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Ecocardiografia fetal LILIAN M. LOPES, MARCO ANTONIO B. LOPES, SEIZO MYIADAHIRA, MARCELO ZUGAIB No período de Julho de 1987 a Julho de 1997, foram avaliados, por meio da ecocardiografia fetal, 3.320 fetos entre 12 e 42 semanas de gestação, quer seja pela técnica transabdominal a partir de 18 semanas (3.185 fetos), quer seja pela técnica transvaginal entre 12 e 17 semanas (135 fetos). Todos os exames incluíram a análise bidimensional, o modo-M e o Doppler. As indicações mais comuns para o exame transabdominal foram diabete melito materno (20,7%), arritmias fetais (12,7%), história familiar de cardiopatia congênita (10,1%), polimalformação fetal (10,4%), e suspeita de cardiopatia ao ultra-som obstétrico (5,2%). A translucidez nucal foi a causa de indicação em 5% dos fetos referidos para ecocardiografia transvaginal, tendo sido feito o diagnóstico de cardiopatias congênitas em 5 fetos desse grupo. Em 600 fetos (18,8%) estudados pela técnica convencional transabdominal, observaram-se as seguintes alterações: Grupo I, alteração da forma e/ou função, 327 casos; e Grupo II, alteração do ritmo, 273 casos. No Grupo I, foram encontrados 200 casos de cardiopatia congênita, 41 casos de alterações funcionais, 78 casos de variantes do normal e 8 casos de tumor intracardíaco. As arritmias mais comuns do Grupo II foram extrasístoles atriais (160 casos), taquicardia supraventricular (42 casos) e bloqueio atrioventricular (42 casos). Realizou-se procedimento terapêutico invasivo em 1 feto portador de estenose aórtica crítica (valvoplastia aórtica com cateter balão), em 17 fetos com taquiarritmia (administração de digital por cordocentese) e em 3 fetos hidrópicos por bloqueio atrioventricular total (administração de isoproterenol por cordocentese). O aconselhamento familiar e o planejamento do parto em centro de referência foram realizados em todos os casos. Descritores: ecocardiografia fetal, cardiologia fetal, diagnóstico por imagem, cardiopatia congênita fetal, diagnóstico pré-natal. INTRODUÇÃO (Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 1997;5:701-10) RSCESP (72594)-645 As principais indicações para o exame foram descritas na literatura (2, 7) ; segundo a experiência dos autores, essas indicações são: doença materna com risco aumentado de cardiopatia fetal (20,7%), arritmias fetais (12,7%), história familiar de cardiopatia congênita (10,1%), e polimalformação fetal (10,4%). A Tabela 1 mostra a incidência de anormalidades em cada grupo Setor de Cardiologia Fetal da Clínica Obstétrica — HC-FMUSP Endereço para correspondência: Clínica Obstétrica do HC-FMUSP — DOG Av. Dr Enéas de Carvalho Aguiar, 188 — 10o andar — sala 10036 CEP 05403-000 — São Paulo — SP Com os recentes avanços tecnológicos somados à crescente melhora da habilidade dos ultra-sonografistas obstétricos em rastrear malformações fetais, a precisão diagnóstica da ultra-sonografia continua em expansão. Embora malformações estruturais do coração e grandes vasos da base sejam relativamente comuns, ocorrendo em aproximadamente 8 a cada 1.000 nascidos vivos, a ecocardiografia fetal, quer seja nível I ou II, tem atraído a atenção dos especialistas apenas recentemente(1-4) . A imagem de boa qualidade do coração fetal é um objetivo difícil de ser conseguido em virtude de o coração fetal ser pequeno e se movimentar rapidamente, necessitando de aparelhagem de alta resolução (5) . Desde o advento dos transdutores setoriais com imagens em tempo real, para o estudo bidimensional e mapeamento de fluxo em cores, tem sido possível diagnosticar cardiopatias congênitas, arritmias ou distúrbios funcionais do coração fetal. Com isso, por meio do trabalho em equipe, nasceu a “Cardiologia Fetal”, onde desempenham importante papel o aconselhamento genético, a decisão conjunta com obstetras sobre o local e via de parto, a sofisticada técnica de monitorização fetal durante tratamento antiarrítmico, bem como a intervenção para dilatação de uma valva cardíaca fetal estenosada através de cateter balão (6,7) . INDICAÇÕES Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 7 No 5 Set/Out 1997 701 LOPES LM e cols. Ecocardiografia fetal referido para estudo. No grupo das gestantes diabéticas, foram encontrados 25 fetos com hipertrofia septal assimétrica(8) e 7 casos de cardiopatia congênita (comunicação interventricular, 4 casos; atresia tricúspide com transposição das grandes artérias, 1 caso; dupla via de saída de ventrículo direito, 1 