Conselho Editorial: Profª Ms Gláucia Cristina Negreiros da

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Conselho Editorial: Profª Ms Gláucia Cristina Negreiros da
Conselho Editorial:
Profª Ms Gláucia Cristina Negreiros da Silva Fonseca
Profª Ms Jessy Marly Venússia
Profª Ms Maria de Lourdes Seba Roder
Marina Germano Arruda
Diretora Presidente
Edu Arruda Júnior
Diretor Geral
Editora Responsável
Gláucia Cristina Negreiros da Silva Fonseca
Organização
Maria de Lourdes Seba Roder
Maria Aparecida Mendes Borges
Ideraldo Bonafé
Diretor Acadêmico
Jacy Vanderley de Abreu
Diretor Financeiro
Nicanor Alves de Brito
Diretor Administrativo
Revisão Textual
Maria de Lourdes Seba Roder
Coordenações de Curso
Gláucia Cristina Negreiros da Silva Fonseca
Pedagogia
Formatação
Profª Ms Jessy Marly Venússia
E-mail
[email protected]
Maria de Lourdes Seba Roder
Letras
Adail José da Silva
Ciências Contábeis
Ernesto Borba
Administração e Seqüenciais
As revistas são um dos principais “cartões de visitas” das
instituições acadêmicas. É através delas que se pode distinguir o
perfil pedagógico e sócio-cultural que as academias têm. Claro que
isso é muito mais complexo e amplo e envolve outras esferas que
PREFÁCIO
não cabem ser tratadas aqui, mas a produção de uma revista ou
Mário Cezar Silva Leite 1
periódico demonstra bem a vocação da instituição. Marca claramente
a vocação acadêmica, didático-pedagógica da instituição. Por outro
Há várias formas de se prefaciar ou apresentar um novo
número de uma Revista. Todas válidas e, de certo modo, adequadas.
O fato de não haver uma receita pronta liberta mais, mas também
responsabiliza mais.
Minha opção aqui, como prefaciador,
lado, poucos sabem a dificuldade enfrentada por aqueles ou aqueles
que se propõem a realizar tal tarefa. Sísifo é uma boa imagem de
referência nesse caso. Mas não ser fácil aumenta a honra, o prazer e
a vitória. Como diria Paulo Freire:
apresentador, convidado – o que implica dizer, sem relação direta
com a produção dessa Revista –, é colocar-me como alguém que já
A Educação é um ato de amor, por isso, um ato
de coragem /.../. É fundamental, /.../, partirmos de
que o homem, ser de relações e não só de
contatos, não apenas está no mundo, mas com o
mundo. (FREIRE, 2003, pp.104/47)
vivenciou em seus múltiplos ângulos a produção de um Periódico.
Como idealizador, como organizador, como editor, como autor,
como consultor.
Quem circula por determinadas instâncias das academias, das
Essa idéia de Paulo Freire, sem grandes desdobramentos
universidades, sabe, ou pelo menos deve imaginar a importância que
aqui, é fundamental porque coloca-nos diante daquilo que é se não a
a produção e publicação de um periódico tem para os cursos, os
essência do trabalho em educação – amor, coragem e “estar com o
departamentos, as faculdades, os professores, os alunos e,
mundo” – é
fundamentalmente, para a instituição e a comunidade como um todo.
empenhados e comprometidos quer num sentido político mais
1
engajado quer no sentido mais dinâmico do envolvimento e
Doutor em Comunicação e Semiótica pela PUC/SP. Professor do Instituto de Linguagens
da UFMT,. Escritor e ensaísta.
sua mola propulsora. É o que move educadores
comprometimento com a educação e o ensino. E até que ponto só
isso já não demonstra um grande “engajamento político.”?
que vejo, quando há a seqüência de um periódico como a Revista
Preocupar-se, refletir e produzir (fundamentalmente, este último)
Educação e Linguagem. Uma comunidade que se conhece,
para que determinados quadros educacionais incipientes ou
reconhece, que partilha e compartilha sonhos, projetos, trabalhos.
deficitários se modifiquem e se transformem é a prova de uma ação
Um periódico acadêmico é efetivamente um elo, um elemento de
de “estar com o mundo”. Já sabemos que as infindáveis fases de
congregação de uma comunidade. Conecta a comunidade consigo
discursos, recheados de chavões e estereótipos, encerram-se em si
mesma à medida em que traz à luz pesquisas e trabalhos
mesmas e pouco ou nada acrescentam onde quer que seja. A prática
desenvolvidos por seus membros –
move, desloca, equaciona, indica erros e acertos, gera movimento.
pesquisas e trabalhos
e estimula essas mesmas
num processo importantíssimo de retro-
A vida contemporânea lança-nos na sensação de que tempos e
alimentação – e conecta a comunidade com outras comunidades
espaços se diluíram, que tudo pode ser vivido por muitos meios e
afins e com o todo da malha cultural e social. O movimento se
que não precisamos mais pertencer a um determinado lugar e a um
configura entre os fluxos internos e externos.
determinado tempo. Ledo engano! Quanto mais o mundo se
Desse modo, minha honra, como apresentador, se amplia na
globaliza e se amplia mais sentimos necessidade de pertencermos a
medida em que sei, e disse um pouco acima, das dificuldades para
um grupo, de fazermos parte de uma comunidade um pouco mais
mais essa realização. Esse novo número da Educação e Linguagem
restrita que reconheçamos como nossa e que nos reconheça. A idéia
deve ser recebido com “toda pompa e circunstância”, deve ser
da pertença, o pertencimento, o reconhecimento tem sido o grande
perspectivado na importância que tem como instrumento de
empenho de todos aqueles que se negam a sumir no anonimato e que
produção e inserção educacional. Desse modo, minha honra, como
estão “com o mundo”. Ainda que já tenhamos a clara consciência de
apresentador, se amplia não porque sei das dificuldades, mas porque
que as identidades e as pertenças são “invenções” nossas e que é
esse novo número – com artigos que se espraiam desde a reflexão
muito perigoso e arriscado pensarmos em núcleos identitários
sobre marcadores discursivos no/do falar cuiabano, análise das
rígidos e fixos (o que é impossível de se estabelecer) é preciso pelo
marcas e implicações do Movimento da Matemática Moderna
menos balizar elos de relações e conexões entre os grupos até
(MMM) nas práticas escolares, sobre a obra de Nelida Piñon, até a
mesmo para que eles se estabeleçam como grupos distintos. E é isto
prática da supervisão escolar, entre outros – revela, essencialmente,
a superação das dificuldades. Revela o compromisso com a
educação. Revela o “estar com o mundo” para que ele seja diferente
e melhor.
SUMÁRIO
Junho de 2008.
Mário Cezar Silva Leite.
PREFÁCIO
Mário Cezar Silva Leite
EDUCAÇÃO ESCOLAR E SEXUALIDADE
FIGUEIREDO,Lilia Márcia de Souza
ZANZARINI, Maria Pinheiro
FERRO, Sônia Maria Pinheiro
A LINGUAGEM E OS CONFLITOS SUBJETIVOS
ANJOS,Degmar dos
Referências Bibliográficas
- FREIRE, Paulo. Educação como Prática da Liberdade. Rio de
Janeiro : Paz e Terra, 2003.
PORTADORES DE SÍNDROME DE DOWN: AS EXPERIÊNCIAS DE
LETRAMENTO NA APAE
COENGA, Rosemar
BRAZ,Ana Paula
SOUZA, Iolanda Aparecida de
REIS, Klimair Roberto dos
PIMENTA, Osânea Nunes
AVALIAÇÃO DA GRADUAÇÃO: A HORA DA REFLEXÃO INTERNA
FONSECA, Gláucia Cristina Negreiros Silva
AS TICs E A APRENDIZAGEM COLABORATIVA
VASCONCELOS,, Maria Auxiliadora Marques
Alonso,Kátia Morosov
LER POR PRAZER: PERSPECTIVAS PARA A LEITURA LITERÁRIA
NA ESCOLA
COENGA,Rosemar
MARCADORES CONVERSACIONAIS/ DISCURSIVOS NO/DO
FALAR CUIABANO
BORGES, Maria Aparecida Mendes
TAYSA, Auda
SILVA, Adna
FERREIRA, Cristiane
LEMES, Glaucilene
SAMARY, Kerzy
SOARES, Rejane
Educação Escolar
MARCAS E IMPLICAÇÕES DA MATEMÁTICA MODERNA NAS
PRÁTICAS ESCOLARES
PINTO, Neuza Bertoni
NÉLIDA PIÑON: UM ENCONTRO COM ALGUÉM QUE SABE
ARTIFÍCIOS DELICADOS E SUTIS
RODER,, Maria de Lourdes Seba
E
TEORIA FREIRIANA
ALMEIDA, Laura Isabel Marques Vasconcelos de
CRÍTICA TEXTUAL: VARIANTES SEMÂNTICAS, SINTÁTICAS E
LEXICAIS NA EDIÇÃO “USPIANA BRASIL 500 ANOS”
BORGES, Maria Aparecida Mendes
Sexualidade
EDUCAÇÃO ESCOLAR E SEXUALIDADE
convivemos.
2
FIGUEIREDO,Lilia Márcia de Souza
ZANZARINI, Maria Pinheiro
FERRO, Sônia Maria Pinheiro
A socialização possui, naturalmente, forte teor coletivo,
integrando os indivíduos em seus grupos, ajustando-os e
subordinando-os ao modo de vida grupal.
RESUMO
Mais amplamente, para além da vida grupal, a cultura da
No âmbito deste trabalho, o foco de interesse é a sexualidade na
escola. Sabemos que a escola, da mesma forma que a família, é um
meio social permeado por uma ideologia que reproduz valores de
dominação e submissão.
sociedade
PALAVRAS-CHAVE: Educação; Sexualidade; Escola; Família.
e Escola, por exemplo, difundem esses significados comuns à
ABSTRACT
sociedade, consolidando a unidade cultural.
In the scope of this work, the focus of interest is the sexuality in the
school. We know that the school, in the same way that the family, is
a social environment permeado by an ideology that reproduces
values of domination and submission.
KEYWORDS : Education; Sexuality; School; Family
reúne
significados
comuns
aos
diversos
grupos
pertencentes a ela. Os meios de comunicação, como jornal, revista,
rádio, televisão, cinema e algumas instituições como o Estado, Igreja
A família, a escola, a sociedade mais ampla fornecem à criança
o repertório de representações da sexualidade. A sexualidade é parte
integrante do ser, é algo que se aprende e exercita em sociedade. É
uma construção pessoal marcada por regras sociais que vão sendo
A educação sexual, teoricamente, é iniciada nas famílias. As
rigorosamente cumpridas, desde cedo.
crianças são educadas pelos pais, irmãos, parentes, amigos, vizinhos,
outras crianças, outros adolescentes, outros adultos. Os projetos
sociais, os objetivos de vida imaginados por nós resultam do sentido
dado às nossas experiências sociais com nossos pais, vizinhos,
professores e com todas essas diferentes pessoas com as quais
Nos pátios, recreios e aulas assistimos à construção de
diferentes masculinidades e suas implicações para a construção de
diferentes feminilidades e contribuímos com elas. É na escola que as
crianças e os jovens completam suas vivências e acabam
incorporando sentimentos, idéias e ações diferenciadas, baseadas
2
Professores Mestres das Faculdades Integradas Mato-Grossenses de Ciências Sociais e
Humanas, Cuiabá-MT
principalmente na biologia de cada um.
Discutindo abordagens relativas à educação sexual, Carneiro
(1997) mostra que os saberes biologicistas e sexológicos se enredam
num discurso cujo enfoque anatômico/fisiológico do corpo
apresenta-o como ente desintegrado:
A desconstrução corpórea desloca os referenciais
simbólicos e rituais em relação à subjetividade e
sexo. Este deslocamento entre subjetividade e
objetividade é o mecanismo de controle que se
constitui
nesta
fragmentação.
(Carneiro,
1997:199)
 A ênfase na informação científica sobre sexo, escolhas e
verdades pessoais (discurso sexológico);
 O estereótipo brasileiro de sensualidade e sedução
incorporados à transgressão como via pré-valente de
obtenção de poder que a ideologia do erótico vem
consolidando em nossa sociedade e cultura.
A eficácia dessa pauta, estimulada pela sua circulação
midiática recorrente, repercute nas escolas, dificultando mais ainda a
superação dos enfoques biologista e sexológico na educação sexual.
Esse deslocamento produz, também, de acordo com Carneiro,
um desencontro, uma não correspondência desse corpo fragmentado
Muito embora já aflorem tentativas de uma abordagem
com o corpo erótico e com as suas sensações e sentimentos. Essa não
dialógica,
estimulada
correspondência concorre para a imobilização e aniquilamento do
comprometidos
sujeito repercutindo na suas (in)decisões, motivações, autonomia e
(principalmente movimento da mulher), as escolas – apesar de
com
pela
ação
questões
de
movimentos
relativas
à
sociais
sexualidade
esforços – não têm conseguido uma efetiva mudança paradigmática
responsabilidade.
superadora dos enfoques biologicistas e sexológicos.
Baseando-se em Richard Parker, Carneiro caracteriza a prática
Se a escola não se conscientizar da importância de seu papel
educativa no Brasil pautada nos seguintes componentes culturais:
 O
patriarcalismo
como
fulcro
feminino/passivo e do masculino/ativo;
ideológico
do
na construção da sexualidade, continuará como afirmam ASKEW e
ROSS (1991), a ser um microcosmo do sexismo da sociedade,
 A inculcação de valores como casamento, monogamia, sexo
procriativo pela narrativa religiosa judaico-cristã;
porque nelas as oportunidades e exigências diferentes ajudam a
 Definições de sexualidade saudável e sexualidade doentia
incorporada a partir do discurso da higiene social veiculado
entre nós por influência francesa e americana no ensino e
treinamento das forças armadas;
somos bombardeados com inúmeras informações e mensagens que
cristalizar posturas e valores vigentes na sociedade. Todos os dias
impõem formas diversas de sentir e agir para homens e mulheres, em
detrimento do “outro” feminino.
Nas escolas, ASKEW e ROSS (1991) assinalam que as
observações sobre as brincadeiras de meninos que estão envolvidos
diferentes feminilidades e contribuímos com elas. É na escola que as
em jogos competitivos, atividade física e uso de grande espaço, em
crianças e os jovens completam suas vivências e acabam
geral, atuam de forma individual e trabalham com mais
incorporando sentimentos, idéias e ações diferenciadas, baseadas
independência.
principalmente na biologia de cada um.
E o começo, para ASKEW e ROSS (1991), está na
Discutindo abordagens relativas à educação sexual, Carneiro
reestruturação curricular com diferentes concepções de trabalho,
(1997) mostra que os saberes biologicistas e sexológicos se enredam
incentivo para que igualdade de oportunidades seja garantida. Para
num discurso cujo enfoque anatômico/fisiológico do corpo
as autoras, uma forma é ensinar às crianças a serem conscientes do
apresenta-o como ente desintegrado:
sexismo que existe entre nós.
pertencentes a ela. Os meios de comunicação, como jornal, revista,
A desconstrução corpórea desloca os referenciais
simbólicos e rituais em relação à subjetividade e
sexo. Este deslocamento entre subjetividade e
objetividade é o mecanismo de controle que se
constitui
nesta
fragmentação.
(Carneiro,
1997:199)
rádio, televisão, cinema e algumas instituições como o Estado, Igreja
Esse deslocamento produz, também, de acordo com Carneiro,
e Escola, por exemplo, difundem esses significados comuns à
um desencontro, uma não correspondência desse corpo fragmentado
sociedade, consolidando a unidade cultural.
com o corpo erótico e com as suas sensações e sentimentos. Essa não
Mais amplamente, para além da vida grupal, a cultura da
sociedade
reúne
significados
comuns
aos
diversos
grupos
A família, a escola, a sociedade mais ampla fornecem à criança
o repertório de representações da sexualidade. A sexualidade é parte
integrante do ser, é algo que se aprende e exercita em sociedade. É
uma construção pessoal marcada por regras sociais que vão sendo
rigorosamente cumpridas, desde cedo.
Nos pátios, recreios e aulas assistimos à construção de
diferentes masculinidades e suas implicações para a construção de
correspondência concorre para a imobilização e aniquilamento do
sujeito repercutindo na suas (in)decisões, motivações, autonomia e
responsabilidade.
Baseando-se em Richard Parker, Carneiro caracteriza a prática
educativa no Brasil pautada nos seguintes componentes culturais:
 O
patriarcalismo
como
fulcro
feminino/passivo e do masculino/ativo;
ideológico
do
 A inculcação de valores como casamento, monogamia, sexo
procriativo pela narrativa religiosa judaico-cristã;
 Definições de sexualidade saudável e sexualidade doentia
incorporada a partir do discurso da higiene social veiculado
entre nós por influência francesa e americana no ensino e
treinamento das forças armadas;
 A ênfase na informação científica sobre sexo, escolhas e
verdades pessoais (discurso sexológico);
 O estereótipo brasileiro de sensualidade e sedução
incorporados à transgressão como via pré-valente de
obtenção de poder que a ideologia do erótico vem
consolidando em nossa sociedade e cultura.
porque nelas as oportunidades e exigências diferentes ajudam a
cristalizar posturas e valores vigentes na sociedade. Todos os dias
somos bombardeados com inúmeras informações e mensagens que
impõem formas diversas de sentir e agir para homens e mulheres, em
detrimento do “outro” feminino.
Nas escolas, ASKEW e ROSS (1991) assinalam que as
observações sobre as brincadeiras de meninos que estão envolvidos
em jogos competitivos, atividade física e uso de grande espaço, em
geral, atuam de forma individual e trabalham com mais
independência.
A eficácia dessa pauta, estimulada pela sua circulação
E o começo, para ASKEW e ROSS (1991), está na
midiática recorrente, repercute nas escolas, dificultando mais ainda a
reestruturação curricular com diferentes concepções de trabalho,
superação dos enfoques biologista e sexológico na educação sexual.
incentivo para que igualdade de oportunidades seja garantida. Para
Muito embora já aflorem tentativas de uma abordagem
dialógica,
estimulada
comprometidos
com
pela
ação
questões
de
movimentos
relativas
à
sociais
sexualidade
as autoras, uma forma é ensinar às crianças a serem conscientes do
sexismo que existe entre nós.
As
adaptações
curriculares
previstas
nos
níveis
de
(principalmente movimento da mulher), as escolas – apesar de
concretização apontam a necessidade de adequar objetivos,
esforços – não têm conseguido uma efetiva mudança paradigmática
conteúdos e critérios de avaliação, de forma a atender à diversidade
superadora dos enfoques biologicistas e sexológicos.
no plano dos indivíduos em uma sala de aula.
Se a escola não se conscientizar da importância de seu papel
A educação escolar deve considerar a diversidade, tendo como
na construção da sexualidade, continuará como afirmam ASKEW e
valor máximo o respeito às diferenças, não o elogio à desigualdade.
ROSS (1991), a ser um microcosmo do sexismo da sociedade,
As diferenças não são obstáculos para o cumprimento da ação
educativa, podem e devem, portanto, ser fator de formação da
visão burocrática de intervenção. Pretende-se que a leitura e a
cidadania.
discussão sejam feitas nas escolas e que treinamentos rápidos e
A atenção à diversidade é um princípio comprometido com a
massivos garantam a implantação. Essa pretensão reproduz uma
equidade, ou seja, com o direito de todos os alunos realizarem as
visão autoritária da educação, ao privilegiar os canais burocráticos
aprendizagens fundamentais para o seu desenvolvimento e
como mediação e ao mesmo tempo como imposição. Não se leva em
socialização.
conta que, como mostram FREIRE (1990), APPLE (1997) e
GIROUX (1983), pela contradição, se a escola é aparelho de
É apresentada no documento uma série de temas atuais que
reprodução é também espaço de resistência.
nem sempre são contemplados nas áreas tradicionais do currículo,
mas que deveriam ser abordados para “contribuir para a formação de
A escola, ao considerar a diversidade, tem como valor máximo
cidadãos capazes de intervir criticamente na sociedade em que
o respeito às diferenças – não o elogio à desigualdade. As diferenças
vivem”. O meio ambiente, a saúde, a orientação sexual, a ética, a
não são obstáculos para o cumprimento da ação educativa, podem e
pluralidade cultural e os estudos econômicos são temáticas que
devem, portanto, ser fator de enriquecimento.
devem estar presentes transversalmente no currículo do Ensino
Essa atenção à diversidade, como princípio organizativo do
Fundamental. Nestes temas, que foram reunidos sob a denominação:
currículo e da ação educativa é um pressuposto das teorias pós-
convívio social e da escola, o esclarecimento de dúvidas e
críticas (SILVA, 1995), um objetivo da educação escolar (PCNs,
curiosidades sobre a sexualidade, é importante que a escola
1997), um desafio que compele as duas pontas do sistema
contribua para que a criança discrimine as manifestações que fazem
educacional.
parte da sua intimidade e privacidade, das expressões que são
acessíveis ao convívio social.
A pesquisa educacional é chamada a produzir conhecimentos
que venham oferecer subsídios às duas pontas do sistema.
As pesquisas de campo no meio escolar têm mostrado,
Este trabalho se coloca na perspectiva de contribuir, através da
entretanto, que as práticas reproduzem concepções conservadoras
micro-abordagem da sala de aula, com elementos que possam
que não dão suporte à orientação sexual. Os PCN’s revelam uma
subsidiar a prática docente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
APPLE, Michel W. Os Professores e o Currículo: Abordagens
Sociológicas. Lisboa: Educa, 1997.
ASKEW, Sue & ROSS, Carol. Los Chicos no Lhoran: el sexismo en
educación. Barcelona. Piados, 1991.
CARNEIRO, Patrícia. Um lugar de desejo – reflexões sobre a
questão da educação e sexualidade In: SILVA, L. Heron da.
FREIRE, Paulo. Pedagogia da Autonomia. Saberes necessários à
prática educativa. 14. ed. São Paulo: Paz e Terra, 1996.
GIROUX, Henry. Pedagogia Radical – Subsídios. Trad. Dagmar M.
L. Zilas. Coleção Educação Contemporânea. São Paulo: Cortez,
1983.
Parâmetros Curriculares Nacionais: Introdução; pluralidade cultural,
orientação sexual/Secretaria de Educação Fundamental. Brasília,
MEC/SEF: 1997.
SILVA, T. T. (Org.) Alienígenas na sala de aula: uma introdução
aos estudos culturais em educação. Petrópolis: Vozes, 1995.
SIMMEL, George. Sociologia. SP. Ática, 1983
.
.
A Linguagem
e os
conflitos
subjetivos
A LINGUAGEM E OS CONFLITOS SUBJETIVOS
Anjos3, Degmar dos
Eu é um Outro
– Rimbaud
Ando muito completo de vazios...
– Manoel de Barros
RESUMO
Neste artigo, aponto que o processo de aprendizagem de uma língua
mobiliza as bases psíquicas do sujeito e está relacionado a processos
identificatórios e identitários. Palmilhando a psicanálise lacaniana,
explicito os conceitos de sujeito como ser clivado e fragmentado,
tendo o inconsciente estruturado como linguagem; de identificação
como processos dissolvidos em traços que já se encontram
impressos no sujeito, que determinam seu lugar discursivo e
modificam continuamente suas identidades; e de identidade como
construção imaginária com aparência de totalidade, uma construção
instável, que sofre as oscilações constantes das identificações e
permite ao sujeito identificar-se como o eu que fala.
PALAVRAS-CHAVE: linguagem; inconsciente; identidades.
In this article, I point out that the process of learning a language
mobilizes the psychic bases of the subject and it´s linked to
identification and identity-related processes. Following Lacanian
psychoanalysis, I make explicit the concepts of a subject as a
cleaved and fragmented being, having their unconscious like a
language; of identification as processes dissolved into traits which
are already engraved in the subject, which determine their discursive
place and modify their identities continuously; and of identity as
imaginary construction with a wholeness-like appeareance, an
unstable construction, that suffers the constant fluctuation of
identifications and allows the subject to identify themselves with the
"I" who speaks.
KEYWORDS: language; unconscious; identities
Palavras introdutórias
Conforme nos informa Coracini (2003a, p. 13), o tema
“identidade” é uma das preocupações da contemporaneidade a
preocupar os estudiosos de dentro e de fora da academia, nas
diversas áreas de economia, política, psicanálise, linguagem,
educação, etc. Em grande parte, essa efervescência do tema se deve
às grandes mudanças ocorridas por conta dos processos econômicos,
ABSTRACT
sociais e políticos em tempos de globalização. A compressão do
tempo-espaço
3
Degmar dos Anjos é Mestre em Estudos da Linguagem pela UFMT. Especialista em
Didática e Metodologias do Ensino pela UNOPAR. Pesquisador da relação entre a
linguagem e a psicanálise. Foi professor no Curso de Letras da UFMT, atualmente é
Professor e Pesquisador no CEFET/MT e professor convidado de instituições como ESUD,
IDP, ICE, entre outras. [email protected]
afetou
as
diversas
esferas
de
situações
de
comunicação, tecnologia, ciência, levando um indivíduo, um povo
ou um grupo social a se interessar por questões de linguagem e
identidade. Se, por um lado, os efeitos da força da globalização
econômica produzem a centralização e a homogeneização de tudo e
que já vinha crescendo desde a década de noventa, obrigatório nas
de todos, engolfando diferenças na busca de um mercado global de
escolas brasileiras a partir de sete de julho de 2005. Nessa data, o
consumo, por outro, há também um efeito de resistência em que
Congresso brasileiro aprovou definitivamente a Lei nº 11.161/2005,
línguas minoritárias ou grupos marginalizados acirram as diferenças
que torna obrigatória a inclusão do ensino do espanhol em todas as
e lutam por sua sobrevivência e espaço na sociedade.
escolas de ensino médio do País, estabelecendo que as três séries do
No Brasil, o advento do MERCOSUL, em 1991, foi um
ensino médio devem oferecer obrigatoriamente a possibilidade de
acontecimento a provocar novas configurações de ordem econômica
estudar a língua espanhola. Com a nova lei, já referendada pelo
4
entre o Brasil, a Argentina, o Paraguai e o Uruguai que, a exemplo
presidente da República, chegou ao fim um debate que principiou
da União Européia e da ALCA, buscou a integração em nível
em 1991, quando a discussão relacionada à necessidade de se ensinar
econômico e político do lado da América do Sul para se fortalecer
a língua espanhola nas escolas públicas ganhou força no Brasil.
como bloco perante os mencionados. Com isso, é notável a presença,
cada vez mais acentuada, do interesse pela língua espanhola. Sua
crescente importância, por efeito do MERCOSUL, determinou sua
inclusão nos currículos escolares, principalmente nos Estados
limítrofes com países onde o espanhol é falado. A aprendizagem do
espanhol, no Brasil, e do português, nos países de língua espanhola
presentes nesse bloco econômico, tem contribuído para o
fortalecimento das relações dos seus habitantes, pois há uma troca
expressiva de ordem cultural, social, econômica e política.
O governo brasileiro, sob essa égide das questões
Conforme Cox (1997), do ponto de vista das identidades
nacionais, o ensino do espanhol no Brasil poderá mostrar as
semelhanças e diferenças entre povos que convivem lado a lado há
vários séculos, em um momento em que países buscam a
aproximação para a sobrevivência econômica.
No passado, cada povo sul-americano lutou
sozinho contra outro povo para constituir-se
enquanto nação – nação brasileira, nação
argentina, nação uruguaia, nação paraguaia. No
presente, lutamos juntos para nos definirmos
como sul-americanos perante os outros
americanos – os do norte. (COX, 1997, p. 180)
econômicas e de integração regional, tornou o ensino do espanhol,
Porém, se do ponto de vista da integração nacional, essa
4
Desde 2004, a Venezuela, a Colômbia, o Equador e o Peru passaram a participar do
bloco, na condição de Estados Associados. A partir de 2006, a Venezuela foi incorporada,
oficialmente, como país membro do Mercosul.
mistura de línguas e culturas serve para a unificação de interesses
econômicos, do ponto de vista individual, vem cheia de
revelado exatamente por essa fragmentação, por essa falta.
estranhamentos. É essa conturbada relação entre o consciente e o
O desejo do sujeito é sempre desejo do Outro5 e o sujeito só
inconsciente, o materno e o estrangeiro, a língua e o desejo que
pode saber do seu desejo por meio daquilo que o outro lhe revela.
proponho a discutir neste texto.
Esta é a razão da compreensão de que o desejo, por meio dos
processos identificatórios, se torna constitutivo do sujeito na relação
Analisando o sujeito desejante...
com o outro, em sua própria alteridade, que se dá na linguagem.
