BrcrI-NIetzsche francs-miolo (3)

Transcrição

BrcrI-NIetzsche francs-miolo (3)
Nietzsche, um “francês” entre franceses
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Sendas & Veredas
propõe-se a atuar em três frentes distintas: apresentando títulos expressivos
da produção brasileira sobre a filosofia nietzschiana, publicando traduções
comentadas de escritos do filósofo ainda inexistentes em português e editando
textos de pensadores contemporâneos seus, de sorte a recriar a atmosfera
cultural da época em que viveu.
Coordenadora:
Scarlett Marton
Conselho Editorial:
Ernildo Stein
Germán Meléndez
José Jara
Luis Enrique de Santiago Guervós
Mônica B. Cragnolini
Paulo Eduardo Arantes
Rubens Rodrigues Torres Filho
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O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, uma entidade do
Governo Brasileiro voltada ao Desenvolvimento Científico e Tecnológico.
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Nietzsche, um
“francês” entre
franceses
Scarlett Marton (org.).
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Copyright © 2009 Editora Barcarolla
Capa
Camila Mesquita
Revisão
Luís Rubira e Roberto Alves
Diagramação
IMG3
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Nietzsche, um “francês” entre franceses /
Scarlett Marton, (org.) . -- São Paulo : Editora
Barcarolla : Discurso Editorial, 2009. -- (Sendas
& veredas / coordenadora Scarlett Marton)
Bibliografia.
ISBN 978-85-98233-44-4
1. Filosofia alemã 2. Nietzsche, Friedrich
Wilhelm, 1844-1900 - Crítica e interpretação
I. Marton, Scarlett. II. Série.
09-09164
CDD-193
Índices para catálogo sistemático:
1. Filosofia alemã 193
2. Nietzsche : Obras filosóficas 193
2009
Editora Barcarolla Ltda.
Av. Pedroso de Moraes, 631/11° andar
05419-000 - São Paulo - SP - Brasil
Telefone/fax (5511) 3814-4600
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Discurso Editorial Ltda.
Av. Prof. Luciano Gualberto, 315/sl.11
05508-900 - São Paulo - SP - Brasil
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Sumário
13
Voltas e reviravoltas
Acerca da recepção de Nietzsche na França
Scarlett Marton
55
Nietzsche: A vida e a metáfora
Éric Blondel
93
As paixões repensadas: Axiologia e afetividade no
pensamento de Nietzsche
Patrick Wotling
115
“Meio-dia; instante da mais curta sombra”
Blaise Benoit
135
Nietzsche, pensador da história?
Do problema do “sentido histórico” à exigência
genealógica
Céline Denat
167
O niilismo extático como instrumento da grande
política
Yannis Constantinidès
189
Sobre os autores
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Nota liminar
A Coleção Sendas & Veredas, assim como os Cadernos
Nietzsche, adota a convenção proposta pela edição Colli/
Montinari das Obras Completas de Nietzsche. Siglas em português acompanham, porém, as siglas alemãs, no intuito de facilitar o
trabalho de leitores pouco familiarizados com os textos originais.
I. Siglas dos textos publicados por Nietzsche:
I.1. Textos editados pelo próprio Nietzsche:
GT/NT - Die Geburt der Tragödie (O nascimento da tragédia)
DS/Co. Ext. I - Unzeitgemässe Betrachtungen. Erstes Stück:
David Strauss: Der Bekenner und der Schriftsteller (Considerações extemporâneas I: David Strauss, o devoto e o escritor)
HL/Co. Ext. II - Unzeitgemässe Betrachtungen. Zweites Stück:
Vom Nutzen und Nachteil der Historie für das Leben (Considerações extemporâneas II: Da utilidade e desvantagem da
história para a vida)
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SE/Co. Ext. III - Unzeitgemässe Betrachtungen. Drittes Stück:
Schopenhauer als Erzieher (Considerações extemporâneas III:
Schopenhauer como educador)
WB/Co. Ext. IV - Unzeitgemässe Betrachtungen. Viertes Stück:
Richard Wagner in Bayreuth (Considerações extemporâneas IV:
Richard Wagner em Bayreuth)
MA I/HH I - Menschliches allzumenschliches (vol. 1) (Humano, demasiado humano (vol. 1))
MA II/HH II - Menschliches allzumenschliches (vol. 2) (Humano, demasiado humano (vol. 2))
VM/OS - Menschliches allzumenschliches (vol. 2): Vermischte
Meinungen (Humano, demasiado humano (vol. 2): Miscelânea
de opiniões e sentenças)
WS/AS - Menschliches Allzumenschliches (vol. 2): Der Wanderer und sein Schatten (Humano, demasiado humano (vol. 2): O
andarilho e sua sombra)
M/A - Morgenröte (Aurora)
IM/IM - Idyllen aus Messina (Idílios de Messina)
FW/GC - Die fröhliche Wissenschaft (A gaia Ciência)
Za/ZA - Also sprach Zarathustra (Assim falava Zaratustra)
JGB/BM - Jenseits von Gut und Böse (Para além de bem e mal)
GM/GM - Zur Genealogie der Moral (Genealogia da Moral)
WA/CW - Der Fall Wagner (O caso Wagner)
GD/CI - Götzen-Dämmerung (Crepúsculo dos Ídolos)
NW/NW – Nietzsche contra Wagner
I.2. Textos preparados por Nietzsche para edição:
AC/AC - Der Antichrist (O anticristo)
EH/EH - Ecce homo
DD/DD - Dionysos-Dithyramben (Ditirambos de Dioniso)
II. Siglas dos escritos inéditos inacabados:
GMD/DM - Das griechische Musikdrama (O drama musical grego)
ST/ST - Socrates und die Tragödie (Sócrates e a Tragédia)
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DW/VD - Die dionysische Weltanschauung (A visão dionisíaca
do mundo)
GG/NP - Die Geburt des tragischen Gedankens (O nascimento do pensamento trágico)
BA/EE - Über die Zukunft unserer Bildungsanstalten (Sobre o
futuro de nossos estabelecimentos de ensino)
CV/CP - Fünf Vorreden zu fünf ungeshriebenen Büchern (Cinco prefácios a cinco livros não escritos)
PHG/FT - Die Philosophie im tragischen Zeitalter der Griechen (A filosofia na época trágica dos gregos)
WL/VM - Über Wahrheit und Lüge im aussermoralischen Sinn
(Sobre verdade e mentira no sentido extramoral)
Edições
Salvo indicação contrária, utilizamos as edições das obras
do filósofo e de sua correspondência organizadas por Giorgio
Colli e Mazzino Montinari.
Werke. Kritische Studienausgabe (KSA). Berlim: Walter de
Gruyter & Co., 1967/ 1978, 15V.
Sämtliche Briefe. Kritische Studienausgabe (KSB). Berlim:
Walter de Gruyter & Co., 1975/ 1984, 8V.
Sempre que possível, recorremos à tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho para o volume Nietzsche – Obras incompletas.
São Paulo: Abril Cultural, 2a. ed., 1978 (coleção “Os Pensadores”).
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Voltas e reviravoltas
Acerca da recepção de Nietzsche na França
Scarlett Marton
“O pensamento de Nietzsche é de inspiração nitidamente francesa e ele nos traz de volta a nós mesmos. Essa constatação tende a subtrair de sua obra parte de seu valor original?
De modo algum...”1; é o que declara Jules de Gaultier em 1904.
Na mesma sintonia, André Gide faz ver que, entendido como
um hino à Terra que suprime todos os ultramundos, o nietzschianismo precedeu no país a própria filosofia nietzschiana. E
sustenta: “esperávamos Nietzsche bem antes de conhecê-lo”2.
Essas posições indicam a maneira pela qual nesse momento se
percebe o filósofo; bem mais, revelam a imagem que, na passagem do século XIX ao XX, dele se impõe na cena intelectual da
França.
Caminhando em direção análoga, Geneviève Bianquis investiga, anos mais tarde, as razões da enorme receptividade dos
1 GAULTIER, Jules de. “Nietzsche et la pensée française”, in Mercure de France,
VIII, 1904.
2 GIDE, André. Prétextes, réflexions critiques sur quelques points de littérature et
de morale. Paris: Société du Mercure de France, 1963, p. 86.
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textos de Nietzsche junto aos intelectuais franceses. Em 1929,
ela procura explicar a sua influência sobre a cultura nacional
por uma espécie de nietzschianismo pré-existente3. Mais recentemente, porém, Mazzino Montinari defende a idéia de que, se
o filósofo foi bem recebido na França, ele próprio sem dúvida
contribuiu para que isso ocorresse4.
* * *
Dentre os muitos estudos sobre a recepção francesa da filosofia nietzschiana, alguns constituem referências inevitáveis.
Nietzsche na França. A influência de Nietzsche no pensamento
francês5, de Geneviève Bianquis, é o primeiro trabalho a respeito
publicado no país. Levando em conta sobretudo as abordagens
literárias do pensamento nietzschiano, mas sem desprezar as filosóficas, ele cobre o período que vai desde a passagem do século
XIX ao XX até a data de sua publicação em 1929.
Nietzsche e o além da liberdade, de Pierre Boudot6, aparece em 1970. Contando com o prefácio de Geneviève Bianquis,
o livro vem complementar o seu; procura traçar a história da recepção do filósofo junto aos escritores franceses entre 1930 e
1960. Exclusivamente literário em sua orientação, lida com as idéias
apenas na medida em que elas se acham mediadas pela ficção.
Não é por acaso que os dois trabalhos privilegiam o impacto
do pensamento nietzschiano na literatura francesa. Na verdade,
foi nesse domínio que, de início, ele deixou suas marcas.
3 Cf. BIANQUIS, Geneviève. Nietzsche en France. L’influence de Nietzsche sur la
pensée française. Paris: Félix Alcan, 1929.
4 A esse propósito, cf. MONTINARI, Mazzino. “Aufgabe der Nietzsche-Forschung heute: Nietzsche Auseinandersetzung mit der französischen Literatur des
19. Jahrhunderts”, in Nietzsche-Studien, n° 17, 1988, p. 137-148.
5 BIANQUIS, Geneviève. Nietzsche en France. L’influence de Nietzsche sur la
pensée française. Paris: Félix Alcan, 1929.
6 BOUDOT, Pierre. Nietzsche et l’au-delà de la liberté. Paris: Aubier-Montaigne,
1970. No mesmo ano, foi publicado em edição de bolso com o título Nietzsche et
les écrivains français.
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É bem verdade que, nas duas últimas décadas, a recepção de
Nietzsche na França vem ocupando estudiosos de diversas procedências. Ela tem atraído em particular a atenção dos pesquisadores da Alemanha. E isso se deve ao fato de que lá, talvez mais
do que em qualquer outra parte, das mais variadas perspectivas
se examinou o impacto causado pelos escritos de Nietzsche e
dos mais diferentes pontos de vista se escreveu a história da sua
recepção. Mas se deve também às relações complexas que esses
dois países, adversários e aliados, mantêm desde a segunda metade do século XIX.