caso; síndrome de hipoplasia de coração esquerdo, 1 caso). nicação interventricular). Os exames foram realizados a partir da 18 a semana de gestação, porém com melhor qualidade de imagens ao redor da 28 a semana, quando as valvas estavam bem desenvolvidas e a movimentação fetal era menor. Quando necessário, entretanto, analisou-se a anatomia cardíaca e o ritmo cardíaco fetal a partir da Tabela 1. Indicações para a ecocardiografia fetal e incidência de anormalidades estruturais em 3.000 fetos. Doença materna afetando o feto Diabete (n = 542) e cardiopatia fetal Rubéola (n = 80) e cardiopatia fetal História familiar de cardiopatia congênita Filho anterior (n = 157) com recorrência Materna (n = 148) com recorrência Ingestão materna de teratógenos Lítio (n = 7) e cardiopatia fetal Anticonvulsivantes (116) e cardiopatia fetal Malformações fetais extracardíacas Defeitos cromossômicos (n = 14) e cardiopatia fetal Outros sistemas (n = 298) e cardiopatia fetal Suspeita de cardiopatia pelo ultra-som obstétrico Cardiopatia fetal confirmada Hidropsia fetal não-imune Cardiopatia fetal Líquido amniótico anormal Cardiopatia fetal Arritmias fetais Bloqueio A-V (n = 37) e cardiopatia fetal Bloqueio A-V (n = 37) e doença materna do tecido conectivo Taquiarritmia (n = 41) e cardiopatia fetal ESA (n = 155) ou ESV (n = 4) e cardiopatia fetal As arritmias fetais foram a segunda causa de indicação para estudo ecocardiográfico, tendo sido confirmadas em 273 casos. No grupo referido por história familiar de cardiopatia congênita em filho nascido anteriormente ocorreram 8 recidivas: 1) comunicação interatrial com recidiva de síndrome do isomerismo atrial esquerdo; 2) transposição das grandes artérias com recidiva de tetralogia de Fallot; 3) tetralogia de Fallot com recidiva de comunicação interventricular grande; 4) estenose valvar aórtica com recidiva de estenose valvar pulmonar; 5) comunicação interventricular com comunicação interatrial com recidiva para síndrome de hipoplasia de ventrículo esquerdo; 6) síndrome de isomerismo esquerdo com recidiva de síndrome de isomerismo esquerdo; 7) anomalia de Ebstein com recidiva de comunicação interventricular; e 8) comunicação interventricular muscular com recidiva para comunicação interventricular muscular. Das 148 gestantes portadoras de cardiopatia congênita, apenas uma, portadora de comunicação interatrial, apresentou recidiva de cardiopatia congênita no feto (comu702 622 (20,7%) 7 2 305 (10,1%) 8 1 131 1 2 312 (10,4%) 7 38 156 (5,2 %) 71 50 (1,6%) 11 81 (2,7%) 3 381 (12,7%) 18 7 2 6 12a semana, por meio de técnica mais recente que utiliza transdutor vaginal. EQUIPAMENTO O objetivo da ecocardiografia fetal é a obtenção de imagens de alta resolução por meio de cortes ecocardiográficos bidimensionais. Além disso, é necessário que o sistema esteja equipado com modo-M, Doppler pulsado e contínuo, e mapeamento de fluxo em cores. A freqüência do transdutor para a visibilização do coração fetal deve ser alta (5 MHz), embora no final da gestação muitas vezes se utilize transdutor de 3,5 MHz. Os transdutores setoriais são mais facilmente manipulados do que os lineares, sendo portanto mais utilizados para esse tipo de exame. TÉCNICA Posição fetal Deve ser determinada no início do exame, por meio da localização do corpo e da cabeça fetais. A coluna Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 7 No 5 Set/Out 1997 LOPES LM e cols. Ecocardiografia fetal vertebral e as costelas não devem estar à frente da imagem cardíaca, pois absorvem muita energia e prejudicam sua visibilização. Posição do transdutor Variável de acordo com a posição fetal. As melhores imagens são obtidas através do abdome fetal, pois nessa região não ocorrem sombras ósseas provocadas pelo esterno ou pelas costelas. INTERPRETAÇÃO O cardiologista treinado em ecocardiografia fetal deve estar familiarizado com os aspectos diferentes da anatomia cardíaca da fase pré-natal. Deve estar treinado para seguir as conexões venosas e arteriais em seqüência lógica e contínua, independentemente da posição e da movimentação fetais. Se por um lado o ultra-sonografista ou obstetra tem maior treinamento em determinar as imagens fetais, por outro lado tem menor entendimento do espectro de anormalidades congênitas a ser considerado, ficando sob sua responsabilidade a chamada ecocardiografia fetal nível I, isto é, o reconhecimento da normalidade cardíaca(9) . Achiron e colaboradores (10) compararam, prospectivamente, a sensibilidade do ultra-som obstétrico em