Zander Navarro - MBH.Brasil.Revised
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Zander Navarro - MBH.Brasil.Revised
Manejo de recursos naturais ou desenvolvimento rural? O aprendizado dos ”projetos microbacias” em Santa Catarina e São Paulo (Versão preliminar) Zander Navarro1 - Dezembro de 2007 Professor associado do Departamento de Sociologia da UFRGS (Porto Alegre) e pesquisador no “Institute of Development Studies” (IDS, Inglaterra) 1 Apresentação Este é um estudo solicitado pela FAO (Roma) e foi objeto de reflexão e escrito em diferentes momentos ao longo do segundo semestre de 2007. Constou de diversas viagens realizadas aos dois estados onde os projetos estão em andamento (Santa Catarina e São Paulo), durante as quais foram desenvolvidas inúmeras entrevistas, coletados dados, verificados os levantamentos antes existentes e, especialmente, foram concretizadas visitas a campo em municípios previamente selecionados. Em tais momentos, houve intenso diálogo com os operadores do projeto e com famílias rurais beneficiárias acerca das vicissitudes de tal política pública, seus resultados e o aprendizado que pode ser extraído deste esforço de pesquisa. Este esforço de pesquisa não poderia ser realizado sem a inestimável colaboração e o apoio de um grande número de colegas envolvidos, direta ou indiretamente, com tais projetos. Em especial, destaco os responsáveis principais, no plano estadual, os quais comandam a gerência operacional dos correspondentes “projetos microbacias” ora em andamento. São notáveis profissionais, responsáveis, em considerável proporção, pelo expressivo sucesso de tais iniciativas, as quais vem revolucionando o manejo dos recursos naturais sob o comando das famílias rurais, a compreensão sobre o que pode significar agricultura sustentável e, igualmente, estimulando a crescente capacidade social e política dos coletivos sociais que perseveram em atividade produtiva e econômica tão incerta, como é a agricultura. Em conjunto com os colegas que atuam em âmbito regional e local, cuja competência igualmente ressalto, respondem em grande parte (o que é uma das conclusões deste trabalho) pelos resultados auspiciosos até aqui alcançados, sem paralelo na história agrária brasileira. Não poderei citar nomes, sob pena de cometer a injustiça da omissão, mas registro meus sinceros agradecimentos pelo crucial apoio recebido. Seria desafiador expressar corretamente minha gratidão pela receptividade e o permanente interesse demonstrado por esses colegas na realização deste estudo. Os projetos centrados em microbacias também não se materializariam se não encontrássemos ambientes sociais criativos, abertos e autênticos, assim como caracterizados pela manifesta e genuína esperança e comprometimento com o desenvolvimento rural, processo de mudança definido por mais igualdade, prosperidade material e capacidade de protagonismo social e político. As famílias rurais brasileiras, não apenas as catarinenses ou paulistas, neste sentido, estão dispostas e preparadas para transformar esses espaços sociais em ambientes societários propícios a uma ação combinada e virtuosa que faça a ação estatal consentânea com as suas aspirações e demandas. Às famílias rurais brasileiras mais necessitadas, este estudo é dedicado, na expectativa de que novos projetos, semelhantes aos “microbacias” em andamento, possam ser implementados igualmente em outros estados, contribuindo para reduzir os alarmantes níveis de pobreza rural e as desigualdades sociais, mas, sobretudo, ampliando o otimismo da vontade e da razão entre a vasta maioria da população rural. Sumário Introdução (p. 3) 1. Os projetos microbacias e o contexto de sua implementação (p. 6) 2. A história técnica dos projetos (p. 10) 3. Os projetos e suas situações concretas: alguns exemplos destacados (p. 16) 4. Desafios para o desenvolvimento dos projetos (p. 27) 5. Os projetos-MB: é possível repeti-los? (p. 33) 6. Recomendações (p. 40) Anexos (p. 45) 2 Introdução O presente estudo apresenta e analisa, sob foco comparativo, dois projetos implementados nos estados de Santa Catarina e São Paulo, em anos recentes, a partir de acordos técnicos e financeiros entre os governos daquelas unidades federativas e o Banco Mundial. São projetos que refletiram em sua formatação inicial, especialmente o projeto implementado em solo catarinense, preocupações principalmente conservacionistas em seu sentido mais estrito ou, quando muito, agronômicoambientais. Nasceram, em resumo, como projetos de manejo de recursos naturais destinados a difundir ações de controle de processos erosivos e do movimento de água em microbacias hidrográficas. Contudo, sua evolução, ao longo dos anos de implementação, demonstrou uma visível potencialidade de serem transformados, ambos os projetos, em políticas públicas de intervenção em áreas rurais que podem estimular novas e múltiplas dinâmicas, em outras esferas de ação social, não apenas modificando os processos produtivos, mas também os arranjos institucionais locais ou regionais, e estimulando a mobilização e organização social. Sob tal evolução possível, é assim factível prever que são projetos com forte probabilidade de serem gradualmente moldados na direção de projetos de desenvolvimento rural centrados na redução de manifestações de pobreza ainda tão presentes nas áreas rurais. Como a história brasileira ainda não havia observado ações estratégicas claramente dirigidas à transformação visando o desenvolvimento rural (não obstante diversas iniciativas sob tal denominação, em diversas regiões e em diferentes períodos), a experiência desses projetos justifica, portanto, a necessidade de serem interpretados rigorosamente, extraindo o aprendizado mais generalizante e avaliando as chances de representarem modelos para difusão em outras partes do país.2 Desta forma, a análise desses projetos, após anos de sua implementação, justifica-se como uma tentativa de demonstrar a existência desta complexa e interdependente “cadeia articulada de processos” gerada por tais projetos em diversas, mas convergentes, direções. Sejam as estritamente produtivas, sejam aquelas de natureza sócio-ambiental ou, ainda, os processos sociais organizativos e a nova configuração institucional em diversos municípios onde foi implantada esta política (neste Há, na vasta literatura que discute desenvolvimento rural, diversas definições, sendo impossível sintetizar tais debates no espaço aqui disponível. O autor deste estudo distinguiu, em outro trabalho, as diversas acepções existentes que qualificam “desenvolvimento” (como rural, agrícola, agrário, territorial, local, sustentável, integrado, entre tantas outras adjetivações possíveis). Adotar-se-á aqui a noção, relativamente simplificada, que sugere ser desenvolvimento rural uma ação induzida de mudança no meio rural. Portanto, necessariamente é uma política pública que articula uma estratégia técnica e operacional, bem como define os objetivos a serem alcançados em determinado período de tempo. O resultado final, se falarmos em desenvolvimento rural, não se restringe ao aspecto meramente produtivo (o que seria, estritamente falando, “desenvolvimento agrícola”), mas gera objetivos de melhoria do bem-estar das populações rurais, sobretudo as mais pobres, além de aperfeiçoar a base técnica dos sistemas agrícolas sob formatos sustentáveis. Uma síntese de tal discussão foi publicada em Navarro, Zander (2001), “Desenvolvimento rural no Brasil: os limites do passado e os caminhos do futuro”, in Estudos Avançados, volume 15, número 43, setembrodezembro, p. 83-100, Universidade de São Paulo. 2 3 documento, chamados doravante apenas de “projetos simplificadamente, “projetos-MB”, ou apenas “microbacias”). microbacias” ou, Existiriam, de fato, razões lógicas ou situações concretas que antecipassem a evolução de tais políticas governamentais de manejo de recursos naturais na direção de projetos com a clara potencialidade de se constituírem, talvez pela primeira vez na história agrária brasileira, em projetos com o foco no desenvolvimento rural? Neste caso, quais fatores são os principais para ativar tal mudança ao longo do tempo? Quais são as implicações para os gestores do projeto ou até mesmo para a racionalidade técnica de tais políticas de intervenção em áreas rurais? Qual a história técnica dos projetos que sustenta analiticamente esta mudança citada? Existem situações concretas emblemáticas (“best practices”) que possam indicar, ainda que qualitativamente, essas mudanças sugeridas? São estas, e muitas outras, as perguntas que os projetos foram suscitando com o passar dos anos. Este estudo pretende, sinteticamente, tentar discutir algumas delas e oferecer possíveis respostas. É importante ressaltar ainda, a título de esclarecimento introdutório, que esta pesquisa não pretende demonstrar cabalmente a existência de relações de causalidade entre os processos ativados pelo projetos-MB e seus impactos posteriores. Para tanto, seria necessária uma armação metodológica distinta, também quantitativa e representativa da ambiciosa magnitude social e geográfica dos projetos, e que fizesse comparações mais densas e abrangentes com situações onde os impactos foram menores, ou até mesmo inexistiram. O que se pretende indicar é, tão somente, a forte e consistente relação de convergência tendencial entre os componentes dos projetos, em seu desenho inicial e sua lógica interna, especialmente a escolha de microbacias como a unidade de planejamento e ação operacional, e os resultados alcançados. A formatação técnica dos projetos-MB gerou, nas circunstâncias específicas dos estados onde foram implantados, um semnúmero de inesperadas dinâmicas sociais, econômicas e institucionais. Desta forma, é possível que estejamos em face de uma proposta de intervenção em áreas rurais animada por uma idéia geral de desenvolvimento rural que, não apenas potencialmente pode produzir resultados promissores, segundo as evidências recolhidas nos estados que já ostentam os “microbacias”, como, também, poderá ser replicada em outros estados brasileiros com iguais possibilidades de êxito. Igualmente, deve ser alertado que este estudo, em seu aspecto formal, organiza-se sob características não estritamente acadêmicas e obedecendo típico estilo da pesquisa científica. Sem perder seu rigor analítico, busca-se, no entanto, apresentar os projetos e seu desenvolvimento, as lições extraídas, os desafios encontrados e as recomendações possíveis sob linguagem relativamente distinta da acadêmica, permitindo desta forma uma apreensão mais rápida de tais experiências. Desta forma, este documento praticamente não apresenta citações bibliográficas e esclarecimentos conceituais extensos e minuciosos, no intuito de facilitar sua leitura. Delimitado em sua extensão, não pretende também adentrar detalhadamente os projetos e seus respectivos desenhos técnicos e operacionais. Desta forma, trata-se de analise que é, muito mais, uma visão panorâmica dos projetos-MB implantados em Santa Catarina, a partir de 1991 (concluído em 1999), e em São Paulo, este se iniciando em 2000. No primeiro caso, os catarinenses já comandando atualmente um “Microbacias-2” (desde 2001), ou seja, um segundo ciclo 4 que se beneficiou, imensamente, do aprendizado extraído do primeiro projeto. Já o caso paulista, ora concluindo o seu primeiro ciclo, se prepara para tentar a viabilização de um segundo projeto que consolide os resultados até aqui alcançados. Provavelmente, são estes os dois projetos que estão mais próximos da idéia de desenvolvimento rural e de maior sucesso em toda a história agrária brasileira e, assim, torna-se essencial conhecêlos e difundi-los, amplamente, para permitir que outros estados brasileiros possam analisar a possibilidade de instituir políticas similares em seus respectivos contextos. 3 Por fim, esta breve nota introdutória ainda salienta que a elaboração deste documento beneficiou-se de um estudo prévio realizado pelo autor, nos anos de 1998 e 1999, centrados naquela ocasião, particularmente, nos projetos-MB de Santa Catarina e do Paraná (o paulista estava apenas sendo iniciado), o qual acabou resultando em relatório de pesquisa não publicado. Naquela ocasião, tais dinâmicas sugeridas acima pareciam se esboçar nos casos analisados. Na coleta dos dados para a elaboração do presente relatório, contudo, novas visitas puderam demonstrar que significativa proporção das hipóteses então aventadas naquela ocasião mostraram-se demonstradas em diversas situações empíricas, o que será indicado em partes deste estudo.4 Seguindo-se a esta introdução, o estudo é formado de seis sintéticas seções, sendo iniciado com uma resumida contextualização do período imediatamente anterior, durante o qual condensaram-se os variados fatores e circunstâncias que estimularam a articulação destinada a concretizar tais iniciativas governamentais em suas características principais. Esta parte é seguida de uma síntese da “história técnica” dos projetos, quando se defenderá que, não obstante fatos históricos anteriores, o mérito inicial da formatação desses projetos está ancorado na experiência paranaense, que primeiramente elaborou uma proposta, a qual posteriormente influenciou (com as devidas adaptações) a iniciativa catarinense e, mais tarde, o projeto em São Paulo. O relativo sucesso no Paraná e, logo a seguir, em Santa Catarina, foi assim estimulando a formação de uma “comunidade técnica” em torno da proposta, atualmente sendo compartilhada com igual desenvoltura por diversos atores (profissionais ou não) nesses estados. Para não mencionar o Rio de Janeiro, onde existe projeto com características igualmente similares, embora com componentes mais focalizados no campo ambiental. A terceira seção do estudo resume alguns “casos exemplares” (“best practices”) nos dois estados, onde alguns focos específicos encontraram desenvolvimento expressivo, representando situações concretas que precisam ser mais bem pesquisadas, pois contêm lições generalizáveis. Esta parte é seguida pela quarta seção, que arrola alguns dos desafios mais complexos que as experiências dos projetos confrontaram, ao longo dos 3 Oficialmente, esses projetos são intitulados de “Projeto de Recuperação, Conservação e Manejo de Recursos Naturais em Microbacias Hidrográficas no Estado de Santa Catarina” (informalmente o “Microbacias-1”) e “Programa de Recuperação Ambiental e de Apoio ao Pequeno Produtor Rural” (o “Microbacias-2”), e em São Paulo o primeiro projeto intitula-se “Programa Estadual de Microbacias Hidrográficas” (PEMBH) e atualmente se negocia a sua extensão por um ano, antes que possa ser submetido à apreciação do Banco Mundial um segundo projeto, ainda sem título definido. Os catarinenses, por sua vez, negociam atualmente a extensão do “Microbacias-2” por mais três anos. Aquele estudo, encomendado pelo Banco Mundial, não foi publicado, intitulando-se “Manejo de recursos naturais e desenvolvimento rural: um estudo comparativo em quatro estados brasileiros (lições e desafios)”. Washington, Banco Mundial, setembro de 1999, 111p. 4 5 anos, os quais poderiam ser evitados em eventuais situações de novos projetos, por serem, muitos deles, corriqueiros nas estruturas institucionais e político-administrativas existentes no Brasil. Finalmente, antes da sexta seção final que lista algumas recomendações, a quinta e penúltima parte deste documento apresenta a sua análise mais ousada, quando se discute se existiria uma espécie de “receita de sucesso” correspondente aos projetos-MB, convicções nascidas da experiência concreta dos dois projetos aqui analisados (e os demais investigados na ocasião passada antes referida), as quais possam, portanto, convergir para uma proposta mais geral. Conclui-se, naquela seção, por resposta afirmativa, enfatizando-se que, embora não sendo formatações rígidas, e longe da idéia de uma “camisa-de-força” perfeitamente aplicável em qualquer outro estado brasileiro, o aprendizado acumulado por estas políticas públicas centradas em microbacias pode, sem dúvida, aportar valiosíssimas indicações técnicas e operacionais que abrem caminho para ações informadas pelo objetivo final de promover o desenvolvimento rural. 1. Os projetos microbacias e o contexto de sua implementação Iniciando-se pelo Paraná, a implementação, nos anos oitenta, dos projetos estaduais que paulatinamente passariam a ser denominados de “projetos microbacias” respondeu inicialmente a um contexto conformado por alguns fatores principais. Primeiramente, em face dos impactos, de variadas ordens, do intenso processo de modernização dos processos produtivos agropecuários ocorridos durante a década anterior, durante o chamado “milagre brasileiro”. Naqueles anos, particularmente o período 1968-1981, diversas regiões brasileiras experimentaram intenso processo de transformações produtivas, notadamente o Centro e o Sul brasileiros. Foram mudanças estimuladas por uma estratégia de expansão das atividades agropecuárias, impulsionada, sobretudo, pela constituição de uma política de financiamento abundante e subsidiado. Aquele período já foi intensamente estudado e, dentre seus impactos mais gerais, destaca-se a disseminação de práticas de uso da terra e dos recursos naturais, no geral, predatórias, acarretando diversos resultados danosos do ponto de vista ambiental (especialmente erosão e contaminação química). Simultaneamente à intensificação do uso de máquinas e equipamentos e à expansão de alguns cultivos comerciais então bastante valorizados no mercado internacional (especialmente a soja), não foram introduzidas, na magnitude correspondente, práticas agronômicas de controle dos processos erosivos, o desmatamento acentuou-se notavelmente e o uso indiscriminado dos recursos hídricos logo fizeram sentir seus efeitos ambientais, para não citar o uso abusivo de agroquímicos. Em outros locais, como foi o caso mais significativo de Santa Catarina, a expansão da produção de pequenos animais, sobretudo a suinocultura, acarretou iguais resultados ambientais negativos, como a contaminação dos cursos d’água com os dejetos dos animais. Um segundo fator, mais específico de cada caso estadual, se refere a aspectos que causaram repercussão profunda, notadamente no Paraná e em Santa Catarina. No primeiro caso, a expansão dos processos erosivos nascidos da expansão agrícola acima 6 referida, que não desenvolveu uma correspondente compreensão conservacionista apropriada. Desta forma, a expansão da soja naquele estado logo acarretou a manifestação de efeitos erosivos em proporções alarmantes, e voçorocas começaram a fazer parte da paisagem das áreas rurais paranaenses, chamando a atenção, cada vez mais, dos estudiosos, agricultores e profissionais atuantes em regiões rurais. Em Santa Catarina, por sua vez, o fato marcante é mais determinado e se refere às catastróficas enchentes ocorridas, em especial no sul do estado, em 1983 e 1984, quando as conseqüências de chuvas torrenciais, combinadas com o efeito-arrastão do acúmulo de águas oriundas das partes mais altas do estado, produziram inundações e considerável destruição de áreas urbanas e infra-estrutura, além de generalizada destruição em áreas produtivas da agricultura, inclusive gerando diversas vítimas. Tais fenômenos despertaram, nos dois estados, uma viva consciência sobre as prováveis causas, as quais estariam relacionadas, logo se percebeu, aos equívocos técnicos no processo de expansão da agropecuária ao longo da década anterior e seus efeitos acumulados ao longo dos anos. É também certo que, nesses dois estados, dois outros