Nesse sentido, quando o sujeito toma a palavra6 , o que está em
Aprender outra língua é mexer com questões de identidades,
questão é o agenciamento de significantes (suporte material do
seja do indivíduo ou do grupo social, seja na qualidade de falantes de
enunciado – termo que Lacan busca em Saussure). Quer dizer, há um
uma língua que nos interpela como sujeitos (a língua dita materna),
jogo de processos identificatórios, que envolve, de um lado, imagens
seja na de falantes de uma outra que provoca estranhamentos (a
inscritas no inconsciente (identificação imaginária), e de outro,
língua dita estrangeira). Como nos indica Revuz (1998, p. 220),
elementos do saber discursivo (o sujeito do inconsciente e o
quando aprendemos outra língua, essa “vem questionar a relação que
significante) que constituem uma identificação simbólica (uma
está instaurada entre o sujeito e sua linguagem”.
ordem que o produz como sujeito). Segundo Da Poian (2002), a
Consoante o psicanalista Lacan (1985c. p. 31), o sujeito é
identificação imaginária está na origem do Eu e tem a ver com a
“indeterminado”, ou seja, clivado, dividido, fragmentado. Este
imagem especular (formação narcísica, fixação da primeira
sujeito dividido que aqui endosso, aponta para a condição humana de
alienação do sujeito ao desejo do Outro); já a identificação simbólica
constante insatisfação, busca por algo que falta, não simbolizável,
dá origem ao sujeito do inconsciente e tem a ver com os
remetendo a relação com o objeto que é sempre da ordem daquilo
5
que falta-a-ser. Grigoletto (2006, p. 18), tendo essa mesma
compreensão, explica que “como o sujeito só se presentifica na
relação com o Outro, o próprio do sujeito psicanalítico é ser clivado
e heterogêneo na sua estrutura”. O que o sujeito almeja lhe é
Lacan faz uma distinção entre o grande Outro e o pequeno outro. O Outro seria o lugar da
palavra, que indica o que deseja o inconsciente; enquanto o outro (autre-a) é o semelhante,
ou o objeto que confere ao sujeito a dimensão de sua alteridade. Para uma análise mais
aprofundada das noções de inconsciente, desejo e identificação, veja Lacan (1985a, 1985c e
1998) e Nasio (1993 e 1996).
6
A tomada da palavra na língua estrangeira pode ser compreendida como o momento em
que o sujeito se vê em condições de recorrer às regularidades enunciativas dessa outra
língua para se pronunciar e se enunciar, empregando, para isso, os suportes materiais ou
lingüísticos dessa outra forma de se manifestar.
significantes, traços que marcam a história do sujeito.
com o Outro7, pois ele, na verdade, em um processo de identificação
Para que ocorra o reconhecimento do eu com a imagem, é
imaginária, se vê no Outro como em um espelho, tornando-se, assim,
preciso que ele esteja imerso em uma estrutura simbólica. Ainda
ele mesmo, um outro. Nesse sentido, a poética e famosa frase do
dentro dessa perspectiva, segundo Lacan (apud CHNAIDERMAN,
poeta francês Rimbaud, “Eu é um outro”, que no século XIX
1998, p. 96), “é a aventura original através da qual, pela primeira
intrigou a tantos, se torna compreensível.
vez, o homem passa pela experiência de que se vê e concebe como
No decorrer da vida, as sucessivas identificações imaginárias
um outro que não ele mesmo”. Essa regulação da estrutura
serão retificadas ou articuladas pelo processo simbólico. Mas, para
imaginária se dá mediante o registro do simbólico, de modo que a
que isso ocorra, é necessária a formação da identificação simbólica,
linguagem é condição sine qua non de constituição do sujeito. “O
isto é, a identificação orientada não mais pela unidade momentânea,
sujeito se constitui pela linguagem (é sujeito de linguagem), sempre
mas por traços sucessivos de significantes. Em outras palavras, a
na relação com o Outro. A própria linguagem é esse outro para o
linguagem, em sua sucessiva rede de significantes se caracterizará
sujeito, é o campo que abriga a rede de significantes”
como o processo de identificação simbólica que permitirá, ao sujeito,
(GRIGOLETTO, 2006, p. 18).
estruturar suas múltiplas identidades imaginárias.
Segundo D’Agord (2006), a identificação que é imaginária
Ao discorrer sobre o papel do Outro na formação do Eu,
surge como uma unidade sustentada em uma imagem que não reflete
Lacan (1998) explica que, ao nascer, a criança se concebe como
a multiplicidade da experiência subjetiva, mas uma das formas desta,
parte do corpo da mãe e, em um estádio posterior, tal criança passa a
a da própria imagem refletida. Ou seja, o sujeito se vê no outro. Com
enxergar-se, como num espelho, pelo corpo da mãe. É a separação
Lacan, de acordo com a visão de Stenner (2004), não podemos falar
deste corpo que passa a ser vista como o momento em que a criança
separadamente de Eu e de objeto (aquilo que é desejado pelo
percebe a existência do Outro (no caso, a mãe), se vê como um Eu e
sujeito), pois esses dois termos se criam mutuamente: não há um,
identifica uma “falta”.
sem o outro. É por isso que não menciono que o Eu se identifica
7
É importante mencionar que o conceito de identificação é diferente em Freud e em Lacan.
A expressão “identificar-se com”, costumeiramente empregada, remete à compreensão
freudiana de identificação; enquanto que as expressões “identificação imaginária” e
“identificação simbólica” remetem, por outro lado, a Lacan. Para maiores entendimentos
ver D’Agord (2006), Da Poian (2005), Freud (1977), Lacan (1998) e Nasio (1996).
Compreender o sujeito como dispersão, sujeito cindido,
dividido atravessado pelo inconsciente, assinala Coracini (2003a, p.
função produzida por deslizamento de significantes mediante a
linguagem.
15), é abraçar “uma perspectiva discursiva que encontra na
Lacan (1998), para especificar a relação que o sujeito falante
psicanálise seu ponto de apoio, voltada, sobretudo, para a
mantém com o inconsciente e com o desejo, distingue as noções do
constituição do sujeito do inconsciente que, imerso no discurso –
enunciado do discurso do ato de enunciação que produz este
que sempre provém do Outro – é mais falado do que fala”.
enunciado. Recorrendo ao campo lingüístico para estabelecer certa
Tavares (2004), ao analisar os conceitos lacanianos de
precisão, Schãffer (s.d.p., p. 4), explicando a noção de enunciado e
sujeito, comenta que, a partir da fala, o sujeito já não é como antes.
enunciação para Lacan, compreende que o enunciado pressupõe uma
Ao ingressar no universo simbólico da linguagem, a criança
seqüência finita de palavras emitidas pelo locutor. O fechamento de
metaforiza o significante outrora fálico8, desejante da mãe, numa
um enunciado, nessa compreensão, é geralmente indicado pelo
substituição pelo Nome-do-Pai: significante que simbolicamente
silêncio que o sujeito falante produz para pontuar sua articulação. O
constitui o mundo exterior, a lei que interdita o desejo da criança.
enunciado é produto de uma enunciação, ao passo que esta última é
Com isso, aquela alienação na imagem – a criança que se vê
na mãe, que é o fundamento do Eu – se substitui pela alienação na
produto de um ato individual da língua que evidencia o processo de
fabricação – o ato de criação de um sujeito falante.
linguagem, alienação estrutural em que o significante se apossa do
Lacan (1998) acentua, entretanto, que não se trata de dois
lugar do Eu e produz o sujeito através de um deslizamento contínuo.
sujeitos – o do enunciado e o da enunciação – mas, sim, que, se há
O sujeito lacaniano vai se pontuando pelo movimento da linguagem
algum lugar de onde o sujeito pode surgir, este é o lugar da
que forma a cadeia significante que é o próprio inconsciente. O
enunciação. É no processo de enunciação, a fala, que um sujeito se
indivíduo estaria sempre cindido entre o Eu (falso senso de existir) e
produz e é produzido. É neste ponto complexo que pode ser
o Sujeito do inconsciente que irá se dando como efeito, sendo uma
compreendido o papel da linguagem na estruturação do sujeito, pois
são os sentidos veiculados pela língua, dita materna, que constituem
8
Para Lacan (1998, p. 692 a 703), o falo aparece como um significante, mais que isso: o
significante organizador dos significantes, ou seja, o significante que origina o sujeito do
inconsciente. Nas palavras de Lacan (1998, p. 697), “ele é o significante destinado a
designar, em seu conjunto, os efeitos de significado, na medida em que o significante os
condiciona por sua presença de significante”.
o sujeito.
Como afirma Tavares (2004, p. 230), “é na língua que a fala
torna o sujeito singular, sinalizando um saber que age à revelia do
significantes dos desejos inconscientes, acaba por trazer à tona,
sujeito e que revela um desejo latente”. Tal afirmação possibilita
mediante a linguagem, tais desejos. Ou, para melhor explicar, o
compreender a importância da linguagem na psicanálise, pois é por
sujeito acaba revelando ao exterior, de entremeio a suas palavras,
meio das palavras, da fala, que se pode aferir a determinação do
por meio de seu dizer, aquilo que é latente em seu inconsciente, seus
inconsciente como algo que age no sujeito, a despeito dele mesmo.
desejos recônditos, marcas de sua incompletude. Explicando esta
Ao discutir o papel que o Outro ocupa na constituição e
visão de incompletude que marca o sujeito lacaniano, Stenner diz:
Em O Seminário, livro 11(1964), Lacan traz a
falta para o campo do sujeito e do Outro. A falta
tem uma dupla inscrição. Por um lado, ela
advém do fato de o sujeito depender de um
significante que está primeiro no Outro; por
outro lado, ela é o que o sujeito perde em sua
entrada na linguagem. O que Lacan dirá, de
outra forma, é que não há, no campo do Outro,
nem no campo do sujeito, um significante que
dê conta do ser, da mulher, da morte e, portanto,
a falta é condição de inscrição para todo ser de
linguagem. (STENNER, 2004, p.58)
estruturação do sujeito, Lacan (1998), apresentando sua concepção
de sujeito, concebe uma estrutura em que três registros estão
imbricados e se encontram no próprio dizer: o real, impossível de ser
dito, de ser apreendido; o imaginário, que corresponde àquilo que é
representável; e o simbólico, que liga e orienta as incidências
imaginárias no dizer. Essa articulação entre os três registros se
materializa no dizer.
Pacheco, comentando os conceitos de Lacan sobre a
estruturação do sujeito, faz a seguinte afirmação:
A citação de Stenner aclara a relação existente entre sujeito e
Este é o sujeito que se apresenta no discurso,
assujeitado aos significantes de seu desejo
inconsciente, estruturado sob as leis da
linguagem: comparece na enunciação entre as
oposições disponíveis, é o intervalo entre dois
significantes (S1 e S2). O sujeito é aquilo que um
significante representa para outro significante;
está assim assujeitado ao significante: nenhum
significante é bastante para representá-lo e, desta
impossibilidade, resta o objeto a, faltoso, causa
de desejo. (PACHECO, 1996, p. 46)
De modo que o sujeito, na constante divisão entre os
linguagem que Lacan expõe. Um sujeito conflituoso que sempre
estará dividido entre seu “Eu” e o “Outro” que o constitui pela
linguagem, dado que é na linguagem que ele denunciará seus
conflitos.
É essa compreensão de sujeito do inconsciente, estruturado
pela e na linguagem, incompleto em sua alteridade subjetiva, que
adoto nesta pesquisa. É essa fragmentação, presente nas bases do
próprio sujeito, que possibilita compreender o aprendizado de uma
Melman (1992), ao tecer comentário sobre a língua materna,
língua estrangeira como uma prática também fragmentada,
assinala que esta é aquela que vincula a lembrança da mãe que nos
conflituosa, complexa.
introduziu a fala e, ao mesmo tempo, a que nos interdita a mãe,
porque é por intermédio dessa língua que sofremos nossa castração.
As identidades e a ilusão do controle.
É esta língua que veicula nossos desejos, mas que não garante a
expressão desse desejo, justamente pelo fato de que, nela, a mãe se
Consoante Revuz (1998), o processo de falar em uma língua
encontra interditada. Tavares (2004, p. 231), ao analisar esta mesma
estrangeira é complexo, fragmentado, por ocorrer em dois planos: o
afirmação de Melman, infere que “a língua materna é uma língua
da prática de expressão e o da prática corporal.
que envolve afeto, é a língua do desejo interditado”. Por sua vez,
Objeto de conhecimento intelectual, a língua é
também objeto de uma prática. Essa prática é,
ela própria, complexa. Prática de expressão,
mais ou menos criativa, ela solicita o sujeito, seu
modo de relacionar-se com os outros e com o
mundo; prática corporal, ela põe em jogo todo o
aparelho fonador. Sem dúvida, temos aí uma das
pistas que permitem compreender por que é tão
difícil aprender uma língua estrangeira.
(REVUZ, 1998, p. 216 e 217)
Esse processo de aprendizagem é considerado como prática
de expressão por ser o momento em que outras palavras – uma outra
língua – dão ao sujeito a possibilidade de produzir os sentidos, de se
manifestar, que se torna aparente sua relação com a língua materna.
Coracini, concordando com essa compreensão, ao falar sobre o
inconsciente e a linguagem, se faz categórica:
O inconsciente, definido como o Outro, ou La
langue, nos termos de Lacan (Milner, 1987,
p.49), “funciona como uma língua interditada, e
a expressão mais manifesta deste interdito
repousa nisto: o sujeito não pode articular
plenamente o desejo que é inerente, que é
veiculado por esta cadeia, que é constitutivo
dessa cadeia”: o inconsciente constitui essa zona
heterogênea, habitada pelo desejo da mãe,
interditado pelo pai (social). O desejo da mãe
pode ser explicado como o desejo da
completude, da totalidade que, recalcado, gera
angústias e buscas constantes de resolução que
se acha sempre adiada. (CORACINI, 2003b,
p.148)
Ou seja, a forma como se expressa diante do mundo só é percebida
no instante em que há o confronto com outra forma de fazer o
mesmo.
Conforme a compreensão de Coracini, não há a linguagem
externa ao sujeito, pos é ela mesma quem o constitui. E é nessa
constituição pela linguagem que os desejos do sujeito serão
estável como a queriam no passado”. Chnaiderman (1998, p. 49),
interditados pela língua que será chamada de materna. “A língua
coadunando com essa visão, afirma que “a idéia de que existiria uma
materna é justamente aquela que abafa esses desejos, constituindo,
identidade que definiria o sujeito psíquico vem sendo criticada como
em nível consciente, a ilusão do sujeito completo, uno, origem do
uma idéia totalizante que não leva em conta a multiplicidade que nos
sentido, capaz de se autocontrolar e controlar o outro” (CORACINI,
constitui”.
2003b, p. 148).
Em tal conceito de identidade está implícita a seguinte
É essa cisão entre a busca pelo controle, ocorrida no campo
restrição exposta por Serrani (1997, p.8): “a identidade opera na
da consciência, e a incompletude, sentida pelo sujeito no campo da
dimensão da representação (portanto, imaginária) da unidade do
inconsciência, que torna o encontro do sujeito com uma outra forma
locutor (ou interlocutor) enquanto ego". As identidades são sempre
de se manifestar, uma língua que lhe é estranha, conflitante e
imaginárias, colocando em funcionamento imagens que o sujeito faz
complexo. Dado que o sujeito é clivado e heterogêneo, constituído
de si mesmo, a partir de imagens lançadas pelo olhar do outro e que
pela linguagem, mediante uma língua que lhe é materna, sua relação
permitem a ele se reconhecer enquanto tal. Portanto, se aceitamos as
com a língua estrangeira será, também, clivada, heterogênea.
identidades como imaginárias, e levando em conta a multiplicidade
Essa compreensão de sujeito faz com que também se repense
que constitui a subjetividade humana, concluímos que não há uma,
a noção de identidade. Em sua concepção tradicional, o termo sugere
mas muitas identidades de acordo com as categorizações e divisões
uma idéia de unidade e de estabilidade, sendo algo pertencente ao
segundo as quais um sujeito poderia se posicionar.
ser humano e que o acompanharia durante toda a sua vida (alguns
As identificações, por outro lado situa o sujeito no mundo e
até afirmam que a identidade pode sofrer mudanças com o tempo,
nas relações sociais. As múltiplas identificações, dissolvidas em
mas continuaria a ser A Identidade – algo uno). Porém, tal visão
traços que já se encontram impressos no sujeito, ao mesmo tempo
seria conflitante com o descentramento que a descoberta do
em que determinam o lugar discursivo do sujeito, também
inconsciente expõe. Como explica Vasconcelos (2003, p. 168), “se o
caracterizam sua identidade, ou seja, o processo de identificação se
sujeito não é uno e é construído no seu processo histórico, a questão
torna um mecanismo pelo qual o sujeito constrói as identidades que,
da identidade coloca-se não como integral, unificada, estática ou
por estarem em constante movimento, são estruturadas e
desestruturadas continuamente. São esses processos identificatórios
espelho, reconhecendo sua fala na do outro. É nesse movimento
que apagam a idéia de unidade das identidades e possibilitam que,
identificatório que o sujeito é capturado pela linguagem, em um
mediante a linguagem, a identidade seja construída para/pelo sujeito.
processo de subjetivação 9, e se torna o Eu.
A identidade é, portanto, uma construção instável, fragmentada, não
Assim, a linguagem jamais poderia ser concebida como um
toda, que sofre as oscilações constantes das identificações.
instrumento que fosse utilizado pelo homem para exprimir suas
Construção imaginária com aparência de totalidade, ela permite ao
intenções de comunicação. Em contrário, é o “espaço do sujeito
sujeito se identificar como o Eu que fala.
afetado pelo pré-construído e pelo discurso transverso, sujeito do
A identificação é vista como marca simbólica a partir da qual
inconsciente, efeito de linguagem, falante, ser em línguas, pego na
o sujeito adquire não sua unidade, mas sua singularidade. Se a
ordem simbólica que o produz enquanto sujeito” (Serrani, 1998a, p.
identidade é compreendida como a representação do fato de existir,
245). É esse “discurso transverso” – a linguagem composta por uma
de ser, a identificação enfatiza a referência ao dizer. A construção da
cadeia de significantes pré-construídos que atravessa o sujeito – que
identidade conforme a concebe a psicanálise é um processo que
é capaz de estruturar, de subjetivar, o sujeito.
passa pela língua, que, representando para o sujeito a dimensão
simbólica, cria a possibilidade de se inscrever na língua.
É por isso que a concepção de linguagem, neste trabalho, é
assumida como processo de regularidades enunciativas fincadas em
Tal consideração sobre sujeito, identidade e identificação é
valores e modos de dizer que se apresentam como comuns. São essas
relevante por permitir compreender a relação de afetividade que está
regularidades que determinam aquilo que pode ou não ser dito pelo
entranhada na língua materna.
sujeito, manifestando uma relação com a própria língua, com a
língua(gem)-sujeito-identidades,
A partir desta relação intrínseca
tem-se
uma
concepção
de
discursividade e com os diversos domínios de saber que ela permite
linguagem – tendo como principal elemento a língua materna –
construir. Como assegura Serrani (1997 p. 5) “são condensações de
como a própria condição de estruturação psíquica, já que é a partir
9
da inscrição
do sujeito no universo da linguagem que ele se
subjetiva e se torna Eu. Em outras palavras, o sujeito incorpora
fragmentos da fala do outro e pode reconhecer-se como num
De acordo com Marioto (2005), a subjetivação se dá em um processo pelo qual um
sujeito, visitado pela linguagem, vai poder habitar um corpo e uma subjetividade. Ou seja,
nascer subjetivamente à vida, o tornar-se Eu, é dar um passo para além do fisiológico,
organizando-se num outro campo, numa outra ordem. Para que essa transformação ocorra,
de um corpo nu para um corpo ou ser de linguagem, é necessário que alguém o introduza
neste outro registro, o que ocorre no momento em que o sujeito se vê falado pelo Outro.
Para maior compreensão, ver Lacan (1998, p. 96 – 103).
regularidades
enunciativas
no
processo
–
constitutivamente
desta compreensão indissociável de sujeito e linguagem, pode-se
heterogêneo e contraditório – da produção de sentidos no e pelo
visualizar o choque que é, para este sujeito, sua inscrição em uma
discurso, em diferentes domínios do saber.”
outra forma de se manifestar, isto é, em uma língua estrangeira.
Na esteira de Serrani (1997, 1998a e 1998b), vejo o humano
como um ser que vem ao mundo sem a linguagem e recebe do
O conflito entre o medo e o desejo.
exterior o significante que é, a um só tempo, matéria-prima e
instrumento da constituição do inconsciente. É a linguagem – por
Seguindo a compreensão de Revuz (1998, p. 220), segundo
meio da língua chamada de materna –, portanto, que estrutura o
as quais a língua estrangeira abre um novo espaço potencial para a
sujeito, e não o sujeito que estrutura a linguagem, como descrito pela
expressão do sujeito, questionando a relação que está instaurada
psicologia.
entre o sujeito e sua linguagem, entendo que o sujeito, de forma
Essa relação entre sujeito e língua materna é analisada por
inconsciente, ao se confrontar com nova língua, passa por uma
Revuz (1998), ao estudar os processos por que passa o sujeito em
sensação de desestabilização, de desnorteamento, pois aquilo que
situações de ensino-aprendizagem de língua estrangeira. Nessas
estava inscrito em si deixa de ser absoluto, passa a ser questionado.
situações, há sempre um (re)encontro do sujeito com sua língua
Este confronto entre língua materna – representante daquilo que já
materna, uma vez que esse processo torna visível para o sujeito a
está inscrito, instaurado, no sujeito – e língua estrangeira – a nova
relação existente entre ele, a língua materna e sua forma de
possibilidade de subjetivação da linguagem – é explicado por Revuz,
aprendizagem. O que se faz é permitir a emersão de algo muito
e corroborado por Serrani, como uma relação de desarranjo e re-
específico que o sujeito guarda em relação à língua e que se
arranjo da subjetividade.
manifesta justamente quando encontra a língua do outro, que surge,
assim, como novo lugar a partir do qual o sujeito poderá olhar para o
que acredita ser (ou ter sido sempre) seu.
É, portanto, pela linguagem que o sujeito se constitui, e é na
linguagem, através de seu dizer, que o sujeito se manifesta. A partir
A meu ver, um dos processos fundamentais que
acontece quando o sujeito desenvolve uma
“aquisição” bem sucedida de segunda língua
(isto é, quando acontece o “desarranjo”
subjetivo que possibilita um “re-arranjo”
significante) é a inscrição do sujeito em relações
de preponderância na discursividade nova da
segunda língua. (SERRANI, 1997, p. 8 e 9)
em que vamos aprender uma língua estrangeira, sentimos esta
É nesse contexto conflituoso, nesse “re-arranjar”, que o
relação, pois esta nova forma de se comunicar vem questionar, de
sujeito pode demonstrar uma aproximação ou um distanciamento
modo complexo, a relação que já estava instaurada entre sujeito,
com a língua estrangeira. Por um lado, o aprendiz, ao se inserir em
corpo e língua. Assim, ao iniciar o estudo de uma língua estrangeira,
nova língua, pode estabelecer um vínculo de aproximação instaurado
é como se voltássemos a ser feto, é refazer a experiência de se fazer
pelos desejos inconscientes cujo efeito é o querer estruturar nova
entender.
identidade. Por outro lado, ele pode sofrer estranhamento e, nesse
Para alguns, é tão difícil dissociar o corpo da língua materna,
caso, de forma inconsciente e imperceptível, desenvolveria certas
que não conseguem repetir as mais simples seqüências na língua
estratégias que fariam com que ele não se inscrevesse naquele
estudada, recusando-se inconscientemente a abandonar esta relação
mundo simbólico que a ele soa estranho. Em alguns casos, pode até
tão aconchegante e que só agora é exposta. Esse estranhar corporal
desenvolver algumas habilidades lingüísticas, mas sem chegar a ter
se torna tão incômodo, que alguns nem tentam pronunciar os sons da
autonomia afetiva e enunciativa dentro daquele novo sistema
nova língua, enquanto outros, ao tentarem, caem no riso e há ainda
lingüístico a que neste trabalho se faz referência.
aqueles que ficam envergonhados, tímidos, como se estivessem
Ao falar que a língua é objeto de uma prática, Revuz (1998)
sendo desnudados.
Essas “estratégias inconscientes” (REVUZ,
pondera que, além de prática de expressão, essa prática é corporal.
1998, p. 225)
de resistência podem ser o motivo de alguns
Isto se dá porque, desde o instante em que é feto, o sujeito é falado
aprendizes terem um certo conhecimento de vocabulários técnicos
pelo mundo que o rodeia, seja pelas palavras afetuosas e
(que os habilitam para o comércio ou para certos trabalhos), mas
acariciadoras da mãe, seja pelos ruídos que o assustam na condição
sem conseguir uma autonomia na compreensão ou expressão; de
de bebê ainda não nascido. O corpo, que ainda não veio à luz, já é
outros que conseguem imitar os diálogos com perfeição no momento
utilizado para se comunicar e ser comunicado pelo ambiente à sua
das aulas, mas sem guardar quase nada destas informações; de
volta. Essa relação corpo-linguagem não é sentida, não é percebida,
alguns para os quais mesmo depois de anos de estudos na língua
pois sempre foi assim, desde o momento em que ainda não havíamos
alvo, tem a língua estrangeira como um amontoado de termos;
nascido, o corpo estava presente em nossa comunicação. No instante
daqueles que só conseguem compreender um enunciado na língua
estrangeira se este for traduzido literalmente à língua materna; entre
dificuldades de aprendizagem são, na verdade, estratégias da ordem
outras formas de fuga do confronto interno que é instaurado no
do inconsciente do sujeito-aprendiz, ao confrontar-se com o
processo de inscrição em uma nova língua.
estranhamento às novas formas de significação, como se isso fosse
As estratégias de fuga no processo de aprendizado são
uma grande fuga do confronto interno que é a prática complexa de
compreensíveis, pois a língua estrangeira é vista como a língua
aprender a ser diferente sendo o mesmo. Em outras palavras, no
estranha, a língua do outro. Tal estranhamento pode provocar um
momento em que recorre às regularidades enunciativas de outra
profundo medo inconsciente. Como analisa Coracini (2003b, p.
língua para se pronunciar, o sujeito torna-se, ele mesmo, um outro.
149), o medo que aparece é o “medo da despersonalização” que a
Essa prática, que é sentida como estranha e complexa, pode levar o
aprendizagem da língua estrangeira implica, ou então, há aí,
sujeito a instaurar um processo de “fuga”, que se caracterizará na
também, “o medo do estranho, do desconhecido, medo do
resistência à língua, tornando-se perceptível nas dificuldades de
deslocamento ou das mudanças que poderão advir da aprendizagem
aprendizagem.
de uma outra língua”.
É esse medo que pode fazer o sujeito, independentemente do
Porém, assim como para alguns há a sensação de medo, para
outros
há
a
paixão.
Nessa
conflituosa
relação
língua
método ou do professor, não se lançar no desconhecido mundo da
estrangeira/língua materna, o processo inverso à resistência também
língua estrangeira. Coaduno-me a esse respeito com Coracini
pode ocorrer. Em tal caso, é perceptível, no aprendiz, forte atração
(2003b, p. 149), que é clara ao afirmar que “o medo pode, em
pela nova língua, pelas novas formas de significação. Os casos em
circunstâncias particulares, bloquear a aprendizagem, impondo uma
que o aprendizado de língua estrangeira desempenha uma forte
barreira ao encontro com o outro, dificultando e, por vezes,
atração também podem ser explicados, de modo geral, pela
impedindo uma aprendizagem eficaz e prazerosa”.
psicanálise, que vê esse fenômeno como uma forma de
“aparecimento do desejo do Outro, desse Outro que nos constitui e
É possível concluir?
cujo acesso nos é interditado, esse Outro que viria completar o Um”
(CORACINI, 2003b, p.149).
Ancorados nessa compreensão, podemos inferir que algumas
Dessa forma, assim como para alguns os sons de uma língua
são motivos de dificuldade, para outros, por se sentirem atraídos, tais
sensação de prazer, de gozo, é tão intensa que se torna até mesmo
sons serão motivos de prazer. Estes, de acordo com Revuz (1998, p.
viciadora, fazendo com que o sujeito, instigado pelo desejo da
222), “deslizam pelos sons da língua estrangeira com regozijo e se
completude e com seu conseqüente recalcamento 10 – já que essa
apropriam com facilidade de sua ‘música’, a ponto de poderem
completude é impossível – entre numa compulsão pelo aprendizado
produzir longas ‘frases’ que criam a ilusão..., mesmo que não
de várias línguas, uma após a outra, sem chegar a “dominar”
tenham nenhum sentido!” Nesse caso, o próprio corpo parece se
nenhuma. Outros, também movidos por essa tentativa de ser
abrir para a nova língua, o aparelho fonador e as formas de gesticular
completo, passam a almejar na língua estrangeira um nível de
se tornam não um motivo de angústia, mas de “gozo” intenso.
excelência ou de perfeição visando chegar a ser confundido com o
Esse prazer, causado pela falsa sensação de completude, dá
falante nativo, em uma tentativa de liberdade, de se tornar um outro.
ao sujeito a ilusão de dominar algo. É como se ele pudesse agora
Nesse caso, complementa Coracini (2003b, p.150), “tal atitude
comandar a linguagem, e, ao comandar a linguagem, comandar seus
perfeccionista pode ser explicada pela recusa da sua própria língua,
próprios desejos, seu inconsciente. A esse respeito, Tavares
fuga inexorável dos recalcamentos e da exclusão à qual se viu
assevera:
condenado e dos quais desejaria escapar, na esperança ilusória da
A língua materna nunca poderá permitir esse
gozo, pois há algo nela que está interditado e
não pode ser trazido à tona. Porém, a língua
estrangeira pode representar o acesso ao lugar
onde o sujeito tem a escolha da lei, das regras
que vai utilizar para se exprimir, a escolha dos
significantes. Acontece que o desejo nunca se
satisfaz devido ao seu caráter metonímico.
