Zander Navarro - MBH.Brasil.Revised

Transcrição

Zander Navarro - MBH.Brasil.Revised
Manejo de recursos naturais ou desenvolvimento rural?
O aprendizado dos ”projetos microbacias” em
Santa Catarina e São Paulo
(Versão preliminar)
Zander Navarro1
- Dezembro de 2007 Professor associado do Departamento de Sociologia da UFRGS (Porto Alegre) e pesquisador no “Institute
of Development Studies” (IDS, Inglaterra)
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Apresentação
Este é um estudo solicitado pela FAO (Roma) e foi objeto de reflexão e escrito em diferentes
momentos ao longo do segundo semestre de 2007. Constou de diversas viagens realizadas aos
dois estados onde os projetos estão em andamento (Santa Catarina e São Paulo), durante as quais
foram desenvolvidas inúmeras entrevistas, coletados dados, verificados os levantamentos antes
existentes e, especialmente, foram concretizadas visitas a campo em municípios previamente
selecionados. Em tais momentos, houve intenso diálogo com os operadores do projeto e com
famílias rurais beneficiárias acerca das vicissitudes de tal política pública, seus resultados e o
aprendizado que pode ser extraído deste esforço de pesquisa.
Este esforço de pesquisa não poderia ser realizado sem a inestimável colaboração e o apoio de um
grande número de colegas envolvidos, direta ou indiretamente, com tais projetos. Em especial,
destaco os responsáveis principais, no plano estadual, os quais comandam a gerência operacional
dos correspondentes “projetos microbacias” ora em andamento. São notáveis profissionais,
responsáveis, em considerável proporção, pelo expressivo sucesso de tais iniciativas, as quais
vem revolucionando o manejo dos recursos naturais sob o comando das famílias rurais, a
compreensão sobre o que pode significar agricultura sustentável e, igualmente, estimulando a
crescente capacidade social e política dos coletivos sociais que perseveram em atividade
produtiva e econômica tão incerta, como é a agricultura. Em conjunto com os colegas que atuam
em âmbito regional e local, cuja competência igualmente ressalto, respondem em grande parte (o
que é uma das conclusões deste trabalho) pelos resultados auspiciosos até aqui alcançados, sem
paralelo na história agrária brasileira. Não poderei citar nomes, sob pena de cometer a injustiça
da omissão, mas registro meus sinceros agradecimentos pelo crucial apoio recebido. Seria
desafiador expressar corretamente minha gratidão pela receptividade e o permanente interesse
demonstrado por esses colegas na realização deste estudo.
Os projetos centrados em microbacias também não se materializariam se não encontrássemos
ambientes sociais criativos, abertos e autênticos, assim como caracterizados pela manifesta e
genuína esperança e comprometimento com o desenvolvimento rural, processo de mudança
definido por mais igualdade, prosperidade material e capacidade de protagonismo social e
político. As famílias rurais brasileiras, não apenas as catarinenses ou paulistas, neste sentido,
estão dispostas e preparadas para transformar esses espaços sociais em ambientes societários
propícios a uma ação combinada e virtuosa que faça a ação estatal consentânea com as suas
aspirações e demandas. Às famílias rurais brasileiras mais necessitadas, este estudo é dedicado,
na expectativa de que novos projetos, semelhantes aos “microbacias” em andamento, possam ser
implementados igualmente em outros estados, contribuindo para reduzir os alarmantes níveis de
pobreza rural e as desigualdades sociais, mas, sobretudo, ampliando o otimismo da vontade e da
razão entre a vasta maioria da população rural.
Sumário
Introdução (p. 3)
1. Os projetos microbacias e o contexto de sua implementação (p. 6)
2. A história técnica dos projetos (p. 10)
3. Os projetos e suas situações concretas: alguns exemplos destacados (p. 16)
4. Desafios para o desenvolvimento dos projetos (p. 27)
5. Os projetos-MB: é possível repeti-los? (p. 33)
6. Recomendações (p. 40)
Anexos (p. 45)
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Introdução
O presente estudo apresenta e analisa, sob foco comparativo, dois projetos
implementados nos estados de Santa Catarina e São Paulo, em anos recentes, a partir de
acordos técnicos e financeiros entre os governos daquelas unidades federativas e o
Banco Mundial. São projetos que refletiram em sua formatação inicial, especialmente o
projeto implementado em solo catarinense, preocupações principalmente
conservacionistas em seu sentido mais estrito ou, quando muito, agronômicoambientais. Nasceram, em resumo, como projetos de manejo de recursos naturais
destinados a difundir ações de controle de processos erosivos e do movimento de água
em microbacias hidrográficas.
Contudo, sua evolução, ao longo dos anos de implementação, demonstrou uma visível
potencialidade de serem transformados, ambos os projetos, em políticas públicas de
intervenção em áreas rurais que podem estimular novas e múltiplas dinâmicas, em
outras esferas de ação social, não apenas modificando os processos produtivos, mas
também os arranjos institucionais locais ou regionais, e estimulando a mobilização e
organização social. Sob tal evolução possível, é assim factível prever que são projetos
com forte probabilidade de serem gradualmente moldados na direção de projetos de
desenvolvimento rural centrados na redução de manifestações de pobreza ainda tão
presentes nas áreas rurais. Como a história brasileira ainda não havia observado ações
estratégicas claramente dirigidas à transformação visando o desenvolvimento rural (não
obstante diversas iniciativas sob tal denominação, em diversas regiões e em diferentes
períodos), a experiência desses projetos justifica, portanto, a necessidade de serem
interpretados rigorosamente, extraindo o aprendizado mais generalizante e avaliando as
chances de representarem modelos para difusão em outras partes do país.2
Desta forma, a análise desses projetos, após anos de sua implementação, justifica-se
como uma tentativa de demonstrar a existência desta complexa e interdependente
“cadeia articulada de processos” gerada por tais projetos em diversas, mas
convergentes, direções. Sejam as estritamente produtivas, sejam aquelas de natureza
sócio-ambiental ou, ainda, os processos sociais organizativos e a nova configuração
institucional em diversos municípios onde foi implantada esta política (neste
Há, na vasta literatura que discute desenvolvimento rural, diversas definições, sendo impossível sintetizar
tais debates no espaço aqui disponível. O autor deste estudo distinguiu, em outro trabalho, as diversas
acepções existentes que qualificam “desenvolvimento” (como rural, agrícola, agrário, territorial, local,
sustentável, integrado, entre tantas outras adjetivações possíveis). Adotar-se-á aqui a noção, relativamente
simplificada, que sugere ser desenvolvimento rural uma ação induzida de mudança no meio rural. Portanto,
necessariamente é uma política pública que articula uma estratégia técnica e operacional, bem como define os
objetivos a serem alcançados em determinado período de tempo. O resultado final, se falarmos em
desenvolvimento rural, não se restringe ao aspecto meramente produtivo (o que seria, estritamente falando,
“desenvolvimento agrícola”), mas gera objetivos de melhoria do bem-estar das populações rurais, sobretudo
as mais pobres, além de aperfeiçoar a base técnica dos sistemas agrícolas sob formatos sustentáveis. Uma
síntese de tal discussão foi publicada em Navarro, Zander (2001), “Desenvolvimento rural no Brasil: os
limites do passado e os caminhos do futuro”, in Estudos Avançados, volume 15, número 43, setembrodezembro, p. 83-100, Universidade de São Paulo.
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documento, chamados doravante apenas de “projetos
simplificadamente, “projetos-MB”, ou apenas “microbacias”).
microbacias”
ou,
Existiriam, de fato, razões lógicas ou situações concretas que antecipassem a evolução de
tais políticas governamentais de manejo de recursos naturais na direção de projetos com
a clara potencialidade de se constituírem, talvez pela primeira vez na história agrária
brasileira, em projetos com o foco no desenvolvimento rural? Neste caso, quais fatores
são os principais para ativar tal mudança ao longo do tempo? Quais são as implicações
para os gestores do projeto ou até mesmo para a racionalidade técnica de tais políticas
de intervenção em áreas rurais? Qual a história técnica dos projetos que sustenta
analiticamente esta mudança citada? Existem situações concretas emblemáticas (“best
practices”) que possam indicar, ainda que qualitativamente, essas mudanças sugeridas?
São estas, e muitas outras, as perguntas que os projetos foram suscitando com o passar
dos anos. Este estudo pretende, sinteticamente, tentar discutir algumas delas e oferecer
possíveis respostas.
É importante ressaltar ainda, a título de esclarecimento introdutório, que esta pesquisa
não pretende demonstrar cabalmente a existência de relações de causalidade entre os
processos ativados pelo projetos-MB e seus impactos posteriores. Para tanto, seria
necessária uma armação metodológica distinta, também quantitativa e representativa da
ambiciosa magnitude social e geográfica dos projetos, e que fizesse comparações mais
densas e abrangentes com situações onde os impactos foram menores, ou até mesmo
inexistiram. O que se pretende indicar é, tão somente, a forte e consistente relação de
convergência tendencial entre os componentes dos projetos, em seu desenho inicial e sua
lógica interna, especialmente a escolha de microbacias como a unidade de planejamento
e ação operacional, e os resultados alcançados. A formatação técnica dos projetos-MB
gerou, nas circunstâncias específicas dos estados onde foram implantados, um semnúmero de inesperadas dinâmicas sociais, econômicas e institucionais. Desta forma, é
possível que estejamos em face de uma proposta de intervenção em áreas rurais
animada por uma idéia geral de desenvolvimento rural que, não apenas potencialmente
pode produzir resultados promissores, segundo as evidências recolhidas nos estados
que já ostentam os “microbacias”, como, também, poderá ser replicada em outros
estados brasileiros com iguais possibilidades de êxito.
Igualmente, deve ser alertado que este estudo, em seu aspecto formal, organiza-se sob
características não estritamente acadêmicas e obedecendo típico estilo da pesquisa
científica. Sem perder seu rigor analítico, busca-se, no entanto, apresentar os projetos e
seu desenvolvimento, as lições extraídas, os desafios encontrados e as recomendações
possíveis sob linguagem relativamente distinta da acadêmica, permitindo desta forma
uma apreensão mais rápida de tais experiências. Desta forma, este documento
praticamente não apresenta citações bibliográficas e esclarecimentos conceituais
extensos e minuciosos, no intuito de facilitar sua leitura. Delimitado em sua extensão,
não pretende também adentrar detalhadamente os projetos e seus respectivos desenhos
técnicos e operacionais. Desta forma, trata-se de analise que é, muito mais, uma visão
panorâmica dos projetos-MB implantados em Santa Catarina, a partir de 1991 (concluído
em 1999), e em São Paulo, este se iniciando em 2000. No primeiro caso, os catarinenses já
comandando atualmente um “Microbacias-2” (desde 2001), ou seja, um segundo ciclo
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que se beneficiou, imensamente, do aprendizado extraído do primeiro projeto. Já o caso
paulista, ora concluindo o seu primeiro ciclo, se prepara para tentar a viabilização de um
segundo projeto que consolide os resultados até aqui alcançados. Provavelmente, são
estes os dois projetos que estão mais próximos da idéia de desenvolvimento rural e de
maior sucesso em toda a história agrária brasileira e, assim, torna-se essencial conhecêlos e difundi-los, amplamente, para permitir que outros estados brasileiros possam
analisar a possibilidade de instituir políticas similares em seus respectivos contextos. 3
Por fim, esta breve nota introdutória ainda salienta que a elaboração deste documento
beneficiou-se de um estudo prévio realizado pelo autor, nos anos de 1998 e 1999,
centrados naquela ocasião, particularmente, nos projetos-MB de Santa Catarina e do
Paraná (o paulista estava apenas sendo iniciado), o qual acabou resultando em relatório
de pesquisa não publicado. Naquela ocasião, tais dinâmicas sugeridas acima pareciam se
esboçar nos casos analisados. Na coleta dos dados para a elaboração do presente
relatório, contudo, novas visitas puderam demonstrar que significativa proporção das
hipóteses então aventadas naquela ocasião mostraram-se demonstradas em diversas
situações empíricas, o que será indicado em partes deste estudo.4
Seguindo-se a esta introdução, o estudo é formado de seis sintéticas seções, sendo
iniciado com uma resumida contextualização do período imediatamente anterior,
durante o qual condensaram-se os variados fatores e circunstâncias que estimularam a
articulação destinada a concretizar tais iniciativas governamentais em suas
características principais. Esta parte é seguida de uma síntese da “história técnica” dos
projetos, quando se defenderá que, não obstante fatos históricos anteriores, o mérito
inicial da formatação desses projetos está ancorado na experiência paranaense, que
primeiramente elaborou uma proposta, a qual posteriormente influenciou (com as
devidas adaptações) a iniciativa catarinense e, mais tarde, o projeto em São Paulo. O
relativo sucesso no Paraná e, logo a seguir, em Santa Catarina, foi assim estimulando a
formação de uma “comunidade técnica” em torno da proposta, atualmente sendo
compartilhada com igual desenvoltura por diversos atores (profissionais ou não) nesses
estados. Para não mencionar o Rio de Janeiro, onde existe projeto com características
igualmente similares, embora com componentes mais focalizados no campo ambiental.
A terceira seção do estudo resume alguns “casos exemplares” (“best practices”) nos dois
estados, onde alguns focos específicos encontraram desenvolvimento expressivo,
representando situações concretas que precisam ser mais bem pesquisadas, pois contêm
lições generalizáveis. Esta parte é seguida pela quarta seção, que arrola alguns dos
desafios mais complexos que as experiências dos projetos confrontaram, ao longo dos
3
Oficialmente, esses projetos são intitulados de “Projeto de Recuperação, Conservação e Manejo de
Recursos Naturais em Microbacias Hidrográficas no Estado de Santa Catarina” (informalmente o
“Microbacias-1”) e “Programa de Recuperação Ambiental e de Apoio ao Pequeno Produtor Rural” (o
“Microbacias-2”), e em São Paulo o primeiro projeto intitula-se “Programa Estadual de Microbacias
Hidrográficas” (PEMBH) e atualmente se negocia a sua extensão por um ano, antes que possa ser submetido
à apreciação do Banco Mundial um segundo projeto, ainda sem título definido. Os catarinenses, por sua vez,
negociam atualmente a extensão do “Microbacias-2” por mais três anos.
Aquele estudo, encomendado pelo Banco Mundial, não foi publicado, intitulando-se “Manejo de recursos
naturais e desenvolvimento rural: um estudo comparativo em quatro estados brasileiros (lições e desafios)”.
Washington, Banco Mundial, setembro de 1999, 111p.
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anos, os quais poderiam ser evitados em eventuais situações de novos projetos, por
serem, muitos deles, corriqueiros nas estruturas institucionais e político-administrativas
existentes no Brasil.
Finalmente, antes da sexta seção final que lista algumas recomendações, a quinta e
penúltima parte deste documento apresenta a sua análise mais ousada, quando se
discute se existiria uma espécie de “receita de sucesso” correspondente aos projetos-MB,
convicções nascidas da experiência concreta dos dois projetos aqui analisados (e os
demais investigados na ocasião passada antes referida), as quais possam, portanto,
convergir para uma proposta mais geral. Conclui-se, naquela seção, por resposta
afirmativa, enfatizando-se que, embora não sendo formatações rígidas, e longe da idéia
de uma “camisa-de-força” perfeitamente aplicável em qualquer outro estado brasileiro,
o aprendizado acumulado por estas políticas públicas centradas em microbacias pode,
sem dúvida, aportar valiosíssimas indicações técnicas e operacionais que abrem
caminho para ações informadas pelo objetivo final de promover o desenvolvimento
rural.
1. Os projetos microbacias e o contexto de sua implementação
Iniciando-se pelo Paraná, a implementação, nos anos oitenta, dos projetos estaduais que
paulatinamente passariam a ser denominados de “projetos microbacias” respondeu
inicialmente a um contexto conformado por alguns fatores principais. Primeiramente,
em face dos impactos, de variadas ordens, do intenso processo de modernização dos
processos produtivos agropecuários ocorridos durante a década anterior, durante o
chamado “milagre brasileiro”. Naqueles anos, particularmente o período 1968-1981,
diversas regiões brasileiras experimentaram intenso processo de transformações
produtivas, notadamente o Centro e o Sul brasileiros. Foram mudanças estimuladas por
uma estratégia de expansão das atividades agropecuárias, impulsionada, sobretudo,
pela constituição de uma política de financiamento abundante e subsidiado. Aquele
período já foi intensamente estudado e, dentre seus impactos mais gerais, destaca-se a
disseminação de práticas de uso da terra e dos recursos naturais, no geral, predatórias,
acarretando diversos resultados danosos do ponto de vista ambiental (especialmente
erosão e contaminação química). Simultaneamente à intensificação do uso de máquinas
e equipamentos e à expansão de alguns cultivos comerciais então bastante valorizados
no mercado internacional (especialmente a soja), não foram introduzidas, na magnitude
correspondente, práticas agronômicas de controle dos processos erosivos, o
desmatamento acentuou-se notavelmente e o uso indiscriminado dos recursos hídricos
logo fizeram sentir seus efeitos ambientais, para não citar o uso abusivo de agroquímicos. Em outros locais, como foi o caso mais significativo de Santa Catarina, a
expansão da produção de pequenos animais, sobretudo a suinocultura, acarretou iguais
resultados ambientais negativos, como a contaminação dos cursos d’água com os dejetos
dos animais.
Um segundo fator, mais específico de cada caso estadual, se refere a aspectos que
causaram repercussão profunda, notadamente no Paraná e em Santa Catarina. No
primeiro caso, a expansão dos processos erosivos nascidos da expansão agrícola acima
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referida, que não desenvolveu uma correspondente compreensão conservacionista
apropriada. Desta forma, a expansão da soja naquele estado logo acarretou a
manifestação de efeitos erosivos em proporções alarmantes, e voçorocas começaram a
fazer parte da paisagem das áreas rurais paranaenses, chamando a atenção, cada vez
mais, dos estudiosos, agricultores e profissionais atuantes em regiões rurais. Em Santa
Catarina, por sua vez, o fato marcante é mais determinado e se refere às catastróficas
enchentes ocorridas, em especial no sul do estado, em 1983 e 1984, quando as
conseqüências de chuvas torrenciais, combinadas com o efeito-arrastão do acúmulo de
águas oriundas das partes mais altas do estado, produziram inundações e considerável
destruição de áreas urbanas e infra-estrutura, além de generalizada destruição em áreas
produtivas da agricultura, inclusive gerando diversas vítimas. Tais fenômenos
despertaram, nos dois estados, uma viva consciência sobre as prováveis causas, as quais
estariam relacionadas, logo se percebeu, aos equívocos técnicos no processo de expansão
da agropecuária ao longo da década anterior e seus efeitos acumulados ao longo dos
anos.
