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A reforma da Lei da Arbitragem (uma primeira visão)
A REFORMA DA LEI DA ARBITRAGEM (UMA PRIMEIRA VISÃO)
Revista de Arbitragem e Mediação | vol. 40/2014 | p. 17 | Jan / 2014
Doutrinas Essenciais Arbitragem e Mediação | vol. 1 | p. 249 | Set / 2014
DTR\2014\1013
Arnoldo Wald
Doutor honoris causa da Universidade de Paris II. Professor Catedrático da Faculdade de Direito da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Advogado.
Área do Direito: Arbitragem
Resumo: O presente artigo aborda o aperfeiçoamento da Lei de Arbitragem, atualmente em
processo de reforma. Salienta a importância do Projeto de reforma da Lei de Arbitragem, em virtude
de resolver, em definitivo, questões enfrentadas pela jurisprudência pátria, a exemplo da
arbitrabilidade de questões envolvendo entes estatais, contrato de adesão e consumo, conflitos
individuais de trabalho e a convenção de arbitragem sob a perspectiva do direito societário. Abordou
ainda, o Projeto, diversas questões objeto da legislação civil e processual, entre outros tantos temas
relevantes. Outrossim, o autor sugere a inclusão de dois temas no escopo da reforma, quais sejam, a
incorporação da convenção de arbitragem por referência e os conflitos de competência entre árbitros
e juízes. Por fim, salienta que os dispositivos da Convenção de Nova Iorque devem prevalecer no
que tange à homologação de sentenças arbitrais estrangeiras.
Palavras-chave: Arbitragem - Reforma da Lei de Arbitragem - Projeto - Incorporação por referência
- Conflitos de competência - Homologação de sentenças arbitrais estrangeiras.
Abstract: The present article looks at the enhancement of the Brazilian Arbitration Law, which is
currently subject to reform. The article stresses the importance of the Draft Bill on the reform of the
Arbitration Law, since it resolves, definitively, matters which have been subject to judicial decisions,
such as the arbitrability of matters involving State entities, adhesion contracts and consumer
contracts, individual labour disputes and the arbitration agreement from a corporate law perspective.
Further, the Draft Bill considers issues which are governed by civil and procedural law, besides
various other relevant topics. The author also proposes the inclusion of two additional themes within
the scope of reform, namely, incorporation by reference of arbitration agreements and conflicts of
jurisdiction between arbitrators and judges. Finally, the author stresses that the provisions of the New
York Convention should prevail as far as recognition of foreign arbitral awards is concerned.
Keywords: Arbitration - Reform of the Arbitration Law - Draft Bill - Incorporation by reference Conflicts of jurisdiction - Recognition of foreign arbitral awards.
Sumário:
É da maior oportunidade o Projeto de Lei que amplia o âmbito de aplicação da arbitragem, cujo texto
foi remetido ao Presidente do Senado e cuja tramitação se iniciou. É importante reconhecer que está
sendo bem recebido, tanto pelos advogados especializados na matéria como pelos meios
empresariais.
Embora, no seu conteúdo básico, a legislação vigente seja totalmente adequada, o decurso do
tempo e as condições do mercado comprovam que mesmo um excelente diploma, como a Lei 9.307,
de 23.09.1996, possa ser complementado e aperfeiçoado, decorridos mais de 15 anos, diante de
problemas e situações que eram imprevisíveis, na época de sua elaboração. É preciso lembrar que,
naquela fase da nossa história, praticamente não havia prática da arbitragem no Brasil, faltando ao
legislador a contribuição da experiência contratual, que só conhecíamos pela aplicação do direito
estrangeiro nos respectivos países.
A Comissão de advogados e professores, presidida pelo Min. Luis Felipe Salomão, do STJ, após
uma discussão ampla e democrática, conseguiu uma dupla vitória. Em primeiro lugar, soube manter
a estrutura e a substância da lei vigente, fruto do Anteprojeto elaborado pelos Professores Carlos
Alberto Carmona, Pedro Batista Martins e Selma Lemes. Por outro lado, o Projeto aprimorou alguns
artigos da lei vigente, consolidou as conquistas da jurisprudência do STJ e aproveitou alguns
ensinamentos de direito comparado. Teve ainda a vantagem de dirimir divergências
de
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interpretações, que surgiram na prática dos tribunais.
O Projeto de Lei resolve definitivamente algumas questões importantes como as referentes às
arbitragens com a Administração Pública, à incidente nos casos de contratos de adesão e de
consumo, no direito do trabalho, em relação aos contratos individuais, e à convenção de arbitragem
no direito societário, encontrando fórmulas equilibradas e construtivas. Ampliou, assim, o campo de
incidência da arbitragem, mas o fez com moderação e com as cautelas necessárias, aprimorando o
texto da lei atualmente em vigor, sem romper com as nossas tradições. É um texto que representa,
para o nosso direito, uma evolução construtiva e não uma revolução.
