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Histórias de resistência contra o terror*
Carla Luciana Souza da Silva**
Resumo: Neste artigo, discutiremos o conhecimento produzido sobre a Ditadura no Oeste do Paraná e do
Rio Grande Sul, a partir da Audiência Pública da Comissão Estadual da Verdade, realizada em Cascavel
em março de 2014, e da Audiência de Três Passos, no Rio Grande do Sul, de junho de 2014. Tentamos
inserir as audiências em um momento histórico relativo aos movimentos sociais da memória e às políticas
públicas de memória. O resultado das audiências pode ser um importante material para conhecermos essa
realidade, especialmente se agregarmos à análise as pesquisas acadêmicas que vêm sendo desenvolvidas,
algumas delas em conjunto com os movimentos sociais da memória. A pesquisa busca apontar para a
importância do estudo da Ditadura no interior do País.
Palavras-chave: Ditadura. Resistências. Oeste do Paraná.
1 Terror de Estado fora do eixo
A Ditadura brasileira tinha um vocabulário próprio, reinventando determinadas
palavras, dando para elas o significado que lhe convinha. Da mesma forma que os
golpistas se autointitulavam “revolucionários” em nome de uma “democracia”, eles
também cunharam expressões próprias para designar (e criar) seus inimigos. Esses
dizeres estavam presentes em boa parte da documentação da repressão, expressa em um
onipresente carimbo: “A Revolução de 64 é definitiva e consolidará a Democracia no
Brasil”. Era preciso para os ditadores reiterarem e convencerem, inclusive aos próprios
agentes da repressão, que eles estavam agindo em torno dessas ideias. É por esta lógica
que os resistentes que de alguma forma se opuseram à Ditadura foram rapidamente
batizados de “terroristas” e subversivos. Mas o estudo aprofundado do funcionamento
da Ditadura mostra, cada vez mais, o quanto o Estado brasileiro comandado pelos
militares instaurou uma lógica de terror, constituindo o Terrorismo de Estado
(PADRÓS, 2012). É com esse sentido que buscamos indagar as fontes que serão
analisadas no tocante à repressão a movimentos de resistência, bem como a memória
dos diretamente envolvidos pela repressão.
*
Este artigo faz parte do Projeto de pesquisa “Ditadura no Oeste do Paraná: história e memórias”, que
tem o apoio do CNPq.
**
Licenciada e bacharel em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Mestre
em História pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e Doutora em História
pela Universidade Federal Fluminense (UFF), com pós-doutorado pela Universidade Nova de Lisboa.
Professora Associada do curso de História da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste). (Email: [email protected]).
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014.
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Além disso, esse texto se insere na perspectiva da história da Ditadura “fora do
eixo”, fora do centro Rio-São Paulo, pois é preciso compreender o impacto da Ditadura
pelas regiões interioranas do país. Ao mesmo tempo, há uma forte aceitação no senso
comum de que a Ditadura teria sido amplamente apoiada no interior do Brasil, o que as
pesquisas recentes têm servido para desmentir. Não foi apenas na região do Araguaia
que houve uma Ditadura atuante. O fato de que não tenha havido aprofundamento das
guerrilhas rurais não pode servir para menosprezar o impacto da Ditadura em outros
aspectos da repressão, especialmente aquelas relacionadas à chamada “modernização da
agricultura”, que levou ao êxodo e a infindáveis conflitos pela terra. Todo o processo de
modernização da Ditadura (grandes obras como Itaipu) deixaram atrás de si rastros de
desapropriações, mortes, vidas destruídas, e isso também é Ditadura.
É importante para nossa compreensão a visão de que a história que estamos
tendo condições de escrever hoje está relacionada com os movimentos sociais da
memória. Trata-se de um momento privilegiado o que vivemos, em que novas fontes
vêm sendo descobertas ou mesmo produzidas. Neste artigo, proponho analisar fontes
novas, produzidas recentemente em episódios centrados em Audiências Públicas, mas
apontar para a necessidade de cotejá-los com outros documentos, sempre que possível.
Por isso, também trataremos de documentos encontrados em delegacias do DOPS e por
outros órgãos da repressão. Muitas vezes nesses arquivos encontramos também
documentos de origem militante, como é o caso de várias cartas dos Grupos dos Onze
apreendidas pela repressão. O DOPS guarda jornais, fotografias, etc., mas guarda
também os relatos de interrogatórios muitas vezes feitos sob tortura, além de nos dar
uma noção sobre como funcionava na prática o aparato repressivo. Assim, esse tipo de
arquivo nos abre uma grande possibilidade de investigação.
2 A realização de audiências: Estado e Sociedade Civil
Em 20 e 21 de março de 2014, ocorreu em Cascavel uma Audiência Pública da
Comissão Estadual da Verdade do Paraná. O tema era as violações dos direitos
humanos na região Oeste e proximidades durante o período da Ditadura. Vamos ater
nossa análise aqui aos depoimentos realizados em torno dos movimentos de resistência
à Ditadura, deixando de fora os indígenas atingidos. Essa escolha se deve apenas ao
foco da pesquisa que estamos realizando.
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A realização da audiência foi um processo conjunto de várias entidades.
Formalmente, é realizada com o respaldo da Comissão Estadual escolhida pelo governo
do Estado do Paraná. Nesse sentido, é um trabalho oficial:
A Comissão Estadual da Verdade do Estado do Paraná foi criada pela Lei
17362 - 27 de Novembro de 2012, no âmbito da Secretaria de Estado da
Justiça, Cidadania e Direitos Humanos – SEJU, que prestará apoio
administrativo às ações e atividades, que não terão caráter jurisdicional ou
persecutório.1
A atuação da CEV-PR neste caso foi a de dar as condições legais de realização
de uma Audiência que tinha como objetivo ouvir pessoas que foram direta ou
indiretamente envolvidas com violação de direitos humanos durante a Ditadura. A
maioria das pessoas falou sobre seus próprios casos, mas alguns foram representados
por familiares, o que não deixa de ser também um envolvimento direto.
