A Arte como crítica sociocultural

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A Arte como crítica sociocultural
A ARTE COMO CRÍTICA SOCIOCULTURAL
Laura Alves Gelpi
Laura Röhrs Franco
Thaís Marchand Ribeiro
“A arte de um povo é a sua alma viva, o seu pensamento, a sua língua no
significado mais alto da palavra; quando atinge a sua expressão plena, torna-se
património de toda a humanidade, quase mais do que a ciência, justamente porque
a arte é a alma falante e pensante do homem, e a alma não morre, mas sobrevive
à existência física do corpo e do povo.”
(Ivan Turgueniev)
RESUMO: A arte sempre foi instrumento de crítica. Durante muitos anos suas vertentes foram utilizadas como
método de aprendizagem e conhecimento, tanto cultural, quanto histórico, mas, com o passar do tempo, esta
função deixou de obter importância, sendo substituída pela industrialização e artificialidade. Propõe-se,
portanto, a análise destes projetos e seus principais objetivos com relação à sociedade, para assim entender
suas complexas mudanças com o passar das épocas, buscando compreender o porquê desta massificação
exagerada e do fim da individualidade e criticidade artística. A partir deste estudo abrangendo a literatura,
música, dança, teatro e outras possíveis expressões de arte pode-se desenvolver uma linha do tempo,
contendo a importância destas para o mundo antigo e o mundo moderno, fazendo uma breve relação entre eles
e percebendo assim, suas significativas mudanças. Concluindo, por meio destas análises, que a arte, em seu
modo geral, tem o dever de não obter identidade única e sim, diversas delas, para que possa englobar todos os
aspectos sociais, não ignorando, mas criticando o meio em que vivemos e trazendo de forma cultural, nossa
realidade que tanto nos é diariamente mascarada por um comodismo artístico.
PALAVRAS-CHAVE: Arte, Criticismo, Cultura, Identidade.
ABSTRACT: Art has always been an instrument of criticism. During many years its aspects were used as a
method of learning and knowledge in a cultural and historic perspective, although, as the time passed by, this
application had lost its relevance, being replaced by industrialization and artificiality. So, it is purposed the
analysis of these projects and their main intentions at society due to understand its complex changes through
the years, trying to comprehend the reason of this exaggerated massification and the terminal of individuality
and artistic criticism. From this study englobing literature, music, dance, theater and other possible art
expressions, it is able to develop a timeline, having their importance to the ancient and modern world, making
links among them and so, realizing their significant changes. Therefore, through these analyses, we confirm
that art, in its general perspective, has the duty of not having a single identity, but multiple ones, so it can
reach every social aspect, not ignoring, but criticizing the environment we are living on and bringing culturally,
our reality that is daily masked by artistic self indulgence.
KEYWORDS: Art, Criticism, Culture, Identity.
1 INTRODUÇÃO
As críticas sociais se configuram como elementos atemporais e fundamentais
para explicitar ao mundo, as mazelas do meio social em que nos encontramos ou
quaisquer impasses, que possam causar desconforto em uma determinada parcela de
cidadãos assim como nos seres humanos como um todo. Estas podem adquirir espaço
das mais diversas formas, desde protestos nas ruas das cidades ou, da maneira a qual
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mais julgamos significativa, em meio à modernidade líquida em que nos encontramos: a
arte.
A partir de então, encontramos nosso objeto de estudo, qual seja, a arte com
tom crítico e reflexivo que invade os espaços urbanos a partir de graffitis nas paredes de
estabelecimentos comerciais, residências e afins, assim como atinge o indivíduo não
somente a partir de desenhos, como também por meio de palavras, escritas ou cantadas,
através de produções literárias e canções que retratam determinadas realidades. Deste
modo, percebe-se claramente que o meio artístico possui um enorme potencial
contributivo para promover transformações, justamente pelo seu alto poder de alcance
com auxílio dos novos recursos tecnológicos e informacionais e sua vasta gama de
linguagens.
É fato que os movimentos providos de caráter ideológicos relevantes acabaram
sendo esquecidos, cedendo espaço a padrões transmitidos por canais de televisão,
roupas da moda ou celulares praticamente possuidores de inteligência superior à de seu
próprio usuário. Apesar de todo o progresso conquistado pelo homem ao longo de sua
existência no que tange à praticidade e facilidade de ações cotidianas, uma postura de
acomodação e indiferença às questões externas às nossas vidas individuais foi sendo
adotada em todas as escalas, e repentinamente acabamos nos deparando com um
mundo onde impera o egocentrismo, o culto à superficialidade da imagem e opiniões
alheias, o que preocupa de modo substancial, a ponto de desejarmos realizar uma
pesquisa mais completa a respeito da forma como as manifestações artísticas são
capazes de influenciar pensamentos acompanhados de grandes reivindicações, e se estes
ainda são capazes de estarem presentes nas atuais conjunturas do século XXI.
Para tal, efetuamos um panorama que pudesse tornar mais clara a forma como
chegamos até o ponto de vazio e negação de indivíduos pensantes que somos, com a
carência, à primeira vista, de concepções de não aceitação da realidade, a partir de um
resgate histórico, com produções notáveis, como as do período de vinte e um anos de
ditadura militar em território brasileiro, ou, indo mais afundo, nas literaturas de cordel
provenientes do nordeste de nosso país. É indispensável citar a censura que estas foram
submetidas em circunstâncias presentes e passadas, e, ainda mais, a luta que exercem
para persistir no âmbito repressor, embora já exista a obrigatoriedade do respeito à
liberdade de expressão.
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Com todas as leituras, dados, referências e ponderações, objetivamos mostrar a
todos, o papel de destaque das manifestações artísticas para a construção de um meio
que não se permita alienar pelo senso comum, mas sim construir um local repleto de
diversidade de opiniões com respeito mútuo e que estas estão, sim, cada vez mais
ganhando força no mundo real: basta procurá-las.
