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ADVERTÊNCIA Este livrinho não tem mais pretensões que a de proporcionar a quem disso haja interesse uma compilação, analisada e comentada, dos dados que actualmente possuímos sobre a história antiga de Lourenço Marques. Não é uma história do descobrimento e da fundação de Lourenço Marques, mas tão somente uma revista dos materiais de que dispomos para ela. São poucos esses materiais, poucos e fragmentários, de modo que muitas vezes não se ajustam — incompletos e descontínuos, largamente dispersos pelo tempo. Daí, e da fraqueza do autor, a insuficiência deste trabalho. Quando dizemos que são poucos os materiais, referimo-nos aos que nos oferecem as bibliotecas e arquivos da Colónia — ou mais precisamente: o Arquivo Histórico de Moçambique. Se no Arquivo encontramos a bibliografia fundamental para estes estudos, já assim não sucede quanto a manuscritos. Os documentos mais velhos que existem na Colónia não vão além da segunda metade do século XVIII e esses, mesmo, não se contam por mais de escassas dezenas, com a particular circunstância de que nenhum respeita a Lourenço Marques. 1500-1545 DESCOBRIMENTO Lourenço Marques é a mais nova das cidades e vilas históricas, moçambicanas. Quase três séculos separam a sua fundação da de Sofala e da de Moçambique. E quando, em 1761, a carta régia de 9 de Maio promovia a outorga do estatuto de vila às praças, feitorias e feiras da Capitania Geral, Lourenço Marques não existia ainda. No entanto, a baía da Lagoa foi conhecida logo nos primeiros anos da navegação da índia. Ia já desenhada, com os três rios que nela desaguam, no famoso mapa que Alberto Cantino levou clandestinamente de Lisboa para Génova, de presente ao duque de Ferrara. Isto quer dizer que por fins de Setembro, princípios de Outubro de 1502, o mais tardar, havia já em Lisboa informação segura do Bio da Lagoa. Foi por aqueles dias que Cantino, subornando um cartógrafo a quem pagou doze ducados, conseguiu obter a preciosa carta. Partindo deste facto e argumentando que «Vasco da Gama não tocou ali na sua primeira viagem à índia, nem tão-pouco qualquer dos navios da armada de Pedro Álvares Cabral», o comandante Fontoura da Costa concluiu: «portanto, foi o Eio da Lagoa descoberto por João da Nova em 1501 ou 1502» O. A armada de João da Nova, terceira que foi à índia, saiu de Lisboa em 5 de Março de 1501 e (') Comunicação à Academia das Ciências de Lisboa. Publicada em vários lugares, designadamente no documentário trimestral Moçambique, n.o 18. 13 estava de volta em 11 ou 13 de Setembro de 1002. É certo que, quando foi subtraída, a carta de Cantino registava já informação fornecida por essa armada. Prova-o a figuração nela da ilha da Ascensão, descoberta por João da Nova. Mas a conclusão do comandante Fontoura da Costa não deixa de ser singular. Na verdade, o argumento negativo para as armadas do Gama e de Cabral é igualmente negativo para a armada de João da Nova. Se não há nos cronistas e relatores das viagens qualquer indicação de que as duas primeiras armadas tenham tocado nesta altura da costa, também a não há quanto à terceira. A afirmação, pois, de que esta entrou na baía é puramente gratuita. A simples especulação sobre os vagos e tantas vezes contraditórios textos dos cronistas levar-nos-ia, antes, a admitir a probabilidade do descobrimento por alguém da armada de Cabral. João da Nova teve uma viagem feliz e a sua armada navegou sempre, na ida e na volta, regularmente reunida. Com Cabral, porém, não sucedeu assim. A tempestade destroçou a frota. Umas naus afundaram-se; outras andaram perdidas da conserva e só voltaram a reunir-se ao almirante, seis delas, por altura de Sofala; Diogo Dias tresmalhou-se, andou aventurosamente pela costa e Madagáscar, e regressou a Portugal. Assim, e embora a armada de Cabral não tenha tocado no Rio da Lagoa, a hipótese de que algumas dessas naus errantes tenha vindo à baía não é de desprezar. A questão permanece em aberto — e, provavelmente, ficará para sempre ignorado quem foi o descobridor de Lourenço Marques. Em todo o caso, o descobrimento da baía da Lagoa parece não ter suscitado qualquer interesse e não .passou, por então, de mero episódio das navegações e da cartografia. Até à exploração por Lourenço Marques, quarenta anos mais tarde, não há notícia de relações com a baía nem, mesmo, de simples frequência dela pelos capitães da carreira da índia. Os casos de António do Campo e de João de Queirós foram puramente incidentais e, ainda assim, há dúvidas sobre se ocorreram ou não na baía da Lagoa. António do Campo (que, transviado da segunda armada do Gama, só em 1503 passara à índia e se reunira à armada dos Albuquerques) regressava ao Reino, em 1504, e surgiu algures na costa africana, para aguada. Os indígenas deram-lhe boa hospitalidade. Campo pagou-a mal: ao retirar, cativou alguns deles e levou-os para Portugal. No ano seguinte João de Queirós, um dos da armada de Pêro da Nhaia, saltou em terra com uma vintena de homens, na mira de tomar algum gado. Os indígenas atacaram-no e mataram-no — a ele e quase toda a sua companhia: dos vinte homens, só quatro ou cinco puderam voltar para bordo, “bem feridos». João de Barros é, se não estamos em erro, o único dos cronistas que estabelece relação entre os dois sucessos e os dá corno passados no mesmo lugar. Explicando o ataque a Queirós, observa: «Parece que não foi tanto este dano, polo que João de Queiroz ia fazer, quanto polo que [os indígenas] tinham recebido de António do Campo». Onde, justamente, se passaram estes acontecimentos ? Barros situa-os “aquém do Cabo das Correntes obra de sessenta léguas, onde chamam o Rio da Lagoa», numa “ilheta a qual os nossos chamam das Vacas, por algumas que ali viram andar». É, não há dúvida, uma indicação precisa da baía, com a sua ilha da Inhaca. 15 14 Gaspar Correia limita-se a contar que o episódio de Queirós se passou numa ilha. Castanheda, porém, e com ele o bem informado Manuel de Mesquita Perestrelo indicam a Baía das Vacas — o que situa os acontecimentos em Fish Bay. O caso de Queirós ter-se-ia passado no continente, não numa ilha. Queirós internara-se meia légua pelo sertão, quando os Negros deram nele. Preferimos a versão de Castanheda e Perestrelo, a despeito da aparente precisão de Barros. Este podia ter sido induzido em erro pelo nome de Lagoa, transportando para a baía deste nome, a sessenta léguas do Cabo das Correntes, o que se teria passado, mais a sul, numa outra baía do mesmo nome: Plettenberg Bay, apenas a doze-quinze minutos de latitude da baía e cabo das Vacas — cabo que, diz Perestrelo, «até estar muito perto parece ilhéu, não o sendo». Esta outra baía da Lagoa estava em muito melhor posição que a nossa baía para estação de aguada — e, realmente, nos primeiros anos da navegação da índia era frequente as naus tomarem aguada nos portos do sul. A baía de Lourenço Marques ficava fora da linha normal de navegação que entre Moçambique e o Cabo procurava afastar-se da costa. . Por outro lado, não sabemos que a Inhaca fosse alguma vez conhecida como ilha das Vacas. A título de curiosidade, contaremos certa tradição indígena que presume de memória do primeiro contacto dos Rongas da baía com os Brancos ( 1 ) . Um dia. o príncipe Mantimana, filho de Maromana, filho de Mpfumo, filho de Nlharúti que foi o invasor (') António Albasini recolheu, há alguns anos, várias tradições dos Rongas. São os seus apontamentos manuscritos, que ele teve a amabilidade de nos facultar, que aqui utilizamos. 16 (vindo de Psatine, Suazilândia) das terras da baía, andava a passear na praia de Cá-Mpfumo e viu uma estranha coisa: um grupo de seres que vinham pela praia, com gestos como de gente — mas brancos! Mantimana cuidou que seriam bichos e correu à povoação. Juntou-se gente, discutiu-se e, por fim, aceitouse que tais seres eram, realmente, homens, embora brancos. Levaram-nos ao rei que lhes deu agasalho. Dias depois, gente do Tembe veio reclamar os homens brancos, os quais tinham morto Ncoro, rei do Tembe. Os de Mpfumo, porém, negaram-se a entregar-lhos. Tal é a história. Infelizmente, as contradições e as falhas das tábuas genealógicas da casa de Mpfumo, recolhidas por vários investigadores, não nos permitem fixar, com suficiente aproximação, a data do acontecimento. A historieta pode reflectir (mas, então, Barros teria errado quanto à ilha) a recordação, já muito esfumada, dos sucessos de Campo e de Queirós. Mas pode, também, reportar-se a facto da visita de Lourenço Marques e de António Caldeira. Ou, ainda, à chegada dos náufragos do galeão grande S. João, em 1552. Um destacamento desses náufragos, capitaneado por Pantaleão de Sá, auxiliara, dias antes, o, régulo da Inhaca numa guerra contra outro régulo — o que poderia ser a explicação da diligência feita em Mpfumo pela gente do Tembe. Em certo passo da relação das aventuras destes náufragos, há outra possível coincidência com a história indígena: o encontro na praia, os cafres perguntando «aos nossos que gente era, ou o que buscava» e, depois, conduzindo-os ao lugar em que se achava o rei. Repetimos, porém: ainda que passados na baía, os sucessos de António do Campo e João de Queirós não foram mais que fortuitos episódios da navegação. Numa das Memórias apresentadas pelo Governo 17 português à arbitragem de Mac-Mahon, as quais foram elaboradas por Paiva Manso, afirma-se que em 1505 Pedro Quaresma esteve na baía. A carta de Quaresma a El-Rei, diz, apenas (o que é pouco para a afirmação de Paiva Manso): «[...] e tãto avante como apomta de santa luzia numa noyte se perdeo a caravella da náo e eu com a náo fuy aver amtre o cabo das corretes e de santa maria, e daly fuy sempre ao llongo da costa até sofalla [...]» (1) Como quer que fosse, esta vinda à baía não passou, também, de mera circunstância. Pedro Quaresma e Cid Barbudo haviam sido despachados do Reino para levar socorro a Sofala e procurarem Francisco de Albuquerque e Pedro de Mendonça, dados por perdidos no mar. O mesmo terá sucedido com Diogo Botelho Pereira que em 1527 foi mandado explorar a costa entre os cabos da Boa Esperança e das Correntes, à procura de D. Luís de Meneses que naufragara na volta da índia, em 1525. Ã margem destes episódios, a baía de Lourenço Marques não foi, no período 1500-1545, objecto de interesse e teatro de actividade regular dos Portugueses ou, sequer, simples escala da navegação. Assim o testemunha, na relação do naufrágio da nau S. Bento, Manuel de Mesquita Perestrelo, «que se achou no dito naufrágio». Descrevendo a baía, em 1554, diz ele: (1) É possível, de resto, que este Cabo de Santa Maria não fosse o da baía de Lourenço Marques, também chamado Cabo Colato. De facto, para norte do Cabo das Correntes houve, também, um .cabo ou ponta de Santa Maria, como se vê de algumas cartas antigas. Os Holandeses estabelecidos em Lourenço Marques denominavam as terras de Inhambane também como terras de Santa Maria. A carta de Quaresma sugere, realmente, que o cabo de Santa Maria ficasse para além, no rumo que ele levava, do das Correntes — isto é, a norte deste. 18 «O segundo [rio] se chama Santo Espírito, ou de Lourenço Marques, que primeiro descobriu o resgate do marfim, que ali vem ter, por cuja causa é frequentada a navegação dele de alguns anos a esta parte, que dantes muitos passaram, que ali ninguém foi.» Natural era que assim sucedesse. O ouro do Monomotapa fixava todos os sonhos e cuidados dos Portugueses de então. O acesso às minas e a defesa do monopólio do tráfico do ouro constituíam todo o programa da capitania de Sofala e Moçambique. Por seu turno, a carreira da índia tendeu a afastar-se da costa, quer seguindo em linha directa entre a ponta sul de Madagáscar e o Cabo, quer pelo golfão, passando «por fora» de Madagáscar. Sendo assim, mais de estranhar é que num dado momento, em 1544-1545, o capitão de Moçambique ou quem quer que foi ( 1 ) tivesse mandado Lourenço Marques, numa fusta, «descobrir dois rios que estavam além do Cabo das Correntes», como diz a conhecida carta de D. João de Castro a El-Eei. Que motivo teria subitamente despertado tal interesse por essas paragens, desprezadas durante quase meio século ? Podem tentar-se duas explicações: Uma, a de que, no entretanto, tendo o negócio do marfim ganho vulto e prosperidade, como efectivamente sucedeu, alguma notícia de abundância de mar(1) A verdade é que não sabemos quem foi. O único documento sobre a questão nomeia apenas D. Jorge. Supõe-se que fosse o capitão de Moçambique mas os capitães conhecidos de Moçambique, entre 1530 e 1550, são: Vicente Pegado, Aleixo de Sousa Chichorro, João Sepúlveda e Fernão de Sousa de Távora. A identificação de «D. Jorge» com D. Jorge Teles de Meneses, feita pelo comandante Fontoura da Costa, não parece muito creditável. D. Jorge de Meneses foi, realmente, capitão de Moçambique, mas entre 1586-1590 ou seja quarenta anos mais tarde. 19 f i m na baía tivesse chegado a Moçambique ou à índia. Outra, a de que já então tivessem começado a aparecer na baía navios de outras nações. Henri Alexandre Junod recolheu, nos fins do século passado, tradições indígenas segundo as quais os primeiros Brancos com quem os Rongas entraram em contacto e estabeleceram comércio eram Ingleses. A esse comércio chamavam eles godji — e ainda hoje o termo Bá-Gôdji é empregado para designar a gente inglesa. É indubitável que nesta tradição se confundem e se transpõem cronologicamente diversos factos de que a baía foi teatro, e que nela se estampam, planificadas no tempo, figuras e cenas que, ao longo de quase três séculos, se desenrolaram aos olhos dos indígenas. De 1500 aos princípios de 1800, concorreram desordenadamente na baía muitas e desvairadas gentes — Portugueses, Ingleses, Franceses, Holandeses, Austríacos e Americanos. Ora, se a precedência dos Portugueses no descobrimento não sofre contestação, não é inadmissível que entre 1500-1545, enquanto os Portugueses deixavam abandonada a baía, estrangeiros a tivessem visitado e estabelecido trocas com os indígenas. Justamente por 1545 já os Portugueses se não sentiam senhores seguros e indisputados destes mares. D. João de Castro declarava a Torre de Moçambique (primeira fortificação da ilha, levantada em 1507) insuficiente para garantir a soberania de Portugal e recomendava a construção (iniciada treze anos mais tarde) do que viria a ser a praça de S. Sebastião. Assim, o aparecimento de navios estrangeiros nas paragens do Cabo das Correntes, com liberdade de navegação e de relações com os indígenas, sem dúvida constituiria uma ameaça ao monopólio português do 20 ouro de Sofala — razão mais- que todas premente para se colocarem essas paragens sob o signo da Coroa de Portugal. Nada mais se sabe da expedição, além do pouco que dizem as duas cartas trocadas entre D. João de Castro e El-Rei( 1 ). Já vimos a dúvida sobre quem ordenou a viagem. O próprio Lourenço Marques é uma figura evasiva. Se a atribuição, pelo comandante Fontoura da Costa, da data de 1514 à referência feita por João de Lisboa a um Lourenço Marques piloto ou capitão de navio está certa, não é muito provável que esse Lourenço Marques, que em 1514 tinha já idade e prática de navegação bastantes para aconselhar João de Lisboa, fosse o mesmo que trinta anos mais tarde descobriu a baía e a quarenta e três anos de vista recebeu a mercê da escrivaninha da feitoria de Cochim. Não é provável, posto que, realmente, não seja impossível. Firmin Didot, na Nouvelle Biographie Générale, 1860, apresenta-nos Lourenço Marques como «navegador português nascido na primeira metade do século XVI, negociante acostumado a fazer o comércio do marfim nas costas da África oriental». De positivo, só sabemos que nos princípios de 1554 Lourenço Marques partiu da índia para uma viagem à baía, onde não chegou por naufragar na costa ( 2 ). (') Publicadas, na parte que interessa, em vários lugares, por exemplo, na Memória apresentada pelo Governo Português, 1870, à arbitragem de Mac-Mahon, documentos n.os 6 6 7 . ( 2 ) Na Nota sobre a baía e rio de Lourenço Marques (tomo V das Obras Completas), o Cardeal Saraiva diz que «no ano de 1554, vindo Lourenço Marques da índia com direcção a estes seus rios, fez naufrágio na costa, antes de neles entrar, e naquelas ondas ficou sepultado, como consta da Relação do naufrágio da nau S. Benton. Na Relação lê-se, apenas: «na costa se perdeu, antes que se pudesse recolher ao rio». Perdeu-se o navio mas não o homem, que vivia ainda em 1557. 21 A carta régia de 11 de Fevereiro de 1557 (*) apresentano-lo como cavaleiro da casa de El-Eei. Em respeito aos serviços prestados, Sua Majestade proveu-o no ofício de escrivão da feitoria de Cochim, com este favor: «por tempo de seis anos, posto que pelo regimento houvessem de ser três». A data da expedição à baía é, também, incerta: 1544 ou 1545? A carta em que D. João de Castro comunica a El-Rei o descobrimento diz apenas: «Os dias passados mandou D. Jorge Lourenço Marques em uma fusta a descobrir dois rios, que estão além do Cabo das Correntes [...].» Esta carta foi escrita em Moçambique, provavelmente nos primeiros dias de Agosto de 1545 e já então Lourenço Marques ali estava, ou estivera, de volta da baía. Ora, do quadro da navegação que adiante esboçamos, recolhe-se a sugestão de que, ao menos nos primeiros tempos da carreira Moçambique-Baía da Lagoa, os navios chegavam à baía por Novembro, demoravam uns cinco meses e saíam, de regresso a Moçambique, em Março. Assim, pode presumir-se que Lourenço Marques tivesse partido de Moçambique em Setembro-Outubro de 1544 e regressado em Março ou Abril de 1545. Não temos, porém, nenhuma certeza. Em resultado da exploração, abriram-se cobiçosas perspectivas de comércio na baía. Num rio, Limpopo, havia cobre e a promessa dos indígenas de que «venderiam quanto quisesse». No outro rio, a baía, avistavam-se grandes manadas de elefantes. O marfim abundava. E, por umas contas que valeriam três vinténs, os indígenas davam um bar de marfim — que na índia pagariam, mais ou menos, a cem cruzados! (1) 22 Em face desta liberalidade, D. João de Castro comunicou a El-Eei que tanto a ele como ao vedor da Fazenda parecia bem mandar, logo que chegasse à índia, «uma fusta a descobrir, saber muito bem como isto se passa; porque seria grande proveito da fazenda de V. A. se aqui pudesse haver cobre, maiormente sendo tão bom como este homem, que lá foi, afirma». El-Rei, em resposta, encomendou-lhe muito que assim.fizesse e, caso lhe parecesse conveniente, mandasse no navio ou fusta mercadorias para resgatar as da terra «e saber verdadeiramente as que há nela». Desta vez, a baía fora, efectivamente, «descoberta» — descoberta política e economicamente. Para a geografia, Lourenço Marques não foi o seu descobridor. Mas, para a história, foi-o e não é sem justiça que o seu nome se perpetua na cidade que germinou nas praias e pântanos de Cá-Mpfumo. Memória apresentada pelo Governo Português, documento n.° 8. 23 O grande volume dos arquivos da Colónia até 1840 foi remetido para Portugal, em 1891-1892, à ordem do conselheiro comissário régio. Foi uma infeliz boa-intenção de António Enes — que não previu esta paráfrase do seu famoso conceito: em Moçambique é que se há-de estudar a história de Moçambique... A documentação foi para Portugal e por lá jaz, nas bibliotecas e arquivos, esquecida ou desdenhada dos estudiosos. Os nossos historiadores na Metrópole não descobriram ainda a África. Talvez por saudosismo da glória e da riqueza, ainda hoje estudam e escrevem muito sobre as perdidas grandezas da índia e do Brasil — mas não sobre a discreta, embora, mas real grandeza da nossa África. Já os cronistas da índia, deslumbrados pelo brilho do ouro e da pedraria, o capitoso das especiarias e o fausto dos nomes heráldicos, raro se ocupavam das coisas da costa de África. Para eles, a Capitania de Sofala e Moçambique era a gata borralheira na esplendorosa Conquista da índia. Os cronistas poderiam ter-se lembrado de que, se essa Conqtiista calçava sapatinhos de ouro, era de Sofala que os recebia. Os seus ilustres sucessores de hoje deveriam lembrar-se de que vale mais ocuparmo-nos da modesta casa que nos abriga, que do irreconstruivel palácio de outrora, caído em ruínas. Isto se diz por lamentação, que não por censura. E quem ler este livro me perdoe pelo que nele fiz e pelo que nele não fiz. CAETANO MONTEZ P. S. - Este trabalho achava-se concluído e entregue aos editores em junho. Eles viram-se forçados, todavia, a protelar a composição e impressão — e, no entretanto, Alexandre Lobato publicou, em Lisboa, uma «História da fundação de Lourenço Marques», abrangendo desde o estabelecimento da feitoria austríaca até à fundação do presídio por Joaquim de Araújo. Nesse livro publica Alexandre Lobato documentos inéditos, existentes nos arquivos metropolitanos (foi, ainda, um moçambicano que os desencantou), e dele nos chegou às mãos um exemplar, em meados de Agosto. O conhecimento desses novos documentos permitiu-nos esclarecer alguns pontos do noss-o primitivo trabalho, corrigir e ampliar outros. Como a reelaboração do texto inicial teve de ser feita apressadamente, sobre o joelho, é provável que o leitor encontre repetições, descoordenação e, mesmo, alguma contradição entre partes que primeiramente, na carência de documentação, eram conjecturais e outras que foi, depois, possível reajustar. 20 de Agosto de 1948 C. MONTEZ PLANO 1500-1545 — DESCOBRIMENTO. 1545-1703 — EXPLORAÇÃO. 1 — Comércio e navegação, 11 — Os Náufragos. 111 — Esquecimenlo. 1703-1780 — 08 ESTRANGEIROS. 1781 — RECONQUISTA. 1782-1800 — FUNDAÇÃO. DOCUMENTOS. 1.º 2º 3.º 4.° 5.º De Jerónimo Leitão, 1598. De Fr. Francisco de Santa Teresa, 1784 De J. J. Nogueira de Andrade, 1789. Regimento do governador, 1781. Instrução ao comandante, 1799. 1500-1545 DESCOBRIMENTO Lourenço Marques é a mais nova das cidades e vilas históricas, moçambicanas. Quase três séculos separam a sua fundação da de Sofala e da de Moçambique. E quando, em 1761, a carta régia de 9 de Maio promovia a outorga do estatuto de vila às praças, feitorias e feiras da Capitania Geral, Lourenço Marques não existia ainda. No entanto, a baía da Lagoa foi conhecida logo nos primeiros anos da navegação da índia. Ia já desenhada, com os três rios que nela desaguam, no famoso mapa que Alberto Cantino levou clandestinamente de Lisboa para Génova, de presente ao duque de Ferrara. Isto quer dizer que por fins de Setembro, princípios de Outubro de 1502, o mais tardar, havia já em Lisboa informação segura do Bio da Lagoa. Foi por aqueles dias que Cantino, subornando um cartógrafo a quem pagou doze ducados, conseguiu obter a preciosa carta. Partindo deste facto e argumentando que «Vasco da Gama não tocou ali na sua primeira viagem à índia, nem tão-pouco qualquer dos navios da armada de Pedro Álvares Cabral», o comandante Fontoura da Costa concluiu: «portanto, foi o Eio da Lagoa descoberto por João da Nova em 1501 ou 1502» O. A armada de João da Nova, terceira que foi à índia, saiu de Lisboa em 5 de Março de 1501 e (') Comunicação à Academia das Ciências de Lisboa. Publicada em vários lugares, designadamente no documentário trimestral Moçambique, n.o 18. 13 estava de volta em 11 ou 13 de Setembro de 1002. É certo que, quando foi subtraída, a carta de Cantino registava já informação fornecida por essa armada. Prova-o a figuração nela da ilha da Ascensão, descoberta por João da Nova. Mas a conclusão do comandante Fontoura da Costa não deixa de ser singular. Na verdade, o argumento negativo para as armadas do Gama e de Cabral é igualmente negativo para a armada de João da Nova. Se não há nos cronistas e relatores das viagens qualquer indicação de que as duas primeiras armadas tenham tocado nesta altura da costa, também a não há quanto à terceira. A afirmação, pois, de que esta entrou na baía é puramente gratuita. A simples especulação sobre os vagos e tantas vezes contraditórios textos dos cronistas levar-nos-ia, antes, a admitir a probabilidade do descobrimento por alguém da armada de Cabral. João da Nova teve uma viagem feliz e a sua armada navegou sempre, na ida e na volta, regularmente reunida. Com Cabral, porém, não sucedeu assim. A tempestade destroçou a frota. Umas naus afundaram-se; outras andaram perdidas da conserva e só voltaram a reunir-se ao almirante, seis delas, por altura de Sofala; Diogo Dias tresmalhou-se, andou aventurosamente pela costa e Madagáscar, e regressou a Portugal. Assim, e embora a armada de Cabral não tenha tocado no Rio da Lagoa, a hipótese de que algumas dessas naus errantes tenha vindo à baía não é de desprezar. A questão permanece em aberto — e, provavelmente, ficará para sempre ignorado quem foi o descobridor de Lourenço Marques. Em todo o caso, o descobrimento da baía da Lagoa parece não ter suscitado qualquer interesse e não .passou, por então, de mero episódio das navegações e da cartografia. Até à exploração por Lourenço Marques, quarenta anos mais tarde, não há notícia de relações com a baía nem, mesmo, de simples frequência dela pelos capitães da carreira da índia. Os casos de António do Campo e de João de Queirós foram puramente incidentais e, ainda assim, há dúvidas sobre se ocorreram ou não na baía da Lagoa. António do Campo (que, transviado da segunda armada do Gama, só em 1503 passara à índia e se reunira à armada dos Albuquerques) regressava ao Reino, em 1504, e surgiu algures na costa africana, para aguada. Os indígenas deram-lhe boa hospitalidade. Campo pagou-a mal: ao retirar, cativou alguns deles e levou-os para Portugal. No ano seguinte João de Queirós, um dos da armada de Pêro da Nhaia, saltou em terra com uma vintena de homens, na mira de tomar algum gado. Os indígenas atacaram-no e mataram-no — a ele e quase toda a sua companhia: dos vinte homens, só quatro ou cinco puderam voltar para bordo, “bem feridos». João de Barros é, se não estamos em erro, o único dos cronistas que estabelece relação entre os dois sucessos e os dá corno passados no mesmo lugar. Explicando o ataque a Queirós, observa: «Parece que não foi tanto este dano, polo que João de Queiroz ia fazer, quanto polo que [os indígenas] tinham recebido de António do Campo». Onde, justamente, se passaram estes acontecimentos ? Barros situa-os “aquém do Cabo das Correntes obra de sessenta léguas, onde chamam o Rio da Lagoa», numa “ilheta a qual os nossos chamam das Vacas, por algumas que ali viram andar». É, não há dúvida, uma indicação precisa da baía, com a sua ilha da Inhaca. 15 14 Gaspar Correia limita-se a contar que o episódio de Queirós se passou numa ilha. Castanheda, porém, e com ele o bem informado Manuel de Mesquita Perestrelo indicam a Baía das Vacas — o que situa os acontecimentos em Fish Bay. O caso de Queirós ter-se-ia passado no continente, não numa ilha. Queirós internara-se meia légua pelo sertão, quando os Negros deram nele. Preferimos a versão de Castanheda e Perestrelo, a despeito da aparente precisão de Barros. Este podia ter sido induzido em erro pelo nome de Lagoa, transportando para a baía deste nome, a sessenta léguas do Cabo das Correntes, o que se teria passado, mais a sul, numa outra baía do mesmo nome: Plettenberg Bay, apenas a doze-quinze minutos de latitude da baía e cabo das Vacas — cabo que, diz Perestrelo, «até estar muito perto parece ilhéu, não o sendo». Esta outra baía da Lagoa estava em muito melhor posição que a nossa baía para estação de aguada — e, realmente, nos primeiros anos da navegação da índia era frequente as naus tomarem aguada nos portos do sul. A baía de Lourenço Marques ficava fora da linha normal de navegação que entre Moçambique e o Cabo procurava afastar-se da costa. . Por outro lado, não sabemos que a Inhaca fosse alguma vez conhecida como ilha das Vacas. A título de curiosidade, contaremos certa tradição indígena que presume de memória do primeiro contacto dos Rongas da baía com os Brancos ( 1 ) . Um dia. o príncipe Mantimana, filho de Maromana, filho de Mpfumo, filho de Nlharúti que foi o invasor (') António Albasini recolheu, há alguns anos, várias tradições dos Rongas. São os seus apontamentos manuscritos, que ele teve a amabilidade de nos facultar, que aqui utilizamos. 16 (vindo de Psatine, Suazilândia) das terras da baía, andava a passear na praia de Cá-Mpfumo e viu uma estranha coisa: um grupo de seres que vinham pela praia, com gestos como de gente — mas brancos! Mantimana cuidou que seriam bichos e correu à povoação. Juntou-se gente, discutiu-se e, por fim, aceitouse que tais seres eram, realmente, homens, embora brancos. Levaram-nos ao rei que lhes deu agasalho. Dias depois, gente do Tembe veio reclamar os homens brancos, os quais tinham morto Ncoro, rei do Tembe. Os de Mpfumo, porém, negaram-se a entregar-lhos. Tal é a história. Infelizmente, as contradições e as falhas das tábuas genealógicas da casa de Mpfumo, recolhidas por vários investigadores, não nos permitem fixar, com suficiente aproximação, a data do acontecimento. A historieta pode reflectir (mas, então, Barros teria errado quanto à ilha) a recordação, já muito esfumada, dos sucessos de Campo e de Queirós. Mas pode, também, reportar-se a facto da visita de Lourenço Marques e de António Caldeira. Ou, ainda, à chegada dos náufragos do galeão grande S. João, em 1552. Um destacamento desses náufragos, capitaneado por Pantaleão de Sá, auxiliara, dias antes, o, régulo da Inhaca numa guerra contra outro régulo — o que poderia ser a explicação da diligência feita em Mpfumo pela gente do Tembe. Em certo passo da relação das aventuras destes náufragos, há outra possível coincidência com a história indígena: o encontro na praia, os cafres perguntando «aos nossos que gente era, ou o que buscava» e, depois, conduzindo-os ao lugar em que se achava o rei. Repetimos, porém: ainda que passados na baía, os sucessos de António do Campo e João de Queirós não foram mais que fortuitos episódios da navegação. Numa das Memórias apresentadas pelo Governo 17 português à arbitragem de Mac-Mahon, as quais foram elaboradas por Paiva Manso, afirma-se que em 1505 Pedro Quaresma esteve na baía. A carta de Quaresma a El-Rei, diz, apenas (o que é pouco para a afirmação de Paiva Manso): «[...] e tãto avante como apomta de santa luzia numa noyte se perdeo a caravella da náo e eu com a náo fuy aver amtre o cabo das corretes e de santa maria, e daly fuy sempre ao llongo da costa até sofalla [...]» (1) Como quer que fosse, esta vinda à baía não passou, também, de mera circunstância. Pedro Quaresma e Cid Barbudo haviam sido despachados do Reino para levar socorro a Sofala e procurarem Francisco de Albuquerque e Pedro de Mendonça, dados por perdidos no mar. O mesmo terá sucedido com Diogo Botelho Pereira que em 1527 foi mandado explorar a costa entre os cabos da Boa Esperança e das Correntes, à procura de D. Luís de Meneses que naufragara na volta da índia, em 1525. Ã margem destes episódios, a baía de Lourenço Marques não foi, no período 1500-1545, objecto de interesse e teatro de actividade regular dos Portugueses ou, sequer, simples escala da navegação. Assim o testemunha, na relação do naufrágio da nau S. Bento, Manuel de Mesquita Perestrelo, «que se achou no dito naufrágio». Descrevendo a baía, em 1554, diz ele: (1) É possível, de resto, que este Cabo de Santa Maria não fosse o da baía de Lourenço Marques, também chamado Cabo Colato. De facto, para norte do Cabo das Correntes houve, também, um .cabo ou ponta de Santa Maria, como se vê de algumas cartas antigas. Os Holandeses estabelecidos em Lourenço Marques denominavam as terras de Inhambane também como terras de Santa Maria. A carta de Quaresma sugere, realmente, que o cabo de Santa Maria ficasse para além, no rumo que ele levava, do das Correntes — isto é, a norte deste. 18 «O segundo [rio] se chama Santo Espírito, ou de Lourenço Marques, que primeiro descobriu o resgate do marfim, que ali vem ter, por cuja causa é frequentada a navegação dele de alguns anos a esta parte, que dantes muitos passaram, que ali ninguém foi.» Natural era que assim sucedesse. O ouro do Monomotapa fixava todos os sonhos e cuidados dos Portugueses de então. O acesso às minas e a defesa do monopólio do tráfico do ouro constituíam todo o programa da capitania de Sofala e Moçambique. Por seu turno, a carreira da índia tendeu a afastar-se da costa, quer seguindo em linha directa entre a ponta sul de Madagáscar e o Cabo, quer pelo golfão, passando «por fora» de Madagáscar. Sendo assim, mais de estranhar é que num dado momento, em 1544-1545, o capitão de Moçambique ou quem quer que foi ( 1 ) tivesse mandado Lourenço Marques, numa fusta, «descobrir dois rios que estavam além do Cabo das Correntes», como diz a conhecida carta de D. João de Castro a El-Eei. Que motivo teria subitamente despertado tal interesse por essas paragens, desprezadas durante quase meio século ? Podem tentar-se duas explicações: Uma, a de que, no entretanto, tendo o negócio do marfim ganho vulto e prosperidade, como efectivamente sucedeu, alguma notícia de abundância de mar(1) A verdade é que não sabemos quem foi. O único documento sobre a questão nomeia apenas D. Jorge. Supõe-se que fosse o capitão de Moçambique mas os capitães conhecidos de Moçambique, entre 1530 e 1550, são: Vicente Pegado, Aleixo de Sousa Chichorro, João Sepúlveda e Fernão de Sousa de Távora. A identificação de «D. Jorge» com D. Jorge Teles de Meneses, feita pelo comandante Fontoura da Costa, não parece muito creditável. D. Jorge de Meneses foi, realmente, capitão de Moçambique, mas entre 1586-1590 ou seja quarenta anos mais tarde. 19 f i m na baía tivesse chegado a Moçambique ou à índia. Outra, a de que já então tivessem começado a aparecer na baía navios de outras nações. Henri Alexandre Junod recolheu, nos fins do século passado, tradições indígenas segundo as quais os primeiros Brancos com quem os Rongas entraram em contacto e estabeleceram comércio eram Ingleses. A esse comércio chamavam eles godji — e ainda hoje o termo Bá-Gôdji é empregado para designar a gente inglesa. É indubitável que nesta tradição se confundem e se transpõem cronologicamente diversos factos de que a baía foi teatro, e que nela se estampam, planificadas no tempo, figuras e cenas que, ao longo de quase três séculos, se desenrolaram aos olhos dos indígenas. De 1500 aos princípios de 1800, concorreram desordenadamente na baía muitas e desvairadas gentes — Portugueses, Ingleses, Franceses, Holandeses, Austríacos e Americanos. Ora, se a precedência dos Portugueses no descobrimento não sofre contestação, não é inadmissível que entre 1500-1545, enquanto os Portugueses deixavam abandonada a baía, estrangeiros a tivessem visitado e estabelecido trocas com os indígenas. Justamente por 1545 já os Portugueses se não sentiam senhores seguros e indisputados destes mares. D. João de Castro declarava a Torre de Moçambique (primeira fortificação da ilha, levantada em 1507) insuficiente para garantir a soberania de Portugal e recomendava a construção (iniciada treze anos mais tarde) do que viria a ser a praça de S. Sebastião. Assim, o aparecimento de navios estrangeiros nas paragens do Cabo das Correntes, com liberdade de navegação e de relações com os indígenas, sem dúvida constituiria uma ameaça ao monopólio português do 20 ouro de Sofala — razão mais- que todas premente para se colocarem essas paragens sob o signo da Coroa de Portugal. Nada mais se sabe da expedição, além do pouco que dizem as duas cartas trocadas entre D. João de Castro e El-Rei( 1 ). Já vimos a dúvida sobre quem ordenou a viagem. O próprio Lourenço Marques é uma figura evasiva. Se a atribuição, pelo comandante Fontoura da Costa, da data de 1514 à referência feita por João de Lisboa a um Lourenço Marques piloto ou capitão de navio está certa, não é muito provável que esse Lourenço Marques, que em 1514 tinha já idade e prática de navegação bastantes para aconselhar João de Lisboa, fosse o mesmo que trinta anos mais tarde descobriu a baía e a quarenta e três anos de vista recebeu a mercê da escrivaninha da feitoria de Cochim. Não é provável, posto que, realmente, não seja impossível. Firmin Didot, na Nouvelle Biographie Générale, 1860, apresenta-nos Lourenço Marques como «navegador português nascido na primeira metade do século XVI, negociante acostumado a fazer o comércio do marfim nas costas da África oriental». De positivo, só sabemos que nos princípios de 1554 Lourenço Marques partiu da índia para uma viagem à baía, onde não chegou por naufragar na costa ( 2 ). (') Publicadas, na parte que interessa, em vários lugares, por exemplo, na Memória apresentada pelo Governo Português, 1870, à arbitragem de Mac-Mahon, documentos n.os 6 6 7 . ( 2 ) Na Nota sobre a baía e rio de Lourenço Marques (tomo V das Obras Completas), o Cardeal Saraiva diz que «no ano de 1554, vindo Lourenço Marques da índia com direcção a estes seus rios, fez naufrágio na costa, antes de neles entrar, e naquelas ondas ficou sepultado, como consta da Relação do naufrágio da nau S. Benton. Na Relação lê-se, apenas: «na costa se perdeu, antes que se pudesse recolher ao rio». Perdeu-se o navio mas não o homem, que vivia ainda em 1557. 