fatores foram contribuintes relevantes para a busca de novas orientações produtivas e agronômicas para o desenvolvimento das atividades agropecuárias. De certa forma estão relacionados entre si e referem-se à força social e econômica da chamada “agricultura familiar” nos três estados sulistas e, de outro lado, às trajetórias institucionais dos serviços de extensão rural e das organizações de profissionais das Ciências Agrárias. No primeiro caso, como se sabe, aquela macro-região se constitui no principal “maciço da agricultura familiar” no Brasil, reunindo aproximadamente 400 mil agricultores e sua contribuição para a oferta de determinados alimentos e matérias-primas é notória, em algumas atividades este setor sendo o principal responsável, se comparado com as atividades tipicamente empresarias existentes no país. Na década de 1980, como fruto do esgotamento do período expansionista antes citado e os desajustes macroeconômicos crescentes, este foi setor também seriamente afetado pela queda dos preços pagos aos agricultores, situações de endividamento, que se tornavam críticas em algumas atividades, mercados limitados e diversos outros problemas. Os profissionais das Ciências Agrárias (particularmente agrônomos e funcionários dos serviços de extensão publica) nesses estados não permaneceram alheios a este quadro preocupante, uma boa parte deles nascidos na agricultura familiar e sensíveis a essas mudanças que ameaçam aquele setor de produtores rurais. O peso dos impactos da ação de significativa parcela dos engenheiros-agrônomos e suas organizações, a partir dos anos setenta, não pode ser menosprezado na região sul do Brasil. Há uma forte relação entre o perfil sócio-cultural da maioria desses profissionais, (naqueles anos), nascidos em pequenas propriedades rurais e conhecedores da realidade agrária, particularmente no tocante aos impactos ambientais do formato tecnológico implantado durante a modernização econômica do período. São incontáveis os eventos e ações que poderiam comprovar esta ativa ação profissional contrária ao padrão tecnológico da época, talvez bastando salientar que no Rio Grande do Sul, já em 1982, a Assembléia Legislativa aprovou a chamada “Lei de Agrotóxicos”, que coibia drasticamente o uso de agroquímicos (depois revogada pelo Supremo Tribunal Federal). No Paraná, por sua vez, aprovou-se uma inovadora e conservacionista “Lei de Uso do Solo”, em 1984 (Lei 8.014) 7 e, no ano seguinte, realizou-se em Toledo, no oeste paranaense, o primeiro “Congresso de Microbacias” que se tem notícia no Brasil, organizado pelas associações de agrônomos do Estado. Santa Catarina, por sua vez, à par de inúmeros eventos na mesma época, destaca-se por um feito posterior, qual seja, por sediar a primeira empresa pública de assistência técnica e extensão rural que modificou formalmente a sua missão institucional, passando a promover o “desenvolvimento rural sustentável” (já nos anos noventa). Há, portanto, uma estreita relação entre o sucesso de projetos e programas de cunho conservacionista e ecológico nesses estados e o comportamento profissional de uma geração de técnicos mais aberta a tais inovações. Era necessário, portanto, que se pensasse em uma outra metodologia de ação governamental em áreas rurais, que introduzisse claramente um novo manejo dos solos, ampliasse a capacidade de retenção de água e permitisse melhor manejo de seu movimento nas microbacias, entre outras possibilidades de melhor manejo dos recursos naturais. A esta consciência sobre a necessidade de mudança agregou-se, nesses dois estados, como afirmado, a existência de uma parte considerável dos corpos de profissionais das Ciências Agrárias que já mantinha sentimento crítico em relação ao processo expansivo da década anterior e que via a necessidade de uma “outra agricultura”, que fosse ambientalmente mais equilibrada. Na segunda metade dos anos oitenta, quando a noção de “agricultura sustentável” tornou-se mais corriqueira, ocorreu aqui uma convergência de interesses, visões sobre agricultura e, desta forma, os “projetos microbacias” puderam assim nascer sob uma confluência virtuosa de interesses profissionais, busca de novos sistemas agrícolas mais sustentáveis e os imperativos de uma realidade agrícola e agrária que ansiava por propostas exeqüíveis que não repetissem os equívocos do passado. Contudo, se estes foram, em grandes linhas, alguns dos aspectos que marcaram a década de 1980 tendentes a enraizar condições diversas que estimularam o nascimento dos projetos-MB, o final daquela década e, particularmente, os eventos sociais e políticos (e suas conseqüências institucionais) na década de 1990 foram notáveis. Em larga medida, são os processos que explicam pelo menos algumas partes do encadeamento observado no desenvolvimento dos “microbacias” então formalizados e implementados, nesta ultima década, no Paraná e em Santa Catarina. É que os anos noventa conhecerão mudanças profundas em diversas esferas da vida social, as quais interferiram diretamente no desenvolvimento dos projetos analisados neste estudo. No caso catarinense, alterou sua “história técnica”, na passagem do primeiro para o segundo projeto e, em relação ao caso paulista, determinou seus focos principais nesta primeira fase que o projeto vem experimentando, ora em conclusão. Na década de 1990, mais especificamente, as condições de economicidade das atividades agropecuárias foram tornadas muito mais difíceis, durante a maior parte dos anos daquele decênio, com os preços pagos aos agricultores caindo, em termos reais, a níveis alarmantes. Apenas na parte final da década, com a expansão do comércio mundial de matérias-primas de origem agrícola e a resultante elevação das cotações internacionais é que melhorou o ambiente econômico e financeiro dessas atividades. Mas aquelas voltadas ao mercado interno, por sua vez, precisaram esperar anos ainda mais recentes para observar alguma elevação nos preços recebidos. Desta forma, cristalizaram-se 8 pressões para tornar os projetos mais ativos também em relação a componentes de geração de renda e o estímulo à implantação de novas atividades produtivas mais rentáveis tem sido crescente. Outro fator, ao longo daqueles anos, foi o aparecimento na agenda internacional (e, depois, também na agenda política brasileira) do tema “pobreza”. Escapa aos objetivos deste estudo identificar com precisão as origens deste tema e sua inserção crescente nos debates mundiais. Sem surpresa no caso brasileiro, contudo, em vista da forte presença proporcional de famílias rurais pobres, os projetos precisaram incorporar um foco crescentemente além do “ambiental e agronômico”, passando a se organizar também em favor das famílias rurais mais pobres e, desta forma, priorizando regiões estaduais onde processos de degradação ambiental fossem visíveis, mas também onde a incidência de pobreza rural fosse igualmente mais significativa, exigindo a ação governamental mais incisiva. Esta nova orientação “a favor dos mais pobres” recebeu forte estímulo, em meados daquela década, com a institucionalização da expressão “agricultura familiar” (em 1995) e, logo a seguir, a instituição de um leque de políticas destinadas a este segmento de produtores. Foi medida de imensa importância social, inédita na história agrária brasileira e que lentamente veio favorecer o surgimento de iniciativas governamentais dirigidas a este segmento. Desta forma, os “Microbacias”, em seu desenvolvimento mais recente, em ambos os estados, igualmente reorientou-se para um foco centrado nos agricultores familiares, especialmente os mais pobres, e em Santa Catarina foi inclusive desenvolvida categorização operacional que é relevante para maximizar os resultados finais na direção de dirigir os esforços, sobretudo, para as camadas de produtores rurais efetivamente pobres, com tal política se tornando explicitamente voltada à minimização da pobreza rural. Adicionalmente, como fator contribuinte para a ativação social dos projetos-MB, uma vez formados os coletivos nas correspondentes microbacias (associações, comissões de microbacias, cooperativas ou outra forma organizativa), o fato de existirem políticas federais que potencialmente podem ser objeto de reivindicação dos produtores organizados vem servindo como atrativo adicional para mobilizar as famílias rurais e assegurar a sua organização nas comunidades rurais existentes nas microbacias onde os projetos vem incidindo ao longo dos anos. Ainda como processo de mudança social relevante a ser notado, típico dos anos noventa e com forte impacto sobre a implementação dos “Microbacias”, fator que favorece a aceleração do projeto, de um lado, mas pode torná-lo também objeto de dificuldades operacionais enormes, a crescente politização das áreas rurais brasileiras é outra característica saliente do período. O processo de democratização pós-constituinte e a sólida institucionalidade democrática que foi sendo afirmada nos anos recentes vem significando, pela primeira vez em nossa história, que as classes sociais subalternas do mundo rural não apenas vem encontrando novos espaços políticos para a expressão de suas demandas, mas, até mesmo, vem sendo estimuladas a fazê-lo via mediação de diferentes outros atores, como partidos políticos, movimentos sociais e lideranças políticas diversas. Isto significa, portanto, que ações governamentais, como os “Microbacias”, gradualmente se defrontam com ambientes sociais mais disputados pelos diferentes grupos sociais interessados. Este fato, tornado mais e mais agudo com o passar dos anos, claramente dificulta, ainda mais, a ação extensionista dos projetos e torna igualmente mais premente a formação adequada de tais profissionais, os quais 9 precisarão lidar com realidades rurais cuja complexidade foi se tornando extraordinária, a partir da década de 1990 em diante. Igualmente relevante como um molde de crescente influência na mesma década foi a crescente imposição normativa de fatores ambientais, assim materializando um longo esforço social, congregando diversos atores sociais, que desde o início da década anterior, vinham desenvolvendo formas de pressão diversas no intuito de influenciar o nascimento de políticas mais conseqüentes de proteção ao meio ambiente. Nos anos recentes, a evolução dessas tendências observou a aprovação de leis e regulamentos que fizeram o Brasil um dos países mais regulados neste campo. 5 Por fim, sem mencionar outros aspectos que poderiam também impactar o desenvolvimento dos projetos-MB, é preciso ainda salientar o processo de descentralização política e administrativa ensejado no Brasil após os anos de democratização inaugurados com a promulgação da Constituição de 1988. A transferência de responsabilidades para outros planos subnacionais, como os estados e, particularmente, para os municípios, representa tendência histórica que a atual Constituição aprofundou. Tal mudança significou que, na década passada, foi sendo ampliado este processo, via a instituição de espaços novos de participação social e crescente capacidade decisória. Como os conselhos, por exemplo, que atualmente definem, em quase todas as áreas, a alocação de recursos, as estratégias municipais, as prioridades e diversos outros objetivos previstos pela descentralização das políticas setoriais. Os projetos-MB iniciais, no Paraná e em Santa Catarina, que no início avançaram timidamente na mobilização social das famílias rurais beneficiárias, lentamente foram incorporando os efeitos da nova conjuntura social e política vigente no Brasil nos últimos dez anos, durante os quais políticas sociais participativas passaram a ser a marca nacional. 2. A história técnica dos projetos 5 Os últimos anos aceleraram notavelmente a produção normativa sobre meio ambiente no Brasil. Desde o pioneiro “Código Florestal” (1965), passando pela “Lei de Proteção à Fauna” (1967), o primeiro marco legal de maior relevância foi a Lei 6.938 (1981), que instituiu a “Política Nacional de Meio Ambiente”, criando posteriormente o Conselho Nacional do Meio Ambiente (regulamentado em 1986 e prevendo a participação de representantes da sociedade civil), além de propor as noções de “Áreas de Proteção Ambiental” e de “Reservas Extrativistas”. Posteriormente, destacam-se os inovadores preceitos da Constituição Federal de 1988 relativos ao meio ambiente (especialmente o artigo 225, que estabelece que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo às presentes e futuras gerações” e propõe, entre outros objetivos, os “espaços protegidos”, também chamados de “unidades de conservação”), a proposta de lei número 2.982, de 1992, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (que, ainda não aprovada, tem estimulado, contudo, alguns estados a anteciparem-se, criando seus próprios sistemas), a Política Nacional de Recursos Hídricos, de 1997, a “Política Nacional de Educação Ambiental” (1999) e, finalmente, a importante Lei de Crimes Ambientais, promulgada em 1998. No plano dos estados, várias leis têm seguido estas orientações federais, ampliando notavelmente o campo normativo relativo aos “temas ambientais” no Brasil. Entretanto, como é sabido, o principal entrave à efetividade das leis têm sido sua implementação, em vista da escassez de recursos financeiros e humanos e a debilidade dos mecanismos de fiscalização, insuficientes na maior parte dos casos. 10 Esta seção sugere, sucintamente, as trajetórias técnicas (e operacionais) dos dois projetos ora sendo analisados neste estudo. Embora os documentos que apresentam as políticas governamentais sob o foco das microbacias sejam similares em alguma proporção significativa, por serem o resultado de consultas e formas de colaboração entre os seus principais operadores, sua concretização, como é claro, reflete realidades distintas e os resultados são, assim, significativamente diferentes. Esta parte apenas apresenta os projetos, sua formatação inicial, principais características e alguns aspectos mais específicos que se mostraram particularmente relevantes durante a implementação dos projetos-MB nos dois estados. 2.1 O projeto catarinense Os projetos-MB, influenciados pelo esforço inicial realizado pelos técnicos paranaenses, repetiram, em sua primeira fase (ou seja, os primeiros ciclos), uma estrutura bastante parecida formada por vários “componentes”. São as partes do projeto, envolvendo montantes financeiros distintos e densidades institucionais também distintas, pois são partes constitutivas do projeto que, em cada estado determinado, apresentam existências variadas. Por exemplo, o componente “pesquisa”, se comparados os casos paranaense, catarinense e paulista, nos anos noventa, apresentaria situação bastante diferenciada, com São Paulo podendo ostentar instituições de pesquisa agrícolas quase centenárias e uma ciosa “tradição de pesquisa” (muitas vezes impermeável a inovações), enquanto Santa Catarina, no outro oposto, apresenta número menor de instituições, recursos humanos em menor número, trajetórias de pesquisa menos consolidadas e, desta forma, capacidade de influenciar o “Microbacias” bem mais limitada, pelo menos potencialmente, embora instituições mais abertas a propostas inovadoras. O projeto paranaense, que foi a matriz inspiradora de todos os demais, elaborado ainda no final da década de 1980 (em Santa Catarina) e, posteriormente, também inspirou as reflexões dos técnicos em São Paulo, a partir da segunda metade da década seguinte, apresentava, originalmente, uma estrutura técnica e operacional formada de diversos componentes, a saber: (i) pesquisa agrícola (ii) extensão rural (iii) o fundo de manejo e conservação do solo e controle da poluição (iv) adequação de estradas municipais (v) terminais ferroviários de distribuição de calcáreo (vi) desenvolvimento florestal (vii) monitoramento e fiscalização de uso do solo (viii) treinamento e capacitação (ix) administração do projeto A formatação do projeto catarinense, inspirada neste cardápio inicial, por seu turno, incluiu alguns componentes em outros, eliminou o item (v) referente aos terminais ferroviários e introduziu uma novidade importante, o componente de “mapeamento” das microbacias, instrumento tornado cada vez mais relevante, embora de difícil consecução técnica. São Paulo, por sua vez, alguns anos depois, qualificou as atividades 11 de pesquisa como um componente de “pesquisa adaptativa” e introduziu outro componente, àquela altura já refletindo a conjuntura típica dos anos noventa, qual seja, o componente de “organização rural”. Como salientado em outra parte, o caso do “Microbacias-1” catarinense, refletindo diversas influências, antes citadas, foi muito mais “conservacionista” e seus resultados indicaram ações, especialmente, no tocante a novas práticas agronômicas que então se difundiram. O projeto tentou disseminar um conjunto de atividades relacionadas ao “campo ambiental”, em acordo com as particularidades de cada região do estado. Alguns resultados produziram grande repercussão, salientando-se, neste particular, os estudos realizados na bacia do Chapecó, no oeste catarinense. Nesta região, marcada pela presença pujante da suinocultura, os problemas de contaminação dos cursos de água estavam se tornando alarmantes, e o estudo realizado por Bassi (1998)6 demonstrou categoricamente a importância do novo manejo de solos e controle do movimento da água nas microbacias para reverter os efeitos do continuado, mas equivocado, manejo de solos, as práticas danosas da suinocultura intensiva e o desconhecimento generalizado sobre as possibilidades de controle do movimento da água e da contaminação química no interior de microbacias hidrográficas. Entretanto, é consenso entre os profissionais ligados ao projeto que o “Microbacias-1” apresentou diversos problemas em sua implementação. Não foi, de fato, participativo, não obstante prever a formação das “comissões de microbacias”, quando constituídas, pois manteve, em sua implantação, a tradição de uma cultura institucional centralizadora e que, tradicionalmente, desenvolvia uma extensão rural “de cima para baixo”. Desta forma, não foi capaz de animar formas organizativas duradouras, após a conclusão das atividades do primeiro projeto. Além disto, ao enfocar, talvez exageradamente, o foco ambiental, não conseguiu despertar o interesse amplo das famílias rurais. “Não fascinou os agricultores”, conforme menção de uma agricultora, em outra parte deste documento. Somente com o segundo projeto, mais claramente voltado às atividades produtivas e econômicas, além de introduzir um corpo de incentivos amplo, é que o projeto atraiu mais as comunidades-alvo. Conforme outro agricultor, esta mudança foi essencial, pois “o projeto pega quando atinge a propriedade, a roça. O pessoal fica interessado. Não só a parte do dinheiro, mas [também] conservação de solo, proteção de fontes”. A história técnica do “Microbacias-1” catarinense mostrou diversos aspectos salientes. Um deles, marcante no desenvolvimento do projeto, foi a relativa continuidade de sua gerência geral. O coordenador principal foi substituído por um período relativamente curto (assumiu posição na área ambiental e contribuiu decisivamente para aproximar o projeto daquela área). Posteriormente retornou e o projeto, desta forma, não teve, de fato, a interrupção de sua coordenação, ao longo dos diversos anos de implementação do projeto em seu primeiro ciclo. Alguns componentes tiveram desempenho sofrível (como “pesquisa”), outros enfrentaram diversas idas e vindas, como o componente 6 Ver Bassi, Lauro (1998), “Impactos sociais, econômicos e