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ADVERTÊNCIA
Este livrinho não tem mais pretensões que a de
proporcionar a quem disso haja interesse uma compilação,
analisada e comentada, dos dados que actualmente possuímos
sobre a história antiga de Lourenço Marques. Não é uma
história do descobrimento e da fundação de Lourenço
Marques, mas tão somente uma revista dos materiais de que
dispomos para ela.
São poucos esses materiais, poucos e fragmentários, de
modo que muitas vezes não se ajustam — incompletos e
descontínuos, largamente dispersos pelo tempo. Daí, e da
fraqueza do autor, a insuficiência deste trabalho.
Quando dizemos que são poucos os materiais, referimo-nos aos que nos oferecem as bibliotecas e arquivos
da Colónia — ou mais precisamente: o Arquivo Histórico de Moçambique. Se no Arquivo encontramos a
bibliografia fundamental para estes estudos, já assim
não sucede quanto a manuscritos. Os documentos mais
velhos que existem na Colónia não vão além da segunda metade do século XVIII e esses, mesmo, não se
contam por mais de escassas dezenas, com a particular
circunstância de que nenhum respeita a Lourenço
Marques.
1500-1545
DESCOBRIMENTO
Lourenço Marques é a mais nova das cidades e vilas
históricas, moçambicanas. Quase três séculos separam a sua
fundação da de Sofala e da de Moçambique. E quando, em
1761, a carta régia de 9 de Maio promovia a outorga do estatuto
de vila às praças, feitorias e feiras da Capitania Geral, Lourenço
Marques não existia ainda.
No entanto, a baía da Lagoa foi conhecida logo nos
primeiros anos da navegação da índia. Ia já desenhada, com os
três rios que nela desaguam, no famoso mapa que Alberto
Cantino levou clandestinamente de Lisboa para Génova, de
presente ao duque de Ferrara. Isto quer dizer que por fins de
Setembro, princípios de Outubro de 1502, o mais tardar, havia
já em Lisboa informação segura do Bio da Lagoa. Foi por
aqueles dias que Cantino, subornando um cartógrafo a quem
pagou doze ducados, conseguiu obter a preciosa carta.
Partindo deste facto e argumentando que «Vasco da Gama
não tocou ali na sua primeira viagem à índia, nem tão-pouco
qualquer dos navios da armada de Pedro Álvares Cabral», o
comandante Fontoura da Costa concluiu: «portanto, foi o Eio
da Lagoa descoberto por João da Nova em 1501 ou 1502» O.
A armada de João da Nova, terceira que foi à índia, saiu de
Lisboa em 5 de Março de 1501 e
(') Comunicação à Academia das Ciências de Lisboa. Publicada em vários lugares,
designadamente no documentário trimestral Moçambique, n.o 18.
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estava de volta em 11 ou 13 de Setembro de 1002. É
certo que, quando foi subtraída, a carta de Cantino
registava já informação fornecida por essa armada.
Prova-o a figuração nela da ilha da Ascensão,
descoberta por João da Nova. Mas a conclusão do
comandante Fontoura da Costa não deixa de ser
singular.
Na verdade, o argumento negativo para as armadas
do Gama e de Cabral é igualmente negativo para a
armada de João da Nova. Se não há nos cronistas e
relatores das viagens qualquer indicação de que as
duas primeiras armadas tenham tocado nesta altura
da costa, também a não há quanto à terceira. A afirmação, pois, de que esta entrou na baía é puramente
gratuita.
A simples especulação sobre os vagos e tantas vezes
contraditórios textos dos cronistas levar-nos-ia, antes, a
admitir a probabilidade do descobrimento por alguém da
armada de Cabral. João da Nova teve uma viagem feliz
e a sua armada navegou sempre, na ida e na volta,
regularmente reunida. Com Cabral, porém, não
sucedeu assim. A tempestade destroçou a frota. Umas
naus afundaram-se; outras andaram perdidas da conserva e só voltaram a reunir-se ao almirante, seis
delas, por altura de Sofala; Diogo Dias tresmalhou-se,
andou aventurosamente pela costa e Madagáscar, e
regressou a Portugal. Assim, e embora a armada de
Cabral não tenha tocado no Rio da Lagoa, a hipótese
de que algumas dessas naus errantes tenha vindo à
baía não é de desprezar. A questão permanece em
aberto — e, provavelmente, ficará para sempre ignorado quem foi o descobridor de Lourenço Marques.
Em todo o caso, o descobrimento da baía da Lagoa
parece não ter suscitado qualquer interesse e não
.passou, por então, de mero episódio das navegações e
da cartografia. Até à exploração por Lourenço Marques, quarenta anos mais tarde, não há notícia de
relações com a baía nem, mesmo, de simples frequência dela pelos capitães da carreira da índia. Os
casos de António do Campo e de João de Queirós
foram puramente incidentais e, ainda assim, há dúvidas
sobre se ocorreram ou não na baía da Lagoa.
António do Campo (que, transviado da segunda
armada do Gama, só em 1503 passara à índia e se
reunira à armada dos Albuquerques) regressava ao
Reino, em 1504, e surgiu algures na costa africana,
para aguada. Os indígenas deram-lhe boa hospitalidade. Campo pagou-a mal: ao retirar, cativou alguns
deles e levou-os para Portugal.
No ano seguinte João de Queirós, um dos da armada
de Pêro da Nhaia, saltou em terra com uma vintena de
homens, na mira de tomar algum gado. Os indígenas
atacaram-no e mataram-no — a ele e quase toda a sua
companhia: dos vinte homens, só quatro ou cinco
puderam voltar para bordo, “bem feridos».
João de Barros é, se não estamos em erro, o único
dos cronistas que estabelece relação entre os dois
sucessos e os dá corno passados no mesmo lugar. Explicando o ataque a Queirós, observa: «Parece que não
foi tanto este dano, polo que João de Queiroz ia fazer,
quanto polo que [os indígenas] tinham recebido de
António do Campo».
Onde, justamente, se passaram estes acontecimentos ?
Barros situa-os “aquém do Cabo das Correntes obra de
sessenta léguas, onde chamam o Rio da Lagoa», numa
“ilheta a qual os nossos chamam das Vacas, por
algumas que ali viram andar». É, não há dúvida, uma
indicação precisa da baía, com a sua ilha da Inhaca.
15
14
Gaspar Correia limita-se a contar que o episódio de
Queirós se passou numa ilha.
Castanheda, porém, e com ele o bem informado
Manuel de Mesquita Perestrelo indicam a Baía das
Vacas — o que situa os acontecimentos em Fish Bay. O
caso de Queirós ter-se-ia passado no continente, não
numa ilha. Queirós internara-se meia légua pelo sertão,
quando os Negros deram nele.
Preferimos a versão de Castanheda e Perestrelo, a
despeito da aparente precisão de Barros. Este podia ter
sido induzido em erro pelo nome de Lagoa, transportando para a baía deste nome, a sessenta léguas do
Cabo das Correntes, o que se teria passado, mais a sul,
numa outra baía do mesmo nome: Plettenberg Bay,
apenas a doze-quinze minutos de latitude da baía e cabo
das Vacas — cabo que, diz Perestrelo, «até estar muito
perto parece ilhéu, não o sendo».
Esta outra baía da Lagoa estava em muito melhor
posição que a nossa baía para estação de aguada — e,
realmente, nos primeiros anos da navegação da índia era
frequente as naus tomarem aguada nos portos do sul. A
baía de Lourenço Marques ficava fora da linha normal
de navegação que entre Moçambique e o Cabo
procurava afastar-se da costa. .
Por outro lado, não sabemos que a Inhaca fosse
alguma vez conhecida como ilha das Vacas.
A título de curiosidade, contaremos certa tradição
indígena que presume de memória do primeiro contacto
dos Rongas da baía com os Brancos ( 1 ) .
Um dia. o príncipe Mantimana, filho de Maromana,
filho de Mpfumo, filho de Nlharúti que foi o invasor
(') António Albasini recolheu, há alguns anos, várias tradições dos Rongas. São
os seus apontamentos manuscritos, que ele teve a amabilidade de nos facultar, que
aqui utilizamos.
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(vindo de Psatine, Suazilândia) das terras da baía,
andava a passear na praia de Cá-Mpfumo e viu uma
estranha coisa: um grupo de seres que vinham pela
praia, com gestos como de gente — mas brancos!
Mantimana cuidou que seriam bichos e correu à povoação. Juntou-se gente, discutiu-se e, por fim, aceitouse que tais seres eram, realmente, homens, embora
brancos. Levaram-nos ao rei que lhes deu agasalho.
Dias depois, gente do Tembe veio reclamar os homens
brancos, os quais tinham morto Ncoro, rei do Tembe.
Os de Mpfumo, porém, negaram-se a entregar-lhos.
Tal é a história. Infelizmente, as contradições e as
falhas das tábuas genealógicas da casa de Mpfumo,
recolhidas por vários investigadores, não nos permitem
fixar, com suficiente aproximação, a data do acontecimento. A historieta pode reflectir (mas, então, Barros
teria errado quanto à ilha) a recordação, já muito
esfumada, dos sucessos de Campo e de Queirós. Mas
pode, também, reportar-se a facto da visita de Lourenço
Marques e de António Caldeira. Ou, ainda, à chegada
dos náufragos do galeão grande S. João, em 1552. Um
destacamento desses náufragos, capitaneado por
Pantaleão de Sá, auxiliara, dias antes, o, régulo da
Inhaca numa guerra contra outro régulo — o que
poderia ser a explicação da diligência feita em Mpfumo
pela gente do Tembe. Em certo passo da relação das
aventuras destes náufragos, há outra possível
coincidência com a história indígena: o encontro na
praia, os cafres perguntando «aos nossos que gente era,
ou o que buscava» e, depois, conduzindo-os ao lugar em
que se achava o rei.
Repetimos, porém: ainda que passados na baía, os
sucessos de António do Campo e João de Queirós não
foram mais que fortuitos episódios da navegação.
Numa das Memórias apresentadas pelo Governo
17
português à arbitragem de Mac-Mahon, as quais foram
elaboradas por Paiva Manso, afirma-se que em 1505
Pedro Quaresma esteve na baía. A carta de Quaresma a
El-Rei, diz, apenas (o que é pouco para a afirmação de
Paiva Manso):
«[...] e tãto avante como apomta de santa luzia
numa noyte se perdeo a caravella da náo e eu com a
náo fuy aver amtre o cabo das corretes e de santa
maria, e daly fuy sempre ao llongo da costa até sofalla
[...]» (1)
Como quer que fosse, esta vinda à baía não passou,
também, de mera circunstância. Pedro Quaresma e Cid
Barbudo haviam sido despachados do Reino para levar
socorro a Sofala e procurarem Francisco de
Albuquerque e Pedro de Mendonça, dados por perdidos no mar. O mesmo terá sucedido com Diogo
Botelho Pereira que em 1527 foi mandado explorar a
costa entre os cabos da Boa Esperança e das Correntes,
à procura de D. Luís de Meneses que naufragara na
volta da índia, em 1525.
à margem destes episódios, a baía de Lourenço
Marques não foi, no período 1500-1545, objecto de
interesse e teatro de actividade regular dos Portugueses
ou, sequer, simples escala da navegação. Assim o
testemunha, na relação do naufrágio da nau S. Bento,
Manuel de Mesquita Perestrelo, «que se achou no dito
naufrágio». Descrevendo a baía, em 1554, diz ele:
(1) É possível, de resto, que este Cabo de Santa Maria não fosse o da baía de
Lourenço Marques, também chamado Cabo Colato. De facto, para norte do Cabo
das Correntes houve, também, um .cabo ou ponta de Santa Maria, como se vê de
algumas cartas antigas. Os Holandeses estabelecidos em Lourenço Marques
denominavam as terras de Inhambane também como terras de Santa Maria.
A carta de Quaresma sugere, realmente, que o cabo de Santa Maria ficasse
para além, no rumo que ele levava, do das Correntes — isto é, a norte deste.
18
«O segundo [rio] se chama Santo Espírito, ou de
Lourenço Marques, que primeiro descobriu o resgate do
marfim, que ali vem ter, por cuja causa é frequentada a
navegação dele de alguns anos a esta parte, que dantes
muitos passaram, que ali ninguém foi.»
Natural era que assim sucedesse. O ouro do Monomotapa fixava todos os sonhos e cuidados dos Portugueses de então. O acesso às minas e a defesa do
monopólio do tráfico do ouro constituíam todo o programa da capitania de Sofala e Moçambique. Por seu
turno, a carreira da índia tendeu a afastar-se da costa,
quer seguindo em linha directa entre a ponta sul de
Madagáscar e o Cabo, quer pelo golfão, passando «por
fora» de Madagáscar.
Sendo assim, mais de estranhar é que num dado
momento, em 1544-1545, o capitão de Moçambique ou
quem quer que foi ( 1 ) tivesse mandado Lourenço
Marques, numa fusta, «descobrir dois rios que estavam
além do Cabo das Correntes», como diz a conhecida
carta de D. João de Castro a El-Eei. Que motivo teria
subitamente despertado tal interesse por essas paragens,
desprezadas durante quase meio século ?
Podem tentar-se duas explicações:
Uma, a de que, no entretanto, tendo o negócio do
marfim ganho vulto e prosperidade, como efectivamente sucedeu, alguma notícia de abundância de mar(1) A verdade é que não sabemos quem foi. O único documento sobre a
questão nomeia apenas D. Jorge. Supõe-se que fosse o capitão de Moçambique
mas os capitães conhecidos de Moçambique, entre 1530 e 1550, são: Vicente
Pegado, Aleixo de Sousa Chichorro, João Sepúlveda e Fernão de Sousa de Távora.
A identificação de «D. Jorge» com D. Jorge Teles de Meneses, feita pelo
comandante Fontoura da Costa, não parece muito creditável. D. Jorge de Meneses
foi, realmente, capitão de Moçambique, mas entre 1586-1590 ou seja quarenta
anos mais tarde.
19
f i m na baía tivesse chegado a Moçambique ou à índia.
Outra, a de que já então tivessem começado a aparecer na baía navios de outras nações.
Henri Alexandre Junod recolheu, nos fins do século
passado, tradições indígenas segundo as quais os primeiros Brancos com quem os Rongas entraram em
contacto e estabeleceram comércio eram Ingleses. A
esse comércio chamavam eles godji — e ainda hoje o
termo Bá-Gôdji é empregado para designar a gente
inglesa.
É indubitável que nesta tradição se confundem e se
transpõem cronologicamente diversos factos de que a
baía foi teatro, e que nela se estampam, planificadas no
tempo, figuras e cenas que, ao longo de quase três
séculos, se desenrolaram aos olhos dos indígenas. De
1500 aos princípios de 1800, concorreram desordenadamente na baía muitas e desvairadas gentes — Portugueses, Ingleses, Franceses, Holandeses, Austríacos e
Americanos. Ora, se a precedência dos Portugueses no
descobrimento não sofre contestação, não é inadmissível
que entre 1500-1545, enquanto os Portugueses deixavam
abandonada a baía, estrangeiros a tivessem visitado e
estabelecido trocas com os indígenas.
Justamente por 1545 já os Portugueses se não sentiam
senhores seguros e indisputados destes mares. D. João
de Castro declarava a Torre de Moçambique (primeira
fortificação da ilha, levantada em 1507) insuficiente
para garantir a soberania de Portugal e recomendava a
construção (iniciada treze anos mais tarde) do que viria
a ser a praça de S. Sebastião. Assim, o aparecimento de
navios estrangeiros nas paragens do Cabo das Correntes,
com liberdade de navegação e de relações com os
indígenas, sem dúvida constituiria uma ameaça ao
monopólio português do
20
ouro de Sofala — razão mais- que todas premente
para se colocarem essas paragens sob o signo da Coroa
de Portugal.
Nada mais se sabe da expedição, além do pouco
que dizem as duas cartas trocadas entre D. João de
Castro e El-Rei( 1 ). Já vimos a dúvida sobre quem
ordenou a viagem. O próprio Lourenço Marques é
uma figura evasiva. Se a atribuição, pelo comandante
Fontoura da Costa, da data de 1514 à referência feita
por João de Lisboa a um Lourenço Marques piloto ou
capitão de navio está certa, não é muito provável que
esse Lourenço Marques, que em 1514 tinha já idade e
prática de navegação bastantes para aconselhar João
de Lisboa, fosse o mesmo que trinta anos mais tarde
descobriu a baía e a quarenta e três anos de vista
recebeu a mercê da escrivaninha da feitoria de Cochim.
Não é provável, posto que, realmente, não seja impossível.
Firmin Didot, na Nouvelle Biographie Générale,
1860, apresenta-nos Lourenço Marques como «navegador português nascido na primeira metade do século
XVI, negociante acostumado a fazer o comércio do
marfim nas costas da África oriental».
De positivo, só sabemos que nos princípios de 1554
Lourenço Marques partiu da índia para uma viagem à
baía, onde não chegou por naufragar na costa ( 2 ).
(') Publicadas, na parte que interessa, em vários lugares, por exemplo, na
Memória apresentada pelo Governo Português, 1870, à arbitragem de Mac-Mahon,
documentos n.os 6 6 7 .
( 2 ) Na Nota sobre a baía e rio de Lourenço Marques (tomo V das Obras
Completas), o Cardeal Saraiva diz que «no ano de 1554, vindo Lourenço Marques
da índia com direcção a estes seus rios, fez naufrágio na costa, antes de neles
entrar, e naquelas ondas ficou sepultado, como consta da Relação do naufrágio da
nau S. Benton. Na Relação lê-se, apenas: «na costa se perdeu, antes que se pudesse
recolher ao rio».
Perdeu-se o navio mas não o homem, que vivia ainda em 1557.
21
A carta régia de 11 de Fevereiro de 1557 (*) apresentano-lo como cavaleiro da casa de El-Eei. Em respeito
aos serviços prestados, Sua Majestade proveu-o no
ofício de escrivão da feitoria de Cochim, com este favor:
«por tempo de seis anos, posto que pelo regimento
houvessem de ser três».
A data da expedição à baía é, também, incerta: 1544
ou 1545? A carta em que D. João de Castro comunica a
El-Rei o descobrimento diz apenas:
«Os dias passados mandou D. Jorge Lourenço Marques em uma fusta a descobrir dois rios, que estão
além do Cabo das Correntes [...].»
Esta carta foi escrita em Moçambique, provavelmente nos primeiros dias de Agosto de 1545 e já então
Lourenço Marques ali estava, ou estivera, de volta da
baía. Ora, do quadro da navegação que adiante esboçamos, recolhe-se a sugestão de que, ao menos nos
primeiros tempos da carreira Moçambique-Baía da
Lagoa, os navios chegavam à baía por Novembro,
demoravam uns cinco meses e saíam, de regresso a
Moçambique, em Março. Assim, pode presumir-se que
Lourenço Marques tivesse partido de Moçambique em
Setembro-Outubro de 1544 e regressado em Março ou
Abril de 1545. Não temos, porém, nenhuma certeza.
Em resultado da exploração, abriram-se cobiçosas
perspectivas de comércio na baía. Num rio, Limpopo,
havia cobre e a promessa dos indígenas de que «venderiam quanto quisesse». No outro rio, a baía, avistavam-se grandes manadas de elefantes. O marfim
abundava. E, por umas contas que valeriam três vinténs, os indígenas davam um bar de marfim — que na
índia pagariam, mais ou menos, a cem cruzados!
(1)
22
Em face desta liberalidade, D. João de Castro
comunicou a El-Eei que tanto a ele como ao vedor da
Fazenda parecia bem mandar, logo que chegasse à
índia, «uma fusta a descobrir, saber muito bem como
isto se passa; porque seria grande proveito da fazenda
de V. A. se aqui pudesse haver cobre, maiormente
sendo tão bom como este homem, que lá foi, afirma».
El-Rei, em resposta, encomendou-lhe muito que
assim.fizesse e, caso lhe parecesse conveniente, mandasse no navio ou fusta mercadorias para resgatar as da
terra «e saber verdadeiramente as que há nela».
Desta vez, a baía fora, efectivamente, «descoberta»
— descoberta política e economicamente. Para a geografia, Lourenço Marques não foi o seu descobridor.
Mas, para a história, foi-o e não é sem justiça que o seu
nome se perpetua na cidade que germinou nas praias e
pântanos de Cá-Mpfumo.
Memória apresentada pelo Governo Português, documento n.° 8.
23
O grande volume dos arquivos da Colónia até 1840
foi remetido para Portugal, em 1891-1892, à ordem do
conselheiro comissário régio. Foi uma infeliz boa-intenção de António Enes — que não previu esta
paráfrase do seu famoso conceito: em Moçambique é
que se há-de estudar a história de Moçambique...
A documentação foi para Portugal e por lá jaz, nas
bibliotecas e arquivos, esquecida ou desdenhada dos
estudiosos. Os nossos historiadores na Metrópole não
descobriram ainda a África. Talvez por saudosismo
da glória e da riqueza, ainda hoje estudam e escrevem
muito sobre as perdidas grandezas da índia e do
Brasil — mas não sobre a discreta, embora, mas real
grandeza da nossa África.
Já os cronistas da índia, deslumbrados pelo brilho
do ouro e da pedraria, o capitoso das especiarias e o
fausto dos nomes heráldicos, raro se ocupavam das
coisas da costa de África. Para eles, a Capitania de
Sofala e Moçambique era a gata borralheira na esplendorosa Conquista da índia.
Os cronistas poderiam ter-se lembrado de que, se
essa Conqtiista calçava sapatinhos de ouro, era de
Sofala que os recebia. Os seus ilustres sucessores de
hoje deveriam lembrar-se de que vale mais ocuparmo-nos da modesta casa que nos abriga, que do irreconstruivel palácio de outrora, caído em ruínas.
Isto se diz por lamentação, que não por censura.
E quem ler este livro me perdoe pelo que nele fiz e
pelo que nele não fiz.
CAETANO MONTEZ
P. S. - Este trabalho achava-se concluído e entregue aos editores em junho.
Eles viram-se forçados, todavia, a protelar a composição e impressão — e, no
entretanto, Alexandre Lobato publicou, em Lisboa, uma «História da fundação de
Lourenço Marques», abrangendo desde o estabelecimento da feitoria austríaca até
à fundação do presídio por Joaquim de Araújo. Nesse livro publica Alexandre
Lobato documentos inéditos, existentes nos arquivos metropolitanos (foi, ainda,
um moçambicano que os desencantou), e dele nos chegou às mãos um exemplar,
em meados de Agosto. O conhecimento desses novos documentos permitiu-nos
esclarecer alguns pontos do noss-o primitivo trabalho, corrigir e ampliar outros.
Como a reelaboração do texto inicial teve de ser feita apressadamente, sobre o
joelho, é provável que o leitor encontre repetições, descoordenação e, mesmo,
alguma contradição entre partes que primeiramente, na carência de
documentação, eram conjecturais e outras que foi, depois, possível reajustar.
20 de Agosto de 1948
C. MONTEZ
PLANO
1500-1545 — DESCOBRIMENTO.
1545-1703 — EXPLORAÇÃO.
1 — Comércio e navegação,
11 — Os Náufragos.
111 — Esquecimenlo.
1703-1780 — 08 ESTRANGEIROS.
1781
— RECONQUISTA.
1782-1800 — FUNDAÇÃO.
DOCUMENTOS.
1.º
2º
3.º
4.°
5.º
De Jerónimo Leitão, 1598.
De Fr. Francisco de Santa Teresa, 1784
De J. J. Nogueira de Andrade, 1789.
Regimento do governador, 1781.
Instrução ao comandante, 1799.
1500-1545
DESCOBRIMENTO
Lourenço Marques é a mais nova das cidades e vilas
históricas, moçambicanas. Quase três séculos separam a sua
fundação da de Sofala e da de Moçambique. E quando, em
1761, a carta régia de 9 de Maio promovia a outorga do estatuto
de vila às praças, feitorias e feiras da Capitania Geral, Lourenço
Marques não existia ainda.
No entanto, a baía da Lagoa foi conhecida logo nos
primeiros anos da navegação da índia. Ia já desenhada, com os
três rios que nela desaguam, no famoso mapa que Alberto
Cantino levou clandestinamente de Lisboa para Génova, de
presente ao duque de Ferrara. Isto quer dizer que por fins de
Setembro, princípios de Outubro de 1502, o mais tardar, havia
já em Lisboa informação segura do Bio da Lagoa. Foi por
aqueles dias que Cantino, subornando um cartógrafo a quem
pagou doze ducados, conseguiu obter a preciosa carta.
Partindo deste facto e argumentando que «Vasco da Gama
não tocou ali na sua primeira viagem à índia, nem tão-pouco
qualquer dos navios da armada de Pedro Álvares Cabral», o
comandante Fontoura da Costa concluiu: «portanto, foi o Eio
da Lagoa descoberto por João da Nova em 1501 ou 1502» O.
A armada de João da Nova, terceira que foi à índia, saiu de
Lisboa em 5 de Março de 1501 e
(') Comunicação à Academia das Ciências de Lisboa. Publicada em vários lugares,
designadamente no documentário trimestral Moçambique, n.o 18.
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estava de volta em 11 ou 13 de Setembro de 1002. É
certo que, quando foi subtraída, a carta de Cantino
registava já informação fornecida por essa armada.
Prova-o a figuração nela da ilha da Ascensão,
descoberta por João da Nova. Mas a conclusão do
comandante Fontoura da Costa não deixa de ser
singular.
Na verdade, o argumento negativo para as armadas
do Gama e de Cabral é igualmente negativo para a
armada de João da Nova. Se não há nos cronistas e
relatores das viagens qualquer indicação de que as
duas primeiras armadas tenham tocado nesta altura
da costa, também a não há quanto à terceira. A afirmação, pois, de que esta entrou na baía é puramente
gratuita.
A simples especulação sobre os vagos e tantas vezes
contraditórios textos dos cronistas levar-nos-ia, antes, a
admitir a probabilidade do descobrimento por alguém da
armada de Cabral. João da Nova teve uma viagem feliz
e a sua armada navegou sempre, na ida e na volta,
regularmente reunida. Com Cabral, porém, não
sucedeu assim. A tempestade destroçou a frota. Umas
naus afundaram-se; outras andaram perdidas da conserva e só voltaram a reunir-se ao almirante, seis
delas, por altura de Sofala; Diogo Dias tresmalhou-se,
andou aventurosamente pela costa e Madagáscar, e
regressou a Portugal. Assim, e embora a armada de
Cabral não tenha tocado no Rio da Lagoa, a hipótese
de que algumas dessas naus errantes tenha vindo à
baía não é de desprezar. A questão permanece em
aberto — e, provavelmente, ficará para sempre ignorado quem foi o descobridor de Lourenço Marques.
Em todo o caso, o descobrimento da baía da Lagoa
parece não ter suscitado qualquer interesse e não
.passou, por então, de mero episódio das navegações e
da cartografia. Até à exploração por Lourenço Marques, quarenta anos mais tarde, não há notícia de
relações com a baía nem, mesmo, de simples frequência dela pelos capitães da carreira da índia. Os
casos de António do Campo e de João de Queirós
foram puramente incidentais e, ainda assim, há dúvidas
sobre se ocorreram ou não na baía da Lagoa.
António do Campo (que, transviado da segunda
armada do Gama, só em 1503 passara à índia e se
reunira à armada dos Albuquerques) regressava ao
Reino, em 1504, e surgiu algures na costa africana,
para aguada. Os indígenas deram-lhe boa hospitalidade. Campo pagou-a mal: ao retirar, cativou alguns
deles e levou-os para Portugal.
No ano seguinte João de Queirós, um dos da armada
de Pêro da Nhaia, saltou em terra com uma vintena de
homens, na mira de tomar algum gado. Os indígenas
atacaram-no e mataram-no — a ele e quase toda a sua
companhia: dos vinte homens, só quatro ou cinco
puderam voltar para bordo, “bem feridos».
João de Barros é, se não estamos em erro, o único
dos cronistas que estabelece relação entre os dois
sucessos e os dá corno passados no mesmo lugar. Explicando o ataque a Queirós, observa: «Parece que não
foi tanto este dano, polo que João de Queiroz ia fazer,
quanto polo que [os indígenas] tinham recebido de
António do Campo».
Onde, justamente, se passaram estes acontecimentos ?
Barros situa-os “aquém do Cabo das Correntes obra de
sessenta léguas, onde chamam o Rio da Lagoa», numa
“ilheta a qual os nossos chamam das Vacas, por
algumas que ali viram andar». É, não há dúvida, uma
indicação precisa da baía, com a sua ilha da Inhaca.
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14
Gaspar Correia limita-se a contar que o episódio de
Queirós se passou numa ilha.
Castanheda, porém, e com ele o bem informado
Manuel de Mesquita Perestrelo indicam a Baía das
Vacas — o que situa os acontecimentos em Fish Bay. O
caso de Queirós ter-se-ia passado no continente, não
numa ilha. Queirós internara-se meia légua pelo sertão,
quando os Negros deram nele.
Preferimos a versão de Castanheda e Perestrelo, a
despeito da aparente precisão de Barros. Este podia ter
sido induzido em erro pelo nome de Lagoa, transportando para a baía deste nome, a sessenta léguas do
Cabo das Correntes, o que se teria passado, mais a sul,
numa outra baía do mesmo nome: Plettenberg Bay,
apenas a doze-quinze minutos de latitude da baía e cabo
das Vacas — cabo que, diz Perestrelo, «até estar muito
perto parece ilhéu, não o sendo».
Esta outra baía da Lagoa estava em muito melhor
posição que a nossa baía para estação de aguada — e,
realmente, nos primeiros anos da navegação da índia era
frequente as naus tomarem aguada nos portos do sul. A
baía de Lourenço Marques ficava fora da linha normal
de navegação que entre Moçambique e o Cabo
procurava afastar-se da costa. .
Por outro lado, não sabemos que a Inhaca fosse
alguma vez conhecida como ilha das Vacas.
A título de curiosidade, contaremos certa tradição
indígena que presume de memória do primeiro contacto
dos Rongas da baía com os Brancos ( 1 ) .
Um dia. o príncipe Mantimana, filho de Maromana,
filho de Mpfumo, filho de Nlharúti que foi o invasor
(') António Albasini recolheu, há alguns anos, várias tradições dos Rongas. São
os seus apontamentos manuscritos, que ele teve a amabilidade de nos facultar, que
aqui utilizamos.
16
(vindo de Psatine, Suazilândia) das terras da baía,
andava a passear na praia de Cá-Mpfumo e viu uma
estranha coisa: um grupo de seres que vinham pela
praia, com gestos como de gente — mas brancos!
Mantimana cuidou que seriam bichos e correu à povoação. Juntou-se gente, discutiu-se e, por fim, aceitouse que tais seres eram, realmente, homens, embora
brancos. Levaram-nos ao rei que lhes deu agasalho.
Dias depois, gente do Tembe veio reclamar os homens
brancos, os quais tinham morto Ncoro, rei do Tembe.
Os de Mpfumo, porém, negaram-se a entregar-lhos.
Tal é a história. Infelizmente, as contradições e as
falhas das tábuas genealógicas da casa de Mpfumo,
recolhidas por vários investigadores, não nos permitem
fixar, com suficiente aproximação, a data do acontecimento. A historieta pode reflectir (mas, então, Barros
teria errado quanto à ilha) a recordação, já muito
esfumada, dos sucessos de Campo e de Queirós. Mas
pode, também, reportar-se a facto da visita de Lourenço
Marques e de António Caldeira. Ou, ainda, à chegada
dos náufragos do galeão grande S. João, em 1552. Um
destacamento desses náufragos, capitaneado por
Pantaleão de Sá, auxiliara, dias antes, o, régulo da
Inhaca numa guerra contra outro régulo — o que
poderia ser a explicação da diligência feita em Mpfumo
pela gente do Tembe. Em certo passo da relação das
aventuras destes náufragos, há outra possível
coincidência com a história indígena: o encontro na
praia, os cafres perguntando «aos nossos que gente era,
ou o que buscava» e, depois, conduzindo-os ao lugar em
que se achava o rei.
Repetimos, porém: ainda que passados na baía, os
sucessos de António do Campo e João de Queirós não
foram mais que fortuitos episódios da navegação.
Numa das Memórias apresentadas pelo Governo
17
português à arbitragem de Mac-Mahon, as quais foram
elaboradas por Paiva Manso, afirma-se que em 1505
Pedro Quaresma esteve na baía. A carta de Quaresma a
El-Rei, diz, apenas (o que é pouco para a afirmação de
Paiva Manso):
«[...] e tãto avante como apomta de santa luzia
numa noyte se perdeo a caravella da náo e eu com a
náo fuy aver amtre o cabo das corretes e de santa
maria, e daly fuy sempre ao llongo da costa até sofalla
[...]» (1)
Como quer que fosse, esta vinda à baía não passou,
também, de mera circunstância. Pedro Quaresma e Cid
Barbudo haviam sido despachados do Reino para levar
socorro a Sofala e procurarem Francisco de
Albuquerque e Pedro de Mendonça, dados por perdidos no mar. O mesmo terá sucedido com Diogo
Botelho Pereira que em 1527 foi mandado explorar a
costa entre os cabos da Boa Esperança e das Correntes,
à procura de D. Luís de Meneses que naufragara na
volta da índia, em 1525.
à margem destes episódios, a baía de Lourenço
Marques não foi, no período 1500-1545, objecto de
interesse e teatro de actividade regular dos Portugueses
ou, sequer, simples escala da navegação. Assim o
testemunha, na relação do naufrágio da nau S. Bento,
Manuel de Mesquita Perestrelo, «que se achou no dito
naufrágio». Descrevendo a baía, em 1554, diz ele:
(1) É possível, de resto, que este Cabo de Santa Maria não fosse o da baía de
Lourenço Marques, também chamado Cabo Colato. De facto, para norte do Cabo
das Correntes houve, também, um .cabo ou ponta de Santa Maria, como se vê de
algumas cartas antigas. Os Holandeses estabelecidos em Lourenço Marques
denominavam as terras de Inhambane também como terras de Santa Maria.
A carta de Quaresma sugere, realmente, que o cabo de Santa Maria ficasse
para além, no rumo que ele levava, do das Correntes — isto é, a norte deste.
18
«O segundo [rio] se chama Santo Espírito, ou de
Lourenço Marques, que primeiro descobriu o resgate do
marfim, que ali vem ter, por cuja causa é frequentada a
navegação dele de alguns anos a esta parte, que dantes
muitos passaram, que ali ninguém foi.»
Natural era que assim sucedesse. O ouro do Monomotapa fixava todos os sonhos e cuidados dos Portugueses de então. O acesso às minas e a defesa do
monopólio do tráfico do ouro constituíam todo o programa da capitania de Sofala e Moçambique. Por seu
turno, a carreira da índia tendeu a afastar-se da costa,
quer seguindo em linha directa entre a ponta sul de
Madagáscar e o Cabo, quer pelo golfão, passando «por
fora» de Madagáscar.
Sendo assim, mais de estranhar é que num dado
momento, em 1544-1545, o capitão de Moçambique ou
quem quer que foi ( 1 ) tivesse mandado Lourenço
Marques, numa fusta, «descobrir dois rios que estavam
além do Cabo das Correntes», como diz a conhecida
carta de D. João de Castro a El-Eei. Que motivo teria
subitamente despertado tal interesse por essas paragens,
desprezadas durante quase meio século ?
Podem tentar-se duas explicações:
Uma, a de que, no entretanto, tendo o negócio do
marfim ganho vulto e prosperidade, como efectivamente sucedeu, alguma notícia de abundância de mar(1) A verdade é que não sabemos quem foi. O único documento sobre a
questão nomeia apenas D. Jorge. Supõe-se que fosse o capitão de Moçambique
mas os capitães conhecidos de Moçambique, entre 1530 e 1550, são: Vicente
Pegado, Aleixo de Sousa Chichorro, João Sepúlveda e Fernão de Sousa de Távora.
A identificação de «D. Jorge» com D. Jorge Teles de Meneses, feita pelo
comandante Fontoura da Costa, não parece muito creditável. D. Jorge de Meneses
foi, realmente, capitão de Moçambique, mas entre 1586-1590 ou seja quarenta
anos mais tarde.
19
f i m na baía tivesse chegado a Moçambique ou à índia.
Outra, a de que já então tivessem começado a aparecer na baía navios de outras nações.
Henri Alexandre Junod recolheu, nos fins do século
passado, tradições indígenas segundo as quais os primeiros Brancos com quem os Rongas entraram em
contacto e estabeleceram comércio eram Ingleses. A
esse comércio chamavam eles godji — e ainda hoje o
termo Bá-Gôdji é empregado para designar a gente
inglesa.
É indubitável que nesta tradição se confundem e se
transpõem cronologicamente diversos factos de que a
baía foi teatro, e que nela se estampam, planificadas no
tempo, figuras e cenas que, ao longo de quase três
séculos, se desenrolaram aos olhos dos indígenas. De
1500 aos princípios de 1800, concorreram desordenadamente na baía muitas e desvairadas gentes — Portugueses, Ingleses, Franceses, Holandeses, Austríacos e
Americanos. Ora, se a precedência dos Portugueses no
descobrimento não sofre contestação, não é inadmissível
que entre 1500-1545, enquanto os Portugueses deixavam
abandonada a baía, estrangeiros a tivessem visitado e
estabelecido trocas com os indígenas.
Justamente por 1545 já os Portugueses se não sentiam
senhores seguros e indisputados destes mares. D. João
de Castro declarava a Torre de Moçambique (primeira
fortificação da ilha, levantada em 1507) insuficiente
para garantir a soberania de Portugal e recomendava a
construção (iniciada treze anos mais tarde) do que viria
a ser a praça de S. Sebastião. Assim, o aparecimento de
navios estrangeiros nas paragens do Cabo das Correntes,
com liberdade de navegação e de relações com os
indígenas, sem dúvida constituiria uma ameaça ao
monopólio português do
20
ouro de Sofala — razão mais- que todas premente
para se colocarem essas paragens sob o signo da Coroa
de Portugal.
Nada mais se sabe da expedição, além do pouco
que dizem as duas cartas trocadas entre D. João de
Castro e El-Rei( 1 ). Já vimos a dúvida sobre quem
ordenou a viagem. O próprio Lourenço Marques é
uma figura evasiva. Se a atribuição, pelo comandante
Fontoura da Costa, da data de 1514 à referência feita
por João de Lisboa a um Lourenço Marques piloto ou
capitão de navio está certa, não é muito provável que
esse Lourenço Marques, que em 1514 tinha já idade e
prática de navegação bastantes para aconselhar João
de Lisboa, fosse o mesmo que trinta anos mais tarde
descobriu a baía e a quarenta e três anos de vista
recebeu a mercê da escrivaninha da feitoria de Cochim.
Não é provável, posto que, realmente, não seja impossível.
Firmin Didot, na Nouvelle Biographie Générale,
1860, apresenta-nos Lourenço Marques como «navegador português nascido na primeira metade do século
XVI, negociante acostumado a fazer o comércio do
marfim nas costas da África oriental».
De positivo, só sabemos que nos princípios de 1554
Lourenço Marques partiu da índia para uma viagem à
baía, onde não chegou por naufragar na costa ( 2 ).
(') Publicadas, na parte que interessa, em vários lugares, por exemplo, na
Memória apresentada pelo Governo Português, 1870, à arbitragem de Mac-Mahon,
documentos n.os 6 6 7 .
( 2 ) Na Nota sobre a baía e rio de Lourenço Marques (tomo V das Obras
Completas), o Cardeal Saraiva diz que «no ano de 1554, vindo Lourenço Marques
da índia com direcção a estes seus rios, fez naufrágio na costa, antes de neles
entrar, e naquelas ondas ficou sepultado, como consta da Relação do naufrágio da
nau S. Benton. Na Relação lê-se, apenas: «na costa se perdeu, antes que se pudesse
recolher ao rio».
Perdeu-se o navio mas não o homem, que vivia ainda em 1557.
21
A carta régia de 11 de Fevereiro de 1557 (*) apresentano-lo como cavaleiro da casa de El-Eei. Em respeito
aos serviços prestados, Sua Majestade proveu-o no
ofício de escrivão da feitoria de Cochim, com este favor:
«por tempo de seis anos, posto que pelo regimento
houvessem de ser três».
A data da expedição à baía é, também, incerta: 1544
ou 1545? A carta em que D. João de Castro comunica a
El-Rei o descobrimento diz apenas:
«Os dias passados mandou D. Jorge Lourenço Marques em uma fusta a descobrir dois rios, que estão
além do Cabo das Correntes [...].»
