13/08/2014 Fichamento da primeira parte do capítulo VI, “Deus, e

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13/08/2014 Fichamento da primeira parte do capítulo VI, “Deus, e
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PET FILOSOFIA/UFPR
Aluno do PET: José da Costa Neto
Data: 13/08/2014
Fichamento da primeira parte do capítulo VI, “Deus, espaço, espírito e matéria”, do livro Do
Mundo Fechado Ao Universo Infinito, de Alexandre Koyre – páginas 125-137/112-1221
I
Breve biografia e crítica ao “dualismo radical” de Descartes
Como o título do capítulo indica, Koyre tratará das noções de “Deus”, “espaço”, “espírito” e
“matéria” desenvolvidas pelo filósofo inglês Henry More. O capítulo inicia com uma referência ao
capítulo anterior, sobre a correspondência de More e Descartes, na qual Koyre pode salientar a
importância do filósofo francês para More2: seja devido a aceitação parcial do mecanicismo, seja
devido a negação do “dualismo radical entre espírito e matéria”, pode-se dizer que “toda a evolução
ulterior de More foi determinada, em grande parte, por sua atitude com relação a
Descartes”(p125/112). No que concerne a “história da revolução” contada por Koyre, todavia, o
ponto mais importante é justamente aquele em que More e Descartes se afastam – o dualismo 3 – já
que é da crítica ao dualismo radical de Descartes que surge o conceito que colocará More no hall da
história da ciência: a noção de um espaço infinito.
Antes de seguir esse caminho, todavia, Koyre faz um interessante e sintético interlúdio
biográfico, no qual consegue condensar a vida do filósofo inglês em poucas frases. Em resumo:
“Ele é um contemporâneo espiritual de Marsílio Ficino 4, perdido no mundo desencantado da <nova
filosofia> e travando uma batalha perdida contra ela”(p125/112). Devido a importância biográfica
para a compreensão do autor, eu acrescentaria ainda outros elementos interessantes. (i) A
contextualização histórica: More foi um dos “platonistas de Cambridge” e, como a maioria dos seus
1 Nesse fichamento, a numeração de páginas sem referência ao texto será sempre o do texto fichado, sendo a primeira
da edição inglesa, e a segunda da edição brasileira.
2 More foi o primeiro a ensinar a filosofia natural de Descartes em Cambridge, e um dos primeiros na Inglaterra a
estudar Descartes. Os comentadores antigos tinham a tendência a considerá-lo um cartesiano que mudou de ideia,
mas hoje sabe-se que ele, desde o princípio, já tinha problemas com parte do cartesianismo.
3 É importante ressaltar, todavia, algo que os comentadores posteriores tendem a priorizar: o fato de More ser ele
mesmo um dualista. A diferença está justamente no tipo de dualismo, sendo, inegavelmente, o dualismo cartesiano
um tipo mais radical e extremo, enquanto, no dualismo de More, não deixa de haver um ponto em comum entre
alma e corpo: a noção de extensão.
4 O que o faz escrever um tratado de interpretação cabalistica do Gênesis sem nunca ter estudado a cabala – com a
qual ele só terá contato no final de sua vida.
2
contemporâneos, seus objetivos eram teológicos5; (ii) certos elementos psicológicos: a psicologia de
More era dominada por um conflito entre o racionalismo e sua devoção religiosa – eminentemente
emotiva. Este conflito é expresso principalmente na relação de More com uma vertente mística do
protestantismo de sua época chamada de “entusiasta”, com uma forte tendência irracionalista e
sentimental; More, apesar de criticar os “entusiastas”, tem muitas semelhanças com estes, e esse
aspecto “emocional” termina por influenciar inclusive sua filosofia6.
Para Koyre, o importante desses elementos biográficos, que terminam por fazer da filosofia
de More um sincretismo extremamente estranho 7, é justamente criar um contraste8 entre o Henry
More “entusiasta”, meio-místico, meio-crédulo, e o Henry More racionalista que deu “à nova
ciência – e à nova visão do mundo – alguns dos elementos mais importantes do quadro metafísico
que lhe assegurou o desenvolvimento” (p126/112), a infinitização do espaço9.