21 A carta régia de 11 de Fevereiro de 1557 (*) apresentano-lo como cavaleiro da casa de El-Eei. Em respeito aos serviços prestados, Sua Majestade proveu-o no ofício de escrivão da feitoria de Cochim, com este favor: «por tempo de seis anos, posto que pelo regimento houvessem de ser três». A data da expedição à baía é, também, incerta: 1544 ou 1545? A carta em que D. João de Castro comunica a El-Rei o descobrimento diz apenas: «Os dias passados mandou D. Jorge Lourenço Marques em uma fusta a descobrir dois rios, que estão além do Cabo das Correntes [...].» Esta carta foi escrita em Moçambique, provavelmente nos primeiros dias de Agosto de 1545 e já então Lourenço Marques ali estava, ou estivera, de volta da baía. Ora, do quadro da navegação que adiante esboçamos, recolhe-se a sugestão de que, ao menos nos primeiros tempos da carreira Moçambique-Baía da Lagoa, os navios chegavam à baía por Novembro, demoravam uns cinco meses e saíam, de regresso a Moçambique, em Março. Assim, pode presumir-se que Lourenço Marques tivesse partido de Moçambique em Setembro-Outubro de 1544 e regressado em Março ou Abril de 1545. Não temos, porém, nenhuma certeza. Em resultado da exploração, abriram-se cobiçosas perspectivas de comércio na baía. Num rio, Limpopo, havia cobre e a promessa dos indígenas de que «venderiam quanto quisesse». No outro rio, a baía, avistavam-se grandes manadas de elefantes. O marfim abundava. E, por umas contas que valeriam três vinténs, os indígenas davam um bar de marfim — que na índia pagariam, mais ou menos, a cem cruzados! (1) 22 Em face desta liberalidade, D. João de Castro comunicou a El-Eei que tanto a ele como ao vedor da Fazenda parecia bem mandar, logo que chegasse à índia, «uma fusta a descobrir, saber muito bem como isto se passa; porque seria grande proveito da fazenda de V. A. se aqui pudesse haver cobre, maiormente sendo tão bom como este homem, que lá foi, afirma». El-Rei, em resposta, encomendou-lhe muito que assim.fizesse e, caso lhe parecesse conveniente, mandasse no navio ou fusta mercadorias para resgatar as da terra «e saber verdadeiramente as que há nela». Desta vez, a baía fora, efectivamente, «descoberta» — descoberta política e economicamente. Para a geografia, Lourenço Marques não foi o seu descobridor. Mas, para a história, foi-o e não é sem justiça que o seu nome se perpetua na cidade que germinou nas praias e pântanos de Cá-Mpfumo. Memória apresentada pelo Governo Português, documento n.° 8. 23 1545-1703 EXPLORAÇÃO I — Comércio e Navegação. II — Os Náufragos. III — Esquecimento. Comércio e Navegação Na carta em que respondia a D. João de Castro, El-Rei considerava «o descobrimento daqueles rios que fez Lourenço Marques coisa mui importante e necessária acabar-se bem de saber» e recomendava ao governador da índia que encarregasse Lourenço Marques, «pela informação e prática que já disso tinha», de nova viagem de exploração. Mas, com aquela sábia previsão (que infelizmente se perdeu das tradições da nossa administração ultramarina) de deixar aos que cá estavam o ajuizar das pessoas e coisas de cá, corrigia: «E posto que vos diga que mandeis a isto Lourenço Marques, não o encarregareis disso senão parecendo-vos que é tão suficiente para isso, que podereis escusar de mandar a isso outra pessoa.» Não sabemos quem veio. Associa-se, geralmente, o nome de António Caldeira ao de Lourenço Marques na expedição do descobrimento. Esta associação funda-se na informação deixada pelo narrador da perda do galeão grande S. João: em 1552, o rei da Inhaca «já tinha notícia de Portugueses por Lourenço Marques e António Caldeira que ali estiveram». Ë claro, no entanto, que estas palavras não implicam forçosamente que Caldeira e Lourenço Marques ali tivessem estado juntos, ambos na viagem de descobrimento. O facto de D. João de Castro referir, apenas, Lourenço Marques sugere, antes, que assim 27 não foi, posto que possa também presumir-se, como alguns já têm presumido, que Caldeira não seria senão piloto ou mestre do navio do descobridor. Todavia, a sua menção por aquele narrador reforça, cremo-lo, a sugestão. Os dois nomes indicarão os dois homens que, até aquela data de 1552, teriam visitado a baía — provável corno é, ainda, que entre 1546-1552 não tivesse havido mais que duas ou três viagens da índia a Lourenço Marques. António Caldeira pode ter sido, então, o capitão da segunda, iniciador da exploração comercial regular da baía. Esta exploração não foi um estabelecimento, no sentido em que hoje entendemos esta palavra. Ao contrário do que dizem vários autores, não havia em terra fortificação ou feitoria com guarnição permanente. Não possuímos outros documentos destes tempos, além das relações trágico-marítimas, do roteiro de Perestrelo e de um curioso relatório de Jerónimo Leitão ( 1 ). Estes documentos abrangem quase um século, 1552-1648. Para aquém desta data, temos, ainda, a informação proveniente de fontes holandesas: da galeota Noord, 1688, e da feitoria, 1723. Assim, e a despeito das suas largas soluções de continuidade, a revista desta documentação é decisiva da questão de se a baía foi ou não guarnecida entre 1545 e 1703. (') As relações dos naufrágios acham-se na História Trágico-Marítima. Os seus autores, que algumas vezes mencionamos neste estudo sem mais referências, são: do galeão S. João, 1552, anónimo; da nau 5. Bento, 1554, Manuel de Mesquita Perestrelo; da S. Tomé, 1589, Diogo do Couto; da Santo Alberto, 1593, João Baptista Lavanha; da 5. João Baptista, 1622-23, Francisco Vaz de Almada; do galeão Sacramento e nau Nossa Senhora da Atalaia, que viajavam em frota, 1647-48, Bento Teixeira Feio. O Roteiro de Manuel de Mesquita Perestrelo, 1575-76, foi publicado, com anotações de A. Fontoura da Costa, em edição da Agência Geral das Colónias, 1939. Quanto ao relatório de Jerónimo Leitão, veja-se no final deste livro o primeiro documento. 28 As sucessivas expedições de náufragos que chegaram à baía após a aventurosa marcha pelas praias e sertões da costa do Natal e dos Fumos — do galeão grande S. João, em 1552; da nau S. Bento, em 1554; da S. Tomé, em 1589; da Santo Alberto, em 1593; da S. João Baptista, em 1623; das naus Sacramento e Nossa Senhora da Atalaia, em 1647-48 — não encontraram nunca em terra guarnição estabelecida. Do roteiro de Perestrelo, 1575, igualmente se verifica que a baía estava desocupada. Em 1598, Jerónimo Leitão encontrou um verdadeiro forte abaluartado — mas construído por Ingleses. Num relatório de 1723, dirigido ao governador e ao conselho político da Colónia do Cabo O, Jan van de Capelle, que foi a figura saliente da ocupação holandesa da baía, escreve: “Também não posso deixar de dizer, Ex.mo Senhor e Ilustríssimos Senhores, que muita gente estranhou não ser encontrada na Lagoa uma fortaleza decaída dos Portugueses nem alguém dessa nação (fosse preto ou branco) morando cá, como parece que se esperava.» Em face destes depoimentos, não fica grande lugar para dúvida. E quanto à designação da Xefina como “possessão» ou “guarnição portuguesa», na carta do engenheiro holandês Konink, 1726, e em outros documentos holandeses, veremos adiante qual o seu significado. Esta ideia de uma “ocupação» da baía provém, principalmente, de Paiva Manso (Memória sobre Lourenço Marques e memórias apresentadas pelo governo (') Este relatório, bem como outros documentos da feitoria holandesa na baía, estão publicados na língua original em Records o] South-Eastern África, coligidos por Mc Call-Theal. Foram publicados, em versão portuguesa de W. Mulder, residente holandês em Lourenço Marques, no documentário trimestral Moçambique, n.os 30, 34 e 35. 29 português à arbitragem de Mac-Mahon, na questão com a Grã-Bretanha) e resulta de se terem tomado em sentido moderno as expressões feitoria e fortaleza empregadas pelos antigos. Uma das mais curiosas ilusões dessa «ocupação», se não mesmo colonização da baía, é a pretendida existência, em 1589, duma «colónia portuguesa no interior do Maputo», colónia constituída por Jerónimo Leitão e alguns companheiros. O erro provém de leitura superficial da relação, por Diogo do Couto, do naufrágio da nau S. Tomé. Couto, ou algum dos que intervieram na impressão da obra, estabelece grande confusão: num passo, chama Manhiça ao régulo da Inhaca; noutros, chama rio da Inhaca ao rio do Ouro e Inhaca a um régulo da margem desse rio. Uma leitura atenta, porém, permite corrigir facilmente a confusão e desfazer a lenda da colónia no interior do Maputo. A verdade do caso é assim: Uns dias antes dos náufragos da S. Tomé chegarem à baía, largara dela Jerónimo Leitão, numa naveta carregada com o marfim do resgate. No Rio do Ouro, a naveta deu à costa; Leitão e os seus-homens foram roubados e recolheram-se na povoação de um régulo que Leitão conhecia, povoação que ficava «doze léguas pelo rio acima», onde parte daqueles náufragos os foram encontrar. O rio do Ouro é o Limpopo a que Diogo do Couto, na sua descrição geográfica, chama Inhapula (Inhampura). É este nome Inhapula que naqueles passos da relação aparece trocado por Inhaca — engano naturalmente sugerido pela notoriedade que então tinha este nome. Ou, mesmo, a expressão inhaca seria um título dos chefes, como incosse, mambo e bilene. Realmente, encontramo-la aplicada a outros chefes, além do régulo da ilha: o inhaca Sangoane, o inhaca Manganheira. Talvez por isso, 30 a ilha é, em regra, nomeada ilha do Inhaca e só mais tarde esta palavra aparece como topónimo. O nome original, indígena, da ilha parece ter sido Choambone, que designava também a península a ela fronteira. De 1545 a 1703 não houve, de facto, ocupação portuguesa da baía — repetimos: «ocupação», no sentido em que hoje a compreendemos. Houve uma exploração comercial, por meio da expedição, anual ou de dois em dois anos, de um navio da índia ou de Moçambique. O navio fundeava na baía. A tripulação vinha a terra, fazia resgate, voltava para bordo e o navio regressava a Moçambique, sem deixar em terra gente ou fazenda. Este carácter da exploração é bem acentuado num parecer enviado de Moçambique ao vice-rei da índia, em 1745 (1) : «Para o Cabo das Correntes se pode e é conveniente mandar todos os anos um navio ao resgate do marfim, guardando-se naquela viagem a ordem e forma que em outros tempos se costumava, que era o capitão obrigado a fazer o dito resgate e voltar na monção sem deixar lá coisa alguma de fato ou coisa já resgatada.» Tanto quanto sabemos, o trato na baía foi assim organizado: Nos primeiros tempos, o resgate era feito nas praias, em idas e vindas de embarcações. Talvez, mesmo, nas primeiras viagens, ninguém desembarcasse e fossem os indígenas que, nos seus barcos (então ainda não as almadias que hoje conhecemos mas simples jangadas de troncos fortemente amarrados) iam encostar ao navio. A tradição indígena que atrás (1) Memória apresentada pelo Governo Português, documento n.° 17. BI referimos assim o quer, quanto aos primeiros Brancos que vieram negociar à baía. Em todo o caso, em 1554 eram já os Portugueses que vinham a terra. O navio que recolheu, nesse ano, os náufragos da S. Bento, ancorou primeiro no «rio do meio» (') e o piloto, de nome Bastião de Lemos, «saía algumas vezes em terra, a fazer o resgate». Do «rio do meio», Bastião de Lemos “tornou ao Inhaca, sobre seu resgate, como costumava». Mais tarde, estabeleceram-se em terra postos de resgate, com acampamentos feitos de casas de palha. Aí se recolhia a gente do navio enquanto duravam as transacções, se armazenavam as mercadorias e acudiam os indígenas a fazer seu negócio. Era a estes acampamentos que os antigos chamavam feitorias, até mesmo fortalezas. Findo o resgate ou chegada a monção de partir, toda a gente recolhia ao navio e os acampamentos ficavam desertos até à nova campanha, no ano seguinte. A exploração era, pois, um típico sistema de feiras. O primitivo resgate no «meio» foi posteriormente abandonado, decerto pela turbulência dos indígenas de Tembe e de Mpfumo (de que, mais tarde, os Holandeses se queixariam também). O facto é que, em anos posteriores, a actividade dos Portugueses exercia--se especialmente, se não exclusivamente, na Inhaca e ao longo do Incomáti. Na já citada relação de Jan Van de Capelle, há confirmação do abandono do resgate do “meio». De um indígena de Moçambique que viera várias vezes à baía com os Portugueses e ali (') Este rio do meio da baía não é o curso do Tembe, como alguns têm suposto, mas sim a própria baía, ou seja o estuário do Espírito Sanío. ficara, soube o Holandês que os Portugueses “nunca tiveram uma feitoria aqui [isto e, onde era o forte holandês, no sopé das dunas da Machaquene], mas numa ilha de nome Xefina, situada no lado NE da baía». A primeira notícia que ternos daqueles acampamentos é de 1589 (relação do naufrágio da nau S. Tomé). O régulo da Inhaca, aconselhando os náufragos a não passarem à outra banda (Mpfumo e Manhiça) e lembrando-lhes o que sucedera a Manuel de Sousa Sepúlveda, disse-lhes que «se não se haviam por seguros naquela aldeia [a povoação do Inhaca ficava no continente], ele os mandaria pôr em uma Ilha onde achariam ainda as casas em que os Portugueses viviam quando ali vinham ao resgate do marfim». Os náufragos aceitaram. Passaram à Inhaca e, depois, à ilha então chamada «Setimino» ( 1 ) e nesta acharam “mais de cincoenta choupanas que os portugueses do resgate deixaram feitas». Essa ilha foi, depois (e ainda o é hoje), chamada “dos portugueses» — «pelos muitos que nela estão enterrados, dos que se salvaram da nau S. Tomé», conforme escreveu João Baptista Lavanha. A partir de certa data, o navio do resgate deixava na ilha uma embarcação pequena, para socorro dos náufragos que ali viessem dar. Jerónimo Leitão refere o facto nestes termos (veja-se Doc. 1.°): “E nesta ilha do Inhaca terão os náufragos que comer, e se daí quiserem atravessar às terras de Inhambane sempre lhes aí deixam as embarcações do resgate em que o poderão fazer.» Em 1593, a feitoria era ainda na ilha dos Portugueses. Os náufragos da Santo Alberto, que tiveram ( 1 ) Noutro passo da relação aparece Setimuro em vez de Setimino. Trata-se, obviamente, de duas formas (erradas pelo copista ou impressor) de uma mesma palavra. O nome indígena da ilha é Xitimáli. 33 a sorte de chegar à baía quando nela se achava o navio do resgate, encontraram nessa ilha «a gente do navio aposentada em choupanas feitas nela para seu gazalhado». Em 1622, passou-se uma cena semelhante à de 1589. O régulo, insistindo com os náufragos da S. João Baptista para que ficassem junto dele, que então residia na Inhaca, disse-lhes «que se não queriam fiar-se dele, fossem para uma ilha que estava logo ali pegada, à qual se passava a pé em baixamar, que ali tinham água, e que lhes mandaria fazer para cada dois portugueses uma gamboa, e teriam mantimento que bastasse, que ali tinham invernado por muitas vezes portugueses». A chamada feitoria da Inhaca era, pois, na ilha dos Portugueses e não é bem claro se alguma vez foi na Inhaca propriamente dita, visto como a nomeação desta ilha frequentemente engloba a dos Portugueses. Por seu turno, a primeira notícia que temos do resgate no Incomáti vem-nos de Diogo do Couto. Descrevendo o rio do Manhiça, diz que ali faziam os Portugueses resgate de marfim e tinham a sua feitoria, onde residiam quatro meses do ano, que tanto durava a monção. Em 1623, Francisco Vaz de Almada refere-se-lhe nestes termos: «quando a estas partes vem embarcação, na sua [do Manhiça] terra tem a maior feitoria». A este tempo, ao que se deduz desta relação, a Xefina não era ainda utilizada: a feitoria achava-se na boca do Incomáti. Em 1647, porém, já a Xefina funcionava como base dos resgates estabelecidos ao longo do Incomáti. Bento Teixeira Peio, na sua relação do naufrágio do galeão Sacramento e nau Nossa Senhora da Atalaia, deixou-nos disso informação relativamente desenvolvida. Quando os náufragos chegaram à baía, encontrava34 -se nesta, ancorada junto à Xefina, ilha despovoada, a galeota que viera ao resgate. Chegaram à ilha no dia «5 de Janeiro, véspera de Reis, de 1648, saindo logo para a igreja, que se ali faz de palha com a vinda do pataxo em que há capelão, e missa, a dar graças a Deus, e à Virgem do Rosário, cuja invocação tinha». Ao terceiro dia, repartiu-se a gente «pelas cinco feitorias, que já estavam assentadas, vinte léguas pelo rio acima» (o rio é o Incomáti). Na ilha ficaram, por hóspedes do capitão da galeota, o almirante ( l ), os religiosos, os oficiais e passageiros do galeão e da nau, «acomodados por palhotas, que se faziam de novo, e outras, que despejaram os lascares da galeota, a quem se pagaram». Foi a este acampamento, naturalmente melhorado mais tarde, com a sua palhota-igreja de Nossa Se n h o r a do R o s á r i o ( 2 ) que os Holandeses chamariam «possessão» ou «guarnição portuguesa». «Chegando-se o tempo de partir», continua a relação, «se vieram ajuntando os que escaparam nas feitorias, e embarcados todos levámos âncora a 22 de Junho à tarde [...].» Da Xefina foram dar fundo na (*) O galeão Sacramento e a nau Nossa Senhora da Atalaia haviam partido juntos da índia. O galeão era a capitania e a seu bordo viajava o «almirante», isto é, o capitão-mor, Luís de Miranda Henriques. ( 2 ) Eis outro exemplo da ilusão de ocupação da baía. Paiva Manso, reelaborando o texto de Bento Teixeira Feio, diz que “o nosso estabelecimento de Lourenço Marques contava em 1647 uma população já de trezentas pessoas e nele havia também capela com seu capelão». Noutro passo, insiste: «Tinha uma população em 1647 de trezentas pessoas livres, com seu capelão, e seis feitorias». Pelo que já transcrevemos do relato de Feio, sabemos o que se deve pensar da capela e seu capelão. Quanto às trezentas pessoas livres, eram 154 náufragos do Sacramento e da Nossa Senhora da Atalaia; o resto, a gente da galeota. E, como era regra, ninguém ficou em terra: «dando à vela dia de S. João começámos a navegar para Moçambique com trezentas pessoas, brancos e pretos, na galeota». 35 ilha do Inhaca onde resgataram muitas galinhas e batatas — largando, depois, para Moçambique. Em 1688, a galeota holandesa Noord, que viera reconhecer e cartografar a baía, forneceu esta notícia: «no continente, perto da boca do Manhiça, os Portugueses tinham uma casa pequena ( l o d g e ) ou habitação temporária onde faziam o negócio». Nos relatórios de De Capelle encontramos nova informação sobre os resgates da Manhiça. Como já atrás vimos, não era no sítio actual de Lourenço Marques que estava a feitoria mas sim na Xefina. De Capelle acrescenta: «Na foz do rio que chamamos St. Esprit [os Holandeses, confundindo os nomes, chamavam assim ao Incomáti] tinham os Portugueses um sítio onde faziam palhotas para se alojarem durante o tempo de estadia para negociar, que ordinariamente era de cinco ou seis meses. Em cada uma das povoações ao longo do rio agora mencionado até Manisse (não tendo eles nunca penetrado mais para cima) mantinham durante o tempo indicado uma feitoria com mais ou menos quatro homens que faziam o negócio, vindo então de baixo, cada 8 ou 10 dias, para cima, com as suas embarcações, para buscarem os artigos negociados, e quando voltavam outra vez com os seus navios para Moçambique deixavam ficar as casas (de caniço) para o ano seguinte.» No relatório e diário da lancha De Hoop, que por instruções de De Capelle explorou o Incomáti em 1728, há informações que permitem, cremos, localizar os postos de resgate portugueses: são as referências a «paus de bandeira» — que supomos assinalarem o lugar dos postos. Se, realmente, assim é, os postos ficariam, mais ou menos e subindo o rio: o primeiro, na Magaia, perto da «colina do chefe Magaia», possi36 velmente onde hoje está Vila Luísa de Marracuene; o segundo, entre a Macanda e o rio «Débora» (provavelmente o Xicluvane ou Xicluvanine que desemboca no Incomáti uns três quilómetros a jusante do monte Manhiça); o terceiro, junto ao monte Manhiça; o quarto e o quinto entre este monte e a ilha Mariana. O rio do Ouro parece ter sido, também, um lugar de resgate, mas não sabemos se cabia ao navio de Lourenço Marques se ao de Inhambane. Fr. João dos Santos, o conhecido autor de «Etiópia Oriental», refere que o capitão de Moçambique mandava todos os anos um navio a Lourenço Marques, outro a Inhambane e Cabo das Correntes. Convém observar, a propósito, que a denominação Cabo das Correntes e, como mais tarde se dizia, «estabelecimento do Cabo das Correntes», é de referenciação incerta: umas vezes relaciona-se com Inhambane, outras com Lourenço Marques. Diogo do Couto, por exemplo, diz: «Cabo das Correntes, a que os de Moçambique comummente chamam Inhambane». Jerónimo Leitão, um dos capitães do resgate de Lourenço Marques, deve ter visitado com insistência o rio e a costa do Ouro. Ao longo do rio tinha, em 1589, a doze léguas da costa, um régulo amigo. Rematando os seus conselhos aos náufragos que procurassem subir a costa, desde o Incomáti a Sofala, observava-lhes: «e em todas as partes por donde passarem dirão o meu nome que é Jerónimo Leitão, e em língua de cafre Inhale-fua». Este cognome cafre reproduz, provavelmente, a expressão chope que significa homem rico e poderoso — e os Bá-Chope eram a gente daquele rio e costa. Para sul da baía, parece ter havido, também, certo movimento. Diogo do Couto indica dois lugares de resgate. Um era no rio de Simão Dote, por 27° 1/3, 37 inominado nas cartas mas assim chamado, do nome de um português que a ele fora ter num pangaio, pêlos que navegavam de Moçambique para Lourenço Marques. Em 1589, quando o batel em que iam os sobreviventes da S. Tomé ali varou, os pretos fugiram, primeiro; depois, voltaram e reconheceram os náufragos como portugueses, «pela comunicação que com eles tinham por causa do resgate do marfim que todos os anos ali iam fazer». O outro lugar apontado por Couto seria, algures, para além do rio de Santa Luzia, no reino do Vambe que da primeira terra do Natal se estendia para sul. Lavanha, por sua vez, apresenta a baía de Lourenço Marques como «o primeiro porto daquela costa em que os portugueses tratam e resgatam». No entanto, o facto de no contrato de 1614, entre a Coroa e o capitão de Sofala e Moçambique, este ser autorizado a resgatar nos «portos do Cabo da Boa Esperança», sugere que, realmente, alguns mercadores se tivessem aventurado a tratar em portos a sul de Lourenço Marques. O comércio na baía foi, talvez, nos primeiros anos, livre para os nacionais. É o que parece poder deduzir--se do facto de, em 1554, dois navios serem despachados para o resgate no rio da Lagoa: um, de Moçambique, pilotado por Bastião de Lemos, «mandado por D. Diogo de Sousa, capitão de Sofala e Moçambique, a buscar marfim para el-rei nosso senhor»; outro, o que Lourenço Marques aprontava em Cochim e estava para largar nos princípios de Fevereiro (1). De positivo, porém, sabemos que um regimento de El-Rei D. Sebastião tornou defeso «o trato e comércio (1) Relação do naufrágio da 5. Bento. 38 de Sofala, Cuama, Inhambane até o Cabo das Correntes inclusive». E a baía manteve-se fechada aos mercadores até que em 14 de Novembro de 1590 um alvará do capitão geral e governador da índia, D. Manuel de Sousa Coutinho, permitiu aos moradores de Moçambique «em suas embarcações ir e mandar fazer seus tratos e resgates» na ilha de S. Lourenço, costa de Moçambique, costa de Melinde, Cabo Delgado e «do das Correntes até o de Boa Esperança». Deveriam trazer da índia todas as fazendas de que necessitassem, embarcando-as na nau da viagem (carreira entre Moçambique e a índia), a cujo capitão pagariam os devidos fretes. Ê difícil apurar se este regime se manteve. Como é sabido, a condição do comércio na Capitania passou por frequentes modificações: arrendamento ao capitão, monopólio da Fazenda, contrato com particulares, liberdade. As duas primeiras alternativas prevaleceram, pelo menos até 1680. Dos documentos sobre o assunto nem sempre se distingue se as providências tomadas respeitam apenas a Sofala e aos Rios de Sena, onde corria o negócio do ouro, ou também aos outros portos. Em 1614, firmou-se contrato entre a Coroa e o capitão de Sofala e Moçambique Rui de Melo Sampaio; uma das cláusulas «permitia» ao capitão resgatar nos portos do Cabo da Boa Esperança, e é possível que nestes se compreendesse o de Lourenço Marques. Em 16221623, parece que os resgates dos portos do sul seriam monopólio do capitão. De facto, Francisco Vaz de Almada, um dos sobreviventes da nau S. João Baptista, tendo chegado, por terra, a Inhambane, resolveu prosseguir para Sofala, pois tão cedo não se esperava navio em Inhambane. A razão era que tinha falecido em Sena o governador Nuno da Cunha. No ano de 1680, o Príncipe Regente, por alvará em 39 força de lei, de 24 de Marco, extinguiu a Junta do Comércio de Moçambique e Rios de Cuama e declarou o comércio livre a todos os seus vassalos, assim do Reino como da índia e mais Domínios e Conquistas. Mas vinte anos depois foi novamente estabelecida a Junta do Comércio que perduraria até 1720. Em todo o caso, a carreira comercial Moçambique-Baía da Lagoa parece ter-se mantido, ao longo deste século e meio, 1545-1703, com regularidade. Nos primeiros anos, supomos, o navio do resgate vinha despachado da índia. O relator do naufrágio do galeão S. João, 1552, refere que os náufragos julgaram poder esperar, em Mpfumo, «ate vir navio da índia». Em 1554, quando a nau S. Bento largou de Cochim para Lisboa, Lourenço Marques estava acabando de se aviar para uma viagem à baía do seu nome. Em breve, no entanto, o navio do resgate passou a ter praça em Moçambique e nesse mesmo ano de 1554 o navio que veio à baía fora despachado por D. Diogo de Sousa, capitão de Sofala e Moçambique. Não é possível garantir se a carreira era anual ou de dois em dois anos. Pr. João dos Santos, por exemplo, apresenta-a como anual. João Baptista Lavanha, porém, com a sua autoridade de cosmógrafo-mor de Sua Majestade, afirma que o navio do resgate vinha à baía de dois em dois anos. Um passo de Francisco Vaz de Almada sugere, também, que fosse esta a periodicidade da carreira. Mas a maioria de indicações são pela viagem anual. Esboçaremos, agora, com os poucos dados que possuímos, um quadro da navegação na baía. Em 1552, os náufragos do galeão S. João, ao che- garem ao rio do meio (estuário) souberam, por uns indígenas vindos em almadias, que «ali viera um navio de homens como eles e que já era ido». Já depois da morte de D. Leonor, e de Manuel de Sousa se ter internado no mato, chegou um navio em que vinha, talvez como capitão, «um parente de Diogo de Mesquita». Em 1554, os náufragos da S. Bento foram recolhidos pelo navio pilotado por Bastião de Lemos, chegado à baía em 3 de Novembro. Só a 20 de Março, com os «primeiros Ponentes», o navio pôde largar de regresso a Moçambique. Em 1589, quando a gente da S. Tomé chegou à baía, um indígena informou-a de que não havia ainda dez dias largara do rio de Lourenco Marques para Moçambique uma naveta de que era capitão Jerónimo Leitão, que levava muito marfim. Em 1593, os náufragos da Santo Alberto tiveram a dita de encontrar na baía o navio Nossa Senhora da Salvação, pilotado por Baptista Martins e de que era capitão Manuel Malheiro. Este mesmo capitão Manuel Malheiro fez, pelo menos, mais uma viagem e foi morto por gente do Inhaca, talvez em 1596 ou 1597. Em 1598, voltou à baía o mesmo Jerónimo Leitão que já viera em 89. E por ele se sabe que em Junho de 1597 se perdera na Inhaca «um navio pequeno de 500 candis, que com o vento ponente deu à costa na ponta da ilha». Em 1622, o relator da perda da S. João Baptista deixou-nos a informação de que havia dois anos não ia navio à Inhaca, «pelo gasalhado que os tempos atrás lhes fizera» o régulo, o qual matara «um clérigo, e três portugueses, pêlos roubar». Em 1647, veio à baía a galeota de que era capitão 40 41 Diogo Velho da Fonseca, natural de Vila Franca de Xira, casado e morador em Moçambique, e mestre Manuel Rodrigues Sardinha. Só em 1685-86 temos mais notícias de navio português na baía: a viagem de Domingos Lourenço que achou o resgate quase completamente despojado por cinco navios ingleses que o haviam precedido. Conhecem-se, ainda, em 1688 a viagem de João Jacques e, finalmente, entre 1701-1703, aquela que marca o termo da exploração comercial da baía pêlos Portugueses, fechando o primeiro ciclo da história de Lourenço Marques. A viagem normal entre a baía e Moçambique demorava uns quinze dias. Ë, pelo menos, o que pode deduzirse das poucas informações de que dispomos. Assim, na viagem de 1554-55, o navio largou da Inhaca em 20 de Março e chegou a Moçambique em 2 de Abril. Em 1648, a galeota de Diogo Velho da Fonseca saiu em 24 de Junho e chegou em 9 de Julho. A Nossa Senhora da Salvação, em 1593, levou vinte e seis dias — mas sofreu mau mar e esteve em riscos de perder-se em alturas do Rio do Ouro. Em 1597, Jerónimo Leitão saiu de Moçambique em Novembro e só chegou à Inhaca em Janeiro de 1598, «por vir em pangaio e se deter em Sofala mais de um mês». Como já dissemos, o plano da carreira parece ter sido este: chegar à baía por Outubro-Novembro, aguardar nela uns cinco meses e sair por Março ou Abril. Ao menos nos primeiros tempos da navegação, este esquema aparece-nos com regularidade: assim o vemos com as viagens de 1552, 1554 e 1589. No entanto, já em 1554 temos uma indicação contrária. Os náufragos, numa paragem a sul do rio da Pescaria, resolveram mandar para diante «três ou quatro homens despejados», por terem receio de não 42 chegar a tempo de encontrarem o navio. Pelas suas contas, não poderiam atingir a baía senão em Julho. E a partida do navio, «segundo a navegação ordinária, havia de ser com a lua de Junho». Em 1593, também: o piloto Rodrigo Migueis exortou os seus companheiros de naufrágio a esforçarem-se por chegar ao Rio da Lagoa em fim de Junho, «que era o tempo em que dele partia o navio do resgate para Moçambique». Foi, realmente, o que sucedeu: o navio só largou em 12 de Julho. Na viagem de 1647-48, a partida efectuou-se em 24 de Junho. O caso de 1554 talvez possa explicar-se pelo facto-de que o navio em questão era o de Lourenço Marques, em viagem directa entre a índia e a baía, por consequência sujeito a diferente regime de monções. 0& outros denunciam, provavelmente, uma ampliação do« esquema primitivo, explicável por que, tendo-se o comércio expandido ao longo do Incomáti, o resgate-exigia maior demora na baía. O marfim era o objecto principal do comércio e,. se acaso não foi ele que provocou a expedição inicial,, por ele se tornou famosa a baía de Lourenço Marques. Mas ao resgate concorriam também, como escreveu Fr. João dos Santos, «âmbar, escravos, mel e manteiga, cornos e unhas de Bada (1), dentes e unhas de cavalo marinho». Havia cera, também, embora não em grande quantidade, conforme o intérprete informou: De Capelle. Do cobre, a que D. João de Castro ligara tanta, importância, não há notícia. Quanto a ouro, o intérprete de De Capelle declarou-lhe ignorar se os Por(*) Abada, rinoceronte. 43 tugueses tinham, alguma vez, resgatado aqui ouro; ele, em vinte anos de permanência na baía, «nunca tinha visto ouro nesta nação». Não é muito crível que, se o resgate na baía desse ouro, este nunca apareça mencionado ou, então, seria em tão pouca quantidade, comparado com o que vinha de Sofala e Rios de Sena, que nem valeria a pena referi-lo. O facto é, no entanto, que à feitoria holandesa aqui estabelecida mais tarde vinham indígenas do interior trazer ouro em pó, cobre e estanho, os quais, diz De Capelle, eram de K3or muito bonita, se bem que o estanho lhe parecia um pouco mole e leve. Em troca, os compradores ofereciam panos e contas. Estas eram, como diz Perestrelo, tidas pêlos indígenas «por tão precioso tesouro, como nós a pedraria ou seu Semelhante”. Foram, possivelmente, os náufragos que introduziram no comércio outras mercadorias, tais como pregos e bocados de cobre e ferro. Mas aquelas veniagas — roupas, velório e missanga — eram as preferidas pelos indígenas. Não possuímos qualquer indicação sobre o volume e o valor do comércio na baía. Os mais remotos números que se conhecem respeitam à feitoria holandesa e adiante os referiremos. O resgate devia ser frutuoso, dadas a sua sustentação regular pelos Portugueses durante século e meio e a insistência com (que os estrangeiros procuravam a baía. Os Holandeses, todavia, nunca se satisfizeram com ele e a situação comercial da sua feitoria esteve sempre longe da prosperidade. Também não possuímos mais que escassas indicações sobre os preços. Na carta de D. João de Castro a El-Rei, avalia-se por três vinténs de contas um bar (mais ou menos, duzentos e trinta quilos) de marfim. As relações dos naufrágios apresentam-nos algumas transacções: uma vaca por seis pregos; quatro vacas, por cobre que valeria três vinténs; cada um dos sobreviventes do galeão S. João, em 1552, custou ao capitão, do navio do resgate dois vinténs de contas... A instituição do presente aos régulos, o saguate, cedo deve ter começado. Em 1589, o régulo da Inhaca usava «um ferragoulo de pano verdozo que o alferes-mor D. Jorge de Menezes tinha mandado de Moçambique». E quando, em 1593, Nuno Velho Pereira chegou à baía com o seu cortejo de náufragos, presenteou, às mãos rotas, o mesmo régulo: «um sombreiro de feltro, negro, um pano da China lavrado de seda e ouro, duas vacas, uma delas prenhe, uma medalha com cadeia de prata e uma garrafa pequena de prata». Ao filho-do régulo deu um copo de prata, «que o pai logo lhe tirou». Mas, com esta prodigalidade, Nuno Velho Pereira queria comprar alguma coisa mais que marfim: a vida. As relações com os indígenas foram, no início, excelentes com o Inhaca, mas não assim com a gentedas terras que bordam a baía desde o Tembe até as proximidades do Incomáti. Esta verificação é extremamente interessante, pois. reflecte a diferença de duas raças: os tongas autóctones (representados pela gente do Inhaca, a uma banda, e, à outra, a do Magaia) e os invasores vindos-de Psatine (Suazilândia), vaga da grande migração que descera do Norte, da região dos Lagos. Esta gente trazia uma cultura superior à das pacíficas populações aborígenes e a aventura da migração aguçara nela o espírito da agressão, do assalto e da pilhagem — o espírito da guerra. De Capelle descreve-a assim, em 1723, num retrato feliz: 45 44 «Estes gentios são vaidosos como raça; gostam de ser considerados como gente audaz; dizem que os Holandeses não têm coragem, eles sim; várias vezes assaltam os nossos que se encontram fora no mato a comprar alguma coisa; também mesmo na fortaleza ameaçam espancar os nossos, como eu mesmo já vi se muitas vezes os tenho mandado sair imediatamente da fortaleza». Como já dissemos, deve ter sido esta belicosidade da gente do Tembe e de Mpfumo que levou os nossos, logo nos primeiros anos do comércio na baía, a abandonar o primitivo resgate no «rio do meio». Temos, na relação do naufrágio da S. Bento, 1554, um testemunho da insegurança deste resgate: Recolhidos os náufragos no navio, este veio fundear no “rio do meio». Bastião de Lemos, o piloto, saía algumas vezes para terra, ao resgate — mas «andavam os cafres da borda daquele rio do meio tão amotinados contra ele, que quase todos os dias o faziam embarcar às pancadas, com assas pressa». Ao princípio, os nossos contemporizaram. Mas, com o abuso, resolveram castigá-los. Organizaram o assalto a uma povoação perto da borda de água, onde fora espancado >e roubado um dos nossos homens. Os indígenas começaram por resistir bem mas, depois, viraram costas. Deixaram no campo cinco mortos, entre os quais Maçamana, seu capitão. Os nossos cativaram cinco ou seis mulheres que, «por reformação de pazes», restituíram ao Tembe, rei daquela terra, o qual, depois de saber o que se passara, achou bem feito o castigo e ficou «nosso amigo». Mais para norte, para além donde está hoje a cidade de Lourenço Marques, pelas praias até o Incomáti, Manuel de Sousa Sepúlveda, sua mulher Leonor de Sá e os companheiros tinham, dois anos antes, sofrido 46 roubos e maus tratos. O nome de Manuel de Sousa seria, por muito anos, invocado como aviso àqueles que, não achando na baía o navio do resgate e não sofrendo a espera, se inclinassem a tentar o caminho para Inhambane e Sofala, rodeando a baía. Foi para lhes evitar a travessia dessas terras de gente violenta e cruel que os navios do resgate passaram a deixar embarcações na ilha dos Portugueses. Jerónimo Leitão, nos conselhos que, por 1598, dá aos náufragos, recomenda que, não achando na ilha as embarcações, «se deixem estar e não queiram dar a volta à baía como fez Manuel de Sousa de Sepúlveda, porque entre rio e rio os mataram todos por ser muito má gente e nossa inimiga». Nas terras do Inhaca, que se estendiam pelo continente para sul, entre o Tembe e o mar, os Portugueses encontravam guarida simpática. Não isenta, sem dúvida, de cobiça, de extorsão e vexame — ou, como diz Perestrelo, “não tudo fundado em virtude mas parte em interesse»; todavia, generosa bastante para os abrigar e lhes matar a fome. Por vezes, nas narrativas dos náufragos, o Inhaca é-nos apresentado em manifestações de cordialidade e bonomia. Mais tarde, porém, estas relações alteraram-se: a onda invasora transpusera o Tembe e rolara pelas terras hoje do Maputo, acabando por avassalar os tongas do Inhaca. A actividade dos Ingleses concorreria, também, para indispor os indígenas contra os nossos — quer porque os Ingleses lho insinuariam quer porque pagavam melhor o negócio. Qualquer coisa sucedeu, entre 1594 e 1597, de que resultou a morte de Manuel Malheiro (capitão do Nossa Senhora da Salvação, que em 1593 estivera na baía) e exigiu a intervenção, como negociador de pazes, de Jerónimo Leitão. Por 1620-1622, inter47 rompeu-se a navegação para a baía ou, pelo menos, o resgate na Inhaca, porque o régulo mandara matar “Um clérigo e três portugueses», para os roubar. Onde as relações com os indígenas parecem ter-se mantido sempre boas foi ao longo do Incomáti. No Manhiça, como então se dizia (provavelmente tratava-se, antes, do Magaia) também os náufragos acharam sempre boa guarida e o bom conselho de que não se metessem, por terra, pela Costa da Calanga — Limpopo, Zavala — habitada também por gente de má índole, os antepassados dos actuais Vá-Lengue e Bá-Chope. A penetração no interior, com as cinco estações à margem do rio até perto da ilha Mariana, só era possível com a simpatia das populações indígenas. O aparecimento dos Brancos e a instituição do comércio regular obviamente teriam profunda repercussão. À baía de Lourenço Marques vieram, de remotos lugares, homens curiosos e audazes. Estabeleceram-se, por terra, extensas correntes de tráfico. Nuno Velho Pereira encontrou, pelas paragens do rio do Infante, no interior, indígenas que usavam contas, as quais lhes vinham das terras do Inhaca. Entre a Manhiça, Inhambane e Sofala parece ter existido movimentado tráfico, como De Capelle refere. Da Manhiça a Inhambane