Esta carta foi escrita em Moçambique, provavelmente nos primeiros dias de Agosto de 1545 e já então
Lourenço Marques ali estava, ou estivera, de volta da
baía. Ora, do quadro da navegação que adiante esboçamos, recolhe-se a sugestão de que, ao menos nos
primeiros tempos da carreira Moçambique-Baía da
Lagoa, os navios chegavam à baía por Novembro,
demoravam uns cinco meses e saíam, de regresso a
Moçambique, em Março. Assim, pode presumir-se que
Lourenço Marques tivesse partido de Moçambique em
Setembro-Outubro de 1544 e regressado em Março ou
Abril de 1545. Não temos, porém, nenhuma certeza.
Em resultado da exploração, abriram-se cobiçosas
perspectivas de comércio na baía. Num rio, Limpopo,
havia cobre e a promessa dos indígenas de que «venderiam quanto quisesse». No outro rio, a baía, avistavam-se grandes manadas de elefantes. O marfim
abundava. E, por umas contas que valeriam três vinténs, os indígenas davam um bar de marfim — que na
índia pagariam, mais ou menos, a cem cruzados!
(1)
22
Em face desta liberalidade, D. João de Castro
comunicou a El-Eei que tanto a ele como ao vedor da
Fazenda parecia bem mandar, logo que chegasse à
índia, «uma fusta a descobrir, saber muito bem como
isto se passa; porque seria grande proveito da fazenda
de V. A. se aqui pudesse haver cobre, maiormente
sendo tão bom como este homem, que lá foi, afirma».
El-Rei, em resposta, encomendou-lhe muito que
assim.fizesse e, caso lhe parecesse conveniente, mandasse no navio ou fusta mercadorias para resgatar as da
terra «e saber verdadeiramente as que há nela».
Desta vez, a baía fora, efectivamente, «descoberta»
— descoberta política e economicamente. Para a geografia, Lourenço Marques não foi o seu descobridor.
Mas, para a história, foi-o e não é sem justiça que o seu
nome se perpetua na cidade que germinou nas praias e
pântanos de Cá-Mpfumo.
Memória apresentada pelo Governo Português, documento n.° 8.
23
1545-1703
EXPLORAÇÃO
I — Comércio e Navegação.
II — Os Náufragos.
III — Esquecimento.
Comércio e Navegação
Na carta em que respondia a D. João de Castro, El-Rei
considerava «o descobrimento daqueles rios que fez Lourenço
Marques coisa mui importante e necessária acabar-se bem de
saber» e recomendava ao governador da índia que encarregasse
Lourenço Marques, «pela informação e prática que já disso
tinha», de nova viagem de exploração. Mas, com aquela sábia
previsão (que infelizmente se perdeu das tradições da nossa
administração ultramarina) de deixar aos que cá estavam o
ajuizar das pessoas e coisas de cá, corrigia:
«E posto que vos diga que mandeis a isto Lourenço
Marques, não o encarregareis disso senão parecendo-vos que é tão suficiente para isso, que podereis escusar de
mandar a isso outra pessoa.»
Não sabemos quem veio. Associa-se, geralmente, o nome de
António Caldeira ao de Lourenço Marques na expedição do
descobrimento. Esta associação funda-se na informação deixada
pelo narrador da perda do galeão grande S. João: em 1552, o
rei da Inhaca «já tinha notícia de Portugueses por Lourenço
Marques e António Caldeira que ali estiveram».
Ë claro, no entanto, que estas palavras não implicam
forçosamente que Caldeira e Lourenço Marques ali tivessem
estado juntos, ambos na viagem de descobrimento. O facto de
D. João de Castro referir, apenas, Lourenço Marques sugere,
antes, que assim
27
não foi, posto que possa também presumir-se, como
alguns já têm presumido, que Caldeira não seria senão
piloto ou mestre do navio do descobridor. Todavia, a
sua menção por aquele narrador reforça, cremo-lo, a
sugestão. Os dois nomes indicarão os dois homens que,
até aquela data de 1552, teriam visitado a baía
— provável corno é, ainda, que entre 1546-1552 não
tivesse havido mais que duas ou três viagens da índia a
Lourenço Marques. António Caldeira pode ter sido,
então, o capitão da segunda, iniciador da exploração
comercial regular da baía.
Esta exploração não foi um estabelecimento, no
sentido em que hoje entendemos esta palavra. Ao contrário do que dizem vários autores, não havia em terra
fortificação ou feitoria com guarnição permanente. Não
possuímos outros documentos destes tempos, além das
relações trágico-marítimas, do roteiro de Perestrelo e de
um curioso relatório de Jerónimo Leitão ( 1 ). Estes
documentos abrangem quase um século, 1552-1648. Para aquém desta data, temos, ainda, a informação proveniente de fontes holandesas: da galeota
Noord, 1688, e da feitoria, 1723. Assim, e a despeito
das suas largas soluções de continuidade, a revista desta
documentação é decisiva da questão de se a baía foi ou
não guarnecida entre 1545 e 1703.
(') As relações dos naufrágios acham-se na História Trágico-Marítima. Os
seus autores, que algumas vezes mencionamos neste estudo sem mais referências,
são: do galeão S. João, 1552, anónimo; da nau 5. Bento, 1554, Manuel de
Mesquita Perestrelo; da S. Tomé, 1589, Diogo do Couto; da Santo Alberto, 1593,
João Baptista Lavanha; da 5. João Baptista, 1622-23, Francisco Vaz de Almada;
do galeão Sacramento e nau Nossa Senhora da Atalaia, que viajavam em frota,
1647-48, Bento Teixeira Feio.
O Roteiro de Manuel de Mesquita Perestrelo, 1575-76, foi publicado, com
anotações de A. Fontoura da Costa, em edição da Agência Geral das Colónias,
1939.
Quanto ao relatório de Jerónimo Leitão, veja-se no final deste livro o
primeiro documento.
28
As sucessivas expedições de náufragos que chegaram à
baía após a aventurosa marcha pelas praias e sertões da
costa do Natal e dos Fumos — do galeão grande S.
João, em 1552; da nau S. Bento, em 1554; da S. Tomé,
em 1589; da Santo Alberto, em 1593; da S. João
Baptista, em 1623; das naus Sacramento e Nossa
Senhora da Atalaia, em 1647-48 — não encontraram
nunca em terra guarnição estabelecida. Do roteiro de
Perestrelo, 1575, igualmente se verifica que a baía
estava desocupada. Em 1598, Jerónimo Leitão
encontrou um verdadeiro forte abaluartado — mas
construído por Ingleses.
Num relatório de 1723, dirigido ao governador e ao
conselho político da Colónia do Cabo O, Jan van de
Capelle, que foi a figura saliente da ocupação holandesa
da baía, escreve:
“Também não posso deixar de dizer, Ex.mo Senhor e
Ilustríssimos Senhores, que muita gente estranhou não
ser encontrada na Lagoa uma fortaleza decaída dos
Portugueses nem alguém dessa nação (fosse preto ou
branco) morando cá, como parece que se esperava.»
Em face destes depoimentos, não fica grande lugar
para dúvida. E quanto à designação da Xefina como
“possessão» ou “guarnição portuguesa», na carta do
engenheiro holandês Konink, 1726, e em outros
documentos holandeses, veremos adiante qual o seu
significado.
Esta ideia de uma “ocupação» da baía provém,
principalmente, de Paiva Manso (Memória sobre Lourenço Marques e memórias apresentadas pelo governo
(') Este relatório, bem como outros documentos da feitoria holandesa na baía,
estão publicados na língua original em Records o] South-Eastern África, coligidos
por Mc Call-Theal. Foram publicados, em versão portuguesa de W. Mulder,
residente holandês em Lourenço Marques, no documentário trimestral
Moçambique, n.os 30, 34 e 35.
29
português à arbitragem de Mac-Mahon, na questão com
a Grã-Bretanha) e resulta de se terem tomado em
sentido moderno as expressões feitoria e fortaleza
empregadas pelos antigos.
Uma das mais curiosas ilusões dessa «ocupação», se
não mesmo colonização da baía, é a pretendida
existência, em 1589, duma «colónia portuguesa no
interior do Maputo», colónia constituída por Jerónimo
Leitão e alguns companheiros. O erro provém de leitura
superficial da relação, por Diogo do Couto, do naufrágio
da nau S. Tomé. Couto, ou algum dos que intervieram na
impressão da obra, estabelece grande confusão: num
passo, chama Manhiça ao régulo da Inhaca; noutros,
chama rio da Inhaca ao rio do Ouro e Inhaca a um
régulo da margem desse rio. Uma leitura atenta, porém,
permite corrigir facilmente a confusão e desfazer a lenda
da colónia no interior do Maputo. A verdade do caso é
assim:
Uns dias antes dos náufragos da S. Tomé chegarem à
baía, largara dela Jerónimo Leitão, numa naveta
carregada com o marfim do resgate. No Rio do Ouro, a
naveta deu à costa; Leitão e os seus-homens foram
roubados e recolheram-se na povoação de um régulo que
Leitão conhecia, povoação que ficava «doze léguas pelo
rio acima», onde parte daqueles náufragos os foram
encontrar. O rio do Ouro é o Limpopo a que Diogo do
Couto, na sua descrição geográfica, chama Inhapula
(Inhampura). É este nome Inhapula que naqueles passos
da relação aparece trocado por Inhaca — engano
naturalmente sugerido pela notoriedade que então tinha
este nome. Ou, mesmo, a expressão inhaca seria um
título dos chefes, como incosse, mambo e bilene.
Realmente, encontramo-la aplicada a outros chefes, além
do régulo da ilha: o inhaca Sangoane, o inhaca
Manganheira. Talvez por isso,
30
a ilha é, em regra, nomeada ilha do Inhaca e só mais
tarde esta palavra aparece como topónimo. O nome
original, indígena, da ilha parece ter sido Choambone,
que designava também a península a ela fronteira.
De 1545 a 1703 não houve, de facto, ocupação
portuguesa da baía — repetimos: «ocupação», no sentido
em que hoje a compreendemos. Houve uma exploração
comercial, por meio da expedição, anual ou de dois em
dois anos, de um navio da índia ou de Moçambique. O
navio fundeava na baía. A tripulação vinha a terra,
fazia resgate, voltava para bordo e o navio regressava
a Moçambique, sem deixar em terra gente ou fazenda.
Este carácter da exploração é bem acentuado num
parecer enviado de Moçambique ao vice-rei da índia,
em 1745 (1) :
«Para o Cabo das Correntes se pode e é conveniente
mandar todos os anos um navio ao resgate do marfim,
guardando-se naquela viagem a ordem e forma que
em outros tempos se costumava, que era o capitão
obrigado a fazer o dito resgate e voltar na monção
sem deixar lá coisa alguma de fato ou coisa já resgatada.»
Tanto quanto sabemos, o trato na baía foi assim
organizado:
Nos primeiros tempos, o resgate era feito nas praias,
em idas e vindas de embarcações. Talvez, mesmo, nas
primeiras viagens, ninguém desembarcasse e fossem os
indígenas que, nos seus barcos (então ainda não as
almadias que hoje conhecemos mas simples jangadas
de troncos fortemente amarrados) iam encostar ao
navio. A tradição indígena que atrás
(1) Memória apresentada pelo Governo Português, documento n.° 17.
BI
referimos assim o quer, quanto aos primeiros Brancos
que vieram negociar à baía.
Em todo o caso, em 1554 eram já os Portugueses que
vinham a terra. O navio que recolheu, nesse ano, os
náufragos da S. Bento, ancorou primeiro no «rio do
meio» (') e o piloto, de nome Bastião de Lemos, «saía
algumas vezes em terra, a fazer o resgate». Do «rio do
meio», Bastião de Lemos “tornou ao Inhaca, sobre seu
resgate, como costumava».
Mais tarde, estabeleceram-se em terra postos de
resgate, com acampamentos feitos de casas de palha. Aí
se recolhia a gente do navio enquanto duravam as
transacções, se armazenavam as mercadorias e acudiam
os indígenas a fazer seu negócio. Era a estes
acampamentos que os antigos chamavam feitorias, até
mesmo fortalezas.
Findo o resgate ou chegada a monção de partir, toda
a gente recolhia ao navio e os acampamentos ficavam
desertos até à nova campanha, no ano seguinte. A
exploração era, pois, um típico sistema de feiras.
O primitivo resgate no «meio» foi posteriormente
abandonado, decerto pela turbulência dos indígenas de
Tembe e de Mpfumo (de que, mais tarde, os Holandeses
se queixariam também). O facto é que, em anos
posteriores, a actividade dos Portugueses exercia--se
especialmente, se não exclusivamente, na Inhaca e ao
longo do Incomáti. Na já citada relação de Jan Van de
Capelle, há confirmação do abandono do resgate do
“meio». De um indígena de Moçambique que viera
várias vezes à baía com os Portugueses e ali
(') Este rio do meio da baía não é o curso do Tembe, como alguns têm
suposto, mas sim a própria baía, ou seja o estuário do Espírito
Sanío.
ficara, soube o Holandês que os Portugueses “nunca
tiveram uma feitoria aqui [isto e, onde era o forte
holandês, no sopé das dunas da Machaquene], mas
numa ilha de nome Xefina, situada no lado NE da
baía».
A primeira notícia que ternos daqueles acampamentos
é de 1589 (relação do naufrágio da nau S. Tomé). O
régulo da Inhaca, aconselhando os náufragos a não
passarem à outra banda (Mpfumo e Manhiça) e
lembrando-lhes o que sucedera a Manuel de Sousa
Sepúlveda, disse-lhes que «se não se haviam por
seguros naquela aldeia [a povoação do Inhaca ficava
no continente], ele os mandaria pôr em uma Ilha onde
achariam ainda as casas em que os Portugueses viviam
quando ali vinham ao resgate do marfim». Os náufragos
aceitaram. Passaram à Inhaca e, depois, à ilha então
chamada «Setimino» ( 1 ) e nesta acharam “mais de
cincoenta choupanas que os portugueses do resgate
deixaram feitas». Essa ilha foi, depois (e ainda o é hoje),
chamada “dos portugueses» — «pelos muitos que nela
estão enterrados, dos que se salvaram da nau S. Tomé»,
conforme escreveu João Baptista Lavanha. A partir de
certa data, o navio do resgate deixava na ilha uma
embarcação pequena, para socorro dos náufragos que
ali viessem dar. Jerónimo Leitão refere o facto nestes
termos (veja-se Doc. 1.°):
“E nesta ilha do Inhaca terão os náufragos que
comer, e se daí quiserem atravessar às terras de
Inhambane sempre lhes aí deixam as embarcações do
resgate em que o poderão fazer.»
Em 1593, a feitoria era ainda na ilha dos Portugueses. Os náufragos da Santo Alberto, que tiveram
( 1 ) Noutro passo da relação aparece Setimuro em vez de Setimino. Trata-se,
obviamente, de duas formas (erradas pelo copista ou impressor) de uma mesma
palavra. O nome indígena da ilha é Xitimáli.
33
a sorte de chegar à baía quando nela se achava o navio
do resgate, encontraram nessa ilha «a gente do navio
aposentada em choupanas feitas nela para seu
gazalhado».
Em 1622, passou-se uma cena semelhante à de 1589.
O régulo, insistindo com os náufragos da S. João Baptista
para que ficassem junto dele, que então residia na
Inhaca, disse-lhes «que se não queriam fiar-se dele,
fossem para uma ilha que estava logo ali pegada, à qual
se passava a pé em baixamar, que ali tinham água, e que
lhes mandaria fazer para cada dois portugueses uma
gamboa, e teriam mantimento que bastasse, que ali
tinham invernado por muitas vezes portugueses».
A chamada feitoria da Inhaca era, pois, na ilha dos
Portugueses e não é bem claro se alguma vez foi na
Inhaca propriamente dita, visto como a nomeação
desta ilha frequentemente engloba a dos Portugueses. Por
seu turno, a primeira notícia que temos do resgate no
Incomáti vem-nos de Diogo do Couto. Descrevendo o rio
do Manhiça, diz que ali faziam os Portugueses resgate de
marfim e tinham a sua feitoria, onde residiam quatro
meses do ano, que tanto durava a monção. Em 1623,
Francisco Vaz de Almada refere-se-lhe nestes termos:
«quando a estas partes vem embarcação, na sua [do
Manhiça] terra tem a maior feitoria». A este tempo, ao
que se deduz desta relação, a Xefina não era ainda
utilizada: a feitoria achava-se na boca do Incomáti. Em
1647, porém, já a Xefina funcionava como base dos
resgates estabelecidos ao longo do Incomáti. Bento
Teixeira Peio, na sua relação do naufrágio do galeão
Sacramento e nau Nossa Senhora da Atalaia, deixou-nos
disso informação relativamente desenvolvida.
Quando os náufragos chegaram à baía, encontrava34
-se nesta, ancorada junto à Xefina, ilha despovoada, a
galeota que viera ao resgate. Chegaram à ilha no dia «5
de Janeiro, véspera de Reis, de 1648, saindo logo para a
igreja, que se ali faz de palha com a vinda do pataxo em
que há capelão, e missa, a dar graças a Deus, e à Virgem
do Rosário, cuja invocação tinha». Ao terceiro dia,
repartiu-se a gente «pelas cinco feitorias, que já estavam
assentadas, vinte léguas pelo rio acima» (o rio é o
Incomáti). Na ilha ficaram, por hóspedes do capitão da
galeota, o almirante ( l ), os religiosos, os oficiais e
passageiros do galeão e da nau, «acomodados por
palhotas, que se faziam de novo, e outras, que
despejaram os lascares da galeota, a quem se pagaram».
Foi a este acampamento, naturalmente melhorado mais
tarde, com a sua palhota-igreja de Nossa Se n h o r a do
R o s á r i o ( 2 ) que os Holandeses chamariam «possessão»
ou «guarnição portuguesa».
«Chegando-se o tempo de partir», continua a relação,
«se vieram ajuntando os que escaparam nas feitorias, e
embarcados todos levámos âncora a 22 de Junho à tarde
[...].» Da Xefina foram dar fundo na
(*) O galeão Sacramento e a nau Nossa Senhora da Atalaia haviam partido
juntos da índia. O galeão era a capitania e a seu bordo viajava o «almirante», isto
é, o capitão-mor, Luís de Miranda Henriques.
( 2 ) Eis outro exemplo da ilusão de ocupação da baía. Paiva Manso,
reelaborando o texto de Bento Teixeira Feio, diz que “o nosso estabelecimento de
Lourenço Marques contava em 1647 uma população já de trezentas pessoas e nele
havia também capela com seu capelão». Noutro passo, insiste: «Tinha uma
população em 1647 de trezentas pessoas livres, com seu capelão, e seis feitorias».
Pelo que já transcrevemos do relato de Feio, sabemos o que se deve pensar da
capela e seu capelão. Quanto às trezentas pessoas livres, eram 154 náufragos do
Sacramento e da Nossa Senhora da Atalaia; o resto, a gente da galeota. E, como
era regra, ninguém ficou em terra: «dando à vela dia de S. João começámos a
navegar para Moçambique com trezentas pessoas, brancos e pretos, na galeota».
35
ilha do Inhaca onde resgataram muitas galinhas e
batatas — largando, depois, para Moçambique.
Em 1688, a galeota holandesa Noord, que viera
reconhecer e cartografar a baía, forneceu esta notícia:
«no continente, perto da boca do Manhiça, os Portugueses tinham uma casa pequena ( l o d g e ) ou habitação
temporária onde faziam o negócio».
Nos relatórios de De Capelle encontramos nova
informação sobre os resgates da Manhiça. Como já atrás
vimos, não era no sítio actual de Lourenço Marques que
estava a feitoria mas sim na Xefina. De Capelle
acrescenta:
«Na foz do rio que chamamos St. Esprit [os Holandeses, confundindo os nomes, chamavam assim ao
Incomáti] tinham os Portugueses um sítio onde faziam
palhotas para se alojarem durante o tempo de estadia
para negociar, que ordinariamente era de cinco ou seis
meses. Em cada uma das povoações ao longo do rio
agora mencionado até Manisse (não tendo eles nunca
penetrado mais para cima) mantinham durante o tempo
indicado uma feitoria com mais ou menos quatro
homens que faziam o negócio, vindo então de baixo,
cada 8 ou 10 dias, para cima, com as suas embarcações,
para buscarem os artigos negociados, e quando voltavam
outra vez com os seus navios para Moçambique
deixavam ficar as casas (de caniço) para o ano seguinte.»
No relatório e diário da lancha De Hoop, que por
instruções de De Capelle explorou o Incomáti em 1728,
há informações que permitem, cremos, localizar os
postos de resgate portugueses: são as referências a «paus
de bandeira» — que supomos assinalarem o lugar dos
postos. Se, realmente, assim é, os postos ficariam, mais
ou menos e subindo o rio: o primeiro, na Magaia, perto
da «colina do chefe Magaia», possi36
velmente onde hoje está Vila Luísa de Marracuene; o
segundo, entre a Macanda e o rio «Débora» (provavelmente o Xicluvane ou Xicluvanine que desemboca
no Incomáti uns três quilómetros a jusante do monte
Manhiça); o terceiro, junto ao monte Manhiça; o quarto
e o quinto entre este monte e a ilha Mariana.
O rio do Ouro parece ter sido, também, um lugar de
resgate, mas não sabemos se cabia ao navio de Lourenço
Marques se ao de Inhambane. Fr. João dos Santos, o
conhecido autor de «Etiópia Oriental», refere que o
capitão de Moçambique mandava todos os anos um
navio a Lourenço Marques, outro a Inhambane e Cabo
das Correntes. Convém observar, a propósito, que a
denominação Cabo das Correntes e, como mais tarde se
dizia, «estabelecimento do Cabo das Correntes», é de
referenciação incerta: umas vezes relaciona-se com
Inhambane, outras com Lourenço Marques. Diogo do
Couto, por exemplo, diz: «Cabo das Correntes, a que os
de Moçambique comummente chamam Inhambane».
Jerónimo Leitão, um dos capitães do resgate de
Lourenço Marques, deve ter visitado com insistência o
rio e a costa do Ouro. Ao longo do rio tinha, em 1589, a
doze léguas da costa, um régulo amigo. Rematando os
seus conselhos aos náufragos que procurassem subir a
costa, desde o Incomáti a Sofala, observava-lhes: «e em
todas as partes por donde passarem dirão o meu nome
que é Jerónimo Leitão, e em língua de cafre Inhale-fua».
Este cognome cafre reproduz, provavelmente, a
expressão chope que significa homem rico e poderoso —
e os Bá-Chope eram a gente daquele rio e costa.
Para sul da baía, parece ter havido, também, certo
movimento. Diogo do Couto indica dois lugares de
resgate. Um era no rio de Simão Dote, por 27° 1/3,
37
inominado nas cartas mas assim chamado, do nome de
um português que a ele fora ter num pangaio, pêlos que
navegavam de Moçambique para Lourenço Marques.
Em 1589, quando o batel em que iam os sobreviventes
da S. Tomé ali varou, os pretos fugiram, primeiro;
depois, voltaram e reconheceram os náufragos como
portugueses, «pela comunicação que com eles tinham
por causa do resgate do marfim que todos os anos ali iam
fazer». O outro lugar apontado por Couto seria, algures,
para além do rio de Santa Luzia, no reino do Vambe que
da primeira terra do Natal se estendia para sul. Lavanha,
por sua vez, apresenta a baía de Lourenço Marques como
«o primeiro porto daquela costa em que os portugueses
tratam e resgatam». No entanto, o facto de no contrato de
1614, entre a Coroa e o capitão de Sofala e Moçambique,
este ser autorizado a resgatar nos «portos do Cabo da
Boa Esperança», sugere que, realmente, alguns mercadores se tivessem aventurado a tratar em portos a sul
de Lourenço Marques.
O comércio na baía foi, talvez, nos primeiros anos,
livre para os nacionais. É o que parece poder deduzir--se
do facto de, em 1554, dois navios serem despachados
para o resgate no rio da Lagoa: um, de Moçambique,
pilotado por Bastião de Lemos, «mandado por D. Diogo
de Sousa, capitão de Sofala e Moçambique, a buscar
marfim para el-rei nosso senhor»; outro, o que Lourenço
Marques aprontava em Cochim e estava para largar nos
princípios de Fevereiro (1).
De positivo, porém, sabemos que um regimento de
El-Rei D. Sebastião tornou defeso «o trato e comércio
(1) Relação do naufrágio da 5. Bento.
38
de Sofala, Cuama, Inhambane até o Cabo das Correntes
inclusive». E a baía manteve-se fechada aos mercadores
até que em 14 de Novembro de 1590 um alvará do
capitão geral e governador da índia, D. Manuel de Sousa
Coutinho, permitiu aos moradores de Moçambique «em
suas embarcações ir e mandar fazer seus tratos e
resgates» na ilha de S. Lourenço, costa de Moçambique,
costa de Melinde, Cabo Delgado e «do das Correntes
até o de Boa Esperança». Deveriam trazer da índia todas
as fazendas de que necessitassem, embarcando-as na
nau da viagem (carreira entre Moçambique e a índia), a
cujo capitão pagariam os devidos fretes.
Ê difícil apurar se este regime se manteve. Como é
sabido, a condição do comércio na Capitania passou por
frequentes modificações: arrendamento ao capitão,
monopólio da Fazenda, contrato com particulares,
liberdade. As duas primeiras alternativas prevaleceram,
pelo menos até 1680. Dos documentos sobre o assunto
nem sempre se distingue se as providências tomadas
respeitam apenas a Sofala e aos Rios de Sena, onde
corria o negócio do ouro, ou também aos outros portos.
Em 1614, firmou-se contrato entre a Coroa e o capitão
de Sofala e Moçambique Rui de Melo Sampaio; uma
das cláusulas «permitia» ao capitão resgatar nos portos
do Cabo da Boa Esperança, e é possível que nestes se
compreendesse o de Lourenço Marques. Em 16221623, parece que os resgates dos portos do sul seriam
monopólio do capitão. De facto, Francisco Vaz de
Almada, um dos sobreviventes da nau S. João Baptista,
tendo chegado, por terra, a Inhambane, resolveu
prosseguir para Sofala, pois tão cedo não se esperava
navio em Inhambane. A razão era que tinha falecido em
Sena o governador Nuno da Cunha.
No ano de 1680, o Príncipe Regente, por alvará em
39
força de lei, de 24 de Marco, extinguiu a Junta do
Comércio de Moçambique e Rios de Cuama e declarou o
comércio livre a todos os seus vassalos, assim do Reino
como da índia e mais Domínios e Conquistas. Mas vinte
anos depois foi novamente estabelecida a Junta do
Comércio que perduraria até 1720.
Em todo o caso, a carreira comercial Moçambique-Baía da Lagoa parece ter-se mantido, ao longo deste
século e meio, 1545-1703, com regularidade.
Nos primeiros anos, supomos, o navio do resgate
vinha despachado da índia. O relator do naufrágio do
galeão S. João, 1552, refere que os náufragos julgaram
poder esperar, em Mpfumo, «ate vir navio da índia». Em
1554, quando a nau S. Bento largou de Cochim para
Lisboa, Lourenço Marques estava acabando de se aviar
para uma viagem à baía do seu nome.
Em breve, no entanto, o navio do resgate passou a ter
praça em Moçambique e nesse mesmo ano de 1554 o
navio que veio à baía fora despachado por D. Diogo de
Sousa, capitão de Sofala e Moçambique.
Não é possível garantir se a carreira era anual ou de
dois em dois anos. Pr. João dos Santos, por exemplo,
apresenta-a como anual. João Baptista Lavanha, porém,
com a sua autoridade de cosmógrafo-mor de Sua Majestade, afirma que o navio do resgate
vinha à baía de dois em dois anos. Um passo de
Francisco Vaz de Almada sugere, também, que fosse
esta a periodicidade da carreira. Mas a maioria de
indicações são pela viagem anual.
Esboçaremos, agora, com os poucos dados que possuímos, um quadro da navegação na baía.
Em 1552, os náufragos do galeão S. João, ao che-
garem ao rio do meio (estuário) souberam, por uns
indígenas vindos em almadias, que «ali viera um navio
de homens como eles e que já era ido». Já depois da
morte de D. Leonor, e de Manuel de Sousa se ter
internado no mato, chegou um navio em que vinha,
talvez como capitão, «um parente de Diogo de Mesquita».
Em 1554, os náufragos da S. Bento foram recolhidos pelo navio pilotado por Bastião de Lemos, chegado à baía em 3 de Novembro. Só a 20 de Março,
com os «primeiros Ponentes», o navio pôde largar de
regresso a Moçambique.
Em 1589, quando a gente da S. Tomé chegou à
baía, um indígena informou-a de que não havia ainda
dez dias largara do rio de Lourenco Marques para
Moçambique uma naveta de que era capitão Jerónimo
Leitão, que levava muito marfim.
Em 1593, os náufragos da Santo Alberto tiveram a
dita de encontrar na baía o navio Nossa Senhora da
Salvação, pilotado por Baptista Martins e de que era
capitão Manuel Malheiro.
Este mesmo capitão Manuel Malheiro fez, pelo
menos, mais uma viagem e foi morto por gente do
Inhaca, talvez em 1596 ou 1597.
Em 1598, voltou à baía o mesmo Jerónimo Leitão
que já viera em 89. E por ele se sabe que em Junho de
1597 se perdera na Inhaca «um navio pequeno de
500 candis, que com o vento ponente deu à costa na
ponta da ilha».
Em 1622, o relator da perda da S. João Baptista
deixou-nos a informação de que havia dois anos não ia
navio à Inhaca, «pelo gasalhado que os tempos atrás
lhes fizera» o régulo, o qual matara «um clérigo, e
três portugueses, pêlos roubar».
Em 1647, veio à baía a galeota de que era capitão
40
41
Diogo Velho da Fonseca, natural de Vila Franca de
Xira, casado e morador em Moçambique, e mestre
Manuel Rodrigues Sardinha.
Só em 1685-86 temos mais notícias de navio português na baía: a viagem de Domingos Lourenço que
achou o resgate quase completamente despojado por
cinco navios ingleses que o haviam precedido.
Conhecem-se, ainda, em 1688 a viagem de João
Jacques e, finalmente, entre 1701-1703, aquela que
marca o termo da exploração comercial da baía pêlos
Portugueses, fechando o primeiro ciclo da história de
Lourenço Marques.
A viagem normal entre a baía e Moçambique demorava uns quinze dias. Ë, pelo menos, o que pode deduzirse das poucas informações de que dispomos. Assim, na
viagem de 1554-55, o navio largou da Inhaca em 20 de
Março e chegou a Moçambique em 2 de Abril. Em
1648, a galeota de Diogo Velho da Fonseca saiu em 24
de Junho e chegou em 9 de Julho.
A Nossa Senhora da Salvação, em 1593, levou vinte e
seis dias — mas sofreu mau mar e esteve em riscos de
perder-se em alturas do Rio do Ouro. Em 1597,
Jerónimo Leitão saiu de Moçambique em Novembro e
só chegou à Inhaca em Janeiro de 1598, «por vir em
pangaio e se deter em Sofala mais de um mês».
Como já dissemos, o plano da carreira parece ter sido
este: chegar à baía por Outubro-Novembro, aguardar nela
uns cinco meses e sair por Março ou Abril. Ao menos
nos primeiros tempos da navegação, este esquema
aparece-nos com regularidade: assim o vemos com as
viagens de 1552, 1554 e 1589.
No entanto, já em 1554 temos uma indicação contrária. Os náufragos, numa paragem a sul do rio da
Pescaria, resolveram mandar para diante «três ou quatro
homens despejados», por terem receio de não
42
chegar a tempo de encontrarem o navio. Pelas suas
contas, não poderiam atingir a baía senão em Julho. E a
partida do navio, «segundo a navegação ordinária, havia
de ser com a lua de Junho». Em 1593, também: o piloto
Rodrigo Migueis exortou os seus companheiros de
naufrágio a esforçarem-se por chegar ao Rio da Lagoa
em fim de Junho, «que era o tempo em que dele partia
o navio do resgate para Moçambique». Foi, realmente,
o que sucedeu: o navio só largou em 12 de Julho. Na
viagem de 1647-48, a partida efectuou-se em 24 de
Junho.
O caso de 1554 talvez possa explicar-se pelo facto-de
que o navio em questão era o de Lourenço Marques, em
viagem directa entre a índia e a baía, por consequência
sujeito a diferente regime de monções. 0& outros
denunciam, provavelmente, uma ampliação do« esquema
primitivo, explicável por que, tendo-se o comércio
expandido ao longo do Incomáti, o resgate-exigia maior
demora na baía.
O marfim era o objecto principal do comércio e,. se
acaso não foi ele que provocou a expedição inicial,, por
ele se tornou famosa a baía de Lourenço Marques. Mas
ao resgate concorriam também, como escreveu Fr.
João dos Santos, «âmbar, escravos, mel e manteiga,
cornos e unhas de Bada (1), dentes e unhas de cavalo
marinho». Havia cera, também, embora não em grande
quantidade, conforme o intérprete informou: De Capelle.
Do cobre, a que D. João de Castro ligara tanta,
importância, não há notícia. Quanto a ouro, o intérprete de De Capelle declarou-lhe ignorar se os Por(*)
Abada, rinoceronte.
43
tugueses tinham, alguma vez, resgatado aqui ouro;
ele, em vinte anos de permanência na baía, «nunca tinha
visto ouro nesta nação». Não é muito crível que, se o
resgate na baía desse ouro, este nunca apareça
mencionado ou, então, seria em tão pouca quantidade,
comparado com o que vinha de Sofala e Rios de Sena,
que nem valeria a pena referi-lo. O facto é, no entanto,
que à feitoria holandesa aqui estabelecida mais tarde
vinham indígenas do interior trazer ouro em pó,
cobre e estanho, os quais, diz De Capelle, eram de K3or
muito bonita, se bem que o estanho lhe parecia um
pouco mole e leve.
Em troca, os compradores ofereciam panos e contas.
Estas eram, como diz Perestrelo, tidas pêlos indígenas
«por tão precioso tesouro, como nós a pedraria ou seu
Semelhante”. Foram, possivelmente, os náufragos que
introduziram no comércio outras mercadorias, tais
como pregos e bocados de cobre e ferro. Mas aquelas
veniagas — roupas, velório e missanga — eram as
preferidas pelos indígenas.
Não possuímos qualquer indicação sobre o volume e o
valor do comércio na baía. Os mais remotos números
que se conhecem respeitam à feitoria holandesa e adiante
os referiremos. O resgate devia ser frutuoso, dadas a sua
sustentação regular pelos Portugueses durante século e
meio e a insistência com (que os estrangeiros
procuravam a baía. Os Holandeses, todavia, nunca se
satisfizeram com ele e a situação comercial da sua
feitoria esteve sempre longe da prosperidade.
Também não possuímos mais que escassas indicações
sobre os preços. Na carta de D. João de Castro a El-Rei,
avalia-se por três vinténs de contas um bar (mais ou
menos, duzentos e trinta quilos) de marfim. As relações
dos naufrágios apresentam-nos algumas
transacções: uma vaca por seis pregos; quatro vacas,
por cobre que valeria três vinténs; cada um dos sobreviventes do galeão S. João, em 1552, custou ao capitão,
do navio do resgate dois vinténs de contas... A instituição do presente aos régulos, o saguate, cedo deve ter
começado. Em 1589, o régulo da Inhaca usava «um
ferragoulo de pano verdozo que o alferes-mor D. Jorge
de Menezes tinha mandado de Moçambique». E quando,
em 1593, Nuno Velho Pereira chegou à baía com o seu
cortejo de náufragos, presenteou, às mãos rotas, o
mesmo régulo: «um sombreiro de feltro, negro, um pano
da China lavrado de seda e ouro, duas vacas, uma delas
prenhe, uma medalha com cadeia de prata e uma
garrafa pequena de prata». Ao filho-do régulo deu um
copo de prata, «que o pai logo lhe tirou».
Mas, com esta prodigalidade, Nuno Velho Pereira
queria comprar alguma coisa mais que marfim: a vida.
As relações com os indígenas foram, no início,
excelentes com o Inhaca, mas não assim com a gentedas terras que bordam a baía desde o Tembe até as
proximidades do Incomáti.
Esta verificação é extremamente interessante, pois.
reflecte a diferença de duas raças: os tongas autóctones (representados pela gente do Inhaca, a uma
banda, e, à outra, a do Magaia) e os invasores vindos-de
Psatine (Suazilândia), vaga da grande migração que
descera do Norte, da região dos Lagos. Esta gente trazia
uma cultura superior à das pacíficas populações
aborígenes e a aventura da migração aguçara nela o
espírito da agressão, do assalto e da pilhagem — o espírito da guerra. De Capelle descreve-a assim, em
1723, num retrato feliz:
45
44
«Estes gentios são vaidosos como raça; gostam de ser
considerados como gente audaz; dizem que os
Holandeses não têm coragem, eles sim; várias vezes
assaltam os nossos que se encontram fora no mato a
comprar alguma coisa; também mesmo na fortaleza
ameaçam espancar os nossos, como eu mesmo já vi se
muitas vezes os tenho mandado sair imediatamente da
fortaleza».
Como já dissemos, deve ter sido esta belicosidade da
gente do Tembe e de Mpfumo que levou os nossos, logo
nos primeiros anos do comércio na baía, a abandonar o
primitivo resgate no «rio do meio». Temos, na relação
do naufrágio da S. Bento, 1554, um testemunho da
insegurança deste resgate:
Recolhidos os náufragos no navio, este veio fundear
no “rio do meio». Bastião de Lemos, o piloto, saía
algumas vezes para terra, ao resgate — mas «andavam
os cafres da borda daquele rio do meio tão amotinados
contra ele, que quase todos os dias o faziam
embarcar às pancadas, com assas pressa». Ao princípio,
os nossos contemporizaram. Mas, com o abuso,
resolveram castigá-los. Organizaram o assalto a uma
povoação perto da borda de água, onde fora espancado
>e roubado um dos nossos homens. Os indígenas começaram por resistir bem mas, depois, viraram costas.
Deixaram no campo cinco mortos, entre os quais Maçamana, seu capitão. Os nossos cativaram cinco ou
seis mulheres que, «por reformação de pazes», restituíram ao Tembe, rei daquela terra, o qual, depois de
saber o que se passara, achou bem feito o castigo e ficou
«nosso amigo».
Mais para norte, para além donde está hoje a cidade
de Lourenço Marques, pelas praias até o Incomáti,
Manuel de Sousa Sepúlveda, sua mulher Leonor de Sá e
os companheiros tinham, dois anos antes, sofrido
46
roubos e maus tratos. O nome de Manuel de Sousa seria,
por muito anos, invocado como aviso àqueles que, não
achando na baía o navio do resgate e não sofrendo a
espera, se inclinassem a tentar o caminho para
Inhambane e Sofala, rodeando a baía. Foi para lhes
evitar a travessia dessas terras de gente violenta e cruel
que os navios do resgate passaram a deixar embarcações
na ilha dos Portugueses. Jerónimo Leitão, nos conselhos
que, por 1598, dá aos náufragos, recomenda que, não
achando na ilha as embarcações, «se deixem estar e não
queiram dar a volta à baía como fez Manuel de Sousa de
Sepúlveda, porque entre rio e rio os mataram todos por
ser muito má gente e nossa inimiga».
Nas terras do Inhaca, que se estendiam pelo continente para sul, entre o Tembe e o mar, os Portugueses
encontravam guarida simpática. Não isenta, sem dúvida,
de cobiça, de extorsão e vexame — ou, como diz
Perestrelo, “não tudo fundado em virtude mas parte em
interesse»; todavia, generosa bastante para os abrigar e
lhes matar a fome. Por vezes, nas narrativas dos
náufragos, o Inhaca é-nos apresentado em manifestações
de cordialidade e bonomia. Mais tarde, porém, estas
relações alteraram-se: a onda invasora transpusera o
Tembe e rolara pelas terras hoje do Maputo, acabando
por avassalar os tongas do Inhaca. A actividade dos
Ingleses concorreria, também, para indispor os
indígenas contra os nossos — quer porque os Ingleses
lho insinuariam quer porque pagavam melhor o negócio.
Qualquer coisa sucedeu, entre 1594 e 1597, de que
resultou a morte de Manuel Malheiro (capitão do Nossa
Senhora da Salvação, que em 1593 estivera na baía) e
exigiu a intervenção, como negociador de pazes, de
Jerónimo Leitão. Por 1620-1622, inter47
rompeu-se a navegação para a baía ou, pelo menos, o
resgate na Inhaca, porque o régulo mandara matar “Um
clérigo e três portugueses», para os roubar.