É também certo que, nesses dois estados, dois outros fatores foram contribuintes
relevantes para a busca de novas orientações produtivas e agronômicas para o
desenvolvimento das atividades agropecuárias. De certa forma estão relacionados entre
si e referem-se à força social e econômica da chamada “agricultura familiar” nos três
estados sulistas e, de outro lado, às trajetórias institucionais dos serviços de extensão
rural e das organizações de profissionais das Ciências Agrárias. No primeiro caso, como
se sabe, aquela macro-região se constitui no principal “maciço da agricultura familiar”
no Brasil, reunindo aproximadamente 400 mil agricultores e sua contribuição para a
oferta de determinados alimentos e matérias-primas é notória, em algumas atividades
este setor sendo o principal responsável, se comparado com as atividades tipicamente
empresarias existentes no país. Na década de 1980, como fruto do esgotamento do
período expansionista antes citado e os desajustes macroeconômicos crescentes, este foi
setor também seriamente afetado pela queda dos preços pagos aos agricultores,
situações de endividamento, que se tornavam críticas em algumas atividades, mercados
limitados e diversos outros problemas.
Os profissionais das Ciências Agrárias (particularmente agrônomos e funcionários dos
serviços de extensão publica) nesses estados não permaneceram alheios a este quadro
preocupante, uma boa parte deles nascidos na agricultura familiar e sensíveis a essas
mudanças que ameaçam aquele setor de produtores rurais. O peso dos impactos da ação
de significativa parcela dos engenheiros-agrônomos e suas organizações, a partir dos
anos setenta, não pode ser menosprezado na região sul do Brasil. Há uma forte relação
entre o perfil sócio-cultural da maioria desses profissionais, (naqueles anos), nascidos
em pequenas propriedades rurais e conhecedores da realidade agrária, particularmente
no tocante aos impactos ambientais do formato tecnológico implantado durante a
modernização econômica do período. São incontáveis os eventos e ações que poderiam
comprovar esta ativa ação profissional contrária ao padrão tecnológico da época, talvez
bastando salientar que no Rio Grande do Sul, já em 1982, a Assembléia Legislativa
aprovou a chamada “Lei de Agrotóxicos”, que coibia drasticamente o uso de agroquímicos (depois revogada pelo Supremo Tribunal Federal). No Paraná, por sua vez,
aprovou-se uma inovadora e conservacionista “Lei de Uso do Solo”, em 1984 (Lei 8.014)
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e, no ano seguinte, realizou-se em Toledo, no oeste paranaense, o primeiro “Congresso
de Microbacias” que se tem notícia no Brasil, organizado pelas associações de
agrônomos do Estado. Santa Catarina, por sua vez, à par de inúmeros eventos na mesma
época, destaca-se por um feito posterior, qual seja, por sediar a primeira empresa
pública de assistência técnica e extensão rural que modificou formalmente a sua missão
institucional, passando a promover o “desenvolvimento rural sustentável” (já nos anos
noventa). Há, portanto, uma estreita relação entre o sucesso de projetos e programas de
cunho conservacionista e ecológico nesses estados e o comportamento profissional de
uma geração de técnicos mais aberta a tais inovações.
Era necessário, portanto, que se pensasse em uma outra metodologia de ação
governamental em áreas rurais, que introduzisse claramente um novo manejo dos solos,
ampliasse a capacidade de retenção de água e permitisse melhor manejo de seu
movimento nas microbacias, entre outras possibilidades de melhor manejo dos recursos
naturais. A esta consciência sobre a necessidade de mudança agregou-se, nesses dois
estados, como afirmado, a existência de uma parte considerável dos corpos de
profissionais das Ciências Agrárias que já mantinha sentimento crítico em relação ao
processo expansivo da década anterior e que via a necessidade de uma “outra
agricultura”, que fosse ambientalmente mais equilibrada. Na segunda metade dos anos
oitenta, quando a noção de “agricultura sustentável” tornou-se mais corriqueira, ocorreu
aqui uma convergência de interesses, visões sobre agricultura e, desta forma, os
“projetos microbacias” puderam assim nascer sob uma confluência virtuosa de
interesses profissionais, busca de novos sistemas agrícolas mais sustentáveis e os
imperativos de uma realidade agrícola e agrária que ansiava por propostas exeqüíveis
que não repetissem os equívocos do passado.
Contudo, se estes foram, em grandes linhas, alguns dos aspectos que marcaram a década
de 1980 tendentes a enraizar condições diversas que estimularam o nascimento dos
projetos-MB, o final daquela década e, particularmente, os eventos sociais e políticos (e
suas conseqüências institucionais) na década de 1990 foram notáveis. Em larga medida,
são os processos que explicam pelo menos algumas partes do encadeamento observado
no desenvolvimento dos “microbacias” então formalizados e implementados, nesta
ultima década, no Paraná e em Santa Catarina. É que os anos noventa conhecerão
mudanças profundas em diversas esferas da vida social, as quais interferiram
diretamente no desenvolvimento dos projetos analisados neste estudo. No caso
catarinense, alterou sua “história técnica”, na passagem do primeiro para o segundo
projeto e, em relação ao caso paulista, determinou seus focos principais nesta primeira
fase que o projeto vem experimentando, ora em conclusão.
Na década de 1990, mais especificamente, as condições de economicidade das atividades
agropecuárias foram tornadas muito mais difíceis, durante a maior parte dos anos
daquele decênio, com os preços pagos aos agricultores caindo, em termos reais, a níveis
alarmantes. Apenas na parte final da década, com a expansão do comércio mundial de
matérias-primas de origem agrícola e a resultante elevação das cotações internacionais é
que melhorou o ambiente econômico e financeiro dessas atividades. Mas aquelas
voltadas ao mercado interno, por sua vez, precisaram esperar anos ainda mais recentes
para observar alguma elevação nos preços recebidos. Desta forma, cristalizaram-se
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pressões para tornar os projetos mais ativos também em relação a componentes de
geração de renda e o estímulo à implantação de novas atividades produtivas mais
rentáveis tem sido crescente. Outro fator, ao longo daqueles anos, foi o aparecimento na
agenda internacional (e, depois, também na agenda política brasileira) do tema
“pobreza”. Escapa aos objetivos deste estudo identificar com precisão as origens deste
tema e sua inserção crescente nos debates mundiais. Sem surpresa no caso brasileiro,
contudo, em vista da forte presença proporcional de famílias rurais pobres, os projetos
precisaram incorporar um foco crescentemente além do “ambiental e agronômico”,
passando a se organizar também em favor das famílias rurais mais pobres e, desta
forma, priorizando regiões estaduais onde processos de degradação ambiental fossem
visíveis, mas também onde a incidência de pobreza rural fosse igualmente mais
significativa, exigindo a ação governamental mais incisiva.
Esta nova orientação “a favor dos mais pobres” recebeu forte estímulo, em meados
daquela década, com a institucionalização da expressão “agricultura familiar” (em 1995)
e, logo a seguir, a instituição de um leque de políticas destinadas a este segmento de
produtores. Foi medida de imensa importância social, inédita na história agrária
brasileira e que lentamente veio favorecer o surgimento de iniciativas governamentais
dirigidas a este segmento. Desta forma, os “Microbacias”, em seu desenvolvimento mais
recente, em ambos os estados, igualmente reorientou-se para um foco centrado nos
agricultores familiares, especialmente os mais pobres, e em Santa Catarina foi inclusive
desenvolvida categorização operacional que é relevante para maximizar os resultados
finais na direção de dirigir os esforços, sobretudo, para as camadas de produtores rurais
efetivamente pobres, com tal política se tornando explicitamente voltada à minimização
da pobreza rural. Adicionalmente, como fator contribuinte para a ativação social dos
projetos-MB, uma vez formados os coletivos nas correspondentes microbacias
(associações, comissões de microbacias, cooperativas ou outra forma organizativa), o
fato de existirem políticas federais que potencialmente podem ser objeto de
reivindicação dos produtores organizados vem servindo como atrativo adicional para
mobilizar as famílias rurais e assegurar a sua organização nas comunidades rurais
existentes nas microbacias onde os projetos vem incidindo ao longo dos anos.
Ainda como processo de mudança social relevante a ser notado, típico dos anos noventa
e com forte impacto sobre a implementação dos “Microbacias”, fator que favorece a
aceleração do projeto, de um lado, mas pode torná-lo também objeto de dificuldades
operacionais enormes, a crescente politização das áreas rurais brasileiras é outra
característica saliente do período. O processo de democratização pós-constituinte e a
sólida institucionalidade democrática que foi sendo afirmada nos anos recentes vem
significando, pela primeira vez em nossa história, que as classes sociais subalternas do
mundo rural não apenas vem encontrando novos espaços políticos para a expressão de
suas demandas, mas, até mesmo, vem sendo estimuladas a fazê-lo via mediação de
diferentes outros atores, como partidos políticos, movimentos sociais e lideranças
políticas diversas. Isto significa, portanto, que ações governamentais, como os
“Microbacias”, gradualmente se defrontam com ambientes sociais mais disputados
pelos diferentes grupos sociais interessados. Este fato, tornado mais e mais agudo com o
passar dos anos, claramente dificulta, ainda mais, a ação extensionista dos projetos e
torna igualmente mais premente a formação adequada de tais profissionais, os quais
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precisarão lidar com realidades rurais cuja complexidade foi se tornando extraordinária,
a partir da década de 1990 em diante.
Igualmente relevante como um molde de crescente influência na mesma década foi a
crescente imposição normativa de fatores ambientais, assim materializando um longo
esforço social, congregando diversos atores sociais, que desde o início da década
anterior, vinham desenvolvendo formas de pressão diversas no intuito de influenciar o
nascimento de políticas mais conseqüentes de proteção ao meio ambiente. Nos anos
recentes, a evolução dessas tendências observou a aprovação de leis e regulamentos que
fizeram o Brasil um dos países mais regulados neste campo. 5
Por fim, sem mencionar outros aspectos que poderiam também impactar o
desenvolvimento dos projetos-MB, é preciso ainda salientar o processo de
descentralização política e administrativa ensejado no Brasil após os anos de
democratização inaugurados com a promulgação da Constituição de 1988. A
transferência de responsabilidades para outros planos subnacionais, como os estados e,
particularmente, para os municípios, representa tendência histórica que a atual
Constituição aprofundou. Tal mudança significou que, na década passada, foi sendo
ampliado este processo, via a instituição de espaços novos de participação social e
crescente capacidade decisória. Como os conselhos, por exemplo, que atualmente
definem, em quase todas as áreas, a alocação de recursos, as estratégias municipais, as
prioridades e diversos outros objetivos previstos pela descentralização das políticas
setoriais. Os projetos-MB iniciais, no Paraná e em Santa Catarina, que no início
avançaram timidamente na mobilização social das famílias rurais beneficiárias,
lentamente foram incorporando os efeitos da nova conjuntura social e política vigente no
Brasil nos últimos dez anos, durante os quais políticas sociais participativas passaram a
ser a marca nacional.
2. A história técnica dos projetos
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Os últimos anos aceleraram notavelmente a produção normativa sobre meio ambiente no Brasil. Desde o
pioneiro “Código Florestal” (1965), passando pela “Lei de Proteção à Fauna” (1967), o primeiro marco
legal de maior relevância foi a Lei 6.938 (1981), que instituiu a “Política Nacional de Meio Ambiente”,
criando posteriormente o Conselho Nacional do Meio Ambiente (regulamentado em 1986 e prevendo a
participação de representantes da sociedade civil), além de propor as noções de “Áreas de Proteção
Ambiental” e de “Reservas Extrativistas”. Posteriormente, destacam-se os inovadores preceitos da
Constituição Federal de 1988 relativos ao meio ambiente (especialmente o artigo 225, que estabelece que
“todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial
à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e
preservá-lo às presentes e futuras gerações” e propõe, entre outros objetivos, os “espaços protegidos”,
também chamados de “unidades de conservação”), a proposta de lei número 2.982, de 1992, que criou o
Sistema Nacional de Unidades de Conservação (que, ainda não aprovada, tem estimulado, contudo,
alguns estados a anteciparem-se, criando seus próprios sistemas), a Política Nacional de Recursos
Hídricos, de 1997, a “Política Nacional de Educação Ambiental” (1999) e, finalmente, a importante Lei
de Crimes Ambientais, promulgada em 1998. No plano dos estados, várias leis têm seguido estas
orientações federais, ampliando notavelmente o campo normativo relativo aos “temas ambientais” no
Brasil. Entretanto, como é sabido, o principal entrave à efetividade das leis têm sido sua implementação,
em vista da escassez de recursos financeiros e humanos e a debilidade dos mecanismos de fiscalização,
insuficientes na maior parte dos casos.
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Esta seção sugere, sucintamente, as trajetórias técnicas (e operacionais) dos dois projetos
ora sendo analisados neste estudo. Embora os documentos que apresentam as políticas
governamentais sob o foco das microbacias sejam similares em alguma proporção
significativa, por serem o resultado de consultas e formas de colaboração entre os seus
principais operadores, sua concretização, como é claro, reflete realidades distintas e os
resultados são, assim, significativamente diferentes. Esta parte apenas apresenta os
projetos, sua formatação inicial, principais características e alguns aspectos mais
específicos que se mostraram particularmente relevantes durante a implementação dos
projetos-MB nos dois estados.
2.1 O projeto catarinense
Os projetos-MB, influenciados pelo esforço inicial realizado pelos técnicos paranaenses,
repetiram, em sua primeira fase (ou seja, os primeiros ciclos), uma estrutura bastante
parecida formada por vários “componentes”. São as partes do projeto, envolvendo
montantes financeiros distintos e densidades institucionais também distintas, pois são
partes constitutivas do projeto que, em cada estado determinado, apresentam existências
variadas. Por exemplo, o componente “pesquisa”, se comparados os casos paranaense,
catarinense e paulista, nos anos noventa, apresentaria situação bastante diferenciada,
com São Paulo podendo ostentar instituições de pesquisa agrícolas quase centenárias e
uma ciosa “tradição de pesquisa” (muitas vezes impermeável a inovações), enquanto
Santa Catarina, no outro oposto, apresenta número menor de instituições, recursos
humanos em menor número, trajetórias de pesquisa menos consolidadas e, desta forma,
capacidade de influenciar o “Microbacias” bem mais limitada, pelo menos
potencialmente, embora instituições mais abertas a propostas inovadoras. O projeto
paranaense, que foi a matriz inspiradora de todos os demais, elaborado ainda no final da
década de 1980 (em Santa Catarina) e, posteriormente, também inspirou as reflexões dos
técnicos em São Paulo, a partir da segunda metade da década seguinte, apresentava,
originalmente, uma estrutura técnica e operacional formada de diversos componentes, a
saber:
(i) pesquisa agrícola
(ii) extensão rural
(iii) o fundo de manejo e conservação do solo e controle da poluição
(iv) adequação de estradas municipais
(v) terminais ferroviários de distribuição de calcáreo
(vi) desenvolvimento florestal
(vii) monitoramento e fiscalização de uso do solo
(viii) treinamento e capacitação
(ix) administração do projeto
A formatação do projeto catarinense, inspirada neste cardápio inicial, por seu turno,
incluiu alguns componentes em outros, eliminou o item (v) referente aos terminais
ferroviários e introduziu uma novidade importante, o componente de “mapeamento”
das microbacias, instrumento tornado cada vez mais relevante, embora de difícil
consecução técnica. São Paulo, por sua vez, alguns anos depois, qualificou as atividades
11
de pesquisa como um componente de “pesquisa adaptativa” e introduziu outro
componente, àquela altura já refletindo a conjuntura típica dos anos noventa, qual seja, o
componente de “organização rural”.
Como salientado em outra parte, o caso do “Microbacias-1” catarinense, refletindo
diversas influências, antes citadas, foi muito mais “conservacionista” e seus resultados
indicaram ações, especialmente, no tocante a novas práticas agronômicas que então se
difundiram. O projeto tentou disseminar um conjunto de atividades relacionadas ao
“campo ambiental”, em acordo com as particularidades de cada região do estado.
Alguns resultados produziram grande repercussão, salientando-se, neste particular, os
estudos realizados na bacia do Chapecó, no oeste catarinense. Nesta região, marcada
pela presença pujante da suinocultura, os problemas de contaminação dos cursos de
água estavam se tornando alarmantes, e o estudo realizado por Bassi (1998)6
demonstrou categoricamente a importância do novo manejo de solos e controle do
movimento da água nas microbacias para reverter os efeitos do continuado, mas
equivocado, manejo de solos, as práticas danosas da suinocultura intensiva e o
desconhecimento generalizado sobre as possibilidades de controle do movimento da
água e da contaminação química no interior de microbacias hidrográficas.
Entretanto, é consenso entre os profissionais ligados ao projeto que o “Microbacias-1”
apresentou diversos problemas em sua implementação. Não foi, de fato, participativo,
não obstante prever a formação das “comissões de microbacias”, quando constituídas,
pois manteve, em sua implantação, a tradição de uma cultura institucional
centralizadora e que, tradicionalmente, desenvolvia uma extensão rural “de cima para
baixo”. Desta forma, não foi capaz de animar formas organizativas duradouras, após a
conclusão das atividades do primeiro projeto. Além disto, ao enfocar, talvez
exageradamente, o foco ambiental, não conseguiu despertar o interesse amplo das
famílias rurais. “Não fascinou os agricultores”, conforme menção de uma agricultora,
em outra parte deste documento. Somente com o segundo projeto, mais claramente
voltado às atividades produtivas e econômicas, além de introduzir um corpo de
incentivos amplo, é que o projeto atraiu mais as comunidades-alvo. Conforme outro
agricultor, esta mudança foi essencial, pois “o projeto pega quando atinge a
propriedade, a roça. O pessoal fica interessado. Não só a parte do dinheiro, mas
[também] conservação de solo, proteção de fontes”.
A história técnica do “Microbacias-1” catarinense mostrou diversos aspectos salientes.