contavam os indígenas sete jornadas. De Inhambane a Sofala, cinco. O filho do régulo da Manhiça explicou ao Holandês que a sua gente ia a Inhambane, na estação seca, e comprava enxadas, machadinhas, azagaias e missanga de Moçambique, artigos que depois negociava com a gente das terras em redor. Vinha, também, gente de «Paraotte» e «Maschicosje» (Machicoche) à feitoria holandesa — e é de crer que já viesse, anteriormente, aos resgates dos Portugueses. Um dos homens que ofereceram ouro aos Holandeses trazia uma balança, com seixos de vários tamanhos a servirem de pesos. McCall Theal supõe que ele teria obtido a balança e aprendido a usá-la em Manica ou algures perto do Zambeze, «pois não o teria podido conseguir em qualquer lugar próximo da baía de Lourenço Marques». Esta argumentação surpreende, pois esses homens vinham de regiões que ficavam a oeste do alto-Incomáti, no Transval, e podiam muito bem ter entrado em contacto com as estações portuguesas da Manhiça, nas quais, certamente, se usavam também balanças. Estas correntes de comércio pelo interior e, com elas, a comunicação entre populações que se ignoravam representam os primeiros, titubeantes passos da civilização nestes sertões de África — e, também aqui, era pela mão dos Portugueses que ela os ensaiava... A Cruz e a Espada foram impostas, entrelaçadas, no nobre escudo das Descobertas e Conquistas de Portugal. Esqueceu-se a Balança — ou talvez se julgue que ela é desdouro. Todavia, a História ilustra-a de pergaminhos e títulos, e muitas vezes foi ela que marchou adiante, desbravando para a Cruz e para a Espada a glória com que as lisonjeiam... Tal foi a organização da exploração comercial da baía de Lourenço Marques, de 1545 a 1703, ano a partir do qual e até 1781 se interrompeu a sua frequência regular pêlos Portugueses. Tinha como pontos de apoio a ilha dos Portugueses e a ilha da Xefina. Desta, internava-se pelo sertão, à margem do Incomáti, em postos de resgate escalonados desde a boca do rio até às proximidades da ilha Mariana. Nestes postos, havia mastros nos quais a gente do resgate içava a bandeira, certamente como sinal de que tinha 48 49 chegado — uma chamada do marfim. As feitorias-bases e estes postos eram ocupados apenas temporariamente, durante o período da monção. À margem desta organização da exploração comercial, um facto do que hoje chamaríamos «assistência»: as embarcações deixadas na ilha dos Portugueses, para que os náufragos ali chegados fora da temporada do resgate pudessem seguir por mar para Inhambane e Sofala, a salvo das depredações da gente inóspita e bravia das terras do Tembe e de Mpfumo, da costa do Ouro ou da Calanga. Por outro lado, os capitães dos navios do resgate não eram simples negociantes. Ao serviço do donatário e contratador da Capitania, ou do monopólio mercantil da Real Fazenda, eles eram, em verdade, agentes e fiscais desse senhorio, uma autoridade política e administrativa — como também o eram as donas e, depois, os arrendatários dos prazos. Os indígenas assim o sentiam, embora, sem dúvida, o não compreendessem — como igualmente não compreendiam o que era doar terras e fazer dois riscos em cruz num papel em que os Brancos tinham escrito coisas intraduzíveis. Mas sentiam-no assim — e por isso os vemos, em 1597, quando da tentativa inglesa na Inhaca, estranharem que Jerónimo Leitão não viesse, e só tratarem com os Ingleses depois destes lhes darem a falsa garantia de que Leitão estava a bordo, pois ele era o senhor da Inhaca: «Jerónimo Leitão cuja aquela ilha era». Vemo-los, também, em 1726, quando os Holandeses se achavam já instalados na baía e os Portugueses havia vinte anos que lá não iam — vemolos obedecer à ordem do governador da Capitania para irem a Moçambique. Numa era em que nenhuma outra nação da Europa tinha, ainda, posto pé em África, a ocupação territo50 rial não importava e nem era necessária como expressão de senhorio. Dos seus paços e solares em Moçambique, Sofala, Sena e Tete os Portugueses saíam, periodicamente, a visitar os mais remotos lugares do seu domínio — um domínio em que não tinham confrontações nem vizinhos. A simples frequência regular desses l u ga r es , s i s t e m a t i z a d a e, mesmo, organizada localmente como vimos, traduzia uma presença de facto. A continuidade da exploração representava a afirmação e o exercício dum senhorio — até mesmo a rotina de uma administração. A instituição do comércio regular era, assim, uma forma real de instituição política — tão significativa como qualquer outra, até o dia em que para se reconhecer teria de se eriçar de baionetas e canhões... II Os Náufragos Mas não foi só pelo seu marfim que a baía de Lourenço Marques se tornou famosa. Ilustraram-na, também, a esperança e o desespero, a salvação e a perdição daqueles que naufragados na costa do Natal e do Cabo a demandavam pelo longo e torvo caminho da Cafraria. Longo e torvo mas, assim mesmo, caminho de salvação. Esta foi, também, uma função histórica da baía da Lagoa. O descobrimento dos rios de Lourenço Marques prolongou-se no descobrimento desse caminho. Antes, os que se perdessem naquelas fatídicas 51 alturas de 31-33 graus não podiam senão marchar para sul, em busca da Aguada do Saldanha, e esperar que aí fosse alguma das naus do Reino; ou, então, no próprio lugar em que o mar os deitara, construírem embarcação com que tentassem alcançar Sofala, se não, até, rodear o Cabo. Mas a prática da marinharia levara a navegação, logo nos primeiros anos da carreira da índia, a deixar de frequentar as escalas do sul e agora só por acaso surgiria nelas alguma nau. “Primeiro se gastariam eles todos, os náufragos, que ali fosse ter nau que os tomasse» ('). E quanto à segunda alternativa, raro era que da perdição das naus pudessem eles recolher materiais bastantes para a fábrica duma embarcação e a viagem em batéis por aquela costa provou ser mais incerta que a dos caminhos da terra ( 2 ). Agora, a baía da Lagoa oferecia-lhes a promessa de acharem nela o navio do resgate que os levaria a Moçambique — ou, ao menos, de nela terem parco mas seguro agasalho nas terras do Inhaca e as embarcações que os do resgate lhes deixavam para tentarem alcançar Inhambane ou Sofala. A descoberta deste novo caminho de salvamento não foi, porém, sem dor nem terríveis aventuras. Manuel de Sousa Sepúlveda pagou por ela a vida de sua mulher, a dos filhos, por f i m a sua própria. As primeiras expedições (1552, 54, 89) tomaram o (1) Perestrelo, relação do naufrágio da S. Bento. ( 2 ) Em 1633, a nau Nossa Senhora de Belém naufragou em 32 graus. Os náufragos conseguiram improvisar na praia um estaleiro e construir dois pequenos navios, nos quais deram a volta do Cabo e atingiram Angola. Nos naufrágios da S. Tomé e das naus Sacramento e Nossa Senhora da Atalaia, ternos exemplos de quanto era improvável vencer os mares daquela costa (do Natal e canal de Moçambique) em pequenas embarcações. caminho da beira-mar, procurando assim salvar-se da bárbara cafraria. Mas por esse quase deserto caminho esperavam-nas a fome e a sede e também as largas bocas de grandes rios em cuja travessia consumiam vidas e trabalhos sem fim. Esta experiência levou o bem-avisado Nuno Velho Pereira, em 1593, a conduzir a sua gente «por terra dentro» — e esta foi a mais feliz das seis expedições cuja história se conhece ('). À trágica experiência de Manuel de Sousa deveram, ainda, os que vieram depois dele, uma lição preciosa: a dos perigos de rodearem a baía pelas terras da gente cruel do Tembe e de Mpfumo. Por isso os da nau S. Bento preferiram ficar na ilha do Inhaca, esperando durante cinco meses a chegada do navio do resgate. Daí nasceu, também, a ideia de se deixar na ilha dos Portugueses embarcações de socorro. Os primeiros náufragos que as encontraram foram os da S. Tomé, em 1589. Foi, sem dúvida, uma grande providência para a travessia da baía mas excessivamente ambiciosa quando se propunha levar a salvo os náufragos a Inhambane ou Sofala. Nesta altura da costa, a navegação em pequenas embarcações era tão perigosa como vimos sê-lo na costa do Natal. A gente da S. Tomé tentou a experiência e não passou além do Limpopo. João Baptista Lavanha escrevia, com razão, ao apresentar a sua narrativa do naufrágio da Santo Alberto, que as notícias do caminho que os náufragos (') Outras houve, de que não nos ficou a história. Duma, pelo menos, temos notícia: na tripulação da Nossa Senhora da Atalaia, 1647, contavam--se três marinheiros que quatro anos antes tinham naufragado naquelas paragens com uma naveta capitaneada por D. Luís de Castelbranco e haviam subido a Cafraria até ao Cabo das Correntes. 52 53 faziam eram “de grande importância para nossas navegações, e para aviso delas mui necessárias». Por outro lado, as expedições dos náufragos costa acima legaram à história, à geografia e à etnografia valioso cabedal de informações. Mas se a descoberta e a prática deste caminho foram, como já julgámos, uma função histórica da baía da Lagoa, foram, também, o seu romance — o romance da grande aventura dessa incerta, temerosa jornada de cem dias pelos trilhos da Cafraria, à fome e à sede, à torreira do sol e à cacimba gelada, lacerando os pés nas rochas ou afundando-os na fofa areia, sempre sob a angústia da ameaça iminente — a emboscada dos cafres e das feras... E este romance é o pano de fundo da história da baía. Ninguém, por certo, o contaria melhor do que eles próprios, seus protagonistas, o contaram — e na História Trágico-Maritima estão algumas das mais belas, mais coloridas, palpitantes e dramáticas páginas que em português se têm escrito. Por isso nós não faremos mais que visionar, no cenário azul e luminoso da baía, a silhueta dessas lentas, exaustas procissões — o bando miserável de capitães, fidalgos e oficiais de El-Rei, mercadores, mulheres e crianças, frades e soldados, gente do mar e escravaria arrastando-se pelo caminho... À frente, um crucifixo erguido. Aqui, além, um vulto de dona sobre um andor levado aos ombros de escravos ou grumetes... E, atrás de todos, os fantasmas dos que iam ficando, uns caídos de fadiga e inanição, outros varados pelas azagaias dos cafres, ou chagados dos pés, ou no imenso abandono a uma mortal renúncia; outros, levados, esvaídos de forças, a boiar na corrente dos rios que lhes atravessavam o caminho; outros, desertados — e não só escravos, mas portugueses também, preferindo aos 54 trabalhos da jornada o ficarem ali, ao calhar, vivendo entre os cafres... (1) . E ao perpassar desta assombrada teoria recolheremos um grito ou um murmúrio, recortaremos uma figura ou uma cena — iluminuras ardentes para a história da baía da Lagoa... ...Eis Leonor de Sá, “fidalga, delicada e moça». Havia muito que tinham fugido os escravos que a traziam num andor. E ela, «fraca e pouco costumada a trabalhos», viera a pé, «como qualquer robusto homem do campo, por aqueles tão compridos e ásperos caminhos e sempre com tantas tomes e sedes». Tão gentil e animosa que ainda em seu grande desconsolo consolava os outros e ajudava a trazer seus filhos. Quando, na aldeia real de Mpfumo, seu marido Manuel de Sousa Sepúlveda e os outros homens consentiram em se repartir e entregar as armas, ela soube que tudo estava perdido — tudo, menos o sofrimento derradeiro que a misericórdia de Deus guardava, ainda, para ela! — Vós entregais as armas, agora me dou perdida com toda esta gente. Roubados e expulsos, retomam a caminhada. Mas, algum tempo adiante, algures pelas terras da Maota e Magaia até o Incomáti, os cafres assaltam-nos e tiramlhes o que ainda possuíam: as roupas com que se cobriam. ( ' ) No naufrágio do Sepúlveda, eram cerca de 500 pessoas, das quais 180 portugueses, quando partiram daquela praia de 33 graus; chegaram à baía 120. Da 5. Bento, salvaram-se 322 pessoas: 98 portugueses e 224 escravos; chegaram 56 portugueses e 6 escravos. Da Santo Alberto, de 125 portugueses, chegaram 117; de :6o escravos, 65. Das 279 pessoas da 5. João Baptista (que tiveram de atravessar a Costa da Calanga até Inhambane, umas, Sofala, outras) acabaram por se reunir em Moçambique 29. 55 «Aqui dizem que D. Leonor se não deixava despir e que às punhadas e bofetadas se defendia, porque era tal que queria antes que a matassem os cafres que ver-se nua diante deles». Mas Manuel de Sousa, que mais que tudo a queria viva, rogou-lhe que deixasse e, «pois que Deus daquilo era servido, o fosse ela também». E Leonor ficou nua — o seu branco corpo de fidalga, delicada e moça alvejando contra o sertão bárbaro da negra África... Os homens que com ela vinham afastaram-se, de vergonha. E ela desatou os compridos cabelos, enrolouse toda neles e a si própria se enterrou, até a cintura, numa cova na areia. Então, chamou André Vaz, o piloto, e disse-lhe: — Bem vedes como estamos e que já não podemos passar daqui e que havemos de acabar por nossos pecados; ide-vos, muito embora, fazei por vos salvar e encomendai-nos a Deus; e se fordes à índia e a Portugal em algum tempo, dizei como nos deixastes, a Manuel de Sousa e a mim com meus filhos. Eles foram-se. Manuel de Sousa, já meio-louco, os filhos, Duarte Fernandes contra-mestre da nau e cinco escravas ficaram com ela. Leonor não mais saiu da sua cova. Um dos meninos morreu e Manuel de Sousa por suas mãos o enterrou. E ao outro dia, quando voltava do mato com alguma fruta, Manuel de Sousa achou Leonor falecida e o menino também. «Dizem que ele não fez mais, quando a viu falecida, que apartar as escravas dali e assentar-se perto dela, com o rosto posto sobre uma mão, por espaço de meia hora, sem chorar nem dizer coisa alguma; estando assim com os olhos postos nela e no menino fez pouca conta.» Nunca mais despertou desta contemplação. Ergueu56 -se, sonâmbulo, a alma já morta dentro do corpo. As escravas vieram ajudá-lo e ele, sem uma palavra, abriu as duas covas, sepultou nelas os dois corpos — e ainda sem uma palavra, sem um aceno, sem um olhar, virou costas e sumiu-se pelo mato, para todo o sempre... ...Pantaleão de Sá, fidalgo, português ilustre. Da mesma perdição do galeão grande S. João, errou longo tempo pêlos matos de Mpfumo. Um dia, acossado pela fome,.chegou à aldeia real e pediu que pedissem ao rei algum subsídio para ele. Não o atenderam: sua majestade estava morrendo, aos poucos, duma chaga numa perna, «tão pertinaz e corrupta que todos os instantes lhe esperavam a morte». Ngangas e feiticeiros tinham falhado. Então, Pantaleão de Sá afirma que é médico, vê o doente — e joga a sorte. — Tenha muito confiança e facilmente recobrará saúde. «E saindo para fora se pôs a considerar a empresa em que se tinha metido, donde não poderia escapar com vida, pois não sabia coisa alguma que pudesse aplicarlhe; como quem tinha aprendido mais a tirar vidas que a curar achaques para as conservar.» Urinou no chão. Com a terra amassada de urina pensou a chaga. E ficou-se, à espera mais da própria morte que da vida do doente. Ao dia seguinte, alarido no paço... A chaga «gastara todo o podre e aparecia só a carne, que era sã e boa». Proficiente, o fingido médico repetiu o curativo e, em poucos dias, o doente sarou. «O que visto, além de outras honras, puseram a Pantaleão de Sá em um altar, venerando-o como a divindade». Pediram-lhe que ficasse ali com eles e, como nos contos de fadas, el-rei ofereceu-lhe, ma57 gnânimo, metade do seu reino. Mas o ilustre Sá recusou — e, então, o rei presenteou-o “ com grande quantia de ouro e pedraria» (sem dúvida roubados a Manuel de Sousa) e mandou escoltá-lo até Moçambique... ...Outro da perdição de Manuel de Sousa: Rodrigo Tristão, o branco cafre. Quando, dois anos depois, a gente da S. Bento descançava no rio da Pescaria, viu sair do mato «um ajuntamento de cafres que traziam entre si a um homem nu, com um molho de azagaias às costas». Não se diferençava dos cafres, nem mesmo na cor. Era Rodrigo Tristão. Juntou-se aos da S. Bento e seguiu jornada. Mas, dias mais tarde, ao ser destacado à procura de mantimento, não mais voltou nem mandou recado — branco tornado cafre, absorvido pelo feitiço da vida primitiva... ...E Beatriz de Lima, mulher de D. Paulo de Lima que morrera nas paragens do rio do Ouro, levando pela Cafraria, num saco, as ossadas de seu marido... ...D. Ursula Maria, «moça, formosa, mais alva e loira que uma framenga», deixada ao rei negro do rio da Manhiça que a levou consigo num andor... ...Francisco Vaz de Almada, cravado de cinco azagaias numa peleja com os cafres... Não conseguia arrancar os ferros — e meteu ao mato, à procura dos próprios com quem pelejara, para que lhos tirassem, o que eles fizeram e o curaram com mafurra... ...A bordo da Nossa Senhora da Atalaia, na hora da perdição... Alguém vai pedir a frei António de S. Guilherme, agostinho, que ali à beira da morte o oiça de confissão... Mas o frade repele-o, que não era aquela hora para confessar, mas sim para trabalhar... Cai por uma escada, abre-se-lhe na cabeça uma grande brecha — mas fr. António ata-lhe um lenço e continua, rudemente, a trabalhar nas bombas... ...Bernardim de Carvalho, «fidalgo de muita virtude», um dos raros exemplos, nestes cortejos de desesperados, de piedade, abnegação e ternura... Entre as mulheres, vestidas de jubões brancos, calções compridos até ao chão e barretes vermelhos, ia D. Joana de Mendonça amortalhada no hábito de S. Francisco... No batel em que se salvara da nau, implorava que lhe fossem buscar a filha. A ama, na nau, levantava nos braços a menina, mostrando-lha — mas não lha dava, não a dava sem que a levassem também a ela... E D. Joana cortara os formosos cabelos e fizera o voto de professar. Naquela companhia, só ela não tinha pai ou marido que a ajudasse. Sozinha, veio andando, ficando para trás, até não poder mais. Então se chegou a ela Bernardim de Carvalho e lhe deu a mão, sem mais a desamparar. Na ilha dos Portugueses, ele ia ao mato buscar lenha para ela e a trazia sobre as suas costas; ia à fonte acarretar água; «a galinha, quando se resgatava, ele a matava, depenava e guisava, comendo dela Gregório Botelho, sua filha D. Mariana e D. Joana de Mendonça, ficando a ele sempre o menor quinhão, e ainda deste guardava uma peça para D. Joana, para a noite ou para o outro dia». Assim ele a serviu, «com tanto resguardo, honra e virtude que fez pasmar a todos». E assim, também, de puro trabalho se finou naquela ilha... 58 59 ...A Fome... Tiravam dos pés as alpergatas e comiamnas... Um, mais requintado, assou o sapato... Outros, às ocultas, comeram uns pretos que, por motim, haviam sido enforcados — e a carne, ao assar, «cheirava excelentissimamente a carne de porco»... Outros, ao darem com grandes cardumes de caranguejos brancos no rolo do mar, “e como o tempo não era para grandes temperos» tão sôfregos os levavam à boca que eles se lhes ferravam nela; «e, ficando-lhes ali a perna ferrada, o resto mal mastigado ia bolindo pelo papo abaixo»... Houve os que, «por perderem o sentido do comer», mascavam âmbar... E uns, um dia, devoraram a carta de marear... ...Agua... Dar de beber a quem tem sede... Mas nem sempre os que tinham água a davam aos que com eles iam morrendo de sede... Vendiam-na. Um púcaro de quartilho por dez cruzados — e num caldeirão de quatro canadas faziam cem cruzados de negócio... ...E aquele queixume de certa moçazinha branca, filha de um português velho que morrera na nau... Ninguém queria trazê-la num andor e ela caminhou ainda alguns dias... Fraca, esgotada, não pôde mais. Pediu confissão, que frei Bernardo lhe ouviu. E deitouse na areia, cobrindo a cabeça com a saia de tafetá preto que trazia vestida... A gente ia passando, grupo agora, outro mais logo. E a cada um que passava ela descobria a cabeça e dizia: — Ah! Portugueses cruéis que vos não compadeceis de uma moça donzela portuguesa como vós e a deixais para pasto de animais! Nosso Senhor vos leve a vossas casas! 60 Os últimos passaram e ela lá ficou, na praia deserta, com a sua saíta de tafetá preto sobre a cabeça... ...E outros, tantos outros, heróicos ou miseráveis, generosos ou cúpidos, piedosos ou cruéis, humanos ou bestas-feras — simples Homens, afinal, nas suas eternas momices de brinquedos de Deus e do Diabo... Assim eles vieram, aqui morreram ou daqui passaram... Deles ficou, ao longo do caminho da história, um rasto de lágrimas e sangue, de dor e desespero, de heroísmo e mesquinhez — um murmúrio de prece e imprecação... Basto e murmúrio que são hoje, para nós, um surto de poesia, da imensa poesia do sofrimento e da aventura humana. E contemplando, agora, da Cidade essa baía que foi para eles terra de promissão e de morte, só quem não tem olhos os não verá, sombras azuis e luminosas, vagueando no cenário azul e luminoso... E pobre daquele de nós, então, que ao descobri-los assim não sinta nos seus lábios, trémulo e dolorido, um sorriso de infinita ternura e piedade e gratidão... III Esquecimento Entretanto, as actividades de estrangeiros na baía haviam-se tornado tão insistentes que afectaram seriamente o comércio português. Na viagem de 1685-86, o capitão de Moçambique e Rios, D. Miguel de Almeida, comunicou ao vice-rei que o navio do Cabo 61 das Correntes levara esse ano muito pouco resgate. O capitão da viagem, Domingos Lourenço, explicou que haviam estado na baía cinco navios ingleses «resgatando marfim e âmbar com fazendas melhores que as nossas». O resgate fora tal que as terras circunvizinhas tinham ficado «sem marfim de consideração». O capitãogeneral reuniu, em 6 de Agosto de 1686, na fortaleza de S. Sebastião, conselho em que estiveram presentes o tenente-general e superintendente Francisco de Aveles Ramires, o capitão e castelão Pascoal de Abreu Sarmento, o feitor e alcaide-mor João Machado Sacoto, o reverendo padre reitor do colégio Manuel Freire, o prior e vigário da vara Domingos Dias Ribeiro e o vigário de S. Domingos fr. João da Madalena, com o escrivão da superintendência Manuel da Fonseca e Paiva. Assentou-se não se fazer, nesse ano de 1686, a viagem e que convinha comunicar ao vice-rei a «vinda dos ditos ingleses ao porto, pois se supõem por infalível o continuarem eles». Pediam-se providências ao vice-rei, para se continuar o resgate. Era necessária embarcação mais defensível, pois os navios de que em Moçambique se podia dispor eram «desarmados e sem capacidade de artilharia bastante para a sua defesa» ( 1 ). D. Rodrigo da Costa, vice-rei da índia, remeteu o assunto a Sua Majestade. Ao mesmo tempo, porém, expediu ao capitão de Moçambique ordem de que as viagens continuassem, para que de todo se não perdessem. Parecia-lhe mais útil alguma perda que a real fazenda pudesse sofrer, enquanto não fossem dadas providências, do que «deixá-los [os Ingleses] ( l ) A carta de D. Rodrigo da Costa a El-Rei, bem como a do capitão -de Moçambique a D. Rodrigo e o «assento que se tomou na junta de Moçambique», acham-se na Segunda Memória apresentada pelo Governo Português à arbitragem de Mac-Mahon, documento n.° 102 e anexos. 62 tomar posse disso, tornando por motivo o nosso esquecimento». Não há dúvida de que a carreira se manteve. Em 1688, veio à baía o navio de João Jacques e nela se encontrou com um navio inglês e a galeota holandesa Noord. Este encontro parece não ter preocupado João Jacques que fez tranquilamente o seu resgate no Incomáti, enquanto os Ingleses o faziam ao abrigo duma tenda armada na Inhaca e os Holandeses sondavam e cartografavam a baía. Um indígena, natural de Moçambique, contou a De Capelle que fizera sete vezes a viagem a Lourenço Marques, com os Portugueses, e é natural que essas viagens estejam dentro do período 1685-1701 ou 1703. Nestes anos de 1701 ou 1703 fora a sua última viagem — aquela com que fechou, desastrosamente, o ciclo da exploração comercial portuguesa da baía. Não se sabe a data certa. Esse homem disse a De Capelle que já tinham passado vinte anos sobre o acontecimento. Mais provavelmente, a conversa do Holandês com ele foi em 1721, ano em que De Capelle subiu o Incomáti (o «intérprete», como ele lhe chama, achava-se nas terras do Manhiça). Na incerteza, porém, há que referir os vinte anos ao período 17211723 (data do relatório de De Capelle) C). Eis como, no relatório, a informação do intérprete é reportada: «Quando veio pela sétima vez, com os Portugueses de Moçambique, ao Rio da Lagoa, querendo eles voltar para casa [isto é, regressar a Moçambique] (') McCall Theal, The Portuguese in South África, diz, não sabemos com que fundamento, que a interrupção da navegação portuguesa da baía se deu em 1602. 63 encontraram na baía um navio, sob uma bandeira branca, e tornando-se o tempo calmo foram obrigados a ancorar e pouco tempo depois o capitão deles, com o escrivão, foi ao outro navio (que julgavam ser francês e amigo) onde ambos foram feitos prisioneiros. Entretanto anoiteceu e ao amanhecer, mas sendo ainda escuro, os supostos Franceses aproximaram-se, em três embarcações a remos, com a intenção de surpreender o navio dos Portugueses: mas como levassem consigo o escrivão (amarrado) este ousou gritar à tripulação que tivesse cuidado e afugentasse as mencionadas embarcações, porque elas iam para assaltar o navio: consequentemente, os Portugueses levantaram-se e fizeram algumas descargas, depois do que a gente das embarcações (não vendo boa a oportunidade) se foi embora. De dia os Portugueses quiseram entrar mas infelizmente encalharam; em seguida toda a tripulação abandonou o navio, salvando-se em terra; os do outro navio vieram pouco tempo depois, levaram as melhores mercadorias, para depois porem fogo ao navio, tendo já passado vinte anos que isto aconteceu e desde então não tornaram a vir os navios dos Portugueses que estes tinham por costume mandar cada ano.» Naturalmente, a gente do navio meteu-se ao caminho até Inhambane ou Sofala, tendo o “intérpretes” preferido ficar. Se podemos tomar o ano de 1703 como o do cancelamento da carreira regular Moçambique-Baía de Lourenço Marques e, portanto, do abandono oficial da baía, fica-se na dúvida de se, uma ou outra vez ainda, algum mercador de Moçambique se teria aventurado a vir a estas paragens. De Capelle desconfiava que sim, mesmo já quando os Holandeses tinham o seu forte em Lourenço Marques. Diz ele: 64 “No entanto, [os Portugueses] ainda visitam a gente de Manhiça e estão em contacto com essa nação, pois que se viu usar-se na Lagoa, desde há alguns meses, muita missanga nova de Moçambique, que os cafres dizem comprar na Manhiça.» Como já dissemos, ao tratar do movimento comercial na baía, é provável (e, a nosso ver, seria o caso) que essa missanga proviesse do comércio interior, feito pelo indígena ao longo dos caminhos entre Manhiça, Inhambane e Sofala. Duma maneira ou doutra, o facto é que dentro de poucos anos as relações com a baía se tinham perdido completamente. Em 1753, era possível a um capitão-general declarar que só de tradição conhecia o porto de Lourenço Marques, pois havia muitos anos que se interrompera a navegação para lá (1). Sucedeu, então, o que D. Rodrigo da Costa previra. Do esquecimento dos Portugueses tomaram os estrangeiros motivo para se apossarem do comércio da baía e, até, das suas terras. Foi uma dominação efémera e por ela não se ilustraram os dominadores — porque uns, os Holandeses, saíram dela por tibieza de ânimo; outros, os Austríacos, expulsos pelas armas portuguesas. Oitenta anos depois, a reconquista firmava decisivamente a soberania de Portugal. (1) Capitão-general Francisco de Melo e Castro que assirn respondia à ordem da Corte para estabelecer em Lourenço Marques fortaleza e feitoria. 65 1703-1780 OS ESTRANGEIROS Como já dissemos, julgamos não ser inadmissível que muito cedo, possivelmente pêlos anos 30 ou 40 do século XVI, navios estrangeiros tivessem começado a aparecer na baía e entrado em negociações com os indígenas. Referimos já a tradição recolhida por Junod, nos fins do século passado, e que ele conta na sua conhecida obra Vida duma tribo sul-africana. A história é assim: Os primeiros Brancos com quem os Rongas tiveram comércio eram pescadores de baleias. Os Rongas, diz Junod, não sabem dizê-lo ao certo mas pensam que esses estrangeiros eram ingleses. O tráfico com eles era denominado gôdji — e, de facto, por Bá-Gôdji são hoje ainda nomeados os Ingleses. Ir a gôdji — ir fazer negócio com esses Brancos — tornou-se uma expressão e um costume consagrados (e isto indica, inquestionavelmente, a continuidade desse comércio). Os estrangeiros não ousavam vir a terra. Fundeavam na baía e os indígenas levavam ao navio as suas mercadorias. Só por gestos se compreendiam e os Brancos davam a comer à gente da Maçaneta carne de baleia. Em troca do marfim, entregavam ritatlas de bronze, bocados de cobre, enxadas. Depois destes Brancos, reza a tradição, vieram Muçulmanos, em “navios de popa levantada» chamados màpangánhi (na versão inglesa, original, da obra de Junod lê-se màpangaii) — pangaios. Os Mu69 çulmanos foram os primeiros estrangeiros que se estabeleceram em terra. Depressa aprenderam a falar a, língua e a servirem-se dos indígenas, expedindo-os, para o interior a comprarem de sua conta marfim e peles, a troco de enxadas, contas e panos — mais tarde, armas e pólvora. Revista à luz da história e da documentação escrita, esta tradição aparece como um registo de factos recentes: segunda metade do século XVIII. A primeira notícia de pescadores de baleias na baía é de 1789, mas é provável que já antes disso eles tivessem aparecido. De facto, pelo menos em 1652 já navios franceses faziam nos mares do Cabo pesca de baleias e focas e a Companhia Holandesa da índia Oriental, logo após ter-se instalado no Cabo, organizou essa indústria. Quanto aos Muçulmanos, tratava-se de gente de Goa, Damão, Diu, Surrate e Bombaim, à qual só foi franqueado o comércio da costa africana em 1755. Por outro lado, as mercadorias de compra (enxadas, anilhas de latão para os braços, pescoço e tornozelos) indicam uma época bastante posterior àquela (antes de 1545) a que a tradição presume de se reportar. Todavia, embora transpondo para data mais remota factos relativamente recentes, transposição tão fácil de dar-se na simples transmissão oral das recordações, nem por isso seria inverosímil que esta história testemunhe, confusamente e ilustrando-se com imagens modernas, a antiguidade de presença de estrangeiros na baía e a novidade, para os indígenas, da permuta comercial com os Brancos. Se assim foi, não podia tratar-se senão de actos isolados, mais provavelmente da pirataria que infestava os mares e a costa em caça às naus portuguesas atulhadas de pimenta, ouro e panos ricos, «muitos rubis e muitas esmeraldas». É fora de dúvida que aos Portugueses coube não só o descobrimento como a prioridade na exploração organizada e regular da baía da Lagoa. O facto é que o primeiro caso concreto que se conhece de estrangeiros na baía é de 1597 ('). Chegando à Inhaca em Janeiro de 1598, Jerónimo Leitão encontrou a nossa casa de feitoria potentemente fortificada : cercadura de madeira da largura de uma braça, quatro baluartes «mais fortes que o mesmo forte», fosso com mais de uma braça de profundidade e «tudo muito forte». Nos princípios de 1597, haviam ali surgido três naus, com Brancos cuja língua os indígenas tinham estranhado. Eram Ingleses. Enviaram ao rei uma embaixada de vinte arcabuzeiros, com espaventoso saguate, a pedir autorização para construírem uma casa e porem nela duzentos homens. Enganaram os indígenas, afirmando-lhes que Jerónimo Leitão, «cuja aquela ilha era», estava numa das naus. A este engano, o rei, embora desconfiado, autorizou a construção da casa. A gente dum pequeno navio português que nos fins de Junho naufragou na ponta da Inhaca desfez o engano e incitou os indígenas a abandonarem os intrusos. Eles assim fizeram. A doença deu nos Ingleses (corria que o régulo lhes mandara dar peçonha) e eles reembarcaram, recomendando aos indígenas que não destruíssem o forte. Jerónimo Leitão, claro, arrasou toda a fortificação. Esta narrativa sugere que se tratava de uma tentativa de estabelecimento, o que pressupõe anteriores visitas de exploração. Não voltamos a ter notícia concreta de estrangeiros em Lourenço Marques senão em 1685-86: os cinco (1) 70 V. Documentos, i.° 71 navios ingleses que resgataram todo o marfim e levaram a Junta de Moçambique a propor a suspensão da carreira. Mas é seguro acreditar-se que durante esse período de quase um século a baía tenha sido concorrida de estrangeiros. Os Ingleses haviam encontrado um mercado — e sabe-se o que isso quer dizer... Os Holandeses, em guerra aberta com Portugal e a Espanha, davam caça sem piedade à navegação portuguesa e procuravam, mesmo, apoderar-se dos senhorios de Portugal. Em 1601, já as suas actividades alarmavam a Corte com a previsão de um ataque a Moçambique — ataque que sobreveio em 1604 e, depois, em grande força, nos dois cercos da ilha bravamente defendidos por D. Estêvão de Ataíde, em 1607 e 1608. Assim, não deixariam de frequentar a costa sudeste que os Portugueses haviam aberto ao comércio. E se não temos notícia deles em Lourenço Marques, sabemos por Francisco Vaz de Almada que em 1622 já tinham aparecido, muitas vezes, em Inhambane. Em 1688, o governo do Cabo (onde os Holandeses se haviam estabelecido em 1652) enviou a Lourenço Marques a galeota Noord, para reconhecer e cartografar a baía. Paiva Manso afirma que as instruções dadas à galeota compreendiam o «apoderar-se da baía, comprando, se preciso, o governador português que era então João Jacques», e acrescenta: «mas não conseguiu o seu intento». Não nos foi possível consultar a obra em que Paiva Manso se apoiou (2). O historiador sul-africano McCall ( T ) Memoir respecting the Kaffirs, Hottentots and Bosjemans of South África, pelo tenente-coronel inglês Sutherland, publicada no Cabo em 1856. O título de «governador» emprestado a João Jacques é, evidentemente, despropositado. João Jacques não seria mais que o capitão do navio do resgate. Theal nada diz a tal respeito e a historieta parece inverosímil, pois a galeota Noord não dispunha de meios para firmar a posse da baía e as suas instruções mandavam que, uma vez a baía cartografada, a galeota explorasse cuidadosamente a costa até o Cabo, em busca dum grupo de sobreviventes do Stavenisse que naufragara, tempos antes, na costa do Natal. Comprado ou não comprado, João Jacques deixou livremente operarem na baía a galeota e um navio inglês que traficava na Inhaca. Esta contemporização com os concorrentes estrangeiros parece ter sido, por esta época, habitual. Assim, no caso de 1701-1703, o capitão e o escrivão do navio português foram a bordo do navio que arvorava a bandeira branca da Franca, por o julgarem «francês e amigo»( 1). Tratava-se, porém, de piratas e já contámos o que se passou. Em 1721, sobrevêm a ocupação holandesa. A expedição, preparada na Holanda, chegou à baía em fins de Março. E enquanto ela erigia o Forte Lagoa, em Portugal El-Rei alarmava-se com a notícia de que a Companhia da índia Oriental de Inglaterra projectava vir estabelecer-se na baía. A 16 de Abril, escrevia ao vice-rei comunicando-lhe a notícia. Dizia-lhe que em ofícios trocados com o enviado extraordinário de Inglaterra em Lisboa e em instruções dadas ao embaixador em Londres, pedira a intervenção de «El-Rei Britânico», seu bom irmão e primo, para que impedisse a Companhia de levar avante tais projectos ( 2 ). E, (') O mesmo se verifica em Inhambane, em 1728, nas relações entre o capitão do navio português do resgate, Bernardo de Castro Soares, e os oficiais do navio holandês que ali foi em exploração. ( 2 ) O pedido era acompanhado por uma memória dos direitos e soberania de Portugal, elaborado pelo secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real. Ë um primeiro ensaio da questão que estalará século e meio depois. 