Onde as relações com os indígenas parecem ter-se
mantido sempre boas foi ao longo do Incomáti. No
Manhiça, como então se dizia (provavelmente tratava-se, antes, do Magaia) também os náufragos acharam
sempre boa guarida e o bom conselho de que não se
metessem, por terra, pela Costa da Calanga — Limpopo, Zavala — habitada também por gente de má
índole, os antepassados dos actuais Vá-Lengue e Bá-Chope. A penetração no interior, com as cinco estações
à margem do rio até perto da ilha Mariana, só era
possível com a simpatia das populações indígenas.
O aparecimento dos Brancos e a instituição do
comércio regular obviamente teriam profunda repercussão. À baía de Lourenço Marques vieram, de
remotos lugares, homens curiosos e audazes. Estabeleceram-se, por terra, extensas correntes de tráfico. Nuno
Velho Pereira encontrou, pelas paragens do rio do
Infante, no interior, indígenas que usavam contas, as
quais lhes vinham das terras do Inhaca. Entre a Manhiça,
Inhambane e Sofala parece ter existido movimentado
tráfico, como De Capelle refere. Da Manhiça a
Inhambane contavam os indígenas sete jornadas. De
Inhambane a Sofala, cinco. O filho do régulo da
Manhiça explicou ao Holandês que a sua gente ia a
Inhambane, na estação seca, e comprava enxadas,
machadinhas, azagaias e missanga de Moçambique,
artigos que depois negociava com a gente das terras em
redor.
Vinha, também, gente de «Paraotte» e «Maschicosje» (Machicoche) à feitoria holandesa — e é de crer
que já viesse, anteriormente, aos resgates dos
Portugueses. Um dos homens que ofereceram ouro
aos Holandeses trazia uma balança, com seixos de
vários tamanhos a servirem de pesos. McCall Theal
supõe que ele teria obtido a balança e aprendido a usá-la
em Manica ou algures perto do Zambeze, «pois não o
teria podido conseguir em qualquer lugar próximo da
baía de Lourenço Marques». Esta argumentação
surpreende, pois esses homens vinham de regiões que
ficavam a oeste do alto-Incomáti, no Transval, e podiam
muito bem ter entrado em contacto com as estações
portuguesas da Manhiça, nas quais, certamente, se
usavam também balanças.
Estas correntes de comércio pelo interior e, com elas,
a comunicação entre populações que se ignoravam
representam os primeiros, titubeantes passos da
civilização nestes sertões de África — e, também aqui,
era pela mão dos Portugueses que ela os ensaiava... A
Cruz e a Espada foram impostas, entrelaçadas, no nobre
escudo das Descobertas e Conquistas de Portugal.
Esqueceu-se a Balança — ou talvez se julgue que ela é
desdouro. Todavia, a História ilustra-a de pergaminhos e
títulos, e muitas vezes foi ela que marchou adiante,
desbravando para a Cruz e para a Espada a glória com
que as lisonjeiam...
Tal foi a organização da exploração comercial da baía
de Lourenço Marques, de 1545 a 1703, ano a partir do
qual e até 1781 se interrompeu a sua frequência regular
pêlos Portugueses. Tinha como pontos de apoio a ilha
dos Portugueses e a ilha da Xefina. Desta, internava-se
pelo sertão, à margem do Incomáti, em postos de resgate
escalonados desde a boca do rio até às proximidades da
ilha Mariana. Nestes postos, havia mastros nos quais a
gente do resgate içava a bandeira, certamente como sinal
de que tinha
48
49
chegado — uma chamada do marfim. As feitorias-bases e estes postos eram ocupados apenas temporariamente, durante o período da monção.
À margem desta organização da exploração comercial, um facto do que hoje chamaríamos «assistência»:
as embarcações deixadas na ilha dos Portugueses, para
que os náufragos ali chegados fora da temporada do
resgate pudessem seguir por mar para Inhambane e
Sofala, a salvo das depredações da gente inóspita e
bravia das terras do Tembe e de Mpfumo, da costa do
Ouro ou da Calanga.
Por outro lado, os capitães dos navios do resgate não
eram simples negociantes. Ao serviço do donatário e
contratador da Capitania, ou do monopólio mercantil da
Real Fazenda, eles eram, em verdade, agentes e fiscais
desse senhorio, uma autoridade política e administrativa
— como também o eram as donas e, depois, os
arrendatários dos prazos.
Os indígenas assim o sentiam, embora, sem dúvida, o
não compreendessem — como igualmente não compreendiam o que era doar terras e fazer dois riscos em
cruz num papel em que os Brancos tinham escrito coisas
intraduzíveis. Mas sentiam-no assim — e por isso os
vemos, em 1597, quando da tentativa inglesa na Inhaca,
estranharem que Jerónimo Leitão não viesse, e só
tratarem com os Ingleses depois destes lhes darem a
falsa garantia de que Leitão estava a bordo, pois ele era
o senhor da Inhaca: «Jerónimo Leitão cuja aquela ilha
era». Vemo-los, também, em 1726, quando os
Holandeses se achavam já instalados na baía e os
Portugueses havia vinte anos que lá não iam — vemolos obedecer à ordem do governador da Capitania para
irem a Moçambique.
Numa era em que nenhuma outra nação da Europa
tinha, ainda, posto pé em África, a ocupação territo50
rial não importava e nem era necessária como expressão
de senhorio. Dos seus paços e solares em Moçambique,
Sofala, Sena e Tete os Portugueses saíam,
periodicamente, a visitar os mais remotos lugares do seu
domínio — um domínio em que não tinham
confrontações nem vizinhos. A simples frequência
regular desses l u ga r es , s i s t e m a t i z a d a e, mesmo,
organizada localmente como vimos, traduzia uma
presença de facto. A continuidade da exploração
representava a afirmação e o exercício dum senhorio —
até mesmo a rotina de uma administração. A instituição
do comércio regular era, assim, uma forma real de
instituição política — tão significativa como qualquer
outra, até o dia em que para se reconhecer teria de se
eriçar de baionetas e canhões...
II
Os Náufragos
Mas não foi só pelo seu marfim que a baía de
Lourenço Marques se tornou famosa. Ilustraram-na,
também, a esperança e o desespero, a salvação e a
perdição daqueles que naufragados na costa do Natal e
do Cabo a demandavam pelo longo e torvo caminho da
Cafraria. Longo e torvo mas, assim mesmo, caminho de
salvação.
Esta foi, também, uma função histórica da baía da
Lagoa. O descobrimento dos rios de Lourenço Marques
prolongou-se no descobrimento desse caminho. Antes, os
que se perdessem naquelas fatídicas
51
alturas de 31-33 graus não podiam senão marchar para
sul, em busca da Aguada do Saldanha, e esperar que aí
fosse alguma das naus do Reino; ou, então, no próprio
lugar em que o mar os deitara, construírem embarcação
com que tentassem alcançar Sofala, se não, até, rodear o
Cabo. Mas a prática da marinharia levara a navegação,
logo nos primeiros anos da carreira da índia, a deixar de
frequentar as escalas do sul e agora só por acaso surgiria
nelas alguma nau. “Primeiro se gastariam eles todos, os
náufragos, que ali fosse ter nau que os tomasse» ('). E
quanto à segunda alternativa, raro era que da perdição
das naus pudessem eles recolher materiais bastantes para
a fábrica duma embarcação e a viagem em batéis por
aquela costa provou ser mais incerta que a dos caminhos
da terra ( 2 ).
Agora, a baía da Lagoa oferecia-lhes a promessa de
acharem nela o navio do resgate que os levaria a
Moçambique — ou, ao menos, de nela terem parco mas
seguro agasalho nas terras do Inhaca e as embarcações
que os do resgate lhes deixavam para tentarem alcançar
Inhambane ou Sofala.
A descoberta deste novo caminho de salvamento não
foi, porém, sem dor nem terríveis aventuras. Manuel de
Sousa Sepúlveda pagou por ela a vida de sua mulher, a
dos filhos, por f i m a sua própria. As primeiras
expedições (1552, 54, 89) tomaram o
(1) Perestrelo, relação do naufrágio da S. Bento.
( 2 ) Em 1633, a nau Nossa Senhora de Belém naufragou em 32 graus. Os
náufragos conseguiram improvisar na praia um estaleiro e construir dois pequenos
navios, nos quais deram a volta do Cabo e atingiram Angola.
Nos naufrágios da S. Tomé e das naus Sacramento e Nossa Senhora da Atalaia,
ternos exemplos de quanto era improvável vencer os mares daquela costa (do Natal
e canal de Moçambique) em pequenas embarcações.
caminho da beira-mar, procurando assim salvar-se da
bárbara cafraria. Mas por esse quase deserto caminho
esperavam-nas a fome e a sede e também as largas
bocas de grandes rios em cuja travessia consumiam
vidas e trabalhos sem fim. Esta experiência levou o
bem-avisado Nuno Velho Pereira, em 1593, a conduzir
a sua gente «por terra dentro» — e esta foi a mais feliz
das seis expedições cuja história se conhece (').
À trágica experiência de Manuel de Sousa deveram,
ainda, os que vieram depois dele, uma lição preciosa: a
dos perigos de rodearem a baía pelas terras da gente
cruel do Tembe e de Mpfumo. Por isso os da nau S.
Bento preferiram ficar na ilha do Inhaca, esperando
durante cinco meses a chegada do navio do resgate.
Daí nasceu, também, a ideia de se deixar na ilha dos
Portugueses embarcações de socorro. Os primeiros
náufragos que as encontraram foram os da S. Tomé, em
1589. Foi, sem dúvida, uma grande providência para a
travessia da baía mas excessivamente ambiciosa
quando se propunha levar a salvo os náufragos a
Inhambane ou Sofala. Nesta altura da costa, a navegação em pequenas embarcações era tão perigosa como
vimos sê-lo na costa do Natal. A gente da S. Tomé
tentou a experiência e não passou além do Limpopo.
João Baptista Lavanha escrevia, com razão, ao
apresentar a sua narrativa do naufrágio da Santo Alberto, que as notícias do caminho que os náufragos
(') Outras houve, de que não nos ficou a história. Duma, pelo menos, temos
notícia: na tripulação da Nossa Senhora da Atalaia, 1647, contavam--se três
marinheiros que quatro anos antes tinham naufragado naquelas paragens com uma
naveta capitaneada por D. Luís de Castelbranco e haviam subido a Cafraria até ao
Cabo das Correntes.
52
53
faziam eram “de grande importância para nossas
navegações, e para aviso delas mui necessárias». Por
outro lado, as expedições dos náufragos costa acima
legaram à história, à geografia e à etnografia valioso
cabedal de informações.
Mas se a descoberta e a prática deste caminho foram,
como já julgámos, uma função histórica da baía da
Lagoa, foram, também, o seu romance — o romance da
grande aventura dessa incerta, temerosa jornada de cem
dias pelos trilhos da Cafraria, à fome e à sede, à torreira
do sol e à cacimba gelada, lacerando os pés nas rochas
ou afundando-os na fofa areia, sempre sob a angústia da
ameaça iminente — a emboscada dos cafres e das
feras... E este romance é o pano de fundo da história da
baía.
Ninguém, por certo, o contaria melhor do que eles
próprios, seus protagonistas, o contaram — e na História
Trágico-Maritima estão algumas das mais belas, mais
coloridas, palpitantes e dramáticas páginas que em
português se têm escrito. Por isso nós não faremos mais
que visionar, no cenário azul e luminoso da baía, a
silhueta dessas lentas, exaustas procissões — o bando
miserável de capitães, fidalgos e oficiais de El-Rei,
mercadores, mulheres e crianças, frades e soldados,
gente do mar e escravaria arrastando-se pelo caminho...
À frente, um crucifixo erguido. Aqui, além, um vulto de
dona sobre um andor levado aos ombros de escravos ou
grumetes... E, atrás de todos, os fantasmas dos que iam
ficando, uns caídos de fadiga e inanição, outros varados
pelas azagaias dos cafres, ou chagados dos pés, ou no
imenso abandono a uma mortal renúncia; outros,
levados, esvaídos de forças, a boiar na corrente dos rios
que lhes atravessavam o caminho; outros, desertados — e
não só escravos, mas portugueses também, preferindo aos
54
trabalhos da jornada o ficarem ali, ao calhar, vivendo
entre os cafres... (1) .
E ao perpassar desta assombrada teoria recolheremos
um grito ou um murmúrio, recortaremos uma figura ou
uma cena — iluminuras ardentes para a história da baía
da Lagoa...
...Eis Leonor de Sá, “fidalga, delicada e moça». Havia
muito que tinham fugido os escravos que a traziam num
andor. E ela, «fraca e pouco costumada a trabalhos»,
viera a pé, «como qualquer robusto homem do campo,
por aqueles tão compridos e ásperos caminhos e sempre
com tantas tomes e sedes». Tão gentil e animosa que
ainda em seu grande desconsolo consolava os outros e
ajudava a trazer seus filhos.
Quando, na aldeia real de Mpfumo, seu marido
Manuel de Sousa Sepúlveda e os outros homens consentiram em se repartir e entregar as armas, ela soube
que tudo estava perdido — tudo, menos o sofrimento
derradeiro que a misericórdia de Deus guardava, ainda,
para ela!
— Vós entregais as armas, agora me dou perdida com
toda esta gente.
Roubados e expulsos, retomam a caminhada. Mas,
algum tempo adiante, algures pelas terras da Maota e
Magaia até o Incomáti, os cafres assaltam-nos e tiramlhes o que ainda possuíam: as roupas com que se
cobriam.
( ' ) No naufrágio do Sepúlveda, eram cerca de 500 pessoas, das quais 180
portugueses, quando partiram daquela praia de 33 graus; chegaram à baía 120. Da
5. Bento, salvaram-se 322 pessoas: 98 portugueses e 224 escravos; chegaram 56
portugueses e 6 escravos. Da Santo Alberto, de 125 portugueses, chegaram 117;
de :6o escravos, 65. Das 279 pessoas da 5. João Baptista (que tiveram de
atravessar a Costa da Calanga até Inhambane, umas, Sofala, outras) acabaram por
se reunir em Moçambique 29.
55
«Aqui dizem que D. Leonor se não deixava despir e
que às punhadas e bofetadas se defendia, porque era tal
que queria antes que a matassem os cafres que ver-se
nua diante deles». Mas Manuel de Sousa, que mais que
tudo a queria viva, rogou-lhe que deixasse e, «pois que
Deus daquilo era servido, o fosse ela também».
E Leonor ficou nua — o seu branco corpo de fidalga,
delicada e moça alvejando contra o sertão bárbaro da
negra África...
Os homens que com ela vinham afastaram-se, de
vergonha. E ela desatou os compridos cabelos, enrolouse toda neles e a si própria se enterrou, até a cintura,
numa cova na areia. Então, chamou André Vaz, o
piloto, e disse-lhe:
— Bem vedes como estamos e que já não podemos
passar daqui e que havemos de acabar por nossos
pecados; ide-vos, muito embora, fazei por vos salvar e
encomendai-nos a Deus; e se fordes à índia e a Portugal em algum tempo, dizei como nos deixastes, a
Manuel de Sousa e a mim com meus filhos.
Eles foram-se. Manuel de Sousa, já meio-louco, os
filhos, Duarte Fernandes contra-mestre da nau e cinco
escravas ficaram com ela. Leonor não mais saiu da sua
cova. Um dos meninos morreu e Manuel de Sousa por
suas mãos o enterrou. E ao outro dia, quando voltava do
mato com alguma fruta, Manuel de Sousa achou Leonor
falecida e o menino também. «Dizem que ele não fez
mais, quando a viu falecida, que apartar as escravas dali
e assentar-se perto dela, com o rosto posto sobre uma
mão, por espaço de meia hora, sem chorar nem dizer
coisa alguma; estando assim com os olhos postos nela e
no menino fez pouca conta.»
Nunca mais despertou desta contemplação. Ergueu56
-se, sonâmbulo, a alma já morta dentro do corpo. As
escravas vieram ajudá-lo e ele, sem uma palavra, abriu as
duas covas, sepultou nelas os dois corpos — e ainda sem
uma palavra, sem um aceno, sem um olhar, virou
costas e sumiu-se pelo mato, para todo o sempre...
...Pantaleão de Sá, fidalgo, português ilustre. Da
mesma perdição do galeão grande S. João, errou longo
tempo pêlos matos de Mpfumo. Um dia, acossado pela
fome,.chegou à aldeia real e pediu que pedissem ao rei
algum subsídio para ele. Não o atenderam: sua
majestade estava morrendo, aos poucos, duma chaga
numa perna, «tão pertinaz e corrupta que todos os
instantes lhe esperavam a morte». Ngangas e feiticeiros
tinham falhado. Então, Pantaleão de Sá afirma que é
médico, vê o doente — e joga a sorte.
— Tenha muito confiança e facilmente recobrará
saúde.
«E saindo para fora se pôs a considerar a empresa em
que se tinha metido, donde não poderia escapar com
vida, pois não sabia coisa alguma que pudesse aplicarlhe; como quem tinha aprendido mais a tirar vidas que a
curar achaques para as conservar.»
Urinou no chão. Com a terra amassada de urina
pensou a chaga. E ficou-se, à espera mais da própria
morte que da vida do doente. Ao dia seguinte, alarido
no paço... A chaga «gastara todo o podre e aparecia só
a carne, que era sã e boa». Proficiente, o fingido médico
repetiu o curativo e, em poucos dias, o doente sarou. «O
que visto, além de outras honras, puseram a Pantaleão
de Sá em um altar, venerando-o como a divindade».
Pediram-lhe que ficasse ali com eles e, como nos contos
de fadas, el-rei ofereceu-lhe, ma57
gnânimo, metade do seu reino. Mas o ilustre Sá recusou
— e, então, o rei presenteou-o “ com grande quantia de
ouro e pedraria» (sem dúvida roubados a Manuel de
Sousa) e mandou escoltá-lo até Moçambique...
...Outro da perdição de Manuel de Sousa: Rodrigo
Tristão, o branco cafre. Quando, dois anos depois, a
gente da S. Bento descançava no rio da Pescaria, viu sair
do mato «um ajuntamento de cafres que traziam entre si
a um homem nu, com um molho de azagaias às costas».
Não se diferençava dos cafres, nem mesmo na cor. Era
Rodrigo Tristão. Juntou-se aos da S. Bento e seguiu
jornada. Mas, dias mais tarde, ao ser destacado à
procura de mantimento, não mais voltou nem mandou
recado — branco tornado cafre, absorvido pelo feitiço
da vida primitiva...
...E Beatriz de Lima, mulher de D. Paulo de Lima
que morrera nas paragens do rio do Ouro, levando pela
Cafraria, num saco, as ossadas de seu marido...
...D. Ursula Maria, «moça, formosa, mais alva e
loira que uma framenga», deixada ao rei negro do rio
da Manhiça que a levou consigo num andor...
...Francisco Vaz de Almada, cravado de cinco azagaias numa peleja com os cafres... Não conseguia
arrancar os ferros — e meteu ao mato, à procura dos
próprios com quem pelejara, para que lhos tirassem, o
que eles fizeram e o curaram com mafurra...
...A bordo da Nossa Senhora da Atalaia, na hora da
perdição... Alguém vai pedir a frei António de
S. Guilherme, agostinho, que ali à beira da morte o oiça
de confissão... Mas o frade repele-o, que não era aquela
hora para confessar, mas sim para trabalhar... Cai por
uma escada, abre-se-lhe na cabeça uma grande brecha —
mas fr. António ata-lhe um lenço e continua, rudemente,
a trabalhar nas bombas...
...Bernardim de Carvalho, «fidalgo de muita virtude»,
um dos raros exemplos, nestes cortejos de desesperados,
de piedade, abnegação e ternura... Entre as mulheres,
vestidas de jubões brancos, calções compridos até ao
chão e barretes vermelhos, ia D. Joana de Mendonça
amortalhada no hábito de S. Francisco... No batel em que
se salvara da nau, implorava que lhe fossem buscar a
filha. A ama, na nau, levantava nos braços a menina,
mostrando-lha — mas não lha dava, não a dava sem que
a levassem também a ela... E D. Joana cortara os
formosos cabelos e fizera o voto de professar. Naquela
companhia, só ela não tinha pai ou marido que a
ajudasse. Sozinha, veio andando, ficando para trás, até
não poder mais. Então se chegou a ela Bernardim de
Carvalho e lhe deu a mão, sem mais a desamparar. Na
ilha dos Portugueses, ele ia ao mato buscar lenha para
ela e a trazia sobre as suas costas; ia à fonte acarretar
água; «a galinha, quando se resgatava, ele a matava,
depenava e guisava, comendo dela Gregório Botelho, sua
filha D. Mariana e D. Joana de Mendonça, ficando a ele
sempre o menor quinhão, e ainda deste guardava uma
peça para D. Joana, para a noite ou para o outro dia».
Assim ele a serviu, «com tanto resguardo, honra e
virtude que fez pasmar a todos». E assim, também, de
puro trabalho se finou naquela ilha...
58
59
...A Fome... Tiravam dos pés as alpergatas e comiamnas... Um, mais requintado, assou o sapato... Outros, às
ocultas, comeram uns pretos que, por motim, haviam
sido enforcados — e a carne, ao assar, «cheirava
excelentissimamente a carne de porco»... Outros, ao
darem com grandes cardumes de caranguejos brancos no
rolo do mar, “e como o tempo não era para grandes
temperos» tão sôfregos os levavam à boca que eles se
lhes ferravam nela; «e, ficando-lhes ali a perna ferrada, o
resto mal mastigado ia bolindo pelo papo abaixo»...
Houve os que, «por perderem o sentido do comer»,
mascavam âmbar... E uns, um dia, devoraram a carta de
marear...
...Agua... Dar de beber a quem tem sede... Mas nem
sempre os que tinham água a davam aos que com eles
iam morrendo de sede... Vendiam-na. Um púcaro de
quartilho por dez cruzados — e num caldeirão de quatro
canadas faziam cem cruzados de negócio...
...E aquele queixume de certa moçazinha branca,
filha de um português velho que morrera na nau...
Ninguém queria trazê-la num andor e ela caminhou
ainda alguns dias... Fraca, esgotada, não pôde mais.
Pediu confissão, que frei Bernardo lhe ouviu. E deitouse na areia, cobrindo a cabeça com a saia de tafetá preto
que trazia vestida... A gente ia passando, grupo agora,
outro mais logo. E a cada um que passava ela descobria
a cabeça e dizia:
— Ah! Portugueses cruéis que vos não compadeceis
de uma moça donzela portuguesa como vós e a deixais
para pasto de animais! Nosso Senhor vos leve a vossas
casas!
60
Os últimos passaram e ela lá ficou, na praia deserta,
com a sua saíta de tafetá preto sobre a cabeça...
...E outros, tantos outros, heróicos ou miseráveis,
generosos ou cúpidos, piedosos ou cruéis, humanos ou
bestas-feras — simples Homens, afinal, nas suas
eternas momices de brinquedos de Deus e do Diabo...
Assim eles vieram, aqui morreram ou daqui passaram... Deles ficou, ao longo do caminho da história,
um rasto de lágrimas e sangue, de dor e desespero, de
heroísmo e mesquinhez — um murmúrio de prece e
imprecação... Basto e murmúrio que são hoje, para nós,
um surto de poesia, da imensa poesia do sofrimento e
da aventura humana. E contemplando, agora, da Cidade
essa baía que foi para eles terra de promissão e de
morte, só quem não tem olhos os não verá, sombras
azuis e luminosas, vagueando no cenário azul e
luminoso... E pobre daquele de nós, então, que ao
descobri-los assim não sinta nos seus lábios, trémulo e
dolorido, um sorriso de infinita ternura e piedade e
gratidão...
III
Esquecimento
Entretanto, as actividades de estrangeiros na baía
haviam-se tornado tão insistentes que afectaram seriamente o comércio português. Na viagem de 1685-86, o
capitão de Moçambique e Rios, D. Miguel de Almeida,
comunicou ao vice-rei que o navio do Cabo
61
das Correntes levara esse ano muito pouco resgate. O
capitão da viagem, Domingos Lourenço, explicou que
haviam estado na baía cinco navios ingleses «resgatando
marfim e âmbar com fazendas melhores que as nossas».
O resgate fora tal que as terras circunvizinhas tinham
ficado «sem marfim de consideração». O capitãogeneral reuniu, em 6 de Agosto de 1686, na fortaleza de
S. Sebastião, conselho em que estiveram presentes o
tenente-general e superintendente Francisco de Aveles
Ramires, o capitão e castelão Pascoal de Abreu
Sarmento, o feitor e alcaide-mor João Machado Sacoto,
o reverendo padre reitor do colégio Manuel Freire, o
prior e vigário da vara Domingos Dias Ribeiro e o
vigário de S. Domingos fr. João da Madalena, com o
escrivão da superintendência Manuel da Fonseca e
Paiva. Assentou-se não se fazer, nesse ano de 1686, a
viagem e que convinha comunicar ao vice-rei a «vinda
dos ditos ingleses ao porto, pois se supõem por infalível
o continuarem eles». Pediam-se providências ao vice-rei,
para se continuar o resgate. Era necessária embarcação
mais defensível, pois os navios de que em Moçambique
se podia dispor eram «desarmados e sem capacidade de
artilharia bastante para a sua defesa» ( 1 ).
D. Rodrigo da Costa, vice-rei da índia, remeteu o
assunto a Sua Majestade. Ao mesmo tempo, porém,
expediu ao capitão de Moçambique ordem de que as
viagens continuassem, para que de todo se não perdessem. Parecia-lhe mais útil alguma perda que a real
fazenda pudesse sofrer, enquanto não fossem dadas
providências, do que «deixá-los [os Ingleses]
( l ) A carta de D. Rodrigo da Costa a El-Rei, bem como a do capitão
-de Moçambique a D. Rodrigo e o «assento que se tomou na junta de Moçambique», acham-se na Segunda Memória apresentada pelo Governo
Português à arbitragem de Mac-Mahon, documento n.° 102 e anexos.
62
tomar posse disso, tornando por motivo o nosso esquecimento».
Não há dúvida de que a carreira se manteve.
Em 1688, veio à baía o navio de João Jacques e
nela se encontrou com um navio inglês e a galeota
holandesa Noord. Este encontro parece não ter preocupado João Jacques que fez tranquilamente o seu
resgate no Incomáti, enquanto os Ingleses o faziam
ao abrigo duma tenda armada na Inhaca e os Holandeses sondavam e cartografavam a baía.
Um indígena, natural de Moçambique, contou a De
Capelle que fizera sete vezes a viagem a Lourenço
Marques, com os Portugueses, e é natural que essas
viagens estejam dentro do período 1685-1701 ou
1703. Nestes anos de 1701 ou 1703 fora a sua última
viagem — aquela com que fechou, desastrosamente, o
ciclo da exploração comercial portuguesa da baía.
Não se sabe a data certa. Esse homem disse a De
Capelle que já tinham passado vinte anos sobre o
acontecimento. Mais provavelmente, a conversa do
Holandês com ele foi em 1721, ano em que De Capelle
subiu o Incomáti (o «intérprete», como ele lhe chama,
achava-se nas terras do Manhiça). Na incerteza,
porém, há que referir os vinte anos ao período 17211723 (data do relatório de De Capelle) C).
Eis como, no relatório, a informação do intérprete é
reportada:
«Quando veio pela sétima vez, com os Portugueses
de Moçambique, ao Rio da Lagoa, querendo eles voltar
para casa [isto é, regressar a Moçambique]
(') McCall Theal, The Portuguese in South África, diz, não sabemos com que
fundamento, que a interrupção da navegação portuguesa da baía se deu em 1602.
63
encontraram na baía um navio, sob uma bandeira branca,
e tornando-se o tempo calmo foram obrigados a ancorar e
pouco tempo depois o capitão deles, com o escrivão, foi
ao outro navio (que julgavam ser francês e amigo) onde
ambos foram feitos prisioneiros. Entretanto anoiteceu e
ao amanhecer, mas sendo ainda escuro, os supostos
Franceses aproximaram-se, em três embarcações a remos,
com a intenção de surpreender o navio dos Portugueses:
mas como levassem consigo o escrivão (amarrado) este
ousou gritar à tripulação que tivesse cuidado e afugentasse as mencionadas embarcações, porque elas iam
para assaltar o navio: consequentemente, os Portugueses
levantaram-se e fizeram algumas descargas, depois do
que a gente das embarcações (não vendo boa a
oportunidade) se foi embora. De dia os Portugueses
quiseram entrar mas infelizmente encalharam; em
seguida toda a tripulação abandonou o navio, salvando-se
em terra; os do outro navio vieram pouco tempo depois,
levaram as melhores mercadorias, para depois porem
fogo ao navio, tendo já passado vinte anos que isto
aconteceu e desde então não tornaram a vir os navios dos
Portugueses que estes tinham por costume mandar cada
ano.»
Naturalmente, a gente do navio meteu-se ao caminho
até Inhambane ou Sofala, tendo o “intérpretes” preferido
ficar.
Se podemos tomar o ano de 1703 como o do cancelamento da carreira regular Moçambique-Baía de
Lourenço Marques e, portanto, do abandono oficial da
baía, fica-se na dúvida de se, uma ou outra vez ainda,
algum mercador de Moçambique se teria aventurado a
vir a estas paragens. De Capelle desconfiava que sim,
mesmo já quando os Holandeses tinham o seu forte em
Lourenço Marques. Diz ele:
64
“No entanto, [os Portugueses] ainda visitam a gente
de Manhiça e estão em contacto com essa nação, pois
que se viu usar-se na Lagoa, desde há alguns meses,
muita missanga nova de Moçambique, que os cafres
dizem comprar na Manhiça.»
Como já dissemos, ao tratar do movimento comercial
na baía, é provável (e, a nosso ver, seria o caso) que
essa missanga proviesse do comércio interior, feito pelo
indígena ao longo dos caminhos entre Manhiça,
Inhambane e Sofala.
Duma maneira ou doutra, o facto é que dentro de
poucos anos as relações com a baía se tinham perdido
completamente. Em 1753, era possível a um capitão-general declarar que só de tradição conhecia o porto de
Lourenço Marques, pois havia muitos anos que se
interrompera a navegação para lá (1).
Sucedeu, então, o que D. Rodrigo da Costa previra.
Do esquecimento dos Portugueses tomaram os estrangeiros motivo para se apossarem do comércio da baía e,
até, das suas terras. Foi uma dominação efémera e por
ela não se ilustraram os dominadores — porque uns, os
Holandeses, saíram dela por tibieza de ânimo; outros, os
Austríacos, expulsos pelas armas portuguesas.
Oitenta anos depois, a reconquista firmava decisivamente a soberania de Portugal.
(1) Capitão-general Francisco de Melo e Castro que assirn respondia à ordem
da Corte para estabelecer em Lourenço Marques fortaleza e feitoria.
65
1703-1780
OS ESTRANGEIROS
Como já dissemos, julgamos não ser inadmissível
que muito cedo, possivelmente pêlos anos 30 ou 40 do
século XVI, navios estrangeiros tivessem começado a
aparecer na baía e entrado em negociações com os
indígenas.
Referimos já a tradição recolhida por Junod, nos
fins do século passado, e que ele conta na sua conhecida
obra Vida duma tribo sul-africana. A história é assim:
Os primeiros Brancos com quem os Rongas tiveram
comércio eram pescadores de baleias. Os Rongas, diz Junod,
não sabem dizê-lo ao certo mas pensam que esses
estrangeiros eram ingleses. O tráfico com eles era
denominado gôdji — e, de facto, por Bá-Gôdji são hoje
ainda nomeados os Ingleses. Ir a gôdji — ir fazer negócio
com esses Brancos — tornou-se uma expressão e um
costume consagrados (e isto indica, inquestionavelmente, a
continuidade desse comércio). Os estrangeiros não ousavam
vir a terra. Fundeavam na baía e os indígenas levavam ao
navio as suas mercadorias. Só por gestos se compreendiam e
os Brancos davam a comer à gente da Maçaneta carne de
baleia. Em troca do marfim, entregavam ritatlas de bronze,
bocados de cobre, enxadas.
Depois destes Brancos, reza a tradição, vieram
Muçulmanos, em “navios de popa levantada» chamados
màpangánhi (na versão inglesa, original, da obra de Junod
lê-se màpangaii) — pangaios. Os Mu69
çulmanos foram os primeiros estrangeiros que se estabeleceram em terra. Depressa aprenderam a falar a,
língua e a servirem-se dos indígenas, expedindo-os,
para o interior a comprarem de sua conta marfim e
peles, a troco de enxadas, contas e panos — mais
tarde, armas e pólvora.
Revista à luz da história e da documentação escrita,
esta tradição aparece como um registo de factos recentes: segunda metade do século XVIII. A primeira
notícia de pescadores de baleias na baía é de 1789,
mas é provável que já antes disso eles tivessem aparecido. De facto, pelo menos em 1652 já navios franceses faziam nos mares do Cabo pesca de baleias e
focas e a Companhia Holandesa da índia Oriental,
logo após ter-se instalado no Cabo, organizou essa
indústria. Quanto aos Muçulmanos, tratava-se de gente
de Goa, Damão, Diu, Surrate e Bombaim, à qual só
foi franqueado o comércio da costa africana em 1755.
Por outro lado, as mercadorias de compra (enxadas,
anilhas de latão para os braços, pescoço e tornozelos)
indicam uma época bastante posterior àquela (antes de
1545) a que a tradição presume de se reportar.
Todavia, embora transpondo para data mais remota
factos relativamente recentes, transposição tão fácil de
dar-se na simples transmissão oral das recordações, nem
por isso seria inverosímil que esta história testemunhe,
confusamente e ilustrando-se com imagens modernas,
a antiguidade de presença de estrangeiros na baía e a
novidade, para os indígenas, da permuta comercial
com os Brancos. Se assim foi, não podia tratar-se
senão de actos isolados, mais provavelmente da
pirataria que infestava os mares e a costa em caça às
naus portuguesas atulhadas de pimenta, ouro e panos
ricos, «muitos rubis e muitas esmeraldas».
É fora de dúvida que aos Portugueses coube não só o
descobrimento como a prioridade na exploração organizada e regular da baía da Lagoa.
O facto é que o primeiro caso concreto que se
conhece de estrangeiros na baía é de 1597 ('). Chegando à Inhaca em Janeiro de 1598, Jerónimo Leitão
encontrou a nossa casa de feitoria potentemente fortificada : cercadura de madeira da largura de uma braça,
quatro baluartes «mais fortes que o mesmo forte»,
fosso com mais de uma braça de profundidade e «tudo
muito forte». Nos princípios de 1597, haviam ali
surgido três naus, com Brancos cuja língua os indígenas tinham estranhado. Eram Ingleses. Enviaram ao
rei uma embaixada de vinte arcabuzeiros, com
espaventoso saguate, a pedir autorização para construírem uma casa e porem nela duzentos homens.
Enganaram os indígenas, afirmando-lhes que Jerónimo Leitão, «cuja aquela ilha era», estava numa das
naus. A este engano, o rei, embora desconfiado, autorizou a construção da casa.
A gente dum pequeno navio português que nos fins
de Junho naufragou na ponta da Inhaca desfez o
engano e incitou os indígenas a abandonarem os
intrusos. Eles assim fizeram. A doença deu nos Ingleses (corria que o régulo lhes mandara dar peçonha) e
eles reembarcaram, recomendando aos indígenas que não
destruíssem o forte. Jerónimo Leitão, claro, arrasou toda
a fortificação.
Esta narrativa sugere que se tratava de uma tentativa de estabelecimento, o que pressupõe anteriores
visitas de exploração.
Não voltamos a ter notícia concreta de estrangeiros
em Lourenço Marques senão em 1685-86: os cinco
(1)
70
V. Documentos, i.°
71
navios ingleses que resgataram todo o marfim e levaram
a Junta de Moçambique a propor a suspensão da
carreira. Mas é seguro acreditar-se que durante esse
período de quase um século a baía tenha sido
concorrida de estrangeiros. Os Ingleses haviam encontrado um mercado — e sabe-se o que isso quer dizer...
Os Holandeses, em guerra aberta com Portugal e a
Espanha, davam caça sem piedade à navegação portuguesa e procuravam, mesmo, apoderar-se dos senhorios
de Portugal. Em 1601, já as suas actividades alarmavam a Corte com a previsão de um ataque a Moçambique — ataque que sobreveio em 1604 e, depois,
em grande força, nos dois cercos da ilha bravamente
defendidos por D. Estêvão de Ataíde, em 1607 e 1608.
Assim, não deixariam de frequentar a costa sudeste
que os Portugueses haviam aberto ao comércio. E se
não temos notícia deles em Lourenço Marques, sabemos por Francisco Vaz de Almada que em 1622 já
tinham aparecido, muitas vezes, em Inhambane.
Em 1688, o governo do Cabo (onde os Holandeses
se haviam estabelecido em 1652) enviou a Lourenço
Marques a galeota Noord, para reconhecer e cartografar a baía.
Paiva Manso afirma que as instruções dadas à
galeota compreendiam o «apoderar-se da baía, comprando, se preciso, o governador português que era
então João Jacques», e acrescenta: «mas não conseguiu o seu intento».
Não nos foi possível consultar a obra em que Paiva
Manso se apoiou (2). O historiador sul-africano McCall
( T ) Memoir respecting the Kaffirs, Hottentots and Bosjemans of South África,
pelo tenente-coronel inglês Sutherland, publicada no Cabo em 1856.
O título de «governador» emprestado a João Jacques é, evidentemente,
despropositado. João Jacques não seria mais que o capitão do navio do resgate.
Theal nada diz a tal respeito e a historieta parece inverosímil, pois a galeota Noord não dispunha de meios
para firmar a posse da baía e as suas instruções mandavam que, uma vez a baía cartografada, a galeota
explorasse cuidadosamente a costa até o Cabo, em
busca dum grupo de sobreviventes do Stavenisse que
naufragara, tempos antes, na costa do Natal.
Comprado ou não comprado, João Jacques deixou
livremente operarem na baía a galeota e um navio
inglês que traficava na Inhaca. Esta contemporização
com os concorrentes estrangeiros parece ter sido, por
esta época, habitual. Assim, no caso de 1701-1703, o
capitão e o escrivão do navio português foram a bordo
do navio que arvorava a bandeira branca da Franca, por
o julgarem «francês e amigo»( 1). Tratava-se, porém, de
piratas e já contámos o que se passou.
Em 1721, sobrevêm a ocupação holandesa. A expedição, preparada na Holanda, chegou à baía em fins
de Março. E enquanto ela erigia o Forte Lagoa, em
Portugal El-Rei alarmava-se com a notícia de que a
Companhia da índia Oriental de Inglaterra projectava
vir estabelecer-se na baía. A 16 de Abril, escrevia ao
vice-rei comunicando-lhe a notícia. Dizia-lhe que em
ofícios trocados com o enviado extraordinário de Inglaterra em Lisboa e em instruções dadas ao embaixador em Londres, pedira a intervenção de «El-Rei
Britânico», seu bom irmão e primo, para que impedisse a
Companhia de levar avante tais projectos ( 2 ). E,
(') O mesmo se verifica em Inhambane, em 1728, nas relações entre o capitão
do navio português do resgate, Bernardo de Castro Soares, e os oficiais do navio
holandês que ali foi em exploração.
( 2 ) O pedido era acompanhado por uma memória dos direitos e soberania de
Portugal, elaborado pelo secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real. Ë
um primeiro ensaio da questão que estalará século e meio depois.
73
embora devesse esperar «da estreita aliança que há
entre esta corte e a Inglaterra» que o seu protesto seria
satisfeito, em todo o caso tivera «por conveniente
mandar um navio de guerra à dita baía de Lourenço
Marques, com a gente necessária para a ocupar e
guarnecer, ordenando-lhe que no caso em que ali
achassem os Ingleses os desalojassem».
Ou porque S. M. Britânica se dignou intervir eficientemente ou porque a Companhia soube que os
Holandeses se lhe haviam antecipado ou, ainda, porque
tudo fosse puro boato, o facto é que os Ingleses não
vieram. A notícia desvaneceu-se — como, dois anos
depois, El-Rei escreveria ao vice-rei. E com ela se
desvaneceu também a expedição portuguesa para
ocupação da baía.
Eis um trecho da régia carta de 12 de Abril de 1723,
dirigida ao vice-rei:
«[...] e desvanecendo-se a dita notícia, se suspendeu
mandar-se a dita fragata, que se achava já preparada
para a referida expedição; e porque agora corre que os
Holandeses se têm estabelecido em um porto, dez, ou
quinze léguas ao sul de Moçambique, e poderá. ser muito
factível que seja na mesma Baía de Lourenço Marques,
ainda que esta fique mais distante, por dizerem os
práticos, a quem mandei ouvir sobre esta matéria, que
naquela costa não há porto suficiente mais que a dita
baía, tenho resoluto mandar preparar outra fragata que
vá para a mesma expedição, destinada contra os
Ingleses [...].»
