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CULTURA
Tema: Os paradoxos da religião
Pesquisador: Francis Vogner dos Reis
Sinopse
A religião é um dos traços culturais mais marcantes da América Latina e representa os
seus paradoxos culturais, sociais e históricos de maneira muito particular: esteve ao lado
dos ricos, mas também apoiou revoluções populares; o sincretismo (comum, por causa
da convivência entre etnias diferentes) mistura credos antagônicos; no estado laico e
democrático, a presença da religião na política é ainda muito forte. No Brasil, filmes
espíritas estão entre os campeões de bilheteria e um padre vira astro de cinema. Para
entender a relação de fascínio e conflito presentes na religião, o programa discute os
filmes Chico Xavier, de Daniel Filho, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte,
Luz Silenciosa, de Carlos Reygadas e Nazarín, filme da fase mexicana de Luis Buñuel.
Apresentação dos filmes e das questões
Chico Xavier (Brasil, 2010), de Daniel Filho
O filme de Daniel Filho levou 3 milhões e meio de pessoas ao cinema e representa o
filão de filmes espíritas que fizeram sucesso no Brasil nos últimos anos como Bezerra
de Menezes, Nosso lar e As Mães de Chico Xavier. Fenômeno curioso porque o país
com maioria católica e minoria kardecista não repetiu os mesmos sucessos com os
filmes calcados no credo católico, á exceção do filme Maria mãe do filho de Deus, com
o padre Marcelo Rossi.
O filme biográfico do mediu espírita também responde aos sucessos de bilheteria de
conteúdo biográfico, como Dois filhos de Francisco e Lula o filho do Brasil.
O filme se ampara nos fenômenos de psicografia e nas mensagens de paz. Na carreira
do diretor Daniel Filho, Chico Xavier só fica atrás em popularidade dos dois exemplares
da comédia Se eu fosse você.
O pagador de promessas (Brasil, 1962), de Anselmo Duarte
Baseado em uma peça de Dias Gomes, O pagador de promessas foi o primeiro longametragem dirigido pelo ator Anselmo Duarte e o único filme brasileiro a ganhar a Palma
de ouro no Festival de Cannes. Conta a história de Zé do Burro que fez uma promessa
em um terreiro de candomblé. Por isso, como penitência, promete levar uma cruz nas
costas até a igreja de Santa Bárbara em Salvador. Chegando lá enfrenta a intransigência
da igreja católica, pois o padre não o deixa entrar na igreja, pois sabe da natureza da
promessa e a considera herética. Todos na cidade querem se aproveitar do ingênuo Zé
do Burro, usar sua condição para fins próprios. O filme trata da religiosidade popular
tendo como mote o sincretismo religioso. Diferente da denúncia que o cinema novo
faria da religião, pois Duarte não faz uma crítica frontal à suposta alienação do
personagem (Glauber diria que o diretor faz um elogio da passividade). No fim, os
capoeiristas invadem a igreja com Zé do burro morto em cima da cruz que carregou.
Luz Silenciosa (México, 2007), de Carlos Reygadas
Carlos Reygadas é o diretor mexicano mais festejados nos festivais internacionais na
última década. Seu cinema é lento, contemplativo, e lembra diretores como Carl Dreyer
e Robert Bresson.
Luz silenciosa se passa em uma comunidade menonita no norte do México. Essa
comunidade é protestante, do tipo puritana, fala um dialeto do holandês e seus
integrantes praticam uma vida austera e rudimentar, de moral rígida. A trama se faz em
torno de Johan homem casado que se apaixona por uma mulher, contrariando as regras
da comunidade. Reygadas acompanha o romance proibido em um ritmo inaudito em
que a evolução das coisas (da paixão proibida) é sutil, mas decisiva. Há disciplina, a
moral, mas o diretor cria uma atmosfera em que a própria natureza representa o sagrado.
A paixão de Johan atenta contra essa ordem em que não se distingue o social do
cósmico.
Nazarin (México,1959), de Luis Buñuel
Entre os filmes de Luis Buñuel realizados no México, Nazarin é o mais blasfêmico e
irônico. Aqui, Buñuel é menos um iconoclasta surrealista e mais um crítico da moral
2 cristã e de sua crença na bondade. O filme mostra o padre Nazarín em uma crise de
vocação, quando, depois de um escândalo é impedido pelo clero de celebrar missas.
Vira, então, um peregrino errante, acompanhado de uma prostituta e uma mulher
histérica. A cada tentativa do padre fazer o bem, gera uma confusão. Nazarin é a
inviabilidade do bem.
Material anexo
Chico Xavier (Brasil, 2010), de Daniel Filho
Entrevista com Daniel Filho, diretor de Chico Xavier
Cineasta conta que fez muita pesquisa para realizar o filme, mas que para ele, 'essa é
uma história de emoção'
"Era um santo, mas também era um homem", diz Daniel Filho sobre o médium mineiro
que é tema de seu mais recente filme, também denominado 'Chico Xavier'. O diretor
conta que fez uma longa pesquisa e sobre um encontro que teve com o médium.
Daniel Filho: 'Ele tinha humor e eu queria que as pessoas vissem o homem, como eu o
conheci'
No começo de Chico Xavier, você adverte que é impossível dar conta de uma vida
inteira num filme. É uma defesa antecipada das acusações que poderão ser feitas ao
seu recorte?
É como você diz, um recorte. Um filme é feito por muita gente, muitos deram sua
contribuição e eu sou, por natureza, um cara aberto, que ouve. Mas, por mais que o
cinema seja um trabalho de grupo, a responsabilidade de um filme é individual. As
escolhas são minhas. Brinco dizendo que quando um filme faz sucesso tem muitos
autores. Quando fracassa, a culpa é do diretor. Ouvi muita gente antes e durante a
3 feitura de Chico Xavier, me preparei mais do que para fazer qualquer outro de meus
filmes. Isso se reflete na tela.
A ideia de usar como eixo a entrevista de Chico Xavier no programa Pinga-Fogo é
muito interessante. E no final você tem as imagens do próprio Chico no programa,
contando, do jeito dele, coisas que vimos recriadas com atores. Como veio o PingaFogo?
Pesquisei muita coisa e aquele programa foi um marco da própria TV brasileira. Tenho
essa ligação muito forte com a história da TV no País. Achei que seria uma âncora
muito firme para a narrativa. O que o espectador não sabe é que aquilo me deu um
trabalho imenso. As câmeras usadas na época nem existem mais. Precisamos recriar
tudo, foi um trabalho de muita pesquisa. Ao mesmo tempo, o próprio Chico entrar no
filme foi... uma necessidade. Ele tinha humor, humaniza o próprio relato. E eu queria
que as pessoas vissem o homem, como eu o conheci.
Como foi o encontro com ele?
Muito breve, um aperto de mãos, algumas palavras, mas dava para sentir a energia. Para
mim, essa é, fundamentalmente, uma história de emoção. Poderia citar muitos
momentos da filmagem em que a equipe toda experimentava essa emoção, essa energia
no próprio set.
Você tem amor e respeito pelo personagem, mas não foge à controvérsia. Os trejeitos, a
vaidade. A história da peruca é divertida. Chico se indispunha muito com o espírito de
Emmanuel?
Não estou inventando, nem quando tomo liberdades para ser fiel à essência. Quem
conviveu com Chico conta que ele discutia muito com Emmanuel, a quem ninguém via,
só ele. Acho que a questão da peruca, a vaidade, não é desrespeitosa. Ela humaniza o
personagem. E eu pesquisei, sim, a sexualidade, a esquizofrenia. Chico tinha aqueles
trejeitos femininos, mas depois de muito pesquisar me convenci de que era assexuado.
Li os dados de sua avaliação psicológica, para tentar entender se seria uma fraude. Ele
4 vinha de uma família com distúrbios mentais, mas o laudo é inconclusivo. Entramos no
território da fé, e a fé não se explica. De qualquer maneira, a psicografia, que podia ser
motivo de discussão, terminou aceita como prova jurídica válida num tribunal de júri.
Isso é fundamental e está no filme.
O público ri quando o pai leva o jovem Chico ao bordel e ele puxa a reza das
prostitutas, mas a cena do Pinga-Fogo em que defende a sexualidade como intrínseca
ao homem é coisa de visionário.
A Olivia (aponta para a mulher) enfatizou que aquilo era muito forte e não poderia faltar
(A própria Olivia intervém e lembra que aquela janela aberta para a compreensão do
outro, inclusive quanto a preferências sexuais, era ousadíssima, ainda mais em 1971,
sob a ditadura militar). O Chico falando aquilo na televisão era uma revolução na época.
São momentos que não podem faltar.
A cena do avião, quando Chico tem uma crise e admite seu medo de morrer, é cômica.
Mas, depois, quando ele conta a história, é ainda mais engraçado. O humor é um
risco?
É possível que muita gente esperasse um filme sério, o tempo todo, para dar conta do
personagem, mas acho que são esses momentos, essas quebras, que o definem. O
homem era um santo, no sentido da bondade, da dedicação ao outro, mas era justamente
um homem. Abro o primeiro flash-back com a cena em que a madrinha o obriga a
lamber a ferida do amigo porque justamente isso define o que vai ser a vida de Chico. O
movimento da câmera, pegando o isolamento daquela fazenda, atrás do monte, também
é para realçar o mistério. Como esse homem surgiu naquele lugar, no fim do mundo,
para espalhar sua mensagem de amor.
Você tem grandes atores em pequenos papéis. E tem os seus três Chicos. Existem
momentos em que Nelson Xavier parece estar interpretando Ângelo Antônio. Como
chegaram a isso?
5 Ah, me desculpe, mas sou um grande diretor de atores. Aceito que critiquem tudo em
mim, menos que não sei dirigir atores. Quando eles são bons como o Nelson e o
Ângelo, nada é impossível. Havia a preocupação de dar uma continuidade. A prosódia
foi cuidada porque o jeito mineiro de falar é importante nessa história. Nelson e Ângelo
vão dizer que se conhecem há anos, já trabalharam juntos e não é difícil para eles criar
essa unidade de interpretação. Não é mesmo, mas isso era intencional e foi buscado.
Nada me orgulha mais neste filme do que o elenco. São 135 personagens. Todos têm a
mesma importância. Não há um figurante que não tenha sido preparado para interpretar
seu papel. Se o filme acontecer, como espero, vou dever muito a esse elenco
maravilhoso.
Luiz Carlos Merten
O Estado de S. Paulo - 29 de março de 2010
Surrealismo e quixotismo no cinema de Luis Buñuel
“Os super-filmes devem servir para dar lições aos técnicos: os de Keaton, para dar
lições à realidade ela mesma”.
“Cara imaginação, o que eu amo, sobretudo em você, é que você não perdoa”.
Os dois fragmentos acima, o primeiro de um texto de Buñuel sobre Amores de
Juventude de Keaton e o segundo do primeiro manifesto surrealista de Breton, resumem
com feliz precisão as linhas gerais da obra fílmica buñelina. De um lado, a recusa do
esteticismo e a assunção da precariedade material como opção estético-ideológica, a
serviço de uma concepção cimematográfica que se poderia chamar de cinema de tese
(se depurarmos a expressão de certo ranço cientificista): técnica escorreita e linear a
serviço de uma violência crítica sem precedentes na história do cinema; de outro lado, o
uso da imaginação, do humor negro, da poesia como invectiva contra a racionalidade; a
problematização e a complexificação do que chamamos realidade.
Pela surpreendente unidade temática que perpassa essa obra, por sua densidade de
pensamento, por sua negação do encantamento da técnica, a obra de Buñuel é dessas
6 que para ser entendida exige antes a perquirição de suas “iluminações profanas” (W.
Benjamin) que achegas formalistas. Como observou Octavio Paz, os filmes buñuelinos
“podem ser apreciados e julgados como cinema e também como algo pertencente ao
universo mais amplo e livre dessas obras, preciosas entre todas, que têm por objetivo
tanto revelar-nos a realidade humana como mostrar-nos uma via de ultrapassá-la”.
Dessa forma, nossa especulação, antes de delinear algo como um estilo buñuelino, o que
em stricto sensu talvez nem exista, imprime-se no sentido de tentar desvelar dois
aspectos capitais que enformam a mundividência de Buñuel: o surrealismo e o
quixotismo e a relação destes com o que poderíamos chamar de poesia a fílmica
buñuelina.
II
Em uma conferência hoje clássica, dizia Buñel, com dissabor, que “em nenhuma das
artes tradicionais há, como no cinema, tamanha desproporção entre possibilidade e
realização”. Essa reivindicação, verdadeira ladainha na boca dos surrealistas, como
aprova as intervenções de Desnos, apologista do “cinema frenético”, não a fez Buñuel
nos tempos heróicos de Um Cão Andaluz (1928) e A Idade do Ouro (1930) mas em
1958, quando o cineasta já residia no México e já produzira películas do calibre de Os
Esquecidos (1950) e A Ilusão Viaja de Trem (1953).
De fato, mesmo com a inserção da fantasia e da técnica decupagem por Meliès, mesmo
depois da liberação do cinema da condição de teatro filmado por Griffith e do notável
aprimoramento das técnicas de montagem pela escola russa de Eisenstein e Pudovkin, o
cinema parece ter se achegando timidamente na região da poesia. Sem desconsiderar
experiências anteriores, podemos fazer coro com Octavio Paz e observar que a incursão
verdadeiramente definitiva do cinema na região da poesia deu-se com Um Cão Andaluz.
Segundo Ángel Sobreviela, Buñuel, com Um Cão, “realizó una película sin personajes
realistas ni argumento coherente, donde la imagen poseía una fuerza casi independiente
en su poder de conmoción”.
Nessa película, cujo roteiro Buñuel dividiu com Dali, a poesia associativa - herdeira do
encontro casual de um guarda-chuva e uma máquina de costuras numa sala de cirurgia
7 de que fala Lautréamont - poreja por todos os lados. Não há uma narrativa; a montagem
relacional simbólica, para usar a nomenclatura de Pudovkin , não tem fins ideológicos
imediatos, como no cinema russo, mas é um instrumento de desautomatização, de
afronta ao bom senso burguês, de crítica pela via do humor negro, de exploração do
obscuro mundo dos desejos. Poético que seja, no entanto, não se pode negar que Um
Cão peca pelo esteticismo, por certos maneirismos surrealistas, o que explica o fato de
esse filme, conforme Buñuel relata em sua autobiografia, ter sido sua senha de entrada
no grupo surrealista. A aura buñuelina - hispanicamente lírica e feroz, como observa
Paz - já vai está bem delineada em A Idade do Ouro, seu segundo filme.
O feroz aí faz pressupor que a poesia fílmica em Buñuel não é confundida com lirismo
melodramático - embora em um filme como Abismo da Paixão (1954) o cineasta
mexicanamente desperdice sua força poética pela incursão ao melodrama - nem
tampouco com o núcleo essente que permeia as artes: trata-se do consórcio preciso entre
as opções técnicas e as matrizes anti-racionalistas (surrealismo, anarquismo,
quixotismo) do pensamento buñuelino. Isso porque em Buñuel a idéia precede e
seleciona a técnica (sem, no entanto, prejudicá-la), de modo que sua mundividência está
não somente na camada discursiva verbal de suas faturas, mas em todas as outras
camadas discursivas. Buñuel, portanto, passa ao largo dos cineastas que pretendem fazer
filmes com mensagens subversivas mantendo os padrões racionalistas e comerciais de
produção.
A poíesis (do grego poiein: fazer, criar, imaginar) de seus filmes origina-se de técnicas
como a montagem relacional (o choque de imagens de campos distintos), a quebra da
causalidade, a quase indiferenciação, tão espanhola, entre o sonhado e o vivido e a
inserção de elementos estranhos à diegese do décor ou do fluxo da narrativa (o urso e
uma ovelha na mansão de O Anjo Exterminador, de 1962; uma mulher cerzindo numa
loja um rasgão num mantô de renda ensangüentado em Esse Obscuro Objeto do Desejo,
de 1977) , mas estas técnicas não estão para ostentar uma postura vanguardista,
hermética, adepta da arte pela arte. Surreal e anarquista, poeta e escafandrista dos
desejos obscuros, Buñuel não descende da linguagem de Griffith e Welles. Don Luis
quer demonstrar, quer materializar idéias, quer polemizar contra qualquer instância
repressora dos instintos humanos - daí a necessidade de ser sóbrio, claro; de comunicar 8 tornar comum - para intervir. “A imaginação mais violenta e livre a serviço de um
silogismo cortante como um punhal, irrefutável como uma rocha”, eis a imagem desse
cinema subversivo na visão de Octavio Paz. A ética anarquista-surrealista de Buñuel
jamais permitiria o encantamento da técnica, sua fetichização. Fiel às raízes surrealistas,
ele preferia Chaplin a Welles, De Sica a Rossellini.