Em 1984, Heinz Georg Kuttner publica um pequeno trabalho intitulado Recepção de Nietzsche na França7, em que se
concentra em examinar dois aspectos da questão: por um lado,
a importância que o dadaísmo e o surrealismo conferem ao filósofo e, por outro, a maneira pela qual pensadores recentes,
como Foucault e Deleuze, tratam de sua insanidade. Em 1990,
o historiador das ideologias e filósofo de formação Ernst Nolte lança o estudo Nietzsche e o Nietzschianismo8, em que analisa os efeitos do que ele chama de nietzschianismo até 1914,
limitando-se assim ao período inicial da recepção das idéias de
Nietzsche. Em 1991, Alfredo Guzzoni traz a público o livro
que organizou com o título Cem anos da recepção filosófica de
Nietzsche9, em que reúne ensaios de pensadores alemães, franceses e ingleses, precedidos por uma introdução de sua autoria,
que fornece um amplo panorama da recepção do pensamento
nietzschiano. Ainda em 1990, Angelika Schober defende na
Universidade de Paris X – Nanterre um trabalho, publicado
em alemão anos depois com o título O eterno retorno do mesmo?
7 KUTTNER, Heinz Georg. Nietzsche-Rezeption in Frankreich. Essen: Die Blaule Eule, 1984.
8 NOLTE, Ernst. Nietzsche und der Nietzscheanism. Frankfurt am Main: Propyläen, 1990.
9 GUZZONI, Alfredo. 100 Jahre philosophische Nietzsche-Rezeption. Frankfurt
am Main: Anton Hain, 1991.
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Cento e dez anos de recepção francesa de Nietzsche10. Com uma
abordagem bastante abrangente, a autora cobre um amplo espectro do material tanto literário quanto filosófico produzido no
correr de mais de um século. Se lança mão da noção de eterno
retorno do mesmo para se referir à recepção francesa da filosofia
nietzschiana, é porque acredita que vários temas e questões mantiveram a sua atualidade durante esse período, de forma a caracterizar menos uma evolução do que um fenômeno cíclico.
Deste lado do Atlântico, nos últimos tempos também vem
crescendo o interesse pelo pensamento nietzschiano. Nos Estados Unidos, por exemplo, ele aparece intermediado pela análise das instituições de Foucault e pela leitura desconstrutivista
inaugurada por Derrida. Em 1995, Alan D. Schrift publica o
livro intitulado O legado francês de Nietzsche: uma genealogia do pós-estruturalismo11, em que se volta para alguns aspectos da recepção francesa do filósofo a partir de 1960. Em 1996,
Douglas Smith lança Transvalorações. Nietzsche na França
1872-197212, privilegiando o período que se inicia com a data
da publicação de O Nascimento da Tragédia e se encerra com
a data da organização do Colóquio de Cerisy, que, segundo o
autor, marca o apogeu do renascimento do interesse por Nietzsche na França. E, em 2001, Christopher E. Forth traz a público o estudo intitulado Zaratustra em Paris. A vaga Nietzsche
na França 1891–191813, em que busca levar em conta as condições sociais, que tornaram possíveis as múltiplas interpretações
do pensamento nietzschiano na época. Há que se notar ainda o
trabalho de Eric Deudon, Nietzsche na França. O anticristia-
10 SCHOBER, Angelika. Ewige Wiederkehr des Gleichen? Hundertzehn Jahre
französische Nietzscherezeption. Limoges: PULIM, 2000.
11 SCHRIFT, Alan D. Nietzsche’s French Legacy: A Genealogy of Poststructuralism. Londres: Routledge, 1995.
12 SMITH, Douglas. Transvaluations. Nietzsche in France 1872-1972. Oxford:
Claredon Press, 1996.
13 FORTH, Christopher E. Zarathustra in Paris. The Nietzsche Vogue in France
1891–1918. Illinois: North Illinois University Press, 2001.
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nismo e a crítica 1891-191514, que põe em cena leituras francesas
do período, mostrando suas parcialidades e contraposições.
De volta à França, recentemente vêm a lume dois outros trabalhos que passam a constituir marcos no exame da recepção do
pensamento nietzschiano no país. O primeiro deles, publicado
em 1995, recebe o título Os sobrinhos de Zaratustra. A recepção de Nietzsche na França15. Louis Pinto, seu autor, emprega
o modelo sociológico de Pierre Bourdieu para explicar de que
maneira o filósofo veio a figurar nos debates intelectuais do século XX. O segundo, intitulado Nietzsche na França. Do final
do século XIX ao tempo presente16, aparece em 1999. Partindo
da idéia de que o “Nietzsche francês” se distingue com clareza
do “Nietzsche alemão”, Jacques le Rider defende a tese de que
a recepção da filosofia nietzschiana na França condensou em
cada momento da história cultural européia os principais temas
e problemas das transferências culturais franco-alemãs.
Um trabalho de recepção implica, sem dúvida, o entrecruzamento de várias linhas de pesquisa: da história factual, passando
pela cultural, até a institucional; da história das mentalidades,
passando pelas transferências sócio-culturais, até o exame da
constituição das redes de poder. Esse estudo amplo, que não caberia neste momento nem neste lugar, estou em vias de concluir
e publicar17.
Hoje, minha intenção é apenas a de trazer as principais linhas
de força presentes na recepção do pensamento nietzschiano
na França, recepção essa nitidamente marcada por voltas e
reviravoltas.
* * *
14 DEUDON, Eric. Nietzsche en France. L’antichristianisme et la critique, 18911915. Washington: University Press of America, 1982.
15 PINTO, Louis. Les Neveux de Zarathoustra. La réception de Nietzsche en
France. Paris: Seuil, 1995.
16 LE RIDER, Jacques. Nietzsche en France. De la fin du XIXe siècle au temps
présent. Paris: PUF, 1999.
17 Terá por título Geopolíticas da filosofia. A recepção de Nietzsche na França.
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Com exceção da Alemanha, dirá Nietzsche, “em toda outra
parte tenho leitores – inteligências seletas, caracteres provados,
formados em elevadas posições e deveres; tenho inclusive verdadeiros gênios entre os meus leitores. Em Viena, em São Petersburgo, em Estocolmo, em Copenhague, em Paris e Nova Iorque
– em toda parte sou descoberto; não o sou na Terra Chata da
Europa18, a Alemanha”19. Não é por acaso, pois, que ele reclama
ascendência polonesa20; conta distinguir-se de seus compatriotas. E, se afirma que não consegue pensar e sentir em alemão21, é
porque com suas idéias e atitudes não quer ser cúmplice do que
então testemunha em seu país de origem. “Um livro que dá o
que pensar, nada mais, pertence àqueles a quem pensar dá prazer,
nada mais...”, anota num fragmento póstumo. “Que seja escrito
em alemão é pelo menos extemporâneo: gostaria de tê-lo escrito
em francês, para que não parecesse apoiar quaisquer aspirações
do Reich alemão”22. Recusando todo e qualquer vínculo com a
Alemanha da segunda metade do século XIX, Nietzsche assume um ponto de vista privilegiado. Está, pois, em condições de
questionar a cultura filistéia que lá julga encontrar, de denunciar
o filisteísmo cultural que lá acredita presenciar.
Mas é sobretudo na França que Nietzsche quer ser lido. Se
ele reivindica proximidade com os franceses23, não é apenas por
18 Nietzsche faz aqui um jogo de palavras com os termos Flachland (Terra Chata)
e Deutschland (Terra dos Alemães, Alemanha). A idéia reaparece em GD/CI, “O
que falta aos alemães”, § 3.
19 NIETZSCHE. Werke. Kritische Studienausgabe, edição organizada por Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim: Walter de Gruyter & Co., 1967- 1978,
KSA 6, p. 301; EH/EH, “Por que escrevo livros tão bons”, § 2. Nietzsche retoma
esta passagem praticamente nos mesmos termos no prólogo de Nietzsche contra
Wagner e na carta a Franziska Nietzsche de 21 de dezembro de 1888.
20 Tanto é que assegura: “Não é em vão que os poloneses são considerados os franceses
dentre os eslavos” (KSA 6, p. 301; EH/EH, “Por que escrevo livros tão bons”, § 2).
21 Assim é que revela: “Pensar em alemão, sentir em alemão – eu posso tudo, mas isto vai
além das minhas forças...” (KSA 6, p. 301; EH/EH, “Por que escrevo livros tão bons”, § 2).
22 KSA 12, p. 450; fragmento póstumo 9(188) do outono de 1887.
23 Num de seus textos, declara: “Meu velho mestre Ritschl chegou a afirmar que eu concebia até mesmo meus trabalhos filológicos como um romancier parisiense – de modo extremamente excitante” (KSA 6, p. 301; EH/EH, “Por que escrevo livros tão bons”, § 2).
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pretender diferenciar-se de seus conterrâneos. Sua predileção por esse país se deve, entre outras razões, ao fato de considerar que ele possui uma “superioridade cultural sobre a
Europa”, pois seus habitantes chegaram a “uma síntese bem
sucedida do norte e do sul”24. Não são raras as vezes em que
Nietzsche afirma sentir-se mais em casa com os franceses,
com sua cultura e linguagem, do que com os alemães. Tampouco são raras aquelas em que declara preferir a companhia
filosófica de La Rochefoucauld, por exemplo, à de Leibniz,
Kant ou Hegel25.
Com a França, Nietzsche entretém relações privilegiadas; em
seu imaginário, Paris aparece de alguma forma como um lugar
mítico. Ao concluir o curso de filologia grega, ele planeja para
lá viajar com o seu amigo Erwin Rohde. Liberto das coerções e
exigências acadêmicas, poderia flanar pelos bulevares e dedicarse às mais diversas leituras. Nomeado professor na Universidade da Basiléia, acaba por renunciar a tais idéias. Anos depois,
acalenta o projeto de voltar à universidade, em Viena ou Paris,
para estudar matemática e física, tendo em vista embasar nas
ciências a doutrina do eterno retorno do mesmo. Mais tarde,
referindo-se ao descaso e não-entendimento de seus escritos
por parte dos jornais alemães, afirma só ler o Jornal dos Debates (Journal des Débats)26. E, nos últimos meses de 1888, envia
a amigos exemplares do Crepúsculo dos Ídolos. A Strindberg,
24 KSA 5, p. 198; JGB/BM § 254, onde se lê: “Ainda hoje, a França é a sede
da cultura mais espiritual e mais refinada da Europa, a alta escola do gosto”.
Essa passagem é retomada ipsis litteris em KSA 6, p. 427; NW/NW, “O lugar de
Wagner”.
25 Cf. respectivamente JGB/BM §§ 253 e 254 e EH/EH, “O caso Wagner”, § 3.
26 Tanto é que escreve: “Recebi uma vez no rosto tudo o que se pode pecar contra
um único livro – era Para além de Bem e Mal; eu teria um lindo comunicado a fazer
sobre isso. Acreditariam que o Nationalzeitung – um jornal prussiano, esclareço,
em intenção de meus leitores estrangeiros – eu mesmo, com vossa licença, só leio
o Journal des Débats – foi capaz de entender o livro, com toda seriedade, como
um ‘sinal dos tempos’, como a bem genuína filosofia Junker, que só não é a do
Kreuzzeitung porque esse jornal não tem tenta coragem?” (KSA 6, p. 301; EH/EH,
“Por que escrevo livros tão bons”, § 2).
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confia a tradução sueca do livro; para a tradução francesa, Hippolyte Taine27 recomenda-lhe Jean Bourdeau, redator do Jornal dos Debates e da Revista dos Dois Mundos (Revue des Deux
Mondes), que lhe responderá de maneira gentil mas sem querer
assumir a tarefa. E, numa datada de 17 de dezembro de 1888
que a ele dirige, Nietzsche manifesta a sua aspiração a “que ainda uma vez eu venha ao mundo como francês”.