A Audiência não teria ocorrido sem a organização local. E esta tarefa foi levada
adiante pelo Comitê Memória, Verdade e Justiça do Oeste do Paraná. É importante
ressaltar essa questão para que possamos vislumbrar a forma como o processo se
desenvolve, promovendo o que chamamos de “ampliação do Estado”, que se abre e
chancela determinadas atividades. Os motivos de realizar essa ampliação são variados,
mas em termos gramscianos podemos vislumbrar a falta de política pública de Estado
para a questão da memória. A política é a criação de uma Comissão e a delegação de
determinados restritos poderes a organizações da sociedade civil (MENDONÇA, 2014).
Não vem junto com a delegação qualquer poder econômico, o que tem impactos
evidentes no andamento do processo, na medida em que os custos dos deslocamentos e
os convites a serem realizados são limitados pelas possibilidades dos diretamente
envolvidos, assim como não há poder jurídico ou punitivo, na medida em que as
audiências estão amarradas às legislações estaduais.
A Audiência Pública de Três Passos foi também organizada em conjunto pelo
Comitê Memória, Verdade e Justiça de Três Passos e pela CEV-RS, no campus da
Universidade, o que nos traz o terceiro elemento organizativo: o papel das universidades
nesse processo. Nos casos em questão, tanto a Universidade Estadual do Oeste do
Paraná arcou com os custos da organização (deslocamento dos convidados,
hospedagem, espaço físico, etc.) como a UNIJUÍ foi a organizadora local. Esse dado é
importante para que visualizemos: o Estado promove a Comissão e chancela as
1
Cf.
Departamento
de
Direitos
Humanos
e
Cidadania.
<http://www.dedihc.pr.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=94>.
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Audiências, mas quem a efetiva são organismos autônomos, parte da sociedade civil
organizada. O que mais queremos chamar a atenção é que esses movimentos em torno
da recuperação da memória histórica se constituem enquanto legítimos movimentos
sociais em torno da memória e da história brasileira. Em cada lugar, cidade e estado, a
relação da sociedade com o Estado será distinta e precisa ainda tornar-se objeto de
estudo.
3 O trabalho prévio: localizar e convencer os depoentes
No caso da organização da Audiência em Cascavel, havia uma dificuldade a
mais, que era a distância de muitos dos possíveis depoentes. Por isso, foi necessário o
deslocamento para realizar os contatos. Esta atividade prévia tem caráter complexo do
ponto de vista da análise histórica. Aluizio Palmar, militante dos direitos humanos
desde 1979, quando voltou ao Brasil, foi também militante durante toda a Ditadura,
tendo participado de diversas organizações de resistência armada como a Dissidência
Comunista do Rio de Janeiro, o primeiro MR8 e a VPR. Banido do Brasil em 1971,
seguiu a vida clandestina no Chile e na Argentina. A trajetória de Palmar é fonte
histórica, mas ele atua como intelectual orgânico desta causa, transformando-se em
fundamental ponto de contato com aqueles que foram militantes e que até hoje não
falaram sobre suas experiências. A viagem empreendida para a coleta de depoentes
abrangeu um extenso caminho que Palmar percorreu junto com o historiador Valdir
Sessi.
O mapa do caminho percorrido é sintomático dos caminhos da resistência no
Oeste do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul. Foram duas viagens de
exploração. Na primeira delas, foram 850 km percorridos de Foz do Iguaçu a Andrezito
(Argentina), chegando a Porto Soberbo para atravessar de balsa até chegar a Três
Passos, no Rio Grande do Sul, onde visitaram cidades próximas como Coronel Bicaco.
Na segunda incursão, foram 500 km até Santo Antônio do Sudoeste, passando por
Barracão, Capanema e outras cidades. Esses contatos, realizados amistosamente com o
intuito de propor os convites, foram essenciais para o convencimento dos depoentes e
seus familiares. Posteriormente, um esquema de transporte foi acionado pela
Universidade para que o deslocamento fosse feito nos dias da Audiência. A partir dessa
prévia, dada por contatos e conhecimento anterior, a pesquisa se debruça sobre alguns
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movimentos, em especial, Operação Três Passos, Grupo dos Onze, VAR-Palmares,
MR8 e Conexões Internacionais.
Já no caso de Três Passos, a atividade coincidiu com a realização da 86ª
Caravana da Anistia. Assim, a mobilização dos depoentes também tinha como objetivo
julgamentos pela Comissão da Anistia, o que institucionalmente não tem relação com a
Comissão da Verdade. Dito isso, passamos a explorar os principais movimentos de
resistência que foram abordados nestas audiências, sem nos atermos a especificidades
de Cascavel ou Três Passos, e sim dos movimentos que estão sendo narrados. O
objetivo é dar um quadro geral do que se conhece sobre os impactos da Ditadura no
Oeste do sul do Brasil a partir das audiências.
4 Três Passos, lugar de muitas ações
Três Passos é uma cidade sul-rio-grandense que foi palco de alguns movimentos
de resistência ao longo da história recente brasileira. Em primeiro lugar, lembremos da
Guerrilha de Três Passos, a “guerrilha maluca”, conforme definiu a revista Manchete, e
também a rádio local (SCHNEIDER, 2000, p. 28). O grupo de mais de vinte homens se
rebelou a partir de Três Passos, saindo em movimento de rebelião que deveria marcar
um ano do Golpe de 1964 em todo o país, a partir das ligações com o Movimento
Nacionalista Revolucionário, vinculado a Leonel Brizola. Saíram sozinhos, tomaram a
rádio, tentaram desapropriar o Banco do Brasil, se apropriaram de um caminhão e
seguiram pelo Oeste de Santa Catarina, vindo a ser presos no Sudoeste do Paraná.
