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CULTURA Tema: Os paradoxos da religião Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse A religião é um dos traços culturais mais marcantes da América Latina e representa os seus paradoxos culturais, sociais e históricos de maneira muito particular: esteve ao lado dos ricos, mas também apoiou revoluções populares; o sincretismo (comum, por causa da convivência entre etnias diferentes) mistura credos antagônicos; no estado laico e democrático, a presença da religião na política é ainda muito forte. No Brasil, filmes espíritas estão entre os campeões de bilheteria e um padre vira astro de cinema. Para entender a relação de fascínio e conflito presentes na religião, o programa discute os filmes Chico Xavier, de Daniel Filho, O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, Luz Silenciosa, de Carlos Reygadas e Nazarín, filme da fase mexicana de Luis Buñuel. Apresentação dos filmes e das questões Chico Xavier (Brasil, 2010), de Daniel Filho O filme de Daniel Filho levou 3 milhões e meio de pessoas ao cinema e representa o filão de filmes espíritas que fizeram sucesso no Brasil nos últimos anos como Bezerra de Menezes, Nosso lar e As Mães de Chico Xavier. Fenômeno curioso porque o país com maioria católica e minoria kardecista não repetiu os mesmos sucessos com os filmes calcados no credo católico, á exceção do filme Maria mãe do filho de Deus, com o padre Marcelo Rossi. O filme biográfico do mediu espírita também responde aos sucessos de bilheteria de conteúdo biográfico, como Dois filhos de Francisco e Lula o filho do Brasil. O filme se ampara nos fenômenos de psicografia e nas mensagens de paz. Na carreira do diretor Daniel Filho, Chico Xavier só fica atrás em popularidade dos dois exemplares da comédia Se eu fosse você. O pagador de promessas (Brasil, 1962), de Anselmo Duarte Baseado em uma peça de Dias Gomes, O pagador de promessas foi o primeiro longametragem dirigido pelo ator Anselmo Duarte e o único filme brasileiro a ganhar a Palma de ouro no Festival de Cannes. Conta a história de Zé do Burro que fez uma promessa em um terreiro de candomblé. Por isso, como penitência, promete levar uma cruz nas costas até a igreja de Santa Bárbara em Salvador. Chegando lá enfrenta a intransigência da igreja católica, pois o padre não o deixa entrar na igreja, pois sabe da natureza da promessa e a considera herética. Todos na cidade querem se aproveitar do ingênuo Zé do Burro, usar sua condição para fins próprios. O filme trata da religiosidade popular tendo como mote o sincretismo religioso. Diferente da denúncia que o cinema novo faria da religião, pois Duarte não faz uma crítica frontal à suposta alienação do personagem (Glauber diria que o diretor faz um elogio da passividade). No fim, os capoeiristas invadem a igreja com Zé do burro morto em cima da cruz que carregou. Luz Silenciosa (México, 2007), de Carlos Reygadas Carlos Reygadas é o diretor mexicano mais festejados nos festivais internacionais na última década. Seu cinema é lento, contemplativo, e lembra diretores como Carl Dreyer e Robert Bresson. Luz silenciosa se passa em uma comunidade menonita no norte do México. Essa comunidade é protestante, do tipo puritana, fala um dialeto do holandês e seus integrantes praticam uma vida austera e rudimentar, de moral rígida. A trama se faz em torno de Johan homem casado que se apaixona por uma mulher, contrariando as regras da comunidade. Reygadas acompanha o romance proibido em um ritmo inaudito em que a evolução das coisas (da paixão proibida) é sutil, mas decisiva. Há disciplina, a moral, mas o diretor cria uma atmosfera em que a própria natureza representa o sagrado. A paixão de Johan atenta contra essa ordem em que não se distingue o social do cósmico. Nazarin (México,1959), de Luis Buñuel Entre os filmes de Luis Buñuel realizados no México, Nazarin é o mais blasfêmico e irônico. Aqui, Buñuel é menos um iconoclasta surrealista e mais um crítico da moral 2 cristã e de sua crença na bondade. O filme mostra o padre Nazarín em uma crise de vocação, quando, depois de um escândalo é impedido pelo clero de celebrar missas. Vira, então, um peregrino errante, acompanhado de uma prostituta e uma mulher histérica. A cada tentativa do padre fazer o bem, gera uma confusão. Nazarin é a inviabilidade do bem. Material anexo Chico Xavier (Brasil, 2010), de Daniel Filho Entrevista com Daniel Filho, diretor de Chico Xavier Cineasta conta que fez muita pesquisa para realizar o filme, mas que para ele, 'essa é uma história de emoção' "Era um santo, mas também era um homem", diz Daniel Filho sobre o médium mineiro que é tema de seu mais recente filme, também denominado 'Chico Xavier'. O diretor conta que fez uma longa pesquisa e sobre um encontro que teve com o médium. Daniel Filho: 'Ele tinha humor e eu queria que as pessoas vissem o homem, como eu o conheci' No começo de Chico Xavier, você adverte que é impossível dar conta de uma vida inteira num filme. É uma defesa antecipada das acusações que poderão ser feitas ao seu recorte? É como você diz, um recorte. Um filme é feito por muita gente, muitos deram sua contribuição e eu sou, por natureza, um cara aberto, que ouve. Mas, por mais que o cinema seja um trabalho de grupo, a responsabilidade de um filme é individual. As escolhas são minhas. Brinco dizendo que quando um filme faz sucesso tem muitos autores. Quando fracassa, a culpa é do diretor. Ouvi muita gente antes e durante a 3 feitura de Chico Xavier, me preparei mais do que para fazer qualquer outro de meus filmes. Isso se reflete na tela. A ideia de usar como eixo a entrevista de Chico Xavier no programa Pinga-Fogo é muito interessante. E no final você tem as imagens do próprio Chico no programa, contando, do jeito dele, coisas que vimos recriadas com atores. Como veio o PingaFogo? Pesquisei muita coisa e aquele programa foi um marco da própria TV brasileira. Tenho essa ligação muito forte com a história da TV no País. Achei que seria uma âncora muito firme para a narrativa. O que o espectador não sabe é que aquilo me deu um trabalho imenso. As câmeras usadas na época nem existem mais. Precisamos recriar tudo, foi um trabalho de muita pesquisa. Ao mesmo tempo, o próprio Chico entrar no filme foi... uma necessidade. Ele tinha humor, humaniza o próprio relato. E eu queria que as pessoas vissem o homem, como eu o conheci. Como foi o encontro com ele? Muito breve, um aperto de mãos, algumas palavras, mas dava para sentir a energia. Para mim, essa é, fundamentalmente, uma história de emoção. Poderia citar muitos momentos da filmagem em que a equipe toda experimentava essa emoção, essa energia no próprio set. Você tem amor e respeito pelo personagem, mas não foge à controvérsia. Os trejeitos, a vaidade. A história da peruca é divertida. Chico se indispunha muito com o espírito de Emmanuel? Não estou inventando, nem quando tomo liberdades para ser fiel à essência. Quem conviveu com Chico conta que ele discutia muito com Emmanuel, a quem ninguém via, só ele. Acho que a questão da peruca, a vaidade, não é desrespeitosa. Ela humaniza o personagem. E eu pesquisei, sim, a sexualidade, a esquizofrenia. Chico tinha aqueles trejeitos femininos, mas depois de muito pesquisar me convenci de que era assexuado. Li os dados de sua avaliação psicológica, para tentar entender se seria uma fraude. Ele 4 vinha de uma família com distúrbios mentais, mas o laudo é inconclusivo. Entramos no território da fé, e a fé não se explica. De qualquer maneira, a psicografia, que podia ser motivo de discussão, terminou aceita como prova jurídica válida num tribunal de júri. Isso é fundamental e está no filme. O público ri quando o pai leva o jovem Chico ao bordel e ele puxa a reza das prostitutas, mas a cena do Pinga-Fogo em que defende a sexualidade como intrínseca ao homem é coisa de visionário. A Olivia (aponta para a mulher) enfatizou que aquilo era muito forte e não poderia faltar (A própria Olivia intervém e lembra que aquela janela aberta para a compreensão do outro, inclusive quanto a preferências sexuais, era ousadíssima, ainda mais em 1971, sob a ditadura militar). O Chico falando aquilo na televisão era uma revolução na época. São momentos que não podem faltar. A cena do avião, quando Chico tem uma crise e admite seu medo de morrer, é cômica. Mas, depois, quando ele conta a história, é ainda mais engraçado. O humor é um risco? É possível que muita gente esperasse um filme sério, o tempo todo, para dar conta do personagem, mas acho que são esses momentos, essas quebras, que o definem. O homem era um santo, no sentido da bondade, da dedicação ao outro, mas era justamente um homem. Abro o primeiro flash-back com a cena em que a madrinha o obriga a lamber a ferida do amigo porque justamente isso define o que vai ser a vida de Chico. O movimento da câmera, pegando o isolamento daquela fazenda, atrás do monte, também é para realçar o mistério. Como esse homem surgiu naquele lugar, no fim do mundo, para espalhar sua mensagem de amor. Você tem grandes atores em pequenos papéis. E tem os seus três Chicos. Existem momentos em que Nelson Xavier parece estar interpretando Ângelo Antônio. Como chegaram a isso? 5 Ah, me desculpe, mas sou um grande diretor de atores. Aceito que critiquem tudo em mim, menos que não sei dirigir atores. Quando eles são bons como o Nelson e o Ângelo, nada é impossível. Havia a preocupação de dar uma continuidade. A prosódia foi cuidada porque o jeito mineiro de falar é importante nessa história. Nelson e Ângelo vão dizer que se conhecem há anos, já trabalharam juntos e não é difícil para eles criar essa unidade de interpretação. Não é mesmo, mas isso era intencional e foi buscado. Nada me orgulha mais neste filme do que o elenco. São 135 personagens. Todos têm a mesma importância. Não há um figurante que não tenha sido preparado para interpretar seu papel. Se o filme acontecer, como espero, vou dever muito a esse elenco maravilhoso. Luiz Carlos Merten O Estado de S. Paulo - 29 de março de 2010 Surrealismo e quixotismo no cinema de Luis Buñuel “Os super-filmes devem servir para dar lições aos técnicos: os de Keaton, para dar lições à realidade ela mesma”. “Cara imaginação, o que eu amo, sobretudo em você, é que você não perdoa”. Os dois fragmentos acima, o primeiro de um texto de Buñuel sobre Amores de Juventude de Keaton e o segundo do primeiro manifesto surrealista de Breton, resumem com feliz precisão as linhas gerais da obra fílmica buñelina. De um lado, a recusa do esteticismo e a assunção da precariedade material como opção estético-ideológica, a serviço de uma concepção cimematográfica que se poderia chamar de cinema de tese (se depurarmos a expressão de certo ranço cientificista): técnica escorreita e linear a serviço de uma violência crítica sem precedentes na história do cinema; de outro lado, o uso da imaginação, do humor negro, da poesia como invectiva contra a racionalidade; a problematização e a complexificação do que chamamos realidade. Pela surpreendente unidade temática que perpassa essa obra, por sua densidade de pensamento, por sua negação do encantamento da técnica, a obra de Buñuel é dessas 6 que para ser entendida exige antes a perquirição de suas “iluminações profanas” (W. Benjamin) que achegas formalistas. Como observou Octavio Paz, os filmes buñuelinos “podem ser apreciados e julgados como cinema e também como algo pertencente ao universo mais amplo e livre dessas obras, preciosas entre todas, que têm por objetivo tanto revelar-nos a realidade humana como mostrar-nos uma via de ultrapassá-la”. Dessa forma, nossa especulação, antes de delinear algo como um estilo buñuelino, o que em stricto sensu talvez nem exista, imprime-se no sentido de tentar desvelar dois aspectos capitais que enformam a mundividência de Buñuel: o surrealismo e o quixotismo e a relação destes com o que poderíamos chamar de poesia a fílmica buñuelina. II Em uma conferência hoje clássica, dizia Buñel, com dissabor, que “em nenhuma das artes tradicionais há, como no cinema, tamanha desproporção entre possibilidade e realização”. Essa reivindicação, verdadeira ladainha na boca dos surrealistas, como aprova as intervenções de Desnos, apologista do “cinema frenético”, não a fez Buñuel nos tempos heróicos de Um Cão Andaluz (1928) e A Idade do Ouro (1930) mas em 1958, quando o cineasta já residia no México e já produzira películas do calibre de Os Esquecidos (1950) e A Ilusão Viaja de Trem (1953). De fato, mesmo com a inserção da fantasia e da técnica decupagem por Meliès, mesmo depois da liberação do cinema da condição de teatro filmado por Griffith e do notável aprimoramento das técnicas de montagem pela escola russa de Eisenstein e Pudovkin, o cinema parece ter se achegando timidamente na região da poesia. Sem desconsiderar experiências anteriores, podemos fazer coro com Octavio Paz e observar que a incursão verdadeiramente definitiva do cinema na região da poesia deu-se com Um Cão Andaluz. Segundo Ángel Sobreviela, Buñuel, com Um Cão, “realizó una película sin personajes realistas ni argumento coherente, donde la imagen poseía una fuerza casi independiente en su poder de conmoción”. Nessa película, cujo roteiro Buñuel dividiu com Dali, a poesia associativa - herdeira do encontro casual de um guarda-chuva e uma máquina de costuras numa sala de cirurgia 7 de que fala Lautréamont - poreja por todos os lados. Não há uma narrativa; a montagem relacional simbólica, para usar a nomenclatura de Pudovkin , não tem fins ideológicos imediatos, como no cinema russo, mas é um instrumento de desautomatização, de afronta ao bom senso burguês, de crítica pela via do humor negro, de exploração do obscuro mundo dos desejos. Poético que seja, no entanto, não se pode negar que Um Cão peca pelo esteticismo, por certos maneirismos surrealistas, o que explica o fato de esse filme, conforme Buñuel relata em sua autobiografia, ter sido sua senha de entrada no grupo surrealista. A aura buñuelina - hispanicamente lírica e feroz, como observa Paz - já vai está bem delineada em A Idade do Ouro, seu segundo filme. O feroz aí faz pressupor que a poesia fílmica em Buñuel não é confundida com lirismo melodramático - embora em um filme como Abismo da Paixão (1954) o cineasta mexicanamente desperdice sua força poética pela incursão ao melodrama - nem tampouco com o núcleo essente que permeia as artes: trata-se do consórcio preciso entre as opções técnicas e as matrizes anti-racionalistas (surrealismo, anarquismo, quixotismo) do pensamento buñuelino. Isso porque em Buñuel a idéia precede e seleciona a técnica (sem, no entanto, prejudicá-la), de modo que sua mundividência está não somente na camada discursiva verbal de suas faturas, mas em todas as outras camadas discursivas. Buñuel, portanto, passa ao largo dos cineastas que pretendem fazer filmes com mensagens subversivas mantendo os padrões racionalistas e comerciais de produção. A poíesis (do grego poiein: fazer, criar, imaginar) de seus filmes origina-se de técnicas como a montagem relacional (o choque de imagens de campos distintos), a quebra da causalidade, a quase indiferenciação, tão espanhola, entre o sonhado e o vivido e a inserção de elementos estranhos à diegese do décor ou do fluxo da narrativa (o urso e uma ovelha na mansão de O Anjo Exterminador, de 1962; uma mulher cerzindo numa loja um rasgão num mantô de renda ensangüentado em Esse Obscuro Objeto do Desejo, de 1977) , mas estas técnicas não estão para ostentar uma postura vanguardista, hermética, adepta da arte pela arte. Surreal e anarquista, poeta e escafandrista dos desejos obscuros, Buñuel não descende da linguagem de Griffith e Welles. Don Luis quer demonstrar, quer materializar idéias, quer polemizar contra qualquer instância repressora dos instintos humanos - daí a necessidade de ser sóbrio, claro; de comunicar 8 tornar comum - para intervir. “A imaginação mais violenta e livre a serviço de um silogismo cortante como um punhal, irrefutável como uma rocha”, eis a imagem desse