instituto - Canal do Produtor

Transcrição

instituto - Canal do Produtor
Nº 1 - junho 2010
SENAR
INSTITUTO
(...)
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
Iguais em tudo na vida
Morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
Iguais em tudo na sina:
a de abrandar essas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
E melhor possam seguir
A história de minha vida,
Passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
João Cabral de Melo Neto - Morte e Vida Severina
SENAR
INSTITUTO
Apresentação
Como foi feito esse trabalho
5
7
Comunidade Heliópolis - SP
Angenor de Andrade Cordeiro
Francisco Joaquim de Oliveira
Geronino Barbosa de Souza
Zenildo Ribeiro da Silva
8
10
14
18
22
Comunidade Mangueira - RJ
Antonio Souza Martim
Maria da Gloria Silva
Maria Sabino
26
28
32
36
Comunidade Paraisópolis - SP
Ana e suas filhas
Antonio Edinaldo da Silva
Dinalva Marinalva de Almeida
Jackson André Nunes da Silva
Maria do Desterro Ribeiro da Paz
40
42
46
50
54
58
Comunidade Rocinha - RJ
Francisco Pereira Gomes
Margarida Mozim de Pontes
62
64
68
APRESENTAÇÃO
O Sistema CNA/SENAR lança a Coleção Desproteções Sociais no Campo. A
Coleção vai contar a história de pessoas que viveram ou vivem as
dificuldades de morar, estudar e trabalhar nas áreas rurais do Brasil.
A base desse trabalho são os dados mediados pelo nosso Observatório da
Desproteções Sociais no Campo. O Observatório foi criado como um
instrumento de pesquisa, com o foco no levantamento de informações, na
análise e consolidação de dados que permitam identificar os vazios sociais
nas áreas rurais. Mais do que identificar, o Observatório se compromete a
desempenhar o necessário papel de tornar visíveis e ajudar a encontrar a
solução para essas ausências. Trabalhamos com a certeza de que é preciso
conhecer a realidade para poder transformá-la.
Se os problemas sociais urbanos, por piores que sejam, estão visíveis, permanentemente denunciados, e
demandando respostas e políticas públicas, as questões da área rural estão esquecidas. Por ser invisíveis, para a
maior parte da sociedade brasileira.
É a memória do registro dessas trajetórias que abordamos aqui. As desproteções sociais no campo vividas por
essas quatorze pessoas que entrevistamos estão expressas na falta de acesso a serviços de saúde e educação, ou
na precariedade da moradia, sem saneamento básico, sem energia elétrica, sem água encanada. Tudo isso,
agravado pela ausência de oportunidades.
Para recriar a vida e o futuro, todos os que estão nessa publicação refizeram por conta própria a esperança e
enfrentaram o desafio de buscar novas oportunidades, saindo do campo. O destino foi as duas maiores cidades
do país, Rio de Janeiro e São Paulo, onde também encontraram condições adversas nas comunidades de baixa
renda em que se instalaram – Mangueira e Rocinha, no Rio de Janeiro, e Heliópolis e Paraisópolis, em São Paulo.
Precisaram deixar para trás um modo de vida, a família e os amigos em busca do Estado brasileiro, ausente na
proteção onde ela é mais necessária.
5
João Cabral de Melo Neto, em Morte e Vida Severina, nos disse que “é difícil defender a vida só com palavras, ainda
mais quando a vida é esta que se vê”. Essa publicação quer motivar a todos nós para que, conhecendo as condições
de vida e a trajetória dessas pessoas, possamos contribuir para construir outra história para os que vivem ou
sobrevivem nas áreas rurais do Brasil.
Um compromisso como esse é urgente e inadiável.
Já não é possível dar as costas para o imenso território rural e permanecer com os olhos fixos no mar. Brasileiros de
todas as idades precisam ter o direito de escolher permanecer em sua terra, no lugar onde nasceram. Isso deve ser
uma opção.
Que possamos injetar vida nova, transformando em oásis os nossos velhos desertos.
Senadora Kátia Abreu.
Presidente da Confederação Nacional de Agricultura, CNA
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COMO FOI FEITO ESSE TRABALHO
“Alguém precisa rever, escrever e assinar os autos do Passado
antes que o Tempo torne tudo raso.”
Cora Coralina
O Instituto CNA foi buscar em São Paulo, capital, e na cidade do Rio de Janeiro, pessoas que viveram a desproteção
social em áreas rurais do Brasil. São pessoas simples, que contam sua trajetória, e pintam retratos do homem do
campo, do pequeno agricultor familiar. São eles que encontram mais do que dificuldades para permanecer no
campo. Eles se deparam, de fato, com a impossibilidade. Essas quatorze pessoas hoje vivem em dois bairros de
São Paulo, há bem pouco tempo considerados favelas – Heliópolis e Paraisópolis, e em duas favelas famosas do Rio
de Janeiro, Mangueira e Rocinha.
Foram entrevistadas mais de vinte pessoas, mas uma seleção das histórias mais expressivas resultou em quartoze
perfis. Eles falam não apenas da luta pela sobrevivência na área rural e das desproteções vividas, mas também das
marcas e estigmas que aquelas desproteções cravaram nessas pessoas – suas carências, e o confronto com a
realidade da cidade grande, a dificuldade de inserção no mercado de trabalho, inclusão que é o grande sonho de
todos. As entrevistas buscaram reconstruir os processos migratórios de cada um e uma atualização da memória
dos entrevistados para gerar um quadro das condições de vida na área rural e das principais motivações da
definição pela mudança.
A escolha pela realização de entrevistas qualitativas que se transformaram em pequenas histórias, fundamentadas
nos processos de memória, foi definida pelo desejo de dar “humanidade” e colorir com experiências reais e
subjetivas o extenso universo de estatísticas que retratam os processos de migração no país. As favelas e bairros
populares foram visitados muitas vezes, em busca de pessoas dispostas a resgatar suas histórias. Ainda que seja
enorme o número de migrantes em todas as favelas, nem todas as pessoas se disponibilizam a remexer nos baús do
passado, para encontrar lembranças tantas vezes dolorosas.
As Associações de Moradores dos assentamentos populares urbanos, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo,
têm desempenhado um papel fundamental na organização dessas comunidades. São hoje protagonistas na
articulação com moradores e na legitimação de ações e atividades realizadas nas comunidades que representam,
mesmo ações de cunho pontual. No sentido de formalizar a ação desenvolvida, foi feito um termo de parceria com
as Associações de Moradores das quatro comunidades envolvidas no projeto. As Associações viabilizaram o acesso
da equipe às comunidades e aos entrevistados.
Agradecemos a cada um das pessoas entrevistadas pelo seu tempo e sua disponibilidade de resgatar suas histórias,
revelando aspectos de uma vida que é também a vida de todos nós, brasileiros.
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HELIÓPOLIS – UM NOVO BAIRRO EM SÃO PAULO
Em 1971, a Prefeitura retirou cerca de 150 famílias da favela de Vila Prudente para construir vias públicas na área liberada. Para abrigar
essas pessoas, projetou um alojamento provisório, numa área, na Zona Sul de São Paulo, que pertencia ao antigo IAPAS, hoje INSS. A área,
que hoje passou para Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo,COHAB-SP, tem um milhão de km², num terreno entre os bairros
do Ipiranga e São Caetano do Sul.
O alojamento que era “provisório” virou permanente, e a região atraiu muitas outras famílias de diversas regiões do país.
Heliópolis, que já foi considerada uma das maiores favelas do Brasil.
Ali surgiu
Heliópolis não fugiu à regra, e apresentou todos os problemas inerentes a assentamentos populares sem infra-estrutura. Na região foram
construídos conjuntos habitacionais da CDHU e da COHAB, em substituição a áreas horizontais degradadas. As ruas de terra foram
substituídas por asfalto, e favela foi pouco a pouco consolidando a sua estrutura.
Projeto da Prefeitura de São Paulo, com financiamento do Governo Federal, iniciado em 2008, começou o processo de urbanização da área e
transformou a favela em bairro. O projeto contempla a construção de moradias, pavimentação de ruas e vielas, implantação de espaços de
lazer, como praças, parques infantis e áreas verdes. Obras de drenagem, iluminação pública, contenção de encostas, estabilização do solo,
ampliação e melhoria das redes coletoras de esgoto e abastecimento de água também estão previstas no projeto.
O bairro tem moradores de classe média baixa e baixa. Segundo dados do IBGE, 92% da população de Heliópolis é composta por nordestinos
que migraram em busca de empregos e melhores condições de vida.
Dados da Prefeitura de São Paulo, em 2008, mostram que a infra-estrutura urbana de Heliópolis disponibilizava abastecimento de água a
83% dos domicílios e esgotamento sanitário a 62%; 94% das casas possuíam rede elétrica, 57% das ruas eram iluminadas, 97% das vias
eram pavimentadas. Na região do Ipiranga, a rede de ensino contava com 55 escolas públicas estaduais e 46 escolas públicas municipais,
mas na comunidade eram duas escolas de ensino básico, um hospital, um posto de saúde e um distrito policial.
No início da década de 80, a comunidade se mobilizou contra ameaças de despejo e desde então constituiu um movimento comunitário forte
e organizado. A União de Núcleos, Associações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Climaco, UNAS, organizada por
lideranças comunitárias, tem origem nesse movimento e luta ainda hoje pela urbanização de Heliópolis. Durante a década de 90, ampliou o
seu leque de atuação nas áreas de atendimento a Criança e Adolescente, Saúde, Influência em Políticas Publicas, Assistência Judiciária e
implantação da Rádio Comunitária, que funciona na freqüência 97,9FM. Em 2003, a rádio recebeu o prêmio APCA - Associação Paulista dos
Críticos da Arte, como exemplo de exercícios de cidadania e divulgação educativa e cultura.
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EM BUSCA DE UM CERTO ESQUECIMENTO
Angenor de Andrade Cordeiro
Veio de Sanharó, Pernambuco
Vive em Heliópolis, São Paulo
Lá não tem brisa
Não tem verde-azuis
Não tem frescura nem atrevimento
Lá não figura no mapa
Subúrbio, Chico Buarque
Angenor preferiu esconder na noite as marcas das desproteções que trazia do campo, do município de Sanharó, a 204 km de Recife,
Pernambuco. Foi uma decisão pensada.
O primeiro emprego que conseguiu em São Paulo foi em Serviços Gerais, num supermercado. Trabalhava de dia, carteira assinada e, na
realidade, naquele momento, o trabalho condizia com o que ele tinha a oferecer.
Então, mesmo sabendo que o sacrifício seria maior, pediu para trocar seu horário e passar para o turno da noite. Mas por essa decisão?
Porque Angenor se sentia humilhado. Continuou no mesmo tipo de serviço, limpando o supermercado durante a noite, trabalho pesado. No
entanto, se sentiu melhor, por que não havia mais público, não havia testemunhas, espelhos, onde Angenor pudesse temer a sua imagem.
A ilusão do migrante é acreditar que ele pode deixar, lá na roça, todas as dificuldades e desproteções com que vivia pelejando. Engano. A
desproteção deixa marcas, cria e consolida as condições que o migrante vai trazer para a cidade ou para onde for. Ele traz a pior parte dessas
desproteções – aquela parte que lhe constitui no momento mesmo da chegada: falta de qualificação profissional, baixa ou nenhuma
escolaridade, desinformação, ausência de recursos. As desproteções e ausências da vida na área rural também migram para a cidade grande
e o movimento, pelo menos nesse momento, é o de buscar um novo lugar para acomodar a pobreza. Mudar essa condição exige muito
trabalho, muito esforço e uma grande dose de sorte.
Houve um tempo, como contam os migrantes mais velhos, em que empregadores ficavam na rodoviária a espera dos ônibus que chegavam
do nordeste e de Minas Gerais, para oferecer vagas principalmente na construção civil. Ajudante de pedreiro era um trabalho certo para
aqueles que, no final dos anos 50, início dos 60, desembargavam em São Paulo e no Rio de Janeiro.
Mas, para os jovens que deixaram a área rural recentemente, e que continuam deixando, o contexto em que desembarcam nas cidades é
bastante diferente. Com um mercado de trabalho cada vez mais seletivo, exigindo qualificação e dispondo de farta oferta de mão de obra, o
jovem migrante nas condições de Angenor tem poucas oportunidades de trabalho.
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Abelhas, mas pouco mel
Sanharó fica na Microrregião do Agreste Pernambucano. Foi criado como distrito em 1912, e elevado à categoria de município em
1948. Tem uma população de 18.723 habitantes. Seu IDH Municipal, 2000, era de 0,618. No ranking do IDH municipal de
Pernambuco, Sanharó ocupa a 94ª posição, entre os 185 municípios pernambucanos. No ranking nacional, está na 4348ª posição,
entre os 5.560 municípios brasileiros.O município possui uma rede de saúde com 12 estabelecimentos, todos públicos, que no total
dispõem de 12 leitos para internação. Com o IDH-Educação de 0,670, a cidade tem uma rede de ensino com 26 estabelecimentos de
ensino pré-escolar, 36 escolas de Ensino Fundamental e dois de Ensino Médio (IBGE). Sanharó é banhada pelo rio Ipojuca, que
deságua no Oceano Atlântico. Famosa como uma das maiores bacias leiteiras do estado, é conhecida como a cidade do queijo e do
leite. O nome Sanharó veio de uma espécie de abelha negra existente neste local, denominada sanharó, que em vocábulo indígena
significa zangado ou excitado. Sanharó tem várias pequenas fábricas artesanais de queijo de coalho e de queijo e quatro fábricas de
laticínios registradas na Agência de Defesa Agropecuária de Pernambuco. O rebanho bovino de 18 mil animais produz 40 mil litros leite
por dia. No mês de setembro realiza-se a feira do leite, com vaquejadas, concurso leiteiro, rodeios e show ao vivo.
Rota de fuga
A área rural continua produzindo um enorme contingente de meninas e meninos, jovens, adultos que, envolvidos no trabalho nas lavouras,
isolados em pequenas propriedades, onde as redes de proteção social não chegam, permanecem analfabetos, vivendo um modo de vida que,
certa vez, Tom Zé, compositor e músico nascido em Irará, na Bahia, classificou como medieval, tamanho o isolamento.
Mas todos sabem que existe uma possibilidade de mudança, uma saída do inequívoco destino de repetir a vida que seus pais e avós viveram –
trabalhando a terra, mas sem a certeza do retorno, com os frutos da colheita. Sem ler, sem escrever, sem documentos, esperando e contando
com a sorte de conseguir a aposentadoria rural, para pelo menos envelhecer e morrer com alguma dignidade. A sina de trabalhar todos os
dias, faça chuva ou faça sol.
Mas a esperança chega com as notícias sobre a possibilidade de salário todo fim de mês, carteira assinada, e, “veja só”, folga sábado e
domingo e também, faça chuva ou faça sol. Notícias que no sertão, no agreste, lá no meio do mundo, funcionam como canto da sereia. E São
Paulo, Rio de Janeiro, aparecem como postais do Eldorado.
Lembrar para que?
Angenor veio para São Paulo há seis anos, para ficar com a prima, que alugou casa na favela de Heliópolis. Custou a conseguir trabalho e
sofreu no enfrentamento das dificuldades inerentes à mudança. Mora mal, com a mãe, que chegou de Sanharó há pouco tempo, e com o
irmão, numa casinha sem ventilação, escura, no fundo de uma viela úmida. Ganha pouco e ainda não conseguiu voltar a estudar.
Mas a realidade impõe uma condição crucial, que é a necessidade da manutenção da própria vida: melhor salário mínimo do que nenhum
salário; melhor uma oportunidade de fazer um “bico”, do que nenhuma oportunidade; melhor a viela fria com luz elétrica do que a escuridão
permanente do agreste sem iluminação.
Angenor fala de uma condição em que não existem saídas. Lá na roça, no meio do mundo, distante às vezes léguas da cidade mais próxima,
não tem como pedir empréstimo, esmola, ajuda. Não tem padaria, sinal de trânsito para vender bala, equilibrar bolinhas, nem sapato para
engraxar; não tem associação de moradores ou associação comunitária a que recorrer.
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“Não tinha escola perto, não
tinha posto de saúde, nem
telefone, nem ambulância...”
Por isso, Angenor tem a maior tranquilidade em relação à sua decisão de vir para São Paulo e, mais que tudo, ficar em São Paulo: “Não
voltaria pra lá de jeito nenhum. Mesmo se eu ficasse sem trabalho aqui, eu não volto pra lá não. Lá o sujeito trabalha o dia inteiro num sol de
rachá pra ganhar muito pouco, ou pra ver a lavoura se perder todinha. Era muito sofrimento”. Ele aprendeu que assim que a pessoa chega da
roça é difícil se adaptar - “A gente leva um susto, fica mesmo se sentindo 'maturo', meio com medo. Eu então, nunca tinha visto tanta coisa na
vida, tanto prédio grande”. O irmão de Angenor acaba de chegar em São Paulo. E está louco para ir embora de volta. Mas já, já, passa.
Passa, por que segundo Angenor, a vida lá na roça é dura demais. No lugar em que a família vivia, longe da sede do município, ele não
encontrava nada que lhe possibilitasse pensar em alternativas para seu presente, quanto mais para o futuro. “Não tinha escola perto, não
tinha posto de saúde, nem telefone, nem ambulância...”, Angenor vai enfileirando as ausências. E o mais grave: não tinha trabalho. Por isso
não vai voltar, e é categórico: “eu não busco nem ficar com muita lembrança de lá”. Mas tem lá suas histórias. Vivia com os avós e dois tios, na
terra onde plantavam milho, feijão e mandioca, numa lavoura de subsistência. Com doze anos começou a buscar trabalho fora, para capinar,
roçar mato e juntar o gado que se espalhava no campo. – “Eu lembro que, quando eu já sabia fazer o serviço melhor, ganhei cinco mil
cruzeiros, era aquela nota que tinha um piano. Foi a primeira que eu ganhei na minha vida!”.
Angenor só entrou para a escola com 16 anos, sem saber ler nem escrever - “criança lá nem tem cabeça para pensar em escola, não. Vive é
trabalhando, ajudando a família para ter o de comer. E fica tudo cansado demais, do trabalho duro, de acordar cedo. Se trabalhar de dia, tem
que ir estudar de noite na rua, que é longe. Não dá.” O sonho do menino era ter uma bicicleta. E do seu próprio trabalho foi juntando o
dinheiro que recebia, de pouquinho em pouquinho, “foi indo, foi indo”, e conseguiu comprar a bicicleta. Angenor sorri e diz que ainda lembra
direitinho, “a bicicleta era quase caindo aos pedaços”. Mas aquele sonho cresceu, e virou uma vontade desesperada de mudar de vida –
largar roça, bicicleta velha, tudo pra lá... Ligou para a prima que estava em São Paulo e pediu para vir. “Compra a passagem e vem”, ela
respondeu. Pronto!
Em São Paulo, fez “bicos”, trabalhou no supermercado, ajudou a família. Seis anos de dificuldades, não há dúvida. Angenor agora trabalha
como vigilante no projeto da UNAS, União de Núcleos Associações e Sociedades de Moradores de Heliópolis e São João Clímaco, para jovens
cumprindo medida sócioeducativa. Ainda não voltou a estudar, mas começa a enxergar um desenho de futuro, possibilidades de
qualificação. Ele e os irmãos mandaram buscar a mãe, que é pensionista, e ainda vivia em Sanharó. Ela quer voltar, o irmão quer voltar, e
Angenor deixou uma filha lá na sua cidade, de quem tem saudades. Mas não se abala: “não volto de jeito nenhum!”
