e ao adolescente a preservação de seus direitos básicos, assumiu perante a Nação, responsabilidades que até a presente data pouco tem se preocupado. O Estado através de uma perversa política econômica (na qual tem resultado o crescente empobrecimento das camadas mais modestas de nossa sociedade) vem submetendo a criança e o adolescente à verdadeira privação do gozo de seus direitos, quando, por exemplo, deixa de proporcionar assistência médico­hospitalar adequada, saneamento básico, acesso à educação e a uma alimentação sadia. É verdade que tem procurado fazer, em termos de programas de assistência social, nos últimos tempos, desde a restauração do regime democrático em nosso país. O Estado de forma ainda muito discreta, destina recursos às regiões mais carentes do território nacional com o escopo de reduzir os índices alarmantes de mortalidade infantil, através de: aumento da rede geral de água e esgoto, que tem contribuindo para recuperar as crianças afetadas por diarréia; a implantação de programas de (re) hidratação oral, para recuperar as crianças afetadas por processos diarréicos infecciosos; o aumento de cobertura vacinal, que tem contribuído para reduzir a mortalidade por doenças previsíveis por imunizações; maior acesso à assistência médica e hospitalar; e, a diminuição da fecundidade ocorrida especialmente entre as mulheres de mais baixa renda e pouca idade, diminuindo o número de crianças de alto risco. Evidente que não se pode negar, portanto, que muita coisa já foi feita nesse campo, porém, a toda evidência, muito menos do que foi prometido à Nação pelo legislador constituinte. A norma constitucional, contida no artigo 227 foi pródiga na enunciação dos direitos da criança e do adolescente, e vão desde o direito à vida até o direito ao lazer. O que se espera das autoridades governamentais é que, pelo menos ,os direitos básicos prometidos sejam assegurados, a fim de que não só as crianças e os adolescentes, mas também os cidadãos em geral, possam viver em sociedade, com o mínimo de dignidade. 4.1.3 – Estatuto da Criança e do Adolescente ­ Um Instrumento na Construção de uma Sociedade Cidadã
71 Falar em cidadania no atual contexto brasileiro é entendê­la como o exercício de uma reivindicação de direitos77 , o que significa uma batalha pelo recente reconhecimento de novos direitos sociais ou de direitos já existentes, os quais, no entanto, têm sido historicamente negados neste país. Este conceito que poder­se­ia denominar de “contemporâneo”, de cidadania está tal qual a concepção clássica, ou seja aquela que dizia que, cidadão é o que participa, que vive engajado com a cidade – polis ­, comprometida com valores. Nesse sentido afirma Torres: Não se trata de, pura e simplesmente, lutar pelo respeito a valores que já estão dados. Ao contrário, trata­se de restabelecer e de fazer com que a ordem política­constitucional existente consagre, efetivamente, assegura tais direitos. Então, a concepção contemporânea de cidadania é uma concepção que recupera a idéia de uma atividade do cidadão, mas que a recupera não dentro da ação estatal e do exercício da soberania, mas reafirma o caráter dinâmico da ação cidadã a partir da sociedade civil, e como um programa de transformação da esfera público­juridico­ 78 constitucional, tal como estabelecido numa certa circunstância. Analisando criticamente esta questão, Muricy entende que falta à sociedade brasileira uma “participação de base e cidadania organizada” 79 . Tal fato faz com que o povo seja manipulado, funcionando como: (...) massa de manobra para políticas assistencialistas desmobilizadoras, que alternam com as mais cínicas práticas institucionais privada da coisa pública, estas últimas tão freqüentes e avassaladoras, que já tornam consagrados no Brasil o estado de 80 impunidade. A ampliação da cidadania através de uma participação popular constante do corpo social em todas as esferas acabará por produzir transformações na idéia tradicional do Estado como instância exclusiva e absoluta do poder societário. Nesse sentido, Wolkmer faz sua defesa: “Há que se mudar o enfoque, e passar a encarar o Estado não mais como criador e tutor do autoritário da Sociedade Civil, plenamente organizada pelo exercício e pela participação da cidadania popular”81
. Neste processo, o Estatuto da Criança e do Adolescente se constitui numa norma de extremo valor, pois significa a introdução na ordem jurídica de avanços que ocorrem na ordem social. O diploma legal estabelece uma nova concepção de criança e adolescente, passando a contemplar a proteção integral e concebendo­ os como sujeitos de direitos. Ao substituir o Código de Menores de 1979, o Estatuto da Criança e do Adolescente introduz uma série de transformações na política de atendimento à infância e à adolescência brasileira, dando ênfase ao processo de descentralização e municipalização da política de atendimento direto e destaca a participação da sociedade civil através de seus Conselhos e Fóruns, conforme dito alhures. Como evidenciado, o 77 TORRES, João B. “Cidadania: exercício de reivindicação de direitos”. In anais da XIV Conferência Nacional da OAB – Vitória – ES. Setembro. 1992 p. 345. 78 Idem. 79 MURICY, Marília. “Cidadania, Estado e Sociedade Civil”, in Anais da XIC Conferência Nacional da OAB, Op. Cit. p. 6l. 80 Idem. 81 WOLKMER, Antônio Carlos. “Elementos para uma Crítica do Estado. Porto Alegre. Fabris 1990. p. 43.