cinema subversivo na visão de Octavio Paz. A ética anarquista-surrealista de Buñuel jamais permitiria o encantamento da técnica, sua fetichização. Fiel às raízes surrealistas, ele preferia Chaplin a Welles, De Sica a Rossellini. Para Buñuel, a função do cinema não é “representar a realidade” - noção cara ao realistas vulgares, de ontem e de hoje, e oriunda de uma leitura deturpada da mímesis aristotélica - mas poetizá-la, alargando-a pela escavação dos pontos obscuros que a moral burguesa tenta ignorar. Uma poética visceral - jamais ornamental. Sua crítica a um diretor do porte William Wyler, por exemplo, centra-se no fato de Wyler produzir filmes de perfeita realização técnica porém a serviço de uma narrativa banal, melodramática, destituída de mistério e comprometida com o bom gosto e o humor branco da moral vigente. “O cinema”, afirma, “parece ter sido inventado para expressar a vida subconsciente, tão profundamente presente na poesia”. O cinema buñuelino, ainda que sendo indubitavelmente surrealista, não apresenta, exceto em Um Cão Andaluz e em extratos de A Idade do Ouro, o vício efectista das obras que se querem ortodoxamente surreais. Em pleno século XXI, já um tanto distante da revolução surrealista, não podemos fugir, diante de algumas peças desta e doutras vanguardas, de um quê de constrangimento diante de certos maneirismos, certas recorrências que percebemos não passar de concessões à euforia da época. Com o cinema de Don Luis o mesmo não ocorre: ele captou o cerne do espírito surrealista e rechaçou quase totalmente seus maneirismos mecanizados. Por isso, sua obra entra no século XXI mais maldita do que nunca, na melhor acepção do termo “maldito”. Em sua autobiografia, Buñuel fez um balanço do que ficara como permanente, em seu espírito, da vivência com o grupo surrealista. Fica claro que os três anos em que participou ativamente do grupo não lhe deixaram traços mais dogmáticos. Buñuel afirma que, em primeiro lugar, lhe ficou “esse livre acesso às profundezas do ser, reconhecido e desejado, esse apelo ao irracional, à obscuridade, a todos os impulsos que vêm do nosso eu profundo”; em seguida, destaca a descoberta “de um conflito muito forte entre os princípios de toda moral adquirida e minha moral pessoal, nascida de meu 9 instinto e de minha experiência ativa”. De fato, some-se a isso o humor negro e teremos os ingredientes básicos de Ensaio de um Crime (1953), A Bela da Tarde (1966) e Esse Obscuro Objeto do Desejo. III Mas as raízes da obra buñuelina não são apenas surrealistas. Estão cravadas, com igual vigor, na hispanidade. Um dos intérpretes mais considerados da hispanidade, Américo de Castro, definiu a moderna história espanhola como sendo “a história de uma insegurança”. Segundo Castro, enquanto a França assimilou seu passado, não sem muitos esforços, valendo-se das categorias do racionalismo e da clareza, e a Inglaterra conseguiu semelhante proeza pela via do empirismo e do pragmatismo, de modo que para essas duas nações o passado não se constitui num problema, a Espanha, herdeira de múltiplas heranças (cristã, judaica, mulçumana), não atingiu qualquer síntese, de modo que no ethos espanhol palpitam querelas irresolúveis e o passado lhe é um peso dos mais desconfortáveis. Ora, talvez a melhor síntese da palpitante e confusa alma espanhola seja o quixotismo. E seu intérprete mais radical talvez tenha sido Miguel de Unamuno. Para Unamuno, Dom Quixote é um verdadeiro santo, fundador do quixotismo, lídima religião da Espanha e maior contribuição desse país à cultura ocidental. Quixotismo, de acordo com voluntarismo agônico desse pensador, seria bem mais que o enlace entre boas intenções e ingenuidade; seria “todo um método, toda uma epistemologia, toda uma estética, toda uma lógica, toda uma ética; sobretudo, toda uma religião, isto é, toda uma economia do eterno e do divino, toda uma esperança no absurdo racional”. Dom Quixote é grande pelo seu heroísmo trágico e sua grandeza era vencer justamente por ter sido vencido: “su locura sublime consistió en hacerse el loco frente al mundo, en tomar éste no como es, sino como el creía y quería que fuese”. 10 Esse heroísmo trágico, essa loucura lúcida, essa coragem de se entregar à zombaria do mundo e extrair forças dela, esse sentido comunitário que Quixote encarna tão bem perpassa, mutatis mutandi, segundo Unamuno, os grandes empreendimentos hispânicos (A Conquista Americana, a Contra-Reforma), seus místicos (San Juan, “cavaleiro andante do sentimento do divino”) e seus artistas (Velázquez, Calderón). No âmbito dessa problemática, Carlos Fuentes, com aguda percepção, mostrou que o herói espanhol é “o herói do que falta, do que não está a seu alcance, do que ele almeja, do que deseja”. Contrapondo o Quixote ao Robinson Crusoé, Fuentes observa que este, como o Tom Jones, “são produtos do apogeu de progresso atingido por sua sociedade, e estão, nesse sentido, afinados com ela”, ao passo que o Dom Quixote é criado “a despeito da sociedade”, a despeito da Contra-Reforma, da Inquisição, da dinastia dos Hamburgos. Robinson, protótipo do herói inglês, encara o mundo com segurança pragmática, é um “self-made man que aceita a realidade objetiva e depois a adapta a suas necessidades”; Quixote, protótipo do herói espanhol, naufraga em qualquer empresa prática. O cinema de Buñuel aponta para o quixotismo na medida em que a relação de seus personagens com a realidade empírica é uma relação de ruptura. Seus personagens são restauradores netos de Alonso Quijada, ainda que nem sempre com o mesmo grau de pretensão ou num tom às vezes menos heróico-trágico que pessimista. Como observou Ruy Gardinier, em Buñuel repete-se continuamente “o sonho da bela comunidade, da agregação ideal de um grupo de pessoas afins, de modo a transformarem o mundo em algo mais belo”, embora isso nunca se dê plenamente, como acontece com Nazario e Viridiana. Ou, menos pretensiosamente, mas de forma não menos quixotesca, os personagens buñuelinos tentam completar-se na busca do Outro - o personagem de Fernando Rey à busca da ambígua Conchita em Esse Obscuro Objeto do Desejo - ou de Algo - um jantar que nunca se realiza em O Discreto Charme da Burguesia (1972). Grande parte da magia que Buñuel imprime aos seus filmes advém da força sugestiva desses gestos incompletos - o sacrifício tantálico dos que desejam. Essa impossibilidade de realização dos desejos tem em Buñuel uma explicação de cunho político - os processos de reificação, a falta de ousadia da burguesia - e outra de cunho metafísico - a negação da racionalidade do real. Esse pressuposto metafísico engendra outro artifício 11 “mágico” nos filmes de Buñuel: a ressignificação do espaço humano, do ser-no-mundo mesmo, pelo deslocamento, prenhe de humor negro, de seres de um lócus para outro: o formigueiro que surge na mão de um personagem ou os pêlos da axila de uma moça que tomam o lugar da boca de um rapaz (em Um Cão Andaluz), um saco de estopa desnecessariamente carregado por um apaixonado (em Esse obscuro Objeto do Desejo), um velório num restaurante burguês (em O Discreto Charme da Burguesia). Para o filósofo Clement Rosset, “o que a moral censura não é, de modo algum, o imoral, o injusto, o escandaloso, mas sim o real - única e verdadeira fonte de todo escândalo”. Grande número de filósofos e artistas - reflete esse filósofo francês -- engendram obras “cujo principal objetivo não é revelar a verdade ao homem, mas fazê-lo esquecê-la", já que a realidade é intrinsecamente cruel. É possível que Buñuel não concordasse com os fundamentos da ontologia do real de Rosset, mas é certo que o cineasta é um exemplo acabado de artista “cruel”, cuja obra, imbuída de lucidez e retidão ética, visa não a remediar provisoriamente as agruras do real, mas torná-las visíveis, obrigando-nos, se não a uma ação efetiva, pelo menos a reflexão inapelável. Tanto a Rosset quanto a Don Luis horroriza não, imediatamente, a imoralidade e as injustiças, mas a propensão pusilânime do homem ao moralismo, que escamoteia estes aspectos. Como todo artista que deseja intervir mas recusa a arte panfletária, Buñuel aponta mas não julga, preza pela clareza mas não pelo simplismo, respeita o espectador mas não o adula: perturba-o. Realiza aquilo que Sartre queria do verdadeiro artista engajado: dá a sociedade uma “consciência infeliz”. Em suma, tem uma visão de mundo, mas não uma doutrina. Mas voltemos ao quixotismo, aos gestos incompletos e vejamos, ainda que de relance, como ele se constrói em algumas obras fílmicas do autor. Como observa Fuentes, “o cinema de Buñuel é sempre fiel ao seu conflito básico: uma luta entre dois estilos de olhar, e, através de qualquer um deles, um conflito entre a decisão de se ligar ao mundo ou recusar esse laço”. Em A Ilusão Viaja de Trem dois homens, depois de uma bebedeira, resolvem matar a saudade de um velho bonde que vai ser desativado realizando uma última viagem. O desejo de ambos é dividir a “poesia da vida” que sentiam, oferecendo às pessoas um passeio sem cobrar pelo ingresso. À certa altura, um senhor entra no bonde e , mesmo com explicações, insiste em pagar, 12 qualificando os dois saudosistas de comunistas. Um pouco adiante, o velho bonde é confundido com outro que conduziria uma excursão. De decepção em decepção, o gesto poético dos dois Quixotes não encontra guarita num mundo desencantado até as vísceras: os gigantes voltam a ser moinhos. Como Tântalos às avessas, os dois oferecem fino maná mas as pessoas não podem tocá-lo: Dom Quixote volta a ser Alonso Quijada. Nazario (1958), quiçá o mais quixotesco dos filmes de Buñuel, explora a temática da debilitação das possíveis forças revolucionárias do cristianismo causada pela sua institucionalização, ou antes, indaga sobre a possibilidade de um cristianismo radical no mundo desencantado. O cura Nazario, numa tentativa poeticamente exasperada de viver os Evangelhos, recusa o jugo da Igreja institucionalizada e resolve sair em peregrinação para pregar a Palavra. Mas assim como Quixote só em si restaura o espírito cavaleiresco, o cura tampouco estende seu cristianismo radical (do latim radix: raiz) aos outros. Todos os episódios do filme se constituem num processo de lenta assunção, por parte do protagonista, da poesia precária da condição humana em detrimento da ilusão de uma divindade. Talvez o momento mais denso do filme, o momento em que ressoa com mais intensidade no cinema buñuelino o clamor de fidelidade à terra tão bem personificado no Zaratustra nietzschiano, talvez esse momento seja aquele em que indo o cura oferecer consolo a uma aldeã, ouve-lhe essas palavras: “Juan si, cielo no”. Para Octavio Paz, todo o cinema de Buñuel é uma “crítica da ilusão de Deus”; seu tema-mor não é a culpa do ser homem mas de Deus. É possível que Paz esteja certo, mas é possível que essa sua afirmação case melhor em trabalhos como A Idade do Ouro, Nazarin, Simão no Deserto (1965), A Via-láctea (1969) e Viridiana (1961). Da nossa parte, preferimos ver, nessas películas abertamente atéias como Nazarin e Viridiana, a exemplificação do paradoxo do triunfo pelo fracasso conforme o quixotismo radical de Unamuno. Mas também não podemos negar que o quixotismo , como a crítica da ilusão de Deus, também seja uma forma até certo ponto precária de ler o cine de Buñuel, já que também ele não perpassa, pelo menos explicitamente, todos os filmes do diretor. Uma palavra que talvez resuma a complexa obra buñuelina seja acusação. Por qualquer lente que se queira ver este cinema - quixotismo, surrealismo, anarquismo, ateísmo, marxismo, freudismo - não se pode negar que suas estratégias formais, sua densidade simbólica, estão a serviço da acusação: da ilusão de Deus, das ilusões da burguesia, das 13 ilusões do cinema comercial, das ilusões de satisfação espiritual do homem, das ilusões de domesticação dos instintos. O cinema de Buñuel encontra seu resultado estético mais bem acabado, segundo muitos intérpretes, em Viridiana. O filme conta a história da jovem noviça Viridiana que, em vésperas de tornar-se freira, é mandada a visitar seu tio e financiador Dom Jaime. Este, que não vê a jovem há muitos anos, ao contemplá-la lembra-se da imagem da mulher morta precocemente. Apaixona-se subitamente. E por meio de remédios dormitivos, já que não havia outra saída, tenta possuí-la. Ao saber da tentativa do tio, Viridiana, sentindo-se impura, quer retornar ao convento, mas o suicídio deste que é praticamente seu único parente, obriga-a a ficar e pagar por sua “culpa” e sua “impureza”. A quixotesca estratégia da jovem é expiar sua culpa reeducando um grupo de mendigos que é levado para as terras do falecido tio, a fim de adquirir bons modos, fé e interesse pelo trabalho. Mas assim como Dom Quixote é ridicularizado e apedrejado pelos escravos que liberta das galés, assim também Viridiana é explorada, escarnecida e quase violentada pelos mendigos que tenta em vão reeducar. Ao final, Viridiana, “A Don Quixote mulher”, desiludida, reúne-se a seu primo e sua dissimulada criada, “dois outros grandes arquétipos espanhóis, Don Juan e La Celestina, num arruinado castelo feudal onde formam um profano ménage à trois, jogando cartas e ouvindo discos” (Fuentes). Um aspecto irônico e de grande significado nessa cena final que Fuentes tão bem interpretou é a introdução do rock n’roll no lugar da música religiosa, reforçando adesão heroicamente trágica de Viridiana à vida profana. Esse filme apresenta ainda uma das seqüências mais grotescas e violentamente atéias da história do cinema, a seqüência da festa dos mendigos, que culmina com a paródia da Última Ceia de Leonardo, paródia na qual o lugar de Cristo é ocupado por um mendigo cego, lúbrico e violento. IV Caberia ainda algumas observações complementares sobre a poesia fílmica de Buñuel, na tentativa de atar dialeticamente a questão forma-e-fundo que perpassa sua filmografia. Para isso, cabe uma breve achega com outro poeta do cinema, Andrei Tarkovski. Temos, nestes dois cineastas, dois modelos extremos de poesia fílmica, que 14 podemos denominar provisoriamente de pura e impura, sem com isso estabelecer um juízo de valor. Em Tarkovski, como observou um estudioso de sua obra, o já citado Sobreviela, a expressão poética é pura porque é ela seu ponto de partida e de chegada. Considerando o cinema uma arte auto-suficiente (ao contrário de Buñuel, que sempre quer transcendêlo), esse grande cineasta russo filma antes epifanias que histórias; o uso inconfundível que faz do traveling antes denuncia e adensa o mistério dos objetos e paisagens, doando-lhe voz, do que lhe explicam. Segundo Sobreviela, o cinema tarcovskiano adota “unas actitudes ante el mundo que se tornan subjetivas, cargadas de emotividad, en cuanto cesan de ser documentales, mero registro. Los objetos, los ambientes (…) son otra cosa que en una película cualquiera”, apesar disso “no debe pensarse que se limita a aplicar una pátina lírica a un relato (…) pues este estilo, que no se adapta a las historias que narra, sino que las historias se adaptan a él, construye minuciosamente una atmósfera de alta tensión espiritual que hace posibles los milagros y las revelaciones en el mundo real”. Em Buñuel, ao contrário, a poesia é impura porque nasce de imperativos éticos e ideológicos. Afinal, como transmitir uma visão de mundo surrealista de forma apoética? As perspectivas ideológicas de Dom Luis precediam suas opções formais. Ele nunca buscou sistematicamente a poesia imanente nas coisas. Não existe para ele cinema em si. Da mesma forma que a prática dos poetas surrealistas “representou a recusa da poesia em se deixar reduzir ao poema, isto é, a uma pura e simples expressão literária” (E. Morin), assim também Buñuel relutou em fazer - com o perdão do termo - um cinema “cinematográfico”: quis antes complexificar, ressignificar, numa palavra cara a Morin, desprosaizar o que chamamos realidade cotidiana. Herdeiro do romantismo alemão, filho do surrealismo, escudeiro do exército de “nosso senhor Quixote”, como dizia Unamuno, Buñuel recusa tanto a prosaidade do mundo utilitário burguês, como a esterilidade (no ponto de vista dele) do esteticismo; sua arte emerge de um pacto com a vida, na busca de resgatar, ou pelos menos recordar, o animal humano anterior ao pecado original. Não se pode, pois, falar sensatamente de um primeiro plano, de um travelling ou de qualquer outra figura retórica em Buñuel que não esteja para além da função estética: ato de rebeldia. 