detectar anomalias cardíacas quando apenas a posição de 4câmaras foi analisada, quando acrescentava-se à análise a verificação da saída da aorta e da artéria pulmonar dos ventrículos. Os resultados surpreenderam ao demonstrar que a posição de 4-câmaras tem sensibilidade de apenas 48%, isto é, 52% de cardiopatias complexas não são diagnosticadas quando somente essa posição é analisada. Sabe-se que a posição de 4-câmaras pode ser normal em cardiopatias como a transposição das grandes artérias, o “truncus arteriosus”, a tetralogia de Fallot, a comunicação interventricular perimembranosa e a coarctação severa. O mesmo trabalho mostrou que, ao se adicionar a análise das vias de saída dos ventrículos (cortes de saída de aorta e da artéria pulmonar), a sensibilidade aumentou para 78%. Conclui-se, portanto, que o rastreamento adequado das cardiopatias congênitas somente será realizado ao se utilizar dentro do ultra-som obstétrico os cortes de 4câmaras associados aos de saída de aorta e saída pulmonar. O cardiologista treinado em ecocardiografia fetal nível II deve reconhecer com profundidade as cardiopatias congênitas e suas complexas associações, permitindo com suas informações o estabelecimento do prognóstico e o planejamento do tratamento pósnatal(11). Para enfatizar a importância das lesões associadas, poderíamos citar, como exemplo, a transposição das grandes artérias, cujo prognóstico é diverso, dependendo da existência ou não de comunicação interventricular associada. Dados de literatura apontam que as maiores cau- sas de erros em ecocardiografia fetal ocorrem devido à utilização de equipamentos de baixa resolução, sem capacidade de ampliar as imagens e sem Doppler. Alguns erros podem ocorrer pela má qualidade de imagem no polidrâmnio, na obesidade materna, ou diante de posição fetal inadequada. Em conseqüência da limitação da resolução da imagem não é possível diagnosticarem-se defeitos menores que 1,5 mm, como pequenas comunicações interventriculares. Estenoses discretas das valvas aórtica e pulmonar podem passar despercebidas, pois o aspecto da valva nesses casos é normal e a velocidade do fluxo ao Doppler, menor que no período pós-natal, em virtude da baixa pressão intraventricular presente em vida fetal. Outros defeitos, como a coarctação da aorta e a comunicação interatrial tipo “ostium secundum”, são difíceis de se diagnosticar pela similaridade com a anatomia fetal normal. Além disso, devemos lembrar que muitas lesões têm caráter progressivo, piorando com o desenvolvimento da gestação. É importante, nesses casos, que se façam estudos ecocardiográficos seriados. Há inúmeras vantagens em se afastar ou reconhecer as anormalidades cardíacas fetais. Nos casos em que o resultado é normal, tranqüiliza-se os pais. Nos outros casos com anormalidade cardíaca, é possível planejar para que o parto ocorra em hospital com suporte adequado para assistir o recém-nascido cardiopata. Nos casos de arritmia fetal com insuficiência cardíaca, o tratamento por meio de medicamentos já é uma realidade. Torna-se importante enfatizar que, sendo a ecocardiografia fetal uma técnica relativamente recente, é natural que defeitos mais graves e sintomáticos sejam os de mais fácil reconhecimento pelo ultrasonografista obstétrico, que os tria para os centros de referência. É necessário, portanto, maior treinamento dos obstetras que trabalham com ultra-som em atenção primária, no sentido de reconhecer as anormalidades do coração fetal. Somente assim essa técnica poderá render todo o seu potencial, fazendo com que o tratamento precoce do recém- nascido cardiopata se torne uma realidade. MALFORMAÇÕES CARDÍACAS As alterações cardíacas mais importantes encontradas em crianças são de etiologia congênita. Sabendo-se que a formação do coração ocorre antes da oitava semana após a concepção, conclui-se que as malformações estruturais são precoces no embrião. Entretanto, uma dentre as dificuldades encontradas para o diagnóstico reside no fato de que o quadro ecocardiográfico clássico de algumas cardiopatias só se torna aparente após o nascimento(12) . A visibilização do coração em movimento tem sido possível há vários anos, porém apenas no final da década de 1970 é que a análise detalhada da anatomia Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 7 No 5 Set/Out 1997 703 LOPES LM e cols. Ecocardiografia fetal cardíaca tornou-se realidade, graças, principalmente, ao avanço tecnológico que proporcionou aos aparelhos de ultra-som imagens em tempo real. O