2 COMO A ARTE TORNOU-SE SUPERFICIAL NOS ÚLTIMOS TEMPOS?
2.1 A DEFINIÇÃO DE ARTE
A arte pode ser definida como manifestações estéticas e comunicativas, sendo
elas expressadas através da: escultura, pintura, música, literatura, dança, cinema, entre
outras possíveis variedades e combinações, que se alternam durante os anos. Ela é
considerada estética, pois o artista através de imagens, sons ou objetos pode criar
beleza, algo simples que se torna complexo, causando diferentes efeitos em seus
espectadores.
Filosoficamente
pode
ser
definida
como
intuição,
expressão,
projeção,
sublimação, evasão, etc. Aristóteles a definiu como uma imitação da realidade, já Kant,
como uma manifestação que produz uma “satisfação desinteressada”.
As percepções, emoções e ideias retiradas do artista são passadas diretamente
para quem as observa, vê, lê e ouve mas de formas completamente diferentes. Por isso a
arte se torna tão única e incrível, pois um único meio artístico pode trazer milhares de
compreensões possíveis. Sendo assim, elaboramos um resgate histórico, bem como a
abordagem de questões cotidianas que permitem proporcionar ao leitor uma reflexão
consistente no que tange ao papel desta nas modificações sociais, assim como as
condições atuais que enfrentamos de carência ideológica e excessiva incorporação de um
se não comum.
“Em arte, procurar não significa nada. O que importa é encontrar” (PICASSO,
Pablo).
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2.2 A MASSIFICAÇÃO CULTURAL
Vivemos atualmente em uma sociedade racional e capitalista, a qual tem por
base fundamental, a exorbitante obtenção de lucros, alheia aos meios de conquista de tal
objetivo, e, concomitantemente, fazendo a utilização da capacidade cognitiva do Homo
Sapiens Sapiens para gerar maior grau de cientificidade, e, portanto, riquezas.
É fato
que, com o passar do tempo, tais características foram sendo gradativamente mais
acentuadas devido à constante insatisfação do homem perante o meio em que vive
ganancioso pela quantidade, qualidade e prestígio social.
Tendo isso em vista, percebemos que as incansáveis buscas pelos aspectos
extras, como o desejo de aprimorar tudo aquilo que possui, enaltecer os próprios
potenciais e exigir a evolução acabam não sendo restritos ao campo do conhecimento e
tecnologia, mas perpassa os meios de comunicação de uma forma geral, os quais podem
servir de potentes influenciadores de opinião e valores públicos, e todas as formas
encontradas pelo ser humano para efetuar a transmissão de ideologias e pensamentos,
para que possa ser escutado, conhecido e valorizado, quais sejam as manifestações
artísticas através da música, literatura, peças teatrais, entre outros.
No entanto, o desejo em alterar padrões estabelecidos é tamanho, e as
modificações tão eficazes, que chegamos a um ponto de estagnação, no qual o ápice já
fora atingido com uma quantidade infindável de mensagens, valores e sentimentos,
conforme ocorreu em solo brasileiro com o movimento do Tropicalismo ao final da década
de mil novecentos e sessenta ou a ideologia Hippie disseminada na mesma década nos
Estados Unidos. A partir disto, inevitavelmente surge o questionamento: Qual o próximo
passo para a evolução? Seria realmente adequado seguir os princípios darwinianos e
promover a adaptação dos indivíduos ao meio metamórfico e imprevisível no qual nos
situamos? Repentinamente, a cultura assume o papel dos caracteres gênicos sob o ponto
de vista biológico, e estes acabam passando de geração a geração, cada uma com o seu
diferencial.
O fato é que o processo se tornou deveras desgastado, sem mais nenhum valor
substancial e de relevância ao meio social, e a população em resposta ao fenômeno,
começa a criar e reinventar as perspectivas já sedimentadas, contando com mais
artifícios que ao invés de enaltecer as melhores características humanas, acabam por
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reduzir o potencial intelectual de cada um. A indústria cultural, termo criado por Theodor
W. Adorno e Max Horkheimer na escola de Frankfurt, na Alemanha, agem com extrema
força na atualidade, prezando a distorção da ética e moral, bem como a priorização do
que é rentável e consumível pelas massas. O comodismo impera e no momento em que
deveríamos pensar em formas de combater o processo de alienação, deixamo-nos
enganar por tudo que é exposto pela mídia, incorporando equívocos aos nossos
pensamentos e comportamentos.
Notamos que a intervenção artística, prezando a criticidade é praticamente
inexistente, e uma regressão gritante é percebida em diversos âmbitos, mas com maior
facilidade no meio musical. Tomemos, pois, a musicalidade como exemplo: No Brasil, o
funk, ritmo bastante polêmico e divisor de opiniões, no início dos anos noventa
denunciava a precariedade das classes menos favorecidas, explicitando suas dificuldades,
situações cotidianas e perseverança apesar dos problemas e situações dificultosas, sendo
inclusos o tráfico de drogas, escassez de alimento, saneamento básico e educação.
Hoje, a nova modalidade existente é o “Funk Ostentação” onde prevalecem
letras com pouco conteúdo reflexivo, cujo foco acaba sendo o dinheiro, os bens materiais
e a mulher como objeto sexual. Os valores foram tão distorcidos, que essas temáticas
são completamente aceitas pelo público e se existe alguma canção de cunho crítico, já é
vista com certa reprovação.
O mesmo pode ser dito e comparado com realidades internacionais, como o rap
americano que tem como icônico representante, o cantor 50 Cent. Suas músicas e a dos
demais rappers atuais expressam exclusivamente a importância dos bens materiais e os
status-quo que estes reproduzem, o que não ocorria com os rappers antigos como
TupacShakur ou Ice-Cube, que retratavam principalmente as desigualdades econômicas
e sociais sofridas por sua etnia.