15 A poesia fílmica de Buñuel é, como toda poesia surrealista, cataclismática. Se Dom Luis a escrevia às vezes em arabescos um tanto irregulares é porque se recusava tanto à pena dos antigos, como à nossa triste esferográfica produzida em série: preferia uma navalha. Wanderson Lima Agulha - revista de cultura Disponível em http://www.revista.agulha.nom.br/ag52bunuel.htm Trecho a seguir é parte da monografia “A religião no cinema de Buñuel” Educação Religiosa Produzindo Ateus O cineasta espanhol Carlos Saura afirmou que na Espanha existem três coisas muito importantes: a Igreja, o sexo e o exército (RENTERO, Juan Carlos. 2003: p. 29). Luis Buñuel, outro cineasta espanhol, daria à observação de Saura em relação à Espanha uma dimensão especial. Seu ateísmo, por exemplo, não excluía certo fascínio pelos mistérios da fé e da Virgem Maria. Em 1961, a propósito das polêmicas em torno de Viridiana (Viridiana, 1961), então seu novo filme, Buñuel disse que tendo nascido numa família muito católica e freqüentado um colégio jesuíta dos oito aos quinze anos, a educação religiosa deixou marcas profundas em sua vida. Mas o surrealismo também, Buñuel enfatizou. Disse ainda que Viridiana segue sua tradição pessoal desde A Idade do Ouro (L’Age D’Or, em co-direção com o pintor Salvador Dalí, 1930). Com trinta anos de diferença, Buñuel deixou claro, foram os filmes que realizou mais livremente (BUÑUEL, Luis. 1968: p. 6). Não se pode negar que sua infância deu-lhe a oportunidade de um conhecimento amplo daquilo que veio a renegar. Iniciaria seus estudos com os corazonistas, equivalentes na França aos irmãos do Sacré-Coeur de Jésus, mais bem vistos em sua cidade natal do que os lazaristas. Um ano depois, é transferido para um semi-internato Jesuíta por sete anos. Seus dias começavam com a missa, às 7h30, e terminavam com o rosário da tarde. à menor infração, o aluno ficava de joelhos, de braços abertos e com um livro pesado em cada mão. Sempre vigiados, Buñuel contou que, para ir ao banheiro, os alunos sempre 16 eram seguidos pelos olhos de um padre. Não podiam tocar uns aos outros, caminhando em fila dupla, a cerca de um metro uns dos outros (vemos algo parecido no início de Viridiana). Estudava-se a vida dos santos, catecismo, apologética. Nas aulas de filosofia, aprendia-se a refutar o pensamento de Immanuel Kant. Uma observação particularmente curiosa para muitos de nós, Buñuel disse que nunca houve escândalo sexual, fosse entre alunos, ou entre alunos e professores. Por volta dos catorze anos de idade, as primeiras dúvidas referentes à religião surgem na mente do jovem Buñuel (BUÑUEL, Luis. 2009: pp. 46-8). Quando Nazarin (1958) foi premiado em Cannes, uma situação curiosa tomou corpo. De um lado, Simone Dubreuilh saudou o filme como um libelo anticonformista criado por um Buñuel avesso à religião. Nazarin, dizia Dubreuilh, fala da impossibilidade da graça, da salvação das almas e da caridade cristã. Um filme que amaldiçoa os santos óleos, um filme onde o Bem semeado pelo protagonista volta-se contra ele. Do outro lado, a Associação Católica Internacional para o Cinema, propôs premiar Nazarin como melhor filme católico no Festival de Cannes. Embora um dos religiosos presentes tenha dito que Buñuel só fala dos “defeitos menores do clero”, o que não invalida a mensagem religiosa de Nazarin, no final venceu a turma que dizia que os católicos estavam equivocados, que na verdade Buñuel era anticlerical até a raiz dos cabelos! Como explicava a brochura distribuída no Festival durante a apresentação de Viridiana, as preocupações religiosas e sexuais de Buñuel “não se explicam inteiramente se não se leva em conta de que maneira estes problemas são encarados na Espanha” (SADOUL, Geoges. 1962: pp. 11 e 23). Entre a Fé Verdadeira e Caridade Hipócrita “Já não creio no progresso social. Só posso acreditar em alguns poucos indivíduos excepcionais de boa fé, ainda que fracassem, como Nazarin” Luis Buñuel (KROHN, Bill; DUNCAN, Paul. 2005: p. 113) Em Simão do Deserto (Simon del Desierto, 1965), um beato vive no topo de uma coluna durante 6 anos, quando ganha uma com 11 metros de altura. Rodeado por 17 seguidores, faz milagres e enfrenta o diabo. O roteiro é baseado na história de San Simeón. Durante a Idade Média, o anacoreta viveu mais de 40 anos no alto de uma coluna no deserto da Síria. Com o poeta e amigo Federico García Lorca, Buñuel se divertia ao ler que as fezes do santo escorriam pela coluna como a cera de uma vela. Conchita, irmã e secretária de Buñuel, disse que certa vez, quando estavam em Madri, hospedaram-se no 17º andar do único arranha-céu da cidade na época. Buñuel ficava lá, disse ela, como um monge no alto de uma coluna (BUÑUEL, Luis. 2009: p. 328). Em 1958, Buñuel filma Nazarin. “Nazarin”, Buñuel confessou, “é um homem fora do comum, por quem sinto grande afeto” (KROHN, Bill; DUNCAN, Paul. 2005: p. 114.). Como Simão, Nazarin é uma mistura de Cristo e Don Quixote. Nazarin vive num mundo só seu e acredita que tudo irá bem se fizer o bem. Mas suas boas ações acabam mal. Dedica-se aos pobres e pouco se importa quando delinqüentes lhe roubam os poucos pertences. Por conta do escândalo que gerou ao acolher e cuidar de uma prostituta ferida em seu quarto o proíbem de celebrar missas. Nazarin então se livra de suas vestes eclesiásticas e passa a viver como mendigo. Seus únicos seguidores são duas mulheres, Ándara, a prostituta a quem ajudou, e Beatriz, amiga dela, uma histérica abandonada pelo amante. É preso e tem de ser defendido por outro detento na cadeia. ”Você está no bando do bem e eu no do mal. E nenhum dos dois serve para nada”, desabafa seu defensor. Noutra seqüência, Buñuel ataca a idealização dos pobres e do ideal de bondade. Nazarin, Ándara e Beatriz encontram uma moribunda que só pede a presença de seu amado Juan. O beato procura fazê-la se arrepender de seus pecados e prestar contas a Deus. “Céu não, Juan”, repetia a mulher para espanto de Nazarin, que não compreende como se pode ignorar a salvação eterna – em alguns DVDs, substitui-se a palavra “céu” por “Deus”, o que dá na mesma. Beatriz, que sofre com a ausência de seu próprio homem, em seu silêncio parece concordar com ela (HOLANDA, Samuel. 1993: pp. 945). Juan chega e expulsa os beatos a pedido dela. Portanto, o mundo da fé perde também para o amor louco – que chamou a atenção de Buñuel e do grupo surrealista em O Morro dos Ventos Uivantes (Emily Brönte, 1818-1848) (RUIZ, Adilson. 1993: p. 213). Buñuel afirmou... “Posso blasfemar sobre o amor louco, caso isso me ocorra. É vivificante, às vezes, blasfemar contra aquilo em que se acredita” (KROHN, Bill; 18 DUNCAN, Paul. Op. Cit.: p. 177). É o que poderíamos concluir de sua opinião sem hipocrisia em relação à caridade: “Sou contra a caridade cristã. Mas então, se vejo um homem pobre que me comove, dou-lhe cinco pesos. Se não me comove, se me parece antipático, não lhe dou nada. Então, não se trata de caridade” (Idem: p. 64). A Igreja, a Censura e o Surrealismo “Não me interessam os personagens sem aspectos contraditórios, porque então sabemos tudo sobre eles desde o primeiro momento” Luis Buñuel (Ibidem: p. 87) Em Viridiana uma mulher vive absorvida em sua fé, almeja noivar com Cristo, mas acaba por se render aos desejos sexuais. O ponto alto é a seqüência em que mendigos invadem a casa onde mora e fazem um banquete e uma orgia. Viridiana acreditava que através de orações e trabalho eles seguiriam o caminho do Bem. A referência católica fica por contada recriação da Última Ceia, só que com os mendigos. Georges Sadoul sugere que Viridiana é “um pouco” a seqüência de Nazarin (SADOUL, Geoges. Op. Cit.: p. 10). Buñuel disse que a censura, paradoxalmente, até o ajudou na cena final. Originalmente, Viridiana batia na porta do quarto do primo e o encontrava com a empregada. A servente saía e ela tomava seu lugar. A censura achou escandaloso um homem com duas mulheres. Buñuel substituiu por um jogo de cartas a três. “E agora”, confessou Buñuel, “eu estou quase envergonhado de meu primeiro final: era muito grosseiro, muito direto” (Idem: p. 22). L’Observatore Romano, jornal do Vaticano, reagiu mal quando Viridiana ganhou a Palma de Ouro no Festival de Cannes: “Pela primeira vez talvez na história dos festivais internacionais, além das habituais exibições de impudor, verificou-se uma seqüência de representações blasfematórias”. O jornal se referia a Madre Joana dos Anjos (Matka Joanna od Aniolów, direção Jerzy Kawalerowicz, 1961) e Viridiana. O governo espanhol do ditador General Francisco Franco, apressou-se em censurar os jornais. Não 19 deveriam mencionar o filme e nem mesmo o nome de Buñuel. Franco também demitiu o diretor-geral da Cinematografia espanhola por ter subido ao palco, em Cannes, a fim de receber o prêmio (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 2009: p. 330). Por força de acordos políticos entre os governos espanhol e francês, quase que se conseguiu banir o filme também da França (SADOUL, Geoges. Op. Cit.: pp. 29 e 33). Buñuel contou que Franco talvez tenha assistido ao filme e não achou nada demais. De fato, observou Buñuel, depois do que aconteceu durante a guerra civil espanhola, a favor ou contra a Igreja, o filme devia parecer muito inocente. Viridiana estreou na Itália em Roma, mas em Milão foi proibido e a Justiça determinou que Buñuel fosse preso por um ano caso entrasse no país. O cineasta italiano Vittorio De Sica saiu horrorizado e oprimido do cinema após assistir Viridiana. De Sica chegou a perguntar à esposa de Buñuel se ele era de fato monstruoso e costumava espancá-la. Adotando outro tom, Françoise Giroud definiu Viridiana como um filme terrível, “(...) que se deve guardar com cuidado. A ver e rever, mas não com uma companhia qualquer. Seria arriscar-se, na saída, a ficar petrificado e mudo, só para não confrontar a Viridiana da gente com a da outra pessoa”. Na mesma época, em Paris, desabafou Buñuel, não gostou de um cartaz onde era chamado de “o diretor mais cruel do mundo” (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 1968. P. 241; Op. Cit. 2009. P. 331). De acordo com Frédéric Grange, em Viridiana Buñuel explicitou o papel da burguesia na degradação dos valores cristãos. A aristocracia rural espanhola, impotente para garantir seu futuro, se articula em torno de valores cristãos para reafirmar seu poder. A beata representaria o poder cristão da Igreja, e não o mito cristão – representado por Nazarin (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 1968: p. 214). Grange afirma que Viridiana encena a passagem do poder, da aristocracia para a burguesia – na figura do empreendedorismo do filho de Dom Jaime. Devido à degradação de seus valores ao longo dos séculos, a Igreja também se rearticula com o poder. A aristocracia é representada pelo conservador Dom Jaime. Ele deseja Viridiana, desejo reprimido que acaba mal. Sua esposa morreu no dia do casamento, ele quer reviver este momento e pede a Viridiana para colocar o vestido da noiva – ela é idêntica à morta. Narcotiza a beata, mas não consegue possuí-la. Ele se enforcou com a corda de pular da filha da empregada, a única que conservou sua inocência. 20 Viridiana, a beata, por sua vez, faz parte dessa classe social que perde a hegemonia e morre com Dom Jaime. Ela procura voltar a um cristianismo militante num mundo em progressiva dessacralização. Entretanto, suas atitudes estão em desacordo com a marcha da História. Em comparação a Nazarin, o fracasso de Viridiana representa também o aniquilamento dos valores que ela professa. Enquanto Nazarin agia basicamente num sentido a-histórico, Viridiana queria se integrar à História para não ser excluída do progresso. Para tanto, ela procura se reintegrar ao mundo secular. Viridiana quer participar da História, introduzindo nela os ensinamentos cristãos. Mas os ensinamentos se viram contra ela. Enquanto prega a castidade, será estuprada por aqueles a quem escolhera como objeto da caridade (Idem: pp. 215-7). Mesmo que Buñuel sugira que os fanáticos viviam enxergando “chifre em cabeça de cavalo” nos seus filmes, o que dizer da cena de Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, em co-direção com o pintor Salvador Dalí, 1929) onde um homem puxa um piano na direção de uma mulher. Juan-Luis Buñuel, filho do cineasta, disse que as interpretações sobre o filme eram as mais variadas. Por exemplo, os jumentos mortos sobre o piano simbolizariam a Morte. Os dois padres amarrados ao piano simbolizam a religião detendo o homem. O piano representaria seu coração impedindo o homem de alcançar seu objeto do desejo, a mulher. Matthew Gale sugere que esse significado seria bastante evidente e óbvio na cena. A propósito, Gale nos conta que próprio Salvador Dalí atou como um dos padres - à direita da imagem (GALE, Matthew. 2007: pp. 86 e 90). Entretanto, esclarece Juan-Luis aos que não estão familiarizados com o método surrealista empregado por Buñuel e Dalí, e talvez possamos incluir Gale neste grupo, que a idéia é justamente não permitir qualquer interpretação simbólica. Era um sonho irracional, disse. De acordo com Gale, A Idade do Ouro articula política e religião de forma muito mais explícita do que Um Cão Andaluz. A cerimônia de fundação de Roma (“...A antiga amante do mundo pagão à séculos tornou-se a sede secular da Igreja...”) seria uma paródia do fascismo italiano nascente. As pretensões de Mussolini são satirizadas pela procissão e o discurso de fundação, pelos bispos sentados numa região que talvez o público da época reconhecesse (infestada de bandidos), e finalmente pela imagem dos 21 esqueletos dos bispos com suas mitras (palavra que ao mesmo tempo designa o ornamento que autoridades eclesiásticas usam na cabeça e a carapuça de papel colocada nos condenados pela Inquisição). Mesmo o estranho casal protagonista foi tomado na época por uma caricatura do casal Real da Itália. Num contexto mais amplo, essa referência englobaria a reconciliação entre o Vaticano e o Reino da Itália, articulada por Benito Mussolini através dos Pactos Lateranos, em 1929 (em troca do fim da hostilidade papal, a Itália reconhece e reafirma a religião Católica Apostólica Romana como a única religião de Estado). O público francês da época também poderia ter reconhecido a seqüência como um aviso sobre o aumento do conservadorismo em seu próprio país (Idem: p. 95). O caráter blasfemo de Salvador Dalí pode explicar a identificação com Buñuel. O pai de Dalí desaprovou a união do filho com Gala. Ela era uma mãe casada, sexualmente liberada e uma estrangeira. O pai do pintor, arrotando seu poder, chegou a pressionar para que a polícia expulsasse o filho da cidade. Um acontecimento que encontraria eco na prisão do protagonista de A Idade do Ouro e a dificuldade de reunião do casal. Mas houve ainda outra manifestação dos sentimentos do pintor em relação à atitude do pai. Numa folha de papel onde uma linha desenha o vulto de Jesus, tendo no centro um coração encimado por uma cruz, Dalí escreveu: “às vezes eu cuspo com prazer no retrato de minha mãe” (Ibidem). A conclusão de A Idade do Ouro apresenta a controversa cena do Duque de Blagis, vestido de Jesus Cristo, deixando o castelo onde seviciou e torturou escravas sexuais. Mais sacrílega e blasfema é a seqüência final, quando volta para recolher do chão uma das escravas que conseguiu chegar até o portão. O duque/Cristo entra com ela e fecha a porta. Alguns momentos depois sai sozinho e segue com os outros três nobres que participaram das orgias e o esperavam do lado de fora. Na imagem