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COM MEU PAI APRENDI QUE O IMPORTANTE
É CRESCER
Francisco Joaquim de Oliveira
Veio de Cajazeiras, Paraíba
Mora em Heliópolis, São Paulo
De sua formosura, deixai-me que diga:
é tão belo como um sim numa sala negativa
Morte e vida Severina, João Cabral de Melo Neto
Seu Francisco declara que nasceu e se criou lutando com a terra. Mas deixou para trás o cheiro doce da terra, do milho, e tornou-se adulto,
constituiu família, em São Caetano, São Paulo. Como tantos outros jovens nordestinos, Francisco partiu para o sudeste em busca de vida
melhor. E vida melhor não era apenas a possibilidade de trabalho melhor, ou salário. A esperança de ter acesso também a serviços públicos e
políticas sociais nas áreas mais desenvolvidas economicamente é um motor poderoso para a decisão no movimento de migração.
Seu Francisco cresceu no Sítio Minador, terra da família – pai, mãe e dez filhos, longe da cidade de Cajazeiras, Paraíba, semiárido, com
vegetação de caatinga. O primeiro motivo apontado para a decisão de migrar reside aí, no clima da região. Seu Francisco tinha um medo
brutal de viver a experiência da seca. “Em 1970 eu tinha 14 anos e quase morri de fome e sede. Foi uma seca terrível, que atingiu Paraíba,
Pernambuco, Rio Grande do Norte, Ceará”. A estiagem que atingiu todo o nordeste deixou uma marca profunda em Seu Francisco. Não, não
passou fome, comia angu e uma rapadura “tão preta quanto o seu sapato. E mais, tinha até prego dentro! Vou lhe dizer a verdade.”
No isolamento da família no Sítio Minador, Francisco monitorava os potes de barro, medindo dia a dia a água que ainda restava: “Lá em
Cajazeiras era cacimbão, tipo açude... A gente enchia os potes e a água era tão cheia de barro que a mãe tinha que lavar os potes todo dia
para tirar a água para os animais, colocar no cocho para eles, e ficar também para todo mundo beber. E a gente vendo a hora de secar.”
As secas que ocorrem periodicamente na região do semi-árido geram situações de calamidade pública. A devastação das lavouras aprofunda
a pobreza ou torna pobres os pequenos produtores rurais. A palavra, repetida inúmeras vezes, é maltrato – “a seca maltrata demais a gente.”
Na seca de 70, o pai foi trabalhar na rodagem, na frente de trabalho e deixou Francisco com a mãe, que estava grávida, e os irmãos menores.
Os olhos, mais do que qualquer palavra, expressam o peso da experiência vivida. E lágrimas vêm à tona. “Dia 19 de janeiro de 1971, quando
amanheceu o dia, estava todo mundo chorando. Chorando de alegria, por que tinha chovido. Eu lembro como se fosse hoje. A seca de 70
magoou todo mundo. O nordeste inteiro”, relembra Seu Francisco, com a voz embargada.
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A terra que ensinou a Paraíba a ler
Cajazeira é um dos maiores municípios da Paraíba. A cidade originou-se de um sítio denominado "Cajazeiras", por causa das árvores.
Essa terra fez parte da sesmaria concedida em 1767, pelo Governador da Capitania, Jerônimo José de Melo, ao pernambucano Luís
Gomes de Albuquerque. O neto de Luís Albuquerque, Padre Inácio Rolim, fundou a “Escolinha da Serra”, por volta de 1829. A escola
cresceu e começou a atrair estudantes de vários estados do nordeste. Em 1843, o Padre Rolim ergue uma "Casa Escola" na fazenda de
seus pais, mais tarde denominada de colégio, que começa a funcionar inclusive em regime de internado. Lá estuda, por exemplo, o
Padre Cícero, do Juazeiro do Norte, conhecido missionário. Muitas outras personalidades estudaram e passaram a morar nas
imediações do colégio. Na Paraíba, costuma-se dizer que Cajazeiras é a terra que ensinou a Paraíba a ler. Foram as moradias
construídas perto do colégio que deram origem ao município. Cajazeiras tem uma população de 57.875 pessoas. Com Índice de
Desenvolvimento Humano de 0,692, ocupa a 7ª posição no ranking do IDH municipal da Paraíba, entre os 223 municípios. No ranking
nacional, está na 3236ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros.
Um cadinho de feijão com farinha
O exercício de resgatar a sua trajetória desde o Sítio Minador mexe com a emoção de Seu Francisco. Ele está em São Paulo há 35 anos e já lá
se vão 25, desde a última vez em que visitou Cajazeira.
Como outros migrantes, Seu Francisco vive a contradição de acreditar que a vida melhorou em São Paulo e o desejo de reviver a vida na
lavoura. Se por um lado ele relembra o prazer de trabalhar na terra, de ver a terra devolver o trabalho como alimento, o cheiro da terra, do
milho, da manga doce, por outro, tem memórias muito sofridas.
Começou a trabalhar na roça da família com cinco anos de idade. Lembra que o pai fazia para os filhos menores uma enxadinha para carpir.
“Meu pai dizia que serviço de menino é pouco, mas quem perde é louco. Olha que frase! Mas era por que não tinha outra opção, filha”, lembra
Francisco. Por que para todo mundo comer, todo mundo tinha que trabalhar. Nos arredores do sítio não tinha escola. Aliás, falar em serviços
públicos na área rural com seu Francisco é como falar de miragens, fenômenos estranhos à vida na roça. Escola, posto médico, assistência
social ? “Tinha isso não, filha!”.
A escola mais perto ficava a duas léguas do sítio. “Você sabe aquelas veredinhas, que você vai passando, o mato cheio de orvalho? Pois era
assim”. E criança não tinha tempo de ir para escola. O serviço da lavoura consumia toda a energia da família. Serviços de saúde? Posto de
Saúde ficava longe, tinha que ir jumento, de burro... A lembrança de algum cuidado, um tipo de atendimento afinal, vem junto com a imagem
de Mãe Chica, a parteira que amparou seus irmãos. No seu caso, quando Mãe Chica chegou só restou cortar o umbigo, por que ele já estava
no mundo.
A alimentação, pelo menos, a terra da família de Francisco garantia, quando a seca não destruía tudo. Vendiam ou trocavam alguma coisa
extra. De quinze em quinze dias o pai ia à feira comprar café, fumo, açúcar. “A gente tinha também uns porquinhos, peru, galinhas. Quando
matava um porco, a mãe mandava entregar um pedaço para o vizinho, que dias depois matava também um animal e devolvia a gentileza”,
lembra Francisco. “Mas a coisa lá não era fácil não. Na minha época eu não sabia nem o que era um rádio a pilha!”. E essa condição foi a
responsável pela decisão de tentar a vida em outro canto. Num lugar em que a natureza não tivesse tanto poder de mudar o destino e onde
houvesse a possibilidade de construir uma vida menos limitada. Os filhos que tivesse poderiam ter escola, médico, formação.
Depois que Francisco serviu no Tiro de Guerra, TG, em Cajazeiras, vinculado a 7ª Região Militar, ele resolveu que era hora de partir. O TG é
uma instituição militar do Exército Brasileiro, que forma reservistas. O convocado pode conciliar a instrução militar e o trabalho, ou o estudo.
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Em convênio com a Prefeitura, o Exército disponibiliza os instrutores, o fardamento e os equipamentos e a administração municipal oferece
as instalações. Um dos objetivos dos TGs é evitar o êxodo rural. Não funcionou com Seu Francisco. O Tiro de Guerra não permitia o
engajamento e ele, com 18 anos achou que aquela era hora. “Eu vim mais João, meu irmão”, lembra Francisco.
Quando chegou em São Caetano ficou assustado. Nunca tinha visto uma cidade daquele tamanho. Logo tirou documentação e conseguiu
emprego na Refinaria de Óleo Brasil. Ri com a memória desse tempo, em que pouco entendia da cidade, ainda sem saber ler. A primeira
aventura foi com o cartão de ponto. No primeiro dia, Francisco chegou, “catou” lá o primeiro cartão, marcou e saiu. “O número da minha
chapa era 388. O chefe me chamou para perguntar por que eu não tinha batido o ponto? E eu lá sabia que tinha que ser o meu cartão?? Ele
marcou o cartão com o cigarro para eu poder saber qual era...”
Belo como a coisa nova na prateleira até então vazia
Como qualquer coisa nova inaugurando o seu dia
Ou como o caderno novo quando a gente o principia
Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto
A rede familiar funcionou e veio trazendo, pelos mesmos caminhos, os parentes de Francisco – primos, irmãos, finalmente o pai e a mãe.
Todos vieram para São Caetano. E se estabeleceram em Heliópolis. Em São Caetano conheceu a mulher, que também era de Cajazeira.
Tiveram filhos, que hoje estudam, fizeram faculdade. E isso, para Francisco é o que vale, a recompensa da aventura da migração e da
adaptação a cidade grande, numa dinâmica tão diferente da vida na roça. É com todas as possibilidades de trabalhar, viver, ousar, conhecer
outras pessoas, fazer amigos, que ele se alimenta, e justifica não realizar um desejo um pouco utópico, um sonho, acalentado talvez como
consolo, de um dia voltar a viver na roça. Seu Francisco trabalha na Rádio Comunitária de Heliópolis, fazendo participações nos programas,
contribuindo na administração e no cuidado com o prédio, e não abriria mão da vida que pode trazer mudanças em cada esquina, situação
bem distinta do universo cristalizado da roça.
Oportunidades e possibilidades, lembra Francisco, que levaram o Lula a ser Presidente do Brasil: “Eu tomava pinga com o Lula no Bar do Zé
Brasileiro, outro pernambucano, lá na Humberto de Campos, em São Caetano. Ele era peão da Vilares. E ele também foi criado na roça, em
Caeté. E o que ele é hoje?? Tá vendo?”
“Mas a coisa lá não era fácil
não. Na minha época eu não
sabia nem o que
era um rádio a pilha!”
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ACONTECEU COMIGO E CONTINUA
ACONTECENDO. DO MESMO JEITINHO...
Geronino Barbosa de Souza
Veio de Mato Verde, Minas Gerais
Mora em Heliópolis, São Paulo
Mira veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais,
ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior."
Guimarães Rosa, Grande Sertão Veredas
Geronino trabalhou na roça desde pequeno. Com oito anos já fazia todo tipo de trabalho – carpia de enxada, arrancava toco, preparava a
terra para a plantação. E afirma: “de trabalho na roça, tudo o que você pensar, eu já fiz”.
Gerô, como Geronino Barbosa de Souza é conhecido em Heliópolis, saiu de Mato Verde há 24 anos. Veio embora para São Paulo, deixou
enxada, roçado, xibanca. Comprou caderno, lápis, caneta, livros. Ou seja, identificou e se apropriou de outros instrumentos e descortinou
um universo em que é possível refletir, entender e transformar. Fez duas faculdades, é jornalista e pedagogo. Mudou o próprio destino. Mas
denuncia a fatalidade: lá, no sertão de Minas, não muda nada. “Continua tudo do mesmo jeitinho”, afirma com o velho sotaque mineiro, que
também não mudou. Mas Gerô para, pensa um pouco, e decreta, quase magoado: “eu digo mais, piorou!”. Piorou porque a seca está mais
cruel do que no tempo em que ele vivia lá. O tempo das águas, que é como eles chamam o inverno no norte de Minas, tem cada vez menos
água, e o povo cada vez planta menos.
Ele saiu de Mato Verde há tanto tempo, ainda não tem nem 40 anos de idade, que experiência teria da vida na lavoura!? Gerô explica: “saí
com dezesseis anos, por que não agüentava mais. Saí em busca de outra vida. Mas conheço a roça, sim, por que trabalhei desde pequeno,
criança ainda”. Até por que, naquele contexto, a vida não pode ser diferente. A situação real era a seguinte: pai de família não tinha escolha.
Ou colocava a filharada para trabalhar, em terra própria e também na terra do patrão, ou morria todo mundo de fome. Não há como
culpabilizar a família por priorizar a plantação em detrimento de uma escola que, a rigor, está a léguas de distância daquele universo.
Geronino, ainda pequeno, entendeu muito bem qual era a relação do trabalho com a garantia da comida, mesmo que nunca tenha visto a cor
de dinheiro. A família trabalhava para plantar e colher seu alimento. Gerô tem uma imagem fechada desse passado. Fechada e triste:
“quem põe a mão na terra, quem está lá na ponta, esse, é só sofrimento, por que a área rural está esquecida”.
As memórias da vida na área rural ainda parecem frescas e incomodam. Estão enraizadas e gravadas no corpo também. Gerô mostra o dedo
decepado por uma bombinha de São João que estourou na sua mão. Perdeu parte do dedo porque teve que seguir a pé um longo e demorado
caminho até o posto de saúde e quando chegou lá, o ferimento já estava muito ruim, sem jeito de consertar. A ausência de serviços de saúde é
tão marcante que a questão parece nem ser percebida, e a idéia de atendimento médico permanece estranha ao universo rural. Tratamento,
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“Mas quem mais sofre
nesse país é o homem que
trabalha na roça.”
remédio, saúde se resolve com plantas, simpatias e com o tempo. Até 2005, segundo o IBGE, a cidade de Mato Verde tinha apenas 10
estabelecimentos de saúde, e 17 leitos para internação para uma população de mais de onze mil pessoas. Gerô entende perfeitamente que
inúmeras famílias, ainda hoje, não considerem colocar as crianças na escola uma prioridade. Prioridade é investir na terra, que também não
se constitui em riqueza, se não devolver em alimentos o trabalho de meses no plantio e nos cuidados com a plantação.
“A pessoa não tem para onde ir, e fica lá, esperando uma bolsa do governo para viver. E eu estou falando porque eu vivi isso, e voltei na minha
cidade no ano passado, para ver a minha irmã, visitei todas as roças em que eu trabalhei e continua tudo igual – criança trabalhando, porque
os pais são obrigados a colocar os filhos para cuidar da terra, que é para alimentar os filhos menores. E ainda vão aos mesmos mercados onde
tem os cadernos para comprar fiado. Ganham o dinheiro, pagam a despesa e compram tudo de novo, anotam tudo de novo. Trabalham só
para comer. Eu lhe digo que aconteceu comigo e que continua acontecendo, como há 24 anos.” O pai abandonou suas terras num lugar
chamado Melancias e partiu em busca de vida melhor, onde houvesse água. Foram para Barreiros, “onde tinha um rio”, para trabalhar a terra
alheia, em troca de pagamento em dinheiro. A família limpava a roça, semeava, colhia, plantava pasto para o gado. Escola, mesmo aquela
na varanda da casa da professora, nem pensar. Não dava tempo, e nem pai nem criança valorizava estudar.
A idéia de que era importante ou de que valia a pena colocar as crianças na escola talvez só tenha começado a chegar efetivamente na área
rural com o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil, PETI, implantado pelo Governo Federal a partir de 1996. Depois de um longo
processo de negociação com organizações da sociedade civil, com a Organização Internacional do Trabalho, o governo criou o programa
como uma estratégia de proteção social para crianças com menos de 16 anos, que são tiradas do trabalho, ganham uma bolsa-auxílio e
participam de atividades no contra-turno escolar. A bolsa é uma forma de compensar a família pela falta que o trabalho da criança vai fazer.
Na verdade, o PETI foi a alternativa encontrada para fazer com que os pais prescindissem do trabalho das crianças. Por outro lado, a
valorização da escola vem da condição de que para receber o recurso da bolsa-auxílio, é preciso que a criança frequente a escola.Manter o
filho na escola era a condição para receber o recurso. Mas o processo é lento, não alcança todas as crianças e nem todos os municípios
brasileiros. São esses pequenos pequenos homens do campo esquecidos que, segundo Gerô, aguardam ansiosamente o aniversário de
dezoito anos, para tomar o rumo do novo: “tô só esperando crescer pra ir embora”.
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Geronino não deixa meias palavras no ar e nem tem dúvida sobre as condições em que vivem crianças e adolescentes no sertão mineiro.
Todos vivem esperando a hora de sair de lá, migrar, colocar o pé na estrada para bem longe da ameaça da fome, da falta de trabalho ou da
oferta única do trabalho na roça, que não dá garantia de nada. Gerô afirma com toda a convicção: “quem vive na roça, no norte e nordeste,
vive na miséria das misérias, muito pior do que qualquer favela nas metrópoles”. E é por isso que os que vêm primeiro mandam buscar
parentes e amigos, mesmo que para viver nas favelas. Gerô, por exemplo, já trouxe a mãe para São Paulo. “Quando eu fui buscar a minha
mãe, a patroa lá na roça perguntou o que a gente vinha fazer aqui”, lembra ele. “Vão morrer de fome”, profetizou a mulher, mas Gerô trazia
no coração a certeza de que “o pior dos piores em São Paulo é melhor do que a vida na roça de lá.”
“E eu disse isso a ela por que na grande cidade você vai, pelo menos, ter um trabalho, ter carteira assinada, pensando na aposentadoria. E lá,
você morre na roça e nem se aposentar se aposenta, se o patrão não assinar o tal INCRA. Na roça, as pessoas mal têm comida para comer. Lá
ninguém tem entendimento de que existe Conselho Tutelar, que crianças têm direitos, como direito a educação”, acusa Gerô, que aproveitou
a vida na cidade para adquirir informação e conhecimento, o que afinal é poder. Poder de escolha, poder de interferência, poder tornar a vida
maior.
Onde tem água, o verde permanece
Mato Verde, de onde Geronino saiu, tinha uma população, em 2009, segundo o IBGE, de 12 957 pessoas. O município vive
principalmente da criação do gado, da produção de leite, comércio e de pequenas lavouras de subsistência. A cidade tem uma rede de
ensino fundamental com 18 escolas e 2093 matrículas, e apenas uma escola de Ensino Médio. Com um IDH de 0,669, Mato Verde tem
uma incidência de pobreza, segundo o Mapa de Pobreza e Desigualdade, do IBGE, 2003, de 57,52%. No ranking do IDH municipal do
estado, ocupa a 674ª posição, entre os 853 municípios mineiros. No ranking nacional, está na 3472ª posição, entre os 5.560
municípios brasileiros. O Bispo Dom João Antônio do Santos, foi o mentor da criação do povoado, quando, em visita a região, em 1872,
convenceu o povo de que seria mais fácil resolver seus problemas de forma conjunta, morando próximos uns dos outros. Antes da
formação do povoado, a partir das primeiras décadas do século XVIII, já havia sido iniciada a ocupação da região. Alguns
exploradores vieram de Salvador, para ocupar o Vale do São Francisco. E no fim do século XVIII, ou início do século XIX,
estabeleceram-se na região de São João do Bonito, João José da Silveira e alguns companheiros que, após terem participado da
Inconfidência Mineira, ali chegaram, fugidos da perseguição movida contra os inconfidentes. Região de poucas chuvas e clima semiárido, somente às margens do Rio Viamão, ou "Rio Mato Verde", a vegetação permanecia verde mesmo durante os meses de seca, o
verão que vai de abril a outubro. Os moradores passaram a chamar o lugar de Mato Verde, nome oficializado com a criação do distrito
de Santo Antônio do Mato Verde. Na "febre do algodão", entre 1950 e 1990, o município progrediu muito, mas a praga do "bicudo do
algodoeiro" atacou as lavouras, e os produtores não conseguiram enfrentar o inimigo, perdendo as lavouras.