2.3 A ARTE CONTEMPORÂNEA
Apesar da massificação cultural que presenciamos no mundo globalizado,
obtemos exemplos de artes contemporâneas extremamente expressivas. Com um cunho
social crítico, propagando ideologias de artistas insatisfeitos com a realidade, ou
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disseminando ideias positivas para a conscientização do povo, as pinturas urbanas vão
muito além de enfeitar as cidades.
O Grafite em sua essência é uma manifestação artística, onde as telas do pintor
são as paredes e muros públicos. Sua efervescência iniciou na década de 1970 e o Brasil
é reconhecido mundialmente nessa modalidade. Possui uma forte ligação com o Hip Hop
que o utiliza para demonstrar a opressão que a sociedade vive.
É considerado por muitos uma poluição pública, já que estão presentes em
metrôs,
túneis,
edifícios,
monumentos,
e
qualquer
espaço
permitido.
Pela
sua
semelhança com a pichação, o grafite é marginalizado e sofre as mais variadas formas de
preconceito. Para reverter esse status a profissionalização dessa área é levada a sério, a
qualidade do trabalho é tão importante quanto à mensagem transmitida o que resulta em
magníficas obras de arte, ganhando cada vez mais abertura para sua propagação.
Um nome de referência para melhor exemplificar a essência do grafite, é o
paulista Luís Gustavo Martins. Suas obras protestam contra a alienação da sociedade,
luta contra a massificação cultural existente muito influenciada pela mídia, incentiva
protestos e ação do povo, retrata a liberdade com pinturas de pássaros vendados entre
outras representações de suas ideologias.
A banalização da arte e da cultura resulta em músicas sem significado, obras
vazias,
literaturas
fúteis.
Felizmente
ainda
existem
diversos
movimentos
que
contradizem toda a perspectiva futura de uma massificação cada vez mais intensa. O
grafite conquista cada vez mais espaços e influencia milhares de pessoas, perpetuando
uma crítica social necessária no mundo atual.
3 DE QUE FORMA A IDENTIDADE SOCIAL FOI SENDO CONSTRUÍDA ATRAVÉS DA
MÚSICA?
3.1 AS MÚSICAS ATUAIS QUE AINDA APRESENTAM O CUNHO DE CRITICIDADE SOCIAL.
No momento em que as pessoas se deparam com o conceito de identidade,
fazem, automaticamente, alusão às suas características individuais, comumente ligadas
às próprias qualidades e defeitos, e entre eles, encontram-se a timidez, liderança,
espontaneidade, tranquilidade ou até mesmo irritabilidade frente a determinadas
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situações. No entanto, é indispensável que não haja esta exclusiva visão fragmentada do
“eu”, mas sim, o pensamento a respeito dos elementos que compõem um grupo, isto é,
a primeira pessoa do plural: Nós. A interação entre o indivíduo e a sociedade de modo
constante contribui para o envolvimento cognitivo e emocional dos integrantes de seus
respectivos grupos, criando um forte sentimento de pertença e compartilhamento de
ideologias, costumes, culturas e interesses.
Analisando sob esta perspectiva, nota-se que a identidade não é sedimentada de
forma independente e avulsa às circunstâncias sociais, visto que os seres humanos
necessitam uns dos outros para a construção de algo grupal ou individual. Temos como
fundamentais componentes formadores da identidade social, o âmbito familiar, no qual
são desenvolvidas as relações primordiais; o meio escolar, bem como aspectos que são
frutos de influências externas: política, religião, sentimento de pertença a classes sociais
e as artes, cada uma à sua maneira específica.
A identidade social regida pelas artes traz consigo, na maioria das vezes, uma
crítica muito forte. Os artistas se expressam para condenar sua posição social, as
situações do mundo conforme enxergam, pedem por liberdade, mudanças e revoluções.
Atribuímos maior destaque à questão da arte exposta na forma de música, a qual é
capaz de, branda ou radicalmente, transmitir pensamentos, angústias e visões de
maneira satisfatória a todos que possuam o desejo ou interesse de refletir acerca de
nossa realidade, desde os motivos pelos quais enfrentamos o presente momento, até
possíveis soluções para aquilo que nos causa desconforto.
No mundo globalizado a velocidade de informação supera-se a cada segundo,
infelizmente as gravadoras hoje tratam a música como um comércio, em buscas de
tendências que serão substituídas rapidamente após atingirem uma meta. Isso acaba
sendo um empecilho para músicos sérios que procuram dizer algo com sua arte, e são
extremamente desvalorizados. É uma luta para ser ouvido. Normalmente são bandas
independentes que penam muito até conseguirem uma visibilidade, o resultado é
pouquíssimas canções e letras críticas chegando ao ouvido, à casa das pessoas, ao rádio,
e em contrapartida, há uma imensidão de músicas comerciais, desprovidas de caráter
ideológico e expoentes da verdadeira superficialidade e negação do caráter pensante que
naturalmente possui um ser humano.
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Contudo, pela determinação e insistência de alguns, temos ótimos exemplos de
artistas que movem legiões com suas ideologias, fazem de tudo para transpassar seus
sentimentos e não fazem o apelo comercial que a maioria procura. A cantora norteamericana Lauryn Hill critica a realidade de uma forma muito simples e honesta através
do RAP, um estilo conhecido por suas imposições sociais, como na música “I Get Out”
cuja letra retrata muito bem a questão de identidade social, e pode resumir-se no trecho:
“i get out of all your boxes, you can’t hold me in these chains i get out. Father free
me from this bondage knowing my condition in the reason i must change. Your
stinking resolution is no type of solution preventing me from freedom maintaining
your pollution. I won’t support your lie no more i won’t even try no more if I have
to die oh lord that’s how i choose to live...”
”Eu saio de todas suas caixas, você não pode prender-me nestas correntes eu saio.
Pai afaste de mim esta escravidão conhecer minha condição é a razão que me faz
querer mudar. Sua definição fedorenta não é nenhum tipo de solução privando-me
da liberdade mantendo sua poluição. Eu não suportarei mais sua mentira eu nem
mesmo continuarei tentando se eu tiver que morrer, oh Senhor, é o jeito que
escolhi para viver...” [Tradução livre].