Um deles, marcante no desenvolvimento do projeto, foi a relativa continuidade de sua
gerência geral. O coordenador principal foi substituído por um período relativamente
curto (assumiu posição na área ambiental e contribuiu decisivamente para aproximar o
projeto daquela área). Posteriormente retornou e o projeto, desta forma, não teve, de
fato, a interrupção de sua coordenação, ao longo dos diversos anos de implementação
do projeto em seu primeiro ciclo. Alguns componentes tiveram desempenho sofrível
(como “pesquisa”), outros enfrentaram diversas idas e vindas, como o componente
6
Ver Bassi, Lauro (1998), “Impactos sociais, econômicos e ambientais na microbacia hidrográfica do
Lageado São José, Chapecó, Santa Catarina (estudo de caso)”. Chapecó: Epagri (projeto “Microbacias”,
versão preliminar)
12
readequação de estradas, em virtude da inexistência de empresas preparadas para
seguir a lógica prevista no projeto. O destaque, contudo, ficou para a “ação
extensionista”, em face da sólida tradição da extensão rural no estado, formada ainda,
naqueles anos, por profissionais não apenas competentes, mas fortemente
comprometidos com as atividades da empresa pública de extensão rural em Santa
Catarina. As mudanças, no final da década de 1990, que transformaram o primeiro
projeto no atual “Microbacias-2”, de fato, refletem as mudanças políticas e sociais no
estado, gerando uma outra conjuntura política, que passou a pressionar por um projeto
de desenho técnico diferente. Mas refletem também o aprendizado do primeiro
“Microbacias”, o qual foi incapaz, por exemplo, de aumentar os níveis de renda dos
agricultores participantes, conforme diversos estudos de avaliação realizados no final do
primeiro projeto. Desta forma, uma das características principais do primeiro ciclo, a
ênfase em uma unidade operacional e de planejamento, a microbacia, central para
estimular uma lógica sistêmica e sócio-ambiental, perdeu parcialmente a sua ênfase no
segundo ciclo, não obstante continuar sendo chamado pela marca pública sob a qual
ficou conhecido, o “Microbacias-2”.
As discussões que antecederam a elaboração e, posteriormente, o projeto que formalizou
o segundo projeto, desta forma, forçaram a introdução de visão mais ampla, com seus
componentes englobados em quatro dimensões principais. Primeiramente, o de
administração, monitoramento e avaliação, seguido de três outros, que são mais
operacionais, o de gestão ambiental, o de inversões rurais (onde estão os diversos
incentivos) e o de organização e desenvolvimento institucional. Este último representa,
em especial, a principal novidade do segundo projeto, enfatizando fortemente a
necessidade de organização social das famílias rurais. Para tanto, modificou-se a
metodologia de mobilização dos participantes, com diversas técnicas de animação de
grupo, com o projeto sugerindo a formação inicial de “grupos de animação da
microbacia” (GAM), antes de se decidir pela formação das “associações de
desenvolvimento das microbacias” (ADM). Com ousadia, o projeto facultou a
possibilidade de contratação do técnico que acompanharia a microbacia pela associação.
Este técnico foi chamado de “facilitador”, um eufemismo que, em si mesmo, reflete uma
outra conjuntura política, sob a qual as palavras denotando supostas hierarquias
perderam também espaço na linguagem dominante. O componente de inversões rurais,
por seu turno, incluiu a novidade de prever recursos para “melhoria de renda” (que é,
concretamente, onde devem surgir os projetos de geração de renda) e a linha de
“melhoria de habitabilidade”, sob a qual o segundo projeto tem alcançado grande
atratividade, pela possibilidade de financiar, com uma parte subsidiada, a melhoria das
casas, a construção de banheiros e, por vezes, até mesmo a construção de residências
novas para as famílias mais pobres.
2.2 O PEMBH de São Paulo
Como antes sugerido, o PEBMH, que é a sigla oficial do “Microbacias” paulista,
praticamente seguiu a formatação dos projetos paranaense e catarinense, com pequenas
adaptações, fruto das especificidades institucionais daquele estado. O seu
desenvolvimento, contudo, foi modificando a lógica de seu desenvolvimento,
aperfeiçoando-o com o passar do tempo. Cite-se, a título de ilustração, dois aspectos
13
técnicos de grande relevância na lógica sistêmica de tais projetos. Primeiramente, o
componente “readequação de estradas”, inicialmente pensado, sob a diretriz
descentralizadora (e neoliberal) típica da segunda metade dos anos noventa, para ser
oferecido às empresas privadas estaduais, que fariam as readequações decididas em
cada município. Na prática, esta diretriz não funcionou, pois o componente de estradas
oferece, de fato, obras de porte e de dimensão econômica reduzida para atrair a maior
parte das empresas privadas do setor. Desta forma, a idéia inicial de realizar licitações
que, supostamente, atrairiam diversas empresas, não prosperou, e este componente
acabou ficando sem realização. A solução foi convocar a empresa estadual que construía
tradicionalmente algumas estradas vicinais no interior do estado e convocá-la para
operacionalizar aquele componente. Os resultados têm sido bastante satisfatórios neste
aspecto, pois aquela empresa foi valorizada em suas atividades, que foram ampliadas e,
em especial, desenvolveu capacidade técnica segundo a lógica dos projetos microbacias,
pois nestes a readequação de estradas observa diferente estratégia técnica, pois se
associa ao movimento das águas em seu interior e não à lógica de engenharia
convencional que antes se utilizava.
Outro exemplo diz respeito ao componente “mapeamento” (das microbacias), onde o
mesmo problema ocorreu, pois também neste caso não surgiram empresas capazes de
realizar o solicitado com agilidade. Ou, então, aquelas que se apresentaram o fizeram
sob orçamentos proibitivos, desestimulando a contratação. Novamente, a solução foi
realizar diversos cursos de treinamento entre os próprios técnicos do projeto e a eles
oferecer alguns equipamentos para o levantamento de dados de campo e,
posteriormente, a elaboração dos mapas das microbacias e das regiões. Atualmente,
como resultado desta estratégia, o “Microbacias” paulista já conta, em quase todas as
regiões, com mapas de destacada qualidade técnica, utilíssimos para o planejamento,
com os agricultores, das ações no interior das áreas trabalhadas. Também neste
componente foi formada uma capacidade técnica instalada invejável, sem comparação,
provavelmente, com nenhum outro estado brasileiro.
O projeto paulista, refletindo a conjuntura típica da segunda metade dos anos noventa,
foi iniciado sob ótica de ação distinta do foco mais conservacionista dos projetos que
precederam-no, pois assumia, claramente, como suas prioridades, uma estratégia que
combinava objetivos ambientais com prioridades também dirigidas à erradicação (ou
minimização) da pobreza rural. Já completando o seu ciclo, atualmente, um segundo
projeto está sendo elaborado, e talvez possa ser implementado a partir de 2009, após um
ano de transição, durante o qual serão feitas diversas avaliações. É interessante observar
que a “carta-consulta” que preliminarmente adianta alguns aspectos de um segundo
projeto, caso este venha a ser concretizado, inclui diversos aspectos ainda mais
representativos de idéias, noções e jargões incorporados nos últimos anos no Brasil,
como a idéia, entre outras, de “transições agroecológicas”, além de incorporar mais
fortemente um foco dirigido à agricultura familiar.
Importante ressaltar, em conclusão a esta seção, e refletindo as histórias técnicas desses
projetos centrados em microbacias, que parece estar sendo perdida (ou rebaixada) uma
compreensão fundamental que está logicamente presente em seus desenhos técnicos
originais. Qual seja, o fato da combinação entre uma unidade física e geográfica (a
14
microbacia) e os processos participativos gerados pelo desenvolvimento social e político
no Brasil em anos recentes, quando convergentes sob a dinâmica de um projeto, como os
analisados neste estudo, terem a virtualidade de desenvolverem, sob circunstâncias
favoráveis, diversos processos sociais de extrema relevância. Esta combinação virtuosa
animada por uma ação extensionista preparada, geralmente produziu, em muitas
regiões, como primeira mudança de visão e comportamento entre as famílias rurais,
uma compreensão sistêmica de manejo dos recursos naturais no âmbito das microbacias,
ou seja, com cada família individual crescentemente sendo capaz de perceber a relação
das atividades em sua propriedade com as demais realizadas dentro da microbacia e,
desta forma, desenvolvendo uma crescente capacidade de cooperação entre as famílias.
A dimensão participativa, por sua vez, estimulando a aproximação entre as famílias
rurais potencialmente integrantes do projeto, se bem sucedida, consolidava, aos poucos,
um coletivo social que agregaria os interesses e as demandas das famílias participantes,
em um primeiro momento apenas estimuladas pelos objetivos específicos do projeto.
Gradualmente, contudo, se este processo se mostrasse bem sucedido, o que estaria sendo
constituído, seria, na realidade, uma nova forma de representação social concretizada na
organização que nasceu no âmbito da microbacia, sob a qual se desenvolveria a
consciência dos interesses próprios e da identidade dos participantes. Da mesma forma,
poderia ser estimulada, potencialmente, a criatividade social e política das famílias
rurais participantes.
Como conseqüência, o projeto, nesta evolução possível, estimulou em muitas regiões
uma crescente dinâmica associacional em muitas microbacias, oportunizando às famílias
rurais desenvolverem, com grande autonomia, a organização que melhor representasse
seus interesses mais imediatos, alçando-os gradualmente ao plano das disputas sociais e
políticas que, no município, decidem pela alocação de recursos e pela definição das
políticas municipais. Assim, a cidadania pode se adensar, a participação social se
ampliou, foram desenvolvidos mais mecanismos de prestação de contas e transparência
e, em linhas gerais, também se aprofundou um processo de democratização das áreas
rurais. Estes processos são, em síntese, os requerimentos fundacionais para a
implementação de projetos de desenvolvimento rural, pois estes apenas ocorrem
quando os atores interessados têm alguma autonomia associacional, crescente
capacidade decisória, níveis de informação que se ampliam com o tempo e, desta forma,
podem defender suas reivindicações de forma soberana. O resultado deste processo
potencialmente virtuoso é, exatamente, um conjunto de definições municipais que
permitem ações na direção do desenvolvimento rural, as quais são paradigmáticas não
apenas da “vontade da maioria”, mas representam, sobretudo, processos políticos de
argumentação em torno de diversas opções existentes e a seleção das políticas que
melhor se ajustem aos interesses públicos mais gerais.
Desta forma, se a centralidade nas microbacias for rebaixada, a dinâmica acima citada
pode retornar ao seu leito convencional, pois as famílias rurais passariam a desenvolver
identidades organizativas por outras razões, às vezes não menos importantes, mas não
mais conseguindo reunir uma “ação sistêmica”, como apenas os projetos-MB podem
ativar em áreas rurais. Esta é a ameaça evidenciada, mas claramente no projeto
catarinense e, menos, no caso paulista. Se a microbacia, como unidade de planejamento e
ação extensionista, deixar de manter a centralidade ainda existente, as possibilidades de
15
desenvolvimento das dinâmicas sócio-ambientais enfatizadas neste documento,
provavelmente, se reduzirão fortemente, os projetos podendo perder sua pretensão
multifacetada, para focar partes segmentadas.
3. Os projetos e algumas situações concretas: alguns exemplos
destacados
Esta seção sintetiza alguns dos aspectos mais destacados decorrentes de visitas
realizadas em regiões, nos dois estados, onde o projeto tem encontrado maior
receptividade e as circunstâncias de sua implementação vêm garantindo resultados de
grande significação, em todos os componentes previstos – ou, pelo menos, a maior parte
deles. Foram visitadas diversas microbacias em diferentes municípios, e as duas
subseções sintetizam, em grandes linhas, evidências que se salientaram, realizadas as
entrevistas, verificados os dados existentes, e analisados com os profissionais
responsáveis e as famílias rurais o encaminhamento processual dos “microbacias” aos
quais se relacionam, e os resultados obtidos até aqui.
3.1 Santa Catarina: a evolução de um projeto sócio-ambiental para um projeto
tipicamente “social”?
O “Microbacias” em Santa Catarina vem experimentando uma evolução que pode ser
auspiciosa, de um lado, mas pode também ser preocupante, se algumas de suas
tendências forem aprofundadas com o passar do tempo. Em sua primeira etapa, o
projeto foi fortemente agronômico e ambiental, conforme antes indicado, na seção
precedente. Sob tal formato, tal política alcançou em algumas regiões resultados
importantes, alguns até mesmo notáveis. Mas, ou foi criticado pelos setores organizados
das populações rurais (especialmente motivados por razões de oposição política), que
não viam no projeto um “foco social” ou, então, por aqueles incapazes de perceber a
importância das iniciativas sendo implementadas, essenciais para difundir uma
consciência mais conservacionista entre os produtores rurais e, igualmente, instituir
formas de manejo dos recursos naturais mais sustentáveis.
As mudanças no campo político (e partidário) naquele estado, nos anos mais recentes,
acabaram convergindo interesses e o “Microbacias-2”, atualmente em execução, reflete
uma concepção relativamente alterada em relação à sua primeira etapa. Há mais ênfase
em “ações sociais” e uma expectativa forte também em iniciativas de “geração de renda”
e, aparentemente, as ações propriamente agronômicas e ambientais parecem ter perdido
parte de sua ênfase inicial. As visitas realizadas nas regiões de maior destaque
indicaram que uma nova linguagem parece estar sendo formada entre os profissionais
atuantes no projeto, mais preocupados com a parte social e econômica, e menos com
manejo de recursos naturais e, sintomaticamente, menos enfaticamente realcionados à
“ação sistêmica” atrelada à microbacia. Não existem dados suficientes para comprovar
se esta tendência pode ser definitiva, mas os indícios são fortes. Embora o projeto tenha
exatamente esta ambição, qual seja, incluir ações em campo social, por seus impactos
óbvios em termos de melhoria das condições de vida das populações mais pobres, é
também inegável que o foco mais propriamente agronômico e ambiental não pode ser
16
rebaixado a plano coadjuvante, sob pena de perder o ideal da sustentabilidade
produtiva e, também, a possibilidade de estabelecimento de uma dinâmica sócioambiental mais abrangente, em torno do desenvolvimento rural, que contemple ações
em todas as esferas e campos de atividade.
(a) As regiões de Lages e de Piratuba: rumo a um “projeto social”?
Estas são duas regiões de Santa Catarina com características, de um lado, bem distintas,
mas também com similaridades. Lages situa-se no chamado “Planalto catarinense”,
onde no passado era corredor de transporte de gado em direção ao centro do Brasil, o
que acabou gerando a formação de grandes propriedades dedicadas à pecuária
extensiva. Tradicionalmente tem sido a região mais pobre do Estado e a atividade
econômica mais relevante na região tem sido as indústrias de transformação de madeira,
destinadas à produção de papel. As famílias rurais mais pobres, contudo, são em grande
número e os municípios, no geral, espelham um nível de pobreza relativo mais baixo. Já
Piratuba situa-se na fronteira com o Rio Grande do Sul, separada pelo rio Uruguai,
sendo balneário que se beneficia de águas termais, o que atrai um grande número de
visitantes. A indústria turística gera empregos e ativa a economia do município., mas a
agricultura, contudo, é também muito pobre, embora formada quase exclusivamente,
por pequenos agricultores familiares. Esta característica de altas proporções de pobreza
rural é que fazem a similaridade entre as duas regiões.
Em face de um cenário de incertezas com relação às atividades produtivas agrícolas, o
“Microbacias”, em seu primeiro ciclo, não encontrou expressivo desenvolvimento nessas
regiões, e as ações “sócio-ambientais” prosperaram apenas parcialmente. Em Lages,
particularmente, o desempenho do projeto, em sua primeira etapa, foi bem abaixo do
esperado. Mas o “Microbacias-2”, ao contrário, tem alcançado rápida velocidade e se
tornado destaque em termos estaduais. A razão, como seria esperado, é de fácil
explicação, e aponta para a natureza “social” do segundo projeto, com seu forte
componente centrado em incentivos destinados à melhoria das habitações rurais.
Em Lages e adjacências, o projeto vem aumentando sua velocidade de ampliação,
especialmente em função dos incentivos de melhoria das moradias. No primeiro projeto,
como esta não é região de agricultura intensiva, mas dominada pela pecuária extensiva,
com os solos quase sempre cobertos por pastagens, os processos erosivos eram pouco
preocupantes e aquele projeto inicial pouco realizou na região. Nem mesmo comissões
de microbacias foram formadas. A região se tornou prioritária no segundo projeto, em
face da elevada proporção de pobreza rural indicada em todos os levantamentos
estaduais existentes. São 58 microbacias trabalhadas na região, em doze municípios, com
aproximadamente 7,5 mil famílias potencialmente beneficiárias. Segundo a opinião dos
técnicos envolvidos, foi decisiva a nova metodologia participativa empregada no
segundo projeto, atribuindo maior poder de decisão às famílias rurais, inclusive na
contratação dos profissionais que irão atuar diretamente nas microbacias, uma vez
formadas a associações (o “facilitador”).
As ações concentraram-se, até aqui, especialmente no componente de melhoria das
habitações, ampliação do acesso à rede de energia elétrica, estímulo à formação das
17
associações e as tentativas de implantar projetos de “geração de renda”, esses últimos
ainda embrionários. Em Capão Alto, vizinho a Lages, município de imensa extensão
territorial, mas população rarefeita (apenas 2,3 habitantes por km2), apesar das longas
distâncias entre as comunidades e os participantes do projeto, a associação formada na
microbacia Fonte da Esperança vem impulsionando diversas iniciativas, em clara
demonstração de que a metodologia de animação do projeto é eficaz para mobilizar as
famílias rurais em torno das ações propostas. Contudo, a impressão geral, na região, é
que o “Microbacias-2”, ainda transita na fronteira de um típico projeto assistencialista e,
provavelmente, não está conseguindo alicerçar processos sociais mais robustos, no
sentido de garantir sua sustentabilidade futura.