Em várias matérias, que eram objeto da legislação civil e processual, fizeram-se as adaptações
necessárias para que pudessem incidir no caso da arbitragem, como ocorreu em relação à
prescrição e à sua interrupção e no tocante à validade da sentença parcial, matérias das quais não
trata a lei vigente. As relações entre o Poder Judiciário e os tribunais arbitrais também foram
facilitadas e aperfeiçoadas, com uma melhor e mais detalhada regulamentação das medidas
cautelares e de urgência, a utilização da carta arbitral e normas oportunas em relação à sentença
arbitral das quais não havia como cogitar no fim do século passado.
Também admitiu o Projeto que as Câmaras estabelecessem listas de árbitros, mas que as partes
pudessem afastar o regulamento, desde que autorizadas pelos órgãos competentes da instituição,
ou que tenham sido por eles aprovados os nomes dos árbitros indicados pelas partes (embora não
constando das listas). Estabeleceu-se assim, um justo equilíbrio, garantindo a liberdade e
flexibilidade, mas mantendo a ordem e a previsibilidade do processo arbitral que as instituições
devem assegurar. Alegou-se que era uma solução tipicamente brasileira, sem precedente no direito
estrangeiro, mas não nos parece ser verdade. O Projeto apenas explicitou o que a maioria das
legislações e as regulamentações admitem implicitamente, ou seja, a liberdade das partes,
conciliada com o controle, que a Câmara deve exercer sobre os processos organizados sob sua
supervisão, exercendo, outrossim, quando útil ou necessário, um papel supletivo diante do
desacordo das partes.
Um dos pontos importantes do Projeto se refere às questões de direito público, em relação às quais,
entendia-se, no passado, que a arbitragem só era possível quando autorizada especificamente por
lei e, assim mesmo, havia quem a considerasse inconstitucional. A reação ocorreu, a partir de 2005,
quando ganhamos, no STJ, por uma decisão unânime da 2.ª Seção, relatada pelo Min. João Otávio
de Noronha, um Recurso Especial para consagrar a validade da arbitragem entre sociedade de
economia mista e empresa comercial, em matéria de eletricidade.1 Em 2008, a 1.ª Seção a admitiu,
tanto nos casos de interesse da Administração direta como indireta, pelo acórdão que proferiu o Min.
Luiz Fux, no MS 11.308,2 tendo posteriormente, a jurisprudência se tornado pacífica, admitindo até a
arbitragem, quando não prevista pelo edital da licitação.3 Agora, o Projeto de Lei encerra toda e
qualquer discussão a respeito do assunto, esclarecendo que a convenção de arbitragem deveria ser
autorizada pela autoridade competente para firmar acordos ou transações e que o processo não
poderia ser confidencial. Trata-se de regra geral que pode admitir exceções decorrentes da lei ou de
decisões judiciais ou até, em nosso entender, em certos casos, pela vontade das partes, quando
provada a sua boa-fé. É uma confirmação da jurisprudência, com esclarecimentos pertinentes a fim
de evitar decisões de autoridades incompetentes ou que ocorram sem a devida transparência.
Com a evolução jurisprudencial e legislativa, passamos, assim, a reconhecer que a cláusula
compromissória deixou de ser extraordinária ou extravagante, equiparando-se à escolha do foro ou
da lei aplicável, pois não deixa de ser uma opção normal para solução dos litígios por um órgão
especializado. Pode, pois, aplicar-se tanto nos contratos administrativos como nos contratos
comerciais.
No tocante ao contrato de adesão e ao contrato de consumo, o Projeto faz as devidas distinções,
mantém e explicita o entendimento da jurisprudência e da legislação vigentes, admitindo que possa
haver convenção de arbitragem desde que o aderente dela tenha efetiva ciência ou concorde com a
mesma.
São medidas de proteção à parte mais fraca que se justificam, pois a convenção de arbitragem é
uma cláusula que, em 15 anos, se tornou comum, mas em relação à qual parte da população não
tem os conhecimentos necessários para decidir aceitá-la, especialmente em certos contextos ou em
determinadas condições. Também no caso, respeitou-se tanto o texto legislativo vigente como
a
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jurisprudência consagrada na matéria, sem prejuízo de uma revisão posterior da matéria na medida
em que o recurso à arbitragem se generalize e se banalize.