Talvez, por isso mesmo, aqueles que desejam
ocupar um Outro lugar por meio da língua
estrangeira,
mesmo
que
experimentem
frustrações e insucessos, persistem em aprendêla. (TAVARES, 2003, p. 19)
Consoante Coracini (2003b, p. 149), para alguns, essa
liberdade e da realização plena de seus mais profundos desejos”.
Nessa tentativa de se tornar outro, de fugir da falta causada
pela língua materna, o aprendiz de língua estrangeira se torna um
10
Valho-me aqui do conceito de recalcamento de Freud, para quem recalcamento é a
evitação das lembranças dolorosas. A esse respeito Garcia-Roza (1997, p. 90) explica que
no caso de o aparelho psíquico ser atingido por um estímulo que provoque uma excitação
dolorosa, inconscientemente ocorrerá uma série de manifestações motoras que, apesar de
inespecíficas, poderão afastar o estímulo causador da experiência desprazerosa. A
experiência da dor produz a tendência a que ela seja rejeitada para que não se repita a
excitação dolorosa. Essa fuga à percepção, ou à lembrança da dor é que será chamada por
Freud de recalcamento. No caso do aprendiz de língua estrangeira, vejo o recalcamento no
instante em que tal sujeito, ao sentir a incompletude, se lança compulsivamente no estudo
de línguas, em busca de situações que lhe trariam a sensação de completude. Para maior
compreensão acerca do conceito de recalcamento, ver Garcia-Roza (1997) e Freud (1980 e
2001).
aficionado, alguém que está sempre em busca da excelência
imperceptivelmente, sempre presentes no contexto de aprendizagem
gramatical ou do sotaque perfeito e, o motivo maior de orgulho, ou
de língua estrangeira.
de prazer, é ser confundido com um falante nativo. A fuga da
incompletude é tamanha que a própria forma de agir do sujeito
muda. É dessa compreensão que vem a célebre frase de Revuz
(1998, p. 225) usada como epígrafe no capítulo 1: “O Eu de uma
língua estrangeira não é, jamais, completamente o da língua
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1998.
materna”. Isto porque, de acordo com a autora, “não é raro ver
pessoas, que sofrem graves dificuldades de relacionamento,
estabelecerem sem problemas relações satisfatórias ao expressaremse razoavelmente em uma outra língua.” O Eu da língua materna, por
ser inaugural, por partir do zero, dado que sua relação é com a
linguagem que lhe é materna, primeira, será sempre diferente do Eu
CORACINI, Maria José (org.) Identidade & Discurso:
(des)construindo subjetividades. Campinas/ Chapecó: Editora da
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da língua estrangeira, que está alicerçado no relacional, dado que sua
relação com a linguagem já é existente. É essa diferença que
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Educação Pública, Cuiabá: EdUFMT, v. 6, n. 10, p. 175 - 187 1997.
possibilita ao sujeito ser, ele mesmo, um Outro, um diferente, lhe
possibilitando demonstrar e sentir atitudes que na língua materna já
não lhe é possível.
Com isso, independentemente de motivo de medo ou de
prazer, a língua estrangeira é sempre conflituosa, uma vez que as
forças mobilizadoras, sejam para a aversão ou para a paixão, são as
mesmas: o desejo do outro e o desejo da plenitude. De modo que os
processos identificatórios, os desejos recônditos do sujeito, estão,
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PORTADORES DE SÍNDROME DE DOWN: AS EXPERIÊNCIAS DE
LETRAMENTO NA APAE
PORTADORES DE SÍNDROME DE DOWN:
AS EXPERIÊNCIAS DE LETRAMENTO NA APAE
COENGA, Rosemar 11
BRAZ,Ana Paula12
SOUZA, Iolanda Aparecida de
REIS, Klimair Roberto dos
PIMENTA, Osânea Nunes
RESUMO
A pesquisa tem, por objeto, o estudo das práticas de leitura e escrita
de crianças que pertencem a APAE. Para realizar a análise, foram
estudados conceitos de linguagem e língua materna. Foram
utilizados como instrumentos de pesquisa: observação em classe,
questionários e entrevistas para contemplar as notas de observação e
analisar a relação das crianças com a cultura escrita.
PALAVRAS-CHAVE: leitura; escrita; língua materna
estudos mais significativos nessa área.
A história do processo de escolarização de crianças com
portadores de Síndrome de Down, geralmente revela que estas
crianças vêm sendo privadas da programação escolar oferecida às
crianças consideradas “normais”. Tal postura provavelmente vem da
concepção de que por serem menos “inteligentes”, necessitam de
programas
especiais
que
atendessem
às
suas
necessidades
fundamentais. As escolas especiais as subestimam, as escolas
comuns as excluem. A verdade é que não existe lugar em nossa
sociedade para a promoção do desenvolvimento pleno dessas
crianças.
A maioria dos programas disponíveis para essa população
volta-se para um atendimento clínico que não permite a vivência
RESUMÉE
Cette recherche, a pour objet, l’étude des pratiques de lecture et
écriture des enfants qui appartenance a APAE. Pour ce faire, on a
étudié les concepts de language et langue materne. On a eu recours,
comme instruments de recherche à observacion de la classe,
questionnaires et on les a interviwés, pour completer les notes
d’observation et analiser la relacion des enfants avec la culture écrit.
MOTS-CLÉ: lecture ; écriture ; langue materne
Ao focarmos o nosso olhar na escolarização do deficiente
educacional e social necessárias para uma participação efetiva em
mental no nível fundamental, começamos por ver que carecemos de
Nessa perspectiva, conforme apontado por Provak apud
nossa sociedade.
Considerando o desenvolvimento humano como um processo
complexo e dinâmico que se estabelece nas situações recíprocas da
criança com a família, vizinhanças, comunidade e sociedade,
compreendem a importância dessas relações.
Monteiro, (2001) em seus estudos sobre crianças com Síndrome de
11
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT)
Doutorando em Teoria Literária pela Universidade de Brasília (UNB)
12 Acadêmicos do Curso de Letras das Faculdades Integradas Mato-grossenses
de Ciências Sócias e Humanas
Down, a criança identificada como deficiente mental deve ser
considerada como tendo as mesmas necessidades básicas de
voltados apenas para a aquisição da habilidade de ler e escrever, nem
qualquer criança: afeto, contato social, reconhecimento, curiosidade,
sempre proporcionando o despertar e o interesse da criança com
com adição de necessidades específicas geradas pelas características
Síndrome de Down pelo mundo da escrita; entretanto, os estudos
próprias de seu desenvolvimento ou pela expressão de sua
mostram que a maioria destas crianças consegue se alfabetizar.
individualidade.
No período de maio de 2005, na APAE de Cuiabá, tivemos a
Deste modo, acredita-se que os programas escolares para
oportunidade de vivenciar experiências bastante ricas, num trabalho
promoção do desenvolvimento de crianças deficientes devem
escolar com crianças com Síndrome de Down. Nessa experiência,
oferecer as mesmas oportunidades e experiências vividas pelas
podemos observar várias crianças e jovens que liam e produziam
outras crianças, respeitando as particularidades de cada aluno.
textos de maneira semelhantes a crianças e jovens ditos “normais”,
A convivência de crianças em situação de escola é, sem dúvida
nenhuma, essencial para a integração da criança no modelo de
sociedade e cultura dos dias atuais.
Na escola, a criança vive uma rotina de atividades variadas
interagindo com adultos e com crianças e com eles constrói no grupo
seus valores e crenças.
em processo de construção da leitura e da escrita.
A história do deficiente mental com relação à leitura e à escrita
não é muito animadora, uma vez que essas pessoas foram durante
muito tempo excluídas das escolas e das atividades educacionais
voltadas para a leitura e à escrita.
A inclusão do sujeito como portadores de Síndrome de Down
No entanto, embora muitas crianças com portadores de
na discussão sobre o processo de letramento tornam-se bastante
Síndrome de Down freqüentem escolas especializadas para
relevante, uma vez que a leitura e a escrita permeiam a maioria das
indivíduos especiais, não se oferece um programa escolar que
atividades presentes nos diversos grupos sociais no mundo atual.
apronta o desenvolvimento e a imersão social.
Algumas crianças portadoras de Síndrome Down têm
demonstrado possibilidades de desenvolvimento da leitura e da
Nossa sociedade valoriza fortemente a leitura e a escrita e,
quando não existe este domínio, temos um sujeito excluído do
grupo. Isto é uma das características do nosso tempo e cultura.
escrita. Segundo Monteiro (2000), os estudos referentes à
A leitura e a escrita, portanto, tem hoje um papel fundamental
alfabetização destas pessoas têm enfoques diversos, muitas vezes
para a inserção no mundo em que vivemos. Nesse sentido, se o
sujeito portador de Síndrome de Down não tiver possibilidades de
acesso ao processo de letramento terá mais um fator contribuindo
para sua discriminação e exclusão.
Alguns aspectos merecem uma consideração especial na
reflexão sobre a construção de um processo de letramento. São eles:
-
é
preciso
que
se
acredite
na
possibilidade
de
desenvolvimento da leitura e escrita para que o processo possa
ocorrer;
- despertar para o prazer pela leitura e escrita permitindo ao
portador de Síndrome de Down a apropriação de práticas culturais, o
exercício da capacidade intelectual e a possibilidade de deixar
marcas de nossa história.
Esses aspectos abrem caminhos que ajudam a construir uma
escola democrática para dar oportunidade a todos e favorecer uma
educação inclusiva.
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AVALIAÇÃO DA GRADUAÇÃO: A HORA DA REFLEXÃO
INTERNA.
FONSECA, Gláucia Cristina Negreiros Silva13
Avaliação da graduação:
a hora da reflexão interna.
RESUMO.
A grande expansão e diferenciação que tem ocorrido nos sistemas de
ensino superior tornaram-se apenas uma de suas modalidades, como,
por exemplo, nas modalidades de educação continuada, nas novas
combinações de disciplinas e de alunos em programas de estudo com
recortes temáticos, nas propostas de educação à distância. Com essa
nova perspectiva de conhecimento, a universidade, hoje, convive
com outros novos espaços de produção de ciência e tecnologia, a
saber, as empresas, os institutos de pesquisa oficiais e privados. Tais
fatores vão implicar numa demanda por Instituições de Ensino
Superior, sejam elas públicas ou privadas, mais ágeis, capazes de
contribuírem na formação de profissionais que conjuguem
competências técnico-científicas e com aspirações sociais e valores
que o façam agir e intervir na sociedade.
PALAVRAS-CHAVE: ensino superior; conhecimento; formação.
ABSTRACT
This article aims to show how the great expansion and the
differentiation which has occurred in the systems of graduation
course become only one of its pattern such as continuated education,
new combinations of subjects and students involved in programs of
study with a range of themes in relation to distant education. The
university, nowadays, with a new perspective of knowledge keep in
touch with new spaces of production of science and technology like
13
Mestre em Educação. Coordenadora do Curso de Pedagogia- ICE
the different kinds of companies, official and private research
centers. These factors will call for colleges whether they are public
or private in the sense of contributing for becoming professionals
who join technical and scientific competence and with social and
values aspirations which make them act in the society.
KEYWORDS: University; knowledge; training
deixa de preparar os profissionais com que o país conta e de atender
boa parte dos egressos do ensino médio que batem às suas portas.
Segundo o INEP, há dois concluintes do ensino médio para
cada vaga no ensino superior, e a relação candidato-vaga mantém-se
em torno de 4,0. O número de alunos matriculados no ensino
Uma breve análise da universidade pública brasileira indica
superior corresponde aproximadamente de 13% da população de 20
que ela tem sido pouco marcada pela diversidade nas atividades de
a 24 anos. Esta taxa é inferior a da Argentina (39%), Chile (27%) e
ensino de graduação, a diferenciação das suas atividades tem
Bolívia (23%).
ocorrido no âmbito do ensino de pós-graduação e pesquisa
Ao mesmo tempo, a avaliação de cursos de graduação é
acadêmica, mas pouco tem sido feito no que diz respeito à abertura
praticamente inexistente, e quando existe não tem gerado
de novas opções de ensino, novos formatos de curso, novas áreas,
conseqüências práticas. Um mecanismo recentemente criado foi a
modalidades de diplomas e de certificação, e mesmo na abertura de
verificação da qualidade da formação no ensino de graduação, que
algumas carreiras novas.
está sendo dada via concluintes através do exame nacional de cursos,
O sistema, de um modo geral, não alterou com profundidade
o “provão”. Por essa perspectiva, o conceito de qualidade em
as atividades de ensino, e a elevada qualidade das universidades
educação associa-se a uma concepção que enfatiza o produto
ficou sob a luz da pós-graduação e pesquisa, o ensino de graduação
educativo, tomando como critério os resultados alcançados pelos
acabou ficando para trás. A criação esporádica de novos cursos, a
estudantes ao final de um processo de aprendizagem, assemelhando-
lenta expansão do crescimento de vagas oferecidas no vestibular na
se a uma aproximação ao mundo industrial e produtivo, que
IES Federais têm sido acompanhada pela ausência, também, de
considera a perfeição do produto como critério central de qualidade.
notícias de atualização curricular, de inovação nos métodos
pedagógicos e nos conteúdos.
No entanto, nem sempre a introdução de procedimentos de
avaliação externa foi acompanhada de processos internos de
O desequilíbrio é grande, e o ensino de graduação que
avaliação nas IES. É preciso reconhecer a ausência de práticas de
constitui a primeira demanda social do sistema de ensino superior
avaliação nas IES, ou mesmo considerar que raramente é realizado
como deveria ser.
Se as instituições de ensino superior se
programa. A avaliação está, assim, inserida numa reflexão
preparassem internamente para implementar procedimentos de
permanente do próprio ato de educar, o educar no ensino de
aperfeiçoamento
graduação.
de
seu
desempenho,
certamente
estariam
adequadamente preparando-se para implementar procedimentos de
Uma avaliação interna na graduação tem como motivação
aperfeiçoamento de seu desempenho, estariam preparadas para a
principal o acompanhamento dos projetos de formação no ensino
comparação com padrões externos, quando chegar o momento de
superior. Seu objetivo primordial seria a produção de conhecimentos
avaliação do produto, o exame nacional de curso.
novos sobre a realidade.
A avaliação
conduzida pelo olhar exterior no âmbito das ações de controle tem a
O que se avalia em graduação, seria a primeira questão
intenção de proceder a identificação das práticas institucionais e das
polêmica. Avaliamos os alunos? Seus desempenhos e suas
eventuais mudanças que poderão ser introduzidas, mas não deve
habilidades? Suas competências sociais, políticas e profissionais?
aniquilar ou substituir os mecanismos internos de avaliação .
Avaliamos os cursos de graduação e suas possibilidades de formar o
Não só por conta desse fator, que o avaliar no ensino de
ser humano que existe no profissional? Avaliamos os cursos e suas
graduação torna-se um momento inevitável, mas porque se
formas de integração e arranjo? O que, nós, educadores, entendemos
vislumbra que a renovação do sistema de ensino superior pode se
e definimos como qualidade no ensino de graduação? (Mesmo ao se
valer intensamente do diálogo entre avaliação interna e externa.
considerar que o termo qualidade não represente um termo
Quer-se crer, a princípio, que há um consenso entre os educadores de
unanimemente aceito, qualidade significa coisas distintas para
que a avaliação é imprescindível tanto para o processo de
diferentes grupos de interesse). Não é possível deixarmos de refletir
identificação do nível de qualidade das IES como de busca pela
sobre todos esses aspectos. A avaliação da graduação tem um foco
qualidade necessária. Enquanto processo, a avaliação não ocorre
multidimensional para o estudo de questões tão complexas, a
apenas num momento único da dinâmica educacional, mas,
solução é ficar atenta a todas as dimensões que o compõe.
principalmente, constitui-se como atividade contínua, periódica,
Nesse sentido, assim, de pronto, é preciso reconhecer que o
sistemática que acompanha as atividades desenvolvidas. A avaliação
processo de avaliação na graduação merece uma atualização do
acompanha o ciclo de uma atividade, de um projeto, de um
próprio conceito de formação na graduação, o que implica deixar
para trás a visão reducionista centrada no domínio de novas
restituídos aos diversos atores participantes. Assim, cada um deles
competências para as novas tecnologias, de novos saberes sobre o
poderá valer-se dos resultados, segundo suas necessidades e
processo de trabalho, de novas dimensões de personalidade
percepção. O importante é observar que os conflitos decorrentes
requeridas por mudanças pontuais na engrenagem da produção, nas
possam se constituir como fonte de outras demandas de estudo. O
oscilações do mercado de trabalho. Formar na graduação não pode
processo de avaliar está aberto ao diálogo e à confrontação entre
ficar à mercê somente das “novidades” alardeadas.
pontos de vista distintos, sendo um momento de reflexão sobre a
Formar na graduação é mais abrangente, é mais sensível,
prática.
implica necessariamente em pensar numa formação de longa
Nesse caso, o processo de avaliação da graduação deve partir
duração. É refletir sobre as possibilidades que temos de contribuir
de uma definição ideal da vivência universitária. O que seria o ideal
para a formação do ser humano em suas relações sociais, políticas,
dentro de uma proposta de formação na graduação? Que o aluno
culturais e éticas. Mais do que implementar uma metodologia
pesquise ou participe das atividades extensionistas? Que ele vivencie
apropriada , a prioridade no processo de avaliação será a formulação
diferentes manifestações culturais ou que o curso possa sintonizar-se
de determinados conceitos. Proceder a avaliação envolve a
com as demandas da sociedade?
confrontação entre a situação real e a ideal, o que exige análise e
A polêmica da qualidade de um curso parte do reconhecimento
reflexão, e alguns procedimentos. O debate sobre o ideal constitui
da existência de diversas dimensões que se relacionam entre si e que
um sistema de referências que orientem a procura de informações
referenciam o processo de tomada de decisões. Com efeito, dentro
necessárias para verificar as distâncias entre o que foi idealizado e o
de uma proposta de avaliação voltada para a graduação é preciso
que está sendo realizado.
deixar claro o “quê”, “por quê” e “para quê” se avalia. É preciso,
Tendo em vista certa compreensão do que seja formar na
pois, nos perguntar se avaliamos para vislumbrarmos possibilidades
graduação, penso que a avaliação, neste nível de ensino, deve
de reformulação curricular ou para uma simples revisão dos
preocupar-se em revelar os problemas e ajudar a encontrar as
objetivos de cada curso, ou ainda, se para estabelecemos um vínculo
soluções, as correções e os ajustamentos necessários. Para que isso
com as demandas da sociedade, ou ainda, para termos evidências de
possa acontecer, os resultados de cada pequena avaliação devem ser
que estamos formando, se esse for nosso objetivo, um “ profissional
pesquisador”. Ou será que é para identificarmos de que forma
permanente, a auto-satisfação ou autoglorificação imobilista, e
estamos respondendo aos mecanismos de pressão que exerce a
promoverem a reflexão sobre os resultados colhidos na avaliação
economia sobre a educação? E, até mesmo, num viés eminentemente
externa
economicista, sem se reduzir a ele, pode-se avaliar a eficiência dos
possivelmente, seria um mecanismo da própria IES para demonstrar
cursos, quais os objetivos atingidos e os recursos utilizados e,
sua qualidade e suas vocações ao público, em geral, à sociedade e às
mesmo, avaliamos a eficácia, o grau de comprimento dos objetivos
fontes de financiamento e parceiros.
propostos.
e os seus critérios próprios de qualidade. Esse fator,
Ao se resgatar o processo de avaliação da graduação como
Uma proposta de avaliação da graduação consistente não deve
movimento interno que só tem a contribuir com o debate sobre
deixar de contribuir para uma autoconsciência institucional e a
formação profissional no ensino superior, busca-se uma estratégia
elaboração de subsídios para tomada de decisões. A própria decisão
vital para superar os obstáculos que se colocam na melhoria
de realizar a avaliação envolve muitas decisões. Há de se considerar
qualitativa do ensino superior. O que pressupõe que a avaliação da
o esforço das instituições e as muitas decisões que envolvem
graduação possa munir-se de um conjunto de estratégias que tenha,
deflagrar o processo de avaliação. Ademais, o processo de análise e
partindo de diferentes pressupostos teóricos e utilizando diferentes
comunicação dos resultados e recomendações traz, em si, uma nova
procedimentos, como foco comum de estudo, a instituição
discussão sobre os efeitos da incorporação de valores. A avaliação
universidade.
da graduação, como qualquer projeto de avaliação, não se faz sem
abertura, mas num amplo processo de reflexão crítica e de
transformação.
Um outro fator importante é que a avaliação da graduação não
Assim, formular um processo de avaliação da graduação é
permitir incorporar aspectos diversos:
 A aprendizagem dos alunos;
 A atividade profissional dos docentes;
se limite às decisões acerca da própria graduação, mas possa
 O currículo implantado, seu planejamento e avaliação;
pressupor interfaces e interferências na instituição como um todo. A
 O funcionamento do curso;
avaliação da qualidade dos cursos e seus currículos atrela-se à
 As inovações didáticas e organizativas propostas;
capacidade crescente das instituições lutarem contra a letargia
 Os recursos de informação disponibilizados;
 Sua opção teorico-metodológica;
de avaliação, definirmos nossas crenças sobre a formação de
 Os valores culturais preconizados;
profissionais no ensino superior. Podemos nos incumbir dessa tarefa
 As experiências múltiplas de formação humana que a
de forma autônoma e consciente ou permitir que a avaliação se
estrutura curricular promove.
Essa visão mais tensa e totalizante da avaliação da graduação seria
constitua unicamente como processo externo do qual nos tornamos
alheios.
uma forma de suplantar, ou mesmo complementar, as diversas
experiências avaliativas que expressam os valores de uma sociedade.
1 Embora ainda confirme
a presença de estudantes dos
A idéia não seria renunciar, ingenuamente, aos processos de
segmentos de maior poder aquisitivo, já se pode identificar uma
formação profissional, mas alargar o campo para além das
tendência deselitizante no acesso as universidades. A Constituição
necessidades imediatas do mercado de trabalho, que deve ser
de 1988 definiu a adoção de outros mecanismos e critérios de
percebida como perspectiva intrínseca a cada instituição, como
seleção diferenciada do concurso vestibular tradicional. Outro
movimento interno que busca confirmar certezas e encontrar
aspecto determinante na questão de acesso ao ensino superior está na
desafios.
oferta de cursos de graduação no período noturno, segundo os
Por fim, é preciso lembrar que a avaliação desencadeia um processo
mesmos padrões de qualidade mantidos no período diurno. Assim, a
de repensar que, por si só, desperta, areja e transforma a percepção e
constituição destaca a ênfase na qualidade dos cursos noturnos
o comprometimento com a qual os professores, alunos e
compatível com a qualidade dos cursos diurnos, o que beneficia
funcionários têm com relação à instituição. A própria instituição
diretamente os candidatos trabalhadores que não têm condições de
abre-se para o debate, consolida formas de coleta das informações
matrícula, nos cursos diurnos. O lento e progressivo processo de
internas e desenvolve condições de melhoria. O bom uso da
alargamento das possibilidades de acesso ao ensino superior já
avaliação possibilita que se avalie para conhecer, para valorar e para
registra um maior contingente popular às portas das instituições. É
melhorar. O seu mau uso serve até para justificar decisões
possível observar, também, a crescente participação de alunos de
previamente tomadas e pode servir para efeito de dominação.
baixa renda, sobretudo, nas faculdades particulares.
De certa forma, cabe a nós, educadores, através dos processos
No entanto, se o acesso de um número significativo de jovens
das camadas populares às instituições públicas pode indicar uma
entre educação continuada, educação à distância, novas combinações
tendência deselitizante, a universidade pública vive os anseios de
de disciplinas e planos de estudo e formação específica.
uma educação superior de qualidade, que não se biparta em duas
O peso na geração de conhecimento se relativiza, a
instituições, uma de ensino diurno (voltada para a Engenharia,
universidade convive com novos espaços de produção, empresas e
Odontologia, Medicina, Veterinária, etc) dos que tiveram percurso
institutos de pesquisa.
na escola privada, e outra, de ensino no período noturno, voltada
A universidade deve ficar mais ágil. Uma breve análise da
para os trabalhadores – para os cursos de Administração, Ciências
experiência brasileira mostra que a diferenciação tem ocorrido mais
Contábeis e Direito e licenciaturas.
agilmente na pós-graduação e na pesquisa, e pouco ainda tem sido
Um exemplo da atenção voltada para a promoção da qualidade
feito no ensino de graduação, no que diz respeito a novas opções de
de cursos de graduação é o Programa de Avaliação Institucional das
ensino, formato de curso, novas áreas e carreiras. O ensino de
Universidades Brasileiras, instituído pelo MEC, em dezembro de
graduação parece ter ficado para trás. Não há notícias de atualização
1993 - O PAIUB - que contempla o fomento de uma cultura
curricular, inovação de métodos pedagógicos e, também, nos
avaliativa da universidade, de modo a envolver toda a comunidade
conteúdos.
acadêmica na discussão sobre a qualidade dos cursos oferecido,
principalmente, sobre o cumprimento da função social das
universidades.
Ao
solicitar
projetos
próprios
de
A avaliação interna é praticamente inexistente, ou pode-se
considerar que raramente é realizada como deveria ser.
avaliação
O mecanismo do Provão, Exame Nacional de Cursos, hoje
institucional às universidades, o PAIUB evoca a avaliação
substituído pelo SINAES, vem com a perspectiva de uma avaliação
quantitativa e avaliação das diversas dimensões da vida acadêmica –
centrada no produto, já que, à maneira do processo industrial, a
ensino, pesquisa, extensão e administração.
perfeição do produto é critério central de qualidade.
Contudo, a introdução de procedimentos de avaliação externa
Sintetizando
é acompanhada de processos internos de avaliação e as instituições
No final do século, estamos assistindo a novos desafios na
não se preparam internamente para implementar procedimentos de
diferenciação no ensino superior. A graduação é uma modalidade
aperfeiçoamento de seu desempenho. Não se preparam para a análise
de comparação com os resultados da avaliação externa.
competências requeridas pelo mercado de trabalho. Formar na
A avaliação externa que controla as práticas institucionais e
graduação não pode ficar à mercê das novidades alardeadas; implica
sugere mudanças que poderão ser introduzidas, de forma alguma
antes em pensar numa formação de longa duração, isto é, formar
deve aniquilar os seus processos internos. A renovação do ensino de
para adquirir relações sociais, políticas, culturais e éticas.
graduação pode se valer intensamente do DIÁLOGO entre avaliação
externa e interna.
Há pelo menos consenso sobre a importância da avaliação....
O ideal aqui é o sistema de referências que orientam a busca de
informações necessárias para verificar as distâncias entre a realidade
e o ideal, porque o processo de avaliação deve partir da definição de
como processo de identificação do nível da qualidade dos cursos,
uma vivência de aspirações do universitário.
Para que o aluno
como busca para a qualidade necessária, o que pressupõe que esteja
aprenda a pesquisar a fim de conquistar a sua autonomia intelectual e
inserida na reflexão sobre o ato de educar no ensino superior.
possa participar de atividades extensionistas, com o propósito de
Motivação para a avaliação interna é acompanhamento dos
vivenciar diferentes manifestações culturais. Esse ideal nos guia para
projetos de formação, cujo objetivo é a produção de conhecimentos
conhecer a realidade e o que referencia as decisões que serão
novos sobre a realidade.
tomadas. Reformular cursos, objetivos, arranjos e integração
A primeira questão polêmica seria: o que avaliar na
curricular e métodos de ensino.
graduação? Os alunos? O que o vestibular/ processo seletivo revelou
É esse movimento interno que a avaliação provoca, que quero
sobre eles, numa orientação diagnóstica? Suas possibilidades diante
enaltecer. A avaliação desencadeia um processo de repensar que por
do curso? Avaliamos os cursos, suas formas de integração e arranjo?
si só areja e transforma a percepção e o comprometimento dos
Conseguimos definir o que entendemos por qualidade no ensino de
alunos, professores e demais integrantes da universidade. A
graduação, mesmo que qualidade signifique coisas distintas para
instituição abre-se ao debate e desenvolve formas de melhoria. O
diferentes grupos.
bom uso da avaliação possibilita calcular para conhecer, para
Avaliar na graduação merece de pronto, uma atualização
conceitual sobre formação no ensino superior. Implica deixar para
trás a visão reducionista de formação centrada no domínio de
melhorar e o mau uso para justificar decisões já tomadas
para
efetuar o domínio.
Por último, gostaria de recomendar que a avaliação seriamente
formulada atrela-se à capacidade de as instituições lutarem contra a
p. 133-159, set. 2003.
letargia permanente, a auto-glorificação imobilista. É também uma
BARREYRO, G. B. Do provão ao SINAES: o processo de
construção de um novo modelo de avaliação da educação superior.
Avaliação, Campinas, ano 9, nº 2, p. 37-49, jun. 2004.
possibilidade da universidade demonstrar sua vocação à sociedade,
em geral.