Ela claramente faz um apelo para as pessoas olharem ao seu redor e
perceberem todas as correntes invisíveis que nos prendem.
Um artista brasileiro pouco conhecido chamado Max Gonzaga faz uma forte
crítica à sociedade em sua música “Classe Média”, na qual condena a inércia,
imparcialidade e comodidade da maioria da população que só se preocupa com os
problemas sociais quando interferem diretamente em suas vidas. Deixa claro suas
indignações já no primeiro trecho da música:
“Sou classe média papagaio de todo telejornal eu acredito na imparcialidade da
revista semanal. Sou classe média compro roupa e gasolina no cartão, odeio
“coletivos” e vou de carro que comprei a prestação. Só pago impostos estou
sempre no limite do meu cheque especial eu viajo pouco, no máximo um pacote
CVC tri-anual. Mas eu “to nem ai” se o traficante é quem manda na favela mas eu
“to nem aqui” se morre gente ou tem enchente em Itaquera eu quero mais é que
se exploda a periferia toda, mas fico indignado com o estado quando sou
incomodado pelo pedinte esfomeado que me estende a mão...”.
São letras como essas que inspiram as pessoas a fazer algum tipo de mudança.
É importante ressaltar que no meio de uma massificação descontrolada da cultura, mais
especificamente da música, ainda existem indivíduos que se dedicam à criticidade,
transparência e sinceridade em suas canções. Tanto no Brasil quanto ao redor do mundo,
somos presenteados com músicas que são capazes de abrir nossos olhos e fazer com que
possamos enxergar a realidade a nossa volta, nos tornando capazes de perceber o que
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há de errado com a sociedade em geral, impedindo que as pessoas tentem esconder o
que está acontecendo e mais que isso, fingir que não tem envolvimento com estas
situações.
4 A DITADURA MILITAR E O SEU PAPEL NO IMPEDIMENTO DA CRÍTICA
ARTÍSTICA
Em 1961, João Goulart, presidente do Brasil, propunha a todos um país mais
igualitário. Reformulação na estrutura e reforma agrária foram as principais medidas
citadas por Jango. A classe média, grandes proprietários e a burguesia impulsionados
pela mídia, pelos Estados Unidos e pela Igreja, alertaram veemente à população sobre o
“perigo comunista” que estava se instaurando em nosso território. Os militares, que
supostamente reagiriam com algo temporário, acabaram perdurando por 21 anos no
poder, aplicando o golpe de 1964. O que era pra ser “a cura do país” tornou-se uma
ditadura extremamente repressora e violenta e as formas mais intensas de protesto,
luta, e lamento à esta repressão foram através da música, peças de teatro, da literatura
e de todas as vertentes da arte.
4.1 AS LITERATURAS CENSURADAS
A literatura consiste em um dos artifícios mais eficazes no que diz respeito à
disseminação de ideologias, pensamentos e visões de mundo, instigando o leitor e o
estimulando para que construa um satisfatório senso crítico e perceba a realidade com
maior clareza. Conjugando todos estes fatores, pode-se dizer que é considerada como
manifestação artística e causadora de polêmicas.
É sabido que durante o período ditatorial, o cerceamento da liberdade foi algo
fundamental para o estabelecimento do regime, mais precisamente entre 1967 e 1974,
quando entrou em vigor o Ato Institucional N° 5 durante o governo de Arthur Costa e
Silva, prosseguindo durante o mandato de Emílio Médici. Todos os meios de comunicação
foram rigorosamente vigiados, sendo que o principal setor responsável por essa medida
foi o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP).
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Qualquer palavra ou escrito que fugisse do tradicional conservadorismo familiar
era imediatamente taxado de subversivo, logo confiscado e proibido. Pessoas eram
presas e torturadas simplesmente por portarem livros com a capa vermelha (cor do
comunismo). A literatura nunca foi tão prejudicada no Brasil. Editoras tornaram-se
personagens importantes na resistência ao golpe publicando diversas críticas e sátiras a
respeito dos acontecimentos. Livros foram sucessos de venda como “O Golpe Começou
em Washington” de Edmar Morel, assim como revistas tal qual a “Civilização Brasileira”
publicada nos anos de chumbo do regime. Devido à manipulação de informações nos
jornais e outros meios de comunicação, a literatura obtém um papel fundamental em
momentos de ferimento à liberdade. No Brasil, desde muitos séculos atrás, ela vem
exercendo sua função eximiamente e, assim como outros ramos, é um exemplo de
expressão através da arte.
De acordo com um levantamento realizado pelo Departamento de Censura e
Diversões Públicas (DCDP) a partir de 1970, estima-se que mais de cento e quarenta
obras
literárias
tenham
sido
previamente
censuradas
devido
ao
seu
conteúdo
considerado subversivo. Tínhamos, por exemplo, desde restrições a textos que
retratavam com fina ironia a situação política do Brasil, até escritos ficcionais, como é o
caso de “Feliz Ano Novo”, do autor mineiro José Rubem Fonseca, que foi proibido com a
justificativa de que seu conteúdo feria a moral e os bons costumes.
Com sua linguagem seca, cinematográfica, mas real, o livro retratava em cinco
contos, as experiências de personagens urbanos com a demasiada violência, o que
causava
desconforto
nas
autoridades
governamentais,
justamente
por
haver
a
possibilidade de associação com o regime, bem como supostamente induzir a população
a reproduzir os fatos narrados, indo contra a boa conduta e a ordem que tanto se
pregava e exigia. Se na época já era um best-seller, atualmente permanece em
semelhante situação, inclusive já foi pré-requisito para o ingresso em uma das mais
influentes universidades da América Latina, a Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Seu estudo permanece atemporal e configura-se como um ícone representativo da
arbitrariedade e repressão do período.
