Capitulo 8 – Gas e outras energias

Transcrição

Capitulo 8 – Gas e outras energias
Capítulo 8
Gás
natural,
hidrocarbonetos
“não
convencionais” e energia nuclear
8.1 A economia política do gás natural
O gás natural é uma mistura de hidrocarbonetos leves que, em
temperatura e pressão atmosféricas ambientes, permanece no estado
gasoso1. Sua produção é obtida em conjunto com o petróleo (gás
associado) ou em poços especificamente perfurados para a obtenção
de gás – chamado, nesses casos, de gás não associado. Em ambos os
casos, o componente preponderante é o metano. O gás natural não
associado apresenta os maiores teores de metano, enquanto o gás
natural associado apresenta proporções mais significativas de etano,
propano, butano e hidrocarbonetos mais pesados2. Com frequência,
a descoberta de jazidas de gás natural se dá em função da pesquisa
exploratória em busca de petróleo. O gás natural combustível fóssil
é um substituto eficaz de outras fontes de energia, em particular o
carvão mineral e os derivados de petróleo – entre eles, o óleo
1
MOUTINHO DOS SANTOS, Edmilson; FAGÁ, Murilo Tadeu Werneck; BARUFI, Clara
Bonomi; PUOLALLION, Paul Louis. “Gás natural: a construção de uma nova civilização”.
Estudos Avançados, vol.21, nº 59, Janeiro/Abril 2007, pp. 67-90. São Paulo: Instituto de Estudos
Avançados da Universidade de São Paulo, 2007.
2 CARDOSO, Luiz Cláudio. Petróleo: do poço ao posto. Rio de Janeiro: Qualitymark, 2007, p. 117.
combustível, utilizado em indústrias e em usinas termelétricas. Pode
ser utilizado em múltiplos setores da atividade econômica3, entre os
quais se destacam o industrial (para produzir calor), os transportes
(como combustível substituto do óleo diesel e da gasolina), a
geração elétrica (substituindo em particular o carvão, o óleo
combustível e o diesel) e a petroquímica (como matéria-prima não
energética, substituindo a nafta).
Essa é a fonte de energia primária que mais cresce no mundo, com
uma participação de 20,5% na matriz energética mundial, a previsão
de crescimento anual de 2,6%, o que elevará essa parcela para 30%
em 20204. “O gás natural deve ser a fonte de energia de transição
entre um mundo energético já dominado pelo carvão e o petróleo e
outro de maior diversificação das fontes de energia e dominação
crescente de fontes renováveis”, prevê Edmilson Moutinho dos
Santos5, professor do Instituto de Eletrotécnica e Energia (IEE) da
Escola Politécnica da USP. Por esse motivo, o gás é considerado o
“combustível-ponte”, por excelência. Entre as vantagens na
comparação com outras fontes de energia, destaca-se a possibilidade
da sua utilização direta, sem necessidade de refino ou de
transformações importantes, como é o caso do petróleo. Além disso,
esse combustível dispensa estocagem no local de consumo, sendo
consumido imediatamente quando entregue ao consumidor final.
3
PINTO JUNIOR, Helder Queiroz (org.). Economia da Energia – Fundamentos Econômicos, Evolução Histórica
e Organização Industrial. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 232-233.
4
5
Dados da Agência Internacional de Energia (AIE) referentes a 2004.
MOUTINHO DOS SANTOS; 2007, p.75.
Isso representa uma importante vantagem competitiva, dado que os
consumidores não precisam investir no armazenamento e imobilizar
capital constituindo estoques. Outra vantagem que tem contribuído
para a rápida expansão da indústria do gás natural nas últimas
décadas tem a ver com o seu impacto ambiental, mais reduzido em
comparação com as demais fontes fósseis de energia6.
Mas o gás natural também apresenta desvantagens que complicam
o cálculo de custo e benefício da decisão de investir na substituição
de outras fontes energéticas por esse combustível. A principal delas
diz respeito ao transporte. Devido à sua baixa densidade calórica
(uma unidade de energia na forma de gás natural ocupa um volume
1 mil vezes superior ao volume que o petróleo preenche para
fornecer a mesma energia), o envio do gás natural em grandes
distâncias custa muito caro e exige um alto investimento em
infraestrutura de transporte e distribuição. O principal meio de
transporte é o gasoduto, que se caracteriza por um elevado custo de
investimento, baixa flexibilidade e grande economia de escala. A
distância é o principal fator no custo da construção de um gasoduto.
Por isso, quanto maior a distância, maior deve ser o volume de gás
transportado, a fim de que o empreendimento alcance a escala
necessária para amortecer os investimentos feitos durante a
construção. De acordo com Pinto Jr. et al.,
6
PINTO JR.; 2007.
[...] os custos de montagem e desapropriação [...]
representam de 50% a 60% dos custos totais, e não
variam significativamente com o volume de gás
transportado, mas apenas com a distância. Esta é
a razão fundamental da existência de economias
de escala no segmento de transporte de gás por
dutos. Ou seja, reduzir os custos médios de
transporte significa, em princípio, maximizar os
volumes transportados7.