72 ECA estabelece o conceito de “Criança Cidadã” e entende como indispensável num processo democrático a descentralização/municipalização das atividades e, outro aspecto que reflete uma das suas grandes contribuições é a respeito da participação da sociedade civil nas políticas públicas. Preleciona Leme Machado que o envolvimento dos cidadãos em todos os processos da vida social, tem como pressuposto “o exercício crítico, cuja prática deve dar­se desde a infância, e que uma postura crítica, a qual é incompatível como o autoritarismo, somente é possível de ser adquirida através da reflexão” 82 . No entanto, é extremamente difícil para quem vive em condições subumanas – que vão desde a exploração salarial até as situações de absoluta miséria a que estão sujeitos ­, aglutinar­se na defesa de interesses que superem a esfera individual. Isto, inclusive, reforçado pela implantação da ditadura militar, que se estendeu por mais de vinte anos, destruindo e obstaculizando a participação na vida pública, o que resultou na apatia política do brasileiro, que é, na maioria das vezes, um mero telespectador de sua própria história. Desse modo compõe­se um quadro estarrecedor, não se participa por não se ter as mínimas condições de vida, tornando esta uma enfadonha luta pela satisfação das necessidades individuais e, também porque não se foi educado para refletir e, portanto, criticar e agir. Assim, este cenário não poderá ser revertido enquanto não houver mobilização popular, isto é, a união de interesses que objetivem a ruptura desse círculo vicioso. O Estatuto da Criança e do Adolescente, situando­se nessa necessidade premente, estabelece, em seus artigos 86 e 88, uma estrutura de gestão absolutamente distinta da anterior. Baseando­se numa conjunção de forças e de compromissos entre o Estado e a Sociedade Civil, cria­se através dos Conselhos de Direitos da Criança e do Adolescente o espaço institucional específico, nos quais se desencadeiam as tarefas de decisão e de controle desses dois sujeitos sociais: governo e sociedade. Os Conselhos de Direitos colocam­se, portanto, como canais de participação, possuem paritariamente representantes das instâncias governamentais e das organizações representativas da sociedade, constituindo dessa forma, um eixo imprescindível no processo de democratização do poder, de uma efetiva e consciente participação. Tal qual o Conselho Tutelar, o Ministério Público, o Juizado da Infância e da Juventude, os Conselhos de Direitos constituem uma instância responsável pela garantia dos Direitos da criança e do Adolescente. A presença da sociedade civil nos Conselhos, garante aos cidadãos a possibilidade de acesso às informações oficiais e ações públicas. E envolve­os politicamente para uma interlocução constante, ampliando assim os espaços de mediação, negociação e decisão. Esta participação facilita o controle, permitindo que projetos e ações se voltem aos problemas mais coletivos e prioritários e os recursos financeiros sejam efetivamente visíveis e dirigidos à maioria da população, na linha do atendimento às suas necessidades básicas. Ressaltamos que os Conselhos não substituem o dever do Governo na realização de seu papel precípuo – executar políticas – porém participam e devem promover ampla visibilidade para que a sociedade civil e governo se engajem e queiram uma política de desenvolvimento da criança e do adolescente. Os Conselhos não só deliberam sobre essa política como também acompanham a sua implementação, execução e seus resultados. A estas atividades de acompanhamento chamamos de controle. É por isso que o Estatuto da Criança e do Adolescente institui legalmente, como papel dos Conselhos, deliberar e controlar. Assim, é inquestionável que a sociedade seja ativamente organizada, 82 MACHADO, Paulo Leme. “Administração participada e interesses coletivos”. In Grinover, Ada Pellegrini (coord). “A tutela dos interesses difusos”, São Paulo, Max Limonad, 1984. p. 49.