Mantém-se, assim, a preocupação de dar ao mesmo tempo rapidez e flexibilidade à arbitragem,
atendendo-se sempre às condições peculiares de cada caso, ao consensualismo e à boa-fé.
Outras disposições importantes tratam das arbitragens multipartes, dos esclarecimentos em relação
ao texto da sentença, que correspondem aos embargos de declaração do processo judicial, do
adendo à Convenção de Arbitragem, da anulação da decisão arbitral, da homologação da sentença
estrangeira e das medidas cautelares.
Espera-se que o Congresso mantenha a linha do Projeto, não modificando um sistema que funciona
bem, sem prejuízo de alguns pequenos acertos e de eventuais complementos para que seja,
totalmente, conforme a Convenção de Nova Iorque que o Brasil ratificou.
Se nos coubesse fazer algumas sugestões a respeito da Lei, acrescentaríamos duas disposições e
modificaríamos a redação de um artigo.
As duas alterações se referem respectivamente à validade da cláusula compromissória por
referência e à solução dos conflitos entre o Poder Judiciário e os tribunais arbitrais.
A multiplicação recente dos regulamentos profissionais aplicáveis internacionalmente a determinados
tipos de operações, tem dado ensejo à utilização das cláusulas compromissórias por referência, que
decorrem da remissão que os contratos fazem a tais regulamentos, nos quais consta a cláusula
compromissória e até, algumas vezes, a sua regulamentação ou a competência das Câmaras para
dirimir os litígios decorrentes das atividades no setor. O STJ teve o ensejo de apreciar tais
referências ao Regulamento da Liverpool Cotton Association – LCA.
Num primeiro caso,4 entendeu-se ser válida e vinculatória a referida cláusula por outros motivos, pois
a parte que contestava a sua validade não o tinha feito no início da arbitragem, reconhecendo assim,
implicitamente, a competência dos árbitros. Num segundo caso,5 entendeu o órgão especial que, no
caso, se tratava de contrato de adesão, invalidando, consequentemente, a cláusula, por falta de
preenchimento dos requisitos legais. A matéria tem sido objeto de estudos doutrinários.6 Para dirimir
eventuais conflitos, que também podem surgir em outras atividades comerciais ou em contratos
conexos, talvez coubesse incluir um artigo ou parágrafo considerando que "É válida e vinculatória a
cláusula compromissória decorrente de referência ou remissão a regulamento aceito expressa ou
tacitamente pelas partes ou a outro contrato por elas firmado".
Outra matéria que poderia ser incluída no Projeto é o reconhecimento explícito da competência do
STJ para dirimir os eventuais conflitos entre os órgãos do Poder Judiciário e os tribunais arbitrais,
aplicando-se o art. 105, I, d, da CF (LGL\1988\3), e o art. 117 do atual CPC (LGL\1973\5). Trata-se
de matéria que já constitui, embora só recentemente, jurisprudência mansa e pacífica do STJ,
conforme se verifica pelo acórdão da 2.ª Seção, no CC 111.230 que comentamos na presente revista
na p. XXX.
Os substanciais votos dos Ministros Nancy Andrighi e Luis Felipe Salomão, que transcrevemos,
convencem que, sendo a decisão arbitral equiparada à sentença judicial, os conflitos de competência
entre a justiça arbitral e o Poder Judiciário devem ser resolvidos pelo STJ, como o são os
decorrentes de divergências de competência entre as justiças estadual e federal.
Tanto os textos constitucional e legal permitem essa interpretação, como ela se impõe também por
razões pragmáticas, a fim de evitar a eternização desses conflitos, cuja decisão, se não se aplicar à
norma por nós invocada, pode demorar uma dezena de anos tão somente para saber-se quem é o
órgão julgador competente. Remetemos o leitor que se interessar pela matéria ao acórdão já citado,
aos nossos comentários e à bibliografia e jurisprudência neles referidos. Haveria assim a
conveniência de incluir na lei um artigo que poderia completar o art. 117 do CPC (LGL\1973\5)
vigente ou de fazer uma modificação nos artigos que tratam do conflito de competência para
explicitar a sua aplicação aos conflitos entre juízes e árbitros.