seguinte, a última do filme, uma cruz onde estão pendurados cinco escalpos (Ibidem: p. 96). Esta seqüência final foi baseada no livro do Marques De Sade (Os Cento e Vinte Dias de Sodoma, 1785). Uma pequena seqüência, que o cineasta italiano Pier Paolo Pasolini transformará num longa-metragem, Salò, ou os 120 Dias de Sodoma (Salò, o le 120 Giornate di Sodoma, 1975). No filme de Pasolini, se não existe alguém vestido como Cristo, 22 podemos presenciar o escapelamento que em A Idade do Ouro fica apenas sugerido pelo grito de mulher depois da porta se fechar e os escalpos pendurados na cruz. Só para lembrar, antes dessa seqüência, acompanhamos outra em que um bispo é atirado da janela de um segundo andar. Nas duas seqüências, ouvimos tambores que provavelmente são os mesmos de Calanda, a cidade natal de Buñuel. Um lugar que, segundo sua própria descrição, viveu na Idade Média até o começo da Primeira Guerra Mundial. Referindo-se à Espanha, o filho de Buñuel ressaltou que muitas partes daquele país só saíram da Idade Média a partir dos anos 70 do século passado. Apesar do caráter irracional do método surrealista empregado por Buñuel e Dalí, quando considerada à luz dos acontecimentos contemporâneos ao filme, a tese de Gale sobre o caráter mais político de A Idade do Ouro faria sentido. Talvez por esse motivo, o cinema de Paris que projetou a primeira apresentação do filme foi invadido e depredado por membros da direita francesa – mas platéia conseguiu voltar e assistir até o final. O casal separado desde o começo do filme é marcado por um amor louco cujo obstáculo todos conhecem: a Igreja e o Estado, a lei e a ordem, a tradição e a família... O homem, ao ser abandonado se entrega à destruição do quarto da mulher. Atira tudo que pode pela janela. Um dos pontos que teria determinado protestos da Liga Anti-Judia e da Liga dos Patriotas foi a justaposição de um pé de mulher e de um ostensório (objeto do culto católico, onde se deposita a hóstia sagrada) (Ibidem: p. 99) - o fetiche em relação aos pés figura entre as muitas obsessões de Buñuel. A Idade do Ouro foi banido depois de apenas seis dias. Juan-Luis ressaltou que, na França, o filme esteve censurado de 1930 a 1980. “Como se vê, ironiza o filho de Buñuel, “a França é um país livre” (FERNANDES, G. 2004). Os Imbecis, o Público e o Picaresco 23 Buñuel disse que, “segundo os jornais”, o que provocou maior escândalo em Viridiana foi a Aleluia, de Haendel durante a orgia dos mendigos; o Réquiem, de Mozart, quando Dom Jaime toma Viridiana nos braços (sem atentar contra seu pudor); a coroa de espinhos jogada ao fogo e o crucifixo-punhal. De acordo com o cineasta, um jornalista teria escrito que, “em Viridiana, Buñuel puxou seu crucifixo como se fosse um punhal”. Ora, desabafou o cineasta, o crucifixo-canivete era um objeto encontrado por toda a Espanha, nas lojas de produtos baratos. Talvez, sugeriu procurando uma resposta, por conta do que Jean Epstein chamou fotogenia, a significação desse objeto banal assumiu repentinamente um tom blasfematório e sacrílego. Quanto à coroa jogada ao fogo, Buñuel esclareceu que a liturgia ortodoxa determina que vestes sacerdotais ou objetos consagrados sejam queimados quando estiverem fora de uso – não deve ser jogado no lixo. Eu compreenderia, disse Buñuel, se protestassem caso Viridiana escarrasse sobre a coroa! Ainda reclamando das interpretações dos “imbecis”, Buñuel insistiu em afirmar a pureza de Viridiana. Insistiu também que Dom Jaime não é um sádico libertino, mas corajoso e idealista - alguém que se pune terrivelmente sem haver feito nenhum grande mal ao tentar reproduzir seu casamento, que não chegou a se consumar. Quanto aos mendigos, continuou Buñuel, “(...) não sou responsável. Eles são assim, já há séculos (...)”. De acordo com David Robinson, dentre todos os mendigos Buñuel admira apenas aquele que, insolente e orgulhoso, recusou a piedade de Viridiana e foi embora - sem antes deixar de pedir uma esmola. Mas o filme não conseguiria, ainda de acordo com Robinson, esconder o preconceito de Buñuel contra os cegos. Um dos mendigos, o cego, é mau. Para Buñuel, todos os cegos são maus! (Idem: pp. 31-2) Buñuel, explica Robinson, não gosta dos cegos porque eles estão presos por associações falsas e sentimentais. Em A Idade do Ouro, um cego é atingido violentamente com um pontapé na barriga (ROBINSON, David. 1962: pp. 220-1). Na verdade, tudo isso seria apenas um exemplo do que Carlos Rebolledo acredita sejam elementos do romance picaresco espanhol dos séculos XVI e XVII na obra de Buñuel (REBOLLEDO, Carlos. 1968: p. 40). De acordo com Rebolledo, nem tudo em Buñuel é critica a religião. Como o comportamento de Dom Jaime em relação à Viridiana, que seria motivado por uma 24 impotência enquanto filho de uma mãe que ele queria intocável e purificada. A sociedade espanhola, em suas bases matriarcais, impossibilitava a liberação da dependência em relação à mãe – uma castração fundamental. A projeção desse culto nas relações sexuais faria nascerem conflitos profundos, levando à esterilidade, à morte, ao suicídio, ao homicídio sádico. É por esta razão, explica Rebolledo, que nos romances picarescos a descrição da infância adquire muita importância (Idem: p. 42). Além disso, o elemento picaresco descristianiza as figuras do cego e dos doentes. Não existe o sofrimento humano como espelho daquele de Cristo. A caridade também é posta em xeque, o picaresco faz do caridoso um monstro fonte de calamidade. Encontramos este tipo de personagem em Os Esquecidos (Los Olvidados, 1950), além de A Idade do Ouro e Viridiana – poderíamos incluir Nazarin na lista de Rebolledo. Obcecada pela caridade que não pode mais praticar como reclusa, Viridiana transforma os mendigos que acolhe em objetos de culto – eles substituem a presença de Cristo. Buñuel revela aqui a origem do sentimento cristão da fé. Entretanto, quando são transformados em Cristo e seus apóstolos (a cena do banquete), eles são destituídos de sua materialidade. Viridiana constrói mártires e torna-se vítima deles. A Santa Ceia transfigurada no banquete dos mendigos transforma-se em orgia. “O tema tradicional dos cegos, dos aleijados e dos monstros passa, portanto, diretamente do universo picaresco para a obra buñueliana. Nos dois casos, eles encarnam a recusa de uma moral tradicional, tornada inoperante” (Ibidem: p.43). Entretanto, de acordo com Matthew Gale, em alguns casos seria reducionismo apelar para a nacionalidade de Buñuel e Dalí. Na cena de Um Cão Andaluz onde o homem tenta de todas as formas ser aceito pela mulher (a seqüência do piano com jumento morto e padres), as referências ao amor romântico seriam destruídas por um caráter cômico. Essa tendência de atacar estereótipos, Gale sustenta, teria sido buscada também nos filmes de Hollywood que Buñuel e Dalí admiravam (GALE, Matthew. Op. Cit.: p. 90). Não seria diferente em relação ao amor de Viridiana por Cristo – cômico ou não. O ataque aos estereótipos deveria agradar a Buñuel na medida em que, mesmo em suas origens cristãs, esse amor não passa de (ou acabara por se converter em) formas hipócritas e covardes de chantagear a si mesmo (a) e aos outros (as). 25 Buñuel explicou que o leproso não era ator profissional, mas um mendigo que o havia abordado na rua, em Madri. Quando surge na tela, apanha uma pomba, acaricia-a, e depois supostamente (Buñuel não mostra) a come. “Se ele fez isso, disse Buñuel, não é porque ele fosse mau, mas porque tinha fome”. Buñuel disse também que faz filmes mais para seus amigos do que para o público. O “público” é que é, na opinião de Buñuel, convencional, tradicional, pervertido. “Não é minha culpa”, afirma Buñuel, “mas da sociedade”. É muito difícil e raro, de acordo com o cineasta, quem consiga fazer um filme que agrade tanto aos amigos quanto ao “público”. “De minha parte”, decreta Buñuel, “nunca pretendi fazer filmes para educar o ‘público’’. O protagonista de Nazarin é um padre, mas poderia ser um cabeleireiro ou garçom, explicou Buñuel. “O que me interessa nele é que é fiel a suas idéias, que elas são inaceitáveis para a sociedade e que, após suas aventuras com prostitutas, ladrões, etc... , elas o conduzem a uma condenação sem recurso pelas forcas da ordem...” (SADOUL, Geoges. Op. Cit.: pp. 32-3) Lúcifer, os Insetos, o Espírito Santo e o Anjo Mas nem só da aparição de padres e altas patentes eclesiásticas vive o cinema de Buñuel. Em A Ilusão Viaja de Trem (La Ilusión Viaja em Tranvía, 1953), numa encenação teatral de rua explica-se didaticamente porque a “mulher é a culpada” por termos sido expulsos do paraíso. Lúcifer, aliás, antes de caçar a pomba que representa o Espírito Santo, já chega ao palco enchendo a cara com bebida alcoólica – que, diga-se de passagem, apesar de ser uma droga altamente destrutiva, é legalizada no mundo inteiro. Julgado, o anjo Lúcifer é forçado a abandonar o Céu. Neste momento, perde suas asas e túnica branca de anjo e vira um demônio chifrudo bem ao gosto das pinturas medievais. Em seguida, ele dá uma maça a Eva, que a oferece a Adão. A Via Láctea (La Voie Lactée, 1969) já foi comparado ao estudo de um inseto: o homo christianus. Seus detalhes físicos, comportamento, heresias, a transubstanciação, a origem do mal, a natureza dual de Cristo, o livre arbítrio, a trindade e o nascimento da Virgem. Como Nazarin, este filme suscitou reações contraditórias. Uns disseram que era uma obra anti-religiosa. O escritor argentino Julio Cortázar (1914-1984) disse que o filme parecia ter sido financiado pelo Vaticano. Em A Via Láctea, lembrou Buñuel, 26 Cristo é um homem comum, rindo, correndo, errando o caminho e até dispondo-se a se barbear. De acordo com Buñuel, na atualidade a religião católica parece dar mais importância à Cristo, relegando ao segundo plano o restante da Santíssima Trindade. “Só se fala dele”, reclamou o cineasta, “quanto ao desafortunado Espírito Santo, ninguém lhe dá pelota, e ele mendiga pelas esquinas” (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 2009: p. 340). Com relação às opiniões pró e contra sua abordagem em relação à religião na sua obra, Buñuel diria: Essas polêmicas falaciosas me deixam cada vez mais indiferente. Via Láctea a meu ver não era nem a favor disso, nem contra aquilo. Além das situações e dos conflitos doutrinários que o filme mostrava, ele me parecia ser acima de tudo um passeio pelo fanatismo em que todos se agarravam com força e intransigência à sua parcela de verdade, dispostos a matar ou morrer por ela. Assim, parecia-me que o caminho percorrido pelos dois peregrinos podia se aplicar a toda ideologia política ou mesmo artística (Idem) Em O Anjo Exterminador (El Ángel Exterminador, 1962), o anjo propriamente dito é uma presença na ausência. Na Bíblia, em Samuel II, capítulo 24, versículo 16, lê-se: “(...) quando o anjo estendeu a mão sobre Jerusalém, para destruí-la, o Senhor se arrependeu daquele mal; e disse ao anjo que fazia a destruição entre o povo: Basta, retira agora a tua mão (...)”. Após um jantar, sem razão aparente um grupo de aristocratas não consegue abandonar o local. A situação vai se deteriorando, desentendimentos e delírios alimentam um clima claustrofóbico e enigmático. Aqueles que estão do lado de fora também não conseguem entrar. Em certo momento surge a única alusão ao título, um dos convidados fala delirando: “Contente... não com o extermínio” (TAVARES, Bráulio. 2002: p. 43). Uma das mulheres pede às amigas que segurem os pés de galinha que ela trouxe. Na Cabala, são como chaves, explica ela, que abrem as portas do desconhecido. Em Nazarin, alguém joga pés de galinha na panela enquanto Nazarin explica para Ándara por que nascemos (segundo ele, a pergunta mais fácil e também a mais misteriosa). De qualquer forma, a tentativa das aristocratas não dá certo. Ela diz que precisa de sangue inocente para fazer a coisa funcionar. Nesse instante, o sangue de um dos casais presentes (que havia se suicidado) escorre. Não dá 27 certo. Outros convidados, Maçons, tentam resolver o problema pronunciando a “palavra impronunciável”. Também não dá certo. Alguns cordeiros entram na sala onde o grupo está confinado. Famintos, eles irão comêlos. Um urso, que foi criado na casa, não entra na sala. Alguns convidados imaginam quem comeria quem, caso o animal entrasse. Numa crítica direta aos Jesuítas, o mordomo come pedaços de papel. Oferecendo para uma das convidadas espantadas, num longo elogio às qualidades alimentícias do papel, explica que quando estudou num colégio Jesuíta costumava comer em sala, quando as aulas o entediavam. Uma das convidadas pede que seu médico a acompanhe numa peregrinação à Lourdes e compre para ela uma Virgem lavável de plástico. Este foi um dos detalhes mais blasfemos apontados pela Igreja e pela crítica da época. Entretanto, trata-se de um objeto a venda no mercado de lembranças religiosas, tanto quanto o famoso crucifixo-canivete que vemos em Viridiana (Idem: p. 51). Finalmente, através de uma reconstituição, até que entendessem quando tudo começou a dar errado, o grupo consegue mudar o próprio destino e sair da mansão. Na seqüência final, todos estão na igreja. A missa termina, mas ninguém sai. Não vamos acompanhálos desta vez, mas sabemos que recomeçará a agonia. Do lado de fora, tiroteio e polícia. Na imagem final, um bando de cordeiros segue na direção da porta do templo. De acordo com Bráulio Tavares, com o tempo Buñuel abandonou o surrealismo puro, o automatismo, optando por uma espécie muito pessoal de realismo mágico. Utilizando colagem, acaso, improviso, inserção de elementos casuais e autobiográficos com pouca ou nenhuma relação com a estória contada, Buñuel criou muitos problemas para os críticos, que não sabiam como encaixá-lo em suas teorias (Ibidem: p. 170). Cristo Zomba de Sua Dor “A realidade, sem imaginação, é a metade da realidade” Luis Buñuel (KROHN, Bill; DUNCAN, Paul. Op. Cit.: p. 37) 28 Ándara está convalescendo de seu ferimento no quarto de Nazarin quando percebe num pequeno quadro na parede o rosto sofrido de Cristo. Delirando, vê Cristo abrir uma grande gargalhada. Seria a risada de escárnio de um Cristo que acusa? Cristo zombando do sofrimento de uma prostituta? (HOLANDA, Samuel. Op. Cit.: p. 92) O acaso ensinaria a um confuso Nazarin por que sua bondade não gera bondade. Como diria o próprio Buñuel, tanto faz crer ou não crer. Foi nesse sentido que o ladrão que defendeu Nazarin na cela da prisão concluiu pela irrelevância, tanto de sua maldade quanto da bondade de Nazarin. No mundo de Deus, acredita Buñuel, não há lugar para o acaso. Para o cineasta, o mundo é regido por um princípio de ambigüidade. Não existem verdades redentoras, soluções definitivas, nada que impeça o crescimento da dúvida (Idem: pp. 89 e 93). As interpretações dadas à Nazarin oscilam entre considerá-lo profundamente cristão ou tomá-lo como uma denúncia da ilusão da divindade, afirmando a realidade do homem. Buñuel discorda de ambas e retruca que qualquer um na situação de Nazarin seria contraditório (Ibidem: p. 96). Crer e não crer na existência de Deus dá no mesmo! Assim concluía Buñuel, que não via sentido em decidir se o acaso domina a necessidade ou vice-versa. Se Deus de fato existe, isso não mudaria rigorosamente nada, enfatizou o cineasta espanhol. Buñuel não aceita que exista um Deus que o vigie, que se ocupe dele e que possa castigá-lo eternamente. “Deus não se ocupa de nós. Se existe, é como se não existisse. Raciocínio que resumi outrora nesta fórmula: ‘sou ateu, graças a Deus’. Uma fórmula contraditória apenas na aparência” (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 2009: p. 246). O ateísmo de Buñuel, como ele mesmo disse, aceita o inexplicável. Recusa uma divindade organizadora, nenhuma explicação vale para todos. Mas não quer dizer que Buñuel raciocina cientificamente. A ciência não o interessa, ela ignora tudo que importa para ele: o sonho, o acaso, o riso, o sentimento e a contradição. Mas Buñuel esclarece, não é sua a opinião do personagem de A Via Láctea que diz: “Meu ódio pela ciência e meu desprezo pela tecnologia acabarão por me levar a essa absurda crença em Deus”. De acordo com Buñuel, isso é até impossível. Ele escolheu viver no mistério: A fúria de compreender e, por conseguinte, de apequenar-se, mediocrizar-se – fui espezinhado a vida inteira com perguntas imbecis: por que isto? Por que aquilo? – é um 29 dos infortúnios de nossa natureza. Se fôssemos capazes de entregar nosso destino ao acaso e aceitar sem angústia o mistério da vida, uma certa felicidade poderia estar próxima, bastante semelhante à inocência (Idem) “Em algum lugar entre o acaso e o mistério insinua-se a imaginação, liberdade plena do homem” (Ibidem: p. 247). O problema da humanidade é a tentativa sempre renovada de extinguir essa liberdade. Por isso o cristianismo inventou o pecado por intenção. Buñuel, como muitos, reprimia imagens que vinham à sua mente (assassinar o irmão, transar com a mãe, etc.). A partir dos sessenta anos de idade, disse ele, compreendeu e aceitou a inocência de sua imaginação. Só então compreendeu que não se tratavam de pecados, que eram pensamentos que somente a ele diziam respeito. Aceitando tudo que viesse a sua mente, explicou Buñuel, as imagens (mesmo as mais complexas como incesto) o abandonavam, expulsas por sua indiferença. “Psiquiatras e analistas de todo tipo escreveram muito sobre meus filmes. Sou grato, mas nunca leio seus livros. Não me interessam”. (...) “Na minha idade, deixo que falem (...)” (Ibidem: pp. 247-8) A Blasfêmia Está nos Olhos de Quem Vê? Charles Tesson afirma que podemos distinguir três elementos no cinema de Buñuel: a blasfêmia, a profanação e o sacrilégio. A profanação seria a realidade do universo buñueliano, seu ato de nascimento. O sacrifício é menos significante e está inscrito num gesto proibido (Tesson cita o exemplo da coroa de espinhos jogada na fogueira, mas já sabemos que este exemplo, pelo menos na justificativa de Buñuel, nada tem de incoerente). O gesto blasfemo, ao contrário, constitui uma afronta ao simbolismo, aos fundamentos (TESSON, Charles. 