Para Buñuel, a função do cinema não é “representar a realidade” - noção cara ao
realistas vulgares, de ontem e de hoje, e oriunda de uma leitura deturpada da mímesis
aristotélica - mas poetizá-la, alargando-a pela escavação dos pontos obscuros que a
moral burguesa tenta ignorar. Uma poética visceral - jamais ornamental. Sua crítica a
um diretor do porte William Wyler, por exemplo, centra-se no fato de Wyler produzir
filmes de perfeita realização técnica porém a serviço de uma narrativa banal,
melodramática, destituída de mistério e comprometida com o bom gosto e o humor
branco da moral vigente. “O cinema”, afirma, “parece ter sido inventado para expressar
a vida subconsciente, tão profundamente presente na poesia”.
O cinema buñuelino, ainda que sendo indubitavelmente surrealista, não apresenta,
exceto em Um Cão Andaluz e em extratos de A Idade do Ouro, o vício efectista das
obras que se querem ortodoxamente surreais. Em pleno século XXI, já um tanto distante
da revolução surrealista, não podemos fugir, diante de algumas peças desta e doutras
vanguardas, de um quê de constrangimento diante de certos maneirismos, certas
recorrências que percebemos não passar de concessões à euforia da época. Com o
cinema de Don Luis o mesmo não ocorre: ele captou o cerne do espírito surrealista e
rechaçou quase totalmente seus maneirismos mecanizados. Por isso, sua obra entra no
século XXI mais maldita do que nunca, na melhor acepção do termo “maldito”.
Em sua autobiografia, Buñuel fez um balanço do que ficara como permanente, em seu
espírito, da vivência com o grupo surrealista. Fica claro que os três anos em que
participou ativamente do grupo não lhe deixaram traços mais dogmáticos. Buñuel
afirma que, em primeiro lugar, lhe ficou “esse livre acesso às profundezas do ser,
reconhecido e desejado, esse apelo ao irracional, à obscuridade, a todos os impulsos que
vêm do nosso eu profundo”; em seguida, destaca a descoberta “de um conflito muito
forte entre os princípios de toda moral adquirida e minha moral pessoal, nascida de meu
9 instinto e de minha experiência ativa”. De fato, some-se a isso o humor negro e teremos
os ingredientes básicos de Ensaio de um Crime (1953), A Bela da Tarde (1966) e Esse
Obscuro Objeto do Desejo.
III
Mas as raízes da obra buñuelina não são apenas surrealistas. Estão cravadas, com igual
vigor, na hispanidade.
Um dos intérpretes mais considerados da hispanidade, Américo de Castro, definiu a
moderna história espanhola como sendo “a história de uma insegurança”. Segundo
Castro, enquanto a França assimilou seu passado, não sem muitos esforços, valendo-se
das categorias do racionalismo e da clareza, e a Inglaterra conseguiu semelhante proeza
pela via do empirismo e do pragmatismo, de modo que para essas duas nações o
passado não se constitui num problema, a Espanha, herdeira de múltiplas heranças
(cristã, judaica, mulçumana), não atingiu qualquer síntese, de modo que no ethos
espanhol palpitam querelas irresolúveis e o passado lhe é um peso dos mais
desconfortáveis.
Ora, talvez a melhor síntese da palpitante e confusa alma espanhola seja o quixotismo.
E seu intérprete mais radical talvez tenha sido Miguel de Unamuno. Para Unamuno,
Dom Quixote é um verdadeiro santo, fundador do quixotismo, lídima religião da
Espanha e maior contribuição desse país à cultura ocidental. Quixotismo, de acordo com
voluntarismo agônico desse pensador, seria bem mais que o enlace entre boas intenções
e ingenuidade; seria “todo um método, toda uma epistemologia, toda uma estética, toda
uma lógica, toda uma ética; sobretudo, toda uma religião, isto é, toda uma economia do
eterno e do divino, toda uma esperança no absurdo racional”. Dom Quixote é grande
pelo seu heroísmo trágico e sua grandeza era vencer justamente por ter sido vencido:
“su locura sublime consistió en hacerse el loco frente al mundo, en tomar éste no como
es, sino como el creía y quería que fuese”.
10 Esse heroísmo trágico, essa loucura lúcida, essa coragem de se entregar à zombaria do
mundo e extrair forças dela, esse sentido comunitário que Quixote encarna tão bem
perpassa, mutatis mutandi, segundo Unamuno, os grandes empreendimentos hispânicos
(A Conquista Americana, a Contra-Reforma), seus místicos (San Juan, “cavaleiro
andante do sentimento do divino”) e seus artistas (Velázquez, Calderón).
No âmbito dessa problemática, Carlos Fuentes, com aguda percepção, mostrou que o
herói espanhol é “o herói do que falta, do que não está a seu alcance, do que ele almeja,
do que deseja”. Contrapondo o Quixote ao Robinson Crusoé, Fuentes observa que este,
como o Tom Jones, “são produtos do apogeu de progresso atingido por sua sociedade, e
estão, nesse sentido, afinados com ela”, ao passo que o Dom Quixote é criado “a
despeito da sociedade”, a despeito da Contra-Reforma, da Inquisição, da dinastia dos
Hamburgos. Robinson, protótipo do herói inglês, encara o mundo com segurança
pragmática, é um “self-made man que aceita a realidade objetiva e depois a adapta a
suas necessidades”; Quixote, protótipo do herói espanhol, naufraga em qualquer
empresa prática.
O cinema de Buñuel aponta para o quixotismo na medida em que a relação de seus
personagens com a realidade empírica é uma relação de ruptura. Seus personagens são
restauradores netos de Alonso Quijada, ainda que nem sempre com o mesmo grau de
pretensão ou num tom às vezes menos heróico-trágico que pessimista. Como observou
Ruy Gardinier, em Buñuel repete-se continuamente “o sonho da bela comunidade, da
agregação ideal de um grupo de pessoas afins, de modo a transformarem o mundo em
algo mais belo”, embora isso nunca se dê plenamente, como acontece com Nazario e
Viridiana. Ou, menos pretensiosamente, mas de forma não menos quixotesca, os
personagens buñuelinos tentam completar-se na busca do Outro - o personagem de
Fernando Rey à busca da ambígua Conchita em Esse Obscuro Objeto do Desejo - ou de
Algo - um jantar que nunca se realiza em O Discreto Charme da Burguesia (1972).
Grande parte da magia que Buñuel imprime aos seus filmes advém da força sugestiva
desses gestos incompletos - o sacrifício tantálico dos que desejam. Essa impossibilidade
de realização dos desejos tem em Buñuel uma explicação de cunho político - os
processos de reificação, a falta de ousadia da burguesia - e outra de cunho metafísico - a
negação da racionalidade do real. Esse pressuposto metafísico engendra outro artifício
11 “mágico” nos filmes de Buñuel: a ressignificação do espaço humano, do ser-no-mundo
mesmo, pelo deslocamento, prenhe de humor negro, de seres de um lócus para outro: o
formigueiro que surge na mão de um personagem ou os pêlos da axila de uma moça que
tomam o lugar da boca de um rapaz (em Um Cão Andaluz), um saco de estopa
desnecessariamente carregado por um apaixonado (em Esse obscuro Objeto do Desejo),
um velório num restaurante burguês (em O Discreto Charme da Burguesia).
Para o filósofo Clement Rosset, “o que a moral censura não é, de modo algum, o imoral,
o injusto, o escandaloso, mas sim o real - única e verdadeira fonte de todo escândalo”.
Grande número de filósofos e artistas - reflete esse filósofo francês -- engendram obras
“cujo principal objetivo não é revelar a verdade ao homem, mas fazê-lo esquecê-la", já
que a realidade é intrinsecamente cruel. É possível que Buñuel não concordasse com os
fundamentos da ontologia do real de Rosset, mas é certo que o cineasta é um exemplo
acabado de artista “cruel”, cuja obra, imbuída de lucidez e retidão ética, visa não a
remediar provisoriamente as agruras do real, mas torná-las visíveis, obrigando-nos, se
não a uma ação efetiva, pelo menos a reflexão inapelável. Tanto a Rosset quanto a Don
Luis horroriza não, imediatamente, a imoralidade e as injustiças, mas a propensão
pusilânime do homem ao moralismo, que escamoteia estes aspectos. Como todo artista
que deseja intervir mas recusa a arte panfletária, Buñuel aponta mas não julga, preza
pela clareza mas não pelo simplismo, respeita o espectador mas não o adula: perturba-o.
Realiza aquilo que Sartre queria do verdadeiro artista engajado: dá a sociedade uma
“consciência infeliz”. Em suma, tem uma visão de mundo, mas não uma doutrina.
Mas voltemos ao quixotismo, aos gestos incompletos e vejamos, ainda que de relance,
como ele se constrói em algumas obras fílmicas do autor.
Como observa Fuentes, “o cinema de Buñuel é sempre fiel ao seu conflito básico: uma
luta entre dois estilos de olhar, e, através de qualquer um deles, um conflito entre a
decisão de se ligar ao mundo ou recusar esse laço”. Em A Ilusão Viaja de Trem dois
homens, depois de uma bebedeira, resolvem matar a saudade de um velho bonde que vai
ser desativado realizando uma última viagem. O desejo de ambos é dividir a “poesia da
vida” que sentiam, oferecendo às pessoas um passeio sem cobrar pelo ingresso. À certa
altura, um senhor entra no bonde e , mesmo com explicações, insiste em pagar,
12 qualificando os dois saudosistas de comunistas. Um pouco adiante, o velho bonde é
confundido com outro que conduziria uma excursão. De decepção em decepção, o gesto
poético dos dois Quixotes não encontra guarita num mundo desencantado até as
vísceras: os gigantes voltam a ser moinhos. Como Tântalos às avessas, os dois oferecem
fino maná mas as pessoas não podem tocá-lo: Dom Quixote volta a ser Alonso Quijada.
Nazario (1958), quiçá o mais quixotesco dos filmes de Buñuel, explora a temática da
debilitação das possíveis forças revolucionárias do cristianismo causada pela sua
institucionalização, ou antes, indaga sobre a possibilidade de um cristianismo radical no
mundo desencantado. O cura Nazario, numa tentativa poeticamente exasperada de viver
os Evangelhos, recusa o jugo da Igreja institucionalizada e resolve sair em peregrinação
para pregar a Palavra. Mas assim como Quixote só em si restaura o espírito
cavaleiresco, o cura tampouco estende seu cristianismo radical (do latim radix: raiz) aos
outros. Todos os episódios do filme se constituem num processo de lenta assunção, por
parte do protagonista, da poesia precária da condição humana em detrimento da ilusão
de uma divindade. Talvez o momento mais denso do filme, o momento em que ressoa
com mais intensidade no cinema buñuelino o clamor de fidelidade à terra tão bem
personificado no Zaratustra nietzschiano, talvez esse momento seja aquele em que indo
o cura oferecer consolo a uma aldeã, ouve-lhe essas palavras: “Juan si, cielo no”. Para
Octavio Paz, todo o cinema de Buñuel é uma “crítica da ilusão de Deus”; seu tema-mor
não é a culpa do ser homem mas de Deus. É possível que Paz esteja certo, mas é
possível que essa sua afirmação case melhor em trabalhos como A Idade do Ouro,
Nazarin, Simão no Deserto (1965), A Via-láctea (1969) e Viridiana (1961). Da nossa
parte, preferimos ver, nessas películas abertamente atéias como Nazarin e Viridiana, a
exemplificação do paradoxo do triunfo pelo fracasso conforme o quixotismo radical de
Unamuno. Mas também não podemos negar que o quixotismo , como a crítica da ilusão
de Deus, também seja uma forma até certo ponto precária de ler o cine de Buñuel, já
que também ele não perpassa, pelo menos explicitamente, todos os filmes do diretor.
Uma palavra que talvez resuma a complexa obra buñuelina seja acusação. Por qualquer
lente que se queira ver este cinema - quixotismo, surrealismo, anarquismo, ateísmo,
marxismo, freudismo - não se pode negar que suas estratégias formais, sua densidade
simbólica, estão a serviço da acusação: da ilusão de Deus, das ilusões da burguesia, das
13 ilusões do cinema comercial, das ilusões de satisfação espiritual do homem, das ilusões
de domesticação dos instintos.
O cinema de Buñuel encontra seu resultado estético mais bem acabado, segundo muitos
intérpretes, em Viridiana. O filme conta a história da jovem noviça Viridiana que, em
vésperas de tornar-se freira, é mandada a visitar seu tio e financiador Dom Jaime. Este,
que não vê a jovem há muitos anos, ao contemplá-la lembra-se da imagem da mulher
morta precocemente. Apaixona-se subitamente. E por meio de remédios dormitivos, já
que não havia outra saída, tenta possuí-la. Ao saber da tentativa do tio, Viridiana,
sentindo-se impura, quer retornar ao convento, mas o suicídio deste que é praticamente
seu único parente, obriga-a a ficar e pagar por sua “culpa” e sua “impureza”. A
quixotesca estratégia da jovem é expiar sua culpa reeducando um grupo de mendigos
que é levado para as terras do falecido tio, a fim de adquirir bons modos, fé e interesse
pelo trabalho. Mas assim como Dom Quixote é ridicularizado e apedrejado pelos
escravos que liberta das galés, assim também Viridiana é explorada, escarnecida e quase
violentada pelos mendigos que tenta em vão reeducar. Ao final, Viridiana, “A Don
Quixote mulher”, desiludida, reúne-se a seu primo e sua dissimulada criada, “dois
outros grandes arquétipos espanhóis, Don Juan e La Celestina, num arruinado castelo
feudal onde formam um profano ménage à trois, jogando cartas e ouvindo discos”
(Fuentes). Um aspecto irônico e de grande significado nessa cena final que Fuentes tão
bem interpretou é a introdução do rock n’roll no lugar da música religiosa, reforçando
adesão heroicamente trágica de Viridiana à vida profana. Esse filme apresenta ainda
uma das seqüências mais grotescas e violentamente atéias da história do cinema, a
seqüência da festa dos mendigos, que culmina com a paródia da Última Ceia de
Leonardo, paródia na qual o lugar de Cristo é ocupado por um mendigo cego, lúbrico e
violento.
IV
Caberia ainda algumas observações complementares sobre a poesia fílmica de Buñuel,
na tentativa de atar dialeticamente a questão forma-e-fundo que perpassa sua
filmografia. Para isso, cabe uma breve achega com outro poeta do cinema, Andrei
Tarkovski. Temos, nestes dois cineastas, dois modelos extremos de poesia fílmica, que
14 podemos denominar provisoriamente de pura e impura, sem com isso estabelecer um
juízo de valor.
Em Tarkovski, como observou um estudioso de sua obra, o já citado Sobreviela, a
expressão poética é pura porque é ela seu ponto de partida e de chegada. Considerando
o cinema uma arte auto-suficiente (ao contrário de Buñuel, que sempre quer transcendêlo), esse grande cineasta russo filma antes epifanias que histórias; o uso inconfundível
que faz do traveling antes denuncia e adensa o mistério dos objetos e paisagens,
doando-lhe voz, do que lhe explicam. Segundo Sobreviela, o cinema tarcovskiano adota
“unas actitudes ante el mundo que se tornan subjetivas, cargadas de emotividad, en
cuanto cesan de ser documentales, mero registro. Los objetos, los ambientes (…) son
otra cosa que en una película cualquiera”, apesar disso “no debe pensarse que se limita a
aplicar una pátina lírica a un relato (…) pues este estilo, que no se adapta a las historias
que narra, sino que las historias se adaptan a él, construye minuciosamente una
atmósfera de alta tensión espiritual que hace posibles los milagros y las revelaciones en
el mundo real”.
Em Buñuel, ao contrário, a poesia é impura porque nasce de imperativos éticos e
ideológicos. Afinal, como transmitir uma visão de mundo surrealista de forma apoética?
As perspectivas ideológicas de Dom Luis precediam suas opções formais. Ele nunca
buscou sistematicamente a poesia imanente nas coisas. Não existe para ele cinema em
si. Da mesma forma que a prática dos poetas surrealistas “representou a recusa da
poesia em se deixar reduzir ao poema, isto é, a uma pura e simples expressão literária”
(E. Morin), assim também Buñuel relutou em fazer - com o perdão do termo - um
cinema “cinematográfico”: quis antes complexificar, ressignificar, numa palavra cara a
Morin, desprosaizar o que chamamos realidade cotidiana. Herdeiro do romantismo
alemão, filho do surrealismo, escudeiro do exército de “nosso senhor Quixote”, como
dizia Unamuno, Buñuel recusa tanto a prosaidade do mundo utilitário burguês, como a
esterilidade (no ponto de vista dele) do esteticismo; sua arte emerge de um pacto com a
vida, na busca de resgatar, ou pelos menos recordar, o animal humano anterior ao
pecado original. Não se pode, pois, falar sensatamente de um primeiro plano, de um
travelling ou de qualquer outra figura retórica em Buñuel que não esteja para além da
função estética: ato de rebeldia.
15 A poesia fílmica de Buñuel é, como toda poesia surrealista, cataclismática. Se Dom
Luis a escrevia às vezes em arabescos um tanto irregulares é porque se recusava tanto à
pena dos antigos, como à nossa triste esferográfica produzida em série: preferia uma
navalha.