ambientais na microbacia hidrográfica do Lageado São José, Chapecó, Santa Catarina (estudo de caso)”. Chapecó: Epagri (projeto “Microbacias”, versão preliminar) 12 readequação de estradas, em virtude da inexistência de empresas preparadas para seguir a lógica prevista no projeto. O destaque, contudo, ficou para a “ação extensionista”, em face da sólida tradição da extensão rural no estado, formada ainda, naqueles anos, por profissionais não apenas competentes, mas fortemente comprometidos com as atividades da empresa pública de extensão rural em Santa Catarina. As mudanças, no final da década de 1990, que transformaram o primeiro projeto no atual “Microbacias-2”, de fato, refletem as mudanças políticas e sociais no estado, gerando uma outra conjuntura política, que passou a pressionar por um projeto de desenho técnico diferente. Mas refletem também o aprendizado do primeiro “Microbacias”, o qual foi incapaz, por exemplo, de aumentar os níveis de renda dos agricultores participantes, conforme diversos estudos de avaliação realizados no final do primeiro projeto. Desta forma, uma das características principais do primeiro ciclo, a ênfase em uma unidade operacional e de planejamento, a microbacia, central para estimular uma lógica sistêmica e sócio-ambiental, perdeu parcialmente a sua ênfase no segundo ciclo, não obstante continuar sendo chamado pela marca pública sob a qual ficou conhecido, o “Microbacias-2”. As discussões que antecederam a elaboração e, posteriormente, o projeto que formalizou o segundo projeto, desta forma, forçaram a introdução de visão mais ampla, com seus componentes englobados em quatro dimensões principais. Primeiramente, o de administração, monitoramento e avaliação, seguido de três outros, que são mais operacionais, o de gestão ambiental, o de inversões rurais (onde estão os diversos incentivos) e o de organização e desenvolvimento institucional. Este último representa, em especial, a principal novidade do segundo projeto, enfatizando fortemente a necessidade de organização social das famílias rurais. Para tanto, modificou-se a metodologia de mobilização dos participantes, com diversas técnicas de animação de grupo, com o projeto sugerindo a formação inicial de “grupos de animação da microbacia” (GAM), antes de se decidir pela formação das “associações de desenvolvimento das microbacias” (ADM). Com ousadia, o projeto facultou a possibilidade de contratação do técnico que acompanharia a microbacia pela associação. Este técnico foi chamado de “facilitador”, um eufemismo que, em si mesmo, reflete uma outra conjuntura política, sob a qual as palavras denotando supostas hierarquias perderam também espaço na linguagem dominante. O componente de inversões rurais, por seu turno, incluiu a novidade de prever recursos para “melhoria de renda” (que é, concretamente, onde devem surgir os projetos de geração de renda) e a linha de “melhoria de habitabilidade”, sob a qual o segundo projeto tem alcançado grande atratividade, pela possibilidade de financiar, com uma parte subsidiada, a melhoria das casas, a construção de banheiros e, por vezes, até mesmo a construção de residências novas para as famílias mais pobres. 2.2 O PEMBH de São Paulo Como antes sugerido, o PEBMH, que é a sigla oficial do “Microbacias” paulista, praticamente seguiu a formatação dos projetos paranaense e catarinense, com pequenas adaptações, fruto das especificidades institucionais daquele estado. O seu desenvolvimento, contudo, foi modificando a lógica de seu desenvolvimento, aperfeiçoando-o com o passar do tempo. Cite-se, a título de ilustração, dois aspectos 13 técnicos de grande relevância na lógica sistêmica de tais projetos. Primeiramente, o componente “readequação de estradas”, inicialmente pensado, sob a diretriz descentralizadora (e neoliberal) típica da segunda metade dos anos noventa, para ser oferecido às empresas privadas estaduais, que fariam as readequações decididas em cada município. Na prática, esta diretriz não funcionou, pois o componente de estradas oferece, de fato, obras de porte e de dimensão econômica reduzida para atrair a maior parte das empresas privadas do setor. Desta forma, a idéia inicial de realizar licitações que, supostamente, atrairiam diversas empresas, não prosperou, e este componente acabou ficando sem realização. A solução foi convocar a empresa estadual que construía tradicionalmente algumas estradas vicinais no interior do estado e convocá-la para operacionalizar aquele componente. Os resultados têm sido bastante satisfatórios neste aspecto, pois aquela empresa foi valorizada em suas atividades, que foram ampliadas e, em especial, desenvolveu capacidade técnica segundo a lógica dos projetos microbacias, pois nestes a readequação de estradas observa diferente estratégia técnica, pois se associa ao movimento das águas em seu interior e não à lógica de engenharia convencional que antes se utilizava. Outro exemplo diz respeito ao componente “mapeamento” (das microbacias), onde o mesmo problema ocorreu, pois também neste caso não surgiram empresas capazes de realizar o solicitado com agilidade. Ou, então, aquelas que se apresentaram o fizeram sob orçamentos proibitivos, desestimulando a contratação. Novamente, a solução foi realizar diversos cursos de treinamento entre os próprios técnicos do projeto e a eles oferecer alguns equipamentos para o levantamento de dados de campo e, posteriormente, a elaboração dos mapas das microbacias e das regiões. Atualmente, como resultado desta estratégia, o “Microbacias” paulista já conta, em quase todas as regiões, com mapas de destacada qualidade técnica, utilíssimos para o planejamento, com os agricultores, das ações no interior das áreas trabalhadas. Também neste componente foi formada uma capacidade técnica instalada invejável, sem comparação, provavelmente, com nenhum outro estado brasileiro. O projeto paulista, refletindo a conjuntura típica da segunda metade dos anos noventa, foi iniciado sob ótica de ação distinta do foco mais conservacionista dos projetos que precederam-no, pois assumia, claramente, como suas prioridades, uma estratégia que combinava objetivos ambientais com prioridades também dirigidas à erradicação (ou minimização) da pobreza rural. Já completando o seu ciclo, atualmente, um segundo projeto está sendo elaborado, e talvez possa ser implementado a partir de 2009, após um ano de transição, durante o qual serão feitas diversas avaliações. É interessante observar que a “carta-consulta” que preliminarmente adianta alguns aspectos de um segundo projeto, caso este venha a ser concretizado, inclui diversos aspectos ainda mais representativos de idéias, noções e jargões incorporados nos últimos anos no Brasil, como a idéia, entre outras, de “transições agroecológicas”, além de incorporar mais fortemente um foco dirigido à agricultura familiar. Importante ressaltar, em conclusão a esta seção, e refletindo as histórias técnicas desses projetos centrados em microbacias, que parece estar sendo perdida (ou rebaixada) uma compreensão fundamental que está logicamente presente em seus desenhos técnicos originais. Qual seja, o fato da combinação entre uma unidade física e geográfica (a 14 microbacia) e os processos participativos gerados pelo desenvolvimento social e político no Brasil em anos recentes, quando convergentes sob a dinâmica de um projeto, como os analisados neste estudo, terem a virtualidade de desenvolverem, sob circunstâncias favoráveis, diversos processos sociais de extrema relevância. Esta combinação virtuosa animada por uma ação extensionista preparada, geralmente produziu, em muitas regiões, como primeira mudança de visão e comportamento entre as famílias rurais, uma compreensão sistêmica de manejo dos recursos naturais no âmbito das microbacias, ou seja, com cada família individual crescentemente sendo capaz de perceber a relação das atividades em sua propriedade com as demais realizadas dentro da microbacia e, desta forma, desenvolvendo uma crescente capacidade de cooperação entre as famílias. A dimensão participativa, por sua vez, estimulando a aproximação entre as famílias rurais potencialmente integrantes do projeto, se bem sucedida, consolidava, aos poucos, um coletivo social que agregaria os interesses e as demandas das famílias participantes, em um primeiro momento apenas estimuladas pelos objetivos específicos do projeto. Gradualmente, contudo, se este processo se mostrasse bem sucedido, o que estaria sendo constituído, seria, na realidade, uma nova forma de representação social concretizada na organização que nasceu no âmbito da microbacia, sob a qual se desenvolveria a consciência dos interesses próprios e da identidade dos participantes. Da mesma forma, poderia ser estimulada, potencialmente, a criatividade social e política das famílias rurais participantes. Como conseqüência, o projeto, nesta evolução possível, estimulou em muitas regiões uma crescente dinâmica associacional em muitas microbacias, oportunizando às famílias rurais desenvolverem, com grande autonomia, a organização que melhor representasse seus interesses mais imediatos, alçando-os gradualmente ao plano das disputas sociais e políticas que, no município, decidem pela alocação de recursos e pela definição das políticas municipais. Assim, a cidadania pode se adensar, a participação social se ampliou, foram desenvolvidos mais mecanismos de prestação de contas e transparência e, em linhas gerais, também se aprofundou um processo de democratização das áreas rurais. Estes processos são, em síntese, os requerimentos fundacionais para a implementação de projetos de desenvolvimento rural, pois estes apenas ocorrem quando os atores interessados têm alguma autonomia associacional, crescente capacidade decisória, níveis de informação que se ampliam com o tempo e, desta forma, podem defender suas reivindicações de forma soberana. O resultado deste processo potencialmente virtuoso é, exatamente, um conjunto de definições municipais que permitem ações na direção do desenvolvimento rural, as quais são paradigmáticas não apenas da “vontade da maioria”, mas representam, sobretudo, processos políticos de argumentação em torno de diversas opções existentes e a seleção das políticas que melhor se ajustem aos interesses públicos mais gerais. Desta forma, se a centralidade nas microbacias for rebaixada, a dinâmica acima citada pode retornar ao seu leito convencional, pois as famílias rurais passariam a desenvolver identidades organizativas por outras razões, às vezes não menos importantes, mas não mais conseguindo reunir uma “ação sistêmica”, como apenas os projetos-MB podem ativar em áreas rurais. Esta é a ameaça evidenciada, mas claramente no projeto catarinense e, menos, no caso paulista. Se a microbacia, como unidade de planejamento e ação extensionista, deixar de manter a centralidade ainda existente, as possibilidades de 15 desenvolvimento das dinâmicas sócio-ambientais enfatizadas neste documento, provavelmente, se reduzirão fortemente, os projetos podendo perder sua pretensão multifacetada, para focar partes segmentadas. 3. Os projetos e algumas situações concretas: alguns exemplos destacados Esta seção sintetiza alguns dos aspectos mais destacados decorrentes de visitas realizadas em regiões, nos dois estados, onde o projeto tem encontrado maior receptividade e as circunstâncias de sua implementação vêm garantindo resultados de grande significação, em todos os componentes previstos – ou, pelo menos, a maior parte deles. Foram visitadas diversas microbacias em diferentes municípios, e as duas subseções sintetizam, em grandes linhas, evidências que se salientaram, realizadas as entrevistas, verificados os dados existentes, e analisados com os profissionais responsáveis e as famílias rurais o encaminhamento processual dos “microbacias” aos quais se relacionam, e os resultados obtidos até aqui. 3.1 Santa Catarina: a evolução de um projeto sócio-ambiental para um projeto tipicamente “social”? O “Microbacias” em Santa Catarina vem experimentando uma evolução que pode ser auspiciosa, de um lado, mas pode também ser preocupante, se algumas de suas tendências forem aprofundadas com o passar do tempo. Em sua primeira etapa, o projeto foi fortemente agronômico e ambiental, conforme antes indicado, na seção precedente. Sob tal formato, tal política alcançou em algumas regiões resultados importantes, alguns até mesmo notáveis. Mas, ou foi criticado pelos setores organizados das populações rurais (especialmente motivados por razões de oposição política), que não viam no projeto um “foco social” ou, então, por aqueles incapazes de perceber a importância das iniciativas sendo implementadas, essenciais para difundir uma consciência mais conservacionista entre os produtores rurais e, igualmente, instituir formas de manejo dos recursos naturais mais sustentáveis. As mudanças no campo político (e partidário) naquele estado, nos anos mais recentes, acabaram convergindo interesses e o “Microbacias-2”, atualmente em execução, reflete uma concepção relativamente alterada em relação à sua primeira etapa. Há mais ênfase em “ações sociais” e uma expectativa forte também em iniciativas de “geração de renda” e, aparentemente, as ações propriamente agronômicas e ambientais parecem ter perdido parte de sua ênfase inicial. As visitas realizadas nas regiões de maior destaque indicaram que uma nova linguagem parece estar sendo formada entre os profissionais atuantes no projeto, mais preocupados com a parte social e econômica, e menos com manejo de recursos naturais e, sintomaticamente, menos enfaticamente realcionados à “ação sistêmica” atrelada à microbacia. Não existem dados suficientes para comprovar se esta tendência pode ser definitiva, mas os indícios são fortes. Embora o projeto tenha exatamente esta ambição, qual seja, incluir ações em campo social, por seus impactos óbvios em termos de melhoria das condições de vida das populações mais pobres, é também inegável que o foco mais propriamente agronômico e ambiental não pode ser 16 rebaixado a plano coadjuvante, sob pena de perder o ideal da sustentabilidade produtiva e, também, a possibilidade de estabelecimento de uma dinâmica sócioambiental mais abrangente, em torno do desenvolvimento rural, que contemple ações em todas as esferas e campos de atividade. (a) As regiões de Lages e de Piratuba: rumo a um “projeto social”? Estas são duas regiões de Santa Catarina com características, de um lado, bem distintas, mas também com similaridades. Lages situa-se no chamado “Planalto catarinense”, onde no passado era corredor de transporte de gado em direção ao centro do Brasil, o que acabou gerando a formação de grandes propriedades dedicadas à pecuária extensiva. Tradicionalmente tem sido a região mais pobre do Estado e a atividade econômica mais relevante na região tem sido as indústrias de transformação de madeira, destinadas à produção de papel. As famílias rurais mais pobres, contudo, são em grande número e os municípios, no geral, espelham um nível de pobreza relativo mais baixo. Já Piratuba situa-se na fronteira com o Rio Grande do Sul, separada pelo rio Uruguai, sendo balneário que se beneficia de águas termais, o que atrai um grande número de visitantes. A indústria turística gera empregos e ativa a economia do município., mas a agricultura, contudo, é também muito pobre, embora formada quase exclusivamente, por pequenos agricultores familiares. Esta característica de altas proporções de pobreza rural é que fazem a similaridade entre as duas regiões. Em face de um cenário de incertezas com relação às atividades produtivas agrícolas, o “Microbacias”, em seu primeiro ciclo, não encontrou expressivo desenvolvimento nessas regiões, e as ações “sócio-ambientais” prosperaram apenas parcialmente. Em Lages, particularmente, o desempenho do projeto, em sua primeira etapa, foi bem abaixo do esperado. Mas o “Microbacias-2”, ao contrário, tem alcançado rápida velocidade e se tornado destaque em termos estaduais. A razão, como seria esperado, é de fácil explicação, e aponta para a natureza “social” do segundo projeto, com seu forte componente centrado em incentivos destinados à melhoria das habitações rurais. Em Lages e adjacências, o projeto vem aumentando sua velocidade de ampliação, especialmente em função dos incentivos de melhoria das moradias. No primeiro projeto, como esta não é região de agricultura intensiva, mas dominada pela pecuária extensiva, com os solos quase sempre cobertos por pastagens, os processos erosivos eram pouco preocupantes e aquele projeto inicial pouco realizou na região. Nem mesmo comissões de microbacias foram formadas. A região se tornou prioritária no segundo projeto, em face da elevada proporção de pobreza rural indicada em todos os levantamentos estaduais existentes. São 58 microbacias trabalhadas na região, em doze municípios, com aproximadamente 7,5 mil famílias potencialmente beneficiárias. Segundo a opinião dos técnicos envolvidos, foi decisiva a nova metodologia participativa empregada no segundo projeto, atribuindo maior poder de decisão às famílias rurais, inclusive na contratação dos profissionais que irão atuar diretamente nas microbacias, uma vez formadas a associações (o “facilitador”). As ações concentraram-se, até aqui, especialmente no componente de melhoria das habitações, ampliação do acesso à rede de energia elétrica, estímulo à formação das 17 associações e as tentativas de implantar projetos de “geração de renda”, esses últimos ainda embrionários. Em Capão Alto, vizinho a Lages, município de imensa extensão territorial, mas população rarefeita (apenas 2,3 habitantes por km2), apesar das longas distâncias entre as comunidades e os participantes do projeto, a associação formada na microbacia Fonte da Esperança vem impulsionando diversas iniciativas, em clara demonstração de que a metodologia de animação do projeto é eficaz para mobilizar as famílias rurais em torno das ações propostas. Contudo, a impressão geral, na região, é que o “Microbacias-2”, ainda transita na fronteira de um típico projeto assistencialista e, provavelmente, não está conseguindo alicerçar processos sociais mais robustos, no sentido de garantir sua sustentabilidade futura. Similarmente, em Piratuba, não obstante as diferenças dos sistemas de produção, o projeto vem sendo desenvolvido com alguma analogia em relação ao caso de Lages. As ações são especialmente centradas nos componentes de melhoria das habitações, desde reformas amplas ou simples “puxados” na casa, instalação de caixas de água e, em especial, a construção de banheiros domésticos. As quatro microbacias do município foram “abertas” e existe uma compreensão entre os profissionais extensionistas de que a mudança foi notável, pois, sugere um entrevistado, “o Microbacias-1 não fascinava as pessoas. A grande sacada foi porque tratou, fundamentalmente, da questão econômica”, adiantando que o problema principal em Piratuba e os municípios circunvizinhos era a renda baixíssima dos produtores rurais, boa parte deles, inclusive, sendo forçados a trabalhar como safristas, para completar a renda familiar. Curiosamente, não obstante a ênfase mais centrada em ações “sociais” e tentativas de implantar projetos econômicos, os técnicos julgam que o “foco ambiental” não foi perdido ou diminuído. Pelo contrário, insistem que atualmente os resultados ambientais são melhores do que aqueles obtidos com o Microbacias-1, pois têm conseguido maior participação das famílias rurais e, desta forma, tem sido possível, mas facilmente, argumentam, difundir também as ações no campo propriamente