73 embora devesse esperar «da estreita aliança que há entre esta corte e a Inglaterra» que o seu protesto seria satisfeito, em todo o caso tivera «por conveniente mandar um navio de guerra à dita baía de Lourenço Marques, com a gente necessária para a ocupar e guarnecer, ordenando-lhe que no caso em que ali achassem os Ingleses os desalojassem». Ou porque S. M. Britânica se dignou intervir eficientemente ou porque a Companhia soube que os Holandeses se lhe haviam antecipado ou, ainda, porque tudo fosse puro boato, o facto é que os Ingleses não vieram. A notícia desvaneceu-se — como, dois anos depois, El-Rei escreveria ao vice-rei. E com ela se desvaneceu também a expedição portuguesa para ocupação da baía. Eis um trecho da régia carta de 12 de Abril de 1723, dirigida ao vice-rei: «[...] e desvanecendo-se a dita notícia, se suspendeu mandar-se a dita fragata, que se achava já preparada para a referida expedição; e porque agora corre que os Holandeses se têm estabelecido em um porto, dez, ou quinze léguas ao sul de Moçambique, e poderá. ser muito factível que seja na mesma Baía de Lourenço Marques, ainda que esta fique mais distante, por dizerem os práticos, a quem mandei ouvir sobre esta matéria, que naquela costa não há porto suficiente mais que a dita baía, tenho resoluto mandar preparar outra fragata que vá para a mesma expedição, destinada contra os Ingleses [...].» Assim, após dois anos de permanência dos Holandeses na baía, não havia ainda na Corte a certeza de que fosse realmente lá que eles se tinham instalado. E, mais uma vez, a expedição portuguesa desvaneceu-se. Estes dois primeiros anos tinham sido difíceis para a guarnição holandesa. A expedição chegara em 29 de Março de 1721. Compunha-se de cento e treze homens — funcionários, operários, oficiais, quarenta e quatro soldados e outros tantos marinheiros — a bordo do Kaap e Gouda, vindos da Holanda, aos quais no Cabo se juntara o Zeelandia. Nas terras de Mpfumo, foi levantado o forte: quartéis e armazém, cercados por um muro pentagonal, de terra mas capaz de montar canhões. Era o Forte Lagoa. Mal começara a construção, as febres insinuaram-se na guarnição e em seis semanas tinham abatido dois terços do efectivo. A obra prosseguiu, empregando-se no trabalho das terras mais de duzentas mulheres indígenas — os homens, é claro, recusaram-se terminantemente a trabalhar. Em Agosto, a guarnição recebeu um reforço de oitenta homens, mas por Março-Abril de 1722 o efectivo total estava reduzido, pelas febres, a setenta e oito homens. Foi então que três navios ingleses surgiram na baía. Abriram imediatamente fogo e o forte teve, a breve trecho, de capitular. Os Ingleses instalaram-se nele. Parte da guarnição bandeou-se, alistando-se no rol dos «piratas», como De Capelle lhes chamava e que seriam, possivelmente, os expedicionários da companhia inglesa da índia. Jan Van De Capelle, com uma vintena de homens, conseguiu escapar-se, buscando refúgio nas povoações indígenas, onde viveu até os Ingleses abandonarem o forte: 30 de Junho. O estabelecimento entrou, então, numa fase de relativo sossego e só há notícia de mais uma visita de estrangeiros, durante a ocupação holandesa: o navio inglês Northampton que nesse ano de 1723 reconduziu 75 74 à baía um sobrinho do régulo Mpfumo. Anos antes, este homem fora levado a Inglaterra, num navio inglês de comércio. Lá fora baptizado, com o nome de John (evidentemente), e tivera por padrinho um duque, sendo conhecido em Londres por Prince John. Em Maio de 1726, chegou o novo comandante, Koning. O estabelecimento recebeu, então, grande impulso. Koning negociou com os régulos a compra de terras, lavrando escrituras, no valor aproximado de sessenta e duas libras esterlinas. Para desfazer a lenda de que os escravos comprados eram comidos pelos Brancos, promoveu a visita ao Cabo de um grupo de «grandes», entre os quais o Príncipe João que entretanto renegara o cristianismo e a europeização com que em Londres o haviam distinguido. O Porte Lagoa foi ampliado, muralhando-se uma maior área, e passou a chamar-se Lydzaamheid (Liberdade ou Tolerância). No entanto, as forças que levariam ao desespero minavam a guarnição e os seus mandatários do Cabo e da Holanda. As febres dizimavam a colónia e dentro em breve os germes da indisciplina ganharam virulência. O campo era-lhes propício: a maioria dos soldados eram Alemães, só mercenàriamente ligados à Companhia Holandesa da índia Oriental, quase todos indesejáveis no Cabo e remetidos, por punição, para a baía da Lagoa. Produziram-se conjuras e deserções, estas em direcção aos estabelecimentos portugueses em Inhambane e Sofala, na mira de navio que levasse à Europa. O comércio não satisfazia. Entre Junho de 1722 e Agosto de 1723, havia rendido dois mil quilos de marfim e duzentos e vinte e dois de cobre. Em 1725, o estabelecimento exportou um pouco de âmbar, algum aloés, cento e trinta e seis quilos de cobre, mais de dois mil de marfim, trinta e quatro escravos e poucas libras de ouro em pó. De Capelle atribuía, em 1723, a escassez do negócio à parcimónia do pagamento e advogava que de vez em quando se fechassem os olhos, dando um pacote de missanga a mais. Denunciava, também, que os braceletes de latão trazidos pêlos Ingleses eram melhores que os da Companhia — e mais tarde, em 1727, os delegados dos régulos a Moçambique queixaram-se da má qualidade das fazendas holandesas. Koning pensou que o retraimento do comércio fosse devido à lenda sobre o destino dos, escravos. Mas a visita dos “grandes» ao Cabo não modificou a situação. As expedições em busca das minas, por terra, retrocederam em face da hostilidade dos indígenas. Em 1729, desencadeou-se uma guerra dos régulos coligados contra o Mpfumo. Uma força holandesa saiu do forte para ir guardar um curral de gado da Companhia : a imprudência de um sargento valeu-lhe ser aniquilada pelas «mangas» da coligação. Em 1730, os Holandeses dão-se por vencidos. A perda de vidas, o dispêndio de dinheiro, a magreza do negócio que não oferecia promessa de desenvolvimento e, sobretudo, a grande desilusão das nunca encontradas minas de ouro quebraram-lhes a força de ânimo, abatendo-os até à renúncia. A 27 de Dezembro, depois de terem destruído o forte e demais instalações, os Holandeses abandonaram a baía. A feitoria holandesa fora estabelecida na base das dunas da Machaquene, um pouco para além da direcção da actual Rua Princesa Patrícia, no lugar onde esteve a bomba de abastecimento de água à cidade (1). (') Guilherme Ivens Ferraz, que foi capitão do porto de 1895 a 1899, conta que poucos anos antes ainda existiam as ruínas da feitoria. Veja-se Descrição da Costa de Moçambique, de Lourenço Marques ao Bazaruto. 77 Além do forte, com os seus quartéis e armazéns, os Holandeses tinham ainda outras instalações, designadamente um poço e reservatório de água, em pedra; «ma grande horta, com árvores de fruto, e De Capelle fez culturas experimentais de cana de açúcar e indigueiro. Se as actividades inglesas e francesas na baía se inspiravam de puro mercantilismo e algumas vezes procuravam satisfação pela indignidade, em façanhas de pirata, o estabelecimento holandês tinha por pano de fundo as minas de ouro. Achar os caminhos que, rodeando as linhas directas portuguesas de Sofala e Cuama a Manica e ao Monomotapa, levassem às minas era o seu verdadeiro desígnio e a fortalezafeitoria em Lourenço Marques foi, essencialmente, uma base para a procura desses caminhos. Os Holandeses acabariam por os encontrar, mais tarde; mas, aqui, só a desilusão os esperava. E, contudo, estavam bem perto... O fracasso proveio do engano dos geógrafos. O mapa mostrava, de facto, como De Capelle escreveu, o Incomáti «percorrendo mais de duzentas milhas pelo interior do país, passando pela cidade Monomotapa e depois pelo reino do mesmo nome (onde propriamente se encontra o ouro)». Este erro e o apelo do Monomotapa despistaram-nos. O Incomáti levava, realmente, a países onde havia ouro, mais e melhor ouro que no Monomotapa. Mas, para se seguir esse caminho, seria preciso ter adivinhado a grande curva do rio inflectindo para sudoeste, onde ficavam aquelas terras de Paraotte e Maschicosje donde vinham os Negros com ouro em pó. Um momento houve em que estiveram na boa pista. Em 1725, partiu da baía uma expedição que meteu aos sertões, rumo ao Poente. Se tivesse conseguido vencer duzentos quilómetros nessa direcção, teria alcançado os campos de ouro (região de Lydenburg, Barberton e Kaapmuiden). Mas, pouco caminho andado, os indígenas forçaram-na a recolher à feitoria. Os Holandeses não insistiram nessa direcção e malbarataram as suas esperanças em vãs pesquisas no Incomáti, que a lancha De Hoop subiu, em 1728, até onde pôde navegar, e em inúteis explorações na baía de Inhambane. Entretanto, o esquecimento português continuava, embora de vez em vez entretido na contemplação de indecisas lembranças... Já vimos como, em 1723, dois anos após a fundação da feitoria holandesa, não havia ainda na Corte (e não a haveria também em Moçambique, provavelmente) notícia certa do facto. Em fins de 1725, parece, a situação não estava ainda esclarecida: João de Saldanha da Gama, vice-rei da índia, no regimento que em 21 de Janeiro de 1726 deu ao novo governador de Moçambique e Rios, António Cardim Fróis, mandava que este informasse acerca das feitorias que dizem ter os Holandeses na costa, principalmente na baía de Lourenço Marques, e recomendava-lhe, também, que averiguasse das inteligências dos Holandeses ou outras nações com os indígenas e lhes impedisse «a estada, trato e comércio». Não se conhece a informação prestada por Cardim Fróis ao Tribunal da Junta de Comércio. No entanto, da carta que escreveu, em Agosto de 1727, ao vice-rei, sabemos as providências que tomou. O navio do resgate de Inhambane em 1726 expediu para Lourenço Marques um emissário, a «convidar aqueles régulos novamente com a nossa correspondência». O emissário 78 79 não pôde chegar ao destino, retido por um régulo (possivelmente, o da Magaia, à beira do Incomáti) “receoso de estabelecermos com aqueles o negócio que este só queria para si». Pôde, porém, passar aviso, do qual resultou os régulos da baía, após conferência, delegarem dois filhos que no navio de Inhambane foram a Moçambique, em 1727. Certificaram eles Cardim Fróis de que todos desejavam a continuação da viagem do resgate; mas convinha esperar «certo aviso seu de que tinham expulsado os Holandeses de uma pequena feitoria que tinham, com oito ou dez pessoas». Se Cardim Fróis não se enganou ao escrever estes números, então aqueles príncipes estavam soberanamente mentindo ao governador. O facto é que desta negociação nada resultou, mas manteve-se a ilusão de que os indígenas exerceriam contra os intrusos, por si sós, qualquer acção. Em 1729, o secretário de Estado Diogo de Mendonça Corte Real comunicava ao vice-rei que Sua Majestade entendia muito conveniente continuar o governador de Moçambique “as mesmas diligências de ter correspondência com os sovas daquela costa, para que nela se introduza o nosso comércio, e sejam expulsos dela os Holandeses». Rotineiramente, como lhe cumpria, o vice-rei passou palavra ao novo governador de Moçambique e Rios, D. António Casco de Melo (regimento de 19 de Janeiro de 1731). E em 2 de Maio de 1740, numa instrução régia ao vice-rei, proclamava-se: «com mais certeza se sabe que os cafres daquela costa expulsaram do Cabo das Correntes aos Holandeses que se tinham estabelecido no dito porto [...]». Não era verdade. Os indígenas não só não tinham expulso os Holandeses como, até, quando eles ocasionalmente voltaram à baía, no ano seguinte, os receberam com contentamento, fruto desse estranho prazer 80 de trocar, de comprar e vender... De facto, em Setembro de 1731 haviam saído do Cabo, em missão a Inhambane, os navios De Snuffleaar e De Zeepost. Este último, fazendo água, perdera a conserva e arribou à baía de Lourenço Marques, onde fundeou e aguardou o seu companheiro, que prosseguiu até Inhambane e veio reunir-se-lhe em 30 de Outubro. Aqui permaneceram até 30 de Janeiro de 1732. O diário de bordo do Snuffleaar dá-nos uma curiosíssima visão do movimento na baía: as contínuas visitas a bordo pelos régulos Mpfumo, Tembe, Matola e Mateque, seus secretários e grandes, as transacções feitas, os presentes trocados. Os Holandeses compraram mil e duzentos quilos de marfim, vinte e dois escravos e noventa e sete quilos do que chamavam “estanho». Em presentes, gastaram vinte e oito quilos de tabaco, cinco grosas de cachimbos e... quinhentos e oitenta e dois litros de araca! Em todo o caso, era verdade que os Holandeses haviam abandonado a baía. E El-Rei, ponderando, naquela mesma carta, a conveniência de guardar para Portugal aquele comércio, recomendava que se aproveitasse a oportunidade. Caso ele, vice-rei, julgasse que «a situação das coisas do Estado» o permitia, não devia deixar de “fechar aquela porta às nações da Europa, fortificando o Cabo das Correntes». Quatro anos depois, como o vice-rei Marquês do Louriçal nada tivesse obrado em tal sentido, El-Rei insistia na recomendação junto do novo vice-rei, marquês de Castelo Novo. Mas quarenta anos passariam, ainda, antes que a régia ordem fosse cumprida. O ano de 1753 marca o extremo do esquecimento português. Suspensa toda a comunicação com a baía, o capitão-general de Moçambique só “de tradição» podia conhecer o porto de Lourenço Marques e para 81 a história não ficou qualquer notícia do que nesse porto se teria passado entre 1731 e 1755. Neste ano de 1755 produz-se um acontecimento que ia ter, por todo o território da Capitania Geral, tremenda repercussão — um acontecimento de que hoje ainda temos, de norte a sul da Colónia,, vivas e inquietantes ilustrações. Foi a invasão de Moçambique pelos Baneanes (1). A infiltração indiana começara em 1687, ao abrigo da provisão, dada em 1686 pelo vice-rei Francisco de Távora, conde de Alvor, que concedia aos Baneanes o privilégio do comércio entre a índia (onde se fabricavam as fazendas negociáveis com os africanos) e Moçambique ( 2 ). Inicialmente confinados na Ilha, como importadores por atacado, em breve, todavia, começaram a insinuar-se pelas Terras Firmes, graças a tolerâncias (que Saldanha de Albuquerque suspeita de corruptas) dos capitães-generais — para, finalmente, lhes ser dada plena franquia em 1755, por um alvará de 10 de Junho. Esta liberdade era fruto da intensa campanha que (1) O capitão-general Pedro de Saldanha de Albuquerque definia assim os Baneanes: «Gentios que se acreditam mais nobres que os outros, por ser casta ou república de comerciantes, conservada sem mistura de outras desde a sua primeira origem e muito antes de serem expulsos de Cambaia para Guzarate, e para Meca, onde estabeleceram a maior residência», donde «passaram alguns a estabelecer-se com o seu comércio nas praças de Diu e Damão». Descreveu, pitorescamente, como esses «nobres» pouco a pouco foram introduzindo a arraia miúda, caixeiros, comissários volantes, cozinheiros... Chamava-lhes, como também Pereira do Lago, «corja de ladrões». E, em seu parecer, «o melhor e mais seguro remédio seria lançá-los fora e extingui-los, totalmente, não só desta Capitania mas de Goa, Diu e Damão e de todo o Domínio português onde aparecer casta baneane». ( 2 ) O privilégio foi dado à companhia dos «Manzanes», que quer dizer, segundo Saldanha de Albuquerque, «todos os Baneanes nobres incorporados». No exercício desse privilégio, a companhia tinha por conservadores e juizes privativos os padres jesuítas dos colégios de Diu e de Moçambique ! 82 por então se desenvolvera para o fomento do comércio como meio único de remediar a grande decadência da índia e da Costa Oriental de África. O vice-rei marquês de Alorna postulara, anos antes, numa sentença memorável e que, da primeira à última palavra, deveria ser hoje ainda, e sempre, o moto da nossa administração ultramarina: «Eu não vejo outro meio mais eficaz que o do Comércio [...]. Se perdermos as ideias heróicas da pompa e da ostentação, e pusermos os olhos na conservação do domínio e da cristandade e das forças necessárias para a sustentar, veremos que o Comércio é, somente, o útil e o sólido.» Tinha razão o marquês de Alorna. Seguiram-no mal, porém, e a provisão de 10 de Junho de 1755 que franqueava aos Indianos todos os portos da Costa Oriental de África foi uma arma contra a cristandade e uma sapa do domínio nacional. De facto, dentro em pouco todo o comércio do interior (Terras Firmes e Rios de Sena) estava nas mãos deles e os negociantes portugueses de Moçambique à mercê da sua proverbial lisura. O suborno corroeu os fundamentos da autoridade e da ordem. Pelo seu fervoroso proselitismo religioso e pela fácil adaptação ao meio, depressa eles captaram a confiança e a intimidade dos indígenas, delas se "servindo comercial e politicamente. Com a sua cumplicidade, estrangeiros (para os quais o comércio permanecia proibido), designadamente os Ingleses de Bombaim, desviaram a seu favor o comércio dos portos, armando navios que se acobertavam com bandeira e passaportes portugueses obtidos por intermédio de mercadores de Goa, Diu e Damão. O comércio clandestino enxameou. Em 1761, tentou-se pôr-lhe cobro, ordenando-se que todos os navios destinados à Costa Oriental de África deveriam ir em «precisa derrota» 83 à ilha de Moçambique (única alfândega até então estabelecida) e aí baldearem a carga para os portos. Em 1786, porém, promulgou-se a liberdade de demandar directamente os portos onde seriam instaladas alfândegas — lei que teve por parte do governo da Colónia a mais decidida oposição. Adiante veremos os reflexos deste regime na baía de Lourenço Marques. Se é certo, como já dissemos, não haver notícias da baía entre 1731 e 1755, também não há dúvida de que nesse período os Ingleses foram nela as figuras predominantes, activos usufrutuários do seu comércio, estabelecendo uma corrente mercantil que se prolongaria mesmo nos primeiros anos da ocupação portuguesa, entrando pelos começos do século XIX. Em 1755, Francisco de Melo e Castro expediu de Moçambique um navio, em reconhecimento à baía, e «só então soube que iam comerciar àquela baía e rios embarcações britânicas, sem contudo haver feitoria dessa ou de alguma outra nação europeia nas suas margens» ( l ) . Em Junho de 1757, o navio holandês Naarsiigheid arribou, desarvorado, à baía, em tais condições que não pôde ser mantido a flutuar. A tripulação salvou-se em terra e parte dela esperou, durante dois anos, que lhe viesse socorro. Alguns homens tentaram alcançar o Cabo, recorrendo, em direcção contrária, o velho trilho dos náufragos portugueses, e conseguiram chegar além de Porto Natal. Os Franceses não só frequentavam a costa de Mo(') Ensaios sobre a estatística das possessões portuguesas, etc., de F. M. Bordalo. çambique, em especial para carregarem escravos, como também aspiravam a estabelecer-se nela. Em 1738, após o sítio de Goa e invocando o auxílio prestado ao vice-rei pelo governador do estabelecimento francês de Pondichéry, o governador da companhia francesa da índia propusera a Portugal estreita cooperação, de modo a garantir a soberania portuguesa em Goa, a troco da concessão de um porto na costa moçambicana. Pêlos meados do século, a actividade dos Franceses intensificou-se, chegando mesmo alguns capitãesgenerais a sancioná-la, a despeito de estar vedado o comércio aos estrangeiros. Por 1762, os Franceses pretenderam, mais abertamente, estabelecer-se em Lourenço Marques, mas a hostilidade dos Ingleses não lho permitiu ('). Em 1763, o capitão-general Silva Barba despachou em missão a Lourenço Marques o tenente-coronel António José de Melo, comandando a fragata real S. José armada em guerra e com a guarnição militar e a lotação de marinheiros reforçadas. Todavia, as instruções prescreviam a António José de Melo que devia “procurar não ter ocasião de peleja, mas sim tão somente bater-se com o inimigo em sua natural defesa». E especificavam: «o que também observará quando encontre embarcações estrangeiras no mar ou no porto da mesma baía de Lourenço Marques». António José de Melo assim cumpriu. Tendo encontrado na baía dois navios ingleses de comércio, sem guarnição militar, trocou com o comandante deles as habituais cortesias — visitas, jantares, presentes (2). (') Segundo o governador dos Rios de Sena, Marco António de Montaury, citado por T. Botelho, obra citada. ( 2 ) Tem-se escrito que por causa deste procedimento António José de Melo foi acusado, tirando-se uma devassa. Seria singular que assim fosse, dadas as instruções. A devassa foi, realmente, tirada mas cremos que por outro motivo, como referiremos no capítulo Reconquista. 85 Estes navios pertenciam à companhia de Bombaim e exibiam passaportes passados pelo governador de Damão. Comandava-os um certo Eduardo Chandler e a guarnição compunha-se de lascares. Para o comércio, Chandler dispunha de cinco embarcações que navegavam para todos os rios e de duas cavalgaduras que conservava em terra. Em 1768, os Ingleses chegaram, mesmo, a estabelecer-se em terra, com uma pequena feitoria fortificada que, no entanto, teve vida efémera. Sabemos, ainda, que quando em fins de Março de 1777 Bolts chegou, com a sua gente, para estabelecer a feitoria austríaca, encontrou ancorados na baía três navios ingleses, capitães Burton, McKennely e Cahill, o primeiro dos quais se achava aqui havia cerca de treze meses, tendo no entretanto perdido quase um terço da sua guarnição. O estabelecimento austríaco não impediu os navios ingleses de demandarem a baía. Em 1777 ou princípios de 1778, Bolts teve de escorraçar um. Foram duas corvetas, vindas a comerciar na baía, que levaram a Moçambique, por meados de 1778, a notícia desse estabelecimento. Em 1780, o navio mandado por Vitorino José Garcia a tentar o restabelecimento do comércio encontrou, além da feitoria austríaca, um navio inglês, armado na índia sob pavilhão português. E em 1781 a expedição de Godinho de Mira encontrou mais um navio de bandeira portuguesa e um outro, inglês. Este, Isipai Catra, procedera de Bombaim, com passaporte inglês, e não tendo cumprido a intimação a sair foi, depois, levado para Moçambique por Godinho de Mira. O outro, ostentando pavilhão português, exibiu passaportes passados pelo governador de Damão. Denominava-se Tathe Isay, era capita86 neado por um inglês e fora armado por mercadores baneanes de Goga (1). Não conhecemos outros pormenores do movimento comercial inglês na baía, por esta época. Mas da sua extensão ficaram, infelizmente, bem sobejas e funestas provas... Foi, ainda, um aventureiro inglês que trouxe para Lourenço Marques os Austríacos. Guilherme Bolts iniciara a sua carreira de aventura como caixeiro dum estabelecimento inglês em Lisboa. Servira depois, em Londres, a Companhia da índia, à custa da qual amealhou fortuna que, afinal, perdeu numa demanda promovida pela Companhia. Após vãs tentativas em Lisboa, à procura de posição vantajosa, passou a Viena e daí a Trieste onde conseguiu interessar os homens de negócio nos seus planos de comércio na África Oriental e na Ásia. Armaram, sob a firma Bolts & Ca., um navio, cujo comando foi confiado ao aventureiro inglês. O nosso ministro da marinha, Martinho de Melo e Castro, definia Bolts como «homem perigoso, ainda que hábil», dotado de «arte, destreza e astúcia, acompanhada de um grande conhecimento do comércio da Ásia». Um belo dia, Bolts chegou, no seu navio, a Goa, apresentando-se ornamentado com os títulos de tenente-coronel das forças imperiais e director geral da Companhia Austríaca da Ásia. Propôs ao vice-rei D. José Pedro da Câmara um tratado de comércio e navegação para o porto e praça de Damão. A Junta da Real Fazenda deu-lhe parecer favorável e o vice-rei assinou o tratado, em 10 de Abril de 1778. (') Os nomes Isipai Catra e Tathe Isay figuram no diário de Godinho de Mira. Num documento austríaco aparecera sob as formas The Spy e Faitelay. 87 Se não, ainda, nesse momento, poucos dias depois, espalhou-se por Goa que, ao tocar em Lourenço Marques, o navio austríaco encalhara e tivera de descarregar parte das fazendas; que Bolts comprara do régulo uma porção de terras, nas quais edificara uma casa forte, para refresco e base dos navios austríacos em serviço no comércio da África Oriental; e que, ao sair da baía, deixara essa casa guarnecida de gente e artilharia. D. José Pedro da Câmara apresentou a Bolts o seu protesto formal, notificando-o de que aquelas terras pertenciam à Coroa de Portugal e nelas não podiam construir-se fortificações sem permissão de Sua Majestade Fidelíssima. Só por Julho ou começos de Agosto de 1778 houve em Moçambique notícia do estabelecimento austríaco, notícia que Baltasar Pereira do Lago transmitiu para a Corte em 6 de Agosto e que lhe fora dada por duas corvetas inglesas que haviam estado no Cabo das Correntes. Em Março de 1779, o ministro da Marinha escreveu ao vice-rei, já então D. Frederico Guilherme de Sousa, em resposta às comunicações do seu antecessor relativas a Bolts. Prevenia-o da espécie de homem que este era e recomendava-lhe a necessidade de cortar, desde logo, as suas maquinações. Assim, o vice-rei devia desacreditar o seu antecessor, declarando o tratado de 10 de Abril de 1778 «um papel informe em figura de tratado, feito sem poder, ordem nem autoridade» — por consequência, nulo e de nenhum efeito. À volta de Bolts deveria criar-se um ambiente de indiferença, mesmo frieza e desagrado. E o vice-rei notificá-lo-ia de que «tendo notícia de se haver construído uma fortaleza nos domínios portugueses da Costa da África Oriental, a mandara destruir, achando-se na 88 firme resolução de tratar como inimigo da Coroa de Portugal todo aquele que cometesse semelhantes atentados». Esta última parte não passava de mero embuste. Como hoje se diz, era a guerra de nervos feita a Bolts, visando a desanimá-lo e levá-lo a abandonar a partida. E para evitar as complicações de chancelaria e eximir a responsabilidade da Coroa (sobretudo, se a imperatriz Maria Teresa tivesse, efectivamente, dado a sua concordância (1) à empresa dos triestinos), o vice-rei simularia que tudo era de sua iniciativa e responsabilidade, como lho recomendava o ministro: «em tudo o referido deve V. S.a mostrar que obra de sua própria autoridade, em consequência das obrigações do lugar que ocupa, sem que tivesse nem lhe fosse precisa ordem alguma desta corte». A comédia não surtiu efeito. Era um jogo pueril, com um homem da qualidade de Bolts — que, ainda para mais, devia saber melhor que o vice-rei e o próprio governador de Moçambique aquilo que se passava em Lourenço Marques. Que sucedia, entretanto, na baía? Bolts chegara por fins de 1777 e negociara com os régulos, tendo desembarcado e acampado em terra. Em 3 e 7 de Maio concluiu, respectivamente com o Tembe e o Matola, os tratados de compra das terras. No segundo tratado interveio, também, o régulo de Mafumo (Mpfumo), vassalo do Matola ( 2 ), pois eram ( 1 ) McCall Theal afirma que sim. No protesto oficial austríaco de 1782, diz-se que a companhia era avouée et octroyée par Ia com. No entanto, «o Imperador não punha, no comércio empreendido nas índias por alguns dos seus súbditos, outro interesse além da protecção que era obrigado a dispensar-lhes». ( 2 ) A casa da Matola (Matjolo) provinha de Nlharúti, o invasor das terras da margem norte da baía, que viera com a sua gente de Psatine (Suazilândia). Seus filhos, Mpfumo, Polana, Massinga e Nuantihumane repartiram as terras, como vassalos do pai. Nuantihumane ficou com as 89 as suas terras, entre Maé e a Ponta Vermelha, mais ou menos, que especialmente interessavam Bolts. As terras cedidas pelo Tembe iam, segundo Alexandre Lobato que se reporta à tradução, feita em Goa, dos papéis apresados na feitoria austríaca em 1781, «desde a ponta Maone (Mahabone) que forma a entrada da ribeira (Rio do Espírito Santo) até à ponta Dungrim ou Sezalim (a ponta da Catembe)». Infelizmente, deste trecho não se distingue o que é original do tratado ou interpretado e relacionado por Lobato. Se a indentificação de Mahabone com a ponta Maone pode ter-se por certa, a de Dungrin ou Sezalim com a ponta da Catembe (Lechemere, Choluquene) suscita dúvida e é pena que Lobato não tenha dito em que a fundou. Investigações a que procedemos na região sugerem, antes, que as terras compradas por Bolts seriam as da ponta Maone e suas imediações, apenas, ou dessa ponta em direcção à boca do Maputo. Esta hipótese coincidiria com a notícia, dada por McCall Theal, de que a feitoria austríaca ficava perto da foz do Maputo. Bolts não conseguira convencer o régulo da Inhaca a ceder-lhe a ilha, posição por excelência para dominar o tráfico do rio do Maputo que era um dos dois grandes que se denominariam Matola. A Nlharúti sucedeu Mpfumo, como soberano. Cremos que foi na guerra da coligação dos régulos contra Mpfumo, em 1719 e de que falámos atrás, que a soberania deste terminou. Os vencedores dividiram entre si as terras do vencido e Matola ficou com as marginais da baía até à Ponta Vermelha. No seu diário, André Daniel Pollet explica que Chibanzane, o régulo da Matola com quem Bolts tratou, tomara pela força as terras de Mpfumo. O régulo do Tembe é nomeado pêlos Austríacos «Mohaar Capelle ou Capelb). Trata-se, sem dúvida, de Muaje, como dizem os indígenas. Nas tábuas genealógicas organizadas por vários investigadores, o nome aparece sob as formas: Mohdri e Muhadye. Chibanzane, da Matola, não figura nas tábuas de Roque de Aguiar, Torre do Vale e Junod. Apenas o encontrámos nos já citados apontamentos de António Albasini, com a forma Chibandjane. 90 canais (o outro era o Incomáti) do comércio de marfim da baía. Assim, uma posição na ponta Maone ou entre esta e a das 3 Marias, à entrada do Maputo, constituiria uma posição de recurso, suprindo a falta da base da Inhaca. Mais tarde, Novembro de 1778, André Daniel Pollet, director da feitoria na ausência de Bolts que em Junho de 1777 partira para a índia, negociou (de harmonia com instruções deixadas por Bolts que já havia tentado, sem êxito, a negociação) a compra da ilha dos Portugueses e parte da Inhaca, conforme registou no seu diário: «Quinta fr. a 19 de 9bro [de 1778]. Ajustei e comprei a Huacano a Ilha de Xitemole e a Met.e da Inhaca, como do Seg.te papel de ajuste e venda ass.° as 5 da tarde sobre a praça onde levantamos a bandeira Imperial e salvamos com 2 pedr.os a que Champagnet respondeu com um mosquete í 1 ).» A feitoria austríaca denominou-se de S. José. «As instalações eram o que havia de mais rudimentar: palhotas de paus e caniços, cobertas a capim. O projecto de 1778, para uma nova casa de feitoria e de que há desenho, mostra a planta de uma casa de 40 pés de largo com varanda em volta, de 9 pés. Dentro, havia uma sala grande, central, e quatro quartos aos cantos, de 10 pés em quadrado. Os quatro cantos exteriores das varandas eram fechados para escritórios. Havia os armazéns, que eram, por vezes, roubados pelos indígenas, e há notícia de ter ardido um deles com muito risco para as restantes instalações que eram de palha. Tudo devia ser protegido por ( l ) A. Lobato, obra citada, que ainda informa ter servido de intérprete o português José Pedro da Fonseca, natural do Porto e que no ano seguinte foi assassinado por um indígena. 91 uma paliçada e os indígenas, especialmente os régulos, não podiam entrar na fortificação e, em caso algum, ali pernoitar» ('). Sobre a localização do forte de S. José, Lobato opina que o tratado com o Capela «localiza perfeitamente o sítio que os austríacos elegeram para o estabelecimento”. Duvidamos. O tratado, ao descrever as terras cedidas pelo Capela diz: «onde o campo Imperial está agora levantado», parecendo que o onde é a ponta Dungrim ou Sezalim. Já vimos a dúvida sobre a localização de Dungrim ou Sezalim. Por outro lado, aquelas palavras podem muito bem referir apenas o local onde se estabelecera o acampamento de desembarque, enquanto não se obtivesse permissão dos régulos para levantar a fortificação. A indicação agora parece confirmar esta interpretação. Assim, continuamos a crer, sobre as demais (embora poucas e imprecisas) indicações que possuímos, que a feitoria austríaca ficava na margem norte, por alturas onde também estivera o forte holandês. Provavelmente, na ponta Maone ou algures entre ela e a foz do Maputo, teria havido uma estação (sendo a ela que respeita a notícia de McCall Theal), abandonada, por já desnecessária, quando Pollet conseguiu a concessão da Inhaca e ilha dos Portugueses. Não se sabe muito da vida do estabelecimento. Em pouco tempo, do efectivo inicial (155 homens e algumas mulheres, vindos com Bolts no navio José e Teresa), morreram vinte e seis homens e três mulheres. Em 1777, Junho, Bolts saiu para a índia e ignora-se se alguma vez mais voltou a Lourenço Marques, parecendo que não. (') 92 A. Lobato, obra citada. Em 1780, o negociante de Moçambique Vitorino José Garcia (ou Gracias) expediu um navio ao comércio da baía, capitaneado por Gonçalo Coelho Pinto. O director da feitoria, André Daniel Pollet, filho de alemães e nascido em Lisboa, pretendeu cobrar direitos sobre as suas fazendas. Coelho Pinto opôs-se, mas foi-lhe impedido traficar com os indígenas. Estes, por seu turno e certamente instigados pêlos Austríacos, hostilizaram os Portugueses, matando alguns e aprisionando outros que tiveram de ser resgatados por fazendas. Coelho Pinto abandonou a baía, rumo ao Bazaruto, seguindo depois para as Ilhas de França. Pouco tempo antes da chegada da expedição de Godinho de Mira, o inglês Manwaring que geria o estabelecimento na ausência de Pollet, em viagem a Bombaim, entrara em conflito com os indígenas. Desembarcara do Príncipe Fernando, o bergantim de serviço no estabelecimento, com o seu tenente e a equipagem de dez homens. Mal puseram pé em terra, uma manga de indígenas caiu sobre eles e aniquilou-os à zagaiada. Bolts arquitectava grandes planos sobre o estabelecimento em Lourenço Marques. Não importa muito conhecê-los em pormenor, pois não passaram de planos. Mas interessa anotar o espírito que os inspirava. Bolts pretendia uma verdadeira conquista, não segundo a concepção portuguesa da navegação e comércio, mas pela soberania política e económica, a ocupação militar e populacional — enfim, uma verdadeira colonização, no sentido moderno do termo. Em 1781, finalmente, a aventura africana de Bolts foi liquidada pela expedição de Goa. E com a sua liquidação fecha o capítulo estrangeiro da história de Lourenço Marques, o capítulo do esquecimento português. Interrompida a sua exploração regular da 93 baía, os Portugueses tinham deixado o comércio dela perfeitamente livre à fruição de estrangeiros. Tão livre, que alguns puderam pretender, além do usufruto, a propriedade da baía e fugazmente alienaram, pela ocupação, a soberania portuguesa. E, contudo, não foi dessa transitória alienação que a história portuguesa de Lourenço Marques teria de queixar-se... Realmente, ao passo que de nove anos de ocupação holandesa e cerca de cinco de ocupação austríaca não resultou qualquer modificação do quadro da baía como porto de comércio nem o mais leve vestígio de influência com reflexos políticos, o mercantilismo inglês implantou daninhas raízes. Os Ingleses souberam, como escreveu Nogueira de Andrade ('), «arruinar este comércio, fazendo ladinos aqueles Cafres, por isso mesmo que lhes satisfaziam sua ambição com melhores fazendas e maiores donativos, a que os nossos negociantes de Moçambique não podem chegar, porque as ditas fazendas lhes vêm mais caras e muito piores pelas usurárias mãos dos baneanes de Diu e de Damão». Introduziram nos sertões armas, pólvora e munições — lenha com que, depois, também eles próprios se queimariam na Zululândia. E insinuaram em terra os seus agentes indianos que se instalaram junto dos régulos, depressa aprendendo a língua e casando com mulheres da terra, intrigando contra os Portugueses e fazendo a propaganda do comércio inglês. A história de Lourenço Marques no século XIX mostra bem quanto estas daninhas raízes, fertilizadas por novos agentes e novos aventureiros britânicos, frutificaram — e o quanto nos custaram, em dinheiro e em sangue... (') Veja-se Documentos, 3." 94 1781 RECONQUISTA Em 1752, instituiu-se a Capitania Geral de Moçambique em governo independente do da índia. É verdade que os «generais» de Moçambique, como por cá se chamava aos «capitães-generais e governadores», ainda por muito tempo sentiram comprometida essa independência e sofreram a tutela de Goa — porque, recebendo o seu estado em tremenda decadência, sem recursos, sem comunicações regulares com o Reino, frequentemente recorriam ao vice-rei e por intermédio dele comunicavam com a Corte. Ainda assim, a instituição serviu desde logo, validamente, ao progresso de Moçambique. E, no que respeita à baía de Lourenço Marques, com ela se inicia o movimento que levará à plena e decisiva confirmação da soberania portuguesa. Esse movimento foi, por algum tempo, frouxo e vacilante, com um colapso de nove anos em que consentiu o estabelecimento dos Austríacos, mas de que saiu para o gesto sem o qual mesmo o próprio golpe de força militar teria sido inconsequente: a ocupação. Francisco de Melo e Castro, o primeiro general de Moçambique, denunciou em 1753 o completo abandono a que a baía estava votada. Dois anos depois, expede para Lourenço Marques um iate. Tratava-se, parece, dum simples reconhecimento, posto que provavelmente com alguma demora para comércio. McCall Theal (1) apresenta-nos, mesmo, esta expe(') The Portuguese in South África. 97 dição como tentativa para estabelecer uma estação comercial e diz que o pequeno grupo de homens mandados de Moçambique para tal fim se instalou na margem sul do Espírito Santo, fez algum negócio com os indígenas e retirou-se ao cabo de pouco tempo. Julgamos, todavia, mais de aceitar que a expedição não passasse de simples exploração. Em todo o caso, esses homens já não estavam na baía quando, em Junho de 1757, a ela arribou o navio holandês Naarstigheid. A Pedro de Saldanha de Albuquerque se deve, no seu primeiro governo da Capitania-Geral, desde 1758 a 1762, a tentativa de restabelecimento da frequência regular da baía. Infelizmente, não possuímos sobre este ponto mais que uma lacónica informação, se bem que de autor digno de crédito ('). Segundo ela, Saldanha de Albuqureque «protegeu o comércio da baía, donde, apesar de um estabelecimento holandês, extraiu ferro, cobre e arroz». A menção de «um estabelecimento holandês» na baía, por esta época, só é aceitável em relação com os náufragos do Naarsügheid que, como dissemos, permaneceram na baía durante dois anos, desde Junho de 1757. Assim, o empreendimento de Saldanha de Albuquerque deve ter-se efectuado em fins de 58 ou em 59 ( 2 ). (') Francisco da Costa Mendes, que foi secretário geral em 1849 e deixou um valioso Catálogo Cronológico e Histórico dos Capitães-generais, etc., só impresso em 1892. ( 2 ) A menos que McCall Theal tenha errado e a demora dos náufragos fosse mais prolongada. Ë de notar que Theal acentua que, durante a estadia, esses homens não viram nem ouviram de Portugueses na baía. Ë estranho, também, que entre as mercadorias negociadas, segundo Costa Mendes, não figure marfim, o produto mais procurado e abundante neste comércio. Em 2 de Abril de 1763, o novo capitão-general Silva Barba despachou em missão à baía o tenente-coronel António José de Melo, com o fim de firmar com os régulos a garantia do monopólio comercial português. Estava, então, já promulgada a obrigação de todos os navios que viessem ao comércio dos portos irem, primeiro, despachar à alfândega da ilha de Moçambique. António José de Melo devia, pois, convencer os régulos a só comerciarem com Portugueses; para sinal de que os navios que ali chegassem haviam, realmente, sido despachados em Moçambique, levariam passaportes selados com as armas da real coroa de Portugal (e cujo modelo António José de Melo mostraria aos régulos), em duplicado, ficando uma via com o comandante, a outra com o régulo. Julgamos que António José de Melo não cumpriu essa parte das instruções e teria sido esta (não a sua atitude com os navios ingleses que encontrou no porto) a causa da devassa que lhe foi instaurada (1). Realmente, no seu relatório ao capitão-general, ele descreve a baía, dá conta daqueles navios e do negócio que faziam, ajuíza do interesse do comércio mas nada reporta acerca de conversações com os régulos, as quais constituíam, afinal, o próprio objecto da sua missão. Não há dúvida de que, iniciado por Saldanha de Albuquerque ou por Silva Barba, houve, então, certo movimento entre Moçambique e Lourenço Marques. Em 1764, surge um tal Domingos Jacinto Rosa, vindo do Brasil «expressamente para o comércio de Lourenço Marques» ( 2 ). Em 1768, porém, encontrou (') Todavia, as testemunhas inquiridas referiram-se, apenas, às relações com o navio inglês, como se fossem essas, só, o fim da inquirição. ( 2 ) Bordalo, Ensaios estatísticos, já citados. 