Outro autor que sofreu com a censura em suas publicações foi Maurício de Sousa
ao introduzir pela primeira vez o personagem Chico Bento nas histórias em quadrinhos,
um verdadeiro caipira brasileiro, que andava descalço, usava chapéu de palha e que
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principalmente apresentava uma linguagem própria e local. Esta, por sua vez, não ia de
acordo com as normas cultas da língua portuguesa e por isso acabou sofrendo
represálias, visto que as autoridades interpretaram seu modo de expressão como um
convite aberto ao público infantil para que também falasse “errado”. Novamente, foi
completamente desconsiderada a variabilidade linguística existente em nosso país,
obrigando todos a seguirem sempre um único caminho, totalmente conservador.
Por fim, há o escritor Renato Tapajós que expôs de modo mais radical a oposição
ao regime em sua obra “Em Câmara Lenta”, na qual descreveu as estratégias de
guerrilha e denunciou as brutais torturas exercidas pelos integrantes do partido de
situação. O próprio autor já havia sido preso por ser um guerrilheiro esquerdista da Ala
Vermelha, cumprindo pena por isso de 1969 a 1974, e foi durante este período que
escreveu sua história, a qual seria publicada três anos depois pela editora Alfa-Ômega contrária ao regime e a única que apoiou o projeto -, visto que diversas outras já haviam
recusado devido aos riscos que automaticamente estariam assumindo rebelando-se
contra os ditadores.
Os
setores
conservadores
da
sociedade,
incluindo
militares,
indivíduos
pertencentes à Igreja Católica, empresários e banqueiros ficaram bestializados com o
conteúdo do livro, pois acreditavam piamente que seu conteúdo era “uma espécie de
manual de guerrilha”. Portanto, em julho daquele ano, Tapajós foi preso e quinze dias
após sua prisão, foram terminantemente proibidas quaisquer reproduções ou vendas
deste.
É cabível destacar que estes são somente alguns casos de silenciamento e
opressão, visto que a lista de produções literárias proibidas é muito vasta. Citamos ainda
os livros “Zero”, de Ignácio de Loyola Brandão; “Mister Curitiba”, de Dalton Trevisan e o
quadrinhista Henfil com sua revista “Fradim”, entre outros.
4.2 AS MÚSICAS CENSURADAS
Além dos livros, o cinema e o teatro resistiram na primeira etapa da ditadura
com representações contestadoras à repressão, porém após o decreto do AI-5 não
tiveram voz. Sem dúvida alguma o foco de resistência mais importante e significativo
contra o regime militar foi à música e os movimentos relacionados que atingiram
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milhares de pessoas. Criaram-se hinos, símbolos e mestres que com a poesia e as
inteligentes metáforas contornavam as censuras para cantar o que sentiam e o que
necessitavam protestar.
Artistas como Chico Buarque de Hollanda e Geraldo Vandré foram precursores
num dos estilos musicais da época chamada música de protesto. Através do MPB
cantavam suas indignações, e Chico é considerado o maior poeta brasileiro, pois
dominava a arte de falar sem dizer nada, brincava com as metáforas e criticava
veemente aquela repressão em que estava inserido em canções como Acorda Amor,
Roda-Viva, Pega Ladrão, entre outras. Uma canção tornou-se hino para a resistência do
regime: Caminhando/Pra não dizer que não falei de flores, de Vandré. A população
clamava a letra em passeatas concretizando um pensamento, quem não cantava era a
favor do regime, quem cantava estava ajudando na luta contra a injustiça social e o
ferimento a democracia. Em 1967-68 surgiu o Tropicalismo, movimento artístico
comandado por Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, Nara Leão, entre outros cantores
e compositores que entraram para história do país. Estes artistas propunham um som
alegre com o uso de guitarras elétricas e roupas coloridas e concretizavam o movimento
da contracultura, não se denominavam um grupo, porém agiam em conjunto contra a
repressão e a ditadura num modo geral. Sua crítica era sutil, mas assim como a música
de protesto, a tropicália não escapou da repressão e diversos artistas foram exilados,
presos e torturados. Pelo o lado direito, fazendo um contraponto a toda luta contra a
ditadura, surgia a Jovem Guarda de Roberto Carlos e outros.
Era uma música fútil, sem nenhum valor político, um hino para alienação feito
por jovens de classe média que “sofriam” dentro de seu “cadillac”, mostrando que as
insatisfações pessoais eram mais importantes do que a realidade do país.
Percebemos que as personagens mais atuantes para o fim da ditadura militar
foram os jovens e os movimentos estudantis guiados pelas músicas e movimentos
artísticos que atingiram seu auge em 1968 e tornaram-se obrigatórias para qualquer
análise da história de nosso país.
4.3 A ARTE VISUAL CENSURADA
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Durante a Ditadura militar no Brasil, a arte tentava de alguma forma retratar em
sua estrutura questões sobre assassinatos, sequestros, torturas, censuras e qualquer
atividade praticada na época contra os conhecidos subversivos e comunistas. Para isso,
era necessária a utilização de metáforas, duplos sentidos e fragmentos para representar
a luta contra o regime de forma menos escancarada, para que a crítica artística ficasse
subentendida.
Uma obra que merece atenção durante esta época foi “A Morte no Sábado”
(figura 1), que representava um tributo à morte de Vladmir Herzog, desenvolvida por
Antônio Henrique do Amaral, com o objetivo de denunciar a tortura cometida para com o
jornalista. É possível perceber órgãos e vísceras perfurados por garfos, deixando ali,
explícito, o motivo da morte.
Há também a obra “Trouxas Ensanguentadas” (figura 2), por Arthur Barrios,
representando todos os corpos jogados às margens de rios. Na escultura é possível
perceber o sangue presente nas sacolas, como forma de se livrar dos assassinados da
época.