aspecto do coração fetal por meio dos cortes ecocardiográficos foi descrito por vários autores, quase que simultaneamente, na década de 1980 (13-15) . A partir desse período, os aparelhos ultra-sonográficos foram aperfeiçoados a ponto de permitir diagnósticos detalhados e sofisticados das malformações cardíacas fetais (2-4, 16) . A adição do Doppler pulsado e em cores aumentou ainda mais a capacidade diagnóstica, particularmente no que se refere à análise funcional(17, 18). As cardiopatias congênitas são, atualmente, os defeitos congênitos mais comuns encontrados na infância, afetando aproximadamente 8/1.000 nascidos vivos. Dentre esses 8 afetados, 3 apresentam anomalias de conexão, associadas a formas severas de cardiopatias congênitas (12) . Mesmo considerando os avanços ocorridos na cirurgia cardíaca pediátrica nos últimos 20 anos, o prognóstico das crianças com cardiopatias complexas permanece ruim, embora possam apresentar resultados cirúrgicos imediatos relativamente bons (12) . Diante do que foi discutido, conclui-se que o diagnóstico pré-natal das cardiopatias congênitas é importante, tanto no sentido do planejamento do parto como também no aconselhamento dos pais e no estabelecimento de prognóstico(11,19). EPIDEMIOLOGIA DAS CARDIOPATIAS CONGÊNITAS O corte de mais fácil obtenção no coração fetal é o corte de 4-câmaras. Utilizando-o, podem-se excluir muitos defeitos complexos e graves. Entretanto, apenas 2 dos 8 casos de cardiopatias congênitas em cada 1.000 nascidos vivos serão diagnosticados nesse corte, não excluindo, portanto, a necessidade da realização da ecocardiografia nível II para os grupos de risco. Sabe-se que o espectro das cardiopatias congênitas encontradas no período pré-natal é bastante diferente das cardiopatias observadas no pós-natal (2) . Isso porque as anomalias mais simples, que invariavelmente chegam ao cardiologista pediátrico, apresentam grande dificuldade de visibilização ao ultra-som, não só pelo pequeno tamanho do defeito como também pela posição de 4-câmaras freqüentemente ser normal nesses casos. Ao contrário, as anomalias graves são mais facilmente identificadas pela posição de 4-câmaras (5) . Outros fatores contribuem para que as cardiopatias congênitas diagnosticadas durante a vida fetal mostrem-se peculiarmente graves e com alta mortalidade, quando comparadas às que são seguidas após o nascimento. Freqüentemente, são encaminhados para a ecocardiografia fetal fetos com malformações de outros sistemas ou órgãos, em geral acompanhados de defeito de septo atrioventricular e tetralogia de Fallot, 704 que costumam associar-se às trissomias. A hidropsia fetal, também freqüentemente encaminhada, é um achado gravíssimo e comum nos casos de higroma cístico, coarctação da aorta e síndrome de Turner (12) . Verificamos, em nossa casuística, que dentre 3.185 fetos estudados pela ecocardiografia fetal transabdominal, 327 (10,2%) apresentaram alteração na forma e/ou função de pelo menos um órgão (Tab. 2), sendo o grupo das cardiopatias congênitas o mais importante e o que apresentou maior mortalidade (60%) (Tab. 3). A cardiopatia mais freqüentemente encontrada foi a comunicação interventricular (Fig. 1), cuja alta mortalidade pode ser explicada não pela cardiopatia isoladamente, visto que se trata de cardiopatia acianótica, mas pela associação com síndromes cromossômicas e malformações em outros órgãos em quase 100%. A síndrome do isomerismo atrial esquerdo associou-se ao bloqueio atrioventricular em todos os casos exceto em um, com 100% de mortalidade. Gravidade semelhante foi observada na síndrome de hipoplasia do coração esquerdo, não tendo havido sobreviventes. No grupo de portadores de alterações funcionais (Tab. 4), todos os fetos com hipertrofia septal assimétrica tiveram boa evolução no berçário, com normalização dos achados ecocardiográficos em até seis meses após o nascimento(8,20) . Diagnosticou-se restrição do canal arterial em sete fetos, relacionados ao uso de antiinflamatório em dois casos (diclofenaco), de vasoconstritor nasal em dois casos e sem relação aparente em três casos (espontâneo?). Em um dos casos com atresia pulmonar funcional, fez-se o diagnóstico falso-positivo de atresia pulmonar congênita. Esse é um diagnóstico diferencial por vezes muito difícil no feto, uma vez que não há fluxo anterógrado pulmonar nas duas situações. O diagnóstico diferencial poderia teoricamente ser feito pelo mapeamento da insuficiência pulmonar, presente na atresia pulmonar funcional, porém