Segundo noticiado na revista de circulação nacional,
desde a queda do Presidente João Goulart, a Brigada Militar do Rio Grande
do Sul passara a patrulhar a zona das Missões e do alto Uruguai, onde se
temia que surgissem guerrilhas. Apesar disso, precisamente nessa zona
começou o treinamento de homens que iriam participar de tais atividades
subversivas. Uma escola rural em lugar de difícil acesso, chamada Isolada do
Lajeado, no município de Campo Novo, e dirigida pelo professor Waldetar
Dornelles, foi o ponto escolhido para instrução e o treinamento dos homens
que participaram desse episódio. (OS ÚLTIMOS, 10/04/1965, p. 21).
Valdetar foi também um dos depoentes nas Audiências Públicas. Ele tornou-se
advogado e posteriormente passou a trabalhar como defensor de várias pessoas em seus
processos de Anistia. Em Cascavel, ele relatou que “no dia 28 de março de 1965, então
com 33 anos, devido a sua posição política e participação no movimento armado
conhecido como ‘Grupo dos Onze’, foi preso em Aparecidinha do Oeste, no Paraná,
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onde, sob condução do general Aragão, foi ameaçado de morte”.2 Foi levado juntamente
com outros do grupo para Foz do Iguaçu, onde ficou detido 51 dias, sofrendo “inúmeras
torturas, coordenadas especialmente por Ademar Curvo e executadas por Rui Monteiro
do Rego, Major Murtinho e mais um major paraquedista”. Declarou terem ficado três
dias sem água e onze dias sem comida. De lá foram levados para Porto Alegre, onde
passaram por novas seções de tortura, entre as quais solitária por cinco dias, na “mais
completa escuridão”. De lá, foi levado para Ponta Grossa, com novas torturas e
agressões, e de lá para Curitiba, completando quatro anos de prisão. Em Curitiba, foi
submetido a ficar internado junto a deficientes mentais, por 11 meses incomunicável.
Foi libertado em 1969, mas seguiu por 24 anos impedido de exercer a profissão de
professor. Relata ter várias marcas no corpo oriundas das inúmeras seções de tortura
sofridas. Em Três Passos, ele também depôs, concluindo sua fala com um poema
composto no cárcere.
Seu irmão, Abraão Dorneles, que também depôs nas duas cidades, foi taxativo
em reafirmar o caráter da luta da qual participou:
E a história, até hoje a gente sofre as consequências disso tudo, de gente que
passa muitas vezes é perguntado, interrogado por amigos, vizinhos, se caso
fosse hoje, se nós estaríamos no movimento novamente, sempre a gente tem a
resposta, do espírito de luta, de ver um Brasil melhor, com a justiça, com os
direitos humanos sendo entregues à população brasileira, isso nós almejamos,
e vamos morrer lutando por isso.3
Sua narrativa é enfática ao contar as torturas, a fome, a sede a que foram
submetidos. Relata que, especialmente no Batalhão de Fronteira, em Foz, foram
duramente torturados, chegando a dizer que não sabem por que foram mantidos vivos.
Ele relata que poucos dos participantes daquele evento seguem vivos. E na audiência em
Cascavel esteve presente um deles, o Sr. Vergilio Santos, nascido em 09/08/1918.4 Ele
fez sua declaração sobre as sevícias sofridas, reiterando sua posição de luta, dizendo que
nunca fugiu dos embates e que nunca deixou os companheiros sozinhos. Preso, passou
por várias prisões, em Porto Alegre e em Curitiba. Mostrou no depoimento sinais de
tortura, como marcas na cabeça, onde foi agredido com coronhadas, e nos tornozelos,
que fazem com que ele não consiga se locomover bem desde há muito tempo. Fez
questão de ressaltar que sempre seguiu acreditando nos ideais nacionalistas, janguistas e
brizolistas. O fato de ele ter se deslocado de Foz do Iguaçu até Cascavel foi uma
2
Waldetar Dornelles. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014.
Abrão Dorneles. Entrevista a Valdir Sessi e Aluízio Palmar. Fev. 2014.
4
Vergilio Soares Lima. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014.
3
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amostra clara da importância que a fala sobre o ocorrido ainda exerce nos sujeitos que
vivenciaram essa história.
A região de Três Passos foi palco direto de um outro movimento de resistência,
um Comando Territorial da VPR, Vanguarda Popular Revolucionária. Antonio Alberi
Maffi foi um dos depoentes ouvidos nas visitas preparatórias. Militante brizolista, já no
movimento estudantil, na “União Passo-Fundense de Estudantes, estava na vanguarda
das manifestações. Com uma postura mais firme e combativa, de certo modo,
determinava as ações do movimento universitário” (PRETTO, 2003, p. 32). Com o
recrudescimento da repressão, passa a aprofundar a ação política no Partido Operário
Comunista, junto com Bona Garcia, outro líder estudantil da época. Com outros
companheiros, formariam uma importante base territorial da VPR (Vanguarda Popular
Revolucionária) na região, e tinham contato direto com Onofre Pinto. O perfil da
organização sempre seria militarista, de inspiração cubana, mas teve forte entrada em
setores “civis”. A organização inicialmente em Passo Fundo cumpria várias tarefas de
ordem formativa, além de pequenas intervenções panfletárias, mas que eram de
importante teor naquele contexto de Ditadura. O desejo de ampliar a ação prática levou
à ruptura com o POC e a entrada na VPR (PRETTO, 2003, p. 35). Os militantes da VPR
criaram uma companhia pesqueira, que servia de fachada para suas atividades. O jornal
de Três Passos noticiou no momento da prisão:
Perfizeram um total de 19 elementos. Mas não pescavam e não vendiam
peixes. Apenas na semana Santa apareceram alguns que por sua vez haviam
sido comprados de outros pescadores. Dinheiro não faltava à empresa. Os
pseudo-pescadores eram regiamente pagos, em dia. Surgiram as suspeitas,
foram efetuadas as prisões, de início a negativa peremptória, era pescaria.