4.4 PROGRAMAS DE RÁDIO E TELEVISÃO CENSURADOS
No
que
diz
respeito
ao
que
era
televisionado,
a
fiscalização
ficava
predominantemente por conta do já citado Departamento de Censura e Diversões
Públicas (DCDP), que além de fiscalizar por conta própria, também contava com o auxílio
dos conservadores de diversos estados mediante o envio de cartas, pedindo para que
cenas ousadas demais fossem repreendidas: É o caso das Senhoras de Santana, um
grupo formado por mulheres católicas do bairro paulistano, que, ao assistir certo
programa e concluir que este continha palavras de baixo calão ou cenas imorais em
excesso, já encaminhava um abaixo-assinado para que houvesse maior rigor nos cortes.
Devido a isso, muitas tramas acabaram ficando monótonas e tornava-se cada vez mais
dificultosa a tarefa de fazer menção à homossexualidade, adultério ou divórcio, os quais
ocorriam na vida real, mas que não poderiam ser divulgadas de forma alguma.
Temos como principais exemplos, as novelas da Rede Globo, que não só eram
censuradas quanto à faixa etária e horários nos quais seriam exibidos os programas,
como também sofriam intervenções de pequenas ou grandes proporções nos roteiros,
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tornando a obra deficitária e incompreensível ao telespectador. O grupo de censores
sempre analisava previamente tudo aquilo que iria ao ar no mesmo dia, e caso houvesse
algum item que ferisse a tão aclamada boa moral e os bons costumes, o veto seria
imediato.
Em 1973, a emissora lançou sua primeira novela a cores denominada “O Bem
Amado”, no período em que o território brasileiro experienciava o momento do “Milagre
Econômico”. A trama tratava-se de um político corrupto, Odorico Paraguaçu, que iludia
um sofrido povoado do Nordeste. Após uma análise criteriosa, a DCDP concluiu que a
história poderia estar repleta de duplos-sentidos, podendo ser associada ao momento
enfrentado pelo Brasil na época. Após esta declaração, foram inúmeras as implicâncias:
eliminaram a cena em que o personagem principal seria atingido por uma doença de
bicho de pé, pois a falta de saneamento básico não correspondia às características de um
país que estava se desenvolvendo rapidamente. Acabou sendo substituída por uma gripe.
O tema de abertura, a princípio cantado por Vinicius de Moraes e Toquinho, também foi
alterado por conter o verso “Estamos sentados em um paiol de pólvora”.
A novela Roque Santeiro é a mais emblemática exemplificação, visto que estava
programada para estrear em 1975: todos os seus episódios iniciais já haviam sido
gravados e liberados para exibição (já com alguns cortes estabelecidos pelos censores).
A população, ansiosa pelo começo da nova atração estava apenas à espera do término do
Jornal Nacional, quando ao final deste, o então apresentador Cid Moreira anunciou, lendo
um texto aprovado pelo presidente da emissora, Roberto Marinho, que ela havia sido
cancelada. Esta só foi ao ar dez anos depois, com um elenco reformulado, sendo que o
único remanescente do original fora Lima Duarte. Era de se imaginar que a atração seria
vítima de alguma represália, pois o seu autor, Dias Gomes, fora do Partido Comunista
Brasileiro e a trama foi inspirada em uma peça teatral previamente censurada, chamada
“O Berço do Herói”.
A última a sofrer com a repressão foi Vale Tudo, mais precisamente no que dizia
respeito à homossexualidade feminina, que seria para ser abordada como algo natural e
sem preconceito algum, o que, logicamente, na visão dos militares, era um completo
absurdo. Porém, o Brasil já estava em um processo de abrandamento da ditadura, então
se tornou possível à exposição da completa falta de ética e crise econômica enfrentada
pelo país, criticada na música “Brasil” de Gal Costa utilizada como abertura da novela
Volume 5, Setembro de 2014.
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acima citada. Em 1988, foi promulgada a nova constituição que previa o fim da prática
da censura no país.
Os programas de rádio seguiam semelhante linha de raciocínio, no entanto,
eram mais obedientes quanto aos cortes estipulados devido à constante sensação de
medo. Quaisquer músicas como as de Caetano Veloso ou Chico Buarque ou comentários
com conteúdo pornográfico eram retiradas dos scripts e acabavam recebendo uma
advertência; caso desobedecessem às ordens por acidente ou propositalmente, a rádio
recebia punição.
A vantagem deste veículo de comunicação era que a informação corria mais
livremente, ainda que fragmentada, uma vez que era permitida a divulgação de prisões
ou cassações de mandatos. Contudo, seria terminantemente proibida a menção ao
regime militar em comentários com caráter difamatório ou a exposição acerca dos
acontecimentos nas guerrilhas ou a situação de sua organização tática e bélica. Para
evitar estes fatos, acabaram sendo proibidos programas de humor, de variedades e de
calouros, pois acreditavam piamente que de maneira direta ou indireta, com certeza tais
assuntos viriam à tona.
Como bem sabemos, os meios de comunicação, além de serem disseminadores
de informação, também se caracterizam como empresas que visam o maior lucro e
menor prejuízo possíveis. Portanto, várias foram as rádios que optaram por se mostrar
favoráveis ao regime e ocupavam-se em exaltar qualidades e maravilhas a respeito
deste. Houve aquelas que eram contrárias à situação, como é o caso da rádio gaúcha
Continental AM 1120, que constantemente assumia um caráter provocador em suas
notícias contra a ditadura.
5 O SURGIMENTO DAS CRÍTICAS SOCIAIS PELA ARTE
A arte foi, desde os primórdios da civilização, uma maneira altamente eficaz de
transferir para o papel, parede, partituras ou para qualquer lugar, a voz dos
descontentes e suas ideologias para que tivessem a oportunidade de serem refletidas
pelo povo discreta ou escancaradamente, mostrando que o país necessitava de
mudanças. Do império à república, dos senhores de engenho aos grandes empresários,
Volume 5, Setembro de 2014.
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da pobreza à riqueza, a produção artística crítica e consciente vem evoluindo ao longo
dos tempos para denunciar as mazelas ocasionadas pelo próprio ser humano no meio em
que vive sempre na tentativa esperançosa de reconhecer os erros e buscando, de forma
conjunta, os acertos e o real progresso.