1995: p. 288n13). Bráulio Tavares ressalta os poderosos mecanismos de condicionamento da educação cristã (os mandamentos, a confissão, o conceito de pecado mortal) e os desdobramentos no comportamento do cineasta. A blasfêmia, para um ex-aluno de colégio jesuíta, pode constituir um verdadeiro ato de libertação. Tavares destaca que Buñuel não se enquadrava na ideologia anticlerical de grande parte dos anarquistas espanhóis – espancamento de padres, incêndios em igrejas. “As blasfêmias de Buñuel”, afirma Tavares, “são uma espécie de maledicência terapêutica, onde o indivíduo procura, mais 30 do que atingir o ofendido, demonstrar a si mesmo que o ‘outro’ não tem poder sobre ele, não manda mais em sua mente” (TAVARES, Bráulio. Op. Cit.: pp. 79). Uma espécie de independência mental de Buñuel em relação ao passado. Com a vantagem de prolongar sua juventude intelectual ao blasfemar em público, para milhões de espectadores. As blasfêmias, Tavares insiste, revelam a extensão dos conflitos emocionais provocados pela fé religiosa. Tavares relembra uma blasfêmia às avessas de Buñuel. Mas antes é preciso ressaltar o papel dos sonhos para um surrealista como Buñuel: “Eu disse um dia a um produtor mexicano, que não gostou nada da piada: ‘Se o filme estiver muito curto, eu acrescento um sonho’”. Noutra ocasião Buñuel afirmou: “Adoro sonhar, mesmo quando meus sonhos são pesadelos, o que é freqüente. Eles são sempre semeados de obstáculos, que conheço e reconheço. Mas isso é indiferente” (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 2009: p. 135). Não é o que parece, a julgar pela reação ao sonho com a “blasfêmia às avessas”: (...) Vejo subitamente a Virgem Maria, toda iluminada de doçura, as mãos estendidas para mim. Presença fortíssima, indiscutível. Ela me falava, a mim, descrente sinistro, com toda a ternura do mundo, aureolada por uma música de Schubert que eu ouvia com nitidez. Quis reconstituir essa imagem em A Via Láctea, mas ela ficou longe da força de convicção imediata que possuía em meu sonho. Ajoelhei-me, meus olhos encheram-se de lágrimas e de repente me senti arrebatado pela fé, uma fé vibrante e invencível. Quando acordei, precisei de dois ou três minutos para serenar. Eu continuava a repetir, no limiar do despertar: ‘Sim, sim, santa Virgem Maria, eu creio!’. Meu coração estava disparado. (...) Acrescento que esse sonho apresentava certo caráter erótico. Obviamente, esse erotismo permanecia nos castos limites do amor platônico. Será que se o sonho tivesse se estendido, essa castidade teria desparecido para ceder lugar a um verdadeiro desejo? Não posso responder. Eu me sentia simplesmente capturado, comovido, extasiado. Sensação que experimentei inúmeras vezes ao longo da vida, e não apenas em sonho (Idem: p. 138) O ateísmo de Buñuel não neutralizava seu interesse nos mistérios da fé. Mas ele nunca deixou de sugerir que a Igreja sempre os impunha à força (obedecer = ter fé). Qualquer expressão de uma idéia herética gerava uma advertência das autoridades eclesiásticas (KROHN, Bill; DUNCAN, Paul. Op. Cit.: p. 154). Em O Fantasma da Liberdade (Le 31 Fantôme de la Liberté, 1974), Buñuel investe contra a hipocrisia da Igreja ao colocar padres jogando pôquer, fumando e ingerindo bebida alcoólica. Embora saibamos que se pode dar uma resposta objetiva e acadêmica à questão, uma pergunta simples e objetiva que Buñuel fez a si mesmo ecoa como se a resposta estivesse além, para além. Ou, talvez, no além: “Por que esse horror ao sexo na religião católica?” (BUÑUEL, Luis. Op. Cit. 2009: p. 26) Juan-Luis Buñuel recorda uma brincadeira que seu pai costumava fazer com a ajuda de Lorca e Dalí. No centro de Madri, uma amiga deles se vestia de prostituta e entrava no bonde. Na parada seguinte, Lorca ou Dalí vestido de padre, entrava também e começava a molestar a mulher. Era um escândalo. Na terceira parada, Buñuel subia no bonde vestido de policial, agarrava o padre, batia nele e gritava: Por que padres sempre estão perseguindo as prostitutas? O bonde todo ficava chocado. Então os três desciam e iam beber juntos num bar (FERNANDES, G. Op. Cit.). Roberto Acioli de Oliveira Desenredos - revista de cultura e literatura Disponível em http://www.desenredos.com.br/6art_acioli_176.html O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte Luz Silenciosa (Stellet licht, 2007), de Carlos Reygadas 32 Nazarin (1959), de Luis Buñuel Buñuel Nazarin Carlos Saura, o cineasta espanhol, afirmou que na Espanha existem três coisas muito importantes: a Igreja, o sexo e o exército (1). Outro cineasta espanhol, o surrealista Luis Buñuel, é muito lembrado por uma frase que ficou famosa: “eu sou ateu, graças a Deus”. Sim, ele era ateu, mas isso não quer dizer que não tivesse certo fascínio pelos mistérios da fé ou, pelo menos, pela Virgem Maria. Não é difícil encontrar, desde Um Cão Andaluz (Un Chien Andalou, 1929), em parceria com Salvador Dali, muitas referências à religião Católica. Na maioria das vezes, é verdade, referências negativas. (imagem acima, monges bebem cerveja, fumam e jogam pôquer em O Fantasma da Liberdade; Ao lado, a beata de Viridiana. Ela pretende ser pura como a noiva de Cristo e acredita que com oração e trabalho conseguirá salvar os mendigos da região) Entre a Fé e a Igreja “Não me interessam os personagens sem aspectos contraditórios, porque então sabemos tudo sobre eles desde o primeiro momento” Luis Buñuel Quem não se lembra das caveiras de arcebispos (imagem acima, à esquerda), ou do marquês (uma referência aos nobres espanhóis) vestido de Jesus Cristo que sai de uma orgia no final de A Idade do Ouro (l’Âge d’Or, 1930) - em uma cena inspirada em texto 33 do marquês De Sade. Ou ainda, de Viridiana (Viridiana, 1961), uma beata que deseja ser a noiva de Cristo, mas acaba rendida pelos desejos sexuais. Inesquecível neste filme é a seqüência em que os mendigos, que Viridiana achava que através de orações e trabalho seguiriam o caminho do Bem, invadem a casa onde mora e fazem um banquete e uma orgia. Em certo momento, Buñuel distribuiu os mendigos em uma grande mesa, recriando a imagem da Última Ceia de Cristo, famoso mural de Leonardo Da Vinci pintado no século 15. (imagem abaixo) Em A Via Láctea, (La Via Láctea, 1969), dois vagabundos resolvem fazer a peregrinação a Santiago de Compostela. Pelo caminho escutam toda sorte de comentários religiosos e com seres sobrenaturais. O filme já foi comparado ao estudo de uma espécie de inseto: o homo christianus. Seus detalhes físicos, seu comportamento, as heresias, a transubstanciação, a origem do mal, a natureza dual de Cristo, o livre arbítrio, a trindade e o nascimento da Virgem. Buñuel, apesar de ateu, tinha interesse pelos mistérios da fé. Mas mostra que a Igreja sempre quis impô-los à força. (obedecer a Igreja = ter fé) Qualquer personagem que expressasse uma idéia herética seria advertido pelas autoridades eclesiásticas que receberá um castigo caso não se submeta. O castigo apenas muda com os séculos (2). Em O Fantasma da Liberdade (Le Fantôme de la Liberté, 1974), Buñuel ataca a hipocrisia da Igreja colocando um grupo de monges jogando pôquer. Talvez se referindo às contradições (embora a contradição estimule seu pensamento) entre a fé e a Igreja Católica enquanto instituição, Buñuel disse: “Posso blasfemar sobre o amor louco, caso isso me ocorra. É vivificante, às vezes, blasfemar contra aquilo em que se acredita”. A Fé Verdadeira? “Eu não gosto dos donos da verdade, sejam quem forem. Me aborrecem e me dão medo. Eu sou anti-fanático (fanaticamente)” 34 Luis Buñuel Mon Dernier Soupir, p. 282 Em Simão do Deserto (Simon del Desierto, 1965), Buñuel mostra um homem que se isola no deserto para enfrentar as tentações do diabo. Rodeado por seus seguidores, Simão vive no topo de uma coluna durante 6 anos. Então um rico benfeitor lhe dá uma nova coluna, agora com 11 metros de altura. Lá de cima, ele faz milagres e enfrenta o diabo, que aparece com vários disfarces. O roteiro é baseado na história de San Simeón, anacoreta que viveu mais de 40 anos no alto de uma coluna no deserto da Síria durante a Idade Média. O texto lhe foi apresentado por Garcia Lorca, e ambos se divertiam muito ao ler que as fezes do santo escorriam pela coluna como a cera de uma vela. Na cena final, que não era bem como Buñuel desejava (3), Simão e o diabo aparecem em uma discoteca em Nova York. Simão diz que vai voltar para casa, mas o diabo o informa que em sua coluna no deserto já existe outro habitante e que Simão deverá ficar ali até o fim dos tempos. Buñuel considerava Simão o único homem livre em todos os seus filmes. Muitos outros exemplos de personagens religiosos poderiam ser lembrados quando se fala da obra de Buñuel. A fase em que o cineasta viveu no México está cheia deles, Simão do Deserto foi o último. Um pouco antes, em 1958, Buñuel filma Nazarin. “Nazarin é um homem fora do comum, por quem sinto grande afeto”. Com essas palavras Buñuel define esse sacerdote que, da mesma forma como será Simão do Deserto depois dele, é a imagem de uma mistura de Cristo e Don Quixote. (ao lado, Cristo depois de uma orgia, em A Idade do Ouro) Nazarin é um padre passando por uma crise de fé. Herói quixotesco que vive em um mundo só seu e acredita que tudo irá bem se fizer o bem. Mas todas as suas boas ações acabam mal. Todos estão em pior situação no final do filme. Nazarin se dedica aos pobres, cuida de prostitutas feridas em brigas e nem se importa quando delinqüentes lhe roubam os poucos pertences. Mas ele não poderia ter dado abrigo a uma prostituta e ela ateia fogo ao apartamento dele para que a polícia não tenha provas para incriminá-lo. Por conta do escândalo, proíbem-no de celebrar missas. Nazarin então se livra de suas vestes eclesiásticas e parte para uma vida de mendigo. Como já sabemos, suas tentativas de fazer o bem fracassam e seus únicos seguidores são duas mulheres, a prostituta que 35 ajudou e Beatriz, amiga dela, uma histérica que foi abandonada pelo amante. Acaba descoberto e vai preso, lá chegando tem de ser defendido por um ladrão que impede que ele seja surrado por outro detento. O ladrão então desabafa para Nazarin: ”você está no bando do bem e eu no do mal. E nenhum dos dois serve para nada”. Através de outra seqüência de Nazarin, Buñuel chama nossa atenção para uma outra questão: a idealização dos pobres. Em sua peregrinação, Nazarin, Andara e Beatriz encontram uma mulher moribunda. Ela está quase morta, mas deseja ardentemente a presença do marido. Nazarin, seguindo seus rituais cristãos, tenta fazê-la se arrepender de seus pecados e prestar contas a Deus. Mas a mulher não quer saber disso, quer seu marido. Quando o marido retorna, expulsa os três beatos a pedido de sua mulher. Nazarin não compreende como alguém pode ignorar a salvação eterna desta forma. Beatriz, que sofre com a ausência do amado, concorda com a mulher (4). Destrói-se assim um ideal de bondade, mostrando as pessoas reais (contraditórias) por baixo da casca dos estereótipos (identidades fixas). (imagens acima e abaixo, Nazarin) Ateu Graças a Deus "Já não creio no progresso social. Só posso acreditar em alguns poucos indivíduos excepcionais de boa fé, ainda que fracassem, como Nazarin" Luis Buñuel O acaso, uma das forças do surrealismo, mostra para Nazarin que “ser bom” não faz do mundo um lugar melhor. Ele não compreende porque sua bondade não gera bondade. Portanto, tanto faz crer ou não crer. Foi nesse sentido que o ladrão que o defendeu na cela da prisão concluiu pela irrelevância, tanto de sua maldade quanto da bondade de Nazarin. Será esta conclusão que levou Buñuel a se dizer “ateu graças a Deus”? Seja 36 como for, no mundo de Deus, acredita Buñuel, não há lugar para o acaso. Para Buñuel, o mundo é regido por um princípio de ambigüidade, não existem verdades redentoras, soluções definitivas, nada que impeça o crescimento da dúvida sobre aquilo que se tem como estabelecido (5). O real é contraditório e ambíguo. Uma das imagens mais impressionantes do filme acontece quando Nazarin ainda está em seu apartamento. Andara, a prostituta, está convalescendo de seu ferimento quando olha para um pequeno quadro na parede onde está o rosto sofrido de Cristo com a coroa de espinhos. De repente, delirando, ela vê aquele rosto abrir uma grande gargalhada (imagem ao lado). Um Cristo alegre não faz bem o gênero da postura Católica. Talvez seja uma risada de escárnio de um Cristo que acusa (6). Cristo zombando do sofrimento de uma prostituta, uma Eva. Curiosamente, a Igreja Católica esteve a ponto de premiar o filme de Buñuel (7). Podemos reunir as interpretações dadas à Nazarin em dois grupos. No primeiro, o filme seria profundamente cristão. No segundo, o filme mostra ilusão da divindade e a descoberta da realidade do homem. Buñuel discorda das duas interpretações. Para o cineasta, qualquer homem na mesma situação de Nazarin seria movido por impulsos contraditórios (8). Notas: 1. RENTERO, Juan Carlos. Interview with Carlos Saura In WILLEN, Linda M. (ed.). Carlos Saura: Interviews. USA: University Press of Mississippi, 2003. P. 29. 2. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.). Luis Buñuel. Filmografia Completa. Köln: Taschen, 2005. P. 154. 3. Idem, p. 145. 4. HOLANDA, Samuel. Nazarin, Um Devorador Ambíguo de Sistemas In CAÑIZAL, Eduardo Peñuela (org.) Um Jato na Contramão: Buñuel no México. São Paulo: Editora Perspectiva, 1993. Pp. 94-5. 5. Idem, Pp. 89 e 93. 6. Ibidem, p. 92. 7. KROHN, Bill; DUNCAN, Paul (ed.). Op. Cit., p. 112. 8. HOLANDA, Samuel. Op. Cit., p. 96. 