Mas a evidência dos fatos provava que jamais poderia sê-lo. Não era
pescaria. Hábeis interrogatórios revelaram a verdade. Estava montado na
barra do Turvo um APARELHO subversivo fazendo parte de gangs que
assaltavam bancos, sequestravam autoridades e estouravam bombas
terroristas. (O celeiro, 07/05/1970).
Há alguns elementos instigantes nesse trecho da matéria de capa do jornal.
Primeiro, a negativa de que os militantes exerciam função de pescaria, mesmo atentando
um alto número de pessoas envolvidas e havendo a informação de que eles estavam
inseridos na vida da cidade no abastecimento de peixes, chegando a vendê-los ao quartel
da cidade (PRETTO, 2003). Mas há outro elemento mais relevante, que é a absoluta
conivência com as táticas de tortura da repressão, aqui chamada de “hábeis
interrogatórios”. É importante chamar atenção para isso, para que tenhamos elementos
para entender como se constrói um falso consenso de que as pessoas apoiavam a
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repressão. Com o jornal amenizando a ação repressiva, mantém-se uma situação
“habilmente naturalizada”. Daí em diante, várias notícias seriam publicadas de caráter
especulativo, como o de que “notícias veiculadas pela imprensa Argentina e da capital
do estado dão conta de que foi apreendido um caminhão carregado de armas e munições
destinadas aos guerrilheiros de Três Passos”. O “fato”, fundamentado em hipotéticos
jornais, serve para manter uma lógica de medo: se os militantes chegassem a receber as
armas, o que poderia acontecer?
Também envolvido neste caso estava Roberto de Fortini, um italiano que veio
para o Brasil com a família, que fora trabalhar na produção frigorífica na região de
Chapecó. Sua prisão foi destaque no jornal O observador, de Três Passos. Todos os
nomes dos presos são citados, mas a manchete de capa é: “Preso Roberto de Fortini.
Trama subversiva desmantelada. Aclara-se a situação” (O observador, 16/05/1970).
“Aos poucos as autoridades vão se munindo de mais provas e mais elementos para
aniquilar com propósitos de uma bem organizada quadrilha de subversivos comandada
pela Vanguarda Popular Revolucionária, uma das quatro organizações comunistas que
atuam no Brasil com a finalidade de se apoderar do Governo e comunizar a pátria” (O
observador, 16/05/1970). Mais uma vez a imprensa cumprindo seu papel, citando as
mesmas fontes e reproduzindo em primeiro lugar a versão oficial da polícia; em
segundo, outros jornais, pois a notícia repercutiu no centro do país.
Embora precisemos ter cuidado com o uso de documentação oficial, o mandado
de citação dos presos dá conta de algumas atividades realizadas pelo grupo:
Levando a cabo seus objetivos criminosos, não apenas promoveram reuniões
clandestinas em locais diversos, inclusive às margens do Alto Uruguai, mas,
ainda, efetuaram a impressão e distribuição de panfletos de incitamento à luta
de classes e à animosidade destas contra os Poderes Constituídos, intitulados
“Operários no Poder”, “Abaixo a Ditadura” e “Abaixo o Arrocho”, de
preferência nos bairros e vilas, por ocasião das eleições municipais de 1968 e
no dia 1º de maio de 1969, além de pichamentos de ruas, com os conhecidos
chavões comunistas, confeccionados na residência do denunciado Bruno
Piola. (RODRIGUES, 31/08/1970).
O documento é ilustrativo de como funcionava a Ditadura: a proibição efetiva da
liberdade de pensamento e a naturalização da apreensão, prisão e punição pelos crimes
de expressar posições divergentes, contra os “poderes constituídos”. O relato insiste que
a organização, que passara a fazer parte da VPR, pretendia instalar “um centro de
treinamento de guerrilhas, para o que contavam, ainda, com o imediato concurso de
elementos especializados que para lá afluíram posteriormente, inclusive o próprio excapitão Carlos Lamarca. Contando com elevados recursos financeiros [...] receberam
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vultuosas somas destinadas à aquisição de armas e munição na Argentina e no
Paraguai” (RODRIGUES, 31/08/1970). Diz ainda que estariam já organizando um
grupo paramilitar, usando sempre os pescadores como disfarce, mas de fato instalando
uma área de treinamento de guerrilha.
Segundo o informe, receberam muitas armas e munições, elaboraram códigos de
comunicação, escavaram para esconder armas, munições e mantimentos. A partir daí,
teriam começado a realizar aulas de tiros. A conclusão do documento, que mescla
relatos com posições subjetivas ideológicas, é a seguinte:
Sobram razões suficientes para se aquilatar da atividade delituosa dos
denunciados que, filiados a organizações espúrias, de cunho supinamente
subversivo, uniram os esforços para fazerem propaganda de incitamento à
luta de classes e de animosidade destas entre si e contra os Poderes
constituídos, praticando atos destinados a provocar a guerra revolucionária e
tentando subverter a ordem política e social, promovendo ai insurreição
armada no País, para exigir a derrubada das instituições nele vigentes.
(RODRIGUES, 31/08/1970).