Cabe a nós, educadores, através dos processos internos de
avaliação, definirmos nossas crenças sobre a formação no ensino
superior. Podemos cumprir a tarefa de forma autônoma e consciente
ou permitir que a avaliação se constitua como processo externo do
qual nos tornamos alheios, apenas meros leitores passivos dos
resultados.
Há de se considerar o esforço das instituições em fazê-lo. O
processo
envolve
o
debate
de
valores,
a
análise
da
multidimensionalidade da formação na graduação, a busca de
procedimentos diversos, a comunicação e devolução dos resultados
das pequenas avaliações e assim, decidir, a partir de seus resultados.
Creio que não há mais pretextos para adiar o processo.
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BRASIL. Lei nº 10.861 de 14/04/2004.
AS TICs E A APRENDIZAGEM COLABORATIVA
condições para a realização da aprendizagem possibilitada pelas
tecnologias da informação e comunicação.
14
Vasconcelos , Maria Auxiliadora Marques
Alonso15, Kátia Morosov
Neste caso, a questão determinante não é a tecnologia em si
mesmo, mas a possibilidade da relação das TICs no processo
RESUMO
Este texto toma como ponto de partida, a relação entre as TICs e a
aprendizagem colaborativa no contexto de novas possibilidades de
interação. Ressalta a implementação das TICs no processo
ensino/aprendizagem especificamente uma leitura sobre a
capacidade de dinamizar a construção do conhecimento através da
aprendizagem colaborativa.
PALAVRAS-CHAVE: Aprendizagem; Colaboração; Interação;
Comunidades; Tecnologias.
ensino/aprendizagem, em particular, trabalho colaborativo.
ABSTRACT
This text takes as a starting point, the relationship between ICT and
collaborative learning in the context of new opportunities for
interaction. Emphasized the implementation of ICTs in the teaching /
learning specifically for a reading on the ability to boost the
construction of knowledge through collaborative.
KEYWORDS: Learning; Collaboration; Interaction; Communities;
Technologies.
A Aprendizagem
Introdução
“aprender” teria manifestado a idéia de aprender como ação.
Objetivamos analisar aqui, utilizando para tanto pesquisa de
revisão bibliográfica, sistematizações de compreensões sobre a
“aprendizagem colaborativa”, entendo-a como processo ativo que
valoriza
a
participação
na
construção
do
conhecimento,
privilegiando processos coletivos e significativos.
A palavra aprendizagem vem do latim apprehendere e
designa a ação de aprender, tomar conhecimento (CUNHA, 1982,
p.60). Tomar conhecimento implica, então, agir. Esse entendimento
traz implícito a ação de alguém, podendo ser reconhecido como
sujeito da construção do conhecimento.
Em sua etimologia, o
A implementação das Tecnologias da Informação e
O conceito de aprendizagem encerra desde sua origem maior
Comunicação com ênfase na aprendizagem permite interação e
amplitude, ao criar vínculos que favorecem intervenções, provocar o
convivências. Nesta perspectiva, podemos dizer que estão dadas as
pensar e a descoberta de soluções para problemas, não sendo um
processo individualizado e linear. Dessa maneira, não é apenas
14
15
Mestranda em Educação do Programa de Pós-graduação da UFMT.
Docente do Programa de Pós-graduação da UFMT.
aquisição de conhecimentos, conteúdos ou informações.
Se considerarmos a aprendizagem como processo de escolhas
compartilhadas e, daí para os processos de ensino aprendizagem,
A Teoria
teremos, como condição inicial, o planejar de ações que estabelecem
Alguns pressupostos teóricos das propostas de colaboração e
o diálogo entre o aluno e o professor. Diálogo esse apoiado em
cooperação foram apresentados pelos psicólogos da Gestalt, Kurt
referenciais que ajudam o professor a interpretar o que ocorre em
Koffka
sala de aula ou em seu grupo de formação.
Interdependência Social e Dinâmica de Grupo, e por Jean Piaget e
Embora isso possa ocorrer em vários lugares, é na escola, em
tese, que seriam organizadas as condições específicas para a
Lévy
e
Kurt
Vigotski,
Lewin,
que
precursores
desenvolveram
do
a
Teoria
Construtivismo
e
da
do
Sociointeracionismo. (Torres, 2007. p.67).
constituição de conhecimentos tidos como edificadores do
A teoria que contribui para a compreensão da aprendizagem
pensamento humano e emancipatórios quanto às suas finalidades.
colaborativa é fundamentada nas Teorias da Epistemologia Genética
Esta organização intencional, planejada e sistemática das finalidades
de Piaget e na teoria Sociocultural de Vigotsky, que contemplam:
e condições da aprendizagem escolar seria tarefa específica do
ensino.
Por isso, vale ressaltar o que afirma Kenski (2007):
A proposta é ampliar o sentido de educar e
reinventar a função da escola, abrindo-a para
novos projetos e oportunidades, que ofereçam
condições de ir além da formação para o
consumo e a produção.
Se assim concebida, a aprendizagem não necessitaria ser
 A teoria da flexibilidade cognitiva;
 O conhecimento situado, aprendizagem cognitiva,
aprendizagem baseada na resolução de problemas;
 O conhecimento distribuído.
Entretanto, a aprendizagem colaborativa insere-se, também,
em um conjunto de tendências pedagógicas e bases teóricas que são:
 O Movimento da Escola Nova;
 A Pedagogia Progressista.
mais um processo de aquisição e domínio de conhecimentos, pois ela
pode ser mediada pelas tecnologias disponíveis que oferecem novos
Ressaltam-se,
ainda,
a
aprendizagem
colaborativa,
desafios e possibilidades de acesso à informação, interação e de
pressupostos da Escola Nova e das idéias de Dewey (1998), na
comunicação, e que também nos orientam para novas aprendizagens.
medida em que elas valorizam a ação do sujeito em ambiente
democrático e com vivência comunitária.
Estas teorias fundamentam-se na hipótese de que os sujeitos
participação no processo do aprender é primordial para a definição
deste conceito.
são agentes ativos, que intencionalmente procuram e constroem
Para Dillenbourg (1999), a aprendizagem colaborativa é uma
conhecimento num contexto significativo, havendo valorização cada
situação de aprendizagem nas quais duas ou mais pessoas aprendem
vez mais importante do papel central do aluno, no processo de
ou tentam aprender algo juntas. Colaboração que não visa
aprendizagem e no conceito de trabalho em grupos, como um espaço
uniformização, mas a heterogeneidade que possibilita novas formas
de criação e construção de conhecimentos.
de relações entre pares.
Portanto, estas teorias formam, sem dúvida, as bases da
Desta forma, ainda que as TICs tenham suas especificidades
aprendizagem colaborativa. E, por suas características próprias, a
e nos orientem para novas aprendizagens, é preciso aliar os objetivos
aprendizagem colaborativa propicia uma forma de ensinar e
do grupo, bem como o suporte tecnológico proporcionado pela
aprender que supera o modelo tradicional de ensino.
interação possibilitada por essas tecnologias.
Sob esta ótica, Garcia (2001), destaca que:
O mundo da educação não pode ignorar esta
realidade tecnológica nem como objeto de estudo
e, muito menos, como instrumento para a
formação de cidadãos que já se organizam nesta
sociedade através de ambientes virtuais.
A Aprendizagem Colaborativa
Colaboração tem um sentido de “fazer junto”, de trabalhar
em conjunto em interação, não havendo composição hierarquizada
do grupo.
De acordo com Barros (1994):
Colaborar (co-labore) significa trabalhar junto,
que implica no conceito de objetivos
compartilhados e uma intenção explicita de
somar algo – criar alguma coisa nova ou
diferente através da colaboração, se contrapondo
a uma simples troca de informação ou de
instruções.
Verificamos que, para se obter um trabalho “colaborativo”, a
Neste cenário, vivemos um novo momento que, pouco a
pouco, a aprendizagem passa ser apoiada pelas TICs. De fato, tais
tecnologias têm potencial para suportar formas diversificadas de
interação, de comunicação e de colaboração se pensarmos em
aprendizagem
na
acepção
antes
referida:
indicativa
do
comprometimento de seus membros numa comunidade que
compartilhe experiências.
Dentro desse contexto, ela pode indicar uma outra
refletir sobre o que faz, sendo-lhe dada oportunidade de pensar por si
organização do processo ensino/aprendizagem, denominada de
mesmo e de comparar o seu processo de pensamento com o dos
“aprendizagem colaborativa”, tendo como pressuposto a cooperação
outros, promovendo o pensamento crítico. Parte também da idéia de
e a participação dos envolvidos num processo dinâmico de
que existem dois tipos de conhecimento: o alicerçado e o não
interações articuladas e em permanente integração entre o individual
alicerçado.
e o social.
O conhecimento alicerçado é o elaborado, disponível nos
A expressão “aprendizagem colaborativa” descreve uma
livros. O conhecimento não alicerçado é construído socialmente,
situação na qual se espera que ocorram formas particulares de
pela interação com outros indivíduos. Este conhecimento é possível
interação entre sujeitos capazes de desencadear processos de
de ser alcançado quando pessoas estão trabalhando juntas, direta ou
aprendizagem.
indiretamente, conversando e chegando a um acordo.
Por trabalho colaborativo, nós designamos, por conseguinte,
O conhecimento é visto como uma construção social e, por
de uma parte, a cooperação entre os membros de uma equipe e de
isso, o processo educativo é favorecido pela participação social em
outra, a realização de uma equipe e de outra, a realização de um
ambientes que propiciem a interação, a colaboração, a avaliação e os
produto final: a Internet apresenta-se neste tempo como a ferramenta
ambientes de aprendizagem colaborativos que são ricos em
adequada para colocar em operação as pedagogias colaborativas.
possibilidades e propicia o crescimento do grupo.
(Torres, 2004. p. 64).
Essa aprendizagem possibilita a dinâmica de grupo que
Esses espaços podem ser entendidos como espaços onde se
permite alcançar objetivos qualitativamente mais ricos em conteúdo,
procura o equilíbrio entre as necessidades sociais e individuais, ao
na medida em que reúne propostas e soluções de vários alunos do
serem proporcionadas aos aprendizes estruturas de participação
grupo, bem como no nível pessoal, pois os alunos aprendem a
específica e de atividade para a aprendizagem social, para a
trabalhar com os colegas e a depender deles para alcançar os
colaboração, a comunicação e a construção do conhecimento.
objetivos de sua aprendizagem e ampliar o resultado do processo.
A aprendizagem colaborativa pressupõe um ambiente de
Dessa forma, o aluno é incentivado a estudar e pesquisar de
aprendizagem aberto em que o sujeito se envolve a fazer coisas e a
modo independente, extra classe, com o intuito de fortalecer o
O aluno é elemento ativo na construção de seu
conhecimento, através do contato com o
conteúdo e da interação feita no grupo; o
conteúdo favorece a reflexão do aluno, e o
professor é o responsável pela orientação da
construção de significados e sentidos em
determinada direção.
aprendizado e dinamizar a comunicação e a troca de informações
entre os colegas.
Portanto, tornar a ação em sala de aula um trabalho onde o
aluno constrói o próprio conhecimento não é tarefa que possa ser
deixada a cargo de um livro.
Neste contexto, ser construtivista é trabalhar sempre com
A principal contribuição da aprendizagem colaborativa é a
desafios que permitam ao aluno ir além do que sabe, fazendo-o
interação sinérgica entre sujeitos que pensam diferente, e a
buscar soluções que superem sempre as já conhecidas.
construção de um produto que somente pode ser alcançado com a
E esta ação construtivista está nas mãos do mediador da
contribuição de todos os pares envolvidos.
aprendizagem: o professor que deve oferecer ao aluno oportunidades
Desta forma, o esforço conjunto de alunos, a troca de
de respostas, caminhos e soluções variadas e criativas, estabelecendo
conhecimentos e de experiência realçam a aprendizagem e podem
entre eles a troca das muitas possibilidades do pensamento.
levar a um conhecimento mais duradouro.
Assim, o papel do professor no contexto colaborativo, seria o
de oferecer orientações e disponibilizar materiais eletrônicos de sua
autoria ou links da própria rede ou proponha debates sobre alguns
As Tecnologias da Informação e Comunicação – TICs
As TICs
têm suas próprias lógicas, linguagens e modos
dos pontos relevantes do tema que se está estudando, debates sobre
particulares de comunicar-se, por isso seus aspectos positivos
novas questões não trabalhadas no seu plano de ensino, ainda que
merecem reconhecimento.
relacionadas com o mesmo, seja o incentivador e organizador das
atividades da aula.
Quanto ao aluno, que resolvam problemas propostos pelo
professor, desenvolvam trabalhos colaborativos dentro de pequenos
grupos e seja pesquisador de sua própria atividade.
É nesse sentido que Vigotski (2007) contempla:
Assim, consolida-se de fato, seu potencial de uso, através da
atualidade tecnológica bem como os diferentes modos de
aprendizagem que devem fazer parte do cotidiano das pessoas.
Atualmente, a utilização das TICs está cada vez mais presente
na vida do cidadão. Introduzir as tecnologias no contexto escolar
significa, também, a necessidade de criar uma nova cultura
educacional, que resulta de mudanças estruturais nas formas de
ensinar e aprender.
Segundo Kenski (2007, p. 66),
as TICs e o ciberespaço
como um novo espaço pedagógico oferecem grandes possibilidades
Segundo Lévy (1999), novas maneiras de pensar e de conviver
e desafios para a atividade cognitiva, afetiva e social de alunos e
estão sendo elaboradas no mundo das telecomunicações e da
professores, mas para que isso se concretize , é preciso olhá-los por
informática. As relações entre os homens, o trabalho, a própria
uma nova perspectiva.
inteligência dependem, na verdade, da metamorfose incessante de
As Tecnologias da Informação e Comunicação têm um papel
dispositivos informacionais de todos os tipos. Escrita, leitura, visão,
significativo na criação do ambiente colaborativo. Mais importante é
audição, criação e aprendizagem são capturadas por uma informática
ressaltar a observação feita por Marco (2003. p.147)
cada vez mais avançada.
A sua importância é vista aqui não pela sua potência
Vale salientar que, atualmente, as TICs viabilizam a
tecnológica enquanto máquina no sentido epistemológico da palavra,
comunicação, porém, o que agrega maior peso a elas é o fator
mas pelas inúmeras possibilidades que o professor, através da
integração, ou seja, a interface de cada uma delas. Considerando esse
máquina poderá criar. O que irá definir a potência das máquinas não
cenário, é relevante destacar uma interessante observação:
é somente a sua tecnologia, mas sim o potencial e a intenção de
Atualmente, a maior parte dos programas
computacionais desempenham um papel de
tecnologia intelectual, ou seja, eles reorganizam,
de uma forma ou de outra, a visão de mundo de
seus usuários e modificam seus reflexos mentais.
As redes informáticas modificam circuitos de
comunicação e de decisão nas organizações. Na
medida em que a informatização avança, certas
funções são eliminadas, novas habilidades
aparecem, a ecologia cognitiva se transforma. O
que equivale a dizer que engenheiros do
conhecimento e promotores da evolução
sociotécnica das organizações serão tão
necessários quanto especialistas em máquinas.
(Lévy, 1999).
quem está por trás dela, ou seja, o homem.
Desta forma, o uso das TICs possibilita novas formas para a
produção e propagação de informações, a interação e a comunicação,
deixando as pessoas mais livres para ampliar a sua capacidade de
reflexão e, também, partilhar em grupos ou comunidades virtuais.
É importante frisar que as TICs propiciam uma configuração
topológica de possibilidade interativa, pois ajuda a construir laços
sociais baseados no conhecimento, além das operações simbólicas e
interações sensório-motoras.
Na era da informação, as TICs também são importantes para
a educação, movimentam-nas e provocam novas mediações com
possibilidade de diálogos e interações permanentes.
A
utilização
das
múltiplas
formas
de
incentivado contribui para a construção do conhecimento.
As idéias chave da aprendizagem colaborativa contemplam a
interação
e
interação que pode levar à aprendizagem individual, enquanto que a
comunicação através das TICs certamente transformarão, também,
compreensão pode ser resultante da participação em formas de
as atuais formas de gestão da educação.
interação e comunicação sociais ou devidas à participação numa
Assim, as TICs revolucionam não só as máquinas, como
comunidade de prática ou de aprendizagem.
também as interações que os sujeitos fazem entre si e com/na
Estas interações ocorrem em um ambiente caracterizado pela
sociedade, transformando sua capacidade de relacionar com o outro
ausência de hierarquia formal, com respeito mútuo às diferenças
e a sua capacidade de ver e agir consigo mesmo.
individuais e liberdade para exposição de idéias e questionamentos.
O uso das TICs é mais uma ferramenta para a aprendizagem
Para Vigotski (1998), a colaboração entre alunos ajuda a
colaborativa que pode oferecer um suporte na comunicação entre
desenvolver estratégias e habilidades gerais de soluções de
indivíduos e grupos, possivelmente possibilitando uma organização
problemas pelo processo cognitivo implícito na interação e
nas atividades e nos processos desempenhados nesta aprendizagem.
comunicação.
A colaboração com outros pares ou outros mais competentes
A Interação
O conceito de interação é muito abrangente e, de acordo com
pode conduzir à compreensão individual e a formas partilhadas de
conhecer, mas deve ser, também, fomentada e construída.
Marco Silva, comporta pelo menos "três interpretações: uma
Atividades de pesquisa, interpretação, comunicação e partilha
genérica, uma mecanicista linear (sistêmica) e uma marcada por
podem ajudar os alunos a tornarem-se construtores mais ativos do
motivações e predisposições (dialética interacionista).” (2000, p.
próprio conhecimento, além de desenvolverem capacidades de
103).
metaconhecimento e de pensamento crítico.
Interação é uma forma de relacionamento em que há trocas e
Em uma abordagem colaborativa, faz sentido para os
influência mútua. Dessa forma, as interações sociais são importantes
participantes que eles se conectem em função de problemas,
para o processo de aprendizagem e todo o processo interacional
interesses e experiências a compartilhar, pois a atividade em grupo
possibilita uma menor competitividade, e na negociação reúne
conteúdos. Salas de aula que enfatizam a comunicação e a
propostas e soluções dos vários elementos, possibilitando assim
colaboração baseadas em atividade formal e em estruturas de
alcançar níveis qualitativos mais elevados em conteúdo.
participação.
A colaboração vai além do envolvimento direto em atividades
A participação numa comunidade fornece à aprendizagem um
específicas. É um processo que ajuda os alunos a atingir níveis mais
contexto social o qual dá suporte às tarefas e às atividades em que os
profundos de geração de conhecimento por meio da criação de
aprendizes estão envolvidos, tendo em vista o desenvolvimento de
objetivos comuns, trabalho conjunto e um processo compartilhado
uma base de conhecimento partilhado.
de construção de sentido. (Paloff e Pratt, 2001).
Dentro de cada comunidade, os alunos são produtores e
consumidores de conhecimento, não apenas para eles, mas também
As Comunidades de Aprendizagem
As comunidades de aprendizagem podem ser constituídas por
grupos virtuais de alunos e professores, pertencentes à mesma escola
ou não, que desejem estudar junto e trocar experiências.
Caracterizam-se pelo seu aspecto informal e democrático, em
que as pessoas interagem em propostas colaborativas de pesquisa,
estudo, discussão, troca de informações, debates e reflexão conjunta,
possibilitando:
 O trabalho em equipe;
 As atividades de pesquisa-ação;
 Os projetos de intervenção nas escolas e comunidades.
para a comunidade, uma vez que o conhecimento é distribuído entre
os membros dessa comunidade através da interação social, da
colaboração e da comunicação.
A comunidade de aprendizagem é constituída por pessoas com
características determinadas, com interesses ou necessidades comuns
que surgem com a interação.
Assim,
as
comunidades
de aprendizagem
podem
ser
observadas, a partir da interação geradas por uma equipe que busca a
produção do conhecimento constantemente.
O papel preponderante do trabalho colaborativo é que o sujeito
ganhará mais confiança para produzir algo, criar mais livremente,
A colaboração em um ambiente computacional torna-se visível
sem medo dos erros que possa cometer, aumentando sua
e constante, vinda do ambiente livre e aberto ao diálogo, da troca de
autoconfiança, sua auto-estima, na aceitação de críticas, discussões
idéias, onde a fala tem papel fundamental na aplicação dos
de um trabalho feito pelos seus próprios pares.
Portanto, a tecnologia na escola precisa ser compreendida
como um componente adequado no processo educativo, pois o meio
digital possibilita o uso de abordagens educacionais, que segundo
Almeida (2003), pode ter como foco:
As relações que podem se estabelecer entre todos os
participantes, evidenciando um processo educacional colaborativo,
no qual todos se comunicam com todos e podem produzir
conhecimento.
A utilização dos computadores em ambientes de trabalho e
aprendizagem colaborativos pode tornar diferentes formas:
 Colaboração em relação ao computador (um ou mais
alunos trabalham num mesmo computador);
 Colaboração baseada numa rede local (um ou mais
alunos trabalham em vários computadores no mesmo
lugar);
 Colaboração no ciberespaço, baseada numa rede
alargada (um ou mais alunos trabalham em
computadores geograficamente distantes).
Os sistemas informáticos de suporte à comunicação mediada
pelo computador e de apoio à aprendizagem colaborativa
(tecnologias de groupware: tecnologia para agrupar pessoas) são
típica e tradicionalmente classificados por categorias segundo uma
matriz de tempo/localização dos utilizadores denominados:
 Síncrona (ocorre ao mesmo tempo - videoconferência);
 Assíncrona (tempo diferente – correio eletrônico,
hipertexto);
 Presenciais (mesmo lugar);
 Remotos (lugar ou lugares distantes).
O apoio ao trabalho colaborativo envolve um conjunto de
ferramentas, estruturadas em groupware. Com este ambiente,
professores e alunos reavaliam continuamente seus papéis, na
medida em que vislumbram novas possibilidades de inserção de
novos recursos tecnológicos quanto às formas de utilização,
promovendo novas interações sociais.
O groupware supõe a modelagem de sistemas baseados em
computador que suportam grupos de usuários envolvidos em um
trabalho comum e que proporciona uma interface ao ambiente
compartilhado. Na realidade, o groupware é o hardware e software
que suportam e ampliam o trabalho em grupo.
Estas
plataformas
identificam-se
genericamente
pela
incorporação das seguintes características:
 Facilidade de utilização tanto para o professor como
para os alunos;
 Variedade de meios (texto, gráfico, vídeo, áudio);
 Diferentes modos de comunicação (um para todos, um
a um, e todos para todos);
 Comunicação em tempo real (chat, videoconferência);
 Listas de discussão (foros);
 Pesquisa de textos;
 Ligações html;
 Avaliação on-line dos alunos;
 Acompanhamento das atividades dos alunos;
 Ajuda e tutoria on-line;
 Possibilidade de acesso remoto para professores e
alunos;
 Segurança e acesso mediante palavra-chave;
 Facilidade de atualização de novas versões.
ensino/aprendizagem da interação.
Esperamos que os aspectos abordados neste trabalho venha a
contribuir para a discussão das TICs, refletindo acerca delas e
sistematizando-as
Portanto, o computador é, na realidade, um dos maiores
como
socializadora
nos
processos
de
aprendizagem, entre elas, a colaborativa.
benefícios trazidos pelas TICs que reside na experiência do
compartilhar e interagir. Importante como um recurso para a
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
aprendizagem colaborativa como o papel de suporte, pois enfatiza as
possibilidades de usá-lo, não somente como uma ferramenta
individual, mas através dos quais os alunos e os grupos podem
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TERÇARIOL, Adriana Aparecida de Lima. Tecnologias na
formação e na gestão escolar. São Paulo: Avercamp, 2007.
colaborar uns com os outros.
Considerações finais
Assim, com o objetivo de incorporar novas formas de
trabalhar o conhecimento, este texto destaca como as TICs
contribuem para aprendizagem colaborativa construindo espaços de
expressão para ampliar a linguagem comunicativa dos sujeitos, como
mais um sistema semiótico (ou de significados).
Além disso, ressalta as TICs no processo ensino/aprendizagem
pautada em um processo comunicativo, numa relação entre as
pessoas, com ou sem instrumentos tecnológicos.
Torna-se relevante ressaltar ainda as TICs como apoiadoras da
aprendizagem colaborativa, com a qual se pode acrescer o processo
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superiores.
Organizadores Michael Cole... [et al.]; tradução José Cipolla Neto,
Luís Silveira Menna Barreto, Solange Castro Afeche. 7. ed. São
Paulo: Martins Fontes, 2007.
LER POR PRAZER:
PERSPECTIVAS
PARA A LEITURA LITERÁRIA
NA ESCOLA
LER POR PRAZER: PERSPECTIVAS PARA A LEITURA
LITERÁRIA NA ESCOLA
está indistinta/A distinção entre nada e coisa
nenhuma./ Quanto melhor é quando há
bruma./Esperar por D. Sebastião,/Quer venha ou
não!/Grande é a poesia, a bondade e as
danças.../Mas o melhor do mundo são as
crianças, /Flores, música, o luar, e o sol que
peca/ só quando, em vez de criar, seca./ E mais
do que isto/ É Jesus Cristo,/ Que não sabia nada
de
finanças,/Nem
consta
que
tivesse
biblioteca...”(Fernando Pessoa).
COENGA,Rosemar16
RESUMO
Este trabalho tem como objeto, o estudo das práticas de leitura
literária na escola e, como objetivo, demonstrar que a leitura na
escola está associada ao prazer e a fruição estética. Quero trazer à
reflexão, a idéia de que leitura é prazer.
PALAVRAS-CHAVE: leitura, literatura e prazer estético.
RÉSUMÉ
Cette travaille a, pour objet, l’ étude des pratiques scolaires de
lecture littéraire dans l’école et comme objetif démontrer qui a
lecture dans l’école est associe au plaisir et a fruicion estétique. Je
voudrais discuter l’idée de qui la lecture est plaisir.
MOTS-CLÉ: lecture, litterature et plaisir estétique.
Penso que é preciso buscar o prazer, mesmo que no
descumprimento das normas e dos discursos mais sacramentados. O
dicionário Aurélio traz a seguinte definição da palavra prazer [Do
lat. Placere.] Causar prazer ou satisfação; agradar, aprazer,
comprazer. Sensação ou sentimento agradável, harmonioso, que
atende a uma inclinação vital; alegria, contentamento, satisfação,
deleite.
Para mim, a leitura literária desencadeia em nós nossa quota
Inicio
minha
reflexão
com
base
no
texto
poético
“Liberdade”, de Fernando Pessoa:
“Ai que prazer/ não cumprir um dever./ Ter um
livro para ler/ e não o fazer!/ Ler é maçada,
/estudar é nada./ O sol doira sem literatura./ O
rio corre bem ou mal, / sem edição original./ E a
brisa, essa, de tão naturalmente matinal/ como
tem tempo, não tem pressa.../Livros são papéis
pintados com tinta./Estudar é uma coisa em que
16
Mestre em Educação pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e
Doutorando em Teoria Literária pela Universidade de Brasília (UNB).
de humanidade, na medida em que nos torna mais compreensivos,
tolerantes e sensíveis, porque tratam de assuntos que afetam a
dimensão humana. Para Jouve (2002), “o charme da leitura provém
em grande parte das emoções que ela suscita. Se a recepção do texto
recorre às capacidades reflexivas do leitor, influi igualmente 
talvez, sobretudo  sobre sua afetividade. As emoções estão de fato
na base do princípio de identificação, motor essencial da leitura de
ficção”. (Jouve, 2002, p. 19). O que desejo com esta reflexão é
traçar um percurso feito pelo leitor, entre o prazer e a fruição, para
tanto recorro às idéias de Roland Barthes, Umberto Eco, Hans
Para Barthes, o texto de gozo é sempre insuportável, sempre
Robert Jauss e de outros estudiosos que discutem amplamente esses
colocando em jogo a morte, a perda, a destruição das certezas do
assuntos.
sujeito, a ruína de seus alicerces, enquanto o texto de prazer
O texto tem seu sabor. É ele que nos leva ao prazer da leitura.
È muito comum o leitor utilizar metáforas culinárias para revelar seu
reconforta o leitor, “contenta, enche, dá euforia”, não estabelece
entre leitor e linguagem uma relação de crise.
prazer gustativo diante de leitura. São comuns verbos como digerir,
Assim, o texto de fruição é de ruptura, de desdobramentos, de
devorar, engolir etc utilizados por leitores ávidos, sedentos.
defecção. É uma “esfoladura”, nas palavras de Barthes. Na tradição
Em seu livro O prazer do texto, partindo das idéias
psicanalíticas de gozo e prazer, e tentando articular através delas
dois tipos de lógica de funcionamento do texto, Barthes demonstrará
que o texto de gozo, ao contrário do texto de prazer, não obedece a
uma dinâmica do preenchimento, da satisfação, mas aponta para algo
da pesquisa sobre leitura literária, várias posições teóricas disputam
lugar. Para Jouvé (2002) há duas abordagens centrais: uma que se
ocupa do como se lê, representada pela Escola de Constance e a
outra, que se preocupa com o que se lê, representada pelas teorias
que analisam os leitores reais.
que se situa sempre adiante, sempre mais além, e que, portanto,
A Escola de Constance tem por objeto o estudo da relação
nunca é atingido, nunca se completa, nunca se satisfaz. Para Barthes
anteriormente textual para a relação leitor/texto. Os principais
(1996):
representantes desta escola são Jauss (1979), com a Teoria da
Texto de prazer: aquele que contenta, enche, dá
euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com
ela, está ligado a uma prática confortável da leitura.