5.1 CANTIGAS DE ESCÁRNIO E MAL DIZER
O trovadorismo foi a primeira manifestação literária da língua portuguesa no
século XII, no momento em que Portugal estava em processo de formação nacional. Em
um ambiente feudal e excessivamente teocêntrico, eis que surgem as cantigas líricas (de
Amor e de Amigo) e as satíricas (de Escárnio e Maldizer).
Estas,
por
sua
vez,
eram
cantadas
pelos
trovadores,
palavra
que,
etimologicamente advém do termo francês trouver, que significa achar ou encontrar.
Assim, o poeta encontrava a canção adequada ao poema e a acompanhava com algum
instrumento musical, como a harpa ou a lira. Entre os trovadores de maior destaque,
estão: Dom Duarte, Dom Dinis e João Garcia de Guilhade.
As Cantigas de Maldizer envolviam sátiras diretas, chegando, diversas vezes, a
agressões verbais, com temática escabrosa, linguagem chula e obscena, sendo que o
nome da pessoa satirizada poderia ou não aparecer explicitamente na cantiga.
Já as Cantigas de Escárnio diferem-se das descritas anteriormente pelo fato de
que há a utilização de duplos-sentidos e ambiguidades, isto é, uma sátira encoberta e
com a utilização de ironia, como na cantiga abaixo:
“Ai, dona feia, foste-vos queixar
de que nunca vos louvei em meu trovar;
e uma das trovas vos quero dedicar
em que louvada de toda a maneira
sereis; tal é o meu louvar:
dona feia, velha e sandia!”
(João Garcia de Guilhade)
Sendo assim, por diversas vezes os trovadores criticavam àqueles que queriam
sem qualquer pudor ou censura. Era comum executarem tal ironia com membros da alta
corte portuguesa, enquanto estes comiam, bebiam e riam sem se darem conta de que os
grandes satirizados eram eles próprios.
Volume 5, Setembro de 2014.
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5.2 A LITERATURA DE CORDEL
Na literatura o estilo Romântico muitas vezes predominou, visto que as novelas
faziam muito sucesso para a classe burguesa, a qual se divertia com as aventuras
cotidianas escritas. Porém, a partir de um momento, os textos adquiriram um caráter
mais popular, o povo começa a expressar sua realidade, as dificuldades de morar num
país pobre e elitista.
A literatura de cordel, inicialmente difundida pela Europa no século XII e
posteriormente para o Brasil com ares mais populares, foi influente principalmente na
região nordeste do país: eram panfletos colocados em barbantes pelos próprios autores,
contendo considerável preocupação com as rimas e as normas cultas do português. Por
muitas vezes, eram acompanhadas de ilustrações denominadas xilogravuras, que
simplificadamente, podem ser definidas como figuras impressas a partir da utilização de
um carimbo de madeira.
Apesar de ter começado também com uma característica romântica, logo os
sertanejos nordestinos escreviam sobre as secas e a fome, os seringueiros e os índios
relatavam as dificuldades de sobrevivência em locais em que a capital avançava; a
desigualdade crescia de forma assustadora, visto que tínhamos em uma pequena porção
do Brasil enorme concentração de renda e, em contrapartida, em grandes extensões
territoriais, grande parte dos indivíduos sobrevivia de forma precária e penosa. Coube
aos poetas, como representantes do povo, denunciar estas condições ora de forma
cantada, ora de forma escrita para que algum setor da sociedade voltasse suas atenções
para estas necessidades e dificuldades.
Essas produções literárias foram muito famosas na década de 1950, no entanto,
perderam sua influência atualmente, mas ainda podem ser encontrados em alguns
mercados públicos, feiras ou sebos nordestinos.
5.3 MACHADO DE ASSIS
Joaquim Maria Machado de Assis, um dos principais escritores brasileiros e o
primeiro crítico do país, escreveu em duas vertentes da literatura brasileira: sua primeira
fase pertenceu ao Romantismo enquanto a segunda foi caracterizada pelos padrões do
Volume 5, Setembro de 2014.
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Realismo. Escreveu em praticamente todos os gêneros literários: crônicas, poesias,
contos, folhetins, assim como inúmeras críticas de cunho político e social no momento de
transição do Império para a República.
Este grande ícone da literatura escrevia de forma subjetiva a respeito da falta de
interesse e reflexão das classes dominantes em assuntos pertinentes à coletividade,
sugerindo, portanto, sua alienação. Tal caso pode ser verificado em sua obra Esaú e
Jacó, publicada em 1904, mais precisamente nos capítulos LXII e LXIII, nos quais o
confeiteiro Custódio permite que seus interesses capitalistas pessoais preponderem sobre
as questões de conflitos políticos conforme o trecho:
“- Penso que já; mas diga-me V. Excelência: ouviu alguém acusar-me jamais de
atacar o governo? Ninguém. Entretanto... Uma fatalidade! Venha em meu socorro,
Excelentíssimo. Ajude-me a sair deste embaraço. A tabuleta está pronta, o nome
todo pintado. — "Confeitaria do Império", a tinta é viva e bonita. O pintor teima em
que lhe pague o trabalho, para então fazer outro. Eu, se a obra não estivesse
acabada, mudava de título, por mais que me custasse, mas hei de perder o
dinheiro que gastei? V. Excelência crê que, se ficar "Império", venham quebrar-me
as vidraças?”. (Machado de Assis)
Na mesma obra, também critica a falta de posicionamento da burguesia em
relação à transição de um regime para outro, indo apenas de acordo com aquele que lhe
desse maior prestígio social e econômico.