Se eu pudesse, eu voltava pra lá...
Geronino está feliz em São Paulo e se considera uma pessoa realizada, bem vivida. Mas, mesmo com tudo isso, ele fala com respeito de suas
origens, e faz uma confissão: “Olha, se eu pudesse escolher, eu viveria na minha cidade. Por que lá é a minha terra, a cidade onde eu nasci; as
pessoas que me viram nascer, estão lá, estão vivas. Tem a terra que era da minha avó, mãe de minha mãe, e a terra do meu pai ... Mas como
é que vou??? Não tem condição de viver lá. Eu deixei de ser agricultor, mas eu tenho que dizer que quem mais sofre com a má distribuição de
renda no país é o agricultor. Quem está nas favelas, nos cortiços, esse povo sofre. Mas quem mais sofre nesse país é o homem que trabalha
na roça. O pequeno agricultor tá lá abandonado, sem nada que lhe dê apoio. É só sofrimento.” Gerô não é único migrante que manifesta a
saudade da terra natal. Mas também não é o único que faz a opção consciente pela vida na favela, em comunidades muitas vezes caóticas,
mas que têm um grande diferencial – a oportunidade.
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A PAZ DE AVELINO LOPES PODERIA AJUDAR
Zenildo Ribeiro da Silva
Veio de Avelino Lopes, Piauí
Mora em Heliópolis, São Paulo
Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar. Eu vivo no mundo com medo do mundo me atropelar
Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar. E o mundo por ser redondo, tem por destino embolar
Siba
A estrada que atravessa Avelino Lopes dá acesso a Curimatá, Parnagua e Correntes. Há também um acesso ao ex-distrito, e atual município
de Cabeça no Tempo.
Zenildo ainda não voltou para Avelino Lopes por que faz tratamento psiquiátrico, para controlar a esquizofrenia, em São Paulo. Ele acha que
o sossego das terras da família, no sul do Piauí, quase divisa com a Bahia, lhe faria bem. Poderia dormir no terreiro, sob o céu estrelado e
então, quem sabe, as vozes estranhas se calariam e, no aconchego da casa paterna, o mundo voltaria para seu lugar, firme e equilibrado.
Seguro. A cabeça, enfim, dentro de seu próprio tempo. Talvez. Mas segurança, afinal, não é palavra para definir, nem de perto, a vida em
Avelino Lopes, nas terras da família.
Pai, mãe e nove irmãos. Todos nascidos na mesma casa, onde ainda moram seus pais, hoje amparados pela aposentadoria rural, o que
ajudou a melhorar um pouco a situação. A família é dona de uma boa terra, “sitiozão”, diz Zenildo. Mas terra que exigia trabalho árduo. Das
seis da manhã ao meio-dia, todo mundo na roça, sob o sol do sertão. Intervalo para almoço, para cuidar dos animais – um bode, um cabrito,
um jumento – e para um tantinho só de descanso. Por volta das duas da tarde, todo mundo de volta para a lida com a terra, guerreando o
mato, as pragas, as intempéries. Guerreando com o destino. Plantavam “de tudo um pouco” – feijão, mandioca, melancia, milho.
Zenildo labutou na roça dos sete aos dezessete anos. Foi criado roçando, brocando, plantando na terra dos Ribeiro da Silva, em Avelino
Lopes, a 9 horas de Teresina. A água não era problema: “água tem muito. Não é água de açude, mas água de poço. Não é tão boa, é água de
sal. Mas tem muita água. Tem até uma pesquisa que diz que o sul do Piauí é o mais rico de água. É poço artesiano”. Mas em Avelino Lopes
existem famílias que até a pouco percorreiam seis quilômetros para conseguir água.
E a família vivia da roça? Zenildo dá a dimensão do que representa a terra e, mais que a terra, os frutos da terra para o homem do campo: “o
que a gente plantava na roça era pra tudo - pra comer, para vestir, para comprar calçado. Era pra tudo mesmo”. Mas o tudo que conseguiam
produzir não bastava para suprir tudo o de que precisavam. Por que nessa equação de investimento de trabalho na terra e retorno que ela dá
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entra ainda o imprevisível – “Tinha anos que ganhava um pouco e tinha ano que não ganhava nada, por que quando não perdia para o sol,
perdia para a chuva”. E, em perdendo a lavoura, restava “nada, nada mesmo”..
Nesse contexto, a família tinha que criar sua própria “política de subvenção”: o pai migrava para São Paulo, conseguia um trabalho ou fazia
biscates, e ganhava dinheiro para enviar para a manutenção da família e de sua lavoura. O Estado passava longe. Zenildo diz que apesar do
que todos os nove irmãos, todos homens, faziam na terra, a família “sempre dependeu de São Paulo”. Ou seja, havia sempre alguém gerando
renda “na cidade grande” para complementar ou mesmo prover a renda familiar – “sempre alguém da família tava aqui e mandava dinheiro
para ajudar, por que só o dinheiro da roça não dava”.
O meu aconchego
A população de Avelino Lopes, na região do Semi-árido brasileiro, é estimada em 2009 pelo IBGE em 12.039 almas. O nome do lugar
vem da visita, em 1914, de Avelino Lopes do Couto, vindo da Bahia, que instalou fazenda de gado nas proximidades de uma lagoa
onde, posteriormente, um grupo de baianos formaria o núcleo populacional. Naquele tempo, chamava-se ao lugar Lagoa de Dentro.
Em 1952, foi inaugurada a feira de Avelino Lopes, que atraiu produtores de todas as localidades vizinhas, consolidando o lugar. Ainda
hoje, essa feira mantém a tradição de ser a maior da região. Em 1955, instituiu-se Nossa Senhora das Mercês como padroeira da
cidade, com a construção de sua capela, que oficializava as cerimônias religiosas. O Índice de Desenvolvimento Humano de Avelino
Lopes é 0,574. No ranking do IDH municipal do Piauí, o município ocupa a 136ª posição. No ranking nacional, está na 5060ª posição,
entre os 5.560 municípios brasileiros. O município, localizado microrregião das Chapadas produz basicamente feijão, arroz e milho. Em
relação aos serviços de saúde, Avelino Lopes tem 03 estabelecimentos, disponibilizando 11 leitos para internação. Zenildo teria pouca
chance de um tratamento eficaz na sua cidade natal. Na área de educação, são 36 escolas de ensino fundamental, e uma de ensino
médio.
Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar. Ouço o mundo me dizendo: corra pra me acompanhar!
Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar. Se eu correr e ir atrás do mundo vou gastar meu calcanhar
Siba
A família de Zenildo, plantava, colhia, guardava o que equivalia ao seu sustento, à alimentação da família e levava os produtos para vender na
feira. “Mas já pensou o que é você fazer comida para oito homens que tão vindo da roça?”, pergunta Zenildo, lembrando da ameaça, a mais
freqüente, mais provável e assustadora, que era a fome. Mas Zenildo diz que fome mesmo nunca passou. “quando não tinha feijão, meu pai
ia lá no mato e matava um Juriti, um Verdadeiro. Se a coisa ficasse muito feia, a gente trabalhava para os outros, na enxada. Trabalhava de
dia para comer de noite.”
Zenildo nasceu em 1979, em pleno período de uma das piores secas da história. A seca que começou em 79 durou até 84 e atingiu toda a
região do nordeste. Não houve colheita numa área de quase 1,5 milhões de km2. Segundo dados da Sudene, entre 1979/1984, morreram na
região 3,5 milhões de pessoas, a maioria crianças, por fome e enfermidades derivadas da desnutrição.
Como uma destino traçado, todo mundo sabia que quando os jovens completassem 18 anos, era hora de partir para São Paulo, arrumar
recursos para “subsidiar” a vida da família na roça. Quem estava em São Paulo, dividia moradia e aluguel para economizar e fundava os
alicerces da migração futura, de vários e vários membros das comunidades rurais, que engrossariam as populações das favelas, reincidindo
em desproteções variadas. Mas, como lembra Zenildo, se não tivesse dinheiro vindo da cidade, “a coisa ficava feia, por que a roça não dava.
Por isso, a gente pegou sempre a linha um do outro. Sempre quando o homem completava dezoito anos, o destino dele era vir para São Paulo.
Lá ele não consegue nada. Aqui é mais fácil, mesmo sem escolaridade, por que ninguém ia para escola, não. Não é que meu pai não queria
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dar escola pra gente... Mas a preferência era a roça. Senão, passava a fome. A distância de casa para a escola era de uma hora e meia
andando, e a gente não 'tinha cabeça' para escola. Olhe, tinha que sair antes do meio dia para chegar na escola à uma hora. E antes já tinha
ido para roça, já tinha dado água a bode, jumento, cavalo”, justifica Zenildo.
Hoje são quatro irmãos em São Paulo, e a vida ficou melhor um pouco por causa da aposentadoria rural dos pais. Mas até hoje, onde mora a
família de Zenildo, não tem luz elétrica. Ainda é candeeiro. Mas não tem que faça os pais saírem da roça, e nem os outros cinco irmãos. Tem
até um deles que é vereador, mas que vive na roça, de onde só sai quando tem sessão na Câmara.
E tem hora que até me canso de ver o mundo rodar. Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar
Quando eu vou dormir eu rezo pro mundo me acalentar. Toda vez que dou um passo o mundo sai do lugar
De manhã escuto o mundo gritando pra me acordar
Siba
Há uns seis anos Zenildo começou a manifestar sintomas que levaram ao diagnóstico de esquizofrenia. Fica deprimido, nervoso, não
consegue dormir, escuta vozes. Não dorme mesmo com medicamento. O trabalho como voluntário na rádio comunitária de Heliópolis é uma
terapia: “Se eu sair dessa rádio eu acho que eu não escapo não. Por que aqui é onde eu abro mais a mente, sabe? Por que eu mudo sem
querer. Eu tô aqui, de repente já mudo. Eu não quero ser assim, mas não consigo. Você não pode nem olhar pra mim que eu acho que é
perseguição a minha vida. Eu queria sair disso, mas não tem jeito. Eu já aprendi mais, mas ainda é difícil. Agora eu não ligo nem para a voz
que eu escuto.”
Zenildo está casado com uma baiana que veio de Pilão Arcado, no norte da Bahia, pertinho de Avelino Lopes, para ficar com ele. Nas mãos
dela ainda estão os calos do trabalho na roça. E ela trouxe um pouco de alento para o marido. Quando Zenildo chegou em São Paulo teve um
impacto tremendo com o fluxo dos carros, o metrô, o trânsito. No sítio em Avelino Lopes, era difícil ver um carro passar. Às vezes levava dois
meses para ver um carro. E ele está dividido por dentro. Na alma, na emoção, no pensamento. Talvez, sua terra natal, o silêncio do sertão
ajudasse Zenildo a se reencontrar, unir seus pedaços dispersos. E talvez, como o poeta pernambucano, ele entendesse que toda vez que dá
um passo, o mundo sai do lugar e decidisse, também como fez o poeta: nem vou gastar meu juízo querendo o mundo explicar.
“Tinha anos que ganhava um
pouco e tinha ano que não ganhava
nada, por que quando não perdia
para o sol, perdia para a chuva.”
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MANGUEIRA TEU CENÁRIO É UMA BELEZA
O Complexo da Mangueira, na Zona Norte do Rio de Janeiro, sub-região de São Cristóvão, tem cerca de 14 mil habitantes e 3800 domicílios,
segundo dados do Instituto Pereira Passos, para 2000.
O Complexo constitui a terceira mais antiga favela do Rio de Janeiro, e agrega a seu histórico a tradição do samba, com artistas famosos,
como Cartola e Carlos Cachaça, e com a Escola de Samba Estação Primeira de Mangueira, de fama internacional e que desempenha um
importante papel na construção da identidade da comunidade.
Os primeiros barracos da região teriam sido construídos já em 1852, nas terras do Visconde de Niterói, na época da inauguração do
telégrado, próximo à Quinta da Boa Vista. O morro onde foi instalado o telégrafo, em localização estratégica, pertencia ao Exército, que
tolerava a ocupação informal. A ocupação começa a crescer efetivamente a partir de 1900, com a migração da população desalojada dos
cortiços do centro da cidade, que buscava alternativas de moradia para poder permanecer na região, onde havia oferta de trabalho. Os
moradores acreditam que o nome da comunidade veio do mangueiral que existia próximo a linha do trem da Central do Brasil. O nome era tão
marcante que a estação de trem foi batizada de Mangueira, em 1889.
Já a partir dos anos 30, a população do morro aumenta significativamente com a chegada de migrantes mineiros e nordestinos, em busca de
trabalho nas indústrias que se instalavam no Rio de Janeiro.
São quatro comunidades que formam o Complexo – Telégrafo, Mangueira, Chalé e Candelária. Existem outros espaços menores, como o
Buraco Quente e a Vila Miséria, que como o nome já diz, abriga a população em situação de extrema pobreza.
A Mangueira tem uma situação privilegiada em relação a estruturas funcionais da cidade. Fica próxima à linha de trem e do metrô, e em
todos os seus acessos dispõem de linhas de transportes. A favela conta com uma Vila Olímpica, construída em 1987, com instalações
esportivas disponibilizadas para projetos sociais.
O Complexo foi alvo, entre 1993 e 1995, de um amplo processo de urbanização, implantado pelo Programa Favela-Bairro, que fez obras de
infra-estrutura urbana, acessibilidade, e construção de equipamentos sociais. Em relação à infra-estrutura, a Mangueira apresenta 98,20%
dos domicílios com esgotamento sanitário, 82,92% contam com serviços de coleta de lixo e 98,87% dispõem de abastecimento de água. Na
favela, a rede pública de ensino tem cinco escolas, uma pré-escola e quatro creches, segundo dados do Instituto Pereira Passos.
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COISAS QUE NÃO TEM EXPLICAÇÃO
Antonio Souza Martim
Veio de Hidrolândia, Ceará
Vive na Mangueira, Rio de Janeiro
O martírio do homem, ali, é o reflexo de tortura maior,
ampla, abrangendo a economia geral da Vida.
Nasce do martírio secular da Terra...
Os Sertões, Euclides da Cunha.
Tem gente tão distraída, esquecida do passado, de sua própria trajetória, que quando alguém lhe cobra lembranças, fica assustada, diz que
nem tem memória.
- O senhor lembra, Seu Antonio, da vida lá na roça? Como o senhor vivia, como era seu dia-a-dia?
Seu Antonio sorri e olha desconfiado, surpreso com a pergunta. A primeira resposta, rápida e incisiva, é “não, lembro disso não”.
Desanimador. Seu Antonio não entende que interesse é esse pelo passado, por uma história tão simples – “o que é que tem pra contar de vida
na roça?”
Mas frente ao desafio de lembrar, a pessoa olha para dentro e começa a perceber que tem lá seus tesouros, há muito não visitados, e é como
se acendesse a luz de um quarto escuro, esquecido. “Eu sou de Hidrolândia, lá no Ceará”, diz Seu Antonio. Pronto, abriu-se uma comporta.
Às vezes, esse movimento libera emoções contidas há muito tempo, e o homem, distraído que estava, pego de surpresa, chora. No caso do
Seu Antonio, as lágrimas brotam sem aviso prévio, quando ele diz que a mãe, que ficou lá em Hidrolândia, morreu há nove meses. E faz mais
de dez anos que ele não ia ver a família, e agora... Nunca mais vai rever a mãe.
“Eu vim embora de lá, não sei nem explicar por que”, declara. Mas o que Seu Antonio diz que não sabe explicar, ele começa a reconstruir
pouco a pouco, alinhavando o cotidiano e as dificuldades da vida na roça com os fragmentos de sua história.
“Eu acho que foi mesmo que eu cansei de trabalhar na roça... O trabalho da roça é brabo. Sabe como é? Começa brocando o roçado lá no mês
de junho e julho, começa um trabalho brabo mesmo. E se tem estiagem perde aquilo tudo. E daí que todo mundo começou a querer vim
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embora pro Rio, pra São Paulo... E a gente pegava e vinha.” O que aparece primeiro é a insegurança em relação aos frutos do próprio
trabalho, o medo da seca, como um dos motivos para deixar a família e a vida no campo.
Depois, atualizando a sua experiência de vida, Seu Antonio diz que a maior diferença para ele, entre a vida na roça e a vida na cidade, é o
componente de solidariedade. Lá na roça, até por causa do isolamento a vizinhança se ajuda, “o povo se preocupa com os outro, uns é mais
amigo dos outro, né?” Ele fala da amizade, de uma união entre os vizinhos que não vê existir na metrópole. E conta, exemplificando, que
quando alguém matava uma criação, sempre mandava um pedaço para alguém. Mas a continuação da narrativa mostra que o costume de
dividir tinha sua origem também numa necessidade – “Lá não tem esse negócio de botar na geladeira, de guardar comida. Quando sobrava,
dividia tudo”, diz Antonio, para logo depois cair em si: “é, mas também não tem luz pra ter geladeira, né? Lá no interior não tem luz, nem
nada. Nós vivia com lamparina de querosene, minha mãe fazia o pavio de algodão. Quando dava seis horas tinha que dormir. Não tinha
televisão, não tinha nada”.
Seu Antonio emenda as lembranças na escuridão do campo, quando ele andava, sem medo, pelas veredas de sua terra. E seu coração se
volta para as estórias de lobisomem, da magia das tempestades, a escuridão. - A gente andava naqueles caminhos estreitinho, se fosse
época de inverno não enxergava nada. Uma vez eu saí um pouco tarde lá da cidade, mas ainda tava claro... sabe que hora eu fui chegar?? Eu
sai da cidade seis horas e só cheguei dez hora da noite, um lugar que era pertinho. Eu tinha que andar quando abria o relâmpago. E ia me
guiando pelas pedras que eu conhecia e via no relâmpago.”
E não tinha medo. Lá na roça não tem medo de assalto, de bandido, “dessas maldades que se faz na cidade”. Mas lá tem outras estórias,
coisas de lobisomem, do amortalhado. Amortalhado? “Amortalhado é um cara que fez maldade com os outros, e ele vai no padre, para se
confessar, de modo a resolver. E o padre, de modo para tirar os pecado, o padre veste ele com uma veste que nem a do padre. Ele fica por lá,
pagando a pena. O padre passa para ele ir no cemitério à noite, nas encruzilhadas, onde tem cruz ... parece que é um ano, seis anos que
leva... Ele não faz nada de mal não. Vamos dizer, eu sou um amortalhado, se você mexer comigo, eu jogo aquela mortalha em cima de você,
e os pecado passa; o pecado que era meu vai pra você. E você é que vai andar amortalhada!” Seu Antonio ri, divertindo-se com as próprias
lembranças.
E a escola? Escola não havia. Pode ser até que houvesse escola, em algum lugar para além das veredas, mas o que não existia, na verdade,
era a possibilidade de ir à escola. Ou melhor, ninguém considerava importante ir para a escola, isso estava fora do campo de possibilidades da
família de Seu Antonio e de tantas outras famílias. “Criança também tinha que trabalhar, ajudar na plantação. E ninguém tinha cabeça pra ir
pra escola. Naquele tempo não tinha. Eu fui um pouco pra escola, mas não aprendi nada, não.”