73 solidária, comprometida com o resgate ético, com mudanças sócio­político­culturais, enfim, que se transforme numa sociedade cidadã. 4.2 – Do Sistema Político 4.2.1 ­ Instituições Repressivas: O Caso da Polícia Civil A tradição institucional brasileira cria, aliada a um conjunto de traços culturais, um caldo autoritário e antidemocrático, que a priori tende a inviabilizar o sentido expresso da existência da instituição policial, ou seja, garantir a ordem e cumprir a lei. O aparato policial tem­se constituído como uma instituição opaca, bastante impermeável e autoritária, com pouca porosidade, e até sórdida, em alguns períodos de repressão, aberta e institucionalizada. Não obstante, este aparato institucional é um dos mais próximos à população, sobretudo aos trabalhadores urbanos e pobres, posto que a Delegacia Policial funciona diuturnamente e acaba se constituindo contraditoriamente em um pronto­socorro social devido à inexistência, insuficiência ou inoperância da rede de equipamentos sociais. O trabalhador pobre tem histórias de intimidade com a polícia, quer porque buscou sua mediação em relação as mais variadas gama de situações imagináveis, quer porque foi abandonado, pelo menos uma vez, por algum agente policial. Na prática desses agentes observa­se uma contradição entre a expectativa de legalidade e a legitimidade de suas práticas concretas. No cotidiano desses atores a legalidade é instrumento utilizado circunstancialmente, mas não é um canal que respalde uma prática objetiva e democrática. Ao contrário, o que se observa é uma prática que, às vezes, se autonomiza em relação ao controle estatal e da sociedade. Prática que ignora fronteiras da lei. Para tanto, há todo um suporte cultural, uma cultura da violência, do autoritarismo e da impunidade, onde o direito de cidadania não é reconhecido. Esse caldo cultural envolve não só especificamente o crime, a violência, a repressão e outros fenômenos. Envolve atores presentes no cenário das várias mediações que têm lugar na relação entre o aparato estatal e a sociedade civil e nas relações sociais cotidianas. Abrange os discursos e as práticas desses atores relacionadas a esses fenômenos, influenciando dialeticamente processos culturais e políticos, representações, e o seu próprio modo de vida. Como conseqüência desse caldo cultural autoritário tem­ se uma polícia que tem pouca credibilidade para garantir a segurança e a manutenção da ordem. Uma instituição esvaziada de legalidade social. Por outro lado, há representações e práticas da população que reforçam as atitudes repressivas desses atores da instituição os quais, em si, já têm o monopólio legítimo da violência institucional. Entre a ordem pública e a lei existem tensões que fazem com que o aparato policial tente garantir a vigência da ordem, contra a lei, perante a qual há igualdade absoluta garantida a todos. Bretas 83 faz uma reconstituição histórica das funções da instituição policial desde o período republicano, quando esta tratava de tudo aquilo que colocasse em risco a ordem, pública. Conclui que essa instituição tinha originalmente funções mais ampliadas, passando por períodos de restrição em nível de competência, porém seus traços fundamentais não sofreram alteração substantiva. A partir do momento em que o Estado se diversifica e começa a assumir a questão social, a ação da polícia se restringe àquelas em que há necessidade do uso da força real ou potencial. Com isso se 83 Pesquisador do Centro de Estudos Históricos da Fundação Casa de Rui Barbosa, desenvolve pesquisa histórica sobre a política no século passado e, em especial, no período republicano. Ver, sobre o tema, o trabalho de sua autoria “Policiar a cidade republicana”, sem data, mimeo.