É bem verdade que certa tradição intelectual francesa, que se
inicia com Montaigne e passa por Pascal, La Rochefoucauld e
Voltaire, chegando a Stendhal, preparou indiretamente a recepção dos textos de Nietzsche na França. Mas também é fato que,
tendo elaborado algumas de suas concepções em contato com as
idéias de Baudelaire, Bourget, Taine e Renan, autores contemporâneos seus, ele pôde aparecer para os leitores franceses ao mesmo tempo como familiar e estrangeiro, conhecido e exótico.
Tudo leva a crer que, no início do século XX, bem mais do
que um nietzschianismo pré-existente, que estava apenas à
espera de seu porta-voz, havia na França um meio intelectual
pronto a acolher o filósofo, antes de mais nada, porque ele mesmo – sendo alemão - se fizera francês.
* * *
Era como um campo de batalha que Nietzsche designava a
si mesmo. Se com a expressão queria ressaltar a complexidade
de seu pensamento, com ela hoje se pode sublinhar as tensões
que o atravessam. Espaço de conflito, sua obra se põe como o
território em que se confrontam múltiplas interpretações. Bem
27 Na carta de 14 de dezembro de 1888, o crítico de arte francês desculpa-se por
não assumir a tradução do livro: “Não conheço bem a língua para sentir de imediato todas as suas audácias e finezas”. Em sua autobiografia, Nietzsche a ele se refere,
retomando estas suas palavras: “Em Paris mesmo estão assombrados com toutes
mes audaces et finesses – a expressão é de Monsieur Taine” (KSA 6, p. 301; EH/EH,
“Por que escrevo livros tão bons”, § 2).
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mais, ela se põe como o território em que se defrontam apropriações de diferentes partidos, sejam eles políticos, literários,
acadêmicos. Prova disso são os jogos de imagens e contra-imagens que se testemunham no correr dos tempos.
Na França, é em meio a um wagnerianismo fervoroso que se
dá a descoberta do pensamento de Nietzsche. Embora o mundo literário parisiense continue a ignorar suas idéias, ele passa
a ser conhecido nos círculos wagnerianos durante as décadas
de 1880 e 1890. Críticos e ensaístas julgam que, incapaz de demonstrar quaisquer verdades, ele produziu uma filosofia destrutiva e niilista; sustentam que, a partir do momento em que se
distanciou do compositor, se tornou vítima de uma degradação
espiritual, que explicaria os contra-sensos da obra e a manifestação da demência28. Em suma, escandalizados com os seus textos, depois da ruptura com Wagner em 1878, os admiradores do
compositor se unem para denegri-lo, ressaltando a loucura que
dele tomou posse.
Mas uma reviravolta ocorre perto do final do século XIX.
Um grupo de jovens escritores, empenhado em combater o
simbolismo decadente e o wagnerianismo, passa a associar o
nome de Nietzsche aos movimentos literários de vanguarda.
À “doença” que o simbolismo parecia representar, opõem um
otimismo associado às idéias de vida e saúde. À “decadência”
de que o wagnerianismo se fazia porta-voz, contrapõem a
afirmação de vitalidade e engajamento que julgam encontrar
em Zaratustra.
Convencidos de que têm direito de se exprimir em público
acerca de assuntos de importância nacional, buscam apoiar-se
no pensamento nietzschiano, para formar uma nova consciência
política. Apropriando-se da figura de Nietzsche, pelo mesmo
28 Cf. respectivamente WYZEWA, Téodor de. “Frédéric Nietzsche, le dernier
métaphysicien”, in Revue Bleue no 48 (1891), p. 586-592 e SCHURÉ, Édouard.
“L’individualisme et l’anarchie en littérature, Frédéric Nietzsche et sa philosophie”, in Revue des Deux Mondes no 130 (Agosto de 1895), p. 777-805.
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movimento que se opõem ao wagnerianismo e ao simbolismo
decadente e, por conseguinte, aos que dominam a cena cultural,
procuram legitimar suas atitudes e idéias. De um lado, a esfera
dominante de uma ética de l’art pour l’art; de outro, um punhado de jovens engajados sequiosos de prestígio cultural, que
abraçam a arte social expressa como um socialismo de boa fé ou
uma espécie de anarquismo.
Nietzsche deixa de ser, então, mero coadjuvante do culto a
Wagner para tornar-se um objeto de interesse por si mesmo.
Contudo, ele não é facilmente acessível ao público que não domina a língua alemã. Em 1894, Henri Albert engaja-se no projeto de publicar suas obras completas e traduz para o francês a
maioria dos livros do filósofo29. Sem o seu trabalho, a primeira
geração de nietzschianos franceses, de que fizeram parte Gide e
Valéry, só teria acesso a trechos e passagens, que jornais e revistas apresentavam e traduziam de modo pouco confiável.
Objeto de aversão ou fascínio, ódio ou idolatria, Nietzsche
se converte em lenda antes mesmo de ser conhecido. Assim é
que, por volta de 1900, atento à difusão de suas idéias, André
Gide escreve nas Cartas a Angèle: “A influência de Nietzsche
precedeu entre nós o aparecimento de sua obra (...); quase
se pode dizer que a influência de Nietzsche importa mais
que a sua obra ou até que a sua obra é unicamente de influência”30. Refere-se ao fato de seus livros não terem sido
todos traduzidos para o francês e só se darem a conhecer
no original.
29 Ele foi o editor e tradutor das Oeuvres Complètes de Frédéric Nietzsche, publicadas em Paris pela Société du Mercure de France. Elas englobavam: Ainsi
parlait Zarathoustra (1898), Nietzsche contre Wagner (1899), L’Antéchrist
(1899), Le Crépuscule des Idoles (1899), Pages choisies de Frédéric Nietzsche
(1899), Le Cas Wagner (1899), La Généalogie de la Morale (1900), Le Gai
Savoir (1901), Aurore (1901), L’Origine de la Tragédie (1901), Le Voyageur et
son Ombre (1902), La Volonté de Puissance (1903), Par delà le Bien et le Mal
(1903), Considérations inactuelles (1907), Ecce Homo (1909), Poésies (1909).
30 GIDE, André. Lettre à Angèle de 10 de dezembro de 1898. In: Lettres à Angèle.
Paris: Édition du “Mercure de France”, 1900.
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Entre 1890 e 1900, não são poucos os que na França procuram
explicar a obra de Nietzsche através da relação com a sua
vida. Diversos estudos que se propõem a discutir suas posições começam com uma biografia sua, ainda que sumária; vários deles chegam até a partir de sua descrição física.
A maioria dos textos desse período enfatiza a debilidade
física e mental do filósofo, discutindo em que medida ela
produziu impacto sobre suas idéias ou por elas foi afetada.
A maioria deles esforça-se em caracterizar o seu trabalho
como produto de uma mente e corpo doentios. Seus livros
seriam sintomáticos; denunciariam um caso patológico. Tanto é que sua filosofia estaria marcada pelo niilismo e desejo
de destruição.
A ênfase dada à relação entre vida e obra ganhará ainda maior
força com o interesse que então se manifesta pelo seu estilo. Este
é outro expediente a que se recorre para evitar comprometerse seriamente com o exame de suas idéias. Bem mais: é outro
recurso de que se lança mão para isentar-se de refletir sobre as
implicações decorrentes da maneira pela qual elas se apresentam. Não é por acaso, aliás, que os primeiros críticos da obra
de Nietzsche se põem, em geral, de acordo quanto à sua originalidade; ela não se acha no seu conteúdo filosófico mas na sua
forma estilística31.
Tanto a importância atribuída ao estilo quanto a ênfase na relação entre vida e obra desempenham papel relevante na recepção francesa desse período. De caráter jornalístico e literário
bem mais do que filosófico e acadêmico, ela se exime do corpoa-corpo com as idéias do filósofo.
Na última década do século XIX, a tensão entre literatos e
acadêmicos se exacerba na França. E assim se introduz uma cisão no campo intelectual: num dos pólos, situam-se professores
31 Cf. por exemplo GAULTIER, Jules de. Nietzsche et la réforme philosophique.
Paris: Mercure de France, 1904, p. 26, e LICHTENBERGER, Henri. La Philosophie de Nietzsche. Paris: Félix Alcan, 1898, p. 26.
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universitários consagrados; no outro, encontram-se literatos
marginalizados. Sintomáticas das tensões que se instalam entre
esses dois pólos são as discussões acerca do que se deve classificar como filosófico ou literário e de quem tem legitimidade para
fazê-lo.
É nesse contexto que se organiza no país a percepção da filosofia nietzschiana e dos que com ela se entusiasmam. Os escritos de Nietzsche, assim como os estudos a respeito deles, são
taxados de não-filosóficos. No entanto, o pensamento nietzschiano torna-se cada vez mais popular, adentrando os mais variados domínios da vida intelectual francesa.
* * *
Nova reviravolta ocorre no final dos anos de 1910. Nesse
momento, Nietzsche passa a ter existência em diferentes versões: anarquista, reacionário, autoritário, epicurista, esteta,
cético, trágico, visionário, agnóstico, metafísico e outras mais.
E, como todos podem falar a seu respeito, ele acaba por estar
presente em toda parte; acaba por fazer parte do ar do tempo.
Tornando-se um bem comum, que não apresenta conteúdo
preciso e se pode por isso nomear de forma vaga, ele passa a
desempenhar no campo intelectual a função de pensador escandaloso, destruidor de ídolos e experimentador de uma moral audaciosa.
Então, a recepção de Nietzsche na França aparece marcada por uma relativa coexistência dos públicos. Nenhuma posição no campo intelectual está em condições de apropriar-se
dele com exclusividade. É um autor que aparentemente se pode
compreender de maneira bem diversa e até mesmo oposta; daí,
a aparição de imagens contraditórias e simultâneas.
O clima social e político nos anos que antecedem a Primeira Grande Guerra exige tomadas de posição categóricas, julgamentos sem recurso, certezas que possam ser utilizadas como
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instrumentos de propaganda. Não se estuda mais Nietzsche;
simplesmente se é a favor dele ou contra ele. Isto significa, conforme o campo de batalha, que se é católico ou ateu, patriota ou
anarquista, conservador nostálgico do passado ou radical socialista voltado para o futuro.
Os detratores do filósofo que, até então, viam no seu anticristianismo um perigo social, continuam a denegri-lo. Universitários de renome se põem a condenar a moda germanófila de
certos círculos acadêmicos, moda essa que resultaria de uma
pretensa superioridade de filosofias elaboradas à sombra dos
quartéis prussianos: a kantiana, a hegeliana, a schopenhaueriana e, sem dúvida, a nietzschiana. De ameaça para a sociedade,
Nietzsche se converte em cúmplice dos desejos de conquista
da Alemanha.
Com a recrudescência do nacionalismo, o sucesso comercial do filósofo nos meios literários e artísticos sofre uma
grande queda. À medida que aumentam as tensões na cena internacional, cresce a sua condenação. Esquecendo-se da crítica radical que ele faz da cultura alemã, passa-se a identificá-lo
com o militarismo prussiano. Com a deterioração das relações entre a França e a Alemanha, devida entre outros fatores
às ambições imperialistas alemãs no Norte da África, os intelectuais franceses julgam incongruente recorrer a um filósofo alemão, mesmo que tenham por objetivo criticar a cultura
daquele país32. Em suma: depois de naturalizar-se como pensador francês honorário, Nietzsche é ameçado de extradição à
sua cultura de origem.