Um elemento fundamental para entender a noção de “infinitização do espaço” em More,
todavia, é o fato de que esta ideia parece se desenvolver de modo progressivo nas suas obras; por
isso Koyre pode apontar que nas cartas com Descartes (de 1648), ela ainda estava em sua forma
“embrionária” – ao contrário do afirmado expressamente por More, que defende vigorosamente a
“clareza e distinção” de suas ideias – e que ela se desenvolve lentamente nos textos posteriores (o
“Antídoto contra o Ateísmo” de 1652 e a “Imortalidade da Alma” de 1659), atingindo sua forma
“perfeita” no “Enchiridium metaphysicum”10 de 1671. Esse fato será importante no texto de Koyre
porque, ao tratar, seja do tema do espaço, seja de outros temas, ele seguirá o esquema “cronológico”
5 Em última instância: apresentar seu próprio entendimento do cristianismo verdadeiro, colocando como elemento
central da sua teologia a noção de “moralidade”. Com isso More se aproxima de Leibniz e sua noção de “melhor
mundo possível”, e influenciou outro dos “Platonistas de Cambridge”, Anne Conway, hoje talvez a mais estudada
dentre estes.
6 Como exemplo: (i) as primeira obras filosóficas de More (Democritus Platonissans e Psychodia Platonica) foram
escritas em poemas ao estilo do “Faerie Queen” de Spenser, algo estranho mesmo na sua época; (ii) sua primeira
grande “polêmica” foi contra Thomas Vaughan, um “entusiasta” cuja filosofia era, para os contemporâneos,
indiscernível da filosofia do próprio More; (iii) um de seus principais textos chama-se “Enthusiasmus triumphatus”,
no qual ele critica vários dos grandes “entusiastas” como David George, Henry Nicholas (fundadores de um
movimento místico chamado “Família do Amor”), Paracelsus e Jacob Boehme.
7 “que o faz misturar Platão e Aristóteles, Demócrito e a Cabala, Hermes Trismegisto e os Estoicos”(p125-126/112).
8 Há a questão de saber até que ponto esse contraste é, em Koyre (e ele frisa muito esse “contraste”), uma ironia – até
que ponto o objetivo dele não é justamente salientar o elemento comum entre a “ciência” pura e os elementos
“mágicos”, presentes seja em More, seja em Newton.
9 O que torna More um antecessor de Newton, e justifica esse estudo dentro do livro de Koyre. Há, todavia, a questão
de saber até que ponto More influenciou diretamente Newton. Sabe-se com certeza da influência de autores como
Gassandi (ou seguidores) em Newton. Sabe-se também que More teve contato com Newton. Os que argumentam
contra a influencia de More em Newton lembram o carater emocional de More: no momento do contato entre ambos
o interesse de More era exclusivamente a interpretação dos textos proféticos – interesesse que era compartilhado por
Newton. Pode ser que Newton tenha lido os textos de More, mas isso não é indicado diretamente em sua obra –
como é indicado a influencia de Gassandi. Novamente, sobre More e Gassandi não há no que eu li nada
textualmente aproximando os autores – algum indicio que More tenha lido Gassandi
10 É interessante notar que uma diferença no nome dos textos: os primeiros tem nome em ingles, e foram escritos nessa
lingua. Só o terceiro foi escrito na lingua latina.
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para a apresentação do pensamento de More11.
Ele começa então retomando às cartas a Descartes, nas quais More desenvolve a crítica a
identificação cartesiana entre espaço/extensão e matéria12 - crítica que segue “duas linhas de
ataque”:
1) “essa identificação lhe parece restringir o valor e a importância ontológicas da extensão,
reduzindo-a ao papel de atributo essencial apenas da matéria, e negando-a ao espírito, enquanto ela
é atributo do ser como tal, a precondição necessária de toda existência real”(p126-127/113). Ou
seja: para More toda substância, enquanto substância, é extensa.
2)Há uma confusão entre matéria e espaço, que impede de ver sua distinção e como esses
conceitos se relacionam. “A matéria é móvel no espaço, e, em razão de sua impenetrabilidade,
ocupa espaço; o espaço não é móvel e não é afetado pela presença, ou pela ausência, de matéria
nele”(p127/113). “Assim, é impensável matéria sem espaço, ao passo que espaço sem matéria, não
importa o que diga Descartes, é uma ideia não só simples mas também necessária para nosso
espírito”(p127/113).