Neste documento, foram citados: Roberto Antônio de Fortini, Bruno Piola,
Antonio Alberi Maffi, Belmor Carlos Palma, Sergio Guimarães Siqueira, Reneu
Geraldino Mertz, Adão Dias Machado, Jaime da Silva Ramos e Luiz Carlos de Oliveira.
Chama a atenção, além da pretensa erudição do texto, o fato de que os envolvidos
estavam “no xadrez” [sic], em Santa Maria, na 3ª Auditoria da 3ª Circunscrição
Judiciária Militar. Santa Maria dista em torno de 300 km de Três Passos. Este foi um
dos elementos mais ressaltados pelos familiares presentes na Audiência Pública da
Comissão Estadual da Verdade do Rio Grande do Sul, ocorrida na cidade de Três
Passos, em 2014. Clarissa Mertz relatou as dificuldades que a família encontrou, tendo
seu pai enviado para longe, sendo a família de mãe e mais três filhas totalmente
dependentes dele financeiramente, como era costume na época. O pai de Clarissa
constava entre os “prioridade 1” da “Operação Arrastão”, realizada em 31/05/1974.
Reneu era o primeiro nome da lista, seguido de Antônio Leutchuk, Roberto de Fortini,
Antonio Maffi, Belmor Carlos Palma, Bruno Piola, Gelci Fensterseifer e Fioravante
Gonçalves Dias. Este documento indica que, quatro anos depois, os envolvidos no
processo ainda estavam sendo perseguidos, mesmo Fortini, o Gringo, que havia sido
banido do país em janeiro de 1971, na troca dos 70 militantes pelo embaixador suíço.
Clarissa Mertz declarou que seu pai foi preso em 30/03/1970 em Três Passos,
onde ficou até junho daquele ano. De lá, foi levado para Santa Maria, onde permaneceu
até agosto de 1971, quando foi julgado inocente. Na prisão, perdeu 20 quilos, perdeu a
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014.
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audição de um ouvido, adquiriu depressão e hipertensão, doenças que o levaram à morte
aos cinquenta anos. Além do sofrimento com a prisão e a distância, a família passou por
inúmeros constrangimentos. A casa foi invadida. Relata que a imprensa local acusava
seu pai de “traidor da pátria e da família”.5
Alberi Maffi, que foi preso em 1970, recebeu os entrevistadores em sua
residência, em Braga, no Rio Grande do Sul.6 Narra a trajetória de envolvimento com a
militância política, do movimento estudantil à VPR. Ele chama a atenção ao fato de que
a repressão não se restringia à VPR, mas aos sindicatos e à imprensa. A VPR decidiu
então pela instalação da Unidade Tática na Barra do Turvo, coordenada por Roberto de
Fortini, o local serviria tanto para a atuação direta quanto para esconder companheiros
que estivessem em situação de dificuldade, sendo procurados e perseguidos. Presos,
foram julgados por um Tribunal Militar. Todos foram terrivelmente torturados,
independentemente de sua posição no movimento.
5 Os Grupos de 11 espraiados pelo sul
A punição feita aos Grupos dos Onze foi algo de particular importância para
percebermos o modus operandi da repressão. O primeiro passo, as primeiras medidas
foram feitas diretamente pelas agências policiais, em sintonia com as Delegacias do
DOPS, usando métodos antigos de prisão e interrogatório acompanhado de tortura. Os
métodos de tortura eram uma sequência do que fora levado adiante pelo Estado Novo
varguista: prisões arbitrárias, agressões físicas, socos, pontapés, surras, maus-tratos nas
condições gerais de alimentação e proteção à pessoa (frio, falta de higiene, etc.). Mas
havia junto alguns elementos de cunho moral. O primeiro deles, o afastamento da
família e a falta de informações; o segundo, o serviço de desqualificação das pessoas,
serviço este muitas vezes feito fora do cárcere pelos agentes religiosos que buscavam
acabar com a solidariedade familiar e fraternal antes existente, acusando os perseguidos
de comunistas, agitadores, subversivos. Perceba-se com atenção que essas pessoas
foram perseguidas por terem participado de atividades antes do Golpe de 1964. É
ilustrativo o texto no Inquérito Militar que “acusava” Leonel Brizola de “fomentar a
criação e organização do “Grupo dos Onze Companheiros, ou também denominados
Comandos Nacionalistas, fornecendo, inclusive, formulários e instruções de como
5
6
Clarissa Mertz. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014.
Entrevista de Alberi Maffi, em Braga – RS, para Aluízio Palmar e Valdir Serri. 5/02/2014.
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deveriam ser organizados” (IPM apud SZATKOSKI, 2003, p. 129). Assim, uma
atividade que era legal é punida a posteriori, como se fosse algo ilegal, mesmo que não
tenham reagido ao Golpe em 1964.
Um estudo sobre as auditorias militares em Porto Alegre e Santa Maria, no que
tange aos Grupos dos Onze, mostra que:
Os processos instaurados na Auditoria Militar de Santa Maria para julgar a
formação de Grupos dos Onze em Erechim, São Valentim, Herval Grande e
Frederico Westphalen não apuraram nenhuma ação concreta contra a ditadura
civil-militar instaurada após 10 de Abril de 1964. A formação dos Grupos
ocorreu somente no papel, pois não há indícios de nenhum tipo de reunião,
aquisição de armamentos ou de ação direta de oposição à ditadura. O “crime”
foi simplesmente formularem e assinarem as listas para formação dos Grupos
dos Onze. (ALVES, 2009, p. 130).