Wanderson Lima
Agulha - revista de cultura
Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/ag52bunuel.htm
Trecho a seguir é parte da monografia “A religião no cinema de Buñuel”
Educação Religiosa Produzindo Ateus
O cineasta espanhol Carlos Saura afirmou que na Espanha existem três coisas muito
importantes: a Igreja, o sexo e o exército (RENTERO, Juan Carlos. 2003: p. 29). Luis
Buñuel, outro cineasta espanhol, daria à observação de Saura em relação à Espanha uma
dimensão especial. Seu ateísmo, por exemplo, não excluía certo fascínio pelos mistérios
da fé e da Virgem Maria. Em 1961, a propósito das polêmicas em torno de Viridiana
(Viridiana, 1961), então seu novo filme, Buñuel disse que tendo nascido numa família
muito católica e freqüentado um colégio jesuíta dos oito aos quinze anos, a educação
religiosa deixou marcas profundas em sua vida. Mas o surrealismo também, Buñuel
enfatizou. Disse ainda que Viridiana segue sua tradição pessoal desde A Idade do Ouro
(L’Age D’Or, em co-direção com o pintor Salvador Dalí, 1930). Com trinta anos de
diferença, Buñuel deixou claro, foram os filmes que realizou mais livremente
(BUÑUEL, Luis. 1968: p. 6).
Não se pode negar que sua infância deu-lhe a oportunidade de um conhecimento amplo
daquilo que veio a renegar. Iniciaria seus estudos com os corazonistas, equivalentes na
França aos irmãos do Sacré-Coeur de Jésus, mais bem vistos em sua cidade natal do que
os lazaristas. Um ano depois, é transferido para um semi-internato Jesuíta por sete anos.
Seus dias começavam com a missa, às 7h30, e terminavam com o rosário da tarde. à
menor infração, o aluno ficava de joelhos, de braços abertos e com um livro pesado em
cada mão. Sempre vigiados, Buñuel contou que, para ir ao banheiro, os alunos sempre
16 eram seguidos pelos olhos de um padre. Não podiam tocar uns aos outros, caminhando
em fila dupla, a cerca de um metro uns dos outros (vemos algo parecido no início de
Viridiana). Estudava-se a vida dos santos, catecismo, apologética. Nas aulas de
filosofia, aprendia-se a refutar o pensamento de Immanuel Kant. Uma observação
particularmente curiosa para muitos de nós, Buñuel disse que nunca houve escândalo
sexual, fosse entre alunos, ou entre alunos e professores. Por volta dos catorze anos de
idade, as primeiras dúvidas referentes à religião surgem na mente do jovem Buñuel
(BUÑUEL, Luis. 2009: pp. 46-8).
Quando Nazarin (1958) foi premiado em Cannes, uma situação curiosa tomou corpo.
De um lado, Simone Dubreuilh saudou o filme como um libelo anticonformista criado
por um Buñuel avesso à religião. Nazarin, dizia Dubreuilh, fala da impossibilidade da
graça, da salvação das almas e da caridade cristã. Um filme que amaldiçoa os santos
óleos, um filme onde o Bem semeado pelo protagonista volta-se contra ele. Do outro
lado, a Associação Católica Internacional para o Cinema, propôs premiar Nazarin como
melhor filme católico no Festival de Cannes. Embora um dos religiosos presentes tenha
dito que Buñuel só fala dos “defeitos menores do clero”, o que não invalida a
mensagem religiosa de Nazarin, no final venceu a turma que dizia que os católicos
estavam equivocados, que na verdade Buñuel era anticlerical até a raiz dos cabelos!
Como explicava a brochura distribuída no Festival durante a apresentação de Viridiana,
as preocupações religiosas e sexuais de Buñuel “não se explicam inteiramente se não se
leva em conta de que maneira estes problemas são encarados na Espanha” (SADOUL,
Geoges. 1962: pp. 11 e 23).
Entre a Fé Verdadeira e Caridade Hipócrita
“Já não creio no progresso social. Só posso acreditar em alguns poucos indivíduos
excepcionais de boa fé, ainda que fracassem, como Nazarin”
Luis Buñuel
(KROHN, Bill; DUNCAN, Paul. 2005: p. 113)
Em Simão do Deserto (Simon del Desierto, 1965), um beato vive no topo de uma
coluna durante 6 anos, quando ganha uma com 11 metros de altura. Rodeado por
17 seguidores, faz milagres e enfrenta o diabo. O roteiro é baseado na história de San
Simeón. Durante a Idade Média, o anacoreta viveu mais de 40 anos no alto de uma
coluna no deserto da Síria. Com o poeta e amigo Federico García Lorca, Buñuel se
divertia ao ler que as fezes do santo escorriam pela coluna como a cera de uma vela.
Conchita, irmã e secretária de Buñuel, disse que certa vez, quando estavam em Madri,
hospedaram-se no 17º andar do único arranha-céu da cidade na época. Buñuel ficava lá,
disse ela, como um monge no alto de uma coluna (BUÑUEL, Luis. 2009: p. 328). Em
1958, Buñuel filma Nazarin. “Nazarin”, Buñuel confessou, “é um homem fora do
comum, por quem sinto grande afeto” (KROHN, Bill; DUNCAN, Paul. 2005: p. 114.).
Como Simão, Nazarin é uma mistura de Cristo e Don Quixote.
Nazarin vive num mundo só seu e acredita que tudo irá bem se fizer o bem. Mas suas
boas ações acabam mal. Dedica-se aos pobres e pouco se importa quando delinqüentes
lhe roubam os poucos pertences. Por conta do escândalo que gerou ao acolher e cuidar
de uma prostituta ferida em seu quarto o proíbem de celebrar missas. Nazarin então se
livra de suas vestes eclesiásticas e passa a viver como mendigo. Seus únicos seguidores
são duas mulheres, Ándara, a prostituta a quem ajudou, e Beatriz, amiga dela, uma
histérica abandonada pelo amante. É preso e tem de ser defendido por outro detento na
cadeia. ”Você está no bando do bem e eu no do mal. E nenhum dos dois serve para
nada”, desabafa seu defensor.
Noutra seqüência, Buñuel ataca a idealização dos pobres e do ideal de bondade.
Nazarin, Ándara e Beatriz encontram uma moribunda que só pede a presença de seu
amado Juan. O beato procura fazê-la se arrepender de seus pecados e prestar contas a
Deus. “Céu não, Juan”, repetia a mulher para espanto de Nazarin, que não compreende
como se pode ignorar a salvação eterna – em alguns DVDs, substitui-se a palavra “céu”
por “Deus”, o que dá na mesma. Beatriz, que sofre com a ausência de seu próprio
homem, em seu silêncio parece concordar com ela (HOLANDA, Samuel. 1993: pp. 945). Juan chega e expulsa os beatos a pedido dela. Portanto, o mundo da fé perde também
para o amor louco – que chamou a atenção de Buñuel e do grupo surrealista em O
Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brönte, 1818-1848) (RUIZ, Adilson. 1993: p. 213).
Buñuel afirmou... “Posso blasfemar sobre o amor louco, caso isso me ocorra. É
vivificante, às vezes, blasfemar contra aquilo em que se acredita” (KROHN, Bill;
18 DUNCAN, Paul. Op. Cit.: p. 177). É o que poderíamos concluir de sua opinião sem
hipocrisia em relação à caridade: “Sou contra a caridade cristã. Mas então, se vejo um
homem pobre que me comove, dou-lhe cinco pesos. Se não me comove, se me parece
antipático, não lhe dou nada. Então, não se trata de caridade” (Idem: p. 64).
A Igreja, a Censura e o Surrealismo
“Não me interessam os personagens sem aspectos contraditórios, porque então sabemos
tudo sobre eles desde o primeiro momento”
Luis Buñuel
(Ibidem: p. 87)
Em Viridiana uma mulher vive absorvida em sua fé, almeja noivar com Cristo, mas
acaba por se render aos desejos sexuais. O ponto alto é a seqüência em que mendigos
invadem a casa onde mora e fazem um banquete e uma orgia. Viridiana acreditava que
através de orações e trabalho eles seguiriam o caminho do Bem. A referência católica
fica por contada recriação da Última Ceia, só que com os mendigos. Georges Sadoul
sugere que Viridiana é “um pouco” a seqüência de Nazarin (SADOUL, Geoges. Op.
Cit.: p. 10). Buñuel disse que a censura, paradoxalmente, até o ajudou na cena final.
Originalmente, Viridiana batia na porta do quarto do primo e o encontrava com a
empregada. A servente saía e ela tomava seu lugar. A censura achou escandaloso um
homem com duas mulheres. Buñuel substituiu por um jogo de cartas a três. “E agora”,
confessou Buñuel, “eu estou quase envergonhado de meu primeiro final: era muito
grosseiro, muito direto” (Idem: p. 22).
L’Observatore Romano, jornal do Vaticano, reagiu mal quando Viridiana ganhou a
Palma de Ouro no Festival de Cannes: “Pela primeira vez talvez na história dos festivais
internacionais, além das habituais exibições de impudor, verificou-se uma seqüência de
representações blasfematórias”. O jornal se referia a Madre Joana dos Anjos (Matka
Joanna od Aniolów, direção Jerzy Kawalerowicz, 1961) e Viridiana. O governo
espanhol do ditador General Francisco Franco, apressou-se em censurar os jornais. Não
19 deveriam mencionar o filme e nem mesmo o nome de Buñuel. Franco também demitiu
o diretor-geral da Cinematografia espanhola por ter subido ao palco, em Cannes, a fim
de receber o prêmio (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 2009: p. 330). Por força de acordos
políticos entre os governos espanhol e francês, quase que se conseguiu banir o filme
também da França (SADOUL, Geoges. Op. Cit.: pp. 29 e 33).
Buñuel contou que Franco talvez tenha assistido ao filme e não achou nada demais. De
fato, observou Buñuel, depois do que aconteceu durante a guerra civil espanhola, a
favor ou contra a Igreja, o filme devia parecer muito inocente. Viridiana estreou na
Itália em Roma, mas em Milão foi proibido e a Justiça determinou que Buñuel fosse
preso por um ano caso entrasse no país. O cineasta italiano Vittorio De Sica saiu
horrorizado e oprimido do cinema após assistir Viridiana. De Sica chegou a perguntar à
esposa de Buñuel se ele era de fato monstruoso e costumava espancá-la. Adotando outro
tom, Françoise Giroud definiu Viridiana como um filme terrível, “(...) que se deve
guardar com cuidado. A ver e rever, mas não com uma companhia qualquer. Seria
arriscar-se, na saída, a ficar petrificado e mudo, só para não confrontar a Viridiana da
gente com a da outra pessoa”. Na mesma época, em Paris, desabafou Buñuel, não
gostou de um cartaz onde era chamado de “o diretor mais cruel do mundo” (BUÑUEL,
Luis. Op. Cit. 1968. P. 241; Op. Cit. 2009. P. 331).
De acordo com Frédéric Grange, em Viridiana Buñuel explicitou o papel da burguesia
na degradação dos valores cristãos. A aristocracia rural espanhola, impotente para
garantir seu futuro, se articula em torno de valores cristãos para reafirmar seu poder. A
beata representaria o poder cristão da Igreja, e não o mito cristão – representado por
Nazarin (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 1968: p. 214). Grange afirma que Viridiana encena a
passagem do poder, da aristocracia para a burguesia – na figura do empreendedorismo
do filho de Dom Jaime. Devido à degradação de seus valores ao longo dos séculos, a
Igreja também se rearticula com o poder. A aristocracia é representada pelo conservador
Dom Jaime. Ele deseja Viridiana, desejo reprimido que acaba mal. Sua esposa morreu
no dia do casamento, ele quer reviver este momento e pede a Viridiana para colocar o
vestido da noiva – ela é idêntica à morta. Narcotiza a beata, mas não consegue possuí-la.
Ele se enforcou com a corda de pular da filha da empregada, a única que conservou sua
inocência.
20 Viridiana, a beata, por sua vez, faz parte dessa classe social que perde a hegemonia e
morre com Dom Jaime. Ela procura voltar a um cristianismo militante num mundo em
progressiva dessacralização. Entretanto, suas atitudes estão em desacordo com a marcha
da História. Em comparação a Nazarin, o fracasso de Viridiana representa também o
aniquilamento dos valores que ela professa. Enquanto Nazarin agia basicamente num
sentido a-histórico, Viridiana queria se integrar à História para não ser excluída do
progresso. Para tanto, ela procura se reintegrar ao mundo secular. Viridiana quer
participar da História, introduzindo nela os ensinamentos cristãos. Mas os ensinamentos
se viram contra ela. Enquanto prega a castidade, será estuprada por aqueles a quem
escolhera como objeto da caridade (Idem: pp. 215-7).
Mesmo que Buñuel sugira que os fanáticos viviam enxergando “chifre em cabeça de
cavalo” nos seus filmes, o que dizer da cena de Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou,
em co-direção com o pintor Salvador Dalí, 1929) onde um homem puxa um piano na
direção de uma mulher. Juan-Luis Buñuel, filho do cineasta, disse que as interpretações
sobre o filme eram as mais variadas. Por exemplo, os jumentos mortos sobre o piano
simbolizariam a Morte. Os dois padres amarrados ao piano simbolizam a religião
detendo o homem. O piano representaria seu coração impedindo o homem de alcançar
seu objeto do desejo, a mulher. Matthew Gale sugere que esse significado seria bastante
evidente e óbvio na cena. A propósito, Gale nos conta que próprio Salvador Dalí atou
como um dos padres - à direita da imagem (GALE, Matthew. 2007: pp. 86 e 90).
Entretanto, esclarece Juan-Luis aos que não estão familiarizados com o método
surrealista empregado por Buñuel e Dalí, e talvez possamos incluir Gale neste grupo,
que a idéia é justamente não permitir qualquer interpretação simbólica. Era um sonho
irracional, disse.
De acordo com Gale, A Idade do Ouro articula política e religião de forma muito mais
explícita do que Um Cão Andaluz. A cerimônia de fundação de Roma (“...A antiga
amante do mundo pagão à séculos tornou-se a sede secular da Igreja...”) seria uma
paródia do fascismo italiano nascente. As pretensões de Mussolini são satirizadas pela
procissão e o discurso de fundação, pelos bispos sentados numa região que talvez o
público da época reconhecesse (infestada de bandidos), e finalmente pela imagem dos
21 esqueletos dos bispos com suas mitras (palavra que ao mesmo tempo designa o
ornamento que autoridades eclesiásticas usam na cabeça e a carapuça de papel colocada
nos condenados pela Inquisição). Mesmo o estranho casal protagonista foi tomado na
época por uma caricatura do casal Real da Itália. Num contexto mais amplo, essa
referência englobaria a reconciliação entre o Vaticano e o Reino da Itália, articulada por
Benito Mussolini através dos Pactos Lateranos, em 1929 (em troca do fim da
hostilidade papal, a Itália reconhece e reafirma a religião Católica Apostólica Romana
como a única religião de Estado). O público francês da época também poderia ter
reconhecido a seqüência como um aviso sobre o aumento do conservadorismo em seu
próprio país (Idem: p. 95).
O caráter blasfemo de Salvador Dalí pode explicar a identificação com Buñuel. O pai de
Dalí desaprovou a união do filho com Gala. Ela era uma mãe casada, sexualmente
liberada e uma estrangeira. O pai do pintor, arrotando seu poder, chegou a pressionar
para que a polícia expulsasse o filho da cidade. Um acontecimento que encontraria eco
na prisão do protagonista de A Idade do Ouro e a dificuldade de reunião do casal. Mas
houve ainda outra manifestação dos sentimentos do pintor em relação à atitude do pai.
Numa folha de papel onde uma linha desenha o vulto de Jesus, tendo no centro um
coração encimado por uma cruz, Dalí escreveu: “às vezes eu cuspo com prazer no
retrato de minha mãe” (Ibidem).
A conclusão de A Idade do Ouro apresenta a controversa cena do Duque de Blagis,
vestido de Jesus Cristo, deixando o castelo onde seviciou e torturou escravas sexuais.
Mais sacrílega e blasfema é a seqüência final, quando volta para recolher do chão uma
das escravas que conseguiu chegar até o portão. O duque/Cristo entra com ela e fecha a
porta. Alguns momentos depois sai sozinho e segue com os outros três nobres que
participaram das orgias e o esperavam do lado de fora. Na imagem seguinte, a última do
filme, uma cruz onde estão pendurados cinco escalpos (Ibidem: p. 96). Esta seqüência
final foi baseada no livro do Marques De Sade (Os Cento e Vinte Dias de Sodoma,
1785). Uma pequena seqüência, que o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini transformará
num longa-metragem, Salò, ou os 120 Dias de Sodoma (Salò, o le 120 Giornate di
Sodoma, 1975). No filme de Pasolini, se não existe alguém vestido como Cristo,
22 podemos presenciar o escapelamento que em A Idade do Ouro fica apenas sugerido pelo
grito de mulher depois da porta se fechar e os escalpos pendurados na cruz.