Similarmente, em Piratuba, não obstante as diferenças dos sistemas de produção, o
projeto vem sendo desenvolvido com alguma analogia em relação ao caso de Lages. As
ações são especialmente centradas nos componentes de melhoria das habitações, desde
reformas amplas ou simples “puxados” na casa, instalação de caixas de água e, em
especial, a construção de banheiros domésticos. As quatro microbacias do município
foram “abertas” e existe uma compreensão entre os profissionais extensionistas de que a
mudança foi notável, pois, sugere um entrevistado, “o Microbacias-1 não fascinava as
pessoas. A grande sacada foi porque tratou, fundamentalmente, da questão econômica”,
adiantando que o problema principal em Piratuba e os municípios circunvizinhos era a
renda baixíssima dos produtores rurais, boa parte deles, inclusive, sendo forçados a
trabalhar como safristas, para completar a renda familiar. Curiosamente, não obstante a
ênfase mais centrada em ações “sociais” e tentativas de implantar projetos econômicos,
os técnicos julgam que o “foco ambiental” não foi perdido ou diminuído. Pelo contrário,
insistem que atualmente os resultados ambientais são melhores do que aqueles obtidos
com o Microbacias-1, pois têm conseguido maior participação das famílias rurais e, desta
forma, tem sido possível, mas facilmente, argumentam, difundir também as ações no
campo propriamente ambiental. Foram citadas diversas práticas novas adotadas pelos
agricultores e destinadas a modificar seus sistemas agrícolas em uma direção mais
ambientalmente sustentável, como a expansão de áreas com adubação verde ou a
multiplicação de equipamentos de plantio direto. Ainda mais relevante para
desenvolver uma “nova dinâmica” municipal, o atual prefeito é funcionário licenciado
da empresa pública de extensão rural e entusiasta do projeto, o que vem favorecendo a
interação intensa entre o projeto e o governo local. Talvez, o maior obstáculo em
Piratuba, segundo indicam as evidências, será identificar lideranças rurais e agricultores
mais ativos, apoiando-os para que possam comandar as iniciativas organizacionais no
município, ainda embrionárias e relativamente dependentes da ação externa do projeto.
Contudo, é igualmente importante salientar que, muito perto de Piratuba, outro
município, Seara, apresenta a mais antiga microbacia-piloto do projeto (Nova Teutônia),
e aonde as famílias rurais residentes já vem desenvolvendo sua capacidade de
organização há muitos anos. Neste caso, foi decisiva a participação de um reduzido
grupo de agricultores, os quais acreditaram no projeto, mobilizaram as demais famílias e
foram ativos para manter o ânimo entre os participantes. Na microbacia residem 220
famílias, e na sede distrital aproximadamente 90 famílias. Antes uma região
extremamente empobrecida, dedicada majoritariamente à produção de milho e feijão, o
“Microbacias-1” não causou expressiva adesão, porque teria sido “de baixo para cima”,
18
ou “muito em conservação de solos”, pois oferecia, disseram, apenas “patamar de
pedras” (terraços) e nada mais. A comunidade apresenta razoável coesão social, com
quatro igrejas na sede distrital e diversas festas anuais. Não obstante tal histórico, a
desistência dos mais jovens em relação à permanência no campo foi se acentuando: em
1994 existiam quatro times de futebol na microbacias, atualmente não é possível formar
nenhum. O projeto, ao estimular a organização das famílias sob um foco participativo
permitiu uma nova forma de escolha de prioridades, o que foi incentivando os
agricultores a implantarem alternativas de produção, como leite e fruticultura. O
“Microbacias-2”, insistem, teria sido muito diferente, com mais claro apoio da Epagri e
da prefeitura local e assim formando gradualmente uma capacidade de reivindicação
das famílias participantes: “antes, um saia daqui e pedia, agora se discute com todos e
convoca o prefeito, que vem a Teutônia”. Citaram diversas iniciativas, como a procura
por outras fontes de crédito, como o Pronaf ou, então, a instalação de telefones com o
apoio da prefeitura (todas as casas no distrito-sede tem atualmente tal comodidade).
Trata-se, portanto, de um caso onde a ação do “Microbacias” tem conseqüências diretas
com as iniciativas que passaram a ser realizadas, embora seja também um caso que
indica a importância de localizar agricultores que sejam verdadeiros “animadores”,
mobilizando os demais, incentivando e usando parte considerável de seu tempo,
voluntariamente, para sustentar as atividades associativas.
(b) A região de São Miguel de Oeste: formando uma “dinâmica associativa”
A visita a esta região catarinense fronteiriça com a Argentina demonstrou a grande
variabilidade de situações encontradas nas microbacias, em relação à expectativa de
constituição de uma dinâmica organizativa, que possa estimular a formação de
associações, cooperativas ou outras formas coletivas. Embora uma região com alguma
homogeneidade em diversos aspectos (por exemplo, a estrutura de propriedade da terra,
que é semelhante em quase todos os municípios, predominando a agricultura familiar),
as reuniões realizadas em diversas microbacias foram demonstrativas sobre os fatores
que, principalmente, “dão partida” às iniciativas das famílias rurais, sua adesão ao
projeto e o interesse posterior, inclusive em relação à manutenção da forma de
organização escolhida, uma vez que a ação governamental deixe de existir em uma
microbacia que foi “trabalhada” e, passado seu ciclo, deixa de sê-lo. É relevante
salientar, por exemplo, que esta é a única região do estado onde os agricultores pagam
anuidades destinadas à manutenção de suas associações, prática virtualmente
inexistente no restante do estado. Foram visitadas as famílias rurais que moram na
microbacia Velther (município de Guaraciaba), na MB Lageado Perau, em Tunápolis, e a
MBH do Lageado Taquara, que se localiza no município de Descanso. Além disto, houve
também a oportunidade de um encontro com alguns dos técnicos envolvidos no projeto,
para discutir as características da “ação extensionista” na região de São Miguel do Oeste,
onde se situam as localidades mencionadas. As microbacias visitadas espelham a
diversidade sócio-econômica das famílias rurais, com as primeiras mais “estruturadas”
(ou seja, dispondo de melhores estruturas produtivas) ao último caso citado, onde as
famílias são mais pobres e encontram mais dificuldades para desenvolver suas
atividades agrícolas.
19
A região como um todo apresenta desenvoltura associacional incomum, com a presença
relativamente forte de diversas organizações de agricultores familiares, desde os
sindicatos à recém-formada Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar
(FETRAF), passando por movimentos sociais de trabalhadores sem-terra e de mulheres
rurais. Existem também diversas cooperativas, de crédito e de produção, a maior parte
delas sendo integradas por pequenos agricultores. São 18 municípios habitados por
aproximadamente 150 mil pessoas e o “Microbacias” já estimulou a formação de 91
associações, como resultado direto de sua ação na região. Outra característica incomum
é a presença, em maior número, de profissionais mulheres escolhidas pelas associações
para serem as técnicas “facilitadoras”, para usar o jargão instituído pelo projeto no
estado. O contexto regional estimula, portanto, as iniciativas das famílias rurais, mas as
visitas realizadas apontaram para situações muito distintas e circunstâncias variadas, em
relação à capacidade organizativa dos integrantes das associações estabelecidas nas três
microbacias visitadas.
Em Guaraciaba, os agricultores da microbacia Velther (116 famílias no total) já
conheciam a experiência de uma outra microbacia inicialmente aberta no município e
procuraram se informar para saber como poderiam seguir a mesma trilha. São
agricultores de renda média mais alta (em relação a outras famílias de Guaraciaba), tem
mais acesso às informações e o facilitador escolhido é filho de um dos integrantes da
associação. Demonstraram interesse pelo projeto porque “o que estava acontecendo, se
continuasse, nosso futuro estaria comprometido”, conforme uma agricultora enfatizou.
Já haviam tido em anos passados experiências com outros tipos de organização,
normalmente cooperativas (como em praticamente todas as outras regiões visitadas), e
tais situações anteriores produziram lembranças negativas, pois fracassaram. A
lembrança de todos, ao serem convidados para aderir ao “Microbacias”, é que formas de
cooperação não produziam bons resultados e resistiram aos apelos iniciais. Apenas um
sentimento de “encurralamento” é que permitiu que algumas famílias, inicialmente,
tivessem interesse nas ações propostas, pois parecia não existir mais alternativas
produtivas recompensadoras para os produtores. Suas prioridades iniciais foram a
preservação das 54 nascentes de água existentes na microbacia e, em segundo lugar,
obter os incentivos destinados à melhoria das condições de habitabilidade. O projeto,
nesta microbacia, aparenta seguir caminho sustentável e firme, pois os membros da
associação já tomam diversas iniciativas relativamente autônomas, externas ao
“Microbacias-2”, embora mantendo diversas atividades previstas por tal política. Há
uma intensa ação destinada à preservação das fontes de água e diversas famílias se
beneficiaram dos incentivos para realizar melhorias em suas casas. Mas as matas ciliares
ainda não foram reconstituídas nos cursos d’água existentes e a coleta seletiva de lixo,
em acordo com a prefeitura, está para ser iniciada brevemente.
Demonstrando a autonomia organizacional formada, a associação é que estabeleceu a
lista de prioridades entre os participantes, para indicar as famílias rurais que receberiam
primeiramente os incentivos, não havendo recursos disponíveis para todos. Uma
comissão formada visitou todos os moradores e discutiu os critérios e, desta forma, não
houve sequer reclamações, no final, quando a lista e seu ordenamento foram
divulgados. Já existem compras em conjunto com o intuito de reduzir os custos, através
de descontos expressivos, como foi a compra de 2 mil sacos de uréia para a associação,
20
gerando desconto de 12% em relação aos preços praticados pelo comércio em geral.
Trata-se, em resumo, de um caso onde o projeto estimulou a formação de uma
associação que, recolhendo as habilidades e a compreensão de diversos membros, vem
permitindo o surgimento de novas iniciativas e a mobilização de recursos em outras
fontes.
No vizinho município de Tunápolis, os agricultores, que não tinham nenhuma
experiência organizativa anterior, foram motivados pelo projeto a constituir uma
cooperativa, após as discussões iniciais, durante as quais decidiram pela priorização de
atividades que pudessem recuperar a capacidade hídrica na microbacias e ações
correlatas nesta direção. Como segunda prioridade decidiram pelos incentivos
destinados às reformas das casas, mas logo resolveram também investir em ações que
pudessem agregar renda, daí surgindo a idéia de formar uma cooperativa, pois aquela
em que participavam não vinha produzindo resultados financeiros atraentes.
Inicialmente com 48 associados, atualmente já são 150, e como existem 118 famílias na
microbacia (“Lageado do Perau”), esta adesão indica que a nova cooperativa já atrai
agricultores de regiões vizinhas. Por enquanto, o grupo consegue apenas vender em
grupo o leite recolhido, mas esta iniciativa já permitiu uma significativa elevação no
preço pago aos produtores, pois o grupo consegue negociações vantajosas com a
empresa compradora. A nova forma organizativa, além disto, vem estimulando a coesão
social entre os moradores e até mesmo atividades esportivas entre comunidades de
microbacias já foram realizadas. Há muito otimismo em relação ao futuro e os
agricultores foram unânimes em relacionar o que fazem com o “Microbacias-2”,
enquanto criticam fortemente a primeira etapa do projeto, que inicialmente conseguiu
“abrir” apenas uma microbacia. Asseguram que a maior mudança foi o uso de
metodologias mais participativas. Segundo um participante da reunião, “Hoje, todos
têm que participar (...) o Microbacias-2 é de baixo para cima, os benefícios são muitos,
cursos e outras coisas”. Em relação ao futuro, houve unânime manifestação em torno da
necessidade de melhorar as condições tecnológicas da produção, com melhoria das raças
leiteiras da atividade, dos pastos e também a compra de maquinário para a cooperativa
para produzir subprodutos e outras iniciativas que ampliem a margem obtida pelos
associados.
Finalmente, a visita à região terminou com outro caso, no município de Descanso, onde
ocorreu reunião com agricultores da microbacia do Lageado Taquara. Uma situação
bastante diversa, ainda muito embrionária e com participantes mais desinformados,
inclusive com níveis de escolaridade bem mais baixos. Na microbacia ocorre com mais
intensidade a desistência da atividade e o abandono da região, alguns não são
proprietários de terras e não existe nenhuma tradição, qualquer que seja, de cooperação
comunitária. A exigência do projeto, no tocante à organização, é neste caso muito mais
complexa e de longo prazo. Ainda assim, a associação foi formada e já produz alguns
resultados iniciais. A maior parte dos participantes da reunião era formada de mulheres,
as quais ressaltaram que o maior ganho do projeto era “a amizade”, sugerindo que antes
nem mesmo se conheciam. Conforme a opinião de uma participante, “Nossa
comunidade é fraca e desunida, depois do Microbacias deu uma união que tá louco!”.
São poucos ainda os participantes (apenas 12 famílias) e o projeto, que já atua por quatro
anos na localidade, tem desenvolvido especialmente ações em termos de melhoria das
21
habitações, hortas comunitárias e atividades para garantir acesso às fontes de água.
Claramente, o projeto trouxe muito mais auto-estima para as famílias residentes,
segundo diversos testemunhos: “O pessoal da Epagri está ajudando muito, nós nunca
tivemos ajuda antes”; “Para quem nunca tinha nada, agora tá sobrando” e, referindo-se
às reações encontradas entre comerciantes locais, quando o grupo realizou uma compra
conjunta, outro agricultor afirmou com alegria que “nós somos iguais no comércio. Hoje,
depois da negociação da primeira compra, coisarada, entrar na Cooper [a cooperativa
local], dá p’ra dizer, de noventa e nove por cento, é muito melhor”.
Em resumo, a experiência do “Microbacias”, em sua primeira etapa e agora no segundo
ciclo, nesta região, apresenta resultados extraordinários em termos do desenvolvimento
da capacidade associativa da maioria das famílias rurais e do crescente protagonismo
empreendedor das quais têm sido capazes. São inúmeras iniciativas arquitetadas com
freqüência incomum, gerando entusiasmo, otimismo e esperança entre as famílias rurais.
O projeto também não perdeu os focos produtivo, ambiental e agronômico e seus
componentes têm sido ativados com alguma consistência similar. Há, contudo, uma
crescente preocupação em relação às atividades propriamente econômicas que possam
ser ainda desenvolvidas (e previstas no projeto), em face das características dos
mercados regionais e das chances dos agricultores, que não são muitas, de desenvolver
iniciativas novas e mais recompensadoras, do ponto de vista dos incrementos de renda
que almejam. Adicionalmente, a região é laboratório fértil para o estudo dos fatores que
impulsionam e facilitam a formação de coletivos sociais em torno do projeto, assim
como permitiria identificar os principais entraves que dificultam a constituição das
associações, tal a diversidade de situações encontradas nas diversas microbacias já
trabalhadas pelo “Microbacias” catarinense.7
3.2 São Paulo: a evolução de um projeto conservacionista para um projeto de
desenvolvimento rural?
As evidências observadas em São Paulo, por seu turno, apontam em direções distintas
da lógica que os projetos sulistas observaram em sua história e refletem, certamente,
conjunturas sociais e políticas estaduais diferentes. O projeto em São Paulo, por certo,
não ignora os impactos da acentuação de processos democratizantes recentes no Brasil, o
que abre espaços políticos para grupos sociais mais pobres e estimula a participação
social em diversos níveis e esferas de políticas setoriais. Em resumo, o projeto paulista
repercute uma conjuntura mais atual que é relativamente distinta daquelas que
determinaram a conformação técnica e operacional dos dois projetos iniciais, o
“Microbacias-1” em Santa Catarina e o “Paraná Rural”, os quais foram desenvolvidos
em boa parte da década de 1990.
7
Na preparação deste estudo, ocorreu também o levantamento de dados relativo a outra situação
excepcional de “dinâmica organizativa”, o município de Angelina, situado a, aproximadamente, 80
quilômetros da capital do estado. Neste município as famílias rurais envolvidas no projeto desenvolveram
diversas atividades engenhosas de participação (como os chamados “grupos temáticos”), entre diversas
outras iniciativas. Por razões de espaço, contudo, o caso de Angelina não pode ser descrito neste
documento.
22
Quando os projetos inicialmente implantados nos estados do Sul foram renovados,
sendo transformados no “Microbacias-2” e no “Paraná Doze meses”, respectivamente,
eram conjunturas que se alteravam, passando a repercutir aspectos sociais mais
fortemente e estimular políticas especificas destinadas aos segmentos sociais rurais mais
pobres, com expressões como “geração de renda” ou “agregação de valor” passando a
fazer parte de um jargão obrigatório das políticas governamentais. Assim, o caso
paulista, por ter sido formatado nesta conjuntura mais recente e ser arquitetado em
estado onde os aspectos sócio-políticos surgiram ainda mais fortemente, sua estrutura
técnica e operacional já nasce com uma compreensão sócio-ambiental mais clara (e não
estreitamente apenas agronômica) e com objetivo igualmente explícito de priorização
das camadas sociais mais pobres. Com o passar dos anos de sua implementação,
rapidamente assumiu dinâmicas mais ativas e socialmente enraizadas, em diversas de
suas regiões. Desta forma, o que este estudo aponta é que existem diversas evidências de
que o projeto em São Paulo agrega elementos, de diversas ordens, para avançar
rapidamente para um projeto típico de desenvolvimento rural, que evite sua
transformação em “projeto social”, com algum viés assistencialista, como parece ser o
caso catarinense, e se constitua em um verdadeiro projeto de desenvolvimento rural,
talvez a primeira experiência digna do nome no Brasil.
(a) Dinâmicas associacionais e suas diferenças: a região de Botucatu
Nesta região foi possível conhecer situações locais bastante contrastantes em relação ao
desenvolvimento do projeto em São Paulo. A coordenação regional é formada por
profissionais de sólida experiência, o que traz uma coordenação estratégia consistente na
região, sendo aproveitadas as oportunidades criadas nos municípios e mobilizadas
famílias rurais que possam ser proativas em favor dos objetivos gerais. São 41
municípios, separados em duas partes contrastantes, uma com solos férteis (terra roxa) e
outros com solos empobrecidos. A cafeicultura antes dominava amplamente a cena
rural, mas hoje se observa uma transição em direção a diversas atividades
agropecuárias. Existe um conselho regional bastante ativo, tido como caso excepcional
no estado, pois é ativo e discute regularmente ações, atividades, estratégias e desenvolve
propostas e estudos.
Em Laranjal Paulista, por exemplo, existe uma notável situação de uma associação
extremamente ativa no município (no Bairro Boa Vista), formada a partir da instigação
gerada por um diagnóstico participativo. Antes um município quase totalmente tomado
pela cafeicultura, hoje a agricultura é diversificada, inclusive com a expansão da canade-açúcar, fenômeno, aliás, que parece ubíquo em todo o estado. O município,
curiosamente, se especializa na fabricação de brinquedos, e existem 38 indústrias de
porte pequeno e médio neste setor, o que irriga monetariamente a cidade, existindo 7
bancos para uma população de 27 mil habitantes. Na microbacia visitada reina
entusiasmo surpreende, e o relato das iniciativas até aqui realizadas situa-se muito
acima do esperado, a criatividade sendo marcante nas ações realizadas. Existindo
problemas de roubos das propriedades, por exemplo, uma articulação com a prefeitura
instituiu a presença de guardas municipais, mas a associação comprou um veículo que
circula no bairro (como são chamados, em São Paulo, os distritos rurais). Até mesmo a
iniciativa de colocação de placas de identificação das ruas e o endereçamento postal foi
23
realizado, em iniciativa inédita, talvez em todo o Brasil. A ênfase tem sido no campo
ambiental, com notável articulação com as ações municipais e a Secretaria Municipal de
Educação, especialmente através do projeto “Aprendendo com a natureza”. Os alunos
de diversos níveis visitam as microbacias, onde são recebidos pelos agricultores, os
quais explicam as diferentes ações implementadas, o que é suplementado pela
impressão de cartilhas sobre o assunto e, também, a instituição de um dia dedicado ao
meio ambiente, com destaque para o projeto microbacias. Um caso destacado, onde a
coesão social das famílias participantes parece ser o elemento mais central para explicar
a adesão e a energia dedicadas ao projeto, pois, nas palavras de um entrevistado, “o
microbacias ajudou o agricultor a ver o vizinho como companheiro, não um
concorrente”.