em razão de estarmos analisando estruturas extremamente pequenas, a percepção desse refluxo durante a vida fetal nem sempre é fácil(21) . Um dos casos de disfunção miocárdica manifestou-se como miocardiopatia dilatada de ventrículo esquerdo de etiologia não identificada. Cinco fetos apresentaram dilatação importante de câmaras direitas, com insuficiência tricúspide moderada a importante, tendo sido possível, em apenas um caso, o reconhecimento da causa (forame oval restritivo)(22) . Nos outros quatro casos, essa hipótese foi levantada juntamente com a hipótese diagnóstica de hipertensão pulmonar primária. Em apenas dois casos pôde-se identificar como possível causa para essas alterações o uso de fenobarbital por uma gestante epiléptica e o uso de “crack” por gestante adolescente droga-dependente. Oito casos de tumor intracardíaco foram do tipo rabdomioma múltiplo, tendo sido indicada cirurgia, imediatamente após o nascimento, em apenas um caso Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 7 No 5 Set/Out 1997 LOPES LM e cols. Ecocardiografia fetal Tabela 2. Alterações de forma e/ou função. Cardiopatia congênita Alterações funcionais Tumor Variantes do normal Total 200 41 8 78 327 (10,2%) no qual uma das massas tumorais causava obstrução ao fluxo para a via de saída do ventrículo esquerdo e para a aorta. Os dois fetos que evoluíram para óbito apresentaram taquicardia supraventricular sustentada associada ao tumor. No grupo de variantes do normal (Tab. 5), 25 fetos apresentaram foco de ecogenicidade aumentada no ventrículo esquerdo, localizada no músculo papilar da Tabela 3. Cardiopatias congênitas. Tipo Número de casos Comunicação interventricular Isomerismo atrial esquerdo Isomerismo atrial direito Dupla via de saída de ventrículo direito Síndrome de hipoplasia de ventrículo esquerdo Defeito de septo atrioventricular Cardiomiopatia hipertrófica Tetralogia de Fallot Estenose pulmonar Atresia pulmonar com Ebstein Atresia tricúspide Estenose aórtica Ventrículo único Displasia tricúspide/Ebstein Transposição das grandes artérias Coração único em xifópagos Transposição corrigida das grandes artérias Síndrome de hipoplasia de ventrículo direito “Truncus arteriosus” Ectopia do coração com comunicação interventricular Coarctação de aorta Dextrocardia Síndrome de Marfan Total 38 21 2 24 18 15 10 7 6 9 9 8 5 6 4 3 3 5 1 2 1 2 1 200 Tabela 4. Alterações funcionais. Hipertrofia septal assimétrica Canal arterial restritivo Forame oval restritivo/hipertensão pulmonar primária Atresia pulmonar funcional Miocardiopatia dilatada Total 25 7 5 2 2 41 Tabela 5. Variantes do normal. Ecogenicidade aumentada de músculo papilar (“golf ball”) Aneurisma da fossa oval Refluxo tricúspide mínimo Câmaras direitas aumentadas Total 25 24 15 14 78 Figura 1. Comunicação interventricular perimembranosa em região subaórtica (seta). Corte de 4-câmaras, em que as estrelas indicam os ventrículos. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 7 No 5 Set/Out 1997 705 LOPES LM e cols. Ecocardiografia fetal valva mitral, que, em cortes oblíquos, simulavam pequena massa tumoral intraventricular, denominada por alguns autores “golf ball” (23-25) . Esses autores tentaram estabelecer valor preditivo do foco ecogênico para trissomias, principalmente a do cromossomo 21, tendo havido resultados discrepantes, com riscos que variaram entre 18% (24) e 1% (25) . Quatorze fetos apresentaram aumento de ventrículo direito acima da média, dos quais nove que tiveram relação anel valvar tricúspide/anel valvar mitral encontravam-se acima de 1,2. Essa faixa de valores, segundo os critérios de Allan e colaboradores (26) , embora seja considerada forte indício da presença de coarctação de aorta, não se mostrou válida em nossa experiência. Por outro lado, tivemos três casos de coarctação de aorta cujo diagnóstico foi impossível por meio da ecocardiografia fetal. Um deles apresentou os diâmetros das câmaras direitas próximos à normalidade. CAUSAS DE ERRO DE DIAGNÓSTICO É importante reconhecer que, embora cada vez mais se adquira experiência com a ecocardiografia fetal, sempre existe a possibilidade de erros na interpretação(19) . Os autores tiveram um único caso de falso-positivo, em que uma atresia pulmonar funcional foi interpretada como sendo verdadeiramente atrésica. Nesse caso, devido à presença de hipertensão pulmonar, havia ausência de fluxo anterógrado, ausência de abertura da valva pulmonar, insuficiência tricúspide severa e dilatação importante de átrio