Os custos da infraestrutura podem atingir de 50% a 70% do
preço de venda ao consumidor. Em compensação, a manutenção e a
operação de um gasoduto representam uma despesa relativamente
pequena, depois que ele é inaugurado – cerca de 2% do custo de
construção. No longo prazo, observa André Ghirardi (2008), o
gasoduto é capaz de reduzir, com ampla margem de lucro, os custos
da transação, desde que opere por um longo período de maneira
contínua, pois é projetado exatamente para essa finalidade. Isso
torna o gás natural – uma vez instalada a infraestrutura necessária –
altamente competitivo em relação às demais fontes de energia,
inclusive a hidrelétrica, que sofre oscilações de acordo com o regime
das chuvas, enquanto o abastecimento pelo gasoduto é regular e
contínuo. Outra vantagem, em relação à energia hidrelétrica, é que a
instalação de um gasoduto ocorre em um prazo muito menor do que
o necessário para uma hidrelétrica. Dessa maneira, gasta-se menos
tempo para amortizar os custos com a infraestrutura, o que inclui os
juros dos empréstimos para financiar a obra.
7
PINTO JR.; 2007, p.238.
Quando a distância se mostra tão longa a ponto de inviabilizar
um gasoduto (sobretudo, no caso de remessas intercontinentais),
existe a opção de recorrer a esse recurso energético como uma
commodity na forma de GNL (gás natural liquefeito). Nessa
modalidade, o gás natural é transformado em líquido, em usinas
especiais onde seu volume é reduzido em até 600 vezes, o que exige
resfriá-lo à temperatura de 160°C negativos, antes de ser
armazenado em tanques criogênicos e, por fim, embarcado em
navios-metaneiros, próprios para transportar esse material8. Ao
chegar ao seu destino, o GNL passa por um processo de
regaseificação, novamente em usinas especiais, e só então segue
para os consumidores finais. O conjunto dessas atividades consome
cerca de 20% da energia contida no gás originalmente processado, o
que torna o GNL uma fonte de energia menos eficiente que o gás
natural – e particularmente cara9. Além do alto custo, o comprador
de gás liquefeito está sempre sujeito às oscilações dos preços no
mercado internacional, já que nenhum fornecedor se submete ao
risco de estabelecer um preço fixo no longo prazo. Ou seja: à
garantia do fornecimento, contrapõe-se a exposição a preços tão
voláteis quanto a própria substância que se está adquirindo.
Pode-se argumentar, como faz André Ghirardi (assessor da
presidência da Petrobras), que o abastecimento de gás por meio do
8
Um navio-metaneiro tem a capacidade de transportar até 135 mil metros cúbicos de gás, o que
torna viável o deslocamento de grandes volumes até os centros consumidores (CARDOSO,
2005, p.135).
9 BANKS, Ferdinand E.. The Political Economy of World Energy – An Introductory Textbook.
Singapore: World Scientific Publishing, 2007, p.173 .
GNL traz uma vantagem importante do ponto de vista da segurança
energética, na medida em que se evita a dependência de um único
fornecedor, como ocorre com os gasodutos10. Essa é uma observação
procedente. Na prática, porém, o abastecimento por GNL só é
adotado por países que, desprovidos de reservas próprias de gás
natural suficientes para suas necessidades, se veem, por algum
motivo, impossibilitados de receber gás natural por meio de
gasoduto(s). É o caso da China, um país sedento por energia,
qualquer que seja a sua forma, assim como o do Japão e também o
do Chile, após o fracasso do seu projeto de se abastecer com o gás
natural importado da Argentina. No continente americano, merece
menção o caso de Trinidad Tobago, que se tornou um grande
exportador de GNL, sobretudo para o mercado dos Estados Unidos.
As especificidades do gás natural, quando transportado por
dutos, geram “uma integração espacial especialmente rígida, na
qual a incorporação de novos espaços se dá no interior de um
conjunto relativamente reduzido de possibilidades”11. Se, para as
operações dentro de um mesmo país, os riscos para as partes
envolvidas já são elevados, no comércio internacional de gás natural
as implicações de segurança econômica (para o fornecedor) e de
segurança energética (para o consumidor) são imensas. O corte ou
redução indesejada dos suprimentos pode levar o país importador
10
GHIRARDI, André. “Gás natural na América do Sul: do conflito à integração possível”. Le
Monde Diplomatique Brasil, versão digital, São Paulo, janeiro de 2008.
11
PINTO JR.; 2007, p.238.
ao colapso no fornecimento de energia para setores produtivos
essenciais e para a sociedade no seu conjunto – o tão temido
“apagão”. Por outro lado, a perda de um cliente ou a redução
unilateral do volume de compras representa, do ponto de vista da
economia nacional do país exportador, uma perda de receita
altamente significativa – em determinados casos, a principal. Assim,
na escolha entre o GNL e o gasoduto, quando existe essa opção, o
fator principal a ser considerado é saber se a importação visa
atender uma demanda permanente ou se o objetivo da transação se
resume a atender uma carência energética circunstancial, decorrente
de um imprevisto ou de uma variação sazonal nos suprimentos de
outra fonte energética12.Os gasodutos geram, inevitavelmente, uma
situação de forte interdependência entre os países exportadores e os
importadores, com evidentes implicações geopolíticas. Essa relação
é muito mais estreita do que a existente entre os países importadores
de petróleo, de um lado, e pequeno grupo de exportadores, do
outro. A interdependência, no caso do gás natural, vai muito além
do problema da concentração das reservas em um dos parceiros,
uma vez que envolve também o transporte do combustível por
dutos, o que inviabiliza a substituição de fornecedores no curto
prazo. No caso do petróleo, essa substituição é relativamente fácil. O
12
Conforme PINTO Jr. et al., (2007, p.242), os custos do transporte por gasodutos têm se reduzido mais
rapidamente que os custos da cadeia do GNL. Os custos dos gasodutos caíram em até 60% entre 1985 e
2007, enquanto no caso da cadeia do GNL essa redução foi de 30%, e por um período maior, desde 1978.