Texto de fruição: aquele que põe em estado de
perda, aquele que desconforta (talvez até certo
enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais,
psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos,
de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em
crise sua relação com a linguagem. (Barthes, 1996,
pp. 21-22).
Estética da Recepção, e Iser (1996), com a teoria do leitor implícito.
Na visão de Jauss, o leitor ganha uma grande dimensão. A sucessão
dos leitores de uma obra constitui a própria história literária, ou seja,
o texto literário não sobrevive sem um público. Nesse caso, a
literatura não deve ser estudada a partir de seu impacto sobre as
normas sociais, uma vez que pré-forma a compreensão de mundo do
leitor, repercutindo então em seu comportamento social. Iser se
preocupa com o leitor em particular, pois para ele o leitor é
pressuposto do texto. Logo, ele tenta vislumbrar como um texto
Trata-se, portanto, de uma leitura que exige do leitor
literário direciona a leitura do leitor e como este reage
experiência, habilidades e conhecimentos de mundo, de língua e de
cognitivamente aos percursos impostos pelo texto.
texto, a fim de que ele possa, durante o processo de interação,
Além de Jauss e Iser, Eco (1994) postula uma análise da
leitura cooperativa, cujo objetivo, próximo ao de Iser, é estudar as
projetar algo de si mesmo na construção de um sentido para o texto
e, ao mesmo tempo, buscar no outro a descoberta do seu próprio ser.
maneiras pelas quais o texto programa sua recepção e as formas
Como professor, compartilho a idéia de que a leitura é um
pelas quais o leitor (modelo) responde às solicitações das estruturas
ato interativo e de compreensão de mundo, e persigo a idéia de que a
sociais. Na proposta de Jouvé (2002) é imprescindível determinar os
leitura literária em sala de aula deve favorecer o prazer e a fruição
papéis do texto e do leitor na concretização do sentido para a
estética.
investigação de como se lê e o que se lê. Se a leitura é vista como
A pesquisa desenvolvida pela professora Lílian Lopes Martin
produção interativa entre leitor e texto, dessa maneira, a obra
da Silva (1986), sobre o ensino da literatura para jovens do ensino
literária tem constitutivamente, necessidade da participação do
fundamental, demonstra através de depoimentos dos alunos, como as
destinatário. O universo textual é sempre inacabado e a recepção e,
estratégias e os métodos utilizados em sala de aula  resumos,
pois, o acabamento da obra. Para Jouvè (2002), o papel do leitor na
questionários, fichas de leitura, provas, etc., em vez de motivarem os
interpretação textual se dá da seguinte maneira:
leitores à leitura literária, na verdade se transformavam numa
“didática
Há sempre duas dimensões na leitura: uma comum a
todo leitor porque determinada pelo texto e outra
variável até o infinito porque depende do que cada um
projeta no texto de si mesmo.[...] A leitura levando o
leitor a integrar a visão do texto a sua não é uma
atitude passiva. O leitor vai retirar desta relação não só
sentido, mas também significação[...] O que permite a
leitura é a descoberta da sua alteridade. O outro do
texto, narrador ou personagem, nos remete a uma
imagem de nós mesmos. (Jouvé, 2002, pp. 94-97).
da
destruição
da
leitura”,
termo
cunhado
pela
pesquisadora.
Soares (1999), ao discutir o ensino da literatura infantojuvenil, considera o processo de escolarização inevitável, por ser da
essência da escola a instituição dos saberes escolares. Entretanto
defende a possibilidade de descoberta de uma escolarização
adequada da literatura. E o que significa escolarização? Segundo a
ao se tornar saber escolar se escolarize, porque isso significaria
pesquisadora, o conceito escolarização é, em geral, tomado no
negar a própria escola, afirma Soares (1999, p.21).
sentido pejorativo, depreciativo, quando utilizado em relação a
É importante salientar que, ao analisar o ensino de literatura,
conhecimento e saberes, produções culturais, como há conotação
a autora não condena a escolarização desse conhecimento, mas sim,
pejorativa nas expressões adjetivadas conhecimento escolarizado,
a forma inadequada com que ela tem se realizado no cotidiano
arte escolarizada, literatura escolarizada. No entanto, em tese, não é
escolar. Essa imprópria escolarização contribui para a falsificação, a
correta ou justa a atribuição dessa conotação pejorativa. É necessário
distorção da literatura, uma vez que esvazia o texto literário de seu
lembrar que, não há como ter escola sem ter escolarização de
potencial, congelando-o, por exemplo, em definições e classificações
conhecimentos, saberes, artes, diz a autora, uma vez que o
que concorrem para afastar o aluno das práticas de leitura literária,
surgimento da escola está atrelada à constituição de saberes
desenvolvendo nele resistência ou aversão.
escolares que se presentificam e se formalizam em currículos,
Não se trata, como bem destacou Soares, de condenar a
matérias, disciplinas, programas e metodologias, nada disso exigido
escola ou a relação desta com a literatura. Literatura e escola são
pela invenção, responsável pela criação da escola, de um espaço e de
duas instituições e é como tal que estão em constante interação.
um tempo de aprendizagem.
Para favorecer a leitura prazerosa é importante que o
Na concepção de Soares, portanto, a escola é instituição em
professor tenha a preocupação e o cuidado da seleção, organização e
que o fluxo das tarefas e das ações é ordenado em torno de
no tratamento dos textos. A minha experiência como professor
procedimentos formalizados de ensino, isto é, ordenado através de
mostra que para instaurar o prazer do texto literário em sala de aula,
um tratamento peculiar dos saberes pela seleção, e conseqüente
primeiramente, é necessário, saber quem é esse aluno, indagar sobre
exclusão, de conteúdos, pela ordenação e seqüenciação desses
seu ambiente familiar, o tipo de leitura favorita, freqüência com que
conteúdos, pelo modo de ensinar e de fazer aprender esses
lê, autores favoritos, como gostaria que fossem suas aulas de
conteúdos. È a todo esse processo que a autora chama de
literatura, entre outros aspectos que o professor possa considerar
escolarização  processo que a institui e que a constitui. Nessa
relevantes.
perspectiva, não há como evitar que a literatura, qualquer literatura,
Levando em conta as diretrizes estabelecidas, o professor
poderá propor um programa de leituras, para ser trabalhado durante
exemplo, o aluno não quer ler e forçá-lo a isso não contribuirá na
determinando tempo, que pode se desenvolver através de crônicas,
formação do gosto pela leitura por parte deste.
textos curtos, poesias, fábulas, romances, novelas. Contudo, penso
Assim, é importante que a hora de ler tenha o perfil que o
que é importante que esse programa seja discutido com os alunos,
leitor empregar a ela. O professor será um observador perspicaz e
privilegiando a participação/interação nesse processo.
dedicado, pronto para corrigir possíveis desvios do objetivo da
Um outro aspecto que considero relevante destacar consiste
nas palavras de Pennac (1998). Para ele, o leitor possui direitos
proposta programada, mas os agentes do momento reservado à
leitura serão o leitor e o livro.
imprescritíveis, dentre eles:
Para mim, não se pode pensar em formar aluno-leitor se não
1. O direito de não ler;
houver o professor-leitor. Para Lajolo (1994) a discussão sobre
2. O direito de pular páginas;
leitura, principalmente numa sociedade que pretende democratizar-
3. O direito de não terminar um livro;
se, começa dizendo que os profissionais responsáveis pela iniciação
4. O direito de reler;
na leitura devem ser bons leitores. Um professor precisa gostar de
5. O direito de ler qualquer coisa;
ler, precisa ler muito, precisa envolver-se com o que lê. Essa idéia
6. O direito ao bovarismo (doença textualmente transmissível);
levou-me a analisar as histórias de leitura de professores de língua
7. O direito de ler em qualquer lugar;
portuguesa tecida no decorrer de sua vida pessoal, acadêmica e
8. O direito de ler uma frase aqui e outra ali;
profissional, no trabalho intitulado Pelas veredas da memória:
9. O direito de ler em voz alta;
revisitando as histórias de leitura de professores de língua
10. O direito de calar.
portuguesa, idéia essa compactuada com a de Lajolo.
Esse é um momento de intimidade entre o leitor e o livro e essa
Também, penso que a atividade não deva ser desenvolvida
relação necessita ser respeitada. O professor precisa estar atento a
apenas pelo professor de língua portuguesa. Não faz sentido atribuir
esses direitos para não se tornar autoritário com os alunos, impondo-
esta responsabilidade a apenas um professor, enquanto que a leitura
lhes um modelo único de leitor, na qual eles devem se enquadrar. O
faz parte de todas as áreas do saber.
professor precisa ter sensibilidade para notar que naquele dia, por
Concluo minha reflexão em torno do poema “Cartas a um
jovem leitor”:
Cia das Letras, 1994.
“Você me pergunta/Que melhores livros e
autores/Devia ter e ler/E eu lhe indico/Ao acaso,
aqui,/Sem fazer o profundo/alguns dos que já
li/O critério podia ser melhor,/Mas não tem parti
pris./ Comecemos com o Livro, A Bíblia/Em
segundo, Platão(Diálogos, A República),/Em
terceiro o Corão./Na certa as Rubaiatas, Ensaios
de Confúcio E o Maabarata./Algum teatro
grego,/ Um pouco de romano, E em teatro já
tardo/ Se não falar do Bardo./Logo ponho Defoe
com Robinson Crusóe./ E em seguida vem/O
bom Mark Twain/Sem esquecermos Camões/
Os contos da Clarice/O máximo no gênero/E a
suave meiguice/Desse lírico modelo/Que é
Marques Rebelo/ah, a sibilina prosa de João:
João Guimarães Rosa./ De Rosa, vem
Rosário/Amargo e solitário... Aconselhar, neste
final,/Pro safado que você/Um pouco de
Rabelais./Acho que já ajudo/Amigo: não posso
citar tudo./ P.S. sem esquecer, é claro, (e não
faz nenhum favor)/
O livro vermelho dos pensamentos do Millôr.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
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1996.
COENGA, Rosemar. Pelas veredas da memória: revisitando as
histórias de leitura de professores de língua portuguesa.
Universidade Federal de Mato Grosso. 2003 (Dissertação de
Mestrado).
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FERNANDES, Millôr. Cartas a um jovem leitor. In: Circo de
palavras: histórias, poemas e pensamentos. São Paulo: Ática, 2007.
ISER, Wolfang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São
Paulo: Ed. 34, 1996.
JAUSS, Hans Robert. A história da literatura como provocação à
teoria literária. São Paulo: Ática, 1994.
_______. A literatura e o leitor: textos de estética da recepção. Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
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LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo.
São Paulo: Ática, 1994.
PENNAC, Daniel. Como um romance. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
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didática da destruição da leitura. Porto Alegre: Mercado Aberto,
1986.
SOARES, Magda. A escolarização da literatura infantil e juvenil. In:
EVANGELISTA, Aracy Alves Martins et all. (orgs.). A
escolarização da leitura literária: o jogo do livro infantil e juvenil.
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
MARCADORES CONVERSACIONAIS/ DISCURSIVOS NO/
DO FALAR CUIABANO17
BORGES, Maria Aparecida Mendes18
TAYSA, Auda
SILVA, Adna
FERREIRA, Cristiane
LEMES, Glaucilene
SAMARY, Kerzy
SOARES, Rejane 19
MARCADORES CONVERSACIONAIS/
DISCURSIVOS NO/ DO FALAR CUIABANO
RESUMO
Neste trabalho, fazemos uma análise sobre a língua falada, com
relação aos marcadores conversacionais/discursivos no falar
cuiabano. Esses marcadores fazem parte de uma realidade, cujo
discurso não sofre os preconceitos de outras marcas do falar, na
conhecida baixada cuiabana.
PALAVRAS-CHAVE: Marcadores conversacionais/ discursivos;
conversação; falar cuiabano.
ABSTRACT
Analysis of the language spoken, with respect to discourse markers
in cuiabano speak. These markers are part of a reality, whose speech
does not suffer the prejudices of other brands of talk in cuiabana
downloaded.
KEYWORDS: Labels discourse; conversation; talking cuiabano.
Neste artigo, apresentamos uma análise sobre a língua falada, na
17
Por se tratar de um estudo inédito, consideramo-lo como proposição para futuras
pesquisas.
18
Doutoranda em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo e
professora do curso de Letras do ICE- Instituto Cuiabano de Educação.
19
Estudantes do curso de Letras do ICE - Instituto Cuiabano de Educação.
Federal do Acre. Sabe, a pessoa quando nasce pra
ter sucesso, o reflexo começa cedo, pois ela sai do
ensino médio direto pra Universidade Federal, e
quando se forma, num tem, passa no primeiro
concurso público. 20
- O senhor quer comprar rosas?
- Como?
- Rosas, num tem? 21
baixada cuiabana, com relação aos marcadores conversacionais/
discursivos. Procuramos compreender como ocorre o processo de
conversação – por ser um tipo de ação conjunta, participam dois ou
mais interlocutores que se alternam, tratando sobre temas próprios
do dia-a-dia. Assim, esses marcadores organizam a fala em turnos
sem uma disposição fixa, e podem ser caracterizados como modelos
simétricos e assimétricos.
No modelo simétrico é a conversação de ambos os
interlocutores que têm o mesmo direito não só de tomar a palavra,
mas também de escolher o tópico discursivo direcionando-o de
acordo com o tempo de participação. Já no modelo assimétrico ocorre
uma prioridade no que diz respeito ao uso da palavra, cabendo a um
dos interlocutores começar uma conversação, conduzi-la e também
mudar o tópico.
Percebemos os marcadores no início, no meio e no final do
discurso. Assim, propomos questões gerais relativas à produção do
sentido dos marcadores conversacionais. É necessário que haja um
estudo desse material para que se tenham condições de avaliar as
funções pragmáticas e estratégicas dos atos de fala individuais de
uma seqüência. É interessante saber o que o falante está insinuando, e
os dizeres no seu enunciado. Sempre que se interage através da
língua, profere-se um enunciado lingüístico dotado de certa força,
assim o discurso produzido pelo interlocutor tem efeito. Desse modo,
Dessa forma, uma conversação espontânea é relativamente
não-planejada, ou seja, é administrada passo a passo, de como será
dita, a maneira de ser dita e quem irá dizê-la. Esses elementos podem
um ato de linguagem não é apenas um ato de dizer, mas acima de
tudo, um ato social pelos quais os membros de uma comunidade
interagem. Segundo Bange, o ato de linguagem é:
ser antecipados apenas para seqüências limitadas, tornando-se difícil
Se for exato que “falamos através de textos”, isto
é, se os discursos constituem de fato o objeto
adequado da lingüística; se, de outro lado,
admitimos que a língua seja um meio de resolver os
problemas que se apresentam constantemente na
definir a forma e a direção do assunto para que haja a seqüência toda.
O corpus de nossa pesquisa é constituído por diálogos, nos
modelos simétricos e assimétricos, no linguajar da baixada cuiabana:
- Num tem aquela menina que era a mais estudiosa
e dedicada da sala? Pois é, ela passou em terceiro
lugar para o curso de Medicina na Universidade
20
21
Gravação da fala de uma jovem, em ônibus coletivo.
Diálogo entre um cliente e uma criança que vende rosas, em um bar de Cuiabá.
vida social, então a conversação pode ser
considerada a forma de base de organização da
atividade de linguagem, já que ela é a forma da
vida cotidiana, uma forma interativa, inseparável
da situação. (1983: 03)
simples e mais clássica da comunicação verbal. E que:
O acabamento do enunciado é de certo modo a
alternância dos sujeitos falantes vista do interior; essa
alternância ocorre precisamente porque o locutor
disse (ou escreveu) tudo o que queria dizer num
preciso momento e em condições precisas. Ao ouvir
ou ao ler, sentimos claramente o fim de um
enunciado, como se ouvíssemos o “dixi” conclusivo
do locutor. É um acabamento totalmente específico e
que pode ser determinado por meio de critérios
particulares. (...) A totalidade acabada do enunciado
que proporciona a possibilidade de responder (de
compreender de modo responsivo) e determinada por
três fatores indissociavelmente ligados no todo
orgânico do enunciado: 1) o tratamento exaustivo do
objeto do sentido; 2) o intuito, o querer-dizer do
locutor; 3) as formas típicas de estruturação do
gênero do acabamento. (2000: 299)
Partindo desse pressuposto, o texto falado surge no próprio
momento da interação, isto é, ele é o seu próprio rascunho. Como é a
interação imediata que importa, acontecem pressões de ordem
pragmática que acabam por sobrepor-se à sintaxe. Isso significa que
o locutor, muitas vezes, vê-se obrigado a deixar a sintaxe em prol
das necessidades da interação, visto que, o fato está presente no texto
falado, de sobreposição de vozes, orações truncadas, inserções de
tópicos variados para garantir a compreensão dos enunciados pelos
interlocutores. Desse modo, o texto oral é uma criação coletiva de
seus participantes.
Para produzir e manter uma conversação acredita-se que os
interlocutores devam compartilhar de conhecimentos comuns como a
aptidão lingüística, o envolvimento cultural e o domínio das situações
sociais de informação que são relacionados à progressão do texto oral
dialogado, por causa da presença dos marcadores conversacionais que
contribuem para esta progressão, observando a conversação como um
momento de obtenção de um objetivo interacional a ser atingido
pelos interlocutores.
Conforme Bakhtin (2000:298), o diálogo real é a forma mais
Na análise de conversação do linguajar cuiabano, utilizamos
em nossa pesquisa de campo entrevistas com moradores do Arraial
do São Gonçalo e outras participações; portanto, colocamos ênfase na
pronúncia ou linguagem regional que é o linguajar cuiabano em que
predominam
os
marcadores
discursivos
lingüísticos
verbais
lexicalizado: “Né”, “então”, “e aí então”, “e aí”, “num tem” “daí”.
O MCs “num tem”, é uma das formas mais verbais de
marcadores conversacionais utilizada na fala da baixada cuiabana. E
entender principalmente, por que o MCs “num tem?” é uma
característica dos moradores da baixada cuiabana, pois é um
marcador lingüístico verbal lexicalizado, simples, utilizado tanto
como busca de apoio no início do discurso, como busca de apoio no
Marcador Simples (uma só palavra); Marcador Composto (apresenta
meio e no final de turno.
um caráter sintagmático); Marcador Oracional (corresponde a
Os Marcadores Conversacionais servem para indicar não só
pequenas orações que nos apresentam diversos tempos e formas
elementos verbais, mas também estudos sobre a pronúncia das
verbais); Marcador Prosódico (associa-se a algum marcador verbal,
palavras e variações não-lingüísticas que desempenham função
mas realiza-se por meio de recursos prosódicos).
participativa na fala.
Os marcadores são, portanto, elementos que auxiliam no
Podemos perceber a ocorrência de alguns recursos que são
desenvolvimento
interacional
da
atividade
discursiva.
Os
traços característicos da fala, que funcionam como marcadores
interlocutores empregam os MCs no ponto da interação, como textos
formando
orais
uma
classe
de
palavras
ou
sentidos
altamente
planejados
e
verbalizados
que
desempenham
funções
estereotipados de grande ocorrência e recorrência. São MCs
conversacionais e sintáticas. Os falantes inserem MCs no início, no
prosódicos (supra-segmentais) de natureza lingüística, de caráter não-
meio e no fim de unidades comunicativas (UC), são porções
verbal (entonacionais, pausas, tom de voz, ritmo, velocidade e
informacionais, que ao coincidirem com turnos orações ou atos de
alongamento vocálicos).
fala, formam os enunciados conversacionais.
Os dois mais importantes são as pausas e o tom de voz. As
Os interlocutores recorrem a MCs lingüísticos (verbais e
pausas podem ser curtas, médias ou longas e constituem um fator
prosódicos) e paralingüísticos (não-verbais). Os MCs verbais (junto
decisivo na organização do texto conversacional. Já os recursos não-
de partículas, palavras, sintagmas, expressões estereotipadas, orações
lingüísticos como o riso, o olhar e a gesticulação exercem uma
e expressões não-lexicadas). É importante destacar as pausas e o tom
função fundamental na interação face a face, na medida em que se
de voz, e nos MCs paralingüísticos não-verbais, estabelecem,
estabelecem, mantêm e regulam o contato entre os participantes.
mantém, e regulam a interação, por meio de risos,olhares, gestos,
Ao se considerar as funções textuais e argumentativas dos
meneios de cabeça.
marcadores, verifica-se que esses elementos desempenham papel de
Ao elaborarmos uma análise de nosso corpus, percebemos os
especificadores, e orientam as atividades do locutor e do interlocutor
Marcadores Conversacionais mais usados na comunidade Arraial do
como são explicados por Marcuschi (1987) dividindo-os em:
São Gonçalo Beira Rio e em outras comunidades que são: “né?”,
“então?”, “e aí então”, “e aí”, “num tem” “daí”.
construção dos participantes na situação interativa. Ou seja, dentro do
É interessante salientar que o marcador “num tem”, tão
linguajar cuiabano, desta forma, na interação face a face, é preciso
presente na fala cuiabana, ainda não fora estudado por outros
estar constantemente alerta, controlando o processo da conversação
pesquisadores. Outra observação diz respeito aos marcadores
para que haja uma melhor compreensão entre os parceiros no
lingüísticos“né”, “então” e “num tem”, que servem como busca de
atendimento das solicitações e da negociação do sentido no que está
apoio, e são muito utilizados por adolescentes e pessoas que não
sendo dito.
nasceram aqui, mas que depois de alguns anos morando em Cuiabá,
assimilam esses marcadores conversacionais.
Os marcadores lingüísticos “e, aí, então”,“daí” que servem
para início de unidade comunicativa
O fator relevante na conversação é o alto índice de
marcadores conversacionais, cuja finalidade é reforçar a continuidade
dos tópicos, criando uma maior fluência na dinâmica conversacional.
são utilizados pela maioria dos
Por isso, o linguajar cuiabano é uma forma especial de falar,
falantes, independente de seu linguajar materno, pode ser tanto
enriquecida com a herança da linguagem dos índios, negros,
cuiabanos como pessoas de outros estados, e estão muito presente na
paraguaios. É, e sempre será, um dos mais fortes traços da cultura
comunicação dos jovens.
local.
Neste trabalho, percebemos como é essencial o lugar onde os
indivíduos se representam e constituem o mundo. E por isso, não
basta apenas estudar como exemplo o linguajar cuiabano como um
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins
fontes, 2000.
código. Não basta transmitir uma mensagem como um sistema formal
abstrato, com elementos de vários níveis que permitam organizar as
frases de uma língua fora de um contexto. É necessário ver a
linguagem como lugar de interação, de constituição de identidades e
de co-participação.
Tudo o que foi exposto aqui reafirma que a coerência do texto
oral dialogado não está só no âmbito do texto, mas resulta de uma
BANCO DE DADOS INTERACIONAIS – Programa de estudos sobre o
uso da língua. Pós-graduação. Faculdade de Letras. UFRJ/CNPq, 1996, p.
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FÁVERO, Leonor Lopes et alii. Oralidade e escrita: perspectivas para o
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NAS PRÁTICAS ESCOLARES
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mestrado – 1980.
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RESUMO
O presente estudo analisa marcas e implicações do
Movimento da Matemática Moderna (MMM) nas práticas escolares,
nas décadas de 1960 e 1970. Analisa o debate do MMM, registrado
nos Anais do 5° Congresso Nacional de Ensino de Matemática,
realizado em 1966, na cidade de São José dos Campos, no Estado de
São Paulo, cujas discussões centraram-se na temática da Matemática
Moderna. As marcas do movimento são buscadas em fontes primárias
que atestam a vigência dos novos conteúdos matemáticos nas práticas
escolares brasileiras, ou sejam, nas provas de Matemática do Exame
de Admissão ao Ginásio Estadual de São Paulo, inventariadas por
Valente (2003) e que revelam vestígios da modernização da
matemática
escolar.
Orientado
metodologicamente
pelas
contribuições dos historiadores culturais como Le Goff
(documento/monumento), Chartier (apropriação), Michel de Certeau
(estratégias e táticas) e Julia (concepção de cultura escolar), o estudo
estabelece uma relação das mudanças ocorridas nas provas analisadas
com as inovações trazidas pelos manuais didáticos de Matemática
Moderna da época, discutindo suas implicações nas práticas
escolares. Considerando as diferenças e singularidades das práticas
escolares, ao tempo do MMM, o estudo sinaliza para possíveis
“desvios” do conceito de “moderno”, no processo de apropriação dos
princípios didático-pedagógicos do movimento, pela comunidade
escolar, sugerindo investigações mais aprofundadas sobre o tema.
PALAVRAS-CHAVE: história da educação matemática;
22
Professora Doutora da Pontifícia Universidade Católica do Paraná
movimento da matemática moderna; práticas escolares; história
cultural.
ABSTRACT
This study analyzes the points and the implications in the Movement
of a Modern Mathematic (MMM) in relation to teaching it in schools
during the period of 60s and 70s. The article also analyzes the debate
of MMM, registered on the 5th Essays National Congress of
Teaching Mathematic occurred in São José dos Campos, state of São
Paulo – 1960, whose discussions aimed to the Modern Mathematic.
The points of the movement are found in primary sources that claim
for new mathematic contents in Brazilian schools. The objective is to
make students take math exams in order to enter the secondary
school. This work was approved by Valent (2003) in which these
factors revealed traces of a modern mathematic being teaching in
Brazilian schools. Oriented methodologically by the contributions of
the cultural historical researchers as Le Goff (document/monument),
Chartier (approbation), Michel de Certeau (strategies and tactical)
and Julia (conception of cultural school), the study establishes a
relation between the changes occurred through the exams analyzed
with the innovations brought by didactical materials of modern
math, discussing its implications in the practical school.
Considering the differences and the peculiarity in the practical
school in time of MMM, the study signalizes for possible “deviation
“ in terms of what it is a modern conception, in the process of taking
the main pedagogical didactical of the movement, by the community
school, suggesting deeply investigation on the theme.
KEY WORDS: historical of the mathematic education; movement
of the mathematical modern; school practical; cultural history.
Uma das grandes contribuições da história cultural para a
pesquisa em educação tem sido a possibilidade de análise de práticas
escolares de outrora, especialmente a significação dada a um campo
de conhecimento pelos agentes escolares, num determinado período
histórico. Com isso, a história cultural tem nos possibilitado
conhecer avanços e retrocessos enfrentados pela disciplina
Matemática, ao longo de sua constituição, enquanto saber escolar.
No entanto, fatos como o Movimento da Matemática Moderna
(MMM) desencadeado no Brasil na metade do século
passado,
trazendo novas coordenadas ao currículo de Matemática do então
ensino primário e secundário, só recentemente começam a ser
historicamente problematizados. Conhecer as formas de apropriação
escolar desse movimento que, nas décadas de 1960 e 1970, atribuiu
uma importância primordial à teoria dos conjuntos, a axiomatização,
às estruturas algébricas e à lógica, tem sido uma preocupação recente
de pesquisadores da história da educação matemática. Entretanto,
ainda não temos dados suficientes de como o movimento
transformou as práticas escolares no momento de sua disseminação.
O presente estudo se propõe, sob a ótica da história cultural, analisar
e discutir ações pioneiras do Movimento da Matemática Moderna
no Brasil, investigando suas implicações no cotidiano escolar
brasileiro das décadas de 1960 e 1970.
Apesar dos múltiplos significados que evocam a palavra
cultura escolar, nesse estudo, ela é compreendida a partir de Julia
(2001):
“um conjunto de normas que definem
conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar, e
um conjunto de práticas que permitem a
transmissão
desses
conhecimentos
e
a
incorporação desses comportamentos; normas e
práticas coordenadas a finalidades que podem
variar segundo as pessoas”.
Matemática Moderna. Por tratar-se de um evento significativo para a
comunidade de educadores matemáticos, configurou-se não apenas
como um espaço de encontro e atualização de 350 participantes,
professores de Matemática, sobretudo, como possibilidade de
Para De Certeau ( 1982), a compreensão das práticas requer
a captação do movimento entre o “dizer” e o “ fazer”. Como prática
discursiva, o ideário do Movimento da Matemática Moderna,
considerado na sua materialidade física, expressa não apenas a
matriz teórica que o fundamenta, um conjunto de regras que
“fabricam” uma cultura matemática escolar, determina também o
“modus operandi” da inserção de suas idéias estruturantes nas
práticas escolares.
Segundo Chartier (1990), as práticas culturais trazem em
suas estruturas, nas suas diferenças mais formais, os recortes
socialmente enraizados. Permeadas que são por mecanismos de
controle e regramentos, as práticas escolares, como produtos
culturais dão sentido e finalidades à educação escolar de um
determinado momento histórico.