ambiental. Foram citadas diversas práticas novas adotadas pelos agricultores e destinadas a modificar seus sistemas agrícolas em uma direção mais ambientalmente sustentável, como a expansão de áreas com adubação verde ou a multiplicação de equipamentos de plantio direto. Ainda mais relevante para desenvolver uma “nova dinâmica” municipal, o atual prefeito é funcionário licenciado da empresa pública de extensão rural e entusiasta do projeto, o que vem favorecendo a interação intensa entre o projeto e o governo local. Talvez, o maior obstáculo em Piratuba, segundo indicam as evidências, será identificar lideranças rurais e agricultores mais ativos, apoiando-os para que possam comandar as iniciativas organizacionais no município, ainda embrionárias e relativamente dependentes da ação externa do projeto. Contudo, é igualmente importante salientar que, muito perto de Piratuba, outro município, Seara, apresenta a mais antiga microbacia-piloto do projeto (Nova Teutônia), e aonde as famílias rurais residentes já vem desenvolvendo sua capacidade de organização há muitos anos. Neste caso, foi decisiva a participação de um reduzido grupo de agricultores, os quais acreditaram no projeto, mobilizaram as demais famílias e foram ativos para manter o ânimo entre os participantes. Na microbacia residem 220 famílias, e na sede distrital aproximadamente 90 famílias. Antes uma região extremamente empobrecida, dedicada majoritariamente à produção de milho e feijão, o “Microbacias-1” não causou expressiva adesão, porque teria sido “de baixo para cima”, 18 ou “muito em conservação de solos”, pois oferecia, disseram, apenas “patamar de pedras” (terraços) e nada mais. A comunidade apresenta razoável coesão social, com quatro igrejas na sede distrital e diversas festas anuais. Não obstante tal histórico, a desistência dos mais jovens em relação à permanência no campo foi se acentuando: em 1994 existiam quatro times de futebol na microbacias, atualmente não é possível formar nenhum. O projeto, ao estimular a organização das famílias sob um foco participativo permitiu uma nova forma de escolha de prioridades, o que foi incentivando os agricultores a implantarem alternativas de produção, como leite e fruticultura. O “Microbacias-2”, insistem, teria sido muito diferente, com mais claro apoio da Epagri e da prefeitura local e assim formando gradualmente uma capacidade de reivindicação das famílias participantes: “antes, um saia daqui e pedia, agora se discute com todos e convoca o prefeito, que vem a Teutônia”. Citaram diversas iniciativas, como a procura por outras fontes de crédito, como o Pronaf ou, então, a instalação de telefones com o apoio da prefeitura (todas as casas no distrito-sede tem atualmente tal comodidade). Trata-se, portanto, de um caso onde a ação do “Microbacias” tem conseqüências diretas com as iniciativas que passaram a ser realizadas, embora seja também um caso que indica a importância de localizar agricultores que sejam verdadeiros “animadores”, mobilizando os demais, incentivando e usando parte considerável de seu tempo, voluntariamente, para sustentar as atividades associativas. (b) A região de São Miguel de Oeste: formando uma “dinâmica associativa” A visita a esta região catarinense fronteiriça com a Argentina demonstrou a grande variabilidade de situações encontradas nas microbacias, em relação à expectativa de constituição de uma dinâmica organizativa, que possa estimular a formação de associações, cooperativas ou outras formas coletivas. Embora uma região com alguma homogeneidade em diversos aspectos (por exemplo, a estrutura de propriedade da terra, que é semelhante em quase todos os municípios, predominando a agricultura familiar), as reuniões realizadas em diversas microbacias foram demonstrativas sobre os fatores que, principalmente, “dão partida” às iniciativas das famílias rurais, sua adesão ao projeto e o interesse posterior, inclusive em relação à manutenção da forma de organização escolhida, uma vez que a ação governamental deixe de existir em uma microbacia que foi “trabalhada” e, passado seu ciclo, deixa de sê-lo. É relevante salientar, por exemplo, que esta é a única região do estado onde os agricultores pagam anuidades destinadas à manutenção de suas associações, prática virtualmente inexistente no restante do estado. Foram visitadas as famílias rurais que moram na microbacia Velther (município de Guaraciaba), na MB Lageado Perau, em Tunápolis, e a MBH do Lageado Taquara, que se localiza no município de Descanso. Além disto, houve também a oportunidade de um encontro com alguns dos técnicos envolvidos no projeto, para discutir as características da “ação extensionista” na região de São Miguel do Oeste, onde se situam as localidades mencionadas. As microbacias visitadas espelham a diversidade sócio-econômica das famílias rurais, com as primeiras mais “estruturadas” (ou seja, dispondo de melhores estruturas produtivas) ao último caso citado, onde as famílias são mais pobres e encontram mais dificuldades para desenvolver suas atividades agrícolas. 19 A região como um todo apresenta desenvoltura associacional incomum, com a presença relativamente forte de diversas organizações de agricultores familiares, desde os sindicatos à recém-formada Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (FETRAF), passando por movimentos sociais de trabalhadores sem-terra e de mulheres rurais. Existem também diversas cooperativas, de crédito e de produção, a maior parte delas sendo integradas por pequenos agricultores. São 18 municípios habitados por aproximadamente 150 mil pessoas e o “Microbacias” já estimulou a formação de 91 associações, como resultado direto de sua ação na região. Outra característica incomum é a presença, em maior número, de profissionais mulheres escolhidas pelas associações para serem as técnicas “facilitadoras”, para usar o jargão instituído pelo projeto no estado. O contexto regional estimula, portanto, as iniciativas das famílias rurais, mas as visitas realizadas apontaram para situações muito distintas e circunstâncias variadas, em relação à capacidade organizativa dos integrantes das associações estabelecidas nas três microbacias visitadas. Em Guaraciaba, os agricultores da microbacia Velther (116 famílias no total) já conheciam a experiência de uma outra microbacia inicialmente aberta no município e procuraram se informar para saber como poderiam seguir a mesma trilha. São agricultores de renda média mais alta (em relação a outras famílias de Guaraciaba), tem mais acesso às informações e o facilitador escolhido é filho de um dos integrantes da associação. Demonstraram interesse pelo projeto porque “o que estava acontecendo, se continuasse, nosso futuro estaria comprometido”, conforme uma agricultora enfatizou. Já haviam tido em anos passados experiências com outros tipos de organização, normalmente cooperativas (como em praticamente todas as outras regiões visitadas), e tais situações anteriores produziram lembranças negativas, pois fracassaram. A lembrança de todos, ao serem convidados para aderir ao “Microbacias”, é que formas de cooperação não produziam bons resultados e resistiram aos apelos iniciais. Apenas um sentimento de “encurralamento” é que permitiu que algumas famílias, inicialmente, tivessem interesse nas ações propostas, pois parecia não existir mais alternativas produtivas recompensadoras para os produtores. Suas prioridades iniciais foram a preservação das 54 nascentes de água existentes na microbacia e, em segundo lugar, obter os incentivos destinados à melhoria das condições de habitabilidade. O projeto, nesta microbacia, aparenta seguir caminho sustentável e firme, pois os membros da associação já tomam diversas iniciativas relativamente autônomas, externas ao “Microbacias-2”, embora mantendo diversas atividades previstas por tal política. Há uma intensa ação destinada à preservação das fontes de água e diversas famílias se beneficiaram dos incentivos para realizar melhorias em suas casas. Mas as matas ciliares ainda não foram reconstituídas nos cursos d’água existentes e a coleta seletiva de lixo, em acordo com a prefeitura, está para ser iniciada brevemente. Demonstrando a autonomia organizacional formada, a associação é que estabeleceu a lista de prioridades entre os participantes, para indicar as famílias rurais que receberiam primeiramente os incentivos, não havendo recursos disponíveis para todos. Uma comissão formada visitou todos os moradores e discutiu os critérios e, desta forma, não houve sequer reclamações, no final, quando a lista e seu ordenamento foram divulgados. Já existem compras em conjunto com o intuito de reduzir os custos, através de descontos expressivos, como foi a compra de 2 mil sacos de uréia para a associação, 20 gerando desconto de 12% em relação aos preços praticados pelo comércio em geral. Trata-se, em resumo, de um caso onde o projeto estimulou a formação de uma associação que, recolhendo as habilidades e a compreensão de diversos membros, vem permitindo o surgimento de novas iniciativas e a mobilização de recursos em outras fontes. No vizinho município de Tunápolis, os agricultores, que não tinham nenhuma experiência organizativa anterior, foram motivados pelo projeto a constituir uma cooperativa, após as discussões iniciais, durante as quais decidiram pela priorização de atividades que pudessem recuperar a capacidade hídrica na microbacias e ações correlatas nesta direção. Como segunda prioridade decidiram pelos incentivos destinados às reformas das casas, mas logo resolveram também investir em ações que pudessem agregar renda, daí surgindo a idéia de formar uma cooperativa, pois aquela em que participavam não vinha produzindo resultados financeiros atraentes. Inicialmente com 48 associados, atualmente já são 150, e como existem 118 famílias na microbacia (“Lageado do Perau”), esta adesão indica que a nova cooperativa já atrai agricultores de regiões vizinhas. Por enquanto, o grupo consegue apenas vender em grupo o leite recolhido, mas esta iniciativa já permitiu uma significativa elevação no preço pago aos produtores, pois o grupo consegue negociações vantajosas com a empresa compradora. A nova forma organizativa, além disto, vem estimulando a coesão social entre os moradores e até mesmo atividades esportivas entre comunidades de microbacias já foram realizadas. Há muito otimismo em relação ao futuro e os agricultores foram unânimes em relacionar o que fazem com o “Microbacias-2”, enquanto criticam fortemente a primeira etapa do projeto, que inicialmente conseguiu “abrir” apenas uma microbacia. Asseguram que a maior mudança foi o uso de metodologias mais participativas. Segundo um participante da reunião, “Hoje, todos têm que participar (...) o Microbacias-2 é de baixo para cima, os benefícios são muitos, cursos e outras coisas”. Em relação ao futuro, houve unânime manifestação em torno da necessidade de melhorar as condições tecnológicas da produção, com melhoria das raças leiteiras da atividade, dos pastos e também a compra de maquinário para a cooperativa para produzir subprodutos e outras iniciativas que ampliem a margem obtida pelos associados. Finalmente, a visita à região terminou com outro caso, no município de Descanso, onde ocorreu reunião com agricultores da microbacia do Lageado Taquara. Uma situação bastante diversa, ainda muito embrionária e com participantes mais desinformados, inclusive com níveis de escolaridade bem mais baixos. Na microbacia ocorre com mais intensidade a desistência da atividade e o abandono da região, alguns não são proprietários de terras e não existe nenhuma tradição, qualquer que seja, de cooperação comunitária. A exigência do projeto, no tocante à organização, é neste caso muito mais complexa e de longo prazo. Ainda assim, a associação foi formada e já produz alguns resultados iniciais. A maior parte dos participantes da reunião era formada de mulheres, as quais ressaltaram que o maior ganho do projeto era “a amizade”, sugerindo que antes nem mesmo se conheciam. Conforme a opinião de uma participante, “Nossa comunidade é fraca e desunida, depois do Microbacias deu uma união que tá louco!”. São poucos ainda os participantes (apenas 12 famílias) e o projeto, que já atua por quatro anos na localidade, tem desenvolvido especialmente ações em termos de melhoria das 21 habitações, hortas comunitárias e atividades para garantir acesso às fontes de água. Claramente, o projeto trouxe muito mais auto-estima para as famílias residentes, segundo diversos testemunhos: “O pessoal da Epagri está ajudando muito, nós nunca tivemos ajuda antes”; “Para quem nunca tinha nada, agora tá sobrando” e, referindo-se às reações encontradas entre comerciantes locais, quando o grupo realizou uma compra conjunta, outro agricultor afirmou com alegria que “nós somos iguais no comércio. Hoje, depois da negociação da primeira compra, coisarada, entrar na Cooper [a cooperativa local], dá p’ra dizer, de noventa e nove por cento, é muito melhor”. Em resumo, a experiência do “Microbacias”, em sua primeira etapa e agora no segundo ciclo, nesta região, apresenta resultados extraordinários em termos do desenvolvimento da capacidade associativa da maioria das famílias rurais e do crescente protagonismo empreendedor das quais têm sido capazes. São inúmeras iniciativas arquitetadas com freqüência incomum, gerando entusiasmo, otimismo e esperança entre as famílias rurais. O projeto também não perdeu os focos produtivo, ambiental e agronômico e seus componentes têm sido ativados com alguma consistência similar. Há, contudo, uma crescente preocupação em relação às atividades propriamente econômicas que possam ser ainda desenvolvidas (e previstas no projeto), em face das características dos mercados regionais e das chances dos agricultores, que não são muitas, de desenvolver iniciativas novas e mais recompensadoras, do ponto de vista dos incrementos de renda que almejam. Adicionalmente, a região é laboratório fértil para o estudo dos fatores que impulsionam e facilitam a formação de coletivos sociais em torno do projeto, assim como permitiria identificar os principais entraves que dificultam a constituição das associações, tal a diversidade de situações encontradas nas diversas microbacias já trabalhadas pelo “Microbacias” catarinense.7 3.2 São Paulo: a evolução de um projeto conservacionista para um projeto de desenvolvimento rural? As evidências observadas em São Paulo, por seu turno, apontam em direções distintas da lógica que os projetos sulistas observaram em sua história e refletem, certamente, conjunturas sociais e políticas estaduais diferentes. O projeto em São Paulo, por certo, não ignora os impactos da acentuação de processos democratizantes recentes no Brasil, o que abre espaços políticos para grupos sociais mais pobres e estimula a participação social em diversos níveis e esferas de políticas setoriais. Em resumo, o projeto paulista repercute uma conjuntura mais atual que é relativamente distinta daquelas que determinaram a conformação técnica e operacional dos dois projetos iniciais, o “Microbacias-1” em Santa Catarina e o “Paraná Rural”, os quais foram desenvolvidos em boa parte da década de 1990. 7 Na preparação deste estudo, ocorreu também o levantamento de dados relativo a outra situação excepcional de “dinâmica organizativa”, o município de Angelina, situado a, aproximadamente, 80 quilômetros da capital do estado. Neste município as famílias rurais envolvidas no projeto desenvolveram diversas atividades engenhosas de participação (como os chamados “grupos temáticos”), entre diversas outras iniciativas. Por razões de espaço, contudo, o caso de Angelina não pode ser descrito neste documento. 22 Quando os projetos inicialmente implantados nos estados do Sul foram renovados, sendo transformados no “Microbacias-2” e no “Paraná Doze meses”, respectivamente, eram conjunturas que se alteravam, passando a repercutir aspectos sociais mais fortemente e estimular políticas especificas destinadas aos segmentos sociais rurais mais pobres, com expressões como “geração de renda” ou “agregação de valor” passando a fazer parte de um jargão obrigatório das políticas governamentais. Assim, o caso paulista, por ter sido formatado nesta conjuntura mais recente e ser arquitetado em estado onde os aspectos sócio-políticos surgiram ainda mais fortemente, sua estrutura técnica e operacional já nasce com uma compreensão sócio-ambiental mais clara (e não estreitamente apenas agronômica) e com objetivo igualmente explícito de priorização das camadas sociais mais pobres. Com o passar dos anos de sua implementação, rapidamente assumiu dinâmicas mais ativas e socialmente enraizadas, em diversas de suas regiões. Desta forma, o que este estudo aponta é que existem diversas evidências de que o projeto em São Paulo agrega elementos, de diversas ordens, para avançar rapidamente para um projeto típico de desenvolvimento rural, que evite sua transformação em “projeto social”, com algum viés assistencialista, como parece ser o caso catarinense, e se constitua em um verdadeiro projeto de desenvolvimento rural, talvez a primeira experiência digna do nome no Brasil. (a) Dinâmicas associacionais e suas diferenças: a região de Botucatu Nesta região foi possível conhecer situações locais bastante contrastantes em relação ao desenvolvimento do projeto em São Paulo. A coordenação regional é formada por profissionais de sólida experiência, o que traz uma coordenação estratégia consistente na região, sendo aproveitadas as oportunidades criadas nos municípios e mobilizadas famílias rurais que possam ser proativas em favor dos objetivos gerais. São 41 municípios, separados em duas partes contrastantes, uma com solos férteis (terra roxa) e outros com solos empobrecidos. A cafeicultura antes dominava amplamente a cena rural, mas hoje se observa uma transição em direção a diversas atividades agropecuárias. Existe um conselho regional bastante ativo, tido como caso excepcional no estado, pois é ativo e discute regularmente ações, atividades, estratégias e desenvolve propostas e estudos. Em Laranjal Paulista, por exemplo, existe uma notável situação de uma associação extremamente ativa no município (no Bairro Boa Vista), formada a partir da instigação gerada por um diagnóstico participativo. Antes um município quase totalmente tomado pela cafeicultura, hoje a agricultura é diversificada, inclusive com a expansão da canade-açúcar, fenômeno, aliás, que parece ubíquo em todo o estado. O município, curiosamente, se especializa na fabricação de brinquedos, e existem 38 indústrias de porte pequeno e médio neste setor, o que irriga monetariamente a cidade, existindo 7 bancos para uma população de 27 mil habitantes. Na microbacia visitada reina entusiasmo surpreende, e o relato das iniciativas até aqui realizadas situa-se muito acima do esperado, a criatividade sendo marcante nas ações realizadas. Existindo problemas de roubos das propriedades, por exemplo, uma articulação com a prefeitura instituiu a presença de guardas municipais, mas a associação comprou um veículo que circula no bairro (como são chamados, em São Paulo, os distritos rurais). Até mesmo a iniciativa de colocação de placas de identificação das ruas e o endereçamento postal foi 23 realizado, em iniciativa inédita, talvez em todo o Brasil. A ênfase tem sido no campo ambiental, com notável articulação com as ações municipais e a Secretaria Municipal de Educação, especialmente através do projeto “Aprendendo com a natureza”. Os alunos de diversos níveis visitam as microbacias, onde são recebidos pelos