É nessa linha que percebemos os depoimentos ouvidos nas Audiências Públicas,
tanto em Cascavel como em Três Passos. Pessoas que foram presas sem saber
exatamente o porquê, levados, tratados como animais. Pouco tempo depois, liberados. O
exemplo, o medo, o terror seguiria para sempre em suas vidas. Esta é também a
perspectiva da pesquisa de Baldissera (2003, p. 146), que mostra o envolvimento da
Igreja, na tentativa de impedir a adesão aos grupos: “o padre avisava na Igreja para não
assinarem as listas dos Grupos de Onze, por isso não surgiu novos grupos [...] mas tinha
gente interessada”. Percebemos que os depoimentos dos envolvidos com esses grupos
nas Audiências Públicas reproduzem em grande medida a lógica já apontada nesses
estudos, como desenvolveremos a seguir.
Waldemar Rossim teve sua residência invadida pela polícia, que vasculhou toda
a casa buscando armamentos. Tomou uma coronhada de arma no peito e vários chutes,
tudo isso dentro de sua própria casa. Além disso, foi discriminado na sua localidade de
residência, tendo sido acusado publicamente pelo padre de ser “comunista”.7
Benjamim Machado estava na roça, trabalhando, quando viu os militares se
aproximarem. Fugiu para o mato, mas sua casa foi invadida. Preso, ficou 10 dias na
prisão, apanhou por socos, pontapés e chutes. Fugiu, escondendo-se no mato. Foi
embora para a Argentina e lá morou por três anos, sem ter notícias da família. Sua mãe,
que era bastante doente, ficou sozinha para sustentar os demais filhos, precisando da
ajuda dos vizinhos.8 Também Adair Amaro passou por situação semelhante,
conseguindo levar consigo a família para a Argentina, onde viveu por onze anos.
7
8
Waldemar Rossim. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014.
Benjamim Machado. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014.
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014.
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Ruth Pinheiro dos Santos foi preso denunciado por um conhecido seu, que o
acusara de ter guardado armamento de guerrilheiros. Foi torturado na prisão, onde
exigiam que desse conta das armas. Ficou seis dias preso em Santo Antônio do
Sudoeste. Depois disso, passaram a ser taxados de comunistas, perderam crédito e
tiveram que vender suas terras, indo embora para Foz do Iguaçu.9 Eliseo de Quadros
passou por fatos parecidos. A acusação era de ter feito contato com membros dos
Grupos dos Onze. Ficou seis meses preso, e seu pai, um ano. Sofreu na prisão torturas
diversas. Seu pai, após ser libertado, acabou morrendo, provavelmente em consequência
das torturas sofridas na prisão, segundo acredita a família.
Caso semelhante aos demais é o de Geraldo Rocha. Ele foi preso em agosto de
1964, levado para a delegacia de Dionísio Cerqueira, onde foi duramente torturado,
sofrendo “afogamento” (teve a cabeça amarrada e afogada), ficou vinte dias apanhando
e levando golpes. Participou da fuga coletiva, em que se organizaram e conseguiram
fugir. O interessante é que relata que não sabia do que se tratava o Grupo dos Onze.
Fugiu para a Argentina, ficou seis anos lá. Quando voltou para o Brasil, nunca mais foi
importunado pela polícia, o que é instigante, pois demonstra que não havia efetiva
acusação contra ele à qual coubesse apuração e julgamento. Ele simplesmente voltou e
seguiu vivendo com o medo de ser novamente procurado e punido.
Os casos de Ramiro Boaventura Mariano e de Sérgio Goulart, em seus relatos,
apontam mais claramente a existência de militância política, ainda que proveniente de
período anterior ao Golpe de 1964. Jaime Mariano relata sobre seu pai dizendo que ele
fora candidato a vereador em 1955 e 1960, no município de Campina da Lagoa. Era
comerciante e apoiador do movimento sem-terra [sic], ajudando no transporte de
trabalhadores. Seu pai chegou a ter contato com o PCB, recebendo materiais de leitura,
como os jornais Terra Livre e Classe Operária. Ainda em 1956, foi preso e torturado
pelo seu envolvimento com os “sem-terra” (luta dos posseiros) e por participar das
reuniões. Mesmo assim, liberado, seguiu organizando o sindicato dos Trabalhadores
Rurais de Campina Grande. Após o Golpe em 1964, acabaram saindo da cidade,
taxados de comunistas e subversivos. Seu pai morreu de cirrose hepática em decorrência
de alcoolismo, ocasionado pela depressão sofrida.
Sergio Goulart declara que, após o Golpe de 1964, sua família fugiu de Tenente
Portela (RS) com destino a Barracão, em função de que seu pai e tios foram “acusados”
9
Ruth Pinheiro dos Santos. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014.
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014.
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de participar dos Grupos dos Onze. Segundo ele, “seu avô, João Goulart, em meio a
perseguições dos militares, faleceu depois de complicações oriundas de um tiro
desferido por um soldado, que atingiu sua perna, causando hemorragia e
consequentemente seu óbito”.10 Já seu pai, foi preso, ficando três meses na prisão, onde
foi torturado física e psicologicamente. Foi então morar na Argentina; sempre que
tentou voltar ao Brasil foi perseguido e, sendo preso, estigmatizado pelos moradores da
cidade como “marginal”.
Braulino Martins dos Santos também se fez presente na Audiência. E, como os
organizadores não o conheciam previamente, foi por conta própria, chegou no evento e
pediu para falar. Esse fato é relevante, pois mostra que havendo oportunidade, e com
apoio, as pessoas ainda têm muito o que falar e mostrar. Nesse caso, o depoente chegou
já trazendo um documento que comprovava sua fala. Em 21/04/1964, ele foi fichado no
DOPS. Tinha então 28 anos, residente em Vila Gaúcha, no Paraná. Na ficha, constava
que ele não era sindicalizado. Nessa data, consta que: “o fichado, por determinação do
Exmo. Sr. Cel. Secretário de Segurança Pública do Estado, foi recolhido preso à Prisão
Provisória do Ahú, por pertencer ao Grupo dos ‘ONZE’”. No dia 04/06/1964, há outro
registro: “o fichado, nesta data foi posto em liberdade”. Em seu relato, emocionado e
auxiliado pela filha, conta que foi amarrado e colocado dentro da caçamba de um
caminhão. Quando chegaram ao destino, a caçamba foi levantada e ele, junto com
outras pessoas, foi despejado como se fosse um saco de grãos. Preso e solto, não consta
mais nenhuma observação na sua ficha.