Na Alemanha, os soldados que iam para o fronte levavam
nas mochilas textos do filósofo, como se ele de algum modo
incitasse os alemães a atos de violência. Por essa época, houve um aumento considerável na venda de seus livros; o governo
distribuiu às tropas cerca de 150.000 exemplares de Assim fala32 cf. DIGEON, Claude. La crise allemande de la pensée française (1870-1914).
Paris: PUF, 1959, p. 457.
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va Zaratustra33. Na França, porém, a Primeira Grande Guerra funciona como uma espécie de purgação geral das influências
estrangeiras. É bem verdade que André Gide procura defender
Nietzsche contra os que o associam ao inimigo. Isso não impede
que apareçam obras como Assim falava a Germania, que, numa
referência clara ao título do livro mais controvertido do filósofo,
reúne enunciados alemães que promovem a guerra34. A imagem
que se torna predominante na França é a de que Nietzsche teria
encorajado as atrocidades cometidas pela Alemanha.
* * *
Mais uma reviravolta se dá nos anos de 1920. O interesse pelo filósofo então ressurge com jovens intelectuais, como
Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Paul Nizan, Henri Lefebvre, Georges Bataille. Eles se voltam para as suas obras, frustrados com as correntes kantiana e bergsoniana que dominavam
a filosofia francesa35. Também nos círculos literários se reaviva
o interesse pelo pensamento nietzschiano. Mas são sobretudo
os germanistas que dele se ocupam.
Charles Andler é um dos primeiros a desenvolver um trabalho de conjunto sobre a filosofia de Nietzsche36. Será objeto de
crítica por parte de alguns comentadores. Henri Lefebvre37 nele
33 ASCHHEIM, Steven E. The Nietzsche Legacy in Germany, 1890-1990. Berkeley: University of California Press, 1992, p. 135.
34 RUPLINGER, Jean. Also sprach Germania: Paroles allemandes pendant la
guerre. Paris: Éditions de la Sirène, 1918.
35 Cf. FORTH, Christopher E. Zarathustra in Paris. The Nietzsche Vogue in
France 1891 – 1918. Illinois: North Illinois University Press, 2001, p. 181.
36 ANDLER, Charles. Les précurseurs de Nietzsche. Paris: Brossard, 1920; La
jeunesse de Nietzsche (jusqu’à la rupture avec Bayreuth). Paris: Bossard, 1921; Le
pessimisme esthétique de Nietzsche, sa philosophie à l’époque wagnérienne. Paris:
Bossard, 1921; Nietzsche et le transformisme intellectualiste; la philosophie de sa
période française. Paris: Bossard, 1922; La maturité de Nietzsche (jusqu’à sa mort).
Paris: Bossard, 1928; La dernière philosophie de Nietzsche (le renouvellement de
toutes les valeurs). Paris: Bossard, 1931. O trabalho foi reeditado em três volumes
com o título Nietzsche, sa vie et sa pensée. Paris: Gallimard, 1958.
37 Cf. LEFEBVRE, HENRI. Hegel, Marx, Nietzsche. Paris: Casterman, 2ª ed., 1975.
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verá um afrancesamento das idéias do autor de Zaratustra e
Jean Granier38 nele responsabilizará o acúmulo de documentos
acessórios pela penúria da análise dos temas propriamente filosóficos. Mas sua relevância é inegável: alertou para o interesse
que Nietzsche tinha pelas ciências da natureza; fez ver que suas
preocupações, por vezes, eram ditadas muito mais pelas questões candentes da investigação científica de seu tempo que pelos problemas filosóficos ou filológicos; apontou as influências
a que Nietzsche foi suscetível; refez a trama conceitual de seus
escritos; enfim, numa palavra, empenhou-se em reintroduzi-lo
na tradição cultural.
Estudioso competente, Andler contribui para dar ao filósofo
uma espécie de respeitabilidade cultural; homem comprometido com o seu tempo, procurará desnacionalizar o pensamento nietzschiano. Lançados entre 1920 e 1931, os seis volumes
de seu estudo trazem as marcas da maneira pela qual ele se situa no momento histórico em que vive. Atento ao sentimento
anti-alemão tão difundido depois da Primeira Guerra Mundial, persegue o propósito geral de reinscrever a cultura alemã
no contexto da civilização européia; sensível às imagens de
Nietzsche que então se impõem, tem por objetivo específico o
de integrá-lo na tradição de pensamento existente na Europa.
Oferece assim uma alternativa para as interpretações nacionalistas tendenciosas da filosofia nietzschiana que ainda predominam, abordando-a de modo a recusar que sofra o contágio das
relações antagonísticas que desde 1870 existiam entre a França
e a Alemanha.
Logo depois, em 1933, Geneviève Bianquis, que se formou
com Charles Andler, traz a lume o seu Nietzsche39 na coleção
“Mestres da Literatura”. Nele, apresenta uma leitura muito
próxima da de seu mestre, vendo no pensamento nietzschiano
38 Cf. GRANIER, Jean. Le problème de la vérité dans la philosophie de Nietzsche.
Paris: Seuil, 1966.
39 BIANQUIS, Geneviève. Nietzsche. Paris: Les éditions Rieder, 1933.
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vários sistemas que jamais teriam chegado a existir por completo. Mas, no retrato que pinta do autor de Zaratustra, enfatiza a idéia de que ele seria um grande moralista. Em 1929,
Bianquis publicara Nietzsche na França40, livro que marca o
momento em que a recepção francesa do filósofo toma consciência de si mesma como um importante fenômeno que merece ser investigado.
Importa notar, porém, que a leitura que os germanistas franceses fazem até meados da década de 1930 é extremamente polifônica. Também polifônica é a leitura que os alemães fazem da
germanística francesa na época do nacional-socialismo. Acusados de difundir na França o ódio pela Alemanha, Charles Andler
e Geneviève Bianquis são tidos por perigosos inimigos intelectuais. Em contrapartida, incensados, Henri Lichtenberger e JeanÉdouard Spenlé, recebem os mais extravagantes elogios.
E isto não se dá por acaso. Lichtenberger entretém relações
amistosas com Elizabeth Förster-Nietzsche, a ponto de ela
pensar em lançar na Alemanha uma tradução do seu livro A Filosofia de Nietzsche41. Spenlé, por sua vez, publica em 1937 um
artigo intitulado “Nietzsche, mediador espiritual entre a França e a Alemanha”42, em que se alinha às posições ideológicas do
nacional-socialismo; alguns anos depois, em 1943, lança o livro
Nietzsche e o problema europeu43, em que procura extrair do
pensamento nietzschiano as diretrizes básicas do nazismo.
De todo modo, do trabalho monumental de Charles Andler e dos estudos dedicados de Geneviève Bianquis aos textos
40 BIANQUIS, Geneviève. Nietzsche en France. L’influence de Nietzsche sur la
pensée française. Paris: Félix Alcan, 1929.
41 LICHTENBERGER, Henri. La Philosophie de Nietzsche. Paris: Félix Alcan, 1898.
42 SPENLÉ, Jean-Édouard. “Nietzsche, médiateur spirituel entre la France et
l’Allemagne”, in Mercure de France, juin 1937, p. 275-301.
43 SPENLÉ, Jean-Édouard. Nietzsche et le problème européen. Paris: Armand
Colin, 1943. Antes, ele havia publicado La pensée allemande de Luther à Nietzsche (Paris: Armand Colin, 1934), uma obra sem dúvida pouco ambiciosa, mas que
veio contribuir amplamente para a difusão do pensamento nietzschiano junto ao
público estudantil.
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comprometidos de Henri Lichtenberger e Jean-Édouard Spenlé44, os germanistas franceses põem o filósofo no centro de suas
preocupações. Com as lutas ideológicas que levarão à Segunda
Grande Guerra, o debate acerca do significado político da obra
de Nietzsche se tornará cada vez mais intenso.
* * *
Ao mesmo tempo que ocorre a politização do pensamento
nietzschiano, outra reviravolta de grande porte acontece. De
um lado, Bernard Groethuysen, Emmanuel Lévinas e Alexandre Kojève, emigrantes intelectuais de língua alemã, chegam à
França; de outro, Raymond Aron e Jean-Paul Sartre, jovens
pensadores franceses, voltam de uma estada na Alemanha. Eles
vão contribuir para difundir no país filósofos alemães até então
pouco conhecidos, como Hegel, Husserl e Heidegger.
Com sua Introdução à filosofia alemã desde Nietzsche45,
Bernard Groethuysen traz ao público francês uma tradição de
pensamento pouco conhecida. Com seus textos sobre Husserl
e Heidegger46, Lévinas lhe dá a oportunidade de familiariar-se
com alguns de seus expoentes. Com suas célebres conferências
proferidas entre 1933 e 1939 na Escola Prática de Altos Estudos
(École Pratique des Hautes Études), Kojève lhe oferece uma
leitura inovadora da filosofia hegeliana que marcará toda uma
geração de pensadores e intelectuais.
44 A propósito cf. DÉCULTOT, Elisabeth. “Les métamorphoses du nietzschéisme français dans les années 1930-1940: Le cas de Jean-Édouard Spenlé”. In: LE
RIDER, Jacques (org.). Nietzsche. Cent ans de réception en France. Paris: Éditions
Suger, 1999, p. 104). Esse mesmo texto aparece com outro título no sumário do
livro: “Les germanistes français face à Nietzsche dans les années 1930 – 1940: Le
cas de Jean-Édouard Spenlé”.
45 GROETHUYSEN, Bernard. Introduction à la philosophie allemande depuis
Nietzsche. Paris: Stock, 1926.
46 LÉVINAS, Emmanuel. La Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de
Husserl. Paris: Félix Alcan, 1930 e En découvrant l’existence avec Husserl et Heidegger. Paris: J.Vrin, 1949 (coletânea de textos extraídos de diversas revistas e publicações a partir de 1932).
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Os jovens autores franceses, por sua vez, promovem os filósofos alemães agora introduzidos no país. E, nesse espaço privilegiado, começa a despontar a figura de Nietzsche. Deixando
de ser o moralista do “imoralismo”, ele parece corresponder
às exigências teóricas da nova filosofia, que visa a substituir o
primado da teoria do conhecimento pelo da experiência. Seu
lado “místico”, que até então causava embaraço para os comentadores franceses, já não é problemático. Não se procura
mais compreendê-lo como uma expressão exaltada do lirismo
ou uma forma patológica do espírito germânico; ele passa a ser
visto como uma experiência “autêntica” que contribuiria para
libertar um logos inacessível à racionalidade ordinária.
Mas, por essa época, Nietzsche não vem em momento algum
a estar no primeiro plano; seu lugar se acha subordinado ao de
Hegel, Husserl e Heidegger. Tanto é que, nas décadas de 1930
e 1940, o impacto de seu pensamento se faz sentir muito mais
na vanguarda cultural e literária, com Bataille, Klossowski, Camus, Malraux e Blanchot, do que em escritos filosóficos. Aliás,
o próprio Sartre, quando jovem, chega a planejar um romance
intitulado Uma derrota47, em que privilegiaria as relações entre
Nietzsche, Wagner e Cosima. Por volta de 1927, ele teria lido
os trabalhos de Charles Andler sobre o filósofo e a biografia
que dele traçara Daniel Halévy48.