Só para lembrar, antes dessa seqüência, acompanhamos outra em que um bispo é atirado
da janela de um segundo andar. Nas duas seqüências, ouvimos tambores que
provavelmente são os mesmos de Calanda, a cidade natal de Buñuel. Um lugar que,
segundo sua própria descrição, viveu na Idade Média até o começo da Primeira Guerra
Mundial. Referindo-se à Espanha, o filho de Buñuel ressaltou que muitas partes daquele
país só saíram da Idade Média a partir dos anos 70 do século passado. Apesar do caráter
irracional do método surrealista empregado por Buñuel e Dalí, quando considerada à luz
dos acontecimentos contemporâneos ao filme, a tese de Gale sobre o caráter mais
político de A Idade do Ouro faria sentido. Talvez por esse motivo, o cinema de Paris
que projetou a primeira apresentação do filme foi invadido e depredado por membros da
direita francesa – mas platéia conseguiu voltar e assistir até o final.
O casal separado desde o começo do filme é marcado por um amor louco cujo obstáculo
todos conhecem: a Igreja e o Estado, a lei e a ordem, a tradição e a família... O homem,
ao ser abandonado se entrega à destruição do quarto da mulher. Atira tudo que pode
pela janela. Um dos pontos que teria determinado protestos da Liga Anti-Judia e da Liga
dos Patriotas foi a justaposição de um pé de mulher e de um ostensório (objeto do culto
católico, onde se deposita a hóstia sagrada) (Ibidem: p. 99) - o fetiche em relação aos
pés figura entre as muitas obsessões de Buñuel. A Idade do Ouro foi banido depois de
apenas seis dias. Juan-Luis ressaltou que, na França, o filme esteve censurado de 1930 a
1980. “Como se vê, ironiza o filho de Buñuel, “a França é um país livre”
(FERNANDES, G. 2004).
Os Imbecis, o Público e o Picaresco
23 Buñuel disse que, “segundo os jornais”, o que provocou maior escândalo em Viridiana
foi a Aleluia, de Haendel durante a orgia dos mendigos; o Réquiem, de Mozart, quando
Dom Jaime toma Viridiana nos braços (sem atentar contra seu pudor); a coroa de
espinhos jogada ao fogo e o crucifixo-punhal. De acordo com o cineasta, um jornalista
teria escrito que, “em Viridiana, Buñuel puxou seu crucifixo como se fosse um punhal”.
Ora, desabafou o cineasta, o crucifixo-canivete era um objeto encontrado por toda a
Espanha, nas lojas de produtos baratos. Talvez, sugeriu procurando uma resposta, por
conta do que Jean Epstein chamou fotogenia, a significação desse objeto banal assumiu
repentinamente um tom blasfematório e sacrílego. Quanto à coroa jogada ao fogo,
Buñuel esclareceu que a liturgia ortodoxa determina que vestes sacerdotais ou objetos
consagrados sejam queimados quando estiverem fora de uso – não deve ser jogado no
lixo. Eu compreenderia, disse Buñuel, se protestassem caso Viridiana escarrasse sobre a
coroa!
Ainda reclamando das interpretações dos “imbecis”, Buñuel insistiu em afirmar a
pureza de Viridiana. Insistiu também que Dom Jaime não é um sádico libertino, mas
corajoso e idealista - alguém que se pune terrivelmente sem haver feito nenhum grande
mal ao tentar reproduzir seu casamento, que não chegou a se consumar. Quanto aos
mendigos, continuou Buñuel, “(...) não sou responsável. Eles são assim, já há séculos
(...)”. De acordo com David Robinson, dentre todos os mendigos Buñuel admira apenas
aquele que, insolente e orgulhoso, recusou a piedade de Viridiana e foi embora - sem
antes deixar de pedir uma esmola. Mas o filme não conseguiria, ainda de acordo com
Robinson, esconder o preconceito de Buñuel contra os cegos. Um dos mendigos, o
cego, é mau. Para Buñuel, todos os cegos são maus! (Idem: pp. 31-2) Buñuel, explica
Robinson, não gosta dos cegos porque eles estão presos por associações falsas e
sentimentais. Em A Idade do Ouro, um cego é atingido violentamente com um pontapé
na barriga (ROBINSON, David. 1962: pp. 220-1). Na verdade, tudo isso seria apenas
um exemplo do que Carlos Rebolledo acredita sejam elementos do romance picaresco
espanhol dos séculos XVI e XVII na obra de Buñuel (REBOLLEDO, Carlos. 1968: p.
40).
De acordo com Rebolledo, nem tudo em Buñuel é critica a religião. Como o
comportamento de Dom Jaime em relação à Viridiana, que seria motivado por uma
24 impotência enquanto filho de uma mãe que ele queria intocável e purificada. A
sociedade espanhola, em suas bases matriarcais, impossibilitava a liberação da
dependência em relação à mãe – uma castração fundamental. A projeção desse culto nas
relações sexuais faria nascerem conflitos profundos, levando à esterilidade, à morte, ao
suicídio, ao homicídio sádico. É por esta razão, explica Rebolledo, que nos romances
picarescos a descrição da infância adquire muita importância (Idem: p. 42). Além disso,
o elemento picaresco descristianiza as figuras do cego e dos doentes. Não existe o
sofrimento humano como espelho daquele de Cristo. A caridade também é posta em
xeque, o picaresco faz do caridoso um monstro fonte de calamidade. Encontramos este
tipo de personagem em Os Esquecidos (Los Olvidados, 1950), além de A Idade do Ouro
e Viridiana – poderíamos incluir Nazarin na lista de Rebolledo.
Obcecada pela caridade que não pode mais praticar como reclusa, Viridiana transforma
os mendigos que acolhe em objetos de culto – eles substituem a presença de Cristo.
Buñuel revela aqui a origem do sentimento cristão da fé. Entretanto, quando são
transformados em Cristo e seus apóstolos (a cena do banquete), eles são destituídos de
sua materialidade. Viridiana constrói mártires e torna-se vítima deles. A Santa Ceia
transfigurada no banquete dos mendigos transforma-se em orgia. “O tema tradicional
dos cegos, dos aleijados e dos monstros passa, portanto, diretamente do universo
picaresco para a obra buñueliana. Nos dois casos, eles encarnam a recusa de uma moral
tradicional, tornada inoperante” (Ibidem: p.43).
Entretanto, de acordo com Matthew Gale, em alguns casos seria reducionismo apelar
para a nacionalidade de Buñuel e Dalí. Na cena de Um Cão Andaluz onde o homem
tenta de todas as formas ser aceito pela mulher (a seqüência do piano com jumento
morto e padres), as referências ao amor romântico seriam destruídas por um caráter
cômico. Essa tendência de atacar estereótipos, Gale sustenta, teria sido buscada também
nos filmes de Hollywood que Buñuel e Dalí admiravam (GALE, Matthew. Op. Cit.: p.
90). Não seria diferente em relação ao amor de Viridiana por Cristo – cômico ou não. O
ataque aos estereótipos deveria agradar a Buñuel na medida em que, mesmo em suas
origens cristãs, esse amor não passa de (ou acabara por se converter em) formas
hipócritas e covardes de chantagear a si mesmo (a) e aos outros (as).
25 Buñuel explicou que o leproso não era ator profissional, mas um mendigo que o havia
abordado na rua, em Madri. Quando surge na tela, apanha uma pomba, acaricia-a, e
depois supostamente (Buñuel não mostra) a come. “Se ele fez isso, disse Buñuel, não é
porque ele fosse mau, mas porque tinha fome”. Buñuel disse também que faz filmes
mais para seus amigos do que para o público. O “público” é que é, na opinião de
Buñuel, convencional, tradicional, pervertido. “Não é minha culpa”, afirma Buñuel,
“mas da sociedade”. É muito difícil e raro, de acordo com o cineasta, quem consiga
fazer um filme que agrade tanto aos amigos quanto ao “público”. “De minha parte”,
decreta Buñuel, “nunca pretendi fazer filmes para educar o ‘público’’. O protagonista de
Nazarin é um padre, mas poderia ser um cabeleireiro ou garçom, explicou Buñuel. “O
que me interessa nele é que é fiel a suas idéias, que elas são inaceitáveis para a
sociedade e que, após suas aventuras com prostitutas, ladrões, etc... , elas o conduzem a
uma condenação sem recurso pelas forcas da ordem...” (SADOUL, Geoges. Op. Cit.:
pp. 32-3)
Lúcifer, os Insetos, o Espírito Santo e o Anjo
Mas nem só da aparição de padres e altas patentes eclesiásticas vive o cinema de
Buñuel. Em A Ilusão Viaja de Trem (La Ilusión Viaja em Tranvía, 1953), numa
encenação teatral de rua explica-se didaticamente porque a “mulher é a culpada” por
termos sido expulsos do paraíso. Lúcifer, aliás, antes de caçar a pomba que representa o
Espírito Santo, já chega ao palco enchendo a cara com bebida alcoólica – que, diga-se
de passagem, apesar de ser uma droga altamente destrutiva, é legalizada no mundo
inteiro. Julgado, o anjo Lúcifer é forçado a abandonar o Céu. Neste momento, perde
suas asas e túnica branca de anjo e vira um demônio chifrudo bem ao gosto das pinturas
medievais. Em seguida, ele dá uma maça a Eva, que a oferece a Adão.
A Via Láctea (La Voie Lactée, 1969) já foi comparado ao estudo de um inseto: o homo
christianus. Seus detalhes físicos, comportamento, heresias, a transubstanciação, a
origem do mal, a natureza dual de Cristo, o livre arbítrio, a trindade e o nascimento da
Virgem. Como Nazarin, este filme suscitou reações contraditórias. Uns disseram que
era uma obra anti-religiosa. O escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) disse que o
filme parecia ter sido financiado pelo Vaticano. Em A Via Láctea, lembrou Buñuel,
26 Cristo é um homem comum, rindo, correndo, errando o caminho e até dispondo-se a se
barbear. De acordo com Buñuel, na atualidade a religião católica parece dar mais
importância à Cristo, relegando ao segundo plano o restante da Santíssima Trindade.
“Só se fala dele”, reclamou o cineasta, “quanto ao desafortunado Espírito Santo,
ninguém lhe dá pelota, e ele mendiga pelas esquinas” (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 2009:
p. 340). Com relação às opiniões pró e contra sua abordagem em relação à religião na
sua obra, Buñuel diria:
Essas polêmicas falaciosas me deixam cada vez mais indiferente. Via Láctea a meu ver
não era nem a favor disso, nem contra aquilo. Além das situações e dos conflitos
doutrinários que o filme mostrava, ele me parecia ser acima de tudo um passeio pelo
fanatismo em que todos se agarravam com força e intransigência à sua parcela de
verdade, dispostos a matar ou morrer por ela. Assim, parecia-me que o caminho
percorrido pelos dois peregrinos podia se aplicar a toda ideologia política ou mesmo
artística (Idem)
Em O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador, 1962), o anjo propriamente dito é
uma presença na ausência. Na Bíblia, em Samuel II, capítulo 24, versículo 16, lê-se:
“(...) quando o anjo estendeu a mão sobre Jerusalém, para destruí-la, o Senhor se
arrependeu daquele mal; e disse ao anjo que fazia a destruição entre o povo: Basta,
retira agora a tua mão (...)”. Após um jantar, sem razão aparente um grupo de
aristocratas não consegue abandonar o local. A situação vai se deteriorando,
desentendimentos e delírios alimentam um clima claustrofóbico e enigmático. Aqueles
que estão do lado de fora também não conseguem entrar. Em certo momento surge a
única alusão ao título, um dos convidados fala delirando: “Contente... não com o
extermínio” (TAVARES, Bráulio. 2002: p. 43). Uma das mulheres pede às amigas que
segurem os pés de galinha que ela trouxe. Na Cabala, são como chaves, explica ela, que
abrem as portas do desconhecido. Em Nazarin, alguém joga pés de galinha na panela
enquanto Nazarin explica para Ándara por que nascemos (segundo ele, a pergunta mais
fácil e também a mais misteriosa). De qualquer forma, a tentativa das aristocratas não dá
certo. Ela diz que precisa de sangue inocente para fazer a coisa funcionar. Nesse
instante, o sangue de um dos casais presentes (que havia se suicidado) escorre. Não dá
27 certo. Outros convidados, Maçons, tentam resolver o problema pronunciando a “palavra
impronunciável”. Também não dá certo.
Alguns cordeiros entram na sala onde o grupo está confinado. Famintos, eles irão comêlos. Um urso, que foi criado na casa, não entra na sala. Alguns convidados imaginam
quem comeria quem, caso o animal entrasse. Numa crítica direta aos Jesuítas, o
mordomo come pedaços de papel. Oferecendo para uma das convidadas espantadas,
num longo elogio às qualidades alimentícias do papel, explica que quando estudou num
colégio Jesuíta costumava comer em sala, quando as aulas o entediavam. Uma das
convidadas pede que seu médico a acompanhe numa peregrinação à Lourdes e compre
para ela uma Virgem lavável de plástico. Este foi um dos detalhes mais blasfemos
apontados pela Igreja e pela crítica da época. Entretanto, trata-se de um objeto a venda
no mercado de lembranças religiosas, tanto quanto o famoso crucifixo-canivete que
vemos em Viridiana (Idem: p. 51).
Finalmente, através de uma reconstituição, até que entendessem quando tudo começou a
dar errado, o grupo consegue mudar o próprio destino e sair da mansão. Na seqüência
final, todos estão na igreja. A missa termina, mas ninguém sai. Não vamos acompanhálos desta vez, mas sabemos que recomeçará a agonia. Do lado de fora, tiroteio e polícia.
Na imagem final, um bando de cordeiros segue na direção da porta do templo. De
acordo com Bráulio Tavares, com o tempo Buñuel abandonou o surrealismo puro, o
automatismo, optando por uma espécie muito pessoal de realismo mágico. Utilizando
colagem, acaso, improviso, inserção de elementos casuais e autobiográficos com pouca
ou nenhuma relação com a estória contada, Buñuel criou muitos problemas para os
críticos, que não sabiam como encaixá-lo em suas teorias (Ibidem: p. 170).
Cristo Zomba de Sua Dor
“A realidade, sem imaginação,
é a metade da realidade”
Luis Buñuel
(KROHN, Bill; DUNCAN, Paul. Op. Cit.: p. 37)
28 Ándara está convalescendo de seu ferimento no quarto de Nazarin quando percebe num
pequeno quadro na parede o rosto sofrido de Cristo. Delirando, vê Cristo abrir uma
grande gargalhada. Seria a risada de escárnio de um Cristo que acusa? Cristo zombando
do sofrimento de uma prostituta? (HOLANDA, Samuel. Op. Cit.: p. 92) O acaso
ensinaria a um confuso Nazarin por que sua bondade não gera bondade. Como diria o
próprio Buñuel, tanto faz crer ou não crer. Foi nesse sentido que o ladrão que defendeu
Nazarin na cela da prisão concluiu pela irrelevância, tanto de sua maldade quanto da
bondade de Nazarin. No mundo de Deus, acredita Buñuel, não há lugar para o acaso.
Para o cineasta, o mundo é regido por um princípio de ambigüidade. Não existem
verdades redentoras, soluções definitivas, nada que impeça o crescimento da dúvida
(Idem: pp. 89 e 93). As interpretações dadas à Nazarin oscilam entre considerá-lo
profundamente cristão ou tomá-lo como uma denúncia da ilusão da divindade,
afirmando a realidade do homem. Buñuel discorda de ambas e retruca que qualquer um
na situação de Nazarin seria contraditório (Ibidem: p. 96).
Crer e não crer na existência de Deus dá no mesmo! Assim concluía Buñuel, que não
via sentido em decidir se o acaso domina a necessidade ou vice-versa. Se Deus de fato
existe, isso não mudaria rigorosamente nada, enfatizou o cineasta espanhol. Buñuel não
aceita que exista um Deus que o vigie, que se ocupe dele e que possa castigá-lo
eternamente. “Deus não se ocupa de nós. Se existe, é como se não existisse. Raciocínio
que resumi outrora nesta fórmula: ‘sou ateu, graças a Deus’. Uma fórmula contraditória
apenas na aparência” (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 2009: p. 246). O ateísmo de Buñuel,
como ele mesmo disse, aceita o inexplicável. Recusa uma divindade organizadora,
nenhuma explicação vale para todos. Mas não quer dizer que Buñuel raciocina
cientificamente. A ciência não o interessa, ela ignora tudo que importa para ele: o
sonho, o acaso, o riso, o sentimento e a contradição. Mas Buñuel esclarece, não é sua a
opinião do personagem de A Via Láctea que diz: “Meu ódio pela ciência e meu
desprezo pela tecnologia acabarão por me levar a essa absurda crença em Deus”. De
acordo com Buñuel, isso é até impossível. Ele escolheu viver no mistério:
A fúria de compreender e, por conseguinte, de apequenar-se, mediocrizar-se – fui
espezinhado a vida inteira com perguntas imbecis: por que isto? Por que aquilo? – é um
29 dos infortúnios de nossa natureza. Se fôssemos capazes de entregar nosso destino ao
acaso e aceitar sem angústia o mistério da vida, uma certa felicidade poderia estar
próxima, bastante semelhante à inocência (Idem)
“Em algum lugar entre o acaso e o mistério insinua-se a imaginação, liberdade plena do
homem” (Ibidem: p. 247). O problema da humanidade é a tentativa sempre renovada de
extinguir essa liberdade. Por isso o cristianismo inventou o pecado por intenção.