Como consequência, informa aquele autor, o transporte por gasodutos está se tornando mais competitivo
que o gás natural em distâncias superiores a 5 mil quilômetros. Existe, portanto, uma grande pressão do
mercado para a redução dos custos na indústria do GNL. Ou seja, o GNL passa a ter de concorrer com o
gás trazido por gasodutos de distâncias cada vez maiores.
mesmo ocorre quando o gás natural é fornecido em forma líquida,
ou seja, de GNL, um produto que, assim como o petróleo, tem como
uma das suas formas de comercialização o mercado spot, em que as
transações são realizadas de modo instantâneo e não importa a
identidade do comprador e a do vendedor. Já no caso dos
gasodutos, produtores e fornecedores de energia se veem na clássica
situação em que os atores em ambos os lados buscam se precaver
com o intuito de reduzir a vulnerabilidade perante a intensa
interdependência envolvendo um recurso vital. Além disso, o alto
custo de estocagem inviabiliza a formação de estoques estratégicos,
o que aumenta a sensação de vulnerabilidade.
Observando-se o cenário energético global na sua evolução
histórica, nota-se que a incerteza inerente a esse tipo de
interdependência e o alto custo dos investimentos tiveram o efeito
de retardar em muitas décadas o pleno aproveitamento econômico
do gás natural. Até o início da década de 1970, os preços
internacionais do petróleo se mantiveram em patamares baixos. Isso
relegou o gás natural a um papel secundário no mundo inteiro, com
exceção daqueles países onde havia a possibilidade de uma oferta a
baixo custo devido à existência de mercados próximos às reservas.
Essa situação mudou a partir do choque do petróleo, em 1973,
quando os preços da energia dispararam e países industrializados se
lançaram em uma busca frenética por combustíveis alternativos a
fim de reduzir a dependência das importações de petróleo do
Oriente Médio. A valorização do gás nesse período viabilizou os
investimentos em infraestrutura, sobretudo na Europa Ocidental,
com a construção de um gasoduto para as remessas procedentes da
União Soviética (atualmente, da Rússia). Essa circunstância revela
um fator permanente na indústria do gás natural: sua dependência
do preço de outros recursos energéticos, com os quais ele estabelece
uma relação de competição de que irá depender o seu acesso aos
mercados consumidores. Ou seja, “o valor de mercado do gás é
dado pelo preço dos combustíveis concorrentes. Isso implica que a
política de precificação do gás natural depende quase do custo de
oportunidade relacionado com o deslocamento de outras fontes
energéticas”13.
8.2 Gás do xisto: potencial energético e alto risco
ambiental
O gás de xisto (shale gas, em inglês) é um hidrocarboneto “não
convencional”, ou seja, uma fonte de energia que, embora
conhecida, permaneceu sem ser explorada durante décadas, por
falta de tecnologias capazes de viabilizar a sua extração em
condições economicamente viáveis. Trata-se de um tipo de gás
natural que se encontra no subsolo, em formações rochosas
sedimentares de baixa permeabilidade, ou seja, propensas a reter as
substâncias líquidas ou gasosas depositadas no seu interior.
13
PINTO JR.; 2007, p.251.
Diferentemente do gás convencional, que migra das rochas onde foi
formado para rochas reservatórios, o gás de xisto fica preso debaixo
da terra misturado a rochas extremamente duras. Essa característica
inviabilizou por muito tempo a extração deste tipo de gás.
A exploração do gás das camadas de xisto começou a ser estudada
nos Estados Unidos a partir de 1970, mas o processo era tão caro e
complexo que inviabilizava a produção em larga escala. Só nas
décadas seguintes a exploração comercial começou a se tornar
realidade, com o desenvolvimento de uma tecnologia denominada
fratura hidráulica. Esse método implica escavar verticalmente entre
500 metros e 3 mil metros na rocha de xisto e depois, em um sentido
horizontal, por cerca de mil metros ou mais, ao longo da formação
geológica. O poço aberto na perfuração recebe uma mistura de água,
areia e produtos químicos sob alta pressão para quebrar a rocha e
liberar o gás, que então é levado para a superfície por uma
tubulação.
Como
resultado
da
utilização
das
novas
tecnologias,
a
participação do gás de xisto na matriz energética dos EUA está
crescendo
rapidamente.
Esse
hidrocarboneto,
que em
2000
representava apenas 1% do gás natural consumido nos EUA, atingiu
16% em 2011 e pode chegar a 46% em 2035. Se isso ocorrer, o país se
tornará autossuficiente em gás natural, sua terceira maior fonte de
energia, reduzindo a demanda por petróleo e carvão importados14.
De imediato, a redução das compras externas de gás natural pelos
EUA já está pressionando para baixo os preços no mercado mundial
de gás, uma vez que se trata do principal importador mundial desse
recurso energético. A queda da demanda estadunidense afetou as
grandes empresas petroleiras, entre elas a Petrobras, que planejava
vender aos EUA uma parcela do gás natural existente nas reservas
brasileiras do pré-sal.