Não muito distante, no município de Pereiras, na microbacia Barra do Choça, o projeto
encontra dificuldades muito maiores e vem sendo desenvolvido graças à pertinácia,
talvez teimosia, de um casal jovem, que entendeu rapidamente as chances abertas pelo
“microbacias” e, com determinação, vem insistindo com os vizinhos e moradores, para
participarem da associação que foi formada e também para implantarem diversas ações
previstas. O casal é tão atuante que já faz parte da diretoria da recém-formada federação
que, no plano estadual, pretende congregar os interesses das associações de microbacias
que vão sendo formadas ao longo do tempo. Impressiona a força da vontade da senhora
envolvida, pois julga que o projeto apresenta possibilidades muito amplas e, de fato,
vem reconstituindo até mesmo algum sentido de vida rural. Segundo diz, “com o
projeto microbacias, a nossa microbacia ressuscitou, havia desânimo. Ressurgiu, como
fênix”. Esta senhora mantém os registros da associação em sua casa, é bastante ativa e se
corresponde por correio eletrônico com os responsáveis regionais do projeto, não
hesitando também em escrever para outras autoridades do setor agrícola do estado,
reivindicando ações e apresentando novas demandas. Parece ser um caso que,
novamente, demonstra a importância de moradores de microbacias cuja vontade de
participar e de ativar os mecanismos dos projetos-MB acaba sendo a força principal para
materializar o nascimento do projeto na microbacias e o seu desenvolvimento. O
casamento da intensa ação proativa deste casal, associado à ação extensionista local e
regional de extrema qualificação “fazem a diferença” neste caso, onde uma primeira
impressão sugeriria que o projeto, em tal microbacia, dificilmente sairia de resultados
frágeis (inclusive porque neste caso a prefeitura é praticamente omissa).
Ainda na região de Botucatu, contudo, verifica-se um outro caso excepcional. Um
pequeno município de pouco menos de cinco mil habitantes situado na região de
Botucatu, o desenvolvimento do “microbacias” em Pratânia reflete um caso emblemático
de convergência virtuosa dos diversos fundamentos do projeto-MB em São Paulo. Tratase de município recém-emancipado (1997), no qual a existência de algumas poucas
indústrias existentes, como diversas pequenas indústrias coureiras, além de uma
engarrafadora de água mineral (pois o município localiza-se no início norte do aqüífero
Guarani e a extração pode ser obtida com até 50 metros) são suficientes para garantir um
orçamento municipal em nível adequado para prover o governo municipal de recursos
financeiros para realizar as obras principais e oferecer os serviços básicos mais urgentes.
Desta forma, Pratânia apresenta, como ilustração, todo o seu esgoto tratado, as duas
24
escolas existentes têm poucos alunos (e a oferta de vagas é sobrante), a infra-estrutura
urbana é excelente, e o desemprego é praticamente zero.
Na área rural existem 260 propriedades, mas a maioria dos agricultores mora na própria
cidade. Foram realizadas tentativas, infrutíferas, de organizar associações de produtores
rurais em anos recentes, mas somente com a abertura oferecida pelo “microbacias” é que
nasceu a primeira associação de produtores, em 2004. Desde então as iniciativas
proliferaram, em três microbacias que o projeto alocou recursos para serem implantadas,
incluindo uma estrada readequada. Tal dinamismo decorre, em particular, do notável
dinamismo empreendedor do seu jovem presidente, filho de uma família de produtores
tradicional na região, cuja fazenda de café (onde hoje se localiza Pratânia) foi comprada
no início da década de 1950.
Este caso é paradigmático porque condensa todos os pilares necessários que, somados,
conduzem ao sucesso do programa: dos escalões gerenciais estaduais do projeto a uma
extraordinária capacidade gerencial no plano regional e uma prefeitura aberta às
demandas do projeto e perceptiva em relação às suas potencialidades, para tanto
oportunizando os recursos de infra-estrutura, financeiros e outros. Sobretudo, o
recrutamento e a adesão de uma família rural influente no município, que “abraçou” o
projeto, vendo-o como uma oportunidade para obter melhorias em diversas áreas
produtivas e sócio-ambientais para os agricultores do município. Dentro de tal
convergência de interesses e envolvimento, o projeto deslanchou rapidamente a partir
de 2004, e angariou rapidamente novas adesões dos produtores, inclusive alguns que se
tornaram entusiastas defensores do campo propriamente ambiental, participando de
iniciativas em educação ambiental e cooperando fortemente com a disseminação de
iniciativas que possam enraizar uma crescente conscientização ambiental no município.
Um dos membros da associação, entusiasta das ações ambientais, mas um agricultor sem
tal percepção poucos anos atrás, foi incisivo: “me considero um ambientalista. O
programa de microbacias é um divisor de águas... as coisas clarearam”. A associação
formada a partir do estímulo do projeto, e que vai criando um sentido de identidade
(inclusive existindo camisetas próprias), já faz parte da organização estadual que
congrega as associações de microbacias. Em relação às iniciativas do projeto no
componente de manejo de recursos naturais, por exemplo, é importante notar que
praticamente não existe uma situação conhecida de propriedade com marcas mais
visíveis de erosão e, da mesma forma, praticamente todas as matas ciliares foram
implantadas, sem permitir a invasão de animais.
A associação, como parte de uma dinâmica de crescente autonomia esperada pelo
desenho técnico do projeto, vem desenvolvendo diversas iniciativas não previstas pelo
“microbacias”. Como ilustração, implantou-se a produção de ervas (de Jambú), gerando
40 novos empregos. Também tem sido difundido o plantio do maracujá e a compra de
insumos coletiva, com a obtenção de descontos que variam de 10%a 20% dos preços
vigentes no mercado. Diversos equipamentos já foram comprados sem os incentivos do
projeto, por iniciativa da nova organização dos agricultores, como plantadeira de plantio
direto, conjuntos de irrigação, pulverizador e câmaras de secagem. A diretoria está
atualmente obter certificação para o café e a produção de ervas, buscando melhor
remuneração daqueles produtos. A parceria com a prefeitura tem sido proveitosa, com
25
diversas iniciativas convergentes, como oferta subsidiada de óleo diesel, compra de um
resfriador e iniciativas na coleta seletiva do lixo. Atualmente, estão sendo implantados
“lixões” no interior para que os produtores possam depositar restos de produtos não
recicláveis e o lixo poluente em geral. Já se chegou ao ponto, inclusive, de adquirir um
plano de saúde privado, que atende 52 famílias beneficiárias participantes.
São iniciativas que foram despertadas pela “dinâmica sócio-ambiental” que o projeto
pode potencialmente estimular, fazendo deste um caso emblemático. Contudo, não
existe ainda, em Pratânia, uma clara percepção acerca de uma ação concertada em torno
de uma estratégia de desenvolvimento rural, mas as raízes mais sólidas nesta direção já
foram lançadas.
(b) O sucesso do PEMBH em regiões “inesperadas”: Dracena e General Salgado
Provavelmente, a região de Dracena é a que vem apresentando os melhores resultados
até aqui alcançados pelo projeto em São Paulo. Aquela parte do estado é de ocupação
produtiva relativamente recente, tendo se consolidado com a expansão da cafeicultura
nas décadas de 1950 e 1960. Eventos climáticos, contudo, como uma desastrosa geada
ocorrida em 1975, destruiu parte expressiva dos cultivos de forma definitiva (outra
geada ocorreu em meados da década seguinte), e tal fato, somado à queda real dos
preços pagos aos produtores ao longo dos anos oitenta, foi desenvolvendo um
sentimento de desestímulo entre os produtores da região, nos anos mais recentes, em
particular durante a década passada. Com a maior parte (83%) das propriedades rurais
tendo 50 hectares ou menos, a região passou a mostrar fortes indicadores de migração
rural-urbana e diminuição da população dos municípios. Os produtores remanescentes,
fortemente descapitalizados, passaram a explorar, principalmente, a produção de
alimentos, grande parte dedicada ao autoconsumo. Tentativas de introduzir alternativas
produtivas não vingaram (como a fruticultura) e, desta forma, a chegada do projeto-MB
foi recebida inicialmente com ceticismo, mas também com alguma esperança, pois
poderia ser o derradeiro esforço no sentido de reconstituir a agricultura na região. Sob
tal quadro, um exame preliminar dificilmente indicaria ser esta uma região onde o
projeto poderia prosperar, em face de tantas dificuldades e um generalizado clima de
desânimo entre as famílias rurais. Provavelmente por esta mesma razão, ou seja, não
existir nenhum sinal visível de saída para a decadência econômica então vigente, que o
“Microbacias” paulista encontrou na região um campo fértil para recolher os
agricultores que ainda acreditavam em sua atividade, governantes locais dispostos e um
rol de experimentação e criatividade que o projeto propõe em suas diversas ações.
Um grande esforço foi inicialmente realizado para capacitar os técnicos da CATI que
participariam do projeto, seguido de iniciativas de divulgação junto aos conselhos
municipais de desenvolvimento rural e, em especial, com os prefeitos, pois os
municípios precisariam contratar técnicos que seriam conveniados para integrar o
“microbacias”. Atualmente, praticamente nove em cada dez técnicos participantes são
pagos pelos municípios da região, atuando sob a coordenação do estado. Já foram
“abertas” 45 microbacias e, do total de aproximadamente 8,7 mil propriedades da
região, 4.300 já estão sob a lógica do projeto e a noção de “microbacias” já se encontra
bastante popularizada em toda a região.
26
As visitas na região foram suficientemente demonstrativas das possibilidades do
projeto, consideradas as situações diferenciadas dos municípios visitados, dois deles
menores (São João do Pau D’Alho e Tupi Paulista) e outro de tamanho médio, com
aproximadamente 18 mil habitantes (Junqueirópolis). Nesses casos, não obstante um
histórico anterior durante o qual alguns tipos de organizações foram formados
(cooperativas, em especial), mas não prosperaram, o “microbacias” tem conseguido, no
entanto, estimular a formação de associações que lentamente assumem maior
protagonismo e ampliam sua capacidade de iniciativa. Em São João, por exemplo, são
visíveis o entusiasmo e o otimismo, reinantes entre os agricultores que integram a
associação de produtores. Foi com grande orgulho que relataram todas as atividades e a
associação dos produtores poderia ser, talvez, o caso de maior sucesso em todo o estado,
pois comanda impressionante parque de máquinas e equipamentos (proporcionalmente
ao número de agricultores do município). O técnico que acompanha a associação, por
sua vez, é de notável dedicação e comprometimento, igualmente excepcional,
relativamente à média esperada em tais casos. Sobre todos esses aspectos, o prefeito,
igualmente um produtor, talvez seja o maior entusiasta, em relação às possibilidades
oportunizadas pelo “Microbacias”. Trata-se, portanto, assim como o caso de Pratânia
acima descrito, de uma situação virtuosa, na qual convergem todos os cinco pilares
(enfatizados no final deste documento) que sustentam o sucesso de um programa de
microbacias como o paulista. A experiência de São João, sob todos os aspectos, mereceria
divulgação bem mais ampla, pois é demonstrativa de como um ambiente, em princípio
hermético às mudanças, por seu histórico anterior, pode produzir rápidos resultados,
gerando alternativas produtivas e oferecendo situações concretas às famílias rurais, no
sentido de ampliar seus níveis de renda, ampliar os níveis gerais de prosperidade e,
sobretudo, enraizar esperanças entre as famílias rurais, requisito fundamental para a
manutenção da atividade nos anos vindouros. 8
4. Desafios para o desenvolvimento dos projetos
A experiência acumulada dos projetos-MB no Brasil, desde a implantação inicial do
projeto no Paraná, seguida pelos demais, parece apontar para diversos desafios que são
comuns a tais iniciativas, moldadas pelas características políticas e administrativas
vigentes no Brasil, apenas modificando-se particularidades de fácil identificação,
derivadas de histórias específicas de cada estado. Desta forma, ainda que sob o risco de
simplificação demasiada em algumas partes, talvez seja possível indicar alguns dos
principais desafios mais usuais com os quais se defrontam tais projetos, quando
inicialmente elaborados e, posteriormente, durante sua implementação. Alguns desses
desafios são passíveis, talvez, de prevenção e superação prévia, eliminando-se
8
Por limitação de espaço, não se comentará nesta parte os demais casos visitados na região de Dracena, especialmente
o notável caso de Junqueirópolis, onde nasceu a federação que atualmente envida esforços para agregar os interesses
das associações de microbacias do estado. Da mesma forma, os casos visitados na região de General Salgado, outra
regional de grande destaque no desenvolvimento do projeto paulista. Nesta última região, foram visitados os
municípios de Nhandeara, Lourdes, Auriflama, Magda e Sud Menucci, além de General Salgado. Há diversas lições
extraídas dessas visitas, com situações de grande destaque. Os desafios, o aprendizado e as recomendações indicadas na
parte final deste documento, em grande medida, refletem essas situações, onde diversas situações empíricas foram
contribuintes importantes para a formação de novos argumentos sobre o desenvolvimento do “Microbacias” no estado.
27
problemas posteriores. Outros, nem tanto, pois entranhados em comportamentos
institucionais e os chamados “vícios” que tipificam a história da burocracia
governamental brasileira.
Arrolam-se, a seguir, alguns dos principais desafios
percebidos a partir do aprendizado dos “microbacias” já concretizados no país. São os
seguintes:
(a) a elaboração de um projeto com desenho técnico e operacional com alguma flexibilidade.
Talvez seja este o mais evidente de todos os desafios dos projetos, pois aqui se esbarra
com uma estrutura normativa e legal que usualmente bloqueia a permanência de
“espaços de flexibilidade” no desenvolvimento de tais políticas governamentais. Há
uma tendência, quase inercial, no âmbito de nossas leis e mecanismos administrativos,
de “cercar” ex-ante todas as possibilidades que, assim se assume, possam surgir
concretamente, criando uma espécie de camisa-de-força que, nas situações reais, acaba
sendo limitante e cerceia as infinitas variações encontradiças no mundo real. É, portanto,
essencial, na formatação dos projetos, garantir as chances de alguma flexibilidade
operativa, para lidar com circunstâncias novas e inesperadas que, inevitavelmente,
surgem ao longo da implementação de tais iniciativas. Esta flexibilidade, contudo, não
pode significar o abandono da “lógica do projeto”, especialmente a sinergia esperada
entre os diversos componentes e os resultados interdependentes e abrangentes
esperados. Significa, apenas, que os operadores deveriam ter maior capacidade decisória
dentro de um espaço possível e legalmente definido, para lidar com situações distintas
encontradas.
Como ilustração, citam-se dois exemplos. Primeiramente, tome-se a arbitrária definição
legal sobre a exigência de reflorestamento com espécies nativas em torno dos cursos de
água, em distância sugerida de 30 metros. Trata-se de uma exigência legal, cuja
magnitude numérica jamais foi devidamente explicada, representando, provavelmente,
uma média originalmente pensada por seus formuladores, em função de alguma
experiência de campo. A realidade, contudo, impõe variações quase infinitas e,
particularmente no âmbito de pequenas propriedades, esta exigência, em inúmeras
situações, não pode ser aceita pela família rural, pois implicaria em perda de
significativa área de produção ou de pastagem. Cria-se, desta forma, um impasse ou,
potencialmente, um conflito, se a fiscalização da polícia ambiental for acionada. Neste
caso, o projeto, em acordo com as autoridades estaduais do meio-ambiente, deveria
prever alguma margem de flexibilidade para realizar a recuperação de matas ciliares
dentro “do possível”, a partir da especificidade de cada caso, sem uma normal geral
obrigatória que, na prática, acaba sendo inviabilizada pela resistência esperada de
muitos dos proprietários dos imóveis rurais. Esta possibilidade de acordos operacionais
pode atualmente ser formalizada e, assim, é um exemplo de flexibilidade almejada na
implementação.
Um segundo exemplo de flexibilidade que projetos com equipes profissionais
consolidadas (como o são os casos catarinense e paulista) poderia avançar diz respeito
ao grau de descentralização de tais iniciativas. Seria possível, por exemplo, atribuir às
equipes regionais maior capacidade de decisão, permanecendo a gerência estadual em
suas tarefas, principalmente, de supervisão. Decisões, inclusive, financeiras, que possam
garantir maior aderência às prioridades que são realmente mais sentidas no plano
28
regional, atribuindo aos operadores regionais maior capacidade de diálogo político com
autoridades municipais, exatamente porque teriam mais a oferecer imediatamente, em
negociações com os atores regionais.
Esta flexibilidade se torna necessária por diversas razões. A mais óbvia delas se refere,
claro, às variações encontradas no mundo rural, em todos os aspectos, e não apenas os
ecológicos e produtivos, mas também em relação aos aspectos sociais, econômicos e
políticos. Comandando maior flexibilidade, a ação extensionista regional poderá
aprofundar sua capacidade de intervenção e angariar mais rapidamente os apoios
necessários, formar alianças e instituir mecanismos de convencimento das famílias
rurais com maior objetividade e agilidade. Outra razão necessária para tal flexibilidade
diz respeito ao que foi mencionado na primeira seção deste estudo, qual seja, a crescente
politização dos ambientes rurais brasileiros. Em face do aprofundamento de tal processo
de disputas entre os grupos sociais, é mister que o projeto (no plano estadual, mas
particularmente no plano regional, talvez também no plano local) mantenha maior
capacidade de ação política e de articulação de atores que vem sendo formados, como
novas organizações, cooperativas, associações diversas, movimentos sociais e outras
capacidades sociais coletivas que surgem em tais meios, exigindo a ampliação de igual
capacidade dos operadores do projeto, no sentido de lidar com as demandas e interesses
novos que vão coalescendo gradualmente em ambientes rurais.