agricultores, os quais explicam as diferentes ações implementadas, o que é suplementado pela impressão de cartilhas sobre o assunto e, também, a instituição de um dia dedicado ao meio ambiente, com destaque para o projeto microbacias. Um caso destacado, onde a coesão social das famílias participantes parece ser o elemento mais central para explicar a adesão e a energia dedicadas ao projeto, pois, nas palavras de um entrevistado, “o microbacias ajudou o agricultor a ver o vizinho como companheiro, não um concorrente”. Não muito distante, no município de Pereiras, na microbacia Barra do Choça, o projeto encontra dificuldades muito maiores e vem sendo desenvolvido graças à pertinácia, talvez teimosia, de um casal jovem, que entendeu rapidamente as chances abertas pelo “microbacias” e, com determinação, vem insistindo com os vizinhos e moradores, para participarem da associação que foi formada e também para implantarem diversas ações previstas. O casal é tão atuante que já faz parte da diretoria da recém-formada federação que, no plano estadual, pretende congregar os interesses das associações de microbacias que vão sendo formadas ao longo do tempo. Impressiona a força da vontade da senhora envolvida, pois julga que o projeto apresenta possibilidades muito amplas e, de fato, vem reconstituindo até mesmo algum sentido de vida rural. Segundo diz, “com o projeto microbacias, a nossa microbacia ressuscitou, havia desânimo. Ressurgiu, como fênix”. Esta senhora mantém os registros da associação em sua casa, é bastante ativa e se corresponde por correio eletrônico com os responsáveis regionais do projeto, não hesitando também em escrever para outras autoridades do setor agrícola do estado, reivindicando ações e apresentando novas demandas. Parece ser um caso que, novamente, demonstra a importância de moradores de microbacias cuja vontade de participar e de ativar os mecanismos dos projetos-MB acaba sendo a força principal para materializar o nascimento do projeto na microbacias e o seu desenvolvimento. O casamento da intensa ação proativa deste casal, associado à ação extensionista local e regional de extrema qualificação “fazem a diferença” neste caso, onde uma primeira impressão sugeriria que o projeto, em tal microbacia, dificilmente sairia de resultados frágeis (inclusive porque neste caso a prefeitura é praticamente omissa). Ainda na região de Botucatu, contudo, verifica-se um outro caso excepcional. Um pequeno município de pouco menos de cinco mil habitantes situado na região de Botucatu, o desenvolvimento do “microbacias” em Pratânia reflete um caso emblemático de convergência virtuosa dos diversos fundamentos do projeto-MB em São Paulo. Tratase de município recém-emancipado (1997), no qual a existência de algumas poucas indústrias existentes, como diversas pequenas indústrias coureiras, além de uma engarrafadora de água mineral (pois o município localiza-se no início norte do aqüífero Guarani e a extração pode ser obtida com até 50 metros) são suficientes para garantir um orçamento municipal em nível adequado para prover o governo municipal de recursos financeiros para realizar as obras principais e oferecer os serviços básicos mais urgentes. Desta forma, Pratânia apresenta, como ilustração, todo o seu esgoto tratado, as duas 24 escolas existentes têm poucos alunos (e a oferta de vagas é sobrante), a infra-estrutura urbana é excelente, e o desemprego é praticamente zero. Na área rural existem 260 propriedades, mas a maioria dos agricultores mora na própria cidade. Foram realizadas tentativas, infrutíferas, de organizar associações de produtores rurais em anos recentes, mas somente com a abertura oferecida pelo “microbacias” é que nasceu a primeira associação de produtores, em 2004. Desde então as iniciativas proliferaram, em três microbacias que o projeto alocou recursos para serem implantadas, incluindo uma estrada readequada. Tal dinamismo decorre, em particular, do notável dinamismo empreendedor do seu jovem presidente, filho de uma família de produtores tradicional na região, cuja fazenda de café (onde hoje se localiza Pratânia) foi comprada no início da década de 1950. Este caso é paradigmático porque condensa todos os pilares necessários que, somados, conduzem ao sucesso do programa: dos escalões gerenciais estaduais do projeto a uma extraordinária capacidade gerencial no plano regional e uma prefeitura aberta às demandas do projeto e perceptiva em relação às suas potencialidades, para tanto oportunizando os recursos de infra-estrutura, financeiros e outros. Sobretudo, o recrutamento e a adesão de uma família rural influente no município, que “abraçou” o projeto, vendo-o como uma oportunidade para obter melhorias em diversas áreas produtivas e sócio-ambientais para os agricultores do município. Dentro de tal convergência de interesses e envolvimento, o projeto deslanchou rapidamente a partir de 2004, e angariou rapidamente novas adesões dos produtores, inclusive alguns que se tornaram entusiastas defensores do campo propriamente ambiental, participando de iniciativas em educação ambiental e cooperando fortemente com a disseminação de iniciativas que possam enraizar uma crescente conscientização ambiental no município. Um dos membros da associação, entusiasta das ações ambientais, mas um agricultor sem tal percepção poucos anos atrás, foi incisivo: “me considero um ambientalista. O programa de microbacias é um divisor de águas... as coisas clarearam”. A associação formada a partir do estímulo do projeto, e que vai criando um sentido de identidade (inclusive existindo camisetas próprias), já faz parte da organização estadual que congrega as associações de microbacias. Em relação às iniciativas do projeto no componente de manejo de recursos naturais, por exemplo, é importante notar que praticamente não existe uma situação conhecida de propriedade com marcas mais visíveis de erosão e, da mesma forma, praticamente todas as matas ciliares foram implantadas, sem permitir a invasão de animais. A associação, como parte de uma dinâmica de crescente autonomia esperada pelo desenho técnico do projeto, vem desenvolvendo diversas iniciativas não previstas pelo “microbacias”. Como ilustração, implantou-se a produção de ervas (de Jambú), gerando 40 novos empregos. Também tem sido difundido o plantio do maracujá e a compra de insumos coletiva, com a obtenção de descontos que variam de 10%a 20% dos preços vigentes no mercado. Diversos equipamentos já foram comprados sem os incentivos do projeto, por iniciativa da nova organização dos agricultores, como plantadeira de plantio direto, conjuntos de irrigação, pulverizador e câmaras de secagem. A diretoria está atualmente obter certificação para o café e a produção de ervas, buscando melhor remuneração daqueles produtos. A parceria com a prefeitura tem sido proveitosa, com 25 diversas iniciativas convergentes, como oferta subsidiada de óleo diesel, compra de um resfriador e iniciativas na coleta seletiva do lixo. Atualmente, estão sendo implantados “lixões” no interior para que os produtores possam depositar restos de produtos não recicláveis e o lixo poluente em geral. Já se chegou ao ponto, inclusive, de adquirir um plano de saúde privado, que atende 52 famílias beneficiárias participantes. São iniciativas que foram despertadas pela “dinâmica sócio-ambiental” que o projeto pode potencialmente estimular, fazendo deste um caso emblemático. Contudo, não existe ainda, em Pratânia, uma clara percepção acerca de uma ação concertada em torno de uma estratégia de desenvolvimento rural, mas as raízes mais sólidas nesta direção já foram lançadas. (b) O sucesso do PEMBH em regiões “inesperadas”: Dracena e General Salgado Provavelmente, a região de Dracena é a que vem apresentando os melhores resultados até aqui alcançados pelo projeto em São Paulo. Aquela parte do estado é de ocupação produtiva relativamente recente, tendo se consolidado com a expansão da cafeicultura nas décadas de 1950 e 1960. Eventos climáticos, contudo, como uma desastrosa geada ocorrida em 1975, destruiu parte expressiva dos cultivos de forma definitiva (outra geada ocorreu em meados da década seguinte), e tal fato, somado à queda real dos preços pagos aos produtores ao longo dos anos oitenta, foi desenvolvendo um sentimento de desestímulo entre os produtores da região, nos anos mais recentes, em particular durante a década passada. Com a maior parte (83%) das propriedades rurais tendo 50 hectares ou menos, a região passou a mostrar fortes indicadores de migração rural-urbana e diminuição da população dos municípios. Os produtores remanescentes, fortemente descapitalizados, passaram a explorar, principalmente, a produção de alimentos, grande parte dedicada ao autoconsumo. Tentativas de introduzir alternativas produtivas não vingaram (como a fruticultura) e, desta forma, a chegada do projeto-MB foi recebida inicialmente com ceticismo, mas também com alguma esperança, pois poderia ser o derradeiro esforço no sentido de reconstituir a agricultura na região. Sob tal quadro, um exame preliminar dificilmente indicaria ser esta uma região onde o projeto poderia prosperar, em face de tantas dificuldades e um generalizado clima de desânimo entre as famílias rurais. Provavelmente por esta mesma razão, ou seja, não existir nenhum sinal visível de saída para a decadência econômica então vigente, que o “Microbacias” paulista encontrou na região um campo fértil para recolher os agricultores que ainda acreditavam em sua atividade, governantes locais dispostos e um rol de experimentação e criatividade que o projeto propõe em suas diversas ações. Um grande esforço foi inicialmente realizado para capacitar os técnicos da CATI que participariam do projeto, seguido de iniciativas de divulgação junto aos conselhos municipais de desenvolvimento rural e, em especial, com os prefeitos, pois os municípios precisariam contratar técnicos que seriam conveniados para integrar o “microbacias”. Atualmente, praticamente nove em cada dez técnicos participantes são pagos pelos municípios da região, atuando sob a coordenação do estado. Já foram “abertas” 45 microbacias e, do total de aproximadamente 8,7 mil propriedades da região, 4.300 já estão sob a lógica do projeto e a noção de “microbacias” já se encontra bastante popularizada em toda a região. 26 As visitas na região foram suficientemente demonstrativas das possibilidades do projeto, consideradas as situações diferenciadas dos municípios visitados, dois deles menores (São João do Pau D’Alho e Tupi Paulista) e outro de tamanho médio, com aproximadamente 18 mil habitantes (Junqueirópolis). Nesses casos, não obstante um histórico anterior durante o qual alguns tipos de organizações foram formados (cooperativas, em especial), mas não prosperaram, o “microbacias” tem conseguido, no entanto, estimular a formação de associações que lentamente assumem maior protagonismo e ampliam sua capacidade de iniciativa. Em São João, por exemplo, são visíveis o entusiasmo e o otimismo, reinantes entre os agricultores que integram a associação de produtores. Foi com grande orgulho que relataram todas as atividades e a associação dos produtores poderia ser, talvez, o caso de maior sucesso em todo o estado, pois comanda impressionante parque de máquinas e equipamentos (proporcionalmente ao número de agricultores do município). O técnico que acompanha a associação, por sua vez, é de notável dedicação e comprometimento, igualmente excepcional, relativamente à média esperada em tais casos. Sobre todos esses aspectos, o prefeito, igualmente um produtor, talvez seja o maior entusiasta, em relação às possibilidades oportunizadas pelo “Microbacias”. Trata-se, portanto, assim como o caso de Pratânia acima descrito, de uma situação virtuosa, na qual convergem todos os cinco pilares (enfatizados no final deste documento) que sustentam o sucesso de um programa de microbacias como o paulista. A experiência de São João, sob todos os aspectos, mereceria divulgação bem mais ampla, pois é demonstrativa de como um ambiente, em princípio hermético às mudanças, por seu histórico anterior, pode produzir rápidos resultados, gerando alternativas produtivas e oferecendo situações concretas às famílias rurais, no sentido de ampliar seus níveis de renda, ampliar os níveis gerais de prosperidade e, sobretudo, enraizar esperanças entre as famílias rurais, requisito fundamental para a manutenção da atividade nos anos vindouros. 8 4. Desafios para o desenvolvimento dos projetos A experiência acumulada dos projetos-MB no Brasil, desde a implantação inicial do projeto no Paraná, seguida pelos demais, parece apontar para diversos desafios que são comuns a tais iniciativas, moldadas pelas características políticas e administrativas vigentes no Brasil, apenas modificando-se particularidades de fácil identificação, derivadas de histórias específicas de cada estado. Desta forma, ainda que sob o risco de simplificação demasiada em algumas partes, talvez seja possível indicar alguns dos principais desafios mais usuais com os quais se defrontam tais projetos, quando inicialmente elaborados e, posteriormente, durante sua implementação. Alguns desses desafios são passíveis, talvez, de prevenção e superação prévia, eliminando-se 8 Por limitação de espaço, não se comentará nesta parte os demais casos visitados na região de Dracena, especialmente o notável caso de Junqueirópolis, onde nasceu a federação que atualmente envida esforços para agregar os interesses das associações de microbacias do estado. Da mesma forma, os casos visitados na região de General Salgado, outra regional de grande destaque no desenvolvimento do projeto paulista. Nesta última região, foram visitados os municípios de Nhandeara, Lourdes, Auriflama, Magda e Sud Menucci, além de General Salgado. Há diversas lições extraídas dessas visitas, com situações de grande destaque. Os desafios, o aprendizado e as recomendações indicadas na parte final deste documento, em grande medida, refletem essas situações, onde diversas situações empíricas foram contribuintes importantes para a formação de novos argumentos sobre o desenvolvimento do “Microbacias” no estado. 27 problemas posteriores. Outros, nem tanto, pois entranhados em comportamentos institucionais e os chamados “vícios” que tipificam a história da burocracia governamental brasileira. Arrolam-se, a seguir, alguns dos principais desafios percebidos a partir do aprendizado dos “microbacias” já concretizados no país. São os seguintes: (a) a elaboração de um projeto com desenho técnico e operacional com alguma flexibilidade. Talvez seja este o mais evidente de todos os desafios dos projetos, pois aqui se esbarra com uma estrutura normativa e legal que usualmente bloqueia a permanência de “espaços de flexibilidade” no desenvolvimento de tais políticas governamentais. Há uma tendência, quase inercial, no âmbito de nossas leis e mecanismos administrativos, de “cercar” ex-ante todas as possibilidades que, assim se assume, possam surgir concretamente, criando uma espécie de camisa-de-força que, nas situações reais, acaba sendo limitante e cerceia as infinitas variações encontradiças no mundo real. É, portanto, essencial, na formatação dos projetos, garantir as chances de alguma flexibilidade operativa, para lidar com circunstâncias novas e inesperadas que, inevitavelmente, surgem ao longo da implementação de tais iniciativas. Esta flexibilidade, contudo, não pode significar o abandono da “lógica do projeto”, especialmente a sinergia esperada entre os diversos componentes e os resultados interdependentes e abrangentes esperados. Significa, apenas, que os operadores deveriam ter maior capacidade decisória dentro de um espaço possível e legalmente definido, para lidar com situações distintas encontradas. Como ilustração, citam-se dois exemplos. Primeiramente, tome-se a arbitrária definição legal sobre a exigência de reflorestamento com espécies nativas em torno dos cursos de água, em distância sugerida de 30 metros. Trata-se de uma exigência legal, cuja magnitude numérica jamais foi devidamente explicada, representando, provavelmente, uma média originalmente pensada por seus formuladores, em função de alguma experiência de campo. A realidade, contudo, impõe variações quase infinitas e, particularmente no âmbito de pequenas propriedades, esta exigência, em inúmeras situações, não pode ser aceita pela família rural, pois implicaria em perda de significativa área de produção ou de pastagem. Cria-se, desta forma, um impasse ou, potencialmente, um conflito, se a fiscalização da polícia ambiental for acionada. Neste caso, o projeto, em acordo com as autoridades estaduais do meio-ambiente, deveria prever alguma margem de flexibilidade para realizar a recuperação de matas ciliares dentro “do possível”, a partir da especificidade de cada caso, sem uma normal geral obrigatória que, na prática, acaba sendo inviabilizada pela resistência esperada de muitos dos proprietários dos imóveis rurais. Esta possibilidade de acordos operacionais pode atualmente ser formalizada e, assim, é um exemplo de flexibilidade almejada na implementação. Um segundo exemplo de flexibilidade que projetos com equipes profissionais consolidadas (como o são os casos catarinense e paulista) poderia avançar diz respeito ao grau de descentralização de tais iniciativas. Seria possível, por exemplo, atribuir às equipes regionais maior capacidade de decisão, permanecendo a gerência estadual em suas tarefas, principalmente, de supervisão. Decisões, inclusive, financeiras, que possam garantir maior aderência às prioridades que são realmente mais sentidas no plano 28 regional, atribuindo aos operadores regionais maior capacidade de diálogo político com autoridades municipais, exatamente porque teriam mais a oferecer imediatamente, em negociações com os atores regionais. Esta flexibilidade se torna necessária por diversas razões. A mais óbvia delas se refere, claro, às variações encontradas no mundo rural, em todos os aspectos, e não apenas os ecológicos e produtivos, mas também em relação aos aspectos sociais, econômicos e políticos. Comandando maior flexibilidade, a ação extensionista regional poderá aprofundar sua capacidade de intervenção e angariar mais rapidamente os apoios necessários, formar alianças e instituir mecanismos de convencimento das famílias rurais com maior objetividade e agilidade. Outra razão necessária para tal flexibilidade diz respeito ao que foi mencionado na primeira seção deste estudo, qual seja, a crescente politização dos ambientes rurais brasileiros. Em face do aprofundamento de tal processo de disputas entre os grupos sociais, é mister que o projeto (no plano estadual, mas particularmente no plano regional, talvez também no plano local) mantenha maior capacidade de ação política e de articulação de atores que vem sendo formados, como novas organizações, cooperativas, associações diversas, movimentos sociais e outras capacidades sociais coletivas que surgem em tais meios, exigindo a ampliação de igual capacidade dos operadores do projeto, no sentido de lidar com as demandas e interesses novos que vão coalescendo gradualmente em ambientes rurais. (b) Em decorrência do acima exposto, talvez o segundo maior desafio de projetos de tal natureza seja a capacitação das equipes de profissionais que atuam em todos os níveis, ligados formalmente ao governo estadual ou, então, contratados em tempo definido pelos municípios, como parte do tempo de implementação dos projetos-MB. Se a “ação extensionista”, conforme defendido neste documento, tem centralidade decisiva