direito. Não se observou insuficiência pulmonar fetal, que seria um dado de diagnóstico diferencial importante(21) . Após o nascimento, o ecocardiograma foi repetido, e evidenciou hipertensão pulmonar com valva pulmonar anatomicamente normal. A criança apresentou boa evolução, com normalização das alterações ecocardiográficas após seis meses. Os casos de diagnóstico falso-negativo foram decorrentes de coarctação de aorta em quatro casos, comunicação interatrial em um caso, comunicação interventricular muscular restritiva em três casos e miocardiopatia hipertrófica em um caso. Todos esses erros já foram descritos por outros autores (2) . Devido à resolução do aparelho de ecocardiografia ser inferior a 1,5 mm, anormalidades estruturais pequenas podem passar despercebidas, como, por exemplo, as comunicações interventriculares mínimas. As estenoses pulmonares e aórticas discretas podem, também, apresentar dificuldade diagnóstica, em razão de as valvas, nesses casos, não apresentarem distorção nem gradientes devido à baixa pressão intraventricular na vida fetal. A coarctação de aorta e a comunicação interatrial podem deixar de ser identificadas pelas mesmas razões acima descritas. Além disso, certos defeitos podem apresentar caráter evolutivo e se agravar no decorrer da ges- 706 tação ou após o nascimento, como é o caso da própria coarctação ou das miocardiopatias hipertróficas. Ecocardiograma fetal com qualidade técnica satisfatória foi obtido em 3.065 gestantes, tendo havido necessidade de repetição do exame em 120 casos, na maioria das vezes por idade gestacional precoce (53%) ou posição fetal inadequada (37%). Em três casos, o ecocardiograma foi tecnicamente impossível devido à obesidade materna. EVOLUÇÃO DOS FETOS PORTADORES DE CARDIOPATIAS CONGÊNITAS Os tipos de anormalidades encontradas nesse estudo foram similares àqueles das séries apresentadas por outros autores (5, 13, 27-29) . Existe nítida predominância de anormalidades mais graves e complexas, detectadas pela ecocardiografia fetal (28, 30-33) , provavelmente pelo alto risco de cardiopatia no grupo referido para estudo, ou pela inabilidade do ultra-som obstétrico em rastrear cardiopatias mais simples (1) . A severidade dos defeitos foi comprovada pela alta taxa de natimortalidade e de óbito perinatal (60%). Diante da alta incidência de anormalidades encontradas nesse grupo, recomenda-se aos obstetras que incluam, na rotina do ultra-som, a análise das posições de 4-câmaras, em eixo maior e menor, como forma de rastreamento de cardiopatias congênitas (9) . Sabe-se que muito pouco pode ser feito, em termos de terapia intervencionista, em um feto portador de cardiopatia congênita. As estenoses valvares aórtica e pulmonar beneficiam-se, teoricamente, pela dilatação e pelo alívio da obstrução. Nossa equipe de Medicina Fetal realizou valvoplastia com cateter balão em um feto de 27 semanas, portador de estenose aórtica crítica, segundo a técnica de Maxwell (7) . Obteve-se sucesso na dilatação da valva, o que não impediu a evolução da fibroelastose e conseqüente óbito do neonato, mesmo após a realização da cirurgia cardíaca(6) . Cremos que há necessidade de maior esclarecimento em relação ao fato de a fibroelastose endocárdica ser realmente conseqüência da alta pressão intraventricular secundária a estenose aórtica. Outra possibilidade é de que ela é uma doença cuja progressão é inevitável, mesmo com o alívio da estenose. Assim como nesse caso, há outros tipos de cardiopatias congênitas cuja terapêutica intervencionista só é justificável quando realizada em fases mais precoces, quando o coração fetal ainda não apresenta seqüelas definitivas. Para tanto, é necessário que técnicas diagnósticas mais precoces sejam desenvolvidas, como a ecocardiografia fetal transvaginal, que possibilita o diagnóstico ainda no primeiro trimestre da gestação. Temos feito esse exame no primeiro trimestre, em todas as pacientes consideradas de alto risco, ou com translucidez nucal alterada, com resultados bastante animadores. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 7 No 5 Set/Out 1997 LOPES LM e cols. Ecocardiografia fetal ARRITMIAS FETAIS O interesse nas arritmias cardíacas fetais tem aumentado nos últimos anos, em conseqüência da maior utilização dos métodos de monitorização fetal(34) . Esse diagnóstico deixou de ter cunho exclusivamente acadêmico. Trabalhos recentes demonstram a precisão da ecocardiografia em diagnosticar arritmias, bem como resultados animadores com o tratamento antiarrítmico(35,36) . INCIDÊNCIA Na experiência dos autores, a incidência dos vários tipos de arritmias no feto difere do espectro encontrado no neonato e na criança. As arritmias fetais são apresentadas na Tabela 6. A extra-sistolia atrial é o tipo de arritmia mais freqüentemente encontrado (58,6%), tendo apresentado evolução benigna e revertido em todos os casos exceto em um, que evoluiu para ritmo atrial caótico e encontra-se atualmente em acompanhamento. Dentre os 48 fetos que se apresentaram com taquiarritmia supraventricular (taquicardia supraventricular em 42 casos e “flutter” atrial em 6 casos), 17 foram do tipo não-sustentada e 31, do tipo sustentada (Fig. 2). O tratamento antiarrítmico nos últimos 35 casos consistiu do seguinte protocolo: para o grupo não-sustentada, dose de ataque de digoxina por via transplacentária (1 mg por via oral durante três dias), seguida de dose de manutenção até o parto (0,25 mg-0,75 mg por via oral ao dia); e para o grupo sustentada, dose de ataque de digoxina combinando-se as vias transplacentária (1 mg por via oral durante três dias) e direta em veia umbilical fetal (0,04 mg de deslanosídio por quilo de peso fetal somado ao placentário), seguida de dose de manutenção até o parto (0,25 mg-0,75 mg por via oral ao dia). Os resultados demonstraram que a ecocardiografia fetal foi capaz de diagnosticar corretamente os diversos tipos de taquiarritmia, permitindo classificação tecnicamente simples (não-sustentada e sustentada), que orientou a conduta terapêutica de forma adequada, separando os grupos de acordo com a gravidade. O tempo de conversão da taquiarritmia para ritmo sinusal foi menor quando comparado ao da literatura e o tratamento foi efetivo em 88% dos casos. A evolução perinatal desse grupo mostra que 80,7% das crianças estão vivas e com boa qualidade de vida e que existe tendência à normalização do ritmo cardíaco com o passar do tempo (37) . Dentre os 42 casos de bloqueio atrioventricular, 32 foram do tipo total (Fig. 3) e 10, de segundo grau. Clinicamente, dividimos esses fetos em dois grupos: 1) bloqueio associado com cardiopatia congênita complexa (3 casos) e síndrome do isomerismo atrial esquerdo (17 casos); e 2) bloqueio em coração anatomicamente normal (22 casos). Dezoito óbitos ocorreram no primeiro grupo e apenas 3 no segundo grupo. A associação do segundo grupo com doença materna do tecido conectivo e presença de anticorpos anti-RO em sangue materno foi comprovada em 50% dos casos. A administração direta em veia umbilical fetal de isoproterenol por cordocentese foi tentada em três casos como medida heróica, dado o grau avançado de hidropisia fetal e freqüência ventricular extremamente baixa (entre 22 bpm e 40 bpm). Embora a freqüência cardíaca tenha se elevado em 90% a 100% imediatamente após a cordocentese, esse aumento na freqüência ventricular não foi associado com diminuição do edema(38) . Em todos os casos de bloqueio atrioventricular, indicou-se parto operatório, em razão da impossibilidade de se monitorizar o trabalho de parto. Na Tabela 6 encontram-se sumariadas formas raras e complexas de arritmias, que provavelmente foram triadas para nosso Centro de Referência em Medicina e Cardiologia Fetal por serem mais sintomáticas. Sabe-se que muitas dessas arritmias, se não tratadas, causam hidropisia, morte súbita e óbito fetal, sendo Figura 2. Taquicardia supraventricular sustentada. As setas indicam as contrações da parede atrial em freqüência de 250 batimentos por minuto. Tabela 6 . Alterações de ritmo. Extra-sístole atrial Taquicardia supraventricular “Flutter” atrial Taquicardia ventricular Bloqueio atrioventricular Bloqueio atrioventricular de segundo grau Bigeminismo atrial bloqueado Trigeminismo atrial bloqueado Bigeminismo ventricular Extra-sístole ventricular Bradicardia sinusal Total 160 42 6 1 32 10 10 1 2 6 3 273 Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 7 No 5 Set/Out 1997 707 LOPES LM e cols. Ecocardiografia fetal provavelmente essa a razão de sua baixa incidência nos berçários. IMPACTO DA ECOCARDIOGRAFIA NO CAMPO DAS ARRITMIAS A ecocardiografia é, sem dúvida, superior ao eletrocardiograma intra-uterino, cujas ondas “p” são muito pequenas para serem analisadas, evidenciando somente o complexo QRS. Sua única limitação consiste no fato de estarmos analisando fenômenos mecânicos e não elétricos. Mesmo assim, é uma técnica que tem se mostrado precisa no diagnóstico das arritmias fetais. O diagnóstico do tipo de arritmia é importante por