Buñuel, como muitos, reprimia imagens que vinham à sua mente (assassinar o irmão,
transar com a mãe, etc.). A partir dos sessenta anos de idade, disse ele, compreendeu e
aceitou a inocência de sua imaginação. Só então compreendeu que não se tratavam de
pecados, que eram pensamentos que somente a ele diziam respeito. Aceitando tudo que
viesse a sua mente, explicou Buñuel, as imagens (mesmo as mais complexas como
incesto) o abandonavam, expulsas por sua indiferença. “Psiquiatras e analistas de todo
tipo escreveram muito sobre meus filmes. Sou grato, mas nunca leio seus livros. Não
me interessam”. (...) “Na minha idade, deixo que falem (...)” (Ibidem: pp. 247-8)
A Blasfêmia Está nos Olhos de Quem Vê?
Charles Tesson afirma que podemos distinguir três elementos no cinema de Buñuel: a
blasfêmia, a profanação e o sacrilégio. A profanação seria a realidade do universo
buñueliano, seu ato de nascimento. O sacrifício é menos significante e está inscrito num
gesto proibido (Tesson cita o exemplo da coroa de espinhos jogada na fogueira, mas já
sabemos que este exemplo, pelo menos na justificativa de Buñuel, nada tem de
incoerente). O gesto blasfemo, ao contrário, constitui uma afronta ao simbolismo, aos
fundamentos (TESSON, Charles. 1995: p. 288n13).
Bráulio Tavares ressalta os poderosos mecanismos de condicionamento da educação
cristã (os mandamentos, a confissão, o conceito de pecado mortal) e os desdobramentos
no comportamento do cineasta. A blasfêmia, para um ex-aluno de colégio jesuíta, pode
constituir um verdadeiro ato de libertação. Tavares destaca que Buñuel não se
enquadrava na ideologia anticlerical de grande parte dos anarquistas espanhóis –
espancamento de padres, incêndios em igrejas. “As blasfêmias de Buñuel”, afirma
Tavares, “são uma espécie de maledicência terapêutica, onde o indivíduo procura, mais
30 do que atingir o ofendido, demonstrar a si mesmo que o ‘outro’ não tem poder sobre ele,
não manda mais em sua mente” (TAVARES, Bráulio. Op. Cit.: pp. 79). Uma espécie de
independência mental de Buñuel em relação ao passado. Com a vantagem de prolongar
sua juventude intelectual ao blasfemar em público, para milhões de espectadores. As
blasfêmias, Tavares insiste, revelam a extensão dos conflitos emocionais provocados
pela fé religiosa. Tavares relembra uma blasfêmia às avessas de Buñuel. Mas antes é
preciso ressaltar o papel dos sonhos para um surrealista como Buñuel: “Eu disse um dia
a um produtor mexicano, que não gostou nada da piada: ‘Se o filme estiver muito curto,
eu acrescento um sonho’”. Noutra ocasião Buñuel afirmou: “Adoro sonhar, mesmo
quando meus sonhos são pesadelos, o que é freqüente. Eles são sempre semeados de
obstáculos, que conheço e reconheço. Mas isso é indiferente” (BUÑUEL, Luis. Op. Cit.
2009: p. 135). Não é o que parece, a julgar pela reação ao sonho com a “blasfêmia às
avessas”:
(...) Vejo subitamente a Virgem Maria, toda iluminada de doçura, as mãos estendidas
para mim. Presença fortíssima, indiscutível. Ela me falava, a mim, descrente sinistro,
com toda a ternura do mundo, aureolada por uma música de Schubert que eu ouvia com
nitidez. Quis reconstituir essa imagem em A Via Láctea, mas ela ficou longe da força de
convicção imediata que possuía em meu sonho. Ajoelhei-me, meus olhos encheram-se
de lágrimas e de repente me senti arrebatado pela fé, uma fé vibrante e invencível.
Quando acordei, precisei de dois ou três minutos para serenar. Eu continuava a repetir,
no limiar do despertar: ‘Sim, sim, santa Virgem Maria, eu creio!’. Meu coração estava
disparado. (...) Acrescento que esse sonho apresentava certo caráter erótico.
Obviamente, esse erotismo permanecia nos castos limites do amor platônico. Será que
se o sonho tivesse se estendido, essa castidade teria desparecido para ceder lugar a um
verdadeiro desejo? Não posso responder. Eu me sentia simplesmente capturado,
comovido, extasiado. Sensação que experimentei inúmeras vezes ao longo da vida, e
não apenas em sonho (Idem: p. 138)
O ateísmo de Buñuel não neutralizava seu interesse nos mistérios da fé. Mas ele nunca
deixou de sugerir que a Igreja sempre os impunha à força (obedecer = ter fé). Qualquer
expressão de uma idéia herética gerava uma advertência das autoridades eclesiásticas
(KROHN, Bill; DUNCAN, Paul. Op. Cit.: p. 154). Em O Fantasma da Liberdade (Le
31 Fantôme de la Liberté, 1974), Buñuel investe contra a hipocrisia da Igreja ao colocar
padres jogando pôquer, fumando e ingerindo bebida alcoólica. Embora saibamos que se
pode dar uma resposta objetiva e acadêmica à questão, uma pergunta simples e objetiva
que Buñuel fez a si mesmo ecoa como se a resposta estivesse além, para além. Ou,
talvez, no além: “Por que esse horror ao sexo na religião católica?” (BUÑUEL, Luis.
Op. Cit. 2009: p. 26) Juan-Luis Buñuel recorda uma brincadeira que seu pai costumava
fazer com a ajuda de Lorca e Dalí. No centro de Madri, uma amiga deles se vestia de
prostituta e entrava no bonde. Na parada seguinte, Lorca ou Dalí vestido de padre,
entrava também e começava a molestar a mulher. Era um escândalo. Na terceira parada,
Buñuel subia no bonde vestido de policial, agarrava o padre, batia nele e gritava: Por
que padres sempre estão perseguindo as prostitutas? O bonde todo ficava chocado.
Então os três desciam e iam beber juntos num bar (FERNANDES, G. Op. Cit.).
Roberto Acioli de Oliveira
Desenredos - revista de cultura e literatura
Disponível em http://www.desenredos.com.br/6art_acioli_176.html
O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte
Luz Silenciosa (Stellet licht, 2007), de Carlos Reygadas
32 Nazarin (1959), de Luis Buñuel
Buñuel Nazarin
Carlos Saura, o cineasta espanhol, afirmou que na Espanha existem três coisas muito
importantes: a Igreja, o sexo e o exército (1). Outro cineasta espanhol, o surrealista Luis
Buñuel, é muito lembrado por uma frase que ficou famosa: “eu sou ateu, graças a
Deus”. Sim, ele era ateu, mas isso não quer dizer que não tivesse certo fascínio pelos
mistérios da fé ou, pelo menos, pela Virgem Maria. Não é difícil encontrar, desde Um
Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1929), em parceria com Salvador Dali, muitas
referências à religião Católica. Na maioria das vezes, é verdade, referências negativas.
(imagem acima, monges bebem cerveja, fumam e jogam pôquer em O Fantasma da
Liberdade; Ao lado, a beata de Viridiana. Ela pretende ser pura como a noiva de Cristo
e acredita que com oração e trabalho conseguirá salvar os mendigos da região)
Entre a Fé e a Igreja
“Não me interessam
os personagens sem
aspectos contraditórios,
porque então sabemos
tudo sobre eles desde o
primeiro momento”
Luis Buñuel
Quem não se lembra das caveiras de arcebispos (imagem acima, à esquerda), ou do
marquês (uma referência aos nobres espanhóis) vestido de Jesus Cristo que sai de uma
orgia no final de A Idade do Ouro (l’Âge d’Or, 1930) - em uma cena inspirada em texto
33 do marquês De Sade. Ou ainda, de Viridiana (Viridiana, 1961), uma beata que deseja
ser a noiva de Cristo, mas acaba rendida pelos desejos sexuais. Inesquecível neste filme
é a seqüência em que os mendigos, que Viridiana achava que através de orações e
trabalho seguiriam o caminho do Bem, invadem a casa onde mora e fazem um banquete
e uma orgia. Em certo momento, Buñuel distribuiu os mendigos em uma grande mesa,
recriando a imagem da Última Ceia de Cristo, famoso mural de Leonardo Da Vinci
pintado no século 15. (imagem abaixo)
Em A Via Láctea, (La Via Láctea, 1969), dois vagabundos resolvem fazer a
peregrinação a Santiago de Compostela. Pelo caminho escutam toda sorte de
comentários religiosos e com seres sobrenaturais. O filme já foi comparado ao estudo de
uma espécie de inseto: o homo christianus. Seus detalhes físicos, seu comportamento, as
heresias, a transubstanciação, a origem do mal, a natureza dual de Cristo, o livre
arbítrio, a trindade e o nascimento da Virgem. Buñuel, apesar de ateu, tinha interesse
pelos mistérios da fé. Mas mostra que a Igreja sempre quis impô-los à força. (obedecer a
Igreja = ter fé)
Qualquer personagem que expressasse uma idéia herética seria advertido pelas
autoridades eclesiásticas que receberá um castigo caso não se submeta. O castigo apenas
muda com os séculos (2). Em O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberté,
1974), Buñuel ataca a hipocrisia da Igreja colocando um grupo de monges jogando
pôquer. Talvez se referindo às contradições (embora a contradição estimule seu
pensamento) entre a fé e a Igreja Católica enquanto instituição, Buñuel disse: “Posso
blasfemar sobre o amor louco, caso isso me ocorra. É vivificante, às vezes, blasfemar
contra aquilo em que se acredita”.
A Fé Verdadeira?
“Eu não gosto
dos donos da verdade,
sejam quem forem.
Me aborrecem e me dão medo.
Eu sou anti-fanático
(fanaticamente)”
34 Luis Buñuel
Mon Dernier Soupir, p. 282
Em Simão do Deserto (Simon del Desierto, 1965), Buñuel mostra um homem que se
isola no deserto para enfrentar as tentações do diabo. Rodeado por seus seguidores,
Simão vive no topo de uma coluna durante 6 anos. Então um rico benfeitor lhe dá uma
nova coluna, agora com 11 metros de altura. Lá de cima, ele faz milagres e enfrenta o
diabo, que aparece com vários disfarces. O roteiro é baseado na história de San Simeón,
anacoreta que viveu mais de 40 anos no alto de uma coluna no deserto da Síria durante a
Idade Média. O texto lhe foi apresentado por Garcia Lorca, e ambos se divertiam muito
ao ler que as fezes do santo escorriam pela coluna como a cera de uma vela. Na cena
final, que não era bem como Buñuel desejava (3), Simão e o diabo aparecem em uma
discoteca em Nova York.
Simão diz que vai voltar para casa, mas o diabo o informa que em sua coluna no deserto
já existe outro habitante e que Simão deverá ficar ali até o fim dos tempos. Buñuel
considerava Simão o único homem livre em todos os seus filmes. Muitos outros
exemplos de personagens religiosos poderiam ser lembrados quando se fala da obra de
Buñuel. A fase em que o cineasta viveu no México está cheia deles, Simão do Deserto
foi o último. Um pouco antes, em 1958, Buñuel filma Nazarin. “Nazarin é um homem
fora do comum, por quem sinto grande afeto”. Com essas palavras Buñuel define esse
sacerdote que, da mesma forma como será Simão do Deserto depois dele, é a imagem
de uma mistura de Cristo e Don Quixote. (ao lado, Cristo depois de uma orgia, em A
Idade do Ouro)
Nazarin é um padre passando por uma crise de fé. Herói quixotesco que vive em um
mundo só seu e acredita que tudo irá bem se fizer o bem. Mas todas as suas boas ações
acabam mal. Todos estão em pior situação no final do filme. Nazarin se dedica aos
pobres, cuida de prostitutas feridas em brigas e nem se importa quando delinqüentes lhe
roubam os poucos pertences. Mas ele não poderia ter dado abrigo a uma prostituta e ela
ateia fogo ao apartamento dele para que a polícia não tenha provas para incriminá-lo.
Por conta do escândalo, proíbem-no de celebrar missas. Nazarin então se livra de suas
vestes eclesiásticas e parte para uma vida de mendigo. Como já sabemos, suas tentativas
de fazer o bem fracassam e seus únicos seguidores são duas mulheres, a prostituta que
35 ajudou e Beatriz, amiga dela, uma histérica que foi abandonada pelo amante. Acaba
descoberto e vai preso, lá chegando tem de ser defendido por um ladrão que impede que
ele seja surrado por outro detento. O ladrão então desabafa para Nazarin: ”você está no
bando do bem e eu no do mal. E nenhum dos dois serve para nada”.
Através de outra seqüência de Nazarin, Buñuel chama nossa atenção para uma outra
questão: a idealização dos pobres. Em sua peregrinação, Nazarin, Andara e Beatriz
encontram uma mulher moribunda. Ela está quase morta, mas deseja ardentemente a
presença do marido. Nazarin, seguindo seus rituais cristãos, tenta fazê-la se arrepender
de seus pecados e prestar contas a Deus. Mas a mulher não quer saber disso, quer seu
marido. Quando o marido retorna, expulsa os três beatos a pedido de sua mulher.
Nazarin não compreende como alguém pode ignorar a salvação eterna desta forma.
Beatriz, que sofre com a ausência do amado, concorda com a mulher (4). Destrói-se
assim um ideal de bondade, mostrando as pessoas reais (contraditórias) por baixo da
casca dos estereótipos (identidades fixas). (imagens acima e abaixo, Nazarin)
Ateu Graças a Deus
"Já não creio
no progresso social.
Só posso acreditar em
alguns poucos indivíduos
excepcionais de boa fé,
ainda que fracassem,
como Nazarin"
Luis Buñuel
O acaso, uma das forças do surrealismo, mostra para Nazarin que “ser bom” não faz do
mundo um lugar melhor. Ele não compreende porque sua bondade não gera bondade.
Portanto, tanto faz crer ou não crer. Foi nesse sentido que o ladrão que o defendeu na
cela da prisão concluiu pela irrelevância, tanto de sua maldade quanto da bondade de
Nazarin. Será esta conclusão que levou Buñuel a se dizer “ateu graças a Deus”? Seja
36 como for, no mundo de Deus, acredita Buñuel, não há lugar para o acaso. Para Buñuel,
o mundo é regido por um princípio de ambigüidade, não existem verdades redentoras,
soluções definitivas, nada que impeça o crescimento da dúvida sobre aquilo que se tem
como estabelecido (5). O real é contraditório e ambíguo.
Uma das imagens mais impressionantes do filme acontece quando Nazarin ainda está
em seu apartamento. Andara, a prostituta, está convalescendo de seu ferimento quando
olha para um pequeno quadro na parede onde está o rosto sofrido de Cristo com a coroa
de espinhos. De repente, delirando, ela vê aquele rosto abrir uma grande gargalhada
(imagem ao lado). Um Cristo alegre não faz bem o gênero da postura Católica. Talvez
seja uma risada de escárnio de um Cristo que acusa (6). Cristo zombando do sofrimento
de uma prostituta, uma Eva. Curiosamente, a Igreja Católica esteve a ponto de premiar o
filme de Buñuel (7).
Podemos reunir as interpretações dadas à Nazarin em dois grupos. No primeiro, o filme
seria profundamente cristão. No segundo, o filme mostra ilusão da divindade e a
descoberta da realidade do homem. Buñuel discorda das duas interpretações. Para o
cineasta, qualquer homem na mesma situação de Nazarin seria movido por impulsos
contraditórios (8).
Notas:
1. RENTERO, Juan Carlos. Interview with Carlos Saura In WILLEN, Linda M. (ed.).
Carlos Saura: Interviews. USA: University Press of Mississippi, 2003. P. 29.
2. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.). Luis Buñuel. Filmografia Completa. Köln:
Taschen, 2005. P. 154.
3. Idem, p. 145.
4. HOLANDA, Samuel. Nazarin, Um Devorador Ambíguo de Sistemas In CAÑIZAL,
Eduardo Peñuela (org.) Um Jato na Contramão: Buñuel no México. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1993. Pp. 94-5.
5. Idem, Pp. 89 e 93.
6. Ibidem, p. 92.
7. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.). Op. Cit., p. 112.