As reservas mundiais recuperáveis de gás de xisto são estimadas
pelo Departamento de Energia dos EUA em 187,4 trilhões de metros
cúbicos, um volume praticamente igual ao total das reservas
conhecidas de gás convencional, de 187 trilhões de metros cúbicos. É
importante notar que grande parte do gás do xisto descoberto até
agora está concentrado em países de fora da Opep, o que altera
significativamente o cenário geopolítico da energia. A China lidera o
ranking dos donos das maiores reservas, seguida pelos EUA,
Argentina, México, África do Sul e Austrália.
Na América do Sul, a Argentina deverá ser o primeiro país a
explorar o gás de xisto em grande escala, graças às imensas reservas
descobertas na formação geológica de Vaca Muerta, em Neuquén,
uma província do sudoeste do país. A previsão é a empresa
Yacimientos Petrolíferos Fiscales – que teve o seu capital acionário
14
KLARE, Michael T. The Race for What’s Left – The Global Scramble for the World’s Last Resources.
New York, Metropolitan Books, Henry Holt and Company, 2012, p. 116-123.
reestatizado, na maior parte, em 2012 – começará a extrair o insumo
em escala comercial até 2015, reduzindo a dependência argentina
em relação ao gás importado da Bolívia.
O problema na exploração do gás de xisto é seu impacto
ambiental. O método da fratura hidráulica – único a mostrar
viabilidade econômica – provoca a poluição dos mananciais
subterrâneos de água e até mesmo abalos sísmicos. Para que os jatos
de água possam romper as rochas onde se deposita o gás, é
necessário que o líquido seja misturado a solventes e ácidos,
altamente tóxicos. Essa mistura, depois de utilizada, se dispersa no
subsolo, contaminando as fontes de água que abastecem a
população. Como agravante, existe o fato de que cada unidade de
exploração precisa instalar múltiplas perfurações ao mesmo tempo,
poluindo o ar e perturbando os moradores das vizinhanças com
altos níveis de barulho.
Nos Estados Unidos, as reservas mais ricas de gás de xisto estão
localizadas em regiões densamente povoadas, nos estados do Texas,
Arkansas, Ohio, Pensilvânia e Nova York. Nessas circunstâncias, a
preocupação com a segurança do abastecimento de água deveria
prevalecer sobre os interesses econômicos associados à exploração
do gás. Uma lei federal, de 1974, atribuiu à Agência de Proteção
Ambiental (EPA, na sigla em inglês) poderes para bloquear
qualquer projeto de exploração de recursos naturais que pudesse
colocar em risco os mananciais aquíferos. No entanto, essa legislação
foi modificada como resultado da intensa pressão (lobby) exercida
sobre o Congresso estadunidense pelas empresas petroleiras
interessadas em ampliar seus lucros com a extração do gás de xisto
por meio da fratura hidráulica. Em 2005, o então vice-presidente
Dick Cheney 15 conseguiu a aprovação da Lei de Política Energética,
que proíbe a agência federal ambiental de regular a fratura
hidráulica por meio das normas de proteção dos mananciais de
água, abrindo caminho para a utilização irrestrita desse método
predatório e perigoso. Desde então, as grandes empresas petroleiras
estão investindo quantias cada vez maiores na extração desse
hidrocarboneto. Em 2009, por exemplo, a ExxonMobil pagou 31
bilhões de dólares para adquirir o controle da XTO Energy, uma das
maiores produtoras de gás de xisto nos EUA.
Existem atualmente mais de 400 mil perfurações de gás de xisto
em território estadunidense, o que tem provocado uma crescente
resistência das organizações ambientalistas e, em especial, da
população das áreas afetadas. No estado de Ohio, o governo proibiu
a utilização da fratura hidráulica em algumas regiões, depois da
ocorrência de pequenos terremotos associados às maciças injeções
de água no subsolo. Na Pensilvânia, a extração do gás de xisto
chegou a ser banida em diversas comunidades, mas a indústria
petroleira conseguiu reverter essas decisões com o apoio de
15
Cheney é um político conhecido por suas ligações estreitas com a indústria dos
hidrocarbonetos, à qual é vinculado, especialmente, pela sua condições de ex-presidente da
Halliburton, líder mundial na fabricação de equipamentos para petróleo e gás.
legisladores em âmbito estadual, que aprovaram uma lei impedindo
a adoção de regulamentos municipais sobre o assunto.
Fora dos EUA, a consciência dos riscos decorrentes da extração do
gás do xisto está levando à adoção de medidas restritivas cada vez
mais duras. O exemplo mais expressivo é atitude da Assembleia
Nacional francesa, que, em maio de 2012, aprovou, por 287 votos
contra 146, uma lei que proíbe a utilização da fratura hidráulica,
tornando a França o primeiro país do mundo a adotar tal medida.