99 os Ingleses estabelecidos, com uma paliçada, na baía e desistiu da empresa ( 1 ). Este incipiente movimento paralisou e o comércio português com a baía esteve, de novo, interrompido até 1779-1780, por motivo de oneração pautal imposta por Baltasar Manuel Pereira do Lago, capitão-general desde 1765 a 1779. Pereira do Lago estabeleceu em 20% os direitos sobre as mercadorias que saíssem de Moçambique para Lourenço Marques — o que elevava a 40% a contribuição dos comerciantes, pois além dos direitos de saída havia, ainda, os que incidiam sobre a carga de retorno, os quais eram, também, de 20% (isto não contando os que recaíam sobre a importação da índia ou de Portugal: 1%). Finado Pereira do Lago aos 3 de Agosto de 1779, os negociantes representaram à junta governativa, em 22 de Novembro, advogando a necessidade de diminuição dos direitos. A junta concordou e os direitos de saída caíram para 8%. Os negociantes reanimaram-se. Em 1780, Vitorino José Garcia armou o seu navio para Lourenço Marques. Era, todavia, tarde: os Austríacos achavam-se já instalados na baía. Ainda desta vez o esquecimento dos Portugueses tinha sido motivo, como um século antes D. Rodrigo da Costa advertira, para que estrangeiros tomassem posse do cobiçado porto ( 2 ). Aparece, então, Guilherme Bolts na perturbada cena da baía de Lourenço Marques. Em 1779, o vice--rei desempenha o seu papel na comédia preparada por Martinho de Melo e Castro e, deixando Bolts sozinho em cena, fica-se à espera, entre bastidores, de «ver se (1) Bordalo, Ensaios'estatísticos, já citados. (2) Um dos argumentos do protesto diplomático austríaco de 1782 era que cinco anos tinham decorrido desde que Bolts adquirira as terras «aos príncipes naturais do país», sem que, entretanto, a Corte de Lisboa tivesse formulado qualquer reclamação. 100 os efeitos dos ditos estabelecimentos se desvaneciam». Ao contrário, porém, e a despeito de que na índia chegou a constar que o aventureiro inglês desistira, a empresa de Trieste ganhou vulto. Os dois primeiros carregamentos expedidos por Bolts animaram os seus mandatários a mais amplos projectos. Em Lisboa, receouse. E, desta vez, o jogo foi forte e franco: o vice-rei recebeu ordem categórica para mandar destruir a feitoria austríaca. Em carta de 15 de Março de 1780, o ministro expunha-lhe assim a situação: em Trieste, procurava-se formar uma companhia real para o negócio da Ásia; «e se os navios que dali se . expedirem acharem ainda em ser o estabelecimento que o dito Bolts formou nos referidos domínios portugueses, será mais difícil depois de os lançar fora deles»; por isso ele, vice-rei, devia «não perder tempo algum em executar as ordens de Sua Majestade». A expedição a Lourenço Marques saiu de Goa em 20 de Janeiro de 1781, a bordo da fragata de guerra Santa Ana e S. Joaquim, comandada pelo capitão-de-mar-eguerra Nicolau Delgado Figueira da Cunha de Eça. A tropa de desembarque, sob o comando do tenentecoronel Joaquim Vicente Godinho de Mira, compunha-se de uma companhia de infantaria, outra da legião dos voluntários reais e um destacamento de artilharia: quarenta canhões (da fragata, fora as peças de campanha) e quinhentos homens, segundo os Austríacos. O capitãogeneral de Moçambique deveria reforçar a expedição com uma companhia de infantaria e fornecer à fragata práticos da navegação da baía. A Santa Ana entrou em Moçambique a 20 de Fevereiro. Não encontrou no capitão-general ( l ) mais que (*) O cavaleiro de Malta frei José de Vasconcelos e Almeida. No relatório de Godinho de Mira, impresso na Memória apresentada pelo Governo Português, vem, erradamente, Francisco José de Vasconcelos. 101 «suma frouxidão», como relata Godinho de Mira, que se queixa de que o governador “devendo dar-lhe providências lhe representou dúvidas e alegou faltas»: não poderia fornecer-lhe mais de quarenta soldados; embarcação não havia, pois a única do Estado, uma corveta, achava-se então em Quelimane aonde fora buscar mantimentos; práticos também não havia... A expedição esteve, assim, em riscos de «se desvanecer». Alguns dos oficiais, contudo, perseveraram em entusiasmo e confiança. O capitão de infantaria Luís Lopes Quaresma garantiu a Godinho de Mira que haviam de ir à baía de Lourenço Marques, fosse pelo canal, fosse por fora dele; e os capitães-tenentes. Gama Almeida e Garcez Palha prontificaram-se a levar a fragata ao porto, com as sondas na mão. Godinho de Mira declara que a estes três oficiais, principalmente, deveu o êxito da viagem de Moçambique a Lourenço Marques. Por fim, desprezando o pouco auxílio que o capitão-general anuia a dar-lhe, a expedição largou da Ilha. Recebeu, em Inhambane, dois pilotos. E em 30 de Março entrou na baía, indo ancorar entre a Príncipe Fernando, a pala austríaca ao serviço do estabelecimento, e a bataria montada em terra. Foi uma acção sem brilho! Os Austríacos, dizimados pela recente refrega com os Negros, não fizeram um gesto de resistência (1). A guarnição de presa instalou-se na Príncipe Fernando. Godinho de Mira desembarcou com parte da tropa, entrou sem impedimento na feitoria e arriou a bandeira imperial. No (') Em 23 de Fevereiro de 1782, o príncipe Kaunitz Rietberg instruiu o seu ministro em Lisboa para traduzir ao governo português o protesto da Corte de Viena. Essa instrução, bem como outras notas relativas à sua discussão, acham-se na Memória apresentada pelo Governo Português. 102 dia seguinte, por entre uma salva real da bataria austríaca, respondida pela Santa Ana e S. Joaquim, içouse a bandeira portuguesa. A artilharia foi desmontada e remetida para a fragata, demolindo-se a obra de fortificação. Os dois navios de comércio, o falso português e o inglês, que se achavam no porto foram vistoriados, recebendo o último a intimação de sair dentro de oito dias. A Santa Ana demorou-se no fundeadouro até 23 de Abril, prevenindo a eventualidade da chegada de algum navio. Entretanto, Godinho de Mira negociou com os régulos. O Matola, que era então o soberano das terras do Tembe à Magaia, foi recebido, a bordo, na câmara do comandante. Durante a conversação, “deu bastantes provas de não ser muito selvagem» — e, ao vinho de honra, discursou. Bem sabia terem sido os Portugueses os primeiros que conquistaram aquelas terras; tinhamnas, porém, abandonado e havia muitos anos que não mandavam ali navio a comerciar nem a levar-lhe aqueles géneros de que ele e a sua gente precisavam; e, por esse esquecimento, ele fora obrigado a tratar com os Imperiais. Mas se os Portugueses tornavam a vir, com eles só queria tratar, pois era irmão de Sua Majestade — “à saúde de quem bebia com toda a veneração e respeito». E bebeu, regiamente, enquanto reboava, solene, uma salva de vinte e um tiros... A 25 de Abril, a Santa Ana suspendeu e foi fundear junto da ilha dos Portugueses. A 27, fez-se um desembarque na Inhaca. Juntou-se multidão de cafres e apareceu o régulo, mal humorado, procurando convencer Godinho de Mira a não destruir as instalações austríacas. O ambiente tornou-se tenso, carregado de hostilidade e ameaça. Todavia, os indígenas não che103 garam a ousar o ataque e o fogo destruiu a casa e armazém. Durante esta operação, entrou o navio austríaco Conde de Proli, capitão Tomaz Burton, no qual regressava de Bombaim André Daniel Pollet, o director da feitoria, e Van Dorselaer que vinha residir no estabelecimento como delegado da Companhia, sucedendo a Pollet na gerência. O capitão-tenente Garcez Palha foi a seu bordo, intimando-os a apresentarem--se na Santa Ana — uma carta, provavelmente de Pollet, insinua que aquele oficial os atraiu à fragata portuguesa à má fé, sob pretexto de lhes ser feita entrega do Príncipe Fernando. A 3 de Maio, finalmente, a expedição largou da baía, rumo a Moçambique. A Santa Ana conduzia os prisioneiros e na sua esteira navegavam os dois navios austríacos apresados e o inglês que não cumprira a intimação de abandonar o porto. Ia vitoriosa... Mas mais uma vez os Portugueses, deixavam a baía de Lourenço Marques desguarnecida, a soberania nacional ilusoriamente fundada em compromissos dos régulos e exercendo-se pelo (de resto, só pretenso) monopólio comercial. A reconquista era, afinal, a restituição do antigo quadro da exploração comercial da baía. O espírito de 500 e 600 sobrevivia ainda, apesar das lições já sofridas, com a sua concepção mercantilista do senhorio pela navegação e comércio. De facto, em nenhum dos documentos que se conhecem encontramos o desígnio de ocupação. As instruções a Godinho de Mira mandavam, simplesmente: destruir e arrasar tudo que na baía houvesse de estabelecimentos e fortificações; fazer reconhecer aos régulos que incorreriam na indignação de Sua Majestade se consentissem que nação alguma se estabelecesse 104 nos domínios da Coroa portuguesa ou fizesse comércio nesta costa» O. O próprio vice-rei, no entanto, sentia que estas providências, por si sós, «ficariam frustâneas e inúteis para o futuro». Por isso, tomava as precauções com que acreditava consolidá-las. Ordenou ao governador de Diu que persuadisse os negociantes dessa praça a desviarem, anualmente, dos cinco navios que mandavam à Ilha de Moçambique, dois ou um para o comércio da baía de Lourenço Marques. Ao capitão-general de Moçambique mandou que tentasse o mesmo junto dos negociantes da Ilha e que, «muito principalmente», pusesse em guardacosta na baía uma embarcação armada em guerra, “para impedir e defender às nações estrangeiras o comércio e a usurpação dos reais domínios». Triste e pobre eco, à distância de duzentos e setenta e seis anos, da famosa recomendação do primeiro vice-rei da índia D. Francisco de Almeida: «Que toda a vossa força seja no mar»! E não deixa de ser estranha esta obstinação no esquema marítimo-mercantil como expressão e garantia do domínio português na baía de Lourenço Marques, quando já o espírito novo que orientava a crescente expansão ultramarina europeia -na África e na Ásia denunciava por irrito o direito de «descoberta, navegação e comércio». Portugal invocaria e advogaria ainda, nas contestações internacionais e nas discussões entre chancelarias, as linhas ( 1 ) Alexandre Lobato diz que nas instruções ao governador de Moçambique o vice-rei sugeria «que fosse construída uma feitoria e uma casa forte em Lourenço Marques guarnecida com artilharia». Ë pena que Lobato não tenha publicado o texto das instruções. No extracto, publicado por Paiva Manso, da carta para a Corte, 20 de Janeiro de 1781, em que o, vice-rei resume as instruções que dera ao governador, nada consta sobre tal sugestão. 105 puras desse direito (1) . Mas ele próprio vinha já articulando nos seus domínios o novo código... Em 1781, os demais portos da costa haviam já sido guarnecidos: Inhambane, ocupado em 1731; a ilha do Ibo, fortificada em 1760; Tangalane, na boca dos Bons Sinais, refortificada em 1753 e 1771. Apenas Lourenço Marques se achava, ainda, desocupado. O plano de D. Frederico Guilherme de Sousa aparece, pois, como um anacronismo inválido — e sem dúvida continha em si a frustração da reconquista de Lourenço Marques. A expedição militar não teria sido mais que a acção de despejo dum intruso — mas a casa lá ficava, abandonada e de portas abertas, à mercê de qualquer outro que quisesse abrigar-se nela. Aquele navio de guarda da costa (navio que, de resto, a Capitania-Geral não possuía) tinha alguma coisa de pueril — um naviobrinquedo que não resistiria ao balanço da maré enchente da expansão europeia. Valeu na emergência a determinação de Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos, governador interino de Moçambique. Ele soube dar às instruções do vice-rei o sentido que lhes faltava. Assumiu, voluntarioso, a responsabilidade de ir além delas (posto que sempre dizendo que a elas se conformava...). E deliberadamente arrancou a venda à cabra-cega daquele jogo que as nações andavam a jogar na baía da Lagoa... Este Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos foi homem discricionário, turbulento e despótico, mãos rotas ao lidar com a real fazenda, pouco de escrúpulos para acrescentar o seu próprio cabedal. Acabou, (*) Assim o fazia ante o protesto formulado pela Corte de Viena contra a supressão violenta do estabelecimento em Lourenço Marques, respondendo com esse direito ao argumento de que o estabelecimento fora «fundado num país abandonado de toda a nação europeia e no qual não existia nenhum vestígio de dominação portuguesa». 106 alguns anos mais tarde, por ser remetido para Lisboa, a ferros... Mas aos homens se deve aplicar também o que Péguy disse das doutrinas filosóficas: «uma grande filosofia não é aquela contra a qual nada haja a dizer, mas aquela que tenha dito alguma coisa». Vicente Caetano fez alguma coisa que os outros, antes dele, não tinham feito e que talvez nenhum outro, depois dele, poderia já fazer — alguma coisa que permitiu que Lourenço Marques ficasse portuguesa. Criou e mandou estabelecer o presídio de Lourenço Marques (1) e assim assentou, realmente, o domínio português na tão disputada baía e suas terras. O seu nome está injustamente esquecido, ignorado nesta cidade de que ele foi, afinal, o fundador. As palavras que aqui escrevemos não bastam, sabemo-lo bem, à reparação que lhe é devida. Mas, assim mesmo, devotamente depomos ante a sua memória este livrinho, como um ex-voto de lembrança e gratidão. (') A palavra presidio é, vulgarmente, mal entendida. Significava a força militar que guarnecia uma fortaleza. Por extensão, designava a própria fortaleza, a localidade onde ela se achava, e, mais tarde, foi o título duma jurisdição administrativa. 107 1782-1800 FUNDAÇÃO O capitão-general Frei José de Vasconcelos e Almeida finouse aos 7 de Maio de 1781. «De uma indigestão por coagulação», diz Costa Mendes. E o irreverente Nogueira de Andrade comenta: «A sua morte, por arrebatada, foi atribuída a veneno propinado, mas os peritos lhe chamaram Mordaxim que é uma cólica de indigestão, prima irmã da apoplexia: com efeito, ele comia muito e a todos os carrilhos; as pragas voaram de contínuo, alguma chegou ao céu» ('). Paz à sua alma. Sucedera-lhe, como governador interino, Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos, que, eleito pela Câmara, tomara posse em 8 de Maio. A 15, chegou a Moçambique, de caminho para Goa, a expedição de Godinho de Mira, com a feliz notícia da expulsão dos Austríacos. E Vicente Caetano, «porque já não existiam obstáculos, deliberou fundar em Lourenço Marques um presídio» (2). Ë de crer, no entanto, que alguma coisa estava já, antes da chegada da expedição e na previsão de esta ser bem sucedida, premeditada a tal respeito. Na verdade, no próprio dia em que a expedição chegou, 15 de Maio, o provedor-mor da Real Fazenda (') Em Breve notícia da guerra do Itoculo — veja-se Documentos, 5.°, Nota. (2) Costa Mendes, Catálogo. 111 e juiz-tesoureiro da Alfândega, António Caetano Pinto, apresentou ao governador uma exposição em que se contém já o esquema do plano, que depois viria a realizar-se, da organização do estabelecimento em Lourenço Marques: exploração comercial apoiada por uma força militar e compra, pela Fazenda, de um navio que pertencera ao finado Silvestre Álvares de Moura e estava em leilão, para ser posto ao serviço do comércio da baía. Seria esta representação do livre alvedrio de Caetano Pinto? Seria combinada por Vicente Caetano que assim procurava, burocràticamente, uma cobertura oficial para o que ia fazer? Seria encomendada por conluio de negociantes, com vista a apoderarem-se do comércio de Lourenço Marques? Não sabemos. Vicente Caetano despachou a representação ao procurador da Coroa, para dar parecer. O procurador, Tomás Pedro Eangel, irmão de um dos principais negociantes da Ilha, logo no dia seguinte emitiu a sua douta opinião. Era concorde e até reforçadora no sentido do monopólio comercial C). Assim, em 22 de Maio comprou-se a corveta de Álvares de Moura. Este homem, negociante, arribara tempo antes a Quelimane, vindo das Maurícias, e aí falecera. A corveta, longa e devotamente denominada Santíssima Trindade, S. João Climaco e Almas, foi arrolada com os demais bens do falecido e levada para Moçambique, a fim de ser vendida em hasta pública. Em ofício de 19 de Agosto, ao ministro da marinha, Vicente Caetano informava ter adquirido a corveta «pelo cómodo preço de 16:000 cruzados, ainda que por não ter massame se devesse gastar com ela mais (*) Para mais pormenores sobre os dois documentos, veja-se A. Lobato, obra citada. 112 8:000 cruzados». Se Sua Majestade não sancionasse essa despesa, ele, Vicente Caetano, reembolsaria a fazenda real e ficaria com a corveta. Mas (alegava) fizera a compra com este propósito: despachar a corveta para Lourenço Marques, com carga de mercadores e sessenta homens de tropa com ofícios competentes, um feitor, um comandante e todos os petrechos que a guarnição da Ilha pudesse dispensar; estabelecer ali feitoria, com trincheira e casa forte; organizar uma carreira semestral com embarcações da praça de Moçambique. Em 8 de Novembro, Vicente Caetano tornou público, por um bando, o gosto que Sua Majestade fazia em estabelecer e conservar o comércio de Lourenço Marques e convocou uma junta dos homens de negócios, os quais animou a constituírem-se em sociedade para a exploração daquele comércio. E que tudo isto já estava combinado mostra-o o facto de logo seis dias depois, a 14, um grupo de doze negociantes (seis europeus e seis baneanesO) apresentarem um longo requerimento de concessão do comércio de Lourenço Marques por seis anos, documento que levava apenso o projecto dos estatutos, com vinte e três artigos ( 2 ). De novo foi pedido parecer ao procurador da Coroa. A sua única observação interessante é a de que, embora aprovando o monopólio, entendia que nele deviam ser admitidas todas as pessoas que o quisessem. Publicou-se, sobre isto, um bando mas só dois negociantes mais se interessaram em entrar na sociedade. (') A. Lobato dá a lista dos nomes desses negociantes, entre os quais se contavam Joaquim de Araújo, que seria o primeiro governador do presídio, o tesoureiro da Fazenda, o juiz e tesoureiro da Alfândega e o escrivão da Junta da Fazenda. (z) A. Lobato sumaria-os no seu livro. Adiante recolheremos, desse sumário, o que mais interessa sobre o regime do comércio na baía. 113 Esta constituiu-se assim, com catorze sócios e um capital de 60:000 cruzados. Finalmente, em 25 de Novembro, Vicente Caetano nomeou o primeiro «capitão-rnor e governador para a baía de Lourenço Marques e seus adjacentes» e deu-lhe as instruções por que deveria reger-se, instruções que constituem a primeira carta orgânica — política, administrativa e económica — da baía e terras de Lourenço Marques O. Politicamente, a dominação portuguesa era assente em dois núcleos de ocupação: um na Inhaca, com casa forte e quartéis para um destacamento de trinta homens; o outro na margem norte, em frente ao fundeadouro, com a fortaleza-feitoria — uma bataria de peças protegida por estacada. O governador deveria, imediatamente, arvorar nela a bandeira e «pôr todo o cuidado, para que as mais nações vejam a posse que nós temos com justo título». Com os estrangeiros, adoptar-se-iam sempre os «termos mais prudentes e seguros que fossem possíveis». Navios de outras nações que entrassem no porto para refresco receberiam toda a hospitalidade. Mas ser-lhes-ia «exactissimamente» proibido o comércio. Se alguma desobedecesse e praticasse atentado contra a «nossa propriedade», o governador opor-se-ia, «até onde chegassem as nossas forças». Em face de um inimigo de maior força lavraria e remeter-lhe-ia um protesto formal, «mostrando-se sempre com ar dominante, favorecido das ordens que o governador geral lhe havia dado». Sobre os indígenas, o estabelecimento não exercia qualquer jurisdição política ou administrativa. No espírito da época, o conceito de ocupação e de posse (') 114 Em Documentos, 4.°, damos o texto completo do regimento. não se elaborava, ainda, das ideias de domínio territorial e sujeição política dos povos indígenas. Traduzia já uma evolução da fase marítimo-mercantil com que se iniciara a expansão europeia, mas era, ainda, do seu espírito que se inspirava. A ocupação não significava mais que um título e uma defesa contra a concorrência de outras nações e realmente não exprimia mais que senhorio ou privilégio comercial — uma espécie de alvará de propriedade industrial. As fortalezas-feitorias eram instituições extra-territoriais. Em face delas, os chefes indígenas conservavam o seu estatuto, guardavam todo o seu poder e prerrogativas. E em vez de ser o indígena a pagar mussoco, era o Branco que pagava saguate, curva, binro — impostos devidos aos régulos pela licença de transitar nas suas terras, subir os seus rios e traficar com a sua gente. Assim, o regimento limitava-se a definir a atitude a manter nas relações com os indígenas. O governador deveria velar por que nenhuma pessoa sob o seu comando lhes fizesse violência, «salvo se eles quisessem roubar ou insultar os portugueses, porque nesse caso seria natural defesa». Não consentiria que os soldados andassem dispersos pelo interior; quando houvessem de ir procurar mantimentos, iriam sob comando de um sargento e municiados, com expressas recomendações de não provocarem desordem. Na regulação dos preços do comércio, o governador procederia “de sorte que nunca os Cafres ficassem enganados”. A ocupação económica da baía era planeada ainda pêlos moldes puros do mercantilismo: exploração comercial pela companhia estabelecida em Moçambique, a qual se obrigava a sustentar a exploração durante seis anos, em carreira pelo menos semestral, podendo a concessão renovar-se por outros seis anos. O monopólio incidia sobre o marfim, as pontas de 115 abada e dentes de cavalo marinho. Os demais géneros ficavam livres a favor da tropa, oficiais e marinhagem e, mesmo, os oficiais podiam converter os soldos nos produtos do monopólio, vendendo depois estes à Sociedade, com o lucro de dez cruzados. Mais tarde, 1783, já em tempo do general Pedro de Saldanha de Albuquerque, também o âmbar foi declarado contrato régio. A Sociedade gozava, ainda, do exclusivo de fornecimento de fazendas ao Estado, para os pagamentos à guarnição do presídio, e pagaria à Fazenda, anualmente, dois mil cruzados para as «obras reais» a fazer na baía. O capítulo 7.° do regimento dado por Vicente Caetano ao governador de Lourenço Marques preceituava : «No caso que dos portos do norte venha alguma embarcação a comerciar, de forma nenhuma v. m.ce o consentirá, e fará vir a esta capital a pagar os direitos a Sua Majestade, por ter já mandado dizer ao governador da índia que não mandasse navio para aquele porto com fazendas, por estar o comércio dependente de uma sociedade desta capital.» O tráfico regular-se-ia sobre a base de 40 panos por arroba de marfim grosso, proporcionando-se a este preço os das demais mercadorias: marfim meão e miúdo, cera, pontas de abada e dentes de cavalo marinho. Se, todavia, os indígenas estivessem acostumados a outros valores, o governador reajustaria aqueles preços, de harmonia com o que a sociedade exploradora alvitrasse e «considerando a utilidade para os mercadores da praça de Moçambique e os direitos de Sua Majestade» — e também, como já vimos, «que nunca os Cafres ficassem enganados». Assim Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos 116 criava, de sua iniciativa e diligência, as bases para o estabelecimento da verdadeira soberania portuguesa na baía e terras de Lourenço Marques, lavrando o «justo título» da posse portuguesa. Um ponto do seu plano merece ser especialmente notado: a ocupação da Inhaca. Vicente Caetano atribuía-lhe tanta importância que a recomendava ao governador nos seguintes termos: «(estabelecimento este para o que vossa mercê deve aplicar todas as forças». Tinha razão. A ilha era, à época, uma posição melindrosa, se não mesmo a posição-chave do domínio da baía. Um inimigo postado nela, à boca da barra, poderia invalidar, isolando-a, a fortaleza metida no fundo do saco. E o comércio do continente do Tembe e do Maputo podia esgueirar-se por ela, clandestinamente, a salvo das vistas da fortaleza tapada pela Ponta Vermelha. Parece, todavia, que o regimento não foi, neste capítulo, cumprido — nem a inspiração de Vicente Caetano compreendida até que a façanha do capitão Bickford, em 1861, veio ilustrá-la cruamente. Se a par da ocupação da margem norte se tivesse mantido permanentemente guarnecida a, Inhaca, é muito provável que se tivesse barrado o curso dos acontecimentos na segunda metade do século XIX. Mas, como tantas vezes tem sucedido, foi depois da casa assaltada que se meteram trancas à porta... Os preparativos da expedição de ocupação de Lourenço Marques — reparações e aparelhamento da corveta, armação pela companhia do comércio, reunião do destacamento — prolongaram-se de Agosto a Dezembro de 1781. E, finalmente, nos princípios de Janeiro de 1782, largou da Ilha capital, a bordo da Santíssima Trindade, a expedição que vinha assentar 117 a soberania de Portugal na cobiçada baía de Lourenço Marques. Chefiava-a Joaquim de Araújo, o primeiro governador e capitão-mor português da baía e suas terras. Natural de Lisboa, Campolide, nascera em 1726 e viera para a costa oriental de África em 1748, terceiropiloto do iate S. Francisco Xavier. Fez várias viagens entre os portos da costa e subiu até capitão-tenente da Armada. Em Julho de 1779 recebeu o hábito de Cristo. Casou e estabeleceu-se em Moçambique — e o general Saldanha de Albuquerque, que se lisonjeou de ter contribuído para isso, diz que Araújo serviu com muita honra e muito préstimo e em 1755 enviou-o a Inhambane, «(encarregado do socorro de gente e munições com que mandou socorrer aquela Colónia e seu Presídio, contra os mouros da terra que pretenderam surpreendê-la e roubá-la». De 1777 a 1780, Araújo foi feitor da Real Fazenda em Inhambane e também governador e capitão-mor. A expedição compunha-se de um estado maior (o governador, o capelão, o cirurgião "e um ajudante deste), dois oficiais e quarenta e seis sargentos e praças de infantaria, um oficial e sete praças de artilharia. Total: 60 homens. Uma memória, de que adiante muito falaremos, escrita em 1784 pelo capelão da expedição, fala de 130 homens. Este número afigura-se excessivamente forte para a época. Nenhuma outra guarnição, à parte a da capital, ia além de metade dessa força. Contudo, é de notar que numa descrição anónima da baía, publicada por Paiva Manso e posterior a 1785, se apresenta o presídio numerando, no tempo em que o autor nele servia também, 170 homens e mais tarde (à data em que o autor escrevia, certamente em Lisboa, a sua descrição) 200 homens. 118 Paiva Manso atribuiu a autoria da descrição a um comandante do presídio, não sabemos se baseado em qualquer outro dado além desta frase do manuscrito: «(fortaleza que teve em meu poder 170 homens de guarnição» — frase que, todavia, não é bastante para autorizar aquela afirmação. Alexandre Lobato foi de parecer, não nos recorda onde, do autor ser também frei Francisco de Santa Teresa, o capelão da expedição. Realmente, as coincidências da descrição com aquela memória e a circunstância dela ser dirigida ao prelado de Moçambique, D. Fr. Amaro José de São Tomás, tornam difícil discordar desse parecer. Se assim é, a diferença, entre um e outro documento, do efectivo do presídio no tempo do autor explica-se deste modo: 130, o destacamento inicial mandado por Vicente Caetano; 170, esse destacamento acrescido do reforço de «um bom número de soldados» enviado pelo general Saldanha de Albuquerque ( 1 ). Em todo o caso, insistimos na suspeita de exagero. O número englobará soldados e marinheiros, tripulantes do navio — e, mesmo assim, ainda parece elevado. A expedição deveria ter chegado à baía em fins de Janeiro, princípios de Fevereiro de 1782. O que primeiro lhe cumpria, pelo regimento, era deixar na Inhaca o capitão Belchior e o alferes Francisco Mourão, com trinta homens e tudo o necessário para construção da feitoria e quartéis. Mas o capitão Belchior não veio, porque, estando de guarnição em Inhambane, não pudera embarcar, pois um temporal impedira a corveta de entrar no porto. Assim, mas (') Quanto ao ulterior efectivo de 200 homens, refere-se já à reocupação do presídio e adiante nos ocuparemos dele. 119 a razão não era decisiva, este importante ponto do plano de Vicente Caetano não foi cumprido. O único documento conhecido que nos dá algumas informações sobre o estabelecimento do presídio e sua vida até Junho de 1783 é o Plano e Relação, escrito em Lisboa, ano de 1784, por frei Francisco de Santa Teresa, carmelita, «capelão da tropa que por ordem de Sua Majestade veio apostar-se e aquartelar-se em destacamento na passagem propriamente chamada Baía da Lagoa» (1). E um documento precioso, não só por ser único mas, ainda, pelo pitoresco da narração. Tem, todavia, um erro notório e parece-nos, noutros pontos, suspeito. O erro notório (o manuscrito que se possui é uma cópia) é o da data inaugural do presídio, apresentada como «19 de Abril de 1781, dia de S. José». Ora. o ano não pode ser senão 1782 (o que se verificava, ainda que outros dados não houvesse, do estudo atento da memória). Mas, quanto ao mês, fica-se na dúvida: o dia de S. José é o 19 de Março. Continuamos, assim, sem saber a data precisa da fundação de Lourenço Marques. O carmelita alongou-se muito em descrever as terras, gente e produções, conta histórias dos pretos — mas, quanto ao que mais interessava, foi avaro de informações. Segundo ele, o Matola recebeu jubilosamente os Portugueses. Chamava-lhes filhos. Cedeu terras para o estabelecimento e proclamou livre nos seus domínios o trânsito de Portugueses, com recomendação de que ninguém da sua gente ousasse maltratá-los «com ferro ( J ) Veja-se Documentos, 2.° Para a identificação do carmelita veja-se Lobato, obra citada. Acrescentaremos que em Dezembro de 1780 era capitão-mor e comandante das Terras Firmes um Francisco de Santa Teresa que é, sem dúvida, o mesmo homem. 120 ou azagaia». Como já tivemos oportunidade de dizer, o Matola era então o soberano das terras da baía. desde o Espírito Santo (Umbelúzi) às margens do Incomáti, compreendendo a Cherinda, a entestar com os reinos do Magaia e do Manhiça. O presídio foi estabelecido no lugar onde fora a feitoria holandesa. E, finalmente, aos «19 de Abril de 1782, dia de S. José», por entre «o contentamento geral fez o governador Joaquim de Araújo arvorar a bandeira, estando estabelecido o conveniente reduto e apontados os nossos canhões». Assim nascia, num pobre e tosco berço de faxina, terra e capim, a cidade de Lourenço Marques!... Mas logo à nascença se lhe anunciou a má sina que faria da sua história, ao longo de um século, um torturado, desesperado e heróico esforço de tenacidade ante a desgraça, de perseverança na sustentação. A 12 de Maio, das oito para as nove da noite, pegou o fogo no estabelecimento. A gente salvou-se, mas os bens perderam-se, «sem se poder preservar coisa alguma, porque o tempo, a atmosfera, a palha que fazia o telhado, tudo fazia rápido o incêndio». Refizeram-se as instalações. Mas, a 6 de Julho, novo desastre: o governador Joaquim de Araújo morreu bidrópico. Assumiu o governo o tenente Manuel António, comandante do destacamento. «E tudo ia bem», diz o carmelita. Cedo, todavia, começaram a pronunciar-se atritos com os régulos menores, numerosos de mais para que a feitoria, empobrecida pelo incêndio, pudesse presenteá-los todos condignamente. Em represália, eles proibiam à sua gente ir vender mantimentos ao presídio. Sempre que se levantava um destes müandos, era traduzido ao Matola que “instantaneamente fazia remover o impedimento, certificando aos Portugueses as suas favoráveis providências». 121 Inclinamo-nos a que fr. Francisco mostra, neste passo, cândida credulidade — de resto, em toda a sua relação se afirma uma disposição de tanta simpatia pêlos indígenas, em especial os régulos, que passa as raias últimas da ingenuidade... Seria bem mais verosímil que o Matola se limitasse a aparências de intervenção, dissimulando e fazendo aquele jogo de duplicidade que tantas vezes encontramos na história das relações com os indígenas. Brancos com poucas fazendas e mesquinhos no saguate não deviam interessá-lo muito. Este ponto tem sua importância, pois muito provavelmente esses atritos, agravados pela indisciplina da tropa, fonte tradicional de conflitos com os indígenas, são um prelúdio dos acontecimentos que levarão o tenente João Henriques de Almeida ao acto desesperado de abandono do presídio. Entretanto, chegava a Moçambique a notícia de que o governador Joaquim de Araújo estava moribundo e de que havia «falta de obediência» na soldadesca. Pedro de Saldanha de Albuquerque tinha assumido, pela segunda vez, o governo da Capitania-Geral e deu prontas providências. Em Novembro de 1782, foi enviado para Lourenço Marques um contingente de trinta homens. Comandava-os o tenente João Henriques de Almeida, com ordem de assumir o governo do presídio, no caso de falecimento de Joaquim de Araújo. Foi o que sucedeu. Frei Francisco de Santa Teresa dá-nos do novo governador um retrato cruel: “O nosso governador chegou ao sítio e, estufado com o seu com andamento, fez ordens, descompondo e maltratando aos chefes, com ameaças e demasiada altivez, e da mesma forma, tendo em menoscabo aos reis do continente. Temendo-se de algumas conse- quências funestas, se encheu de medo, estando sempre a bordo da embarcação. Fez ultimamente desembarcar a tropa, desalojou o presídio, recolheu os canhões e fez viagem para a capital de Moçambique, persuadindo a todos que tinha ordem para o retrocesso.»• Noutro passo da relação, dá, ainda, uns retoques neste retrato: o tenente Almeida «não tinha docilidade alguma de génio e era falto de sobriedade nas bebidas». E põe na boca do Matola a afirmação de que o governador era «altanado e bravo». A causa imediata, no entanto, do rompimento com o Matola foi uma questão de aguardente, «a que chamam cachaça, vinda da América». Um dia, o Matola foi visitar o governador. Pediu-lhe alguns panos e contas — para, por sua vez, presentear um «príncipe seu confederado». Pediu, também, alguma cachaça — e foi tratando de duplicar o pedido, em procuração do «Grão C a x a » ( ' ) . O governador enfureceu-se, desatou aos gritos: não dava nada!... Por fim, mandou vir três frascos de cachaça. O demónio foi, porém, que a cachaça era dezenxavida, «muito toldada de água pura misturada». Bom conhecedor (o frade diz, candidamente, que por ser ele muito sensato), o Matola logo percebeu a trapacice. E, como era justo, formalizou-se. Exprobou ao governador que não devia fazer-lhe tanto desacato. Dissesse-lhe antes que não queria ou não podia fazer-lhe aquele mimo, do que romper em gritarias, as quais seriam mal interpretadas pelos seus ou pelos nossos. Dava-se por muito ofendido. E o governador devia não esquecer que estava nas suas terras e que ele, Matola, bem podia, se quisesse, mandá-lo atravessar de uma azagaia por um dos seus vassalos. E, tendo dito, retirou-se. (') 122 O régulo dos Cossas, no médio Incomáti, 123 O governador pediu a frei Francisco que interviesse e negociasse a reconciliação. Houve conferências «e passagens de boa amizade». Matola, bon enfant, dispôs-se a transigir. Mas nada do que o frade propôs ao governador «teve alçada para suspender o seu destino». O tenente João Henriques de Almeida abandonou o presídio. A notícia desta resolução, di-lo o carmelita, causou imenso alvoroço nos indígenas. Os régulos grandes Matola, Tembe, Mavote (Mabota) enviaram embaixadores e comissários, tentando persuadir o governador a ficar. Ofereceram-lhe tanta terra quanta quisesse, a restituição dos saguates recebidas e as maiores facilidades. Mas nada teve alçada para suspender o seu destino... Em toda esta história, francamente suspeitamos frei Francisco de parcialidade a favor do Matola — que, positivamente, encantava o carmelita com as sua inclinações religiosas, a sua devoção à missa, a sua ânsia de iluminação nos mistérios do cristianismo. .. O tenente João Henriques encontrara uma atmosfera de tempestade iminente. Quis dominar a indisciplina da tropa e vencer a hostilidade dissimulada, a resistência passiva dos régulos. Isso era, justamente, o que lhe cumpria fazer — mas haviam escolhido mal o homem para a função... João Henriques seria, naturalmente, muito mais soldado que político — e isto, quanto a nós, é um ponto a seu favor... O seu génio não era afeiçoado às subtilezas e hipocrisias da política. Pretendeu agir pela autoridade ríspida — sem considerar que lhe faltavam instituições e forças em que se apoiasse. Não procuramos, com estas palavras, reabilitá-lo. Quanto mais ele fosse, realmente, soldado — menos perdão se lhe poderia conceder. Tentamos, apenas, compreendê-lo... Ao chegar a Moçambique, o tenente João Henriques de Almeida foi preso, julgado em conselho de guerra e expulso do exército. Assim devia ser. Em Junho de 1783, a baía de Lourenço Marques, ficava novamente abandonada dos Portugueses, após uma ocupação que não durara mais de quinze meses. Da vida do estabelecimento sabemos ainda alguma coisa, além do que ficou dito. Frei Francisco deixou-nos uma animada e fresca ilustração da fartura da terra e da feira que quase todos os dias se fazia junto do presídio. Não se cansa de louvar a abundância e bondade dos mantimentos. Tudo era farto, saboroso e excelentíssimo — hortaliças, legumes, «fruta de regalo», vaca, capado e chibarro, peixe. As galinhas eram «grandes» — coisa que. hoje nos surpreende, ao olharmos as pequenas galinhas landinas... Custavam, cada uma, palmo e meio de pano preto. E todos os meses o destacamento sacrificava mais de setecentas. Às vezes, âmbar e marfim andavam, pela feira, a granel — um arrátel por duas peças de pano, mas nem mesmo assim achavam comprador. Outra colorida imagem que devemos ao carmelita é a dos primeiros passos da evangelização dos povos da baía de Lourenço Marques. Frei Francisco de Santa Teresa foi o seu pioneiro e teve a grata consolação de se iludir bastante até acreditar esta genti-1 idade conquista fácil para o rebanho do Senhor. Aos seus olhos, o régulo Matola aparecia como campo eleito para a sementeira do Cristo. Sempre que chegava pela manhã ao presídio, Matola «assistia com 124 125 toda a devoção ao incruento sacrifício da missa, persuadindo aos seus que praticassem o mesmo culto, postos todos de joelhos». Queria missa nas suas terras. Tinha com o frade «sisudas conferências» sobre a doutrina e muitas vezes, no meio dos seus grandes, lhe pedia que explicasse a criação do mundo e a do primeiro homem, a Queda, a vinda do Filho de Deus à terra, a Encarnação do divino verbo... No seu desvanecimento por este discípulo, o frade observava (e, desta feita, muito judiciosamente): «Era inexplicável a sua consolação com a minha companhia». Pobre e caro frei Francisco de Santa Teresa! A semente que tão beata e perdulàriamerite semeavas não germinaria — e hoje ainda, a quase dois séculos de vista, a seara do Senhor nestes sertões é enfezada e mísera!... Os inícios do comércio foram infelizes, se não, mesmo, desastrosos. A companhia sofreu, certamente, perda grossa no incêndio da feitoria, embora parte do carregamento se mantivesse a bordo. Encontrou o mercado assente, pêlos Ingleses e Imperiais, em preços para ela difíceis (80 panos a arroba, a comparar com os 40 que a sociedade se propunha pagar), dada a oneração com que as fazendas lhe chegavam. Tinha, pois, de perder «de seu cabedal e capital» ( 1 ). Estamos, agora, outra vez na incerteza do que sucedeu. Pedro de Saldanha de Albuquerque, pouco depois de assumir o governo da Capitania, que foi em 21 de Agosto de 1782, promoveu constituição de uma grande corporação comercial, favorecida com o (') Nogueira de Andrade, Documentos, 3.