Assim, após dois anos de permanência dos Holandeses na baía, não havia ainda na Corte a certeza de
que fosse realmente lá que eles se tinham instalado.
E, mais uma vez, a expedição portuguesa desvaneceu-se.
Estes dois primeiros anos tinham sido difíceis para a
guarnição holandesa. A expedição chegara em 29 de
Março de 1721. Compunha-se de cento e treze
homens — funcionários, operários, oficiais, quarenta e
quatro soldados e outros tantos marinheiros — a
bordo do Kaap e Gouda, vindos da Holanda, aos quais
no Cabo se juntara o Zeelandia. Nas terras de Mpfumo,
foi levantado o forte: quartéis e armazém, cercados por
um muro pentagonal, de terra mas capaz de montar
canhões. Era o Forte Lagoa. Mal começara a construção, as febres insinuaram-se na guarnição e em seis
semanas tinham abatido dois terços do efectivo. A
obra prosseguiu, empregando-se no trabalho das terras
mais de duzentas mulheres indígenas — os homens, é
claro, recusaram-se terminantemente a trabalhar.
Em Agosto, a guarnição recebeu um reforço de
oitenta homens, mas por Março-Abril de 1722 o efectivo
total estava reduzido, pelas febres, a setenta e oito
homens. Foi então que três navios ingleses surgiram
na baía. Abriram imediatamente fogo e o forte teve, a
breve trecho, de capitular. Os Ingleses instalaram-se
nele. Parte da guarnição bandeou-se, alistando-se no
rol dos «piratas», como De Capelle lhes chamava e
que seriam, possivelmente, os expedicionários da
companhia inglesa da índia. Jan Van De Capelle,
com uma vintena de homens, conseguiu escapar-se,
buscando refúgio nas povoações indígenas, onde viveu
até os Ingleses abandonarem o forte: 30 de Junho.
O estabelecimento entrou, então, numa fase de relativo sossego e só há notícia de mais uma visita de
estrangeiros, durante a ocupação holandesa: o navio
inglês Northampton que nesse ano de 1723 reconduziu
75
74
à baía um sobrinho do régulo Mpfumo. Anos antes, este
homem fora levado a Inglaterra, num navio inglês de
comércio. Lá fora baptizado, com o nome de John
(evidentemente), e tivera por padrinho um duque, sendo
conhecido em Londres por Prince John.
Em Maio de 1726, chegou o novo comandante,
Koning. O estabelecimento recebeu, então, grande
impulso. Koning negociou com os régulos a compra de
terras, lavrando escrituras, no valor aproximado de
sessenta e duas libras esterlinas. Para desfazer a lenda de
que os escravos comprados eram comidos pelos Brancos,
promoveu a visita ao Cabo de um grupo de «grandes»,
entre os quais o Príncipe João que entretanto renegara o
cristianismo e a europeização com que em Londres o
haviam distinguido. O Porte Lagoa foi ampliado,
muralhando-se uma maior área, e passou a chamar-se
Lydzaamheid (Liberdade ou Tolerância).
No entanto, as forças que levariam ao desespero minavam a guarnição e os seus mandatários do Cabo e da
Holanda.
As febres dizimavam a colónia e dentro em breve os
germes da indisciplina ganharam virulência. O campo
era-lhes propício: a maioria dos soldados eram
Alemães, só mercenàriamente ligados à Companhia
Holandesa da índia Oriental, quase todos indesejáveis
no Cabo e remetidos, por punição, para a baía da
Lagoa. Produziram-se conjuras e deserções, estas em
direcção aos estabelecimentos portugueses em Inhambane e Sofala, na mira de navio que levasse à Europa.
O comércio não satisfazia. Entre Junho de 1722 e
Agosto de 1723, havia rendido dois mil quilos de
marfim e duzentos e vinte e dois de cobre. Em 1725, o
estabelecimento exportou um pouco de âmbar, algum
aloés, cento e trinta e seis quilos de cobre, mais de dois
mil de marfim, trinta e quatro escravos e poucas libras
de ouro em pó. De Capelle atribuía, em 1723, a escassez
do negócio à parcimónia do pagamento e advogava que
de vez em quando se fechassem os olhos, dando um
pacote de missanga a mais. Denunciava, também, que os
braceletes de latão trazidos pêlos Ingleses eram
melhores que os da Companhia — e mais tarde, em
1727, os delegados dos régulos a Moçambique
queixaram-se da má qualidade das fazendas holandesas.
Koning pensou que o retraimento do comércio fosse
devido à lenda sobre o destino dos, escravos. Mas a
visita dos “grandes» ao Cabo não modificou a situação.
As expedições em busca das minas, por terra, retrocederam em face da hostilidade dos indígenas. Em
1729, desencadeou-se uma guerra dos régulos coligados
contra o Mpfumo. Uma força holandesa saiu do forte
para ir guardar um curral de gado da Companhia : a
imprudência de um sargento valeu-lhe ser aniquilada
pelas «mangas» da coligação.
Em 1730, os Holandeses dão-se por vencidos. A
perda de vidas, o dispêndio de dinheiro, a magreza do
negócio que não oferecia promessa de desenvolvimento
e, sobretudo, a grande desilusão das nunca encontradas
minas de ouro quebraram-lhes a força de ânimo,
abatendo-os até à renúncia. A 27 de Dezembro, depois
de terem destruído o forte e demais instalações, os
Holandeses abandonaram a baía.
A feitoria holandesa fora estabelecida na base das
dunas da Machaquene, um pouco para além da direcção
da actual Rua Princesa Patrícia, no lugar onde esteve a
bomba de abastecimento de água à cidade (1).
(') Guilherme Ivens Ferraz, que foi capitão do porto de 1895 a 1899, conta que
poucos anos antes ainda existiam as ruínas da feitoria. Veja-se Descrição da Costa
de Moçambique, de Lourenço Marques ao Bazaruto.
77
Além do forte, com os seus quartéis e armazéns, os
Holandeses tinham ainda outras instalações, designadamente um poço e reservatório de água, em pedra;
«ma grande horta, com árvores de fruto, e De Capelle
fez culturas experimentais de cana de açúcar e
indigueiro.
Se as actividades inglesas e francesas na baía se
inspiravam de puro mercantilismo e algumas vezes
procuravam satisfação pela indignidade, em façanhas de
pirata, o estabelecimento holandês tinha por pano de
fundo as minas de ouro. Achar os caminhos que,
rodeando as linhas directas portuguesas de Sofala
e Cuama a Manica e ao Monomotapa, levassem às
minas era o seu verdadeiro desígnio e a fortalezafeitoria em Lourenço Marques foi, essencialmente, uma
base para a procura desses caminhos. Os Holandeses
acabariam por os encontrar, mais tarde; mas, aqui, só a
desilusão os esperava. E, contudo, estavam bem perto...
O fracasso proveio do engano dos geógrafos. O mapa
mostrava, de facto, como De Capelle escreveu, o Incomáti «percorrendo mais de duzentas milhas pelo
interior do país, passando pela cidade Monomotapa e
depois pelo reino do mesmo nome (onde propriamente se
encontra o ouro)». Este erro e o apelo do Monomotapa
despistaram-nos. O Incomáti levava, realmente, a países
onde havia ouro, mais e melhor ouro que no
Monomotapa. Mas, para se seguir esse caminho, seria
preciso ter adivinhado a grande curva do rio inflectindo
para sudoeste, onde ficavam aquelas terras de Paraotte
e Maschicosje donde vinham os Negros com ouro em
pó.
Um momento houve em que estiveram na boa pista.
Em 1725, partiu da baía uma expedição que meteu
aos sertões, rumo ao Poente. Se tivesse conseguido
vencer duzentos quilómetros nessa direcção, teria
alcançado os campos de ouro (região de Lydenburg,
Barberton e Kaapmuiden). Mas, pouco caminho andado, os indígenas forçaram-na a recolher à feitoria.
Os Holandeses não insistiram nessa direcção e malbarataram as suas esperanças em vãs pesquisas no Incomáti, que a lancha De Hoop subiu, em 1728, até onde
pôde navegar, e em inúteis explorações na baía de
Inhambane.
Entretanto, o esquecimento português continuava,
embora de vez em vez entretido na contemplação de
indecisas lembranças...
Já vimos como, em 1723, dois anos após a fundação
da feitoria holandesa, não havia ainda na Corte (e não a
haveria também em Moçambique, provavelmente)
notícia certa do facto. Em fins de 1725, parece, a
situação não estava ainda esclarecida: João de Saldanha
da Gama, vice-rei da índia, no regimento que em 21 de
Janeiro de 1726 deu ao novo governador de
Moçambique e Rios, António Cardim Fróis, mandava
que este informasse acerca das feitorias que dizem ter
os Holandeses na costa, principalmente na baía de
Lourenço Marques, e recomendava-lhe, também, que
averiguasse das inteligências dos Holandeses ou outras
nações com os indígenas e lhes impedisse «a estada,
trato e comércio».
Não se conhece a informação prestada por Cardim
Fróis ao Tribunal da Junta de Comércio. No entanto, da
carta que escreveu, em Agosto de 1727, ao vice-rei,
sabemos as providências que tomou. O navio do resgate
de Inhambane em 1726 expediu para Lourenço
Marques um emissário, a «convidar aqueles régulos
novamente com a nossa correspondência». O emissário
78
79
não pôde chegar ao destino, retido por um régulo
(possivelmente, o da Magaia, à beira do Incomáti)
“receoso de estabelecermos com aqueles o negócio que
este só queria para si». Pôde, porém, passar aviso, do
qual resultou os régulos da baía, após conferência,
delegarem dois filhos que no navio de Inhambane foram
a Moçambique, em 1727. Certificaram eles Cardim Fróis
de que todos desejavam a continuação da viagem do
resgate; mas convinha esperar «certo aviso seu de que
tinham expulsado os Holandeses de uma pequena
feitoria que tinham, com oito ou dez pessoas». Se
Cardim Fróis não se enganou ao escrever estes números,
então aqueles príncipes estavam soberanamente
mentindo ao governador.
O facto é que desta negociação nada resultou, mas
manteve-se a ilusão de que os indígenas exerceriam
contra os intrusos, por si sós, qualquer acção. Em 1729,
o secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real
comunicava ao vice-rei que Sua Majestade entendia
muito conveniente continuar o governador de
Moçambique “as mesmas diligências de ter correspondência com os sovas daquela costa, para que nela se
introduza o nosso comércio, e sejam expulsos dela os
Holandeses». Rotineiramente, como lhe cumpria, o
vice-rei passou palavra ao novo governador de Moçambique e Rios, D. António Casco de Melo (regimento
de 19 de Janeiro de 1731). E em 2 de Maio de 1740,
numa instrução régia ao vice-rei, proclamava-se: «com
mais certeza se sabe que os cafres daquela costa
expulsaram do Cabo das Correntes aos Holandeses que
se tinham estabelecido no dito porto [...]».
Não era verdade. Os indígenas não só não tinham
expulso os Holandeses como, até, quando eles ocasionalmente voltaram à baía, no ano seguinte, os receberam
com contentamento, fruto desse estranho prazer
80
de trocar, de comprar e vender... De facto, em Setembro
de 1731 haviam saído do Cabo, em missão a
Inhambane, os navios De Snuffleaar e De Zeepost. Este
último, fazendo água, perdera a conserva e arribou à
baía de Lourenço Marques, onde fundeou e aguardou o
seu companheiro, que prosseguiu até Inhambane e veio
reunir-se-lhe em 30 de Outubro. Aqui permaneceram até
30 de Janeiro de 1732. O diário de bordo do Snuffleaar
dá-nos uma curiosíssima visão do movimento na baía:
as contínuas visitas a bordo pelos régulos Mpfumo,
Tembe, Matola e Mateque, seus secretários e grandes, as
transacções feitas, os presentes trocados. Os Holandeses
compraram mil e duzentos quilos de marfim, vinte e
dois escravos e noventa e sete quilos do que chamavam
“estanho». Em presentes, gastaram vinte e oito quilos de
tabaco, cinco grosas de cachimbos e... quinhentos e
oitenta e dois litros de araca!
Em todo o caso, era verdade que os Holandeses
haviam abandonado a baía. E El-Rei, ponderando,
naquela mesma carta, a conveniência de guardar para
Portugal aquele comércio, recomendava que se aproveitasse a oportunidade. Caso ele, vice-rei, julgasse que
«a situação das coisas do Estado» o permitia, não devia
deixar de “fechar aquela porta às nações da Europa,
fortificando o Cabo das Correntes». Quatro anos depois,
como o vice-rei Marquês do Louriçal nada tivesse obrado
em tal sentido, El-Rei insistia na recomendação junto do
novo vice-rei, marquês de Castelo Novo. Mas quarenta
anos passariam, ainda, antes que a régia ordem fosse
cumprida.
O ano de 1753 marca o extremo do esquecimento
português. Suspensa toda a comunicação com a baía, o
capitão-general de Moçambique só “de tradição» podia
conhecer o porto de Lourenço Marques e para
81
a história não ficou qualquer notícia do que nesse
porto se teria passado entre 1731 e 1755.
Neste ano de 1755 produz-se um acontecimento que
ia ter, por todo o território da Capitania Geral, tremenda repercussão — um acontecimento de que hoje
ainda temos, de norte a sul da Colónia,, vivas e inquietantes ilustrações. Foi a invasão de Moçambique pelos
Baneanes (1).
A infiltração indiana começara em 1687, ao abrigo
da provisão, dada em 1686 pelo vice-rei Francisco de
Távora, conde de Alvor, que concedia aos Baneanes o
privilégio do comércio entre a índia (onde se fabricavam as fazendas negociáveis com os africanos) e
Moçambique ( 2 ). Inicialmente confinados na Ilha, como
importadores por atacado, em breve, todavia,
começaram a insinuar-se pelas Terras Firmes, graças a
tolerâncias (que Saldanha de Albuquerque suspeita de
corruptas) dos capitães-generais — para, finalmente,
lhes ser dada plena franquia em 1755, por um alvará
de 10 de Junho.
Esta liberdade era fruto da intensa campanha que
(1) O capitão-general Pedro de Saldanha de Albuquerque definia assim os
Baneanes: «Gentios que se acreditam mais nobres que os outros, por ser casta ou
república de comerciantes, conservada sem mistura de outras desde a sua primeira
origem e muito antes de serem expulsos de Cambaia para Guzarate, e para Meca, onde
estabeleceram a maior residência», donde «passaram alguns a estabelecer-se com o seu
comércio nas praças de Diu e Damão». Descreveu, pitorescamente, como esses
«nobres» pouco a pouco foram introduzindo a arraia miúda, caixeiros, comissários
volantes, cozinheiros... Chamava-lhes, como também Pereira do Lago, «corja de
ladrões». E, em seu parecer, «o melhor e mais seguro remédio seria lançá-los fora e
extingui-los, totalmente, não só desta Capitania mas de Goa, Diu e Damão e de todo o
Domínio português onde aparecer casta baneane».
( 2 ) O privilégio foi dado à companhia dos «Manzanes», que quer dizer, segundo
Saldanha de Albuquerque, «todos os Baneanes nobres incorporados». No exercício desse
privilégio, a companhia tinha por conservadores e juizes privativos os padres jesuítas
dos colégios de Diu e de Moçambique !
82
por então se desenvolvera para o fomento do comércio
como meio único de remediar a grande decadência da
índia e da Costa Oriental de África. O vice-rei marquês de Alorna postulara, anos antes, numa sentença
memorável e que, da primeira à última palavra, deveria
ser hoje ainda, e sempre, o moto da nossa administração ultramarina:
«Eu não vejo outro meio mais eficaz que o do
Comércio [...]. Se perdermos as ideias heróicas da
pompa e da ostentação, e pusermos os olhos na conservação do domínio e da cristandade e das forças
necessárias para a sustentar, veremos que o Comércio é,
somente, o útil e o sólido.»
Tinha razão o marquês de Alorna. Seguiram-no mal,
porém, e a provisão de 10 de Junho de 1755 que
franqueava aos Indianos todos os portos da Costa
Oriental de África foi uma arma contra a cristandade e
uma sapa do domínio nacional. De facto, dentro em
pouco todo o comércio do interior (Terras Firmes e
Rios de Sena) estava nas mãos deles e os negociantes
portugueses de Moçambique à mercê da sua proverbial
lisura. O suborno corroeu os fundamentos da autoridade e
da ordem. Pelo seu fervoroso proselitismo religioso e
pela fácil adaptação ao meio, depressa eles captaram a
confiança e a intimidade dos indígenas, delas se
"servindo comercial e politicamente. Com a sua cumplicidade, estrangeiros (para os quais o comércio permanecia proibido), designadamente os Ingleses de Bombaim, desviaram a seu favor o comércio dos portos,
armando navios que se acobertavam com bandeira e
passaportes portugueses obtidos por intermédio de
mercadores de Goa, Diu e Damão. O comércio clandestino enxameou. Em 1761, tentou-se pôr-lhe cobro,
ordenando-se que todos os navios destinados à Costa
Oriental de África deveriam ir em «precisa derrota»
83
à ilha de Moçambique (única alfândega até então
estabelecida) e aí baldearem a carga para os portos. Em
1786, porém, promulgou-se a liberdade de demandar
directamente os portos onde seriam instaladas
alfândegas — lei que teve por parte do governo da
Colónia a mais decidida oposição.
Adiante veremos os reflexos deste regime na baía de
Lourenço Marques.
Se é certo, como já dissemos, não haver notícias da
baía entre 1731 e 1755, também não há dúvida de que
nesse período os Ingleses foram nela as figuras
predominantes, activos usufrutuários do seu comércio,
estabelecendo uma corrente mercantil que se prolongaria mesmo nos primeiros anos da ocupação portuguesa, entrando pelos começos do século XIX.
Em 1755, Francisco de Melo e Castro expediu de
Moçambique um navio, em reconhecimento à baía, e
«só então soube que iam comerciar àquela baía e rios
embarcações britânicas, sem contudo haver feitoria
dessa ou de alguma outra nação europeia nas suas
margens» ( l ) .
Em Junho de 1757, o navio holandês Naarsiigheid
arribou, desarvorado, à baía, em tais condições que não
pôde ser mantido a flutuar. A tripulação salvou-se em
terra e parte dela esperou, durante dois anos, que lhe
viesse socorro. Alguns homens tentaram alcançar o
Cabo, recorrendo, em direcção contrária, o velho trilho
dos náufragos portugueses, e conseguiram chegar além
de Porto Natal.
Os Franceses não só frequentavam a costa de Mo(') Ensaios sobre a estatística das possessões portuguesas, etc., de F. M.
Bordalo.
çambique, em especial para carregarem escravos, como
também aspiravam a estabelecer-se nela. Em 1738, após
o sítio de Goa e invocando o auxílio prestado ao vice-rei
pelo governador do estabelecimento francês de
Pondichéry, o governador da companhia francesa da
índia propusera a Portugal estreita cooperação, de modo
a garantir a soberania portuguesa em Goa, a troco da
concessão de um porto na costa moçambicana.
Pêlos meados do século, a actividade dos Franceses
intensificou-se, chegando mesmo alguns capitãesgenerais a sancioná-la, a despeito de estar vedado o
comércio aos estrangeiros. Por 1762, os Franceses
pretenderam, mais abertamente, estabelecer-se em
Lourenço Marques, mas a hostilidade dos Ingleses não
lho permitiu (').
Em 1763, o capitão-general Silva Barba despachou
em missão a Lourenço Marques o tenente-coronel
António José de Melo, comandando a fragata real S.
José armada em guerra e com a guarnição militar e a
lotação de marinheiros reforçadas. Todavia, as
instruções prescreviam a António José de Melo que
devia “procurar não ter ocasião de peleja, mas sim tão
somente bater-se com o inimigo em sua natural defesa».
E especificavam: «o que também observará quando
encontre embarcações estrangeiras no mar ou no porto
da mesma baía de Lourenço Marques». António José de
Melo assim cumpriu. Tendo encontrado na baía dois
navios ingleses de comércio, sem guarnição militar,
trocou com o comandante deles as habituais cortesias —
visitas, jantares, presentes (2).
(') Segundo o governador dos Rios de Sena, Marco António de Montaury,
citado por T. Botelho, obra citada.
( 2 ) Tem-se escrito que por causa deste procedimento António José de Melo
foi acusado, tirando-se uma devassa. Seria singular que assim fosse, dadas as
instruções. A devassa foi, realmente, tirada mas cremos que por outro motivo,
como referiremos no capítulo Reconquista.
85
Estes navios pertenciam à companhia de Bombaim e
exibiam passaportes passados pelo governador de
Damão. Comandava-os um certo Eduardo Chandler e a
guarnição compunha-se de lascares. Para o comércio,
Chandler dispunha de cinco embarcações que
navegavam para todos os rios e de duas cavalgaduras
que conservava em terra.
Em 1768, os Ingleses chegaram, mesmo, a estabelecer-se em terra, com uma pequena feitoria fortificada
que, no entanto, teve vida efémera.
Sabemos, ainda, que quando em fins de Março de
1777 Bolts chegou, com a sua gente, para estabelecer a
feitoria austríaca, encontrou ancorados na baía três
navios ingleses, capitães Burton, McKennely e Cahill, o
primeiro dos quais se achava aqui havia cerca de treze
meses, tendo no entretanto perdido quase um terço da
sua guarnição.
O estabelecimento austríaco não impediu os navios
ingleses de demandarem a baía. Em 1777 ou princípios
de 1778, Bolts teve de escorraçar um. Foram duas
corvetas, vindas a comerciar na baía, que levaram a
Moçambique, por meados de 1778, a notícia desse
estabelecimento. Em 1780, o navio mandado por Vitorino José Garcia a tentar o restabelecimento do comércio
encontrou, além da feitoria austríaca, um navio inglês,
armado na índia sob pavilhão português. E em 1781 a
expedição de Godinho de Mira encontrou mais um navio
de bandeira portuguesa e um outro, inglês. Este, Isipai
Catra, procedera de Bombaim, com passaporte inglês, e
não tendo cumprido a intimação a sair foi, depois,
levado para Moçambique por Godinho de Mira. O outro,
ostentando pavilhão português, exibiu passaportes
passados pelo governador de Damão. Denominava-se
Tathe Isay, era capita86
neado por um inglês e fora armado por mercadores
baneanes de Goga (1).
Não conhecemos outros pormenores do movimento
comercial inglês na baía, por esta época. Mas da sua
extensão ficaram, infelizmente, bem sobejas e funestas
provas...
Foi, ainda, um aventureiro inglês que trouxe para
Lourenço Marques os Austríacos. Guilherme Bolts
iniciara a sua carreira de aventura como caixeiro dum
estabelecimento inglês em Lisboa. Servira depois, em
Londres, a Companhia da índia, à custa da qual
amealhou fortuna que, afinal, perdeu numa demanda
promovida pela Companhia. Após vãs tentativas em
Lisboa, à procura de posição vantajosa, passou a Viena
e daí a Trieste onde conseguiu interessar os homens de
negócio nos seus planos de comércio na África Oriental
e na Ásia. Armaram, sob a firma Bolts & Ca., um
navio, cujo comando foi confiado ao aventureiro inglês.
O nosso ministro da marinha, Martinho de Melo e
Castro, definia Bolts como «homem perigoso, ainda que
hábil», dotado de «arte, destreza e astúcia, acompanhada de um grande conhecimento do comércio da
Ásia».
Um belo dia, Bolts chegou, no seu navio, a Goa,
apresentando-se ornamentado com os títulos de tenente-coronel das forças imperiais e director geral da
Companhia Austríaca da Ásia. Propôs ao vice-rei D.
José Pedro da Câmara um tratado de comércio e
navegação para o porto e praça de Damão. A Junta da
Real Fazenda deu-lhe parecer favorável e o vice-rei
assinou o tratado, em 10 de Abril de 1778.
(') Os nomes Isipai Catra e Tathe Isay figuram no diário de Godinho de Mira.
Num documento austríaco aparecera sob as formas The Spy e Faitelay.
87
Se não, ainda, nesse momento, poucos dias depois,
espalhou-se por Goa que, ao tocar em Lourenço Marques, o navio austríaco encalhara e tivera de descarregar parte das fazendas; que Bolts comprara do régulo
uma porção de terras, nas quais edificara uma casa
forte, para refresco e base dos navios austríacos em
serviço no comércio da África Oriental; e que, ao sair
da baía, deixara essa casa guarnecida de gente e
artilharia.
D. José Pedro da Câmara apresentou a Bolts o seu
protesto formal, notificando-o de que aquelas terras
pertenciam à Coroa de Portugal e nelas não podiam
construir-se fortificações sem permissão de Sua Majestade Fidelíssima.
Só por Julho ou começos de Agosto de 1778 houve
em Moçambique notícia do estabelecimento austríaco,
notícia que Baltasar Pereira do Lago transmitiu para a
Corte em 6 de Agosto e que lhe fora dada por duas
corvetas inglesas que haviam estado no Cabo das
Correntes.
Em Março de 1779, o ministro da Marinha escreveu
ao vice-rei, já então D. Frederico Guilherme de Sousa,
em resposta às comunicações do seu antecessor relativas a Bolts. Prevenia-o da espécie de homem que
este era e recomendava-lhe a necessidade de cortar,
desde logo, as suas maquinações. Assim, o vice-rei
devia desacreditar o seu antecessor, declarando o tratado de 10 de Abril de 1778 «um papel informe em
figura de tratado, feito sem poder, ordem nem autoridade» — por consequência, nulo e de nenhum efeito. À
volta de Bolts deveria criar-se um ambiente de indiferença, mesmo frieza e desagrado. E o vice-rei notificá-lo-ia de que «tendo notícia de se haver construído
uma fortaleza nos domínios portugueses da Costa da
África Oriental, a mandara destruir, achando-se na
88
firme resolução de tratar como inimigo da Coroa de
Portugal todo aquele que cometesse semelhantes atentados».
Esta última parte não passava de mero embuste.
Como hoje se diz, era a guerra de nervos feita a Bolts,
visando a desanimá-lo e levá-lo a abandonar a partida. E
para evitar as complicações de chancelaria e eximir a
responsabilidade da Coroa (sobretudo, se a imperatriz
Maria Teresa tivesse, efectivamente, dado a sua
concordância (1) à empresa dos triestinos), o vice-rei
simularia que tudo era de sua iniciativa e responsabilidade, como lho recomendava o ministro: «em tudo o
referido deve V. S.a mostrar que obra de sua própria
autoridade, em consequência das obrigações do lugar
que ocupa, sem que tivesse nem lhe fosse precisa ordem
alguma desta corte».
A comédia não surtiu efeito. Era um jogo pueril, com
um homem da qualidade de Bolts — que, ainda para
mais, devia saber melhor que o vice-rei e o próprio
governador de Moçambique aquilo que se passava em
Lourenço Marques.
Que sucedia, entretanto, na baía?
Bolts chegara por fins de 1777 e negociara com os
régulos, tendo desembarcado e acampado em terra. Em
3 e 7 de Maio concluiu, respectivamente com o Tembe
e o Matola, os tratados de compra das terras. No
segundo tratado interveio, também, o régulo de
Mafumo (Mpfumo), vassalo do Matola ( 2 ), pois eram
( 1 ) McCall Theal afirma que sim. No protesto oficial austríaco de 1782, diz-se
que a companhia era avouée et octroyée par Ia com. No entanto, «o Imperador
não punha, no comércio empreendido nas índias por alguns dos seus súbditos,
outro interesse além da protecção que era obrigado a dispensar-lhes».
( 2 ) A casa da Matola (Matjolo) provinha de Nlharúti, o invasor das terras da
margem norte da baía, que viera com a sua gente de Psatine (Suazilândia). Seus
filhos, Mpfumo, Polana, Massinga e Nuantihumane repartiram as terras, como
vassalos do pai. Nuantihumane ficou com as
89
as suas terras, entre Maé e a Ponta Vermelha, mais ou
menos, que especialmente interessavam Bolts.
As terras cedidas pelo Tembe iam, segundo Alexandre Lobato que se reporta à tradução, feita em Goa,
dos papéis apresados na feitoria austríaca em 1781,
«desde a ponta Maone (Mahabone) que forma a entrada
da ribeira (Rio do Espírito Santo) até à ponta Dungrim
ou Sezalim (a ponta da Catembe)». Infelizmente, deste
trecho não se distingue o que é original do tratado ou
interpretado e relacionado por Lobato. Se a
indentificação de Mahabone com a ponta Maone pode
ter-se por certa, a de Dungrin ou Sezalim com a ponta
da Catembe (Lechemere, Choluquene) suscita dúvida e
é pena que Lobato não tenha dito em que a fundou.
Investigações a que procedemos na região sugerem,
antes, que as terras compradas por Bolts seriam as da
ponta Maone e suas imediações, apenas, ou dessa ponta
em direcção à boca do Maputo. Esta hipótese coincidiria
com a notícia, dada por McCall Theal, de que a feitoria
austríaca ficava perto da foz do Maputo.
Bolts não conseguira convencer o régulo da Inhaca a
ceder-lhe a ilha, posição por excelência para dominar o
tráfico do rio do Maputo que era um dos dois grandes
que se denominariam Matola. A Nlharúti sucedeu Mpfumo, como soberano.
Cremos que foi na guerra da coligação dos régulos contra Mpfumo, em 1719 e de
que falámos atrás, que a soberania deste terminou. Os vencedores dividiram entre
si as terras do vencido e Matola ficou com as marginais da baía até à Ponta
Vermelha.
No seu diário, André Daniel Pollet explica que Chibanzane, o régulo da
Matola com quem Bolts tratou, tomara pela força as terras de Mpfumo.
O régulo do Tembe é nomeado pêlos Austríacos «Mohaar Capelle ou Capelb).
Trata-se, sem dúvida, de Muaje, como dizem os indígenas. Nas tábuas
genealógicas organizadas por vários investigadores, o nome aparece sob as
formas: Mohdri e Muhadye.
Chibanzane, da Matola, não figura nas tábuas de Roque de Aguiar, Torre do
Vale e Junod. Apenas o encontrámos nos já citados apontamentos de António
Albasini, com a forma Chibandjane.
90
canais (o outro era o Incomáti) do comércio de marfim da
baía. Assim, uma posição na ponta Maone ou entre esta
e a das 3 Marias, à entrada do Maputo, constituiria uma
posição de recurso, suprindo a falta da base da Inhaca.
Mais tarde, Novembro de 1778, André Daniel Pollet,
director da feitoria na ausência de Bolts que em Junho
de 1777 partira para a índia, negociou (de harmonia com
instruções deixadas por Bolts que já havia tentado, sem
êxito, a negociação) a compra da ilha dos Portugueses e
parte da Inhaca, conforme registou no seu diário:
«Quinta fr. a 19 de 9bro [de 1778]. Ajustei e comprei a
Huacano a Ilha de Xitemole e a Met.e da Inhaca, como
do Seg.te papel de ajuste e venda ass.° as 5 da tarde
sobre a praça onde levantamos a bandeira Imperial e
salvamos com 2 pedr.os a que Champagnet respondeu
com um mosquete í 1 ).»
A feitoria austríaca denominou-se de S. José. «As
instalações eram o que havia de mais rudimentar:
palhotas de paus e caniços, cobertas a capim. O projecto
de 1778, para uma nova casa de feitoria e de que há
desenho, mostra a planta de uma casa de 40 pés de largo
com varanda em volta, de 9 pés. Dentro, havia uma sala
grande, central, e quatro quartos aos cantos, de 10 pés
em quadrado. Os quatro cantos exteriores das varandas
eram fechados para escritórios. Havia os armazéns, que
eram, por vezes, roubados pelos indígenas, e há notícia
de ter ardido um deles com muito risco para as restantes
instalações que eram de palha. Tudo devia ser protegido
por
( l ) A. Lobato, obra citada, que ainda informa ter servido de intérprete o
português José Pedro da Fonseca, natural do Porto e que no ano seguinte foi
assassinado por um indígena.
91
uma paliçada e os indígenas, especialmente os régulos,
não podiam entrar na fortificação e, em caso algum, ali
pernoitar» (').
Sobre a localização do forte de S. José, Lobato opina
que o tratado com o Capela «localiza perfeitamente o
sítio que os austríacos elegeram para o estabelecimento”. Duvidamos. O tratado, ao descrever as
terras cedidas pelo Capela diz: «onde o campo Imperial
está agora levantado», parecendo que o onde é a ponta
Dungrim ou Sezalim. Já vimos a dúvida sobre a
localização de Dungrim ou Sezalim. Por outro lado,
aquelas palavras podem muito bem referir apenas o
local onde se estabelecera o acampamento de desembarque, enquanto não se obtivesse permissão dos régulos
para levantar a fortificação. A indicação agora parece
confirmar esta interpretação. Assim, continuamos a crer,
sobre as demais (embora poucas e imprecisas)
indicações que possuímos, que a feitoria austríaca ficava
na margem norte, por alturas onde também estivera o
forte holandês.
Provavelmente, na ponta Maone ou algures entre ela
e a foz do Maputo, teria havido uma estação (sendo a ela
que respeita a notícia de McCall Theal), abandonada,
por já desnecessária, quando Pollet conseguiu a
concessão da Inhaca e ilha dos Portugueses.
Não se sabe muito da vida do estabelecimento. Em
pouco tempo, do efectivo inicial (155 homens e algumas mulheres, vindos com Bolts no navio José e
Teresa), morreram vinte e seis homens e três mulheres.
Em 1777, Junho, Bolts saiu para a índia e ignora-se
se alguma vez mais voltou a Lourenço Marques,
parecendo que não.
(')
92
A. Lobato, obra citada.
Em 1780, o negociante de Moçambique Vitorino José
Garcia (ou Gracias) expediu um navio ao comércio da
baía, capitaneado por Gonçalo Coelho Pinto. O director
da feitoria, André Daniel Pollet, filho de alemães e
nascido em Lisboa, pretendeu cobrar direitos sobre as
suas fazendas. Coelho Pinto opôs-se, mas foi-lhe
impedido traficar com os indígenas. Estes, por seu turno
e certamente instigados pêlos Austríacos, hostilizaram
os Portugueses, matando alguns e aprisionando outros
que tiveram de ser resgatados por fazendas. Coelho
Pinto abandonou a baía, rumo ao Bazaruto, seguindo
depois para as Ilhas de França.
Pouco tempo antes da chegada da expedição de
Godinho de Mira, o inglês Manwaring que geria o
estabelecimento na ausência de Pollet, em viagem a
Bombaim, entrara em conflito com os indígenas. Desembarcara do Príncipe Fernando, o bergantim de
serviço no estabelecimento, com o seu tenente e a
equipagem de dez homens. Mal puseram pé em terra,
uma manga de indígenas caiu sobre eles e aniquilou-os
à zagaiada.
Bolts arquitectava grandes planos sobre o estabelecimento em Lourenço Marques. Não importa muito
conhecê-los em pormenor, pois não passaram de planos.
Mas interessa anotar o espírito que os inspirava. Bolts
pretendia uma verdadeira conquista, não segundo a
concepção portuguesa da navegação e comércio, mas
pela soberania política e económica, a ocupação militar e
populacional — enfim, uma verdadeira colonização, no
sentido moderno do termo.
Em 1781, finalmente, a aventura africana de Bolts
foi liquidada pela expedição de Goa. E com a sua
liquidação fecha o capítulo estrangeiro da história de
Lourenço Marques, o capítulo do esquecimento português. Interrompida a sua exploração regular da
93
baía, os Portugueses tinham deixado o comércio dela perfeitamente
livre à fruição de estrangeiros. Tão livre, que alguns puderam
pretender, além do usufruto, a propriedade da baía e fugazmente
alienaram, pela ocupação, a soberania portuguesa. E, contudo, não foi
dessa transitória alienação que a história portuguesa de Lourenço
Marques teria de queixar-se... Realmente, ao passo que de nove anos
de ocupação holandesa e cerca de cinco de ocupação austríaca não
resultou qualquer modificação do quadro da baía como porto de
comércio nem o mais leve vestígio de influência com reflexos
políticos, o mercantilismo inglês implantou daninhas raízes. Os
Ingleses souberam, como escreveu Nogueira de Andrade ('), «arruinar
este comércio, fazendo ladinos aqueles Cafres, por isso mesmo que
lhes satisfaziam sua ambição com melhores fazendas e maiores
donativos, a que os nossos negociantes de Moçambique não podem
chegar, porque as ditas fazendas lhes vêm mais caras e muito piores
pelas usurárias mãos dos baneanes de Diu e de Damão». Introduziram
nos sertões armas, pólvora e munições — lenha com que, depois,
também eles próprios se queimariam na Zululândia. E insinuaram em
terra os seus agentes indianos que se instalaram junto dos régulos,
depressa aprendendo a língua e casando com mulheres da terra,
intrigando contra os Portugueses e fazendo a propaganda do comércio
inglês. A história de Lourenço Marques no século XIX mostra bem
quanto estas daninhas raízes, fertilizadas por novos agentes e novos
aventureiros britânicos, frutificaram — e o quanto nos custaram, em
dinheiro e em sangue...
(') Veja-se Documentos, 3."
94
1781
RECONQUISTA
Em 1752, instituiu-se a Capitania Geral de Moçambique
em governo independente do da índia. É verdade que os
«generais» de Moçambique, como por cá se chamava aos
«capitães-generais e governadores», ainda por muito tempo
sentiram comprometida essa independência e sofreram a
tutela de Goa — porque, recebendo o seu estado em
tremenda decadência, sem recursos, sem comunicações
regulares com o Reino, frequentemente recorriam ao vice-rei
e por intermédio dele comunicavam com a Corte. Ainda
assim, a instituição serviu desde logo, validamente, ao
progresso de Moçambique. E, no que respeita à baía de
Lourenço Marques, com ela se inicia o movimento que
levará à plena e decisiva confirmação da soberania portuguesa. Esse movimento foi, por algum tempo, frouxo e
vacilante, com um colapso de nove anos em que consentiu o
estabelecimento dos Austríacos, mas de que saiu para o
gesto sem o qual mesmo o próprio golpe de força militar
teria sido inconsequente: a ocupação.
Francisco de Melo e Castro, o primeiro general de
Moçambique, denunciou em 1753 o completo abandono a
que a baía estava votada. Dois anos depois, expede para
Lourenço Marques um iate. Tratava-se, parece, dum simples
reconhecimento, posto que provavelmente com alguma
demora para comércio. McCall Theal (1) apresenta-nos,
mesmo, esta expe(')
The Portuguese in South África.
97
dição como tentativa para estabelecer uma estação
comercial e diz que o pequeno grupo de homens mandados de Moçambique para tal fim se instalou na
margem sul do Espírito Santo, fez algum negócio com
os indígenas e retirou-se ao cabo de pouco tempo.
Julgamos, todavia, mais de aceitar que a expedição não
passasse de simples exploração. Em todo o caso, esses
homens já não estavam na baía quando, em Junho de
1757, a ela arribou o navio holandês Naarstigheid.
A Pedro de Saldanha de Albuquerque se deve, no seu
primeiro governo da Capitania-Geral, desde 1758 a
1762, a tentativa de restabelecimento da frequência
regular da baía. Infelizmente, não possuímos sobre este
ponto mais que uma lacónica informação, se bem que de
autor digno de crédito ('). Segundo ela, Saldanha de
Albuqureque «protegeu o comércio da baía, donde,
apesar de um estabelecimento holandês, extraiu ferro,
cobre e arroz».
A menção de «um estabelecimento holandês» na baía,
por esta época, só é aceitável em relação com os
náufragos do Naarsügheid que, como dissemos,
permaneceram na baía durante dois anos, desde Junho
de 1757. Assim, o empreendimento de Saldanha de
Albuquerque deve ter-se efectuado em fins de 58 ou em
59 ( 2 ).
(') Francisco da Costa Mendes, que foi secretário geral em 1849 e deixou um
valioso Catálogo Cronológico e Histórico dos Capitães-generais, etc., só impresso
em 1892.
( 2 ) A menos que McCall Theal tenha errado e a demora dos náufragos fosse
mais prolongada. Ë de notar que Theal acentua que, durante a estadia, esses
homens não viram nem ouviram de Portugueses na baía. Ë estranho, também, que
entre as mercadorias negociadas, segundo Costa Mendes, não figure marfim, o
produto mais procurado e abundante neste comércio.