37 Roberto Acioli de Oliveira Disponível em http://cinemaeuropeu.blogspot.com.br/2008/10/buuel-nazarin.html Luz Silenciosa (Stellet Licht, 2007), de Carlos Reygadas Silenciosa Luz Silenciosa Luz é o terceiro longa-metragem de Carlos Reygadas. É um alívio para quem, como eu, havia saído estupefato de Japão e depois se decepcionado com Batalha no Céu. Reygadas ameaçava tornar sua herança tarkovskiana de planos longos e elaborados um mero virtuosismo sem calor, sem atrativos a não ser a verificação de um talento dele como cineasta. O que era estranhamento e magnificência em Japão de repente se tornava um conjunto de manobras calculadas e estéreis em Batalha no Céu – imagens que pesavam de forma auto-reverencial. Mas agora, com Silenciosa Luz, a força retorna, o estranhamento se duplica e, ao menos nas partes essenciais do filme, escapa à mão pesada. No fundo, um aspecto de Reygadas continua muito presente, ou melhor, confirma-se como gesto estruturante: a beleza dos filmes tem sempre de negociar com seu egocentrismo. Se há uma manobra que se repete nos três filmes, é um plano em que a câmera ocupa o epicentro da cena. Em Japão, isso se dava no plano final, o travelling inebriante sobre o trilho do trem, ao som de “Cantus in Memory of Benjamin Britten” de Arvo Pärt, com a câmera girando 360º, lentamente, transbordante de tanta vontade de síntese e maravilhamento – uma guinada conscientemente rumo ao sublime. Batalha no Céu tinha aquela horripilante cena da câmera saindo do quarto do casal, rodando o mundo ao redor deles e retornando ao quarto, percurso no qual se dava uma elipse. Silenciosa Luz, por fim, repete a dose, no plano em que Johan, logo após confessar a um amigo seu caso extraconjugal, fica dando voltas em torno da câmera com sua caminhonete, embalado pela música que canta sorridente. Johan está apaixonado, e o bonito desse plano – interrompido no momento certo, um pouco antes de descambar no exibicionismo – é nos assegurar de sua paixão. O filme é ambientado no norte do México, onde Johan mora com a mulher e os filhos numa fazenda em meio a uma comunidade de menonitas imigrantes. A idéia de 38 microcosmo imerso num mundo que extravasa seus limites pode parecer uma premissa fácil para Reygadas trabalhar seu gosto por deslocamentos e estranhamentos. Mas seu desejo maior é buscar a partir disso uma dramaturgia particular. Ele instala um universo e, através das pessoas que habitam esse universo, estabelece uma modalidade de representação com regras próprias. Um drama metafísico que pede a construção marcada de cada plano, cada seqüência – como quem rege uma galáxia e não apenas um filme (no que isso tem de bom e de prejudicial à nossa fruição de tamanha megalomania). Bresson e Dreyer estão na base dessa dramaturgia, sem dúvida, mas o investimento singular de Reygadas, seu passo adiante, pode ser verificado, por exemplo, na belíssima cena da família de Johan na piscina. Aquele sentimento de duração, de pulsação da natureza na pele dos personagens, de materialidade da experiência com o instante, o cineasta mexicano filma sem recorrer a nenhum mestre. As imagens que compõem essa cena trazem um teor de evanescência que – saudavelmente – destoa da solenidade reinante no filme. No último momento da seqüência, quando a mulher de Johan deixa cair uma lágrima (ela sabe que ele tem uma amante), Reygadas não se contém e faz um travelling no quadro desfocado e vazio, até achar uma flor em detalhe. Um certo deslumbramento pelo “filmar bonito” que já poderia ter sido superado, mas que não compromete a verdade do filme. No primeiro encontro que vemos de Johan com Marianne, sua amante, a câmera acompanha os passos dele em direção a ela quase à altura do chão. Johan percorre um campo florido e acha Marianne no alto de uma pedra. Eles se beijam demoradamente, se abraçam, e o sol se irradia na imagem como flair, como “acidente” fotográfico, aqueles flocos de luz que vazam para dentro do campo visual, uma espécie de sobra da luz. O amor de Johan e Marianne é inscrito nessa ordem sagrada da luminosidade, da primavera, do sublime. Um cinema no limiar da sacralidade, feito de aparições e milagres, mas também de elementos da physis, de estremecimentos da terra. Um cinema categoria peso-pesado, com imagens que são blocos maciços, imagens com o estrondo das carretas que cruzam a estrada na cena em que Esther, a esposa de Johan, pede para que ele pare o carro, sob uma chuva melodramática. Antes, há um campo-contracampo em eixo de 180º dentro do carro em movimento. Toda vez que corta de Johan para Esther, vemos trajetos conflitantes, uma estrada que vai e outra que vem. As gotas de chuva, por seu turno, pesam, a vida pesa sobre os personagens, o céu é enorme e 39 também pesa. A cena de Esther desfalecendo em lágrimas ao lado de uma árvore é triste e emocionante. Como todos os mais belos momentos do cinema de Reygadas, a vitalidade do plano se arrisca no paradoxo de se tornar insustentável. Sufocante e liberador, o choro de Esther se multiplica com a chuva que respinga na câmera. Percebemos então, por analogia, que o flair das cenas ensolaradas tem um valor a mais. Aqueles flocos de luz têm um profundo significado acrescido ao efeito estético: eles são os respingos do sol, a benção dos amantes, da mesma forma que as gotas de chuva são suas lágrimas. Uma primavera, uma chuva torrencial, uma violenta passagem do interior para o exterior que deflagra o inverno e a neve, elipses indeterminadas. Silenciosa Luz tem esse desejo de ocupar as quatro estações, erguer perante nossos olhos um mundo pleno de suas virtudes e conflitos, mudanças, passagens. A forma (um tanto esquemática, é preciso reconhecer) como o filme começa e termina revela um pouco desse desejo de plenitude, de obra acabada. A lágrima que Marianne deixa sobre o rosto de Esther na cena do velório, no entanto, é a reconquista do enigma da arte para além de maneirismos. Prevemos o decorrer da cena, sobretudo porque conhecemos sua referência explícita, Ordet de Dreyer, e ficamos à espera de um milagre. Mas mesmo assim, mesmo previsível, o milagre nos arrebata, como uma epifania às avessas. Se Reygadas souber conviver com seu talento, teremos outras fascinantes experiências de cinema pela frente. Luiz Carlos Oliveira Jr. Contracampo Disponível em http://www.contracampo.com.br/89/festsilenciosaluz.htm Os menonitas de Luz Silenciosa de Carlos Reygadas FORTALEZA – O novo filme do realizador mexicano Carlos Reygadas (de “Japón” e “Batalha no céu”) passou por um teste na noite desta terça-feira, no 18º Cine-Ceará. “Luz silenciosa”, que ganhou o prêmio de júri no Festival de Cannes ano passado, é uma daquelas obras capazes de despertar amor ou repulsa. De difícil diálogo com o grande público, o longa-metragem tem poucas falas, nenhuma música e planos 40 longuíssimos. Amantes deste tipo de filme autoral, poético e tomadas de câmera nada triviais podem ficar tranqüilos. “Luz silenciosa” já tem distribuição garantida pela Imovision e entrará no circuito brasileiro em junho. Mesmo os poucos interessados no estilo – quando digo que os planos são longos os são mesmo e podem durar 15 incômodos (no bom sentido) e silenciosos minutos – devem se agarrar à história curiosa de um grupo de menonitas no México. Confesso minha ignorância sobre a existência dessa comunidade religiosa fechada, de origem alemã, que lembra muito os amish. “Luz silenciosa” é esclarecedor e nos mostra um povo que tem dialeto próprio (falado apenas por 500 mil pessoas em todo o mundo), de origem protestante e cuja cultura persiste intacta desde o século 16. Apenas alguns grupos se abriram para a TV ou máquinas agrícolas. Mas na sua grande maioria não tem manifestação artística, muito menos possui literatura escrita e acredita que tudo fora da Bíblia seja pecado e desnecessário ao homem. Recorrente na dobradinha sexo e religião (vide “Batalha no céu), Reygadas usa a tradição ortodoxa dessa comunidade da cidade de Chihuahua como pano de fundo de uma história de amor entre um menonita bem casado e pai de numerosos filhos e sua amante. Se muitos críticos se atrelam às qualidades técnicas de Reygadas, eu prefiro destacar o peso da trama, uma profunda e nada fácil história de culpa, resignação, traição, e amores impossíveis e eternos. Reygadas, um ex-advogado e agora cineasta considerado maldito no México, não pôde estar presente no Cine-Ceará. Seu assistente de direção nos três filmes, o espanhol Alex Ezpeleta, falou um pouco sobre a dificuldade de furar o bloqueio e entrar neste mundo tão à parte dos menonitas. O primeiro obstáculo era encontrar atores. Foram precisos seis meses. A equipe batia de porta em porta da comunidade mexicana e, quando abordava o assunto "adultério" do filme, era infeliz na incursão. Até encontrarem Cornélio Wall Fehr, um menonita mais liberal, com programa de rádio na comunidade e ex-cantor de um grupo no México. Ele convenceu seus familiares a participarem do filme (portanto o pai do ator, é o pai do personagem Johan realmente). As atrizes principais foram buscadas em outros países, como Alemanha e Canadá. O que se vê em cena são não-atores, dando um tom quase documental ao filme. Ponto para Reygadas. 41 Se parte desse povo não gostou de um filme sobre eles, outra parte acredita que “Luz silenciosa” possa preservar sua cultura. “Eles não gostam do prazer da alma, tudo é sofrimento. Só trabalham no campo e trabalhar é sofrer, mas também a chance de salvar a alma”, contou Ezpeleta. Ele lembra que as casas dos menonitas são assépticas, sem flores vivas ou qualquer enfeite. “Apenas calendários e relógios. Eles gostam de medir tudo, do dinheiro ao tempo”, explicou. Ou seja, vá preparado para o desconhecido em junho e acostume-se às ações passando pela câmera de Reygadas. Quase nunca as lentes seguem a ação dos atores, a ponto de um gesto do personagem acontecer fora do plano e sem deixar o espectador perdido. Acostume-se aos planos longos e sinta o incômodo necessário do silêncio dos menonitas e da direção de Reygadas. Belo filme que ficará sem o prêmio no CineCeará, divulgado nesta quinta-feira, se “Os desafinados” for de poesia à altura. Bianca Kleinpaul O Globo Disponível em http://oglobo.globo.com/blogs/cinema/posts/2008/04/16/os-menonitasda-luz-silenciosa-de-carlos-reygadas-no-cine-ceara-97946.asp O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte 50 anos da Palma de ouro brasileira Por Luiz Zanin, publicado em O Estado de S. Paulo, em 24/05/12 Há exatos 50 anos o Brasil ganhava sua primeira – e até agora única – Palma de Ouro em Cannes. O principal prêmio, do mais badalado festival de cinema do mundo, foi atribuído a O Pagador de Promessas, de Anselmo Duarte, em 1962. Há fotos da equipe do filme chegando ao Brasil que parecem imagens da seleção brasileira voltando de uma conquista de Copa do Mundo. As imagens provam que o prêmio, até hoje o mais importante recebido por uma produção brasileira, produziram grande emoção nas pessoas. 42 Sentimento justificado pois a distinção conferida ao filme significava também o reconhecimento de um país jovem, que aspirava à projeção internacional. Naquela época, o Brasil desenvolvia uma atividade artística das mais significativas, com inovações na música (a bossa nova), no teatro, nas artes plásticas e no cinema. Era o momento em que nascia o Cinema Novo, o até hoje mais respeitado movimento cinematográfico do País, projetando nomes como os Nelson Pereira dos Santos (o mais velho, patrono de todos e precursor), Cacá Diegues, Joaquim Pedro de Andrade, Leon Hirszman, e, em especial, Glauber Rocha, o mais inventivo, o mais provocador, o mais falastrão. É, talvez, uma ironia que a Palma de Ouro tenha caído no colo de alguém que pouco tinha a ver com as novas ideias cinematográficas do País. Anselmo era um galã, vindo da chanchada e dos estúdios da Vera Cruz, que já havia dirigido um filme interessante, Absolutamente Certo, em 1957. Encantou-se com a peça de Dias Gomes na qual se conta a história do homem, Zé do Burro, que tenta entrar numa igreja católica para pagar uma promessa feita num terreiro de candomblé a Santa Bárbara para salvar seu animal de carga, atingido por um raio. Graça alcançada, Zé do Burro carrega uma cruz a para saldar a dívida com a santa. Mas o padre não permite a entrada. Essa negativa cria o impasse que dá o tom da narrativa. Magnificamente interpretado por Leonardo Villar, Zé do Burro, com sua teimosia radical, conquistou Cannes de alguma maneira, ainda hoje misteriosa. Encenava o conflito entre a religiosidade popular e a religião oficial, mas também dramatizava a contradição muito aguda entre o Brasil real, pobre e explorado, e o Brasil oficial, representado na figura da Igreja católica. Nada disso escapava ao comunista Dias Gomes, autor da peça, e agudo observador da realidade nacional. Para levar esse texto à tela, Anselmo usou uma dramaturgia clássica, que pouco tinha a ver com as inovações formais que estavam sendo preconizadas e testadas por Glauber & Cia. Valeu-se, além do intérprete principal de um elenco afinado, com Gloria Menezes e Norma Bengell, do excelente fotógrafo inglês Chick Fowle, trazido ao Brasil pela Companhia Cinematográfica Vera Cruz. O Pagador de Promessas tinha, então, um padrão de qualidade técnica que não poderia ser criticado pelos europeus. 43 Tinha, além disso, um ar de Terceiro Mundo, que estava entrando na moda na parada de sucessos da intelligentsia internacional. O Brasil já era visto como país promissor, cheio de contradições sociais, que começavam a ganhar forma artística através de seus criadores. Estávamos ainda nos anos de ouro da década de 1960 e a ditadura não havia chegado, assim como as grandes obras do Cinema Novo – Deus e o Diabo na Terra do Sol, de Glauber Rocha, Os Fuzis, de Ruy Guerra e Vidas Secas, de Nelson Pereira dos Santos – que estavam em fase de gestação. Disso tudo se beneficiou Anselmo Duarte, e seu produtor Oswaldo Massaini, para conquistarem a ambicionada Palma de Ouro – troféu que, mais tarde, foi morar na estante do diretor em Salto, no interior de São Paulo, sua terra natal. Prêmios são assim. Às vezes, além do mérito intrínseco da obra, aproveitam-se de circunstâncias várias, como um determinado momento histórico, divisões internas do júri, simpatias ou antipatias. Seja como for, O Pagador de Promessas impôs-se a um júri que tinha François Truffaut entre seus integrantes, e concorria com filmes como O Anjo Exterminador, de Luis Buñuel, O Eclipse, de Michelangelo Antonioni, e Joana D’Arc, de Robert Bresson, hoje considerados obras-primas do cinema mundial. Depois disso, o Brasil voltou várias vezes aos mais importantes festivais do mundo, inclusive com as obras consideradas máximas do Cinema Novo. Que foram reconhecidas e premiadas, mas não com a Palma de Ouro. Já faturamos dois Ursos de Ouro no concorrente de Cannes, o Festival de Berlim, mas, por enquanto a única Palma de Ouro brasileira continua a ser a de Anselmo Duarte. Há meio século, “O Pagador de Promessas” ganhou a Palma de Ouro em Cannes Por Marcelo Perrone, publicado em Zero Hora, em 23/05/12 Completam-se nesta quarta-feira exatos 50 anos daquela que permanece a maior conquista do cinema nacional: a Palma de Ouro que consagrou O Pagador de Promessas no Festival de Cannes, em 1962. 