8.3. As “areias betuminosas” do Canadá
Nas previsões oficiais de oferta e demanda de combustível, um
papel importante é atribuído aos gigantescos depósitos de areias
betuminosas na província canadense de Alberta, cuja exploração é
feito com um custo altíssimo e impacto ambiental devastador. Essa
região contém 178 bilhões de barris de petróleo, mais do que as
reservas provadas da Arábia Saudita. A dificuldade é que o petróleo
lá existente não se encontra em estado líquido e sim em forma de
betume, um óleo extremamente denso, semelhante ao asfalto. Para
extraí-lo, são necessárias técnicas de mineração, em lugar das torres
utilizadas nos campos convencionais. A produção desse óleo
betuminoso demanda enormes quantidades de água e de gás
natural, pois é necessário produzir vapor para separar o
combustível da areia e das pedras com as quais está misturado. Uma
parte dessa água é reutilizada, mas o restante retorna ao meio
ambiente, provocando contaminação em grande escala. Para cada
duas toneladas de petróleo obtidas dessa forma, consome-se o
equivalente a uma tonelada em energia. A AIE estima que, se
prosseguir a tendência atual de alta dos preços do petróleo, a
produção das areias betuminosas do Canadá chegará a 2,1 milhões
de barris diários em 2015 e a 3,9 milhões em 2030 – ou seja, mais do
que o triplo dos atuais 1,2 milhões de barris diários16. Para alcançar
esse objetivo, o governo canadense terá de vencer a crescente
oposição dos grupos ambientalistas e pôr em risco suas metas de
redução das emissões de gases causadores do efeito estufa.
A exploração das areias betuminosas é lenta e cara. Um poço de
petróleo extra-pesado produz de 5 a 100 barris diários, enquanto um
poço de petróleo convencional alcança 10 mil barris diários, todos os
demais fatores sendo iguais17. A extração do petróleo contido nas
areias betuminosas é um processo ainda mais moroso, com o uso
intenso de capital e de energia e um impacto ambiental devastador.
Na revista National Geographic, o jornalista Tim Appenzeller
descreve a produção de petróleo em Athabasca:
16
INTERNATIONAL ENERGY AGENCY (IEA). World Energy Outlook 2009. Paris, 2009.
17
SALAMEH, Mamdouh G.. “A Third Oil Crisis?”, Survival – The IISS Quarterly, Volume 43 Number 3
Autumn 2001, pg.129
“Observando a vala de 60 metros onde gigantescas pás
devoram o leito de areia betuminosa, Neil Camarta, vicepresidente da Shell para o Canadá, reconhece a diferença entre
a exploração das areias e o petróleo cru líquido, que jorra
livremente. ‘Você está vendo o trabalho que dá. O petróleo não
jorra do chão.´ A Shell é uma das três empresas que, juntas,
extraem 600 mil barris de óleo por dia das areias de Athabasca.
Mas cada passo do processo exige força bruta. A areia
betuminosa precisa ser minerada e extraída – 2 toneladas para
produzir um barril de óleo. Caminhões enormes carregam 350
toneladas de cada vez, em recipientes que são aquecidos
durante o inverno subártico para que a areia não se congele,
formando uma enorme massa. Próximo à mina, a areia é
lavada em gigantescas máquinas, onde torrentes de água
morna e solvente retiram dela todo o alcatrão, ou betume. O
que sobra são toneladas de areia molhada, ou tailings, que
voltam a ser despejadas em depósitos de rejeitos. Mas, após
essa etapa, o betume ainda não está pronto para ser bombeado
para uma refinaria, como se fosse o óleo cru comum. Para
transformá-lo em petróleo, é preciso aquecê-lo e quebrar as
gigantescas moléculas de alcatrão – seja a 500ºC ou a
temperaturas mais baixas, em mistura com gás de hidrogênio
e um catalisador18.”
18
APPENZELLER, Tim. “The end of the cheap oil”, The National Geographic Magazine, Washington,
A AIE acredita, em caso de redução da oferta de petróleo
convencional, com a conseqüente alta dos preços, os óleos “nãoconvencionais”
se
tornarão
cada
vez
mais
atraentes
economicamente, preenchendo o espaço vazio. Nesse cenário, eles
poderão atender até 1/3 da demanda mundial de petróleo em 2030,
segundo o WEO 2004. O pesquisador David Goodstein contesta essa
previsão. Ele explica que, na medida em que a humanidade seja
forçada a percorrer, de cima para baixo, a lista dos combustíveis
fósseis possíveis – do óleo convencional para o extra-pesado, daí
para a areia betuminosa, chegando a extrair petróleo de minerais de
processamento ainda mais difícil, como o xisto –, o custo em energia
aumentará, sempre mais. “No momento em que a energia necessária
para obter um combustível se tornar equivalente à energia que ele é
capaz de produzir, o jogo estará perdido”19.
8.4 Energia nuclear: perigos e possibilidades
A fissão (divisão) do átomo foi descoberta em 1938, pelo físico
italiano Enrico Fermi, e a primeira reação em cadeia ocorreu em
1942, no contexto do Projeto Manhattan, desenvolvido nos Estados
May 2004.
19
GOODSTEIN, David. Out of Gas – The End of the Age of Oil. New York: Norton, 2004, p.38.
Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, com o objetivo de
produzir a bomba atômica. Sua utilização para gerar eletricidade
remonta à década de 1950, mas somente a partir do Choque do
Petróleo, em 1973, é que a instalação de usinas nucleares com
finalidades pacíficas se disseminou em grande escala, e centenas de
reatores foram construídos.