Em 2 de Abril de 1763, o novo capitão-general Silva
Barba despachou em missão à baía o tenente-coronel
António José de Melo, com o fim de firmar com os
régulos a garantia do monopólio comercial português.
Estava, então, já promulgada a obrigação de todos os
navios que viessem ao comércio dos portos irem,
primeiro, despachar à alfândega da ilha de Moçambique.
António José de Melo devia, pois, convencer os régulos
a só comerciarem com Portugueses; para sinal de que os
navios que ali chegassem haviam, realmente, sido
despachados em Moçambique, levariam passaportes
selados com as armas da real coroa de Portugal (e cujo
modelo António José de Melo mostraria aos régulos),
em duplicado, ficando uma via com o comandante, a
outra com o régulo.
Julgamos que António José de Melo não cumpriu essa
parte das instruções e teria sido esta (não a sua atitude
com os navios ingleses que encontrou no porto) a causa
da devassa que lhe foi instaurada (1). Realmente, no seu
relatório ao capitão-general, ele descreve a baía, dá conta
daqueles navios e do negócio que faziam, ajuíza do
interesse do comércio mas nada reporta acerca de
conversações com os régulos, as quais constituíam,
afinal, o próprio objecto da sua missão.
Não há dúvida de que, iniciado por Saldanha de
Albuquerque ou por Silva Barba, houve, então, certo
movimento entre Moçambique e Lourenço Marques.
Em 1764, surge um tal Domingos Jacinto Rosa, vindo
do Brasil «expressamente para o comércio de Lourenço
Marques» ( 2 ). Em 1768, porém, encontrou
(') Todavia, as testemunhas inquiridas referiram-se, apenas, às relações com o
navio inglês, como se fossem essas, só, o fim da inquirição.
( 2 ) Bordalo, Ensaios estatísticos, já citados.
99
os Ingleses estabelecidos, com uma paliçada, na baía e
desistiu da empresa ( 1 ).
Este incipiente movimento paralisou e o comércio
português com a baía esteve, de novo, interrompido
até 1779-1780, por motivo de oneração pautal imposta
por Baltasar Manuel Pereira do Lago, capitão-general
desde 1765 a 1779. Pereira do Lago estabeleceu em
20% os direitos sobre as mercadorias que saíssem de
Moçambique para Lourenço Marques — o que elevava a
40% a contribuição dos comerciantes, pois além dos
direitos de saída havia, ainda, os que incidiam sobre a
carga de retorno, os quais eram, também, de 20%
(isto não contando os que recaíam sobre a importação da
índia ou de Portugal: 1%).
Finado Pereira do Lago aos 3 de Agosto de 1779,
os negociantes representaram à junta governativa, em
22 de Novembro, advogando a necessidade de diminuição dos direitos. A junta concordou e os direitos
de saída caíram para 8%. Os negociantes reanimaram-se.
Em 1780, Vitorino José Garcia armou o seu navio
para Lourenço Marques. Era, todavia, tarde: os
Austríacos achavam-se já instalados na baía. Ainda
desta vez o esquecimento dos Portugueses tinha sido
motivo, como um século antes D. Rodrigo da Costa
advertira, para que estrangeiros tomassem posse do
cobiçado porto ( 2 ).
Aparece, então, Guilherme Bolts na perturbada cena
da baía de Lourenço Marques. Em 1779, o vice--rei
desempenha o seu papel na comédia preparada por
Martinho de Melo e Castro e, deixando Bolts sozinho
em cena, fica-se à espera, entre bastidores, de «ver se
(1) Bordalo, Ensaios'estatísticos, já citados.
(2) Um dos argumentos do protesto diplomático austríaco de 1782 era que
cinco anos tinham decorrido desde que Bolts adquirira as terras «aos príncipes
naturais do país», sem que, entretanto, a Corte de Lisboa tivesse formulado
qualquer reclamação.
100
os efeitos dos ditos estabelecimentos se desvaneciam».
Ao contrário, porém, e a despeito de que na índia
chegou a constar que o aventureiro inglês desistira, a
empresa de Trieste ganhou vulto. Os dois primeiros
carregamentos expedidos por Bolts animaram os seus
mandatários a mais amplos projectos. Em Lisboa, receouse. E, desta vez, o jogo foi forte e franco: o vice-rei
recebeu ordem categórica para mandar destruir a feitoria
austríaca. Em carta de 15 de Março de 1780, o ministro
expunha-lhe assim a situação: em Trieste, procurava-se
formar uma companhia real para o negócio da Ásia; «e se
os navios que dali se . expedirem acharem ainda em ser o
estabelecimento que o dito Bolts formou nos referidos
domínios portugueses, será mais difícil depois de os
lançar fora deles»; por isso ele, vice-rei, devia «não
perder tempo algum em executar as ordens de Sua
Majestade».
A expedição a Lourenço Marques saiu de Goa em 20
de Janeiro de 1781, a bordo da fragata de guerra Santa
Ana e S. Joaquim, comandada pelo capitão-de-mar-eguerra Nicolau Delgado Figueira da Cunha de Eça. A
tropa de desembarque, sob o comando do tenentecoronel Joaquim Vicente Godinho de Mira, compunha-se
de uma companhia de infantaria, outra da legião dos
voluntários reais e um destacamento de artilharia:
quarenta canhões (da fragata, fora as peças de campanha)
e quinhentos homens, segundo os Austríacos. O capitãogeneral de Moçambique deveria reforçar a expedição
com uma companhia de infantaria e fornecer à fragata
práticos da navegação da baía.
A Santa Ana entrou em Moçambique a 20 de Fevereiro. Não encontrou no capitão-general ( l ) mais que
(*) O cavaleiro de Malta frei José de Vasconcelos e Almeida. No relatório de
Godinho de Mira, impresso na Memória apresentada pelo Governo Português,
vem, erradamente, Francisco José de Vasconcelos.
101
«suma frouxidão», como relata Godinho de Mira, que
se queixa de que o governador “devendo dar-lhe providências lhe representou dúvidas e alegou faltas»: não
poderia fornecer-lhe mais de quarenta soldados; embarcação não havia, pois a única do Estado, uma
corveta, achava-se então em Quelimane aonde fora
buscar mantimentos; práticos também não havia...
A expedição esteve, assim, em riscos de «se desvanecer». Alguns dos oficiais, contudo, perseveraram em
entusiasmo e confiança. O capitão de infantaria Luís
Lopes Quaresma garantiu a Godinho de Mira que
haviam de ir à baía de Lourenço Marques, fosse pelo
canal, fosse por fora dele; e os capitães-tenentes. Gama
Almeida e Garcez Palha prontificaram-se a levar a
fragata ao porto, com as sondas na mão. Godinho de
Mira declara que a estes três oficiais, principalmente,
deveu o êxito da viagem de Moçambique a Lourenço
Marques. Por fim, desprezando o pouco auxílio que o
capitão-general anuia a dar-lhe, a expedição largou da
Ilha. Recebeu, em Inhambane, dois pilotos. E em 30
de Março entrou na baía, indo ancorar entre a
Príncipe Fernando, a pala austríaca ao serviço do
estabelecimento, e a bataria montada em terra.
Foi uma acção sem brilho! Os Austríacos, dizimados pela recente refrega com os Negros, não fizeram
um gesto de resistência (1). A guarnição de presa
instalou-se na Príncipe Fernando. Godinho de Mira
desembarcou com parte da tropa, entrou sem impedimento na feitoria e arriou a bandeira imperial. No
(') Em 23 de Fevereiro de 1782, o príncipe Kaunitz Rietberg instruiu o seu
ministro em Lisboa para traduzir ao governo português o protesto da Corte de
Viena. Essa instrução, bem como outras notas relativas à sua discussão, acham-se
na Memória apresentada pelo Governo Português.
102
dia seguinte, por entre uma salva real da bataria
austríaca, respondida pela Santa Ana e S. Joaquim, içouse a bandeira portuguesa. A artilharia foi desmontada e
remetida para a fragata, demolindo-se a obra de
fortificação.
Os dois navios de comércio, o falso português e o
inglês, que se achavam no porto foram vistoriados,
recebendo o último a intimação de sair dentro de oito
dias.
A Santa Ana demorou-se no fundeadouro até 23 de
Abril, prevenindo a eventualidade da chegada de algum
navio. Entretanto, Godinho de Mira negociou com os
régulos. O Matola, que era então o soberano das terras
do Tembe à Magaia, foi recebido, a bordo, na câmara do
comandante. Durante a conversação, “deu bastantes
provas de não ser muito selvagem» — e, ao vinho de
honra, discursou. Bem sabia terem sido os Portugueses
os primeiros que conquistaram aquelas terras; tinhamnas, porém, abandonado e havia muitos anos que não
mandavam ali navio a comerciar nem a levar-lhe
aqueles géneros de que ele e a sua gente precisavam; e,
por esse esquecimento, ele fora obrigado a tratar com os
Imperiais. Mas se os Portugueses tornavam a vir, com
eles só queria tratar, pois era irmão de Sua Majestade —
“à saúde de quem bebia com toda a veneração e
respeito». E bebeu, regiamente, enquanto reboava, solene,
uma salva de vinte e um tiros...
A 25 de Abril, a Santa Ana suspendeu e foi fundear
junto da ilha dos Portugueses. A 27, fez-se um desembarque na Inhaca. Juntou-se multidão de cafres e
apareceu o régulo, mal humorado, procurando convencer Godinho de Mira a não destruir as instalações
austríacas. O ambiente tornou-se tenso, carregado de
hostilidade e ameaça. Todavia, os indígenas não che103
garam a ousar o ataque e o fogo destruiu a casa e
armazém.
Durante esta operação, entrou o navio austríaco
Conde de Proli, capitão Tomaz Burton, no qual regressava de Bombaim André Daniel Pollet, o director
da feitoria, e Van Dorselaer que vinha residir no
estabelecimento como delegado da Companhia, sucedendo a Pollet na gerência. O capitão-tenente Garcez
Palha foi a seu bordo, intimando-os a apresentarem--se
na Santa Ana — uma carta, provavelmente de Pollet,
insinua que aquele oficial os atraiu à fragata portuguesa
à má fé, sob pretexto de lhes ser feita entrega do
Príncipe Fernando.
A 3 de Maio, finalmente, a expedição largou da baía,
rumo a Moçambique. A Santa Ana conduzia os
prisioneiros e na sua esteira navegavam os dois navios
austríacos apresados e o inglês que não cumprira a
intimação de abandonar o porto.
Ia vitoriosa... Mas mais uma vez os Portugueses,
deixavam a baía de Lourenço Marques desguarnecida, a
soberania nacional ilusoriamente fundada em compromissos dos régulos e exercendo-se pelo (de resto, só
pretenso) monopólio comercial. A reconquista era,
afinal, a restituição do antigo quadro da exploração
comercial da baía. O espírito de 500 e 600 sobrevivia
ainda, apesar das lições já sofridas, com a sua concepção
mercantilista do senhorio pela navegação e comércio.
De facto, em nenhum dos documentos que se conhecem encontramos o desígnio de ocupação. As instruções
a Godinho de Mira mandavam, simplesmente: destruir e
arrasar tudo que na baía houvesse de estabelecimentos e
fortificações; fazer reconhecer aos régulos que
incorreriam na indignação de Sua Majestade se
consentissem que nação alguma se estabelecesse
104
nos domínios da Coroa portuguesa ou fizesse comércio
nesta costa» O.
O próprio vice-rei, no entanto, sentia que estas
providências, por si sós, «ficariam frustâneas e inúteis
para o futuro». Por isso, tomava as precauções com que
acreditava consolidá-las. Ordenou ao governador de Diu
que persuadisse os negociantes dessa praça a desviarem,
anualmente, dos cinco navios que mandavam à Ilha de
Moçambique, dois ou um para o comércio da baía de
Lourenço Marques. Ao capitão-general de Moçambique
mandou que tentasse o mesmo junto dos negociantes da
Ilha e que, «muito principalmente», pusesse em guardacosta na baía uma embarcação armada em guerra, “para
impedir e defender às nações estrangeiras o comércio e a
usurpação dos reais domínios».
Triste e pobre eco, à distância de duzentos e setenta e
seis anos, da famosa recomendação do primeiro vice-rei da índia D. Francisco de Almeida: «Que toda a
vossa força seja no mar»! E não deixa de ser estranha
esta obstinação no esquema marítimo-mercantil como
expressão e garantia do domínio português na baía de
Lourenço Marques, quando já o espírito novo que
orientava a crescente expansão ultramarina europeia
-na África e na Ásia denunciava por irrito o direito de
«descoberta, navegação e comércio». Portugal invocaria e
advogaria ainda, nas contestações internacionais e nas
discussões entre chancelarias, as linhas
( 1 ) Alexandre Lobato diz que nas instruções ao governador de Moçambique o
vice-rei sugeria «que fosse construída uma feitoria e uma casa forte em Lourenço
Marques guarnecida com artilharia». Ë pena que Lobato não tenha publicado o
texto das instruções. No extracto, publicado por Paiva Manso, da carta para a
Corte, 20 de Janeiro de 1781, em que o, vice-rei resume as instruções que dera ao
governador, nada consta sobre tal sugestão.
105
puras desse direito (1) . Mas ele próprio vinha já articulando nos seus domínios o novo código... Em 1781, os
demais portos da costa haviam já sido guarnecidos:
Inhambane, ocupado em 1731; a ilha do Ibo, fortificada
em 1760; Tangalane, na boca dos Bons Sinais,
refortificada em 1753 e 1771. Apenas Lourenço
Marques se achava, ainda, desocupado.
O plano de D. Frederico Guilherme de Sousa aparece,
pois, como um anacronismo inválido — e sem dúvida
continha em si a frustração da reconquista de Lourenço
Marques. A expedição militar não teria sido mais que a
acção de despejo dum intruso — mas a casa lá ficava,
abandonada e de portas abertas, à mercê de qualquer
outro que quisesse abrigar-se nela. Aquele navio de
guarda da costa (navio que, de resto, a Capitania-Geral
não possuía) tinha alguma coisa de pueril — um naviobrinquedo que não resistiria ao balanço da maré
enchente da expansão europeia.
Valeu na emergência a determinação de Vicente
Caetano da Maia e Vasconcelos, governador interino de
Moçambique. Ele soube dar às instruções do vice-rei o
sentido que lhes faltava. Assumiu, voluntarioso, a
responsabilidade de ir além delas (posto que sempre
dizendo que a elas se conformava...). E deliberadamente arrancou a venda à cabra-cega daquele jogo que
as nações andavam a jogar na baía da Lagoa...
Este Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos foi
homem discricionário, turbulento e despótico, mãos
rotas ao lidar com a real fazenda, pouco de escrúpulos
para acrescentar o seu próprio cabedal. Acabou,
(*) Assim o fazia ante o protesto formulado pela Corte de Viena contra a
supressão violenta do estabelecimento em Lourenço Marques, respondendo com
esse direito ao argumento de que o estabelecimento fora «fundado num país
abandonado de toda a nação europeia e no qual não existia nenhum vestígio de
dominação portuguesa».
106
alguns anos mais tarde, por ser remetido para Lisboa, a
ferros... Mas aos homens se deve aplicar também o que
Péguy disse das doutrinas filosóficas: «uma grande
filosofia não é aquela contra a qual nada haja a dizer,
mas aquela que tenha dito alguma coisa».
Vicente Caetano fez alguma coisa que os outros, antes
dele, não tinham feito e que talvez nenhum outro, depois
dele, poderia já fazer — alguma coisa que permitiu que
Lourenço Marques ficasse portuguesa. Criou e mandou
estabelecer o presídio de Lourenço Marques (1) e assim
assentou, realmente, o domínio português na tão
disputada baía e suas terras.
O seu nome está injustamente esquecido, ignorado
nesta cidade de que ele foi, afinal, o fundador.
As palavras que aqui escrevemos não bastam, sabemo-lo bem, à reparação que lhe é devida. Mas, assim
mesmo, devotamente depomos ante a sua memória este
livrinho, como um ex-voto de lembrança e gratidão.
(') A palavra presidio é, vulgarmente, mal entendida. Significava a força
militar que guarnecia uma fortaleza. Por extensão, designava a própria fortaleza,
a localidade onde ela se achava, e, mais tarde, foi o título duma jurisdição
administrativa.
107
1782-1800
FUNDAÇÃO
O capitão-general Frei José de Vasconcelos e Almeida finouse aos 7 de Maio de 1781. «De uma indigestão por
coagulação», diz Costa Mendes. E o irreverente Nogueira de
Andrade comenta: «A sua morte, por arrebatada, foi atribuída a
veneno propinado, mas os peritos lhe chamaram Mordaxim que
é uma cólica de indigestão, prima irmã da apoplexia: com
efeito, ele comia muito e a todos os carrilhos; as pragas voaram
de contínuo, alguma chegou ao céu» (').
Paz à sua alma.
Sucedera-lhe, como governador interino, Vicente Caetano da
Maia e Vasconcelos, que, eleito pela Câmara, tomara posse em
8 de Maio. A 15, chegou a Moçambique, de caminho para Goa,
a expedição de Godinho de Mira, com a feliz notícia da
expulsão dos Austríacos. E Vicente Caetano, «porque já não
existiam obstáculos, deliberou fundar em Lourenço Marques
um presídio» (2).
Ë de crer, no entanto, que alguma coisa estava já, antes da
chegada da expedição e na previsão de esta ser bem sucedida,
premeditada a tal respeito. Na verdade, no próprio dia em que a
expedição chegou, 15 de Maio, o provedor-mor da Real
Fazenda
(') Em Breve notícia da guerra do Itoculo — veja-se Documentos, 5.°, Nota.
(2) Costa Mendes, Catálogo.
111
e juiz-tesoureiro da Alfândega, António Caetano Pinto,
apresentou ao governador uma exposição em que se
contém já o esquema do plano, que depois viria a
realizar-se, da organização do estabelecimento em
Lourenço Marques: exploração comercial apoiada por
uma força militar e compra, pela Fazenda, de um navio
que pertencera ao finado Silvestre Álvares de Moura e
estava em leilão, para ser posto ao serviço do comércio
da baía.
Seria esta representação do livre alvedrio de Caetano
Pinto? Seria combinada por Vicente Caetano que assim
procurava, burocràticamente, uma cobertura oficial para
o que ia fazer? Seria encomendada por conluio de
negociantes, com vista a apoderarem-se do comércio de
Lourenço Marques?
Não sabemos. Vicente Caetano despachou a representação ao procurador da Coroa, para dar parecer. O
procurador, Tomás Pedro Eangel, irmão de um dos
principais negociantes da Ilha, logo no dia seguinte
emitiu a sua douta opinião. Era concorde e até reforçadora no sentido do monopólio comercial C).
Assim, em 22 de Maio comprou-se a corveta de
Álvares de Moura. Este homem, negociante, arribara
tempo antes a Quelimane, vindo das Maurícias, e aí
falecera. A corveta, longa e devotamente denominada
Santíssima Trindade, S. João Climaco e Almas, foi
arrolada com os demais bens do falecido e levada para
Moçambique, a fim de ser vendida em hasta pública.
Em ofício de 19 de Agosto, ao ministro da marinha,
Vicente Caetano informava ter adquirido a corveta «pelo
cómodo preço de 16:000 cruzados, ainda que por não ter
massame se devesse gastar com ela mais
(*) Para mais pormenores sobre os dois documentos, veja-se A. Lobato,
obra citada.
112
8:000 cruzados». Se Sua Majestade não sancionasse essa
despesa, ele, Vicente Caetano, reembolsaria a fazenda
real e ficaria com a corveta. Mas (alegava) fizera a
compra com este propósito: despachar a corveta para
Lourenço Marques, com carga de mercadores e sessenta
homens de tropa com ofícios competentes, um feitor, um
comandante e todos os petrechos que a guarnição da Ilha
pudesse dispensar; estabelecer ali feitoria, com trincheira
e casa forte; organizar uma carreira semestral com
embarcações da praça de Moçambique.
Em 8 de Novembro, Vicente Caetano tornou público,
por um bando, o gosto que Sua Majestade fazia em
estabelecer e conservar o comércio de Lourenço
Marques e convocou uma junta dos homens de negócios,
os quais animou a constituírem-se em sociedade para a
exploração daquele comércio. E que tudo isto já estava
combinado mostra-o o facto de logo seis dias depois, a
14, um grupo de doze negociantes (seis europeus e seis
baneanesO) apresentarem um longo requerimento de
concessão do comércio de Lourenço Marques por seis
anos, documento que levava apenso o projecto dos
estatutos, com vinte e três artigos ( 2 ). De novo foi pedido
parecer ao procurador da Coroa. A sua única observação
interessante é a de que, embora aprovando o monopólio,
entendia que nele deviam ser admitidas todas as pessoas
que o quisessem. Publicou-se, sobre isto, um bando mas
só dois negociantes mais se interessaram em entrar na
sociedade.
(') A. Lobato dá a lista dos nomes desses negociantes, entre os quais se
contavam Joaquim de Araújo, que seria o primeiro governador do presídio, o
tesoureiro da Fazenda, o juiz e tesoureiro da Alfândega e o escrivão da Junta da
Fazenda.
(z) A. Lobato sumaria-os no seu livro. Adiante recolheremos, desse sumário, o
que mais interessa sobre o regime do comércio na baía.
113
Esta constituiu-se assim, com catorze sócios e um
capital de 60:000 cruzados.
Finalmente, em 25 de Novembro, Vicente Caetano
nomeou o primeiro «capitão-rnor e governador para a
baía de Lourenço Marques e seus adjacentes» e deu-lhe as instruções por que deveria reger-se, instruções
que constituem a primeira carta orgânica — política,
administrativa e económica — da baía e terras de
Lourenço Marques O.
Politicamente, a dominação portuguesa era assente
em dois núcleos de ocupação: um na Inhaca, com casa
forte e quartéis para um destacamento de trinta homens;
o outro na margem norte, em frente ao fundeadouro,
com a fortaleza-feitoria — uma bataria de peças
protegida por estacada. O governador deveria,
imediatamente, arvorar nela a bandeira e «pôr todo o
cuidado, para que as mais nações vejam a posse que nós
temos com justo título».
Com os estrangeiros, adoptar-se-iam sempre os «termos mais prudentes e seguros que fossem possíveis».
Navios de outras nações que entrassem no porto para
refresco receberiam toda a hospitalidade. Mas ser-lhes-ia «exactissimamente» proibido o comércio. Se
alguma desobedecesse e praticasse atentado contra a
«nossa propriedade», o governador opor-se-ia, «até onde
chegassem as nossas forças». Em face de um inimigo de
maior força lavraria e remeter-lhe-ia um protesto
formal, «mostrando-se sempre com ar dominante,
favorecido das ordens que o governador geral lhe havia
dado».
Sobre os indígenas, o estabelecimento não exercia
qualquer jurisdição política ou administrativa. No
espírito da época, o conceito de ocupação e de posse
(')
114
Em Documentos, 4.°, damos o texto completo do regimento.
não se elaborava, ainda, das ideias de domínio territorial
e sujeição política dos povos indígenas. Traduzia já uma
evolução da fase marítimo-mercantil com que se iniciara
a expansão europeia, mas era, ainda, do seu espírito que
se inspirava. A ocupação não significava mais que um
título e uma defesa contra a concorrência de outras
nações e realmente não exprimia mais que senhorio ou
privilégio comercial — uma espécie de alvará de
propriedade industrial. As fortalezas-feitorias eram
instituições extra-territoriais. Em face delas, os chefes
indígenas conservavam o seu estatuto, guardavam todo o
seu poder e prerrogativas. E em vez de ser o indígena a
pagar mussoco, era o Branco que pagava saguate, curva,
binro — impostos devidos aos régulos pela licença de
transitar nas suas terras, subir os seus rios e traficar com
a sua gente.
Assim, o regimento limitava-se a definir a atitude a
manter nas relações com os indígenas. O governador
deveria velar por que nenhuma pessoa sob o seu
comando lhes fizesse violência, «salvo se eles quisessem
roubar ou insultar os portugueses, porque nesse caso
seria natural defesa». Não consentiria que os soldados
andassem dispersos pelo interior; quando houvessem de
ir procurar mantimentos, iriam sob comando de um
sargento e municiados, com expressas recomendações de
não provocarem desordem. Na regulação dos preços do
comércio, o governador procederia “de sorte que nunca
os Cafres ficassem enganados”.
A ocupação económica da baía era planeada ainda
pêlos moldes puros do mercantilismo: exploração
comercial pela companhia estabelecida em Moçambique,
a qual se obrigava a sustentar a exploração durante seis
anos, em carreira pelo menos semestral, podendo a
concessão renovar-se por outros seis anos. O monopólio
incidia sobre o marfim, as pontas de
115
abada e dentes de cavalo marinho. Os demais géneros
ficavam livres a favor da tropa, oficiais e marinhagem
e, mesmo, os oficiais podiam converter os soldos nos
produtos do monopólio, vendendo depois estes à
Sociedade, com o lucro de dez cruzados.
Mais tarde, 1783, já em tempo do general Pedro de
Saldanha de Albuquerque, também o âmbar foi
declarado contrato régio.
A Sociedade gozava, ainda, do exclusivo de fornecimento de fazendas ao Estado, para os pagamentos à
guarnição do presídio, e pagaria à Fazenda, anualmente, dois mil cruzados para as «obras reais» a fazer
na baía.
O capítulo 7.° do regimento dado por Vicente Caetano
ao governador de Lourenço Marques preceituava :
«No caso que dos portos do norte venha alguma
embarcação a comerciar, de forma nenhuma v. m.ce o
consentirá, e fará vir a esta capital a pagar os direitos a
Sua Majestade, por ter já mandado dizer ao governador da índia que não mandasse navio para aquele
porto com fazendas, por estar o comércio dependente
de uma sociedade desta capital.»
O tráfico regular-se-ia sobre a base de 40 panos por
arroba de marfim grosso, proporcionando-se a este
preço os das demais mercadorias: marfim meão e
miúdo, cera, pontas de abada e dentes de cavalo
marinho. Se, todavia, os indígenas estivessem acostumados a outros valores, o governador reajustaria aqueles
preços, de harmonia com o que a sociedade
exploradora alvitrasse e «considerando a utilidade para
os mercadores da praça de Moçambique e os direitos
de Sua Majestade» — e também, como já vimos, «que
nunca os Cafres ficassem enganados».
Assim Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos
116
criava, de sua iniciativa e diligência, as bases para o
estabelecimento da verdadeira soberania portuguesa na
baía e terras de Lourenço Marques, lavrando o «justo
título» da posse portuguesa. Um ponto do seu plano
merece ser especialmente notado: a ocupação da Inhaca.
Vicente Caetano atribuía-lhe tanta importância que a
recomendava ao governador nos seguintes termos:
«(estabelecimento este para o que vossa mercê deve
aplicar todas as forças». Tinha razão. A ilha era, à época,
uma posição melindrosa, se não mesmo a posição-chave
do domínio da baía. Um inimigo postado nela, à boca da
barra, poderia invalidar, isolando-a, a fortaleza metida
no fundo do saco. E o comércio do continente do Tembe
e do Maputo podia esgueirar-se por ela,
clandestinamente, a salvo das vistas da fortaleza tapada
pela Ponta Vermelha.
Parece, todavia, que o regimento não foi, neste
capítulo, cumprido — nem a inspiração de Vicente
Caetano compreendida até que a façanha do capitão
Bickford, em 1861, veio ilustrá-la cruamente. Se a par
da ocupação da margem norte se tivesse mantido
permanentemente guarnecida a, Inhaca, é muito provável que se tivesse barrado o curso dos acontecimentos
na segunda metade do século XIX. Mas, como tantas
vezes tem sucedido, foi depois da casa assaltada que se
meteram trancas à porta...
Os preparativos da expedição de ocupação de Lourenço Marques — reparações e aparelhamento da corveta, armação pela companhia do comércio, reunião do
destacamento — prolongaram-se de Agosto a Dezembro
de 1781. E, finalmente, nos princípios de Janeiro de
1782, largou da Ilha capital, a bordo da Santíssima
Trindade, a expedição que vinha assentar
117
a soberania de Portugal na cobiçada baía de Lourenço
Marques.
Chefiava-a Joaquim de Araújo, o primeiro governador e capitão-mor português da baía e suas terras.
Natural de Lisboa, Campolide, nascera em 1726 e
viera para a costa oriental de África em 1748, terceiropiloto do iate S. Francisco Xavier. Fez várias viagens
entre os portos da costa e subiu até capitão-tenente da
Armada. Em Julho de 1779 recebeu o hábito de Cristo.
Casou e estabeleceu-se em Moçambique — e o general
Saldanha de Albuquerque, que se lisonjeou de ter
contribuído para isso, diz que Araújo serviu com muita
honra e muito préstimo e em 1755 enviou-o a
Inhambane, «(encarregado do socorro de gente e
munições com que mandou socorrer aquela Colónia e
seu Presídio, contra os mouros da terra que
pretenderam surpreendê-la e roubá-la». De 1777 a
1780, Araújo foi feitor da Real Fazenda em Inhambane
e também governador e capitão-mor.
A expedição compunha-se de um estado maior (o
governador, o capelão, o cirurgião "e um ajudante
deste), dois oficiais e quarenta e seis sargentos e
praças de infantaria, um oficial e sete praças de artilharia. Total: 60 homens.
Uma memória, de que adiante muito falaremos,
escrita em 1784 pelo capelão da expedição, fala de 130
homens. Este número afigura-se excessivamente forte
para a época. Nenhuma outra guarnição, à parte a da
capital, ia além de metade dessa força. Contudo, é de
notar que numa descrição anónima da baía, publicada por
Paiva Manso e posterior a 1785, se apresenta o presídio
numerando, no tempo em que o autor nele servia
também, 170 homens e mais tarde (à data em que o
autor escrevia, certamente em Lisboa, a sua descrição)
200 homens.
118
Paiva Manso atribuiu a autoria da descrição a um
comandante do presídio, não sabemos se baseado em
qualquer outro dado além desta frase do manuscrito:
«(fortaleza que teve em meu poder 170 homens de
guarnição» — frase que, todavia, não é bastante para
autorizar aquela afirmação. Alexandre Lobato foi de
parecer, não nos recorda onde, do autor ser também frei
Francisco de Santa Teresa, o capelão da expedição.
Realmente, as coincidências da descrição com aquela
memória e a circunstância dela ser dirigida ao prelado de
Moçambique, D. Fr. Amaro José de São Tomás, tornam
difícil discordar desse parecer. Se assim é, a diferença,
entre um e outro documento, do efectivo do presídio no
tempo do autor explica-se deste modo: 130, o
destacamento inicial mandado por Vicente Caetano;
170, esse destacamento acrescido do reforço de «um
bom número de soldados» enviado pelo general
Saldanha de Albuquerque ( 1 ).
Em todo o caso, insistimos na suspeita de exagero. O
número englobará soldados e marinheiros, tripulantes do
navio — e, mesmo assim, ainda parece elevado.
A expedição deveria ter chegado à baía em fins de
Janeiro, princípios de Fevereiro de 1782. O que primeiro
lhe cumpria, pelo regimento, era deixar na Inhaca o
capitão Belchior e o alferes Francisco Mourão, com trinta
homens e tudo o necessário para construção da feitoria e
quartéis. Mas o capitão Belchior não veio, porque,
estando de guarnição em Inhambane, não pudera
embarcar, pois um temporal impedira a corveta de entrar
no porto. Assim, mas
(') Quanto ao ulterior efectivo de 200 homens, refere-se já à reocupação do
presídio e adiante nos ocuparemos dele.
119
a razão não era decisiva, este importante ponto do plano
de Vicente Caetano não foi cumprido.
O único documento conhecido que nos dá algumas
informações sobre o estabelecimento do presídio e sua
vida até Junho de 1783 é o Plano e Relação, escrito em
Lisboa, ano de 1784, por frei Francisco de Santa Teresa,
carmelita, «capelão da tropa que por ordem de Sua
Majestade veio apostar-se e aquartelar-se em
destacamento na passagem propriamente chamada Baía
da Lagoa» (1). E um documento precioso, não só por ser
único mas, ainda, pelo pitoresco da narração. Tem,
todavia, um erro notório e parece-nos, noutros pontos,
suspeito.
O erro notório (o manuscrito que se possui é uma
cópia) é o da data inaugural do presídio, apresentada
como «19 de Abril de 1781, dia de S. José». Ora. o ano
não pode ser senão 1782 (o que se verificava, ainda que
outros dados não houvesse, do estudo atento da
memória). Mas, quanto ao mês, fica-se na dúvida: o dia
de S. José é o 19 de Março. Continuamos, assim, sem
saber a data precisa da fundação de Lourenço Marques.
O carmelita alongou-se muito em descrever as terras,
gente e produções, conta histórias dos pretos — mas,
quanto ao que mais interessava, foi avaro de
informações.
Segundo ele, o Matola recebeu jubilosamente os
Portugueses. Chamava-lhes filhos. Cedeu terras para o
estabelecimento e proclamou livre nos seus domínios o
trânsito de Portugueses, com recomendação de que
ninguém da sua gente ousasse maltratá-los «com ferro
( J ) Veja-se Documentos, 2.° Para a identificação do carmelita veja-se Lobato,
obra citada. Acrescentaremos que em Dezembro de 1780 era capitão-mor e
comandante das Terras Firmes um Francisco de Santa Teresa que é, sem dúvida, o
mesmo homem.
120
ou azagaia». Como já tivemos oportunidade de dizer, o
Matola era então o soberano das terras da baía. desde o
Espírito Santo (Umbelúzi) às margens do Incomáti,
compreendendo a Cherinda, a entestar com os reinos do
Magaia e do Manhiça.
O presídio foi estabelecido no lugar onde fora a
feitoria holandesa. E, finalmente, aos «19 de Abril de
1782, dia de S. José», por entre «o contentamento geral
fez o governador Joaquim de Araújo arvorar a bandeira,
estando estabelecido o conveniente reduto e apontados
os nossos canhões».
Assim nascia, num pobre e tosco berço de faxina,
terra e capim, a cidade de Lourenço Marques!... Mas
logo à nascença se lhe anunciou a má sina que faria da
sua história, ao longo de um século, um torturado,
desesperado e heróico esforço de tenacidade ante a
desgraça, de perseverança na sustentação.
A 12 de Maio, das oito para as nove da noite, pegou o
fogo no estabelecimento. A gente salvou-se, mas os
bens perderam-se, «sem se poder preservar coisa alguma, porque o tempo, a atmosfera, a palha que fazia o
telhado, tudo fazia rápido o incêndio».
Refizeram-se as instalações. Mas, a 6 de Julho, novo
desastre: o governador Joaquim de Araújo morreu
bidrópico. Assumiu o governo o tenente Manuel António, comandante do destacamento. «E tudo ia bem»,
diz o carmelita. Cedo, todavia, começaram a pronunciar-se atritos com os régulos menores, numerosos de
mais para que a feitoria, empobrecida pelo incêndio,
pudesse presenteá-los todos condignamente. Em represália, eles proibiam à sua gente ir vender mantimentos
ao presídio. Sempre que se levantava um destes
müandos, era traduzido ao Matola que “instantaneamente fazia remover o impedimento, certificando aos
Portugueses as suas favoráveis providências».
121
Inclinamo-nos a que fr. Francisco mostra, neste passo,
cândida credulidade — de resto, em toda a sua relação se
afirma uma disposição de tanta simpatia pêlos indígenas,
em especial os régulos, que passa as raias últimas da
ingenuidade... Seria bem mais verosímil que o Matola se
limitasse a aparências de intervenção, dissimulando e
fazendo aquele jogo de duplicidade que tantas vezes
encontramos na história das relações com os indígenas.
Brancos com poucas fazendas e mesquinhos no saguate
não deviam interessá-lo muito.
Este ponto tem sua importância, pois muito provavelmente esses atritos, agravados pela indisciplina da
tropa, fonte tradicional de conflitos com os indígenas,
são um prelúdio dos acontecimentos que levarão o
tenente João Henriques de Almeida ao acto desesperado
de abandono do presídio.
Entretanto, chegava a Moçambique a notícia de que o
governador Joaquim de Araújo estava moribundo e de
que havia «falta de obediência» na soldadesca. Pedro de
Saldanha de Albuquerque tinha assumido, pela segunda
vez, o governo da Capitania-Geral e deu prontas
providências. Em Novembro de 1782, foi enviado para
Lourenço Marques um contingente de trinta homens.
Comandava-os o tenente João Henriques de Almeida,
com ordem de assumir o governo do presídio, no caso de
falecimento de Joaquim de Araújo. Foi o que sucedeu.
Frei Francisco de Santa Teresa dá-nos do novo
governador um retrato cruel:
“O nosso governador chegou ao sítio e, estufado com
o seu com andamento, fez ordens, descompondo e
maltratando aos chefes, com ameaças e demasiada
altivez, e da mesma forma, tendo em menoscabo aos reis
do continente. Temendo-se de algumas conse-
quências funestas, se encheu de medo, estando sempre a
bordo da embarcação. Fez ultimamente desembarcar a
tropa, desalojou o presídio, recolheu os canhões e fez
viagem para a capital de Moçambique, persuadindo a
todos que tinha ordem para o retrocesso.»• Noutro passo
da relação, dá, ainda, uns retoques neste retrato: o
tenente Almeida «não tinha docilidade alguma de génio e
era falto de sobriedade nas bebidas». E põe na boca do
Matola a afirmação de que o governador era «altanado e
bravo».
A causa imediata, no entanto, do rompimento com o
Matola foi uma questão de aguardente, «a que chamam
cachaça, vinda da América». Um dia, o Matola foi
visitar o governador. Pediu-lhe alguns panos e contas —
para, por sua vez, presentear um «príncipe seu
confederado». Pediu, também, alguma cachaça — e foi
tratando de duplicar o pedido, em procuração do «Grão
C a x a » ( ' ) . O governador enfureceu-se, desatou aos
gritos: não dava nada!... Por fim, mandou vir três
frascos de cachaça.
O demónio foi, porém, que a cachaça era dezenxavida, «muito toldada de água pura misturada». Bom
conhecedor (o frade diz, candidamente, que por ser ele
muito sensato), o Matola logo percebeu a trapacice. E,
como era justo, formalizou-se. Exprobou ao governador
que não devia fazer-lhe tanto desacato. Dissesse-lhe
antes que não queria ou não podia fazer-lhe aquele
mimo, do que romper em gritarias, as quais seriam mal
interpretadas pelos seus ou pelos nossos. Dava-se por
muito ofendido. E o governador devia não esquecer que
estava nas suas terras e que ele, Matola, bem podia, se
quisesse, mandá-lo atravessar de uma azagaia por um
dos seus vassalos.
E, tendo dito, retirou-se.
(')
122
O régulo dos Cossas, no médio Incomáti,
123
O governador pediu a frei Francisco que interviesse e
negociasse a reconciliação. Houve conferências «e
passagens de boa amizade». Matola, bon enfant, dispôs-se
a transigir. Mas nada do que o frade propôs ao
governador «teve alçada para suspender o seu destino».
O tenente João Henriques de Almeida abandonou o
presídio.
A notícia desta resolução, di-lo o carmelita, causou
imenso alvoroço nos indígenas. Os régulos grandes
Matola, Tembe, Mavote (Mabota) enviaram embaixadores e comissários, tentando persuadir o governador
a ficar. Ofereceram-lhe tanta terra quanta quisesse, a
restituição dos saguates recebidas e as maiores
facilidades. Mas nada teve alçada para suspender o seu
destino...
Em toda esta história, francamente suspeitamos frei
Francisco de parcialidade a favor do Matola — que,
positivamente, encantava o carmelita com as sua
inclinações religiosas, a sua devoção à missa, a sua
ânsia de iluminação nos mistérios do cristianismo. ..
O tenente João Henriques encontrara uma atmosfera
de tempestade iminente. Quis dominar a indisciplina da
tropa e vencer a hostilidade dissimulada, a resistência
passiva dos régulos. Isso era, justamente, o que lhe
cumpria fazer — mas haviam escolhido mal o homem
para a função... João Henriques seria, naturalmente,
muito mais soldado que político — e isto, quanto a nós,
é um ponto a seu favor... O seu génio não era
afeiçoado às subtilezas e hipocrisias da política.
Pretendeu agir pela autoridade ríspida — sem
considerar que lhe faltavam instituições e forças em
que se apoiasse.
Não procuramos, com estas palavras, reabilitá-lo.
Quanto mais ele fosse, realmente, soldado — menos
perdão se lhe poderia conceder. Tentamos, apenas,
compreendê-lo...