° Segundo a carta de quitação de Joaquim de Araújo, o pano valia 500 réis e a arroba de marfim .56 cruzados. 126 monopólio de algumas espécies ( 1 ). Certas das poucas notícias que temos sobre o assunto sugerem que esta corporação substituiu ou sucedeu, na exploração comercial da baía de Lourenço Marques, à companhia organizada por Vicente Caetano. Assim, o general António Manuel de Melo e Castro, escrevendo para a Corte em 15 de Agosto de 1786, descrevia a lastimosa condição em que o estabelecimento de Lourenço Marques se achava, «apesar das despesas feitas pelo Estado e pelas duas companhias, a de Caetano da Maia e a de Pedro de Saldanha de Albuquerque». Por sua vez, Nogueira de Andrade, em 1789, dizia que o comércio moçambicano nada lucrara com o estabelecimento em Lourenço Marques, «pois uma companhia formada para este mesmo fim, perdeu de seu cabedal e capital; e a corporação que lhe sucedeu nada ganhou». Todavia, o volume de capital da companhia de Saldanha de Albuquerque, 900:000 cruzados, e a importância da avença dos direitos alfandegários a que ela se obrigava, 165:000 cruzados anuais, indicam que a sua jurisdição não se limitava ao porto de Lourenço Marques mas abrangia o comércio de todos os portos. Qual ficaria sendo, então, a condição da primeira sociedade em face desta outra? Um documento de 1785, que adiante identificaremos, sugere, por seu turno, que naquele ano a exploração do comércio de Lourenço Marques era objecto (') O capital da corporação era de 900:000 cruzados, em acções de 400:000 réis. Os sócios deveriam ser, na maioria, negociantes portugueses — quando muito, quinze baneanes. A companhia obrigava-se a satisfazer a renda anual de 165:000 cruzados, média das receitas alfandegárias nos últimos três anos. Como a questão excedia a alçada do capitão-general, Pedro de Saldanha de Albuquerque garantiu à companhia o contrato por dois anos, tempo provável da demora do despacho final da Coroa. Segundo Bordalo (Ensais, etc.) a companhia dissolveuse em 1785, por a Coroa não a ter sancionado. Teixeira Botelho (História Militar e Política, etc.), diz que a companhia se extinguiu em 1787, «talvez por lhe faltar o amparo do seu fundador e talvez também por ferir muitos interesses». 127 de empresa a ela particularmente dedicada. É, pelo menos, o que julgamos dever deduzir-se da frase: «os sócios daquela [de Lourenço Marques] negociação». O prazo da concessão à sociedade constituída em 1781 não terminara ainda. Assim, se essa sociedade mantinha os seus privilégios, como veio a outra companhia sobrepor-se-lhe ou concorrer com ela? A resposta a estas perguntas só pode ser dada quando novos documentos dos arquivos metropolitanos forem trazidos à publicidade. Da actividade comercial na baía não possuímos mais que vagas informações. Segundo frei Francisco, no rio do Maputo o comércio estava paralisado, em consequência de guerras tribais. «Os nossos não ousavam ir traficar com ele [povo do rio do Maputo], para evitar que, sendo roubados, não se soubesse quais eram os agressores, não podendo, por essa desculpa, ser castigados». Junto do Capela, régulo do Tembe, a companhia tinha um comissário. De três em três meses, o régulo vinha jantar a bordo dos navios ancorados na vizinhança das margens das suas terras. Esta informação de frei Francisco é muito interessante, pois faz-nos entrever uma frequência da baía mais animada do que o seria com, simplesmente, um navio semestral da sociedade exploradora. Noutro passo, o carmelita, depois de exaltar o valor comercial dos dois rios, Maputo e Incomáti, diz que «todos os anos tinham de contínuo seis ou sete embarcações a tomar carga de marfim, pontas de abada, dentes de cavalo marinho, escravos apreendidos em guerras entre eles, âmbar, ouro, cobre e outras úteis produções». Mas este passo deve, antes, referir-se a período anterior ao estabelecimento português: os seis ou sete navios seriam, pois, estrangeiros. 128 Na descrição anónima a que já nos referimos, conta-se que todos os meses saíam da feitoria duas ou três embarcações, carregadas de pano preto, missanga e velório, as quais subiam o Incomáti até o «Grão Caxa» — ou seja: até Xinavane - Magude, provavelmente. Mavote, régulo da Magaia, à boca do rio, beneficiava deste movimento, cobrando saguate dos navios que ali iam fundear e das embarcações que subiam o rio. Mavote e Matumbane admitiam, também, nas suas povoações, comissários ou agentes de compras da companhia, prática que fora iniciada pêlos Ingleses, ao que se julga. No «Grão Caxa», seguia-se o velho sistema das feiras: a gente das embarcações regressava toda à feitoria, uma vez acabadas as transacções. Frei Francisco dá-nos, ainda, a fechar a sua relação, uma enumeração especificada das mercadorias de compra: várias qualidades de panos, ritatlas, missanga, velório e aguardente do Rio, Baía e Pernambuco. Os estrangeiros, por sua vez, não esqueciam a baía de Lourenço Marques, as «grandes utilidades» que tiravam delas. Em Março de 1783, a companhia queixava-se ao general (1) das suas diligências. O navio que em fins de Junho ou por Julho de 1782 chegara à baía trazia capitão português e passaporte emitido em Goa a favor de um tal António Pereira. Fora, porém, armado em Bombaim e vinha «governado» pelo inglês Tomaz Burton que havia estado ao serviço dos Austríacos. Joaquim de Araújo, então já gravemente doente, não o autorizou a negociar. O navio seguiu para Moçambique, onde Burton faleceu, encontrando-se-lhe no espólio uma carta de Bolts. Nos princípios daquele ano de 1783, era já a ter(') O documento vem na Segunda Memória do Governo Português. 129 ceira vez que o mesmo navio aparecia em Lourenço Marques, sempre com passaporte português mas armado em Bombaim. A companhia denunciava que António Pereira era useiro e vezeiro naquele papel de encobridor de estrangeiros, bem como Miguel de Lima e Sousa, português mas residente em Bombaim e procurador de Bolts. É muito provável, também, que já então, se é que não de data mais remota, frequentariam a baía baleeiros ingleses e americanos, posto que só em 1789 se encontre notícia oficial deles. Tais foram os princípios da povoação portuguesa na baía de Lourenço Marques. Quinze meses decorridos, o tenente João Henriques de Almeida, «com frívolos pretextos» como dizia o conselho governativo, arriou a bandeira, desmontou as peças, deitou abaixo a estacada, fez embarcar toda a gente e desertou para Moçambique. Nenhum sinal ficava para que as outras nações vissem o ((justo título» da posse que Portugal tinha destas terras e rios e seu comércio. Mas, sob a terra, ficavam doze mortos: Joaquim de Araújo, primeiro governador de Lourenço Marques, um alferes, sete soldados, três marinheiros... A reocupação da baía é outro capítulo confuso da história de Lourenço Marques. Bordalo e Teixeira Botelho dão-nos notícias desencontradas de urna expedição que não chegou ao seu destino. Segundo Teixeira Botelho, essa expedição foi organizada por Saldanha de Albuquerque, ainda em 1783 (o general faleceu em 21 de Novembro desse ano), sob o comando de João Manuel Correia. Forçada pelo mau tempo, arribou ao Bazaruto e desistiu, não se sabe porquê, regressando a Moçambique. Segundo Bordalo, esta 130 expedição saiu da Ilha em 1784 — já organizada, portanto, pelo conselho governativo que sucedera a Saldanha de Albuquerque — e perdeu-se, por naufrágio, no Bazaruto. No entanto, um ofício em que o conselho governativo relatou, em 19 de Agosto de 1785, as providências tomadas para se assegurar a posse do porto de Lourenço Marques, não dá qualquer informação a tal respeito. Não há dúvida, porém, de que a reocupação só se efectuou em 1784. Em Julho ou Agosto desse ano foi despachado de Moçambique um destacamento, sob o comando do tenente Pedro Testevim, oficial de artilharia e que viera já a Lourenço Marques na expedição de Joaquim de Araújo ('). Foi nomeado governador o capitão D. Diogo António de Barros Souto Maior que, parece, só na monção seguinte, 1785, veio para Lourenço Marques, com um reforço ( 2 ). O efectivo total do presídio ficou sendo, então, apenas de 50 homens combatentes, dos quais 30 vindos com Souto Maior. Um ano depois, o estabelecimento achava-se em miserável situação. O novo general António Manuel de Melo e Castro descrevia-o assim, em ofício de 15 de Agosto de 1786: “algumas palhotas, dois paus levantados que servem de baliza do lugar em que há-de ( J ) A notícia é dada num ofício do conselho governativo, de 12 de Agosto de 1784, citado por Teixeira Botelho. A data Julho ou Agosto é presumida por nós, visto que em Junho desse ano Testevim achava-se no Mossuril, na campanha contra o Morimuno. O nome aparece sob várias formas: Festevim, Testevim e Festivem. (2) Ofício do conselho governativo, de 19 de Agosto de 1785. Há, aparentemente, um erro neste ofício (ou, pelo menos, no texto impresso na Segunda Memória do Governo Português). Depois de noticiar o envio do primeiro contingente, diz o conselho governativo que o reforçou com o capitão Souto Maior nesta monção de 1784 — sendo, porém, o ofício de 1785. 131 ser a porta da chamada fortaleza, e uni lado do reduto quadrado, feito com faxina que forma um valado da grossura dos feixes e muito baixo». António Manuel de Melo e Castro é uma das mais notáveis figuras da galeria dos capitães-generais de Moçambique. O seu governo, desde 11 de Março de 1786 a 19 de Março de 1793, foi altamente benéfico para a Colónia. Disciplinou a administração, reprimindo abusos e perseguindo a corrupção que lavrava nela. Contrariou e, mesmo, em alguns pontos abertamente não cumpriu as ordens régias de 1786 e 1787, que autorizavam os navios armados na índia a demandarem directamente, sem prévio despacho na Ilha de Moçambique, os diversos portos moçambicanos, mandavam estabelecer alfândegas nesses portos e diminuíam sensivelmente os direitos sobre o comércio. Esta legislação fora promulgada sobre um «plano e regulamento de comércio» proposto pelo vice-rei da índia, D. Frederico Guilherme de Sousa, e que já o governo interino antecessor de Melo e Castro combatera. O governo da Capitania-Geral considerava tais providências nocivas à boa arrecadação das receitas alfandegárias, lesivas da Fazenda e, sobretudo, um golpe mortal nos negociantes estabelecidos na Ilha de Moçambique. Era-o, sem dúvida, e um cronista tinha, muito provavelmente, razão quando dizia que um dos efeitos desta legislação seria despovoar-se a capital moçambicana. Hoje, todavia, a questão aparece como muito discutível e pode perguntar-se se o comércio dos diversos portos e rios de Sena não foi prejudicado pelo obstrucionismo de Melo e Castro, que, parece, só beneficiava os intermediários estabelecidos na capital. Por outro lado, não há dúvida de que o «plano e regulamento» de D. Frederico praticamente fazia de Moçambique uma simples exploração 132 dos negociantes de Goa, Damão e Diu, uma dependência económica da índia. No que respeita a Lourenço Marques, o general António Melo e Castro melhorou consideràvelmente o estabelecimento O e, em 9 de Agosto de 1789, comunicava para Lisboa que a fortaleza estava mais acrescentada, tendo já quartéis, capela e armazéns. Seria, então, por este período, entre Agosto de 1786 e Agosto de 1789, que o efectivo do presídio numerou duzentos homens, se a notícia dada pela descrição anónima merece crédito. Provavelmente, essa força extraordinária ter-se-ia reunido com a vinda do novo governador do estabelecimento, Joaquim José da Costa Portugal, que traria consigo numeroso reforço para conclusão da fortaleza. Ignora-se a data da vinda deste governador, mas é certo que em Julho de 1787 já ele estava na baía e nela permaneceu até à morte, em 6 de Março de 1789. Em todo o caso, por fins de Novembro de 1789 o presídio não numerava mais de 74 homens, a saber: o governador, dois tenentes, um sargento, um furriel, dois cabos, um tambor e 41 soldados do Regimento de Infantaria; um furriel, um cabo e 11 soldados do Corpo de Artilharia; cirurgião, capelão, escrivão da feitoria e oito lascares marinheiros, capitaneados por um piloto. É Nogueira de Andrade quem nos fornece esta lista, dando-nos, com ela, uma pintura do estabelecimento que desdoura a de Melo e Castro: «A fortaleza não é mais que um quadrado, formado de grossas estacas e faxinas já bem podres, as quais (') «Fortificou Lourenço Marques», diz Costa Mendes no seu Catálogo. Bordalo diz que no tempo de Melo e Castro, em 1787, ficou concluída a fortificação de Lourenço Marques. 133 cercam a capela, os quartéis e o armazém que cobre o presídio... Não presta a fortaleza, porque um reduto mal construído e formado de estacas e faxinas já semipodres, não merece aquele nome. Não prestam os quartéis, pela sua mesma situação, dentro daquele baixo valado, formado no lugar mais alagadiço e menos sadio. Não presta o presídio, porque é muito pequeno e é composto apenas de 70 homens por todo, os quais em breves meses ficam reduzidos a 25, pelos descontos dos falecidos e doentes.» Em 1795, a guarnição era de 64 homens e a bataria montava seis bocas de fogo. Ainda desta vez não conhecemos o lugar exacto do estabelecimento. Cremos, porém, que seria já onde se encontram agora os restos da praça de Nossa Senhora da Conceição. Num ofício do general Meneses da Costa para o ministério, diz-se que a fortificação ficava a três quartos de légua da «ponta de Mpfumo», isto é da Ponta Vermelha. Esta medida ajusta-se bem à distância entre a praça e a Ponta Vermelha. Que razões teriam levado a preferir este lugar ao primitivo, o da antiga feitoria holandesa, ignoramos. Tanto quanto nos parece, as vantagens da segunda posição seriam maior proximidade do fundeadouro, facilitando-se assim as comunicações com os navios, e vista da baía mais descoberta e extensa. Não temos mais notícias do estabelecimento, quanto ao efectivo do presídio e instalações, até aquele fatídico dia 26 de Outubro de 1796. O presídio numerava, então, 80 homens C1), com três oficiais além do capitão de infantaria João da Costa Soares, governador: eram (') Este número é dado por McCall Theal, obra citada, o qual diz, menos correctamente, que essa guarnição era excepcionalmente forte. Como vimos, em 1789 a guarnição compunha-se de 74 homens. 134 o tenente Cláudio António Marques, comandante do destacamento, o tenente Feliciano José Pinto e o alferes Joaquim José Rodrigues. As instalações tinham melhorado apreciavelmente e a feitoria aparece-nos, então, construída de madeira. Havia, porém, três anos que fora declarada a guerra entre Portugal e a França. A Capitania-Geral achava--se exposta ao maior poder naval dos Franceses estabelecidos em Madagáscar, Maurícias e Reunião. Nos primeiros tempos, todavia, eles pouparam-na. Convinha-lhes a simpatia da gente de Moçambique, a cumplicidade ou o descuido que permitia aos seus navios virem à costa moçambicana carregar escravos para as suas plantações e engenhos açucareiros. Limitavam-se a apoquentar a navegação comercial, com unia ou outra proeza de pirataria. Nos fins de 1796, porém, iniciaram francos ataques aos nossos portos. Em Setembro, apareceram em Inhambane; em princípios de Outubro, no Ibo e na Querimba. Saíram-se mal dum e doutro ataque — e, em especial, a defesa das ilhas de Cabo Delgado foi enérgica e valorosa. Em Lourenço Marques, porém, foram mais felizes. A 26 de Outubro, entraram no Espírito Santo uma fragata e um lugre, armados em guerra. Outra fragata fundeou na barra, em apoio e decerto, também, à espera de alguma presa. No presídio, os nossos, «pouc os e c o rt a dos da doença», como diz Bordalo, reuniram conselho e concordaram em que a resistência era impossível. Aos primeiros tiros dos Franceses, a guarnição evacuou a feitoria, espalhando-se pelas povoações sertanejas. Os atacantes desembarcaram à vontade, saquearam e incendiaram o estabelecimento. Após uma semana escondida pelo mato, a guarnição, sabendo que o inimigo retirara, voltou à feitoria em ruína e aguardou 135 o navio da carreira. Este veio em Maio de 1797 e reconduziu a Moçambique aquela mesquinha e torturada gente. Oficiais e soldados apresentaram um requerimento colectivo pedindo a mercê do perdão, alegando que não se haviam batido por não terem meios de resistir e oferecendo-se para reocuparem a posição perdida. Uma vez mais se subvertera, desastrosamente, o estabelecimento português em Lourenço Marques e se deixava abandonada a famosa baía — calcanhar de Aquiles da velha descoberta e conquista de Portugal nesta costa africana... Desta vez, o estabelecimento durara doze anos. Que se passara, entretanto, nele? Nogueira de Andrade legou-nos uma vigorosa evocação das condições do estabelecimento em fins de Novembro de 1789 ( 1 ). O seu vigor, porém, é o do polemista — toda a sua Descrição do estado em que ficavam os negócios da Capitania de Moçambique é mais um panfleto que uma crónica. «Escritor mordaz que tem sempre a sua espada desembainhada», assim D. Frei Bartolomeu dos Mártires, que foi prelado de Moçambique, qualificou Jerónimo José Nogueira de Andrade. Ao lermo-lo hoje e ao verificarmos quanto, tantas vezes, se enganou nas suas deduções e previsões, sentimos que esse homem, sem dúvida inteligente e culto, tivesse sacrificado tanto à mordacidade, à maledicência sob a capa da moralidade, e a um derrotismo exasperado de azedume. Mais que o panorama de miséria, de incompetência e de corrupção que (1) Documentos, 3." ele se industriou, com inegável engenho, em colorir — o que nos desgosta é o seu tom, em que não há um vislumbre de simpatia e compreensividade, e a suficiência tantas vezes impertinente das suas críticas. Para ele, em Lourenço Marques, nada prestava. Vimos já como não prestava a fortaleza, nem os quartéis, nem o presídio. Os governadores não faziam senão consumir cabedal da fazenda de Sua Majestade, incompetentemente, em obras mal feitas e inúteis. Urna das recomendações do tenente Testevim para o governo do presídio era «não saber fazer mais obras nem maiores despesas». Pessoas e títulos aparecem-nos ridicularizados: o cirurgião, «cuja ciência consistia apenas na patente de cirurgião-mor da capitania de Lourenço Marques»; o capelão, «que o bispo prelado de Moçambique animava com o título de vigário paroquial e da vara»; o piloto, “também graduado com a patente honorária de tenente do mar». O governador era escravo dos régulos, recebendo deles ultrages e não podendo mais que procurar congraçá-los por meio de tributos e presentes. Era um mau estabelecimento, mal começado, sorvedouro da Fazenda e que não trouxera qualquer benefício ao comércio moçambicano. Previa que a expansão holandesa acabaria por absorver não só o porto de Lourenço Marques como o comércio de Inhambane. Se a conservação do estabelecimento importava a Sua Majestade, havia só um meio: vir de Portugal uma expedição com “engenheiros, artífices competentes, braços para o trabalho, ferramentas, alguma cal e guarnição militar». Se não, seria melhor levantar o presídio e mandar um só navio de Moçambique fazer anualmente o comércio de Lourenço Marques, embora ele duvidasse de se encontrar alguém que o quisesse fazer, vista a concorrência dos estrangeiros. 136 137 Tudo isto, e o mais que ele nos conta, seria muito verdade — era-o, com certeza, em grande parte. Mas havia nessa verdade uma outra força e um outro sentido, que escaparam a Nogueira de Andrade — e, todavia, esses é que importavam, porque neles se continha o destino e por eles se fazia a história... Não veio expedição nenhuma de Portugal. Mas, felizmente, também ninguém seguiu o preceptoral conselho de Nogueira de Andrade. O estabelecimento de Lourenço Marques foi mantido, através da miséria, do sofrimento, do gasto de dinheiro e de vidas — mantido apesar da miséria, do sofrimento, do gasto de dinheiro e de vidas... Foi o sentido deste apesar de que faltou à inteligência e à sensibilidade de Nogueira de Andrade — o sentido da sustentação e da continuidade, desse heroísmo surdo e tenaz, embora sem ostentação e sem brilho, que é o do esforço desesperado para a sobrevivência à pobreza pecuniária, às privações, à insanidade do lugar, à fraqueza inerme e à ronda dos inimigos. Houve muito gasto de dinheiro e de gente... Com a expedição inicial e o reforço de João Henriques de Almeida, gastaram-se 22.999$127 réis. Até Agosto de 1785, a Fazenda havia dispendido, com as expedições a Lourenço Marques, 35.728$000 réis. Em 1787, as sete expedições tinham consumido 63.134$315 réis. Em 1790, os gastos totais com o estabelecimento ascendiam a cento e sessenta contos. Não sabemos quanto mais, ainda, a Fazenda gastou até o ano de 1801 — mas não há dúvida de que ela recobrou, com usura, o cabedal e capital que investiu no estabelecimento... As vidas, essas, não as recobrariam mais aqueles que as perderam — penhores, para todo o sempre 138 alienados, da Ocupação... Não sabemos quantos foram. Um deles foi o terceiro governador, D. Diogo de Souto Maior. Outro, o quarto governador, Joaquim José da Costa Portugal, que aqui perdeu a mulher e um filho e, depois, acabou ele também, «deixando ao desamparo cinco filhos menores, além de uma filha já em idade de tomar estado», conforme comunicou, em ofício para Lisboa, o capitão-general... O comércio não floresceu. Em 1784, os «sócios da negociação» de Lourenço Marques compraram, apenas, 25 bares de marfim. Em Agosto de 1785, o negócio melhorara: 45 bares. Julgamos que a companhia se dissolveu, em 1787, termo dos seis anos por que se obrigara a sustentar a exploração comercial da baía. Realmente, registou-se por esse ano o clamor dos negociantes, queixando-se de que o comércio de Lourenço Marques os arruinava. No entanto, esse comércio recebeu, em 21 de Julho de 1787, novo benefício pautai, pela aplicação das provisões régias de 5 e 19 de Abril de 1785 que determinavam a redução geral dos direitos. Para o porto de Lourenço Marques, os direitos, que eram 8%, ficaram, então, em 6% apenas ('). Atribui-se esta magreza do negócio à concorrência dos estrangeiros, em especial, se não exclusivamente, dos Ingleses de Bombaim. Estes faziam não só a política dos preços altos e dos ostentosos saguates como, também, pelos agentes que infiltravam em terra, a propaganda da liberdade do comércio ( 2 ). Induziam os indígenas a não obedecer à recomendação de só comerciarem com os Portugueses e a (') (2) Voltaram a 8% em virtude da ordem régia de 17 — Junho— 1801. O comércio só foi proclamado livre aos estrangeiros em 1853. 139 reclamarem o direito de tratar com os negociantes de outras nações. K ao há dúvida de que o comércio português havia de sofrer apreciavelmente desta concorrência. Mas acreditamos, também, que o desapontamento dos negociantes seria, em parte, a inevitável contrapartida do optimismo com que, desde sempre, a riqueza das terras de Lourenço Marques teria sido estimada., 'Quando hoje lemos o louvor da fartura dessas terras por frei Francisco de Santa Teresa, ficamos perplexos. Ou tudo mudou muito de então para cá, desde a fertilidade das terras e a regularidade das chuvas em todos os quartos da lua até à aplicação dos indígenas ao trabalho agrícola e à caça — ou o frade deixou-se / transportar por aquele fácil e tão nosso conhecido/ entusiasmo dos Portugueses... Assim, também, se julgara que o ouro do Monomotapa era infinito (1). Assim, também, se haviam julgado pródigas as minas de prata da Chicoa. E assim, até, se haviam proclamado os ares de Sofala «mais lavados» que os de Sintra ( 2 )... Não temos nem nunca se terão, provavelmente, dados que permitam comprovar esta nossa presunção. Os cálculos do que a baía de Lourenço Marques poderia render, em marfim e outros produtos, obviamente não se fundavam em mais que informações dos indígenas. A parte os adjectivos de frei Francisco, desde as couves «grandecíssimas», as galinhas «grandes» até às pontas de abada com sete palmos de comprido; e apreciações imprecisas, como a da descrição ( ' ) Sofala, «dove e atiro infinito». Assim escrevia El-Rei D. Manuel, em 1505, aos Reis de Castela. (2) Carta de Duarte de Lemos a El-Rei, 1508: «Da saúde da gente de Sofala, Deus seja louvado, é mais são que Sintra». 140 anónima: «estes dois rios, pelas minhas observações, deitam de si em marfim, ouro, ponta de abada e dentes de cavalo marinho mais de doze embarcações anuais»; temos um cálculo concreto, por Nogueira de Andrade: a baía podia render, anualmente, mais de duzentos bares de marfim. Talvez assim fosse, mas os números que se conhecem, dos Holandeses e nossos, ficam muito aquém dessa abundância, mesmo quando dobrados ou triplicados à conta da concorrência estrangeira... A desilusão dos Portugueses ratificava a dos Holandeses, sessenta anos antes — e, nos anos subsequentes, enquanto dependeu da simples exploração comercial do marfim obtido por caçadores indígenas com as suas armas originais, a vida do presídio de Lourenço Marques foi sempre difícil e pobre. Poucos episódios conhecemos da actividade dos estrangeiros na baía, durante este período. Em 1783 e 1784, parece que ela foi intensa, a deduzir do ofício do conselho governativo de 19 de Agosto de 1785, e já vimos a informação de frei Francisco, referida aos anos proximamente anteriores a 1782: seis ou sete navios concorriam, anualmente, ao tráfico dos rios Maputo e Incomáti. Só em 1787 temos notícia concreta da vinda à baía de um navio holandês, posto que Nogueira de Andrade nos informe de que os Holandeses do Cabo enviavam aqui um navio, quase todos os anos. A propósito, cremos que Nogueira de Andrade atribuiu às expedições terrestres dos Holandeses objectivo diferente do que elas realmente teriam. Supõe-as ele uma manobra para desviar, pelo interior, o comércio dos portos de Lourenço Marques e Inhambane. O verdadeiro fim, porém, destas expedições em que figuravam «naturalistas» era, antes, a procura das minas 141 de ouro que sempre haviam sido a mira do estabelecimento holandês no Cabo. A entrada no porto, em 8 de Junho de 1787, do navio holandês A Pérola parece ter sido meramente acidental, se é que o seu capitão, C. Int Anker, escrevia a verdade. O navio fora obrigado a arribar, quando, em viagem de Ceilão para o Cabo, o temporal o desviou da sua rota, atrasando-lhe a marcha, e os mantimentos de bordo rarearam. Joaquim José da Costa Portugal, que então governava a baía, prometeu toda a/assistência mas proibiu, de acordo com as ordens que tinha, as compras directas aos indígenas. O capitão Anker não respeitou a proibição, queixando-se de que a feitoria lhe exigia preços exorbitantes — por exemplo: um boi que adquirido directamente aos indígenas custava uma peça de pano, no valor de -duas piastras e meia, era-lhe vendido pela feitoria a quinze piastras... Então, infringindo as ordens do governador, armou em terra tendas, para negociar com os indígenas. Costa Portugal tomou atitude enérgica, intimando severamente o capitão do navio a levantar as tendas e a abster-se de trato com os indígenas, ameaçando-o de que a isso o obrigaria pela força. A Pérola não teve mais remédio que sair da baía. Estes modos do governador dão relevo à informação de que, por esta data e como já vimos atrás, a guarnição era excepcionalmente numerosa. O incidente ilustra, também, a disposição dos régulos quanto ao cumprimento do exclusivo português do comércio. O capitão holandês garantia que o Matola e o Tembe «absolutamente» queriam que ele comprasse os géneros aos seus súbditos; eles próprios lhe haviam indicado os lugares onde implantar as tendas e, agora animavamno a que as não desmontasse. 142 Outro episódio da frequência da baía por estrangeiros é o dos pescadores de baleias. Foi em Junho de 1789 que pela primeira vez deram por eles, na feitoria. Eram dois navios de três mastros, um de quatrocentas, outro de seiscentas toneladas. As pequenas embarcações dos harpoadores andavam na sua lida por “toda a baía, desde a ilha do Magaia até à ponta de Mafumo», como o general comunicava para Lisboa — isto é, desde a Xefina até à Ponta Vermelha. Quanto à nacionalidade, o governador e o oficial por ele mandado reconhecer os navios ficaram intrigados: o pavilhão era francês mas as tripulações, quinze homens em cada navio, falavam inglês. Mais tarde, soube-se que os navios vinham armados de Dunquerque mas, a despeito do pavilhão e passaporte franceses, eram de «ingleses europeus ou americanos». Nos documentos que tratam deste assunto, afirma-se que a pescaria de 1789 foi a primeira mas é provável, como já observámos, que essa actividade viesse duma data mais remota. Em 1790, apareceu um novo navio, em Maio, que declarou aguardar a chegada dos dois que já tinham vindo no ano anterior. A estação de pescaria era o trimestre Junho-Agosto. Em 1791, há nova notícia dos baleeiros e, embora nada mais se conheça sobre eles, não há dúvida de que a sua actividade se prolongou por muitos anos, mesmo até depois do completo fracasso da montagem dessa indústria por João Pereira de Sousa Caldas, em 1818. De Franceses, só temos notícia da vinda, em som de guerra, em Outubro de 96. É provável que não frequentassem a baía, preferindo os portos do norte onde os negreiros trabalhavam por conta deles, fornecendolhes fáceis e copiosos carregamentos de escravos. Concorrência comercial, propriamente, era a dos Ingleses de Bombaim. Sabemos já como eles ope143 ravam, disfarçando-se sob pavilhão e passaportes portugueses. A legislação de 1786 favoreceu-lhes a fraude. E já vimos, também, como a sua sombra começava a alongar-se da baía pelo sertão dentro — primeiros ensaios da manobra que, em 1822 e 1823, o capitão da Armada britânica Guilherme Fitz Owen desenvolveria, cavilosa e indignamente, traindo a confiança, que lhe fora concedida. O facto mais interessante desta segunda ocupação portuguesa de Lourenço7 Marques foi, porém e indubitavelmente, o primeiro gesto de uma política de posse territorial e de avassalamento das populações. Em 1792, houve uma revolução nas terras do Tembe. Era um ano de fome e Capela, o régulo, tentou apoderarse dos mantimentos dos seus súbditos. Estes.levantaramse contra ele, houve uma tentativa de regicídio e, por fim, Capela foi deposto e substituído por um irmão. O governador Pedro Testevim parece que se limitou a relatar o facto para Moçambique. Mas o seu sucessor, Luís Correia Monteiro de Matos, imiscuiu-se na questão e (não sabemos por que artes; o único documento a tal respeito diz-nos, apenas, que para isso ele «concorreu com algum dispêndio seu») repôs no trono o Capela. Este, reconhecido, doou à Coroa de Portugal parte das suas terras. Aos 10 de Novembro de 1794, na povoação de Massangana, o escrivão da feitoria João Gonçalves de Sequeira lavrou o auto da doação, que foi assinado pelo governador interino José Correia Monteiro de Matos, comandante do destacamento, e pêlos oficiais, sargentos e soldados ali idos para o acto, e ornamentado com os sinais do régulo e seus conselheiros. As terras doadas eram: «de princípio de Massangana de parte de SE até à distância de uma légua beira-mar de parte de O, e de largura pela terra 144 dentro de um quarto de légua». Capela declarou que «os habitantes da referida terra doada à Coroa de Portugal seriam sujeitos e subordinados ao governo da baía, e que podia pôr e dispor como limites da nossa soberana Bainha de Portugal» ( 1 ). Para assinalar a posse dessas terras, veio de Moçambique um padrão com as armas de Portugal ( 2 ). Em Junho de 1795, o novo governador, João da Costa Soares, ao receber as fazendas e mais efeitos da feitoria, mencionava «os três dentes de marfim que deram, um o rei Matola deposto, outro o actual rei Manhice, e outro o rei Capela, todos do peso de quatro arrobas e dezasseis arráteis». Parece-nos, no entanto, incorrecto considerar estes dentes como um tributo dos régulos. Não eram mais, cremos, que os simples presentes habituais — de resto, em troca dos recebidos. Era cedo, ainda, para imposições de tributo. Em Fevereiro do ano seguinte, 1796, nem mesmo os habitantes das terras doadas estavam tributados. De facto, em 10 de Fevereiro, o governador relatava para Moçambique a conversa que tivera com o Capela. Falara-lhe da «vassalagem e reconhecimento que deviam ter a El-Rei de Portugal os moradores ou colonos da terra doada». Capela, hábil e diplomaticamente, respondeu que «já não tinha domínio na coisa doada»; portanto, propusesse o governo «os ónus que fossem úteis». (1) O auto vem na Memória apresentada pelo Governo Português, documento n.° 8o. Ë assinado, além de pelo governador interino, por Luís José, alferes; Pedro Semião, sargento; João António Gonçalves, Joaquim José Mascarenhas, Francisco Xavier da Fonseca, João José, Salvador Leite Pereira, Rodrigo de Carvalho, José de Figueiredo. ( 2 ) Ignoramos se o padrão chegou a ser colocado. Em 1823, num inquérito nas terras do Tembe, pelo governador Lupe de Cardenas, já em consequência das diligências do capitão Owen, perguntou-se ao régulo e seus grandes pelo padrão. Responderam que «estava enterrado e guardado, porém que estava em casa e seguro»; não o mostravam nesse dia por ser tarde; mas em qualquer outra ocasião o fariam (veja-se Memória, etc., documento 34). 145 Era uma hesitante, tímida experiência, que provavelmente não teria consequências, ainda quando não fosse cortada pelo ataque dos Franceses em Outubro desse mesmo ano. A ideia do domínio total não se formulava ainda como princípio da expansão e acção ultramarina nem como expressão de direito de «posse». Não sabemos se Luís Monteiro de Matos agiu de sua livre iniciativa, se sob instruções do capitão-general. No regimento dado ao oficial que em 1799 veio reocupar a baía aconselhava-se a intervenção nas questões intertribais, procurando-se, assim, captar o reconhecimento do régulo ou régulos favorecidos. Em qualquer caso, porém, o que se pretendia desse reconhecimento não era uma vassalagem, mas sim um apoio contra estrangeiros. De resto, o regimento definia expressamente o espírito da ocupação, acentuando que o seu “principal e imediato objecto era a segurança da possessão do comércio privativo dos limites de uma costa que pertence a Sua Majestade Fidelíssima». Era, pois, ainda pela fórmula «descoberta, comércio e navegação» que se definiam a política e o direito coloniais. A escola de D. Francisco de Almeida prevalecia sobre a de Afonso de Albuquerque... Os historiadores nacionais têm ofuscado, ao clarão de Albuquerque o Terríbil, a figura desvalida do infeliz primeiro vice-rei português da índia. Permitimo-nos, contudo, julgar que a escola de D. Francisco exprimia, mais e melhor que a de Albuquerque, o verdadeiro génio nacional e as inspirações originais portuguesas. Não era, como tantas vezes parece insinuar-se, por desculpas de fraqueza ou por habilidades de diplomacia e jurisprudência, que nas contestações internacionais Portugal invocava o direito de soberania pelos factos da «descoberta, da navegação e do 146 comércio». Era porque, realmente, esse direito reflectia o código político e moral do génio português. Uma luminosa ilustração desse código é a discussão travada ao planear-se a expedição, em 1570, de Francisco Barreto ao Monomotapa: a proposta de se tomar pura e total posse das minas foi repudiada como insulto aos homens e desafio a Deus. A escola de Albuquerque só vingou no espírito português quando a ameaça estrangeira no-la apontou, como um salteador de estrada a clavina ao viandante. Fomos forçados a adoptá-la em face da invasão europeia e a aceitá-la quando, inspiradas pelo génio anglosaxónico e germânico, as conferências de Berlim consagraram a fórmula de ocupação e dominação efectivas como conceito da política colonial e fundamento do direito internacional colonial. A escola de Albuquerque venceu, assim, o génio português — mas dir-se-ia que o não convenceu... Ao olharmos, hoje ainda, o panorama de Moçambique — os núcleos populacionais predominando no litoral, a balizarem a linha do mar; a forte percentagem, no conjunto da população portuguesa branca, de funcionalismo; a negação do capital português ao investimento no lugar, mantendo-se na linha da exploração comercial a distância, a mesma linha do absentismo dos antigos senhores de prazos; a economia nitidamente mercantil, com as suas duas formas dominantes dos grandes fornecimentos ao Estado e do pequeno comércio cantineiro com os indígenas; o frouxo ritmo da imigração e, sobretudo, o seu carácter (a procura de um modo-de-vida feito, preferivelmente o emprego do Estado, o propósito da torna-viagem, o sonho das economias para comprar uma casinha ou um campo lá na terra) — acaso este panorama não reflecte o velho espírito marítimo-mercantil? 