O entusiasmo com a opção nuclear durou até o acidente na
usina de Chernobyl, na União Soviética, em 1983, quando o
vazamento de uma nuvem radioativa por uma vasta área do Leste
Europeu despertou fortes preocupações quanto à segurança dos
reatores onde se produz eletricidade. A consciência dos perigos da
energia nuclear, até então restrita aos grupos de ativistas em defesa
do meio ambiente, passou a dominar a esfera pública, fazendo com
que muitos países suspendessem os projetos de construção de novas
usinas atômicas. Em 1990, a Suécia decidiu, a partir do resultado de
um referendo, fechar gradualmente seus 12 reatores nucleares e se
concentrar no desenvolvimento de uma matriz energética baseada,
ao máximo possível, em fontes renováveis. Essa decisão ainda mais
significativa pelo fato de que a Suécia era, proporcionalmente, o país
com maior capacidade nuclear instalada em relação ao número de
habitantes. Em 1999, o reator sueco de Barseback se tornou o
primeiro no mundo a ser fechado no contexto da rejeição à energia
nuclear20. Seguindo o exemplo da Suécia, o Parlamento da
20
SMIL, Vaclav. Energy at the Crossroads – Global Perspectives and Uncertainties. Cambridge (MA), London:
MIT Press, p.310.
Alemanha também decidiu pelo abandono gradual da fissão nuclear
como fonte de energia.
Na década de 2000, porém, o interesse pela energia atômica
voltou a crescer. Dois fatores explicam esse fenômeno: de um lado, a
possibilidade de gerar eletricidade sem agravar o problema do
aquecimento global, já que os reatores são praticamente inofensivos
no que se refere às emissões de dióxido de carbono; do outro lado, a
escassez de combustíveis fósseis, o que levou os formuladores de
política energética a encarar novamente o uso do urânio como uma
alternativa viável para a produção de eletricidade. A consagração da
energia atômica como uma opção ecologicamente correta ocorreu
em maio de 2007, quando o Painel Intergovernamental de Mudanças
Climáticas (IPCC, na sigla em inglês), órgão da ONU criado para ser
uma autoridade mundial em aquecimento global, divulgou relatório
afirmando que o uso pacífico do átomo é fundamental para o
planeta deixar de aquecer. Mas um novo acidente nuclear de
grandes proporções – a explosão na usina atômica de Fukushima, no
Japão, em consequência do efeito combinado de um terremoto e de
um tsunami, em 11 de março de 2011 – voltou a lançar incerteza
sobre os projetos de retomada da construção de reatores nucleares.
...................................................
SAIBA MAIS
A reação nuclear básica pode ser descrita sumariamente da
seguinte forma: o átomo de urânio se quebra, formando átomos
menores e emitindo nêutrons. Esses nêutrons atingem outros
átomos de urânio, que também se quebram e emitem nêutrons, e
assim por diante, liberando radiação e calor – ou seja, energia.
...................................
Atualmente a energia nuclear é explorada por 31 países e gera
16% da eletricidade mundial, o equivalente à produção total das
represas hidroelétricas. Quase todos os 438 reatores atômicos,
instalados em 210 centrais nucleares21, estão situadas nos países
mais desenvolvidos, o que leva essa modalidade de geração de
eletricidade a ser conhecida como “a energia dos ricos”. Com 103
usinas em funcionamento, os EUA encabeçam a lista dos países mais
com maior quantidade de reatores, mas a França é, de longe, o mais
dependente dessa modalidade de energia, que responde por 79% da
eletricidade consumida pelos franceses22 (veja a tabela abaixo). Para
entender o motivo que levou muitos países a optar pela energia
nuclear, é preciso levar em conta que, hoje em dia, a principal
alternativa a essa fonte de eletricidade são as usinas térmicas
movidas a carvão. Conforme observam, em reportagem sobre o
assunto, os jornalistas Flávio Carvalho Serpa e Raimundo Rodrigues
Pereira, “uma usina térmica desse tipo com a potência de um dos
21
22
Dados de 2009.
FERGUNSON, Charles D. “Nuclear Energy – Balancing Benefits and Risks”. Council Special Report, nº
28, abril 2007. Washington: Council on Foreign Relations.
reatores menores de Fukushima consome algo como um comboio
ferroviário de carvão por dia e deixa como resíduos, na forma de
cinzas, o equivalente a metade dessa carga, além de emitir toneladas
de dióxido de carbono, considerado o vilão do aquecimento
global23”.
Tabela: Participação da energia nuclear na geração de
eletricidade por país
País
França
Lituânia
Bélgica
Eslováquia
Ucrânia
Coréia do Sul
Suécia
Bulgária
Armênia
Eslovênia
Hungria
Finlândia
Suíça
Alemanha
República Tcheca
Japão
Espanha
Reino Unido
Estados Unidos
Rússia
Canadá
23
%
79
70
56
56
49
45
45
44
43
42
37
33
32
31
31
29
20
20
19
16
15
CARVALHO SERPA, Flávio; PEREIRA, Raimundo Rodrigues. “Para entender a energia
nuclear – As lições do desastre de Fukushima”, Retrato do Brasil, nº46, maio de 2011, São Paulo.
Fonte: Agência Internacional de Energia, 2005
O urânio, mineral utilizado para abastecer os reatores atômicos, é
relativamente abundante no mundo e se distribui geograficamente
de forma mais equilibrada que o petróleo e o gás natural. As
maiores reservas estão situadas na Austrália. Seguem-se as dos
seguintes países, em ordem decrescente: Cazaquistão, Canadá,
África do Sul, EUA, Namíbia e Brasil. As reservas brasileiras,
concentradas no município de Lagoa Real, na Bahia, constituem 7%
do total mundial, mas é provável que o estoque do Brasil seja bem
maior, pois apenas uma pequena parte do seu território já foi
pesquisada. Com duas usinas em funcionamento (Angra 1 e Angra
2, no litoral do Estado do Rio de Janeiro), o Brasil recorre à energia
nuclear para suprir apenas 1% do seu suprimento de eletricidade.