O apoio às reformas de base eram um ponto de apoio entre os signatários dos
Grupos dos Onze e Brizola. Esses apoios se davam em distintos níveis, havendo muitas
vezes algumas pessoas mais bem informadas, os “intelectuais” dos grupos, que faziam o
papel articulador. Inúmeras cartas, inclusive de adesão aos grupos, foram apreendidas
pelo DOPS e demonstram este teor, a vontade genuína de empreender reformas:
Prezado Companheiro, temos a honra e respeito que o faz jus. Hipotecamos
inteira solidariedade na campanha em favor das Reformas de base, da qual V
Excia tem baluarte de projeção nacional. Já não podendo mais o povo
brasileiro, espoliado e explorado até onde o termo alcança, ficar surdo aos
gritos de alerta de V. Excia e tantos nacionalistas autênticos, que desejam
realmente o engrandecimento da nossa Pátria, quase a beira do caos. É que
para mostrar bem claro o nosso protesto, contra os demolidores e
monopolizadores dos direitos que nos confere a Democracia, subscrevemos
abaixo [...].
10
Sérgio Goulart. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014.
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014.
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A carta, enviada por Vilson Jacinto Duarte, de Umuarama, em março de 1964,
para a rádio Mayrink Veiga, provavelmente nunca foi entregue, pois até o envelope se
encontra arquivado no Dops, acompanhada de diversas outras com idêntico teor.
Pessoas pedindo ajuda para criar jornais para difundir o ideal nacionalista, assim como
pessoas pedindo ajuda financeira e nomeações, usando como justificativa ser membro
de um Grupo dos Onze.11
Temos clareza de que estamos tratando com relatos que são fruto da memória
tanto individual como coletiva desses homens. Mas, independentemente da parcela
subjetiva de seus relatos, algo está claro, o fato de eles serem simpáticos a Leonel
Brizola não fez deles guerrilheiros, e, por isso, não podem ser usados para justificar o
clima de caça às bruxas anticomunista instaurado no pós-golpe. A repressão da Ditadura
foi ferrenhamente instaurada imediatamente depois de dado o Golpe, e não apenas após
o AI-5.
6 Nova Aurora, uma base da VAR-Palmares, vizinhos do MR8
A Audiência de Cascavel contou com o depoimento de Alberto Fávero12. Ele
participou da organização de uma Base Territorial da VAR-Palmares, em Nova Aurora,
no Paraná. Sua narrativa apresentou a situação de uma família de agricultores que teve
sua propriedade invadida por 700 militares que buscavam o grupo da VAR-Palmares.
Ali viviam Isabel Fávero e Luis André Fávero, irmão de Alberto. 13 Foram torturados já
em casa, em frente aos pais, que foram amarrados e tiveram parte de sua produção
roubada pelos militares. Alberto Fávero tem sido também um grande entusiasta da
pesquisa histórica, colaborando para o conhecimento sobre todo aquele processo
(CAMPOS, 2014). Depois, foram levados para Foz do Iguaçu e, junto com os demais
colonos participantes do movimento, foram barbaramente torturados. Isabel, que estava
grávida, sofreu aborto devido às torturas.14 Foram depois enviados presos para Porto
Alegre e Curitiba. O que mais chama a atenção nesse processo é a contraditória forma
de envolvimento da população naquele momento da prisão em Nova Aurora. Em
11
A N, Foz do Iguaçu. 30/01/1963. Pasta G11 – Dops.
Ele também depôs na Audiência Pública da Comissão Nacional da Verdade, em junho de 2013, em Foz
do Iguaçu.
13
Alberto Fávero. Depoimento à Audiência Pública em Cascavel. 21/03/2014.
14
Isabel esteve presente à Audiência Pública da Comissão Nacional da Verdade, em junho de 2013, em
Foz
do
Iguaçu.
O
vídeo
está
disponível
no
sítio
eletrônico
da
CNV:
<https://www.youtube.com/watch?v=a3-vpaKAPSU>.
12
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014.
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primeiro lugar, a professora da escola em que trabalhava Isabel, sua direção, o padre, o
delegado, todos agiram em conjunto para entregá-los à repressão. Mas, por outro lado,
os pais dos alunos do casal não entendiam por que estavam sendo levados e guardam as
melhores lembranças daqueles professores. Portanto, se há uma perseguição, e se há um
sentimento persecutório, ele vem de dentro de órgãos institucionais como a escola e a
igreja; não é natural que a população se coloque a princípio contrária à resistência. Para
corroborar essa ideia, o Exército, nas semanas seguintes, permaneceu na cidade fazendo
serviços assistenciais à população local. Ao mesmo tempo em que buscava mais
informações, tentava mostrar um lado positivo do governo militar.
O depoimento de Aluízio Palmar trouxe alguns elementos que são fruto de todos
os anos de pesquisa que ele vem realizando relacionados à temática. Autor do livro
Onde foi que vocês enterraram nossos mortos? (2006), seu trabalho até hoje segue
sendo feito no sentido de elucidar os acontecimentos envolvendo a morte dos seis
militantes, no que ficou conhecida como a chacina do Parque Nacional do Iguaçu. Mas
ele também traz recordações sobre a tentativa de implantação de uma base territorial do
Primeiro MR8 na região de Medianeira, o qual vem sendo investigado (HERLER,
2014).