no sucesso dos projetos (conforme a seção 5.1), então a formação técnica para o desempenho de tarefas tão complexas parece ser mais do que necessária, lembrando ainda que tal formação, sequer remotamente, tem sido oferecida pelas universidades de onde são oriundos esses profissionais (quando de nível superior), pois são instituições ainda orientadas por visões passadistas da Agronomia. Este tem sido outro formidável desafio no curso da experiência dos projetos, tornado ainda mais urgente com a crescente tendência de transferir aos governos locais a contratação de parte expressiva dos técnicos que operam no plano local. Como tais contratações ocorrem em todos os meses, organizar etapas de capacitação representa um desafio gigantesco para o projeto, em sua lógica mais geral e estadual, pois não tem sido possível oferecer cursos de capacitação sob forma contínua, ao longo do ano. Desta forma, podem ocorrer inúmeros casos não desejados de técnicos locais contratados pelas prefeituras que passam a atuar imediatamente, sem passar pela capacitação, assim permanecendo por longo tempo, antes de terem a chance de participar dos cursos preparatórios. Ambos os casos analisados, neste particular, vivenciam tal problema, ainda sem solução à vista. Ao que tudo indica, também neste caso, se equipes regionais puderem ser reforçadas, talvez a solução, não a ideal, mas a possível, seja exatamente transferir tal capacitação, pelo menos em parte, para a responsabilidade das equipes regionais. A ampliação e maior sofisticação, multidisciplinar e abrangente, da capacitação técnica dos profissionais que atuam nos projetos, à luz do exposto anteriormente, não necessita 29 maior detalhamento neste documento. São profissionais que precisam ser capazes de propor técnicas inovadoras para os produtores e famílias rurais sobre a lógica sistêmica da ação extensionista em microbacias, o que exige conhecimento cientifico provindo de diversas disciplinas cientificas, da área de solos à hidrologia, da silvicultura às disciplinas mais ligadas à produção, seja vegetal, seja animal. Somente aqui já se exige amplo conhecimento técnico, mas os “microbacias”, de fato, exigem ainda mais, pois os técnicos precisam ser também capazes de mobilizar socialmente as famílias residentes (ou atuantes como produtores) nas microbacias trabalhadas, cooperar em sua organização social e, eventualmente, até mesmo opinar em delicadas questões políticas, que inevitavelmente surgirão, assim que as famílias rurais beneficiárias se sentirem fortalecidas o suficiente para estabelecer diálogos com outras forças municipais (a prefeitura, em especial), reivindicando outras ações externas aos projetos. São profissionais, portanto, que precisarão demonstrar conhecimento e habilidades amplos, em diversos campos do conhecimento, além de capacidade de adaptação, flexibilidade e tirocínio político que não criem entraves e bloqueios, quando as articulações municipais e regionais se apresentarem. Tais técnicos “multidisciplinares” e portadores de tantas habilidades existem na vida real? Os projetos demonstram que sim, mas são poucos, quase excepcionais. Desta forma, também a experiência dos projetos sugere que a saída operacionalmente mais viável é, novamente, formar equipes regionais multidisciplinares, reunindo os melhores dos campos científicos mais diretamente relacionados aos projetos. Esta equipe, se coesa e afinada com o projeto, capaz de perceber todas as nuances da implementação dos “microbacias”, mas também capaz de avaliar estrategicamente as potencialidades abertas, poderá desempenhar papel decisivo, provavelmente o mais importante, para reconstituir as áreas rurais como ambientes sociais recompensadores não apenas pelo foco dos sistemas produtivos, formadores de prosperidade econômica, mas, também, cooperar para o desenvolvimento de comunidades rurais crescentemente organizadas socialmente e desenvoltas o suficiente para promover esperança e otimismo entre as famílias rurais. (c) Sob tais desafios, é importante ressaltar, igualmente, que a produção de conhecimentos exigida pelos projetos, oriundas da “pesquisa”, não tem sido suficiente e nem adequada. Talvez até não seja exagero enfatizar que esta conexão entre as atividades de pesquisa e a implementação dos projetos, de fato, até aqui não funcionou, em praticamente em nenhum dos casos concretos, incluindo o paranaense em seus tempos iniciais. As atividades de pesquisa, provavelmente em face de suas especificidades e do tipo usualmente realizado no Brasil (muitas vezes distantes das necessidades mais imediatas e sem conhecimento de realidades locais), tem tido pouca, ou quase nenhuma, incidência nos projetos-MB, e sua contribuição tem sido escassa. Este é um desafio permanente, pois são políticas que exigem conhecimento científico continuado, com novas perguntas surgindo a cada momento e, nem sempre, as atividades de pesquisa respondem a contento. Ao que parece, a solução, neste caso, não é manter um “serviço de pesquisa” colado às atividades de extensão rural e aos projetos, como é o caso catarinense, sem resultados claramente satisfatórios até aqui, mas operacionalizar as necessidades de conhecimento 30 novo de outra forma, sob licitações gerais, com prazos definidos, clareza quanto aos produtos esperados e sem optar por um “corporativismo estadual”. Ou seja, ter a ousadia de propor à área de pesquisa existente no Brasil (e não apenas nos estados onde se situam os projetos), uma vez definidos os problemas a serem pesquisados, abrir concursos e esperar pelas ofertas de investigação de diferentes grupos existentes no país. Se definidos a partir de termos de referência bem preparados, não há razão maior para esperar que não produza os resultados esperados. O que parece ser pouco razoável é a manutenção de um componente especifico para a “pesquisa”, no âmbito dos projetos que, de fato, pouco funciona, é lento em demasia e também distanciado da “dinâmica” dos projetos, com pesquisadores que são, muitas vezes, mal informados sobre a história operacional de tais políticas governamentais e sua operacionalidade. (d) Tais desafios acima citados indicam, claramente, para um desafio, preliminar e talvez o mais problemático de todos, qual seja, esforços que garantam a preparação prévia, cuidadosa e articulada, do projeto. Não se trata simplesmente de uma formulação acaciana, mas perceber que a complexidade dos projetos-MB exige, preliminarmente, uma capacidade de prever os mais diversos cenários de desenvolvimento, em distintas áreas de conhecimento ou de ação governamental e administrativa, incluindo igualmente algum exercício de antevisão sobre comportamentos sociais e institucionais. A preparação dos projetos, portanto, requer o recrutamento de equipes técnicas que sejam as melhores disponíveis, e sua tarefa será construir um instrumento técnico e operacional que reduza ao mínimo as surpresas que surgem ao longo da implementação. Como se sabe, uma vez iniciado, as gerências principais e regionais, engolfadas pela dinâmica gerada, quase nunca terão mais tempo e oportunidades para corrigir erros de formulação inicial e, assim, este desafio tem imensa relevância para garantir o sucesso de tal iniciativa. O primeiro ciclo de um “microbacias”, desta forma, irá consolidar competências técnicas que passam a ser cruciais, isto é, uma capacidade instalada que, ocorrendo um segundo projeto, representarão a certeza de sucesso em período de tempo relativamente curto. (e) outros desafios, de maior ou menor importância, podem ser citados e sua existência não deveria surpreender, em projetos de tal envergadura técnica. Não podendo discutir todos os desafios mais evidentes neste breve documento, citam-se ainda três deles nesta seção especifica. O tema dos incentivos do projeto, por exemplo, é um dos maiores desafios na formatação dos projetos. Não apenas enfrentam, às vezes, bloqueios legais, como foi o caso de São Paulo, que precisou modificar uma lei existente, para viabilizar os incentivos, mas, em especial, sua natureza e magnitude. Se forem bem escolhidos e representarem sentidas demandas sociais, os incentivos poderão representar atrativos suficientemente fortes para mobilizar as famílias beneficiárias e garantir a adesão crescente de atores indiretamente relacionados, como os governos locais e outros. Como são projetos destinados, particularmente, aos segmentos sociais mais pobres, incentivos que se destinam à melhoria das condições de moradia e vida em geral (como construção de fossas, banheiros, reformas parciais das habitações, por exemplo) quase sempre conseguirão atrair os potenciais beneficiários. Contudo, esses incentivos, se permanecerem apenas neste “foco social”, correrão o risco de mudarem a orientação técnica do projeto. Tornando-os assistencialistas, conforme 31 discutido anteriormente. Neste sentido, na seção final deste estudo, recomenda-se uma tentativa de segmentar o componente dos incentivos, em acordo com a sua maior atratividade social, mas igualmente vinculando-o à aceitação e implantação de outros componentes “menos atraentes”, em geral, como forma de garantir a implementação consistente de todas as ações previstas. Como se argumentará, talvez seja a única forma de garantir a implementação da “lógica sistêmica” dos projetos, sobretudo na manutenção de uma ação ambiental que não se restrinja a um mero “foco”, mas seja ação transversal que perpasse todos os momentos de implementação do projeto e desta forma garanta, paulatinamente, a adesão das famílias rurais (e outros atores sociais indiretos) a uma nova compreensão sobre a agricultura e suas possibilidades técnicas e produtivas. (f) dentro da lógica de evolução prevista pelos projetos-MB, como antes enfatizado, é esperado que tais políticas acabem “transbordando” o meramente agronômico, ou o sócio-ambiental e, gradativamente, incorporem novas capacidades sociais, mobilize as famílias rurais para a sua organização social e, assim, são projetos que, necessariamente (inclusive como medida de seu sucesso), também requerem ações no campo político. As conseqüências e desafios tornam-se infinitamente mais difíceis, quanto tal passo é dado, e a organização social das famílias rurais das microbacias passa a ser encorpada e sua capacidade de discutir e aprovar novas demandas e disputá-las no plano municipal se acentua. Neste caso, o projeto pode passar por situação de extrema complexidade, especialmente de articulação política, e a ação extensionista enfrenta um desafio inédito para a maioria dos técnicos, usualmente desacostumados de atuar no campo político e das disputas partidárias, especialmente se são profissionais mais jovens, como tem sido o caso, na maior parte daqueles contratados pelas prefeituras, seja em Santa Catarina ou em São Paulo. A ameaça principal ao desenvolvimento do projeto, em tais situações, é não saber atuar “na política”, mas evitando preferências partidárias e, desta forma, mantendo a ação extensionista acima das disputas locais. Ou seja, é preciso desenvolver uma capacidade de articulação política acima dos usuais interesses partidários e seus confrontos municipais. A experiência dos projetos tem indicado que este é momento delicado e extremamente difícil para os profissionais dos projetos, alguns deles, muitas vezes, não sabendo separar o projeto e sua ação política do campo propriamente partidário. Adicione-se a este fato a crescente politização do meio rural brasileiro e o nascimento de novas organizações, algumas mais confrontacionais, do ponto de vista da defesa de seus interesses (bastando citar a atuação do projeto em São Paulo na região do Pontal do Paranapanema, aonde o MST vem mantendo uma presença ativa e demandante e, posicionando-se acima do projeto microbacias, aponta para dificuldades operacionais de difícil solução). Desta forma, o desafio da articulação política dos microbacias, embora um fascinante exercício de competência técnica e política, quando realizado eficazmente, na realidade exige capacidade analítica superior e rigorosa. (g) por fim, parece igualmente importante salientar o mais complexo de todos os desafios postos para os projetos microbacias, caso transitem pela seqüência antes indicada em sua evolução e cheguem a materializar dinâmicas sob as quais o tema do desenvolvimento rural parece ser, cada vez mais, o mais urgente e requerido por todos 32 os atores sociais envolvidos, das famílias rurais aos agentes econômicos e sociais que direta ou indiretamente lidam com o mundo rural. Qual seja, desenvolver uma compreensão social que se amplie e seja compartilhada por maiorias, sobre o quê exatamente significa “desenvolvimento rural”. Como é notório atualmente em diversas regiões agrárias brasileiras, tal compreensão, ainda muito incipiente, na realidade se confina dentro de interesses meramente individuais ou de pequenos grupos específicos, sejam os produtores maiores e mais inseridos nos mercados internacionais de grãos ou “commodities” agrícolas ou, em outro oposto, os interesses mais específicos de grupos sociais mais pobres, destituídos de acesso à terra (ou com acesso extremamente precário às atividades agrícolas e produtivas), que muitas vezes se irmanam em organizações de sem-terra ou de pequenos produtores. Para a grande maioria desses coletivos sociais organizados, a noção do interesse público e do “bem comum” é ainda foco praticamente ausente e, desta forma, a construção de uma noção correta de “desenvolvimento rural” é, como conseqüência, desafio social e político de evidente concretude. A ação extensionista, que não é neutra em relação a esta dimensão, encontra aqui barreiras imensas de articulação e argumentação, inclusive porque os ambientes para tal debate são ainda largamente imaturos e desinformados sobre as alternativas existentes. Ou então, como tem sido crescentemente encontradiço no sistema político brasileiro (o que inclui as ações governamentais), as proposta são apresentadas como “definitivas”, pouco espaço e ambiente argumentativo sendo criado para contrapor-se às noções existentes. No fundo, portanto, a noção de desenvolvimento rural requer, como antecedente lógico, que exista disposição democrática para aceitar o debate e a convivência entre diversas visões de mundo e perspectivas existentes. 5. Os projetos-MB: é possível repeti-los? Existem chances de replicabilidade dos “microbacias” em outros contextos estaduais brasileiros? Ou as condições institucionais, a história das categorias profissionais das ciências agrárias, a relativa pobreza dos resultados econômicos das atividades agrícolas, entre outros fatores, impediriam o sucesso de tais projetos? Seria apenas coincidência que essas iniciativas centradas em microbacias surgiram e prosperaram nos estados do Sul, primeiramente e, posteriormente, encontraram eco em São Paulo, estados onde a modernização da década de 1970 mais fortemente se desenvolveu e, portanto, seus impactos ambientais foram mais visivelmente sentidos? A análise empreendida nesta pesquisa concluiu que, em princípio, não existiriam razões de maior magnitude para que não sejam igualmente bem sucedidos projetosmicrobacias que sejam formalizados e implementados também em outros estados brasileiros. Evidentemente, há uma premissa preliminar, de relativa obviedade, para que as considerações abaixo tenham inteligibilidade prática e operacional, qual seja, parte-se do pressuposto de que esses projetos contam com recursos financeiros disponíveis para a sua implementação ao longo do ciclo de sua existência, usualmente de seis anos, quase sempre estendidos para um ou dois mais anos. Sejam recursos financeiros próprios do orçamento estadual (o que seria uma raridade, nas condições brasileiras), sejam aqueles 33 decorrentes de acordos celebrados com organismos internacionais, como o Banco Mundial. Aceita esta premissa e mantendo a hipótese de estarem os recursos disponíveis durante o projeto, sem problemas de desembolso, então existem mais condições favoráveis do que entraves ao sucesso de tais iniciativas. Dentre as condições que facilitam resultados favoráveis, citam-se alguns, apresentados abaixo: (a) inicialmente, há um aspecto político que favorece projetos sob tal racionalidade técnica. O grau de descentralização observado no desenvolvimento político brasileiro recente, acentuado no pós-1988, assim como o processo de democratização que estimula o protagonismo social e assegura a possibilidade de participação social em graus crescentes, “com poder decisório”. Embora processos de mudança ainda relativamente inéditos na história do país, já é possível sugerir que projetos “de cima para baixo” e com forte controle estatal, como foi a tônica no passado, não encontram mais campo fértil para a sua implementação e, necessariamente, requerem organizar o seu desenho a partir da ação proativa dos beneficiários. As variações encontradas em situações concretas, posta tal premissa, ocorrem apenas em função do escopo e da densidade que define a capacidade de decisão transferida aos beneficiários. Em face de nossa tradição política conservadora, que sugere controle estatal centralizado, normalmente a implementação dos projetos-MB passa por “períodos de teste”, durante os quais os operadores avaliam as chances de transferência de responsabilidade para as famílias rurais beneficiárias. É o caso, por exemplo, da contratação de técnicos em Santa Catarina, atribuição que, com o passar do tempo, foi completamente repassada às associações formadas nas microbacias, inclusive, muitas vezes, sem sequer ser ouvido o técnico estadual regional. É impensável supor que novos projetos-MB, em outros estados, poderão organizar-se sem componentes participativos explícitos, e sem se preparar para o desenvolvimento já antes observado nos dois projetos aqui analisados. Em resumo, se tais iniciativas são, por definição, participativas e são desenvolvidas principalmente como políticas governamentais instituídas “de baixo para cima”, as condições políticas atuais no Brasil favorecem, fortemente, tal desenho técnico e operacional. (b) outra característica igualmente importante, ainda no plano político, se refere às possibilidades de ação organizativa dos grupos sociais rurais, inclusive os mais pobres, o que resulta do processo de aprofundamento democrático em desenvolvimento no Brasil durante os anos mais recentes. Os projetos prevêem não apenas ações descentralizadas, mas igualmente sugerem que as famílias beneficiárias precisam gradualmente desenvolver sua capacidade de formar coletivos sociais coesos, os quais possam identificar novas demandas e interesses e disputar politicamente recursos e novas oportunidades, no plano local ou além das fronteiras do município. Desta forma, o clima de ampla liberdade de organização reinante no Brasil é outro fator relevante que favorece a implementação desses projetos. (c) Um terceiro aspecto a ser ressaltado, que também cria contextos potencialmente favoráveis ao nascimento de outros projetos microbacias estaduais refere-se às políticas federais para a agricultura familiar e os grupos sociais rurais mais pobres. A partir dos anos noventa, foram sendo criadas diversas dessas políticas e, como conseqüência, é possível 34 antecipar que existem chances de grupos sociais organizados nas microbacias procurarem outras fontes de recursos. Os “casos exemplares”, antes brevemente descritos, mostram que famílias formalmente organizadas têm sido capazes de demandar acesso àquelas políticas governamentais existentes em outros níveis, sejam estaduais ou federais. (d) Uma dimensão