74 institucionaliza e se legitima o uso da força. O Estado ampara legalmente o uso da força pela polícia e pretende profissionalizar a violência, recrutando, a exemplo do modelo francês, seus agentes no chamado mundo do crime. Embora com a independência o Brasil tivesse tido contrato com o pensamento iluminista, com o positivismo e com o liberalismo, o que gerava uma onda modernizadora e reformista no aparato institucional brasileiro, a instituição policial se mostrou pouco permeável e quase intacta. Seus agentes permanecem desqualificados para o exercício técnico de suas atividades até os dias de hoje, com raríssimas exceções. Pesquisas de opinião pública recentes denotam sentimentos de insatisfação diante da conjuntura atual do país, insegurança diante da elevação dos índices de violência, descréditos nas instituições, nas autoridades e nos políticos. Simultaneamente, seus resultados expressam expectativas de garantia de segurança e indicação da necessidade de medidas repressivas truculentas. Tal fato remete à proposição de que as camadas populares não possuem ainda uma organização suficientemente forte, capaz de por em questão de forma crítica a ação das instituições estatais, especificamente do aparato policial. De outro lado, como conseqüência da autonomia e independência dessa instituição frente ao controle popular, tem­se um poder próprio, que se configura de forma dupla, o Estado que garante e o Estado que limita. 84 A percepção das camadas médias acerca da instituição policial é ­ via de regra­, puramente cartorial, para viabilizar compensações patrimoniais (como exemplo, obtenção de cópia de registro de ocorrência de furto de automóveis para receber seguros). Em contrapartida, os setores populares, além de buscar, algumas vezes, a mediação da polícia na expectativa de solução de seus problemas, têm na instituição a concretização da ameaça da violência institucional estatal. Muitas vezes, esses setores só têm por si a segurança do crime organizado que, particularmente nas favelas acaba assumindo a responsabilidade pela manutenção da ordem, ao mesmo tempo em que ameaça a paz social. Contrapondo­se à idéia disseminada da cordialidade dos cidadãos brasileiros, evidenciam­se relações antagônicas e, por vezes, hierarquizadas entre indivíduos que detêm parcelas diferenciadas de poder, traduzindo­se em relações de dominação/exploração. Tais fenômenos são resultantes de determinações de classe, gênero e raça/etnia e se inscrevem em instâncias de relações sociais macrossocietais, bem como em espaços que constituem cenários onde se desenvolvem relações interpessoais permeadas por micropoderes. Situações inscritas em relações de poder contraditórias, que perpassam as várias frações de classe, se manifestam em instâncias consideradas pela ideologia dominante como espaços de não­poder, de expressão apenas de relações interpessoais marcadas eminentemente pela afetividade e ela privatização. Dentre esses espaços, a família é um locus privilegiado, onde se inscrevem relações contraditórias travejadas pelo autoritarismo e pela afetividade. Neste cenário têm lugar situações de conflito, fundadas em relações de micro­poder de natureza antagônica manifestadas de forma mais ou menos explícita. Emolduradas nos contornos das relações de poder na família (no ambiente doméstico), encontra­se o fenômeno da violência sexual infanto­juvenil. Cotidianamente, a instituição policial é buscada por mulheres que vivem situações de violência no contexto familiar, no sentido de ser obtida uma ação mediadora da polícia. O que encontram como resposta à expectativa de proteção que têm em relação à ação policial são o descaso e a omissão. Esse quadro denota o caráter antidemocrático e machista do aparato policial e traz à tona a ação dos movimentos da sociedade civil, que pressionam o Estado, com vistas à 84 “A prática de Serviço Social em Delegacias Policias do Estado do Rio de Janeiro”, elaboração coletiva da equipe do projeto de extensão da ESS/UFRJ, setembro de 1986, mimeo.