Ao chegar a Moçambique, o tenente João Henriques
de Almeida foi preso, julgado em conselho de guerra e
expulso do exército. Assim devia ser.
Em Junho de 1783, a baía de Lourenço Marques,
ficava novamente abandonada dos Portugueses, após
uma ocupação que não durara mais de quinze meses.
Da vida do estabelecimento sabemos ainda alguma
coisa, além do que ficou dito.
Frei Francisco deixou-nos uma animada e fresca
ilustração da fartura da terra e da feira que quase todos
os dias se fazia junto do presídio. Não se cansa de
louvar a abundância e bondade dos mantimentos. Tudo
era farto, saboroso e excelentíssimo — hortaliças,
legumes, «fruta de regalo», vaca, capado e chibarro,
peixe. As galinhas eram «grandes» — coisa que. hoje
nos surpreende, ao olharmos as pequenas galinhas
landinas... Custavam, cada uma, palmo e meio de pano
preto. E todos os meses o destacamento sacrificava
mais de setecentas. Às vezes, âmbar e marfim
andavam, pela feira, a granel — um arrátel por duas
peças de pano, mas nem mesmo assim achavam comprador.
Outra colorida imagem que devemos ao carmelita é a
dos primeiros passos da evangelização dos povos da
baía de Lourenço Marques. Frei Francisco de Santa
Teresa foi o seu pioneiro e teve a grata consolação de
se iludir bastante até acreditar esta genti-1 idade
conquista fácil para o rebanho do Senhor. Aos seus
olhos, o régulo Matola aparecia como campo eleito para
a sementeira do Cristo. Sempre que chegava pela
manhã ao presídio, Matola «assistia com
124
125
toda a devoção ao incruento sacrifício da missa, persuadindo aos seus que praticassem o mesmo culto,
postos todos de joelhos». Queria missa nas suas terras.
Tinha com o frade «sisudas conferências» sobre a doutrina e muitas vezes, no meio dos seus grandes, lhe pedia
que explicasse a criação do mundo e a do primeiro
homem, a Queda, a vinda do Filho de Deus à terra, a
Encarnação do divino verbo... No seu desvanecimento
por este discípulo, o frade observava (e, desta feita,
muito judiciosamente): «Era inexplicável a sua
consolação com a minha companhia». Pobre e caro frei
Francisco de Santa Teresa! A semente que tão beata e
perdulàriamerite semeavas não germinaria — e hoje
ainda, a quase dois séculos de vista, a seara do Senhor
nestes sertões é enfezada e mísera!...
Os inícios do comércio foram infelizes, se não,
mesmo, desastrosos. A companhia sofreu, certamente,
perda grossa no incêndio da feitoria, embora parte do
carregamento se mantivesse a bordo. Encontrou o
mercado assente, pêlos Ingleses e Imperiais, em preços
para ela difíceis (80 panos a arroba, a comparar com
os 40 que a sociedade se propunha pagar), dada a
oneração com que as fazendas lhe chegavam. Tinha,
pois, de perder «de seu cabedal e capital» ( 1 ).
Estamos, agora, outra vez na incerteza do que
sucedeu. Pedro de Saldanha de Albuquerque, pouco
depois de assumir o governo da Capitania, que foi em
21 de Agosto de 1782, promoveu constituição de uma
grande corporação comercial, favorecida com o
(') Nogueira de Andrade, Documentos, 3.° Segundo a carta de quitação de
Joaquim de Araújo, o pano valia 500 réis e a arroba de marfim .56 cruzados.
126
monopólio de algumas espécies ( 1 ). Certas das poucas
notícias que temos sobre o assunto sugerem que esta
corporação substituiu ou sucedeu, na exploração
comercial da baía de Lourenço Marques, à companhia
organizada por Vicente Caetano. Assim, o general
António Manuel de Melo e Castro, escrevendo para a
Corte em 15 de Agosto de 1786, descrevia a lastimosa
condição em que o estabelecimento de Lourenço
Marques se achava, «apesar das despesas feitas pelo
Estado e pelas duas companhias, a de Caetano da Maia e
a de Pedro de Saldanha de Albuquerque». Por sua vez,
Nogueira de Andrade, em 1789, dizia que o comércio
moçambicano nada lucrara com o estabelecimento em
Lourenço Marques, «pois uma companhia formada para
este mesmo fim, perdeu de seu cabedal e capital; e a
corporação que lhe sucedeu nada ganhou».
Todavia, o volume de capital da companhia de Saldanha de Albuquerque, 900:000 cruzados, e a importância da avença dos direitos alfandegários a que ela se
obrigava, 165:000 cruzados anuais, indicam que a sua
jurisdição não se limitava ao porto de Lourenço
Marques mas abrangia o comércio de todos os portos.
Qual ficaria sendo, então, a condição da primeira
sociedade em face desta outra?
Um documento de 1785, que adiante identificaremos,
sugere, por seu turno, que naquele ano a exploração do
comércio de Lourenço Marques era objecto
(') O capital da corporação era de 900:000 cruzados, em acções de 400:000
réis. Os sócios deveriam ser, na maioria, negociantes portugueses — quando
muito, quinze baneanes. A companhia obrigava-se a satisfazer a renda anual de
165:000 cruzados, média das receitas alfandegárias nos últimos três anos. Como a
questão excedia a alçada do capitão-general, Pedro de Saldanha de Albuquerque
garantiu à companhia o contrato por dois anos, tempo provável da demora do
despacho final da Coroa. Segundo Bordalo (Ensais, etc.) a companhia dissolveuse em 1785, por a Coroa não a ter sancionado. Teixeira Botelho (História Militar e
Política, etc.), diz que a companhia se extinguiu em 1787, «talvez por lhe faltar o
amparo do seu fundador e talvez também por ferir muitos interesses».
127
de empresa a ela particularmente dedicada. É, pelo
menos, o que julgamos dever deduzir-se da frase: «os
sócios daquela [de Lourenço Marques] negociação». O
prazo da concessão à sociedade constituída em 1781 não
terminara ainda.
Assim, se essa sociedade mantinha os seus privilégios, como veio a outra companhia sobrepor-se-lhe ou
concorrer com ela?
A resposta a estas perguntas só pode ser dada quando
novos documentos dos arquivos metropolitanos forem
trazidos à publicidade.
Da actividade comercial na baía não possuímos mais
que vagas informações. Segundo frei Francisco, no rio
do Maputo o comércio estava paralisado, em
consequência de guerras tribais. «Os nossos não ousavam ir traficar com ele [povo do rio do Maputo], para
evitar que, sendo roubados, não se soubesse quais eram
os agressores, não podendo, por essa desculpa, ser
castigados». Junto do Capela, régulo do Tembe, a
companhia tinha um comissário. De três em três meses,
o régulo vinha jantar a bordo dos navios ancorados na
vizinhança das margens das suas terras.
Esta informação de frei Francisco é muito interessante, pois faz-nos entrever uma frequência da baía mais
animada do que o seria com, simplesmente, um navio
semestral da sociedade exploradora. Noutro passo, o
carmelita, depois de exaltar o valor comercial dos dois
rios, Maputo e Incomáti, diz que «todos os anos tinham
de contínuo seis ou sete embarcações a tomar carga de
marfim, pontas de abada, dentes de cavalo marinho,
escravos apreendidos em guerras entre eles, âmbar, ouro,
cobre e outras úteis produções». Mas este passo deve,
antes, referir-se a período anterior ao estabelecimento
português: os seis ou sete navios seriam, pois,
estrangeiros.
128
Na descrição anónima a que já nos referimos, conta-se que todos os meses saíam da feitoria duas ou três
embarcações, carregadas de pano preto, missanga e
velório, as quais subiam o Incomáti até o «Grão Caxa»
— ou seja: até Xinavane - Magude, provavelmente.
Mavote, régulo da Magaia, à boca do rio, beneficiava
deste movimento, cobrando saguate dos navios que ali
iam fundear e das embarcações que subiam o rio.
Mavote e Matumbane admitiam, também, nas suas
povoações, comissários ou agentes de compras da companhia, prática que fora iniciada pêlos Ingleses, ao que
se julga. No «Grão Caxa», seguia-se o velho sistema das
feiras: a gente das embarcações regressava toda à
feitoria, uma vez acabadas as transacções.
Frei Francisco dá-nos, ainda, a fechar a sua relação,
uma enumeração especificada das mercadorias de
compra: várias qualidades de panos, ritatlas, missanga,
velório e aguardente do Rio, Baía e Pernambuco.
Os estrangeiros, por sua vez, não esqueciam a baía de
Lourenço Marques, as «grandes utilidades» que tiravam
delas. Em Março de 1783, a companhia queixava-se ao
general (1) das suas diligências. O navio que em fins de
Junho ou por Julho de 1782 chegara à baía trazia capitão
português e passaporte emitido em Goa a favor de um
tal António Pereira. Fora, porém, armado em Bombaim
e vinha «governado» pelo inglês Tomaz Burton que
havia estado ao serviço dos Austríacos. Joaquim de
Araújo, então já gravemente doente, não o autorizou a
negociar. O navio seguiu para Moçambique, onde Burton
faleceu, encontrando-se-lhe no espólio uma carta de
Bolts.
Nos princípios daquele ano de 1783, era já a ter(')
O documento vem na Segunda Memória do Governo Português.
129
ceira vez que o mesmo navio aparecia em Lourenço
Marques, sempre com passaporte português mas armado
em Bombaim. A companhia denunciava que António
Pereira era useiro e vezeiro naquele papel de encobridor
de estrangeiros, bem como Miguel de Lima e Sousa,
português mas residente em Bombaim e procurador de
Bolts.
É muito provável, também, que já então, se é que não
de data mais remota, frequentariam a baía baleeiros
ingleses e americanos, posto que só em 1789 se encontre
notícia oficial deles.
Tais foram os princípios da povoação portuguesa na
baía de Lourenço Marques. Quinze meses decorridos, o
tenente João Henriques de Almeida, «com frívolos
pretextos» como dizia o conselho governativo, arriou a
bandeira, desmontou as peças, deitou abaixo a estacada,
fez embarcar toda a gente e desertou para Moçambique.
Nenhum sinal ficava para que as outras nações vissem o
((justo título» da posse que Portugal tinha destas terras e
rios e seu comércio.
Mas, sob a terra, ficavam doze mortos: Joaquim de
Araújo, primeiro governador de Lourenço Marques, um
alferes, sete soldados, três marinheiros...
A reocupação da baía é outro capítulo confuso da
história de Lourenço Marques. Bordalo e Teixeira
Botelho dão-nos notícias desencontradas de urna expedição que não chegou ao seu destino. Segundo Teixeira
Botelho, essa expedição foi organizada por Saldanha de
Albuquerque, ainda em 1783 (o general faleceu em 21
de Novembro desse ano), sob o comando de João Manuel
Correia. Forçada pelo mau tempo, arribou ao Bazaruto e
desistiu, não se sabe porquê, regressando a
Moçambique. Segundo Bordalo, esta
130
expedição saiu da Ilha em 1784 — já organizada,
portanto, pelo conselho governativo que sucedera a
Saldanha de Albuquerque — e perdeu-se, por naufrágio,
no Bazaruto. No entanto, um ofício em que o conselho
governativo relatou, em 19 de Agosto de 1785, as
providências tomadas para se assegurar a posse do
porto de Lourenço Marques, não dá qualquer
informação a tal respeito.
Não há dúvida, porém, de que a reocupação só se
efectuou em 1784. Em Julho ou Agosto desse ano foi
despachado de Moçambique um destacamento, sob o
comando do tenente Pedro Testevim, oficial de artilharia e que viera já a Lourenço Marques na expedição
de Joaquim de Araújo ('). Foi nomeado governador o
capitão D. Diogo António de Barros Souto Maior que,
parece, só na monção seguinte, 1785, veio para
Lourenço Marques, com um reforço ( 2 ). O efectivo
total do presídio ficou sendo, então, apenas de 50
homens combatentes, dos quais 30 vindos com Souto
Maior.
Um ano depois, o estabelecimento achava-se em
miserável situação. O novo general António Manuel de
Melo e Castro descrevia-o assim, em ofício de 15 de
Agosto de 1786: “algumas palhotas, dois paus levantados
que servem de baliza do lugar em que há-de
( J ) A notícia é dada num ofício do conselho governativo, de 12 de Agosto de
1784, citado por Teixeira Botelho. A data Julho ou Agosto é presumida por nós,
visto que em Junho desse ano Testevim achava-se no Mossuril, na campanha
contra o Morimuno.
O nome aparece sob várias formas: Festevim, Testevim e Festivem.
(2) Ofício do conselho governativo, de 19 de Agosto de 1785. Há, aparentemente, um erro neste ofício (ou, pelo menos, no texto impresso na Segunda
Memória do Governo Português). Depois de noticiar o envio do primeiro
contingente, diz o conselho governativo que o reforçou com o capitão Souto Maior
nesta monção de 1784 — sendo, porém, o ofício de 1785.
131
ser a porta da chamada fortaleza, e uni lado do reduto
quadrado, feito com faxina que forma um valado da
grossura dos feixes e muito baixo».
António Manuel de Melo e Castro é uma das mais
notáveis figuras da galeria dos capitães-generais de
Moçambique. O seu governo, desde 11 de Março de
1786 a 19 de Março de 1793, foi altamente benéfico para
a Colónia. Disciplinou a administração, reprimindo
abusos e perseguindo a corrupção que lavrava nela.
Contrariou e, mesmo, em alguns pontos abertamente não
cumpriu as ordens régias de 1786 e 1787, que
autorizavam os navios armados na índia a demandarem
directamente, sem prévio despacho na Ilha de
Moçambique, os diversos portos moçambicanos, mandavam estabelecer alfândegas nesses portos e diminuíam
sensivelmente os direitos sobre o comércio. Esta
legislação fora promulgada sobre um «plano e
regulamento de comércio» proposto pelo vice-rei da
índia, D. Frederico Guilherme de Sousa, e que já o
governo interino antecessor de Melo e Castro combatera.
O governo da Capitania-Geral considerava tais
providências nocivas à boa arrecadação das receitas
alfandegárias, lesivas da Fazenda e, sobretudo, um golpe
mortal nos negociantes estabelecidos na Ilha de
Moçambique. Era-o, sem dúvida, e um cronista tinha,
muito provavelmente, razão quando dizia que um dos
efeitos desta legislação seria despovoar-se a capital
moçambicana. Hoje, todavia, a questão aparece como
muito discutível e pode perguntar-se se o comércio dos
diversos portos e rios de Sena não foi prejudicado pelo
obstrucionismo de Melo e Castro, que, parece, só
beneficiava os intermediários estabelecidos na capital.
Por outro lado, não há dúvida de que o «plano e
regulamento» de D. Frederico praticamente fazia de
Moçambique uma simples exploração
132
dos negociantes de Goa, Damão e Diu, uma dependência económica da índia.
No que respeita a Lourenço Marques, o general António Melo e Castro melhorou consideràvelmente o
estabelecimento O e, em 9 de Agosto de 1789, comunicava para Lisboa que a fortaleza estava mais acrescentada, tendo já quartéis, capela e armazéns.
Seria, então, por este período, entre Agosto de 1786 e
Agosto de 1789, que o efectivo do presídio numerou
duzentos homens, se a notícia dada pela descrição
anónima merece crédito. Provavelmente, essa força
extraordinária ter-se-ia reunido com a vinda do novo
governador do estabelecimento, Joaquim José da Costa
Portugal, que traria consigo numeroso reforço para
conclusão da fortaleza. Ignora-se a data da vinda deste
governador, mas é certo que em Julho de 1787 já ele
estava na baía e nela permaneceu até à morte, em 6 de
Março de 1789.
Em todo o caso, por fins de Novembro de 1789 o
presídio não numerava mais de 74 homens, a saber: o
governador, dois tenentes, um sargento, um furriel, dois
cabos, um tambor e 41 soldados do Regimento de
Infantaria; um furriel, um cabo e 11 soldados do Corpo
de Artilharia; cirurgião, capelão, escrivão da feitoria e
oito lascares marinheiros, capitaneados por um piloto.
É Nogueira de Andrade quem nos fornece esta lista,
dando-nos, com ela, uma pintura do estabelecimento
que desdoura a de Melo e Castro:
«A fortaleza não é mais que um quadrado, formado
de grossas estacas e faxinas já bem podres, as quais
(') «Fortificou Lourenço Marques», diz Costa Mendes no seu Catálogo. Bordalo
diz que no tempo de Melo e Castro, em 1787, ficou concluída a fortificação de
Lourenço Marques.
133
cercam a capela, os quartéis e o armazém que cobre o
presídio... Não presta a fortaleza, porque um reduto mal
construído e formado de estacas e faxinas já semipodres,
não merece aquele nome. Não prestam os quartéis, pela
sua mesma situação, dentro daquele baixo valado,
formado no lugar mais alagadiço e menos sadio. Não
presta o presídio, porque é muito pequeno e é composto
apenas de 70 homens por todo, os quais em breves
meses ficam reduzidos a 25, pelos descontos dos
falecidos e doentes.»
Em 1795, a guarnição era de 64 homens e a bataria
montava seis bocas de fogo.
Ainda desta vez não conhecemos o lugar exacto do
estabelecimento. Cremos, porém, que seria já onde se
encontram agora os restos da praça de Nossa Senhora da
Conceição. Num ofício do general Meneses da Costa
para o ministério, diz-se que a fortificação ficava a três
quartos de légua da «ponta de Mpfumo», isto é da Ponta
Vermelha. Esta medida ajusta-se bem à distância entre a
praça e a Ponta Vermelha.
Que razões teriam levado a preferir este lugar ao
primitivo, o da antiga feitoria holandesa, ignoramos.
Tanto quanto nos parece, as vantagens da segunda
posição seriam maior proximidade do fundeadouro,
facilitando-se assim as comunicações com os navios, e
vista da baía mais descoberta e extensa.
Não temos mais notícias do estabelecimento, quanto
ao efectivo do presídio e instalações, até aquele fatídico
dia 26 de Outubro de 1796. O presídio numerava, então,
80 homens C1), com três oficiais além do capitão de
infantaria João da Costa Soares, governador: eram
(') Este número é dado por McCall Theal, obra citada, o qual diz, menos
correctamente, que essa guarnição era excepcionalmente forte. Como vimos, em
1789 a guarnição compunha-se de 74 homens.
134
o tenente Cláudio António Marques, comandante do
destacamento, o tenente Feliciano José Pinto e o alferes
Joaquim José Rodrigues. As instalações tinham
melhorado apreciavelmente e a feitoria aparece-nos,
então, construída de madeira.
Havia, porém, três anos que fora declarada a guerra
entre Portugal e a França. A Capitania-Geral achava--se
exposta ao maior poder naval dos Franceses estabelecidos em Madagáscar, Maurícias e Reunião. Nos
primeiros tempos, todavia, eles pouparam-na. Convinha-lhes a simpatia da gente de Moçambique, a
cumplicidade ou o descuido que permitia aos seus
navios virem à costa moçambicana carregar escravos
para as suas plantações e engenhos açucareiros. Limitavam-se a apoquentar a navegação comercial, com
unia ou outra proeza de pirataria. Nos fins de 1796,
porém, iniciaram francos ataques aos nossos portos. Em
Setembro, apareceram em Inhambane; em princípios de
Outubro, no Ibo e na Querimba. Saíram-se mal dum e
doutro ataque — e, em especial, a defesa das ilhas de
Cabo Delgado foi enérgica e valorosa. Em Lourenço
Marques, porém, foram mais felizes.
A 26 de Outubro, entraram no Espírito Santo uma
fragata e um lugre, armados em guerra. Outra fragata
fundeou na barra, em apoio e decerto, também, à espera
de alguma presa.
No presídio, os nossos, «pouc os e c o rt a dos da
doença», como diz Bordalo, reuniram conselho e concordaram em que a resistência era impossível. Aos
primeiros tiros dos Franceses, a guarnição evacuou a
feitoria, espalhando-se pelas povoações sertanejas. Os
atacantes desembarcaram à vontade, saquearam e
incendiaram o estabelecimento. Após uma semana
escondida pelo mato, a guarnição, sabendo que o inimigo retirara, voltou à feitoria em ruína e aguardou
135
o navio da carreira. Este veio em Maio de 1797 e
reconduziu a Moçambique aquela mesquinha e torturada
gente. Oficiais e soldados apresentaram um requerimento
colectivo pedindo a mercê do perdão, alegando que não
se haviam batido por não terem meios de resistir e
oferecendo-se para reocuparem a posição perdida.
Uma vez mais se subvertera, desastrosamente, o
estabelecimento português em Lourenço Marques e se
deixava abandonada a famosa baía — calcanhar de
Aquiles da velha descoberta e conquista de Portugal
nesta costa africana...
Desta vez, o estabelecimento durara doze anos. Que
se passara, entretanto, nele?
Nogueira de Andrade legou-nos uma vigorosa evocação das condições do estabelecimento em fins de
Novembro de 1789 ( 1 ). O seu vigor, porém, é o do
polemista — toda a sua Descrição do estado em que
ficavam os negócios da Capitania de Moçambique é
mais um panfleto que uma crónica. «Escritor mordaz
que tem sempre a sua espada desembainhada», assim D.
Frei Bartolomeu dos Mártires, que foi prelado de
Moçambique, qualificou Jerónimo José Nogueira de
Andrade. Ao lermo-lo hoje e ao verificarmos quanto,
tantas vezes, se enganou nas suas deduções e previsões,
sentimos que esse homem, sem dúvida inteligente e
culto, tivesse sacrificado tanto à mordacidade, à
maledicência sob a capa da moralidade, e a um
derrotismo exasperado de azedume. Mais que o panorama de miséria, de incompetência e de corrupção que
(1)
Documentos, 3."
ele se industriou, com inegável engenho, em colorir
— o que nos desgosta é o seu tom, em que não há um
vislumbre de simpatia e compreensividade, e a suficiência tantas vezes impertinente das suas críticas. Para
ele, em Lourenço Marques, nada prestava. Vimos já
como não prestava a fortaleza, nem os quartéis, nem o
presídio. Os governadores não faziam senão consumir
cabedal
da
fazenda
de
Sua
Majestade,
incompetentemente, em obras mal feitas e inúteis. Urna
das recomendações do tenente Testevim para o governo
do presídio era «não saber fazer mais obras nem
maiores despesas». Pessoas e títulos aparecem-nos
ridicularizados: o cirurgião, «cuja ciência consistia
apenas na patente de cirurgião-mor da capitania de
Lourenço Marques»; o capelão, «que o bispo prelado de
Moçambique animava com o título de vigário paroquial
e da vara»; o piloto, “também graduado com a patente
honorária de tenente do mar». O governador era escravo
dos régulos, recebendo deles ultrages e não podendo
mais que procurar congraçá-los por meio de tributos e
presentes. Era um mau estabelecimento, mal começado,
sorvedouro da Fazenda e que não trouxera qualquer
benefício ao comércio moçambicano. Previa que a
expansão holandesa acabaria por absorver não só o
porto de Lourenço Marques como o comércio de
Inhambane. Se a conservação do estabelecimento
importava a Sua Majestade, havia só um meio: vir de
Portugal uma expedição com “engenheiros, artífices
competentes, braços para o trabalho, ferramentas,
alguma cal e guarnição militar». Se não, seria melhor
levantar o presídio e mandar um só navio de
Moçambique fazer anualmente o comércio de Lourenço
Marques, embora ele duvidasse de se encontrar alguém
que o quisesse fazer, vista a concorrência dos
estrangeiros.
136
137
Tudo isto, e o mais que ele nos conta, seria muito
verdade — era-o, com certeza, em grande parte. Mas
havia nessa verdade uma outra força e um outro sentido,
que escaparam a Nogueira de Andrade — e, todavia,
esses é que importavam, porque neles se continha o
destino e por eles se fazia a história...
Não veio expedição nenhuma de Portugal. Mas,
felizmente, também ninguém seguiu o preceptoral
conselho de Nogueira de Andrade. O estabelecimento de
Lourenço Marques foi mantido, através da miséria, do
sofrimento, do gasto de dinheiro e de vidas — mantido
apesar da miséria, do sofrimento, do gasto de dinheiro e
de vidas...
Foi o sentido deste apesar de que faltou à inteligência e à sensibilidade de Nogueira de Andrade — o
sentido da sustentação e da continuidade, desse
heroísmo surdo e tenaz, embora sem ostentação e sem
brilho, que é o do esforço desesperado para a
sobrevivência à pobreza pecuniária, às privações, à
insanidade do lugar, à fraqueza inerme e à ronda dos
inimigos.
Houve muito gasto de dinheiro e de gente...
Com a expedição inicial e o reforço de João Henriques de Almeida, gastaram-se 22.999$127 réis. Até
Agosto de 1785, a Fazenda havia dispendido, com as
expedições a Lourenço Marques, 35.728$000 réis. Em
1787, as sete expedições tinham consumido 63.134$315
réis. Em 1790, os gastos totais com o estabelecimento
ascendiam a cento e sessenta contos. Não sabemos
quanto mais, ainda, a Fazenda gastou até o ano de 1801
— mas não há dúvida de que ela recobrou, com usura, o
cabedal e capital que investiu no estabelecimento...
As vidas, essas, não as recobrariam mais aqueles que
as perderam — penhores, para todo o sempre
138
alienados, da Ocupação... Não sabemos quantos foram.
Um deles foi o terceiro governador, D. Diogo de Souto
Maior. Outro, o quarto governador, Joaquim José da
Costa Portugal, que aqui perdeu a mulher e um filho e,
depois, acabou ele também, «deixando ao desamparo
cinco filhos menores, além de uma filha já em idade de
tomar estado», conforme comunicou, em ofício para
Lisboa, o capitão-general...
O comércio não floresceu. Em 1784, os «sócios da
negociação» de Lourenço Marques compraram, apenas,
25 bares de marfim. Em Agosto de 1785, o negócio
melhorara: 45 bares. Julgamos que a companhia se
dissolveu, em 1787, termo dos seis anos por que se
obrigara a sustentar a exploração comercial da baía.
Realmente, registou-se por esse ano o clamor dos
negociantes, queixando-se de que o comércio de Lourenço Marques os arruinava. No entanto, esse comércio
recebeu, em 21 de Julho de 1787, novo benefício pautai,
pela aplicação das provisões régias de 5 e 19 de Abril de
1785 que determinavam a redução geral dos direitos.
Para o porto de Lourenço Marques, os direitos, que eram
8%, ficaram, então, em 6% apenas (').
Atribui-se esta magreza do negócio à concorrência
dos estrangeiros, em especial, se não exclusivamente,
dos Ingleses de Bombaim. Estes faziam não só a política
dos preços altos e dos ostentosos saguates como,
também, pelos agentes que infiltravam em terra, a
propaganda da liberdade do comércio ( 2 ).
Induziam os indígenas a não obedecer à recomendação de só comerciarem com os Portugueses e a
(')
(2)
Voltaram a 8% em virtude da ordem régia de 17 — Junho— 1801.
O comércio só foi proclamado livre aos estrangeiros em 1853.
139
reclamarem o direito de tratar com os negociantes de
outras nações.
K ao há dúvida de que o comércio português havia de
sofrer apreciavelmente desta concorrência. Mas
acreditamos, também, que o desapontamento dos negociantes seria, em parte, a inevitável contrapartida do
optimismo com que, desde sempre, a riqueza das terras
de Lourenço Marques teria sido estimada., 'Quando hoje
lemos o louvor da fartura dessas terras por frei Francisco
de Santa Teresa, ficamos perplexos. Ou tudo mudou
muito de então para cá, desde a fertilidade das terras e a
regularidade das chuvas em todos os quartos da lua até à
aplicação dos indígenas ao trabalho agrícola e à caça
— ou o frade deixou-se / transportar por aquele fácil e
tão nosso conhecido/ entusiasmo dos Portugueses...
Assim,
também,
se julgara que o ouro do
Monomotapa era infinito (1). Assim, também, se haviam
julgado pródigas as minas de prata da Chicoa. E assim,
até, se haviam proclamado os ares de Sofala «mais
lavados» que os de Sintra ( 2 )...
Não temos nem nunca se terão, provavelmente, dados
que permitam comprovar esta nossa presunção. Os
cálculos do que a baía de Lourenço Marques poderia
render, em marfim e outros produtos, obviamente não se
fundavam em mais que informações dos indígenas. A
parte os adjectivos de frei Francisco, desde as couves
«grandecíssimas», as galinhas «grandes» até às pontas
de abada com sete palmos de comprido; e apreciações
imprecisas, como a da descrição
( ' ) Sofala, «dove e atiro infinito». Assim escrevia El-Rei D. Manuel, em
1505, aos Reis de Castela.
(2) Carta de Duarte de Lemos a El-Rei, 1508: «Da saúde da gente de Sofala,
Deus seja louvado, é mais são que Sintra».
140
anónima: «estes dois rios, pelas minhas observações,
deitam de si em marfim, ouro, ponta de abada e dentes
de cavalo marinho mais de doze embarcações anuais»;
temos um cálculo concreto, por Nogueira de Andrade: a
baía podia render, anualmente, mais de duzentos bares
de marfim.
Talvez assim fosse, mas os números que se conhecem, dos Holandeses e nossos, ficam muito aquém
dessa abundância, mesmo quando dobrados ou triplicados à conta da concorrência estrangeira... A desilusão
dos Portugueses ratificava a dos Holandeses, sessenta
anos antes — e, nos anos subsequentes, enquanto
dependeu da simples exploração comercial do marfim
obtido por caçadores indígenas com as suas armas
originais, a vida do presídio de Lourenço Marques foi
sempre difícil e pobre.
Poucos episódios conhecemos da actividade dos
estrangeiros na baía, durante este período.
Em 1783 e 1784, parece que ela foi intensa, a deduzir
do ofício do conselho governativo de 19 de Agosto de
1785, e já vimos a informação de frei Francisco, referida
aos anos proximamente anteriores a 1782: seis ou sete
navios concorriam, anualmente, ao tráfico dos rios
Maputo e Incomáti.
Só em 1787 temos notícia concreta da vinda à baía de
um navio holandês, posto que Nogueira de Andrade nos
informe de que os Holandeses do Cabo enviavam aqui
um navio, quase todos os anos.
A propósito, cremos que Nogueira de Andrade atribuiu às expedições terrestres dos Holandeses objectivo
diferente do que elas realmente teriam. Supõe-as ele
uma manobra para desviar, pelo interior, o comércio
dos portos de Lourenço Marques e Inhambane. O verdadeiro fim, porém, destas expedições em que figuravam «naturalistas» era, antes, a procura das minas
141
de ouro que sempre haviam sido a mira do estabelecimento holandês no Cabo.
A entrada no porto, em 8 de Junho de 1787, do
navio holandês A Pérola parece ter sido meramente
acidental, se é que o seu capitão, C. Int Anker, escrevia a verdade. O navio fora obrigado a arribar,
quando, em viagem de Ceilão para o Cabo, o temporal o
desviou da sua rota, atrasando-lhe a marcha, e os
mantimentos de bordo rarearam.
Joaquim José da Costa Portugal, que então governava a baía, prometeu toda a/assistência mas proibiu,
de acordo com as ordens que tinha, as compras directas
aos indígenas. O capitão Anker não respeitou a proibição, queixando-se de que a feitoria lhe exigia preços
exorbitantes — por exemplo: um boi que adquirido
directamente aos indígenas custava uma peça de pano, no
valor de -duas piastras e meia, era-lhe vendido pela
feitoria a quinze piastras... Então, infringindo as ordens
do governador, armou em terra tendas, para negociar
com os indígenas. Costa Portugal tomou atitude
enérgica, intimando severamente o capitão do navio a
levantar as tendas e a abster-se de trato com os
indígenas, ameaçando-o de que a isso o obrigaria pela
força. A Pérola não teve mais remédio que sair da
baía.
Estes modos do governador dão relevo à informação
de que, por esta data e como já vimos atrás, a guarnição era excepcionalmente numerosa. O incidente
ilustra, também, a disposição dos régulos quanto ao
cumprimento do exclusivo português do comércio. O
capitão holandês garantia que o Matola e o Tembe
«absolutamente» queriam que ele comprasse os géneros
aos seus súbditos; eles próprios lhe haviam indicado os
lugares onde implantar as tendas e, agora animavamno a que as não desmontasse.
142
Outro episódio da frequência da baía por estrangeiros
é o dos pescadores de baleias. Foi em Junho de 1789 que
pela primeira vez deram por eles, na feitoria. Eram dois
navios de três mastros, um de quatrocentas, outro de
seiscentas toneladas. As pequenas embarcações dos
harpoadores andavam na sua lida por “toda a baía, desde
a ilha do Magaia até à ponta de Mafumo», como o
general comunicava para Lisboa — isto é, desde a
Xefina até à Ponta Vermelha. Quanto à nacionalidade, o
governador e o oficial por ele mandado reconhecer os
navios ficaram intrigados: o pavilhão era francês mas as
tripulações, quinze homens em cada navio, falavam
inglês. Mais tarde, soube-se que os navios vinham
armados de Dunquerque mas, a despeito do pavilhão e
passaporte franceses, eram de «ingleses europeus ou
americanos».
Nos documentos que tratam deste assunto, afirma-se
que a pescaria de 1789 foi a primeira mas é provável,
como já observámos, que essa actividade viesse duma
data mais remota. Em 1790, apareceu um novo navio,
em Maio, que declarou aguardar a chegada dos dois que
já tinham vindo no ano anterior. A estação de pescaria
era o trimestre Junho-Agosto. Em 1791, há nova notícia
dos baleeiros e, embora nada mais se conheça sobre eles,
não há dúvida de que a sua actividade se prolongou por
muitos anos, mesmo até depois do completo fracasso da
montagem dessa indústria por João Pereira de Sousa
Caldas, em 1818.
De Franceses, só temos notícia da vinda, em som de
guerra, em Outubro de 96. É provável que não
frequentassem a baía, preferindo os portos do norte onde
os negreiros trabalhavam por conta deles, fornecendolhes fáceis e copiosos carregamentos de escravos.
Concorrência comercial, propriamente, era a dos
Ingleses de Bombaim. Sabemos já como eles ope143
ravam, disfarçando-se sob pavilhão e passaportes portugueses. A legislação de 1786 favoreceu-lhes a fraude. E
já vimos, também, como a sua sombra começava a
alongar-se da baía pelo sertão dentro — primeiros ensaios
da manobra que, em 1822 e 1823, o capitão da Armada
britânica Guilherme Fitz Owen desenvolveria, cavilosa e
indignamente, traindo a confiança, que lhe fora
concedida.
O facto mais interessante desta segunda ocupação
portuguesa de Lourenço7 Marques foi, porém e indubitavelmente, o primeiro gesto de uma política de posse
territorial e de avassalamento das populações.
Em 1792, houve uma revolução nas terras do Tembe.
Era um ano de fome e Capela, o régulo, tentou apoderarse dos mantimentos dos seus súbditos. Estes.levantaramse contra ele, houve uma tentativa de regicídio e, por
fim, Capela foi deposto e substituído por um irmão. O
governador Pedro Testevim parece que se limitou a
relatar o facto para Moçambique. Mas o seu sucessor,
Luís Correia Monteiro de Matos, imiscuiu-se na questão
e (não sabemos por que artes; o único documento a tal
respeito diz-nos, apenas, que para isso ele «concorreu
com algum dispêndio seu») repôs no trono o Capela.
Este, reconhecido, doou à Coroa de Portugal parte das
suas terras. Aos 10 de Novembro de 1794, na povoação
de Massangana, o escrivão da feitoria João Gonçalves de
Sequeira lavrou o auto da doação, que foi assinado pelo
governador interino José Correia Monteiro de Matos,
comandante do destacamento, e pêlos oficiais, sargentos
e soldados ali idos para o acto, e ornamentado com os
sinais do régulo e seus conselheiros.
As terras doadas eram: «de princípio de Massangana
de parte de SE até à distância de uma légua beira-mar de
parte de O, e de largura pela terra
144
dentro de um quarto de légua». Capela declarou que «os
habitantes da referida terra doada à Coroa de Portugal
seriam sujeitos e subordinados ao governo da baía, e que
podia pôr e dispor como limites da nossa soberana
Bainha de Portugal» ( 1 ).
Para assinalar a posse dessas terras, veio de Moçambique um padrão com as armas de Portugal ( 2 ).
Em Junho de 1795, o novo governador, João da Costa
Soares, ao receber as fazendas e mais efeitos da feitoria,
mencionava «os três dentes de marfim que deram, um o
rei Matola deposto, outro o actual rei Manhice, e outro o
rei Capela, todos do peso de quatro arrobas e dezasseis
arráteis». Parece-nos, no entanto, incorrecto considerar
estes dentes como um tributo dos régulos. Não eram
mais, cremos, que os simples presentes habituais — de
resto, em troca dos recebidos. Era cedo, ainda, para
imposições de tributo. Em Fevereiro do ano seguinte,
1796, nem mesmo os habitantes das terras doadas
estavam tributados. De facto, em 10 de Fevereiro, o
governador relatava para Moçambique a conversa que
tivera com o Capela. Falara-lhe da «vassalagem e
reconhecimento que deviam ter a El-Rei de Portugal os
moradores ou colonos da terra doada». Capela, hábil e
diplomaticamente, respondeu que «já não tinha domínio
na coisa doada»; portanto, propusesse o governo «os
ónus que fossem úteis».
(1) O auto vem na Memória apresentada pelo Governo Português, documento
n.° 8o. Ë assinado, além de pelo governador interino, por Luís José, alferes; Pedro
Semião, sargento; João António Gonçalves, Joaquim José Mascarenhas,
Francisco Xavier da Fonseca, João José, Salvador Leite Pereira, Rodrigo de
Carvalho, José de Figueiredo.
( 2 ) Ignoramos se o padrão chegou a ser colocado. Em 1823, num inquérito nas
terras do Tembe, pelo governador Lupe de Cardenas, já em consequência das
diligências do capitão Owen, perguntou-se ao régulo e seus grandes pelo padrão.
Responderam que «estava enterrado e guardado, porém que estava em casa e
seguro»; não o mostravam nesse dia por ser tarde; mas em qualquer outra
ocasião o fariam (veja-se Memória, etc., documento 34).
145
Era uma hesitante, tímida experiência, que provavelmente não teria consequências, ainda quando não
fosse cortada pelo ataque dos Franceses em Outubro
desse mesmo ano. A ideia do domínio total não se
formulava ainda como princípio da expansão e acção
ultramarina nem como expressão de direito de «posse».
Não sabemos se Luís Monteiro de Matos agiu de sua
livre iniciativa, se sob instruções do capitão-general. No
regimento dado ao oficial que em 1799 veio reocupar a
baía aconselhava-se a intervenção nas questões
intertribais,
procurando-se,
assim,
captar
o
reconhecimento do régulo ou régulos favorecidos. Em
qualquer caso, porém, o que se pretendia desse reconhecimento não era uma vassalagem, mas sim um apoio
contra estrangeiros.
De resto, o regimento definia expressamente o espírito
da ocupação, acentuando que o seu “principal e
imediato objecto era a segurança da possessão do
comércio privativo dos limites de uma costa que pertence
a Sua Majestade Fidelíssima».
Era, pois, ainda pela fórmula «descoberta, comércio e
navegação» que se definiam a política e o direito
coloniais. A escola de D. Francisco de Almeida prevalecia sobre a de Afonso de Albuquerque...
Os historiadores nacionais têm ofuscado, ao clarão de
Albuquerque o Terríbil, a figura desvalida do infeliz
primeiro vice-rei português da índia. Permitimo-nos,
contudo, julgar que a escola de D. Francisco exprimia,
mais e melhor que a de Albuquerque, o verdadeiro génio
nacional e as inspirações originais portuguesas. Não era,
como tantas vezes parece insinuar-se, por desculpas de
fraqueza ou por habilidades de diplomacia e
jurisprudência, que nas contestações internacionais
Portugal invocava o direito de soberania pelos factos da
«descoberta, da navegação e do
146
comércio». Era porque, realmente, esse direito reflectia
o código político e moral do génio português.
Uma luminosa ilustração desse código é a discussão
travada ao planear-se a expedição, em 1570, de Francisco Barreto ao Monomotapa: a proposta de se tomar
pura e total posse das minas foi repudiada como insulto
aos homens e desafio a Deus.
A escola de Albuquerque só vingou no espírito português quando a ameaça estrangeira no-la apontou,
como um salteador de estrada a clavina ao viandante.
Fomos forçados a adoptá-la em face da invasão europeia
e a aceitá-la quando, inspiradas pelo génio anglosaxónico e germânico, as conferências de Berlim consagraram a fórmula de ocupação e dominação efectivas
como conceito da política colonial e fundamento do
direito internacional colonial.