É o desenvolvimento dessas duas linhas de ataque que levará More a radicalização da ideia
de um espaço infinito. É esse desenvolvimento também que, quando explicitado, fornecerá as bases
para um outro elemento da filosofia natural de More – elemento importante dentro desta, mas que
não chegou a influenciar diretamente a ciência posterior – : a pneumatologia. Sobre esse segundo
tema Koyre faz um longo parênteses, que será estudado no próximo tópico.
II
A pneumatologia de Henry More
Como se viu, diretamente relacionada com a crítica ao dualismo radical de Descartes está
outra peça fundamental na filosofia de More: sua pneumatologia 13. Novamente aqui o elemento de
“evolução” no pensamento de More não pode ser desprezado. Por isso Koyre segue a ordem dos
textos, tratando primeiro da noção de espírito descrita no “Antídoto contra o Ateísmo” (de 1652).
Neste texto, o primeiro problema enfrentado por More é a noção comum que afirma ser o “espírito”
algo inconcebível pela mente humana. Contra isso More defende que “a natureza de um espírito é
11 Na verdade esse esquema é essencial para entender qualquer ponto da filosofia de More; tanto que em Reid 2012, o
autor usa sempre o esquema cronológico para tratar dos temas debatidos por More.
12 Em última instância, uma crítica ao dualismo extremo de Descartes.
13 É fato que essa noção de Espírito terá um papel importante na Filosofia Natural de More – ou seja, na interpretação
e explicação de certos fenômenos que pareciam não serem explicados pelo puro mecanicismo cartesiano. Todavia,
apesar disso, é importante questionar o por que Koyre tratar desse tema, quando o tema fundamental, a importância
magna de More para a história da ciência, é a noção de espaço? Ele chega até a afirmar textualmente que “a
pneumatologia de More não nos interessa aqui”(p127/113) e, apesar disso, faz uma longa incursão sobre esse tema.
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tão concebível e fácil de ser definida como a natureza de qualquer outra coisa”(p127/114 – citação
de More, “An antidote against atheism, book I, cap IV, §3).
Koyre segue a argumentação: para comprovar essa tese, More primeiro distingui dois tipos
de “propriedades”: (i) a essência ou “substância nua” e (ii) as propriedade essenciais e inseparáveis.
Pelo trecho não é possível distingui-las perfeitamente; o importante, todavia, é ressaltar que a
“essência” ou “substância nua” é incognoscível ao homem, mas que as “propriedades essenciais e
inseparáveis” são inteligíveis e explicáveis para tudo, inclusive para a noção de Espírito.
Com essa distinção ele pode enfim apresentar as “propriedades essenciais” do Espírito (ao
menos dos espíritos finitos): “Autopenetração, Automoção, Autocontração e Dilatação e
Indivisibilidade”(p128/114), além de “penetrar, mover e modificar a matéria”(p128/114). Como
pode-se facilmente perceber, a definição de Espírito termina por ser uma simples negação da noção
de Corpo ou Matéria (enquanto substâncias penetráveis, não automotoras, sem poder de contração
ou dilatação, cujas partes são divisíveis e separáveis). Ou seja: a negação da definição de corpo é o
“método” de More para chegar a sua definição “clara e precisa” de espírito.
Dentre todas as faculdades, porém, duas são especialmente estranhas: (1) a “faculdade de
contração ou dilatação”, pela qual a substância espiritual pode “estender-se, sem perca de
continuidade, a um espaço menou ou maior”(p128/115), faculdade que também era dada a matéria,
mas que em More se torna uma propriedade exclusiva do espírito; (2) a “indivisibilidade” do
espírito – enquanto uma substancia extensa14.
Muito provavelmente por causa dessas dificuldades, em um texto posterior, “A Imortalidade
da Alma”(de 1659), More desenvolve um tipo de “precisão terminológica”, distinguindo dois novos
conceitos: o de “divisibilidade atual” e o de “espessura essencial”. Quanto ao primeiro, se tem a
“discerpibilidade” ou “separabilidade”, a possibilidade exclusiva de um corpo de romper ou
destacar uma parte da outra. Quanto ao segundo, se tem o que Koyre chama de “quarta dimensão”
ou “densidade” do espírito – o que explica sua capacidade de dilatação e contração; desse modo,
quando o espírito se dilata, esta quarta dimensão do espírito se contrai; ao contrário, quando o
espírito se contrai, essa dimensão espiritual se dilata. Essa propriedade não é “imaginável”, mas,
para More, é “inteligível” ao entendimento, tanto quanto “as três dimensões a meus sentidos ou
imaginação”(p129/115).