7 Conexões Internacionais
Já vimos em várias falas que a existência de regiões de fronteira foi a salvação
de muitas pessoas que fugiram, se autoexilaram, viveram clandestinos na Argentina
devido à facilidade relativa dessa possibilidade. Mas a fronteira foi também um ponto
de facilitação da repressão. Conexões como estas foram muito bem demonstradas em
estudo sobre as cidades fronteiriças do Brasil com o Uruguai, onde inclusive alguns dos
militantes da VPR e da Operação Três Passos estiveram em missões (ASSUMPÇÃO,
2014). Ainda pouco investigadas essas conexões no Oeste do Paraná, e mesmo em Três
Passos, temos um caso a destacar, narrado em Cascavel.
Domiciana Gimenez Antunes relatou fatos envolvendo seu pai, cidadão
paraguaio, que pertencera ao Movimento Revolucionário 14 de maio. É um caso
revelador da barbárie e do silêncio imposto à população que vivia na Ditadura. Além
disso, mostra a colaboração entre as polícias brasileira e paraguaia. Primeiramente, seu
pai foi levado junto com outros seis companheiros pela polícia. Foi retirado do trabalho
e levado para um local descampado. Levou um tiro no rosto, mas conseguiu escapar
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014.
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fugindo para o Paraguai. Seus seis companheiros foram assassinados na mesma ocasião.
Em dezembro de 1978, foi preso em Foz do Iguaçu pelo Batalhão de Fronteiras de Foz
do Iguaçu. Foi entregue por eles à polícia paraguaia, sofreu inúmeras torturas, acusado
de pertencer ao Movimento Revolucionário 14 de maio e também por roubo de carros,
em tentativa de caracterizar crimes comuns. Foi transferido para Assunção, onde ficou
11 anos preso. “As torturas pelas quais passou duravam o dia até a madrugada. Durante
os anos de prisão as sessões de tortura passavam por ritual diário, onde uma música era
ligada. Nesse momento, os militantes presos sabiam que alguém seria levado para a
tortura e que retornaria no fim do dia quase morto. Nessas seções os militares chegaram
a urinar sobre Remijo Gimenez para que ele acordasse dos desmaios ocasionados pelo
espancamento.”15 Além disso, eram submetidos a se alimentar no mesmo recipiente em
que defecavam e urinavam. A depoente diz que seu pai foi torturado pelo Sub
Comissário Eusébio Torres, na presença do diretor Cantero Sapriga, do Oficial Segundo
da Junta Martinez e do Comissário Cuenca. Seu pai foi libertado mediante intervenção
da Anistia Internacional. Saiu extremamente debilitado, com doenças e abalos
psicológicos. A família, durante o tempo da prisão, foi vítima de discriminação social
por ter um “pai comunista”. Ramirez, na prisão, depois de ficar incomunicável, acusado
das mais diversas coisas, fez uma greve de fome de dois meses para poder pressionar
sua própria soltura. As conexões internacionais estão claras, além de percebermos aqui a
utilização de métodos de tratamento aos presos muito semelhantes, todos eles vindos de
um aprendizado comum quanto à forma de tratar os “inimigos da pátria”.
8 Ditadura em todo lugar
Os documentos da Ditadura nos mostram que muito pouco ainda se sabe sobre
quais foram os seus impactos reais no Oeste do Paraná e do Rio Grande do Sul, o que
nos faz suspeitar que há muito a ser conhecido sobre a Ditadura no interior do Brasil.
São poucos os estudos sobre essas temáticas, mas aos poucos se avança. Os movimentos
sociais da memória e os comitês populares têm papel muito importante no processo.
Nessas regiões, há vários militantes dos direitos humanos e simpatizantes dos mais
diferentes movimentos. No âmbito do Paraná, há estudos sobre a Ação Popular e o
Partido Comunista. Quanto ao Oeste, destaca-se o trabalho de Aluízio Palmar. O
15
Domiciana Gimenez Antunes. Termo Declaratório. Audiência Pública de Cascavel. 20/03/2014.
Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 56, jul./dez. 2014.
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trabalho de Nelci Mello dá conta de uma discussão sobre a Ação Popular e a JUC, no
sudoeste, assim como elenca aspectos gerais da resistência. Já no Rio Grande do Sul, há
um acúmulo maior de pesquisa, como as citadas neste artigo e outras reunidas na
pesquisa acerca do Terror de Estado. Outras pesquisas têm avançado, inclusive
buscando vínculos com outros lugares no interior do Brasil. O que nos parece claro é
que não existiu consenso em torno da Ditadura, como queriam os aparatos de
propaganda do regime. O fato da Ditadura ter sido civil-militar está muito mais
vinculado ao Golpe e aos empresários do que a um consenso popular que a exigisse. As
falas deixam clara a existência de amplos setores que se calaram diante das atrocidades
e do medo.
Recebido em novembro de 2014.
Aprovado em dezembro de 2014.
Stories of Resistance against Terror
Abstract: In this paper, we discuss the dictatorship in western Paraná and in Rio Grande do Sul, from the
Public Hearing of the State Truth Commission held in Cascavel, Santa Catarina, in March 2014, and the
Audience of Três Passos, Rio Grande do Sul, in June 2014. We attempted to include the hearings in a
period of social movements and public policies of memory. The outcome of the hearings may be relevant
material for us to be acquainted with that reality, especially if we add academic researches which have
been done to the analysis, some of them, jointly with social movements of memory. The research aims to
point out the importance of the study on Dictatorship in the countryside.
Keywords: Dictatorship. Resistances. Western Paraná.
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