8. HOLANDA, Samuel. Op. Cit., p. 96.
37 Roberto Acioli de Oliveira
Disponível em http://cinemaeuropeu.blogspot.com.br/2008/10/buuel-nazarin.html
Luz Silenciosa (Stellet Licht, 2007), de Carlos Reygadas
Silenciosa Luz
Silenciosa Luz é o terceiro longa-metragem de Carlos Reygadas. É um alívio para
quem, como eu, havia saído estupefato de Japão e depois se decepcionado com Batalha
no Céu. Reygadas ameaçava tornar sua herança tarkovskiana de planos longos e
elaborados um mero virtuosismo sem calor, sem atrativos a não ser a verificação de um
talento dele como cineasta. O que era estranhamento e magnificência em Japão de
repente se tornava um conjunto de manobras calculadas e estéreis em Batalha no Céu –
imagens que pesavam de forma auto-reverencial. Mas agora, com Silenciosa Luz, a
força retorna, o estranhamento se duplica e, ao menos nas partes essenciais do filme,
escapa à mão pesada. No fundo, um aspecto de Reygadas continua muito presente, ou
melhor, confirma-se como gesto estruturante: a beleza dos filmes tem sempre de
negociar com seu egocentrismo. Se há uma manobra que se repete nos três filmes, é um
plano em que a câmera ocupa o epicentro da cena. Em Japão, isso se dava no plano
final, o travelling inebriante sobre o trilho do trem, ao som de “Cantus in Memory of
Benjamin Britten” de Arvo Pärt, com a câmera girando 360º, lentamente, transbordante
de tanta vontade de síntese e maravilhamento – uma guinada conscientemente rumo ao
sublime. Batalha no Céu tinha aquela horripilante cena da câmera saindo do quarto do
casal, rodando o mundo ao redor deles e retornando ao quarto, percurso no qual se dava
uma elipse. Silenciosa Luz, por fim, repete a dose, no plano em que Johan, logo após
confessar a um amigo seu caso extraconjugal, fica dando voltas em torno da câmera
com sua caminhonete, embalado pela música que canta sorridente. Johan está
apaixonado, e o bonito desse plano – interrompido no momento certo, um pouco antes
de descambar no exibicionismo – é nos assegurar de sua paixão.
O filme é ambientado no norte do México, onde Johan mora com a mulher e os filhos
numa fazenda em meio a uma comunidade de menonitas imigrantes. A idéia de
38 microcosmo imerso num mundo que extravasa seus limites pode parecer uma premissa
fácil para Reygadas trabalhar seu gosto por deslocamentos e estranhamentos. Mas seu
desejo maior é buscar a partir disso uma dramaturgia particular. Ele instala um universo
e, através das pessoas que habitam esse universo, estabelece uma modalidade de
representação com regras próprias. Um drama metafísico que pede a construção
marcada de cada plano, cada seqüência – como quem rege uma galáxia e não apenas um
filme (no que isso tem de bom e de prejudicial à nossa fruição de tamanha
megalomania). Bresson e Dreyer estão na base dessa dramaturgia, sem dúvida, mas o
investimento singular de Reygadas, seu passo adiante, pode ser verificado, por exemplo,
na belíssima cena da família de Johan na piscina. Aquele sentimento de duração, de
pulsação da natureza na pele dos personagens, de materialidade da experiência com o
instante, o cineasta mexicano filma sem recorrer a nenhum mestre. As imagens que
compõem essa cena trazem um teor de evanescência que – saudavelmente – destoa da
solenidade reinante no filme. No último momento da seqüência, quando a mulher de
Johan deixa cair uma lágrima (ela sabe que ele tem uma amante), Reygadas não se
contém e faz um travelling no quadro desfocado e vazio, até achar uma flor em detalhe.
Um certo deslumbramento pelo “filmar bonito” que já poderia ter sido superado, mas
que não compromete a verdade do filme.
No primeiro encontro que vemos de Johan com Marianne, sua amante, a câmera
acompanha os passos dele em direção a ela quase à altura do chão. Johan percorre um
campo florido e acha Marianne no alto de uma pedra. Eles se beijam demoradamente, se
abraçam, e o sol se irradia na imagem como flair, como “acidente” fotográfico, aqueles
flocos de luz que vazam para dentro do campo visual, uma espécie de sobra da luz. O
amor de Johan e Marianne é inscrito nessa ordem sagrada da luminosidade, da
primavera, do sublime. Um cinema no limiar da sacralidade, feito de aparições e
milagres, mas também de elementos da physis, de estremecimentos da terra. Um cinema
categoria peso-pesado, com imagens que são blocos maciços, imagens com o estrondo
das carretas que cruzam a estrada na cena em que Esther, a esposa de Johan, pede para
que ele pare o carro, sob uma chuva melodramática. Antes, há um campo-contracampo
em eixo de 180º dentro do carro em movimento. Toda vez que corta de Johan para
Esther, vemos trajetos conflitantes, uma estrada que vai e outra que vem. As gotas de
chuva, por seu turno, pesam, a vida pesa sobre os personagens, o céu é enorme e
39 também pesa. A cena de Esther desfalecendo em lágrimas ao lado de uma árvore é triste
e emocionante. Como todos os mais belos momentos do cinema de Reygadas, a
vitalidade do plano se arrisca no paradoxo de se tornar insustentável. Sufocante e
liberador, o choro de Esther se multiplica com a chuva que respinga na câmera.
Percebemos então, por analogia, que o flair das cenas ensolaradas tem um valor a mais.
Aqueles flocos de luz têm um profundo significado acrescido ao efeito estético: eles são
os respingos do sol, a benção dos amantes, da mesma forma que as gotas de chuva são
suas lágrimas.
Uma primavera, uma chuva torrencial, uma violenta passagem do interior para o
exterior que deflagra o inverno e a neve, elipses indeterminadas. Silenciosa Luz tem
esse desejo de ocupar as quatro estações, erguer perante nossos olhos um mundo pleno
de suas virtudes e conflitos, mudanças, passagens. A forma (um tanto esquemática, é
preciso reconhecer) como o filme começa e termina revela um pouco desse desejo de
plenitude, de obra acabada. A lágrima que Marianne deixa sobre o rosto de Esther na
cena do velório, no entanto, é a reconquista do enigma da arte para além de
maneirismos. Prevemos o decorrer da cena, sobretudo porque conhecemos sua
referência explícita, Ordet de Dreyer, e ficamos à espera de um milagre. Mas mesmo
assim, mesmo previsível, o milagre nos arrebata, como uma epifania às avessas. Se
Reygadas souber conviver com seu talento, teremos outras fascinantes experiências de
cinema pela frente.
Luiz Carlos Oliveira Jr.
Contracampo
Disponível em http://www.contracampo.com.br/89/festsilenciosaluz.htm
Os menonitas de Luz Silenciosa de Carlos Reygadas
FORTALEZA – O novo filme do realizador mexicano Carlos Reygadas (de “Japón” e
“Batalha no céu”) passou por um teste na noite desta terça-feira, no 18º Cine-Ceará.
“Luz silenciosa”, que ganhou o prêmio de júri no Festival de Cannes ano passado, é
uma daquelas obras capazes de despertar amor ou repulsa. De difícil diálogo com o
grande público, o longa-metragem tem poucas falas, nenhuma música e planos
40 longuíssimos. Amantes deste tipo de filme autoral, poético e tomadas de câmera nada
triviais podem ficar tranqüilos. “Luz silenciosa” já tem distribuição garantida pela
Imovision e entrará no circuito brasileiro em junho.
Mesmo os poucos interessados no estilo – quando digo que os planos são longos os são
mesmo e podem durar 15 incômodos (no bom sentido) e silenciosos minutos – devem
se agarrar à história curiosa de um grupo de menonitas no México. Confesso minha
ignorância sobre a existência dessa comunidade religiosa fechada, de origem alemã, que
lembra muito os amish. “Luz silenciosa” é esclarecedor e nos mostra um povo que tem
dialeto próprio (falado apenas por 500 mil pessoas em todo o mundo), de origem
protestante e cuja cultura persiste intacta desde o século 16. Apenas alguns grupos se
abriram para a TV ou máquinas agrícolas. Mas na sua grande maioria não tem
manifestação artística, muito menos possui literatura escrita e acredita que tudo fora da
Bíblia seja pecado e desnecessário ao homem.
Recorrente na dobradinha sexo e religião (vide “Batalha no céu), Reygadas usa a
tradição ortodoxa dessa comunidade da cidade de Chihuahua como pano de fundo de
uma história de amor entre um menonita bem casado e pai de numerosos filhos e sua
amante. Se muitos críticos se atrelam às qualidades técnicas de Reygadas, eu prefiro
destacar o peso da trama, uma profunda e nada fácil história de culpa, resignação,
traição, e amores impossíveis e eternos.
Reygadas, um ex-advogado e agora cineasta considerado maldito no México, não pôde
estar presente no Cine-Ceará. Seu assistente de direção nos três filmes, o espanhol Alex
Ezpeleta, falou um pouco sobre a dificuldade de furar o bloqueio e entrar neste mundo
tão à parte dos menonitas. O primeiro obstáculo era encontrar atores. Foram precisos
seis meses. A equipe batia de porta em porta da comunidade mexicana e, quando
abordava o assunto "adultério" do filme, era infeliz na incursão. Até encontrarem
Cornélio Wall Fehr, um menonita mais liberal, com programa de rádio na comunidade e
ex-cantor de um grupo no México. Ele convenceu seus familiares a participarem do
filme (portanto o pai do ator, é o pai do personagem Johan realmente). As atrizes
principais foram buscadas em outros países, como Alemanha e Canadá. O que se vê em
cena são não-atores, dando um tom quase documental ao filme. Ponto para Reygadas.
41 Se parte desse povo não gostou de um filme sobre eles, outra parte acredita que “Luz
silenciosa” possa preservar sua cultura. “Eles não gostam do prazer da alma, tudo é
sofrimento. Só trabalham no campo e trabalhar é sofrer, mas também a chance de salvar
a alma”, contou Ezpeleta. Ele lembra que as casas dos menonitas são assépticas, sem
flores vivas ou qualquer enfeite. “Apenas calendários e relógios. Eles gostam de medir
tudo, do dinheiro ao tempo”, explicou.
Ou seja, vá preparado para o desconhecido em junho e acostume-se às ações passando
pela câmera de Reygadas. Quase nunca as lentes seguem a ação dos atores, a ponto de
um gesto do personagem acontecer fora do plano e sem deixar o espectador perdido.
Acostume-se aos planos longos e sinta o incômodo necessário do silêncio dos
menonitas e da direção de Reygadas. Belo filme que ficará sem o prêmio no CineCeará, divulgado nesta quinta-feira, se “Os desafinados” for de poesia à altura.
Bianca Kleinpaul
O Globo
Disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/cinema/posts/2008/04/16/os-menonitasda-luz-silenciosa-de-carlos-reygadas-no-cine-ceara-97946.asp
O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte
50 anos da Palma de ouro brasileira
Por Luiz Zanin, publicado em O Estado de S. Paulo, em 24/05/12
Há exatos 50 anos o Brasil ganhava sua primeira – e até agora única – Palma de Ouro
em Cannes. O principal prêmio, do mais badalado festival de cinema do mundo, foi
atribuído a O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, em 1962.
Há fotos da equipe do filme chegando ao Brasil que parecem imagens da seleção
brasileira voltando de uma conquista de Copa do Mundo. As imagens provam que o
prêmio, até hoje o mais importante recebido por uma produção brasileira, produziram
grande emoção nas pessoas.
42 Sentimento justificado pois a distinção conferida ao filme significava também o
reconhecimento de um país jovem, que aspirava à projeção internacional. Naquela
época, o Brasil desenvolvia uma atividade artística das mais significativas, com
inovações na música (a bossa nova), no teatro, nas artes plásticas e no cinema. Era o
momento em que nascia o Cinema Novo, o até hoje mais respeitado movimento
cinematográfico do País, projetando nomes como os Nelson Pereira dos Santos (o mais
velho, patrono de todos e precursor), Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon
Hirszman, e, em especial, Glauber Rocha, o mais inventivo, o mais provocador, o mais
falastrão.
É, talvez, uma ironia que a Palma de Ouro tenha caído no colo de alguém que pouco
tinha a ver com as novas ideias cinematográficas do País. Anselmo era um galã, vindo
da chanchada e dos estúdios da Vera Cruz, que já havia dirigido um filme interessante,
Absolutamente Certo, em 1957. Encantou-se com a peça de Dias Gomes na qual se
conta a história do homem, Zé do Burro, que tenta entrar numa igreja católica para
pagar uma promessa feita num terreiro de candomblé a Santa Bárbara para salvar seu
animal de carga, atingido por um raio. Graça alcançada, Zé do Burro carrega uma cruz a
para saldar a dívida com a santa. Mas o padre não permite a entrada. Essa negativa cria
o impasse que dá o tom da narrativa.
Magnificamente interpretado por Leonardo Villar, Zé do Burro, com sua teimosia
radical, conquistou Cannes de alguma maneira, ainda hoje misteriosa. Encenava o
conflito entre a religiosidade popular e a religião oficial, mas também dramatizava a
contradição muito aguda entre o Brasil real, pobre e explorado, e o Brasil oficial,
representado na figura da Igreja católica. Nada disso escapava ao comunista Dias
Gomes, autor da peça, e agudo observador da realidade nacional.
Para levar esse texto à tela, Anselmo usou uma dramaturgia clássica, que pouco tinha a
ver com as inovações formais que estavam sendo preconizadas e testadas por Glauber &
Cia. Valeu-se, além do intérprete principal de um elenco afinado, com Gloria Menezes e
Norma Bengell, do excelente fotógrafo inglês Chick Fowle, trazido ao Brasil pela
Companhia Cinematográfica Vera Cruz. O Pagador de Promessas tinha, então, um
padrão de qualidade técnica que não poderia ser criticado pelos europeus.
43 Tinha, além disso, um ar de Terceiro Mundo, que estava entrando na moda na parada de
sucessos da intelligentsia internacional. O Brasil já era visto como país promissor, cheio
de contradições sociais, que começavam a ganhar forma artística através de seus
criadores. Estávamos ainda nos anos de ouro da década de 1960 e a ditadura não havia
chegado, assim como as grandes obras do Cinema Novo – Deus e o Diabo na Terra do
Sol, de Glauber Rocha, Os Fuzis, de Ruy Guerra e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos
Santos – que estavam em fase de gestação.
Disso tudo se beneficiou Anselmo Duarte, e seu produtor Oswaldo Massaini, para
conquistarem a ambicionada Palma de Ouro – troféu que, mais tarde, foi morar na
estante do diretor em Salto, no interior de São Paulo, sua terra natal.
Prêmios são assim. Às vezes, além do mérito intrínseco da obra, aproveitam-se de
circunstâncias várias, como um determinado momento histórico, divisões internas do
júri, simpatias ou antipatias. Seja como for, O Pagador de Promessas impôs-se a um júri
que tinha François Truffaut entre seus integrantes, e concorria com filmes como O Anjo
Exterminador, de Luis Buñuel, O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, e Joana D’Arc,
de Robert Bresson, hoje considerados obras-primas do cinema mundial.
Depois disso, o Brasil voltou várias vezes aos mais importantes festivais do mundo,
inclusive com as obras consideradas máximas do Cinema Novo. Que foram
reconhecidas e premiadas, mas não com a Palma de Ouro. Já faturamos dois Ursos de
Ouro no concorrente de Cannes, o Festival de Berlim, mas, por enquanto a única Palma
de Ouro brasileira continua a ser a de Anselmo Duarte.
Há meio século, “O Pagador de Promessas” ganhou a Palma de Ouro em Cannes
Por Marcelo Perrone, publicado em Zero Hora, em 23/05/12
Completam-se nesta quarta-feira exatos 50 anos daquela que permanece a maior
conquista do cinema nacional: a Palma de Ouro que consagrou O Pagador de Promessas
no Festival de Cannes, em 1962.
44 Por coincidência ou proposital arranjo dos organizadores, também neste 23 de maio será
exibida na mais importante mostra competitiva de filmes do mundo uma produção
brasileira que tenta repetir o feito: Na Estrada, de Walter Salles.
Diretor de O Pagador de Promessas, Anselmo Duarte (1920 – 2009) morreu reclamando
a conquista histórica nunca foi devidamente valorizada no Brasil. Seu principal alvo
eram os realizadores que, na mesma época, despontavam com o cinema novo e se
alinhavam aos críticos que avaliavam ser O Pagador de Promessas um filme “à moda
antiga”, que se contrapunha ao ventos da “modernidade” soprados pela nouvelle vague
francesa.
A mitologia que envolve O Pagador de Promessas é temperada por exageros, vaidades,
injustiças, doses de imaginação e um tanto de preconceito, com destaca em entrevista a
ZH Leonardo Villar, protagonista do filme. Segundo o ator, o preconceito se deu pelo
fato de Duarte ser um popular galã de chanchada com pouca experiência na direção.