Manancial com poucas águas
Hidrolândia, no Ceará, semi-árido nordestino, nasceu às margens do Rio Botoque, que hoje corta a cidade de 19 252 habitantes (IBGE,
2009). O rio Botoque já deu o nome à cidade, que também se chamou Cajazeiras e Cajazeiras do Timbó. O nome atual vem de uma
fonte de águas sulfurosas, que atraiu romarias à cidade, em busca de seus efeitos curativos “milagrosos”. O povoado tem origem no
século XVIII, quando em torno da Casa Grande se reuniam agregados e serviçais domésticos. Em 1882 já é um povoado, e é elevada a
município em 1957. O Índice de Desenvolvimento Humano de Hidrolândia, em 2000, era de 0,638, No ranking do IDH municipal do
Ceará, ocupava a 77ª posição, entre os 184 municípios cearenses. No ranking nacional, estava na 3972ª posição, entre os 5.560
municípios brasileiros. A cidade tem uma rede de serviços de saúde com seis estabelecimentos, que oferecem 25 leitos para
internação. A rede de Ensino Fundamental dispõe de 46 escolas; o Ensino Médio tem duas escolas e a rede de pré-escolar tem 41
escolas.
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Uma outra escuridão
Enquanto conta sua história, Seu Antonio trabalha, ensacando castanhas de caju assadas. Ele presta serviço numa loja de produtos
nordestinos na Feira de São Cristóvão ou Feira dos Paraíbas, como é conhecido o Centro de Tradições Nordestinas, na zona norte do Rio de
Janeiro. Conversando, ele vai refazendo a sua história e parece que é nesse momento que ele percebe o quanto distante da vida atual está a
sua experiência na roça. Se no início da conversa sua terra natal, com sua cultura e suas práticas, a lavoura, apareceram na sua fala como
um tempo e uma experiência semelhantes a sua vida no Rio, como se não houvesse descontinuidades, ao longo da narrativa ele parece
perceber a enorme distância que separa Hidrolândia de 40 anos atrás do Rio de Janeiro em que ele vive hoje. Enquanto conta, ele percebe
que as histórias de sua terra são muito distintas das práticas, hábitos e condições de vida no Rio de Janeiro e vai, pouco a pouco,
compreendendo que sim, ele tem muita coisa para contar.
E na sua fala percebe-se, também, que a essência do homem do campo que migrou há quatro décadas parece intocada, como se tivesse sido
muito pouco afetada pela cidade grande. Afinal, Seu Antonio é mais um migrante que permanece à margem de todos os serviços, acessos e
oportunidades que a metrópole oferece. Ele permanece um pouco naquela escuridão de que ele falou repetidamente – a escuridão dos
caminhos, o lobisomem andando nas sombras, a inexistência da escola no seu campo de possibilidades. Então, com baixa escolaridade, sem
redes de solidariedade, capital social e recursos objetivos e subjetivos que pudessem efetivamente impulsionar mudanças significativas em
sua vida, seu Antonio permaneceu analfabeto, no sub-emprego. Sua pobreza mudou de lugar, ficou mais próxima das proteções, mas em
essência, nada mudou.
Seu Antonio não se casou, e não sabe explicar muito bem porque. Agora tem um pouco de arrependimento. Está “sozinho no mundo”, com a
morte da mãe e do pai, e aqui no Rio de Janeiro, tão longe de casa. E no meio da cidade grande, desta multidão, vive ainda a solidão do
excluído.
“...e daí que todo mundo
começou a querer vim
embora pro Rio, pra São
Paulo... E a gente
pegava e vinha.”
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AMOR NA ADVERSIDADE
Maria da Gloria Silva
Veio de Manhuaçu, Minas Gerais
Mora na Mangueira, Rio de Janeiro
Que a vida não é só isso que se vê
É um pouco mais
Que os olhos não conseguem perceber
Sei lá, Mangueira, Paulinho da Viola e Hermínio Carvalho
Dona Glorinha casou bem novinha, com 16 anos. Quase uma menina. O pai, que tinha trabalhado no cinema em Manhuaçu, mudou-se mais
para o interior, para trabalhar como administrador numa fazenda. Maria da Glória tinha 11 anos. Em nenhuma das duas situações Dona
Glorinha, como é conhecida na Mangueira, sentiu na pele as dificuldades da vida do trabalhador rural.
Certa feita, o pai, que também era serrador, foi prestar serviço numa fazenda das redondezas e levou a família. Lá, a jovem Glorinha
conheceu o futuro marido, José, então com 19 anos. O amor selou o destino desse casal cuja trajetória até o Rio de Janeiro, nessa casa numa
viela do Buraco Quente, Mangueira, pode revelar um contexto maior, onde tantas vidas se cruzam e formam um quadro da história do país. A
história da família de D. Glória revela a história da cidade e de tantos outros migrantes que se tornam os moradores dos assentamentos
populares urbanos. A impressão é de que acabamos, todos, reféns de papéis pré-definidos, sem saída, hui clos. E mesmo que às vezes as
decisões pareçam tão subjetivas, um segundo olhar revela que a trajetória seguiu quase um script, seus personagens abraçando as únicas
opções que lhes cabiam.
Você também me lembra a alvorada
Quando chega iluminando meus caminhos tão sem vida
Mas o que me resta é bem pouco, quase nada
Do que ir assim vagando numa estrada perdida
Alvorada, Hermínio Carvalho e Carlos Cachaça
Manhuaçu, na Zona da Mata mineira, foi pólo cafeeiro desde a primeira metade do século XIX. A família de Seu José era meeira de cafezal,
tinha sua lavoura de subsistência, criava porcos, animais. Ele também trabalharia no cafezal, no entanto, ganhava a vida trabalhando para
outros, e tinha que procurar serviço, se virar - capinava, lavava café nas madrugadas, e ia de carro de boi pegar o fruto em outras fazendas,
cortava lenha no mato para vender. E o agravante era que Seu José era analfabeto, por que a sua família nunca valorizou educação
–“bobageira esse negócio de estudar. O que manda é o braçal.” Então, conta Dona Glorinha, quando ele vendia a lenha, quem media, para
definir o preço, era outra pessoa, e “às vezes tirava da conta metros e metros de lenha”.
33
As escolas que existiam eram nas fazendas, com a professora paga pelo fazendeiro para ensinar as crianças do lugar. A professora vinha de
longe e muitas vezes passava a semana na fazenda, cuidando da escolinha montada nas tulhas, onde se guardavam mantimentos. Mas como
o pai de José, muitas famílias não liberavam suas crianças para ir a escola. Tinha serviço demais.
D. Glorinha trabalhava na casa da fazenda, no serviço doméstico ou cuidando das crianças pequenas. Na época, o café já estava em declínio.
Apesar de ser uma atividade secundária, nas décadas anteriores, voltada apenas para abastecer as fazendas com carne e leite, a pecuária
expandia-se e José via sua paisagem mudar, ou melhor, mudava ele mesmo a paisagem, arrancando cafezais para dar lugar a pastos. E o
casal começou a pensar em vir embora para o Rio, como já tinha feito o irmão mais velho de José.
“Meu marido estava cansado. Ele começou a sentir a necessidade de melhorar. Ele tinha uma vida muito sofrida, de trabalho muito duro.
Médico, só indo na cidade maior, Manhuaçu, Manhumirim. Para ir a cidade, tinha que sair às cinco da manhã, para chegar lá por volta das oito
ou nove horas. Se quisesse ir ao médico tinha que sair com o cantar do galo, que é à uma hora da manhã”, lembra-se D. Glorinha.
Ouro por café
Manhuaçu, na Zona da Mata, em Minas Gerais, está a 290 km de Belo Horizonte, e tem 78.605 habitantes, segundo o IBGE, 2009. No
ranking do IDH municipal de Minas Gerais, Manhuaçu, ocupa a 134ª posição, entre os 853 municípios mineiros, com um IDH-M de
0,776. No ranking nacional, está na 1167ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. A freguesia de Manhuaçu foi criada em 1875,
e o município em 1881. Sua sede inicialmente foi em São Simão, hoje Simonésia, depois transferida para a Vila de São Lourenço. O
nome Manhuaçu é de origem tupi, derivado da palavra indígena mayguaçu, que significa “rio grande” ou "chuva grande". A produção
cafeeira se expandiu na região, fruto da abundância de terras adequadas ao cultivo, do elevado número de escravos dispensados da
mineração e o preço elevado do café no mercado externo. A cafeicultura atraiu para a região migrantes europeus, como franceses,
suíços e alemães, e mais tarde italianos e árabes. O município tem 622 km² e continua sendo o maior da microrregião, além de ser pólo
econômico, de prestação de serviços e oferecer a melhor infra-estrutura hoteleira para turismo da região Vertente do Caparaó.
Manhuaçu dispõe de uma rede de 47 estabelecimentos de saúde com um total de 185 leitos para internação. A rede escolar tem 57
escolas de ensino fundamental, 14 de ensino médio e 35 de pré-escolar.
A tragédia que se repete
Seu José estava mesmo no seu limite. Não via alternativas para melhorar de vida, com o trabalho escasseando. Era um guerreio, mas como
diz D. Glorinha, “ali não tinha de onde tirar o sustento”. José, então, resolveu partir para o Rio de Janeiro. Comunicou ao sogro a decisão e
teve apoio – “se não der certo, vocês voltam”. D. Glorinha tratou de ensinar o marido a assinar o nome: “ao menos seu nome, por que você vai
chegar no Rio e vai ter que tirar documento.”
O ponto de apoio na cidade foi o cunhado, que hospedou o casal por três meses. Quando José conseguiu trabalho, como jardineiro, alugou um
barraco lá do outro lado da favela. Trabalhou em obra, como ajudante de pedreiro, e depois conseguiu o emprego, com carteira assinada,
como ajudante de caminhão. Ficou trinta anos nesta mesma empresa e lá também se aposentou. “Quando eu vim pra cá, fiquei muito
assustada com as moradias, com os barracos de madeira, as coisinhas muito finas. Numa enxurrada eu vi as casas caírem e fiquei com muito
medo, temia que aquilo acontecesse comigo”, lembra Maria da Glória.
A única vez que Seu José e D. Glorinha pensaram em voltar para Minas Gerais foi justamente quando o pior medo dela se concretizou. Glória
mostra nos braços as cicatrizes que ficaram quando ficou soterrada sob os escombros de sua casa. Numa chuvarada que devastou o Rio em
1968, uma pedra deslizou e veio empurrando tudo o que estava na frente. Levou parte da casa dos seus pais - que na época já estavam no Rio
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“...ali não tinha de onde tirar
o sustento”.
também, e moravam próximo- e derrubou os alicerces da casa de Glória. No desabamento morreram seus dois filhos pequenos – a menina
de quatro anos e o menino de oito meses. “Eu não enlouqueci por que Deus é Deus”, diz Dona Glória, os olhos tristes, cheios de lágrimas. Uma
tragédia que faz qualquer um perder o rumo da vida. E o casal quase perdeu. Mas os parentes e os patrões se mobilizaram e apoiaram Seu
José, que acabara de perder o pouco que tinha conseguido amealhar nos quatro anos de trabalho no Rio. Apareceram oportunidades,
alternativas, apoios que não seriam possíveis lá na roça. E D. Glorinha reconhece isso – “Foi muito difícil, mas a gente conseguiu refazer a
vida, e estamos aqui, com essa casa que ele construiu, com quatro filhos, seis netos e uma bisneta.”
Seu José, que quando chegou no Rio de Janeiro fez Mobral e conseguiu tirar o diploma como não analfabeto, resolveu, agora, depois de
aposentado, retomar os estudos. Ele está mais tranqüilo, tem a renda fixa da aposentadoria, que poderia inclusive financiar um retorno
para a terra natal.
Mas D. Glorinha não quer nem saber dessa possibilidade: “Só voltei lá no ano passado, depois de mais de 40 anos. E a vida lá continua do
mesmo jeito, tudo tão dificultoso... Quem tá na cidade, não. Vive melhor, já tem escola, posto de saúde, farmácia. Mas quem mora lá no
mato, como a gente morava, continua tudo igual. As crianças, para estudar, têm que sair andando quatro, cinco quilômetros, não tem
condução; não tem posto de saúde, fica no abandono ...”
Na tarde quente de verão na Mangueira, D. Glorinha está cercada da família e dos vizinhos. A comunidade mudou muito, desde que ela
chegou, quando ainda tinha que ir buscar água na bica, encher os latões para cozinhar e tomar banho. Mas a casa sólida, o marido com
saúde, ainda a seu lado, os filhos, netos e a bisneta, representam hoje a realização do casal, que enfrentando trancos e barrancos, mantém,
há 48 anos, uma parceria feroz.
Alvorada lá no morro que beleza. Ninguém chora, não há tristeza
Ninguém sente dissabor. O sol colorindo, é tão lindo, é tão lindo
A natureza sorrindo, tingindo, tingindo
Hermínio Carvalho e Carlos Cachaça
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UM UNIVERSO DOMÉSTICO
Maria Sabino
Veio de Manhuaçu, Minas Gerais
Mora na Mangueira, Rio de Janeiro
Eu já plantei café de meia
Eu já plantei canaviá
Café de meia não dá lucro
Canaviá cachaça dá
Mãe Severina, Jongo do Quilombo São José
Dona Maria Sabino ainda faz broa de milho. A receita é caprichada e a vizinhança na Mangueira é fã. O que difere a broa de agora da que
fazia, ainda pequena, lá no interior de Minas, no sítio em Manhuaçú, é a maneira de assar – o fogão a gás na favela do Rio substituiu o fogão
de lenha, com as brasas no fundo e na tampa da panela, improvisando um forninho. A menina Maria embrulhava a broa, pegava a chaleira
com café e levava a merenda para os pais e os irmãos mais velhos que já estavam na roça desde a madrugada.
São poucas coisas que Dona Maria mantém guardadas no coração como memória do tempo em que viveu na roça, em Manhuaçu, Zona da
Mata mineira. As primeiras lembranças que surgem são do fogão a lenha, do candeeiro, da lamparina, coisas que marcaram sua infância e
mocidade. Na roça, a família plantava feijão, mandioca, milho. Maria teve pouca experiência direta com o trabalho na terra porque a partir
dos sete anos ficou responsável por tomar conta dos irmãos menores e cozinhar para a família. Uma família com pai, mãe e 22 filhos. Mas
Maria não se importava, porque qualquer serviço era melhor do que o roçado na madrugada.
Dona Maria conta que o que a família plantava, colhia de ano em ano, tinha que guardar o “de comer” até a próxima colheita, e se o estoque
acabasse no meio do ano, passava necessidade: “O que colhia não dava até o fim do ano de jeito nenhum. Passei muita fome na vida, mas
muita fome mesmo.” O pai era meeiro na plantação de café de uma fazenda e do que colhia, metade era devido ao dono da terra. A outra
metade ele vendia.
A figura da mãe da família é uma presença forte nas lembranças de Maria, talvez porque, mais do que nunca, com a vida que tem na cidade,
sua indignação com a condição das mulheres na área rural aumente, e a lembrança da mãe sacrificada ganhe peso maior. Maria, hoje,
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participa de projetos da Prefeitura, do Governo do Estado, está estudando, faz curso de artesanato, canta no coral, faz tai chi chuan,
ginástica, alongamento, e vai ao médico no INPS - “médico tem à vontade”. Um outro jeito de viver!
A mãe de Maria viveu talvez uma das piores condições de vida da mulher brasileira – a agricultora que divide com o marido a tarefa de lavrar a
terra, mas cujo trabalho é apenas considerado como “ajuda”. A mulher rural acumula as tarefas, tem em geral um número alto de gestações;
não tem acesso a serviços de saúde, dificilmente pode colocar as crianças na escola e tem possibilidades praticamente nulas de acessar
programas de qualificação técnica, mesmo quando é chefe de família. As parteiras foram, durante anos, o único “cuidado” a que tinham
direito.
Dona Maria talvez atualize os sentimentos em relação a vida da mãe na roça, construindo-os a partir da sua experiência no Rio de Janeiro:
“Eu ficava muito indignada, revoltada mesmo com a vida que a minha mãe levava. Tinha um filho atrás do outro, nem inteirava ano já vinha
outro. Trabalhava na roça com meu pai desde as quatro horas da manhã. E ainda passava fome! Mas era uma mulher que não deixava um
vizinho passar em casa sem tomar um café, comer uma broa de milho. Isso eu aprendi com ela.”
Ainda bem nova, Dona Maria decidiu dar outro rumo à vida, e viu que era melhor trabalhar na casa da fazenda, para patroa, e ganhar algum
dinheiro do que se dedicar unicamente a lavoura da família. Na fazenda era também serviço doméstico, de cuidado com a casa, com as
crianças, lavar roupa e cozinhar. Trabalho duro e cansativo. O dinheiro que ganhava comprava tudo de comida, no armazém da fazenda, para
levar para a família no dia de folga. Apesar da trabalheira e das dificuldades, Maria considera que a decisão foi correta - “depois que fui para
a fazenda, não passei mais fome. Ganhava duzentos réis e dava pra comprar comida pra família toda, comprar umas coisinha! Hoje em dia a
gente ganha dinheiro e não dá pra nada. O dinheiro não vale nada bem dizer....”
Ouro por café
Manhuaçu, na Zona da Mata, em Minas Gerais, está a 290 km de Belo Horizonte, e tem 78.605 habitantes, segundo o IBGE, 2009. No
ranking do IDH municipal de Minas Gerais, Manhuaçu, ocupa a 134ª posição, entre os 853 municípios mineiros, com um IDH-M de
0,776. No ranking nacional, está na 1167ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. A freguesia de Manhuaçu foi criada em 1875,
e o município em 1881. Sua sede inicialmente foi em São Simão, hoje Simonésia, depois transferida para a Vila de São Lourenço. O
nome Manhuaçu é de origem tupi, derivado da palavra indígena mayguaçu, que significa “rio grande” ou "chuva grande". A produção
cafeeira se expandiu na região, fruto da abundância de terras adequadas ao cultivo, do elevado número de escravos dispensados da
mineração e o preço elevado do café no mercado externo. A cafeicultura atraiu para a região migrantes europeus, como franceses,
suíços e alemães, e mais tarde italianos e árabes. O município tem 622 km² e continua sendo o maior da microrregião, além de ser pólo
econômico, de prestação de serviços e oferecer a melhor infra-estrutura hoteleira para turismo da região Vertente do Caparaó.
Manhuaçu dispõe de uma rede de 47 estabelecimentos de saúde com um total de 185 leitos para internação. A rede escolar tem 57
escolas de ensino fundamental, 14 de ensino médio e 35 de pré-escolar.
Saber entrar e saber sair
Os irmãos mais novos de Dona Maria foram à escola nas fazendas de café da região, mantidas pelos proprietários. Mas ela e as meninas
antes dela não tiveram esse privilégio - “nunca fui a escola. Meu pai era desses homens que achava que mulher não precisava de aprender
ler. Só os homens. Os filhos homens ainda foram. Nunca entrei numa aula de escola. Se eu quisesse aprender a fazer o meu nome, era
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“O que colhia não dava até o
fim do ano de jeito nenhum.
Passei muita fome na vida,
mas muita fome mesmo.”
assim: quando eles chegava de noite da escola, eu pegava o livro e enfiava dentro da fronha do travesseiro, para quando eles ta dormindo eu
ir juntando qual a letra do meu nome... assim quando aprendi meu nome, sozinha e Deus”.