A divulgação do Movimento da Matemática Moderna no
Brasil
divulgação e discussão das idéias norteadoras do Movimento da
Matemática Moderna em nível internacional, pois contou com a
presença de convidados de diferentes países pertencentes a entidades
internacionais ligadas ao MMM: Marshall Stone- Universidade de
Chicago (U.S.A.); George Papy- Universidade de Bruxelas
(Bélgica); Hector Merklen – Universidade de Montevidéu (Uruguai);
Helmuth Völker- Universidade de Buenos Aires (Argentina).
Ao fazer a abertura do Congresso, o coordenador do evento,
professor Oswaldo Sangiorgi argumentou a favor da reestruturação
do ensino de Matemática frente às grandes e rápidas transformações
da ciência, destacando a “extraordinária evolução da técnica” como
fator impulsionador do progresso da civilização. Nesse sentido,
conclamou os esforços dos professores de Matemática para a
elevação da educação científica da população escolarizada,
desafiando os educadores responsáveis pela formação da juventude
“a se inteirarem dos novos princípios que estruturam a ciência atual”
O 5° Congresso de Ensino da Matemática, realizado 1966 na
cidade de São José dos Campos/SP, foi um marco importante de
disseminação, no Brasil das idéias defendidas pelo Movimento da
(MEC/CADES: Anais do 5° Congresso Brasileiro de Ensino da
Matemática, 1966, p. 22).
A temática central do Congresso foi a discussão do
Movimento da Matemática Moderna na escola secundária e sua
República Oriental do Uruguai, cujo objetivo principal era dinamizar
articulação com o ensino primário e universitário. Mais do que
a educação científica latino-americana. Para tanto, apontou como
apresentar resultados de pesquisas no setor de ensino, o evento tinha
necessárias à reestruturação do ensino e dos sistemas educativos,
como objetivo propiciar aos congressistas informações teórico-
especialmente os investimentos na preparação dos professores
práticas, acerca do movimento, ou seja, “o que de mais atual e
universitários das ciências básicas, os quais poderiam contribuir com
elevado se nos praticava diversos centros de estudos europeus e
a atualização e formação dos professores secundários. Dentre as
americanos” (Anais do 5° Congresso, 1966, p. 10).
ações do programa, os cursos e seminários de treinamento e
Além
convidados
atualização de professores universitários destinavam-se a provocar
brasileiros
um impacto inicial em relação à ciência moderna e seus modernos
ministraram cursos e “aulas-demonstração” abordando tópicos
métodos de ensino, fornecendo uma visão panorâmica dos temas
fundamentais da Matemática Moderna, como a Teoria dos Conjuntos
fundamentais e as orientações técnicas e pedagógicas. Além dos três
(Benedito Castrucci), Lógica Matemática (Oswaldo Sangiorgi),
cursos de Física e três de Química, o PIMEC já havia realizado,
Matemática Aplicada (Ruy Madsen Barbosa), Tratamento Moderno
entre 1965 e janeiro de 1966, dois cursos voltados para a preparação
da Geometria Analítica (Antonio Rodrigues), Introdução á Álgebra
de professores universitários de Matemática.
estrangeiros,
das
conferências
eminentes
proferidas
educadores
por
matemáticos
Moderna (Irineu Bicudo), Tratamento Moderno da Geometria (Omar
A conferência do renomado representante belga, George
Catunda), Introdução à Análise (Luiz Mauro Rocha), Técnicas
Papy, enfatizou a importância da teoria de conjunto e da escolha
Dedutivas (Leônidas Hegenberg) dentre outros (Anais do 5°
adequada de situações didáticas para sua aprendizagem.
Congresso, 1966, pp. 31-34).
Analisando o resumo de três, das quatro conferências
publicadas nos Anais do 5° Congresso, percebe-se a dimensão
intercontinental do movimento. Hector Merklen, representante do
Uruguai, explicitou as ações do PIMEC (Programa Interamericano
para a Melhoria do Ensino das Ciências) sediado na Universidade da
A escolha de situações é de grande importância;
elas precisam genuinamente ilustrar os conceitos
introduzidos sem limitar o seu alcance por serem
indevidamente especiais. Elas precisam ser
atraentes e interessantes e deixar lugar para
elaboração. É dever do professor introduzir essas
situações de modo que os alunos possam
responder a elas. Elas devem ser apresentadas de
tal modo que os alunos venham a perceber um
fato essencial a respeito da matemática – que ela
tem unidade e estrutura (MEC/CADES: Anais do
5° Congresso Brasileiro de Ensino de
Matemática, p. 84).
destaque a simbologia que caracterizava a linguagem da matemática
moderna. De forma intuitiva e, ao mesmo tempo rigorosa, foi
construindo e revelando uma nova face da matemática, um processo
de fazer matemática partindo de situações contextualizadas,
O conferencista desenvolveu, em seu discurso, uma
sugerindo uma construção coletiva do conhecimento, com espaço
construção conceitual da noção de conjunto, passível de ser
para o aluno refletir, duvidar, trocar idéias, enfim, participar de
trabalhada com alunos de diferentes idades e níveis de ensino.
forma ativa do processo da construção de seu conhecimento
Defendendo o “método psicológico do choque”, ou seja, o “conflito
matemático. Ao destacar a nova face “relacional” da Matemática, o
cognitivo”, Papy tornou visível sua afiliação à teoria psicogenética
conferencista assumiu, também, a visão moderna das geometrias,
de Jean Piaget. Simultaneamente, teceu críticas às formas
situando o conceito de “função” no contexto das relações das
tradicionais
atividades racionais, abordagem já defendida por Euclides Roxo na
de
ensinar
matemática,
quer
sejam,
a
descontextualização das noções matemáticas, as formas mecânicas e
década de 30 do século XX (Valente, 2004).
repetitivas utilizadas na assimilação dos conceitos, o trabalho
reflexividade, simetria, assimetria, transitividade e função foram
solitário e individual do aluno. Ao explicitar sua abordagem
ricamente ilustradas pelo conferencista, recorrendo ao uso de
pedagógica para a noção de conjunto, Papy colocou-se a favor de
gráficos e flechas, esquemas, considerados por ele de grande
uma “reinvenção” da matemática pelo aluno, em que as situações de
utilidade para a compreensão das relações de ordem e equivalência,
inconsistência e confusão inicial do senso comum cotidiano fossem
possibilitando que teoremas fundamentais da matemática fossem
mediadas e sistematizadas pelo educador, destacando o relevante
compreendidos por crianças de 12 anos. Sugeriu, assim, que o
papel da intervenção docente no processo de aprendizagem,
estudo da geometria iniciasse com o método dos conjuntos.
sobretudo, para o aluno desenvolver sua singular experiência
Apresentou o diagrama de Venn, como representação gráfica de
matemática. Tomando como exemplo alguns condicionamentos da
excelência
matemática cotidiana, o conferencista introduziu noções de
Aprofundando as críticas ao ensino tradicional de geometria, Papy
diagramas, conjunto finito, infinito, conjunto vazio, colocando em
exaltou a linguagem dos gráficos, aliando a visão intuitiva à
para
o
estudo
das
propriedades
As noções de
matemáticas.
estrutura lógica, e ainda, enfatizou a importância das representações
docentes argentinos foram iniciados em 1962. O objetivo principal
gráficas para a esquematização do pensamento (MEC/CADES:
desse trabalho, considerado pilar da reforma, era discutir o programa
Anais do 5° Congresso Brasileiro de Ensino da Matemática, 1966,
experimental e contou com a participação de professores secundários
pp. 83-99).
e a orientação de catedráticos da faculdade de Ciências Exatas de
A conferência realizada por H. Renato Völker, representante
Buenos Aires, coordenado pelo professor Dr. Santaló. Os programas
da Argentina, mostrou as experiências já desenvolvidas e em
experimentais foram, inicialmente, aplicados em suas respectivas
andamento naquele país para a implantação da matemática moderna.
escolas, por 70 professores que haviam participado do curso de
Mencionou os trabalhos realizados, desde 1956, pelo CIEM
aperfeiçoamento. Posteriormente, foram selecionadas cinco escolas-
(Comissão Internacional de Ensino da Matemática) em articulação
piloto para a continuidade da experiência. Os resultados preliminares
com países europeus. Falando do programa experimental de
da experiência foram repassados a todas as escolas do país, com as
matemática
o
devidas recomendações a serem observadas pelos professores para a
conferencista destacou o dinâmico trabalho de capacitação que,
adoção do novo programa. O conferencista enfatizou o forte
desde 1962, realizava-se naquele país, com a participação de
envolvimento do governo com a formação científica dos alunos,
professores secundários e universitários e sob a liderança do
reformando programas, melhorando os métodos de ensino, formando
professor Dr. Luiz A. Santalo, para divulgar e implantar as idéias
e aperfeiçoando os professores, publicando textos. Informou que os
centrais do movimento. Uma das medidas adotadas na Argentina foi
novos programas já apresentavam resultados favoráveis e que a
a elaboração de um programa experimental para as escolas
maior dificuldade continuava sendo a preparação dos professores
secundárias, com cortes consideráveis da geometria euclidiana e da
(MEC/CADES: Anais do 5° Congresso Brasileiro de Ensino da
trigonometria, substituindo-as pela geometria plana e espacial,
Matemática, 1966, pp. 125-137).
moderna,
em
implementação
na
Argentina,
geometria analítica, agora praticada com as “roupagens” modernas
A comunicação apresentada no 5° Congresso por Antonio
(principalmente vetores), além de noções de álgebra moderna
Ribeiro, Joana Bender e Zilá G. Paim, mostrou que o Movimento da
(conjuntos, funções, relações ).
Matemática Moderna estava presente nas escolas brasileiras desde a
Segundo o conferencista, os ciclos de aperfeiçoamento dos
década de 1950. Os autores informaram os caminhos percorridos
pelos gaúchos, especialmente pela Secretaria de Educação do Rio
técnica das escolas (orientadores e supervisores educacionais) além
Grande do Sul para alinhar o ensino de Matemática aos progressos
da Associação dos Professores e Pesquisadores da Matemática do
técnicos e científicos que desafiavam a educação brasileira na
Rio Grande do Sul.
metade do século XX. Alegando o alto índice de reprovação em
A partir de 1964, inúmeros cursos, palestras e semanas de
Matemática, os autores abordaram as formas com as quais o governo
estudos foram também ministrados por educadores externos, como:
daquele estado vinha enfrentando o insucesso escolar dos alunos,
Oswaldo Sangiorgi, Lucienne Félix, envolvendo participantes de
contestando a hipótese de que a inadequação dos métodos utilizados
vários municípios do estado como também de estados vizinhos.
pelos docentes seria o principal determinante do insucesso dos
Essas atividades, segundo o relato da comunicação, foram
alunos.
amplamente divulgadas pela mídia e imprensa local e o enfoque
Apontaram a falta de integração dos conceitos matemáticos,
moderno da Matemática encontrou um ambiente favorável de
freqüentemente fragmentados no programa, como hipótese plausível
difusão nas escolas primárias e secundárias do rio Grande do Sul
para o fracasso escolar do aluno. Relatando as iniciativas encetadas
(Anais do 5° Congresso Brasileiro de Ensino de Matemática, 1966,
pelo governo para enfrentar esse problema, destacaram as
pp. 139-144).
experiências pioneiras que, desde 1948, eram realizadas no Instituto
Outros
trabalhos
apresentados
no
referido
congresso
de Educação “General Flores da Cunha”, visando à formação do
revelaram que, em 1966, o movimento já era assumido por escolas
professor primário. Informaram que, em 1952, a teoria dos conjuntos
de diferentes estados brasileiros. São Paulo teve um papel
já havia sido introduzida no programa de formação dos futuros
importante na divulgação do movimento para outras regiões do
professores primários. Mencionaram os cursos de capacitação,
Brasil. Com a criação, em 1961, do grupo de São Paulo GEEM
desenvolvidos pela Associação de Professores Católicos, em 1953 e
(Grupo de Estudos do Ensino de Matemática) sob a coordenação
1954, destinados aos professores primários e que, posteriormente,
do
receberam a colaboração da Universidade Federal do Rio Grande do
movimento, não apenas no estado de São Paulo. Palestras de ilustres
Sul. A preocupação com a formação dos professores, segundo os
representantes estrangeiros realizadas em São Paulo, a convite do
autores, intensificou-se na década de 60, envolvendo a equipe
coordenador do grupo, atraiam professores de Matemática de
Professor Oswaldo Sangiorgi, acelerou-se a difusão do
diferentes regiões brasileiras. A partir de 1964, com uma coleção de
pelas escolas do primeiro grau (modalidade de ensino implantada
livros, já circulando no país, o GEEM expandiu sua ação para outros
pela Lei 5692/71, integrando os cursos primário e ginasial num
estados, realizando palestras e ministrando cursos de Matemática
único bloco: o ensino de primeiro grau constituído então de oito
Moderna,
e
séries), de várias regiões brasileiras, no final de 70, as propostas de
estabelecendo-se, em 1970, como grupo líder do MMM no Brasil
matemática moderna começaram a receber acirradas críticas que
(Soares, 2001).
acabaram ofuscando o brilho do MMM no Brasil .
iniciando
suas
atividades
no
curso
primário
No Paraná, o movimento foi divulgado em nível local, pelas
A obra intitulada “O fracasso da Matemática Moderna”, do
ações pioneiras do NEDEM (Núcleo de Difusão do Ensino de
matemático americano Morris Kline, professor da Universidade de
Matemática), fundado em 1962 e coordenado pelo professor Osny
Nova York, com grande repercussão no meio acadêmico brasileiro,
Antonio Dacól, coordenador do ensino e, posteriormente, diretor do
no final dos anos 70, tece críticas contundentes à matemática
maior colégio estadual do estado, o Colégio Estadual do Paraná,
moderna. Para Kline, o exagero da forma dedutiva de abordar os
sediado em Curitiba. Segundo Straube (1993, p.119), o colégio, em
conteúdos, aliado ao excessivo formalismo e simbolismo da
1969, abrigava 4950 alunos e contava com 450 professores. Com
linguagem utilizada pela matemática moderna, empobrecia a vida e
uma participação ativa em todo o estado, o grupo liderou a
o espírito da matemática.
propagação do movimento, preparando professores, elaborando nova
Apesar de endereçar suas críticas ao ensino americano, por
proposta de ensino de Matemática para o curso ginasial e,
tratar-se de um movimento internacional, elas também adquiriam
posteriormente, para o curso primário, publicando livros didáticos
sentido no contexto educacional brasileiro, no momento em que a
que durante mais de uma década fundamentou e orientou o ensino de
abordagem tecnicista dominava as práticas escolares. Outro aspecto
Matemática, ministrado pelos professores paranaenses.
criticado por Kline foi a ênfase que o novo programa dava à Teoria
Apesar de todo o dinamismo do debate em torno do
dos Conjuntos, especialmente na Matemática elementar. Para ele,
movimento, nas décadas de 1960 e 1970, na esteira da crítica à
conceitos abstratos não deveriam ser explorados no nível elementar,
ideologia política e ao “desenvolvimentismo” que impregnava o
pois além de confundir a cabeça dos alunos estimulavam sua aversão
país, com os novos programas de ensino em plena implementação
pela matemática. Ao defender o princípio pedagógico que toma
como ponto de partida a experiência matemática que o aluno traz do
cotidiano, nesse aspecto, sua concepção alinha-se com a teoria
psicogenética, assumida por George Papy, o renomado defensor da
matemática moderna.
No Brasil, as críticas também apontavam como negativos
tais aspectos. Segundo Soares (2001, p. 116), o livro de Kline,
apesar de publicado no Brasil três anos após sua divulgação, nos
Estados Unidos, foi um marco decisivo para o esgotamento do
movimento em nosso país. As críticas não vinham apenas dos meios
acadêmicos; pais de alunos e, também, a imprensa denunciavam as
superficialidades da simbologia da matemática moderna e o tempo
“perdido” com o ensino da teoria dos conjuntos. Admitindo a
confusão que a linguagem dos conjuntos provocava nos alunos e o
baixo rendimento por eles demonstrado, os professores mostravam
sua insatisfação com a proposta. Sangiorgi, o grande defensor do
movimento no Brasil e autor dos livros didáticos de matemática
moderna, mais vendidos no país, em declaração ao Jornal “Estado de
‘tabuada’ em plena 5ª e 6ª séries!) porque as
operações sobre conjuntos ( principalmente com
os vazios!) prevalecem acima de tudo;
acrescenta-se ainda o exclusivo e prematuro uso
das maquininhas de calcular, que se tornaram
populares do mesmo modo que brinquedos
eletrônicos.
2. Deixa-se de aprender frações ordinárias e
sistema métrico decimal  de grande
importância para toda a vida  para se
aprender, na maioria das vezes incorretamente,
a teoria dos conjuntos, que é extremamente
abstrata para a idade que se encontra o aluno.
3. Não se sabe mais calcular áreas de figuras
geométricas planas muito menos dos corpos
sólidos que nos cercam, em troca da exibição de
rico vocabulário de efeito exterior, como por
exemplo ‘transformações geométricas’.
4. Não se resolvem mais problemas elementares
da vida quotidiana por causa da invasão de
novos
símbolos
e
de
abstrações
complementarmente fora da realidade, como: “ O
conjunto das partes de um conjunto vazio é um
conjunto vazio?”, proposto em livro de 5ª série
(Sangiorgi, 1975b apud Soares 2001, p. 116).
Marcas da matemática moderna nas práticas escolares
São Paulo” (apud Soares, 2001) expressa essa insatisfação ao
apontar as fraquezas do movimento:
Ainda que de forma confusa, a matemática moderna foi
apropriada pela comunidade escolar, primeiramente, pelos grandes
Nesse mesmo artigo, o professor Sangiorgi
apontou quais foram os principais efeitos da
Matemática Moderna no ensino:
1. Abandono paulatino do salutar hábito de
calcular (não sabendo mais a
centros do país, posteriormente é lentamente difundida nas escolas
mais longínquas, a maioria delas recebendo-a de sobressalto, via
livro didático. Carregada de simbolismos e enfatizando a precisão de
uma nova linguagem, professores e alunos passam a conviver com a
do estado, fundado em 1894. Catalogadas e transformadas em fontes
teoria dos conjuntos, com as noções de estrutura e de grupo.
históricas por Valente (2001), as provas de Matemática dos
Trazendo as promessas de um ensino mais atraente e descomplicado,
candidatos configuram-se como valioso material, mais do que um
em superação à rigorosa matemática tradicional, no entanto, a
punhado de documentos antigos, um “testemunho vivo” das
Matemática Moderna, chega ao Brasil com excessiva preocupação
reformas em torno do ensino de Matemática.
com a linguagem matemática e com a simbologia dos conjuntos,
A partir de 1961, as questões das provas de Matemática
deixando marcas, ainda pouco desveladas pela história da educação
sofreram mudanças consubstanciais: é apresentado um número
matemática.
elevado de "questões imediatas" que consistem em cálculos rápidos
Para Julia (2001), é muito difícil reconstruir a história das
e descontextualizados. Nota-se, nas provas desse período, que os
práticas culturais porque elas não deixam traço. Isso dificulta o
problemas aritméticos são substituídos por extensos questionários,
estudo da cultura escolar já que não é usual, nas escolas, a
com a introdução gradativa de questões relativas à matemática
preservação de seus documentos históricos, especialmente exames e
moderna. É o que se observa na prova de 1962, em que a décima
provas, materiais produzidos pelos alunos e professores. Mais do
questão é: " quais as operações da aritmética que têm a propriedade
que documentos que perpetuam o passado e evocam sua recordação,
comutativa ( ou da mudança de ordem) ?"(sic).
os documentos, segundo Le Goff (1992), trazem ensinamentos que
Pela análise do material catalogado por Valente (2001),
devem ser analisados e problematizados, para além de seus
constata-se que somente ao final da década de 60, precisamente em
significados aparentes. Para que possam contribuir para a pesquisa
1968, é que a Escola Estadual de São Paulo passa a avaliar, de forma
histórica, o autor recomenda que os mesmos não sejam isolados do
visível, o conhecimento da "nova linguagem matemática" dos
conjunto de monumentos dos quais fazem parte.
candidatos a ingresso ao Ginásio.
Um vestígio da modernização do ensino de Matemática, nas
Na prova de Matemática, aplicada em 1968, organizada em
práticas escolares brasileiras, pode ser encontrado nas provas de
forma de teste (várias questões para assinalar “xis” ), das doze
Admissão ao Ginásio, aplicadas aos candidatos que desejavam
questões propostas, apenas duas utilizam nomenclatura da nova
ingressar no Ginásio Estadual de São Paulo, primeiro ginásio oficial
linguagem matemática: " Questão VI : “escreva o conjunto dos
meses do ano que começam com a letra "j". Questão VII: “escreva o
2004).
conjunto das frações ordinárias próprias cuja soma dos termos seja
Essas marcas mostram que o processo de apropriação do
8; qual a intersecção desses conjuntos? ; qual é o maior divisor
movimento pelas escolas, apesar de todo o entusiasmo de seus
comum de 24 e 30?" ( Valente, 2001).
principais representantes, foi mais gradativo no antigo ensino
Na prova de 1969, último ano de realização de Exames de
primário. As provas analisadas mostram que no final de 1960,
Admissão no Brasil, a prova de Matemática apresenta cinco questões
precisamente, no ano de 1969, momento da extinção dos Exames de
relativas à matemática moderna, sendo duas sobre conjuntos e três,
Admissão ao Ginásio, a matemática moderna era introduzida com
usando o termo "sentença". Neste ano, os problemas são
uma certa cautela no curso primário, o que parece não ter ocorrido
apresentados em etapas resolutivas e os rascunhos elaborados pelos
com o curso ginasial, quando se verifica as alterações propostas nos
candidatos apresentam registros de resoluções que utilizam
livros didáticos de Matemática de maior circulação no país, como foi
representações algébricas (Pinto, 2003).
a coleção de Sangiorgi23, destinada ao curso ginasial.
Outro vestígio da presença da Matemática Moderna, nas
Para De Certeau ( 1994), as “artes de fazer” constroem uma
práticas escolares, pode ser encontrado na prova do Exame de
teoria de consumo social como produção. Nela, estão implícitas as
Admissão de 1964, aplicada no Colégio Santa Cruz, de São Paulo
diferentes operações desenvolvidas para impor normas e condutas
(Azevedo; Cegala; Silva; Sangiorgi, 1970, p.332), na qual o termo
(estratégias de poder) como também, as ações determinadas pela
"prova" é substituído por " teste" e cuja programação expressa a
ausência de poder ( táticas utilizadas pelos mais fracos). As formas
tendência em voga do estudo dirigido, com espaços definidos para o
de apropriação do movimento que estamos analisando trazem, em
registro da resolução e da resposta. Com um número de quinze
suas estruturas, recortes socialmente enraizados no tempo e no
questões, a prova prioriza o sistema de medidas e as operações com
espaço, um embate de poder e resistência
entre os fazeres dos
a representação decimal de números racionais. O uso da palavra
"sentença", das asserções F (falso) e V (verdadeiro), além da
diagramação do lugar das respostas, expressa alterações na forma de
propor questões e introduzir uma nova linguagem matemática (Pinto,
23
. Oswaldo Sangiorgi é considerado um dos maiores disseminadores do
Movimento da Matemática Moderna no Brasil. Coordenador do GEEM ( Grupo de
Estudo do Ensino de Matemática), grupo pioneiro e com uma ativa participação na
divulgação do MMM, atuou como polo irradiador do movimento para outros
estados brasileiros. Autor da coleção de quatro volumes: “ Matemática : Curso
Moderno” destinada ao ginásio, que em 1972 apresentava sua 7ª edição.
diferentes agentes escolares, inscrito nos modos de resistências,
2005). Não foram apenas as mudanças na estrutura de apresentação
“táticas” de sobrevivência dos mais fracos aos dispositivos impostas
dos conteúdos que tornaram diferentes os livros didáticos de
pelos mais fortes.
Matemática. Estes passaram a ser descartáveis. Eram publicados
Outra questão desafiadora para a história cultural é, segundo
separadamente: o livro do professor e o livro do aluno. Neste, as
Chartier (1990), considerar o uso que as pessoas fazem dos objetos
questões, outrora colocadas em forma de perguntas ou problemas,
que lhes são distribuídos ou dos modelos que lhes são impostos.
apresentavam-se em formas de sentenças para completar; diagramas
Como pontua o autor, há sempre uma prática diferenciada na
para relacionar elementos; distinguir verdadeiro e falso; exigindo
apropriação dos objetos colocados em circulação. Se para Chartier
pouco raciocínio e muito domínio da nova simbologia, prova
(1990) é importante compreender as práticas escolares como
material de que o uso da “moderna” linguagem matemática era
dispositivos de transformação material de outras práticas culturais e
praticado nas escolas. A nova regra, de uso individual do manual
seus produtos, não podemos esquecer que a proliferação da indústria
didático, não apenas trouxe modificações no método de estudo do
do livro didático de Matemática Moderna no Brasil, nas décadas de
aluno, implicou, também, numa inflação de gastos para as famílias
60 e 70, introduziu uma espécie de “revolução” não só no rol de
que mantinham vários filhos na escola. Se, por um lado, essa medida
conteúdos
de
garantia maior lucro aos editores, do ponto de vista pedagógico,
apresentação. Justamente, naqueles anos 60, organizaram-se grupos
intervinha, de forma negativa, no desenvolvimento das habilidades
em diferentes estados para a difusão da nova matemática; programas
básicas de leitura e escrita. Os exercícios para completar, propostos
são radicalmente reformados e influenciados por diferentes correntes
no manual do aluno, tão popularizados na década de 70, foram, aos
internacionais; a indústria de livros didáticos de matemática atinge
poucos, alterando e restringindo o uso de cadernos, cuja principal
seu momento áureo. Tratava-se de uma "revolução curricular", ainda
conseqüência foi empobrecer a prática da escrita e da leitura dos
controversa nos bastidores da comunidade acadêmica. Porém, a
alunos, especialmente, nas aulas de Matemática.
matemáticos,
como
também
na
sua
forma
brusca mudança do conteúdo/forma do livro didático de Matemática,
naquele momento histórico, trouxe, acima de tudo, uma grande
Considerações Finais
resistência de seus principais usuários, ou seja, os professores (Pinto,
Para além de toda a expectativa que se alastrou no Brasil, em
torno da modernização do ensino da Matemática, como mostram as
professores e alunos mais como um conjunto emblemático de
conferências e trabalhos do 5° Congresso Brasileiro de Ensino da
dispositivos e nomenclaturas de uma nova linguagem impregnada da
Matemática e as ações pioneiras desenvolvidas pelos grupos de
aura tecnicista, que predominava a educação brasileira naquele
estudos e difusão do movimento em diferentes estados brasileiros, é
período.
importante considerar que o conceito de “moderno” marca registrada
Para Piaget (1984, p.14), " mesmo no campo da Matemática,
do movimento, pode não ter sido apropriado pelos agentes escolares,
muitos fracassos escolares se devem àquela passagem muito rápida
tal
do qualitativo (lógico) para o quantitativo (numérico)". Referindo-se
como
foram
propostos
pelos
principais
representantes
internacionais do MMM. Segundo Burigo (1990):
ao ensino da " Matemática Moderna" Piaget (1984) advertia, desde a
década de 50, que essa experiência poderia ser prejudicada pelo fato
De um modo geral, é possível dizer que
"moderno" significava "eficaz", de " boa
qualidade", opondo-se a "tradicional" em vários
momentos. Enfim, era uma expressão carregada
de valoração positiva, numa época em que o
progresso técnico ele mesmo era depositário, no
modo do pensar dominante, das expectativas de
resolução dos principais problemas econômicos e
sociais e de conquista do bem-estar material para
o conjunto da sociedade (BURIGO, 1990, p.259)
Ao tratar a matemática como algo neutro, destituída de
história e desligada de seus processos de produção, sem nenhuma
relação com o social e o político, o ensino da Matemática Moderna,
veiculado por inúmeros livros didáticos da época, parece ter se
descuidado da possibilidade crítica e criativa dos aprendizes. E os
de que :
embora seja 'moderno' o conteúdo ensinado, a
maneira de o apresentar permanece às vezes
arcaica do ponto de vista psicológico, enquanto
fundamentada na simples transmissão de
conhecimentos, mesmo que se tente adotar ( e
bastante precocemente, do ponto de vista da
maneira de raciocinar dos alunos) uma forma
axiomática (...) Uma coisa porém é inventar na
ação e assim aplicar praticamente certas
operações ; outra é tomar consciência das
mesmas para delas extrair um conhecimento
reflexivo e sobretudo teórico, de tal forma que
nem os alunos nem os professores cheguem a
suspeitar de que o conteúdo do ensino ministrado
se pudesse apoiar em qualquer tipo de estruturas '
naturais (PIAGET, 1984, p.16-17).
indícios preliminares da apropriação do movimento são que, o
moderno
da
disciplina
Matemática,
foi
incorporado
pelos
Como lembra Piaget, o princípio fundamental dos métodos
ativos deve ser buscado na história das ciências. Assim,
"compreender é inventar, ou reconstruir através da reinvenção".