75 sua democratização. Traz à tona, em especial, a luta dos movimentos feministas no combate à violência contra a mulher e contra a exploração sensual infanto­juvenil, por um atendimento especializado, que, atualmente está se desencadeando em diversos Estados. 4.2.2 – A Realidade Brasileira A liquidação de pixotes, segundo a designação comumente adotada pela linguagem jornalística, se constitui num dos dados mais tristes da nossa história, que ano a ano vinha aumentando até que a situação tornou­se insustentável e em 1990 a Anistia Internacional, com sede em Londres, passou a denunciar esta forma diferenciada de genocídio. A Anistia, tendo por base as primeiras estatísticas de assassinatos de crianças e adolescentes no Brasil (1990) pelo Instituto Brasileiro de análises Econômicas, se expressou contundentemente no sentido de que, no Brasil, as crianças pobres são tratadas com desprezo pelas autoridades e arriscam a vida pelo simples fato de estarem nas ruas. Seus direitos humanos mais básicos são desrespeitados pelas próprias pessoas que deveriam garanti­los. As autoridades precisam agir agora proteger as vítimas mais vulneráveis da brutalidade da polícia. Este fato, que quase gerou um problema diplomático, teve um aspecto positivo quando da criação da Comissão Nacional Contra Violência da Criança e Adolescente (dez/1990), vinculada ao Ministério da Justiça. Constituída por entidades governamentais e não­governamentais, com a participação da UNICEF, tem como meta apoiar as ações que são providas nos Estados, voltadas a enfrentar o fenômeno da violência. Em 1993, o Brasil volta ao cenário internacional, em função do massacre da Candelária (RJ). A violência estrutural, portanto, se refere também, às situações adversas que demonstram a falta de respeito para com o ser humano, a miséria, o trabalho escravo e precoce, a falta de escola, de moradia, etc. Quanto à violência sexual contra crianças e adolescentes, esta começou a ser enfrentada como problema de cunho social na última década do século XX. Assumiu relevância política e visibilidade social nos anos 90. Na década de 1990, segundo Libório 85 , a violência sexual contra crianças e adolescentes foi incluída na agenda pública da sociedade civil relacionada à luta nacional e internacional pelos direitos humanos. Argumenta, ainda, o citado autor que, vários eventos contribuíram para destacar a questão da violência sexual contra crianças e adolescentes na mídia e pressionaram o país a se posicionar frente à exploração sexual de crianças e adolescentes. A partir daí, aconteceu uma ampla mobilização de vários segmentos da sociedade com relação ao enfrentamento da violência sexual de crianças e adolescentes de forma que, em junho de 2000, aconteceu o encontro para a elaboração do Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto­Juvenil, em Natal, RN, conforme já evidenciado. Martinez 86 aponta que, de acordo com os estudos realizados em vários países (dentre eles, o Brasil), 7 a 36% das mulheres e 3 a 29% dos homens já sofreram abuso sexual na infância. Em pesquisa realizada por Braun 87 ficou evidenciado que crianças e 85 LIBÓRIO, R. M. C. Desvendando vozes silenciadas: adolescentes em situação de exploração sexual. Tese (Doutorado em Psicologia). Universidade de São Paulo, 2003. 86 MARTINEZ,J. Prevención del abuso sexual infantil: analisis crítico de los programas educativos. In: Revista de la Escuela de Psicologia, Facultad de Ciências Sociales – Pontifícia Universidad Católica de Chile, Volumen 9 – Número 20, Noviembre 2000. 87 BRAUN, S. A violência sexual infantil na família: do silêncio à revelação do segredo. Porto Alegre : AGE, 2002.
76 adolescentes de 02 até 17 anos podem ser vitimizadas/os pela violência sexual. De acordo com os dados obtidos pela Autora, uma quantidade significativa de crianças vitimizadas pela violência sexual encontra­se na faixa etária de 10 à 14 anos (56%), seguida pela faixa etária de 5 à 9 anos (20%), de 15 à 17 anos (14%) e entre 2 e 4 anos (10 %). No tocante aos meninos, existem barreiras claras que os impedem de relatarem o abuso sexual praticado por homens mais velhos. A Abrapia (1997), afirma que, em primeiro lugar há o duplo tabu ­ incesto e homossexualidade ­, em segundo, pode ser difícil para os adolescentes aceitar que não são capazes de se protegerem e, em terceiro lugar, espera­se que os homens sejam autoconfiantes e que não falem de seus sentimentos para os outros. Nesse diapasão, o papel da escola e do professor tem importância relevante na prevenção e enfrentamento da violência. Brino e Williams 88 enfatizam que a Escola é o lugar ideal para prevenção, intervenção e enfrentamento deste fenômeno, pois deve ter como objetivo a garantia da qualidade de vida de seus alunos e a promoção da cidadania. Esse papel está claro no Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto­Juvenil (2000) e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, Lei 8069/90) cujo objetivo foi estabelecer um conjunto de ações articuladas que permitam intervenção técnica, política e financeira para o enfrentamento da violência sexual cometida contra crianças e adolescentes. 