Além deste, foi autor de um artigo denominado “Literatura Brasileira: Instinto de
Nacionalidade” de 1873, no qual ele analisou de forma profunda todas as escolas
literárias adotadas pelos diversos escritores brasileiros até então, chegando a diversas
conclusões, entre elas, que a crítica nestas obras era demasiadamente ausente; que a
poesia era influenciada pela cor de seu local de origem; que a linguagem utilizada
continha excessivos traços da língua francesa e que a falta de independência, tanto em
aspectos escritos como em termos de unidade de um povo, era lamentável.
Portanto,
este
importante
autor
contribuiu
majoritariamente
para
o
amadurecimento das produções literárias e para uma reflexão crítica acerca do seu
tempo.
5.4 VINICIUS DE MORAES
Volume 5, Setembro de 2014.
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A partir do século XIX nascia, no Brasil, outra vertente da literatura, não sendo
classificada especificamente como um movimento literário, mas sim, como uma mistura
de estilos e nomes como Graciliano Ramos e Augusto dos Anjos. Este período ficou
conhecido como o pré-modernismo, que tinha como principal objetivo defender a
realidade e criticar a vida em sociedade.
Há muitos exemplos de manifestações populares através da literatura. O Brasil
muitas vezes é taxado de comodista quanto às injustiças sociais, porém desde séculos
passados temos influências importantes de manifestações artísticas que denunciam estes
problemas da sociedade.
Com a semana da Arte Moderna em São Paulo, em 1922, eis que se inicia
oficialmente um novo período literário: o Modernismo, cuja principal característica foi à
construção da independência e rompimento com os padrões europeus já tão gastos e
arcaicos, que por muito tempo foram adotados no Brasil. Aquele era o momento
adequado para mostrar ao povo, por meio da arte, a face pura e verdadeira das
condições enfrentadas pelo país, sem idealizações e associações com o lirismo pastoril e
bucolismo, que em nada se assemelhavam à diversidade conflitante da nação. Entre os
principais autores, destacam-se Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meirelles, Manuel
Bandeira e Oswald de Andrade.
Além dos previamente citados, há Marcus Vinicius da Cruz de Mello Soares,
popularmente conhecido como Vinicius de Moraes, ou “O Poeta da Paixão” e um dos
fundadores
do
movimento
da
Bossa
Nova.
Apesar
de
ter
dedicado
sua
vida
predominantemente para seus poemas amorosos e sambas, também foi responsável pela
confecção de poesias engajadas com os problemas sociais enfrentados pela população,
conforme se percebe no poema “Operário em Construção”, de 1956:
[...] ”O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
- Garrafa, prato, facão
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção.
Olhou em torno: gamela
Banco, enxerga, caldeirão
Vidro, parede, janela
Casa, Cidade, nação!
Tudo, tudo o que existia
Era ele quem os fazia
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Ele, um humilde operário
Um operário que sabia
Exercer a profissão.
Ah, homens de pensamento
Não sabereis nunca o quanto
Aquele humilde operário
Soube naquele momento!” (MORAES)
Foi por meio desta que tentou fazer com que o leitor refletisse a respeito da
classe explorada, e do momento em que esta se dá conta do processo pelo qual vem
sofrendo há anos, tendo coragem para negar a ordem e então elaborar uma nova visão
de mundo baseada na consciência do poder que tem nas mãos, para alterar não só a
natureza, mas também o meio social em que vive.
Também sofreu as consequências do regime militar no Brasil com o Ato
Institucional N ° 5, pois foi compulsoriamente afastado de sua carreira diplomática. Em
1969, a Comissão Câmara Canto (criada pelo AI-5) o rotulou como “bêbado,
homossexual e boêmio”, que deveria ser prontamente afastado do serviço público. O
poeta recebeu a notícia por meio de uma carta-telegrama que leu sem derramar uma
única lagrima. No dia 16 de agosto de 2010, foi promovido ao cargo de embaixador postmortem pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva em uma cerimônia para familiares
e amigos próximos ao poeta.
Assim sendo, conclui-se que Moraes, apesar de todas as represálias às quais foi
submetido, possui destaque e reconhecimento atemporal perante todas suas obras
produzidas,
permanecendo
fiel
às
suas
ideologias
e
comportamentos,
independentemente das críticas surgidas em um meio social que tanto tentou denegri-lo
e retirar seu título de grande artista.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Em pleno século XXI passamos por um processo de comodismo artístico se
compararmos a outros momentos históricos, pelos quais a música, dança, teatro,
literatura e diversas vertentes, foram os principais blocos de luta contra repressões e a
forma de expandir ideologias, reivindicar direitos e denunciar injustiças. É plausível de
relacionar esse fenômeno da estagnação com a explosão midiática da modernidade e
Volume 5, Setembro de 2014.
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seus meios “fordianos” para produzir a arte: mais quantidade bonita, lucrativa, do que
qualidade.
A “era dourada” da música e da arte num aspecto geral, e toda efervescência
cultural que estas acarretam pode ter passado, e cedido lugar a uma massificação
intensa de letras insignificantes que propagam a ostentação e frivolidades. Assim como a
Jovem Guarda de Roberto Carlos foi um agente do regime militar, a maioria dos
exemplos de músicas atuais que atingem a população através da mídia atuam em
conjunto com o sistema alienador, padronizado, inicialmente ocidental, mas que se
propaga pelo universo inteiro numa velocidade exorbitante.
Acreditamos que a arte deve ser mais explorada como uma critica sociocultural,
a exemplo de artistas que através das suas identidades sociais enxergam a realidade
com os próprios olhos e ultrapassam a imagem pronta que é vendida. Critica a
desigualdade, o consumismo, a degradação ao meio ambiente e todas as inquietações
que acompanham a sociedade, mas que são esquecidas pela correria do dia a dia. Esses
músicos, pintores, cineastas, grafiteiros contradizem toda a perspectiva futura de uma
massificação cada vez mais intensa.
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ANEXOS
Figura 1
Figura 2
Item 4
“A Morte no Sábado” de Antônio
Henrique do Amaral.
“Trouxas Ensanguentadas” de
Arthur Barrios.
Volume 5, Setembro de 2014.
24