Mas a oportunidade chegou para Maria Sabino, e ela mudou de vida quando aceitou o convite de uma moça, filha de um fazendeiro de café,
que a chamou para vir trabalhar como doméstica em sua casa no Rio de Janeiro. Consultou a família, e todos concordaram que era uma
oportunidade de melhoria. E com 22 anos, fugiu da fazenda onde trabalhava sem dar satisfação a ninguém e veio para o Rio, morar com a
patroa, trabalhar como doméstica. “Quando cheguei, fiquei quase maluca, sem saber o que fazer... Andei muito a pé, com medo de pegar
uma condução e se perder. Vinha a pé de Botafogo a Central do Brasil. Não sabia ler nada, não sabia nada, morria de medo!”, conta Maria. E a
família não tinha se enganado. Do Rio ela pode ajudar muito mais à família toda. Mandava dinheiro, roupas, calçados, comida.
Todo ano ia a Manhuaçu para fazer a festa de aniversário da filha. Numa dessas visitas, conheceu o segundo marido. O rapaz era namorado
de outra, mas ficou apaixonado por Maria, sem ela saber. Pois não é que o sujeito saiu de Manhuaçu e veio para o Rio, atrás dela? Largou
enxada e arado para vir trabalhar com a britadeira, furando asfalto e quebrando pedras.
“Ele era um homem muito bom, correto. Era um homem que sabia entrar e sabia sair”, e com ele Maria teve outros quatro filhos - duas
meninas e dois meninos. Na Mangueira construíram suas vidas, mas também na Mangueira perderam seus dois filhos para a guerra do
tráfico. Um tinha 17 anos e o outro 18 anos.
Dona Maria está viúva há dois anos. Ela acha que o marido morreu de desgosto, de sofrimento com a perda dos filhos. “Ele ficou muito
apaixonado com a perda dos meninos. Ficou em depressão, passava o tempo todo sentado aí no portão, não saía pra nada, e não queria ir pra
médico. Um dia, deitou pra dormir e não acordou mais”, conta Maria. Soube sair.
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PARAISÓPOLIS – POR POUCO, O ELDORADO
Paraisópolis também já é um bairro consolidado, que surgiu a partir da segunda maior favela de São Paulo. Segundo dados da Prefeitura da
Cidade, Paraisópolis tem mais de 55 mil moradores, distribuídos em 20.832 domicílios.
A favela originou-se da invasão de um loteamento feito em 1921, resultado da divisão da antiga Fazenda do Morumbi, parcelada em 2.200
lotes pela União Mútua Companhia Construtora e Crédito Popular S.A. O loteamento ficou abandonado, sem infra-estrutura, e décadas
depois seria ocupado informalmente, como tantos outros empreendimentos não concluídos. Na década de 50, famílias japonesas ocuparam
a área com pequenas chácaras, e atuavam também como grileiros. A partir de 1970 aparecem os primeiros barracos de madeira, com a
ocupação do Jardim Colombo e Porto Seguro, que integram Paraisópolis.
O poder público ensaiou várias intervenções, mas nenhuma das propostas se concretizou. E no fim da década de 70 e início dos anos 80, o
processo de ocupação se intensificou, devido principalmente a oferta de trabalho, com demanda crescente de mão de obra para a construção
civil na região Morumbi.
Paraisópolis é vizinha de uma das regiões de mais alta renda da cidade de São Paulo, o que possibilita uma série de oportunidades de
trabalho, o que ajuda a alimentar um fluxo migratório permanente. Segundo dados da Associação de Moradores, 80% da comunidade é
composta de migrantes do Nordeste.
A maioria das pessoas empregadas com carteira assinada trabalha nas casas de alto luxo do bairro ao lado. Além disso, consolidada em
bairro, mesmo apresentando ainda condições precárias de infra-estrutura, oferece possibilidades de acesso a serviços públicos de saúde,
assistência social e educação, além de uma enorme rede de entidades assistencialistas. Esse é um diferencial importante de Paraisópolis,
que oferece uma grande rede de oportunidades para seus moradores.
Em 2005, foi iniciado um processo de urbanização e regularização dos imóveis construídos irregularmente, semelhante ao processo que
aconteceu na antiga favela de Heliópolis.
Em Paraisópolis, o Fórum Multientidades de Paraisópolis, criado em 1994, congrega as ongs do bairro. São cerca de 25 entidades que operam
em rede, com reuniões mensais nas diversas organizações, em sistema de rodízio, objetivando fortalecer as iniciativas populares e os
esforços para melhoria da qualidade de vida na região. O Fórum não tem filiação política, religiosa ou comercial.
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ANA E SUAS FILHAS
Ana Rosa Ribeiro, Claudete Ribeiro e Cleide Ribeiro de Macedo
Vieram do Rio do Pires, Bahia
Moram em Paraisópolis, São Paulo
Mirem-se no exemplo daquelas mulheres de Atenas
geram pros seus maridos os novos filhos de Atenas
Mulheres de Atenas, Chico Buarque
A coisa mais importante para o grupo de mulheres reunidas na pequena sala de uma casa em Paraisópolis é, sem nenhuma dúvida, a
segurança de renda. No contexto em que viviam, segurança de renda poderia ser uma Bolsa Família, Vale Gás, qualquer bolsa ou auxílio, mas
principalmente emprego. Está bem, nem sequer emprego, mas ao menos trabalho. Para Dona Ana Rosa e suas duas filhas, Cleide e
Claudete, é preciso ter de onde tirar o sustento – isto é, a segurança de renda.
Acontece que a família vivia da agricultura de subsistência, ainda que sempre com a perspectiva de algum excedente que pudesse ser
comercializado. As meninas ajduavam o pai no roçado, limpando a terra, semeando, colhendo. Mas nem sempre a colheita era, ou é,
suficiente sequer para alimentar a família. Trabalho na sede do município ou para outros pequenos agricultores é coisa escassa, e mesmo
nos momentos mais críticos, quando a seca faz seus estragos, não existem programas de emprego, ou estratégias de aproveitamento da
mão de obra ociosa, principalmente da juventude, que vê minguar suas expectativas de futuro. Sem alternativas, cai por terra o primeiro
direito do cidadão, lavrado na Constituição, que é o direito de sobreviver. “Ué, se deixar a gente morre de fome. Vai viver do que?”, diz
Claudete, indignada.
Lá por perto do Velho Chico
Rio do Pires fica no sudeste da Bahia e faz parte da bacia hidrográfica do Rio São Francisco, dentro do território do Polígono das Secas.
Sua população estimada em 2009 pelo IBGE, era de 11.612 habitantes. No ranking do IDH municipal da Bahia, Rio do Pires ocupa a
161ª posição, entre os 415 municípios baianos, com um IDH-M de 0,635. No ranking nacional, está na 4031ª posição, entre os 5.560
municípios brasileiros. Agricultores que saíram do povoado Morro do Fogo se reuniram na Fazenda do Pires, começando uma nova
povoação. Em 1953, sob a denominação de Rio do Pires, por causa do rio que atravessa o território, o povoado foi constituído distrito,
e, em 1961, foi elevado a categoria de município. A agricultura e a pecuária são a base de sua economia. Segundo o IBGE, 2008, o
município possuía vinte escolas de ensino fundamental, duas escolas de ensino médio, e 7 estabelecimentos pré-escolares. A rede de
saúde tem nove estabelecimentos, com 34 leitos disponíveis.
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O jeito é sair para o mundo
Então, Dona Ana, na sua simplicidade mágica e sorridente, veio parar em Paraisópolis, bairro que já foi favela, vizinho ao riquíssimo Morumbi,
em São Paulo, capital. Dona Ana, no meio do furacão. Mas está apenas “de visita”. Chegou há dois meses para “ficar com as meninas”- a mais
nova que está grávida de sete meses e a mais velha que deu à luz uma menina. Dona Ana veio com todas as tarefas reservadas às mulheres
que se amparam: cuidar das filhas, da netinha, da próxima criança que nasce daqui a dois meses. Mas veio mesmo é matar saudades. Saiu lá
de Rio do Pires, de ônibus, numa viagem de 24 horas sacolejando pela estrada. E a possibilidade dessa viagem feita por ela e pelo marido,
surgiu dos benefícios que essa família começou a receber. Primeiro, a passagem gratuita é um benefício para os idosos e, segundo, Dona
Ana e seu marido têm aposentadoria rural, o que tornou possível essas “extravagâncias de viagem”. A extravagância da liberdade de visitar
as filhas e voltar para sua terra, como já fez seu marido. Dona Ana diz que “até gostou de São Paulo”, mas também vai voltar para roça, voltar
para casa. Para ela, por mais difícil que seja a vida na roça, lá ainda é a sua vida, seu universo.
Esse movimento todo, de ir e vir de Rio do Pires, começou com uma história de amor. Não. Com duas histórias de amor. Claudete fugiu de
casa para vir para São Paulo com o namorado e atual companheiro, já há dois anos. A fuga teve causa justa, além do amor, é claro. O marido
de Claudete é cunhado da sua irmã, Cleide. Morando e trabalhando em Paraisópolis, o rapaz foi a Gravatá para o casamento do irmão e lá
conheceu Claudete. Amor à primeira vista.
Mas o mais novo casal da família analisou a situação: os pais das duas irmãs, Cleide e Claudete, já tinham gasto o que tinham e o que não
tinham com o casamento de Cleide. O namorado também já tinha gasto o que podia com a viagem para Gravatá. O que não tem remédio,
remediado está, e Claudete não teve dúvida, fugiu de casa três dias depois do casamento da irmã, sacramentando, ela mesma, seu próprio
casamento. Pouco tempo depois partiu para São Paulo.
“Ué, se deixar a gente
morre de fome.
Vai viver do que?”
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A medida radical tem razão de ser. O paradoxo é que se lançar no mundo é a única possibilidade de buscar segurança, sobrevivência e
direitos. No risco da vida nova, está a esperança da segurança social e segurança de renda. “Lá é muito difícil pra viver. Só dá pra quem tem
algum serviço. Ou então quando é aposentado. Eles têm salário e aí não precisa eles sair pro mundo pra viver. Mas a gente ia viver do que?”,
pergunta Claudete. Triste o povo que só tem amparo para envelhecer.
Elas não têm gosto ou vontade
nem defeito, nem qualidade
Têm medo apenas
Não tem sonhos, só tem presságios.
O seu homem, mares, naufrágios
Lindas sirenas, morenas.
Mulheres de Atenas, Chico Buarque
Dona Ana só teve as duas filhas, segundo ela, porque casou “velha”, aos 37 anos de idade. E diz que não se casou antes por que “a natureza
não quis, não tinha destino”. Talvez, e apenas talvez, a verdade repouse no fato, mencionado por ela, que a mãe, com dez filhos, tinha
reservado Ana Rosa para cuidar dela, na sua velhice: “Você vai zelar por mim e eu vou zelar por você”, costumava dizer.
Mas a natureza mudou de idéia, e um enamorado, que vinha moer cana no moinho da família, ele também maduro, com 47 anos, decidiu
mudar o destino e pediu Ana Rosa em casamento. Ela aceitou. D. Ana diz que ele também nunca tinha casado, mas, como para mostrar que
era vivido, “dançava nos bailes com as moças”.
Cleide, a que se casava em Gravatá quando a irmã se apaixonou, também já veio embora para São Paulo. Cleide chegou a ter esperança de
permanecer em Rio do Pires, já que tinha um emprego na Prefeitura, um emprego dado, segundo elas, “para quem vota neles”. Mas mesmo
Cleide que votou perdeu o emprego para quem tinha mais escolaridade do que ela. E seguindo a correnteza, veio também para Paraisópolis,
em busca de trabalho, de renda para ela e para o marido. Mas logo que chegou descobriu a gravidez, e não encontrou mais trabalho.
Dona Ana, “graças a Deus”, colocou as duas meninas na escola. Mas a escolaridade que elas trazem lá da roça não chega a ajudar no
momento de disputar um emprego, arranjar trabalho na cidade. A educação mal chega a alfabetização, e inexistem, lá na roça onde viviam,
programas de capacitação ou qualificação mesmo para trabalhar na agricultura. Quando vêem para a cidade, trazem consigo, no seu
currículo, todo o histórico da desproteção e das ausências institucionais que vigoram no campo. Essas jovens vão repetir a saga de outras
tantas gerações de mulheres que há décadas deixam o campo em busca de oportunidades e têm como única alternativa o emprego em casas
de família, como domésticas, faxineiras e babás. Paraisópolis, ao lado do Morumbi tem uma larga oferta desse tipo de emprego.
E as redes formadas por familiares vão tecendo as pontes que trazem os moradores da área rural para a metrópole. Em Paraisópolis, estão
muitos parentes das filhas de Dona Ana – cunhadas, primos, tios. As redes que os trazem dispõem de um capital social bastante limitado,
mas que é muito maior do que o que podem alcançar na área rural – apontam para um novo campo de possibilidades, o campo da proteção
social.
Resta saber se para essas mulheres que acabam repetindo a mesma trajetória de suas avós e mães, prisioneiras do universo doméstico,
haverá, na área urbana, as saídas que não encontraram na roça, haverá as proteções que elas buscam. Por que, agora, daqui da cidade
grande, não há mais para onde fugir.
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RECRIAR A VIDA, AINDA QUE À FERRO
Antonio Edinaldo da Silva
Veio de Iatí, Pernambuco
Vive em Paraisópolis
Ali ninguém aprendeu
outro ofício, ou aprenderá:
mas o sol, de sol a sol,
bem se aprende a suportar.
Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto
Seu Antonio Edinaldo nasceu no interior de Pernambuco, microrregião do Agreste, a 286 km de Recife. Nem parece tanto, quando a medida é
a estrada, kilometros. Mas se outros indicadores forem utilizados para medir distâncias, Iatí está muito, muito longe da capital do estado.
Isso ainda agora, nos dias de hoje – Iatí tem o 183º IDH-M entre os 185 municípios pernambucanos. Ou seja, é o terceiro pior município nos
indicadores de renda, longevidade e educação. Recife tem um IDH de 0,797, e ocupa o 3º lugar no município no ranking estadual, ficando
atrás de Fernando de Noronha e Paulista.
A família de Seu Antonio fazia parte da grande maioria de iatienses que viviam na área rural. Mas sua família não era proprietária de terras, e
fez o primeiro movimento rumo a uma vida melhor. Saíram do povoado em que viviam para morar na sede do município, em busca de
trabalho. Mas pouca coisa mudou.
Na região, trabalho equivale a roçar, semear, colher, abrir a terra. E mesmo morando na sede do município, E mesmo morando na sede do
município, era da roça que tiravam seu sustento, trabalhando de sol a sol, na lida com a terra. “Vida de luta, muita luta mesmo”, afirma Seu
Antonio. A palavra que mais aparece na narrativa sobre o passado no interior de Pernambuco, é “sofrimento”, seguida de fome, sede, de um
desalento de não ter o que fazer. A narrativa de Seu Antonio aponta uma carência absoluta de alternativas de gestão da própria vida, na
medida em que não havia, em Iatí, qualquer proteção social que garantisse a sobrevivência. O deserto do qual ele fala é o deserto da
desproteção social.
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Mas isso então será tudo
em que sabe trabalhar?
vamos, diga, retirante,
outras coisas saberá.
Seu Antonio, conhecido como Seu Berbelo, descobriu seu verdadeiro ofício, seu talento, em Paraisópolis. Ele é artista. Mas até chegar ao
grande atelier no qual se transformou a sua oficina mecânica, Seu Berbelo, precisou enfrentar muitas vezes o grande terror de quem vive da
terra – a fome.
Iati – uma casa nova
Iati fica na microrregião Agreste e na microrregião Garanhus do Estado de Pernambuco. Está a 286,2 km da capital. Segundo
estimativa do IBGE, 2009, a população é de 18.350 pessoas, com a maioria dos habitantes vivendo na área rural – cerca de 60%. O
Índice de Desenvolvimento Humano é de 0,526, situando o município no 183º lugar no ranking estadual e em 5435º no nacional. O
Índice de Exclusão Social, constituído por sete indicadores – pobreza, emprego formal, desigualdade, alfabetização, anos de estudo,
concentração de jovens e violência – é de 0,283. Iatí ocupa a 182ª colocação no ranking estadual e a 5.437ª no ranking nacional. A
rede de saúde é composta por seis hospitais que disponibilizam 26 leitos, também segundo o IBGE, 2006. E na área de educação,
segundo dados do Ministério da Educação, 2008, Iatí tem uma rede com 54 escolas de ensino fundamental e uma escola de ensino
médio. Os negros fugidos do Quilombo do Palmares buscaram instalar-se e proteger-se em muitos lugares de Pernambuco. Em Açude
Velho, no Sítio Federação, muitos desses negros fundaram um Mucambo – em dialeto quibundo, um lugar para se esconder, lugar na
floresta, quilombo, casa. Esse lugar viria a tornar-se Iatí. Lá também, havia índios carijós e tupiniquins, que nomearam o lugar como
“casa nova”, Iatí. O lugar fica nas Serras dos Cavalos. O distrito de Iatí foi criado em 1892, ainda chamado de Mucambo. Estava
subordinado ao município de Águas Belas. Nomeado Iatí em 1938, o distrito só seria desmembrado de Águas Belas em 1963,
elevando-se a categoria de município.
Deseja mesmo saber
o que eu fazia por lá?
comer quando havia o quê
e, havendo ou não, trabalhar.
Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto
Seu Berbelo perdeu a conta das vezes em que passou fome – a terra seca, sem dar frutos, inexistência absoluta de trabalho, nada de água
para beber. Lembra de se embrenhar na mata para achar uma caça, um animal para comer. A família buscava trabalho no que quer que
fosse, mas o fato é que quando a seca descia sobre o agreste pernambucano não havia o que fazer. E esse paredão de impossibilidades e
ausência absoluta de alternativas faz surgir o desespero e o impulso de começar a andar.
Mesmo nas piores condições das favelas paulistas ou cariocas, a miséria não alcança os níveis em que podia chegar uma família na área rural
do nordeste brasileiro. E a palavra que abre todas as lembranças de Berbelo é uma só, uma mesma tecla e um triste som: sofrimento.
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Era imperioso sair de Iatí, e Seu Berbelo botou o pé na estrada. O primeiro porto foi Feira de Santana, para juntar-se ao irmão, refazendo o
mesmo caminho de todos os migrantes que seguem os fios estendidos por parentes, amigos, conhecidos que são pioneiros na busca por
outras terras e oportunidades. Em Feira de Santana, Seu Berbelo aprendeu o ofício de mecânico e apesar da pouca escolaridade, ele revelou
ter talento para lidar com aquele “sem fim” de ferros, parafusos, fios, arruelas.
Em 2001, seu Antonio “Berbelo” chegou em Paraisópolis, e aqui, o mundo lhe prometia muito mais do que ele jamais sonhou – os filhos
estudam e trabalham, e ele tem sua oficina mecânica. Mas aqui, também, suas ferramentas e instrumentos começaram talvez a sussurrar
em seus ouvidos outras formas, outros usos que podiam assumir, mostravam formas que continham uma outra história, um outro destino. E
ele não para de tirar insetos, carcarás, gaviões, pássaros, cobras, gente, de suas sucatas de dentro de parafusos, pregos, roscas, metais. Vai
juntando tudo isso e refaz um mundo mágico e orgânico a partir do metal.
Seu Berbelo tem uma calma que remonta a sua origem rural, o tempo da terra. E mesmo que ele não se dê conta, pouco a pouco, ele recria,
na sua oficina/ateliê, o mundo do campo, com seus pássaros. A diferença, é que na capital paulista, a vida é de ferro.
“...perdeu a conta das
vezes em que passou
fome.”