147 Não há dúvida de que, desde há alguns anos, se pronuncia e se intensifica uma modificação dos elementos deste quadro. Mas a persistência, a resistência do sistema, dos processos e dos hábitos iniciais, mostra bem quão fundas raízes eles têm no génio da raça. Como quer que seja, ao iniciar-se o século que ia ser o da invasão e partilha da África era ainda a concepção tradicional do senhorio do comércio, com as fortalezasfeitorias em estatuto de extra-territorialidade, que inspirava o conceito português de «ocupação». Só em meados de 1799 Lourenço Marques foi novamente ocupada, por diligência do capitão-general Francisco Guedes de Carvalho e Meneses da Costa. A reocupação foi, verdadeiramente, um acto desesperado. A Capitania-Geral achava-se em situação perigosa. Não havia gente, não havia navios, nem dinheiro, nem fazendas e estava-se em guerra com os Franceses. O capitão-general viu-se obrigado a diferir, por quase dois anos, a expedição a Lourenço Marques. Realmente, logo que tomara o governo da Capitania, Meneses da Costa nomeara novo governador (1) (') Era o oitavo governador: 1.°, Joaquim de Araújo, nomeado em 25 — Novembro—1781; faleceu no posto em 6 de Julho de 1782. Interinato do tenente Manuel António até Noverhbro de 1782. 2.°, tenente João Henriques de Almeida, nom. ? ; veio em Novembro de 1782 ; em Junho de 83 levantou o estabelecimento, retirando para Moçambique. Expedição frustrada de João Manuel Correia, ignorando-se se houve nomeação de governador. 3.°, capitão D. Diogo António de Barros Souto Maior, nom.?; veio em Agosto de 1785 ; faleceu no posto em data que desconhecemos. Interinato do tenente Pedro Festevim. para a baía — o tenente Luís Correia Monteiro de Matos — e organizara a expedição. Em 12 de Dezembro de 1797, comunicou para o Reino estas providências. Sobreveio, porém, o levantamento do xeque da Quitangonha e o general não pôde dispensar Monteiro de Matos, a quem teve de confiar o comando das operações. Isto, a carência de soldados e a irregularidade, em virtude da guerra com a França, da navegação comercial da índia (o que perturbava o reabastecimento da Capitania em fazendas para pagamentos e negócios) sustaram a expedição. Só em 1799 foi possível reconsiderar o projecto e, mesmo assim, houve que reduzi-lo a proporções mínimas: um pequeno destacamento, sob o comando do tenente Luís José, aprovisionado para um ano e com tão poucas fazendas de negócio que seria necessário dar, aos régulos, explicações de tamanha pobreza — conforme o general insistia nas instruções que, em 5 de Fevereiro, deu ao comandante O. Era uma improvisação temerária, uma aventura imprudente — gesto desesperado, nascido das torturas da pobreza e das impotências da fraqueza... O general Meneses da Costa esperava que o desta4.°, Joaquim José da Costa Portugal, nom. ? ; estava já em exercício em 8 — Junho — 1787 ; faleceu no posto em 6 — Março — 1789. Interinato do ten. André Avelino. 5.°, tenente Pedro Testevim, nom. fins de 1789 ou princípios de 90; estava ainda em exercício em 6 — Junho — 17926.°, Luís Correia Monteiro de Matos, ignoram-se as datas. Interinato de José Correia Monteiro de Matos que em 10 de Novembro de 1794 já estava em exercício. ~.°, capitão João da Costa Soares, nom. ?, já no posto em 16 — Junho — 1795 ; abandonou o presídio, em frente aos Franceses, em Outubro de 1796, retirando em Maio de 1797 para Moçambique. 8.°, Luís Correia Monteiro de Matos, nom. ? (já em Dezembro de 1797); ignoramos se chegou a entrar em exercício ou se foi, em 1800, substituído por Luís José que em princípios de 1801 fora já promovido a capitão. (') 148 Documentos, 5.° 149 camento embarcaria em Fevereiro e que no mês seguinte já poderia dispensar o governador e expedir, com ele, o completo da guarnição. Mas ainda assim não pôde ser e só em 7 de Junho o tenente Luís José chegou, com a sua pequena força, à baía de Lourenço Marques. Uma vez aqui, Luís José procurou negociar com o Matola a reocupação. O régulo, porém, mandou-lhe dizer por Litungo, um dos seus filhos, que «enquanto estava em guerra não recebia milando». Assim, não tendo dele autorização para reocupar o local do anterior estabelecimento, o tenente Luís José instalou um posto provisório nas terras do Tembe e aí arvorou a bandeira. Ainda nesse ano ou princípios de 1800, o presídio reocupou a posição na margem norte da baía. Ao fechar o século, temos esta imagem do estabelecimento: uma casa para o comandante do destacamento, um armazém, seis casas redondas para os soldados e outra para cozinha, tudo cercado por vedação de caniço com porta voltada à barra e em cujo lado -direito se levantava o pau de bandeira; fora da vedação, residiam, em palhotas, os oficiais mecânicos e dois degredados. Certamente, o destacamento inicial fora, entretanto, reforçado com soldados e artífices. E os dois degredados representam o início da colonização das terras da baía de Lourenço Marques... Desta vez, era decisivo: o estabelecimento permaneceria, definitivamente, e a soberania de Portugal firmava-se, para todo o sempre. Assim acaba a história do descobrimento e fundação de Lourenço Marques. 150 * Ao longo de três séculos, o destino português da baía de Lourenço Marques debatera-se entre descobrimento e esquecimento, conquista e abandono, esforço e descuido — uma «curva» bem portuguesa... Agora, esse destino fixava-se — e há no facto certa ironia, pois nunca antes as circunstâncias tinham parecido menos propícias e menos capazes: a extrema penúria do Estado moçambicano, a diminuta guarnição, sem governador, envergonhada perante os indígenas da sua pobreza, inerme e isolada aquém de um mar dominado por inimigos, naquele postozito provisório das praias do Tembe. Esta ironia desarma a crítica e não deixa que se retire desta história uma lição, uma moralidade — se é que das histórias da História se pode, alguma vez, tirar alguma. Nesta revista de três séculos vimos perpassar o génio português, carregado de todos os seus defeitos e de todas as suas virtudes: imprevidências e desleixos, superados por sacrifícios e improvisações audazes e industriosas; apatias e cansaços, resgatados por assomos perdulários de determinação e energia... Inútil admoestar, inútil preleccionar sobre os defeitos— inútil querer exorcismar esses demónios... Nunca poderemos expulsá-los de nós! E o que importa, verdadeiramente, não é que eles continuem em nós como estavam nos homens que nos deram esta história. O que importa é que nos mantenhamos, como esses homens, capazes das mesmas superações e dos mesmos resgates. Assim Deus nos ajude. 151 DOCUMENTOS 1.° Lista da Navegação de Moçambique até o rio de Lourenço Marques e dos baixos que há no caminho e tempos que cursam em cada monção, e do que fizeram os Ingreses no dito Rio. Partindo de Moçambique se dará resguardo aos baixos de Mogincalle que estão da terra firme meia légua, e outros ao mar três léguas e por entre uns e outros podem passar navios de pouco porte e até 500 candis; e dos de mais porte passarão ao mar dos baixos dando resguardo ás ilhas e coroas, e restingas de Angoxa até á ilha do fogo, que está de fronte de um rio que se chama Tendamagi, terras de Mosolongo (Morólongo). As embarcações que quizerem ir por dentro navegarão até á barra d'Angoxa de dia, e não podendo desembocar as ilhas surgirão com de dia até a manhan defronte de Angoxa, ao mar defronte de uma restinga e uma coroa que está antes da ilha, "norte sul delia, e de madrugada se levará chegando-se á ilha, e tomará seis e sete braças e assim irá á barra de Inhantine costeando sempre as ilhas e coroas e restingas, e são 3 restingas, 3 ilhas e 3 coroas e em todas ha canal para sair ao mar se quizer, o entrar do canal é de 5 e 6 braças o mais baixo delle. Desta barra de Inhatinga se chegará á terra e não ás 4 ilhas que estão ao mar com outras 4 coroas e 4 restingas e assim irá correndo ao longo de uma serra muito alta até o rio de NOTA. — Esta Lista foi publicada por G. Pereira em Roteiros portugueses da viagem de Lisboa á índia nos séculos X V I e XVII, edição da Sociedade de Geografia de Lisboa, 1898. 155 Moma ; que no cabo da serra faz um matto grande de umas arvores como pinheiros; aqui na boca deste rio se afastará para o mar até 7 braças e por ellas irá correndo até passar as ilhas todas e irá correndo todo o parcel por 7 e 8 braças indo por este fundo em muitas paragens não verá terra por ser muito baixa, mas indo por este fundo não tem restinga nem baixo de que se temer até á barra de Sofalla na qual, querendo entrar, irá surgir defronte dos palmares da banda do norte em 6 braças e menos. Navegando desta barra de Sofalla para o cabo das Correntes irá na volta do sul e sempre com o prumo até haver vista das ilhas de Basaruto por a costa ser muito suja dê muitos baixos e coroas, e defronte de Inambane ha terra, légua da barra está uma coroa com uma restinga que se vê, e ao mar 5 ou 6 léguas está outra coroa alagadiça que ás vezes se o tempo é brando não apparece nem arrebenta. Este caminho quem no atravessar de Sofalla não navegará nelle de noite se não for muito experimentado nelle, e querendo entrar nas ilhas de Basaruto o poderá fazer porque ha entre ellas canaes de 7 e 8 braças até abarbar com a ilha mas para Ibo sendo náo grande surgirá na ponta da ilha da banda de dentro ao norte, e mandará sondar os canaes e então entrará. Partindo destas ilhas para o rio de Lourenço Marques não tem baixos nem restingas nem coroas de que se temer e as aguas tiram sempre caminho do sul e do sudueste com gram fúria, e não ha nesta costa fundo senão em algumas partes e muito perto de terra, e tão perto que uma légua da terra se acharão 30.40 braças, salvante a barra do rio de Inhambane, ao qual darão resguardo até á ponta do cabo das Correntes que estará a 10 ou 12 léguas do Rio de Inhambane e tanto que o dobrarem não verão fundo se não depois que passarem o rio do ouro, e se forem mettendo para a enseada dos rios de Lourenço Marques; nos quaes poderão entrar da banda do norte, meia borda achegando-se mais á terra firme da banda do norte que á ilha que está á banda do sul, salvante depois de estarem dentro verão a bahia da Ilha que bota ao mar, e fugirão delia porque as aguas sempre correm com grande Ímpeto dos rios para fora, e se chegarão á ilha e a correrão de longo pêlo canal que está ao longo delia por 10 e 11 braças até uma serra muito alta que está na mesma ilha, que lhe fica em abrigo do ponente, em que estarão 10 e 12 náos muito seguras. Nestes rios pela experiência do tempo que nelles estive não 156 ha vento certo, e mais reinam nelles levantes que ponentes porque desde o mês d'agosto até o de março se ha um dia de ponente ha 6 de levante, e o ponente quando entra vem tão rijo que os próprios naturaes como elle venta não saem de suas casas fora, mas dura pouco porque logo salta no mar, que é o vento leste e lessueste. As náos que partirem de Goa por dentro o meu parecer é virem ver este porto de Moçambique e d'aqui se não afastem da costa mais que até 20.25 léguas até ás ilhas de Basaruto. E de ahi menos. E que por nenhum caso façam sua derrota entre a ilha de S. Lourenço e o baixo da Judia porque como é tempo de inverno e a terra bota de sy vapores arreceyo dar-lhe o embate dos terrenhos da ilha de S. Lourenço que naquella paragem ficam sendo sues e suestes, e é vento ponente, e que lhe dê muito trabalho o que não terão se forem cá ao longo da costa onde lhe não faltarão nordestes e nortes e alguns noroestes, e terão tal tento que como virem ventar o norte muito rijo é signal de terem ponente muito forte, e isto tenho visto muitas vezes por experiência. Assim lembro ás náos que tiverem trabalho á ida ou á vinda que seguramente podem entrar neste porto, porque nelle terão concerto se quizerem de mastros e de madeira; e de carnes e pescado e agua e alguns mantimentos. Assim lembro aos que se perderem destes rios para o cabo de Boa Esperança, se se perderem na terra dos fumos não larguem a praia até a ilha do Inhaca porque toda esta gente lhe é sujeita, e não lhe farão mal se vierem com resguardo, e nunca se dividirão em bandos por mais ódios que haja porque todos se perderão, e sempre obedecerão ao seu geral para terem vida e salvação certa, porque posto que são cafres sujeitos ao Inhaca que é nosso amigo, são mais inclinados a furtar que a faser esmolas. E nesta ilha do Inhaca terão que comer, e se d'ahi quizerem atravessar ás terras de Inhambane sempre lhe ahi leixam as embarcações do resgate em que o poderão fazer, e não achando embarcações se deixem estar, e não queiram dar volta á bahia como fez Manuel de Sousa de Sepulveda porque entre rio e rio os mataram todos por ser muito má gente e muito nossa inimiga. Os que se perderem alem da terra dos Fumos não virão ao longo da praia por ser despovoada, mas tomarão o sertão até 10 léguas da praia até virem dar num rio muito largo que se não vê a terra de uma banda á outra na barra, e tem duas ou 157 três ilhas no meio, chama-se o rio do Dandála, aonde os da náo Santo Alberto deixaram uma cruz. Correrão este rio de longo até acharem passagem no sertão e como o passarem tornarão a vir buscar a praia e darão logo em terra muito povoada e gente mais do Inhaca, e de mais conhecimento, mas muito falsa se puderem. As náos que se perderem fundar-se-hão em trazer cobres e panos grossos, e teadas e cotonias para seu resgate, e com isto lhe não faltará de comer, a pedraria ou dinheiro que trouxerem será cosido em alguma vestia com muitos remendos, porque são homens que como vem pano de Portugal com muitos remendos não fazem conta delle. Que em canudos e canas não vem bem, mas arriscado por disso terem já noticia e todas as partes por donde passarem dirão o meu nome que é Jeronimo Leitão, e em língua de cafre Inhale-fua. E com isto passarão seguros até o rio de Sofalla. Por nenhum caso os que se perderem nestas partes largarão as armas da mão, e com ellas virão, ainda que sejam poucos roncarão muito e farão todos os arteficios da guerra, e vigiarão a seu tempo com muita ordem, e sempre obedecerão ao seu geral e não se dividirão em bandos, porque fazendo o contrario logo serão perdidos, e nada lhe succederá bem, e todos acabarão mal. Todas as náos que a este porto vierem de Portugal poderão entrar nelle até o derradeiro de maio, e sairem logo em junho, porque da entrada de julho até á de setembro são todos os ventos que nesta paragem ventam sues e sueste e lestes que são travessões por onde as náos que a este porto vierem ou a sua altura neste tempo que digo, se batem caminho da ponta de -S. Romão. TITULO DO QUE ACHEI E VI E SOUBE NOS RIOS DE L O U R E N Ç O MARQUES DOS INGREZES Eu parti deste porto de Moçambique para os rios de Lourenço Marques em novembro de 97 (1597); e cheguei aos ditos rios em janeiro de 98, por ir em pangaio e me deter em Sofalla mais de um mez; e pela viagem em pangaio ser tão arriscada que nenhum tempo pode esperar no mar. E como lhe dá vento contrario é necessário metter-se em rio e arribar até. 168 E quem quizer bordejar se perderá sem falta. Depois de chegar aos ditos rios e entrar a bahia fui demandar a ilha e a casa da feitoria aonde habitasse no tempo em que ia fazer o resgate desta fortaleza, a qual casa achei cercada com porta de madeira de largura de uma braça muito forte com quatro baluartes mais fortes que o mesmo forte, e com uma cava de altura de mais de uma braça e tudo mui forte. Os negros da terra como souberam que eu era chegado me vieram logo ver, e me contaram das náos e dos ingrezes parecendolhes que éramos todos uns, mas logo na lingua os estranharam. Estas três náos depois de surtas no porto mandaram uma lancha a terra com 20 homens arcabuzeiros, tomar falla della, e uma peça de tamette vermelha e um roupão muito formoso de Londres, verde forrado de baeta roxa apassamanado, e um pouco de coral, azul, tudo de Sagoatte ao rey pedindo-lhe lugar para fazer uma casa e porem nella 200 homens, e gente sua para levarem comsigo á sua terra em signal de paz. Os negros que faliam alguns delles portuguez lhe perguntaram donde vinham, e elles lhes disseram pela lingua portuguesa que trazia que de Moçambique, ao que os cafres lhes disseram que como vinham elles aquella terra sem Jeronimo Leitão cuja aquella ilha era e os ingrezes lhe disseram que Jeronimo Leitão estava na náo, e com este engano se foram ao rey que mora da ilha mais de 12 léguas pelo sertão, e o rey os recebeu e lhes mandou dar vaccas e algum mantimento, e lhe deu 20 cafres em que entrava um filho seu, que fossem á náo e fallassem com Jeronimo Leitão e soubessem delle ao que vinha, e que aquillo parecia vir mais de guerra que de paz, e como amigo seu que era, e se queria fazer casa ou alguma cousa naquella sua ilha o podia fazer pois era sua, mas não para lhe fazer guerra, pois elle o tinha em conta de filho. E nesta jornada se passaram mais de 15 dias nos quaes elles fizeram o forte mas não de todo acabado. E os cafres em vindo se foram á feitoria que estava dentro no forte na qual os metteram com guardas sem mais os deixarem sair nem irem ás náos dizendo-lhe cada dia que Jeronimo Leitão estava nas náos e que viria, e com este engano estiveram presos desde março de 97 até o fim de junho da mesma era no qual tempo se perdeu na mesma ilha um navio pequeno de 500 candis, que com o vento ponente rijo deu á costa na ponta da ilha. Em companhia desta gente vinham dous homens que os 159 cafres conheceram serem da companhia de Nuno Velho Pereira os quaes desenganaram aos cafres, que fugissem que era mentira dizerem-lhe que Jeronimo Leitão estava na náo, que aquella gente eram ladrões. E logo ao outro dia de madrugada os cafres fugiram todos, e só alcançaram três em que entrou o filho do Inhaca, os quaes os ingleses levaram comsigo. E no mesmo tempo deu a doença nelles, que com muita pressa se embarcaram deixando muitos despojos e muita gente morta, uns enterrados, e outros por enterrar, e segundo os cafres dizem que foi peçonha que o seu rey lhe mandou dar, mas o certo não sei se foi peçonha se peste, mais que segundo os cafres diziam morreram perto de 300 homens. E elles embarcados se foram levando os três cafres comsigo na volta do nordeste sem rnais delles saberem mais que deixarem recado aos cafres que lhe não quebrassem o seu forte; o qual eu desfiz todo e entulhei a cava e fiz muitos serviços a Deus e a S. M. assim nisto que fiz, como nas pazes que tinha feito na morte de Manuel Malheiro, e paz e quietação da terra a que se o meu rey m'o não satisfizer Deus m'o satisfará porque em tudo fiz e usei e tenho usado como bom christão e bom vassallo, e querendo-se de mim tomar informação a poderá dar Nuno Velho Pereira, Fernão Telles, Ruy Pires de Tavora, e outros fidalgos e soldados velhos da índia. 2.° Plano, e relação da Bahia, denominada de Lourenço Marques, na Costa de Natal, ao norte do Cabo da Boa Esperança, junto ao Promõtorio da Latitude de 26 grãos, e não menos das terras adjacentes, seus habitadores, Reys, Rios, Comercio, Costumes. — Seu Autor Fr. Francisco de St.a Thereza. 1. Este Plano he tirado dos conhecimentos adqueridos pela própria asistencia, e posto que se não observem todas as medidas Geográficas, com tudo servirá para dar hua idea sobeja do sitio, e das passagens comigo acontecidas no decurso de vinte mezes, que tanto gastei, sendo Capelão da Tropa, que por ordem de Sua Magestade se foj apostar, e aquartelar em Destacamento na passagem propriamente chamada = B a h i a da Lagoa, que fica na boca do Rio de Santo Espirito, de que logo se tratará. 2. Aquella Enceada ou Bahia de Lourenço Marques, terá sete, ou mais legoas de boca, e parece boa a entrada, e pelo menos sem o perido demonstrável de baxos. O vento Sueste fas grande impresão n'aquella (sic) Golfo nos tempos de Inverno. O melhor abrigo para as Embar- NOTA. — Este documento é aqui transcrito duma cópia extraída em Coimbra por Alexandre Lobato e existente no Arquivo Histórico de Moçambique. O Plano e Relação de Fr. Francisco de Santa Tereza encontra-se no códice n.° 169 da Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra. Foi primeiro publicado pelo Dr. Augusto Mendes Simões de Castro, bibliotecário da Universidade, no quinzenário Archivo Bibliographico, Coimbra, 1877-1879. Totalmente ignorado, foi recentemente redescoberto por Alexandre Lobato que no-lo apresenta corno um apógrafo, em caligrafia do século XVIII. 160 161 caçoens he dentro no dito Rio do Santo Espirito, onde se fazem surtas. A circunferência da Bahia hé de mais de vinte legoas, e em qu e não ha ponto fixo, ao menos de que eu possa dar certeza. Comesa a ponta do Norte por hum Monte, que se chama Unh á c a p e q u e n a = por ter a forma, ou feitio de hua unha de vaca sahida ao mar. Correndo pêra o Sul, há hua Serra de área, que se limita em outro Monte chamado a U n h a c a g r a n d e . Estes dois montes fazem denominar aquelle respectivo Continente, e ainda, para o centro. Os habitantes de U n h a c a g r a n d e , e p e q u e n a constituem hua Província, ou Reynado. Elles são mais agigantados, que o mais alto Europeo, a sua estatura hé bem fornecida, muito regolar, e muito bem feita; não conhecem outros vestidos, do que a desnodez, a pesar de Ser o Clima muito frio no Inverno, sopposto, qu e muito benigno nas outras Estaçoens. Elles tem a arte de se livrarem dos incómodos do tempo. Servem-se de hum canudo feito, e tecido de pequenas tiras de palha, para prezervarem somente a parte principal d'aquellas, que o pejo, e a honestidade manda esconder da vista dos humanos. As molheres proporcionalmente são altas, também andão nuas á excepção de trazerem dois pannos pretos bem cobertos, ou matizados de contas, de três palmos de largo, e quatro de comprido, os quaes ficão pendentes pela centura, e cobrindo com eles por diante, e por detrás os logares do pejo. As que não podem trazer pannos por falta de meyos, fazem aquelles mesteres de coiros de Cabritos. 3. 162 habitadores do Certão, e mais centraes do Continente, a quem chamão A l e n t o t e s , pelo costume de pronuciarem essa voz, quando estão no ardor dos seus Bailles, sendo assim conhecida toda aquella Nação por toda a vasta Região. Também lhes introduzem pontas de Abbadas, e outros dentes de peixes marítimos. Elles tem, e conseguem excelente Âmbar, que todos os annos se arroja nas suas prayas em certa Estação, que pela experiência sabem para a colheita, e para que concorre muito a figuração da Costa, e de mar bravo. As suas terras produzem Arroz escellente, e muito em abastança, bem como os mais legumes, por que tem divercissimas castas de bom Feijão, Favas, Ervilhas, Grãos, Guandos, (que hé hua espece de ervilha mais grada, e farinada) Couves grandicissimas, Aliaces óptimas, Cebolas, e as Canas doces, de que se .servem, ignorando o modo de fazer asucar: do que tudo hião vender ao Destacamento da Tropa, e a bordo dos Navios nas suas pequenas Embarcaçoens, de que se servem para as pescarias, em que são muito práticos, somente com o instrumento de Anzoes, e no que muito utilizão pela abundância de peixe saborozissimo. As suas prayas são abondantes de marisco excellente; há muita Vaca cuja carne hé de bom sabor; há o Carneiro de cinco quartos de notável gosto, e se adverte que a sua lan não hé crespa, e só corredia, e curta á maneira do pello de Cavallo. Neste sitio enche e vaza a Maré três legoas e com arrebatada corrente, isto hé em toda a Bahia. Nesta Costa da U n h a c a , dentro da referida Enceada, se encontrão grandes maravilhas da Natureza, como são, o Martelo, e os Aljofares. Vi os Martelos; dos Aljôfares fuj enformado. Prezenciei alguns Cafres Vassalos do Rey Capella, de quem logo fallarei, que trasião na ponta do seu tecido canudo, hua grande pérola preza, e furada, e me informarão ser das da Costa, e prayas de U n h a c a . Em ambas as U n h a c a s , há bella, e excellente agoa de poços, bem como na vezinha Ilha de Santa Maria; e na Unhaca pequena, há hua Ribeira corrente de rnuito boa agoa. Concluo dizendo que hé muito vasta a população, e toda a gente de pacifica condição, domestica, e tratavel, e com hua precepção vivíssima, e atilada. Elles tem diversas Habitaçoens, e mais de secenta athé setenta Cazas de palhoças, redondas na sua configuraçãi; em cada Povoação destas, há hum Chefe, a quem chamão M a f u m a , e a quem os indivíduos respectivos tem hum grande respeito, e obediência, como a hum logar Tenente do seu Rey. São muitas as Povoaçoens, e situadas em breves distancias huas das outras, de maneira que ao son de Tambores se participão as noticias de qualquer attaque. O Rey destes Cafres da Unhaca, tem hua grande authoridade sobre os seus Povos, e Mafumas. O seu Comercio consiste em muito Marfin, pois á lem do que alcanção, e conseguem do próprio Paiz, lhes trazem muito grande porção delle, e dentes de Cavallo marinho os outros Cafres 4. Vão cinco legoas adiante da Unhaca grande, e pela Costa 163 da Bahia, quando apparece o Rio de Maputo ao Sul; e bem entendido, que toda esta Costa hé povoada, e de gentes de bom agrado, aonde há excellente Âmbar: essa parte do Continente compete ao Rey de Maputo. Este Rio hé muito extenço, e se navega por elle asima, mais de cesenta dias de viagem em Lanxas ainda, que por conta da Barra se não soffrem Vazos grandes, que demandão mayor fundo de agoa. Em toda a sua extenção há grande Comercio de Marfim de hums, e outros dentes, e pontas de Abbadas, aonde apparecem alguãs de sete palmos de comprido. A direção do Rio hé sempre para Oest; os seus habitadores são alentotes ; hé muito abondante de toda a casta de gados, e athé do bravio. Há todos os bons legumes, excellente Arroz, e muito fértil o seu paiz. Tem minas de Cobre, e de excellentissimo oiro, que trazem os Cafres das montanhas. Os habitantes me informarão, que tinhão tanto Marfim, quanto não podião explicar, mas como esse povo tinha guerra com outros confinantes, os nossos não ouzavão hir traficar com elle, por evitar, que sendo robados, não se sóbese quaes erão os agressores, não podendo por essa desculpa ser castigados: ponto este de Justiça, em que os Reys são muito severos, e exactos. Deste Rio tiverão os Ingleses, e Imperiaes os seus mayores interesses. Estes Cafres também andão nus, como os da U n h a c a , e uzão do mesmo canudo para conservação da honestidade, bem como as molheres dos pannos pendentes. Este hé o trage de todos aquelles povos do Vasto Continente. São muitas as povoaçoens deste Rio, e pola terra a dentro, e há hums poços de Reys todos nossos amigos, entre elles se destingue muito o Rey C a p e l l a , de quem prometi fallar. Este Princepe, dês da antiguidade, como me disse, hé muito amigo da Nação portuguesa, do que se deriva, que seus Avós, comforme á tradição já nos erão muito favoráveis. He elle de huma regularissima altura, bem moldado, e bem figurado. Hé da Caza dos Landins, pêra fazer differença dos Alentotes, tem vinte, e três annos de idade, e falia bem a nossa lingoagem ; hé muito civil, e político a seu modo; de três, em três Meses vem pessoalmente a bordo dos Navios, que estão ancorados nas vezinhanças das suas margens, aonde janta acompanhado dos seus grandes, e para isso previne os do Navio com hua Vaca, que lhes manda de refresco. Está no bordo muito tempo, aonde come, e bebe agoa ardente, licor, o qual atrahe muito á todos os Cafres Nacionaes, e recebe donativos de Pesas de panno preto, e Contas, que tudo empórta em vinte, e cinco cruzados. Elle sempre reputa o seu Marfim pelo melhor preço, a cerca do mais, dis, que vejão se o podem comprar por hum panno, frase que entre elles explica o barato. Acabada esta sua visita, se restitue á sua terra, que sempre terá" a distancia de hum dia de viagem, cuja marcha elle toma com suavidade, por que prenoita em algumas das suas Povoaçoens. Admite em sua Caza hum sogeito, ou Negociante para lhe comprar o seu Marfim, e o da sua Gente; e este Sogeito, hé regolarmente hu Comisario d'aquelles, que traficão, ou negoceão nesse género. As suas terras são muito abondantes de tudo quando hé comestível, e quanto costuma servir para o negocio do Paiz. E nas que são sogeitas á este Rey, hé que as Embarcaçoens fazem a melhor aguada. 5. Segue-se de parte do Norte, continuando a circunferência da sobre dita Bahia, o notável Rio do Espirito Santo, o qual pertence á os Domínios do Rey Matolla. Este Princepe, que demostra ter trinta annos, hé muito amigo dos Portugueses, talves desempenhando aquella boa amizade, que seus Antecessores, e Avóz tiverão com a nossa gente ; pois o dito Rio era, e sempre foj o abrigo de todas as Embarcaçoens, que se acolhem á Enceáda, a onde unicamente há ancoradoiro, e mais seguro Nos Annaes da sua tradição se conserva, a memória do grande agazálho, que davão a os Portuguezes, quando por naufragantes hião para ás suas terras. O mesmo á cerca do dito Rey = C a p e l l a = cujo nome derivou de hua Caza sua, chamada Capoeira, a onde se agazalhavão os Portuguezes despojados pelo naufrágio. O sobredito Matolla, nos deo nas suas terras a porção, que quizesse-mos, e nella se edeficou a povoação para o destacamento de cento, e trinta homens que mandou o Governador interino de Mosambique, Vicente Caetano de Maya, segundo as Ordens superiores, que teve. O certo hé, que o dito Rey não podia dar mayor demonstração de affabilidade, e cordeal afecto pêlos Portuguezes, pois lhes chamavam seus filhos, e por hum Edicto geral, e verbalmente comonicado, 165 164 havia participado (sic) a os seus Vassalos, que nenhum se atrevesse a maltratar a os Portuguezes com Ferro, ou Azagaya sob graves penas: que no caso de serem doestados pelos Portuguezes, só se poderião deffender, mas não atacar. Havia expresa ordem para os Portuguezes poderem passar, e atravessar todas as terras do seu Reyno, sem o menor impedimento. Elle nos pessuadia muitas vezes, que no logar do Destacamento edificasse--mos Cazas de pedra, e cal, e á lem de hua horta do Governador da Fortaleza. 6. 7. Este Rey hé muito rico, tem grande extenção de terras, e de hum logar cheo de Povoaçoens, que corresponde á hua grande Província nossa chamado (sic) Clerinda (sic), sahem grandes provisoens de viveres, muitos gados, muitos-legumes, fructos silvestres, e industriaes, excellentes bananas, mimozas mangas, e bons ananazes. Há também grande quantidade de Marfim nas suas terras. A sua Caza vem parar muita gente da montanha, de seis, e sete mezes de caminho a trazer oiro, cobre, e marfim. Todo o seu Continente tem Vaca de muito bom sabor, e do mesmo modo hé o Capado, e o Xibarro, o Carneiro de cinco quartos. Há também excellente peixe, e muito saboroso, assim são as Galinhas, e muito grandes, e com grande abondancia. A Tropa todos os Mezes matava mais de sete centas para seu mantimento, e a preço cada hua de palmo, e meyo de panno preto. Quaze todos os dias havia hua Feira junto ao Destacamento, e esta, não só de viveres, e fructas de regalo, como também das outras especes. Houve occazião, que o Âmbar, e Marfim andava a granel, e vendião hum pedaço, que teria hum arrátel por duas braças de panno, e ainda assim o não compravão. Não posso deixar de dizer alguãs circunstancias, que dão toda a idea da boa índole, e inclinação deste Rey Matólla. Elle vinha muitas vezes á nossa Povoação, e se era de de manha (sic), asistia com toda a veneração ao incruento Sacrifício da Missa, persuadindo a os seus, que praticassem o mesmo culto, postos todos de joelhos. Tinha elle hua grande anciedade de saber a Dotrina do nosso (sic) Religião, e como sabia, e fallava o Edioma Português, tinha comigo sizudas conferencias sobre esse Artigo, rogando-me que fosse celebrar Missa nas suas terras, e que para esse f i m mandaria edeficar hum bem decente apozento. Agumas ( s i c ) vezes pelo seu Secretario, ou Menistro junto á pessoa, me fés conduzir á sua Caza, no que assenti, quando menos me occupava no Destacamento, e em algum seguro intervalo. Quando eu apparecia na Caza do Rey era excessivo o seu prazer, e por essa demonstração participava essa noticia á os Reys vezinhos, Mavotte, e Matumbane. Alguãs vezes me vinha buscar ao caminho, antes de entrar na sua Povoação. Era inexplicável a sua consolação com a minha companhia. Elle no meyo dos seus Grandes muitas vezes me pedia lhe explicasse a criação do Mundo, e a do primeiro homem, a sua queda, originaria da perda do género humano; a v ind a do filho de Deos ao Mundo, e a Encarnação do Verbo divino nas puríssimas entranhas de M a r i a S a n t í s s i m a sua May, e Senhora nossa. Tudo elles ouvião atiladamente com sizudeza, e crudelidade ( s i c ) , e depois de se encherem de admiração, me pedia o Rey, que lhe demonstrasse na sua povoação hum sinal de affecto, demorando-me com elle, pois tinha hum grande dezejo de saber a dotrina christan. Isto fis quanto me foi possível, mas sem mayor fructo, por ter de asistir ao meu Ministério no dito Barracamento, e á Tropa. 8.Seis Legoas retirado deste Rio ao Norte está o grande R io do Manissa, e do Magaya, bem entendido, que hé hua só corrente, porem conserva aquelles dois nomes, por que no seu berço se achão dois Reys, que sempre conservarão esses nomes dês dos seus oriundos. Logo na entrada deste Rio está o Rey Mavotte, que entre outros muito seus confinantes, hé asinalado polo seu grande poder, riqueza, e abastança. Tem muitos gados, e muita população. Eu lhe vi muito Âmbar, no volume de oito arrobas depozitado em Caixas, que ele comprou, e houve de outros Cafres chamados = M a c a r a m b a s = que havião descido do Rio do oiro, Rio, que está entre a dita Bahia de Lourenco Marques, e o Cabo do Promontório. Este Rey, como fica na boca, e entrada do Rio Manissa, tem ocazião de receber de todos os Navios, que vão á Enceáda, hum Donativo, á que chamão Saguatte conforme o estilo, e fraze do Paiz de toda a índia ; o mesmo recebe, e todas, 166 167 e quaesquer Embarcaçoens, que sobem pelo seu Rio assima. Elle hé muito afável, e político; á seu rogo estive quatro dias na sua Povoação, pedindo-me, que queria lhe ensinasse, quem era Deos? e como a sua Povoação dista seis Legoas do nosso Destacamento, tive occazião de reppetir a vezita, e o mesmo Rey me fés o Donativo de dois pedaços de Âmbar, que pezavão trinta, e oito onças. Também admitte em sua Caza um Negociante, e Comprador de Marfim, por ser delle o Paiz muito abondante, e o trazerem repetidas vezes os Cafres das outras Povoaçoens. 9. 168 Segue-se outro Rei chamado Matumbane, cujas Terras são confinantes com as (do) sobredito Mavote. Hé muito abundante de provimentos, e das suas Terras sahe muito Arroz, que se vende a os que necessitãp dessas provisoens. Também admitte em sua Morada Comprador Negociante do Marfim. Depois deste Potentado dezasseis, ou vinte dias de viagem, esta outro Rey, a quem chamão o Grão Caixa, e pola razão da sua mayoria, e soperioridade sobre os outros Reys do Território, todos o teme, e respeitão polo seu grande poder, e pola muita gente, que lhe obdece, e tem em seus Domínios. Para a caza deste Rey concorrem muitos Portadores de Marfim, e com muita quantidade, de maneira que mandava pedir muitas vezes ao nosso Destacamento, que quizessem comprar-lhe o Marfim d'aquellas expedições, por não ter logar a onde acomodar a muita gente que o havia conduzido. A sua Caza se pode equiparar com o Maneyo de hua Alfândega abastecida, pois como pagão ao Rey certos Direitos dos géneros do Marfim, todos ali a conduzem, e ali se faz o trafico. Deve--se entender, que os Rios de Maputo, a Manissa erão os Canos, donde os Inglezes tiravão todos os seus mayores interesses, e que descontavão com largas uzuras os seus incómodos. Não há com que se comparem as grandes utilidades destes dois Rios, nem o que descia por aquellas duas paragens, pois todos os annos tinhão de continuo seis, ou sette Embarcaçoens a tomar carga de Marfim, pontas de Abbadas, dentes de Cavallo Marinho, Escravos aprehendidos em guerra entre elles, Âmbar, Oiro, Cobre, e outras úteis produçoens. Isto obrigava a os Inglezes a não deixarem aquelle Porto de tanto proveito ao seu Comercio, e esta era a mesma razão, por que também se atrahião os Imperiaes com as suas Embarcaçoens para igual negocio. 10. Já dei idea da boa Índole, e domestica condição de todos aquelles Cafres habitantes do Paiz: Elles são muito atillados, tem censo para deixarem de impremir de todo as noçoens, descernindo o bem do mal, e o útil do nocivo; são afáveis, e agradecidos. Já disse a grande inclinação, - que os dominava a favor dos Portuguezes, principalmente no Rey Matólla, em cujas terras estava o nosso Destacamento, o qual foi bem recebido com toda a gente polo dito Rey, e polos seus Apaniguados. A vista do seu bom acolhimento, entendendo, e fallandò a nossa Lingoa, se estableceo o nosso Barracamento, dando-se nos a terra, que quizesse-mos abranger, e escolher. O contentamento era geral, e em dezanove de Abril de mil, sette centos, e oitenta, e hum, dia de S. Jozé, fés o nosso Governador Joaquim de Araújo, arvorar bandeira, estando estabelecido o conveniente Reducto, e apontados os nossos Canhoens. Tivemos porém, e soffremos a infelis desgraça de ver arder o nosso Barracamento a os doze de Mayo seguinte, sem se poder prezervar coiza alguã: por que o tempo, a Atemosphera, a palha, que fazia o telhado, tudo fazia rápido o incêndio, e não contei pouco em me salvar a mim, por estar nessa occazião muito doente, e por comessar a queima das oito, pêra as nove horas da noite, em cujo conflicto vim a perder todo aquelle provemento, que tinha ajuntado, e prevenido para três annos; Tudo em fim quanto estava em terra se reduzio á cinzas ligeiramente. 