(b) Em decorrência do acima exposto, talvez o segundo maior desafio de projetos de tal
natureza seja a capacitação das equipes de profissionais que atuam em todos os níveis,
ligados formalmente ao governo estadual ou, então, contratados em tempo definido
pelos municípios, como parte do tempo de implementação dos projetos-MB. Se a “ação
extensionista”, conforme defendido neste documento, tem centralidade decisiva no
sucesso dos projetos (conforme a seção 5.1), então a formação técnica para o
desempenho de tarefas tão complexas parece ser mais do que necessária, lembrando
ainda que tal formação, sequer remotamente, tem sido oferecida pelas universidades de
onde são oriundos esses profissionais (quando de nível superior), pois são instituições
ainda orientadas por visões passadistas da Agronomia. Este tem sido outro formidável
desafio no curso da experiência dos projetos, tornado ainda mais urgente com a
crescente tendência de transferir aos governos locais a contratação de parte expressiva
dos técnicos que operam no plano local. Como tais contratações ocorrem em todos os
meses, organizar etapas de capacitação representa um desafio gigantesco para o projeto,
em sua lógica mais geral e estadual, pois não tem sido possível oferecer cursos de
capacitação sob forma contínua, ao longo do ano. Desta forma, podem ocorrer inúmeros
casos não desejados de técnicos locais contratados pelas prefeituras que passam a atuar
imediatamente, sem passar pela capacitação, assim permanecendo por longo tempo,
antes de terem a chance de participar dos cursos preparatórios. Ambos os casos
analisados, neste particular, vivenciam tal problema, ainda sem solução à vista. Ao que
tudo indica, também neste caso, se equipes regionais puderem ser reforçadas, talvez a
solução, não a ideal, mas a possível, seja exatamente transferir tal capacitação, pelo
menos em parte, para a responsabilidade das equipes regionais.
A ampliação e maior sofisticação, multidisciplinar e abrangente, da capacitação técnica
dos profissionais que atuam nos projetos, à luz do exposto anteriormente, não necessita
29
maior detalhamento neste documento. São profissionais que precisam ser capazes de
propor técnicas inovadoras para os produtores e famílias rurais sobre a lógica sistêmica
da ação extensionista em microbacias, o que exige conhecimento cientifico provindo de
diversas disciplinas cientificas, da área de solos à hidrologia, da silvicultura às
disciplinas mais ligadas à produção, seja vegetal, seja animal. Somente aqui já se exige
amplo conhecimento técnico, mas os “microbacias”, de fato, exigem ainda mais, pois os
técnicos precisam ser também capazes de mobilizar socialmente as famílias residentes
(ou atuantes como produtores) nas microbacias trabalhadas, cooperar em sua
organização social e, eventualmente, até mesmo opinar em delicadas questões políticas,
que inevitavelmente surgirão, assim que as famílias rurais beneficiárias se sentirem
fortalecidas o suficiente para estabelecer diálogos com outras forças municipais (a
prefeitura, em especial), reivindicando outras ações externas aos projetos. São
profissionais, portanto, que precisarão demonstrar conhecimento e habilidades amplos,
em diversos campos do conhecimento, além de capacidade de adaptação, flexibilidade e
tirocínio político que não criem entraves e bloqueios, quando as articulações municipais
e regionais se apresentarem.
Tais técnicos “multidisciplinares” e portadores de tantas habilidades existem na vida
real? Os projetos demonstram que sim, mas são poucos, quase excepcionais. Desta
forma, também a experiência dos projetos sugere que a saída operacionalmente mais
viável é, novamente, formar equipes regionais multidisciplinares, reunindo os melhores dos
campos científicos mais diretamente relacionados aos projetos. Esta equipe, se coesa e
afinada com o projeto, capaz de perceber todas as nuances da implementação dos
“microbacias”, mas também capaz de avaliar estrategicamente as potencialidades
abertas, poderá desempenhar papel decisivo, provavelmente o mais importante, para
reconstituir as áreas rurais como ambientes sociais recompensadores não apenas pelo
foco dos sistemas produtivos, formadores de prosperidade econômica, mas, também,
cooperar para o desenvolvimento de comunidades rurais crescentemente organizadas
socialmente e desenvoltas o suficiente para promover esperança e otimismo entre as
famílias rurais.
(c) Sob tais desafios, é importante ressaltar, igualmente, que a produção de conhecimentos
exigida pelos projetos, oriundas da “pesquisa”, não tem sido suficiente e nem adequada. Talvez
até não seja exagero enfatizar que esta conexão entre as atividades de pesquisa e a
implementação dos projetos, de fato, até aqui não funcionou, em praticamente em
nenhum dos casos concretos, incluindo o paranaense em seus tempos iniciais. As
atividades de pesquisa, provavelmente em face de suas especificidades e do tipo
usualmente realizado no Brasil (muitas vezes distantes das necessidades mais imediatas
e sem conhecimento de realidades locais), tem tido pouca, ou quase nenhuma,
incidência nos projetos-MB, e sua contribuição tem sido escassa. Este é um desafio
permanente, pois são políticas que exigem conhecimento científico continuado, com
novas perguntas surgindo a cada momento e, nem sempre, as atividades de pesquisa
respondem a contento.
Ao que parece, a solução, neste caso, não é manter um “serviço de pesquisa” colado às
atividades de extensão rural e aos projetos, como é o caso catarinense, sem resultados
claramente satisfatórios até aqui, mas operacionalizar as necessidades de conhecimento
30
novo de outra forma, sob licitações gerais, com prazos definidos, clareza quanto aos
produtos esperados e sem optar por um “corporativismo estadual”. Ou seja, ter a
ousadia de propor à área de pesquisa existente no Brasil (e não apenas nos estados onde
se situam os projetos), uma vez definidos os problemas a serem pesquisados, abrir
concursos e esperar pelas ofertas de investigação de diferentes grupos existentes no país.
Se definidos a partir de termos de referência bem preparados, não há razão maior para
esperar que não produza os resultados esperados. O que parece ser pouco razoável é a
manutenção de um componente especifico para a “pesquisa”, no âmbito dos projetos
que, de fato, pouco funciona, é lento em demasia e também distanciado da “dinâmica”
dos projetos, com pesquisadores que são, muitas vezes, mal informados sobre a história
operacional de tais políticas governamentais e sua operacionalidade.
(d) Tais desafios acima citados indicam, claramente, para um desafio, preliminar e talvez
o mais problemático de todos, qual seja, esforços que garantam a preparação prévia,
cuidadosa e articulada, do projeto. Não se trata simplesmente de uma formulação acaciana,
mas perceber que a complexidade dos projetos-MB exige, preliminarmente, uma
capacidade de prever os mais diversos cenários de desenvolvimento, em distintas áreas
de conhecimento ou de ação governamental e administrativa, incluindo igualmente
algum exercício de antevisão sobre comportamentos sociais e institucionais. A
preparação dos projetos, portanto, requer o recrutamento de equipes técnicas que sejam
as melhores disponíveis, e sua tarefa será construir um instrumento técnico e
operacional que reduza ao mínimo as surpresas que surgem ao longo da
implementação. Como se sabe, uma vez iniciado, as gerências principais e regionais,
engolfadas pela dinâmica gerada, quase nunca terão mais tempo e oportunidades para
corrigir erros de formulação inicial e, assim, este desafio tem imensa relevância para
garantir o sucesso de tal iniciativa. O primeiro ciclo de um “microbacias”, desta forma,
irá consolidar competências técnicas que passam a ser cruciais, isto é, uma capacidade
instalada que, ocorrendo um segundo projeto, representarão a certeza de sucesso em
período de tempo relativamente curto.
(e) outros desafios, de maior ou menor importância, podem ser citados e sua existência
não deveria surpreender, em projetos de tal envergadura técnica. Não podendo discutir
todos os desafios mais evidentes neste breve documento, citam-se ainda três deles nesta
seção especifica. O tema dos incentivos do projeto, por exemplo, é um dos maiores
desafios na formatação dos projetos. Não apenas enfrentam, às vezes, bloqueios legais,
como foi o caso de São Paulo, que precisou modificar uma lei existente, para viabilizar
os incentivos, mas, em especial, sua natureza e magnitude. Se forem bem escolhidos e
representarem sentidas demandas sociais, os incentivos poderão representar atrativos
suficientemente fortes para mobilizar as famílias beneficiárias e garantir a adesão
crescente de atores indiretamente relacionados, como os governos locais e outros. Como
são projetos destinados, particularmente, aos segmentos sociais mais pobres, incentivos
que se destinam à melhoria das condições de moradia e vida em geral (como construção
de fossas, banheiros, reformas parciais das habitações, por exemplo) quase sempre
conseguirão atrair os potenciais beneficiários.
Contudo, esses incentivos, se permanecerem apenas neste “foco social”, correrão o risco
de mudarem a orientação técnica do projeto. Tornando-os assistencialistas, conforme
31
discutido anteriormente. Neste sentido, na seção final deste estudo, recomenda-se uma
tentativa de segmentar o componente dos incentivos, em acordo com a sua maior
atratividade social, mas igualmente vinculando-o à aceitação e implantação de outros
componentes “menos atraentes”, em geral, como forma de garantir a implementação
consistente de todas as ações previstas. Como se argumentará, talvez seja a única forma
de garantir a implementação da “lógica sistêmica” dos projetos, sobretudo na
manutenção de uma ação ambiental que não se restrinja a um mero “foco”, mas seja
ação transversal que perpasse todos os momentos de implementação do projeto e desta
forma garanta, paulatinamente, a adesão das famílias rurais (e outros atores sociais
indiretos) a uma nova compreensão sobre a agricultura e suas possibilidades técnicas e
produtivas.
(f) dentro da lógica de evolução prevista pelos projetos-MB, como antes enfatizado, é
esperado que tais políticas acabem “transbordando” o meramente agronômico, ou o
sócio-ambiental e, gradativamente, incorporem novas capacidades sociais, mobilize as
famílias rurais para a sua organização social e, assim, são projetos que, necessariamente
(inclusive como medida de seu sucesso), também requerem ações no campo político. As
conseqüências e desafios tornam-se infinitamente mais difíceis, quanto tal passo é dado,
e a organização social das famílias rurais das microbacias passa a ser encorpada e sua
capacidade de discutir e aprovar novas demandas e disputá-las no plano municipal se
acentua. Neste caso, o projeto pode passar por situação de extrema complexidade,
especialmente de articulação política, e a ação extensionista enfrenta um desafio inédito
para a maioria dos técnicos, usualmente desacostumados de atuar no campo político e
das disputas partidárias, especialmente se são profissionais mais jovens, como tem sido
o caso, na maior parte daqueles contratados pelas prefeituras, seja em Santa Catarina ou
em São Paulo.
A ameaça principal ao desenvolvimento do projeto, em tais situações, é não saber atuar
“na política”, mas evitando preferências partidárias e, desta forma, mantendo a ação
extensionista acima das disputas locais. Ou seja, é preciso desenvolver uma capacidade
de articulação política acima dos usuais interesses partidários e seus confrontos
municipais. A experiência dos projetos tem indicado que este é momento delicado e
extremamente difícil para os profissionais dos projetos, alguns deles, muitas vezes, não
sabendo separar o projeto e sua ação política do campo propriamente partidário.
Adicione-se a este fato a crescente politização do meio rural brasileiro e o nascimento de
novas organizações, algumas mais confrontacionais, do ponto de vista da defesa de seus
interesses (bastando citar a atuação do projeto em São Paulo na região do Pontal do
Paranapanema, aonde o MST vem mantendo uma presença ativa e demandante e,
posicionando-se acima do projeto microbacias, aponta para dificuldades operacionais de
difícil solução). Desta forma, o desafio da articulação política dos microbacias, embora um
fascinante exercício de competência técnica e política, quando realizado eficazmente, na
realidade exige capacidade analítica superior e rigorosa.
(g) por fim, parece igualmente importante salientar o mais complexo de todos os
desafios postos para os projetos microbacias, caso transitem pela seqüência antes
indicada em sua evolução e cheguem a materializar dinâmicas sob as quais o tema do
desenvolvimento rural parece ser, cada vez mais, o mais urgente e requerido por todos
32
os atores sociais envolvidos, das famílias rurais aos agentes econômicos e sociais que
direta ou indiretamente lidam com o mundo rural. Qual seja, desenvolver uma
compreensão social que se amplie e seja compartilhada por maiorias, sobre o quê
exatamente significa “desenvolvimento rural”.
Como é notório atualmente em diversas regiões agrárias brasileiras, tal compreensão,
ainda muito incipiente, na realidade se confina dentro de interesses meramente
individuais ou de pequenos grupos específicos, sejam os produtores maiores e mais
inseridos nos mercados internacionais de grãos ou “commodities” agrícolas ou, em
outro oposto, os interesses mais específicos de grupos sociais mais pobres, destituídos
de acesso à terra (ou com acesso extremamente precário às atividades agrícolas e
produtivas), que muitas vezes se irmanam em organizações de sem-terra ou de
pequenos produtores. Para a grande maioria desses coletivos sociais organizados, a
noção do interesse público e do “bem comum” é ainda foco praticamente ausente e,
desta forma, a construção de uma noção correta de “desenvolvimento rural” é, como
conseqüência, desafio social e político de evidente concretude.
A ação extensionista, que não é neutra em relação a esta dimensão, encontra aqui
barreiras imensas de articulação e argumentação, inclusive porque os ambientes para tal
debate são ainda largamente imaturos e desinformados sobre as alternativas existentes.
Ou então, como tem sido crescentemente encontradiço no sistema político brasileiro (o
que inclui as ações governamentais), as proposta são apresentadas como “definitivas”,
pouco espaço e ambiente argumentativo sendo criado para contrapor-se às noções
existentes. No fundo, portanto, a noção de desenvolvimento rural requer, como
antecedente lógico, que exista disposição democrática para aceitar o debate e a
convivência entre diversas visões de mundo e perspectivas existentes.
5. Os projetos-MB: é possível repeti-los?
Existem chances de replicabilidade dos “microbacias” em outros contextos estaduais
brasileiros? Ou as condições institucionais, a história das categorias profissionais das
ciências agrárias, a relativa pobreza dos resultados econômicos das atividades agrícolas,
entre outros fatores, impediriam o sucesso de tais projetos? Seria apenas coincidência
que essas iniciativas centradas em microbacias surgiram e prosperaram nos estados do
Sul, primeiramente e, posteriormente, encontraram eco em São Paulo, estados onde a
modernização da década de 1970 mais fortemente se desenvolveu e, portanto, seus
impactos ambientais foram mais visivelmente sentidos?
A análise empreendida nesta pesquisa concluiu que, em princípio, não existiriam razões
de maior magnitude para que não sejam igualmente bem sucedidos projetosmicrobacias que sejam formalizados e implementados também em outros estados
brasileiros. Evidentemente, há uma premissa preliminar, de relativa obviedade, para que
as considerações abaixo tenham inteligibilidade prática e operacional, qual seja, parte-se
do pressuposto de que esses projetos contam com recursos financeiros disponíveis para
a sua implementação ao longo do ciclo de sua existência, usualmente de seis anos, quase
sempre estendidos para um ou dois mais anos. Sejam recursos financeiros próprios do
orçamento estadual (o que seria uma raridade, nas condições brasileiras), sejam aqueles
33
decorrentes de acordos celebrados com organismos internacionais, como o Banco
Mundial. Aceita esta premissa e mantendo a hipótese de estarem os recursos disponíveis
durante o projeto, sem problemas de desembolso, então existem mais condições
favoráveis do que entraves ao sucesso de tais iniciativas. Dentre as condições que
facilitam resultados favoráveis, citam-se alguns, apresentados abaixo:
(a) inicialmente, há um aspecto político que favorece projetos sob tal racionalidade
técnica. O grau de descentralização observado no desenvolvimento político brasileiro
recente, acentuado no pós-1988, assim como o processo de democratização que estimula
o protagonismo social e assegura a possibilidade de participação social em graus
crescentes, “com poder decisório”. Embora processos de mudança ainda relativamente
inéditos na história do país, já é possível sugerir que projetos “de cima para baixo” e
com forte controle estatal, como foi a tônica no passado, não encontram mais campo
fértil para a sua implementação e, necessariamente, requerem organizar o seu desenho a
partir da ação proativa dos beneficiários. As variações encontradas em situações
concretas, posta tal premissa, ocorrem apenas em função do escopo e da densidade que
define a capacidade de decisão transferida aos beneficiários. Em face de nossa tradição
política conservadora, que sugere controle estatal centralizado, normalmente a
implementação dos projetos-MB passa por “períodos de teste”, durante os quais os
operadores avaliam as chances de transferência de responsabilidade para as famílias
rurais beneficiárias. É o caso, por exemplo, da contratação de técnicos em Santa Catarina,
atribuição que, com o passar do tempo, foi completamente repassada às associações
formadas nas microbacias, inclusive, muitas vezes, sem sequer ser ouvido o técnico
estadual regional.
É impensável supor que novos projetos-MB, em outros estados, poderão organizar-se
sem componentes participativos explícitos, e sem se preparar para o desenvolvimento já
antes observado nos dois projetos aqui analisados. Em resumo, se tais iniciativas são,
por definição, participativas e são desenvolvidas principalmente como políticas
governamentais instituídas “de baixo para cima”, as condições políticas atuais no Brasil
favorecem, fortemente, tal desenho técnico e operacional.
(b) outra característica igualmente importante, ainda no plano político, se refere às
possibilidades de ação organizativa dos grupos sociais rurais, inclusive os mais pobres, o
que resulta do processo de aprofundamento democrático em desenvolvimento no Brasil
durante os anos mais recentes. Os projetos prevêem não apenas ações descentralizadas,
mas igualmente sugerem que as famílias beneficiárias precisam gradualmente
desenvolver sua capacidade de formar coletivos sociais coesos, os quais possam
identificar novas demandas e interesses e disputar politicamente recursos e novas
oportunidades, no plano local ou além das fronteiras do município. Desta forma, o clima
de ampla liberdade de organização reinante no Brasil é outro fator relevante que
favorece a implementação desses projetos.
(c) Um terceiro aspecto a ser ressaltado, que também cria contextos potencialmente
favoráveis ao nascimento de outros projetos microbacias estaduais refere-se às políticas
federais para a agricultura familiar e os grupos sociais rurais mais pobres. A partir dos anos
noventa, foram sendo criadas diversas dessas políticas e, como conseqüência, é possível
34
antecipar que existem chances de grupos sociais organizados nas microbacias
procurarem outras fontes de recursos. Os “casos exemplares”, antes brevemente
descritos, mostram que famílias formalmente organizadas têm sido capazes de
demandar acesso àquelas políticas governamentais existentes em outros níveis, sejam
estaduais ou federais.