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À MARGEM DO TEMPO
Dinalva Marinalda de Almeida
Nascida em Nova Itarana, Bahia
Vive em Paraisópolis, São Paulo
Peneirei o fubá
Fubá caiu
Tornei penerar
Fubá sumiu
Cantiga mineira
A mãe de Dinalva criou sozinha os cinco filhos, lá numa rocinha em Nova Itarana, Bahia. Para conseguir dinheiro, trabalhava também nos
cafezais e toda sexta-feira, quando recebia, comprava feijão e farinha, que “era o que se comia”. Madrugadinha, a mãe enfileirava as
crianças, cada uma com sua enxadinha e rumava para o cafezal. Dinalva lembra que cada um fazia o seu montinho, que depois seria medido.
A mãe de Dona Dinalva não tinha com quem dividir a criação dos filhos. Era viúva. Trabalhou até ficar bem velhinha e conseguir uma
aposentadoria rural, por graça do prefeito de Nova Itarana. Depois que deixou a roça, a mulher ganhava seu sustento “botando água nas
casas”, conta Dinalva. “Ela ia lá na fonte e trazia a água nas latas, na cabeça, e colocava nas casas”. Isso mesmo, por que até bem pouco
tempo, em Nova Itaruna, não tinha água encanada, não tinha energia elétrica, nem gás. E tudo de que se lembra é que a vida “era só trabalho
demais”.
Uma vida de cuidados
Dona Dinalva passou sua infância e adolescência empenhada na tarefa de sobrevivência. Uma tarefa coletiva, partilhada por toda a família,
de juntar recursos para comer e vestir. Este talvez tenha sido o período de sua vida em que experimentou a vivência coletiva, quando ajudava
a mãe a arrancar da terra o sustento de todos – mãe e filhos trabalhando na roça, plantavam, colhiam, faziam lenha para vender. Todas as
tarefas pensadas e realizadas por aquele grupo e para o próprio grupo.
Mas, na medida em que cresciam, os irmãos saiam para buscar seu próprio destino. A irmã, já falecida, foi a primeira a migrar para Salvador,
em busca de trabalho. Dinalva, já moça, foi logo acionada para ir em seu auxílio. A irmã de fato arranjou trabalho como doméstica, mas logo
depois engravidou e não tinha com quem deixar a filha. Mandou buscar Dinalva. E ela foi.
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Dinalva também investiu na sua própria vida. Conheceu um amor, teve suas filhas. Mas, quis o destino se repetir e também ficou viúva e só,
como a mãe. Sua filha que também já tinha migrado, mandou buscar a mãe, para uma visita. E Dinalva veio para São Paulo. A visita se
prolongou e agora, no coração de Paraisópolis, ela mora com a filha, na casinha minúscula. Cuida da neta, enquanto a filha trabalha como
doméstica. Repetição?
Dona Dinalva parece ser um retrato, uma amostra da situação de invisibilidade e exclusão em que vivem milhões de mulheres brasileiras.
Desempenhando tarefas que não são contabilizadas no mundo da produção como trabalho produtivo, elas podem passar toda uma vida
isoladas, dedicadas ao cuidado e a reprodução da vida, sem que tenham propriedade nem mesmo de sua própria história. Perdem a
contagem dos anos, perdem a dimensão do tamanho do mundo e quando dão por si, a vida passou sem que tivessem mudado
fundamentalmente qualquer coisa em sua trajetória. O isolamento no qual desempenham suas tarefas, dentro de casa, impõe limites
contundentes à sociabilidade e restringe qualquer possibilidade de acesso à informação, oportunidades, mudanças. Nesse caso, falar de
proteção social é lembrar uma dívida histórica, que ninguém se propõe a saldar.
Dona Dinalva tem dificuldade de definir seus principais marcos – quando nasceu, por exemplo. A data e o ano são nebulosos e talvez ela
tenha 57 anos. Nascida em Nova Itarana, numa família de cinco irmãos, casada duas vezes, tem quatro filhas.
“...a minha filha ficou sendo a
minha mãe e tudo meu. Depois
que meu marido morreu eu
fiquei sem nada, sozinha.”
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A história Dinalva, na sua própria versão, é confusa, perdida entre marcos não muito bem fixados, como que soltos numa vida de isolamento
e repetição. A única presença e registro concreto, hoje, é a neta no seu colo. Uma menina gorducha e sorridente que fica sob os cuidados da
avó, enquanto a mãe trabalha. É a criança que dá sentido a vida dessa mulher, funcionando como uma âncora no presente e no futuro. Voltar
para onde? Para Salvador ou para Nova Itarana? A filha promete que um dia voltam a Itarana, para ver a casa da avó, a casinha de sopapo e
telhado de palha, que ficou lá, quando a velhinha morreu. Mas por enquanto, a vida é aqui, onde ela tem a netinha a quem está “muito
agarrada”.
E Dona Dinalva, sem saber ler e nem sequer assinar o próprio nome, vivencia em São Paulo, no meio da metrópole, o mesmo isolamento em
que parece ter vivido toda a sua vida. A casa não tem quintal, não tem varandinha e a rigor não tem nem janela. A mulher passa o dia na
companhia do bebê, e no máximo conversa com alguma vizinha, ali, daquele pedaço sem sol, no meio do cipoal da favela, tão denso quanto a
mata.
Pouca coisa mudou
Nova Itarana fica a 267 km de Salvador, Bahia, na microregião de Jequié. Sua população, estimada em 2009 pelo IBGE, é de 7.875
habitantes. Para atender a essa população, Nova Itarana dispõe de uma rede de saúde com seis estabelecimentos, que não oferecem
leitos para internação. Tem uma rede de ensino formada por 12 escolas de ensino fundamental, uma escola de ensino médio e duas
escolas de pré-escolar. A produção agrícola do município está baseada no café, no maracujá e no sisal. Dados do IBGE 2000 apontam
uma taxa de analfabetismo de 35,58%. A cobertura do esgotamento sanitário para a população urbana é de apenas 13%. Mas a água
encanada chegava a 80% dos domicílios urbanos. No ranking do IDH municipal da Bahia, Nava Itarana ocupa a 390ª posição, entre os
415 municípios baianos, com um IDH-M de 0,568. No ranking nacional, está na 4031ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. O
povoamento da região começou com os jesuítas, no século XVII, que chegaram àquelas terras com a missão de catequizar os índios.
Depois, com a valorização da região, fazendeiros adquiriram as terras. Para conseguir explorar as terras os fazendeiros expandiram o
sistema de “meia”, permitindo que os lavradores morassem nas terras, plantassem e colhessem, devolvendo 50% da produção para o
proprietário. Mas tarde, esses posseiros compraram parte das terras, dando origem ao povoador de Veados. Em 1927, o povoado foi
elevado a categoria de vila. Recebeu nova denominação em 1953 – Nova Itarana, e em 1962 foi alçado a município.
Dinalva cumpre ali no interior de Paraisópolis, no seu pequeno casulo, com quarto, sala, paredes úmidas pintadas de verde, a função da
maternagem que tantas outras mulheres – avós, tias, madrinhas - assumem, substituindo mães biológicas. Essa é a rede de mulheres que
sustentam a vida, partilhando a ausência de proteção social para si e para seus filhos. A herança da roça está presente em São Paulo – e o
isolamento talvez seja mais rigoroso com todas as carências trazidas pela Dona Dinalva, desde o seu tempo de roça.
Dona Dinalva expressa um pouco de sua condição quando fala da sua própria vulnerabilidade – “a minha filha ficou sendo a minha mãe e tudo
meu. Depois que meu marido morreu eu fiquei sem nada, sozinha.” Arrependimento? Talvez o de ter saído de Nova Itarana, por um único
motivo: “Se eu tivesse lá, já tava aposentada...”
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NA ROÇA, OS SONHOS SÃO SIMPLES. MESMO
ASSIM, IRREALIZÁVEIS
Jakson André Nunes da Silva
Veio de Águas Belas, Pernambuco
Mora em Paraisópolis, São Paulo
Deixe-me ir, preciso andar,
vou por aí a procurar
rir pra não chorar
Preciso me encontrar, Cartola
André quer ter uma casa, um carro e a vida estabilizada. Sonhos da grande maioria das pessoas, não só de jovens, não só de brasileiros.
Voltar para Águas Belas, agora, só para passear. Foi o último da família a deixar o sítio nos arredores do município, que fica a 303 km de
Recife, Pernambuco. Com a venda da casa e das posses desfez um modo de vida. Ao abandonar uma terra que era sua, escolheu deixar para
trás um universo conhecido, familiar, mas que impunha a ele uma condição radical – a privação de oportunidades.
Ele é grandão, bonito, e tem apenas 21 anos. Está em Paraisópolis há quatro anos, depois de vir para São Paulo e voltar para Pernambuco,
numa vez anterior. Entra na sala com o sorriso aberto, boné azul, que não tira para nada; fica por ali, observando o movimento, para entender
o que é esperado dele, tão jovem. O fato é que, apesar dos 21 anos, André tem uma história comprida, de muito trabalho, uma trajetória
cheia de despedidas e dos abandonos necessários para reinventar a vida, criar um futuro e ampliar os sonhos. O que surpreende é que já
tenha vivido, no campo, a mesmíssima experiência que os mais velhos contam. André, como outros jovens da área rural, reeditam uma
história de privações – ausência de recursos, de oportunidades, de acessos. Surpreende que ele, nascido ainda agorinha, em 1989, também
tenha sido uma criança que passava mais tempo na lida da roça do que na escola, e que tenha vivido toda a infância à luz do lampião, ali
mesmo, logo na esquina do Recife.
Para os jovens como André, a opção pela migração surge como uma sina, como o velho fado, o tal destino, que levou para o Atlântico os
colonizadores portugueses. A vida na área rural onde a ausência do Estado na oferta de serviços básicos de educação, saúde, transporte,
trabalho e mesmo lazer é tão séria, que beira o surreal. E é dessa constatação que Jakson André ri. O riso funciona como uma saída frente à
triste constatação do anacronismo de condições tão precárias, num mundo tão cheio de tecnologias e luzes.
55
Oásis
Águas Belas tem uma população estimada pelo IBGE, em 2009, de 39.672 habitantes e uma área de 887,56 km². Fica
aproximadamente a 303 km de Recife, e é formada pelo distrito-sede e pelos povoados de Campo Grande, Curral Novo, Garcia, e
Tanquinho. O município está incluído na área geográfica de abrangência do semiárido brasileiro, definida pelo Ministério da Integração
Nacional, em 2005. Ainda segundo o IBGE, a cidade tem uma rede de 53 escolas de Ensino Fundamental, que totalizam 9.398
matrículas. Em 2005, a cidade dispunha de 9 estabelecimento de saúde, dispondo de um total de 35 leitos para internação. Seu IDH é
de 0,532, PNUD 2000. No ranking do IDH municipal da Pernambuco, Águas Belas ocupa a 182ª posição, entre os 185 municípios
pernambucanos. No ranking nacional, está na 5414ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. O Mapa da Pobreza e
Desigualdade, IBGE, 2003, mostra que a incidência da pobreza em Águas Belas é de 68,06%, podendo chegar a 72,31%. A região era
habitada, originalmente, pelos índios tupiniquins, que tiveram sua tribo unificada com a tribo Carnijós, que residia nas imediações da
Serra dos Cavalos. A aldeia era conhecida como Lagoa, devido a uma lagoa existente no local, onde hoje se encontra a matriz de Nossa
Senhora da Conceição, depois a povoação ganhou o nome de Ipanema. Consta que, por volta do ano de 1700, apareceu na região o
primeiro homem branco (João Rodrigues Cardoso), com objetivo de unificar as duas tribos existentes na região. A denominação de
Águas Belas se originou do fato do Ouvidor Jacobina ali encontrar para surpresa sua, água potável e cristalina, que era difícil naquela
região. Hoje cerca de 5 mil índios Fulni-ôs também habitam uma área dividida em 427 lotes individuais, que totalizam 11505. Vivem do
artesanato e agricultura de subsistência. São ainda os únicos índios da região nordeste com o idioma próprio, o Yaathê e e alguns
rituais como o Toré e Cafurna e o Ouricuri.
Sonhos, projeções e realidade
André diz que os sonhos de quem vive na roça são sonhos simples. E ri de novo. Um riso largo e que vem lá de dentro - uma capacidade rara
de expressar numa gargalhada o impacto das dificuldades. Ele acha a história que conta engraçada? Acha não. Sabe o quanto é trágica a
vida que viveu. Mas consegue rir da singeleza do próprio sonho, que sonhava lá na roça onde vivia, nos arredores do município de Águas
Belas. O sonho acalentado era o desejo enorme de colocar aparelho nos dentes. Achava a coisa mais linda. Quem usava aparelho para
consertar os dentes eram os filhos dos “ricões” - “Nossa, o maior bonito!” e André ia para a roça com os dentes recobertos de papel laminado,
o papel prateado que embrulhava os cigarros dentro do maço, inventando, ele mesmo, seu aparelho. Em Águas Belas, não havia a menor
chance de André ter um aparelho de verdade, nunca tinha ido sequer ao dentista. Como também nunca foi ao cinema – “tem isso lá não!”,
como pouco ia à escola, que era longe, como não tinha oferta de trabalho fora da roça.
O riso sobe de novo, incontrolável, quando diz, marcando o tamanho do absurdo, que em Águas Belas não tinha luz elétrica. O assombro de
André, que se manifesta no riso, é o assombro com uma condição de vida que parece acontecer em outro tempo, em outra historicidade.
Vivendo no coração da cidade de São Paulo, numa comunidade que já completa 50 anos de existência e que pouco a pouco se transforma em
bairro popular, com cerca de 80 mil moradores, no centro de um burburinho indizível, André ainda se surpreende com esse descompasso
enorme entre seu pedaço de terra natal e a metrópole, seu destino, sua sina.
A mãe foi a primeira a decidir que não dava para ficar em Águas Belas. Uma amiga telefonou de São Paulo, contando que tinha trabalho por
aqui, que se ganhava dinheiro. Com o casamento desfeito, sem perspectiva de trabalho ou futuro nem para ela nem para os filhos, “meteu as
caras”, como diz André. Deixou os cinco filhos com o ex-marido e pegou a estrada há quinze anos. Enfrentou três dias de viagem até São
Paulo e abriu o caminho que o filhos seguiriam, cada um a seu tempo. André veio uma primeira vez, mas voltou para Pernambuco, morto de
saudade da sua terra, da sua casa. Chegou a ficar doente em São Paulo – doente de saudade, de frio, de susto talvez. Ficou sozinho com o
pai por dois anos, em Águas Belas. Coube a ele apagar o candeeiro, fechar as portas e janelas e entregar a outro o sítio da família, uma
casinha simples, que ficava nas terras do avô. Lá a família inteira plantava, colhia, fazia estoque para o ano todo, e vendia o excedente. Mas a
falta absoluta de trabalho, ou o horror da privação de recursos ou oportunidades para mudar a vida, para ter acessos, moveu todo o mundo, e
56
“...e trabalho lá é só na
roça, trabalho duro,
arrancando toco!”
empurrou André de volta para São Paulo. Esse era o destino, já que o horizonte em Águas Belas era estreito. Lazer? Jogar futebol.
Transporte? Pé e bicicleta, que a mãe mandou de São Paulo para o irmão, vez em quando um baile, um forró na cidade, distante mais de uma
hora. Ele diz que mesmo nos piores momentos, quando a colheita não era boa, “nunca ninguém ajudou, nem governo, nem ninguém”.
Trabalho não tinha e, segundo ele, a oferta é ruim até hoje. A região onde vivia faz parte do Polígono das Secas, e ainda que os períodos de
estiagem sejam menores do que no sertão, a falta de chuvas é o pesadelo recorrente: “a gente fazia sempre uma reserva, guardava um
bocado para dar para o ano. Mas teve época de passar seis meses sem chover”. Então, depois de meses de trabalho – “e trabalho lá é só na
roça, trabalho duro, arrancando toco!” – a família vê todo o investimento ir por terra, literalmente. E aí, o que falta lá? André responde sem
hesitar, outra vez rindo da situação: “Lá faz falta tudo!”.
Se alguém por mim perguntar
Diga que eu só vou voltar
Quando eu me encontrar
Preciso me Encontrar, Cartola
A vida na roça, na verdade fica reduzida a cada dia, como a tese dos Alcoólicos Anônimos ao contrário – hoje, eu consegui comer, hoje a
semente brotou, ao invés de “hoje eu não bebi”. O risco de voltar à estaca zero é permanente. E então, o que é um modo de vida, começa a se
tornar um modo de não-vida, onde tudo é interditado, num reino de desesperança. É disso que fala André, quando narra a rotina de
dificuldades. Como outros migrantes, Jackson André não renega a vida na área rural e nem a possibilidade de viver da agricultura. “Se tivesse
condições, eu estava lá até hoje. Na roça dos outros não, mas se a terra fosse minha, tendo condições, eu tava lá.” Em São Paulo, depois de
um período procurando trabalho, se adaptando a nova vida, André voltou a estudar e está na primeira série do Ensino Médio. Seu grupo de
amigos é formado basicamente de outros jovens migrantes, até mesmo de Águas Belas. A namorada trabalha na Associação de Moradores
de Paraisópolis, e André trabalha de dia como frentista, num posto de gasolina e estuda a noite. Tem casa com luz elétrica, televisão, rádio,
som, e tem talvez um sentimento de pertencimento. Mesmo que na base da pirâmide, ele se sente um homem do mundo, está no páreo. E,
só para constar, o sorriso de André, hoje, é ornado com um aparelho ortodôntico. Não é o prateado, daqueles antigões. É moderno, mais
discreto. Colocou em São Paulo.
57
FRAGILIDADE E FORTALEZA
Maria do Desterro Ribeiro da Paz
Novo Santo Antonio, Piauí
Há seis meses em Paraisópolis, São Paulo
Hoje mesmo eu estava falando que lá na roça tá seco. Meu filho falou que se nós tivesse lá, nós ia morrer de sede. Eu
disse que nos outro ano ninguém num morria. A gente procurava onde tinha água. E ele perguntou “Mãe, e o comê?”
Mas nós nunca passou fome, por que eu trabalhava! Depois pronto!
Maria do Desterro
Maria chegou a São Paulo há apenas seis meses. Veio do Piauí, do município de Novo Santo Antonio para ficar com o marido. Ele, sozinho,
começou um processo de migração faz muito tempo - vinha, passava três, quatro meses trabalhando, ganhava dinheiro e voltava para o
“interiorzinho” onde morava a mulher e os dois filhos. Para Maria do Desterro é a primeira visita a São Paulo. Trouxe o filho e a filha, vendeu o
fogão recém comprado em Novo Santo Antonio e tudo o que podia vender para juntar dinheiro para a viagem. Aqui o marido adquiriu
geladeira e televisão. Mas Maria só pensa em voltar para sua terra. Quando chegou, chorava dia e noite. E ainda agora fala com carinho da
terra, da casa e do riacho, e lembra com saudade das quatro curiquinhas, os passarinhos, que a irmã ficou “tomando de conta”. Quando a
tarde, ela chegava da roça, os pássaros chamavam seu nome.