11. O Rey Matólla se enterneceo muito com o acontecimento, passando ordens para se averiguar, quaes erão os Agressores, no cazo de ser por culpa de alguém dos seus Vassalos, que se fizessem incendiários. Sobe-se, que fora acaso, ou descuido de algum Soldado do destacados, accomodo-se o Rey, morreo hydropico o nosso Governador á os seis de Julho, succedeulhe o Comandante, o Tenente Manoel António, sendo seu Substituto Pedro Festevim, e tudo hia bem ; porem como o refferido Rey costumava vir ao nosso Destacamento, nos pedia algum panno, ou fato, segundo a fraze do Paiz, e nos lhe dava-mos o que podia-mos, não podendo pelas mesmas Leys da gratidão 169 penso, que não seria tão loco, que dezemparasse o sitio sem algum motivo, posto que dezarrezoado. Não houve outro se não o seguinte. O Rey Matolla buscou-o, e hé pêra advertir, que andando sempre este Rey entre os seus com igual desnudez, e só differençado pela vizagem natural, e pola sua Azagaya toda rodeada de correas, e de penachos de Ema, e quando se asenta na esteira, não admite nella outro concorrente, ou grande, ou ainda dos seus Princepes, excepto eu, que me asentava apar dele na mesma Esteira; e com efeito, quando vinha á nossa Povoação, apparecia vestido de encarnado, e todo agaloado; ou coberto de hum Roupão de Cabaya encarnada também goarnecida de galoens de oiro. Na dita occazião buscou o Governador, e lhe pedio por Saguáte algums pannos, e contas, por queria prezentear á hum Princepe seu Confederado, e também algua bebida: hé pêra notar, que a bebida não hé outra coiza, do que agoa ardente, á que chamão Cachaça, vinda da America. O dito Rey também fés a mesma petição por parte do Grão Caixa; ao que respondeo logo o nosso Governador cõ gritaria, e que não queria dar o que se lhe pedia, e lhe aprezentou três frascos da dita Cachaça, porem muito toldada de agoa pura misturada. Como o Rey, e os mais são muito censatos, logo perceberão que a Cachaça estava dezenxavida, e conhecerão a mistura de agoa, dizendo então pêra o Governador, que lhe não devera fazer tanto dezacato, que dicesse antes que não queria, ou que não podia fazer-lhe aquelle mimo, do que romper em gritarias, de que verião a entender mal, ou os seus ou os nossos, e que se dava por m u i t o offendido por se lhe faser semilhante dezatenção, e que elle Governador devia saber que estava nas terras delle Rey, e que bem podia se quizesse mandalo atravesar por hum Azagaya por hum dos seus Vassalos. revestir ao seu bom agrado. E como o Reyno era cheo de Povoaçoens, e por consequência dos pequenos Chefes, que as dominavão chamados = M a f u m a s = como já disse, estes nos vinhão demandar algum fato, ou panno: não havia para todos, nem se podia dar á todos: elles por hua espece de dezagravo prohibião á os seus Subalternos, que nos viessem vender algum Provimento; neste lance comonicado o encomodo ao Rey Matolla, elle instantaneamente fazia remover o empedimento, certeficando-nos das suas favoráveis providencias. 12. 170 Sendo porem chegada certa Embarcação do Bombaim, e querendo fazer negocio naquelle Porto, lho não consentio o nosso primeiro, e sobredito Governador, e como fés direcção para Moçambique, participou ao .General Pedro de Saldanha, que o refferido Governador estava muito doente daquella Hydropezia, e que havia falta de obdiencia nos Soldados. Fés este logo expedir hum bom numero de Soldados captaniados pelo Tenente João Henriques, para ser Governador do dito Destacamento no caso de se achar falecido, o que ao principio governava, e prezadia: O nosso Governador chegou ao sitio, e estufado com o seu Comandamento fés ordens, desconpondo, e maltratando a os Chefes, com ameaços e demaziada altives, e da mesma forma, tendo em menoscabo a os Reys do Continente. Temendo-se de alguas consequências funestas, se encheo de medo, estando sempre á bordo da Embarcação. Fés ultimamente dezembarcar a Tropa, desalojou o Prezidio, recolheos os Canhoens e fés viagem pêra a Capital de Mosambique, persuadindo á todos, que tinha ordem pêra o retrocesso. Soou logo esta retirada por todo o Paiz. Os Reys Matolla, Capella, e Mavote, lhe mandarão Embaixadores, e Comissários, os quaes de sua parte persuadissem ao Governador, a conservar-se no dito Destacamento, propondo-lhe que a terra era sua, quanta quizessem, e que elles Reys tornarão a dar todo quanto fato, e Saguátes havião recebido de nós outros, e que estavão promptos a nos fazerem as mayores comodidades. O Governador refugou todos os pareceres, e retirando-se para Mosambique, ali foj prezo, e se lhe fés conselho de guerra. Ainda, que o dito Governador não tinha docelidade alguma de génio, e era falto de sobriedade nas bebidas ; porem 13. Com isto retirou-se entre os seus. Então me rogou, que fosse eu boscar ao Rey pêra o suavizar, o que logo executei, indo á sua Morada, e terra. O Rey me deu excellentes razoens de brandura, e de discurso, dizendo-me, que o Governador era altanado, e bravo, não era justo que por elle perdessem os mais. Houverão finalmente conferencias, e passagens de boa amizade, tudo porem quanto propuz ao Governador, não teve alçada para sus171 pender o seu destino e porisso entendo, que o temor, e o receyo, lhe fés maquinar a impensada retirada. 14. 15. 172 Em quanto ao Negocio destes Paizes, devo ainda dizer o seguinte. Em Mosambique se fés hua Companhia á maneira de Monopólio sem authoridade de Sua Magestade, e todos quantos do povo rezestirão ao arbítrio, forão imediatamente prezos; o General apoyava isto, e não queria, que quaesquer outros comprassem Marfim, pontas de Abbadas, e dentes de Cavallo Marinho, e assim se vedou o Comercio geral, sahindo desta Companhia aquelles Sogeitos, ou Comissários, que compravão Marfim em Caza dos sobreditos Reys. O Âmbar igualmente ficou vedado, e o segundo Governador, fez por hum Bando publicar, que essa espece era contrato Régio, e que essa era a ordem, que tinha da Capital, e deste modo, assim se deffendeo no dito Destacamento da Bahia de Lourenço Marquez. Concluo, são neste sitio os ares bons, e saudáveis, e em todos os quartos de Luas regolarmente chove; os viveres são abundantes, e tudo conspira, para hua admirável, e proveitoza Colónia, aonde o Comercio pôde ser florente. A respeito dos costumes dos Cafres, já disse, que erão dotados de bom natural, e de boa Índole, sem braveza, nem fúria, excepto nos litígios de suas guerras, sendo a sua Arma unicamente a Azagaya, cuja astea, terá seis, ou sette palmos acabando em ferro agudo. Elles as trazem em feche ás costas, e as manobrão com grande ligeireza, e força na distancia de vinte, ou trinta passos. O seu mayor brazão hé terem muitas mulheres, não tanto por conta da Bligamia, mas pêra terem outras tantas escravas, as quaes trabalhem pêra manter á os Maridos: esse hé o principal fim, pois os Maridos as comprão a preço de pannos, ou de gados, e as restituem á os Pays, recobrado-lhes o preço se ellas não querem trabalhar: por esta razão, o que tem mais mulheres, esse hé o mais rico. Entre elles sempre há hua mais destincta, á qual chamão a mulher grade, e o mesmo acontece com o Rey, a quem as mulheres sustentão sendo compradas, e há dentre ellas hua, que hé a Rainha: todas ellas apparecem sem recato de escondrijo. Não tem Religião doutrinal, nem pêra a adoração. Dizem, que há hum Espirito bom, a que chamão grande, e superior e cauza de todos os bens. Dizem também, que há outro Espirito máo, á quem se lhe deve fazer bem para não fazer mal; e que o bom por ser sum-mamente bom, não necessita, de que se lhe faça bem; e porisso nos seus tranzes, dão ao Espirito máo seus Donativos, ou da Galinha, ou do Carneiro, ou da Vaca, dizendo, que hé do Diabo, fraze delles, e nessa conta nenguem lhes toca athe morrer, e assim acabão nesta Supertição. Reconhecem a immortalidade da alma, e dizem, que em morrendo, vão descansar, não dizem porem o como. Não há tradição que pay algum castigasse os seus filhos, nem, que estes dezobedecessem, ou maltratassem á seus Pays. 16. Géneros de Comercio. A Cachaça, ou Agua ardente do Rio, Bahia, e Pernambuco; ardians de doze, ou desaseis mãos de panno. Hua Ardia, hé a medida da ponta da mão ao cotovello. Capotins de duas braças. Meyas Ardians de braça, e meya. Zenartes, que são pannos pretos da índia, da treceira sorte. Doutins, são pannos brancos, de dezasseis mãos. Cobertas pintadas de Damão ; Munguifis, que são também pannos pintados com varias figuras de Ani-maes das índias, e tem largura ordinária de quatro palmos. Meyos pannos pintados, que são menos compridos, que os sobreditos. Munguifis, Conta branca, azul, cor de oiro, cor de cana, cor de laranja, e azul celleste. Manilhas de braço, que são huas Argollas de latão ama-rello, por onde enfião as mãos, e outras iguaes do pescoço. Muxoxo cor de cana, que hé hua conta grande, e comprida, que vem de Balaguate, Certão de Goa. Toda a qualidade de fato preto, que hé o panno de Surrate. Esta a Exposição de que sou testemunha occular, e o que passa na verdade. Se o Estilo não for grato ao Leitor, ser-lhe á a narração pela certeza de que hé composta. Lisboa, 6 de Agosto de 1784. 173 3." DESCRIPÇÃO Do Estado em que ficavão os Negócios da Capitania de Mossambique nos fins de Novembro do Anno de 1789 cora algumas Observaçoens sobre a causa da decadência do Commerçio dos Estabelecimentos Portugueses na Costa Oriental da África. — Escrita no anno de 1790 por Jerónimo José Nogueira de Andrade. A Bahia de Lourenço Marquez, ou vulgarmente o Cabo das correntes, de que ella está vizinha, he o primeiro porto de Sua Mag.e F.ma, na Costa da Affrica Oriental. Ella fica da parte de dentro do Cabo da Boa Esperança na Costa do Natal em altura de 26 Gráos Lat.e Sul. Tem huma chamada Fortaleza com hum Governador, posto pelo General de Mossambique a quem elle dá a lizongeira Patente, de Governador, e Feitor da Capitania de Lourenço Marquez. Este Governador nada he mais NOTA. — Esta notabilíssima Descrição foi publicada no Arquivo das Colónias, Vol. 1, n.° 2 e seguintes, com a nota de que se conservava quanto possível a ortografia do manuscrito. Reproduzimos, aqui, do texto impresso no Arquivo das Colónias, apenas a parte relativa ao estabelecimento em Lourenço Marques, com que começa a Descrição. Jerónimo José Nogueira de Andrade, seu autor, serviu em Moçambique desde 1779 a 1790. Capitão de artilheiros, comandou a Praça de S. Sebastião. Em 1783, foi secretário do governo. Em 1789, comandante da artilharia da Praça de Moçambique. O cónego Dr. Alcântara Guerreiro atribui também, com excelente razão, a Nogueira de Andrade, a Breve e verdadeira notícia da Guerra do Uticullo com o Estado de Mossambique nos annos de 1783 e 1784, que o mesmo ilustre missionário descobriu na Biblioteca de Évora e publicou no Boletim da Sociedade de Estudos de Moçambique, n.° 52, de 1947. 175 do que hum Commandante daquelle presidio, que he composto de dous Tenentes, hum Sargento, hum Furriel, dous Cabos, hum Tambor, e quarenta e hum soldados, destacados do Regimento de Infantaria de Mossambique; tem mais hum Furriel, hum Cabo, e onze Soldados, do Corpo de Artilharia, hum Cirurgião, cuja sciençia consiste na Patente de Cirurgião Mor daquella Capitania, hum Capelão,, que o Bispo Prelado de Mossambique anima com os titulos de Vigário Parochial, e da vara, hum Escrivão da Feitoria, e huma pequena chalupa tripulada de outo Lascares, e Marinheiros commandados por hum Piloto, também graduado com a Patente Honorária de Tenente do Mar. Este he que são todos os Súditos daquelle Governador, a algumas legoas dentro da Borda do Rio Espirito Santo, em terras do Regulo Matola, está a nossa chamada Fortaleza do Cabo das Correntes; Ella naõ he mais que hum quadrado, formado de grossas estacas e faxinas já bem podres, as quaes cercão a capella; os quartéis, e o armazém que cobre o presidio: Esta sempre dispendiosa e mal começada Fortaleza já desde o anno de 1780, he nova obra de Diogo António de Barros Soutto Maior, terceiro Governador daquella Bahia, em cujo penoso trabalho, se consumio a própria vida, a de muitos soldados, e também muito Cabedal da Fazenda de Sua Magestade. Seguio-se-lhe, Joaquim José da Costa Portugal, com a mesma, ou mayor infelicidade, pois aly perdeo sua mulher, e hum filho, e elle morreu, deixando seus outros filhos e filhas em lastimozo desamparo. Este Governador, gastou ainda mais Cabedal á Fazenda de Sua Magestade. Seguio-se lhe interinamente o Tenente André Avelino, e continuou a despeza e o trabalho. Foi agora o Tenente de Artilharia Pedro Festivem, que apezar do pouco que presta, he o único que o General teve para nomear pelas circumstançias de ser antigo conhecido daquelles caffres, ter génio para os atturar e naõ saber fazer mais obras nem mayores despezas. OBSERVAÇOENS Este porto pudera ser o mais interessante d'Affrica Oriental, pois alem de outras circumstançias que logo direi, tem huma espaçosa Bahia, com bellissima anchoragem para puderosas armadas. Os Nossos antigos Portuguezes fizerão aly huma pequena Fortaleza e lhe deixarão Guarnição Militar: esta 176 acabou em breve tempo, por falta de soccoros de Mossambique, e aquella foi consumida pelo mesmo tempo. Os Hollandezes estabelecerão aly huma Feitoria, e Guarnição em Caza Forte, aonde todos perecerão ás mãos dos Caffres, e a effeitos do Clima. Os Inglezes de Bombaim, disputarão muitos annos este Commerçio, sem fazer outro estabelecimento que o de bordo de seus Navios, donde mandavaõ os seus commissarios negocear com os Caffres. Seguio-se-lhes a Caza Forte dos Imperiais, aos quais succedeo o mesmo nosso presido que os foi sacudir por Ordem de Sua Magestade. Desde o anno de 1780, tem este novo estabelescimento consumido, três Governadores, bastante Offiçiaes, muitos soldados e ainda muito mais dinheiro ou fatto da Fazenda de Sua Magestade : O Comercio Mossambicano nada tem lucrado; pois huma companhia formada para este mesmo fim, perdeo de seu Cabedal e Capital, e a Corporação que lhe succedeo nada ganhou. O Nosso estabelescimento he ainda nenhum, pois tudo quanto aly existe de nada presta; naõ presta a Fortaleza, porque hum reducto mal construído e formado de Estacas e Faxinas já semipodres naõ meresce aquelle nome. Naõ prestaõ os quartéis pela sua mesma situação, dentro daquelle baixo vallado, formado no lugar mais allagadiço, e menos sadio: Não presta o Presidio, porque he muito pequeno, e he composto somente de 70 homens por todo, os quaes em breves mezes ficaõ reduzidos a menos de 25, pêlos descontos dos falles-çidos e doentes; por consequência he o Governador ou Com-madante d'este Presidio, escravo da Vontade daquelles Régulos do Pais, de quem recebe muitos ultrajes, pessoas que a pennas pode moderar, quando está prompto em pagar-lhes o tributo de hum presente annual, e franco em pargar-lhe outro quase diário tributo com despezas de vinho e fatto por conta da Fazenda Real. Os Inglezes de Bombaim souberaõ-se conservar muitos annos no commerçio daquella Bahia com ventagem sua; e tem sabido arruinar este mesmo Commerçio, fazendo ladinos aquelles Caffres, de que ainda saõ desejados, por isso mesmo que lhes satisfaziaõ sua ambição com melhores fazendas, e mayores donativos, a que os Nossos Negoçeantes de Mossambique naõ podem chegar, porque as dittas fazendas lhes vem mais caras, e muito peiores pellas uzurarias mãos dos Baneanes de Diu e Damão. 177 Ainda os dittos Inglezes naõ perdem o amor do Commerçio d'este porto, e ainda mascarados com a Capa de outros Negociantes de Goa e Mossambique, como constará na Secretaria d'Estado dos Domínios Ultramarinos pelos Offiçios da índia desde o anno de 1783, dos dittos Inglezes: sobre aminarem o Commerçio Portuguez naquelle porto, fizeraõ ainda outros mayores males á verdadeira Religião, e ao Estado de Mossambique. Elles deixarão aly huns Mouros de Surate, que tem cathequizado, fanado, e reduzido, á depravada seita do Falso Profeta huma grande Parte daquelles Caffres, entre os quaes elles vivem honrados como Mestres, e cazados segundo o seu Rituo. Estes mesmos Mouros fazem ainda outro mal, de nos malquistarem com os Negros a f i m de que venhaõ os Inglezes frequentar o seu antigo commerçio. Eis aqui huma das primeiras cauzas do pouco adiantamento d'este Estabelecimento Portuguez, e dos insultos Caffres. Omitto outras couzas, que procedem das intrigas coloniaes, e passo a fazer certo que o Governo Hollandes, da Cidade de Tafel Bay no Cabo de Boa Esperança, trabalha muito em abrir pelo Sertão caminhos, e communicacoens em direitura á dita Bahia de Lourenço Marques, e já tem aberto huma somma de Legoas. Elle manda Naturalistas successivamente a estes descubrimentos; actualmente tem n'esta diligencia hum Coronel, e dous naturalistas, que ha seis mezes succederaõ ao Coronel Gordon, que se recolheo da mesma diligencia em q.e gastou mais de hum anno, e chegou muito dentro das terras dos mesmos Landins, que saõ confinantes com os Negros Inhambanes, e aos do Cabo das Correntes. Por mar tem os ditos Hollandezes mandado quase todos os annos huma Nau. M.r Dominy, Francez de Nação, e Capitão de Mar e Guerra Commandante do Porto naquelle Cabo, tem hido duas vezes áquella Bahia de Lourenço Marquez no decurso de quatro annos; tem tomado conhescimento com os Régulos do paiz, a quem prezenteou ; trouxe dous Negros que já passarão por terra com os Naturalistas, e em Janeiro passado me disse elle mesmo, que voltava em Abril á ditta Bahia, e que depois hia a Mossambique; naõ sei qual seja o destino d'estas diligencias; sei somente que na minha residência de 25 dias no Cabo da Boa Esperança, me procurou o Segundo Governador, e fez inutilmente rolar a conversação, sobre O Nosso estabelescimento e commerçio da mesma Bahia. Se a conservação d'este porto, convém a Sua Magestade, preçiza de promptas providencias: de Mossambique naõ podem dar-se, pois que naõ tem os braços, nem os Petrexos necessários, e por consequência, he d'esta Corte q.e deve hir expedição em direitura á ditta Bahia: Engenheiros, artífices competentes, braços para o trabalho, ferramentas, alguma cal, e Guarnição Militar, que mantenha em respeito aquelles Caffres: he quanto aly se preçiza: tudo o mais ha no pais: elle abunda em Gados, arroz e ortaliças, he terra para todas as producçoens, e pode exportar annualmente mais de duzentos Bares de Marfim, muito e finissimo Cobre, bastante Âmbar, Cera, Manteiga, e ainda outras produçoens: servirá sobre tudo de Barreira á extençaõ Hollandeza, que paresce quer abranger o commerçio com os Landins, e logo absorberá o que nós fazemos em Inhambane. Os Régulos do paiz naõ tem duvida em q.e os Portuguezes perpetuaõ aly sua residência, e saõ inclinados a favor da nossa Nação, mas saõ já [graças aos Ingleses de Bombaim] taõ ladinos no seu commerçio, que querem dar entrada franca a todas as Naçoens, e declaraõ abertamente que elles naõ haõ de prohibir-lhes o commerçio. A fé d'estes Caffres he muito duvidosa: os mesmos Hollandezes o sabem já por experiência, e os Portuguezes practicos daquella Costa sabem também, que ella naõ dura muito alem do recebimento de algum presente e de passada a ebriaguez do vinho que se lhe tem dado: Elles só conhescem por amigo aquelle que dá mais vinho, e mais fatto, e só respeitão o Branco, quando lhes he superior em forças. Com os prezentes se faz com elles amizade, e com o ferro e fogo se lhes faz manter a palavra. Esta he a única Ley que elles conhescem Desejava concluir esta informação com o prospecto das despezas, que a Fazenda Real de Mossambique, tem feito para este mau estabelesçimento, porem o General de Mossambique he só quem a pode ter dado exacta nos seus respectivos Offiçios, e ainda mais accrescentadas de outras despezas feitas pêlos Negociantes daquella Praça. Eu resumo-me a dizer, que ellas sobem a muito mais de quatro centos mil Cruzados dinheiro de Mossambique, e que emquanto se naõ derem as predittas providencias, se amontoará a despeza sem proveito algum. N'este Cazo seria melhor, levantar o presidio, e mandar hum só Navio de Mossambique fazer annualmente aquelle commerçio, se bem que duvido haja, quem queira frequenta-lo na concurrençia dos Estrangeiros. 179 178 N. B. — A Bahia de Lourenço Marquez corre de L'es Nord'este, á Oesud Oeste, até dentro da Unhaia, ou embocadura do Rio do Espirito Santo, depois correm-se de 13, à 14 legoas para Oeste, a demandar o Surgidouro defronte da Fortaleza que serve de quartel ao Nosso Presidio. 4.º Regimento dado por Vicente Caetano da Maia e Vasconcelos ao governador da Bahia de Lourenço Marques, em 25 de Novembro de 1781. Tendo a Rainha Nossa Senhora mostrado efficazmente, pelas ordens dirigidas ao governador da índia, e este ao d'este estado, quanto é da sua real intenção estabelecer o commercio d'esta capital para o Cabo das Correntes e bahia de Lourenço Marques; me determinei nomear a v. m.cê, em o real nome da Rainha Nossa Senhora, por capitão mor e governador d'aquella bahia e seus adjacentes, para effeito de restabelecei ali uma feitoria e casa forte, e formar aquellas mesmas defezas que os austríacos tinham feito, conformando-me com a instrucção que o governador da índia mandou a este governo n'este presente anno, e juntamente para regular o commercio de forma que possa ser útil á coroa de Sua Magestade, para o que v. m.cê executará o que n'estes capítulos lhe ordeno, e são os seguintes: 1.° Que v. m.cê, em chegando á ilha de Unhaca dará fundo no seu surgidouro, e mandará á terra o capitão Belchior, ou outro qualquer que seja hábil, escoltado da gente que lhe for necessária, e mandará chamar o regulo que for d'aquella ilha, e lhe dirá da minha parte: que sabendo eu que aquelle porto era só NOTA.—Conforme publicado na Segunda Memória do Governo Português (doc. n.° 120). 180 181 dos portuguezes, como elle e os seus também sabiam, e que como vassallos da Rainha de Portugal era preciso mante-los e defende-los de outras nações que, ambiciosas dos géneros d'aquelle paiz, quererão apossar-se d'aquellas terras contra a vontade de sua senhora, que é a Rainha de Portugal, para depois os tratarem com tyrannias e roubos próprios de quem vae buscar o que não é seu; eu determinei ali mandar fazer outra casa, e que estivessem portuguezes com fato para fazerem aquelle commercio que até ali estavam fazendo aquellas outras embarcações, para o que eu lhe mandava um saguate em signal da amizade que queria conservar com aquelles povos; que eu lhe promettia de lhe mandar todos os annos fazendas para elles contratarem e se vestirem. E v. m.oê deixará ali trinta homens com o capitão Belchior e o alferes Francisco Mourão, com tudo o que fôr-preciso para a construcção da dita casa forte e accommodações dos soldados, estabelecimento este para o que v. m.cê deve applicar todas as forças. logar mais próprio, defendendo esta com uma estacada; porém tudo em situação onde haja agua e aquellas comrnodidades que se fazem precisas na terra firme, e de bordo da embarcação d'onde se não deve tirar nada sem tudo estar pactuado, a fim de que tudo se faça com socego. 4.° No caso de que aquelle porto vão algumas nações estrangeiras fazer mantimento, v. m.cè lhe dará toda a hospitalidade, prohibindo exactissimamente que façam negocio algum n'a-quelle porto; e no caso que alguma embarcação de maior força lhe queira fazer algum insulto e desobedecer á ordem que a respeito do nosso domínio lhe intimar, v. m.cê lhe fará um protesto por escripto, com o seu escrivão e algumas pessoas, e lh'o remetterá, dizendo-lhe que de tudo dará parte ao seu governador do estado, para o representar á corte de Portugal, mostrando-se v. m.cê sempre com um ar dominante, favorecido das ordens que eu lhe tenho dado. 2.° Que depois que v. m.cê chegar ao canal onde se costuma dar fundo, que é onde os austríacos tinham uma bateria, mandará chamar o rei Capella, e Matolla, e todos os mais régulos da praia, e lhes dirá a mesma arenga do primeiro capitulo, fazendo por agradar muito a estes régulos, não consentindo, debaixo de graves penas, que nenhuma pessoa que estiver debaixo do seu cominando faça violência alguma a estes negros, salvo se elles quizerem roubar ou insultar os portuguezes, porque n'esse caso é a defeza natural. Depois de sagoatear os régulos da minha parte com os sagoates indicados na relação junta, estabelecerão com elles que o marfim e mais géneros d'aquelle paiz devem vir á praia ou a bordo, emquanto se não estabelece alguma pequena povoação junto á bateria e bandeira que v. m.cê logo deve arvorar e pôr todo o cuidado para que as mais nações vejão a posse que nós temos com justo título. 3.° Far-se-ha uma faxina para postar as peças de artilharia que lhe parecer, no mesmo sitio onde estava a outra, por me parecer 182 5.° No caso que a esse porto chegue Guilherme Bolts, v. m.cê lhe dirá da minha parte, e em nome da Rainha Nossa Senhora, que elle deve despejar aquelle porto com toda a brevidade, e • do contrario protesta pelo attentado que commette contra o direito dos limites, e de tudo isto fará v. m.cê um auto com testemunhas, e não entrará de forma nenhuma em praticas supérfluas com o dito Bolts, mostrando o desagrado com que ali o vê, e impedirá qualquer acção que elle queira fazer contra a nossa propriedade, até onde chegarem as nossas forças, regulando todos estes movimentos pêlos termos mais prudentes e seguros que lhe seja possível; e isto se deve entender com toda a nação estrangeira. 6.° Depois de estabelecida a amizade com os cafres, formalisará v. m. c é o negocio de forma que a arroba de marfim grosso não passe de quarenta pannos, e o meão, miúdo, cera, ponta de abada, dente de cavallo marinho, á sua proporção; de sorte 183 que nunca os cafres fiquem enganados, e que conheçam que não queremos senão igualdade no negocio ; e no caso que v. m.cê veja que esses cafres estão com outros costumes, executará o que lhe for insinuado pela sociedade que está formalisada para esse porto a respeito do commercio, considerando a utilidade para os mercadores d'esta praça e direitos de Sua Magestade. 7." No caso que dos portos do norte venha alguma embarcação a commerciar, de forma nenhuma v. m.cê o consentirá, e fará vir a esta capital a pagar os direitos a Sua Magestade, por ter já mandado dizer o governador da índia que não mandasse navio para aquelle porto com fazendas, por estar o commercio dependente de uma sociedade d'esta capital; e no caso que a sociedade necessite de alguma fazenda a"poderá comprar, fazendo v. m.eê pagar os direitos, os quaes remetterá a esta alfândega. 11.° Mandará v. m.cê ao commandante da tropa que arranche os soldados na melhor forma que convier, para assim passarem melhor; e não consentirá que os soldados e officiaes inferiores andem dispersos na terra firme, e quando forem comprar alguns viveres vão sempre municiados e debaixo do commando de official inferior muio prudente, com recommendação de não fazerem nenhuma desordem. 12.° V. m.cê todas as occasiões que tiver mandará mappa da tropa e dos marinheiros, com as alterações que houver tido, a fim de eu poder saber a necessidade de gente que ahi houver; como também mandará tirar a planta d'essa bahia pelo capitão Belchior, a mais exacta que poder ser. 8." De todos os soldos de officiaes, soldados e marinheiros v. m.oé mandará fazer folha, para que a sociedade contribua com o fato sorteado para pagamento de toda a guarnição e tripulação, que a fazenda real levará em conta pelo preço d'esta capital. 9.° Todas as fazendas e munições de boca e guerra estarão no paiol, o qual terá três chaves, uma na mão do governador, outra na mão do escrivão e outra na mão do mestre da embarcação. Nada se poderá tirar sem a Decorrência das três chaves, cujos clavicularios ficarão responsáveis pelas suas faltas. 10.° Não se gastará pólvora alguma com salvas, e só nos annos da Rainha Nossa Senhora se dará uma salva com as peças de quatro, conforme a necessidade que houver d'ella, preferindo a utilidade commum a este cerimonial. Se algum navio entrar no porto e salvar á bandeira real o receberão com três tiros de bateria, debaixo da mesma condição acima referida. 184 13.° Todas as vezes que houver algum acontecimento que não esteja estabelecido por lei ou regimento, v. m.cê convocará para "a sua decisão todos os officiaes de tropa e do navio, e decidirão o que melhor convier, seguindo a pluralidade de votos e fazendo de tudo termo pelo escrivão, assignado por todos. 14.° Como conheço a grande experiência que v. m.cê tem dos cafres, e capacidade e prudência de que v. m.cê se orna, espero, que tudo que aqui posso omittir, v. m.cê com o seu discernimento remedeie ou acautele como melhor lhe parecer justo, emquanto me dá parte. Moçambique, 25 de novembro de 1781. VICENTE CAETANO DA MAIA E VASCONCELLOS 5.° Instrução dada por Francisco Guedes de Carvalho e Menezes da Costa ao comandante do presídio de Lourenço Marques, em 5 de Fevereiro de 1799. O official commandante da bahia de Lourenço Marques, Luiz José, que na presente monção vae exercer este emprego, executará o que n'esta instrucção se lhe determina, na maneira seguinte: Logo que a palia Minerva que o transporta com os soldados destinados, munições e viveres der fundo n'aquelle porto, mandará o dito commandante, com assistência do capitão da mesma embarcação, chamar os régulos da praia e lhes fará ver que vamos restabelecer o antigo estabelecimento que foi invadido e arrazado pêlos francezes, a fim de conservar a antiga posse do dominio portuguez n'este logar, arvorando ali o seu pavilhão, e entretendo n'esta forma o commercio com os referidos régulos, fornecendolhes as fazendas do costume pelos beneficiar, entretanto que a paz não dá logar a mandar um melhor estabelecimento de tropa e fornecimento de fazendas que agora não há, e mesmo ainda que as houvesse seria imprudente expô-las nas actuaes circunstancias a outra invasão, sem a sufficiente tropa para a sua defeza. Restabelecida a antiga amizade com os cafres, fará o dito commandante desembarcar os effeitos que leva e principiará a formar a sua residência com as proporções de fortificação para a tropa que o acompanha, quanto isto lhe seja possível, cooperando para este trabalho, não só a tropa mas também todas as pessoas da tripulação da mesma palia que o capitão possa NOTA. — Conforme publicada na Segunda Memória do Governo Português (doc. n.° 128, anexo). 186 applicar a este serviço, que recommendo á sua actividade e cuidado, para que possa ficar todo o destacamento e os seus pertences suficientemente accommodados ao tempo que pretender retirar-se a referida palia, e arvorado o pavilhão portuguez no logar mais próprio d'esta mesma fortificação, devendo ficar, tanto o capitão da embarcação como o commandante do destacamento, na intelligencia de que o nosso principal e immediato objecto é a segurança da possessão do commercio privativo dos limites de uma costa que pertence a Sua Magestade Fidelissima, procurando para este fim todos os meios que lhe sub-ministrar a sua intelligencia, á proporção do que se lhe for apresentando nas conferencias e tratos de commercio que forem tendo com os ditos régulos e cafres. Disposto tudo isto na melhor forma possível, fará o dito commandante arranchar os soldados e fazendo comprar o que lhes for preciso para seu passadio pelo mais commodo preço, bem entendido que se lhes não restrinjam os soldos de forma que venham a padecer, não sendo outra a intenção d'esta ordem que evitar liberdades que lhes possão ser nocivas, e ao mesmo tempo conserva-los sempre juntos para mais segurança do presidio. O commandante terá igualmente todo o cuidado em manter e desenvolver nos referidos régulos e cafres a convicção de que este território e mar da bahia de Lourenço Marques pertence legitimamente por muitos títulos a Sua Magestade, inspirando a estes povos o amor e obediência que devem á coroa de Portugal, fazendo igualmente sciente a qualquer navio estrangeiro que ahi possa aportar que este é um estabelecimento dos domínios de Sua Magestade Fidelíssima; que a nenhuma outra nação ali é permittido entrar a fazer commercio ; e que supposto a mesma soberana não tem n'elle de presente aquellas forças necessárias para impedir com resistência a perturbação que qualquer navio estrangeiro possa fazer nos seus direitos ali, comtudo formará d'isto queixas aos seus respectivos soberanos para ser d'ellas satisfeita na forma que o deve ser. Deverá sim o referido commandante offerecer-se aos capitães dos navios que ali aportarem por motivos que sejam admissíveis, para lhe procurar com os régulos e cafres d'esta costa todas as cousas que elles lhe apresentarem e for possível acharem-se para provisões dos seus navios, dizendo-lhes que é contra os privilégios de Sua Magestade Fidelíssima que elles o façam por si, mandando a terra os seus escaleres e commer- 187 ciando com os ditos régulos ou cafres, não lhes sendo permittido de maneira alguma procurar estas mesmas provisões em troco de pólvora e armas. Em todos os contratos que a nossa tropa tiver com os cafres d'esta costa se deverá comportar sem a menor violência e com toda a boa fé e docilidade própria da nação portugueza, e que seja capaz de inspirar-lhes o amor que é conveniente que nos tenham. O commandante da tropa, juntamente com o da embarcação de viagem, conservarão sempre boa harmonia, não devendo entre elles haver mais que uma só vontade na execução do que for interessante ao serviço de Sua Magestade e bem de nosso commercio, por cujos motivos consultarão sempre de commum accordo sobre o que devem praticar a este fim, e de todos os acontecimentos e mais particularidades d'aquella bahia tocantes ao commercio, sua situação e producções, me darão individuaes noticias tanto um como outro commandante. Não sendo de minha intenção que seja sacrificado a uma defeza com que não possa o destacamento que presentemente vae restabelecer o referido presidio, por isso o commandante d'elle deverá cuidar com todo o desvelo em buscar os meios de pôr em segurança, tanto as pessoas da sua guarnição como os effeitos pertencentes a Sua Magestade, e viveres para a sua subsistência, buscando de acordo com os régulos e cafres vizinhos ter de prevenção um logar no sertão onde se possa retirar com todos os seus pertences, e ficar ali defendido tanto pelo soccorro dos mesmos régulos e cafres, como também pela distancia da praia e receio que causará aos inimigos o intentar acommetter em uma situação tal; comtudo, porem, como em taes circumstancias tem muitas vezes mostrado a experiência, muito principalmente nas colónias de África e Ásia, que varias vezes um só homem sendo dotado de sagacidade e valor, tem podido attrahir a seu partido por meio de negociações amigáveis e até mesmo depois forçosas, combinando o poder de seus aluados para obrigar os outros, conseguindo v. m.cê achar-se em uma tal posição não deixará de oppor-se a todo e qualquer ataque ao qual lhe parecer tem forças para resistir. Os princípios de que deve servir-se para conseguir o referido partido será de fazer persuadir os régulos e cafres, de que a elles convém muito o nosso estabelecimento ali, a nossa amizade e commercio do nosso fato; unido com a amizade d'estes poderá castigar e obrigar a outros vizinhos, debaixo sempre de 188 motivos que elles conheçam cheios de rasão, e assim podendo augmentar as nossas forças se poderá pôr em estado, não só de reparar-se dos inimigos do interior, mas igualmente de quaesquer estrangeiros que nos possam atacar pela praia. Terá também o cuidado em persuadir aos referidos régulos e cafres as rasões por que na presente monção não são remettidas todas as provisões do commercio próprias para aquelle continente, tanto por não terem chegado em consequência da falta do noso commercio com a costa da Ásia, por causa da guerra com os francezes, mas também que não vae o governador nomeado, com os competentes officiaes e tropa, pêlos mesmos motivos de falta de provisões para a sua subsistência, e necessidade que aqui ha de presente d'estes officiaes, e mesmo por não ser ainda sufficiente este destacamento a resistir a uma invasão de francezes, quando elles ditos régulos e cafres se não esforçarem a ajudar-nos, e vir assim Sua Magestade Fidelíssima a ter uma maior perda da sua tropa e effeitos de sua fazenda, e que o que por ora mais nos convém é sustentar ali a possessão do domínio de Sua Magestade Fidelíssima, soccorrer a elles ditos régulos e cafres com o commercio do seu costume e provisões, e não causar no entretanto, durante a guerra, uma grande cobiça aos francezes para ter mais que roubar n'esse presidio. O mesmo commandante cuidará em ir juntando toda a madeira que lhe for possível para o fabrico do augmento da residência e fortificação que se deverá fazer logo que chegar o governador com toda a guarnição e effeitos que estão destinados, cuja expedição espero que seja feita no março, quando cheguem fazendas do norte. No entretanto vae fornecimento para o actual destacamento para um anno, como constará ao dito commandante da factura que lhe será dada pela contadoria da junta da real fazenda, cuja receita e despeza elle lançará em um livro que lhe será entregue pela dita contadoria e do qual ficará servindo em o referido destacamento para sua descarga, por se haver perdido todo o arranjamento que ali havia pertencente a este assumpto, como também receberá outro livro para n'elle lançar todas as ordens que tiver d'este governo, como fará igualmente d'estas presentes instrucções que deve observar. Moçambique, 5 de fevereiro de 1799. FRANCISCO GUEDES DE CARVALHO E MENEZES DA COSTA
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