Na Alemanha, com a ascensão do nacional-socialismo,
Nietzsche se converte no filósofo alemão com uma missão nacional, defensor da agressão militar e da superioridade racial. Se
lá o tomam como um dos pilares do nazismo, do outro lado do
Reno há quem dele se aproprie como um pensador de direita.
Em 1934, Drieu-la-Rochelle, um dos mais destacados autores
47 SARTRE, Jean-Paul. “Une défaite”. In: Écrits de jeunesse, edição organizada
por Michel Contat e Michel Rybalka. Paris: Gallimard, 1990, p. 204-286.
48 HALÉVY, Daniel. La vie de Frédéric Nietzsche. Paris: Calmann-Lévy, 1909.
Quase quarenta anos depois, o livro foi objeto de uma segunda edição, revista e aumentada: Nietzsche. Paris: Gasset, 1944; em português, Nietzsche: uma biografia.
Trad. Roberto Cortes de Lacerda e Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Campus, 1989.
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franceses conservadores, publica um texto intitulado “Nietzsche
contra Marx”49. Interpretando de forma equivocada o conceito de vontade de potência, advoga a idéia de que o pensamento
nietzschiano fornece elementos tanto para o fascismo italiano
quanto para o nazismo alemão. Mas, por certo, há aqueles que
denunciam a trama que ligava o nome de Nietzsche ao de
Hitler. De 1935 a 1945, vários intelectuais – dentre eles: Bataille,
Klossowski, Jean-Wahl, que se reúnem em torno da revista
Acéphale – empenham-se em desfazer o equívoco50.
Como responder à apropriação nazista da filosofia nietzschiana é a questão que então se acha no centro dos debates.
E ela se põe num momento de grande interesse pelo pensamento hegeliano. Não é por acaso que surge a tendência em
aproximar Hegel e Nietzsche, como testemunham os trabalhos de Georges Bataille51 e Henri Lefebvre52. No caso de
Bataille, foram determinantes as conferências de Alexandre
Kojève na Escola Prática de Altos Estudos, a que ele teve a
oportunidade de assistir. Em seu trabalho, fazem-se sentir
as marcas da releitura da filosofia hegeliana que enfatiza o
caráter de ruptura e violência em prejuízo do de identidade
e coerência. No caso de Lefebvre, desempenha papel de extrema relevância o debate sobre o marxismo hegeliano e o
determinismo dialético, que se trava no âmbito do partido
comunista francês. Em seu estudo, o trato com o pensamento nietzschiano vem propiciar-lhe os meios necessários para
modificar o quadro hegeliano, que ele julga inadequado para
compreender a totalidade da experiência humana.
As interpretações de Henri Lefebvre e Georges Bataille propõem uma nova abordagem das contradições que parecem exis49 DRIEU-LA-ROCHELLE, Pierre. “Nietzsche contra Marx”. In Socialisme
fasciste. Paris: Gallimard, 1934.
50 Cf. por exemplo BATAILLE, Georges et allii. “Réparation à Nietzsche”, in
Revue Acéphale, no 2 (janvier 1937).
51 BATAILLE, Georges. Sur Nietzsche. Volonté de chance. Paris: Gallimard, 1945.
52 LEFEBVRE, Henri. Nietzsche. Paris: E.S.I., 1939 (Coleção “Socialisme et Culture”).
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tir na obra de Nietzsche53. As primeiras leituras desprezavam
os aspectos contraditórios que suas idéias podiam porventura
comportar, procurando impor-lhes uma espécie de coerência;
com isso, abriram caminho para leituras políticas tendenciosas
e seletivas. As novas interpretações ressaltam os aspectos irredutíveis de seu pensamento, não se limitando a constatá-los
mas dispondo-se a respeitá-los.
Exemplo desse procedimento é o trabalho de Bachelard. No
livro O Ar e os Sonhos54 de 1944, ao tratar da imaginação cósmica do filósofo, ele defende a tese de que, longe de serem independentes, tudo se passa como se as imagens a que recorre
determinassem o desenvolvimento de suas idéias.
Ao sublinhar imagens e contradições que atravessam os textos de Nietzsche, cada um à sua maneira, Bachelard, Lefebvre e
Bataille concorrem para que se rompa de forma decisiva com as
tentativas de apropriação política de sua obra.
* * *
Contudo, até o final dos anos de 1950, o estatuto filosófico
do autor de Zaratustra permanece ambíguo. Enquanto especialista da filosofia alemã contemporânea, Jean Wahl chega a ministrar cursos a seu respeito. Mas a importância que lhe atribui
é modesta em comparação àquela que confere a outros pensadores, como por exemplo Kierkegaard. De modo geral, os professores universitários se voltam para autores modernos como
Husserl e Bergson, que consideram mais rigorosos.
Praticamente ausente da cena acadêmica, Nietzsche atrai
a atenção de escritores e ensaístas de vanguarda, como Georges Bataille, Maurice Blanchot ou Pierre Klossowski. Por ele
também se interessam os germanistas que integram a Sociedade
53 Cf. SMITH, Douglas. Transvaluations. Nietzsche in France 1872-1972. Oxford:
Claredon Press, 1996, em particular p. 88-98.
54 BACHELARD, Gaston. L’Air et les Songes. Paris: José Corti éditeur, 1944.
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Francesa de Estudos Nietzschianos (Société Française d’Études
Nietzschéennes). Desde a sua fundação, em 1946, a Sociedade deixa clara a sua intenção de banir de seus trabalhos toda e
qualquer abordagem de caráter político. Como bem lembra
Kremer-Marietti, suas atividades se dão em torno de boletins,
jornais mensais e algumas publicações55.
Mas eis que uma reviravolta se anuncia. Em 1957, tem lugar a
defesa de uma tese de filosofia inteiramente dedicada ao exame do
pensamento nietzschiano. Embora não seja suficiente para alterar
a posição que o filósofo ocupa no contexto universitário, o estudo
de Angèle Kremer-Marietti, intitulado Temas e estruturas na obra
de Nietzsche, abre a via para a sua futura inserção acadêmica.
Entre 1958 e 1962, vem a público na Revista de Metafísica e
Moral (Revue de métaphysique et de morale) um certo número
de artigos sobre a filosofia nietzschiana. Então, ao lado de Jean
Wahl, outros professores universitários, como Henri Birault,
começam a se interessar por ela.
Nos quinze ou vinte anos seguintes, surge um amplo leque
de novas abordagens do pensamento de Nietzsche. Publicamse livros que dele tratam principal ou exclusivamente, redigidos por Maurice Blanchot56, Pierre Boudot57 e Paul Valadier58,
entre muitos outros. Editam-se números especiais de revistas
que dele se ocupam, como por exemplo o Boletim da Sociedade
francesa de Filosofia (Bulletin de la Société française de philosophie), a Revista filosófica (Revue philosophique), a Poética (Poétique) e a Crítica (Critique)59. Organizam-se dois importantes
55 KREMER-MARIETTI, Angèle. “La Société Française d’Études Nietzschéennes”. In: LE RIDER, Jacques (org.). Nietzsche. Cent ans de réception en France.
Paris: Éditions Suger, 1999, p. 119.
56 BLANCHOT, Maurice. L’Entretien infini. Paris: Gallimard, 1969.
57 BOUDOT, Pierre. L’ontologie de Nietzsche. Paris: PUF, 1971.
58 VALADIER, Paul. Nietzsche et la critique du christianisme. Paris: Éditions du
Cerf, 1974.
59 Cf. respectivamente Bulletin de la Société française de philosophie no 4 (octobre-décembre 1969) sobre “Nietzsche et ses interprètes”; Revue philosophique no
3 (1971) sobre “Nietzsche”; Poétique Vol. V (1971) sobre “Rhétorique et philosophie”; Critique no 313 (1973) sobre “Lectures de Nietzsche”.
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colóquios internacionais: o Colóquio de Royaumont em 1964 e
o de Cerisy em 1972.
Numerosos são os índices que atestam a consagração universitária de Nietzsche. Em 1967, a partir da edição organizada por
Giorgio Colli e Mazzino Montinari, a prestigiosa editora Gallimard começa a publicar as obras completas do filósofo60, sob a
responsabilidade de Gilles Deleuze e Maurice de Gandillac. Em
1969, o pensamento nietzschiano passa a ocupar o centro dos debates da Sociedade francesa de Filosofia; no ano seguinte, passa a
constar do programa do concurso de agregação em filosofia, um
dos mais importantes para a carreira acadêmica na França. Em
1971, Pierre Klossowski traduz os dois volumes dos cursos de
Heidegger sobre Nietzsche61, concorrendo assim para o apadrinhamento do autor de Zaratustra. Estudiosos nietzschianos,
como Jean Granier e, mais tarde, Sarah Kofman conquistam o
seu lugar na universidade francesa. Sobre a filosofia de Nietzsche, proliferam teses defendidas e livros publicados, que vão desde estudos rigorosos até apressados textos de divulgação.
* * *
Nos anos de 1960, Nietzsche está “dans l’air du temps”. Ele
se beneficia, antes de mais nada, da ação convergente de autores, que, apesar de terem projetos filosóficos distintos, se viram
agregados pela recusa da ortodoxia universitária. Contrastando
com figuras canônicas, como a de Platão, Aristóteles, Descartes, Leibniz ou Kant, e com classificações estabelecidas, como
a de teoria do conhecimento, metafísica ou moral, Nietzsche
corresponde às expectativas daqueles que visavam a introduzir
na filosofia a lógica das rupturas literárias e artísticas.
60 NIETZSCHE. Oeuvres philosophiques complètes. Paris: Gallimard, diferentes
datas conforme os volumes.
61 HEIDEGGER, Martin. Nietzsche. Trad. Pierre Klossowski. Paris: Gallimard, 1971.
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Então, no contexto das instituições acadêmicas, prevalecia
um estilo de trabalho, o da história da filosofia, que se achava
essencialmente fundado no comentário de autores consagrados
pela tradição. Contra ele, Deleuze, Foucault, Derrida e outros
lançam mão da idéia de interpretação. Substituem assim a busca fiel do verdadeiro sentido do texto filosófico, praticada pela
erudição universitária, pela busca livre das potencialidades de
significação nele aprisionadas. Passam a explorar imagens, símbolos, metáforas, aforismos e poemas. Procuram conciliar as
vias até então divergentes da exegese e da criação e suprimir as
fronteiras entre a filosofia e a literatura. E assim levam o comentário a ceder lugar à interpretação.
Por obra dos jovens pensadores franceses, Nietzsche se torna
o filósofo da interpretação. Bem mais: ele se converte sobretudo no filósofo dos intérpretes. Deixando de relacionar-se com
um sentido determinado, sua obra se transforma em suporte
dos discursos que ela suscita. Em vez da busca pelo comentário
legítimo, presencia-se a coexistência da pluralidade de interpretações. Contra a ideologia acadêmica do texto, confere-se uma
dignidade nova ao “leitor” e a ele se atribui a autoridade quanto
à pertinência ou não das diferentes leituras.
A proliferação de interpretações do pensamento nietzschiano, nas décadas de 1960 e 1970, revela duas tendências básicas. De
um lado, ao contrário da geração precedente, os jovens filósofos
franceses deixam de se interessar por Hegel, Husserl e Heidegger.