determinar não só o tipo de tratamento como também a conduta obstétrica. À equipe multidisciplinar de Medicina Fetal importa o tipo e a gravidade da arritmia, sua associação com cardiopatias ou outras malformações, e seu comportamento frente à terapêutica antiarrítmica. Deve-se ressaltar que, ao se estudar uma arritmia fetal, é importante: — distinguir de sofrimento fetal; — afastar associação com cardiopatia congênita; — pesquisar a presença de insuficiência cardíaca (insuficiência tricúspide e/ou derrames ou ascite e/ou hidropisia); — detectar as “emergências” e encaminhá-las para Centro de Referência treinado em tratamento antiarrítmico fetal; — lembrar da associação do bloqueio A-V fetal com a doença materna do tecido conectivo. Concluímos que, com o diagnóstico preciso do tipo de arritmia fetal e a indicação correta da terapêutica antiarrítmica, muitos partos operatórios e retirada pre- 708 Figura 3. Bloqueio atrioventricular total. Nota-se a contração da parede atrial acima (seta pequena) e a contração da parede ventricular abaixo (seta grande), com freqüência de 45 batimentos por minuto. A: parede atrial; V: parede ventricular. matura de fetos poderão ser evitados, com conseqüente melhora do prognóstico perinatal. COMENTÁRIOS FINAIS Para finalizar, a ecocardiografia fetal é um método preciso no diagnóstico das malformações cardíacas (sensibilidade de 98,0% e especificidade de 99,9%), com grande impacto na conduta obstétrica. Beneficia um número pequeno mas significativo dos pacientes. Os excelentes resultados no tratamento das arritmias fetais atestam a eficácia do diagnóstico ecocardiográfico intra-útero. Um campo ainda promissor é o do tratamento das estenoses valvares, com o cateter balão, após o diagnóstico ecocardiográfico. Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo Vol 7 No 5 Set/Out 1997 LOPES LM e cols. Ecocardiografia fetal Fetal echocardiography LILIAN M. LOPES, MARCO ANTONIO B. LOPES, SEIZO MYIADAHIRA, MARCELO ZUGAIB From 1987 to 1997, we evaluated 3,320 fetuses aged from 12 to 42 weeks, using transabdominal probe (3,185 cases) and transvaginal probe (135 cases). The most common indication for transabdominal echocardiography was maternal diabetes (20.7%), arrhythmias (12.7%), family history of congenital heart disease (10.1%), polimalformation (10.1%) and abnormal findings by obstetric ultrasound (5.2%). Increased nucal translucence was present em 5% of referral for transvaginal echocardiography and 5 cases of congenital heart disease were observed. In 600 fetuses studied by transabdominal probe we confirmed abnormalities (18.8%): Group I, functional or structural abnormalities (327) and Group II, arrhythmias (273). The findings in Group I were: congenital heart disease (200), functional abnormalities (41), normal variations (78) and intracardiac tumor (8). The findings in Group II were premature atrial contractions (160), supraventricular tachycardia (42) and complete heart block (32). Invasive procedure was performed in one fetus with critical aortic stenosis (balloon dilatation), in 17 fetus of tachyarrhythmia (digoxin administration by cordocenteses) and in 3 fetus with heart block (isoproterenol administration by cordocenteses). Decisions on obstetric management of the pregnancy may be influenced, because fetal echocardiography allows the prenatal distinction of simple and complex structural abnormalities of the heart. Counseling was offered to all patients. Key words: fetal echocardiography, prenatal diagnosis, ultrasound in medicine, fetal cardiology, fetal congenital heart disease. (Rev Soc Cardiol Estado de São Paulo 1997;5:701-10) RSCESP (72594)-645 REFERÊNCIAS 1. Alborilas ET, Seward JB, Hagler DJ, et al. Impact of twodimensional and Doppler echocardiography on care of children aged two years and younger. Am J Cardiol 1988;61:166-9. 2. Allan LD, Crawford DC, Anderson RH, et al. Spectrum of congenital heart disease detected echocardiographically in prenatal life. Br Heart J 1985;54:523-6. 3. Lopes LM, Kahhale S, Barbato A, et al. Diagnóstico prénatal das cardiopatias congênitas e arritmias pela ecodopplercardiografia. Arq Bras Cardiol 1990;54:121-5. 4. Silverman NH, Golbus MS. Echocardiographic techniques for assessing normal and abnormal fetal cardiac anatomy. J Am Coll Cardiol 1985;5:205-95. 5. Schmidt KG, Araujo LML, Silverman NH. Evaluation of structural and functional abnormalities of the fetal heart by echocardiography. 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