Falando a respeito de um ensino moderno e não tradicional da
Matemática, tal como Papy havia se posicionado na conferência
proferida no 5° Congresso Brasileiro de Ensino da Matemática, o
autor sugeria aos professores "falar à criança na sua linguagem antes
de lhe impor uma outra já pronta e por demais abstrata, e sobretudo
levar a criança a reinventar aquilo que é capaz ao invés de se limitar
a ouvir e repetir” (1984, p.17). Considerando, finalmente, os indícios
de que o termo “moderno” foi apropriado a partir de diferentes
leituras, que, segundo Chartier (1990), podem expressar os “desvios”
ao modelo, resta-nos desenvolver, como tem observado Valente
(2003, p.250), “investigações sobre o que ocorreu com a disciplina
matemática durante este período", buscando novas evidências das
formas como as idéias desse importante movimento foram
incorporadas pelos agentes escolares. Uma dessas buscas seria
coletar
depoimentos
acerca
dos
significados
dados
pelos
protagonistas da história às idéias centrais do movimento em suas
práticas escolares.
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NÉLIDA PIÑON: UM ENCONTRO COM ALGUÉM
QUE SABE ARTIFÍCIOS DELICADOS E SUTIS
Roder, Maria de Lourdes Seba 24
RESUMO
Análise da obra “A força do destino“ de Nélida Piñon. Parodiando a
ópera homônima de Giuseppe Verdi, a autora expressa em seu
discurso algo muito mais profundo do que uma simples recriação
literária: expressa a reflexão sobre o ato de escrever. E é no decorrer
deste ato reflexivo que o texto abre-se para uma interação com o seu
leitor, como se fosse o destino de quem percorre cada palavra de seu
romance.
PALAVRAS-CHAVE: narrador; criação literária; leitor;
personagens.
ABSTRACT
Analyse of the novel “A força do destino” written by Nélida Piñon.
The author tries to establish a dialogue with the homonym opera
written by Giuseppe Verdi, making us realize that the fiction is much
more than a simple imitation of the original text. What it is
denounced in Nélida’s text is her intention to present the reader how
we can elaborate a narrative: working with literacy is the vital
function this novel. It is open for an interaction between text and
1.Mestre em Teoria da Literatura pela UFG. Coordenadora e professora do Curso de
Letras do ICE.
2. A ópera de Verdi, “A força do destino”, teve sua estréia em São Petersburgo no Teatro
Imperial, em 10 Novembro de 1862. Em seu primeiro acto, a ação desenrola-se na
Espanha e na Itália, durante o século XVIII, e a ópera inicia-se num castelo perto de Sevilha
onde o Marquês de Calatrava vem visitar a sua filha Leonora, Condessa de Vargas. O que o
velho Marquês ignora é que ela se prepara para fugir precisamente essa noite com Don
Alvaro, um jovem desprezado pela fidalguia. As suas intenções são as mais puras, e, em
sinal de submissão, entrega as armas. Só que, infortunadamente, uma das pistolas, ao cair
no chão, dispara e atinge mortalmente o Marquês. Antes de morrer, o velho Calatrava tem
ainda fôlego para lançar uma maldição sobre a filha.
reader, as if it was the destiny for those who navigate each word in
her romance.
KEYWORDS: reader; literacy; characters; narrator
como se fosse o destino de quem percorre cada palavra de seu
romance.
Osman Lins, em Guerra sem testemunha, mostra-nos essa
1. Paixão arrasadora e trágica
inevitável ocorrência, quando diz que o leitor se sente “capaz de ver
no livro algo de vivo e de empreender a leitura com um sentido de
“A força do destino“ de Nélida Piñon, escritora brasileira, de
adesão, de solidariedade, e por isso, um partícipe da cerimônia, a
renome internacional, nos fala de uma paixão arrasadora e trágica
resposta necessária ao ato do escritor, a relação que o completa.”
entre dois jovens. A autora procura estabelecer um diálogo com a
(Lins:1974)
ópera: “A força do destino” de Giuseppe Verdi25 Os protagonistas-
Seguir métodos? Poderia trair Nélida se assim o fizesse. Aqui
amantes são Álvaro e Leonora. Poderiam ser Romeu e Julieta ou
vale mais a tranqüilidade de descentralizar a rigidez imposta por
Tristão e Isolda ou algum outro caso de amor impossível, seguindo o
classificações e categorias, ou algo semelhante. Imbert, ao citar
mesmo caminho dessas figuras conhecidas da literatura universal.
Croce, mostra que:
Ao se apropriar dos elementos representativos da obra de
Verdi - personagens, tempo histórico, espaço, por exemplo - a
autora, com seus “artifícios delicados e sutis”, concebe a sua ficção,
ampliando a significação do texto original para fazê-la ecoar para
um outro com uma nova perspectiva histórica ou ideológica. Nélida
recria-o, muitas vezes, pretendendo à paródia, e outras, repensando
O crítico-como o filósofo, como o
cientista, atira-se sobre as coisas que o
interessam com vontade de apreendê-las. É um
movimento rápido e impetuoso, do qual
participam todas as potências da personalidade.
Movimento com sentido, mas que não vai muito
longe. É quase um salto. Salto a partir da
situação em que coube ao crítico viver até a obra
literária a qual se enlaça num abraço vital e
apertado. (Imbert: 1971)
conflituosamente sobre o destino de Álvaro e Leonora.
O texto de Nélida evidencia sua intenção de apresentar ao
Croce nos faz crer que esses saltos foram longa viagem com
leitor como se elabora uma narrativa. O fazer literário é a função
desdobramento de leque, novelo desenrolado e outras descontrações.
vital nesta obra que se abre para uma interação entre texto e leitor,
São movimentos, às vezes, até irreconhecíveis ao próprio analista,
mas que trazem uma proposta de busca e participação, a qual, de
acordo com Arrigucci Jr., são como os verdadeiros takes do jazz,[...]
O que Nélida tem para nos contar? Qual é a experiência de
a busca de um possível cada vez mais difícil e sempre mais sujeito à
Nélida? Qual é a sua sabedoria? Porque, de acordo com Oscar
parada vertiginosa, vácuo aberto
Tacca, em sua obra, As vozes do romance, o verdadeiro estilo do
que a consciência vigilante e
exacerbada exige. (Arigucci:1987)
narrador não consiste tanto no que conta, (os temas vão e vem) mas
O tão conhecido texto de Walter Benjamin sobre os contos de
em como conta. No entanto, o crítico mostra que assim como existe
Leskov, também, busca essa realidade, já que, para ele, narrar uma
uma livre seleção quanto ao “como contar”, existe forçosamente
história implica em descontração e o ouvinte quanto mais esquece de
uma decisão prévia quanto ao “como saber”. Esse “como saber”,
si mais entra nele a coisa narrada. (Benjamin:1980)
gerador do ponto de vista do narrador, é que vai brotar aquilo que
Procurar se desprender de referências exteriores tanto quanto
mais ansiosamente esperamos: a criação literária. (Tacca: 1980)
possíveis é o objetivo deste texto, porque o de Nélida já vem
Nélida inicia o seu romance nos contando sobre a fuga que
marcado por um repertório fundamentalmente poético, com
planejavam as personagens verdianas Álvaro e Leonora. A narradora
possibilidades lingüísticas em sentido amplo.
os apresenta com um enunciado de choque:
A fuga foi minuciosamente planejada.[...] (FD.5)26
2. Sabe mesmo contar uma história, Nélida?
Fala de suas personagens ansiosas por tal acontecimento,
Voltando a Benjamin, o narrador está cada vez mais distante
dando ao leitor a oportunidade de conhecer imediatamente a trama, a
de nós. Não há mais experiências para contar a seus leitores ávidos e
fim de que sua atenção seja voltada apenas para os dois, para a
atentos. Mas quem é, hoje em dia, o narrador das crônicas, dos
história que vai ser relatada. Uma típica narradora de terceira pessoa,
contos e dos romances? Progressivamente, o narrador vai-se
uma multiple selective omniscience, uma vez que reflete o espírito e
ocultando com o desenvolvimento do romance, “atrás de uma voz
a visão de cada uma de suas personagens, (Leite: 1987) ou ainda,
que nos fala, velando e desvelando, ao mesmo tempo narrador e
como um foco de câmera, registrando trechos da fuga e os conflitos
personagem, numa fusão que, se os apresenta diretamente ao leitor,
26
também os distancia enquanto os dilui.” (Benjamin: 1980)
F.D. : Sigla do romance “A força do destino” que será utilizada em todo o texto na
citações do romance. PIÑON, Nélida. A força do destino. Rio de Janeiro: Ed.Francisco
Alves, 1988.
que a envolvem.
chamada Nélida.
Numa perspectiva bem humorada, o narrador descreve que até
Perdoem-me leitores, se o meu nome ganha
relevância na discussão ora presente.Posso
assegurar-lhes que não havia autorizado Álvaro
a denunciar uma presença que fatalmente
provocaria atritos e suspeitas.Não cheguei
também a proibir-lhe o meu nome. (FD.11)
as telhas “aqui foram registradas no catálogo de Sotheby's” (FD.9) e
justifica a sua minuciosa descrição, essa necessidade de informar ao
leitor, talvez tentando propor a sua confiabilidade. Pode-se dizer um
velho truque. E mais: não se esquece de que “a gente não joga pela
janela
uma
tradição
tão
antiga
que
permite
uma
longa
narrativa.”(F.D.9)
Por que, Nélida? Será que não vamos suportar a sua presença?
Ou você pensa que queremos escutar a história de Verdi? O foco da
Nota-se que Nélida está se saindo muito bem, recorrendo à
tão falada normalidade prolifera-se no distanciamento entre
tradição, recontando a ópera verdiana de um modo até espirituoso, e
personagem e narrador distinguindo cada sujeito nitidamente. O
ainda, mostrando um distanciamento que lhe permite explorar
importante não é o fato em si, mas os movimentos contínuos de
melhor o humor das situações. Até que, de repente, Álvaro,
todas as personagens, inclusive a personagem Nélida, porque
discutindo com Leonora, invoca pelo nome da autora:
oportuniza o desarme do narrador tradicional. A mudança dos fatos
pode levar o narrador a outros sentidos de experiência, inclusive, por
Vou fingir que te exibes para mim, e não para a
cronista Nélida. (FD.11)
meio de suas próprias personagens: Álvaro, Leonora ou a própria
Nélida:
Parece que Nélida se traiu. Estamos observando que Álvaro,
ao ser transferido para representar as ações do romance de Nélida, se
expressa num diálogo de uma maneira diferente das que estamos
habituados a conhecer nas narrativas tradicionais. Mas, rapidamente,
Talvez me queiras submissa a histórias cujo
sentido do real se concilie com fatias de uma
realidade oficial de modo que me seja fácil seguílas.(FD.17)
o narrador entra em cena ao elaborar uma maneira também diferente
Observa-se, neste lance, que Nélida busca o rompimento dos
para o leitor, tentando nos aproximar dessa nova personagem
códigos e retóricas dirigidas, enfim, as falas controladas nas quais se
restringem as afirmações da verossimilhança:
discurso estético:
A verdade é que se eu não buscasse aqui
subverter as tuas normas, tua luta se teria
resumido na conquista de um matrimônio
sólido,uma prole autenticada, e um futuro onde
coubessem alguns verões apenas celebrados
enquanto os dias no leito fossem ardentes.
(FD.17)
Como usuária do idioma, Nélida tem consciência do poder que
detém, de seu repertório de sentidos, e que, segundo Mindlin
“amplia as suas possibilidades de significação. [...]”
Há até “um
certo autoritarismo nessa visão que considera Álvaro e Leonora
apenas títeres de uma história que se deve submeter ao comando de
quem a narrará:”(Mindlin:1992)
Recuso-me a detalhar seus rostos. Quero-os na
penumbra, sempre secretos, livres do temor de
que a multidão possa identificá-los através das
chaves que levianamente lhes forneça. (FD.53)
3.A pretexto do tempo
E porque pertenço ao tempo como ele não
é meu, com que direito aproximo-me de Álvaro e
Leonora, da morte do marquês, dos meus
contemporâneos, ou do que me venham a
suceder?(FD.51)
Porque você é uma cronista, Nélida. E o cronista de hoje ao
retomar a persona de seus ancestrais, não quer dar a nós, leitores, um
meio de representação temporal, como diz Arrigucci [1987], ou um
Unicamente por minhas mãos ingressariam
ambos na língua portuguesa, que é, como
expliquei a Álvaro, um feudo forte e lírico ao
mesmo tempo. (FD.13)
registro de vida escoada. Porém, como quer Arrigucci, deve-se
penetrar profundamente na substância íntima de seu tempo e
esquivar-se da corrosão dos anos.
Nélida parece segura ao procurar manter um distanciamento
Segundo o seu discurso, os seus desígnios repousam sobre o
com o intuito de poder manobrar as suas personagens da maneira
acaso e, às vezes, lhe dizem que é melhor falar de sombras do que
que ela achar conveniente, o que lhe oportuniza um outro perfil de
exaltar o sol, embora queira imaginar suas personagens ríspidas e
mímese: aquele que não é uma clonagem dos fatos e ações, mas
soltas, mas está insegura devido à ordem dos fatos já consolidados
ultrapassando limites. Num terreno polêmico, a escritora vai
pela narrativa verdiana, já que nela os fados apartaram Álvaro e
montando e tecendo uma realidade intrínseca de feições estranhas,
Leonora por um longo tempo, uma separação que:
porém, é justamente esse deslocamento que faz de seu discurso um
[...]desfariam, perderia a linguagem o poder de
combinar o circunscrito com que se fez o seu
nome a inversão com o percurso biográfico. Sem
o nosso esforço se ignoraria que atrás da história
existe outra, uma outra ainda existe atrás, assim
sucessivamente até o começo do mundo.(FD.72)
A narradora27 nos diz que ama suas personagens e quer
resguardá-las das marcas do tempo. Talvez o termo “transcendência”
Álvaro e Leonora chegam até nós pelo nosso tempo, em
nossos dias. Afinal, para que serve o passado, o presente e o futuro?
Se o tempo é um objeto que emana de uma consciência, é um tempo
que não é tempo, não há necessidade de existir, o que importa é
somente o que se apreende dele e o que ele pode significar. E, nesse
caso, a narrativa não faz ampliar a impressão de um tempo que já se
foi.
possa servir para ajudar-nos a captar sua declaração de aflição,
embaraço e inconformidade com as situações determinadas e
entendermos essa mobilidade comparando-a a uma ressonância
concebida no processo de um rompante de uma cronista em seu ato
4. Como se constrói uma narrativa?
criativo, e ansiosa por uma manifestação verbal que lhe expresse
Amo os segredos [...] o coração bate-me à
sentimentos identificáveis.
revelação do seu prestígio verbal. (FD.63)
Se você, Nélida, quer partir para outros domínios de
representação sem se deixar contaminar por uma mímese que não
Geralmente, os cronistas gostam de relatos corriqueiros.
seja vertiginosa, então, não se deixe enganar por recursos narrativos
Eles os transformam em um lirismo reflexivo. Os segredos trazem
duvidosos, porque certas partes de sua face já estão se repercutindo
para os cronistas o cheiro do povo, a “vida vivida”, o convívio com
em
nossas próprias fraquezas:
sua
marca
enunciativa
como
uma
escritora-narradora-
personagem que, simplesmente, quer sentir-se viva e sentir a vida.
Nada de previsibilidade, apenas o aprendizado contínuo e lúcido da
expressão estética.
27
Atrevo-me, neste momento, a falar do narrador, no gênero feminino
Os segredos domésticos são meus
prediletos. Nascidos na alcova e na
cozinha,
exalam
suor,
alho
e
cebola.Ocupam-se dos sentimentos e das
irregularidades caseiras. (FD.64)
Nélida sabe porque gosta de segredos:
“um hábil artesão da experiência, transformador da matéria prima do
vivido em narração”. Guardião zeloso, que permite a Nélida
O homem mastiga-os junto com os
alimentos na boca. De posse deles vai
convertendo-se num narrador sem livro.
[FD.64]
É quando surge, no bojo de sua modesta
narrativa um espetáculo que provoca o
imaginário.(FD.64)
descobrir, pela sua onisciência, certos achados imperceptíveis.
À luz desses enunciados, a narradora vai descobrindo
experimentar outras imagens interpretativas, mesmo sabendo que
Os elos humanos por si só se
desfariam, perderia a linguagem o poder
de combinar o circunscrito com que se faz
o seu nome a inversão com o percurso
biográfico. Sem o nosso esforço se
ignoraria que atrás da história existe outra,
uma outra ainda existe atrás, assim
sucessivamente até o começo do mundo.
(F.D.73)
esses relatos se originaram de fragmentos dispersos. São eles que
Ecléia Bosi, em Memória e Sociedade, analisa os narradores
permitem à narradora descobrir outros efeitos de representação em
de Benjamin e observa que não se pode perder, no deserto dos
sua intensiva ficcionalidade:
tempos, uma só gota de água irisada que, nômades passamos do
“materiais dispersos”. Agora, ela pretende transformar esses
materiais em algo mais irresistível, porque ela sabe que só o narrador
pode fazer deste espetáculo uma notável representação. Não se trata
de repetir o que já foi dito, porque o leitor, ao ler o seu relato, quer
Somos o abade e eu simples
mediadores. Escrevendo, ou à escuta, nos
apertados corredores das fechaduras. A
recolher material disperso, colando a
alguns com simetria.(FD.72)
Talvez. Nélida se esforce tanto quanto possível, quase como uma
obsessão, para dar a nós, leitores, formas de fabulações peculiares e
necessárias, porque se assim não fosse:
côncavo de uma para outra mão. A história deve reproduzir-se de
geração a geração, gerar muitas outras, cujos fios se cruzem,
prolongando o original, puxado por outros dedos.(Bosi:1987)
Enquanto o abade trabalha a matéria prima da experiência,
Como Nélida, o abade também recolhe material disperso.
Ele é o narrador da história de Álvaro e Leonora, fala sobre os seus
sofrimentos e as suas paixões. Conhece a terra e seus conterrâneos,
Nélida vai construindo sua narração com “alma, olho e mão”. Artesã
que não se descuida em nenhum momento de seu ofício. Não
pretende se esquecer de nenhum detalhe, desde os mais delicados até
os mais grosseiros, mostrando-nos o seu poder esfuziante de
a fim de não lhe enriquecer a história?” Além do mais, não há tantas
cronista. Algumas vezes, ela esbarra em algum acontecimento que
descrições de Leonora. À vista disso, por que tanta escassez em
parece não querer lhe resistir. Mas a virtuosa artífice, mesmo
relação a esta personagem? Não estamos sendo severos, mas
cansada e vacilante, passa a sonhar com outros fatos
que lhe
extraindo conclusões do próprio texto, embora não se possa dizer
proporcione menos calor nas mãos e suor nas faces. E desperta mais
que se confessou mesquinha em relação a essa protagonista tão
rápido do que se esperava, pronta a continuar o seu exercício
sofrida, já que, em suas referências a essa personagem, ocorre um
ficcional. Ela sabe que o espetáculo não pode parar, porque não se
comentário que expressa uma intensa manifestação lírica:
pode romper a cadeia narrativa.
5. Quem é Leonora?
Não o culpo leitor um corpo real em
suas leituras. Sugiro-lhe, porém o prazer
de criar seu próprio modelo de carne e
sangue. (FD.60)
Jamais a quis longe da vida. Leonora
sempre foi um rio a desaguar no oceano,
florida e abundante. Alegrava-me até
imaginá-la na caverna, às vezes brincando
com o feno! (FD 122)
Julio Cortazar, em Valise de Cronópio, ressalta que, para
essa linha de configuração narrativa, já não existe romance ou
A narradora nos lança um desafio: Como decifrar aquela
poema: existem situações que se vêem e se resolvem em sua esfera
“voz aflita e molhada”? Como esclarecer a penosa trajetória da
verbal própria. Segundo Cortázar, a herança mais importante que nos
personagem Leonora? Ela é uma personagem já construída pelo seu
deixa esta linha de poesia no romance resida na clara consciência de
autor, Giuseppe Verdi e, portanto, já está configurada e modelada.
uma abolição de fronteiras falsas, de categorias retóricas. É uma
Mas, como estamos no reino do possível, à narradora é concedida
espécie de libertação, de extrema possibilidade verbal, da própria
uma liberdade para transformar essa personagem e elevá-la a outros
literatura como recriação. (Cortázar:1974)
reinos. No entanto, Nélida tenta resistir, não quer reconstruir um
Por outro lado, não é escusável salientar que à narradora
outro caminho, um outro destino para esta tão sofrida personagem de
Nélida não interessa narrar sobre a protagonista, porque há uma
Verdi.
outra personagem tentando entrar no cenário e substituí-la. É que
Mas, por que recusa favores a uma vizinha “que finge ignorar
este sujeito narrador quer se fazer sujeito personagem. Nélida quer
conseguir chegar, neste momento, à reta final de seu caminho, neste
assumir o lugar de Leonora. Personagem e narradora estão
empolgante texto. Como Scheerazade, conseguiu vencer as mil e
intrinsecamente ligadas, inseparáveis. Não há outra história para
uma noites.
contar. Apenas a história da linguagem, que se faz aparecer através
Que haja outros Álvaros e Leonoras em sua tão delicada
de representações esteticamente elaboradas para manifestar uma
ficção, para podermos acompanhar o desenvolvimento conflituoso e
outra identidade ficcional: a da própria autora.
instigante de uma escritora em seu encontro com a palavra. Porque,
Quem é Nélida?
assim, não ficaremos solitários, mas “com forças para revelar
caminhos difíceis” [...] (FD 65)
Uma cronista que “não perdeu o brilho da tez”, e “que
Que os fados jamais se apartem de nossa cronista. Que lhe
sabe artifícios delicados e sutis”, já que, ao romper o silêncio, isto é,
concedam a força de um destino para viver sempre em estado de
ao se expor narrando, conquistou um caminho legítimo e
graça.
indissolúvel se revelando como uma grande cronista.
Muitas vezes, certas hesitações da narradora se fizeram
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
perceber em seu texto:
Mastigo, porém, desatenta, sem o prazer
antigo. Começo a cansar-me.Estou a
cobrar de Leonora e Álvaro o que não
podemceder-me. (FD.97)
O sentido de sua narrativa poderia até se esvaziar, nesse
momento. Mas se há, neste vacilo, uma perda ou carência de
significado, há um novo começo. A narradora continua a tentar
ARRIGUCI JÚNIOR, Davi. Enigma e Comentário. Ensaios sobre
literatura e experiência. São Paulo: Cia das Letras, 1987.
BENJAMIN, Walter. O narrador. Tradução de Modesto Carone.
São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores)
BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade: lembrança de velhos. São
Paulo: T.A. Queiroz: Ed. da USP, 1987.
buscar o seu próprio destino, o destino de uma cronista, que, como
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva,
1974. (Col. Debates)
de todos os cronistas e poetas, batalha inexoravelmente para
IMBERT, Enrique Anderson. Métodos de crítica literária.
TEORIA FREIRIANA
Coimbra: Livraria Almedina, 1971.
ALMEIDA, Laura Isabel Marques Vasconcelos de 28
[email protected]
LEITE, Ligia C.M. O foco narrativo. São Paulo: Ática, 1987.
LINS, Osman. Guerra sem testemunhas: o escritor, sua condição e
a realidade social. São Paulo: Ática, 1974.
TACCA, Oscar. O narrador In: As vozes do romance. Tradução de
Margarida Coutinho Gouveia. Coimbra: Livraria Almedina, 1983.
MIDLIN, Dulce M. V. Ficção e mito: à procura de um saber.
Goiânia: CEGRAF, 1982.
CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva,
1974. (Col. Debates)
RESUMO
Este artigo apresenta os princípios da teoria freiriana, destacando a
importância da interação do sujeito com o meio, como agente
mediador da linguagem para que se concretize a aprendizagem, pois
o ideário da teoria freiriana é a valorização do diálogo, da
participação juntamente com a consideração do educando como
sujeito portador do saber que deve ser reconhecido. Segundo Freire
(2005), o diálogo entre o educador/educando e o objeto de
conhecimento, vinculado a reconhecer a aprendizagem como um
processo gradativo, em que valoriza o conhecimento de mundo
adquirido pelos alunos, contribui para que os sujeitos se tornem
construtores de seu próprio conhecimento.
PALAVRAS-CHAVE: diálogo; sujeito; aprendizagem.
ABSTRACT
This article presents the principles of the theory freiriana,
highlighting the importance of the subject's interaction with the
environment, as a mediator for the language to achieve learning, as
the ideology of the theory freiriana is the enhancement of dialogue,
participation together with the consideration educating the subject as
bearer of knowledge, which must be recognized. According Freire
(2005), the dialogue between the teacher / learner and the object of
knowledge, linked to recognise the learning as a gradual process in
which values the world of knowledge acquired by students, helps to
make the subject become builders of their own knowledge.
KEYWORDS: dialogue; subject; learning.
28
Professora da Rede Municipal de Cuiabá/MT e aluna do Programa de Pós-Graduação de
Doutorado em Educação da PUCPR.
1. A Dialogicidade
amorosidade e respeito. Podemos sintetizar isso expondo que:
Este é um dos eixos principais e fundantes de toda a teoria
“O diálogo é este encontro dos homens,
imediatizados pelo mundo, para pronunciá-lo, não
se esgotando, portanto, na relação eu-tu. Esta é a
razão por que não é possível o diálogo entre os que
querem a pronúncia do mundo e os que não
querem; entre os que negam aos demais o direito
de dizer a palavra e os que se acham negados
freiriana, o diálogo, nascido na prática da liberdade, enraizado na
existência, comprometido com a vida, que se historiciza no seu
contexto.
No seu livro, Pedagogia do Oprimido, escrito há 40 anos,
depois de justificar o título “Pedagogia do Oprimido”, expor a
deste direito” (Freire, 2005, p. 91).
educação bancária onde inexiste o diálogo, dedica os capítulos 3 e 4
à ação dialógica e antidialógica.
A dialogicidade é a essência da educação como prática da
liberdade. O diálogo é tratado como um fenômeno humano em Paulo
Daí que concluímos que o diálogo é uma exigência
existencial, é encontro respeitoso e solitário entre aqueles que
acreditam que o mundo pode ser transformado, pronunciado.
Freire, “se nos revela como algo que já poderemos dizer ser ele
Uma educação pautada na dialogicidade, fundada no diálogo,
mesmo: a palavra. Mas, ao encontrarmos a palavra, na análise do
é que se dá numa relação de humildade, encontro e solidariedade, ou
diálogo, como algo mais que um meio para que ele se faça, se nos
seja, numa relação horizontal, de muita confiança. O diálogo leva os
impõe buscar, também seus elementos constitutivos” (Pedagogia do
homens e mulheres a serem mais homens e mulheres, pois é sempre
Oprimido, 2005, p.89).
gerador de esperança.
Não há palavra que não seja práxis, ou que não surja da
práxis, quando pronunciamos a palavra, estamos pronunciando e
transformando o mundo. Na dialogicidade estão sempre presentes as
dimensões da ação e da reflexão. Ao pronunciar o mundo mostramos
que humanamente existimos, se existimos, agimos e modificamos o
mundo dado.
Quando não há verdadeiro diálogo, não há encontro,
Na questão da educação, ou melhor, da escola, a opção pelo
conteúdo programático deve dar-se no diálogo o qual se insere em
todos os segmentos sociais, porém devemos nos preparar para essa
ação mediatizada entre todos os segmentos. O contexto socialpolítico-econômico-cultural do educando deve ser bem considerado
ao se pensar em traçar os conteúdos programáticos. Sendo assim,
numa relação horizontal, a educação terá sentido, pois prolongará o
mas em todos os sentidos do nosso ser. Somente
pela virtual da crença, contudo, tem o diálogo
estímulo e significação: pela crença no homem e
nas suas possibilidades, pela crença de que
somente chego a ser eles mesmos” (2007, p.115116).
projeto de cada um, encharcando-os de sentido.
Desse diálogo, nascem os temas geradores, componentes do
conteúdo programático. Segundo Freire:
É na realidade mediatizadora, na consciência que
dela tenhamos educadores e povo, que iremos
buscar o conteúdo programático da educação. O
momento deste buscar é o que inaugura o diálogo
da educação como prática da liberdade. É o
momento em que se realiza a investigação do que
chamamos Universo Temático do povo ou o
conjunto de seus temas geradores” (2005, p.101).
Então podemos dizer que o diálogo consiste numa relação
horizontal e não vertical entre as pessoas implicadas e entre as
pessoas
em
relação.
No
seu
pensamento,
a
relação
homem/mulher/mundo são indissociáveis. Nós, homens e mulheres,
nos educamos juntos, em solidariedade e diálogo, na transformação e
Daqui aduzimos que o diálogo é a atividade pedagógica por
modificação do mundo dado. O saber de todos deve ser valorizado.
excelência, mas que já começa mesmo antes da ação pedagógica,
propriamente dita, e é na investigação temática e na busca dos
conteúdos programáticos que a ação dialógica se faz presente.
O
diálogo
produz
a
conscientização
libertadora
e
transformadora, ou seja, dialógica. Muito unida a dialogicidade está
a politicidade que apresentamos a seguir.