Desse modo o espírito pode ser “indivisível”, embora extenso, já que não possui
“divisibilidade atual” (é “indiscerpitível” ou “inseparável”), ou seja, não possui a possibilidade de
14 Há três problemas com essas faculdades: (1)como o espírito pode ser extenso e não ser divisível? (2)Como o espírito
extenso pode se dilatar e contrair? (3)Como a matéria pode não ter a faculdade de contração e dilatação? Os dois
primeiros problemas, que concernem a pneumatologia de More, são tratados por Koyre. O terceiro, não – mas eu
tento respondê-lo no Anexo I.
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ter suas partes destacadas uma das outras. Além disso, ele pode se dilatar e se contrair, já que possui
a “quarta dimensão”, a “espessura essencial”. A matéria, por não possuir “quarta dimensão”, não
pode se dilatar ou contrair, sempre ocupando “a mesma quantidade de espaço”(p128/115), e, ao
mesmo tempo, possui a “divisibilidade atual”, a possibilidade de ter suas partes destacadas uma das
outras.
Com essas distinções fica fácil para More definir Corpo e Espírito respectivamente como
“substância impenetrável e discerpível” e “substância penetrável e indiscerpível”(p129/115-116).
Desse modo Corpo e Espírito dividem perfeitamente a noção de “Substância” 15. E mais importante:
fica provada que a noção de “espírito” é tão facilmente concebível quanto a noção de “corpo”.
Koyre brinca com o texto de More, questionando até que ponto é fácil para um leitor
moderno (ou mesmo um leitor antigo) concordar com a afirmação de serem as essências de corpo e
de espírito igualmente concebíveis. E mais: até que ponto o leitor moderno (ou mesmo o leitor
antigo) não pensará que a definição de More para “espírito” não passa da definição de um
“fantasma”.
É aqui, todavia, que a genialidade de Koyre se manifesta de maneira mais interessante,
porque, se Descartes está certo quando, ao falar de Deus (ou seja, o Espírito Infinito), reclama que
não está acostumado a discutir palavras16 – já que tratar a eficacia infinta de Deus como uma
“extensão infinita”, ou afirmar que um Deus extenso não é divisível simplesmente porque não tem a
propriedade da “discerpibilidade”, não deixam de ser meros jogos de palavras, ou seja, modos
linguísticos distintos de lidar com um mesmo problema – o fato é que, quando se pensa nos
espíritos finitos inferiores (ou seja, não conscientes), o que parece atualmente para nós algo
“fantasmagórico” (a noção de um espírito extenso), era, na época, para aqueles que defendiam uma
física mecanicista, uma ideia plausível. Por isso ressalta Koyre:
“Em primeiro lugar, não nos esqueçamos de que para um homem do século XVII a ideia de uma entidade
extensa e imaterial não era de modo algum estranha ou mesmo incomum. Muito pelo contrário: tais entidades
eram representadas abundantemente, tanto na vida diária desses homens quanto em suas experiências
científicas”(p130-131/117).
Koyre passa então a citar vários exemplos: a luz (principalmente nos fenômenos que o
desenvolvimento da ótica apresentaram, como o das “imagens reais”), o magnetismo, o éter e,
anacronicamente, o fenômeno dos “campos”. Percebe-se que todos esses fenômenos se adaptam
bem a definição de espírito como “substância penetrável e indiscerpitível”, contendo os atributos
listados no “Antídoto contra o Ateísmo”: Autopenetração, Automoção, Autocontração e Dilatação,
15 Aponto que no texto citado por Koyre More “define” a noção de substância como aquilo contendo as noções de
extensão e atividade (inata ou comunicada). Isso é importante por já está operando aqui a infinitização do espaço,
que será mais clara em textos posteriores.
16 “Certamente eu não estou acostumado a discutir palavras, então, se do fato que Deus está em todo lugar alguém quer
dizer que ele é de alguma maneira extenso, deixe que o faça” (Descartes, 2000, p293).
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Indivisibilidade, além de penetrar, mover e modificar a matéria17.