A operação de uma usina nuclear é semelhante à de uma
termoelétrica. Ela produz eletricidade a partir do aquecimento de
água, cujo vapor pressurizado move turbinas para a produção de
energia. A diferença está no combustível utilizado nos reatores
nucleares: o urânio enriquecido, já que o mineral necessita ser
previamente processado para que a fissão libere mais energia.
Dentro do reator, pastilhas de urânio, empilhadas em varetas de
uma liga super-resistente, são utilizadas para produzir uma reação
em que a ligação no núcleo dos átomos se rompe. Uma corrente de
água, que atravessa o reator, capta o calor liberado pela fissão
nuclear, produzindo o vapor que faz girar a turbina e os geradores
de eletricidade. É durante esse processo que pode ocorrer um
acidente grave: caso o reator nuclear superaqueça com uma
liberação descontrolada de calor, as paredes protetoras podem
derreter e liberar radioatividade24.
No caso de Chernobyl, o acidente ocorreu porque o reator
funcionava em um edifício comum, sem proteção especial, e tinha
grafite entre seus componentes, elemento que entra em combustão
quando aquecido demais. Nos anos seguintes, os cientistas
desenvolveram sistemas de segurança extremamente sofisticados,
em que o núcleo do reator é isolado por três camadas de proteção
sucessivas, tal como nas famosas bonecas russas, as matrioshkas.
Novos dispositivos tecnológicos foram introduzidos nas usinas com
a finalidade de interromper imediatamente qualquer operação
capaz de colocar os reatores em risco. A indústria nuclear
anunciava, com orgulho, que catástrofes como a de Chernobyl
haviam se tornado, definitivamente, coisa do passado. A partir daí,
entende-se a perplexidade com o acidente de Fukushima, uma das
maiores e mais modernas centrais nucleares do mundo, com seis
reatores (dos quais dois explodiram e um terceiro sofreu uma
explosão num tanque sob o reator, por onde vazaram toneladas de
água contaminada com radiação25).
24
25
CAVALCANTE, Rodrigo. “O vilão virou herói”. Superinteressante, nº 241, julho 2007, São Paulo.
CARVALHO SERPA; PEREIRA; 2011.
À parte o risco de explosão e vazamento de radioatividade – que
sempre existiu, como agora se constatou, tragicamente –, o
calcanhar-de-aquiles dos reatores nucleares é o lixo atômico,
formado pelos resíduos radioativos da fissão do urânio. Esse
material, perigosíssimo para a saúde dos seres humanos e dos
animais, permanece ativo durante milhares de anos, período em que
deve ser mantido em barris revestidos de concreto e chumbo. O
problema reside em achar um lugar seguro para guardar esses
recipientes. A solução encontrada, até agora, tem sido a de enterrar
o lixo atômico debaixo da terra – de preferência, em formações
rochosas consideradas estáveis, isto é, com baixo risco de
terremotos.
Mesmo depois do acidente de Fukushima, quase todos os
projetos de construção de novas usinas existentes previamente
foram mantidos, principalmente em países em desenvolvimento que
não encontram alternativas para ampliar a capacidade geradora de
eletricidade. “O abandono de usinas nucleares pode ser viável em
um país rico com a Alemanha, mas não no Paquistão, onde a
população precisa urgentemente de energia, de qualquer fonte, de
qualquer lugar”, afirmou o ministro da Ciência e Tecnologia do
Paquistão, Khan Jamali, em um debate na edição de verão do Fórum
Econômico Mundial, realizada em setembro de 2011 na cidade
chinesa de Dalian26. A China, com 28 usinas nucleares em
26
“Construção de usinas nucleares não deve desacelerar após Fukushima”, O Estado de S.Paulo, Claudia
Trevisan, 18 de setembro de 2011, p. A25.
construção naquele ano e planos de iniciar outras 24, é país
emergente que faz a aposta mais elevada nesse tipo de energia.
Depois de Fukushima, o governo chinês determinou a revisão das
normas de segurança de todas as usinas atômicas existentes e em
obras, mas não suspendeu os projetos de expansão. Do mesmo
modo, a Coréia do Sul mantém o cronograma de construir 12 novas
unidades, que se juntarão às 20 em operação.
8. 5 O problema da proliferação nuclear: dois pesos, duas medidas
Quando os EUA lançaram duas bombas atômicas contra o Japão –
em Hiroshima, no dia 6 de agosto de 1945, e em Nagasaki, três dias
depois – eles eram o único país a possuir aquela arma terrível, até
então desconhecida. O monopólio estadunidense foi quebrado pela
União Soviética, que realizou em 1948 sua primeira explosão nuclear
experimental. Nos anos seguintes, Reino Unido, França e China
seguiram pelo mesmo caminho. A ameaça que pairava sobre a
humanidade era assustadora. Se nenhuma atitude fosse tomada
para deter essa tendência, em pouco tempo as bombas atômicas
estariam espalhadas por todos os continentes. Para conter o perigo,
um número crescente de nações concordou em se filiar ao Tratado
de Não-Proliferação Nuclear (TNP), estabelecido em 1968 e em vigor
desde 1970.