Embora os assim chamados “três Hs” continuem a exercer grande
influência, são os problemas formulados por um novo triunvirato,
o de Marx, Nietzsche e Freud, que ganha importância. De outro,
eles passam a preocupar-se com o estilo do discurso filosófico. A
maneira pela qual Nietzsche escreve importa tanto quanto o que
ele escreve, de sorte que se impõe questionar as formas literárias
que se dispõem a sustentar o conteúdo filosófico.
Reviravolta extremamente relevante é esta. Com o primado
atribuído à interpretação e, por conseguinte, o acordo entre
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exegese e criação, com o privilégio conferido ao estilo e a tão
desejada aproximação da filosofia e da literatura, logra-se levar
a bom termo uma empresa tantas vezes abortada no passado: a
da legitimação filosófica de Nietzsche.
* * *
Um pensador que ousa desafiar a ortodoxia com as armas
legítimas da cultura filosófica, é dessa maneira que Deleuze
apresenta o autor de Zaratustra. Empenhado em construir uma
nova imagem pública do filósofo, faz com que ele passe de escritor marginal a pensador que antecipa os temas filosóficos então dominantes.
Em 1962, Gilles Deleuze publica Nietzsche e a filosofia62,
em que põe em relevo a noção de valor e salienta a importância
do procedimento genealógico. Ao tentar reconstruir, de modo
original, o pensamento nietzschiano, procura ressaltar o seu
caráter “resolutamente antidialético”. Sustentando ser Hegel
seu principal alvo de ataque, afirma que “o anti-hegelianismo
atravessa a obra de Nietzsche, como o fio da agressividade”63.
O cerne de sua argumentação reside em mostrar que, se Hegel
trabalha com o “não dialético”, Nietzsche suprime o poder independente da negação e abre espaço para o “sim dionisíaco”.
O abismo que separa a negação dialética e a afirmação dionisíaca apontaria um outro: o que se instaura entre o monismo metafísico e o pluralismo radical. Em Hegel, a reconciliação das
oposições implicaria a supressão da diferença; em Nietzsche,
a filosofia pluralista exigiria justamente a afirmação dela e, por
isso, teria na dialética o seu “mais feroz”, o seu “único inimigo
profundo”.
Movido pelo desejo de fazer da filosofia nietzschiana sua
principal aliada no combate ao hegelianismo, Deleuze acaba
62 DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 1962.
63 DELEUZE, Gilles. Nietzsche et la philosophie. Paris: PUF, 4ª ed., 1973, p. 9.
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por ignorar alguns de seus aspectos determinantes. Isso não
invalida, porém, a legitimidade de sua leitura; ao contrário,
revela que, em sua reflexão, história da filosofia e filosofia se
entrecruzam64.
É bem verdade que, elegendo Hegel como seu adversário
privilegiado, Deleuze se esforça para desvalorizar a filosofia
alemã, capital das vanguardas da geração anterior. Para além do
que haviam sido seus pontos fortes, erudição, profundidade,
senso moral, ele descredita o modelo do filósofo universitário
alemão em proveito do filósofo criador, portador da diferença,
que ignora tanto os limites geográficos quanto acadêmicos.
Com tal reviravolta, Deleuze procede também a uma volta.
Nietzsche aparece agora como esse alemão não-alemão, poeta
e filósofo ao mesmo tempo; ele recobra assim imagens que dele
construíram seus primeiros leitores na França. Mas, se o livro
de Deleuze se torna uma referência maior para os estudiosos do
pensamento nietzschiano, ele promove ainda o aparecimento
de um direito, senão de um dever: o de originalidade filosófica.
* * *
Em 1964, no Colóquio de Royaumont, Foucault apresenta
um trabalho intitulado “Nietzsche, Marx, Freud”. Nessa ocasião, sustenta que eles constituem os pontos de referência e os
parâmetros da reflexão filosófica em nosso tempo. Não se trata,
pois, de examiná-los para contrapor suas idéias ou de recorrer a
um deles para demolir o outro. Aproximando os três pensadores,
64 No estudo intitulado “Deleuze et son ombre”, em 1998, procurei examinar a
leitura que o pensador francês propõe no seu livro sobre a filosofia nietzschiana.
In: Alliez, Eric (org.). Gilles Deleuze une vie philosophique. Le Plessis-Robinson:
Institut Synthélabo pour le progrès de la connaissance, 1998, p. 233-242 (Coleção
“Les empêcheurs de penser en rond”). Dois anos depois, apareceu em português.
Para minha surpresa, traduziram para a minha língua, sem o meu conhecimento,
a versão francesa que eu mesma fizera do texto original, suprimindo inclusive o
último parágrafo. Cf. “Deleuze e sua sombra”. In: ALLIEZ, Eric. Gilles Deleuze:
uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 235-243.
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Foucault busca relacioná-los, fazendo ver que, no século XIX,
em vez de multiplicarem os signos no mundo ocidental, modificaram sua natureza e criaram outra possibilidade de interpretálos. Se na hermenêutica do século XVI os signos se dispunham
de modo homogêneo em espaço homogêneo, remetendo-se uns
aos outros, no século XIX aparecem de modo diferenciado segundo a dimensão da profundidade, entendida como exterioridade. Se antes o que dava lugar à interpretação era a semelhança,
que só podia ser limitada, agora a interpretação torna-se tarefa
infinita. Nessa medida, a filosofia de Nietzsche – que é o que nos
interessa – seria “uma espécie de filologia sempre em suspenso,
uma filologia sem termo, que se desenrolaria sempre mais, uma
filologia que nunca estaria fixada de maneira absoluta”65.
Essa idéia, aliás, aparece em outros textos. No prefácio ao
Nascimento da Clínica, Michel Foucault afirma que Nietzsche,
filólogo, comprova que à existência da linguagem se vinculam
a possibilidade e necessidade de uma crítica66. Em As Palavras
e as Coisas, declara que Nietzsche, filólogo, foi o primeiro a
aproximar a tarefa filosófica de uma reflexão radical sobre a linguagem67. E, ao tratar da renovação das técnicas de interpretação do século XIX, sustenta que a filologia se tornou a forma
moderna da crítica e recorre, para ilustrar essa tese, à análise de
uma passagem do Crepúsculo dos Ídolos: “Temo que não nos
desvencilharemos de Deus, porque ainda acreditamos na gramática...”68. Deus estaria antes num aquém da linguagem do
que num além do saber. Abrindo o espaço filológico-filosófico
com a questão “quem fala?”, Nietzsche partiria sempre da pergunta por quem interpretou. Ele não se empenharia em tratar
dos significados nem se preocuparia em falar do mundo, mas
65 FOUCAULT, Michel. “Nietzsche, Freud, Marx”. In: Nietzsche Cahiers de
Royaumont. Paris: Minuit, 1967, p. 188.
66 FOUCAULT, Michel. La Naissance de la Clinique. Paris: PUF, 2ª ed., 1972,
prefácio, p. XVII.
67 FOUCAULT, Michel. Les Mots et les Choses. Paris: Gallimard, 1966, p. 316.
68 NIETZSCHE. KSA 6, p. 78; GD/CI, A “razão” na filosofia, § 5.
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se dedicaria a interpretar interpretações. Portanto, o caráter
inovador de seu pensamento residiria no fato de inaugurar uma
nova hermenêutica69.
As referências de Foucault a Nietzsche estão presentes ao longo
de sua obra, desde A História da Loucura até os cursos proferidos no Colégio de França (Collège de France) em 1976 – sem mencionar artigos e entrevistas70. As marcas que a leitura do filósofo
deixou em seu pensamento são, sem dúvida, perceptíveis: desinteresse por uma obra sistemática, primado da relação sobre o objeto,
papel relevante da interpretação, importância dos procedimentos
estratégicos e até mesmo absorção da noção de genealogia. Seu
próprio método teria surgido, de acordo com Paul Veyne, da meditação sobre alguns textos de Nietzsche71. Foucault, porém, adverte: “A história do saber só pode ser feita a partir do que lhe foi
contemporâneo e não, é claro, em termos de influência recíproca,
mas em termos de condições e de a priori constituídos no tempo”72
– o que se poderia aplicar a seu próprio trabalho.
Se, por vezes, o pensamento de Nietzsche parece oferecer resistências à leitura de Foucault, é provável que essa leitura não
se dê a conhecer nos textos que tratam diretamente do filósofo.
Talvez Foucault encare Nietzsche menos como objeto de análise do que como instrumento; talvez se relacione com ele menos como o comentador com seu interpretandum do que como
69 No trabalho que tem por título “Foucault leitor de Nietzsche”, contei avaliar
as posições que o pensador francês assume em relação à filosofia nietzschiana. In:
MARTON, Scarlett. Extravagâncias. Ensaios sobre a filosofia de Nietzsche. São
Paulo: Discurso Editorial/Ed. Unijuí, 2a ed., 2002, p. 199-211 (coleção Sendas &
Veredas).
70 Dentre eles, a “Resposta ao Círculo de Epistemologia”. In: Cahiers pour
l’Analyse no 9 (été 1968); “Conversa sobre a prisão: o livro e seu método”. In: Magazine Littéraire 101 (juin 1975); “Questões a Michel Foucault sobre a geografia”.
In: Hérodote no 1 (1976).
71 Cf. VEYNE, Paul. “Foucault révolutionne l’histoire”. In: Comment on écrit
l’histoire. Paris: Seuil, 1978, p. 240, nota 11. Veyne refere-se ao parágrafo 11 da
Primeira Dissertação da Genealogia da Moral e aos fragmentos póstumos 70 e 694
da edição canônica da Vontade de Potência.
72 FOUCAULT, Michel. Les Mots et les Choses. Paris: Gallimard, 1966, p. 221.
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o pensador com sua caixa de ferramentas. Seus momentos de
silêncio em relação ao filósofo podem ser mais reveladores do
que aqueles em que dele fala. “Hoje”, diz Foucault em 1975,
“fico mudo quando se trata de Nietzsche. No tempo em que era
professor, dei freqüentemente cursos sobre ele, mas não mais o
faria hoje. (...) A presença de Nietzsche é cada vez mais importante. Mas me cansa a atenção que lhe é dada para fazer sobre
ele os mesmos comentários que se fizeram ou se fariam sobre
Hegel ou Mallarmé. Quanto a mim, os autores de que gosto,
eu os utilizo. O único sinal de reconhecimento que se pode ter
para com um pensamento como o de Nietzsche é precisamente
utilizá-lo, deformá-lo, fazê-lo ranger. Que os comentadores digam se se é ou não fiel, isto não tem nenhum interesse”73.
* * *
No inverno de 1969-1970, Derrida dirige um seminário na Escola Normal Superior de Paris (École Normale Supérieure), voltado para uma teoria do discurso filosófico com especial ênfase
no estatuto da metáfora. Nele, Nietzsche será figura central.
O seminário marca um ponto importante no interesse crescente pelo filósofo nesse período; propõe um ângulo de visão
que virá a ser adotado em numerosos trabalhos posteriores74,
ângulo esse que se poderia definir como uma tentativa de interpretar o pensamento de Nietzsche quase exclusivamente em
termos de sua teoria da linguagem.