adicional que favorece a implementação de projetos-MB no Brasil diz respeito à abertura das famílias rurais, em todas as regiões brasileiras, para essas políticas. Embora exista um certo ceticismo em relação ao interesse e à participação das famílias rurais potencialmente beneficiárias, a realidade, contudo, não corrobora esta assertiva. Concretamente, em todas as situações, as famílias rurais mais pobres, que constituem o público-alvo preferencial dos projetos, estão abertas para a sua implantação e, uma vez informadas das possibilidades existentes, geralmente mostram disposição continuada e até entusiasmo em relação a estas oportunidades, sobretudo quando o projeto prevê incentivos que são parcialmente subsidiados. É importante lembrar que a história agrária brasileira é rarefeita em políticas governamentais destinadas primordialmente aos segmentos mais pobres e, portanto, os “microbacias” não têm tido dificuldades de enraizamento social. Quando a mobilização dos beneficiários é lenta ou reduzida, quase sempre o nó górdio se encontra na ação extensionista deficiente ou despreparada. Esta observação remete à necessidade, igualmente enfatizada em outra parte deste documento, de capacitação rigorosa dos operadores dos projetos, que precisam estar suficientemente preparados para lidar com as distintas situações sociais que são encontradas nos ambientes rurais. Desde técnicas de mobilização social ao conhecimento de metodologias participativas, entre outros conhecimentos requeridos, precisam fazer parte do cardápio de conhecimentos comandados pelos profissionais que atuam no âmbito dos projetos-MB, para que se ampliem as chances de êxito. (e) Outro aspecto favorável diz respeito ao grau de abertura das categorias profissionais que majoritariamente atuam em tais projetos (oriundos, em especial, da Agronomia, mas não exclusivamente). Embora uma afirmação sem estudo comprobatório que a sustente, o autor deste estudo ousaria insistir que tais categorias de técnicos encontram-se atualmente vivendo uma grande incerteza em relação ao seu papel profissional e, desta forma, é muito provável que a implementação de novos projetos encontrem receptividade no âmbito dos corpos profissionais das Ciências Agrárias. O ensino universitário nesta área, como é amplamente reconhecido, encontra-se bastante defasado em relação aos processos sociais e econômicos ora em curso nos ambientes rurais e, desta forma, os profissionais, especialmente os mais jovens, ao se defrontarem com situações inusitadas e que exigem conhecimento mais amplo e diversificado, usualmente tem demonstrado grande receptividade. Se devidamente capacitados, responderão adequadamente às exigências dos projetos, é o que demonstra a experiência concreta nos estados analisados. (f) Finalmente, outro fator a ser considerado no sentido de prever condições estimuladoras para a ampliação de tais projetos relaciona-se às perspectivas de médio prazo para a agricultura brasileira, enquanto setor econômico e produtivo. Todas as indicações apontam que este é setor que deve continuar a se beneficiar do crescimento da demanda 35 nacional e internacional por alimentos e matérias-primas e os preços pagos aos agricultores não devem evidenciar quedas reais desastrosas que desestimulem a produção. Desta forma, os mercados agrícolas, potencialmente, devem ainda oferecer condições de remuneração satisfatórias aos produtores e os sistemas agrícolas, como aqueles previstos pelos “microbacias”, desde que tenham alguma sustentabilidade produtiva mais sólida, reduzindo custos de produção e se mantendo mais resistentes a situações climáticas desfavoráveis, certamente obterão resultados econômicos mais recompensadores. Em relação, por outro lado, às dificuldades que a replicação de tais projetos poderá encontrar, em outros estados, diversos obstáculos existiriam em princípio, mas passíveis de serem contornados com alguma facilidade. Por exemplo, a montagem de tais projetos já não representa desafio técnico tão complexo, em vista do aprendizado atualmente existente, e recursos humanos poderiam ser mobilizados para suprir as lacunas de conhecimento existentes em algum estado específico interessado na implementação de projetos-MB. A inexistência de capacidade técnica instalada em diversos componentes dos projetos, como é o caso, para ilustrar, de empresas (públicas ou privadas) para readequar as estradas, ou então realizar o mapeamento das microbacias, esses são obstáculos relativamente mais sérios, mas existem atualmente inúmeras possibilidades de serem mobilizados recursos humanos ou empresas capazes de realizarem, ainda que temporariamente, tais tarefas em outros estados. Assim, a partir da experiência e o aprendizado acumulado pelos projetos estudados, talvez se possa concluir que o maior entrave à implantação de projetos-microbacias em outros estados, não considerando a exigência preliminar de apresentar capacidade de endividamento estadual, requerida por organismos internacionais financiadores (como o Banco Mundial), seja outro, típico da história política brasileira. Refere-se tal entrave ao uso político, ou abusivamente partidário, que tais projetos, em certas situações, encontram em seu desenvolvimento. Neste caso, tal ocorrendo, são altos os riscos de ocorrência de algum desvirtuamento dos objetivos principais dos projetos-microbacias, mas não necessariamente envolvendo ações que possam ser corrompidas por decisões ilícitas, mas até mesmo em plano menos ostensivo de desvirtuamento. É o que ocorre, por exemplo, quando governos municipais contratam técnicos para atuar no “microbacias”, mas esperam que tais técnicos igualmente ajam como cabos eleitorais do partido no poder ou, então, quando forçam a escolha de uma estrada a ser readequada em função de critérios de adesão política das comunidades a serem beneficiadas. São os perigos políticos dos projetos, que precisam contar com o apoio das prefeituras, mas nem sempre conseguem se manter imunes aos desvios particularistas que operadores políticos municipais tentam impor. Este, de fato, representa em nossa cultura política o maior entrave ao bom desenvolvimento dos projetos-MB e apenas uma postura transparente das regras de funcionamento e sua ampla difusão, associada ao comportamento rigorosamente não partidarizado dos profissionais envolvidos é que poderia minimizar, ou até eliminar, a ameaça representada por interferências partidárias espúrias na implementação de tais políticas. Contudo, a mesma experiência dos projetos catarinense e paulista tem demonstrado, em diversas situações concretas, que tal ameaça não apenas tem diminuído com o passar do tempo e se mantida em nível mais tolerável 36 como, inclusive, em diversos municípios, os representantes da política municipal no poder percebem que podem obter dividendos eleitorais sem nenhuma tentativa de interferência ostensiva nos rumos dos projetos, mas apenas oferecendo apoio e suporte a diversas ações e difundindo tal colaboração, o que muitas vezes é suficiente para enraizar apoios políticos. 5.1 Existe uma receita de sucesso? Os projetos analisados, assim como a experiência anterior de pesquisa sobre o projeto implementado no Paraná na década de 1990, suplementada por diversas oportunidades de discussão com técnicos, estudiosos e agricultores envolvidos, permitiram extrair um “aprendizado geral” sobre projetos centrados em microbacias e desenvolvidos nas condições sociais, econômico-produtivas e institucionais existentes no Brasil. Não se trata, por certo, de uma categórica “receita de sucesso”, pois a descentralização política existente no país, desde o nascimento da federação e ampliada consideravelmente sob a égide da Constituição de 1988, garante poderes relativos significativos às unidades estaduais e aos municípios, o que empresta particularidades distintivas a cada uma dessas unidades de poder administrativo e político. Malgrado tal ressalva e ainda se considerando a heterogeneidade, sob ângulos diversos, se comparadas as macro-regiões brasileiras, a experiência acumulada nos projetos-MB permite indicar, contudo, com razoável probabilidade, que existiriam chances maiores de sucesso se cinco pilares forem objeto de atenção aprofundada, na formatação e implementação dos projetos, em situações novas que venham a ser concretizadas. Esses cinco pré-requisitos garantirão, se interdependentes em sua compreensão e articulação, pelo menos a chance de resultados satisfatórios, podendo, contudo, garantir chances de sucesso bem mais significativas. Esses cinco fundamentos são os seguintes: (a) é requisito fundamental para o bom desenvolvimento de projetos-MB a compreensão clara do projeto por parte dos “operadores principais”, o que inclui, como requisito mínimo, os secretários estaduais de agricultura e meio-ambiente e, a partir deste nível decisório, os operadores governamentais a eles subordinados, como os dirigentes dos serviços de extensão rural, pesquisa agrícola, a coordenação estadual do projeto, entre outros. A experiência paulista, por exemplo, foi por algum tempo paradigmática dos efeitos negativos da inexistência de compreensão e apoio naqueles níveis, nos anos iniciais de preparação do projeto e sua implementação. Por força de tais hesitações, o projeto, por exemplo, “quase parou” em 2004, pois o então Secretário da Agricultura parecia não entender a relevância do “microbacias” no estado. Sendo estado industrial por excelência, a posição de secretário da agricultura não tem o mesmo peso de outras secretarias e, provavelmente, transfere capacidade política menor ao seu responsável. Desta forma, seus ocupantes podem ser menos influentes no âmbito do governo estadual ou, talvez, desenvolver esforços insuficientes no comando de tal área de ação administrativa. O projeto-MB paulista apenas pode ganhar velocidade depois de quase quatro anos de sua formalização, período durante o qual ocorreram diversas trocas de secretários da agricultura e coordenadores da CATI, o que prejudicou, visivelmente, a implementação do projeto. 37 Em Santa Catarina, por outro lado, embora também tenham ocorrido trocas variadas naquela posição em anos recentes, os impactos foram substantivamente menores, não apenas porque a “cultura do projeto” já estava enraizada entre os órgãos ligados à agricultura, mas também porque a economia agropecuária no estado é extremamente expressiva e, desta forma, o projeto, em face de sua centralidade na ação governamental, é mais conhecido por todos e, necessariamente, o próprio secretário precisa manter conhecimento significativo sobre o cotidiano de projeto como este. Portanto, o primeiro pré-requisito para um projeto-MB começar a ter chances de sucesso em um estado é a compreensão de sua lógica por parte da elite dirigente governamental que trabalha com temas rurais e agrários. Não se trata de obviedade, no entanto, e sempre será importante relembrar que o “projeto-mãe” de todos, o paranaense, somente manteve o seu sucesso na implementação quando dois governadores apoiaram o projeto e, simultaneamente, mantiveram o mesmo secretário da agricultura, na maior parte da década de 1990, dirigente que, por sua vez, compreendeu perfeitamente a relevância desta política para o estado, sustentando-a entusiasticamente durante todos aqueles anos. Quebrada, logo depois, esta relação de consistência e continuidade, o projeto paranaense observou rápido desajuste e perda de capacidade operacional, virtualmente deixando de existir alguns anos depois. (b) outro elo nesta tentativa de perceber as “chances de sucesso” de projetos-MB que tem crucial importância diz respeito à gerência operacional do projeto, os coordenadores executivos que supervisionam e dirigem o “microbacias” como um todo. Não necessariamente um coordenador, mas sempre uma equipe, idealmente com alguma face de multidisciplinaridade, e incluindo técnicos experientes, conhecedores da estrutura governamental e capazes de iniciativas diversas e em várias áreas de ação governamental. Igualmente crucial, devem ser operadores governamentais capazes de articulações políticas “para cima” (os dirigentes principais) e, especialmente, “para baixo” (os responsáveis pelo projeto nas regiões e nos municípios). Este elo é essencial para o sucesso do projeto, não podendo manter cargos em função meramente de lealdades políticas ao partido no poder e rebaixar as capacidades técnicas requeridas. Os casos catarinense e paulista, neste particular, são exemplares para indicar a importância deste segundo pré-requisito na condução bem sucedida de um projeto-MB. Ambos foram dirigidos até aqui por técnicos que conseguiram separar com êxito influências meramente políticas, além de conseguirem articular as diversas partes de um projeto complexo, requerendo informação criteriosa sobre diversas outras áreas institucionais, sociais e técnico-agronômicas. A sinergia resultante, nesses dois casos, tem demonstrado cabalmente a importância decisiva de uma gerência estadual capaz de assegurar a implementação correta dos projetos. (c) o terceiro elo para ampliar a probabilidade de sucesso na implementação de projetosMB são as prefeituras ou, genericamente, os sistemas de governo locais (pois incluindo também a Câmara de Vereadores e outros serviços governamentais eventualmente existentes no município). Este é plano de ação do projeto que, no geral, é extremamente desafiador e complexo. Há a diversidade partidária a considerar, os interesses locais, muitas vezes enraizados há muitos anos e de difícil mudança, há as disputas locais. Especialmente, pode ocorrer um distanciamento do governo municipal por julgar ser um “projeto estadual”, com pouca possibilidade de repercussão no âmbito municipal, 38 especialmente em termos políticos. Da mesma forma, o projeto necessita mobilizar outros atores locais, incluindo os agentes privados, sempre no esforço de criar uma “linguagem convergente” e difundir tal política governamental. Assim, em relação a este terceiro plano de sustentação, a proposição é direta e sem meias palavras: “sem o apoio do governo municipal, o projeto praticamente não conseguirá sair do chão”. (d) a quarta face deste poliedro que pode garantir resultados de êxito em tais projetos é o que será intitulado aqui de “ação extensionista”. Tal pilar engloba a ação técnica em todos os níveis, desde aqueles profissionais contratados pelas prefeituras para apoiar o projeto aos técnicos, de diversas formações, que são funcionários públicos estaduais, que também atuam no município, chegando àqueles que são responsáveis por supervisão regional e, finalmente, aos técnicos que atuam no plano estadual, ou na coordenação geral do projeto ou em atividades mais especificas de âmbito estadual. Como afirmado reiteradamente neste documento, a ação extensionista, no aprendizado extraído dos projetos analisados, provavelmente representa a fundação mais decisiva para o sucesso do projeto. (e) finalmente, o elo final que nos informa acerca das chances de sucesso dos projetosMB refere-se, claro, aos principais beneficiários, que são as famílias rurais moradoras ou atuantes nas microbacias onde o projeto foi implementado. Sobre tal pilar, é importante salientar um ensinamento fundamental dos projetos-MB implementados e analisados neste estudo. Refere-se a um princípio, supostamente derivado de conhecimento sociológico. Qual seja, a afirmação que nos indica que comunidades rurais onde existe uma sólida tradição organizativa são aquelas nas quais os projetos que supõe a participação dos beneficiários, necessariamente, encontrarão chances maiores de sucesso. O ensinamento dos projetos, contudo, não permite assegurar a veracidade de tal proposição, supostamente assentada em conhecimento acumulado. A análise dos projetos, de fato, apenas indica que tal tradição organizativa, formada a partir de diferentes experiências passadas bem-sucedidas de organização social no âmbito das comunidades rurais, pode, potencialmente, colaborar nas ações e atividades previstas no projeto, pois são formas de interação e conhecimento recíproco entre as famílias rurais que já existiram, acumuladas no passado. Mas não é condição nem necessária e, menos ainda, suficiente, para assegurar a mobilização das famílias rurais envolvidas na microbacia e o seu apoio às iniciativas propostas pelos projetos-MB. O exame analítico de diversas situações empíricas, em São Paulo e em Santa Catarina, em municípios bastante contrastantes sob diversos aspectos (sociais e culturais, atividades econômicas predominantes, forma de propriedade da terra, entre outros) demonstrou que o mecanismo mais saliente para “ativar” a participação das famílias rurais centra-se, sobretudo, na qualidade da ação extensionista realizada, particularmente se tal ação já tiver sido construída anteriormente em relações de confiança e outras atividades que produziram resultados. Se a ação extensionista estiver suficientemente preparada para a dimensão e a complexidade dos projetos-MB, serão enormes as chances de mobilizar as famílias rurais para se articularem às atividades propostas pelos projetos. Não se trata de desmerecer ou ignorar os esforços organizativos pré-existentes, mas apenas ressaltar que projetosmicrobacias, em face de sua extrema complexidade, sobretudo quando “ganham 39 velocidade” e passam a viabilizar uma clara dinâmica sócio-ambiental, necessariamente tem um eixo central de sua ativação que reside, por muitos anos, nas mãos da ação extensionista. A passagem desta ação para um comando autônomo das famílias rurais residentes ou atuantes na microbacia é um processo de longa duração. A ativação do protagonismo social e a participação das famílias rurais, embora um componente decisivo para garantir a sustentatibilidade dos projetos, quando eventualmente “emancipados” da ação governamental, desta forma, dependerá, quase sempre, da qualidade operacional da ação dos profissionais envolvidos e os conseqüentes resultados de sua ação. 6. Recomendações A recomendação principal deste estudo, que é também uma sugestão para os novos projetos que venham a ser implementados, e também para projetos que renovem a sua continuidade em um segundo ou terceiro ciclo, representa, de fato, uma lição extraída da análise dos projetos paulista e catarinense. Da mesma forma, esta recomendação representa uma tentativa de adequação às mudanças sociais e políticas no Brasil, quando “temas sociais” emergiram com mais intensidade, em função da democratização do país e da capacidade crescente dos grupos sociais subalternos de se organizarem e pressionarem politicamente por seus interesses mais específicos. A análise dos dois projetos objeto deste estudo indicou, conforme apontado nas seções anteriores, que ambas as iniciativas, grosso modo, evoluíram de um formato inicial conservacionista, para outro desenho, que poderia ser intitulado de agronômicoambiental. Posteriormente, em algumas regiões de São Paulo e Santa Catarina, a dinâmica local (às vezes, reforçada pelas circunstâncias regionais) permitiu a concretização de um terceiro momento em sua evolução, que poderia ser intitulado (um tanto forçadamente, reconheça-se) de projetos em desenvolvimento rural. É igualmente forçoso reconhecer que esta terceira fase na evolução dos projetos foi alcançada, ainda, em proporção relativamente diminuta, não significando, necessariamente, uma tendência que possa ser rapidamente generalizável para o restante daqueles dois estados onde os projetos-MB encontram sua maior prioridade de implementação. Este estudo, contudo, não teve como objetivo investigar porque