O importante aqui (e lembrando que Koyre está comentando a pneumatologia encontrada no
livro “A Imortalidade da Alma”) é ressaltar que essa melhor descrição do conceito de Espírito
termina por gerar uma discriminação mais detalhada de duas noções que, nas cartas com Descartes,
estavam ainda mais ou menos fundidas: a diferença entre espaço e extensão.
É essa diferença que força More a desenvolver sua teoria do “Espírito da Natureza”. Ou seja:
se os espíritos tem sua extensão, eles “estão” num espaço; na “extensão divina e material que More
contrapunha à extensão material de Descartes, esses conceitos se achavam mais ou menos
fundidos”(p132/118); agora, todavia, haverá a oposição entre o espaço (ou seja, a pura extensão
imaterial) e o “espírito da natureza”, “que o penetra e enche, que age sobre a matéria e produz os
supramensionados efeitos não mecânicos”(p132/118). More passa então a citar outros fenômenos
que não são explicados pelo mecanicismo cartesiano, como as curas por simpatia, a ressonância das
cordas vibrantes etc. Destes, o fenômeno mais importante é a gravidade. More nega todas as
explicações materialistas (principalmente de Descartes e Hobbes) para a gravidade. A gravidade
termina por ser a maior prova da existência de um fator “espiritual” na natureza.
Isso é possível porque, de fato, para o mecanicismo pensado naquele momento, todas as
“explicações” da gravidade eram insuficientes. More se aproveita disso, e, utilizando os próprios
princípios mecânicos, “demonstra” a necessidade de uma força “espiritual”.
III
O espaço (1652 e 1659): a hesitação inicial
Se tanto a distinção entre Espaço (ou pura extensão imaterial) e o Espírito da Natureza,
quanto a necessidade de um Espírito da Natureza para explicar os fenômenos naturais estavam
expressas de modo explícito no “A imortalidade da Alma” (1659), Koyre não deixa de ressaltar que
essas noções já apareciam no “O antídoto contra o Ateísmo” (1652). E é justamente com texto que
Koyre começa sua análise do problema do espaço em More.
A coisa mais óbvia em relação ao espaço é sua imaterialidade, que leva necessariamente
More a classificá-lo como um espírito. Problema: o espaço é um espírito “sui generis”; é algo “que
não podemos conceber senão como infinito - isto é, necessário - e que não podemos <desimaginar>
(o que é uma confirmação de sua necessidade) de nosso pensamento”(p135/120). Qual será, então, a
17 Um fato biográfico interessante que ilustra isso é a polêmica que More teve com o físico Robert Boyle. No
“Enchiridion Metaphysicum” (Manual de Metafísica), More utiliza as descobertas científicas de Boyle como prova
da existência de seus “espíritos” (e mais especificamente de seu “Espírito da Natureza”). A importância desse texto
foi que vários físicos, incluindo o próprio Boyle, responderam More, atacando-o como um irracionalista,
“entusiasta”, não devotado às ciências, mas a espíritos e bruxarias (conforme Henry 2012).
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natureza exata desse espírito – o “estatuto ontológico” do espaço? Se um espírito finito e não
necessário era facilmente concebível, o que dizer sobre um espírito infinito e necessário que não é
Deus? Por isso a tendência principal de More era a identificação entre espaço e a própria extensão
divina. More aqui, todavia, hesita.
Essa hesitação se manifesta no texto (no “O antídoto contra o Ateísmo”) quando More, ao
tentar responder as críticas cartesianas que só uma extensão material pode ser mensurada, termina
por afirmar que:
“Se não existisse nenhuma Matéria, mas a Imensidade da Essência Divina somente, ocupando tudo em virtude
de sua ubiquidade, então a Reduplicação, se me é lícito falar assim, de sua substancia indivisível, pela qual Ele
se apresenta inteiramente em toda parte, seria o Sujeito dessa Difusão e Mensurabilidade”(p135/120)
Todavia, logo após essa afirmação, More recua. A noção de espaço, embora seja uma “noção
mais obscura e mais rude, oferecida a nosso espírito, dessa Essência necessária e existente por si
mesma que a a Ideia de Deus nos representa com uma plenitude e distinção maiores”(p135136/121), não se identifica de fato com Deus. Por isso essa identificação termina por ser só uma
projeção da nossa Imaginação (Phancie): “Donte resulta que, como já afirmei antes, sendo a Ideia
de Deus tal como é, a Imaginação projetará necessariamente essa noção mais grosseira de Espaço
sobre aquele espírito infinito e eterno que é Deus”(p136/121).