Finalmente, em relação à homologação de sentença estrangeira, entendemos que, em vez de vedar
a homologação de sentença estrangeira quando anulada no país onde foi proferida, a lei deveria
manter o texto atual, em virtude do qual, é faculdade do STJ homologar ou não a mencionada
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sentença. Na realidade, a redação atual do artigo está de acordo com o texto da Convenção de Nova
Iorque, enquanto o proposto na reforma da lei estabelece uma restrição obrigatória à circulação das
sentenças estrangeiras, que não se justifica em determinados casos, especialmente quando se trata
de decisões proferidas em países que não respeitam o Estado de Direito. Assim, a jurisprudência
francesa e holandesa, e de alguns outros países, tem entendido que as decisões judiciais russas de
natureza política, que anulam sentença arbitral, não devem prevalecer, podendo, nesses casos, a
sentença anulada ser homologada em outros países. Predomina também nos Estados Unidos, em
outras matérias, a ideia de dar ao magistrado, em certos casos, um poder discricionário, verificando,
de modo pragmático, o que é ou não conveniente fazer. Infelizmente, temos ainda vários países nos
quais o poder político influencia o Judiciário para obter sentença anulatória de decisões arbitrais por
interesse político ou até financeiro do governo, quando, por exemplo, o Estado ou uma entidade
estatal ou paraestatal é parte na arbitragem.
O respeito à Convenção de Nova Iorque é também importante, pois o Brasil tem sido considerado
um dos países que respeita o seu texto e seu espírito7 e a violação ou a divergência com a norma do
tratado pode ser interpretada como uma mudança de orientação do nosso legislador o que não nos
parece oportuno.
Também não se justifica a mudança proposta para uniformizar a nossa legislação, considerando que
o Projeto de novo Código de Processo Civil (LGL\1973\5) não admite a homologação de sentença
judicial anulada no país de origem, pois, o CPC (LGL\1973\5) se aplica às decisões judiciais que não
estão abrangidas pela Convenção de Nova Iorque, não havendo assim, conflito entre a norma
processual e o tratado internacional.
Mas podemos considerar que as nossas sugestões não atingem o cerne do Projeto, tratando de
questões que, embora importantes, podem ser consideradas como sendo secundárias.
Assim, em síntese, a nossa conclusão é no sentido de que, feitas algumas pequenas ressalvas, o
Projeto fortalecerá a arbitragem, pois complementará a legislação vigente, desfazendo incertezas e
permitindo soluções rápidas e eficientes para os litígios, além de ser também o processo arbitral,
cada vez mais, um importante indutor de acordos, reduzindo a excessiva litigiosidade da qual
sofremos.
1 REsp 612.439/RS, RArb 11/177 (DTR\2011\4341)-183, São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2006.
2 RArb 21/286-313, São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2009.
3 REsp 904.813/PR, RArb 33/362-373, São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2012.
4 Vide STJ, SEC 856/EX, L’Aiglon v Têxtil União, Corte Especial, rel. Min. Carlos Alberto Menezes
Direito, j. 18.05.2005, RArb 6/228 (DTR\2011\4432)-238, São Paulo: Ed. RT, jul.-set. 2005.
5 SEC 978/GB, Indutech v Algocentro, rel. Min. Hamilton Carvalhido, RArb 24/216-224, São Paulo:
Ed. RT, jan.-mar. 2010; Vide também SEC 866/EX, Oleaginosa Moreno Hermanos Sociedad
Anônima Comercial Industrial Financeira Inmobiliaria y Agropecuária v Moinho Paulista Ltda., Corte
Especial, rel. Min. Felix Fischer, j. 17.05.2006, RArb 12/256-264, São Paulo: Ed. RT, jan.-mar. 2007,
SEC 967, Plexus Cotton Limited v Santana Têxtil S.A., Corte Especial, rel. Min. José Delgado, j.
15.02.2006, RArb 9/343-355, São Paulo: Ed. RT, abr.-jun. 2006.
6 Ver WOBESER, Claus Von, La incorporación por referencia, In: TAWIL, Guido S.; ZULETA,
Eduardo (dir.). El arbitraje comercial internacional: estudio da la convención de Nueva York con
motivo de su 50o aniversario. Buenos Aires: Abeledo-Perrot, 2008, p. 246-261, e WALD, Arnoldo, A
patologia da arbitragem, RArb 27/35 (DTR\2010\754)-45, São Paulo: Ed. RT, out.-dez. 2010; DI
PIETRO, Domenico, Incorporation of Arbitration Clauses by Reference, Journal of International
Arbitration, vol. 21, n. 5, p. 439-452, 2004; CIFUENTES, Marcela Castro de, La cláusula
compromisoria "por referencia", In: ROMERO, Eduardo Silva; ESPINOSA, Fabricio Mantilla, El
contrato de arbitraje, Colombia: Legis Editores S.A., 2008, p. 173-190.
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7 WALD, Arnoldo; LEMES, Selma Ferreira (coord.). A arbitragem comercial e internacional: a
Convenção de Nova Iorque e o direito brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2011. p. 9 e ss.
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