Embora nunca tenha elaborado uma obra mais abrangente
acerca do filósofo, Jacques Derrida a ele se refere explícita ou
implicitamente em quase todos os seus trabalhos. Na Grama73 FOUCAULT, Michel. “Les jeux du pouvoir”. In: GRISONI, Dominique
(org.). Politiques de la Philosophie. Paris: Bernard Grasset, 1976, p. 173-174.
74 Dentre eles, há que se mencionar os de Bernard Pautrat (Versions du soleil.
Figures et système de Nietzsche. Paris: Seuil, 1971), Jean-Michel Rey (L’Enjeu des
signes. Lecture de Nietzsche. Paris: Seuil, 1971) e Sarah Kofman (Nietzsche et la
métaphore. Paris: Payot, 1972), que tomaram parte no seminário.
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tologia, por exemplo, esclarece as maneiras pelas quais o texto de Nietzsche funciona como uma “referência importante”,
“radicalizando os conceitos de interpretação, perspectiva, avaliação, diferença e todos os motivos ‘empiristas’ ou não-filosóficos que, ao longo da história do Ocidente, não cessaram de
atormentar a filosofia e tiveram apenas a debilidade, aliás inelutável, de se produzir no campo filosófico”75. E, nas Margens
da filosofia, ao tratar das fontes a que Valéry recorre, a começar
por aquelas que ele descarta, Derrida elenca os temas que levariam o poeta a aproximar-se de Nietzsche: a desconfiança sistemática em relação à metafísica em sua totalidade; a suspeita em
face dos valores de verdade, sentido e ser; as questões retóricas
e históricas que devem ser postas à história da filosofia; o conceito de filósofo artista e assim por diante76.
É enquanto resposta crítica à onto-fenomenologia heideggeriana que se coloca a leitura que Derrida faz do pensamento nietzschiano. Com Éperons - Les styles de Nietzsche, ele oferece uma
alternativa às diferentes interpretações do filósofo, e, em particular, àquela proposta por Heidegger. Publicado em 1978, o livro
consiste numa nova versão do trabalho que apresentara no Colóquio de Cerisy em 1972 com o título “A questão do estilo”77.
A discussão estrutura-se em torno de três questões, sendo que
cada uma apresenta um aspecto crítico em relação a Heidegger:
a questão do texto, a questão do próprio e a questão do estilo.
Ao levantar a primeira delas, Derrida trata da concepção nietzschiana de mulher e, por essa via, põe em cena o problema da
verdade nos escritos do filósofo. Ataca assim a leitura heideggeriana por não ter dado atenção à posição da mulher, falha essa
que não só revela uma concepção inadequada dos meandros do
texto nietzschiano como mostra a falência da tradição falogo75 DERRIDA, Jacques. De la Grammatologie. Paris: Minuit, 1967, p. 31-32.
76 DERRIDA, Jacques. Marges de la Philosophie. Paris: Minuit, 1972, p. 362-363.
77 DERRIDA, Jacques. Éperons. Les styles de Nietzsche. Paris: Flammarion, 1978.
Em sua primeira versão, cf. “La question du style”, in Nietzsche aujourd’hui. Paris:
Union Générale d’Éditions, 1973, t.I, p. 235-287.
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cêntrica, que nunca encarou o feminino como tema merecedor
de uma séria reflexão.
Num segundo momento, Derrida toma em consideração o
lugar de Nietzsche no contexto do pensar metafísico. Aqui, ele
se afasta explicitamente de Heidegger, que vê o filósofo como
o último grande representante dessa tradição, transmutando a
questão heideggeriana do Ser, de ordem metafísica, na questão
nietzschiana do próprio, de caráter axiológico.
Por fim, Derrida traz à luz a questão do(s) estilo(s) presente(s)
nos escritos de Nietzsche e, com isso, a problemática da interpretação. Sua principal objeção ao método hermenêutico reside
no objetivo a que ele se proporia: re-produzir ou duplicar o texto. Conservador e improdutivo, tal método se limitaria a proteger o sentido que ele julga presente no texto, sentido esse que
transcenderia o jogo dos signos. O equívoco básico desse procedimento, que o pensador francês chama de “comentário”, consistiria, a seu ver, em deslocar o sentido para fora do texto. Ora,
o método de interpretação ativa, que Derrida então propõe, parte da proposição de que não existe nada fora do texto. Com sua
leitura crítica, ele procura produzir as “estruturas significativas”
que constituem elas próprias parte integrante do escrito.
* * *
O Colóquio de Cerisy oferece uma ocasião ímpar para se
estudar os pólos do nietzschianismo de vanguarda. Organizado em julho de 1972, ele congrega pensadores franceses e ale
mães na sua maioria, para debater o tema “Nietzsche hoje?”78.
78 As comunicações assim como as discussões que a elas se seguiram foram publicadas em dois alentados volumes, que tiveram por título Nietzsche aujourd’hui
(Paris: Union Générale d’Éditions, 1973). A partir de uma seleção dos textos apresentados no evento, organizei Nietzsche hoje? Colóquio de Cerisy (São Paulo:
Brasiliense, 1985), trazendo a público nove trabalhos seguidos das discussões que
então ensejaram. Procurei oferecer ao leitor brasileiro a máxima diversidade, diversidade de temas, abordagens e perspectivas. Há muitos anos acha-se esgotado.
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Ao contrário do Colóquio de Royaumont, que se caracterizava
pela presença de autores reconhecidos e mais velhos, o de Cerisy aparece como um espaço favorável à mobilização de jovens
estudiosos, que em sintonia com o espírito da época articulam
filosofia e política.
Depois de maio de 68, Nietzsche se beneficia de uma conjuntura marcada pelos valores do vitalismo e espontaneísmo. A
radicalização ideológica caracterizada pela politização do discurso filosófico de vanguarda representa uma ruptura em face
do apolitismo até então dominante. Afastando-se da forma de
engajamento, praticada por exemplo por Sartre, e do pathos teórico da consciência e da história, que julgavam ultrapassados,
os pensadores da nova geração se lançam num ativismo que
proclama a necessidade de subverter as instituições encarregadas de manter a ordem social.
É bem verdade que, tanto no Colóquio de Cerisy quanto no
de Royaumont, presenciam-se as mais diversas interpretações
da obra de Nietzsche. Lado a lado, comparecem leituras
heideggerianas, desconstrutivistas, hermenêuticas, retóricas,
históricas, filológicas, genealógicas, materialistas, psicanalíticas
e outras mais.
Em Cerisy, Deleuze, Lyotard e também Klossowski79 exploram em outra direção a trilha aberta por Foucault no Colóquio
de Royaumont em 1964. Insistem em atribuir a Nietzsche lugar
privilegiado: na opinião de Lyotard, só ele permite um discurso
de intensidades máximas; segundo Klossowski, ele e Marx se
acham em pontos diametralmente opostos; para Deleuze, ele
opera uma decodificação absoluta, enquanto Freud e Marx
apenas recodificações. Deleuze pergunta o que é ser nietzschiano
79 Seria difícil super-estimar a importância de Klossowski no contexto da recepção francesa de Nietzsche. De certo modo, ele estabelece uma ponte entre duas
gerações: a dos anos de 1930, marcada pelo trabalho de Georges Bataille, e a dos
anos 1960, representada pela obra de Gilles Deleuze. Em 1969, seu livro Nietzsche
et le cercle vicieux (Paris: Mercure de France, 1969) propôs uma interpretação inovadora da doutrina nietzschiana do eterno retorno do mesmo.
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hoje; preparar um trabalho sobre Nietzsche ou produzir, no
curso da experiência, enunciados nietzschianos? Lyotard considera marginais, hippies, artistas experimentais, loucos, parasitas
e internados mais nietzschianos que os leitores de Nietzsche;
Klossowski propõe que se recrie com Nietzsche um novo comportamento de luta e uma nova estratégia. Recorrem ao filósofo
para refletir sobre política, arte, cultura, psiquiatria; tomamno como referência para pensar seqüestros e justiça popular,
ocupação de fábricas e squattings, insurreições e comunidades
antipsiquiátricas, happenings e pop art, a música de Cage e os
filmes de Godard. Não pretendem pensar a atualidade do texto
nietzschiano, mas pensar a atualidade através dele.
Nessa ocasião, Deleuze80, Lyotard81 e também Klossowski82
parecem atentos àquilo que o discurso nietzschiano suscita; norteiam-se menos pelas idéias do filósofo que pela perspectiva que
acreditam apontar. Antes de mais nada, Nietzsche serve como um
nome próprio para a possibilidade de pensar de outro modo83.
Acerca da questão “como ler Nietzsche?”, Deleuze e Lyotard tomam posição no Colóquio de Cerisy. Entendem que ele
não se presta a comentários, como Descartes ou Hegel. Nele,
a relação com o exterior não é mediada pela interioridade do
conceito ou da consciência; as palavras não valem como significações, representações das coisas. E querer comentá-lo, revelar
o sentido de seu discurso, implica tomar o partido da interio80 Cf. DELEUZE, Gilles. “Pensée nomade”. In: Nietzsche aujourd’hui? Paris:
Union Générale d’Éditions, 1973, vol.1, p. 159-174; em português, “Pensamento
nômade”. In: MARTON, Scarlett (org.). Nietzsche hoje? São Paulo: Brasiliense,
1985, p. 56-76.
81 Cf. LYOTARD, Jean-François. “Notes sur le retour et le kapital”. In: Nietzsche
aujourd’hui? Paris: Union Générale d’Éditions, 1973, vol.1, p. 141-157; em português,
“Notas sobre o retorno e o Kapital”. In: MARTON, Scarlett (org.). Nietzsche hoje?
São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 44-55.
82 Cf. KLOSSOWSKI, Pierre. “Circulus vitiosus”. In: Nietzsche aujourd’hui? Paris:
Union Générale d’Éditions, 1973, vol.1, p. 91-103; em português, “Circulus vitiosus”.
In: MARTON, Scarlett (org.). Nietzsche hoje? São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 91-103.
83 SCHRIFT, Alan D. Nietzsche’s French Legacy: A Genealogy of Poststructuralism. Londres: Routledge, 1995, p. 10.
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ridade e da representação. É preciso, ao contrário, fazer uma
leitura intensiva do filósofo; no dizer de Deleuze, conectar o
texto com a força exterior pela qual ele faz passar algo ou, no de
Lyotard, produzir novas, diferentes intensidades. Com isso, o
autor desapareceria no texto e este, nos leitores.
Na Alemanha, à imagem nacional-socialista de Nietzsche
construída no Terceiro Reich veio opôr-se a marxista, que via
seu pensamento como expressão da luta da burguesia contra o
socialismo. E, a partir do início da década de setenta, a esta última imagem intelectuais franceses contrapuseram outra, a que
tomava sua filosofia justamente como aliada no combate ao
emburguesamento.
É nessa direção que caminha Michel Foucault. Aproximando Nietzsche, Freud e Marx, seu trabalho serviu, por um lado,
como ponto de partida para as reflexões que Deleuze, Lyotard e
Klossowski vieram a desenvolver acerca da atualidade do pensamento nietzschiano. E, por outro, provocou reações imediatas da parte dos ideólogos na antiga República Democrática da
Alemanha. Insurgindo-se contra a idéia de colocar Nietzsche e
Marx lado a lado, eles sustentaram não ser possível nem legítimo pretender que ambos tivessem algum ponto em comum.