5.0 – CONSIDERAÇÕES FINAIS Apesar de já sermos detentores de direitos através da Declaração solene dos Direitos Humanos, nosso mundo continua sendo um planeta inabitado para a maioria dos seres humanos. Os direitos humanos continuam sendo uma grande utopia para a grande maioria. As cifras de violação desses direitos são espantosas, mesmo diante dos direitos e garantias fundamentais preconizados pela Declaração dos Direitos Humanos e inseridos na Carta Magna de 1988. A exigência dos direitos humanos é antiga e profunda, entretanto a violação desses direitos é extremamente brutal e generalizada. Não obstante os 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos, foi a partir dos anos 60 que a violência começou a ser considerada como uma violação dos direitos individuais, em decorrência das pressões recebidas das instituições internacionais, pois, até então não havia nenhum serviço para atender as vítimas, e as punições eram raras, mesmo nos países industrializados. Essa espantosa situação nos impulsiona a preocupações maiores com o ser humano e faz com que fiquemos incomodados com a maneira clássica de encarar os direitos. A clássica leitura liberal da Declaração Universal não pode entender que certas pessoas são uma espécie de negação para a sociedade. Não são reconhecidas como seres humanos, como pessoas, como sujeitos de direitos. São apontados como os excluídos, os marginalizados, os mendigos, as prostitutas, os meninos e meninas de/na rua, os viciados em drogas. Os esquecidos até da comunidade dos Direitos Humanos... Se analisarmos profundamente a violência social, encontraremos um momento decisivo na gênesis da violação aos direitos humanos, que foi a violência estrutural. Violência esta que nada mais é que esse conjunto de estruturas econômicas, sociais, jurídicas e culturais que causam uma dor profunda, cruel e desumana na pessoa impedindo­a que seja liberada da opressão. 88 BRINO, R.F & WILLIANS, L.C.A. Concepções da professora acerca do abuso sexual infantil. Cadernos de Pesquisa. São Paulo: Fundação Carlos Chagas, Autores Associados. Julho:2003
77 Em pleno final de milênio, e comemorando os 60 anos da Declaração dos Direitos Humanos somos tomados pelo processo de uma concepção hipócrita dos direitos humanos. Isto se dá um pleno momento em que tomamos conhecimento da vertiginosa seqüência de sucessos que são o estertor do mal chamado “fim da história” pelas arrogantes estratégias das políticas neoliberais. Deve­se admitir, então, que os últimos anos não têm sido triunfo de nada, e, sim catastróficos no que se refere aos direitos humanos. Talvez tenhamos avançado em algumas novas formulações jurídicas e em consciência a certos níveis da humanidade, porém, sem sombra de dúvidas que esses avanços se mesclam com o horror da nossa experiência diária (declaração universal e fome, pactos internacionais e terras arrasadas, riquezas nunca vistas e pobreza obscena). Mas, a ânsia de crer e apostar no que parece utópico, nos impulsiona a desafiar todos os temores. Vincular os direitos humanos às políticas sociais que dê vida a “não­ pessoa” de nossa sociedade e esperança de viver com dignidade não podem permanecer no terreno da declaração e da utopia. Não há que se duvidar que a expressão “Direitos Humanos” é uma formulação histórica e recente que nasceu na etapa moderna dentro de uma cultura chamada ocidental, e que recolhe experiências muito básicas, extensivas a toda humanidade porque se referem eminentemente à dignidade das pessoas como integrantes dessa cultura. Na realidade, esses direitos são preliminares a todo reconhecimento jurídico e os Estados devem usar os meios necessários para que os seres humanos possam realizá­los a fim de que todos possam alcançar a felicidade, segundo a Declaração de Virgínia em 1776. A pesquisa deixa latente as evidentes agressões ao ser humano e, em especial, à mulher ­ desde a sua concepção ­ salientamos a luta feminina no que tange a (re) concepção dos direitos humanos, haja vista que, até hoje, eles se fundamentam em uma visão machista e discriminatória. Visão esta, herdada do contexto jurídico romano onde o homem sempre foi o senhor absoluto que sempre deteve direitos e poderes de vida e de morte sobre