A escola de Albuquerque venceu, assim, o génio
português — mas dir-se-ia que o não convenceu... Ao
olharmos, hoje ainda, o panorama de Moçambique — os
núcleos populacionais predominando no litoral, a
balizarem a linha do mar; a forte percentagem, no
conjunto da população portuguesa branca, de funcionalismo; a negação do capital português ao investimento
no lugar, mantendo-se na linha da exploração comercial
a distância, a mesma linha do absentismo dos antigos
senhores de prazos; a economia nitidamente mercantil,
com as suas duas formas dominantes dos grandes
fornecimentos ao Estado e do pequeno comércio
cantineiro com os indígenas; o frouxo ritmo da
imigração e, sobretudo, o seu carácter (a procura de um
modo-de-vida feito, preferivelmente o emprego do
Estado, o propósito da torna-viagem, o sonho das
economias para comprar uma casinha ou um campo lá
na terra) — acaso este panorama não reflecte o velho
espírito marítimo-mercantil?
147
Não há dúvida de que, desde há alguns anos, se
pronuncia e se intensifica uma modificação dos elementos deste quadro. Mas a persistência, a resistência do
sistema, dos processos e dos hábitos iniciais, mostra bem
quão fundas raízes eles têm no génio da raça.
Como quer que seja, ao iniciar-se o século que ia ser
o da invasão e partilha da África era ainda a concepção
tradicional do senhorio do comércio, com as fortalezasfeitorias em estatuto de extra-territorialidade, que
inspirava o conceito português de «ocupação».
Só em meados de 1799 Lourenço Marques foi
novamente ocupada, por diligência do capitão-general
Francisco Guedes de Carvalho e Meneses da Costa.
A reocupação foi, verdadeiramente, um acto desesperado. A Capitania-Geral achava-se em situação
perigosa. Não havia gente, não havia navios, nem
dinheiro, nem fazendas e estava-se em guerra com os
Franceses. O capitão-general viu-se obrigado a diferir,
por quase dois anos, a expedição a Lourenço Marques.
Realmente, logo que tomara o governo da Capitania,
Meneses da Costa nomeara novo governador (1)
(') Era o oitavo governador:
1.°, Joaquim de Araújo, nomeado em 25 — Novembro—1781; faleceu no posto
em 6 de Julho de 1782. Interinato do tenente Manuel António até Noverhbro de
1782.
2.°, tenente João Henriques de Almeida, nom. ? ; veio em Novembro de 1782 ;
em Junho de 83 levantou o estabelecimento, retirando para Moçambique.
Expedição frustrada de João Manuel Correia, ignorando-se se houve
nomeação de governador.
3.°, capitão D. Diogo António de Barros Souto Maior, nom.?; veio em Agosto
de 1785 ; faleceu no posto em data que desconhecemos. Interinato do tenente
Pedro Festevim.
para a baía — o tenente Luís Correia Monteiro de Matos
— e organizara a expedição. Em 12 de Dezembro de
1797, comunicou para o Reino estas providências.
Sobreveio, porém, o levantamento do xeque da
Quitangonha e o general não pôde dispensar Monteiro
de Matos, a quem teve de confiar o comando das
operações. Isto, a carência de soldados e a irregularidade, em virtude da guerra com a França, da navegação
comercial da índia (o que perturbava o reabastecimento
da Capitania em fazendas para pagamentos e negócios)
sustaram a expedição.
Só em 1799 foi possível reconsiderar o projecto e,
mesmo assim, houve que reduzi-lo a proporções mínimas: um pequeno destacamento, sob o comando do
tenente Luís José, aprovisionado para um ano e com tão
poucas fazendas de negócio que seria necessário dar, aos
régulos, explicações de tamanha pobreza — conforme o
general insistia nas instruções que, em 5 de Fevereiro,
deu ao comandante O. Era uma improvisação temerária,
uma aventura imprudente — gesto desesperado, nascido
das torturas da pobreza e das impotências da fraqueza...
O general Meneses da Costa esperava que o desta4.°, Joaquim José da Costa Portugal, nom. ? ; estava já em exercício em 8 —
Junho — 1787 ; faleceu no posto em 6 — Março — 1789. Interinato do ten. André
Avelino.
5.°, tenente Pedro Testevim, nom. fins de 1789 ou princípios de 90; estava
ainda em exercício em 6 — Junho — 17926.°, Luís Correia Monteiro de Matos, ignoram-se as datas. Interinato de José
Correia Monteiro de Matos que em 10 de Novembro de 1794 já estava em
exercício.
~.°, capitão João da Costa Soares, nom. ?, já no posto em 16 — Junho — 1795
; abandonou o presídio, em frente aos Franceses, em Outubro de 1796, retirando
em Maio de 1797 para Moçambique.
8.°, Luís Correia Monteiro de Matos, nom. ? (já em Dezembro de 1797);
ignoramos se chegou a entrar em exercício ou se foi, em 1800, substituído por
Luís José que em princípios de 1801 fora já promovido a capitão.
(')
148
Documentos, 5.°
149
camento embarcaria em Fevereiro e que no mês seguinte já poderia dispensar o governador e expedir,
com ele, o completo da guarnição. Mas ainda assim
não pôde ser e só em 7 de Junho o tenente Luís José
chegou, com a sua pequena força, à baía de Lourenço
Marques.
Uma vez aqui, Luís José procurou negociar com o
Matola a reocupação. O régulo, porém, mandou-lhe
dizer por Litungo, um dos seus filhos, que «enquanto
estava em guerra não recebia milando». Assim, não
tendo dele autorização para reocupar o local do anterior
estabelecimento, o tenente Luís José instalou um posto
provisório nas terras do Tembe e aí arvorou a bandeira.
Ainda nesse ano ou princípios de 1800, o presídio
reocupou a posição na margem norte da baía. Ao fechar
o século, temos esta imagem do estabelecimento: uma
casa para o comandante do destacamento, um armazém,
seis casas redondas para os soldados e outra para
cozinha, tudo cercado por vedação de caniço com porta
voltada à barra e em cujo lado -direito se levantava o
pau de bandeira; fora da vedação, residiam, em palhotas,
os oficiais mecânicos e dois degredados.
Certamente, o destacamento inicial fora, entretanto,
reforçado com soldados e artífices. E os dois degredados representam o início da colonização das terras da
baía de Lourenço Marques...
Desta vez, era decisivo: o estabelecimento permaneceria, definitivamente, e a soberania de Portugal
firmava-se, para todo o sempre. Assim acaba a história
do descobrimento e fundação de Lourenço Marques.
150
*
Ao longo de três séculos, o destino português da baía
de Lourenço Marques debatera-se entre descobrimento
e esquecimento, conquista e abandono, esforço e
descuido — uma «curva» bem portuguesa... Agora,
esse destino fixava-se — e há no facto certa ironia,
pois nunca antes as circunstâncias tinham parecido
menos propícias e menos capazes: a extrema penúria do
Estado moçambicano, a diminuta guarnição, sem
governador, envergonhada perante os indígenas da sua
pobreza, inerme e isolada aquém de um mar dominado
por inimigos, naquele postozito provisório das praias
do Tembe.
Esta ironia desarma a crítica e não deixa que se retire
desta história uma lição, uma moralidade — se é que
das histórias da História se pode, alguma vez, tirar
alguma.
Nesta revista de três séculos vimos perpassar o génio
português, carregado de todos os seus defeitos e de
todas as suas virtudes: imprevidências e desleixos,
superados por sacrifícios e improvisações audazes e
industriosas; apatias e cansaços, resgatados por
assomos perdulários de determinação e energia...
Inútil admoestar, inútil preleccionar sobre os defeitos— inútil querer exorcismar esses demónios...
Nunca poderemos expulsá-los de nós! E o que importa,
verdadeiramente, não é que eles continuem em nós
como estavam nos homens que nos deram esta história.
O que importa é que nos mantenhamos, como esses
homens, capazes das mesmas superações e dos mesmos
resgates.
Assim Deus nos ajude.
151
DOCUMENTOS
1.°
Lista da Navegação de Moçambique até o rio de Lourenço
Marques e dos baixos que há no caminho e tempos que cursam em
cada monção, e do que fizeram os Ingreses no dito Rio.
Partindo de Moçambique se dará resguardo aos baixos de
Mogincalle que estão da terra firme meia légua, e outros ao mar três
léguas e por entre uns e outros podem passar navios de pouco porte e até
500 candis; e dos de mais porte passarão ao mar dos baixos dando
resguardo ás ilhas e coroas, e restingas de Angoxa até á ilha do fogo,
que está de fronte de um rio que se chama Tendamagi, terras de
Mosolongo (Morólongo).
As embarcações que quizerem ir por dentro navegarão até á barra
d'Angoxa de dia, e não podendo desembocar as ilhas surgirão com de
dia até a manhan defronte de Angoxa, ao mar defronte de uma restinga
e uma coroa que está antes da ilha, "norte sul delia, e de madrugada se
levará chegando-se á ilha, e tomará seis e sete braças e assim irá á barra
de Inhantine costeando sempre as ilhas e coroas e restingas, e são 3 restingas, 3 ilhas e 3 coroas e em todas ha canal para sair ao mar se quizer,
o entrar do canal é de 5 e 6 braças o mais baixo delle.
Desta barra de Inhatinga se chegará á terra e não ás 4 ilhas que
estão ao mar com outras 4 coroas e 4 restingas e assim irá correndo ao
longo de uma serra muito alta até o rio de
NOTA. — Esta Lista foi publicada por G. Pereira em Roteiros portugueses da
viagem de Lisboa á índia nos séculos X V I e XVII, edição da Sociedade de Geografia de
Lisboa, 1898.
155
Moma ; que no cabo da serra faz um matto grande de umas
arvores como pinheiros; aqui na boca deste rio se afastará para o
mar até 7 braças e por ellas irá correndo até passar as ilhas todas e
irá correndo todo o parcel por 7 e 8 braças indo por este fundo em
muitas paragens não verá terra por ser muito baixa, mas indo por
este fundo não tem restinga nem baixo de que se temer até á barra
de Sofalla na qual, querendo entrar, irá surgir defronte dos
palmares da banda do norte em 6 braças e menos.
Navegando desta barra de Sofalla para o cabo das Correntes
irá na volta do sul e sempre com o prumo até haver vista das ilhas
de Basaruto por a costa ser muito suja dê muitos baixos e coroas,
e defronte de Inambane ha terra, légua da barra está uma coroa
com uma restinga que se vê, e ao mar 5 ou 6 léguas está outra
coroa alagadiça que ás vezes se o tempo é brando não apparece
nem arrebenta. Este caminho quem no atravessar de Sofalla não
navegará nelle de noite se não for muito experimentado nelle, e
querendo entrar nas ilhas de Basaruto o poderá fazer porque ha
entre ellas canaes de 7 e 8 braças até abarbar com a ilha mas para
Ibo sendo náo grande surgirá na ponta da ilha da banda de dentro
ao norte, e mandará sondar os canaes e então entrará.
Partindo destas ilhas para o rio de Lourenço Marques não tem
baixos nem restingas nem coroas de que se temer e as aguas tiram
sempre caminho do sul e do sudueste com gram fúria, e não ha
nesta costa fundo senão em algumas partes e muito perto de terra,
e tão perto que uma légua da terra se acharão 30.40 braças,
salvante a barra do rio de Inhambane, ao qual darão resguardo até
á ponta do cabo das Correntes que estará a 10 ou 12 léguas do Rio
de Inhambane e tanto que o dobrarem não verão fundo se não
depois que passarem o rio do ouro, e se forem mettendo para a
enseada dos rios de Lourenço Marques; nos quaes poderão entrar
da banda do norte, meia borda achegando-se mais á terra firme da
banda do norte que á ilha que está á banda do sul, salvante depois
de estarem dentro verão a bahia da Ilha que bota ao mar, e fugirão
delia porque as aguas sempre correm com grande Ímpeto dos rios
para fora, e se chegarão á ilha e a correrão de longo pêlo canal que
está ao longo delia por 10 e 11 braças até uma serra muito alta que
está na mesma ilha, que lhe fica em abrigo do ponente, em que
estarão 10 e 12 náos muito seguras.
Nestes rios pela experiência do tempo que nelles estive não
156
ha vento certo, e mais reinam nelles levantes que ponentes porque
desde o mês d'agosto até o de março se ha um dia de ponente ha 6
de levante, e o ponente quando entra vem tão rijo que os próprios
naturaes como elle venta não saem de suas casas fora, mas dura
pouco porque logo salta no mar, que é o vento leste e lessueste.
As náos que partirem de Goa por dentro o meu parecer é virem
ver este porto de Moçambique e d'aqui se não afastem da costa
mais que até 20.25 léguas até ás ilhas de Basaruto. E de ahi
menos. E que por nenhum caso façam sua derrota entre a ilha de
S. Lourenço e o baixo da Judia porque como é tempo de inverno e
a terra bota de sy vapores arreceyo dar-lhe o embate dos terrenhos
da ilha de S. Lourenço que naquella paragem ficam sendo sues e
suestes, e é vento ponente, e que lhe dê muito trabalho o que não
terão se forem cá ao longo da costa onde lhe não faltarão nordestes
e nortes e alguns noroestes, e terão tal tento que como virem
ventar o norte muito rijo é signal de terem ponente muito forte, e
isto tenho visto muitas vezes por experiência.
Assim lembro ás náos que tiverem trabalho á ida ou á vinda
que seguramente podem entrar neste porto, porque nelle terão
concerto se quizerem de mastros e de madeira; e de carnes e
pescado e agua e alguns mantimentos.
Assim lembro aos que se perderem destes rios para o cabo de
Boa Esperança, se se perderem na terra dos fumos não larguem a
praia até a ilha do Inhaca porque toda esta gente lhe é sujeita, e
não lhe farão mal se vierem com resguardo, e nunca se dividirão
em bandos por mais ódios que haja porque todos se perderão, e
sempre obedecerão ao seu geral para terem vida e salvação certa,
porque posto que são cafres sujeitos ao Inhaca que é nosso amigo,
são mais inclinados a furtar que a faser esmolas. E nesta ilha do
Inhaca terão que comer, e se d'ahi quizerem atravessar ás terras de
Inhambane sempre lhe ahi leixam as embarcações do resgate em
que o poderão fazer, e não achando embarcações se deixem estar,
e não queiram dar volta á bahia como fez Manuel de Sousa de
Sepulveda porque entre rio e rio os mataram todos por ser muito
má gente e muito nossa inimiga.
Os que se perderem alem da terra dos Fumos não virão ao
longo da praia por ser despovoada, mas tomarão o sertão até 10
léguas da praia até virem dar num rio muito largo que se não vê a
terra de uma banda á outra na barra, e tem duas ou
157
três ilhas no meio, chama-se o rio do Dandála, aonde os da náo
Santo Alberto deixaram uma cruz. Correrão este rio de longo até
acharem passagem no sertão e como o passarem tornarão a vir
buscar a praia e darão logo em terra muito povoada e gente mais
do Inhaca, e de mais conhecimento, mas muito falsa se puderem.
As náos que se perderem fundar-se-hão em trazer cobres e
panos grossos, e teadas e cotonias para seu resgate, e com isto lhe
não faltará de comer, a pedraria ou dinheiro que trouxerem será
cosido em alguma vestia com muitos remendos, porque são
homens que como vem pano de Portugal com muitos remendos não
fazem conta delle. Que em canudos e canas não vem bem, mas
arriscado por disso terem já noticia e todas as partes por donde
passarem dirão o meu nome que é Jeronimo Leitão, e em língua de
cafre Inhale-fua.
E com isto passarão seguros até o rio de Sofalla.
Por nenhum caso os que se perderem nestas partes largarão as
armas da mão, e com ellas virão, ainda que sejam poucos roncarão
muito e farão todos os arteficios da guerra, e vigiarão a seu tempo
com muita ordem, e sempre obedecerão ao seu geral e não se
dividirão em bandos, porque fazendo o contrario logo serão
perdidos, e nada lhe succederá bem, e todos acabarão mal.
Todas as náos que a este porto vierem de Portugal poderão
entrar nelle até o derradeiro de maio, e sairem logo em junho,
porque da entrada de julho até á de setembro são todos os ventos
que nesta paragem ventam sues e sueste e lestes que são travessões
por onde as náos que a este porto vierem ou a sua altura neste
tempo que digo, se batem caminho da ponta de
-S. Romão.
TITULO DO QUE ACHEI E VI E SOUBE
NOS RIOS DE L O U R E N Ç O MARQUES
DOS INGREZES
Eu parti deste porto de Moçambique para os rios de Lourenço
Marques em novembro de 97 (1597); e cheguei aos ditos rios em
janeiro de 98, por ir em pangaio e me deter em Sofalla mais de
um mez; e pela viagem em pangaio ser tão arriscada
que nenhum tempo pode esperar no mar. E como lhe dá vento
contrario é necessário metter-se em rio e arribar até.
168
E quem quizer bordejar se perderá sem falta.
Depois de chegar aos ditos rios e entrar a bahia fui demandar a ilha e a casa da feitoria aonde habitasse no tempo
em que ia fazer o resgate desta fortaleza, a qual casa achei
cercada com porta de madeira de largura de uma braça muito
forte com quatro baluartes mais fortes que o mesmo forte, e
com uma cava de altura de mais de uma braça e tudo mui forte.
Os negros da terra como souberam que eu era chegado me vieram
logo ver, e me contaram das náos e dos ingrezes parecendolhes que éramos todos uns, mas logo na lingua os estranharam.
Estas três náos depois de surtas no porto mandaram uma
lancha a terra com 20 homens arcabuzeiros, tomar falla della, e
uma peça de tamette vermelha e um roupão muito formoso de
Londres, verde forrado de baeta roxa apassamanado, e um
pouco de coral, azul, tudo de Sagoatte ao rey pedindo-lhe lugar
para fazer uma casa e porem nella 200 homens, e gente sua
para levarem comsigo á sua terra em signal de paz. Os negros
que faliam alguns delles portuguez lhe perguntaram donde
vinham, e elles lhes disseram pela lingua portuguesa que trazia
que de Moçambique, ao que os cafres lhes disseram que como
vinham elles aquella terra sem Jeronimo Leitão cuja aquella ilha
era e os ingrezes lhe disseram que Jeronimo Leitão estava na
náo, e com este engano se foram ao rey que mora da ilha mais de
12 léguas pelo sertão, e o rey os recebeu e lhes mandou dar
vaccas e algum mantimento, e lhe deu 20 cafres em que entrava
um filho seu, que fossem á náo e fallassem com Jeronimo Leitão e
soubessem delle ao que vinha, e que aquillo parecia vir mais de
guerra que de paz, e como amigo seu que era, e se queria fazer
casa ou alguma cousa naquella sua ilha o podia fazer pois
era sua, mas não para lhe fazer guerra, pois elle o tinha em
conta de filho. E nesta jornada se passaram mais de 15 dias nos
quaes elles fizeram o forte mas não de todo acabado. E os cafres
em vindo se foram á feitoria que estava dentro no forte na qual
os metteram com guardas sem mais os deixarem sair nem irem
ás náos dizendo-lhe cada dia que Jeronimo Leitão estava nas
náos e que viria, e com este engano estiveram presos desde março
de 97 até o fim de junho da mesma era no qual tempo se
perdeu na mesma ilha um navio pequeno de 500 candis, que
com o vento ponente rijo deu á costa na ponta da ilha.
Em companhia desta gente vinham dous homens que os
159
cafres conheceram serem da companhia de Nuno Velho Pereira os
quaes desenganaram aos cafres, que fugissem que era mentira
dizerem-lhe que Jeronimo Leitão estava na náo, que aquella gente
eram ladrões. E logo ao outro dia de madrugada os cafres fugiram
todos, e só alcançaram três em que entrou o filho do Inhaca, os
quaes os ingleses levaram comsigo. E no mesmo tempo deu a
doença nelles, que com muita pressa se embarcaram deixando
muitos despojos e muita gente morta, uns enterrados, e outros por
enterrar, e segundo os cafres dizem que foi peçonha que o seu rey
lhe mandou dar, mas o certo não sei se foi peçonha se peste, mais
que segundo os cafres diziam morreram perto de 300 homens. E
elles embarcados se foram levando os três cafres comsigo na volta
do nordeste sem rnais delles saberem mais que deixarem recado aos
cafres que lhe não quebrassem o seu forte; o qual eu desfiz todo e
entulhei a cava e fiz muitos serviços a Deus e a S. M. assim nisto
que fiz, como nas pazes que tinha feito na morte de Manuel Malheiro, e paz e quietação da terra a que se o meu rey m'o não
satisfizer Deus m'o satisfará porque em tudo fiz e usei e tenho
usado como bom christão e bom vassallo, e querendo-se de mim
tomar informação a poderá dar Nuno Velho Pereira, Fernão Telles,
Ruy Pires de Tavora, e outros fidalgos e soldados velhos da índia.
2.°
Plano, e relação da Bahia, denominada de Lourenço
Marques, na Costa de Natal, ao norte do Cabo da Boa
Esperança, junto ao Promõtorio da Latitude de 26
grãos, e não menos das terras adjacentes, seus
habitadores, Reys, Rios, Comercio, Costumes. — Seu
Autor Fr. Francisco de St.a Thereza.
1.
Este Plano he tirado dos conhecimentos adqueridos pela
própria asistencia, e posto que se não observem todas as
medidas Geográficas, com tudo servirá para dar hua idea
sobeja do sitio, e das passagens comigo acontecidas no
decurso de vinte mezes, que tanto gastei, sendo Capelão da
Tropa, que por ordem de Sua Magestade se foj apostar, e
aquartelar em Destacamento na passagem propriamente
chamada = B a h i a da Lagoa, que fica na boca do Rio de
Santo Espirito, de que logo se tratará.
2.
Aquella Enceada ou Bahia de Lourenço Marques, terá sete,
ou mais legoas de boca, e parece boa a entrada, e pelo
menos sem o perido demonstrável de baxos. O vento Sueste
fas grande impresão n'aquella (sic) Golfo nos tempos de
Inverno. O melhor abrigo para as Embar-
NOTA. — Este documento é aqui transcrito duma cópia extraída em
Coimbra por Alexandre Lobato e existente no Arquivo Histórico de Moçambique.
O Plano e Relação de Fr. Francisco de Santa Tereza encontra-se no códice
n.° 169 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Foi primeiro publicado
pelo Dr. Augusto Mendes Simões de Castro, bibliotecário da Universidade, no
quinzenário Archivo Bibliographico, Coimbra, 1877-1879. Totalmente ignorado,
foi recentemente redescoberto por Alexandre Lobato que no-lo apresenta corno
um apógrafo, em caligrafia do século XVIII.
160
161
caçoens he dentro no dito Rio do Santo Espirito, onde se
fazem surtas. A circunferência da Bahia hé de mais de vinte
legoas, e em qu e não ha ponto fixo, ao menos de que eu
possa dar certeza. Comesa a ponta do Norte por hum Monte,
que se chama Unh á c a p e q u e n a = por ter a forma, ou feitio
de hua unha de vaca sahida ao mar. Correndo pêra o Sul, há
hua Serra de área, que se limita em outro Monte chamado a
U n h a c a g r a n d e . Estes dois montes fazem denominar
aquelle respectivo Continente, e ainda, para o centro. Os
habitantes de U n h a c a g r a n d e , e p e q u e n a constituem
hua Província, ou Reynado. Elles são mais agigantados, que
o mais alto Europeo, a sua estatura hé bem fornecida, muito
regolar, e muito bem feita; não conhecem outros vestidos, do
que a desnodez, a pesar de Ser o Clima muito frio no
Inverno, sopposto, qu e muito benigno nas outras Estaçoens.
Elles tem a arte de se livrarem dos incómodos do tempo. Servem-se de hum canudo feito, e tecido de pequenas tiras de
palha, para prezervarem somente a parte principal d'aquellas,
que o pejo, e a honestidade manda esconder da vista dos
humanos. As molheres proporcionalmente são altas, também
andão nuas á excepção de trazerem dois pannos pretos bem
cobertos, ou matizados de contas, de três palmos de largo, e
quatro de comprido, os quaes ficão pendentes pela centura, e
cobrindo com eles por diante, e por detrás os logares do pejo.
As que não podem trazer pannos por falta de meyos, fazem
aquelles mesteres de coiros de Cabritos.
3.
162
habitadores do Certão, e mais centraes do Continente, a quem
chamão A l e n t o t e s , pelo costume de pronuciarem essa voz,
quando estão no ardor dos seus Bailles, sendo assim
conhecida toda aquella Nação por toda a vasta Região.
Também lhes introduzem pontas de Abbadas, e outros dentes
de peixes marítimos. Elles tem, e conseguem excelente
Âmbar, que todos os annos se arroja nas suas prayas em certa
Estação, que pela experiência sabem para a colheita, e
para que concorre muito a figuração da Costa, e de mar
bravo. As suas terras produzem Arroz escellente, e muito
em abastança, bem como os mais legumes, por que tem
divercissimas castas de bom Feijão, Favas, Ervilhas, Grãos,
Guandos, (que hé hua espece de ervilha mais grada, e
farinada) Couves grandicissimas, Aliaces óptimas, Cebolas, e
as Canas doces, de que se .servem, ignorando o modo de
fazer asucar: do que tudo hião vender ao Destacamento da
Tropa, e a bordo dos Navios nas suas pequenas
Embarcaçoens, de que se servem para as pescarias, em que
são muito práticos, somente com o instrumento de Anzoes, e
no que muito utilizão pela abundância de peixe saborozissimo.
As suas prayas são abondantes de marisco excellente; há
muita Vaca cuja carne hé de bom sabor; há o Carneiro de
cinco quartos de notável gosto, e se adverte que a sua lan não
hé crespa, e só corredia, e curta á maneira do pello de Cavallo.
Neste sitio enche e vaza a Maré três legoas e com arrebatada
corrente, isto hé em toda a Bahia. Nesta Costa da
U n h a c a , dentro da referida Enceada, se encontrão
grandes maravilhas da Natureza, como são, o Martelo, e os
Aljofares. Vi os Martelos; dos Aljôfares fuj enformado.
Prezenciei alguns Cafres Vassalos do Rey Capella, de quem
logo fallarei, que trasião na ponta do seu tecido canudo, hua
grande pérola preza, e furada, e me informarão ser das da
Costa, e prayas de U n h a c a . Em ambas as U n h a c a s , há
bella, e excellente agoa de poços, bem como na vezinha
Ilha de Santa Maria; e na Unhaca pequena, há hua
Ribeira corrente de rnuito boa agoa. Concluo dizendo que
hé muito vasta a população, e toda a gente de pacifica
condição, domestica, e tratavel, e com hua precepção
vivíssima, e atilada.
Elles tem diversas Habitaçoens, e mais de secenta athé
setenta Cazas de palhoças, redondas na sua configuraçãi; em
cada Povoação destas, há hum Chefe, a quem chamão
M a f u m a , e a quem os indivíduos respectivos tem hum
grande respeito, e obediência, como a hum logar Tenente do
seu Rey. São muitas as Povoaçoens, e situadas em breves
distancias huas das outras, de maneira que ao son de
Tambores se participão as noticias de qualquer attaque. O
Rey destes Cafres da Unhaca, tem hua grande authoridade
sobre os seus Povos, e Mafumas. O seu Comercio consiste
em muito Marfin, pois á lem do que alcanção, e conseguem
do próprio Paiz, lhes trazem muito grande porção delle, e
dentes de Cavallo marinho os outros Cafres
4.
Vão cinco legoas adiante da Unhaca grande, e pela Costa
163
da Bahia, quando apparece o Rio de Maputo ao Sul; e
bem entendido, que toda esta Costa hé povoada, e de gentes
de bom agrado, aonde há excellente Âmbar: essa parte do
Continente compete ao Rey de Maputo. Este Rio hé muito
extenço, e se navega por elle asima, mais de cesenta dias de
viagem em Lanxas ainda, que por conta da Barra se não
soffrem Vazos grandes, que demandão mayor fundo de
agoa. Em toda a sua extenção há grande Comercio de Marfim
de hums, e outros dentes, e pontas de Abbadas, aonde
apparecem alguãs de sete palmos de comprido. A direção do
Rio hé sempre para Oest; os seus habitadores são alentotes ;
hé muito abondante de toda a casta de gados, e athé do
bravio. Há todos os bons legumes, excellente Arroz, e
muito fértil o seu paiz. Tem minas de Cobre, e de
excellentissimo oiro, que trazem os Cafres das montanhas. Os
habitantes me informarão, que tinhão tanto Marfim, quanto
não podião explicar, mas como esse povo tinha guerra com
outros confinantes, os nossos não ouzavão hir traficar com
elle, por evitar, que sendo robados, não se sóbese quaes erão
os agressores, não podendo por essa desculpa ser castigados:
ponto este de Justiça, em que os Reys são muito severos, e
exactos. Deste Rio tiverão os Ingleses, e Imperiaes os seus
mayores interesses. Estes Cafres também andão nus, como os
da U n h a c a , e uzão do mesmo canudo para conservação da
honestidade, bem como as molheres dos pannos pendentes.
Este hé o trage de todos aquelles povos do Vasto Continente.
São muitas as povoaçoens deste Rio, e pola terra a dentro, e
há hums poços de Reys todos nossos amigos, entre elles se
destingue muito o Rey C a p e l l a , de quem prometi fallar.
Este Princepe, dês da antiguidade, como me disse, hé muito
amigo da Nação portuguesa, do que se deriva, que seus
Avós, comforme á tradição já nos erão muito favoráveis.
He elle de huma regularissima altura, bem moldado, e bem
figurado. Hé da Caza dos Landins, pêra fazer differença dos
Alentotes, tem vinte, e três annos de idade, e falia bem a
nossa lingoagem ; hé muito civil, e político a seu modo; de
três, em três Meses vem pessoalmente a bordo dos Navios,
que estão ancorados nas vezinhanças das suas margens,
aonde janta acompanhado dos seus grandes, e para isso
previne os do Navio com hua Vaca, que lhes manda de
refresco.
Está no bordo muito tempo, aonde come, e bebe agoa
ardente, licor, o qual atrahe muito á todos os Cafres
Nacionaes, e recebe donativos de Pesas de panno preto, e
Contas, que tudo empórta em vinte, e cinco cruzados. Elle
sempre reputa o seu Marfim pelo melhor preço, a cerca do
mais, dis, que vejão se o podem comprar por hum panno,
frase que entre elles explica o barato. Acabada esta sua
visita, se restitue á sua terra, que sempre terá" a distancia de
hum dia de viagem, cuja marcha elle toma com suavidade,
por que prenoita em algumas das suas Povoaçoens. Admite
em sua Caza hum sogeito, ou Negociante para lhe comprar o
seu Marfim, e o da sua Gente; e este Sogeito, hé regolarmente
hu Comisario d'aquelles, que traficão, ou negoceão nesse
género. As suas terras são muito abondantes de tudo quando
hé comestível, e quanto costuma servir para o negocio do
Paiz. E nas que são sogeitas á este Rey, hé que as Embarcaçoens fazem a melhor aguada.
5.
Segue-se de parte do Norte, continuando a circunferência da
sobre dita Bahia, o notável Rio do Espirito Santo, o qual
pertence á os Domínios do Rey Matolla. Este Princepe, que
demostra ter trinta annos, hé muito amigo dos Portugueses,
talves desempenhando aquella boa amizade, que seus
Antecessores, e Avóz tiverão com a nossa gente ; pois o dito
Rio era, e sempre foj o abrigo de todas as Embarcaçoens, que
se acolhem á Enceáda, a onde unicamente há ancoradoiro, e
mais seguro Nos Annaes da sua tradição se conserva, a
memória do grande agazálho, que davão a os Portuguezes,
quando por naufragantes hião para ás suas terras. O mesmo á
cerca do dito Rey = C a p e l l a = cujo nome derivou de hua
Caza sua, chamada Capoeira, a onde se agazalhavão os Portuguezes despojados pelo naufrágio. O sobredito Matolla, nos
deo nas suas terras a porção, que quizesse-mos, e nella se
edeficou a povoação para o destacamento de cento, e trinta
homens que mandou o Governador interino de Mosambique,
Vicente Caetano de Maya, segundo as Ordens superiores, que
teve. O certo hé, que o dito Rey não podia dar mayor
demonstração de affabilidade, e cordeal afecto pêlos
Portuguezes, pois lhes chamavam seus filhos, e por hum
Edicto geral, e verbalmente comonicado,
165
164
havia participado (sic) a os seus Vassalos, que nenhum se
atrevesse a maltratar a os Portuguezes com Ferro, ou
Azagaya sob graves penas: que no caso de serem doestados
pelos Portuguezes, só se poderião deffender, mas não atacar.
Havia expresa ordem para os Portuguezes poderem passar, e
atravessar todas as terras do seu Reyno, sem o menor
impedimento. Elle nos pessuadia muitas vezes, que no logar
do Destacamento edificasse--mos Cazas de pedra, e cal, e á
lem de hua horta do Governador da Fortaleza.
6.
7.
Este Rey hé muito rico, tem grande extenção de terras, e de
hum logar cheo de Povoaçoens, que corresponde á hua
grande Província nossa chamado (sic) Clerinda (sic), sahem
grandes provisoens de viveres, muitos gados, muitos-legumes,
fructos silvestres, e industriaes, excellentes bananas,
mimozas mangas, e bons ananazes. Há também grande
quantidade de Marfim nas suas terras. A sua Caza vem parar
muita gente da montanha, de seis, e sete mezes de caminho a
trazer oiro, cobre, e marfim. Todo o seu Continente tem
Vaca de muito bom sabor, e do mesmo modo hé o Capado, e
o Xibarro, o Carneiro de cinco quartos. Há também
excellente peixe, e muito saboroso, assim são as Galinhas, e
muito grandes, e com grande abondancia. A Tropa todos os
Mezes matava mais de sete centas para seu mantimento, e a
preço cada hua de palmo, e meyo de panno preto.
Quaze todos os dias havia hua Feira junto ao Destacamento,
e esta, não só de viveres, e fructas de regalo, como também
das outras especes. Houve occazião, que o Âmbar, e Marfim
andava a granel, e vendião hum pedaço, que teria hum
arrátel por duas braças de panno, e ainda assim o não
compravão. Não posso deixar de dizer alguãs circunstancias,
que dão toda a idea da boa índole, e inclinação deste Rey
Matólla. Elle vinha muitas vezes á nossa Povoação, e se era
de de manha (sic), asistia com toda a veneração ao incruento
Sacrifício da Missa, persuadindo a os seus, que praticassem
o mesmo culto, postos todos de joelhos. Tinha elle hua
grande anciedade de saber a Dotrina do nosso (sic) Religião,
e como sabia, e fallava o Edioma Português, tinha comigo
sizudas conferencias
sobre esse Artigo, rogando-me que fosse celebrar Missa nas
suas terras, e que para esse f i m mandaria edeficar hum bem
decente apozento. Agumas ( s i c ) vezes pelo seu Secretario,
ou Menistro junto á pessoa, me fés conduzir á sua Caza, no
que assenti, quando menos me occupava no Destacamento, e
em algum seguro intervalo. Quando eu apparecia na Caza do
Rey era excessivo o seu prazer, e por essa demonstração
participava essa noticia á os Reys vezinhos, Mavotte, e
Matumbane. Alguãs vezes me vinha buscar ao caminho,
antes de entrar na sua Povoação. Era inexplicável a sua
consolação com a minha companhia. Elle no meyo dos seus
Grandes muitas vezes me pedia lhe explicasse a criação do
Mundo, e a do primeiro homem, a sua queda, originaria da
perda do género humano; a v ind a do filho de Deos ao
Mundo, e a Encarnação do Verbo divino nas puríssimas
entranhas de M a r i a S a n t í s s i m a sua May, e Senhora
nossa. Tudo elles ouvião atiladamente com sizudeza, e
crudelidade ( s i c ) , e depois de se encherem de admiração, me
pedia o Rey, que lhe demonstrasse na sua povoação hum
sinal de affecto, demorando-me com elle, pois tinha hum
grande dezejo de saber a dotrina christan. Isto fis quanto me
foi possível, mas sem mayor fructo, por ter de asistir ao meu
Ministério no dito Barracamento, e á Tropa.
8.Seis Legoas retirado deste Rio ao Norte está o grande R io
do Manissa, e do Magaya, bem entendido, que hé hua só
corrente, porem conserva aquelles dois nomes, por que no
seu berço se achão dois Reys, que sempre conservarão esses
nomes dês dos seus oriundos. Logo na entrada deste Rio está
o Rey Mavotte, que entre outros muito seus confinantes, hé
asinalado polo seu grande poder, riqueza, e abastança. Tem
muitos gados, e muita população. Eu lhe vi muito Âmbar, no
volume de oito arrobas depozitado em Caixas, que ele
comprou, e houve de outros Cafres chamados =
M a c a r a m b a s = que havião descido do Rio do oiro, Rio,
que está entre a dita Bahia de Lourenco Marques, e o Cabo
do Promontório. Este Rey, como fica na boca, e entrada do
Rio Manissa, tem ocazião de receber de todos os Navios, que
vão á Enceáda, hum Donativo, á que chamão Saguatte
conforme o estilo, e fraze do Paiz de toda a índia ; o mesmo
recebe, e todas,
166
167
e quaesquer Embarcaçoens, que sobem pelo seu Rio assima.
Elle hé muito afável, e político; á seu rogo estive quatro dias
na sua Povoação, pedindo-me, que queria lhe ensinasse,
quem era Deos? e como a sua Povoação dista seis Legoas do
nosso Destacamento, tive occazião de reppetir a vezita, e o
mesmo Rey me fés o Donativo de dois pedaços de Âmbar,
que pezavão trinta, e oito onças. Também admitte em sua
Caza um Negociante, e Comprador de Marfim, por ser delle
o Paiz muito abondante, e o trazerem repetidas vezes os
Cafres das outras Povoaçoens.
9.
168
Segue-se outro Rei chamado Matumbane, cujas Terras são
confinantes com as (do) sobredito Mavote. Hé muito
abundante de provimentos, e das suas Terras sahe muito
Arroz, que se vende a os que necessitãp dessas provisoens.
Também admitte em sua Morada Comprador Negociante do
Marfim. Depois deste Potentado dezasseis, ou vinte dias de
viagem, esta outro Rey, a quem chamão o Grão Caixa, e
pola razão da sua mayoria, e soperioridade sobre os outros
Reys do Território, todos o teme, e respeitão polo seu grande
poder, e pola muita gente, que lhe obdece, e tem em seus
Domínios. Para a caza deste Rey concorrem muitos
Portadores de Marfim, e com muita quantidade, de maneira
que mandava pedir muitas vezes ao nosso Destacamento, que
quizessem comprar-lhe o Marfim d'aquellas expedições, por
não ter logar a onde acomodar a muita gente que o havia
conduzido. A sua Caza se pode equiparar com o Maneyo de
hua Alfândega abastecida, pois como pagão ao Rey certos
Direitos dos géneros do Marfim, todos ali a conduzem, e ali
se faz o trafico. Deve--se entender, que os Rios de Maputo, a
Manissa erão os Canos, donde os Inglezes tiravão todos os
seus mayores interesses, e que descontavão com largas uzuras
os seus incómodos. Não há com que se comparem as grandes
utilidades destes dois Rios, nem o que descia por aquellas
duas paragens, pois todos os annos tinhão de continuo seis,
ou sette Embarcaçoens a tomar carga de Marfim, pontas de
Abbadas, dentes de Cavallo Marinho, Escravos aprehendidos em guerra entre elles, Âmbar, Oiro, Cobre, e outras
úteis produçoens. Isto obrigava a os Inglezes a não deixarem
aquelle Porto de tanto proveito ao seu Comercio, e esta era a
mesma razão, por que também
se atrahião os Imperiaes com as suas Embarcaçoens para
igual negocio.
10.
Já dei idea da boa Índole, e domestica condição de todos
aquelles Cafres habitantes do Paiz: Elles são muito atillados,
tem censo para deixarem de impremir de todo as noçoens,
descernindo o bem do mal, e o útil do nocivo; são afáveis, e
agradecidos. Já disse a grande inclinação, - que os dominava a
favor dos Portuguezes, principalmente no Rey Matólla, em
cujas terras estava o nosso Destacamento, o qual foi bem
recebido com toda a gente polo dito Rey, e polos seus
Apaniguados. A vista do seu bom acolhimento, entendendo, e
fallandò a nossa Lingoa, se estableceo o nosso Barracamento,
dando-se nos a terra, que quizesse-mos abranger, e escolher. O
contentamento era geral, e em dezanove de Abril de mil, sette
centos, e oitenta, e hum, dia de S. Jozé, fés o nosso Governador
Joaquim de Araújo, arvorar bandeira, estando estabelecido o
conveniente Reducto, e apontados os nossos Canhoens.