Com prestígio e recursos, o diretor convenceu o autor da peça, o dramaturgo Dias
Gomes, a lhe vender os direitos de adaptação. Artista identificado com o pensamento de
esquerda, Gomes contava a história de Zé do Burro, homem simples que cumpre uma
jornada épica arrastando uma cruz – como a de Jesus – com o fim de pagar uma
promessa numa igreja de Salvador. Em seu caminho, ele depara com a intolerância de
um padre e oportunistas que querem se aproveitar de seu drama.
Além da força do texto original, Anselmo obteve um excelente desempenho tanto de
Villar quanto Glória Menezes, que vive Rosa, mulher do protagonista – ambos eram
atores consagrados no teatro estreando no cinema –,e moldou O Pagador de Promessas
numa excelência técnica pouco comum no cinema nacional época.
Muito da implicância contra O Pagador das Promessas é creditada ao fato de ele ter
batido, em Cannes, filmes de diretores consagrados e queridos da crítica (veja no
destaque) e, no Brasil, a disputa interna para representar o Brasil no festival com Os
45 Cafajestes, de Ruy Guerra, um dos filmes embrionários do cinema novo. Disputada essa
encarada como definidora dos rumos que o cinema nacional poderia tomar.
Anselmo cutucava os cinemanovistas dizendo que eles, apesar da badalação nos
festivais internacionais, nunca igualaram seu feito. Esse folclore em torno de polêmicas
e brigas não deve ser levado ao pé da letra. Glauber Rocha, por exemplo, em sua
Revisão Critica do Cinema Brasileiro faz tantos elogios quanto reparos ponderados e
pontuais ao filme e ao trabalho de Anselmo.
No campo da crítica, sim, posições mais inflamadas marcaram a recepção do filme. No
Rio Grande do Sul, Tuio Becker elogiou “o melhor filme filme nacional de todos os
tempos (…). Vibrante, transbordante de humanismo e veracidade, realizado com um
noção de estética cinematográfica poucas vezes vista e um elenco de méritos
excepcionais”. Em São Paulo, entre os que não gostaram estava Jean-Claude Bernardet,
que em um longo ensaio identificou que ao,contrário do que parece, o filme “faz uma
exaltação à igreja”, “ficou preso ao estilo teatral”, “sofre de academicismo” e mostra
“falta de febrilidade, resultando num “filme artesanal bem feito, não chegando a ser
expressão de artista”.
A conquista da Palma de Ouro teve como complemento consagrador a indicação, em
1963, ao Oscar de filme estrangeiro, no qual o vitorioso foi o longa francês Sempre aos
Domingos, de Serge Bourguignon. A quem quiser rever ou conhecer esse clássico, o
Canal Brasil, programou uma exibição de O Pagador das Promessas para as 22h desta
quarta-feira.
Leonardo Villar e Glória Menezes falam sobre experiência de ganhar a Palma de
Ouro com “O Pagador de Promessas”
Por Marcelo Perrone e Vanessa Franzosi, publicado em Zero Hora, em 23/05/12
Leonardo Villar – Foi memorável. Eu havia feito o papel do Zé do Burro no teatro.
Estrear no cinema com um prêmio desta importância é inesquecível. Foi um grande
empurrão na minha carreira. O que me marcou muito também foi a convivência com
46 atores e diretores que eram ídolos do cinema, como Marcello Mastroianni e François
Truffaut. Estávamos todos no mesmo hotel, e era comum nos encontrarmos no
restaurante. Posso dizer que fiquei deslumbrado.
Glória Menezes – Foi meu começo, não sabia nem como fazer cinema. Depois de
receber um prêmio de atriz revelação no teatro, em 1960, o Anselmo (Duarte) me
convidou para o filme. Fui para fazer o papel da prostituta, e Maria Helena Dias faria o
papel da Rosa. Mas ela pegou uma pneumonia. E as primeiras filmagens eram feitas à
noite, o equipamento era todo alugado e tinha tempo para devolver, não dava para
esperar ela melhorar. Então, eles pintaram meu cabelo, que eu estava loira, e, do dia
para a noite, eu estava filmando.
Fico pensando, hoje, na responsabilidade que me deram. Eu tão crua, começando
mesmo. Fui pela minha intuição e pelo que o Anselmo me dirigiu, e aprendi muito com
ele. Ele entendia de cinema como ninguém. Então, fui para a Bahia assim e, quando me
dei por conta, estava em Cannes.
A PALMA DE OURO
Villar – Quando nos preparávamos para a sessão de gala, à noite, já tinha o burburinho
de que o filme tinha agradado e entrado na lista de favoritos. Lembro que estávamos
reunidos no quarto do Anselmo, bebendo, e ouvimos gritos no corredor. Era alguém que
vinha avisar que tínhamos ganhado a Palma de Ouro. Logo depois, na cerimônia de
premiação, foi uma consagração. Todos aplaudiam de pé, inclusive o François Truffaut,
membro do júri. Falavam que eu e Mastroainni, que estava em Divórcio à Italiana,
podíamos ganhar como melhor ator, mas o júri optou por uma premiação coletiva.
Sinceramente, um prêmio individual não me deixaria tão feliz como a conquista da
Palma de Ouro. Minha vaidade, alimentei com críticas boas como a que o Truffaut
escreveu nos Cahiers do Cinéma (o diretor francês colocou o brasileiro entre os grandes
atores do mundo).
Glória – Houve uma apresentação à tarde. À noite, era a de gala. Na apresentação da
tarde, fiquei surpresa que o público aplaudiu as cenas. Quando terminou, aplaudiram de
47 pé. À noite, quando nós saímos da exibição, era um monte de gente pedindo autógrafos.
No Brasil, eu tinha recém feito alguns trabalhos, não tinha esse reconhecimento. De
repente, estava num festival importantíssimo, dando autógrafo. Foi uma emoção
incrível.
IMPACTO NA CARREIRA
Villar – Recebi sondagens para trabalhos fora do Brasil, mas nada mais que isso. Eu
tinha uma carreira muito sólida aqui. Trabalhar no Exterior era uma aventura, e é ainda
hoje. Tem de ter um bom agente, tem o problema da língua. Gosto de fazer cinema. E
por muito tempo tentei conciliar com o teatro e a televisão. Mas, no Brasil, cinema e
teatro são luta, e televisão é sobrevivência. Meu último trabalho no cinema foi Chega de
Saudade. Na televisão, foi a novela Passione. Recebo convites para atuar, mas não tenho
muita disposição. Tenho alguns incômodos e limitações. Para atuar, preciso sentir
prazer. Se eu receber um convite irresistível, vou até de muletas (risos).
Glória – Na volta ao Brasil, fomos recebidos com bandeirinha na rua, em cima de um
caminhão de bombeiros. O público reconheceu, aplaudiu tanto, foi muito bonito. Foi um
estímulo muito grande nesse meu início de carreira. Dificilmente, um ator ou uma atriz
têm um começo assim. Recebi convites para trabalhar no Exterior. Mas não tinha a
menor possibilidade porque eu já tinha dois filhos, estava me separando do meu
primeiro marido, tinha muitas responsabilidades aqui no Brasil. Não deu nem para
pensar em ficar por lá. E acho que fiz bem, porque meu sucesso foi aqui.
O LEGADO
Villar – Acho que houve preconceito de algumas pessoas no Brasil pelo fato de
Anselmo ser um grande galã do cinema popular e só ter feito um filme antes, a
chanchada Absolutamente Certo. Muita gente não entendeu como ele foi lá e fez O
Pagador de Promessas, filme tecnicamente muito bem realizado, com bom ritmo de
interpretações, e que ainda ganha a Palma de Ouro. Se o filme fosse feito com os
recursos de hoje, poderia ser melhor na questão do som, já que teve de ser dublado. É
um filme que permanece vivo e atual. Quanto à questão da rejeição pelo pessoal do
48 cinema novo, para mim não existe cinema novo nem cinema velho, existe cinema. Os
grandes filmes da história são os que sobrevivem a modismos e cultos. São os filmes
normais, bem feitos.
Glória – Acho que o filme fez muito sucesso porque é épico. Não tem moda de roupa,
de cabelo, ele não ficou datado. É um cinema moderno, ágil. Tinha uma câmera sempre
em movimento. E fico imaginando como eu iria reagir se fosse convidada para fazer
com a minha experiência de hoje. Quando vejo O Pagador de Promessas, e aparece todo
o povo na escadaria, custo a me encontrar. Não estava preparada para fingir que eu era a
Rosa. Fui de corpo e alma com a Rosa, sem pensar se iria fotografar bem ou não.
Zero Hora conversou com os dois protagonistas de O Pagador de Promessas. Leonardo
Villar, 87 anos, falou por telefone, do Rio, onde mora. Glória Menezes, 77, encontrou a
reportagem em sua passagem por Gramado, no fim de semana. Ambos eram estreantes
em cinema quando estrelaram o filme que ostenta o mais importe prêmio já conquistado
por uma produção brasileira, a Palma de Ouro do Festival de Cannes.
François Truffaut e a Palma de “O Pagador”
Por Sérgio Rizzo, publicado em Ultrapop , em 24/05/12
Até o “Jornal Nacional” registrou ontem o cinquentenário da Palma de Ouro de melhor
filme concedida a O Pagador de Promessas, produzido por Oswaldo Massaini e dirigido
por Anselmo Duarte, com base na peça de Dias Gomes. A cerimônia de encerramento e
premiação do Festival de Cannes de 1962 foi realizada em 23 de maio.
Outros prêmios foram recebidos por brasileiros em Cannes, antes e depois, como o de
melhor filme de aventuras para O Cangaceiro (em 1953), de melhor direção para
Glauber Rocha (em 1969, por O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro) e de
melhor atriz para Fernanda Torres (em 1986, por Eu Sei que Vou te Amar).
49 Nenhum desses prêmios se compara à Palma de Ouro de melhor filme, claro, e por isso
a equipe de O Pagador foi recebida em desfile de rua quando voltou ao país, como as
seleções de futebol que conquistaram as cinco Copas do Mundo.
A mostra competitiva de Cannes em 1962 exibiu 34 longas (no festival deste ano, em
andamento, são apenas 22). Basta conferir os demais premiados para ter ideia da
concorrência de peso enfrentada por O Pagador.
O prêmio especial do júri, uma espécie de vice-campeonato em festivais, foi dividido
por O Processo de Joana D’Arc, do francês Robert Bresson, e O Eclipse, do italiano
Michelangelo Antonioni — dois dos principais cineastas europeus do século 20.
Outro monstro do cinema, o espanhol Luís Buñuel, recebeu o prêmio da crítica por O
Anjo Exterminador. O grego Michael Cacoyannis ficou com o prêmio de melhor
adaptação — e dividiu ainda, com outros dois longas, o prêmio da Comissão Superior
Técnica — por Electra.
O prêmio de melhor comédia foi para Divórcio à Italiana, do italiano Pietro Germi.
Longa Jornada Noite Adentro, do norte-americano Sidney Lumet, recém-lançado em
DVD no Brasil, recebeu um prêmio de interpretação para os quatro atores principais
(Katharine Hepburn, Ralph Richardson, Jason Robards e Dean Stockwell).
Outro prêmio de interpretação foi concedido aos dois atores principais de Um Gosto de
Mel, do inglês Tony Richardson (Rita Tushingham e Murray Melvin).
De mãos abanando, saíram diretores de primeira linha como o norte-americano John
Frankenheimer (Juventude Selvagem), o austríaco — radicado nos EUA — Otto
Preminger (Tempestade em Washington), a francesa Agnès Varda (Cléo das 5 às 7), o
indiano Satyajit Ray (A Deusa) e o inglês Jack Clayton (Os Inocentes).
Em 1962, o júri que definiu os prêmios de longas teve 11 integrantes (em 2012, são
apenas nove). O presidente foi o escritor japonês Tetsuro Furukaki. Entre seus colegas,
50 estavam alguns diretores: o francês François Truffaut, o polonês Jerzy Kawalerowicz e
o italiano Mario Soldati.
Foi Truffaut, aliás, quem fez circular a versão de que O Pagador teria sido escolhido
para apaziguar as diferenças entre os jurados, divididos entre os filmes de Buñuel,
Antonioni, Cacoyannis, Germi e Bresson.
Truffaut, de acordo com o próprio, teria sugerido premiar o filme brasileiro por sua
“simplicidade e força temática”, com o objetivo de estimular uma cinematografia
emergente do Terceiro Mundo.
Essa história é recontada pelo cineasta Walter Lima Jr., com as palavras acima, no livro
“Viver Cinema”, de Carlos Alberto Mattos.
Não sobrou ninguém para falar hoje do episódio: a última sobrevivente do júri de
Cannes em 1962, a atriz francesa Sophie Desmarets, morreu em 13 de fevereiro
passado, aos 89 anos.
Disputas por direitos marcam a comemoração dos 50 anos da Palma
Por Paulo Henrique Silva, publicada no jornal Hoje em Dia, em 02/04/12
O que era para ser só festa ganha outros contornos com as disputas por direitos autorais
e de comercialização que marcam o aniversário de 50 anos da conquista da Palma de
Ouro no Festival de Cannes pelo filme O Pagador de Promessas, o prêmio mais
importante recebido por uma produção brasileira. Até mesmo o único diploma
concedido a um filme da América do Sul pelo tradicional festival francês é hoje motivo
de briga entre os herdeiros do diretor Anselmo Duarte e do produtor Oswaldo Massaini.
O cabo de guerra prejudica em boa parte a programação que celebraria a façanha,
ocorrida em 23 de maio de 1962. Um dos projetos, envolvendo a restauração do filme,
está parado devido ao impasse. Ricardo Duarte, filho de Anselmo, não conseguiu
autorização da Cinemateca Brasileira para retirar a cópia do filme de seus depósitos
51 climatizados e iniciar a recuperação, porque nos registros constam que o filme é
propriedade da Cinedistri (hoje Cinearte), comandada por Aníbal Massaini.
“É a primeira vez que digo isso em público: pouca gente sabe que meu pai é coprodutor
do filme, com 50% dos seus direitos. Como meu pai não era uma pessoa vaidosa, o
Oswaldo pediu a ele que só colocasse o nome como diretor, por já ter bastante
notabilidade. Assim, nos créditos só aparece Oswaldo como produtor. Localizei o
contrato e já entrei com processo na Ancine (Agência Nacional de Cinema) para reparar
essa injustiça e poder restaurar a obra do meu pai”, afirma Ricardo.
Aníbal já recebeu ofício da Ancine sobre a mudança nos registros, mas alega que o
contrato de produção ainda assim não permite que Ricardo inicie o projeto. “A empresa
responsável pelo planejamento e distribuição é exclusivamente a Cinedistri. A
titularidade do filme é nossa. Embora tenha participação societária, isso não outorga a
Anselmo e seus herdeiros os direitos que são exclusivos nossos. Ricardo apenas quer
locupletar-se com o filme”, acusa o produtor.
Embora admita que os direitos de comercialização pertençam à Cinedistri, o herdeiro
salienta que seu projeto não tem caráter comercial, prevalecendo apenas o desejo de
restauração. Com R$ 500 mil aprovados pela lei estadual de incentivo ao cinema, de
São Paulo, a intenção de Ricardo é, segundo ele, tornar o filme disponível em novas
mídias (DVD e blu-ray) e distribuir dez mil cópias gratuitamente em bibliotecas,
cineclubes e entidades culturais. “Não quero fazer dinheiro com isso”, garante.
Ricardo estuda entrar na Justiça e requerer a prestação de contas que o contrato exige
pela comercialização do filme e que, segundo ele, jamais foi feita. “O contrato diz que é
obrigação da distribuidora prestar contas mensais, mas eles não fazem nem mesmo as
mensais. O Canal Brasil, em que Aníbal seria um dos sócios, exibe os filmes do meu pai
e nunca recebemos nada por isso. Vamos ver qual é a melhor estratégia para fazer uma
auditoria plena e sermos ressarcidos”, salienta.
O produtor explica que a cessão para exibição no Canal Brasil é por tempo e que a
prestação de contas já teria sido realizada com o pai dele ainda em vida. “Quando
52 expirar o termo de vigência dessa cessão ou ocorrer outro tipo de exibição, um relatório
será feito para a realização da partilha. Mas o Ricardo está tão desesperado que deveria
ter nos notificado de que as eventuais receitas do filme deveriam ser prestadas ao
espólio de Anselmo Duarte e que o inventariante seria fulano de tal. Nunca recebemos
nenhum documento dele”.
Disputa pelo troféu
No ano passado, após a exposição da Palma de Ouro no Festival de Gramado, ele teria
enviado carta a Ricardo reclamando do fato de o prêmio ter sido doado, em comodato,
ao Centro Cultural Anselmo Duarte, em Salto, cidade do interior paulista onde o diretor
nasceu. Aníbal observa que uma cláusula no contrato, acrescida em agosto de 1962,
estipulou que todos os prêmios conquistados que não fossem nominais pertenceriam
igualmente a Anselmo e Oswaldo.