Para finalizar este item, expomos a definição de diálogo que
Paulo Freire propõe em Educação como Prática da Liberdade:
E que é o diálogo? È uma relação horizontal de A
com B. Nasce de uma matriz crítica e gera
criticidade (Jaspers). Nutre-se do amor, da
humildade, da esperança, da fé, da confiança. Por
isso, só com o diálogo se ligam assim, com amor,
com esperança, com fé um no outro, se fazem
críticos na busca de algo. Instala-se, então, uma
relação de simpatia entre ambos. Só aí há
comunicação. O diálogo é, portanto, o
indispensável caminho(Jaspers), não somente nas
questões vitais para a nossa ordenação política,
2. A Politicidade
Outro eixo fundamental da teoria freiriana é a politicidade,
gerada também da pronúncia da palavra, da ação dialógica. Todo ato
educativo é um ato político, que leva a um compromisso social de
transformação e libertação. Se a educação é neutra, não é educação,
mas pura repetição, transmissão que está longe da ação reflexiva, da
práxis.
acreditar-se superior aos fatos, dominando-os de
fora, nem se julga livre para entendê-los como
melhor agradar. Simplesmente os capta,
emprestando-lhes um poder superior, que a domina
de fora e a que tem, por isso mesmo, de submeterse com docilidade. É próprio desta consciência o
fatalismo que leva ao cruzamento de braços à
impossibilidade de fazer algo diante do poder dos
fatos, sob os quais fica vencido o homem”. ( 2007,
p.113).
A politicidade é aquela que concebe a educação como
problematizadora fundada na relação dialógica e dialética entre
educador e educando, que ao dialogar e politizar, problematizam e
aprendem juntos.
A política, entendida como luta do bem-comum é que pode,
mediatizada pelo diálogo, buscar ou almejar a transformação através
da consciência crítica. Não se consegue educar um povo imerso na
passividade, que já tem como hospedeiro o opressor, apesar de
Sem uma consciência crítica que nos integra à realidade não
pode haver politicidade. Por isso a conscientização é base primordial
continuar oprimido.
Uma ação política que não esteja entranhada de uma ação
libertadora, jamais poderá ser uma verdadeira ação pedagógica em
que a educação é vista como prática de liberdade.
Quando há a ausência de liberdade, há também a ausência de
conscientização. Uma política educacional que aposta mais na
da politicidade, que só se dá na dialogicidade.
Numa perspectiva de uma educação para a transformação,
para a liberdade e para a autonomia é central a questão da
politicidade e da consciência crítico-reflexiva, pois estas são que
suscitarão uma nova práxis.
ingenuidade da consciência mágica do que na consciência crítica das
Depois de entendermos os dois eixos centrais da teoria
pessoas está longe de ser educacional, mas massificadora e
freiriana,a dialogicidade e a politicidade, podemos adentrar no seu
manipuladora das consciências.
“método” e como se efetua a aprendizagem do sujeito.
A esse respeito Freire diz que:
3. O Método
“ A consciência crítica é a representação das coisas
e dos fatos como se dão na existência empírica.
Nas suas correlações causais e circunstâncias. A
consciência ingênua, se crê superior aos fatos,
dominando-os de fora e, por isso, se julga livre
para entendê-los conforme melhor lhe agradar. A
consciência mágica, por outro lado, não chega a
Rigorosamente não é um método o de Paulo Freire, mas uma
teoria do conhecimento, uma filosofia da educação. Paulo Freire
nunca afirmou ser ele o inventor de um método. Quando falamos em
“método Paulo Freire”, não podemos entendê-lo como uma técnica,
mas como já afirmamos, é uma teoria do conhecimento, um modo de
como se realiza a aprendizagem, enfim, uma filosofia da educação.
porque já existe uma curiosidade no ser humano.
Em seu livro “Leitura do mundo, Leitura da palavra”, Paulo
Freire explica esse primeiro momento, que é a essência do método.
A base da sua teoria está assentada numa antropologia, numa
A leitura do mundo sempre serve para me aproximar do mundo e
visão de mundo, de homem, que só alguém que compartilhe tal visão
retirar dele os elementos que servem para a minha vida e a vida dos
poderá entender e aplicar o referido método. Parte-se do seguinte
outros e, para isso, não precisa muito, precisa apenas de curiosidade
questionamento: Como é que o ser humano aprende? Porque
epistemológica, é o que Freire dizia. Ele havia lido Habermas, onde
aprende? Freire dá-se conta que o ser humano aprende por
se afirma que o interesse precede o conhecimento.
sucessivas aproximações e ele fica sempre como ser aprendente,
Freire diz que “antes de conhecer somos curiosos, porque
porque o objeto sempre revela coisas novas, tem sempre dimensões
todo ser humano é curioso”. Freire no seu método parte sempre das
que escapam à primeira vista, é um método que reconhece esse
necessidades do ser humano, e é a partir destas necessidades, que são
processo.
a extensão do projeto de vida das pessoas, é que poderemos construir
A partir da obra: Paulo Freire uma biobibliografia,
o conhecimento.
especificamente da página 37, expõe-se sinteticamente o método que
3.2. Segundo Momento – Tematização: Compartilhamento do
descreveremos o nosso modo de entender.
mundo lido
3.1. Primeiro Momento - Investigação Temática:
Leitura do
Mundo
Nesse segundo momento, descobre-se o significado das
palavras e temas geradores investigados, através da conversa e
É o primeiro passo, onde se descobre na criança, no jovem ou
diálogo com o educando, é uma tarefa interativa entre educador e
no adulto o que ele já sabe, partindo do que ele sabe, conhecendo
educando, pois o construtor do conhecimento é o educando. O
melhor o que sabe, conhecer mais do que já sabe. Esse é o processo
educador incentiva, coordena, ajuda e testemunha a importância do
natural e, para isso, não há outra coisa, do que motivar, seduzir,
conhecimento e o outro, o educando se motiva para desabrochar o
seu próprio conhecimento.
O conhecimento só é válido segundo Freire, se é
reconstruir o mundo lido. Aí está o revolucionário do mundo, não é
para contemplar o mundo lido, é para reconstruí-lo.
compartilhado com o outro. Por isso, nesse segundo momento, a
Por isso, não se pode entendê-lo como uma técnica e daí,
exigência do diálogo é essencial, não é mais somente a curiosidade.
então, a dificuldade de aplicá-lo, porque não é aplicável, a não ser
Há o intercâmbio das diferentes leituras do mundo nesse diálogo que
que se coincida com os pressupostos antropológicos de uma visão de
se estabelece.
mundo, transformadora de mundo, uma visão de ser humano,
A validade do conhecimento, segundo Freire, é dada
engajado na transformação do mundo.
socialmente, pois eu posso me equivocar, por isso se faz necessário o
O conhecimento tem uma função emancipadora, por isso, o
compartilhamento do mundo lido, assim, com o outro, vai-se
Método Paulo Freire, não é uma técnica. O conhecimento adquire
construindo o mundo lido.
uma função libertadora e isso é muito importante compreender
quando se fala em Método Paulo Freire, do contrário, reduziríamos
3.3. Terceiro Momento – Reconstrução do mundo lido:
a uma pura técnica.
Depois de trabalharmos este Método que dá ênfase ao
Problematização
educando como o sujeito da aprendizagem, apresentamos o que
Aqui é o momento de descobrir o sentido, o significado
daquele conhecimento para mim, para a minha vida. É o momento
pensa e o que sonha sinteticamente, Paulo Freie, sobre a
aprendizagem e sobre um outro mundo possível.
privilegiado da conscientização, da problematização. Isso é
radicalmente contrário à visão tradicional de conhecimento, que era
4.
Educando: Sujeito da Aprendizagem
só você, enriquecer-se de conhecimento, para vender-se no mercado
de trabalho. Você tem um diploma melhor do que o outro; essa
lógica da competição capitalista não é de Paulo Freire.
Uma das definições mais importantes de Paulo Freire é:
“Educar-se é impregnar de sentido cada ato cotidiano”. Impregnar-se
Essa reconstrução do mundo lido está ligada à leitura do
é encharcar-se de sentido. Só se aprende quando aquilo que aprendo
mundo, se eu leio o mundo, compartilho o mundo, agora, devo
é significativo para mim. Eu me educo quando aquilo que aprendo é
significativo para mim. As relações são conteúdos atitudinais, as
sentido a escola, o educando é o construtor de sentido. É um
minhas atitudes para com os outros não é só conhecimento. Deve-se
animador, mais que lecionador ou comunicador. O professor ajuda a
considerar as atitudes, identidade, autonomia, sentido, para que
autonomia do aluno e na organização do seu trabalho;
realmente, o educando seja o sujeito da aprendizagem.
O processo de aprendizagem, segundo Freire, dá-se da
seguinte maneira:
a) Somos seres inacabados, estamos aprendendo sempre;
b) Aprender não é acumular conhecimento, os conhecimentos
são voláteis, as informações envelhecem rapidamente;
c) O importante é aprender a pensar, pensar a realidade e não
reproduzi-la;
b) A escola ensina para e pela cidadania, é formadora do
cidadão pleno. A escola exerce internamente a sua cidadania e
autonomia;
c) O aluno deve ser o principal protagonista, participa de
tudo o que diz respeito à sua vida e não recebe de fora;
d) O sistema é que mais freia as idéias de Paulo Freire. É
burocrático e hierarquizado, não permite a construção da liberdade,
não aceita por isso a Freire;
d) É sempre possível aprender, é o sujeito que aprende,
e) O diálogo, como já dissemos, é fundamental, na opressão
aprendemos em contato com o outro. Por isso a grande preocupação
é impossível o diálogo. O conhecimento não é só histórico, não é só
de Freire com a identidade, em respeitar a identidade. O diálogo com
epistemológico, não é só lógico, acima de tudo, é Dialógico. É no
base no respeito é o centro da teoria freiriana.
diálogo que se dá a construção do mundo, que apresentamos
e) Só aprendemos aquilo que é significativo para a nossa
anteriormente;
vida. Quando o que aprendemos na escola, prolonga o nosso projeto
f) A educação é política na sua própria natureza. É política,
de vida, deve haver uma identificação com a escola para que esta
ideológica e histórica, pois o conhecimento está impregnado de
seja prazerosa.
história, de existência humana;
Daqui podemos com Freire, a modo de ilação, destacar
g) Um novo mundo é a condição de sobrevivência baseada na
algumas conseqüências dessa visão de aprendizagem, em que a
solidariedade e no respeito. O conhecimento, infelizmente, chegou a
escola deve impregnar-se de sentido:
produzir um modo de produção insustentável, que é o capitalista,
a) O professor deve ser o profissional que impregna de
baseado na opressão.
Considerações Finais:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
O modelo de educação proposto por Paulo Freire se
diferencia da educação tradicional, pois abomina, dentre outras
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro. Paz e
terra, 42 ed. 2005.
coisas, a dependência dominadora, que inclui dentre outras, a relação
_____________.Educação como prática da liberdade. Rio de
Janeiro, Paz e Terra, 30 ed. 2007.
de dominação do educador sobre o educando.
Portanto, a teoria freiriana, considerada inovadora e
diferente das técnicas até então utilizadas, foi diferente por
_____________. A educação na cidade. São Paulo Cortez, 6 2d.
2005.
possibilitar uma aprendizagem libertadora e não mecânica, mas uma
aprendizagem que requer uma tomada de posição frente aos
problemas
que
vivemos.
Uma
aprendizagem
integradora,
abrangente, não compartimentalizada, não fragmentada, com forte
teor ideológico. Diferente, pois, promovia a horizontalidade na
relação educador-educando, a valorização de sua cultura, de sua
oralidade, enfim, foi diferente, acima de tudo, pelo seu caráter
humanístico.
Dessa forma, o Método proposto por Freire rompeu com a
concepção utilitária do ato educativo, propondo uma outra forma de
alfabetizar. Isso prova o quanto Freire estava à frente de seu tempo e
o Método Paulo Freire continua vivo e em evolução entre aqueles
que trabalham com as suas idéias, mas destacamos a necessidade de
recriação constante em toda e qualquer prática educativa, inclusive
no método em questão.
FREIRE, Paulo e FREI Betto. Essa escola chamada vida. São Paulo,
Ática, 2003.
GADOTTI, Moacir (org). Paulo Freire: uma biobibliografia. São
Paulo, Cortez e IPF, Unesco, 1996.
CRÍTICA TEXTUAL: VARIANTES SEMÂNTICAS,
Pode-se afirmar que em todo processo de cópia de texto
SINTÁTICAS E LEXICAIS NA EDIÇÃO “USPIANA BRASIL
ocorrem variações voluntárias ou involuntárias por parte de quem o
500 ANOS”*
copia, por isso a crítica textual objetiva restituir ao texto a
BORGES, Maria Aparecida Mendes**
RESUMO: Neste artigo, apresento e analiso algumas variantes
semânticas, sintáticas e lexicais da edição “Uspiana Brasil 500 anos”
em relação ao manuscrito de Theotonio Joze Juzarte – “Diario da
Navegaçaõ do Rio Tieté, Rio grande Paraná, e Rio Gatemy em que
se dá rellaçaõ de todas as couzas mais notaveis destes Rios, seu
curso, sua distância E de todos os mais Rios que se encontraõ, Ilhas,
perigos, e de tudo o acontecido neste Diario pelo tempo de dous
annos, edous mezes Que principia em 10 de março de 1769”.
PALAVRAS-CHAVE: Crítica Textual; Lugar-crítico: variantes.
ABSTRACT: This article attempts to draw some data about the
analysis of some semantical, syntatical and lexical variants of the
edition “Uspiana Brasil 500 anos” in relation to the manuscript of
Theotonio Joze Juzarte – “Diario da Navegaçaõ do Rio Tieté, Rio
grande Paraná, e Rio Gatemy em que se dá rellaçaõ de todas as
couzas mais notaveis destes Rios, seu curso, sua distância E de
todos os mais Rios que se encontraõ, Ilhas, perigos, e de tudo o
acontecido neste Diario pelo tempo de dous annos, edous mezes Que
principia em 10 de março de 1769”.
KEYWORDS: Textual critic; critical place: variants.
___________________________________
* Este texto é uma síntese do capítulo 3, da dissertação de mestrado intitulada: Diário da
navegação: reprodução e estudo das variantes da Edição ‘Uspiana Brasil 500 anos’; com
orientação do professor doutor Manoel Mourivaldo Santiago Almeida, defendida em 2006,
pela UFMT.
** Doutoranda em Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo e
professora do curso de Letras do Instituto Cuiabano de Educação.
[email protected]
genuinidade. Assim, o termo Filologia está sendo usado nesta
pesquisa na acepção de Ivo Castro: “ciência que estuda a gênese e a
escrita dos textos, a sua difusão e a transformação dos textos no
decurso da sua transmissão, as características materiais e o modo
de conservação dos suportes textuais, o modo de editar os textos
com respeito máximo pela intenção do autor” (Castro, 1992:124).
Neste trabalho, objetiva-se, com prioridade, apontar e analisar
alguns exemplos das setenta e três variantes semânticas, sintáticas e
lexicais da edição “Uspiana Brasil 500 anos” em relação ao
manuscrito de Theotonio Joze Juzarte – “Diario da Navegaçaõ” de
1769. A Universidade de São Paulo disponibilizou essa edição para
comemorar os 500 anos de descobrimento do Brasil.
Esse objetivo foi formulado com base na hipótese de que um
grande número de estudantes de graduação e de pós-graduação que
passa pela “iniciação à crítica textual” a analisa pela edição uspiana.
Também profissionais de pós-graduação, como historiadores,
antropólogos, sociólogos e outros, buscam informações fazendo a
leitura apenas nessa edição, provavelmente por considerar o
manuscrito de “difícil leitura”. E assim, desconhecem as variações
semânticas, sintáticas e lexicais que podem comprometer o sentido
do texto de que trata este trabalho.
Cambraia alerta:
Considerando que, no sistema de ensino de forma
geral, o livro didático – um texto escrito, portanto
– é o principal instrumento de trabalho, era de
esperar que houvesse grande rigor em sua
elaboração, pois atinge milhões de leitores. A
realidade, no entanto, parece não condizer com
esse pressuposto (2005:190).
Para Cambraia (2005:135) um lugar-crítico (lat. Locus
criticus) constitui um ponto do texto em que os testemunhos
divergem. Explica que as diferenças podem ocorrer em capítulos,
períodos, palavras, morfemas e fonemas. E quando a lição (cada
palavra ou grupo de palavras de um testemunho) é distinta de
outro(s) testemunho(s) é rotulada de variante.
Os erros podem ser estudados, conforme Spina (1997:117),
quanto à responsabilidade (erros do autor, do copista, gráfico ou
revisor, erros do editor); quanto à natureza (erros voluntários ou
fraudes, involuntários, inevitáveis, correções intencionais); quanto
ao tipo (omissão, confusão de letras, saltos, transposições e outros);
quanto ao condicionamento psicológico (compreende todos os
aspectos da patologia da atenção).
Cambraia (2005:78-9) explica a “tipologia dos erros”
tomando como base as teorias de Blecua e Roncaglia. A primeira
classificação apresenta quatro tipos possíveis de erro: por adição,
por omissão, por alteração da ordem ou por substituição. Outra
proposta classifica-se em: erros de leitura (leitura do modelo) ou
ainda erros paleográficos; de memorização (retenção do texto); de
ditado interior e de execução manual. A maioria das variantes da
edição uspiana pode ser classificada como omissão ou substituição.
Cambraia (2005:80-4) explica que os erros por omissão
podem ocorrer por ausência de um fonema ou de uma letra; de uma
sílaba ou palavra idêntica ou muito similar à contígua; de uma
palavra por erro de ditado interior; e por omissão de uma frase. E os
erros por substituição: de um fonema por atração de outro próximo;
por atração de uma palavra igual na mesma perícope, isto é,
seqüência do texto, lida no modelo, que será copiada; de uma
palavra ou frase por outra da perícope seguinte ou próxima; de
fonemas por desconhecimento histórico do copista; de uma palavra
por outra de freqüência similar no uso e com grafemas quase
idênticos; de uma palavra ou frase por outra ao se estabelecer mal o
recorte sintático; de uma palavra por outra por atração do contexto;
por sinonímia; por confusão de uma abreviatura com uma palavra
sem abreviar; e por trivialização (leitura mais fácil).
Para apontar as variantes, alguns critérios serão estabelecidos
para o aparato: extrair-se-á por meio de foto ou escaner dessa edição
o trecho alterado com indicação de página e linha, como também do
excerto fac-similado do manuscrito. Colocar-se-á também o excerto
da edição paleográfica com indicação de fólio e linha. Far-se-ão
comentários filológicos e/ou lingüísticos das variantes.
Spina (1997:137) alerta que devem figurar, no aparato,
apenas as variantes significativas: semântica, sintática e lexical.
Embora Spina (Ibid.:137) faça o alerta sobre as variantes, ele não as
conceitua. Assim, a resolução de cada variante, aqui apontada, fica
para uma inserção futura. Possivelmente, em estudos sóciocognitivos e interacionistas.
Nessa perspectiva, seguem o aparato e as variantes
comentadas.
Legenda
* marca o comentário de cada variante.
Ms: (fól.(s) 5v L(s) 16-7 6r L(s) 1-4) Por que o espasso da
“” as aspas marcam (em negrito) palavra, sentença ou trecho
extremidade da proa ocupaõ os cinco ou seis remeiros, e o proeiro
do manuscrito que sofreram variação na edição uspiana.
vay adiante empé no bico da canoa, o outro expasso da poupa
[...] o pontilhado entre colchetes, em negrito, indica o ponto
“tambem serve para alguns passageiros, e o piloto se acomoda
do texto da edição “uspiana Brasil 500 anos” em que os testemunhos
tambem em pé no bico da poupa, que tem de vaze tres palmos
divergem.
onde vay em pé” o “dito” piloto governando a sua canoa.
As abreviaturas:
Ms. – Manuscrito
Ed. – edição uspiana
1. Omissão: salto-bordão
Edição USP: (p.23/L25) Porque o espaço da extremidade da proa
ocupam os cinco ou seis remeiros, e o proeiro vai adiante em pé no
bico da canoa, o outro espaço da popa [...] o [do] piloto governando
a sua canoa.
* O salto-bordão ocorre com a palavra “poupa”; e numa possível
desatenção, o editor desce mais uma linha e continua o texto. Ainda
podemos observar que “do” trata-se da palavra “dito” abreviada. A
omissão da frase e a substituição da palavra abreviada comprometem
a interpretação satisfatória do período porque excluem informações
importantes descritas pelo cronista.
2. Omissão de sintagma
Ms: (fól.53v L(s)2-9) e depois descansar a gente algum tempo,
ficando mais aliviados “por estarem quaze concluídos os”
trabalhos deste Rio e daqui ao Rio grande Paraná he muito perto sem
Ms (fól.21r/L15,16): deu a embarcaçaõ “huã pancada dentro” no
“embargo” de que ainda tem seos perigos, “embarcado” tudo na
canal dos emboabas
forma dita navegamos
Ed. (p.32/L16): deu a Embarcação [...] no canal dos emboabas
* Pode ser um erro de “retenção do texto”. Na sentença da edição
uspiana, pode-se entender que a embarcação “chegou” ao canal dos
Ed.: (p.50 L(s)26-9) e depois descansar a gente algum tempo,
emboabas. Todavia, no manuscrito, entende-se que ocorrera um
ficando mais aliviados [...dos] trabalhos deste rio e daqui ao Rio
acidente.
grande Paraná é muito perto sem [embaraço] de que ainda tem seus
3. Omissão: erro de leitura; e por substituição de palavras
perigos, [embarcando] tudo na forma dita navegamos
* Na primeira variante, houve salto bordão nas palavras:
“aliviados/concluidos”; na segunda, a troca de “embargo” por
“embaraço” – o autor visualizou uma linha abaixo; a terceira parece
ser opção do editor, pois ele fez a mudança no tempo verbal
“embarcado” por “embarcando” em vários recursos lingüísticos de
sua edição.
4. Substituição de fonema
Ms: (dól.109v L(s) 7,8) seu semblante feyo, o nariz chato, os olhos
“resgados” para baixo
Ms: (fól.7r L(s) Este mantimento feita a conta do que se perciza para
cada canoa durante a sua viagem se acomoda em sacos
“selindricos” que tem hũpé de diametro, e cinco, ou seis de
comprido; esta figura hé aque convem para se acomodarem melhor
Ed.: (p.81 L(s) 25,6) seu semblante feio, o nariz chato, os olhos
pelo seu comprimento, e pouco diametro
[vesgados] para baixo
* Erro paleográfico – a letra “r” minúscula é semelhante à letra “v”
atual, também minúscula. O cronista não descreve os índios como
“vesgos”, mas de olhos “resgados para baixo” – é possível que ele
esteja se referindo à maquiagem dos olhos.
5. Substituição de palavra
Ed.: (p.24 L(s) 13-6) Este mantimento, feita a conta do que se
precisa para cada canoa durante a sua viagem, se acomoda em sacos
[cilindrados] que têm um pé de diâmetro e cinco ou seis de
comprido; esta figura é a que convém para se acomodarem melhor
pelo seu comprimento e pouco diâmetro
* É possível que seja um erro paleográfico, mas pode ser que o
editor na tentativa de modernizar tenha intencionalmente mudado a
[...] seguimos a margem deste córrego, quando [direto] a nós em
palavra. Quando o cronista descreve os sacos “silindricos” diz com
distância de duzentos passos nos acendeu fogo o gentio
exatidão de sua feitura (sacos vazios). Mas quando o editor muda o
* A primeira variante trata-se de um salto-bordão na palavra
adjetivo para “selindrados” quer dizer o saco cheio de mantimentos
“campo”. Na segunda, o cronista sugere “à direita” e não na mesma
(volume).
“direção”, conforme o editor uspiano.
6. Omissão: salto bordão; e substituição de palavra
Em uma breve análise da crônica histórica, pode-se dizer que
Juzarte esboçava levantamentos em caderno de notas (o borrador ou
o caderno de lembrança) – esses cadernos eram chamados de
borrões. Nas micro-narrativas há comentários, tais como:
Ms: (fól.107v L(s)11-7) determinamos seguir a sua margem pelo
campo, “eque anoitecendo-nos pouzaria-mos no mesmo Campo”,
seguimos a margem deste córrigo, quando “direito” a nós em
distancia deduzentos passos nos acendeo fogo o Gentio
(...) sentamos emque voltace-mos para traz, o
que fizemos ignorando athé hoje que gente éra
aquella, nem que Embarcaçaõ (...) fól. 44v L(s)
1-3;
(...) que sendo governador, e Capitam General
Martim Lopes Lobo de Saldanha no anno de
setenta, e cinco mandou render ao dito capitam
Joaõ Alvarez, eaos mais officiaes que lá se
achavaõ ficando a Praça entregue ao Capitam de
Aventureiros Joaquim de Meira, Eoutros
officiaes Pedréstes; que na guerra, que semoveo
com os Espanhóes no anno de setenta, e sete (...)
(Juzarte, 1769: fólios 44v, 132r-32v). Grifos
meus
Esses registros comprovam que o “Diario da navegaçaõ” foi
transcrito muito depois de seu rascunho. Neste trabalho, não se
Ed: (p.80 L(s) 32-5) determinamos seguir a sua margem pelo campo,
afirma que a crônica histórica de Juzarte é autógrafa (escrita pelo
autor) e/ou idiógrafa (transcrita por um copista sob orientação do
autor), pois foram encontrados indícios consideráveis para análise.
Duas assinaturas que se diferem, como nas fotos abaixo:
Portanto, esses testemunhos indicam possibilidade de o texto
manuscrito ser apógrafo (fixado por copista sem supervisão do
autor). Assim, esse assunto deve continuar a ser tratado em
pesquisas futuras.
Assim, a hermenêutica é arte e ciência da interpretação.
Spina (1997:141) explica que a Filologia só pode exercer sua função
substantiva – penetrar na vida espiritual de um povo –
com a
hermenêutica. Então essa ciência histórico-lingüística estabelece-se
no firmamento do saber como hermenêutica e exegese do texto.
Cambraia (2005:55) informa que, somente no século XIX,
iniciaram-se trabalhos de edições rigorosas de textos em Língua
Juzarte (In Jonas, 2000:368)
Portuguesa. Ainda, hoje, essa prática é exercida por um conjunto
heterogêneo de pesquisadores afeitos às letras, cuja atuação,
normalmente, se restringe à edição de somente uma obra. É bem
verdade, que esse trabalho é complexo e extenuante. Mas não é
Juzarte (In Jonas, 2000:102)
apenas o número restrito de obras editadas, afirma o autor, mas o
Também na ficha catalográfica do manuscrito, que se
problema de não ser sistemático na produção. E, além disso, sob a
encontra na Biblioteca Nacional de Lisboa, diz ser “cópia em letra
responsabilidade de especialistas. Sobre a análise de diversos livros
da mesma mão” e a data “1831?”. E, ainda, no manuscrito que está
didáticos de comunicação e expressão, esse autor lista problemas dos
em São Paulo, a letra que transcreve o documento é a mesma que
mais variados.
deixa o possível endereço no lombo dele, como na foto 1 de José
Refletindo sobre isso, ciente dos desafios, mas numa avidez
Rosael. E, por último, o tecido da capa não é da época em que data o
maior, projetou-se esta pesquisa com o propósito de somar forças
manuscrito.
para o trabalho filológico e lingüístico da cultura luso-brasileira.
Ao apontar variantes da edição uspiana em relação ao
manuscrito, confirma-se a importância de se editarem documentos,
com rigor.
A língua não é o único objeto da filologia, que
quer, antes de tudo, fixar, interpretar, comentar
os textos; este primeiro estudo a leva a se ocupar
também da história literária, dos costumes, das
instituições, etc.; em toda parte ela usa seu
método próprio, que é a crítica. Se aborda
questões lingüísticas, fá-lo sobretudo para
comparar textos de diferentes épocas,
determinar a língua peculiar de cada autor,
decifrar e explicar inscrições redigidas numa
língua arcaica ou obscura.
(Saussure, 2004:7,8)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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para leitura de documentos manuscritos. Recife: Ed.UFPe, Fund.
Joaquim Nabuco e Ed. Massangana, 1994.
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Diário de Navegação: reprodução e variantes da edição ‘Uspiana
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CAMBRAIA, César Nardelli. Introdução à Crítica Textual. São
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séculos XVI ao XIX. São Paulo: secretaria da cultura – divisão de
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JONAS, Soares de & MAKINO, Miyoko (Orgs.), Diário da
Navegação. São Paulo:EDUSP, Imprensa Oficial do Estado, 2000.
JUZARTE, Theotonio Joze. Diário da Navegação do Rio Tieté, Rio
grande Paraná, e Rio e Gatemy em que se dá rellação de todas as
couzas mais notaveis destes Rios, seu curso, sua distancia, e de
todos os mais Rios que se encontraõ, Ilhas perigos, e de tudo o
acontecido neste Diario pelo tempo de dous annos e dous mezes Que
principia em 10 de março de 1769.
Roncaglia, In AZEVEDO-FILHO, Leodegário A. de. Iniciação em
crítica textual. Rio de Janeiro: Presença Edições, 1987, p.15.
SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de Lingüística Geral. São Paulo,
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SANTIAGO-ALMEIDA, Manoel Mourivaldo. Tipologia dos
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Descrição Lingüística: Morfologia – Mestrado em Estudos de
Linguagem, UFMT, 2003).
SPINA, Segismundo. Introdução à edótica. São Paulo, Cultrix:
1997.

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