Tivemos porém, e soffremos a infelis desgraça de ver arder o
nosso Barracamento a os doze de Mayo seguinte, sem se poder
prezervar coiza alguã: por que o tempo, a Atemosphera, a
palha, que fazia o telhado, tudo fazia rápido o incêndio, e não
contei pouco em me salvar a mim, por estar nessa occazião
muito doente, e por comessar a queima das oito, pêra as nove
horas da noite, em cujo conflicto vim a perder todo aquelle
provemento, que tinha ajuntado, e prevenido para três annos;
Tudo em fim quanto estava em terra se reduzio á cinzas
ligeiramente.
11.
O Rey Matólla se enterneceo muito com o acontecimento,
passando ordens para se averiguar, quaes erão os Agressores,
no cazo de ser por culpa de alguém dos seus Vassalos, que se
fizessem incendiários. Sobe-se, que fora acaso, ou descuido de
algum Soldado do destacados, accomodo-se o Rey, morreo
hydropico o nosso Governador á os seis de Julho, succedeulhe o Comandante, o Tenente Manoel António, sendo seu
Substituto Pedro Festevim, e tudo hia bem ; porem como o
refferido Rey costumava vir ao nosso Destacamento, nos
pedia algum panno, ou fato, segundo a fraze do Paiz, e nos
lhe dava-mos o que podia-mos, não podendo pelas mesmas
Leys da gratidão
169
penso, que não seria tão loco, que dezemparasse o sitio sem
algum motivo, posto que dezarrezoado. Não houve outro se
não o seguinte. O Rey Matolla buscou-o, e hé pêra advertir,
que andando sempre este Rey entre os seus com igual
desnudez, e só differençado pela vizagem natural, e pola sua
Azagaya toda rodeada de correas, e de penachos de Ema, e
quando se asenta na esteira, não admite nella outro
concorrente, ou grande, ou ainda dos seus Princepes, excepto
eu, que me asentava apar dele na mesma Esteira; e com
efeito, quando vinha á nossa Povoação, apparecia vestido de
encarnado, e todo agaloado; ou coberto de hum Roupão de
Cabaya encarnada também goarnecida de galoens de oiro. Na
dita occazião buscou o Governador, e lhe pedio por Saguáte
algums pannos, e contas, por queria prezentear á hum
Princepe seu Confederado, e também algua bebida: hé pêra
notar, que a bebida não hé outra coiza, do que agoa ardente, á
que chamão Cachaça, vinda da America. O dito Rey também
fés a mesma petição por parte do Grão Caixa; ao que
respondeo logo o nosso Governador cõ gritaria, e que não
queria dar o que se lhe pedia, e lhe aprezentou três frascos da
dita Cachaça, porem muito toldada de agoa pura misturada.
Como o Rey, e os mais são muito censatos, logo perceberão
que a Cachaça estava dezenxavida, e conhecerão a mistura de
agoa, dizendo então pêra o Governador, que lhe não devera
fazer tanto dezacato, que dicesse antes que não queria, ou que
não podia fazer-lhe aquelle mimo, do que romper em
gritarias, de que verião a entender mal, ou os seus ou os
nossos, e que se dava por m u i t o offendido por se lhe faser
semilhante dezatenção, e que elle Governador devia saber que
estava nas terras delle Rey, e que bem podia se quizesse
mandalo atravesar por hum Azagaya por hum dos seus
Vassalos.
revestir ao seu bom agrado. E como o Reyno era cheo de
Povoaçoens, e por consequência dos pequenos Chefes, que as
dominavão chamados = M a f u m a s = como já disse, estes
nos vinhão demandar algum fato, ou panno: não havia para
todos, nem se podia dar á todos: elles por hua espece de
dezagravo prohibião á os seus Subalternos, que nos viessem
vender algum Provimento; neste lance comonicado o
encomodo ao Rey Matolla, elle instantaneamente fazia
remover o empedimento, certeficando-nos das suas
favoráveis providencias.
12.
170
Sendo porem chegada certa Embarcação do Bombaim, e
querendo fazer negocio naquelle Porto, lho não consentio o
nosso primeiro, e sobredito Governador, e como fés direcção
para Moçambique, participou ao .General Pedro de Saldanha,
que o refferido Governador estava muito doente daquella
Hydropezia, e que havia falta de obdiencia nos Soldados. Fés
este logo expedir hum bom numero de Soldados captaniados
pelo Tenente João Henriques, para ser Governador do dito
Destacamento no caso de se achar falecido, o que ao principio
governava, e prezadia: O nosso Governador chegou ao sitio, e
estufado com o seu Comandamento fés ordens, desconpondo,
e maltratando a os Chefes, com ameaços e demaziada altives,
e da mesma forma, tendo em menoscabo a os Reys do
Continente. Temendo-se de alguas consequências funestas, se
encheo de medo, estando sempre á bordo da Embarcação. Fés
ultimamente dezembarcar a Tropa, desalojou o Prezidio,
recolheos os Canhoens e fés viagem pêra a Capital de
Mosambique, persuadindo á todos, que tinha ordem pêra o
retrocesso. Soou logo esta retirada por todo o Paiz. Os Reys
Matolla,
Capella,
e Mavote,
lhe mandarão
Embaixadores, e Comissários, os quaes de sua parte persuadissem ao Governador, a conservar-se no dito Destacamento, propondo-lhe que a terra era sua, quanta quizessem,
e que elles Reys tornarão a dar todo quanto fato, e Saguátes
havião recebido de nós outros, e que estavão promptos a nos
fazerem as mayores comodidades. O Governador refugou
todos os pareceres, e retirando-se para Mosambique, ali foj
prezo, e se lhe fés conselho de guerra. Ainda, que o dito
Governador não tinha docelidade alguma de génio, e era falto
de sobriedade nas bebidas ; porem
13.
Com isto retirou-se entre os seus. Então me rogou, que fosse
eu boscar ao Rey pêra o suavizar, o que logo executei, indo á
sua Morada, e terra. O Rey me deu excellentes razoens de
brandura, e de discurso, dizendo-me, que o Governador era
altanado, e bravo, não era justo que por elle perdessem os
mais. Houverão finalmente conferencias, e passagens de boa
amizade, tudo porem quanto propuz ao Governador, não teve
alçada para sus171
pender o seu destino e porisso entendo, que o temor, e o
receyo, lhe fés maquinar a impensada retirada.
14.
15.
172
Em quanto ao Negocio destes Paizes, devo ainda dizer o
seguinte. Em Mosambique se fés hua Companhia á maneira
de Monopólio sem authoridade de Sua Magestade, e todos
quantos do povo rezestirão ao arbítrio, forão imediatamente
prezos; o General apoyava isto, e não queria, que quaesquer
outros comprassem Marfim, pontas de Abbadas, e dentes de
Cavallo Marinho, e assim se vedou o Comercio geral,
sahindo desta Companhia aquelles Sogeitos, ou Comissários,
que compravão Marfim em Caza dos sobreditos Reys. O
Âmbar igualmente ficou vedado, e o segundo Governador,
fez por hum Bando publicar, que essa espece era contrato
Régio, e que essa era a ordem, que tinha da Capital, e deste
modo, assim se deffendeo no dito Destacamento da Bahia de
Lourenço Marquez. Concluo, são neste sitio os ares bons, e
saudáveis, e em todos os quartos de Luas regolarmente chove;
os viveres são abundantes, e tudo conspira, para hua
admirável, e proveitoza Colónia, aonde o Comercio pôde ser
florente.
A respeito dos costumes dos Cafres, já disse, que erão
dotados de bom natural, e de boa Índole, sem braveza, nem
fúria, excepto nos litígios de suas guerras, sendo a sua Arma
unicamente a Azagaya, cuja astea, terá seis, ou sette palmos
acabando em ferro agudo. Elles as trazem em feche ás
costas, e as manobrão com grande ligeireza, e força na
distancia de vinte, ou trinta passos. O seu mayor brazão hé
terem muitas mulheres, não tanto por conta da Bligamia,
mas pêra terem outras tantas escravas, as quaes trabalhem
pêra manter á os Maridos: esse hé o principal fim, pois os
Maridos as comprão a preço de pannos, ou de gados, e as
restituem á os Pays, recobrado-lhes o preço se ellas não
querem trabalhar: por esta razão, o que tem mais mulheres,
esse hé o mais rico. Entre elles sempre há hua mais
destincta, á qual chamão a mulher grade, e o mesmo
acontece com o Rey, a quem as mulheres sustentão sendo
compradas, e há dentre ellas hua, que hé a Rainha: todas
ellas apparecem sem recato de escondrijo. Não tem Religião
doutrinal, nem pêra a
adoração. Dizem, que há hum Espirito bom, a que chamão
grande, e superior e cauza de todos os bens. Dizem também,
que há outro Espirito máo, á quem se lhe deve fazer bem
para não fazer mal; e que o bom por ser sum-mamente bom,
não necessita, de que se lhe faça bem; e porisso nos seus
tranzes, dão ao Espirito máo seus Donativos, ou da Galinha,
ou do Carneiro, ou da Vaca, dizendo, que hé do Diabo, fraze
delles, e nessa conta nenguem lhes toca athe morrer, e assim
acabão nesta Supertição. Reconhecem a immortalidade da
alma, e dizem, que em morrendo, vão descansar, não dizem
porem o como. Não há tradição que pay algum castigasse os
seus filhos, nem, que estes dezobedecessem, ou maltratassem á seus Pays.
16.
Géneros de Comercio. A Cachaça, ou Agua ardente do Rio,
Bahia, e Pernambuco; ardians de doze, ou desaseis mãos de
panno. Hua Ardia, hé a medida da ponta da mão ao
cotovello. Capotins de duas braças. Meyas Ardians de braça,
e meya. Zenartes, que são pannos pretos da índia, da treceira
sorte. Doutins, são pannos brancos, de dezasseis mãos.
Cobertas pintadas de Damão ; Munguifis, que são também
pannos pintados com varias figuras de Ani-maes das índias,
e tem largura ordinária de quatro palmos. Meyos pannos
pintados, que são menos compridos, que os sobreditos.
Munguifis, Conta branca, azul, cor de oiro, cor de cana, cor
de laranja, e azul celleste. Manilhas de braço, que são huas
Argollas de latão ama-rello, por onde enfião as mãos, e
outras iguaes do pescoço. Muxoxo cor de cana, que hé hua
conta grande, e comprida, que vem de Balaguate, Certão de
Goa. Toda a qualidade de fato preto, que hé o panno de
Surrate. Esta a Exposição de que sou testemunha occular, e
o que passa na verdade. Se o Estilo não for grato ao Leitor,
ser-lhe á a narração pela certeza de que hé composta.
Lisboa, 6 de Agosto de 1784.
173
3."
DESCRIPÇÃO
Do
Estado em que ficavão os Negócios da Capitania de
Mossambique nos fins de Novembro do Anno de 1789 cora algumas
Observaçoens sobre a causa da decadência do Commerçio dos
Estabelecimentos Portugueses na Costa Oriental da África. — Escrita no
anno de 1790 por Jerónimo José Nogueira de Andrade.
A Bahia de Lourenço Marquez, ou vulgarmente o Cabo das correntes,
de que ella está vizinha, he o primeiro porto de Sua Mag.e F.ma, na Costa da
Affrica Oriental. Ella fica da parte de dentro do Cabo da Boa Esperança na
Costa do Natal em altura de 26 Gráos Lat.e Sul. Tem huma chamada
Fortaleza com hum Governador, posto pelo General de Mossambique a
quem elle dá a lizongeira Patente, de Governador, e Feitor da Capitania de
Lourenço Marquez. Este Governador nada he mais
NOTA. — Esta notabilíssima Descrição foi publicada no Arquivo das Colónias, Vol.
1, n.° 2 e seguintes, com a nota de que se conservava quanto possível a ortografia do
manuscrito. Reproduzimos, aqui, do texto impresso no Arquivo das Colónias, apenas a parte
relativa ao estabelecimento em Lourenço Marques, com que começa a Descrição.
Jerónimo José Nogueira de Andrade, seu autor, serviu em Moçambique desde 1779 a
1790. Capitão de artilheiros, comandou a Praça de S. Sebastião. Em 1783, foi secretário do
governo. Em 1789, comandante da artilharia da Praça de Moçambique.
O cónego Dr. Alcântara Guerreiro atribui também, com excelente razão, a Nogueira
de Andrade, a Breve e verdadeira notícia da Guerra do Uticullo com o Estado de Mossambique
nos annos de 1783 e 1784, que o mesmo ilustre missionário descobriu na Biblioteca de Évora e
publicou no Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, n.° 52, de 1947.
175
do que hum Commandante daquelle presidio, que he composto de
dous Tenentes, hum Sargento, hum Furriel, dous Cabos, hum
Tambor, e quarenta e hum soldados, destacados do Regimento de
Infantaria de Mossambique; tem mais hum Furriel, hum Cabo, e
onze Soldados, do Corpo de Artilharia, hum Cirurgião, cuja
sciençia consiste na Patente de Cirurgião Mor daquella Capitania,
hum Capelão,, que o Bispo Prelado de Mossambique anima com os
titulos de Vigário Parochial, e da vara, hum Escrivão da Feitoria, e
huma pequena chalupa tripulada de outo Lascares, e Marinheiros
commandados por hum Piloto, também graduado com a Patente
Honorária de Tenente do Mar. Este he que são todos os Súditos
daquelle Governador, a algumas legoas dentro da Borda do Rio
Espirito Santo, em terras do Regulo Matola, está a nossa chamada
Fortaleza do Cabo das Correntes; Ella naõ he mais que hum
quadrado, formado de grossas estacas e faxinas já bem podres, as
quaes cercão a capella; os quartéis, e o armazém que cobre o
presidio: Esta sempre dispendiosa e mal começada Fortaleza já
desde o anno de 1780, he nova obra de Diogo António de Barros
Soutto Maior, terceiro Governador daquella Bahia, em cujo
penoso trabalho, se consumio a própria vida, a de muitos
soldados, e também muito Cabedal da Fazenda de Sua Magestade. Seguio-se-lhe, Joaquim José da Costa Portugal, com a
mesma, ou mayor infelicidade, pois aly perdeo sua mulher, e hum
filho, e elle morreu, deixando seus outros filhos e filhas em
lastimozo desamparo. Este Governador, gastou ainda mais
Cabedal á Fazenda de Sua Magestade. Seguio-se lhe interinamente o Tenente André Avelino, e continuou a despeza e o
trabalho. Foi agora o Tenente de Artilharia Pedro Festivem, que
apezar do pouco que presta, he o único que o General teve para
nomear pelas circumstançias de ser antigo conhecido daquelles
caffres, ter génio para os atturar e naõ saber fazer mais obras nem
mayores despezas.
OBSERVAÇOENS
Este porto pudera ser o mais interessante d'Affrica Oriental,
pois alem de outras circumstançias que logo direi, tem huma
espaçosa Bahia, com bellissima anchoragem para puderosas
armadas. Os Nossos antigos Portuguezes fizerão aly huma
pequena Fortaleza e lhe deixarão Guarnição Militar: esta
176
acabou em breve tempo, por falta de soccoros de Mossambique, e
aquella foi consumida pelo mesmo tempo.
Os Hollandezes estabelecerão aly huma Feitoria, e Guarnição
em Caza Forte, aonde todos perecerão ás mãos dos Caffres, e a
effeitos do Clima.
Os Inglezes de Bombaim, disputarão muitos annos este
Commerçio, sem fazer outro estabelecimento que o de bordo de
seus Navios, donde mandavaõ os seus commissarios negocear
com os Caffres. Seguio-se-lhes a Caza Forte dos Imperiais, aos
quais succedeo o mesmo nosso presido que os foi sacudir por
Ordem de Sua Magestade.
Desde o anno de 1780, tem este novo estabelescimento consumido, três Governadores, bastante Offiçiaes, muitos soldados e
ainda muito mais dinheiro ou fatto da Fazenda de Sua Magestade :
O Comercio Mossambicano nada tem lucrado; pois huma
companhia formada para este mesmo fim, perdeo de seu Cabedal
e Capital, e a Corporação que lhe succedeo nada ganhou. O Nosso
estabelescimento he ainda nenhum, pois tudo quanto aly existe de
nada presta; naõ presta a Fortaleza, porque hum reducto mal
construído e formado de Estacas e Faxinas já semipodres naõ
meresce aquelle nome. Naõ prestaõ os quartéis pela sua mesma
situação, dentro daquelle baixo vallado, formado no lugar mais
allagadiço, e menos sadio: Não presta o Presidio, porque he muito
pequeno, e he composto somente de 70 homens por todo, os quaes
em breves mezes ficaõ reduzidos a menos de 25, pêlos descontos
dos falles-çidos e doentes; por consequência he o Governador ou
Com-madante d'este Presidio, escravo da Vontade daquelles Régulos do Pais, de quem recebe muitos ultrajes, pessoas que a
pennas pode moderar, quando está prompto em pagar-lhes o
tributo de hum presente annual, e franco em pargar-lhe outro
quase diário tributo com despezas de vinho e fatto por conta da
Fazenda Real.
Os Inglezes de Bombaim souberaõ-se conservar muitos annos
no commerçio daquella Bahia com ventagem sua; e tem sabido
arruinar este mesmo Commerçio, fazendo ladinos aquelles Caffres,
de que ainda saõ desejados, por isso mesmo que lhes satisfaziaõ
sua ambição com melhores fazendas, e mayores donativos, a que
os Nossos Negoçeantes de Mossambique naõ podem chegar,
porque as dittas fazendas lhes vem mais caras, e muito peiores
pellas uzurarias mãos dos Baneanes de Diu e Damão.
177
Ainda os dittos Inglezes naõ perdem o amor do Commerçio
d'este porto, e ainda mascarados com a Capa de outros Negociantes de Goa e Mossambique, como constará na Secretaria
d'Estado dos Domínios Ultramarinos pelos Offiçios da índia
desde o anno de 1783, dos dittos Inglezes: sobre aminarem o
Commerçio Portuguez naquelle porto, fizeraõ ainda outros mayores
males á verdadeira Religião, e ao Estado de Mossambique. Elles
deixarão aly huns Mouros de Surate, que tem cathequizado,
fanado, e reduzido, á depravada seita do Falso Profeta huma
grande Parte daquelles Caffres, entre os quaes elles vivem
honrados como Mestres, e cazados segundo o seu Rituo. Estes
mesmos Mouros fazem ainda outro mal, de nos malquistarem
com os Negros a f i m de que venhaõ os Inglezes frequentar o seu
antigo commerçio. Eis aqui huma das primeiras cauzas do pouco
adiantamento d'este Estabelecimento Portuguez, e dos insultos
Caffres. Omitto outras couzas, que procedem das intrigas
coloniaes, e passo a fazer certo que o Governo Hollandes, da
Cidade de Tafel Bay no Cabo de Boa Esperança, trabalha muito
em abrir pelo Sertão caminhos, e communicacoens em direitura
á dita Bahia de Lourenço Marques, e já tem aberto huma somma
de Legoas. Elle manda Naturalistas successivamente a estes
descubrimentos; actualmente tem n'esta diligencia hum Coronel,
e dous naturalistas, que ha seis mezes succederaõ ao Coronel
Gordon, que se recolheo da mesma diligencia em q.e gastou mais
de hum anno, e chegou muito dentro das terras dos mesmos
Landins, que saõ confinantes com os Negros Inhambanes, e aos
do Cabo das Correntes.
Por mar tem os ditos Hollandezes mandado quase todos os
annos huma Nau. M.r Dominy, Francez de Nação, e Capitão de
Mar e Guerra Commandante do Porto naquelle Cabo, tem hido
duas vezes áquella Bahia de Lourenço Marquez no decurso de
quatro annos; tem tomado conhescimento com os Régulos do
paiz, a quem prezenteou ; trouxe dous Negros que já passarão
por terra com os Naturalistas, e em Janeiro passado me disse
elle mesmo, que voltava em Abril á ditta Bahia, e que depois hia
a Mossambique; naõ sei qual seja o destino d'estas diligencias;
sei somente que na minha residência de 25 dias no Cabo da Boa
Esperança, me procurou o Segundo Governador, e fez
inutilmente rolar a conversação, sobre O Nosso estabelescimento e commerçio da mesma Bahia.
Se a conservação d'este porto, convém a Sua Magestade,
preçiza de promptas providencias: de Mossambique naõ podem
dar-se, pois que naõ tem os braços, nem os Petrexos necessários, e
por consequência, he d'esta Corte q.e deve hir expedição em
direitura á ditta Bahia: Engenheiros, artífices competentes,
braços para o trabalho, ferramentas, alguma cal, e Guarnição
Militar, que mantenha em respeito aquelles Caffres: he
quanto aly se preçiza: tudo o mais ha no pais: elle abunda em
Gados, arroz e ortaliças, he terra para todas as producçoens, e
pode exportar annualmente mais de duzentos Bares de
Marfim,
muito e finissimo Cobre, bastante Âmbar, Cera,
Manteiga, e ainda outras produçoens: servirá sobre tudo de
Barreira á extençaõ Hollandeza, que paresce quer abranger o
commerçio com os Landins, e logo absorberá o que nós fazemos
em Inhambane. Os Régulos do paiz naõ tem duvida em q.e os
Portuguezes perpetuaõ aly sua residência, e saõ inclinados a favor
da nossa Nação, mas saõ já [graças aos Ingleses de Bombaim] taõ
ladinos no seu commerçio, que querem dar entrada franca a
todas as Naçoens, e declaraõ abertamente que elles naõ haõ de
prohibir-lhes o commerçio. A fé d'estes Caffres he muito
duvidosa: os mesmos Hollandezes o sabem já por experiência, e
os Portuguezes practicos daquella Costa sabem também, que ella
naõ dura muito alem do recebimento de algum presente e de
passada a ebriaguez do vinho que se lhe tem dado: Elles só
conhescem por amigo aquelle que dá mais vinho, e mais
fatto, e só respeitão o Branco, quando lhes he superior em
forças. Com os prezentes se faz com elles amizade, e com o ferro
e fogo se lhes faz manter a palavra. Esta he a única Ley que elles
conhescem Desejava concluir esta informação com o prospecto
das despezas, que a Fazenda Real de Mossambique, tem feito
para este mau estabelesçimento, porem o General de
Mossambique he só quem a pode ter dado exacta nos seus
respectivos Offiçios, e ainda mais accrescentadas de outras
despezas feitas pêlos Negociantes daquella Praça.
Eu resumo-me a dizer, que ellas sobem a muito mais de
quatro centos mil Cruzados dinheiro de Mossambique, e que
emquanto se naõ derem as predittas providencias, se amontoará a
despeza sem proveito algum. N'este Cazo seria melhor, levantar o
presidio, e mandar hum só Navio de Mossambique fazer
annualmente aquelle commerçio, se bem que duvido haja, quem
queira frequenta-lo na concurrençia dos Estrangeiros.
179
178
N. B. — A Bahia de Lourenço Marquez corre de L'es
Nord'este, á Oesud Oeste, até dentro da Unhaia, ou embocadura
do Rio do Espirito Santo, depois correm-se de 13, à 14 legoas
para Oeste, a demandar o Surgidouro defronte da Fortaleza que
serve de quartel ao Nosso Presidio.
4.º
Regimento dado por Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos ao
governador da Bahia de Lourenço Marques, em 25 de
Novembro de 1781.
Tendo a Rainha Nossa Senhora mostrado efficazmente, pelas
ordens dirigidas ao governador da índia, e este ao d'este estado,
quanto é da sua real intenção estabelecer o commercio d'esta
capital para o Cabo das Correntes e bahia de Lourenço Marques;
me determinei nomear a v. m.cê, em o real nome da Rainha Nossa
Senhora, por capitão mor e governador d'aquella bahia e seus
adjacentes, para effeito de restabelecei ali uma feitoria e casa forte,
e formar aquellas mesmas defezas que os austríacos tinham feito,
conformando-me com a instrucção que o governador da índia
mandou a este governo n'este presente anno, e juntamente para
regular o commercio de forma que possa ser útil á coroa de Sua
Magestade, para o que v. m.cê executará o que n'estes capítulos lhe
ordeno, e são os seguintes:
1.°
Que v. m.cê, em chegando á ilha de Unhaca dará fundo no seu
surgidouro, e mandará á terra o capitão Belchior, ou outro
qualquer que seja hábil, escoltado da gente que lhe for necessária,
e mandará chamar o regulo que for d'aquella ilha, e lhe dirá da
minha parte: que sabendo eu que aquelle porto era só
NOTA.—Conforme publicado na Segunda Memória do Governo Português
(doc. n.° 120).
180
181
dos portuguezes, como elle e os seus também sabiam, e que
como vassallos da Rainha de Portugal era preciso mante-los e
defende-los de outras nações que, ambiciosas dos géneros d'aquelle
paiz, quererão apossar-se d'aquellas terras contra a vontade de
sua senhora, que é a Rainha de Portugal, para depois os tratarem
com tyrannias e roubos próprios de quem vae buscar o que não
é seu; eu determinei ali mandar fazer outra casa, e que
estivessem portuguezes com fato para fazerem aquelle commercio
que até ali estavam fazendo aquellas outras embarcações, para o
que eu lhe mandava um saguate em signal da amizade que queria
conservar com aquelles povos; que eu lhe promettia de lhe
mandar todos os annos fazendas para elles contratarem e se
vestirem.
E v. m.oê deixará ali trinta homens com o capitão Belchior e o
alferes Francisco Mourão, com tudo o que fôr-preciso para a
construcção da dita casa forte e accommodações dos soldados,
estabelecimento este para o que v. m.cê deve applicar todas as
forças.
logar mais próprio, defendendo esta com uma estacada; porém tudo
em situação onde haja agua e aquellas comrnodidades que se fazem
precisas na terra firme, e de bordo da embarcação d'onde se não
deve tirar nada sem tudo estar pactuado, a fim de que tudo se faça
com socego.
4.°
No caso de que aquelle porto vão algumas nações estrangeiras
fazer mantimento, v. m.cè lhe dará toda a hospitalidade,
prohibindo exactissimamente que façam negocio algum n'a-quelle
porto; e no caso que alguma embarcação de maior força lhe
queira fazer algum insulto e desobedecer á ordem que a respeito
do nosso domínio lhe intimar, v. m.cê lhe fará um protesto por
escripto, com o seu escrivão e algumas pessoas, e lh'o remetterá,
dizendo-lhe que de tudo dará parte ao seu governador do estado,
para o representar á corte de Portugal, mostrando-se v. m.cê
sempre com um ar dominante, favorecido das ordens que eu lhe
tenho dado.
2.°
Que depois que v. m.cê chegar ao canal onde se costuma dar
fundo, que é onde os austríacos tinham uma bateria, mandará
chamar o rei Capella, e Matolla, e todos os mais régulos da
praia, e lhes dirá a mesma arenga do primeiro capitulo, fazendo
por agradar muito a estes régulos, não consentindo, debaixo de
graves penas, que nenhuma pessoa que estiver debaixo do seu
cominando faça violência alguma a estes negros, salvo se elles
quizerem roubar ou insultar os portuguezes, porque n'esse caso é a
defeza natural. Depois de sagoatear os régulos da minha parte
com os sagoates indicados na relação junta, estabelecerão com
elles que o marfim e mais géneros d'aquelle paiz devem vir á
praia ou a bordo, emquanto se não estabelece alguma pequena
povoação junto á bateria e bandeira que v. m.cê logo deve arvorar
e pôr todo o cuidado para que as mais nações vejão a posse que
nós temos com justo título.
3.°
Far-se-ha uma faxina para postar as peças de artilharia que lhe
parecer, no mesmo sitio onde estava a outra, por me parecer
182
5.°
No caso que a esse porto chegue Guilherme Bolts, v. m.cê lhe
dirá da minha parte, e em nome da Rainha Nossa Senhora, que
elle deve despejar aquelle porto com toda a brevidade, e • do
contrario protesta pelo attentado que commette contra o direito
dos limites, e de tudo isto fará v. m.cê um auto com testemunhas, e
não entrará de forma nenhuma em praticas supérfluas com o dito
Bolts, mostrando o desagrado com que ali o vê, e impedirá
qualquer acção que elle queira fazer contra a nossa propriedade,
até onde chegarem as nossas forças, regulando todos estes
movimentos pêlos termos mais prudentes e seguros que lhe seja
possível; e isto se deve entender com toda a nação estrangeira.
6.°
Depois de estabelecida a amizade com os cafres, formalisará v.
m. c é o negocio de forma que a arroba de marfim grosso não passe
de quarenta pannos, e o meão, miúdo, cera, ponta de abada, dente
de cavallo marinho, á sua proporção; de sorte
183
que nunca os cafres fiquem enganados, e que conheçam que não
queremos senão igualdade no negocio ; e no caso que v. m.cê veja
que esses cafres estão com outros costumes, executará o que lhe for
insinuado pela sociedade que está formalisada para esse porto a
respeito do commercio, considerando a utilidade para os
mercadores d'esta praça e direitos de Sua Magestade.
7."
No caso que dos portos do norte venha alguma embarcação a
commerciar, de forma nenhuma v. m.cê o consentirá, e fará vir a
esta capital a pagar os direitos a Sua Magestade, por ter já
mandado dizer o governador da índia que não mandasse navio
para aquelle porto com fazendas, por estar o commercio
dependente de uma sociedade d'esta capital; e no caso que a
sociedade necessite de alguma fazenda a"poderá comprar, fazendo
v. m.eê pagar os direitos, os quaes remetterá a esta alfândega.
11.°
Mandará v. m.cê ao commandante da tropa que arranche os
soldados na melhor forma que convier, para assim passarem
melhor; e não consentirá que os soldados e officiaes inferiores
andem dispersos na terra firme, e quando forem comprar alguns
viveres vão sempre municiados e debaixo do commando de official
inferior muio prudente, com recommendação de não fazerem
nenhuma desordem.
12.°
V. m.cê todas as occasiões que tiver mandará mappa da tropa e
dos marinheiros, com as alterações que houver tido, a fim de eu
poder saber a necessidade de gente que ahi houver; como também
mandará tirar a planta d'essa bahia pelo capitão Belchior, a mais
exacta que poder ser.
8."
De todos os soldos de officiaes, soldados e marinheiros v.
m.oé mandará fazer folha, para que a sociedade contribua com o
fato sorteado para pagamento de toda a guarnição e tripulação,
que a fazenda real levará em conta pelo preço d'esta capital.
9.°
Todas as fazendas e munições de boca e guerra estarão no
paiol, o qual terá três chaves, uma na mão do governador, outra na
mão do escrivão e outra na mão do mestre da embarcação. Nada
se poderá tirar sem a Decorrência das três chaves, cujos
clavicularios ficarão responsáveis pelas suas faltas.
10.°
Não se gastará pólvora alguma com salvas, e só nos annos da
Rainha Nossa Senhora se dará uma salva com as peças de quatro,
conforme a necessidade que houver d'ella, preferindo a utilidade
commum a este cerimonial. Se algum navio entrar no porto e salvar
á bandeira real o receberão com três tiros de bateria, debaixo da
mesma condição acima referida.
184
13.°
Todas as vezes que houver algum acontecimento que não
esteja estabelecido por lei ou regimento, v. m.cê convocará para
"a sua decisão todos os officiaes de tropa e do navio, e decidirão
o que melhor convier, seguindo a pluralidade de votos e fazendo
de tudo termo pelo escrivão, assignado por todos.
14.°
Como conheço a grande experiência que v. m.cê tem dos
cafres, e capacidade e prudência de que v. m.cê se orna, espero,
que tudo que aqui posso omittir, v. m.cê com o seu discernimento
remedeie ou acautele como melhor lhe parecer justo, emquanto
me dá parte.
Moçambique, 25 de novembro de 1781.
VICENTE CAETANO DA MAIA E VASCONCELLOS
5.°
Instrução dada por Francisco Guedes de Carvalho e Menezes
da Costa ao comandante do presídio de Lourenço Marques,
em 5 de Fevereiro de 1799.
O official commandante da bahia de Lourenço Marques, Luiz
José, que na presente monção vae exercer este emprego, executará
o que n'esta instrucção se lhe determina, na maneira seguinte:
Logo que a palia Minerva que o transporta com os soldados
destinados, munições e viveres der fundo n'aquelle porto, mandará
o dito commandante, com assistência do capitão da mesma
embarcação, chamar os régulos da praia e lhes fará ver que vamos
restabelecer o antigo estabelecimento que foi invadido e arrazado
pêlos francezes, a fim de conservar a antiga posse do dominio
portuguez n'este logar, arvorando ali o seu pavilhão, e entretendo
n'esta forma o commercio com os referidos régulos, fornecendolhes as fazendas do costume pelos beneficiar, entretanto que a paz
não dá logar a mandar um melhor estabelecimento de tropa e
fornecimento de fazendas que agora não há, e mesmo ainda que as
houvesse seria imprudente expô-las nas actuaes circunstancias a
outra invasão, sem a sufficiente tropa para a sua defeza.
Restabelecida a antiga amizade com os cafres, fará o dito
commandante desembarcar os effeitos que leva e principiará a
formar a sua residência com as proporções de fortificação para a
tropa que o acompanha, quanto isto lhe seja possível, cooperando
para este trabalho, não só a tropa mas também todas as pessoas da
tripulação da mesma palia que o capitão possa
NOTA. — Conforme publicada na Segunda Memória do Governo Português
(doc. n.° 128, anexo).
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applicar a este serviço, que recommendo á sua actividade e
cuidado, para que possa ficar todo o destacamento e os seus pertences suficientemente accommodados ao tempo que pretender
retirar-se a referida palia, e arvorado o pavilhão portuguez no logar
mais próprio d'esta mesma fortificação, devendo ficar, tanto o
capitão da embarcação como o commandante do destacamento, na
intelligencia de que o nosso principal e immediato objecto é a
segurança da possessão do commercio privativo dos limites de uma
costa que pertence a Sua Magestade Fidelissima, procurando para
este fim todos os meios que lhe sub-ministrar a sua intelligencia, á
proporção do que se lhe for apresentando nas conferencias e tratos
de commercio que forem tendo com os ditos régulos e cafres.
Disposto tudo isto na melhor forma possível, fará o dito
commandante arranchar os soldados e fazendo comprar o que lhes
for preciso para seu passadio pelo mais commodo preço, bem
entendido que se lhes não restrinjam os soldos de forma que
venham a padecer, não sendo outra a intenção d'esta ordem que
evitar liberdades que lhes possão ser nocivas, e ao mesmo tempo
conserva-los sempre juntos para mais segurança do presidio.
O commandante terá igualmente todo o cuidado em manter e
desenvolver nos referidos régulos e cafres a convicção de que este
território e mar da bahia de Lourenço Marques pertence
legitimamente por muitos títulos a Sua Magestade, inspirando a
estes povos o amor e obediência que devem á coroa de Portugal,
fazendo igualmente sciente a qualquer navio estrangeiro que ahi
possa aportar que este é um estabelecimento dos domínios de Sua
Magestade Fidelíssima; que a nenhuma outra nação ali é permittido
entrar a fazer commercio ; e que supposto a mesma soberana não
tem n'elle de presente aquellas forças necessárias para impedir com
resistência a perturbação que qualquer navio estrangeiro possa
fazer nos seus direitos ali, comtudo formará d'isto queixas aos seus
respectivos soberanos para ser d'ellas satisfeita na forma que o
deve ser.
Deverá sim o referido commandante offerecer-se aos capitães
dos navios que ali aportarem por motivos que sejam admissíveis,
para lhe procurar com os régulos e cafres d'esta costa todas as
cousas que elles lhe apresentarem e for possível acharem-se para
provisões dos seus navios, dizendo-lhes que é contra os privilégios
de Sua Magestade Fidelíssima que elles o façam por si, mandando
a terra os seus escaleres e commer-
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ciando com os ditos régulos ou cafres, não lhes sendo permittido de maneira alguma procurar estas mesmas provisões em
troco de pólvora e armas.
Em todos os contratos que a nossa tropa tiver com os cafres
d'esta costa se deverá comportar sem a menor violência e com
toda a boa fé e docilidade própria da nação portugueza, e que
seja capaz de inspirar-lhes o amor que é conveniente que nos
tenham.
O commandante da tropa, juntamente com o da embarcação
de viagem, conservarão sempre boa harmonia, não devendo
entre elles haver mais que uma só vontade na execução do que
for interessante ao serviço de Sua Magestade e bem de nosso
commercio, por cujos motivos consultarão sempre de commum
accordo sobre o que devem praticar a este fim, e de todos os
acontecimentos e mais particularidades d'aquella bahia tocantes ao
commercio, sua situação e producções, me darão individuaes
noticias tanto um como outro commandante.
Não sendo de minha intenção que seja sacrificado a uma
defeza com que não possa o destacamento que presentemente
vae restabelecer o referido presidio, por isso o commandante
d'elle deverá cuidar com todo o desvelo em buscar os meios de
pôr em segurança, tanto as pessoas da sua guarnição como os
effeitos pertencentes a Sua Magestade, e viveres para a sua
subsistência, buscando de acordo com os régulos e cafres vizinhos
ter de prevenção um logar no sertão onde se possa retirar com
todos os seus pertences, e ficar ali defendido tanto pelo soccorro
dos mesmos régulos e cafres, como também pela distancia da
praia e receio que causará aos inimigos o intentar acommetter
em uma situação tal; comtudo, porem, como em taes
circumstancias tem muitas vezes mostrado a experiência, muito
principalmente nas colónias de África e Ásia, que varias vezes
um só homem sendo dotado de sagacidade e valor, tem podido
attrahir a seu partido por meio de negociações amigáveis e até
mesmo depois forçosas, combinando o poder de seus aluados para
obrigar os outros, conseguindo v. m.cê achar-se em uma tal
posição não deixará de oppor-se a todo e qualquer ataque ao
qual lhe parecer tem forças para resistir.
Os princípios de que deve servir-se para conseguir o referido
partido será de fazer persuadir os régulos e cafres, de que a elles
convém muito o nosso estabelecimento ali, a nossa amizade e
commercio do nosso fato; unido com a amizade d'estes poderá
castigar e obrigar a outros vizinhos, debaixo sempre de
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motivos que elles conheçam cheios de rasão, e assim podendo
augmentar as nossas forças se poderá pôr em estado, não só de
reparar-se dos inimigos do interior, mas igualmente de quaesquer estrangeiros que nos possam atacar pela praia.
Terá também o cuidado em persuadir aos referidos régulos e
cafres as rasões por que na presente monção não são remettidas
todas as provisões do commercio próprias para aquelle
continente, tanto por não terem chegado em consequência da
falta do noso commercio com a costa da Ásia, por causa da
guerra com os francezes, mas também que não vae o governador
nomeado, com os competentes officiaes e tropa, pêlos mesmos
motivos de falta de provisões para a sua subsistência, e
necessidade que aqui ha de presente d'estes officiaes, e mesmo
por não ser ainda sufficiente este destacamento a resistir a uma
invasão de francezes, quando elles ditos régulos e cafres se não
esforçarem a ajudar-nos, e vir assim Sua Magestade Fidelíssima
a ter uma maior perda da sua tropa e effeitos de sua fazenda, e
que o que por ora mais nos convém é sustentar ali a possessão do
domínio de Sua Magestade Fidelíssima, soccorrer a elles ditos
régulos e cafres com o commercio do seu costume e provisões, e
não causar no entretanto, durante a guerra, uma grande cobiça
aos francezes para ter mais que roubar n'esse presidio.
O mesmo commandante cuidará em ir juntando toda a madeira que lhe for possível para o fabrico do augmento da
residência e fortificação que se deverá fazer logo que chegar o
governador com toda a guarnição e effeitos que estão destinados,
cuja expedição espero que seja feita no março, quando cheguem
fazendas do norte. No entretanto vae fornecimento para o actual
destacamento para um anno, como constará ao dito commandante
da factura que lhe será dada pela contadoria da junta da real
fazenda, cuja receita e despeza elle lançará em um livro que lhe
será entregue pela dita contadoria e do qual ficará servindo em o
referido destacamento para sua descarga, por se haver perdido
todo o arranjamento que ali havia pertencente a este assumpto,
como também receberá outro livro para n'elle lançar todas as
ordens que tiver d'este governo, como fará igualmente d'estas
presentes instrucções que deve observar.
Moçambique, 5 de fevereiro de 1799.
FRANCISCO GUEDES DE CARVALHO E MENEZES DA COSTA

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