44 Por coincidência ou proposital arranjo dos organizadores, também neste 23 de maio será exibida na mais importante mostra competitiva de filmes do mundo uma produção brasileira que tenta repetir o feito: Na Estrada, de Walter Salles. Diretor de O Pagador de Promessas, Anselmo Duarte (1920 – 2009) morreu reclamando a conquista histórica nunca foi devidamente valorizada no Brasil. Seu principal alvo eram os realizadores que, na mesma época, despontavam com o cinema novo e se alinhavam aos críticos que avaliavam ser O Pagador de Promessas um filme “à moda antiga”, que se contrapunha ao ventos da “modernidade” soprados pela nouvelle vague francesa. A mitologia que envolve O Pagador de Promessas é temperada por exageros, vaidades, injustiças, doses de imaginação e um tanto de preconceito, com destaca em entrevista a ZH Leonardo Villar, protagonista do filme. Segundo o ator, o preconceito se deu pelo fato de Duarte ser um popular galã de chanchada com pouca experiência na direção. Com prestígio e recursos, o diretor convenceu o autor da peça, o dramaturgo Dias Gomes, a lhe vender os direitos de adaptação. Artista identificado com o pensamento de esquerda, Gomes contava a história de Zé do Burro, homem simples que cumpre uma jornada épica arrastando uma cruz – como a de Jesus – com o fim de pagar uma promessa numa igreja de Salvador. Em seu caminho, ele depara com a intolerância de um padre e oportunistas que querem se aproveitar de seu drama. Além da força do texto original, Anselmo obteve um excelente desempenho tanto de Villar quanto Glória Menezes, que vive Rosa, mulher do protagonista – ambos eram atores consagrados no teatro estreando no cinema –,e moldou O Pagador de Promessas numa excelência técnica pouco comum no cinema nacional época. Muito da implicância contra O Pagador das Promessas é creditada ao fato de ele ter batido, em Cannes, filmes de diretores consagrados e queridos da crítica (veja no destaque) e, no Brasil, a disputa interna para representar o Brasil no festival com Os 45 Cafajestes, de Ruy Guerra, um dos filmes embrionários do cinema novo. Disputada essa encarada como definidora dos rumos que o cinema nacional poderia tomar. Anselmo cutucava os cinemanovistas dizendo que eles, apesar da badalação nos festivais internacionais, nunca igualaram seu feito. Esse folclore em torno de polêmicas e brigas não deve ser levado ao pé da letra. Glauber Rocha, por exemplo, em sua Revisão Critica do Cinema Brasileiro faz tantos elogios quanto reparos ponderados e pontuais ao filme e ao trabalho de Anselmo. No campo da crítica, sim, posições mais inflamadas marcaram a recepção do filme. No Rio Grande do Sul, Tuio Becker elogiou “o melhor filme filme nacional de todos os tempos (…). Vibrante, transbordante de humanismo e veracidade, realizado com um noção de estética cinematográfica poucas vezes vista e um elenco de méritos excepcionais”. Em São Paulo, entre os que não gostaram estava Jean-Claude Bernardet, que em um longo ensaio identificou que ao,contrário do que parece, o filme “faz uma exaltação à igreja”, “ficou preso ao estilo teatral”, “sofre de academicismo” e mostra “falta de febrilidade, resultando num “filme artesanal bem feito, não chegando a ser expressão de artista”. A conquista da Palma de Ouro teve como complemento consagrador a indicação, em 1963, ao Oscar de filme estrangeiro, no qual o vitorioso foi o longa francês Sempre aos Domingos, de Serge Bourguignon. A quem quiser rever ou conhecer esse clássico, o Canal Brasil, programou uma exibição de O Pagador das Promessas para as 22h desta quarta-feira. Leonardo Villar e Glória Menezes falam sobre experiência de ganhar a Palma de Ouro com “O Pagador de Promessas” Por Marcelo Perrone e Vanessa Franzosi, publicado em Zero Hora, em 23/05/12 Leonardo Villar – Foi memorável. Eu havia feito o papel do Zé do Burro no teatro. Estrear no cinema com um prêmio desta importância é inesquecível. Foi um grande empurrão na minha carreira. O que me marcou muito também foi a convivência com 46 atores e diretores que eram ídolos do cinema, como Marcello Mastroianni e François Truffaut. Estávamos todos no mesmo hotel, e era comum nos encontrarmos no restaurante. Posso dizer que fiquei deslumbrado. Glória Menezes – Foi meu começo, não sabia nem como fazer cinema. Depois de receber um prêmio de atriz revelação no teatro, em 1960, o Anselmo (Duarte) me convidou para o filme. Fui para fazer o papel da prostituta, e Maria Helena Dias faria o papel da Rosa. Mas ela pegou uma pneumonia. E as primeiras filmagens eram feitas à noite, o equipamento era todo alugado e tinha tempo para devolver, não dava para esperar ela melhorar. Então, eles pintaram meu cabelo, que eu estava loira, e, do dia para a noite, eu estava filmando. Fico pensando, hoje, na responsabilidade que me deram. Eu tão crua, começando mesmo. Fui pela minha intuição e pelo que o Anselmo me dirigiu, e aprendi muito com ele. Ele entendia de cinema como ninguém. Então, fui para a Bahia assim e, quando me dei por conta, estava em Cannes. A PALMA DE OURO Villar – Quando nos preparávamos para a sessão de gala, à noite, já tinha o burburinho de que o filme tinha agradado e entrado na lista de favoritos. Lembro que estávamos reunidos no quarto do Anselmo, bebendo, e ouvimos gritos no corredor. Era alguém que vinha avisar que tínhamos ganhado a Palma de Ouro. Logo depois, na cerimônia de premiação, foi uma consagração. Todos aplaudiam de pé, inclusive o François Truffaut, membro do júri. Falavam que eu e Mastroainni, que estava em Divórcio à Italiana, podíamos ganhar como melhor ator, mas o júri optou por uma premiação coletiva. Sinceramente, um prêmio individual não me deixaria tão feliz como a conquista da Palma de Ouro. Minha vaidade, alimentei com críticas boas como a que o Truffaut escreveu nos Cahiers do Cinéma (o diretor francês colocou o brasileiro entre os grandes atores do mundo). Glória – Houve uma apresentação à tarde. À noite, era a de gala. Na apresentação da tarde, fiquei surpresa que o público aplaudiu as cenas. Quando terminou, aplaudiram de 47 pé. À noite, quando nós saímos da exibição, era um monte de gente pedindo autógrafos. No Brasil, eu tinha recém feito alguns trabalhos, não tinha esse reconhecimento. De repente, estava num festival importantíssimo, dando autógrafo. Foi uma emoção incrível. IMPACTO NA CARREIRA Villar – Recebi sondagens para trabalhos fora do Brasil, mas nada mais que isso. Eu tinha uma carreira muito sólida aqui. Trabalhar no Exterior era uma aventura, e é ainda hoje. Tem de ter um bom agente, tem o problema da língua. Gosto de fazer cinema. E por muito tempo tentei conciliar com o teatro e a televisão. Mas, no Brasil, cinema e teatro são luta, e televisão é sobrevivência. Meu último trabalho no cinema foi Chega de Saudade. Na televisão, foi a novela Passione. Recebo convites para atuar, mas não tenho muita disposição. Tenho alguns incômodos e limitações. Para atuar, preciso sentir prazer. Se eu receber um convite irresistível, vou até de muletas (risos). Glória – Na volta ao Brasil, fomos recebidos com bandeirinha na rua, em cima de um caminhão de bombeiros. O público reconheceu, aplaudiu tanto, foi muito bonito. Foi um estímulo muito grande nesse meu início de carreira. Dificilmente, um ator ou uma atriz têm um começo assim. Recebi convites para trabalhar no Exterior. Mas não tinha a menor possibilidade porque eu já tinha dois filhos, estava me separando do meu primeiro marido, tinha muitas responsabilidades aqui no Brasil. Não deu nem para pensar em ficar por lá. E acho que fiz bem, porque meu sucesso foi aqui. O LEGADO Villar – Acho que houve preconceito de algumas pessoas no Brasil pelo fato de Anselmo ser um grande galã do cinema popular e só ter feito um filme antes, a chanchada Absolutamente Certo. Muita gente não entendeu como ele foi lá e fez O Pagador de Promessas, filme tecnicamente muito bem realizado, com bom ritmo de interpretações, e que ainda ganha a Palma de Ouro. Se o filme fosse feito com os recursos de hoje, poderia ser melhor na questão do som, já que teve de ser dublado. É um filme que permanece vivo e atual. Quanto à questão da rejeição pelo pessoal do 48 cinema novo, para mim não existe cinema novo nem cinema velho, existe cinema. Os grandes filmes da história são os que sobrevivem a modismos e cultos. São os filmes normais, bem feitos. Glória – Acho que o filme fez muito sucesso porque é épico. Não tem moda de roupa, de cabelo, ele não ficou datado. É um cinema moderno, ágil. Tinha uma câmera sempre em movimento. E fico imaginando como eu iria reagir se fosse convidada para fazer com a minha experiência de hoje. Quando vejo O Pagador de Promessas, e aparece todo o povo na escadaria, custo a me encontrar. Não estava preparada para fingir que eu era a Rosa. Fui de corpo e alma com a Rosa, sem pensar se iria fotografar bem ou não. Zero Hora conversou com os dois protagonistas de O Pagador de Promessas. Leonardo Villar, 87 anos, falou por telefone, do Rio, onde mora. Glória Menezes, 77, encontrou a reportagem em sua passagem por Gramado, no fim de semana. Ambos eram estreantes em cinema quando estrelaram o filme que ostenta o mais importe prêmio já conquistado por uma produção brasileira, a Palma de Ouro do Festival de Cannes. François Truffaut e a Palma de “O Pagador” Por Sérgio Rizzo, publicado em Ultrapop , em 24/05/12 Até o “Jornal Nacional” registrou ontem o cinquentenário da Palma de Ouro de melhor filme concedida a O Pagador de Promessas, produzido por Oswaldo Massaini e dirigido por Anselmo Duarte, com base na peça de Dias Gomes. A cerimônia de encerramento e premiação do Festival de Cannes de 1962 foi realizada em 23 de maio. Outros prêmios foram recebidos por brasileiros em Cannes, antes e depois, como o de melhor filme de aventuras para O Cangaceiro (em 1953), de melhor direção para Glauber Rocha (em 1969, por O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro) e de melhor atriz para Fernanda Torres (em 1986, por Eu Sei que Vou te Amar). 49 Nenhum desses prêmios se compara à Palma de Ouro de melhor filme, claro, e por isso a equipe de O Pagador foi recebida em desfile de rua quando voltou ao país, como as seleções de futebol que conquistaram as cinco Copas do Mundo. A mostra competitiva de Cannes em 1962 exibiu 34 longas (no festival deste ano, em andamento, são apenas 22). Basta conferir os demais premiados para ter ideia da concorrência de peso enfrentada por O Pagador. O prêmio especial do júri, uma espécie de vice-campeonato em festivais, foi dividido por O Processo de Joana D’Arc, do francês Robert Bresson, e O Eclipse, do italiano Michelangelo Antonioni — dois dos principais cineastas europeus do século 20. Outro monstro do cinema, o espanhol Luís Buñuel, recebeu o prêmio da crítica por O Anjo Exterminador. O grego Michael Cacoyannis ficou com o prêmio de melhor adaptação — e dividiu ainda, com outros dois longas, o prêmio da Comissão Superior Técnica — por Electra. O prêmio de melhor comédia foi para Divórcio à Italiana, do italiano Pietro Germi. Longa Jornada Noite Adentro, do norte-americano Sidney Lumet, recém-lançado em DVD no Brasil, recebeu um prêmio de interpretação para os quatro atores principais (Katharine Hepburn, Ralph Richardson, Jason Robards e Dean Stockwell). Outro prêmio de interpretação foi concedido aos dois atores principais de Um Gosto de Mel, do inglês Tony Richardson (Rita Tushingham e Murray Melvin). De mãos abanando, saíram diretores de primeira linha como o norte-americano John Frankenheimer (Juventude Selvagem), o austríaco — radicado nos EUA — Otto Preminger (Tempestade em Washington), a francesa Agnès Varda (Cléo das 5 às 7), o indiano Satyajit Ray (A Deusa) e o inglês Jack Clayton (Os Inocentes). Em 1962, o júri que definiu os prêmios de longas teve 11 integrantes (em 2012, são apenas nove). O presidente foi o escritor japonês Tetsuro Furukaki. Entre seus colegas, 50 estavam alguns diretores: o francês François Truffaut, o polonês Jerzy Kawalerowicz e o italiano Mario Soldati. Foi Truffaut, aliás, quem fez circular a versão de que O Pagador teria sido escolhido para apaziguar as diferenças entre os jurados, divididos entre os filmes de Buñuel, Antonioni, Cacoyannis, Germi e Bresson. Truffaut, de acordo com o próprio, teria sugerido premiar o filme brasileiro por sua “simplicidade e força temática”, com o objetivo de estimular uma cinematografia emergente do Terceiro Mundo. Essa história é recontada pelo cineasta Walter Lima Jr., com as palavras acima, no livro “Viver Cinema”, de Carlos Alberto Mattos. Não sobrou ninguém para falar hoje do episódio: a última sobrevivente do júri de Cannes em 1962, a atriz francesa Sophie Desmarets, morreu em 13 de fevereiro passado, aos 89 anos. Disputas por direitos marcam a comemoração dos 50 anos da Palma Por Paulo Henrique Silva, publicada no jornal Hoje em Dia, em 02/04/12 O que era para ser só festa ganha outros contornos com as disputas por direitos autorais e de comercialização que marcam o aniversário de 50 anos da conquista da Palma de Ouro no Festival de Cannes pelo filme O Pagador de Promessas, o prêmio mais importante recebido por uma produção brasileira. Até mesmo o único diploma concedido a um filme da América do Sul pelo tradicional festival francês é hoje motivo de briga entre os herdeiros do diretor Anselmo Duarte e do produtor Oswaldo Massaini. O cabo de guerra prejudica em boa parte a programação que celebraria a façanha, ocorrida em 23 de maio de 1962. Um dos projetos, envolvendo a restauração do filme, está parado devido ao impasse. Ricardo Duarte, filho de Anselmo, não conseguiu autorização da Cinemateca Brasileira para retirar a cópia do filme de seus depósitos 51 climatizados e iniciar a recuperação, porque nos registros constam que o filme é propriedade da Cinedistri (hoje Cinearte), comandada por Aníbal Massaini. “É a primeira vez que digo isso em público: pouca gente sabe que meu pai é coprodutor do filme, com 50% dos seus direitos. Como meu pai não era uma pessoa vaidosa, o Oswaldo pediu a ele que só colocasse o nome como diretor, por já ter bastante notabilidade. Assim, nos créditos só aparece Oswaldo como produtor. Localizei o contrato e já entrei com processo na Ancine (Agência Nacional de Cinema) para reparar essa injustiça e poder restaurar a obra do meu pai”, afirma Ricardo. Aníbal já recebeu ofício da Ancine sobre a mudança nos registros, mas alega que o contrato de produção ainda assim não permite que Ricardo inicie o projeto. “A empresa responsável pelo planejamento e distribuição é exclusivamente a Cinedistri. A titularidade do filme é nossa. Embora tenha participação societária, isso não outorga a Anselmo e seus herdeiros os direitos que são exclusivos nossos. Ricardo apenas quer locupletar-se com o filme”, acusa o produtor. Embora admita que os direitos de comercialização pertençam à Cinedistri, o herdeiro salienta que seu projeto não tem caráter comercial, prevalecendo apenas o desejo de restauração. Com R$ 500 mil aprovados pela lei estadual de incentivo ao cinema, de São Paulo, a intenção de Ricardo é, segundo ele, tornar o filme disponível em novas mídias (DVD e blu-ray) e distribuir dez mil cópias gratuitamente em bibliotecas, cineclubes e entidades culturais. “Não quero fazer dinheiro com isso”, garante. Ricardo estuda entrar na Justiça e requerer a prestação de contas que o contrato exige pela comercialização do filme e que, segundo ele, jamais foi feita. “O contrato diz que é obrigação da distribuidora prestar contas mensais, mas eles não fazem nem mesmo as mensais. O Canal Brasil, em que Aníbal seria um dos sócios, exibe os filmes do meu pai e nunca recebemos nada por isso. Vamos ver qual é a melhor estratégia para fazer uma auditoria plena e sermos ressarcidos”, salienta. O produtor explica que a cessão para exibição no Canal Brasil é por tempo e que a prestação de contas já teria sido realizada com o pai dele ainda em vida. “Quando 52 expirar o termo de vigência dessa cessão ou ocorrer outro tipo de exibição, um relatório será feito para a realização da partilha. Mas o Ricardo está tão desesperado que deveria ter nos notificado de que as eventuais receitas do filme deveriam ser prestadas ao espólio de Anselmo Duarte e que o inventariante seria fulano de tal. Nunca recebemos nenhum documento dele”. Disputa pelo troféu No ano passado, após a exposição da Palma de Ouro no Festival de Gramado, ele teria enviado carta a Ricardo reclamando do fato de o prêmio ter sido doado, em comodato, ao Centro Cultural Anselmo Duarte, em Salto, cidade do interior paulista onde o diretor nasceu. Aníbal observa que uma cláusula no contrato, acrescida em agosto de 1962, estipulou que todos os prêmios conquistados que não fossem nominais pertenceriam igualmente a Anselmo e Oswaldo. “O Ricardo não tem a integral propriedade sobre a Palma, porque é de ambos e somente as duas partes podem decidir onde ela deve ficar”, justifica Aníbal. O filho de Anselmo contra-ataca dizendo que “um fato inconteste é que Cannes é um festival de autor e que a Palma sempre é entregue ao diretor do filme. Conseguimos uma declaração da