Desde então, quase 200 países já se comprometeram a abrir mão
da produção e posse de armas nucleares, nos termos do TNP. A
Guerra Fria passou das páginas dos jornais para os livros de
História a partir da dissolução da URSS, em 1991. No entanto, o
pesadelo de uma catástrofe nuclear permanece como um risco real.
Na segunda década do século 21, acumulam-se as evidências de que
novos países pretendem se somar aos oito que, comprovadamente,
já possuem a bomba atômica. Os conhecimentos e os materiais
necessários para a fabricação dessa arma escaparam de qualquer
controle e muitos temem que venham a cair em mãos de terroristas.
Todas as medidas até agora adotadas para conter a disseminação
dos arsenais nucleares se mostraram ineficazes.
Para entender o problema da proliferação nuclear, o ponto de
partida é constatar as limitações do próprio TNP, até hoje a norma
jurídica internacional mais importante nessa questão. O tratado,
nascido no contexto da Guerra Fria, divide os países em duas
categorias diferentes. De um lado, estão os que naquele momento já
possuíam arma nuclear: EUA, URSS, Reino Unido, França e China.
Esse grupo seleto, conhecido como os Cinco Grandes, reúne os
países que, por sua própria segurança, tinham – e ainda têm –
interesse em impedir a difusão do uso militar da energia atômica.
Do outro lado, ficaram as demais nações. Quem adere ao TNP
renuncia, automaticamente, à posse do armamento nuclear. O
tratado impõe uma série de barreiras técnicas e políticas que tornam
muito difícil aos países não-nuclearizados adquirir ou produzir os
materiais necessários para construir armas nucleares. Esses países
têm permissão para desenvolver, se quiserem, programas de energia
nuclear com finalidades civis, como a produção de eletricidade.
Mas, para isso, devem se submeter a um rigoroso sistema de
salvaguardas estabelecido pela Agência Internacional de Energia
Atômica (AIEA), a fim de impedir que a tecnologia nuclear seja
desviada para outros fins.
Em contrapartida, por sua posição privilegiada, as potências
nucleares se comprometeram, no TNP, a reduzir os próprios
arsenais, gradativamente, até eliminá-los por completo. Durante as
discussões do tratado, os Cinco Grandes assumiram também o
compromisso de que jamais utilizariam bombas nucleares contra
países filiados ao TNP que não possuíssem esse tipo de arma.
Em um primeiro momento, muitos governos se negaram a assinar
o tratado, devido ao seu caráter discriminatório. Com o tempo,
porém, o TNP foi conquistando adesões. Dezenas de nações se
convenceram de que era preferível, para a segurança coletiva da
humanidade, renunciar à fabricação da bomba atômica e optar pelo
uso pacífico da energia nuclear. Brasil e Argentina, que no início
tinham tomado posição contra o TNP, resolveram deixar de lado o
componente militar de seus programas nucleares – voltados,
anteriormente, para a hipótese de um conflito entre os dois vizinhos
no Cone Sul. Aderiram ao tratado. Rivalidade, agora, só nos campos
de futebol.
Atualmente, cerca de 40 países desenvolvem pesquisas para o uso
civil da bomba atômica, sob o controle da AIEA. Houve, até mesmo,
casos de países que aceitaram desmantelar seus arsenais nucleares,
depois de já possuírem a bomba. Isso ocorreu com a África do Sul,
após o fim do regime racista do apartheid, no início da década de
1990. Na mesma época, três antigas repúblicas soviéticas – Ucrânia,
Bielorússia e Cazaquistão – concordaram em destruir os estoques de
bombas atômicas instalados em seu território nos velhos tempos da
Guerra Fria.
Mas o TNP fracassou no objetivo de evitar completamente a
proliferação nuclear. Ao menos três países – Paquistão, Índia e Israel
– e, provavelmente, um quarto, a Coreia do Norte, conseguiram
furar o bloqueio e construir bombas atômicas, com tecnologia e
matérias-primas obtidas por meios clandestinos. Esse problema não
seria tão grave se as potências nucleares originais tivessem, pelo
menos, cumprido sua parte nos compromissos do TNP. Mas isso
não aconteceu. A promessa de reduzir os arsenais nucleares nunca
saiu do papel. Os Cinco Grandes prosseguiram em sua corrida
enlouquecida para acumular bombas nucleares, acopladas a mísseis
cada vez mais mortíferos, ao mesmo tempo em que tentavam
convencer o resto do mundo a abrir mão desses artefatos de
destruição.
O fim da Guerra Fria suscitou a esperança de que o mundo,
finalmente, ingressasse em uma era de desarmamento. Nova
frustração. EUA e Rússia (herdeira de quase todo o arsenal atômico
soviético) continuam a apostar nas armas nucleares como peça
central de sua estratégia militar. Os acordos assinados entre as duas
maiores potências nucleares no sentido de desmontar parcialmente
seus arsenais atômicos estão paralisados. Hoje, os EUA possuem
cerca de 5 mil ogivas nucleares de longo alcance, instalados em
mísseis e em aviões – as chamadas “armas estratégicas”. A Rússia
possui outras 4.300. A maioria dessas armas se encontra em posição
de disparo, o que agrava o perigo de que alguma delas possa ser
lançada por acidente ou sem autorização.