Maria mora nos fundos de uma vielinha de mais ou menos uns 20 metros, no meio de Paraisóplois, um bairro popular, derivado de uma favela,
que tem cerca de 100 mil habitantes. Está cercada de paredes por todos os lados. Às vezes se assusta com o barulho e com o movimento da
comunidade. A primeira vez que “chegou na boca da viela”, viu um motoqueiro, que tinha batido com a moto, caído lá na frente, na rua. Até
hoje treme ao lembrar a cena. A vida na favela sem dúvida representa uma solução para o problema de moradia que se coloca para o
migrante que chega a metrópole sem recursos e sem trabalho. A característica da “ocupação ilegal”, do improvisado, é fundamental porque
torna os aluguéis e compras acessíveis, não são pagos impostos nem taxas, o que viabiliza a moradia em locais, em geral, a uma curta
distância do trabalho. Existem moradias na favela que desafiam todos os conceitos de arquitetura e engenharia. O cantinho de Maria do
Desterro é uma dessas moradas.
Entre dois mundos
O marido começou a vir para São Paulo fazer dinheiro a convite da irmã, que migrou há muito tempo. Ele passava um tempo na cidade, fazia
algum dinheiro, voltada para a roça. Mas, ano passado, decidiu que Maria deveria vir ficar com ele definitivamente em São Paulo, por que o
salário que ganhava não dava mais para pagar aluguel e ainda mandar dinheiro para Novo Santo Antonio. Ela não queria vir, mas ele insistiu.
“Só fiz colher o arroz. Ficou feijão, milho, tudo lá para colher. Mas ele paga aluguel aqui, manda pra mim... o que é que fica? Ele ganha só o
salário, um salarinho feito... e aí fica o que? Nem pra mim nem pra ele...”, pondera Maria, encontrando os argumentos para a decisão do
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marido. A vida de Maria foi construída na roça, desde pequenina, na convivência com o pai, como ela diz. A terra lá nos arredores de Novo
Santo Antonio - “uma hora de bicicleta, da cidade até lá”- é da família há gerações e vai passando de um filho para outro. Bisavó, avó, mãe,
todo mundo nascido na mesma terra. E ela faz uma narrativa que parece remeter a outro tempo, uma Idade Média que só é violada pelo
radinho de pilha. Maria não frequentou escola, por que o pai não queria. Mesmo quando ele matriculou os dois filhos mais velhos na escola,
quando eles efetivamente iam a aula ele ficava bravo, dizia que tinham ido fazer “safadeza”...
Tanta coisa por fazer
Novo Santo Antonio fica na Microrregião de Campo Maior, com uma área de 545km2. O município foi criado em 1994, desmembrado
de Alto Congá. A população é estimada em 3.547 pessoas, pelo IBGE, 2009. A densidade demográfica é de 5,79 habitantes por km2 90,27% das pessoas estão na zona rural e 60,20% da população acima de 10 anos é analfabeta. Dados de 2008, IBGE, registram 17
escolas de Ensino Fundamental e uma de Ensino Médio. Segundo Censo do IBGE, 2000, dos 715 domicílios pesquisados, apenas 57
possuíam energia elétrica; apenas 55 eram abastecidos pela rede distribuidora e 568 viviam de poços ou nascentes; 45 dispunham de
banheiro ou sanitário. Não havia coleta de lixo. A agricultura está baseada na produção sazonal de arroz, cana de açúcar, feijão,
mandioca e milho. No ranking do IDH municipal do Piauí, 2000, Novo Santo Antonio ocupa a 214ª posição, entre os 221 municípios
piauienses, com um IDH-M de 0,509. No ranking nacional, está na 5474ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros.
No curso do rio
Maria tinha muita vontade de ir para escola, e quando tinha quinze anos, tomou coragem e “colocou o seu nome na lista”, sem o pai saber.
Quando ela voltou do primeiro dia de aula, a mãe avisou que o pai tinha saído muito bravo para a roça. E ela esperou, com medo. Fez tudo o
que tinha que fazer, encheu as vasilhas de água, pisou o milho. Mas não escapou.
“E ele me pegou com um rolo de corda. Me deu uma pisa... Eu nunca respondi a ele, mas esse dia eu disse: 'Meu pai, eu tenho fé em Deus que
fica pela primeira e derradeira vez que o senhor me bate. Eu vou tirar o meu nome do colégio, e vou dizer para a professora que o senhor só
chama o colégio de cabaré'. Então, por causa de ignorância dele, e minha também, eu não sei nem assinar meu nome”, conta Maria, com a
singeleza e o cuidado de quem revela tesouros, segredos que foram os marcos de sua vida, definiram seus caminhos. Seria esse mesmo tipo
“Tinha hospital não,
nem em Novo Santo
Antonio...”
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de submissão que faz Maria abandonar suas curuquinhas e a vida que conhece tão bem e partir rumo a um outro mundo, seguindo o curso da
vida do marido, numa cidade onde mal consegue se movimentar?
Ela não sabe ler nem escrever, e nem sabe a sua idade. Precisa mostra a carteira de identidade. Pois a notícia que temos para Maria é que ela
nasceu em 1964 e tem só 46 anos. E, agora, recomeça a vida, meio a contragosto, por que o que ela queria mesmo, de verdade, era voltar
para roça, para a plantação e para as galinhas no terreiro, e principalmente para perto dos irmãos. Maria compreende, entretanto, que em
São Paulo vai ter suas compensações. O marido, que “graças a Deus” deixou de beber, tem trabalho certo. Os filhos vão ter escola pertinho
dali, e tem também serviços de saúde. E na roça? Maria narra a sua experiência:
“Ninguém nunca foi num hospital. Quando ficava doente era remédio caseiro. Eu, por tentação, cai e quebrei meu braço. Meu avô matou uma
criação, uma ovelha. E o povo veio tudo almoçar. A irmã da minha mãe vivia dentro de casa. Meu prato era de esmalte, e derrubava,
estampiava, tava feioso... E ela dizia, ´Maria, não bota tua comida nesse prato, que parece penico de quem tá grenguinha.´ A gente só
cozinhava na lenha, e eu naquela agonia com a tia, peguei, sentei o pé na trempe, e a trempe rolou, caiu, queimou daqui pra cá no meu
braço. Foi embora a manga do vestido e tudo. Ai, minha bichinha, num foi nada não! Meu pai foi no mato, tirou uns talos de carnaúba, fez
uma caninho de um lado e do outro, amarrou com as linhazinhas. Todo dia tinha que tirar para furar as popoquinha da queimadura...E todo
aquele tempo para sarar. Tinha hospital não, nem em Novo Santo Antonio...”
Na roça, Maria acordava cedinho, para fazer café. Pegava água no riacho, que era pertinho, “na cheia, dava para ver de casa”. Os filhos iam
para escola e ela ia para o roçado. É boa de trabalho, forte e disposta. Conta que o pai dizia preferir trabalhar com Maria do que com cem
homens ruins. Quando o marido vinha para São Paulo, a deixava na roça com os meninos e “dois potes de água”. Os vizinhos perguntavam o
que ia ser da vida dela, e ela respondia – “eu tenho esses braços é para trabalhar!”
Em Novo Santo Antonio, deixou a casa que até hoje não tem luz elétrica. Ainda usam candeeiro, vela, lampião e sono cedo, para acordar
cedo, ainda madrugadinha.Cozinhava na lenha e no carvão. Fazia carvão para seu uso e também para vender na vizinhança. Cada galão de
carvão custava R$ 1,00. Do que plantava, quando colhia, conseguia vender um pouco, para fazer uma compra, pagar as contas, por que as
vezes comprava fiado no comércio. D. Maria trabalhava também na casa dos aposentados. Todos já mais velhos, gastos do trabalho na terra,
os aposentados, às vezes com uma roça grande, não conseguem cuidar sozinhos, e contratam um trabalhador. “É uma diarinha de seis
reais”, explica Maria. Estes tais aposentados hoje ganham um novo papel na família e na comunidade. São os únicos que têm renda certa. O
antigo hábito de dividir uma criação foi deixado para trás, com o surgimento destes compradores: “Agora, quando mata uma criação lá, um
porco, eles só saem oferecendo na casa daqueles aposentados. Sabe por que? Por que todo mês o aposentado tem aquele dinheirinho para
comprar. Se ele não tem o dinheiro na hora, depois vai ter. Vê se alguém vai na minha casa! Antigamente tinha isso, de dar um pedaço. Mas
agora isso acabou. Até do próprio irmão tá difícil. É desse jeito”, conta Maria.
Viver é muito perigoso
Grande sertão: veredas, Guimarães Rosa
Dona Maria parece que não entendeu ainda a lógica da migração. Entende que em São Paulo se ganha dinheiro. Isso é verdade. A sua roça
de subsistência não gerava renda. Isso é verdade. Mas também é verdade que o irmão dela veio para São Paulo, o único da família que
migrou, e foi assassinado. Ninguém mais veio. “Meu irmão tava aqui, e mandou dizer que eu podia ajeitar os capão (frangos capados, de
carne gorda e macia), que ele já tava chegando. E depois chegou a notícia que mataram. E eu tinha medo de que também matassem meu
marido.” Dona Maria chora, ainda magoada, vivendo seu luto. Mas o marido de Maria já mandou o sobrinho, em Novo Santo Antonio, vender o
arroz colhido, que ela deixou por lá. Ela insistiu que não, que ele não vendesse, e já faz planos de comer o feijão que também ficou na roça. O
argumento, dela, é que não consegue trabalho em São Paulo, e é melhor ir cuidar da roça. Talvez Maria pense no riacho que corre lá pertinho
da casa e nos banhos no fim da tarde. Do mundo moderno, talvez lhe baste o som do rádio, que ficava ligado direto, “comendo pilha”. O
resto são os assombros da cidade grande.
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ROCINHA – UM NOVO LUGAR PARA PLANTAR
O Centro Cultural na Estrada da Gávea teria sido o primeiro imóvel construído na Rocinha, por volta de 1930. Nos anos 80, dizia-se que
moravam na favela mais de 200 mil pessoas. Mas o censo realizado em 2009 pela Secretaria de Estado da Casa Civil, na maior favela da
América Latina, mostra que a Rocinha tem 100.818 habitantes e 38.029 imóveis.
A Rocinha foi elevada a condição de bairro em 1993, e tem a sua própria Região Administrativa. O nome do bairro viria das plantações de
legumes e hortaliças, feitas pelos primeiros moradores, que vendiam nas casas vizinhas, em São Conrado e Leblon. Com pequenos roçados
com terrenos de cultivo artesanal, a área ficou conhecida como Rocinha. Existe também uma versão de que o nome Rocinha seria uma
referência à uma antiga moradora, muito branca, com cabelos quase louros, apelidada de "russinha". Por ser muito conhecida na região, as
pessoas falavam: "vou lá onde mora a russinha".
Segundo o site Favela tem Memória, o período de maior crescimento da Rocinha aconteceu durante o 'boom' imobiliário dos bairros de
Ipanema, Leblon, Gávea e Jardim Botânico nos anos 50 e 60, quando milhares de nordestinos se fixaram na favela, atraídos pelas
oportunidades na construção civil. Já na década de 40, com o crescimento de Copacabana, que empregava também mão de obra sem
qualificação nas obras e em serviços, as favelas da Zona Sul experimentam um crescimento significativo, atraindo moradores que precisam
estar perto do seu local de trabalho. Hoje a favela continua atraindo
No que ser refere a infra-estrutura, segundo dados do Instituto Pereira Passos, 2000, a Rocinha dispunha de uma rede de esgoto que atingia
60,50% dos domicílios; os serviços de limpeza chegavam a apenas 9,59% das residências, mas 96,20% tinham abastecimento de água.
Segundo matéria publicada, em 2008, na Revista da Ação Social Padre Anchieta, ASPA, que desenvolve ações na comunidade, a Rocinha
possuía, três Associações de Moradores, três Centros Integrados de Educação Pública, CIEPS, três jornais, duas rádios, dois postos de saúde,
duas agências bancárias, duas linhas de ônibus, dois supermercados, Associação Comercial, Escola Estadual, Escola Municipal, Balcão de
Direitos, rede de televisão exclusiva, Paróquia com 10 Capelas, Igreja Metodista, agência dos CORREIOS, escolas de esportes, escola de
samba (Acadêmicos da Rocinha), Casa de Cultura, e diversas ONGs e instituições que oferecem cursos, serviços sociais e atividades diversas.
O movimento comunitário da Rocinha viveu períodos muito tensos, com a morte de duas lideranças importantes na história da favela, Maria
Helena e Zé do Queijo. A primeira associações de moradores da favela foi fundada em 1961 – a União Pró-Melhoramentos dos Moradores da
Rocinha, UPMMR.
A União foi fechada no final da década, pelo regime militar. Nos anos 70, o movimento comunitário voltou a atuar, surgiram novas lideranças
e novas associações, que lutavam por melhorias, como luta pela rede de água encanada, no final da década. Atualmente, a União PróMelhoramentos da Rocinha é uma das maiores associações da comunidade.
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QUEM VIU A CIDADE CRESCER
Francisco Pereira Gomes
Veio de Hidrolância, Ceará
Mora na Rocinha, Rio de Janeiro
Em todo canto do mundo tem que ter um cearense. Tem! Tem! Tem!
O cearense é bicho macho prá andar. Até na lua tem gente do Ceará
Forró Mastruz com Leite
O primeiro da família a desembarcar no Rio de Janeiro foi João, irmão mais velho de Seu Francisco. João desembargou no então Estado da
Guanabara, Rio de Janeiro, depois de uma longa viagem no pau de arara, uma viagem que deixou morto, em Feira de Santana, Bahia, um
parceiro. O caminhão virou na estrada.
Seu João desembarcou quando na capital da República, em 1954. Era uma época de oportunidades, com o país crescendo, e principalmente
oportunidades de trabalho, mau ou bem remunerado, com maiores ou menores possibilidades de mobilidade. De qualquer maneira, para o
homem que não encontrava opções na área rural, o bem mais precioso era e continua sendo a esperança. A mera perspectiva de trabalho e
salário fazia a estrada de terra se abrir num grande horizonte, rota de fuga da miséria e da fome.
Nos anos 50, oito milhões de brasileiros fizeram o mesmo caminho que fez Seu Francisco e antes dele o irmão João.
Esse número
correspondia a aproximadamente 24% da população rural do Brasil, naquela década. Nos ano 60 outros 14 milhões fariam o mesmo
movimento rumo às cidades. E nos anos 70, outros 17 milhões migraram, cerca de 40% da população rural na década. Em 30 anos,
migraram 39 milhões de pessoas.
As fronteiras agrícolas estavam em expansão, principalmente entre os anos 50 e 80, com a criação de estradas de rodagem e de infraestrutura. Esse período de desenvolvimento faz chegar à população rural a história de um novo mundo de possibilidades. São alternativas
que surgem para aquele grupo que vive isolado nas pequenas propriedades no interior, cavucando a terra em lavouras que mal produzem
para alimentar a família. Nesse lugar, a prioridade do vivente só pode ser livrar-se da miséria e da desproteção. Qualquer sacrifício
compensa para encontrar alternativas e qualquer mudança só pode significar melhoria. Não há riscos na empreitada de migrar, por que não
se tem quase nada a perder. Ao contrário, o risco de não tentar algum nível de melhoria é a pior opção.
A longa citação a seguir vale pela construção de um cenário que lança luz sobre o processo que leva o morador da área rural, sacrificado pelo
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clima, pela pobreza e pela falta completa de acesso a políticas públicas ou serviços que possam garantir-lhe pelo menos a sobrevivência, a se
decidir migrar, mesmo sem recursos, objetivos ou subjetivos, para enfrentar a “cidade grande”:
“Na cidadezinha, fazem a feira, assistem à missa, participam das festas, vendem o que resta de sua produção. E, também, a cidade um pouco
maior, aonde vão de vez em quando. E observa: o ônibus, o trem, o caminhão, o jeep, o automóvel; o rádio do bar, que toca música, dá
notícias, irradia futebol; o consultório do médico, a farmácia, o posto de saúde, tão longes; as ruas iluminadas; o cinema; o modo de vestir
das pessoas; a variedade de alimentos no armazém; a escola. Depois, já nos anos 60 e 70, a televisão toma, no bar, muitas vezes o lugar do
rádio. Até nas pequenas cidades ou vilarejos lá está ela, no alto, colocada no ponto de encontro ou na praça: todos estão vendo a novela das
oito. Como na música notável de Chico Buarque, vêem o Brasil na TV. Observam tudo e conversam. E recebem cartas de parentes,
compadres e vizinhos m morar na cidade – cartas escritas e lidas pelo favor de quem é alfabetizado. E as cartas também falam de outra vida,
melhor, muito melhor. A cidade não pode deixar de atraí-los.”
Ninguém sabe dizer como a decisão foi tomada. Todos mencionam um parente, que estava no Rio ou em São Paulo, e que funcionou como a
ponte para a travessia, como o ponto de apoio para se lançar “no meio do mundo”. Mas como foi exatamente que o primeiro dos retirantes
decidiu cair na estrada, como pioneiro, ninguém sabe dizer. “Ouvia falar de uma vida melhor, né? Dizia que tinha trabalho aqui.” E tinha
mesmo. O irmão de Seu Francisco, João, achou trabalho e foi ele que acolheu os outros irmãos que engrossavam o fluxo da migração. Seu
João se ajeitou logo e mandava dinheiro para a família que ficou no Ceará. A história de vida, narrada por Francisco, mostra que João acertou
na escolha – logo que chegou arranjou trabalho na construção de um prédio em Copacabana. E dali nunca mais saiu - foi zelador do mesmo
prédio e lá se aposentou como porteiro. Com o trabalho de João e o dinheiro que mandava, a vida da família melhorou lá em Hidrolândia. Seu
Francisco contava o tempo, esperando a hora em que ele mesmo pudesse refazer o caminho aberto pelo irmão e partir também para o Rio de
Janeiro.
Manancial com pouca água
Hidrolândia, no Ceará, semi-árido nordestino, nasceu às margens do Rio Botoque, que hoje corta a cidade de 19 252 habitantes (IBGE,
2009). O rio Botoque já deu o nome à cidade, que também se chamou Cajazeiras e Cajazeiras do Timbó. O nome atual vem de uma
fonte de águas sulfurosas, que atraiu romarias à cidade, em busca de seus efeitos curativos “milagrosos”. O povoado tem origem no
século XVIII, quando em torno da Casa Grande se reuniam agregados e serviçais domésticos. Em 1882 já é um povoado, e é elevada a
município em 1957. O Índice de Desenvolvimento Humano de Hidrolândia, em 2000, era de 0,638, No ranking do IDH municipal do
Ceará, ocupava a 77ª posição, entre os 184 municípios cearenses. No ranking nacional, estava na 3972ª posição, entre os 5.560
municípios brasileiros. A cidade tem uma rede de serviços de saúde com seis estabelecimentos, que oferecem 25 leitos para
internação. A rede de ensino fundamental dispõe de 46 escolas; o ensino médio tem duas escolas e a rede de pré-escolar tem 41
escolas.
O dinheiro do irmão chegava pelo correio, num processo lento entre a emissão da remessa e o recebimento. Era um tempo de dificuldades,
isolamento e fome. “Um telegrama levava quinze, às vezes vinte dias pra chegar lá na roça”, lembra Seu Francisco. E a sua impressão,
olhando para o passado é que “a gente vivia igual índio”.
Pai, mãe e doze filhos dedicados ao roçado da família, à mercê do tempo bom ou ruim, no silêncio do sertão sem eletricidade, parcamente
iluminado à luz do candeeiro. A família tirava seu alimento da lavoura e se sobrasse alguma coisa, vendia. “E vivia era só disso mesmo.