(d) Uma dimensão adicional que favorece a implementação de projetos-MB no Brasil diz
respeito à abertura das famílias rurais, em todas as regiões brasileiras, para essas
políticas. Embora exista um certo ceticismo em relação ao interesse e à participação das
famílias rurais potencialmente beneficiárias, a realidade, contudo, não corrobora esta
assertiva. Concretamente, em todas as situações, as famílias rurais mais pobres, que
constituem o público-alvo preferencial dos projetos, estão abertas para a sua
implantação e, uma vez informadas das possibilidades existentes, geralmente mostram
disposição continuada e até entusiasmo em relação a estas oportunidades, sobretudo
quando o projeto prevê incentivos que são parcialmente subsidiados. É importante
lembrar que a história agrária brasileira é rarefeita em políticas governamentais
destinadas primordialmente aos segmentos mais pobres e, portanto, os “microbacias”
não têm tido dificuldades de enraizamento social. Quando a mobilização dos
beneficiários é lenta ou reduzida, quase sempre o nó górdio se encontra na ação
extensionista deficiente ou despreparada. Esta observação remete à necessidade,
igualmente enfatizada em outra parte deste documento, de capacitação rigorosa dos
operadores dos projetos, que precisam estar suficientemente preparados para lidar com
as distintas situações sociais que são encontradas nos ambientes rurais. Desde técnicas
de mobilização social ao conhecimento de metodologias participativas, entre outros
conhecimentos requeridos, precisam fazer parte do cardápio de conhecimentos
comandados pelos profissionais que atuam no âmbito dos projetos-MB, para que se
ampliem as chances de êxito.
(e) Outro aspecto favorável diz respeito ao grau de abertura das categorias profissionais
que majoritariamente atuam em tais projetos (oriundos, em especial, da Agronomia, mas
não exclusivamente). Embora uma afirmação sem estudo comprobatório que a sustente,
o autor deste estudo ousaria insistir que tais categorias de técnicos encontram-se
atualmente vivendo uma grande incerteza em relação ao seu papel profissional e, desta
forma, é muito provável que a implementação de novos projetos encontrem
receptividade no âmbito dos corpos profissionais das Ciências Agrárias. O ensino
universitário nesta área, como é amplamente reconhecido, encontra-se bastante defasado
em relação aos processos sociais e econômicos ora em curso nos ambientes rurais e,
desta forma, os profissionais, especialmente os mais jovens, ao se defrontarem com
situações inusitadas e que exigem conhecimento mais amplo e diversificado, usualmente
tem demonstrado grande receptividade. Se devidamente capacitados, responderão
adequadamente às exigências dos projetos, é o que demonstra a experiência concreta nos
estados analisados.
(f) Finalmente, outro fator a ser considerado no sentido de prever condições
estimuladoras para a ampliação de tais projetos relaciona-se às perspectivas de médio prazo
para a agricultura brasileira, enquanto setor econômico e produtivo. Todas as indicações
apontam que este é setor que deve continuar a se beneficiar do crescimento da demanda
35
nacional e internacional por alimentos e matérias-primas e os preços pagos aos
agricultores não devem evidenciar quedas reais desastrosas que desestimulem a
produção. Desta forma, os mercados agrícolas, potencialmente, devem ainda oferecer
condições de remuneração satisfatórias aos produtores e os sistemas agrícolas, como
aqueles previstos pelos “microbacias”, desde que tenham alguma sustentabilidade
produtiva mais sólida, reduzindo custos de produção e se mantendo mais resistentes a
situações climáticas desfavoráveis, certamente obterão resultados econômicos mais
recompensadores.
Em relação, por outro lado, às dificuldades que a replicação de tais projetos poderá
encontrar, em outros estados, diversos obstáculos existiriam em princípio, mas passíveis
de serem contornados com alguma facilidade. Por exemplo, a montagem de tais projetos
já não representa desafio técnico tão complexo, em vista do aprendizado atualmente
existente, e recursos humanos poderiam ser mobilizados para suprir as lacunas de
conhecimento existentes em algum estado específico interessado na implementação de
projetos-MB. A inexistência de capacidade técnica instalada em diversos componentes
dos projetos, como é o caso, para ilustrar, de empresas (públicas ou privadas) para
readequar as estradas, ou então realizar o mapeamento das microbacias, esses são
obstáculos relativamente mais sérios, mas existem atualmente inúmeras possibilidades
de serem mobilizados recursos humanos ou empresas capazes de realizarem, ainda que
temporariamente, tais tarefas em outros estados.
Assim, a partir da experiência e o aprendizado acumulado pelos projetos estudados,
talvez se possa concluir que o maior entrave à implantação de projetos-microbacias em
outros estados, não considerando a exigência preliminar de apresentar capacidade de
endividamento estadual, requerida por organismos internacionais financiadores (como o
Banco Mundial), seja outro, típico da história política brasileira. Refere-se tal entrave ao
uso político, ou abusivamente partidário, que tais projetos, em certas situações,
encontram em seu desenvolvimento. Neste caso, tal ocorrendo, são altos os riscos de
ocorrência de algum desvirtuamento dos objetivos principais dos projetos-microbacias,
mas não necessariamente envolvendo ações que possam ser corrompidas por decisões
ilícitas, mas até mesmo em plano menos ostensivo de desvirtuamento.
É o que ocorre, por exemplo, quando governos municipais contratam técnicos para atuar
no “microbacias”, mas esperam que tais técnicos igualmente ajam como cabos eleitorais
do partido no poder ou, então, quando forçam a escolha de uma estrada a ser
readequada em função de critérios de adesão política das comunidades a serem
beneficiadas. São os perigos políticos dos projetos, que precisam contar com o apoio das
prefeituras, mas nem sempre conseguem se manter imunes aos desvios particularistas
que operadores políticos municipais tentam impor. Este, de fato, representa em nossa
cultura política o maior entrave ao bom desenvolvimento dos projetos-MB e apenas uma
postura transparente das regras de funcionamento e sua ampla difusão, associada ao
comportamento rigorosamente não partidarizado dos profissionais envolvidos é que
poderia minimizar, ou até eliminar, a ameaça representada por interferências partidárias
espúrias na implementação de tais políticas. Contudo, a mesma experiência dos projetos
catarinense e paulista tem demonstrado, em diversas situações concretas, que tal ameaça
não apenas tem diminuído com o passar do tempo e se mantida em nível mais tolerável
36
como, inclusive, em diversos municípios, os representantes da política municipal no
poder percebem que podem obter dividendos eleitorais sem nenhuma tentativa de
interferência ostensiva nos rumos dos projetos, mas apenas oferecendo apoio e suporte a
diversas ações e difundindo tal colaboração, o que muitas vezes é suficiente para
enraizar apoios políticos.
5.1 Existe uma receita de sucesso?
Os projetos analisados, assim como a experiência anterior de pesquisa sobre o projeto
implementado no Paraná na década de 1990, suplementada por diversas oportunidades
de discussão com técnicos, estudiosos e agricultores envolvidos, permitiram extrair um
“aprendizado geral” sobre projetos centrados em microbacias e desenvolvidos nas
condições sociais, econômico-produtivas e institucionais existentes no Brasil. Não se
trata, por certo, de uma categórica “receita de sucesso”, pois a descentralização política
existente no país, desde o nascimento da federação e ampliada consideravelmente sob a
égide da Constituição de 1988, garante poderes relativos significativos às unidades
estaduais e aos municípios, o que empresta particularidades distintivas a cada uma
dessas unidades de poder administrativo e político.
Malgrado tal ressalva e ainda se considerando a heterogeneidade, sob ângulos diversos,
se comparadas as macro-regiões brasileiras, a experiência acumulada nos projetos-MB
permite indicar, contudo, com razoável probabilidade, que existiriam chances maiores
de sucesso se cinco pilares forem objeto de atenção aprofundada, na formatação e
implementação dos projetos, em situações novas que venham a ser concretizadas. Esses
cinco pré-requisitos garantirão, se interdependentes em sua compreensão e articulação,
pelo menos a chance de resultados satisfatórios, podendo, contudo, garantir chances de
sucesso bem mais significativas. Esses cinco fundamentos são os seguintes:
(a) é requisito fundamental para o bom desenvolvimento de projetos-MB a compreensão
clara do projeto por parte dos “operadores principais”, o que inclui, como requisito
mínimo, os secretários estaduais de agricultura e meio-ambiente e, a partir deste nível
decisório, os operadores governamentais a eles subordinados, como os dirigentes dos
serviços de extensão rural, pesquisa agrícola, a coordenação estadual do projeto, entre
outros. A experiência paulista, por exemplo, foi por algum tempo paradigmática dos
efeitos negativos da inexistência de compreensão e apoio naqueles níveis, nos anos
iniciais de preparação do projeto e sua implementação. Por força de tais hesitações, o
projeto, por exemplo, “quase parou” em 2004, pois o então Secretário da Agricultura
parecia não entender a relevância do “microbacias” no estado. Sendo estado industrial
por excelência, a posição de secretário da agricultura não tem o mesmo peso de outras
secretarias e, provavelmente, transfere capacidade política menor ao seu responsável.
Desta forma, seus ocupantes podem ser menos influentes no âmbito do governo
estadual ou, talvez, desenvolver esforços insuficientes no comando de tal área de ação
administrativa. O projeto-MB paulista apenas pode ganhar velocidade depois de quase
quatro anos de sua formalização, período durante o qual ocorreram diversas trocas de
secretários da agricultura e coordenadores da CATI, o que prejudicou, visivelmente, a
implementação do projeto.
37
Em Santa Catarina, por outro lado, embora também tenham ocorrido trocas variadas
naquela posição em anos recentes, os impactos foram substantivamente menores, não
apenas porque a “cultura do projeto” já estava enraizada entre os órgãos ligados à
agricultura, mas também porque a economia agropecuária no estado é extremamente
expressiva e, desta forma, o projeto, em face de sua centralidade na ação governamental,
é mais conhecido por todos e, necessariamente, o próprio secretário precisa manter
conhecimento significativo sobre o cotidiano de projeto como este. Portanto, o primeiro
pré-requisito para um projeto-MB começar a ter chances de sucesso em um estado é a
compreensão de sua lógica por parte da elite dirigente governamental que trabalha com
temas rurais e agrários. Não se trata de obviedade, no entanto, e sempre será importante
relembrar que o “projeto-mãe” de todos, o paranaense, somente manteve o seu sucesso
na implementação quando dois governadores apoiaram o projeto e, simultaneamente,
mantiveram o mesmo secretário da agricultura, na maior parte da década de 1990,
dirigente que, por sua vez, compreendeu perfeitamente a relevância desta política para o
estado, sustentando-a entusiasticamente durante todos aqueles anos. Quebrada, logo
depois, esta relação de consistência e continuidade, o projeto paranaense observou
rápido desajuste e perda de capacidade operacional, virtualmente deixando de existir
alguns anos depois.
(b) outro elo nesta tentativa de perceber as “chances de sucesso” de projetos-MB que tem
crucial importância diz respeito à gerência operacional do projeto, os coordenadores
executivos que supervisionam e dirigem o “microbacias” como um todo. Não
necessariamente um coordenador, mas sempre uma equipe, idealmente com alguma
face de multidisciplinaridade, e incluindo técnicos experientes, conhecedores da
estrutura governamental e capazes de iniciativas diversas e em várias áreas de ação
governamental. Igualmente crucial, devem ser operadores governamentais capazes de
articulações políticas “para cima” (os dirigentes principais) e, especialmente, “para
baixo” (os responsáveis pelo projeto nas regiões e nos municípios). Este elo é essencial
para o sucesso do projeto, não podendo manter cargos em função meramente de
lealdades políticas ao partido no poder e rebaixar as capacidades técnicas requeridas. Os
casos catarinense e paulista, neste particular, são exemplares para indicar a importância
deste segundo pré-requisito na condução bem sucedida de um projeto-MB. Ambos
foram dirigidos até aqui por técnicos que conseguiram separar com êxito influências
meramente políticas, além de conseguirem articular as diversas partes de um projeto
complexo, requerendo informação criteriosa sobre diversas outras áreas institucionais,
sociais e técnico-agronômicas. A sinergia resultante, nesses dois casos, tem demonstrado
cabalmente a importância decisiva de uma gerência estadual capaz de assegurar a
implementação correta dos projetos.
(c) o terceiro elo para ampliar a probabilidade de sucesso na implementação de projetosMB são as prefeituras ou, genericamente, os sistemas de governo locais (pois incluindo
também a Câmara de Vereadores e outros serviços governamentais eventualmente
existentes no município). Este é plano de ação do projeto que, no geral, é extremamente
desafiador e complexo. Há a diversidade partidária a considerar, os interesses locais,
muitas vezes enraizados há muitos anos e de difícil mudança, há as disputas locais.
Especialmente, pode ocorrer um distanciamento do governo municipal por julgar ser
um “projeto estadual”, com pouca possibilidade de repercussão no âmbito municipal,
38
especialmente em termos políticos. Da mesma forma, o projeto necessita mobilizar
outros atores locais, incluindo os agentes privados, sempre no esforço de criar uma
“linguagem convergente” e difundir tal política governamental. Assim, em relação a este
terceiro plano de sustentação, a proposição é direta e sem meias palavras: “sem o apoio
do governo municipal, o projeto praticamente não conseguirá sair do chão”.
(d) a quarta face deste poliedro que pode garantir resultados de êxito em tais projetos é o
que será intitulado aqui de “ação extensionista”. Tal pilar engloba a ação técnica em
todos os níveis, desde aqueles profissionais contratados pelas prefeituras para apoiar o
projeto aos técnicos, de diversas formações, que são funcionários públicos estaduais, que
também atuam no município, chegando àqueles que são responsáveis por supervisão
regional e, finalmente, aos técnicos que atuam no plano estadual, ou na coordenação
geral do projeto ou em atividades mais especificas de âmbito estadual. Como afirmado
reiteradamente neste documento, a ação extensionista, no aprendizado extraído dos
projetos analisados, provavelmente representa a fundação mais decisiva para o sucesso
do projeto.
(e) finalmente, o elo final que nos informa acerca das chances de sucesso dos projetosMB refere-se, claro, aos principais beneficiários, que são as famílias rurais moradoras
ou atuantes nas microbacias onde o projeto foi implementado. Sobre tal pilar, é
importante salientar um ensinamento fundamental dos projetos-MB implementados e
analisados neste estudo. Refere-se a um princípio, supostamente derivado de
conhecimento sociológico. Qual seja, a afirmação que nos indica que comunidades rurais
onde existe uma sólida tradição organizativa são aquelas nas quais os projetos que
supõe a participação dos beneficiários, necessariamente, encontrarão chances maiores de
sucesso. O ensinamento dos projetos, contudo, não permite assegurar a veracidade de
tal proposição, supostamente assentada em conhecimento acumulado. A análise dos
projetos, de fato, apenas indica que tal tradição organizativa, formada a partir de
diferentes experiências passadas bem-sucedidas de organização social no âmbito das
comunidades rurais, pode, potencialmente, colaborar nas ações e atividades previstas no
projeto, pois são formas de interação e conhecimento recíproco entre as famílias rurais
que já existiram, acumuladas no passado. Mas não é condição nem necessária e, menos
ainda, suficiente, para assegurar a mobilização das famílias rurais envolvidas na
microbacia e o seu apoio às iniciativas propostas pelos projetos-MB. O exame analítico
de diversas situações empíricas, em São Paulo e em Santa Catarina, em municípios
bastante contrastantes sob diversos aspectos (sociais e culturais, atividades econômicas
predominantes, forma de propriedade da terra, entre outros) demonstrou que o
mecanismo mais saliente para “ativar” a participação das famílias rurais centra-se,
sobretudo, na qualidade da ação extensionista realizada, particularmente se tal ação já
tiver sido construída anteriormente em relações de confiança e outras atividades que
produziram resultados.
Se a ação extensionista estiver suficientemente preparada para a dimensão e a
complexidade dos projetos-MB, serão enormes as chances de mobilizar as famílias rurais
para se articularem às atividades propostas pelos projetos. Não se trata de desmerecer
ou ignorar os esforços organizativos pré-existentes, mas apenas ressaltar que projetosmicrobacias, em face de sua extrema complexidade, sobretudo quando “ganham
39
velocidade” e passam a viabilizar uma clara dinâmica sócio-ambiental, necessariamente
tem um eixo central de sua ativação que reside, por muitos anos, nas mãos da ação
extensionista. A passagem desta ação para um comando autônomo das famílias rurais
residentes ou atuantes na microbacia é um processo de longa duração. A ativação do
protagonismo social e a participação das famílias rurais, embora um componente
decisivo para garantir a sustentatibilidade dos projetos, quando eventualmente
“emancipados” da ação governamental, desta forma, dependerá, quase sempre, da
qualidade operacional da ação dos profissionais envolvidos e os conseqüentes
resultados de sua ação.
6. Recomendações
A recomendação principal deste estudo, que é também uma sugestão para os novos
projetos que venham a ser implementados, e também para projetos que renovem a sua
continuidade em um segundo ou terceiro ciclo, representa, de fato, uma lição extraída da
análise dos projetos paulista e catarinense. Da mesma forma, esta recomendação
representa uma tentativa de adequação às mudanças sociais e políticas no Brasil, quando
“temas sociais” emergiram com mais intensidade, em função da democratização do país
e da capacidade crescente dos grupos sociais subalternos de se organizarem e
pressionarem politicamente por seus interesses mais específicos.
A análise dos dois projetos objeto deste estudo indicou, conforme apontado nas seções
anteriores, que ambas as iniciativas, grosso modo, evoluíram de um formato inicial
conservacionista, para outro desenho, que poderia ser intitulado de agronômicoambiental. Posteriormente, em algumas regiões de São Paulo e Santa Catarina, a
dinâmica local (às vezes, reforçada pelas circunstâncias regionais) permitiu a
concretização de um terceiro momento em sua evolução, que poderia ser intitulado (um
tanto forçadamente, reconheça-se) de projetos em desenvolvimento rural. É igualmente
forçoso reconhecer que esta terceira fase na evolução dos projetos foi alcançada, ainda,
em proporção relativamente diminuta, não significando, necessariamente, uma
tendência que possa ser rapidamente generalizável para o restante daqueles dois estados
onde os projetos-MB encontram sua maior prioridade de implementação. Este estudo,
contudo, não teve como objetivo investigar porque uma dinâmica mais claramente
organizacional que agregasse a maior parte dos beneficiários em torno de seus interesses
e demandas mais imediatas, em torno de objetivos que seriam típicos de
“desenvolvimento rural” não se desenvolveu ainda na maior parte das regiões. Embora
seja possível especular sobre as razões para tais insuficientes evidências de mobilização
social e posterior capacidade de organização, não se fará este esforço neste estudo, por
serem também insuficientes as evidências empíricas recolhidas em diversas regiões, o
que estudo posterior poderá demonstrar mais cabalmente.