Essa distinção entre Deus e o espaço fica ainda mais clara quando More afirma que a
distância que mediria o espaço vazio não é algo real, mas somente nocional: “a Distância não é uma
propriedade real ou Física de uma coisa, mas somente nocional; pois ela pode advir para uma coisa,
se bem que absolutamente nada seja feito à coisa à qual ela advém”(p136/121).
More passa então a argumenta contra aqueles que teimam em pensar a distância como algo
real. Para isso ele defende que a Distância é somente a privação da “união pelo contato” (tactual
union), e que esta privação é medida por “partes”, da mesma forma que a privação de uma
qualidade é medida por “graus”. Assim, tanto os “graus” quanto as “partes”, “não são
absolutamente coisas reais, mas somente nosso modo de as conceber e que, por isso, podemos
aplicá-las tanto a Não-entidades como a Entidades”(p137/122).
No último argumento, porém, More parece mudar de ideia; se alguém não aceitar os
argumentos que defendem a Distância como algo não real, mas “nocional” - o que libertaria More
das críticas cartesianas -, deve, necessariamente aceitar algo – ironicamente – mais forte:
removendo toda matéria corporal, ainda restaria o Espaço ou a distância na qual essa Matéria ou
Corpo estava. Desse modo,
“esse Espaço distante não pode deixar de ser alguma coisa, muito embora alguma coisa não corpórea, pois não
é nem impenetrável nem tangível: deve, portanto, necessariamente, ser uma substância incorpórea, necessária e
eternamente existente por si mesma; ora, a Ideia mais clara de um Ser absolutamente perfeito nos informará
mais plenamente e mais exatamente que esta não é outra coisa senão o Deus que subsiste por Si
8
próprio”(p137/122).
Em resumo: More não consegue expressar categoricamente a natureza desse espaço
imaterial e infinito. Isso só será feito no seu Manual de Metafísica, em 1572.
Anexo I
O problema que, saindo do âmbito da pneumatologia, não interessa a Koyre, e por isso nem é por ele
tematizado é: como More pode retirar do corpo a possibilidade de contração e dilatação, o que faz com que a matéria
ocupe sempre “a mesma quantidade de espaço”(p128/115)? O fato é que nós testemunhamos a contração e dilatação de
um líquido ou de um gás. Como More poderia negar isso?
A resposta é simples: More sempre foi um atomista 18 e um defensor da ideia do vácuo. Por isso, por essa fusão
entre Demócrito e Descartes, ele pode afirmar que os corpos sempre ocupam a mesma quantidade de espaço. Quanto a
dilatação de um líquido, ele defenderia que o aparente aumento de espaço se deu pela criação de vácuo. Quanto a
contração, que nos corpos já existe um vácuo, e que a diminuição de espaço adviria da diminuição deste vácuo.
O problema se torna então como coadunar o atomismo de More com a distinção entre “corpo” e “espírito”
apresentada por Koyre. Aparentemente teria-se, no caso dos átomos, uma substância impenetrável e indiscerpitível (ou
seja, sem “divisibilidade atual”, sem a capacidade de ter suas partes separadas), ou seja, como um intermediário entre
“corpo” e “espírito”. O fato é que essa leitura está correta: no §3 do Prefácio do “A Imortalidade da Alma” more define
os átomos justamente por serem extensos e indiscerpitíveis. O significado disso na obra de More, todavia, não foi
investigado.
BIBLIOGRAFIA
DESCARTES, R (2000). Philosophical Essays and Correspondence. Ed Roger Ariew.
Cambridge: Hackett Publishing Co.
HENRY, J (2012). “Henry More”, in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Fall 2012
Edition), Edward N. Zalta (ed.), URL = <http://plato.stanford.edu/archives/fall2012/entries/henrymore/>.
KOYRÉ, A(1957). From the Closed World to the Infinite Universe. Baltimore: T. J. Hopkins
Press.
KOYRE, A (2006). Do Mundo Fechado ao Universo Infinito. Tradução Donaldson M.
Garschagen. Rio de Janeiro: Ed Forense Universitária.
REID, J (2012). The Metaphysics of Henry More. London: Ed Springer.
18 De acordo com seus biógrafos, ele era atomista antes mesmo de se “converter” ao cartesianismo – conforme Reid,
2012, p44.

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