Por não ater-se ao passado, Deleuze não se preocupa com
a utilização indevida que fascistas e nazistas fizeram dos escritos de Nietzsche; entende que com ela Jean-Wahl, Klossowski e Bataille já haviam acertado as contas. Por voltar-se para
o futuro, empenha-se em ressaltar o caráter ativo das idéias do
autor de Zaratustra; julga que nelas se manifesta grande força revolucionária. Seguindo em vários pontos a interpretação
de Foucault, considera que, se a “trindade” Nietzsche, Marx e
Freud se achava na aurora da modernidade, o primeiro nome
que a constituía deveria ocupar posição de destaque. As idéias
de Freud e as de Marx concorreram para desmontar os códigos sociais estabelecidos; o marxismo e a psicanálise, enquanto
“as duas burocracias fundamentais”, voltaram a normalizar a
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vida pública e a privada. Contra a “cultura burguesa”, de que
acredita fazer parte inclusive o pensamento marxista, Deleuze
procura utilizar a filosofia nietzschiana. Contra a construção
da imagem marxista do filósofo, que condena o estilo aforismático que ele adotou em vários de seus textos, o pensador francês
quer resgatar o aforismo como instrumento de luta.
* * *
À fase de celebração do filósofo se segue no final dos anos de
1970 a reação neo-kantiana ao pós-estruturalismo. Os neo-kantianos questionam a crítica ao humanismo empreendida pelos pósestruturalistas; julgam que ela foi cúmplice da violação dos direitos
humanos no Cambodja e na União Soviética. E procuram fazer
um acerto de contas com o Nietzsche da contra-cultura.
No livro O Pensamento 68: Ensaio sobre o antihumanismo
contemporâneo, Luc Ferry e Alain Renault apontam a necessidade de renovar a noção de sujeito e resgatar a idéia de comunidade fundada em princípios liberais e democratas. Nos
anos de 1980 e 1990, o sujeito parece ressuscitar junto com um
certo humanismo; o direito e a ética, em nome da construção
da pessoa ou da responsabilidade, exigem que reapareça. Tendo
no horizonte a questão dos direitos humanos, trata-se agora de
abraçar o modelo de uma sociedade das nações e sustentar que
tudo deve convergir para uma espécie de harmonia final.
Em 1991, Luc Ferry e Alain Renaut, dentre outros, procuram explicar Por que não somos nietzschianos84. No final da década de 1960, a extrema-esquerda francesa fizera de Nietzsche
o suporte de suas teorias. Nas décadas de 1970 e 1980 na França,
intelectuais de peso privilegiaram a vertente corrosiva do seu
pensamento. Incluíram-no ao lado de Marx e Freud entre os
“filósofos da suspeita”; e entenderam a filosofia como “exercício
84 Cf. BOYER, Alain et allii. Pourquoi nous ne sommes pas nietzschéens. Paris:
Bernard Grasset & Fasquelle, 1991.
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infinito da desconstrução”. Na década de 1990, reivindicando “a exigência ancestral da racionalidade”, alguns polemistas
querem pensar com Nietzsche contra o nietzschianismo; melhor ainda, contra determinada utilização das idéias do filósofo.
E voltam contra seus mestres, Foucault, Deleuze, Derrida e outros, as armas que estes lhes ensinaram a manejar.
Mas o propósito que declaram perseguir não os impede de fazer
recortes arbitrários nos textos ou se apoiar em citações extraídas da
Vontade de Potência, sem levar em conta que este foi um livro inventado pela irmã do filósofo85. De fato, combatendo o que julgam
ser uma apropriação ideológica, a de apresentar Nietzsche como
o mestre da suspeita, limitam-se a substituir uma imagem sua por
outra. E com a agravante de que esta nova imagem, na verdade, reedita outras bem mais antigas: a de Nietzsche racista e anti-semita
ou, na melhor das hipóteses, a de Nietzsche comprometido com
o pensamento tradicional. Se, de modo geral, Por que não somos
nietzschianos peca por falta de reflexão filosófica e excesso de estados psicológicos, relatos autobiográficos, para além da aparente
catarse, tem um objetivo político muito preciso: demarcar território, conquistar espaço no cenário intelectual francês.
* * *
Nas décadas de 1980 e 1990, a recepção francesa do pensamento nietzschiano revela uma grande variedade. Tal diversidade se
explica, ao menos em parte, pelo fato de que são pesquisadores de
diferentes áreas que se ocupam com o filósofo. Os germanistas, por
exemplo, que eram atuantes até os anos de 1950, voltam a se interessar por ele86. Por outro lado, velhos temas retornam à discussão. Sua
relação com os judeus, sua associação com o nacional-socialismo,
85 É justamente o caso do artigo de André Comte-Sponville, “A besta-fera, o sofista
e o esteta: ‘a arte a serviço da ilusão’”. In: BOYER, Alain et allii. Por que não somos
nietzschianos. Trad. Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Editora Ensaio, 1994, p. 37-96.
86 Há que se lembrar aqui da contribuição inegável de Jacques Le Rider, com o seu
Nietzsche en France. De la fin du XIXe siècle au temps présent. Paris: PUF, 1999.
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são alguns deles87. Também é fato que leituras consolidadas ainda
encontram o seu lugar, dentre elas a heideggeriana88. Como todo
clássico, Nietzsche se tornou inesgotável; fala-se muito sobre ele,
mas também através dele se fala sempre de outra coisa.
Importa notar, porém, que tanto a celebração eufórica do filósofo quanto sua apropriação política cederam lugar a um sério interesse pela posição que ele ocupa na história das idéias. Em várias
ocasiões, mais admirado que alguns pensadores franceses contemporâneos seus; diversas vezes traduzidos, muitas outras comentado,
autor de referência tanto para os literatos quanto para os acadêmicos, Nietzsche se põe hoje sobretudo como um objeto de estudo
dos mais intrincados e complexos e, por isso mesmo, dos mais ricos
e instigantes. Para essa nova visão do filósofo, contribuíram as pesquisas de Éric Blondel e Patrick Wotling89. Na esteira dos trabalhos
que desenvolveram e continuam a desenvolver, surgiu uma nova geração de estudiosos que já deu provas de sua competência.
Neste volume, acham-se reunidos textos de Éric Blondel, Patrick Wotling, Blaise Benoit, Céline Denat e Yannis Constantinidès,
que, em diferentes momentos, eu tive o privilégio de introduzir ao
público brasileiro90.
87 Cabe lembrar das posições recentemente assumidas por Philippe Lacoue-Labarthe e Jean-Luc Nancy.
88 Que se tome como exemplo os trabalhos de Michel Haar: Nietzsche et la métaphysique. Paris: Gallimard, 1993; Par-delà le nihilisme. Nouveaux essais sur Nietzsche. Paris: PUF, 1998.
89 Vale mencionar duas obras que constituem hoje referências para os estudiosos
do pensamento nietzschiano: BLONDEL, Éric. Nietzsche, le corps et la culture: la
philosophie comme généalogie philologique. Paris: PUF, 1986; WOTLING, Patrick. Nietzsche et le problème de la civilisation. Paris: PUF, 1995.
90 De Éric Blondel, publiquei o trabalho intitulado “Nietzsche: a vida e a metáfora” nos Cadernos Nietzsche no 16 (maio de 2004), e de Patrick Wotling, o estudo
que tem por título “As paixões repensadas: Axiologia e afetividade no pensamento
de Nietzsche” nos Cadernos Nietzsche no 15 (setembro de 2003). De Blaise Benoit,
publiquei o texto então inédito “Meio-dia, instante da mais curta sombra” nos
Cadernos Nietzsche no 23 (setembro de 2007); de Céline Denat, o escrito intitulado
“Nietzsche, pensador da história? Do problema do ‘sentido histórico’ à exigência
genealógica” nos Cadernos Nietzsche no 24 (maio de 2008); de Yannis Constantinidès, o artigo que tem por título “O niilismo extático como instrumento da Grande
Política” nos Cadernos Nietzsche no 22 (maio de 2007).
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Nietzsche:
A vida e a metáfora1
Éric Blondel
Concede-se, de bom grado, que a linguagem de Nietzsche
é tão-somente “koenigsberguiana”. Ele, de sua própria parte,
proclamou: “Depois de Lutero e Goethe, restaria ainda um
terceiro passo a ser dado”2. Mas então há que se arrancar dessa particularidade, rara entre os filósofos, todas as conseqüências metodológicas que lhe poderiam resultar? Insistiu-se, até o
momento, em considerar a escrita “poética” e metafórica de
Nietzsche, ora como a simples ornamentação da prosa filosófica – não raro insípida – por parte de um poeta genial, ora como
uma decoração que os “literários” tanto privilegiam e que os
filósofos se esforçam desesperadamente para pôr de lado. Seria, no entanto, muitíssimo sensato, ou, então, assaz filosófico indagar se o “estilo” de Nietzsche não encarnaria, por sua
deliberada escolha pela polissemia metafórica em oposição à
neutralidade conceitual, a exigência mesma de uma preferência filosófica determinada, análoga, até mesmo em sua escrita,
1 Artigo publicado em Cadernos Nietzsche, no 16, 2004, p. 7-51. Tradução: Fernando de Moraes Barros.
2 Carta a Erwin Rohde a 22 de fevereiro de 1884.
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É R IC BLON DEL
àquela dos Pré-socráticos. Já que, para Nietzsche,“a metáfora
não constitui, para o verdadeiro poeta, uma figura de retórica, mas, antes, uma imagem substitutiva que, no lugar de uma
idéia, paira realmente diante de seus olhos” (GT/NT § 8).
“Fomos capazes de criar formas muito antes de saber criar
conceitos” (XI, 25[463]). E por que não aplicar, desde logo,
também esse comentário a Nietzsche e a sua filosofia, como
muitas vezes já se fez, sob o modo biográfico ou filosófico,
em relação a outras observações bem menos fundamentais?
Pois, até agora, prestou-se demasiada ou pouquíssima atenção às metáforas, às imagens, e, em linhas gerais, às formas
de discurso em Nietzsche. Dá-se atenção em demasia seja
por força de considerar a idiossincrasia de seu estilo como
busca poética ou pura literatura destinada a seduzir os filólogos ou entusiasmar os adolescentes – donde o exorbitante
privilégio conferido a Assim falava Zaratustra pelos leitores apressados3 –, seja pelo fato de que se abstrai, nesse caso,
a expressão do próprio pensamento: o filósofo se acha “esmagado pela estátua”4 do poeta. Dá-se muito pouca atenção
porque, sob o pretexto de rigor filosófico ou “cientificidade”, tais metáforas não parecem jamais terem sido consideradas nelas mesmas, a não ser enquanto vestimenta retórica
a ser arrancada a fim de que se alcance, pois, conceitos falsamente vaporosos por si próprios.
Baseando-se em alguns exemplos e reconduzindo suas “imagens” – ou metáforas – ao seu rigor coerente, pretende-se aqui
mostrar, de maneira inversa, que a metafórica de Nietzsche se
impõe por uma necessidade especificamente filosófica e que
seu discurso é intrinsecamente metafórico em virtude de ser
pensamento da metá-fora; se se entende, desta feita, tal palavra
3 Em Qu’appelle-t-on penser? (Trad. Becker e Granel. Paris: PUF, [s.d.], p. 48),
Heidegger deplora o fato de que tal “livro para todos e para ninguém” tenha “terminado por se tornar um livro para qualquer um”.
4 Za/ZA, “Da virtude dadivosa” § 3.
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