É importante, contudo, salientar, que esta transição de “enfoques principais” na história
dos projetos (do conservacionista para o “social” e para o desenvolvimento rural) reflete
não apenas uma lógica esperada dos projetos, quando corretamente implementados,
mas também a conjuntura social e política brasileira, sobretudo nos anos mais recentes.
Ou seja, a crescente presença no imaginário social, na agenda política, nas disputas
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eleitorais e nos meios de comunicação de “temas sociais”, especialmente a discussão
sobre pobreza e desigualdade social. Desta forma, seria presumivelmente inevitável que
projetos-MB, importantes para as áreas rurais dos respectivos estados, quando menos
em função de sua dimensão financeira, acabassem incorporando, de uma forma ou de
outra, temas sociais e iniciativas econômicas, espelhando pressões de diferentes grupos,
demandas que se avolumaram com os anos, e uma capacidade política dos grupos
sociais rurais mais pobres de exercerem mais eficazmente o seu papel reivindicante.
Assim, quando as gerências executivas dos projetos organizaram, no caso de Santa
Catarina um segundo projeto e, no caso paulista, as discussões para a prorrogação do
primeiro projeto, seria natural que tal foco ganhasse mais espaço financeiro e ação
operativa em sua implementação.
O que vem sendo observado, contudo, é talvez um relativo desequilíbrio entre ações
sociais e ambientais (ou, mais genericamente, agronômico-ambientais), na transição
entre a primeira fase e o que foi intitulado acima de terceira fase na implementação de
tais projetos. Os focos sociais, centrados na distribuição dos incentivos dos projetos e
ações que ou saem da esfera produtiva (como “melhoria de habitações”) ou são apenas
indiretamente a ela relacionados, passaram a ganhar maior predominância e interesse,
por parte da ação extensionista e, mais claramente, por parte dos beneficiários. Este
relativo desequilíbrio, demonstrado no caso catarinense pelo fluxo de desembolsos do
MB-2, e menos no caso paulista, ainda que não seja fortemente preocupante, pode
indicar, no entanto, uma tendência esperada, se afrouxada a compreensão abrangente e
sistêmica, necessariamente também agronômico-ambiental dos projetos.
Ou seja, sinteticamente expondo o problema: há um claro risco de tais projetos mudarem
seu foco multidisciplinar e abrangente (ou holístico, na linguagem de alguns), limitados
operacionalmente pelas fronteiras físicas das microbacias, para se assumirem como
“projetos sociais”, mais convencionais, que distribuam sob formato favorecido
incentivos financeiros às famílias rurais mais pobres, e todos os esforços em um campo
ambiental e de renovação das práticas agronômicas possam ser rebaixados, ou até
mesmo desconsiderados, em tempos vindouros. Desta forma, é urgente, assim parece,
repensar esta tendência (caso seja vista como realmente relevante) e desenvolver outra
estratégia de implementação que mantenha articulados os diferentes focos e planos de
concretização de todos os componentes previstos, produzindo como resultado não o
“acúmulo segmentado das partes”, mas um resultado ampliado obtido com a sinergia
de ações nos campos produtivo, propriamente ambiental, agronômico, social e
econômico.
Desta forma, a recomendação principal deste estudo é que possa ser desenvolvido, ainda
que sob forma piloto, uma experiência de desenvolver o projeto-MB com as ações
concretizadas de “forma casada”, em analogia com os projetos conhecidos no jargão
técnico como “projetos CCT” (“conditional cash transfers”). Tais projetos, como o “Bolsa
Família”, vinculam compulsoriamente diversas ações no âmbito de um projeto, e esta
poderia ser uma experiência promissora para o aperfeiçoamento dos projetos-MB no
Brasil. A pressuposição desta sugestão é que incentivos financeiros nos campos social e
econômico (mas, sobretudo, os “sociais”), quando destinados às populações mais pobres
do mundo rural brasileiro, sugerem irresistível atratividade e normalmente são
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imediatamente aceitos, além de não serem de grande complexidade técnica, quando
implementados pelos técnicos de campo. Se compulsoriamente vinculados às ações
ambientais, contribuiriam para quebrar ou diminuir muitas das resistências no campo
agronômico-ambiental de outras ações (especialmente aquelas cujos resultados são de
médio e longo prazo), desta forma permitindo uma gradual conscientização das famílias
rurais beneficiárias também neste segundo foco.
A experiência tem evidenciado a resistência (ou ceticismo) de muitos agricultores em
relação ao plantio de matas ciliares; plantio de árvores em topos de morros; plantios sob
manejo mais cuidadoso dos solos; esforços de combinação de produção vegetal e animal,
entre tantas outras ações aqui intituladas de “agronômico-ambientais”. Esta retração
poderá ser mais rapidamente vencida, provavelmente, se os projetos conseguirem
avançar uma metodologia de implementação que articule compulsoriamente os
incentivos sociais e econômicos às outras ações constantes em sua implementação. Desta
forma, o resultado final, em alguns anos, poderá colher efeitos bem mais significativos
do que os atualmente sendo obtidos.
Uma segunda recomendação relevante e principal que se conecta à primeira acima
exposta é a sugestão de realizar, talvez na forma de uma outra experiência-piloto, um
“casamento” do projeto-microbacias com o gerenciamento de bacias hidrográficas, que
tem seus comitês em diversas regiões brasileiras. Ou seja, uma tentativa mais explícita e
coordenada, com incentivos financeiros e a lógica dos projetos-MB “por baixo” (ou seja,
junto às famílias rurais) e a lógica dos comitês de bacias hidrográficas atuando em
outros níveis, do consumo industrial de água ao consumo das cidades e outros
demandantes. Se posta em prática esta experiência, poder-se-ia perceber uma conexão
de ação que persiga, em áreas rurais, a ampliação da capacidade de armazenamento de
recursos hídricos em uma região mais ampla, lentamente recuperando a potencialidade
hídrica de um ecosistema regional com a sua gestão, desde o nível mais basilar,
envolvendo as famílias rurais nas diversas microbacias, com os demais níveis de gestão
da água, neste caso envolvendo os demais usuários deste recurso tão vital. Se aprovada
tal experiência-piloto, provavelmente teríamos aqui a instituição de um modelo para o
restante do país, reunindo forçosamente uma ação de intervenção em áreas rurais com
uma estratégia nacional de gestão dos recursos hídricos.
Outras recomendações, brevemente expostas, sob diferentes focos, são indicadas abaixo,
sistematicamente:
(a) a preparação dos projetos-MB, além do que foi esboçado em outras partes deste
documento, como a necessidade de compreensão analítica dos principais operadores,
em todos os níveis, e a capacidade de prever situações futuras em face das
especificidades do estado onde será implantado, requer igualmente uma negociação
minuciosa e conseqüente com a “área ambiental” do estado correspondente. A
experiência dos “microbacias”, em todos os estados, sugere que tais projetos, em função
de manter um foco ambiental forte, quase sempre consegue chocar-se com as normas e
as instituições do campo ambiental existentes. Há um histórico de conflitos, ou pelo
menos divergências, entre as secretarias da Agricultura e do Meio Ambiente em
praticamente todos os estados onde tais projetos foram postos a funcionar, seja por
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incompreensões ou, então, por ortodoxia normativa, especialmente por parte dos
operadores do lado institucional ligado ao meio ambiente. Para evitar tais problemas, os
projetos-MB precisam obter um amplo espectro de concordância entre tais elos
institucionais previamente, acordando-se o possível e estabelecendo regras claras de
funcionamento convergente. No caso paulista, uma segunda edição do projeto apresenta
a novidade de ser iniciativa conjunta com a Secretaria do Meio Ambiente, o que é
associação positiva para o melhor funcionamento das atividades. Talvez seja este o
modelo ideal a ser perseguido, embora sempre se recomendando, por óbvias razões, que
a coordenação geral do projeto esteja nas mãos da Secretaria da Agricultura e os serviços
de extensão rural do estado.
(b) Em consonância com a argumentação central deste estudo, que alça a “ação
extensionista” à posição mais destacada para assegurar o sucesso de tais projetos, as
recomendações neste campo são, especialmente, de duas ordens. Primeiramente, como
foi antes destacado, é imprescindível organizar esforços bem mais conseqüentes,
estratégicos e planejados de capacitação e formação da ação extensionista no âmbito dos
projetos. Não obstante todas as iniciativas até aqui realizadas, em ambos os estados, não
parece ser ainda suficiente, e muito mais precisa ser feito para realmente preparar os
profissionais para o desempenho de ações de campo que são multidisciplinares e
extremamente complexas e abrangentes, exigindo um permanente esforço de articulação
das ações em diversos campos, ou aqueles estritamente profissionais (técnicoagronômicos) ou as demais esferas de atuação (ou sociais, ou políticas, ou outras). A
maior qualificação dos profissionais envolvidos nos “microbacias”, de fato, representa
atualmente um dos maiores desafios confrontados por essas políticas e este pode ser um
elo frágil que reduza fortemente as chances de resultados mais expressivos, se não for
corretamente organizado.
(c) Ainda no campo da ação extensionista nos projetos, recomenda-se que sejam
formadas equipes multidisciplinares, tanto no gerenciamento estadual do projeto como,
particularmente, no âmbito regional. Dificilmente, por tantas razões de alguma
obviedade, será possível constituir, no âmbito municipal, equipes com profissionais de
áreas diversas para garantir uma ação estratégica mais conseqüente. Em decorrência de
tais impossibilidades práticas, a equipe regional multidisciplinar que possa
supervisionar diferentes municípios e apoiá-los tecnicamente passa a ser uma
possibilidade mais factível e, provavelmente, suficiente. No plano municipal, aliás, o
técnico local, quase sempre, tem uma chance potencial de mobilizar profissionais de
outras áreas (notadamente do campo da assistência social e educação) para uma ação
concatenada em função dos objetivos dos projetos, com diversos casos concretos
demonstrando tal possibilidade, se existirem competências para concretizar esta
articulação com aqueles profissionais, quase sempre funcionários das prefeituras locais.
Uma equipe regional constituída de profissionais de algumas áreas mais essenciais para
o bom funcionamento dos projetos bastaria então para apoiar, quando necessário, o
conjunto de atividades previstas no plano municipal.
Em relação ao gerenciamento estadual, esta equipe é também necessária para garantir a
“visão sistêmica” e abrangente do projeto, além de poder monitorar consistentemente o
andamento das atividades em todos os ângulos previstos, não apenas o agronômico e o
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produtivo, mas o ambiental e aqueles dos processos sociais relativos à mobilização e
organização das famílias rurais nas microbacias. As instituições que até aqui montaram e
desenvolveram tais políticas, desde a experiência pioneira no Paraná, são constituídas,
quase exclusivamente, por profissionais da Agronomia, uma parte importante desses
técnicos, com o tempo, sendo forçada a entrar em outras áreas de conhecimento sem
preparação prévia e adequada. Adicionalmente, como seria esperado em país onde
viceja um forte corporativismo em sua tradição política, tais profissionais e suas
organizações, são ciosos de seus espaços conquistados e, quase sempre, resistem à
entrada de profissionais de outras áreas, ainda que necessários. Mas o sucesso dos
“microbacias” requer outras competências técnicas e não pode prescindir de sua
contribuição, sendo esta a razão principal para a formação de equipes profissionais
multidisciplinares nos planos estadual e regional. As realidades regionais indicarão,
claramente, quais as competências principais requeridas, podendo ocorrer variações,
como esperado. Em algumas regiões, por exemplo, profissionais especializados em
Ciência Ambiental poderão ser mais urgentes, mas, em outras regiões, profissionais das
Ciências Sociais poderão ser aqueles mais demandados, em face de processos sociais
mais dinâmicos, em termos de mobilização social, organização das famílias rurais e sua
ação externa às microbacias. O espectro profissional potencial é relativamente amplo,
como seria esperado, em face da complexidade dos projetos.
(d) Os projetos microbacias, por outro lado, requerem mais difusão de sua lógica e
resultados. Não parecem ter existido, até aqui, esforços suficientes para disseminar a
idéia geral do projeto e sua relevância, apontar seus resultados e insistir, junto à opinião
pública, acerca das virtualidades de tal ação governamental, suas potencialidades e sua
relevância, especialmente quando os temas ambientais assumem urgência mundial. É
preciso que os projetos cerquem-se de assessorias jornalísticas que aprofundem sua
capacidade de difundir esta ação, tornando-a central na ótica governamental dirigida ao
mundo rural. Há boas razões para supor que em futuro próximo a lógica de políticas
governamentais centradas em microbacias possa assumir centralidade na política federal
e a maior parte de outras políticas passem a ser complementares e coadjuvantes dos
“microbacias”. Embora não representando uma “política final” para a agricultura, pois
sempre poderia se aperfeiçoada, não existem atualmente alternativas apropriadas para
uma política que seja, simultaneamente, agronômica, ambiental e capaz de estimular
processos sociais e econômicos virtuosos, como os projetos-MB o são, e as experiências
concretas realizadas demonstram-no cabalmente. É preciso mais informação e sua
difusão para a sociedade brasileira, inclusive para contrapor-se aos “discursos
concorrentes” (agroecologia, desenvolvimento territorial, agricultura familiar, reforma
agrária, agronegócio, desenvolvimento local, entre diversas outras noções) ora em voga,
nenhum deles capaz de oferecer rota de maior êxito para o desenvolvimento rural
brasileiro.
(e) Por fim, recomenda-se, a partir da experiência dos projetos analisados, que o
componente relativo à pesquisa seja repensado, em sua inserção nas atividades
previstas. Conforme antes indicado, são partes do projeto que não tem funcionado
adequadamente e, assim, a estratégia de sua contribuição necessita ser radicalmente
discutida. Como se trata de produção de conhecimentos que possa alavancar o projeto
global, sua relevância e indiscutível. Mas a forma e as metodologias de sua participação
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nos “microbacias” são ainda incertas. A recomendação, já adiantada anteriormente, é
que se proceda a uma tentativa de encaminhar as atividades de pesquisa sob outra
forma, como licitações nacionais, a fim de verificar se existe mais agilidade e
correspondência com as necessidades do projeto. Adicionalmente, é preciso igualmente
identificar mais claramente os requerimentos de conhecimento já percebidos, mas ainda
não concretizados. Uma ilustração sobre tal necessidade é a realização de um estudo
com metodologia rigorosa que identifique mais claramente os fatores que favorecem (ou
obstruem) as mudanças operadas no âmbito das microbacias, não apenas quanto à
adesão das famílias rurais em relação às práticas recomendadas, mas também em
relação à participação coletiva das famílias diretamente afetadas. Quais seriam os fatores
contribuintes para adensar as formas de participação social estimuladas pelos projetosMB? Que circunstâncias estimulam e que variáveis podem representar obstáculos à
mobilização das famílias e sua participação nas atividades? Nem sempre apenas os
fatores locais são decisivos e, se assim for, existiriam fatores regionais ou de outro plano
que contribuem e, neste caso, quais?
Ainda sob tais considerações, a pesquisa poderia responder mais profundamente sobre
os impactos dos projetos em relação à redução da pobreza rural e as iniciativas de
geração de renda através de incentivos diversos oferecidos. No tocante ao primeiro
aspecto, por exemplo, o caso catarinense tem feito esforço de aprofundar as iniciativas
previstas a partir de uma verificação de relativa obviedade: as famílias rurais que
constituem os setores sociais mais pobres não formam conjunto homogêneo e, desta
forma, é preciso ter conhecimento mais amplo sobre a diferenciação social e econômica
que caracteriza tal conjunto, assim permitindo ação mais conseqüente na direção dos
mais pobres do campo para alcançar o objetivo geral e mais socialmente relevante de
redução dos níveis atuais de pobreza rural. Quanto às iniciativas no campo da
“agregação de valor” ou projetos de “geração de renda”, pouco ainda se sabe acerca de
seus resultados e pesquisas em Economia Agrícola precisam ser urgentemente
estimulados, com o intuito de aferir os impactos reais e potenciais de tais iniciativas.
Anexos
1. Visitas realizadas nos dois estados (agosto e dezembro de 2007)
(15 de agosto): primeira visita à coordenação do projeto catarinense, em Florianópolis
(25-27 de agosto): visita aos municípios de Seara e Piratuba (Santa Catarina)
(30 de agosto): entrevista, em Porto Alegre, com agricultores e técnicos de Angelina (Santa
Catarina), os quais visitavam a cidade para assistir à feira agropecuária “Expointer” nas cercanias
de Porto Alegre
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(2-3 de setembro): visita aos municípios de Lages e Capão Alto (Santa Catarina)
(05-10 de setembro): visita à coordenação do projeto paulista, em Campinas. Visita a municípios
da regional de Dracena (Dracena, São João do Pau D’Alho, Tupi Paulista e Junqueirópolis),
visitas a municípios da regional de Botucatu (Laranjal Paulista, MBH Água do Choça, Pratania),
entrevista em Campinas com os técnicos do Banco Mundial
(21-23 de outubro): visita à regional de General Salgado, e aos municípios de Nhandeara,
Lourdes, Auriflama e Sud Menucci). Nova entrevista com os coordenadores estaduais, em
Campinas
(06 a 11 de novembro): terceira visita a campo, em São Paulo. Entrevista com os operadores
estaduais do PEMBH
(7 e 8 de novembro): visita a Florianópolis, para entrevista com membros da coordenação
regional do projeto “Microbacias”
(20 e 21 de novembro): visita a Florianópolis, para entrevista com coordenação do projeto e
levantamento de dados adicionais
2. Observação sobre a bibliografia consultada
Este documento não lista, em face de sua natureza não acadêmica e seus objetivos de discussão
mais “livre e aberta”, os textos, artigos e livros que formam a bibliografia consultada para a sua
elaboração. A maioria de tais fontes é formada de documentos internos aos projetos e do Banco
Mundial, como “ajudas-memória” e outros textos de distribuição relativamente restrita. Também
foram consultados relatórios elaborados, algumas vezes, pelos escritórios locais de extensão
rural, em Santa Catarina e em São Paulo e, outras vezes, relatórios de escritórios regionais,
especialmente no caso paulista.
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