a sua família. Necessário se faz introduzir uma visão crítica que abranja o contexto sócio­político de gênero, onde os direitos humanos foram sempre conceitualizados. As nossas leis ainda são muito tímidas no combate à violência como um todo e, em especial, no combate à violência contra a população infanto­juvenil. Precisamos de eficácia nas legislações existentes (própria, definida), com a finalidade de criar instrumentos e mecanismos para erradicar a violência intra­familiar, propondo ações punitivas, tanto no Direito Penal como no Direito Civil, além de medidas de apoio à vítima e à sua família com assistência social e jurídica, trabalhadas sob a forma de políticas públicas e não de ações afirmativas. E, o fato social há de ser o ponto de partida no processo de elaboração do direito, vez que a norma jurídica, em sua formação, é condicionada pelos fatos sociais. A descoberta das engrenagens do colapso social de uma sociedade que produz crianças prostituídas é a descoberta do desemprego, da falta de escola, da migração, da desagregação familiar e do desrespeito sistemático aos direitos humanos. O Direito é, em essência, interdisciplinar. A doutrina penal contemporânea aponta no sentido da necessidade do empirismo criminológico para melhor interpretação da norma penal. Advogamos a idéia de que a única coisa que o Direito Penal não consegue resolver ­ tomado em caráter singular ­ é o problema da criminalidade, pois o crime é fato social antes de ser jurídico oriundo de uma multi­causa de fatores sociológicos e psíquicos. A observação do fato social deve, portanto, preceder a elaboração científica, sob pena da ciência não atingir qualquer fim prático e resultar num vazio quanto à sua experiência. Enquanto não chega esta transformação, os direitos humanos continuarão sendo a instância maior da humanidade por sua concretização como discernimento crítico­utópico. E, continuaremos a presenciar o crescimento da prostituição infanto­
78 juvenil em nosso País, apontada pela ONU como uma das maiores do mundo. Em todos os momentos e circunstâncias há que seguir lutando e reivindicando os pressupostos que façam com que seja possível a passagem dos direitos humanos do âmbito utópico e formal, para o âmbito real. Importa indagar o que se pode fazer. O que o Estado e a sociedade civil podem criar como estratégias para sua superação e intervir no sentido de que o governo comece a trabalhar essas questões, efetivando políticas sociais públicas. A violência contra a mulher é uma agressão aos direitos humanos. A criança e o/a adolescente devem crescer num ambiente familiar em clima de amor e paz, vez que são as primeiras vítimas do contexto da desestrutura familiar. A criança e o/a adolescente gozam do direito de ser preparada, plenamente, para a vida na sociedade e educada no espírito dos ideais proclamados na Carta das Nações Unidas (paz, tolerância, liberdade, igualdade e solidariedade). Um dos aspectos essenciais dessa luta para que os direitos humanos passe da utopia para a realidade, é liberá­los da ideologia individualista burguesa que foi sua matriz original na formulação histórica moderna. A nossa pretensão é arrojada. Estamos apenas iniciando um processo de sensibilização e conscientização social da problemática que emerge da prostituição infanto­juvenil e demais explorações das quais as crianças e adolescentes são vítimas. É imprescindível que segmentos organizados da sociedade encontrem sua forma de agir e interferir nesse processo. Seria utopia? Defendemos a idéia de que sem utopia não há mudança. Sem transformações que impulsionem aos direitos humanos de todos e de todas ficaremos neste estágio desumano da humanidade, no qual a barbárie é a grande tônica. BIBLIOGRAFIA ABREU, Waldyr de. A Corrupção Penal. São Paulo Forense, 1985. ALBERGARIA, Jason. Comentários ao Estatuto da Criança e do Adolescente. Rio de Janeiro: Aide, 1985. AMARAL E SILVA, Antônio Fernando. Comentários do Debatedor . In Simonetti, C. et ali (orgs.) – Do avesso ao Direito . 1994. ARIÉS, Philippe. História Social da Criança e da Família. 2. ed. Trad. por Dora Flaksman. Rio de Janeiro: Guanabara, 1981. AZEVEDO e GUERRA. Abuso e Exploração Sexual da Criança e do Adolescente na região metropolitana de Goiânia . 1992­1996. BARATTA, Alessandro. Direitos Humanos: entre a violência Estrutural e a Violência Penal. Trad. da revisão alemã (1993) do original espanhol por Ana Lúcia Sabadell. Universidade de Saarland, Alemanha. BECCARIA, Cesar. Dos Delitos e das Penas. Trad. de Paulo M. Oliveira, Rio de Janeiro: Ediouro, 1994. BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Campus, 1992.
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