Naquele tempo não tinha emprego na roça, não. Plantava arroz, feijão, milho. Criava galinha, porco, cabrito, e tinha uma vaquinha, só pra o
leite. Quando matava um animal, vendia na feira, para comprar uma roupa, uma coisa. Mas isso que sobrava para vender não tinha valor
quase nenhum. Por que isso todo mundo tinha lá”.
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Se no seu tempo, no inverno nordestino que acontece entre janeiro e maio, a chuva não vem, a calamidade se anuncia, trazendo junto o
terror de todos – a fome. O Ceará, à época da migração de João e Francisco, aparece no texto do “Plano de Reforma Agrária”, elaborado em
1967, como uma área de intenso fluxo migratório, com fortíssimo êxodo rural, numa região em que quase três quartos da população viviam
da agropecuária. Todo mundo queria sair de lá.
“Então era assim – se colhia dez sacas de feijão, vendia cinco. Era uma vida muito difícil. Às vezes, eu que era o mais novo comia só uma mão
de farinha para dormir aliviado. Durante todo o verão a gente vai gastar umas cinco, seis sacas de feijão. Deu dez, a gente vende cinco.
Vendia baratinho. Vendia aquilo para comprar roupa. Fui criado assim”, vai contando Seu Francisco. Ele diz que quando ele tinha nove anos já
estava definida a sua parte de trabalho na roça – “a gente plantava assim: o mais velho ia com a enxada na frente, cavando, e os menorzinhos
vinha colocando as sementes. Primeiro um colocava o feijão, o outro vinha atrás para colocar milho. Ainda tem disso lá”.
A experiência de Seu Francisco foi a do isolamento. O seu pai era analfabeto, mas fazia questão que os meninos fossem a escola, e Francisco
chegou à terceira série. Mas nada era fácil. Naquele tempo, nem na sede do município tinha eletricidade. Havia apenas um gerador que era
desligado às 10 da noite. “Olhe, lá na roça a gente não via nada. Levava um mês para passar um caminhão por lá, e a gente saia correndo
atrás. Hospital a gente nem ouvia falar. Curava tudo com chá, com as ervas e por costume, até hoje eu faço assim.”
A casa que Seu Francisco mora hoje, na Rocinha, comprou do irmão João. Todos os irmãos que vieram para o Rio ficavam morando com o
João. No Rio, trabalhava na construção do Túnel Rebouças, quando houve uma grande explosão, morreu gente, e Seu Francisco
imediatamente mudou de emprego. Trabalhou em bar, depois como zelador de um prédio, ajudante de obra. Mas seu emprego fixo mesmo
foi na Viação Amigos Unidos, como trocador e depois motorista. Lá se aposentou. “Hoje tá tudo mudado, tem aposentadoria rural e tem a
televisão que ensina tudo. Quando o cabra chega aqui já está esperto. Naquele tempo, quando chegava uma pessoa do nordeste aqui, a
gente chegava brabo. O cara não sabia nem andar. Vai andando um atrás do outro. Eu brinco que se tiver um buraco, cai um atrás do outro
também, por que na roça a gente anda na veredinha, em fila, e aqui andava igual”, brinca Francisco.
A esposa de Francisco também veio de Hidrolândia. Trabalhava como camareira no Hotel Copacabana Palace. Quando foi demitida, pegou o
dinheiro da indenização e comprou um quiosque em Copacabana e depois se transferiu para a Praia de São Conrado. E Seu Francisco, há 18
anos, passa o dia ali na Praia, de frente para o mar, cuidando de seu quiosque, convivendo com vizinhos ilustres, celebridades. Considera o
Rio de Janeiro a melhor cidade do mundo. E não pensa em voltar para Hidrolândia. Não existe essa hipótese. Nunca!
“Ouvia falar de uma vida melhor, né?
Dizia que tinha trabalho aqui.”
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MULÉ, O HOMEM ERA RUIM QUE NEM A
PRECISÃO
Margarida Mozim de Pontes
Veio de Cacimba de Dentro, Paraíba
Mora na Rocinha, Rio de Janeiro
Seu José, mestre carpina, e que interesse, me diga,
há nessa vida a retalho que é cada dia adquirida?
espera poder um dia comprá-la em grandes partidas?
Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto
O tempo para Dona Margarida é marcado pelas festas de São João. Ela tenta determinar há quanto tempo está no Rio de Janeiro contando
nos dedos as vezes que já voltou a Cacimba de Dentro para as festas juninas. Conta uma, pula um ano, voltou dois atrás, enfim... Não sabe
direito. Sem a referência das colheitas, da plantação, das chuvas, dos nascimentos e mortes, fica mais difícil contar o tempo. Então, a gente
não sabe dizer ao certo quando Dona Margarida chegou à Rocinha. Ela acha que “ainda vai inteirar onze anos”, desde que veio de Cacimba de
Dentro para o Rio de Janeiro.
Margarida mora na Rocinha com o filho e a nora. No momento do encontro, ela está no Clube Umuarama, na Estrada da Gávea, que funciona,
no período pós-tempestades no Rio de Janeiro, como abrigo para as famílias que ficaram desabrigadas no início de abril. Dona Margarida não
é uma das desabrigadas, mas vem à tarde para o clube, ajudar no que puder. Já trabalhou na cozinha, na preparação da comida, e se orgulha
de ter usado touca no cabelo, sabão especial para lavar as mãos, cuidado muito bem da higiene dos alimentos. Já ajudou a separar as
doações e se surpreende, impactada, com a quantidade e variedade de roupas e sapatos que chegam. “É muita coisa, mulé!”
Ela se deslumbra com a abundância em que vive o povo na favela – “aqui se tem de tudo. Tem roupa... lá na roça tinha umas roupinhas que
eu costurava na mão, com a agulha e linha, fazia o calçãozinho pros menino. Ninguém num tinha nem chinelo. Comia passarinho com feijão
e tacaca, um pebinha... Vivia assim no meio do mundo, tomando banho no rio, comendo uma piabinha”, lembra Margarida. Para esclarecer,
“peba” é uma espécie de tatu, uma iguaria para os sertanejos. A favela, para Margarida, é um oásis, um enorme horizonte vertical com suas
casinhas morro acima, empilhadas umas nas outras, abrigando tanta gente, uma variedade enorme de amigos e histórias, novidades.
Aqui está feliz e segura. Trata da saúde com a Dra. Maria José, no hospital psiquiátrico Phillip Pinel. A médica que passa mais de uma hora
conversando com ela, para saber tudo. Mediu o colesterol, tirou sangue, sabe a quantas anda a pressão sanguínea... A doutora “olha tudo
como é que está”. E Dona Margarida pergunta – “sabe o que eu acho bom aqui? É que eu não sei ler, não sei nada, mas eu vou para onde eu
quiser”. “Onde quiser”, para Dona Margarida, é circular um pouco ali dentro da favela, nas redondezas. Liberdade sim, um bem raro, a
autonomia para andar, se relacionar, conversar e até dar uma entrevista. Por que não?
69
Cacimba de Dentro, uma água nova
Segundo o IBGE, 2009, são 17.654 habitantes, na cidade na região do semiárido, na Paraíba. O IDH é de 0,548. No ranking do IDH
municipal da Paraíba, Cacimba de Dentro ocupa a 197ª posição, entre os 223 municípios paraibanos. No ranking nacional, está na
4031ª posição, entre os 5.560 municípios brasileiros. O povoado começou a formar-se por volta de 1880, com o sítio Cacimba de
Dentro, propriedade de um cobrador de impostos. Nas primeiras décadas do século XX, novos moradores, vindos de Araruna, povoado
vizinho, chegaram às redondezas construindo casas, criando um mercado público e casas de comércio. A origem do nome deve-se ao
fato de existirem na propriedade primitiva duas cacimbas de água de ótima qualidade- a "velha" e a "nova". Como a cacimba nova
ficava mais para dentro da mata, tornou-se “a cacimba de dentro”, e acabou batizando o sítio e mais tarde o município. O povoado de
Cacimba de Dentro tornou-se distrito de Araruna em torno de 1937, e foi elevado à categoria de município em 1959. Cacimba de
Dentro, segundo dados IBGE, 2009, tem sete estabelecimentos de saúde, que oferecem 30 leitos para internação. A rede de ensino
tem 38 escolas do ensino fundamental, duas de ensino médio e 31 de pré-escolar.
A história de Margarida vida é a trajetória possível daqueles que vivem na desproteção social, as mulheres da área rural. Margarida teve
muitos filhos - Carmoniza, Francisco, Paulo, Graça, Genival, Luzinete, Luzimar, Antonio, Pedro; Francisca, morta de sarampo, Lourival, morto
de apendicite, Manuel, Maria e Maria José morreram pequenos, entre recém nascidos e um ou dois anos. Os mortos estão incluídos nas
estatísticas das crianças que morrem no abandono, e engrossam ainda a narrativa antiga e atual dos pais nordestinos acostumados a assistir
a morte das crianças que “não vingam”, vítimas mais do que tudo da desproteção e da pobreza.
- Mas por que morria assim, D. Margarida?
- Dava uma doença, uma coceira e não tinha jeito de tratar, não tinha médico nem hospital, pra acudir.
Margarida acha que vai completar 69 anos. Acha que é isso. Os pais adotivos a teriam registrado sem saber ao certo quando ela nasceu e ela
também não tem certeza. Sabe que nasceu em Mata Velha, no caminho de Araruna. Vivia de que, Dona Margarida? Da mandioca. Plantava,
colhia e fazia farinha, na casa de farinha do vizinho. Pagava a utilização da casa com uma parte da sua produção. E a memória enfileira os
marcos de sofrimento na vida de Margarida. A morte das crianças, por exemplo, e o pânico de mais uma gravidez. Ela conta sorrindo como
fugia do marido alcoolizado, para escapar do sexo e do risco de engravidar.
As coisas começaram a mudar quando a filha saiu de Cacimba de Dentro. Uma mulher de Natal, Rio Grande do Norte, visitou Cacimba de
Dentro e pediu para levar a filha, Carmoniza, para trabalhar com ela, como doméstica, em Natal. E lá se foi Carmoniza. A recompensa pela
ausência da filha não demorou a chegar. Pelo correio recebeu dinheiro, comida. Carmoniza mandou fogão e até o primeiro sapato do irmão
mais novo, Paulo. Ninguém teve mais dúvida de que aquele era o caminho a trihar, e os filhos foram partindo. Vale a narrativa:
“O Paulo comprou uma casa na rua (na cidade), e entregou pra mim. E eu fiquei só sofrendo. Sabe quantas vezes eu fui no hospital? Umas
doze vez. Por que quebrei o resguardo e fiquei doente. Tomei sabe quantos choque? Tomei seis choques. No derradeiro choque foi que eu
conheci que eu tava melhor. O choque é assim, bota o paninho assim no dedo, bota a coisa na testa da gente, assim, o pauzinho na boca da
gente, e ligava. Ali a gente morria. Ficava ali morta. No derradeiro eu retornei. Passei seis meses dentro de João Pessoa, sem ninguém ir me
visitar, porque o pai dele era mais ruim do que precisão, só prestava para beber e cair bêbado pelo meio do mundo...”
Como quebrou o resguardo? Comeu coloral. Comeu a comida com o coloral, que uma vizinha fez, e depois viu o vulto passando em casa.
Nesse tempo, de resguardo, só se tomava banho de quinze em quinze dias. E nesse dia fatídico em que comeu o coloral, depois do banho, o
sangue que devia descer, não desceu mais. Margarida ficou em casa, doente, por mais de quinze dias, até que os filhos decidissem que era
preciso procurar um médico. Mas aí já era tarde, o sangue subiu e Dona Margarida teve “uma queda na mente”. Ficou desorientada, sem
saber o que estava fazendo. A criança morreu. E o esquisito é que ela lembra de tudo, mesmo com a “mente caída”.
“...eu ia pra o arribo da serra
catar xique-xique pras
crianças comer, que tava
tudo passando fome.”
Severino, retirante, não sei bem o que lhe diga: não é que espere comprar em grosso de tais partidas,
mas o que compro a retalho é, de qualquer forma, vida.
Morte e Vida Severina, João Cabral de Melo Neto.
Dona Margarida quando criança e como filha adotiva, tinha o compromisso de cuidar dos menores, os irmãos adotivos e os outros pequenos
dos vizinhos, enquanto os pais estavam na roça. Os pais biológicos ela nem conheceu. O pai “vivia no mundo” e a mãe “ganhou o mundo com
outro homem”, quando ela tinha um mês de nascida. “Sabe o que era meu comer?”, pergunta Margarida. “Matava lagartixa e calango, fazia
um molhinho e me dava para beber.”
Com dez anos, tomava conta de tudo - de roçado, da casa e das crianças. “Lá, com uma seca muito grande, eu ia pra o arribo da serra catar
xique-xique pras crianças comer, que tava tudo passando fome. Descascava ele – não tem macaxeira boa? pois é que nem ele – botava no
fogo de lenha e dava de comer a tudinho”. Quando completou quinze anos, “era para tomar conta de gado, de cavalo, de cabra, de jumento,
era pra ir para o roçado. Tinha que passar no rio com a água pelo pescoço. Tinha que passar. Ou passava ou entrava no pau. Eu sei que eu
sofri demais, minha filha. A terra era grande, mas eles morreram tudo e eu não fiquei com nada”, lamenta Margarida. Conheceu o marido em
Pedra Preta, e seguiu o conselho do povo, que lhe dizia para casar. Teve seus filhos, e fez sua vida, como pode, mas faz uma denúncia – “eu
nem sei ler, eu nem sei costurar... não sei nada”, segundo ela graças ao pai e ao marido, todos dois muito ruins. E lá, na roça, a mulher “tinha
filho como cabra que dá cria”.
No Rio de Janeiro, Dona Margarida já teve proposta de namoro e casamento. Mas não quer nem pensar nisso. Está feliz com a vida que tem,
principalmente com o sossego das tardes quando o filho dorme e a nora está no trabalho. O filho, acidentado, foi aposentado por invalidez;
ela tem a pensão do finado, um dinheirinho que dá para ir vivendo. Se encontrar alguém para conversar, melhor ainda. Bom então, para Dona
Margarida, a vida está mais que perfeita. Ainda que mais não fosse, ela sabe que, bem diferente do que acontecia em Cacimba de Dentro, ela
tem a quem recorrer: a Dra. Maria José do Pinel olha por ela.
71
CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E
PECUÁRIA DO BRASIL - CNA
SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM
RURAL – SENAR
INSTITUTO CNA
Diretoria Executiva
Conselho Deliberativo
Conselho de Administração
Senadora Kátia Abreu
Senadora Kátia Abreu
Moisés Pinto Gomes
Presidente
Presidente
Presidente
Agide Meneguete (PR)
Titular: Júlio da Silva Rocha Júnior
Titulares:
1º Vice-Presidente
Rui Carlos Ottoni Prado
Fábio de Salles Meirelles Filho (MG)
Presidente da Federação da Agricultura e
Pecuária do Estado do Espírito Santo
Vice-Presidente Executivo
Suplente: Roberto Simões
Pio Guerra Júnior (MS)
Vice-Presidente de Secretaria
Presidente da Federação da Agricultura e
Pecuária do estado de Minas Gerais
Ademar Silva Júnior (MS)
Titular: Carlos Riveci Sperotto
Vice-Presidente de Finanças
Presidente da Federação de Agricultura e
Pecuária do Estado do Mato Grosso –
FAMATO
José Zaferino Pedrozzo
Presidente do Conselho Administrativo do
SENAR – A.R./SC.
Assuero Doca Veronez (AC)
Presidente da Federação da Agricultura do
Estado do Rio Grande do Sul
Vice-Presidente Executivo
Suplente: Ágide Meneguette
Carlos Rivaci Sperotto (RS)
Vice-Presidente Executivo
Presidente da Federação da Agricultura do
Estado do Paraná
Homero Alves Pereira (MT)
Titular: Ângelo Crema Marzola Júnior
Suplentes:
Vice-Presidente Executivo
José Hilton Coelho de Sousa
José Ramos Torres de Melo Filho (CE)
Presidente da Federação da Agricultura e
Pecuária do Estado do Tocantins
Vice-Presidente Executivo
Suplente: Francisco Ferreira Cabral
Júlio da Silva Rocha Júnior (ES)
Presidente da Federação da Agricultura e
Pecuária do Estado de Rondônia
Vice-Presidente Executivo
Titular: Renato Simplício Lopes
Álvaro Arthur Lopes de Almeida
Presidente da Federação de Agricultura do
Estado de Alagoas – FAEAL
Presidente do Conselho Administrativo do
SNAR – A.R./MA.
Andréa Barbosa Alves
Chefe do Departamento de Educação
Profissional e de Promoção Social – DEPPS,
do SENAR.
Vice-Presidentes
Presidente da Federação da Agricultura e
Pecuária do Estado do Distrito Federal
Almir Moraes Sá (RR)
Suplente: José Mário Schreiner
Diretor Financeiro da CNA
Álvaro Arthur Lopes de Almeida (AL)
José Mário Schereiner
Ângelo Crema Marzola Júnior (TO)
Presidente da Federação da Agricultura e
Pecuária do Estado de Goiás
Carlos Augusto Melo Carneiro da Cunha (PI)
Titular: Raimundo Coelho de Souza
Carlos Fernandes Xavier (PA)
Eduardo Silveira Sobral (SE)
Presidente da Federação da Agricultura e
Pecuária do Estado do Maranhão
Eurípedes Ferreira Lins (AM)
Suplente: João Martins da Silva Júnior
Fábio de Salles Meirelles (SP)
Presidente da Federação da Agricultura e
Pecuária do Estado da Bahia
Francisco Ferreira Cabral (RO)
João Martins da Silva Junior (BA)
José Mário Schreiner (GO)
José Hilton Coelho de Sousa (MA)
José Zeferino Pedrozo (SC)
José Alves Vieira (RN)
Luiz Iraçu Guimarães Colares (AP)
Mário Antônio Pereira Borba (PB)
Renato Simplício Lopes (DF)
Roberto Simões (MG)
Rodolfo Tavares (RJ)
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE)
Ministério da Educação (MEC)
Agroindústria (CNI)
Organização das Cooperativas Brasileiras
(OCB)
Ministério da Agricultura Pecuária e
Abastecimento (MAPA)
Confederação Nacional dos Trabalhadores na
Agricultura (CONTAG)
Ademar da Silva Júnior
Presidente da Federação de Agricultura do
Estado de Goiás – FAEG.
CONFEDERAÇÃO DA AGRICULTURA E PECUÁRIA DO BRASIL - CNA
Senadora Kátia Abreu
Presidente
Moisés Pinto Gomes
Superintendência Geral
SERVIÇO NACIONAL DE APRENDIZAGEM RURAL - SENAR
Daniel Carrara
Secretário Executivo
Andréa Barbosa Alves
Departamento de Educação Profissional e Promoção Social
Rosanne Curi Zarattini
Departamento Administrativo e Financeiro
INSTITUTO CNA
Moisés Pinto Gomes
Presidente
Marcelo Garcia
Secretário Executivo
João Cruz
Diretor Técnico
Coleção Desproteções Sociais no Campo
Marcelo Garcia
Coordenação Técnica e Editorial
Cátia Dinniz
Articuladora com as Comunidades
Nívea Chagas
Entrevistas e Redação
Adrien Scultori
Programação Visual e Editoração
www.canaldoprodutor.com.br

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