direção do festival e ela foi claríssima, dizendo que os produtores não são convidados. Só paga as despesas de hotel e viagem para diretor e elenco”. Ricardo prossegue ressaltando que, “mesmo se não tivéssemos direito sobre o certificado, a lei diz que quem o detém por mais de cinco anos passa a ser dele. É o chamado uso capião de bem móvel”. Aníbal declara que a opinião de um festival não pode se sobrepor a um contrato adotado pelas duas partes e lamenta que as ações de Ricardo, observando que seu pai sempre foi generoso com Anselmo. “Oswaldo foi um pai para ele, empatando recursos para que ficassem em sociedade”. Aníbal lembra que cada sócio teria que dar Cr$ 5 milhões para a produção, mas que Anselmo só entrou com Cr$ 1,5 milhão. Os outros Cr$ 3,5 milhões sairiam de um financiamento específico prometido pelo então presidente Jânio Quadros. “Só que Jânio renunciou em seguida. O que Oswaldo fez? Emprestou o dinheiro para descontar nas 53 futuras receitas. Ele entrou com Cr$ 10 milhões para que ele ficasse sócio dele, com 50%. Distribuímos mais de 300 longas-metragens e temos uma trajetória impoluta”, enfatiza o produtor. Ricardo parece determinado a recuperar todos os direitos do filme. “Meu pai era um artista, um homem com a cabeça virada para questões culturais e artísticas. Não se preocupava com dinheiro, não era materialista. Deixou quatro filhos (Ricardo é filho do primeiro casamento, com Myrthes, falecida em fevereiro) e temos nossos direitos. Não é uma questão financeira, mas sim moral”, alega Ricardo. “Três anos depois da morte do pai, que nunca contestou os direitos de comercialização do filme, ele quer mudar as regras do jogo. Só quer aparecer”, defende-se Aníbal. Documentários sobre Massaini e Anselmo Os filhos de Anselmo Duarte e Oswaldo Massaini desenvolvem projetos de documentários sobre seus pais. Aníbal prepara Oswaldo Massaini, uma Paixão pelo Cinema, que mostrará a trajetória de um dos mais importantes produtores do país, mostrando desde o seu início no cinema, como funcionária de uma distribuidora de filmes brasileiros, em 1937. Ele começou a atuar na área de produção em 1950, com Ruas Sem Sol, assinando mais de 60 filmes nessa função, além de ter trabalhado com outros filmes apenas como distribuidor. Aníbal já colheu diversos depoimentos, entre eles uma das últimas entrevistas concedidas pelo comediante Chico Anysio, que escreveu roteiros para Oswaldo. Em relação a O Pagador de Promessas, o filme terá imagens da chegada da equipe ao porto de Santos, quando foi recebida por centenas de pessoas. “Como Anselmo tinha medo de avião, voltaram de navio, dois meses depois de recebido o prêmio. Apesar desse tempo, os ânimos não se arrefeceram, com o povo recebendo-os com entusiasmo”, destaca Aníbal. 54 Ricardo Duarte está captando recursos para dirigir Palmas, a Palma é nossa!, que terá depoimento de Anselmo, técnicos e atores que participaram do filme. “Quando percebi que papai já estava bastante doente, reuni uma equipe e colhi dois dias de entrevistas com ele. A memória já estava prejudicada, devido ao Mal de Alzheimer, mas como eu sabia de todas as histórias dele, dava o gatilho para ele relembrar das situações”, conta. Ele destaca que, no final da vida, Anselmo já não tinha mais aquela acidez da juventude. “Estava mais paciente e gostava de lembrar que as pessoas que falaram mal dele foram até ele para pedir desculpas, reconhecendo a sua genialidade”, afirma. O diretor foi muito combatido após a conquista da Palma de Ouro, especialmente pelo grupo do Cinema Novo. O jornalista Oséas Singh Jr., autor da biografia “Adeus Cinema”, publicada em 1993, lembra que Anselmo sempre foi uma pessoa difícil e que tinha um grande complexo de inferioridade por não ter formação acadêmica. “Os cinemanovistas tinham em sua maioria e ele se ressentia disso. Não percebia que sua formação, na prática, era mais sólida de que muitos teóricos”. Singh recorda que ele passou a renegar o seu passado de galã da Vera Cruz, por achar que seus trabalhos como ator poderiam comprometer a imagem de diretor talentoso. Na época do lançamento do livro, o autor viajou o Brasil inteiro ao lado de Anselmo. “Ocorreram episódios engraçados, como a vez que fomos a Porto Alegre e, devido a um erro de divulgação, não havia ninguém na livraria”. Sobre O Pagador de Promessas, o livro enaltece a vitória sobre produções de diretores consagrados, como Federico Fellini, Luis Buñuel, Vittorio de Sica e Michelangelo Antonioni. “Havia um embate violento entre franceses e italianos em Cannes. Era como Brasil e Argentina no futebol. O filme de Anselmo caiu como uma luva, mostrando que havia um bom cinema feito em outros lugares do mundo”. Baseado em texto de Dias Gomes e filmado na Bahia, o filme tem no elenco Leonardo Vilar, Glória Menezes, Antônio Pitanga, Othon Bastos, Norma Bengell e Dionísio Azevedo. Com imagens em preto e branco, mostra a história de um homem que tenta 55 pagar promessa na Igreja de Santa Bárbara depois que seu burro sobrevive a um raio. O impedimento do padre cria o caos na cidade. Onde foi parar a Palma de Ouro brasileira? Por Luciano Ramos, do Programa Cinema Falado Há exatamente meio século, em 19 de maio de 1962, a três dias do encerramento da sua mostra competitiva, o Festival de Cannes exibia O Pagador de Promessas. O diretor do filme Anselmo Duarte tremia dos pés à cabeça, mas todo o nervosismo se dissipou com os aplausos do público que bradava em coro “le grand prix, le grand prix!” E a angústia se transformou em euforia quando, ao olhar para o camarote do júri, Anselmo viu o seu presidente François Truffaut gritando para a tela “très bien, très bien!” Naquele momento, esse elogio público lhe valeu como antecipação da Palma de Ouro – a única que o cinema brasileiro receberia até os dias de hoje. Curiosamente, seis anos antes, no número 31 da revista Cahiers du Cinéma, lançado em janeiro de 1954, o crítico Truffaut e futuro diretor de Os Incompreendidos publicava o artigo “Uma certa tendência do cinema francês”, no qual inaugurava a trajetória da chamada politique des auteurs − ainda que, em 1948, Alexandre Astruc já tivesse introduzido na revista L´Écran Française a idéia de que o diretor seria o “único progenitor” de um filme. Naquela época um conjunto de textos críticos como os de Truffaut e Jacques Rivette fundamentaram e difundiram a crença na diferenciação fundamental entre o auteur (autor) e o metteur en scène (encenador) no fazer do cinema. Para muita gente isso era um exagero porque, na verdade, qualquer filme resulta do trabalho de várias pessoas em conjunto. Tanto que o próprio editor do Cahiers, André Bazin reconhecera que “… não pode haver uma crítica definitiva do gênio ou do talento, que não leve em conta o determinismo social, a combinação histórica das circunstâncias e o embasamento técnico que em grande medida o determinam”. Em seguida, porém, o crítico americano Andrew Sarris ajudaria a transformar a “teoria do autor” num verdadeiro culto à personalidade de determinados “cineastas”. Em 1962 − ano em que o paulista Anselmo Duarte seria entronizado no mesmo altar em que já se venerava Fellini, Antonioni, Buñuel e tantos outros – Sarris alfinetava Bazin no ensaio Notes on 56 the Auteur Theory: “se os diretores e outros artistas não podem ser arrancados de seus ambientes históricos, a estética fica reduzida a um ramo subordinado da etnografia”. Aceitar integralmente esse ponto de vista, no entanto, significaria reduzir a história do cinema a um mero relatório de diretores (promovidos à condição de autores) e suas obras. “O vencedor da Palma de Ouro é o brasileiro Anselmo Duarte!” Com esse anúncio, o locutor do Festival de Cannes já exprimia um consenso que implicava em desconsiderar não apenas os demais artistas participantes na elaboração da obra premiada, mas todo o contexto social e econômico que possibilitou a sua feitura. Um festival de cinema não é como um torneio de artes marciais, no qual todos os competidores se enfrentam e apenas um sai vitorioso. Na realidade, quem vence aquele tipo de disputa é toda a equipe do filme, representando ali o ambiente cinematográfico a que ele se refere. O nome do diretor, no caso, aparece apenas para dar uma identidade individual a todo esse contingente de pessoas e elementos culturais. Ironicamente, hoje em dia é a própria grande indústria cinematográfica que cuida com todo o carinho dessa noção de autor, utilizando-a como elemento de marketing no lançamento de seus produtos mais sofisticados. Não há dúvida de que Meia Noite em Paris só poderia ser concebido por Woody Allen. Mas será que Rob Marshall pode ser designado como autor do último exemplar da série Piratas do Caribe? Em termos concretos, o episódio da conquista brasileira em Cannes em 1962 resultava historicamente de uma escalada quantitativa e qualitativa, em matéria de produção de cinema no Brasil. No mercado exibidor, os filmes nacionais desfrutavam uma posição até melhor do que a atual − principalmente por conta do apoio num “sistema de estrelas” que fora germinado no rádio e do qual a televisão ainda não tinha se apropriado. Do ângulo financeiro, a tentativa de instalar em São Paulo estúdios tipo “fábricas de filmes” − imitando Hollywood, como a Vera Cruz − não fora bem sucedida. Ainda assim gerou o primeiro título nacional a ser amplamente divulgado e aplaudido no exterior: O Cangaceiro, de 1953, dirigido por Lima Barreto que, por sinal, nunca foi considerado um autor de cinema e terminou a vida esquecido num asilo. Além disso, muitos dos técnicos e artistas europeus reunidos na Vera Cruz pelo cenógrafo e documentarista internacional Alberto Cavalcanti permaneceram aqui no país e 57 agregaram know how e repertório cinematográficos às nossas produções. Inclusive no caso do próprio O Pagador de Promessas − como, por exemplo, o fotógrafo Chick Fowle − e de outros títulos produzidos por Oswaldo Massaini. Esse, aliás, foi o caldo de conhecimento em que Anselmo se formou antes de seu primeiro trabalho como diretor: Absolutamente Certo (1957), outra realização da empresa Cinedistri, de Massaini. Dos anos de 1960 em diante, os integrantes do cinema-novo abraçaram inteiramente a “teoria do autor”. Esta, no entanto, foi retrabalhada por Glauber Rocha de maneira a excluir o chamado “cinema industrial” direcionado para o mercado, reservando-a para o “cinema independente” e soi disant revolucionário. Glauber opunha as tríades “autor, cinema independente e revolução” a “artesão, cinema industrial e conformismo”. Apesar de ungido como autêntico autor, no coração da Meca do “cinema de arte”, por um dos pais da política dos autores em pessoa, após sua volta ao Brasil Anselmo Duarte não conseguiu se situar em nenhum dos lados nessa dicotomia acima resumida. Duas décadas depois do triunfo com O Pagador, era compreensível que ele acumulasse frustrações e ressentimentos por ter sido hostilizado ou mal aproveitado por ambos os componentes daquela inequação. Ou seja, um resultado de 9 títulos como diretor, sem aprovação de público nem de crítica − descontando o excelente Veredas da Salvação (1965), injustamente mal recebido pelos comentaristas da época em que foi lançado. Então, em 12 de agosto de 1980 Anselmo pediu emprestados o diploma e o troféu e nunca mais os devolveu a Massaini, guardando-os consigo até morrer em 7 de novembro de 2009. Em seguida, seu filho Ricardo Duarte doou a relíquia à cidade de Salto, onde o diretor nascera em 1920. E assim, noventa anos mais tarde, em abril de 2010, aquele município inaugurava um teatro chamado Centro de Educação e Cultura Anselmo Duarte e nele instalou a Sala Palma de Ouro, local onde ela se encontra agora em exposição pública. Na cerimônia de inauguração, Ricardo Duarte declarou: “Meu pai sempre dizia que a Palma é dada ao país e não ao diretor, por isso ela é nossa”. Do ponto de vista jurídico, no entanto, essa questão ainda se encontra em aberto, aguardando uma decisão judicial. Embora, de acordo com o regulamente de Cannes até 1965, a Palma era destinada ao produtor e não para o diretor, que concorria a prêmio específico. No entanto, o crítico Jean-Claude Bernardet lembra que “o Massaini sem o Anselmo talvez não tivesse feito 58 O Pagador, mas o Anselmo sem o Massaini também não. Agora, nenhum dos dois teria feito o filme sem o Dias Gomes”. Na verdade, a menção ao dramaturgo Dias Gomes como um dos “pais da criança” poderia ser estendida a Flávio Rangel, que dirigira o texto no teatro; a Carlos Coimbra, que montou o filme; a Chick Fowle que o fotografou e ao ator Leonardo Vilar, que deu corpo e alma ao personagem. Aliás, Anselmo dizia que Massaini chegou a pensar no cômico Mazzaropi como protagonista. Por sua vez, Dias Gomes preferia que o próprio Flávio Rangel dirigisse o filme. Chegamos assim à premissa óbvia de que os filmes são criações coletivas e, na maior parte das vezes, o diretor é apenas o capitão do time. Ou quem sabe esse papel preponderante de líder seria, em última análise, do produtor? Autor de Cinema Brasileiro – Propostas Para Uma História, Jean Claude Bernardet lembra que “é necessário compreender as estruturas de produção para entender a história do cinema” e, no depoimento para um documentário sobre o realizador de O Pagador de Promessas, observa que “atualmente, o produtor é considerado um instrumento do diretor. Mas não esse era o caso do Massaini. Era ele quem fazia a proposta do projeto. Quer dizer, ele era o proponente. A partir de certo momento na história do cinema brasileiro, o diretor vira seu próprio produtor, ainda que não se comporte essencialmente como tal… E julga que o produtor precisa ficar a reboque dele enquanto diretor. Essa, porém, não era a atitude do Massaini”. De fato, segundo o produtor Luis Carlos Barreto, “Massaini se envolvia com o projeto em todos os aspectos. Participava das ideias do roteiro, do set de filmagem, da divulgação do filme e da elaboração das peças de publicidade. Portanto, atuava nos níveis criativo, financeiro, administrativo e comercial”. Da outra extremidade da cadeia produtiva, a atriz Dercy Gonçalvez (Rio de Janeiro, 1907-2008) também ofereceu o seu depoimento: “Fazia-se cinema bom, com muito pouco dinheiro. Era uma luta danada pela sobrevivência. Às vezes, na hora do almoço a produção mandava todo mundo embora, pra comer em suas casas. O Massaini e Watson Macedo não tinham patrocínio, não tinham quem ajudasse. Faziam com o dinheiro deles, ou até mesmo sem dinheiro, numa dificuldade danada. Esses são os verdadeiros homens do cinema: eram heróis e imprensa ainda metia o pau”. 59 Após a morte de Massaini em 25 de maio de 1994, a Cinemateca Brasileira organizou um ciclo de 11 filmes produzidos por ele e, a propósito do evento, o crítico Inácio Araújo declarou que “é uma formidável ocasião para aprofundar uma questão que até hoje o cinema brasileiro deixou de lado: a arte de produzir.” Já naquela época, o jornalista da Folha de São Paulo assinalava que “à força de serem negligenciados os produtores desapareceram… mas a questão permanece: reciclar o papel do produtor, promover o seu convívio com um cinema em que o diretor tornou-se autor e principal estrela, encontrar o equilíbrio entre concepção artística e comércio são aspectos para os quais a cinematografia ainda não encontrou respostas convincentes. Uma função central que o cinema brasileiro negligenciou a muito tempo. Talvez por isso esteja na tanga em que está.” Apesar das diversas e severas restrições à noção de autor no cinema, ainda hoje ela continua sendo considerada por muitos como uma instância determinante, pairando soberana acima até da esfera econômica. No fundo, a exposição desse conflito entre produtor e diretor em função da “posse” da Palma de Ouro serve aqui para defender a necessidade de levantamentos históricos mais detalhados e de uma reflexão mais aprofundada acerca da história da produção e da comercialização de filmes em São Paulo. Disponível em http://abraccine.wordpress.com/2012/05/28/50-anos-da-palma-de-ouro/ 60