“O Ricardo não tem a integral propriedade sobre a Palma, porque é de ambos e somente
as duas partes podem decidir onde ela deve ficar”, justifica Aníbal. O filho de Anselmo
contra-ataca dizendo que “um fato inconteste é que Cannes é um festival de autor e que
a Palma sempre é entregue ao diretor do filme. Conseguimos uma declaração da direção
do festival e ela foi claríssima, dizendo que os produtores não são convidados. Só paga
as despesas de hotel e viagem para diretor e elenco”.
Ricardo prossegue ressaltando que, “mesmo se não tivéssemos direito sobre o
certificado, a lei diz que quem o detém por mais de cinco anos passa a ser dele. É o
chamado uso capião de bem móvel”. Aníbal declara que a opinião de um festival não
pode se sobrepor a um contrato adotado pelas duas partes e lamenta que as ações de
Ricardo, observando que seu pai sempre foi generoso com Anselmo. “Oswaldo foi um
pai para ele, empatando recursos para que ficassem em sociedade”.
Aníbal lembra que cada sócio teria que dar Cr$ 5 milhões para a produção, mas que
Anselmo só entrou com Cr$ 1,5 milhão. Os outros Cr$ 3,5 milhões sairiam de um
financiamento específico prometido pelo então presidente Jânio Quadros. “Só que Jânio
renunciou em seguida. O que Oswaldo fez? Emprestou o dinheiro para descontar nas
53 futuras receitas. Ele entrou com Cr$ 10 milhões para que ele ficasse sócio dele, com
50%. Distribuímos mais de 300 longas-metragens e temos uma trajetória impoluta”,
enfatiza o produtor.
Ricardo parece determinado a recuperar todos os direitos do filme. “Meu pai era um
artista, um homem com a cabeça virada para questões culturais e artísticas. Não se
preocupava com dinheiro, não era materialista. Deixou quatro filhos (Ricardo é filho do
primeiro casamento, com Myrthes, falecida em fevereiro) e temos nossos direitos. Não é
uma questão financeira, mas sim moral”, alega Ricardo. “Três anos depois da morte do
pai, que nunca contestou os direitos de comercialização do filme, ele quer mudar as
regras do jogo. Só quer aparecer”, defende-se Aníbal.
Documentários sobre Massaini e Anselmo
Os filhos de Anselmo Duarte e Oswaldo Massaini desenvolvem projetos de
documentários sobre seus pais. Aníbal prepara Oswaldo Massaini, uma Paixão pelo
Cinema, que mostrará a trajetória de um dos mais importantes produtores do país,
mostrando desde o seu início no cinema, como funcionária de uma distribuidora de
filmes brasileiros, em 1937.
Ele começou a atuar na área de produção em 1950, com Ruas Sem Sol, assinando mais
de 60 filmes nessa função, além de ter trabalhado com outros filmes apenas como
distribuidor. Aníbal já colheu diversos depoimentos, entre eles uma das últimas
entrevistas concedidas pelo comediante Chico Anysio, que escreveu roteiros para
Oswaldo.
Em relação a O Pagador de Promessas, o filme terá imagens da chegada da equipe ao
porto de Santos, quando foi recebida por centenas de pessoas. “Como Anselmo tinha
medo de avião, voltaram de navio, dois meses depois de recebido o prêmio. Apesar
desse tempo, os ânimos não se arrefeceram, com o povo recebendo-os com
entusiasmo”, destaca Aníbal.
54 Ricardo Duarte está captando recursos para dirigir Palmas, a Palma é nossa!, que terá
depoimento de Anselmo, técnicos e atores que participaram do filme. “Quando percebi
que papai já estava bastante doente, reuni uma equipe e colhi dois dias de entrevistas
com ele. A memória já estava prejudicada, devido ao Mal de Alzheimer, mas como eu
sabia de todas as histórias dele, dava o gatilho para ele relembrar das situações”, conta.
Ele destaca que, no final da vida, Anselmo já não tinha mais aquela acidez da juventude.
“Estava mais paciente e gostava de lembrar que as pessoas que falaram mal dele foram
até ele para pedir desculpas, reconhecendo a sua genialidade”, afirma. O diretor foi
muito combatido após a conquista da Palma de Ouro, especialmente pelo grupo do
Cinema Novo.
O jornalista Oséas Singh Jr., autor da biografia “Adeus Cinema”, publicada em 1993,
lembra que Anselmo sempre foi uma pessoa difícil e que tinha um grande complexo de
inferioridade por não ter formação acadêmica. “Os cinemanovistas tinham em sua
maioria e ele se ressentia disso. Não percebia que sua formação, na prática, era mais
sólida de que muitos teóricos”.
Singh recorda que ele passou a renegar o seu passado de galã da Vera Cruz, por achar
que seus trabalhos como ator poderiam comprometer a imagem de diretor talentoso. Na
época do lançamento do livro, o autor viajou o Brasil inteiro ao lado de Anselmo.
“Ocorreram episódios engraçados, como a vez que fomos a Porto Alegre e, devido a um
erro de divulgação, não havia ninguém na livraria”.
Sobre O Pagador de Promessas, o livro enaltece a vitória sobre produções de diretores
consagrados, como Federico Fellini, Luis Buñuel, Vittorio de Sica e Michelangelo
Antonioni. “Havia um embate violento entre franceses e italianos em Cannes. Era como
Brasil e Argentina no futebol. O filme de Anselmo caiu como uma luva, mostrando que
havia um bom cinema feito em outros lugares do mundo”.
Baseado em texto de Dias Gomes e filmado na Bahia, o filme tem no elenco Leonardo
Vilar, Glória Menezes, Antônio Pitanga, Othon Bastos, Norma Bengell e Dionísio
Azevedo. Com imagens em preto e branco, mostra a história de um homem que tenta
55 pagar promessa na Igreja de Santa Bárbara depois que seu burro sobrevive a um raio. O
impedimento do padre cria o caos na cidade.
Onde foi parar a Palma de Ouro brasileira?
Por Luciano Ramos, do Programa Cinema Falado
Há exatamente meio século, em 19 de maio de 1962, a três dias do encerramento da sua
mostra competitiva, o Festival de Cannes exibia O Pagador de Promessas. O diretor do
filme Anselmo Duarte tremia dos pés à cabeça, mas todo o nervosismo se dissipou com
os aplausos do público que bradava em coro “le grand prix, le grand prix!” E a angústia
se transformou em euforia quando, ao olhar para o camarote do júri, Anselmo viu o seu
presidente François Truffaut gritando para a tela “très bien, très bien!” Naquele
momento, esse elogio público lhe valeu como antecipação da Palma de Ouro – a única
que o cinema brasileiro receberia até os dias de hoje. Curiosamente, seis anos antes, no
número 31 da revista Cahiers du Cinéma, lançado em janeiro de 1954, o crítico Truffaut
e futuro diretor de Os Incompreendidos publicava o artigo “Uma certa tendência do
cinema francês”, no qual inaugurava a trajetória da chamada politique des auteurs −
ainda que, em 1948, Alexandre Astruc já tivesse introduzido na revista L´Écran
Française a idéia de que o diretor seria o “único progenitor” de um filme. Naquela época
um conjunto de textos críticos como os de Truffaut e Jacques Rivette fundamentaram e
difundiram a crença na diferenciação fundamental entre o auteur (autor) e o metteur en
scène (encenador) no fazer do cinema.
Para muita gente isso era um exagero porque, na verdade, qualquer filme resulta do
trabalho de várias pessoas em conjunto. Tanto que o próprio editor do Cahiers, André
Bazin reconhecera que “… não pode haver uma crítica definitiva do gênio ou do talento,
que não leve em conta o determinismo social, a combinação histórica das circunstâncias
e o embasamento técnico que em grande medida o determinam”. Em seguida, porém, o
crítico americano Andrew Sarris ajudaria a transformar a “teoria do autor” num
verdadeiro culto à personalidade de determinados “cineastas”. Em 1962 − ano em que o
paulista Anselmo Duarte seria entronizado no mesmo altar em que já se venerava
Fellini, Antonioni, Buñuel e tantos outros – Sarris alfinetava Bazin no ensaio Notes on
56 the Auteur Theory: “se os diretores e outros artistas não podem ser arrancados de seus
ambientes históricos, a estética fica reduzida a um ramo subordinado da etnografia”.
Aceitar integralmente esse ponto de vista, no entanto, significaria reduzir a história do
cinema a um mero relatório de diretores (promovidos à condição de autores) e suas
obras.
“O vencedor da Palma de Ouro é o brasileiro Anselmo Duarte!” Com esse anúncio, o
locutor do Festival de Cannes já exprimia um consenso que implicava em desconsiderar
não apenas os demais artistas participantes na elaboração da obra premiada, mas todo o
contexto social e econômico que possibilitou a sua feitura. Um festival de cinema não é
como um torneio de artes marciais, no qual todos os competidores se enfrentam e
apenas um sai vitorioso. Na realidade, quem vence aquele tipo de disputa é toda a
equipe do filme, representando ali o ambiente cinematográfico a que ele se refere. O
nome do diretor, no caso, aparece apenas para dar uma identidade individual a todo esse
contingente de pessoas e elementos culturais. Ironicamente, hoje em dia é a própria
grande indústria cinematográfica que cuida com todo o carinho dessa noção de autor,
utilizando-a como elemento de marketing no lançamento de seus produtos mais
sofisticados. Não há dúvida de que Meia Noite em Paris só poderia ser concebido por
Woody Allen. Mas será que Rob Marshall pode ser designado como autor do último
exemplar da série Piratas do Caribe?
Em termos concretos, o episódio da conquista brasileira em Cannes em 1962 resultava
historicamente de uma escalada quantitativa e qualitativa, em matéria de produção de
cinema no Brasil. No mercado exibidor, os filmes nacionais desfrutavam uma posição
até melhor do que a atual − principalmente por conta do apoio num “sistema de
estrelas” que fora germinado no rádio e do qual a televisão ainda não tinha se
apropriado. Do ângulo financeiro, a tentativa de instalar em São Paulo estúdios tipo
“fábricas de filmes” − imitando Hollywood, como a Vera Cruz − não fora bem
sucedida. Ainda assim gerou o primeiro título nacional a ser amplamente divulgado e
aplaudido no exterior: O Cangaceiro, de 1953, dirigido por Lima Barreto que, por sinal,
nunca foi considerado um autor de cinema e terminou a vida esquecido num asilo. Além
disso, muitos dos técnicos e artistas europeus reunidos na Vera Cruz pelo cenógrafo e
documentarista internacional Alberto Cavalcanti permaneceram aqui no país e
57 agregaram know how e repertório cinematográficos às nossas produções. Inclusive no
caso do próprio O Pagador de Promessas − como, por exemplo, o fotógrafo Chick
Fowle − e de outros títulos produzidos por Oswaldo Massaini. Esse, aliás, foi o caldo de
conhecimento em que Anselmo se formou antes de seu primeiro trabalho como diretor:
Absolutamente Certo (1957), outra realização da empresa Cinedistri, de Massaini.
Dos anos de 1960 em diante, os integrantes do cinema-novo abraçaram inteiramente a
“teoria do autor”. Esta, no entanto, foi retrabalhada por Glauber Rocha de maneira a
excluir o chamado “cinema industrial” direcionado para o mercado, reservando-a para o
“cinema independente” e soi disant revolucionário. Glauber opunha as tríades “autor,
cinema independente e revolução” a “artesão, cinema industrial e conformismo”.
Apesar de ungido como autêntico autor, no coração da Meca do “cinema de arte”, por
um dos pais da política dos autores em pessoa, após sua volta ao Brasil Anselmo Duarte
não conseguiu se situar em nenhum dos lados nessa dicotomia acima resumida. Duas
décadas depois do triunfo com O Pagador, era compreensível que ele acumulasse
frustrações e ressentimentos por ter sido hostilizado ou mal aproveitado por ambos os
componentes daquela inequação. Ou seja, um resultado de 9 títulos como diretor, sem
aprovação de público nem de crítica − descontando o excelente Veredas da Salvação
(1965), injustamente mal recebido pelos comentaristas da época em que foi lançado.
Então, em 12 de agosto de 1980 Anselmo pediu emprestados o diploma e o troféu e
nunca mais os devolveu a Massaini, guardando-os consigo até morrer em 7 de
novembro de 2009.
Em seguida, seu filho Ricardo Duarte doou a relíquia à cidade de Salto, onde o diretor
nascera em 1920. E assim, noventa anos mais tarde, em abril de 2010, aquele município
inaugurava um teatro chamado Centro de Educação e Cultura Anselmo Duarte e nele
instalou a Sala Palma de Ouro, local onde ela se encontra agora em exposição pública.
Na cerimônia de inauguração, Ricardo Duarte declarou: “Meu pai sempre dizia que a
Palma é dada ao país e não ao diretor, por isso ela é nossa”. Do ponto de vista jurídico,
no entanto, essa questão ainda se encontra em aberto, aguardando uma decisão judicial.
Embora, de acordo com o regulamente de Cannes até 1965, a Palma era destinada ao
produtor e não para o diretor, que concorria a prêmio específico. No entanto, o crítico
Jean-Claude Bernardet lembra que “o Massaini sem o Anselmo talvez não tivesse feito
58 O Pagador, mas o Anselmo sem o Massaini também não. Agora, nenhum dos dois teria
feito o filme sem o Dias Gomes”.
Na verdade, a menção ao dramaturgo Dias Gomes como um dos “pais da criança”
poderia ser estendida a Flávio Rangel, que dirigira o texto no teatro; a Carlos Coimbra,
que montou o filme; a Chick Fowle que o fotografou e ao ator Leonardo Vilar, que deu
corpo e alma ao personagem. Aliás, Anselmo dizia que Massaini chegou a pensar no
cômico Mazzaropi como protagonista. Por sua vez, Dias Gomes preferia que o próprio
Flávio Rangel dirigisse o filme. Chegamos assim à premissa óbvia de que os filmes são
criações coletivas e, na maior parte das vezes, o diretor é apenas o capitão do time. Ou
quem sabe esse papel preponderante de líder seria, em última análise, do produtor?
Autor de Cinema Brasileiro – Propostas Para Uma História, Jean Claude Bernardet
lembra que “é necessário compreender as estruturas de produção para entender a
história do cinema” e, no depoimento para um documentário sobre o realizador de O
Pagador de Promessas, observa que “atualmente, o produtor é considerado um
instrumento do diretor. Mas não esse era o caso do Massaini. Era ele quem fazia a
proposta do projeto. Quer dizer, ele era o proponente. A partir de certo momento na
história do cinema brasileiro, o diretor vira seu próprio produtor, ainda que não se
comporte essencialmente como tal… E julga que o produtor precisa ficar a reboque dele
enquanto diretor. Essa, porém, não era a atitude do Massaini”.
De fato, segundo o produtor Luis Carlos Barreto, “Massaini se envolvia com o projeto
em todos os aspectos. Participava das ideias do roteiro, do set de filmagem, da
divulgação do filme e da elaboração das peças de publicidade. Portanto, atuava nos
níveis criativo, financeiro, administrativo e comercial”. Da outra extremidade da cadeia
produtiva, a atriz Dercy Gonçalvez (Rio de Janeiro, 1907-2008) também ofereceu o seu
depoimento: “Fazia-se cinema bom, com muito pouco dinheiro. Era uma luta danada
pela sobrevivência. Às vezes, na hora do almoço a produção mandava todo mundo
embora, pra comer em suas casas. O Massaini e Watson Macedo não tinham patrocínio,
não tinham quem ajudasse. Faziam com o dinheiro deles, ou até mesmo sem dinheiro,
numa dificuldade danada. Esses são os verdadeiros homens do cinema: eram heróis e
imprensa ainda metia o pau”.
59 Após a morte de Massaini em 25 de maio de 1994, a Cinemateca Brasileira organizou
um ciclo de 11 filmes produzidos por ele e, a propósito do evento, o crítico Inácio
Araújo declarou que “é uma formidável ocasião para aprofundar uma questão que até
hoje o cinema brasileiro deixou de lado: a arte de produzir.” Já naquela época, o
jornalista da Folha de São Paulo assinalava que “à força de serem negligenciados os
produtores desapareceram… mas a questão permanece: reciclar o papel do produtor,
promover o seu convívio com um cinema em que o diretor tornou-se autor e principal
estrela, encontrar o equilíbrio entre concepção artística e comércio são aspectos para os
quais a cinematografia ainda não encontrou respostas convincentes. Uma função central
que o cinema brasileiro negligenciou a muito tempo. Talvez por isso esteja na tanga em
que está.”
Apesar das diversas e severas restrições à noção de autor no cinema, ainda hoje ela
continua sendo considerada por muitos como uma instância determinante, pairando
soberana acima até da esfera econômica. No fundo, a exposição desse conflito entre
produtor e diretor em função da “posse” da Palma de Ouro serve aqui para defender a
necessidade de levantamentos históricos mais detalhados e de uma reflexão mais
aprofundada acerca da história da produção e da comercialização de filmes em São
Paulo.
Disponível em http://abraccine.wordpress.com/2012/05/28/50-anos-da-palma-de-ouro/
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