uma dinâmica mais claramente organizacional que agregasse a maior parte dos beneficiários em torno de seus interesses e demandas mais imediatas, em torno de objetivos que seriam típicos de “desenvolvimento rural” não se desenvolveu ainda na maior parte das regiões. Embora seja possível especular sobre as razões para tais insuficientes evidências de mobilização social e posterior capacidade de organização, não se fará este esforço neste estudo, por serem também insuficientes as evidências empíricas recolhidas em diversas regiões, o que estudo posterior poderá demonstrar mais cabalmente. É importante, contudo, salientar, que esta transição de “enfoques principais” na história dos projetos (do conservacionista para o “social” e para o desenvolvimento rural) reflete não apenas uma lógica esperada dos projetos, quando corretamente implementados, mas também a conjuntura social e política brasileira, sobretudo nos anos mais recentes. Ou seja, a crescente presença no imaginário social, na agenda política, nas disputas 40 eleitorais e nos meios de comunicação de “temas sociais”, especialmente a discussão sobre pobreza e desigualdade social. Desta forma, seria presumivelmente inevitável que projetos-MB, importantes para as áreas rurais dos respectivos estados, quando menos em função de sua dimensão financeira, acabassem incorporando, de uma forma ou de outra, temas sociais e iniciativas econômicas, espelhando pressões de diferentes grupos, demandas que se avolumaram com os anos, e uma capacidade política dos grupos sociais rurais mais pobres de exercerem mais eficazmente o seu papel reivindicante. Assim, quando as gerências executivas dos projetos organizaram, no caso de Santa Catarina um segundo projeto e, no caso paulista, as discussões para a prorrogação do primeiro projeto, seria natural que tal foco ganhasse mais espaço financeiro e ação operativa em sua implementação. O que vem sendo observado, contudo, é talvez um relativo desequilíbrio entre ações sociais e ambientais (ou, mais genericamente, agronômico-ambientais), na transição entre a primeira fase e o que foi intitulado acima de terceira fase na implementação de tais projetos. Os focos sociais, centrados na distribuição dos incentivos dos projetos e ações que ou saem da esfera produtiva (como “melhoria de habitações”) ou são apenas indiretamente a ela relacionados, passaram a ganhar maior predominância e interesse, por parte da ação extensionista e, mais claramente, por parte dos beneficiários. Este relativo desequilíbrio, demonstrado no caso catarinense pelo fluxo de desembolsos do MB-2, e menos no caso paulista, ainda que não seja fortemente preocupante, pode indicar, no entanto, uma tendência esperada, se afrouxada a compreensão abrangente e sistêmica, necessariamente também agronômico-ambiental dos projetos. Ou seja, sinteticamente expondo o problema: há um claro risco de tais projetos mudarem seu foco multidisciplinar e abrangente (ou holístico, na linguagem de alguns), limitados operacionalmente pelas fronteiras físicas das microbacias, para se assumirem como “projetos sociais”, mais convencionais, que distribuam sob formato favorecido incentivos financeiros às famílias rurais mais pobres, e todos os esforços em um campo ambiental e de renovação das práticas agronômicas possam ser rebaixados, ou até mesmo desconsiderados, em tempos vindouros. Desta forma, é urgente, assim parece, repensar esta tendência (caso seja vista como realmente relevante) e desenvolver outra estratégia de implementação que mantenha articulados os diferentes focos e planos de concretização de todos os componentes previstos, produzindo como resultado não o “acúmulo segmentado das partes”, mas um resultado ampliado obtido com a sinergia de ações nos campos produtivo, propriamente ambiental, agronômico, social e econômico. Desta forma, a recomendação principal deste estudo é que possa ser desenvolvido, ainda que sob forma piloto, uma experiência de desenvolver o projeto-MB com as ações concretizadas de “forma casada”, em analogia com os projetos conhecidos no jargão técnico como “projetos CCT” (“conditional cash transfers”). Tais projetos, como o “Bolsa Família”, vinculam compulsoriamente diversas ações no âmbito de um projeto, e esta poderia ser uma experiência promissora para o aperfeiçoamento dos projetos-MB no Brasil. A pressuposição desta sugestão é que incentivos financeiros nos campos social e econômico (mas, sobretudo, os “sociais”), quando destinados às populações mais pobres do mundo rural brasileiro, sugerem irresistível atratividade e normalmente são 41 imediatamente aceitos, além de não serem de grande complexidade técnica, quando implementados pelos técnicos de campo. Se compulsoriamente vinculados às ações ambientais, contribuiriam para quebrar ou diminuir muitas das resistências no campo agronômico-ambiental de outras ações (especialmente aquelas cujos resultados são de médio e longo prazo), desta forma permitindo uma gradual conscientização das famílias rurais beneficiárias também neste segundo foco. A experiência tem evidenciado a resistência (ou ceticismo) de muitos agricultores em relação ao plantio de matas ciliares; plantio de árvores em topos de morros; plantios sob manejo mais cuidadoso dos solos; esforços de combinação de produção vegetal e animal, entre tantas outras ações aqui intituladas de “agronômico-ambientais”. Esta retração poderá ser mais rapidamente vencida, provavelmente, se os projetos conseguirem avançar uma metodologia de implementação que articule compulsoriamente os incentivos sociais e econômicos às outras ações constantes em sua implementação. Desta forma, o resultado final, em alguns anos, poderá colher efeitos bem mais significativos do que os atualmente sendo obtidos. Uma segunda recomendação relevante e principal que se conecta à primeira acima exposta é a sugestão de realizar, talvez na forma de uma outra experiência-piloto, um “casamento” do projeto-microbacias com o gerenciamento de bacias hidrográficas, que tem seus comitês em diversas regiões brasileiras. Ou seja, uma tentativa mais explícita e coordenada, com incentivos financeiros e a lógica dos projetos-MB “por baixo” (ou seja, junto às famílias rurais) e a lógica dos comitês de bacias hidrográficas atuando em outros níveis, do consumo industrial de água ao consumo das cidades e outros demandantes. Se posta em prática esta experiência, poder-se-ia perceber uma conexão de ação que persiga, em áreas rurais, a ampliação da capacidade de armazenamento de recursos hídricos em uma região mais ampla, lentamente recuperando a potencialidade hídrica de um ecosistema regional com a sua gestão, desde o nível mais basilar, envolvendo as famílias rurais nas diversas microbacias, com os demais níveis de gestão da água, neste caso envolvendo os demais usuários deste recurso tão vital. Se aprovada tal experiência-piloto, provavelmente teríamos aqui a instituição de um modelo para o restante do país, reunindo forçosamente uma ação de intervenção em áreas rurais com uma estratégia nacional de gestão dos recursos hídricos. Outras recomendações, brevemente expostas, sob diferentes focos, são indicadas abaixo, sistematicamente: (a) a preparação dos projetos-MB, além do que foi esboçado em outras partes deste documento, como a necessidade de compreensão analítica dos principais operadores, em todos os níveis, e a capacidade de prever situações futuras em face das especificidades do estado onde será implantado, requer igualmente uma negociação minuciosa e conseqüente com a “área ambiental” do estado correspondente. A experiência dos “microbacias”, em todos os estados, sugere que tais projetos, em função de manter um foco ambiental forte, quase sempre consegue chocar-se com as normas e as instituições do campo ambiental existentes. Há um histórico de conflitos, ou pelo menos divergências, entre as secretarias da Agricultura e do Meio Ambiente em praticamente todos os estados onde tais projetos foram postos a funcionar, seja por 42 incompreensões ou, então, por ortodoxia normativa, especialmente por parte dos operadores do lado institucional ligado ao meio ambiente. Para evitar tais problemas, os projetos-MB precisam obter um amplo espectro de concordância entre tais elos institucionais previamente, acordando-se o possível e estabelecendo regras claras de funcionamento convergente. No caso paulista, uma segunda edição do projeto apresenta a novidade de ser iniciativa conjunta com a Secretaria do Meio Ambiente, o que é associação positiva para o melhor funcionamento das atividades. Talvez seja este o modelo ideal a ser perseguido, embora sempre se recomendando, por óbvias razões, que a coordenação geral do projeto esteja nas mãos da Secretaria da Agricultura e os serviços de extensão rural do estado. (b) Em consonância com a argumentação central deste estudo, que alça a “ação extensionista” à posição mais destacada para assegurar o sucesso de tais projetos, as recomendações neste campo são, especialmente, de duas ordens. Primeiramente, como foi antes destacado, é imprescindível organizar esforços bem mais conseqüentes, estratégicos e planejados de capacitação e formação da ação extensionista no âmbito dos projetos. Não obstante todas as iniciativas até aqui realizadas, em ambos os estados, não parece ser ainda suficiente, e muito mais precisa ser feito para realmente preparar os profissionais para o desempenho de ações de campo que são multidisciplinares e extremamente complexas e abrangentes, exigindo um permanente esforço de articulação das ações em diversos campos, ou aqueles estritamente profissionais (técnicoagronômicos) ou as demais esferas de atuação (ou sociais, ou políticas, ou outras). A maior qualificação dos profissionais envolvidos nos “microbacias”, de fato, representa atualmente um dos maiores desafios confrontados por essas políticas e este pode ser um elo frágil que reduza fortemente as chances de resultados mais expressivos, se não for corretamente organizado. (c) Ainda no campo da ação extensionista nos projetos, recomenda-se que sejam formadas equipes multidisciplinares, tanto no gerenciamento estadual do projeto como, particularmente, no âmbito regional. Dificilmente, por tantas razões de alguma obviedade, será possível constituir, no âmbito municipal, equipes com profissionais de áreas diversas para garantir uma ação estratégica mais conseqüente. Em decorrência de tais impossibilidades práticas, a equipe regional multidisciplinar que possa supervisionar diferentes municípios e apoiá-los tecnicamente passa a ser uma possibilidade mais factível e, provavelmente, suficiente. No plano municipal, aliás, o técnico local, quase sempre, tem uma chance potencial de mobilizar profissionais de outras áreas (notadamente do campo da assistência social e educação) para uma ação concatenada em função dos objetivos dos projetos, com diversos casos concretos demonstrando tal possibilidade, se existirem competências para concretizar esta articulação com aqueles profissionais, quase sempre funcionários das prefeituras locais. Uma equipe regional constituída de profissionais de algumas áreas mais essenciais para o bom funcionamento dos projetos bastaria então para apoiar, quando necessário, o conjunto de atividades previstas no plano municipal. Em relação ao gerenciamento estadual, esta equipe é também necessária para garantir a “visão sistêmica” e abrangente do projeto, além de poder monitorar consistentemente o andamento das atividades em todos os ângulos previstos, não apenas o agronômico e o 43 produtivo, mas o ambiental e aqueles dos processos sociais relativos à mobilização e organização das famílias rurais nas microbacias. As instituições que até aqui montaram e desenvolveram tais políticas, desde a experiência pioneira no Paraná, são constituídas, quase exclusivamente, por profissionais da Agronomia, uma parte importante desses técnicos, com o tempo, sendo forçada a entrar em outras áreas de conhecimento sem preparação prévia e adequada. Adicionalmente, como seria esperado em país onde viceja um forte corporativismo em sua tradição política, tais profissionais e suas organizações, são ciosos de seus espaços conquistados e, quase sempre, resistem à entrada de profissionais de outras áreas, ainda que necessários. Mas o sucesso dos “microbacias” requer outras competências técnicas e não pode prescindir de sua contribuição, sendo esta a razão principal para a formação de equipes profissionais multidisciplinares nos planos estadual e regional. As realidades regionais indicarão, claramente, quais as competências principais requeridas, podendo ocorrer variações, como esperado. Em algumas regiões, por exemplo, profissionais especializados em Ciência Ambiental poderão ser mais urgentes, mas, em outras regiões, profissionais das Ciências Sociais poderão ser aqueles mais demandados, em face de processos sociais mais dinâmicos, em termos de mobilização social, organização das famílias rurais e sua ação externa às microbacias. O espectro profissional potencial é relativamente amplo, como seria esperado, em face da complexidade dos projetos. (d) Os projetos microbacias, por outro lado, requerem mais difusão de sua lógica e resultados. Não parecem ter existido, até aqui, esforços suficientes para disseminar a idéia geral do projeto e sua relevância, apontar seus resultados e insistir, junto à opinião pública, acerca das virtualidades de tal ação governamental, suas potencialidades e sua relevância, especialmente quando os temas ambientais assumem urgência mundial. É preciso que os projetos cerquem-se de assessorias jornalísticas que aprofundem sua capacidade de difundir esta ação, tornando-a central na ótica governamental dirigida ao mundo rural. Há boas razões para supor que em futuro próximo a lógica de políticas governamentais centradas em microbacias possa assumir centralidade na política federal e a maior parte de outras políticas passem a ser complementares e coadjuvantes dos “microbacias”. Embora não representando uma “política final” para a agricultura, pois sempre poderia se aperfeiçoada, não existem atualmente alternativas apropriadas para uma política que seja, simultaneamente, agronômica, ambiental e capaz de estimular processos sociais e econômicos virtuosos, como os projetos-MB o são, e as experiências concretas realizadas demonstram-no cabalmente. É preciso mais informação e sua difusão para a sociedade brasileira, inclusive para contrapor-se aos “discursos concorrentes” (agroecologia, desenvolvimento territorial, agricultura familiar, reforma agrária, agronegócio, desenvolvimento local, entre diversas outras noções) ora em voga, nenhum deles capaz de oferecer rota de maior êxito para o desenvolvimento rural brasileiro. (e) Por fim, recomenda-se, a partir da experiência dos projetos analisados, que o componente relativo à pesquisa seja repensado, em sua inserção nas atividades previstas. Conforme antes indicado, são partes do projeto que não tem funcionado adequadamente e, assim, a estratégia de sua contribuição necessita ser radicalmente discutida. Como se trata de produção de conhecimentos que possa alavancar o projeto global, sua relevância e indiscutível. Mas a forma e as metodologias de sua participação 44 nos “microbacias” são ainda incertas. A recomendação, já adiantada anteriormente, é que se proceda a uma tentativa de encaminhar as atividades de pesquisa sob outra forma, como licitações nacionais, a fim de verificar se existe mais agilidade e correspondência com as necessidades do projeto. Adicionalmente, é preciso igualmente identificar mais claramente os requerimentos de conhecimento já percebidos, mas ainda não concretizados. Uma ilustração sobre tal necessidade é a realização de um estudo com metodologia rigorosa que identifique mais claramente os fatores que favorecem (ou obstruem) as mudanças operadas no âmbito das microbacias, não apenas quanto à adesão das famílias rurais em relação às práticas recomendadas, mas também em relação à participação coletiva das famílias diretamente afetadas. Quais seriam os fatores contribuintes para adensar as formas de participação social estimuladas pelos projetosMB? Que circunstâncias estimulam e que variáveis podem representar obstáculos à mobilização das famílias e sua participação nas atividades? Nem sempre apenas os fatores locais são decisivos e, se assim for, existiriam fatores regionais ou de outro plano que contribuem e, neste caso, quais? Ainda sob tais considerações, a pesquisa poderia responder mais profundamente sobre os impactos dos projetos em relação à redução da pobreza rural e as iniciativas de geração de renda através de incentivos diversos oferecidos. No tocante ao primeiro aspecto, por exemplo, o caso catarinense tem feito esforço de aprofundar as iniciativas previstas a partir de uma verificação de relativa obviedade: as famílias rurais que constituem os setores sociais mais pobres não formam conjunto homogêneo e, desta forma, é preciso ter conhecimento mais amplo sobre a diferenciação social e econômica que caracteriza tal conjunto, assim permitindo ação mais conseqüente na direção dos mais pobres do campo para alcançar o objetivo geral e mais socialmente relevante de redução dos níveis atuais de pobreza rural. Quanto às iniciativas no campo da “agregação de valor” ou projetos de “geração de renda”, pouco ainda se sabe acerca de seus resultados e pesquisas em Economia Agrícola precisam ser urgentemente estimulados, com o intuito de aferir os impactos reais e potenciais de tais iniciativas. Anexos 1. Visitas realizadas nos dois estados (agosto e dezembro de 2007) (15 de agosto): primeira visita à coordenação do projeto catarinense, em Florianópolis (25-27 de agosto): visita aos municípios de Seara e Piratuba (Santa Catarina) (30 de agosto): entrevista, em Porto Alegre, com agricultores e técnicos de Angelina (Santa Catarina), os quais visitavam a cidade para assistir à feira agropecuária “Expointer” nas cercanias de Porto Alegre 45 (2-3 de setembro): visita aos municípios de Lages e Capão Alto (Santa Catarina) (05-10 de setembro): visita à coordenação do projeto paulista, em Campinas. Visita a municípios da regional de Dracena (Dracena, São João do Pau D’Alho, Tupi Paulista e Junqueirópolis), visitas a municípios da regional de Botucatu (Laranjal Paulista, MBH Água do Choça, Pratania), entrevista em Campinas com os técnicos do Banco Mundial (21-23 de outubro): visita à regional de General Salgado, e aos municípios de Nhandeara, Lourdes, Auriflama e Sud Menucci). Nova entrevista com os coordenadores estaduais, em Campinas (06 a 11 de novembro): terceira visita a campo, em São Paulo. Entrevista com os operadores estaduais do PEMBH (7 e 8 de novembro): visita a Florianópolis, para entrevista com membros da coordenação regional do projeto “Microbacias” (20 e 21 de novembro): visita a Florianópolis, para entrevista com coordenação do projeto e levantamento de dados adicionais 2. Observação sobre a bibliografia consultada Este documento não lista, em face de sua natureza não acadêmica e seus objetivos de discussão mais “livre e aberta”, os textos, artigos e livros que formam a bibliografia consultada para a sua elaboração. A maioria de tais fontes é formada de documentos internos aos projetos e do Banco Mundial, como “ajudas-memória” e outros textos de distribuição relativamente restrita. Também foram consultados relatórios elaborados, algumas vezes, pelos escritórios locais de extensão rural, em Santa Catarina e em São Paulo e, outras vezes, relatórios de escritórios regionais, especialmente no caso paulista. 46